1M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal I. Elementos da Parte Geral 1ª Secção. Generalidades e noção de acção. § 1 Generalidades. A ciência do direito penal é uma ciência prática e a teoria do facto punível tem igualmente finalidades práticas, de modo que as páginas que se seguem sobre a Parte Geral (PG), que no Código se estende até ao artigo 130º, visam facilitar o estudo teórico em associação com exercícios, trabalhos e exemplos que reflectem problemas do quotidiano dos tribunais e do dia-a-dia das pessoas. Em boa parte, os casos práticos apresentados foram colhidos no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), cuja publicação entretanto se suspendeu, e na Colectânea de Jurisprudência (CJ), que desde há anos edita cinco tomos com jurisprudência das Relações e três com a do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Mas foram também excepcionalmente úteis as sugestões e os ensinamentos colhidos em autores nacionais e estrangeiros. Seria injusto não referir já os livros de Erich Samson, Strafrecht I, de Hans- Joachim Rudolphi, Fälle zum Strafrecht, de Joachim Hruschka, Strafrecht nach logisch- 2 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. analytischer Methode e de Klaus Tiedemann, Die Anfängerübung im Strafrecht. A melhor exposição da PG que nos veio às mãos é sem dúvida a de Kristian Kühl, Strafrecht— Allgemeiner Teil, com uma 4ª edição em 2002. Um “clássico” do direito penal, por toda a parte conhecido, com edições em português (1976, em Porto Alegre) e castelhano (1980, em Buenos Aires), é o livro do Prof. Johannes Wessels, de que em 2002 saiu a 32ª edição a cargo do Prof. W. Beulke. Muito divulgados há mais de duas décadas entre os que em Portugal se dedicam ao direito penal estão o manual do Prof. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts: AT, na tradução espanhola, e as obras de Mir Puig, Derecho Penal — Parte Genereal, Muñoz Conde e García Arán, Derecho Penal — Parte General, e G. Stratenwerth, Derecho Penal — Parte General. I [trad. de G. Romero], entre outros. Dos autores portugueses merecem menção os sumários das Lições de Direito Penal do Prof. Figueiredo Dias (com indicações bibliográficas e textos de apoio), bem como os Sumários e notas de Direito Penal (1976) e os Textos de Direito Penal, elaborados com a colaboração de Nuno Brandão (2001), em curso de publicação; ainda de Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Direito Penal. Questões fundamentais — A doutrina geral do crime, 1996; do Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, I e II; as Lições do Prof. Cavaleiro de Ferreira; e o 2º volume do Direito Penal da Profª. Teresa Pizarro Beleza. A PG contém sobretudo regras de imputação (cf. Tiedemann, Die Anfângerübung, p. 3) que nos permitem analisar se aquele que realiza um tipo de crime deve ser ou não punido: se se verifica erro que exclui o dolo (artigo 16º); se converge uma qualquer causa de justificação (artigo 31º); se o facto não passa da tentativa (artigo 22º) ou se tem características simplesmente negligentes (artigo 15º); se concorrem, no mesmo sujeito, várias práticas delituosas (artigo 30º, nº 1); ou se a comparticipação num facto doloso se fica pela cumplicidade (artigo 27º). Estas regras de imputação vêm descritas expressamente na lei, podendo ser comparadas, em importância e significado para as pessoas, às normas da Parte Especial (PE) que tipificam as diversas formas de comportamento punível. 3 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Em geral define-se o crime como uma acção (ou omissão) típica, ilícita (=antijurídica) e culposa, dando lugar a diferentes elementos, ordenados de tal forma que cada um pressupõe a existência do anterior: a tipicidade, a ilicitude e a culpa ( 1 ). É o sistema Lizst-Beling, a quem se atribui o mérito de terem elaborado a moderna teoria da infracção. A teoria do crime é pois um produto da dogmática; apresenta-se com a estrutura de um método de análise em vários níveis. A doutrina, partindo do direito positivo, ordenou e sistematizou as regras jurídicas que condicionam a possível responsabilidade penal de uma pessoa. A sistematização dessas regras, sob a designação de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, facilita tanto a interpretação como a aplicação prática aos casos concretos. E na medida em que as normas estão integradas num sistema, a sua interpretação obriga a levá-las em conta no seu conjunto, de maneira a manterem coerência entre elas. Por isso mesmo, a teoria da infracção criminal cumpre também uma função de garantia — não só evita uma aplicação arbitrária da lei penal, como também permite calcular como se irá aplicar a mesma lei num determinado caso (Gimbernat). § 2 O conceito de acção I. A acção como objecto do juízo de imputação penal. Função delimitativa do conceito de acção. O conceito de acção corresponde ao mínimo relevante para a imputação penal CASO nº 1: A e B, na companhia dum terceiro, andaram a beber, até que entraram na adega dum deles para tomarem mais uns copos. Quando A se encontrava agachado para tirar vinho duma pipa, com as pernas afastadas, de costas para B, este agarrou-lhe, por detrás, com força, por los genitales. Nesse momento, o A, contorcendo-se com dores, girou bruscamente o corpo, batendo com o cotovelo no B, que 1 Graficamente poderíamos dizer que se trata de uma série de filtros cujos orifícios se vão tornando cada vez mais estreitos (Enrique Bacigalupo). Só faz sentido perguntar se um determinado indivíduo agiu culposamente se antes se comprovou a existência de uma acção típica e ilícita. 4 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. perdeu o equilíbrio e caiu, dando com a cabeça no chão de cimento. B ficou algum tempo inconsciente e depois, muito abalado, pediu que o levassem a casa, recusando-se a ir a um hospital. Veio a morrer cerca de uma hora depois, apresentando contusão fronto-parietal produzida na queda. Resumo dos factos apreciados pelo aresto de 23 de Setembro de 1983 do Tribunal Supremo de Espanha. Punibilidade de A? Procura-se saber se o comportamento de A transpõe o limiar da relevância como comportamento punível. Se se trata, no caso, dum comportamento reflexo, qual o alcance deste entendimento ? Foi instintivo o movimento corporal que provocou a queda do B, reconheceu o tribunal na sentença que absolveu o A. A reacção foi devida a um estímulo fisiológico ou corporal, sem intervenção da consciência, por acto reflexo ou em curto circuito. Actos reflexos consistem em movimentos corporais que surgem de um estímulo sensorial a uma acção motora, à margem do sistema nervoso central. A morte do B resultou afinal dum simples acidente — à actuação do A não se poderá atribuir o significado de acção normativamente controlável. Cf. o comentário a esta decisão em Silva Sánchez, La función negativa del concepto de acción. Algunos supuestos problemáticos (movimientos reflejos, actos en cortocircuito, reacciones automáticas), in ADPCP, 1986, p. 905 e ss. Nos anos 50 e 60 do século passado, o conceito de acção foi uma das questões mais debatidas dentro da teoria da infracção criminal. Hoje em dia, como problema prático, o significado da teoria da acção limita-se a um ou outro apontamento. Uns, mais chegados aos finalistas, afirmam que para podermos determinar se a embriaguez plena, os actos reflexos ou os chamados automatismos devem ser considerados como acções ou não- acções necessitamos de manejar critérios que só podem ser proporcionados pela teoria da acção. Para outros, a acção desempenha uma função de filtro, puramente delimitativa: a partir do conceito geral de acção pode eliminar-se logo tudo aquilo que nunca poderia integrar uma acção. Em geral, quando nos encontramos perante um comportamento humano qualificamo-lo logo como preenchendo ou não um tipo de ilícito. Se a conduta contiver as cores da ilicitude, avançamos então para o outro nível de valoração que é a culpa. Com efeito (cf. Fernanda Palma), a “conexão de sentido pré-normativo participa, por um lado, na constituição do juízo de ilicitude como desvalor de acção e de resultado e do seu objecto como comportamento doloso ou negligente, e conduz, por outro lado, a uma revaloração, 5 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. em sede de culpa, do comportamento cuja ilicitude foi anteriormente referida a uma ética de responsabilidade”. Não fará sentido afirmar essa conexão quando alguém, arrastado pela força irresistível duma multidão em debandada, esmaga uma criança indefesa contra a parede dum prédio, provocando-lhe lesões graves ou a morte — aí, excluiremos logo a existência dum comportamento humano com relevância penal, estaremos simplesmente perante uma não acção, face a algo que só poderá qualificar-se como um infausto acontecimento. No dia-a-dia, o sentido conferido pela sociedade a uma tal situação faz com que se elimine à nascença, por inadequada e votada ao insucesso, qualquer pretensão de proceder criminalmente. Não se justifica atirar o labéu de criminoso ao homem cujo corpo projectado pela multidão esmagou a criança indefesa. Noutro exemplo, se num ataque epiléptico A arranha, com movimentos incontroláveis, a cara de quem o procura ajudar, ou origina a queda e a destruição de uma valioso peça de louça — não se imagina sequer que a pessoa atingida ou prejudicada vá fazer queixa à polícia por ofensas corporais ou por dano. O objecto de valoração é um comportamento humano, mas no sofrimento do epiléptico não se espelha uma acção com relevo jurídico-penal, a sua desdita gerou, em determinado momento, um processo causal infeliz, que em nenhuma circunstância caberá no catálogo dos ilícitos nem constituirá razão nem fundamento de reprovação. Comentará, sensível e desolado, o vizinho, o amigo, o próprio prejudicado: “Coitado, que azar o deste homem!” A fixação consciente do objectivo, a selecção consciente dos meios e a realização levada a efeito mediante um acto de direcção consciente representam o tipo ideal de uma acção, o qual, todavia, não esgota a variedade dos comportamentos humanos. Muitos dos comportamentos diários desenrolam-se, de facto, “por debaixo do umbral da consciência” —contudo, enquanto “expressão da espiritualidade do homem” (Lenckner), enquanto tivermos razões para entendê-los como “exteriorizações da personalidade” (Roxin), deverão ser catalogados como acções. “Acção é um comportamento humano que é, ou pelo menos pode ser, dominado pela vontade”. Roxin, Teoria da infracção; e AT, p. 179 e ss. “Não há crime sem conduta. Os delitos chamados de mera suspeita ou de simples posição não encontram guarida em nossa disciplina”. Paulo José da Costa Jr., Comentários. 6 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. II. Comportamentos inconscientes, reflexos e automáticos CASO nº 1-A: A sabe que sofre de epilepsia e até já foi afectado na rua por essa doença, sem consequências para terceiros. Por isso, tem a preocupação de seguir à risca as prescrições dos médicos. Há duas semanas, porém, A esqueceu-se de tomar um medicamento muito recomendado, contra o que era seu hábito. Apesar disso, pôs-se ao volante do automóvel. Em certa altura do percurso A sofreu um súbito ataque de epilepsia e perdeu o controle do carro, que foi atropelar violentamente B, na altura em que este atravessava pela passagem destinada aos peões. CASO nº 1-B: A seguia conduzindo o seu automóvel. No momento em que circulava por uma curva entrou-lhe pela janela, que se encontrava aberta, um insecto num olho. A fez, por isso, um “brusco movimento de defesa” com a mão. Este movimento comunicou-se à direcção do carro e o A perdeu o domínio da condução, de tal sorte que o automóvel entrou na faixa contrária e aí chocou violentamente com outro que vinha em sentido contrário, tendo ficado feridas diversas pessoas. Toda a gente estará de acordo em que, naquele caso do indivíduo que é arrastado pela força indomável da multidão e vai esmagar a criança, como em todos os casos de vis absoluta, à qual se não pode resistir (cui resistere non potest), ou de inconsciência absoluta — não há acção. Aquele que, submetido à força irresistível de quem lhe comanda a mão (vis absoluta), “faz” a assinatura alheia, não comete uma falsificação. Diferente será o caso do indivíduo que imita a assinatura de outro sob a ameaça duma pistola apontada à cabeça (vis compulsiva, a violência moral ou relativa): aquele que “assina” age, mesmo que o seu comportamento, típico e ilícito, possa ser desculpado, por aplicação do artigo 35º — houve uma acção voluntária, ainda que desacompanhada da liberdade de decisão e de realização da vontade (coactus, sed voluit). A mãe que durante um sono profundo, com as faculdades anímicas inteiramente “desligadas”, esmaga com o seu corpo o filho que dorme a seu lado não poderá ser penalmente responsabilizada por uma morte causada nesse estado de inconsciência. Nem o seria em caso de sonambulismo ou de hipnose. Mas o médico que estando de serviço na urgência hospitalar toma um forte sonífero, omitindo uma determinada acção que tinha o dever de praticar, pode ser responsabilizado tanto civil como criminalmente. É certo que também a mãe tinha a obrigação de não criar uma situação de risco para a vida ou a integridade física do filho. Mas aqui a “acção” não está no esmagamento do filho ou na inacção do médico que chegou ao hospital, mas sim “na conduta precedente que criou uma situação de perigo para determinados bens jurídicos, ao impossibilitar o 7 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. cumprimento do dever de não lesar, ou de salvar, bens jurídicos alheios” (Prof. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, p. 92). ( 2 ) Nesse sentido, terá havido imprudência da parte da mãe, quando colocou o filho a dormir, podendo prever que durante o sono o seu corpo abafaria o do menino (cf. Lenckner, S/S, p. 143). Impõe-se, tudo o indica, diferente solução quando a morte da criança ocorrer porque um terceiro a depôs ao lado da mãe, enquanto esta dormia, em termos de a isentar de qualquer implicação no facto. Já anteriormente se falou do epiléptico que, de repente, entrando em espasmos e convulsões, parte a jarra alheia durante o desmaio. Há também quem ponha em dúvida que um caso destes seja —no limite— inteiramente alheio ao Direito, observando-se, com Armin Kaufmann, que o epiléptico foi por si mesmo ao local onde tudo aconteceu. Por maioria de razão, se o epiléptico do caso nº 1-A, por descuido, omite o cumprimento da prescrição médica com danos para terceiros, a sua responsabilização será ainda mais evidente, mas com base numa actio libera in causa (cf. o artigo 20º, nº 4). Com o que se pretende apenas demonstrar que as questões de imputação nem sempre se apresentam como evidentes, ganham, por vezes, contornos e relevo surpreendentes, a exigir atenções redobradas. Devemos alinhar aqui alguns acontecimentos que participam de processos causais vinculados a movimentos corporais de uma pessoa, como certos actos reflexos, que são causados por uma excitação de carácter fisiológico, um acesso de tosse, um vómito repentino, que praticamente impossibilitam o controle dos movimentos. É de acto reflexo a conhecida imagem da medicina, em que o médico bate com o martelinho no joelho do paciente e o induz a projectar o pé para a frente, de forma descontrolada. Outros exemplos são as contracções derivadas do contacto com uma corrente eléctrica ou da entrada dolorosa de um insecto num olho. Ninguém sustentará em tais casos a relevância penal do comportamento. Mas como melhor se justificará a seguir, houve 2 “A asserção de Roxin segundo a qual ‘quem cai inconsciente e parte assim um vaso não agiu’ deve frontalmente contestar-se: pode perfeitamente conceber-se que o agente devesse ter tomado um remédio para evitar o ataque, sabendo que se o não fizesse poderia praticar um certo ilícito típico; neste caso a pessoa “agiu” e pode mesmo, em certas condições, ser jurídico-penalmente responsabilizada e punível”. Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 39. 8 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ainda acção quando uma condutora perdeu o controle do carro, provocando um acidente, por se ter inclinado para trás, defendendo-se dum insecto que subitamente lhe entrou num olho (cf. Eser / Burkhardt, caso nº 3). 3. A responsabilidade penal pode incidir em comportamentos inconscientes. Mas até onde poderá ir um tal alargamento? É a vontade que separa a acção humana do simples facto causal. Esta vontade tem sido entendida, como observa Lenckner, na maior parte dos casos, como vontade consciente, de forma que a qualidade de acção parece estar posta em dúvida naqueles casos em que a “actividade de direcção” também se pode produzir, em razão da automação, de modo inconsciente. Os automatismos são produto da aprendizagem, por ex., ao andar, ou no exercício continuado da condução automóvel: meter as mudanças, dar gás, guinar a direcção para a esquerda ou para a direita, fazer sinais de luzes, meter o pé ao travão. A doutrina actual, mesmo quando se inclina para a não acção nos actos reflexos, afirma-a em geral ao nível dos automatismos, que se desenvolvem sem a intervenção da consciência activa. Na primeira metade do século vinte, quando ainda se não adivinhava a complexidade dos comportamentos nas actuais sociedades de tecnologia avançada, e sobretudo se não atendia às incidências que hoje tem a condução automóvel, um autor como Mezger equiparava os actos automáticos aos movimentos reflexos — e como os automatismos eram reflexos não podiam ser catalogados nas acções, na medida em que se desenrolam por “debaixo do umbral da consciência”. Também por essa altura apareceu em voga a teoria final da acção. Para esta teoria (recorde-se, nomeadamente, os nomes de Welzel e Maurach) “actividade final é uma intervenção causal conscientemente dirigida a um fim”. A aplicação literal desta maneira de ver impediria que se afirmasse a acção em todos os casos duvidosos. Consequentemente, em relação aos comportamentos automatizados, em especial na condução rodoviária, onde a sua importância se faz sentir mais vincadamente, não teríamos outro remédio que não fosse negar o seu envolvimento no conceito de acção. O próprio Welzel entendia que na prática era inadmissível uma tal solução (Das Deutsche StrafR, p. 153), ao escrever que, por ex., o condutor tem de adequar a velocidade à medida do seu domínio das manobras técnicas e da sua capacidade de reacção. Ainda que 9 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a correcção das nossas acções não derive, no caso concreto, de uma direcção consciente da acção, mas de disposições automatizadas para a acção adquiridas anteriormente, a sua falta pode ser censurada ao autor na medida em que ele, na execução da sua acção final, não teve em consideração os perigos da situação e os limites funcionais das suas disposições automatizadas, mesmo quando podia tê-los reconhecido. Por isso mesmo, nos automatismos, como no caso das reacções emocionais ou de formas de embriaguez profunda (sem se excluir totalmente a consciência), quer dizer, em todos os casos duvidosos, de que se exceptuam os actos reflexos, a doutrina tende a reconhecer a existência de acções — ainda que para isso tenha que recorrer à noção de finalidade inconsciente, como faz Stratenwerth. É possível, diz-se, interpor a vontade consciente por forma a orientar o comportamento (Rudolphi). “A acção penalmente relevante exige (mesmo que automática) pelo menos uma possibilidade efectiva de substituir o comportamento automático por um comportamento conscientemente dirigido, imediatamente antes ou durante a execução do agente. Se o agente para se defender duma mosca ou de uma abelha tira repentinamente as mãos do volante e deixa o carro guinar para a faixa contrária (provocando um acidente) parece ser possível afirmar que poderia ultrapassar conscientemente a cedência a uma reacção defensiva excessiva e incontrolada, se tivesse a possibilidade de prever que outros veículos viajavam na faixa contrária (limiar subjectivo da negligência inconsciente).” Cf. Profª Fernanda Palma, referindo Jakobs, AT, p. 69 e ss. e Eser / Burkhardt, Derecho Penal, p. 144. Se um automobilista, que circula de noite a 90 quilómetros por hora, ao ver aparecer subitamente na estrada um animal do tamanho duma lebre, a uma distância de 10-15 metros, dirige o carro para a esquerda e embate no separador central, provocando a morte de quem o acompanha — a reacção de desviar o carro, diz Roxin, AT, p. 205, a propósito deste caso julgado pelos tribunais alemães, é uma actividade automatizada, em que o condutor actua no seguimento de uma longa prática, a qual se transforma, eventualmente sem uma reflexão consciente, em movimentos. Os movimentos que se repetem constantemente estão, via de regra, em grande parte automatizados no homem. É o que acontece com o andar e a condução automóvel. Esta automatização de alguns comportamentos é dum modo geral favorável, por permitir acelerar a reacção em situações que não consentem qualquer reflexão, por nisso se perder demasiado tempo. 10 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Ainda assim, a automatização pode conduzir, em certos casos, a reacções erradas, que se produzem de maneira tão pouco consciente como as formas correctas de conduzir. Mas também os automatismos são acções. De acordo com Roxin, AT, p. 155 e ss., as disposições para agir que são fruto da aprendizagem (erlehrnte Handlungsdispositionen) pertencem ao conjunto da personalidade, são, por isso mesmo, afirmações da personalidade, independentemente das consequências, nocivas ou não, a que conduzam. Os automatismos e as reacções espontâneas, como os estados de violenta excitação emocional e de embriaguez profunda constituem acções. Todos eles representam respostas do aparelho anímico ao mundo exterior, são ainda “exteriorizações da personalidade”, e portanto expressão da parte anímico-espiritual do ser humano. Lenckner, que igualmente reconhece a existência de acção nos comportamentos automáticos, recorre “à expressão da espiritualidade do homem”, próxima, no seu significado e alcance funcional, da que emprega Roxin. Por um lado, dá como assente que a maior parte das formas comportamentais do quotidiano permanece por debaixo do limiar da consciência. Por outro, entende que o facto de as reacções automáticas associadas à circulação rodoviária poderem ser, por vezes, qualificadas como erradas — embora, na maior parte dos casos, felizmente sejam correctas — mostra que aqui não se trata da qualidade da acção, porque, negando-a, não se colocaria, pertinentemente, a questão da sua qualificação como correcta ou incorrecta. Estes casos distinguem-se dos reflexos corporais puros, constituídos por reacções que “aparecem como resposta (pessoal), dada pelo comportamento, a uma determinada situação”. De forma que, acrescenta Lenckner, o limiar da não acção só se ultrapassa quando de todo estiver excluída a possibilidade de uma intervenção consciente na actividade de direcção que se desenvolve de modo inconsciente. No caso aqui apresentado como o caso nº 1-B, Eser / Burkhardt apreciam assim a punibilidade de A: a condução de um automóvel com a janela aberta e sem que o condutor se concentre suficientemente de modo a evitar automatismos perigosos fazem da condução um comportamento não permitido e perigoso —trata-se, portanto, de um comportamento objectivamente típico. Este comportamento típico produziu lesões corporais noutras pessoas. A produção do resultado típico é também a realização do risco não permitido por parte de A. Daí que o tipo objectivo do [artigo 148º] se encontre preenchido. Faltará analisar também em sede de ilícito se A actuou negligentemente e se a resposta for afirmativa então passamos à apreciação das possíveis causas de justificação e, eventualmente, das causas de exclusão da culpa. 11 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Há divergências na apreciação das acções em curto circuito, em que o elemento voluntário se mantém, executando-se, porém a uma velocidade tal que ao agente falta a possibilidade de mobilizar as reacções inibidoras do comportamento (Bacigalupo), por ex., o autor mata quem acaba de matar o seu próprio filho — em geral afirma-se a existência de uma acção, já que nestes casos sempre seria possível interpor uma vontade consciente a orientar o comportamento. III. Causalismo e finalismo na teoria do crime O que atrás se disse encontra-se de algum modo ligado às teorias que historicamente se foram desenvolvendo em torno de alguns aspectos do conceito de acção. A teoria causal da acção é o sistema de v. Liszt e Beling (desenvolvido com outros pormenores por Radbruch: vd. Welzel, p. 39) — identifica-se com o chamado sistema clássico, que se desenvolveu nos finais do século dezanove, de algum modo como reacção ao modelo hegeliano, até então dominante, no contexto positivo-naturalista da época, em que as ciências naturais e o correspondente método tinham uma grande influência em todas as esferas do saber. O traço mais relevante da teoria causal da acção consiste em se abstrair do conceito de vontade, considerando como critério único determinante a eficácia causal da vontade. Não importa o conteúdo da vontade, por não interessar à acção o que o autor queria, mas a simples causação das consequências de um acto voluntário. Já se vê a importância conferida por esta teoria à associação da causalidade com o conceito de acção: ao fim e ao cabo, o conceito causal de acção só tem em conta a produção causal do resultado. A acção é a causação, ou não evitação, do resultado (morte da vítima do homicídio, destruição da coisa alheia no dano), derivada de uma manifestação volitiva: define-se, portanto, como uma causação arbitrária ou não evitação de uma modificação (de um resultado) no mundo exterior. Acção é todo e qualquer acto proveniente da vontade que ponha em perigo interesses, quer se trate de um movimento corporal, quer se trate da sua falta de realização, compreendendo a acção em sentido estrito e a omissão (conceito unitário), uma e outra proveniente da vontade (v. Liszt). O conteúdo da vontade sai do âmbito da acção e inclui-se na culpa. Para se poder sustentar que existe uma acção basta saber que o sujeito, volitivamente, actuou ou permaneceu inactivo, o conteúdo da vontade só tem importância para o problema da culpa. 12 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. O sistema clássico servia-se de um conceito objectivo de tipicidade, à margem de qualquer valoração, consequentemente, de uma ilicitude objectiva e formal. No ilícito não se levavam em conta factores de outra natureza: tudo o que for objectivo pertence à ilícitude, tudo o que é subjectivo integra-se na culpa. Compreende-se assim que, sendo o conteúdo da vontade de feição subjectiva, não tenha lugar no conceito penal de acção. Mais tarde, quando o sistema evoluiu, por influência da filosofia de raiz neo-kantiana, começou a definir- se o ilícito como um comportamento socialmente danoso, surgindo então a possibilidade de graduar o ilícito e de nele incluir elementos subjectivos, não apreensíveis pelos sentidos, e cuja ausência determina a atipicidade da acção. A descoberta destes elementos subjectivos como integrantes da ilicitude conduziu à negação da neutralidade do tipo penal. Por outro lado, o conceito causal de acção foi sendo progressivamente rejeitado como a pedra angular do sistema penal e como portador das características do crime. Vem desse tempo a ideia, que ainda hoje subsiste, do bem jurídico como princípio metodológico para a interpretação dos tipos penais. Modelo estrutural “causal” (neo-clássico). Cf. Baumann/Weber/Mitsch, Strafrecht, AT, 10ª ed., p. 177. Acção I. Tipicidade 1. Tipicidade da acção: nos crimes de resultado, o resultado previsto no tipo e a correspondente conexão entre acção e resultado, a causalidade. 2. Elementos subjectivos do ilícito. II. Ilicitude. Ausência de causas de justificação. III. Culpa 1. Capacidade de culpa. 2. Dolo. 3. Ausência de causas de desculpação. IV. Outros pressupostos de punibilidade (excepcionalmente). 13 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Concepção psicológica da culpa / teoria normativa da culpa. A culpa passou a ser entendida como um autêntico juízo de censura. O sistema clássico caracterizava-se ainda por uma concepção psicológica da culpa, concebida como um simples nexo psíquico entre e facto e o seu autor, que tanto podia revestir a forma dolosa como a negligente — dolo e negligência constituem as duas formas de manifestação da culpa e só se distinguiam entre si pela intensidade da relação psicológica. As dificuldades que a visão psicológica da culpa enfrentava (pense-se na negligência inconsciente, em que essa relação entre o facto e o seu autor nem sequer está presente; ou em que a pura relação subjectiva entre o comportamento e quem o realiza pode existir tanto nos imputáveis como nos não imputáveis) vieram a ser corrigidas pela chamada teoria normativa da culpa. Foi Reinhard Frank quem, na primeira década do século 20, referindo-se à insuficiência da relação psicológica para a culpa, utilizou o termo censurabilidade para a definir e ampliar os seus contornos (cf. Welzel, p. 139). A culpa não se esgota numa simples relação psíquica entre a vontade e o evento fixada na lei, torna-se juízo de reprovação assente na estrutura lógico real do livre arbítrio. Como diz Welzel, a culpa fundamenta a reprovação pessoal contra o autor, por não ter deixado de praticar a acção antijurídica, apesar de isso lhe ser possível. Por outras palavras, a culpa fundamenta a censura pessoal contra o agente já que este, em aberta contradição com a ordem jurídica, não omitiu, como devia, a conduta ilícita, embora o pudesse ter feito, adoptando outro comportamento — dever e poder são assim duas colunas essenciais desta categoria. O sujeito é culpado se pudermos censurá-lo, dependendo esta possibilidade não só do dolo ou da negligência, mesmo só inconsciente, como ainda da capacidade de culpa, ou seja, da imputabilidade. Imputabilidade, consciência do ilícito, exigibilidade de outro comportamento. Para Welzel, p. 138 e ss., elementos da censurabilidade são — a imputabilidade: atentas as suas forças psíquicas, o autor é capaz de se motivar de acordo com a norma; — e a possibilidade de avaliar o ilícito: o autor está em condições de se motivar de acordo com a norma por ter a possibilidade de compreender a antijuridicidade. Do juízo de censura participam ainda os elementos da exigibilidade de outro comportamento. A teoria normativa da culpa teve um grande significado na evolução destes conceitos, permitindo que o dolo se separasse da culpa, passando para o âmbito da ilicitude, de acordo com a teoria finalista: “a quintessência desta teoria reside na afirmação de que o 14 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. dolo como factor caracterizador da acção seria um elemento essencial do ilícito” (cf. Eser / Burkhardt, p. 36; e Welzel, especialmente p. 61). Por outro lado, “extraindo este objecto da valoração da categoria da culpa e situando-o na do ilícito, estava cumprida a condição necessária para “reduzir” (“purificar”) a culpa àquilo que verdadeiramente ela deve ser: um “puro juízo de (des)valor”, um autêntico juízo de censura” (Figueiredo Dias/Costa Andrade, Direito Penal. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime. UC, 1996, p. 329). Idêntico papel no desenvolvimento de uma nova sistemática na estrutura de crime coube a outros elementos subjectivos do ilícito. A finalidade é “vidente”, a causalidade “cega” (Welzel, p. 33). A teoria finalista da acção foi especialmente desenvolvida por Welzel como corrente contrária à teoria causal, o seu ponto de enlace com o direito penal foi, como explica Roxin, a luta contra o conceito causal de acção. Para os finalistas, o conceito de acção do direito penal deveria ser um conceito ontológico. O que define a acção humana é a finalidade: o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis da sua actividade futura, propor-se objectivos diversos, e dirigir aquela actividade, de acordo com um plano, à consecução de um fim (Welzel, p. 33). A acção humana é, portanto, um acontecer “final” e não somente “causal”. A acção é baseada na direcção do comportamento do autor a um fim previamente fixado por este —é assim o exercício de actividade final (conceito ontológico, da realidade) e existe antes da valoração jurídica (conceito pré-jurídico). O lugar sistemático do dolo é o ponto culminante da teoria da acção final, caracterizando-a e caracterizando também o correspondente sistema (Eb. Schmidhäuser). Na concepção finalista, o tipo engloba, juntamente com a sua parte objectiva (que tradicionalmente aparecia como sendo a sua essência), uma parte subjectiva, formada pelo dolo e pelos restantes elementos subjectivos específicos do ilícito (cf. Welzel, especialmente, p. 58: “nos delitos dolosos, o tipo contém uma descrição precisa dos elementos objectivos e subjectivos da acção, incluindo o resultado”). O tipo objectivo corresponde à objectivação da vontade integrante do dolo, compreendendo portanto as características do produzir externo do autor. O dolo, elemento fundamental da parte subjectiva, é constituído pela finalidade dirigida à realização do tipo objectivo. Se a finalidade pertence à estrutura da acção, como pensam os finalistas, e o tipo configura acções, compreende-se perfeitamente que se inclua o dolo, não na culpa, mas no tipo. Todavia, o dolo não se esgota na finalidade dirigida ao tipo objectivo: como a ilicitude não é um elemento do tipo, não deverá estender-se à ilicitude o conhecimento e a vontade próprios do dolo. Deste modo, o erro do tipo 15 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. excluirá o dolo, e portanto a tipicidade. Se o erro se referir à ilicitude, deixará intacta a tipicidade da conduta. (Cf. Welzel, p. 62 e ss.; Eb. Schmidhäuser, p. 138). Ainda o dolo como elemento do ilícito. Uma das conclusões mais relevantes da dogmática finalista é a de que o dolo como factor caracterizador da acção seria um elemento do ilícito. O dolo, constituindo um elemento básico da acção, pertence imediatamente ao tipo de ilícito. Aquilo que exprime o sentido de uma acção é a finalidade do autor, é a condução do acontecimento pelo sujeito, de forma que para os finalistas — e ao contrário do que acontecia com os causalistas — a espinha dorsal da acção é a vontade consciente do fim, rectora do acontecer causal. Devendo o tipo descrever também a estrutura final da acção, isso supunha uma deslocação do dolo e da negligência — até então entendidos como formas de culpa — para o âmbito da ilicitude, que, como se sabe, é a primeira área de valoração na estrutura do crime. O dolo e a negligência não são elementos da culpa mas formas de infringir uma norma e, por conseguinte, são formas de ilicitude; o dolo constitui um elemento subjectivo do tipo de ilícito doloso e a infracção do dever de cuidado diz respeito ao tipo de ilícito negligente, de forma que, nesta concepção, deverão tomar-se em consideração elementos pertencentes à pessoa que realiza a acção: a direcção da acção ao resultado nos crimes dolosos e a infracção do dever de cuidado nos crimes negligentes. Se na tentativa o dolo pertence ao tipo e não só à culpa, tem que conservar a mesma função quando se passa ao estádio da consumação. Modelo estrutural “final” Cf. Baumann/Weber/Mitsch, Strafrecht, AT, 10ª ed., p. 177. Acção. I. Tipicidade 1. Tipo objectivo: nos crimes de resultado, resultado e causalidade. 2. Tipo subjectivo. a) Dolo b) Elementos subjectivos do ilícito. 16 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. II. Ilicitude. Ausência de causas de justificação. III. Culpa. 1. Capacidade de culpa. 2. Ausência de causas de desculpação. IV. Outros pressupostos de punibilidade (excepcionalmente). IV. Desenvolvimentos posteriores. A actual teoria da evitabilidade individual (Jakobs) é correntemente encarada como um desenvolvimento da teoria final da acção. O que importa é a imputação objectiva de uma conduta típica a uma pessoa, a realizar de acordo com o ponto de vista social. A acção é um comportamento exterior evitável, uma conduta que o seu autor poderia ter evitado se estivesse para tanto motivado. Um comportamento será evitável quando o seu autor tinha a possibilidade de o dirigir finalmente, em direcção a um fim por ele mesmo determinado. O indivíduo que é arrastado pela multidão e esmaga um menino contra uma parede não tinha nas suas mãos evitar tão trágico desfecho. De certo modo, o critério de Welzel é o inverso da doutrina tradicional. Nesta última, e só na sua fase mais avançada, como vimos, é que excepcionalmente se incluíram elementos subjectivos no ilícito — e apenas na medida em que influíam na "danosidade social" e tinham a ver com o resultado. Como observa Cordoba Roda, para Welzel, o fundamental está no desvalor do acto, chegando o penalista alemão ao ponto de afirmar que a lesão do bem jurídico (o desvalor de resultado) só tem significado jurídico-penal dentro de uma acção pessoalmente antijurídica (dentro do desvalor da acção). Mas a discussão entre causalistas e finalistas está dada por encerrada. ( 3 ) Muita coisa ficou do 3 Aproximando-se das construções clássicas (conserva, por ex., o dolo como elemento da culpa), pode ainda hoje apreciar-se o excelente manual de Baumann / Weber / Mitsch, Strafrecht — Allgemeiner Teil, 10ª ed., 1995; nos quadros do finalismo, um dos exemplos mais interessantes é a exposição de Udo Ebert, Strafrecht, AT, 2ª ed., 1992. 17 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. sistema de Welzel e dos seus imediatos seguidores. O conceito de acção e as teses finalistas muito contribuíram para as alterações sofridas pelas categorias tradicionais. O dolo, concebido como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo do ilícito, converteu-se no elemento subjectivo geral com sede na ilicitude, deixando, nessa medida, de pertencer à culpa. Em sede de tipo de ilícito, enquanto determinante da direcção do comportamento, o dolo entende-se agora, correntemente, como saber e querer, como conhecimento e vontade da realização do tipo objectivo; como forma de culpa, enquanto modo de formação da vontade que conduz ao facto, resta-lhe (cf., entre nós, a exposição de Teresa Serra, Homicídio qualificado, tipo de culpa e medida da pena, 1992, cuja leitura atenta se recomenda) o ser portador da atitude pessoal contrária ao direito — resta-lhe o que alguns apelidam de resquício do antigo dolus malus do sistema clássico, i. e, uma atitude hostil ou no mínimo indiferente em face do bem jurídico ameaçado. Dolo e negligência são ambos formas de infringir uma norma. Hoje, na negligência, leva-se em conta um dever de cuidado objectivo situado ao nível da ilicitude, ainda que se considere um dever subjectivo situado ao nível da culpa (cf. o artigo 15º do Código Penal). Finalmente, tem- se por adquirido que, no ilícito, ao lado dum desvalor de resultado concorre um desvalor de acção. E esta distinção pertence, indiscutivelmente, aos finalistas — é deles o mérito de terem assinalado que a ilicitude não depende apenas da causação de um resultado mas também de uma determinada modalidade de actuar, quer dizer, o injusto é injusto de resultado e injusto de acção. A causação do resultado —a lesão do bem jurídico— não esgota o ilicito. É legítimo até concluir que o desvalor de resultado poderá faltar num determinado caso concreto sem que desapareça o de acção, v. gr., na tentativa inidónea (artigo 23º, nº 3). Cf. Welzel, p. 62. O fim da teoria finalista ocorreu do modo como Thomas Kuhn descreveu o "impulso revolucionário" nas descobertas e avanços científicos: os seus teoremas dogmáticos — quando não foram de algum modo acolhidos — e a sua metodologia não foram refutados, mas apenas esquecidos, e o fio da discussão prosseguiu noutros domínios e de outras formas. W. Hassemer, História das ideias, p. 30. As teorias sociais da acção manifestam-se em diversas posturas (Jescheck, Wessels). São teorias surgidas com o intuito de superar os conflitos entre a teoria causal e os pontos de 18 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. vista finalistas e que têm em comum, segundo Eser / Burkhardt, o facto de na determinação do conceito de acção recorrerem, pelo menos, aos critérios de relevância social e de domínio (dirigibilidade, evitabilidade, intencionalidade e similares). A acção define-se como a produção arbitrária de consequências objectivamente intencionáveis e de relevância social ou como o comportamento de relevância social dominado ou dominável pela vontade. A perspectiva social é um denominador comum capaz de aglutinar comportamentos que tanto podem integrar crimes dolosos, como os negligentes e as omissões. O irmão de vinte anos, dominando perfeitamente a língua francesa, mete na cabeça da irmãzita de oito anos, que não sabe uma palavra daquela língua, que deve cumprimentar a professora de música com a saudação "Bonjour madame la cocotte", para (como diz) dar a esta uma grande alegria. Neste caso, a pequenita "agiu" pronunciando palavras de sentido injurioso. O facto de ter querido dizer algo de totalmente diverso é absolutamente indiferente para efeito do sentido social do comportamento (dela). A professora teve de suportar uma expressão lesiva da sua honra. Só quando nos aproximamos da valoração jurídico-penal relativa a esta "acção" é que interessa ponderar que a pequenita considerou a sua actuação como acto de gentileza e não como algo de injurioso. A partir daqui surge a possibilidade de qualificar o comportamento do irmão: embora não tenha dito palavra perante a professora, o seu comportamento, no todo, possui o sentido de uma injúria. Eb. Schmidt, p. 185. Hoje tendem sobretudo a impor-se razões e argumentos funcionalistas (teleológico- racionais), defendidos por nomes conhecidos como Figueiredo Dias, Roxin e Jakobs, que visam atribuir novos conteúdos às categorias dogmáticas do crime orientando-as para o que se chama “a função do direito penal na sociedade moderna”. Funcional quer dizer que algo, seja por ex., o Direito Penal, se orienta para a função que desempenha ou deve desempenhar na sociedade moderna. Jakobs acentua que se assiste ao declínio da dogmática de base ontológica e que conceitos como os de culpa e de acção —a que a dogmática atribuiu, de forma continuada, uma estrutura pré-jurídica— se tornaram noções que para nada contribuem sem que se atenda à missão do direito penal. É assim que actualmente se discutem pontos da dogmática penal que até há pouco possuíam uma orientação praticamente inflexível, dificultando a operacionalidade do Direito penal para questões pontuais, como por exemplo: “a perspectiva da responsabilidade da pessoa jurídica, a apreciação típica definida pela teoria da imputação objectiva, bem como as novas concepções da culpabilidade” (cf. Ricardo Breier, Ciência penal pós-finalismo: 19 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. uma visão funcional do direito penal, RPCC 13 (2003); cf. também Luís Greco, Introdução à dogmática funcionalista do delito). Para Figueiredo Dias a culpa é em todo o caso a mais perfeita e a mais forte forma pensável de defesa da dignidade da pessoa humana. A função que a culpa exerce no sistema é a de limitar incondicionalmente a intervenção punitiva estatal pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa humana (cf., entre outras publicações, Direito Penal. Questões fundamentais, p. 270). “Roxin ensina a pensar com os casos penais, extraindo deles, na sua significação social, a possibilidade regulativa das normas. Quem desliga a máquina que mantém as funções vegetativas de uma pessoa, quando a situação se tornou irreversível, não realiza uma acção homicida, mas apenas uma omissão por fazer, exclusivamente punível se houver posição de garante (e impune na medida em que a situação já não caiba no âmbito de protecção da vida). A acção deixa de ser um conteúdo fixo e transcendental para se tornar um conceito funcional representativo do que a norma reclama do seu destinatário. Quem desliga a máquina, naqueles casos, apenas não mantém uma vida vegetativa e artificial, apenas não a prolonga apesar de agir”. Maria Fernanda Palma, Laudatio, i n Problemas fundamentais de Direito Penal. Homenagem a Claus Roxin, Lisboa, 2002, p. 231. Na teoria do delito de Jakobs tem lugar cimeiro a circunstância de a pena ser determinada pela sua função de prevenção geral positiva. “A pena é sempre reacção à infracção de uma norma. Com a reacção, torna-se óbvio que a norma é para ser observada —e a reacção demonstrativa tem sempre lugar à custa do responsável pela infracção da norma”. A finalidade da pena coincide com a reafirmação das normas e do ordenamento (prevenção geral positiva), o que se inscreve no exercício da confiança, da fidelidade ao direito e da aceitação das consequências jurídicas do delito (cf. A. Serrano Maíllo, p. 161). Ainda que se distanciem em muitos pontos concretos, as correntes funcionalistas têm em comum alguns princípios fundamentais. Os pressupostos de punibilidade devem orientar-se naturalmente para os objectivos do direito penal e assentar em considerações de política criminal. O que legitima o sistema de aplicação da lei não são as estruturas prévias do objecto de regulação das normas mas a coincidência das suas soluções com determinados fins político-criminais, i. e. com os fins das penas. O sistema será o sistema da lei se e na medida em que garanta resultados conformes com as finalidades das penas —e de que se possa esperar maior utilidade, reconhecimento social e maior justiça material nos casos concretos. A pré-estrutura das normas não seria então dada pela acção mas pelos fins das penas. Cf. Claus Roxin, Contribuição para a crítica da doutrina final, publicado pela primeira vez em 1962, e traduzido para português, incluído em Problemas fundamentais de direito criminal, p. 91 e ss.; e Política criminal e sistema 20 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. jurídico-penal, tradução de Luís Greco, Renovar, 2002, p. 82; Winfried Hassemer, História das ideias penais na Alemanha do pós-guerra, especialmente, a partir de p. 63, bem como Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, 2ª ed., 1990, especialmente a partir de p. 22; e Figueiredo Dias, in Fundamentos de um sistema europeo del derecho penal. Libro-Homenaje a Claus Roxin, 1995, p 447 e ss. Orientação para as consequências do sistema jurídico-penal pode significar que o legislador, a justiça penal e a execução das penas não se vêem apenas na função de perseguir o ilícito criminal e impor o castigo ao criminoso, mas que visam pelo menos o objectivo de ressocializar o agente do crime e pôr um travão à criminalidade no seu todo. Hassemer, Einführung, p. 22. O direito para que serve? "... aos valores substituem-se os fins (subjectivos), aos fundamentos os efeitos (empíricos) — numa só palavra, trata-se de um finalismo que se afere por um consequencialismo. (...). Corolários disso, e em que o compromisso ideológico se manifesta: a libertação da política, o pragmatismo filosófico, o utilitarismo social (este consequência também da libertação do económico). Depois, já no nosso tempo, as formas radicais de secularismo activo, da incondicional libertação ética e bem assim a dialética holística da "razão crítica" e de todas as "teorias críticas" nelas fundadas a favor de uma total emancipação, tal como no plano social o materialismo utilitarista do bem estar, etc." A. Castanheira Neves, Entre o "legislador", a "sociedade" e o "juiz" ou entre "sistema", "função" e "problema" — os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito, RLJ, 130º, nº 3884, p. 325. V. Outras indicações de leitura • Albin Eser/B. Burkhardt, Strafrecht I. Schwerpunkt, 4ª ed., 1992, p. 86 e ss. Há tradução espanhola: Derecho Penal, Cuestiones fundamentales de la Teoría de Delito sobre la base de casos de sentencias, Ed. Colex, 1995. • Alfonso Serrano Maíllo, Ensayo sobre el Derecho Penal como ciencia. Acerca de su construcción. Madrid, 1999. • Beatriz de La Gándara Vallejo, Algunas consideraciones acerca de los fundamentos teóricos del sistema de la teoría del delito de Jakobs, ADPCP, vol. L, 1997. • Bockelmann/Volk, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 4ª ed., 1987. • Castanheira Neves, Entre o "legislador", a "sociedade" e o "juiz" ou entre "sistema", "função" e "problema" — os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito, RLJ, 130º, nº 3883 e ss. • Castanheira Neves, O Direito hoje e com Que Sentido? O problema actual da autonomia do direito, Instituto Piaget, 2002. • Cavaleiro de Ferreira, A tipicidade na técnica do direito penal, Lisboa, 1935. 21 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Claus Roxin, Reflexões sobre a problemática da imputação em direito penal, i n Problemas fundamentais de direito penal, p 145 e ss. • Claus Roxin, Strafrecht, Allgemeiner Teil, Bd. 1. Grundlagen, der Aufbau der Verbrechenslehre, 2ª ed., 1994. Há tradução espanhola. • Claus Roxin,Teoria da infracção, in Textos de apoio de Direito Penal, tomo I, AAFD, Lisboa, 1983/84. • Dirk von Selle, Absicht und intentionaler Gehalt der Handlung, JR 1999, p. 309 e ss. • Eb. Schmidt, Teoria da infracção social, in Textos de apoio de Direito Penal, tomo II, AAFD, Lisboa, 1983/84. • Eberhard Schmidhäuser, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 1970. • Edmund Mezger, Derecho Penal. Parte General. Libro de estudio. Tradução da 6ª ed. alemã, Buenos Aires, 1958. • Enrique Bacigalupo, Princípios de derecho penal, parte general, 2ª ed, 1990. • F. Haft, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 6ª ed., 1994. • Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, especialmente, p. 471 e ss. e p. 542 e ss. • G. Jakobs, Estudios de derecho penal, 1997. • G. Jakobs, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2ª ed., 1993. Há tradução espanhola. • Günter Stratenwerth, Derecho Penal, Parte general, I, El hecho punible, 1982, p. 107 e ss. • H.-H. Jescheck, Grundfragen der Dogmatik und Kriminalpolitik im Spiegel der Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, in ZStW 93 (1981), p. 1. • H.-H. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts: Allg. Teil, 4ª ed., 1988, de que há tradução espanhola. • Hans Welzel, das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., 1969. Há tradução parcial para o espanhol com o título Derecho Penal Aleman, Parte general / 11ª edicion, 4ª edicion castellana, Editorial Juridica de Chile, 1997. • Johannes Wessels, Strafrecht, AT-1, 17ª ed., 1993: há traduções para português e para castelhano a partir de edições anteriores. • Jorge de Figueiredo Dias / Manuel da Costa Andrade, Direito Penal. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime, 1996. • Jorge de Figueiredo Dias, Sobre a construção da doutrina do crime (do facto punível), in Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001. • Jorge de Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, 1ª parte, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 1º (1991). • Jorge dos Reis Bravo, Critérios de imputação jurídico-penal de entes colectivos, RPCC 13 (2003), p. 207. • José Cerezo Mir, Curso de derecho penal español, parte general, II. Teoría jurídica del delito/I, 5ª ed., 1997. • José Cerezo Mir, El concepto de la acción finalista como fundamento del sistema del Derecho penal, in Problemas fundamentales del derecho penal, 1982. 22 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • José de Sousa e Brito, Sentido e valor da análise do crime, Direito e Justiça, volume IV 1989 / 1990. • Juan Bustos Ramírez, Manual de derecho penal español. Parte general, 1984, p. 170. • Juan Cordoba Roda, Una nueva concepcion del delito - la doctrina finalista, Barcelona, 1963. • Kristian Kühl, Strafrecht, AT, 1994. • Lenckner, in S / S, Strafgesetzbuch, Kommentar, 25ª ed., p. 142 e s. • Luí s Gr e c o, I nt r oduç ã o à dogmá t i c a f unc i ona l i s t a do delito, www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/direito_penal.htm • Manuel Jaén Vallejo, El concepto de acción en la dogmática penal, Colex, 1994. • Maria Fernanda Palma, A teoria do crime como teoria da decisão penal (Reflexão sobre o método e o ensino do Direito Penal), in RPCC 9 (1999), p. 523 e ss. • Maria Fernanda Palma, Questões centrais da teoria da imputação e critérios de distinção com que opera a decisão judicial sobre os fundamentos e limites da responsabilidade penal, i n Casos e Materiais de Direito Penal, Coimbra, 2000, p. 53. • Max Weber, Conceitos sociológicos fundamentais, tradução por Artur Morão do 1º capítulo de Wirtschaft und Gesellschaft, Edições 70, 1997. • Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal, 6ª ed. actualizada, Saraiva, 2000. • Ricardo Breier, Ciência penal pós-finalismo: uma visão funcional do direito penal, RPCC 13 (2003). • Rudolphi, i n Rudolphi / Horn / Samson / Schreiber, Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch. Band I. Allgemeiner Teil, 2ª ed., 1977. • Ruiz Antón, La acción como elemento del delito y la teoría de los actos de habla: cometer delitos con palabras, ADPCP, vol. LI, 1998. • W. Hassemer, Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, 2ª ed., 1990. • Winfried Hassemer, Strafrechtswissenschaft i n der Bundesrepublik Deutschland, in Rechtswissenschaft in der Bonner Republik, Studien zur Wissenschaftsgeschichte der Jurisprudenz, hrsg. von Dieter Simon, Suhrkamp, 1994, p. 282 e ss.; encontra-se traduzido para português com o título História das ideias penais na Alemanha do pós-guerra, e publicado pela AAFDL, 1995. Há também tradução espanhola, com o título La ciencia jurídico penal en la República Federal Alemana, publicado no ADPCP 1996, p. 36 e ss. 23 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2ª Secção. O facto doloso por acção na forma consumada. § 3º A ilicitude dos crimes dolosos por acção e os diversos níveis de valoração. Juízo de ilícito sobre o facto e juízo de desvalor sobre o agente. Pela acção perguntamos de que é o homem capaz. Pelo ilícito perguntamos de que é que o homem é capaz em determinadas situações e desempenhando certos papéis. Pela culpa perguntamos de que é que este homem é capaz (Kaufmann, apud Faria Costa, O Perigo, p. 423). I. Comportamento humano e tipicidade como requisitos da ilicitude. É no tipo que a lei descreve uma conduta humana desaprovada. A punibilidade de uma conduta depende de pressupostos gerais que como tal a declaram —a tipicidade, a ilicitude e a culpa. Já atrás observámos que a doutrina penal define correntemente o crime como uma acção (ou omissão) típica, ilícita e culposa, distinguindo estes três elementos e ordenando-os de tal forma que cada um deles pressupõe a existência do anterior. O sistema (sistema Liszt-Beling) é o de fazer intervir um escalonamento gradual — o julgador ou o aplicador do direito tem que valorar, em diversas fases ou em diferentes níveis, o comportamento de um possível criminoso antes de chegar ao juízo definitivo que o declara ou não merecedor de uma reacção criminal. Ao determinarmos os pressupostos mínimos do agir criminoso cumprimos o primeiro degrau de valoração, integrando a matéria fáctica numa norma penal, levando a cabo uma operação constitutiva de um juízo de ilicitude como 24 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. desvalor de acção e de resultado. Eventualmente, faltando nessa conduta os elementos objectivos ou subjectivos pertinentes ao juízo de imputação penal, poderemos já então excluí-la do leque das condutas típicas. “Quem” fizer isto ou aquilo — será punido”. Trata-se por conseguinte de analisar, ao nível da tipicidade, se um determinado comportamento (acção ou omissão) é ou não ilícito. Com o termo tipicidade quer-se significar que o legislador descreve as condutas proibidas ou que tem por obrigatórias dum ponto de vista jurídico-penal. Basicamente, a tipicidade descreve aquilo que é contrário a Direito, assinalando o que é proibido ou o que é obrigatório. A descrição legal fixa os pressupostos que têm de ser preenchidos para que alguém possa ser perseguido por furto, por homicídio ou como autor de um crime de ofensa à integridade física ou de omissão de auxílio, cumprindo-se deste modo o preceito constitucional segundo o qual ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior (artigo 29º, nº 1, da Constituição da República). Neste âmbito pode surgir a questão das chamadas normas penais em branco. O Prof. Cavaleiro de Ferreira identificava a norma penal em branco como “aquela em que falta inicialmente o preceito primário; comunica-se a sanção de uma infracção cujos elementos constitutivos só parcial, e não totalmente, estão definidos no preceito primário”. O preceito primário, que contém a ameaça penal, é completado por remissão para outra norma. As possibilidades de remissão são para outro preceito contido na mesma lei penal, para outra lei distinta ou para uma disposição de grau ou nível inferior (v.g., um regulamento). Hoje em dia pode ilustra-se o conceito com o artigo 279º, onde se exige que a conduta do agente poluidor contrarie prescrições ou limitações que lhe foram impostas pela autoridade administrativa em conformidade com leis ou regulamentos, sob a cominação da aplicação das penas previstas para a prática do crime, constituindo como que uma condição objectiva de punibilidade. Cf. o acórdão da Relação do Porto de 3 de Abril de 2002, CJ 2002, tomo II, p. 235. Cf. também Luís Filipe Caldas, A propósito do novo artigo 227º-A do Código Penal Português, RPCC 13 (2003), p. 516. Há quem encare de modo diferente os tipos penais abertos, em que parte dos elementos constitutivos da infracção não estariam incluídos no tipo. Um exemplo corrente é o dos crimes simplesmente negligentes, onde fica para o juiz a tarefa de especificar os limites da matéria de proibição, outro, a norma do artigo 10º. No acórdão do Tribunal Constitucional nº 147/99, de 9 de Março de 1999, BMJ 485-63, a recorrente sustentara que o carácter vago e incompleto de parte da norma penal que refere contraria os princípios da tipicidade e da legalidade consagrados constitucionalmente. Outras questões de (in)constitucionalidade podem ser vistas em Rui Patrício, Norma penal em branco, em comentário ao Acórdão do Tribunal da 25 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Relação de Évora de 17.4.2001, RMP 2001, nº 88. Ainda, Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 47, e O problema da consciência da ilicitude em direito penal, p. 76 es s.; e Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal PG, 1, 1988, p. 35. Se a conduta preenche todos ( 4 ) os elementos, objectivos e subjectivos, correspondentes à descrição normativa, será em princípio ilícita. Quem, por ex., mata outra pessoa dolosamente realiza o ilícito descrito no artigo 131º, preenchendo o seu comportamento todos os elementos típicos deste crime. Este juízo de ilicitude não é porém definitivo, mesmo só no que toca à antijuridicidade (=ilicitude; =injusto) do comportamento que, excepcionalmente, poderá estar coberto por uma causa de justificação, por uma eximente da conduta, a qual pode, por ex., ter ocorrido em situação de legítima defesa (artigo 32º). As causas de justificação procedem do ordenamento jurídico na sua globalidade, daí a desnecessidade de se encontrarem previamente estabelecidas no Código Penal, falando-se inclusivamente em causas de justificação supralegais. O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica — nomeadamente, não é ilícito o facto praticado em legítima defesa (artigo 31º, nºs 1 e 2, alínea a). “Justificar é explicar as razões por que aconteceu um determinado facto ou por que se teve certa conduta”. Faria Costa, O Perigo, p. 437, nota 147. Por último, seja o comportamento doloso ou negligente, há lugar a uma revaloração em sede de culpa, perscrutando-se a posição assumida pelo agente perante a ordem jurídica, e não se excluindo, ainda aqui, que a ausência de culpa possa conduzir à irresponsabilização do agente pelo seu facto. O direito penal, ao impor proibições, pretende evitar factos especialmente indesejáveis, atenta a sua grave danosidade social, isto é, pretende evitar os factos penalmente antijurídicos. Mas o direito penal não pode castigar quem realiza algum destes factos sem culpa. A questão de saber se concorre ou 4 Faltando um desses elementos (basta a falta de um), a conduta será atípica. Se a coisa não é alheia ou o agente não actua com intenção de apropriação não poderá haver furto; se a mulher adulta consente na cópula, não se poderá falar de crime sexual; se alguém entra a convite do dono da casa, o consentimento exclui a tipicidade da conduta. Na falta de dolo, o crime, eventualmente, poderá ser castigado como negligente (veja-se em especial o artigo 16º, nºs 1 e 3). Nem sequer haverá acção, como já vimos, nos actos reflexos ou em caso de força irresistível, entre outros. 26 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. não culpa só se põe se anteriormente tivermos concluído pela ilicitude do comportamento. Como adverte Bustos Ramírez, com isto, o que se pretende é oferecer ao jurista uma proposta metodológica para a análise jurídica de factos concretos e poder determinar se estes podem ser fonte de responsabilidade para as pessoas implicadas na sua realização. Trata-se de conceitos que se põem ao serviço do jurista que quer analisar e resolver casos concretos, reais ou fictícios. Por conseguinte, têm uma finalidade essencialmente prática e um importante valor instrumental. Como se viu, uma conduta humana só poderá punir-se se estiver prevista numa norma penal que descreva claramente a conduta proibida ou ordenada, acompanhada da cominação de uma pena. Está aqui implicado o princípio da legalidade. Chamamos tipo a essas descrições de crimes contidas nas leis penais, como por ex., o homicídio. Na Parte Especial (PE) do Código Penal, iniciada com o artigo 131º, contém-se um número grande de tipos, organizados e sistematizados de acordo com os critérios escolhidos pelo legislador penal. Se a lei penal quisesse descrever apenas o comportamento voluntário violador do bem jurídico, enquanto tal, diria simplesmente: “Quem, através de uma conduta voluntária, lesar o bem jurídico propriedade (ou: vida; ou: integridade física, ou: pureza da administração pública, etc.), será punido desta maneira ou daquela”. Uma norma destas, porém, seria portadora duma punibilidade desmedida. A técnica legislativa é muito mais exigente: “Quem matar…” – aqui é necessária a morte de outra pessoa para que o crime de homicídio resulte consumado. O direito penal só protege a subtracção de coisa móvel alheia actuando o ladrão com “ilegítima intenção de apropriação”. Como agente do crime de dano, pune-se quem “destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia”. Nestes dois últimos casos, exige-se não só a lesão da propriedade mas também uma determinada forma de actuar. Na burla, na extorsão e, especialmente, na usura, o facto punível é descrito ainda com uma maior gama de pormenores. II. Referência à Parte Especial do Código. Classificações. Ao tipo confia-se uma função de selecção dos comportamentos humanos penalmente relevantes, separando as condutas típicas daqueles outros acontecimentos que nesse sentido serão irrelevantes. O tipo de crime abarca todas as características da disposição penal que fundamentam, aumentam ou diminuem o injusto penalmente relevante (Wessels, AT, p. 33). Pertence-lhe a acção ("matar": artigo 131º), o objecto da acção ("outra pessoa": artigo 131º) e o resultado criminoso ("a morte de outra pessoa": artigo 131º). Há ainda outras circunstâncias que fazem parte de determinados tipos de crime, 27 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. como certas qualidades do agente ("funcionário": artigos 378º a 385º, com a correspondente definição no artigo 386º), ou da vítima ("abuso sexual de crianças ou de menores dependentes": artigos 172º e 173º). No artigo 254º remete-se para o local do crime: o "lugar onde repousa pessoa falecida". Outros tipos descrevem a modalidade da acção ("violência, ameaça ou astúcia" no rapto: artigo 160º, nº 1; "violência ou ameaça com mal importante” na coacção: artigo 154º, nº 1). A PE do Código oferece a descrição dos tipos penais que procuram desenhar taxativamente os factos incriminados pelo ordenamento jurídico-penal. O legislador ordenou-os, distribuindo sistematicamente as diversas figuras delitivas por uma vasta região que vai do homicídio, que é crime contra a vida, ao abandono de funções, que é crime de funcionário, cometido no exercício de funções públicas. Existem aí, entre outros, crimes de comissão e de omissão, crimes dolosos e simplesmente negligentes, crimes de mera actividade e crimes qualificados pelo resultado. A revisão de 1995 optou por uma sistemática, ao que se diz, (ainda) mais coerente do que a da versão original, operando-se nessa altura uma considerável simplificação. Apontam-se os crimes contra a integridade física e o crime de furto —e, por via reflexa, a generalidade dos preceitos relativos à criminalidade patrimonial— como objecto de significativas modificações, abandonando-se o anterior modelo de recurso a conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais de valor enquanto critérios de agravamento ou privilégio. A Revisão optou ainda por deixar de fora do Código Penal a punição de muitas condutas cuja dignidade penal é hoje já pacífica e consensual, mas que razões técnicas legislativas aconselham que constituam objecto de legislação extravagante. Mas logo se impôs e trouxe à discussão a novidade de um direito à privacidade como bem jurídico autónomo "a reivindicar a incriminação de delitos de indiscrição" (Costa Andrade). É, efectivamente, em torno do bem jurídico (bem merecedor de protecção) que se distribui a lógica do ordenamento, erigindo o legislador os tipos penais com referência a essa noção nuclear, que lhe serve de critério orientador e ordenador. Cf. o artigo 40º, nº 1. E numa perspectiva útil à praxis jurídica, pois a consequência mais importante do critério interpretativo do bem jurídico —diga-se agora de passagem— é a de que será 28 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. atípica qualquer conduta que, ainda que preenchendo os elementos de um crime, não viola (ou põe em perigo) o bem jurídico protegido no caso concreto. (Cf. Bettiol, Diritto penale, PG, 5ª ed., 1962, p. 114; e E. Gimbernat Ordeig, Concepto y método de la ciencia del derecho penal, 1999, p. 87). ( 5 ) As Actas da Comissão Revisora (1979, p. 11) acentuam, justamente, que o sistema de distribuição dos tipos legais de crime segundo os bens jurídicos protegidos reúne notórias vantagens em relação a todos os outros sistemas, por ex., sobre o sistema da gravidade das penas, o do meio utilizado pelo criminoso ou ainda o dos motivos do agente. A distribuição dos tipos segundo os bens jurídicos protegidos é muito menos artificial, o que significa que a violência às coisas é aqui muito menos evidente. Além disso, permite facilitar a interpretação teleológica. Modernamente, a PE começa pela descrição dos crimes contra as pessoas, seguindo-se depois a dos crimes contra o património, contra a comunidade e, por último, contra o Estado. As razões que levam os legisladores modernos —diz-se ainda nas Actas— a colocar o ponto de partida da protecção penal na pessoa são de vária ordem e vão desde as razões filosóficas e culturais até às pragmáticas e pedagógicas. Nem o Estado, nem a comunidade são pensáveis sem o homem. Daí que o homem seja o ponto de partida. Daí que a PE comece pela descrição dos crimes contra as pessoas. E neste sector os bens pessoais devem ter a precedência sobre os bens patrimoniais. Neste contexto, escreve o penalista brasileiro Paulo José da Costa Jr. que "o Código Penal é um todo orgânico, que possui alma e razão. Não é constituído por um desordenado e aleatório agrupamento de figuras delitivas, mas por sistemático conteúdo que exprime os valores políticos, morais e culturais da colectividade. Como salienta Pannain, um Código não é "algo que se encontra em um sector limitado e apartado da vida de um povo, mas se insere na vida deste, aprofundando suas raízes para trazer-lhe vida, em todos os sectores de sua constituição jurídica, social, política, moral e cultural". E o critério da objectividade jurídica, a nosso ver, está a evidenciar essa constatação". 5 Ao bem jurídico são atribuídas diversas funções: a função político-criminal de limite ao poder de definição do Estado, que só poderá ditar normas penais de protecção de bens jurídicos; uma função crítica do sistema penal, amparando os movimentos de neo-criminalização e descriminalização. Na interpretação da norma penal, diz Bustos Ramírez, os bens jurídicos têm uma função básica: o processo de interpretação de uma norma deverá fazer-se a partir do bem jurídico protegido por tal norma. 29 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Não deixa de se acentuar (Costa Andrade) "que o legislador é hoje chamado à vigília permanente e à contínua criação do direito, maxime do direito penal: jus criminale semper reformandum. Em definitivo, para o direito penal contemporâneo vale em cheio a advertência do filósofo pré-socrático segundo o qual não nos lavamos duas vezes no mesmo rio. E é assim mesmo quando a persistência de leis aparentemente imutáveis na rigidez fixista do seu teor verbal deixa sugerir o contrário". Neste momento, do muito que a propósito haveria a dizer, fica apenas um breve apontamento auxiliar sobre a classificação dos crimes, dando-se especial ênfase aos crimes de resultado e aos crimes de perigo que, uns e outros, abundam no Código. Designamos por crimes de resultado aqueles em que o resultado (de lesão ou de perigo) aparece separado da acção do agente tanto espacial como temporalmente. Considere-se o homicídio: entre a acção, por ex. o apertar do gatilho, e o resultado — a morte de outra pessoa —, é possível divisar um afastamento que se projecta tanto no tempo como no espaço. O resultado consiste, antes de mais, na lesão de um determinado objecto, a que chamamos objecto da acção — e que não deve ser confundido com o objecto de protecção a que chamamos bem jurídico. Crime de resultado é, igualmente, a burla (artigo 217º, nº 1), que exige uma disposição patrimonial donde decorre um prejuízo. Nos crimes contra a honra não falta quem veja neles simples crimes de perigo abstracto ou, mais especificamente, de perigo abstracto-concreto. Para outros, enquanto crimes de lesão da honra, integram autênticas infracções de resultado, ainda que se trate da lesão de um objecto ideal, por não haver qualquer modificação de um estado de coisas. Nos crimes de mera actividade predomina a actividade. O tipo esgota-se na realização da acção que descreve e que viola o bem jurídico, não sendo necessária a produção de um resultado material ou de perigo. Ainda assim, casos há, como na violação do domicílio, em que a simples actividade vai fazer surgir um resultado de lesão da intimidade na esfera jurídica do dono da casa — este, todavia, não é descrito na norma incriminadora. Mas não se colocam, nos crimes de mera actividade, problemas de imputação objectiva, já que se não conexiona a acção com um determinado evento, seja de lesão, seja de perigo. De uma maneira geral, poderemos sustentar que os crimes de perigo abstracto são crimes de mera actividade. A propósito dos crimes de resultado. Escreve o Prof. Jescheck, tendo unicamente em vista o direito alemão: “Os delitos imperfeitos de dois actos e os delitos de resultado cortado formam grupos especiais dentro dos delitos de vários actos e dos delitos de resultado. O legislador transfere 30 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. frequentemente o segundo acto do facto punível para o tipo subjectivo, para assim adiantar a linha defensiva”. Fala-se nestes casos em delitos “com tendência interna transcendente” (Schmidhäuser: “delitos de objectivo”, “Zieldelikten”). “Nos delitos imperfeitos de dois actos basta que no momento da primeira acção concorra a intenção (Absicht) do autor na posterior realização dessa segunda acção, ainda em falta; assim, na falsificação documental (§ 267) basta que, por ocasião da falsificação, concorra a intenção de enganar. Diferente é o que se passa com os delitos de resultado cortado. Nos delitos de resultado cortado, a produção do resultado não está incluída no tipo, que se basta com a intenção do autor dirigida ao resultado. É o caso da intenção lucrativa (Vorteilabsicht) na burla (§ 236). Enquanto que no primeiro grupo a intenção se orienta para uma posterior actuação do agente, no segundo, a produção do resultado é independente da própria actuação. Deste modo, o furto (§ 242) é o exemplo de um delito imperfeito de dois actos, pois requer a intenção de apropriação mediante aquela acção do agente” (H.-H. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts, AT, 4ª ed., 1988, p. 239; ainda, Claus Roxin, Strafrecht, AT, 2ª. ed., p. 256, com expressa referência à apropriação no furto (§ 242). Se o tipo penal supõe que o autor é portador de determinadas qualidades ou relações especiais chamamos-lhes crimes específicos. Se para o autor apenas se requer a normal capacidade de acção chamamos-lhes crimes comuns. Crimes comuns são o homicídio e o dano, o furto e a burla, que podem ser cometidos por qualquer pessoa. Crimes específicos próprios são, por ex., os crimes de funcionário, como o abuso de poder (artigo 382º). Crimes específicos impróprios são aqueles em que a qualificação específica do autor tem o sentido de determinar a agravação (v. g. o artigo 256º, nº 4). Nos crimes permanentes a conduta incide sobre um bem jurídico susceptível de "compressão", como serão todos os atentados à honra e à liberdade — não de "destruição", como será o caso da lesão da vida. Por ex., no sequestro (artigo 158º) o ilícito é de duração, uma vez que o facto se prolonga no tempo ( 6 ), perdurando do mesmo modo a conduta ofensiva (privação da liberdade). Com o seu comportamento, o sequestrador não só cria a situação típica antijurídica como a deixa voluntariamente subsistir. Deste modo, os crimes permanentes consumam-se com a realização típica, mas 6 O sequestro está, por isso, “nos antípodas dos crimes de realização instantânea”, permanecendo o dever, “que se renova a cada instante, porque não cumprido, de libertar a pessoa sequestrada”. “A permanência deste dever é que vai determinar que o crime de sequestro se consume no preciso momento — e só nesse — em que, por qualquer razão, esse mesmo dever já não possa ser cumprido (o sequestrado libertou-se ou foi libertado; o sequestrado faleceu). Cf. Faria Costa, RLJ ano 134º, p. 255. 31 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. só ficam exauridos quando o agente, por sua vontade ou por intervenção de terceiro (pense-se na violação de domicílio), põe termo à situação antijurídica. Numa perspectiva bifásica, existe neles uma acção e a subsequente omissão do dever de fazer cessar o estado antijurídico provocado, que faz protrair a consumação do delito. Segundo Pagliaro, a fattispecie penal incrimina não só a conduta que instaura a situação antijurídica (fase de instaurazione), mas também a conduta subsequente que a mantém (fase de mantenimento). Além do sequestro e da violação de domicílio podem também alinhar-se nos crimes permanentes a condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292º) e a associação criminosa (artigo 299º). Há outros casos porém em que o agente cria uma situação antijurídica, mas a sua manutenção já não tem qualquer significado típico. Nestes crimes de efeitos permanentes, por vezes mencionados como crime de situação (délit de situation, Zustandsdelikt) como a bigamia (artigo 247º) ou a ofensa à integridade física grave (artigo 144º), o agente, uma vez criada a situação, que a seguir lhe escapa das mãos, fica sem qualquer capacidade para lhe pôr termo. Há outros crimes chamados instantâneos. Para alguns estudiosos, o furto constituirá, como oportunamente veremos, um destes crimes instantâneos. A distinção é importante para determinar o momento a partir do qual começam a correr certos prazos, como os da prescrição (artigo 118º) ou o do exercício do direito de queixa (artigo 115º, nº 1). Alguns aspectos do crime de maus tratos a cônjuge ou a pessoa que conviva com o agente, previsto no artigo 152º, nºs 2 e 3, do Código Penal, fazem com que se aproxime dos crimes de realização permanente (que é crime de execução permanente, sustenta-se, por ex., no acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Novembro de 2003, CJ 2003, tomo V, p. 135). O crime de maus tratos persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (por ex., humilhando-a ou provocando-a) e a relação de convivência, que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente. Por isso mesmo, o ilícito supõe a repetição de condutas, por forma a gerar-se uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Faltando este aspecto reiterativo, os respectivos factos serão elementos de ofensa à integridade física simples, ameaça ou crime contra a honra, constituindo, em si mesmos, estes ou outros crimes. Quer isto dizer, em palavras breves, que o desenho típico dos maus tratos se não conexiona descritivamente com aquele grupo de infracções, mas a lesão do bem jurídico que suporta a agravação considerável da pena (pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º) só se dá com a sua repetição plural, justificando a existência de uma norma jurídica autónoma com o seu próprio conteúdo de desvalor. Só com o preenchimento desta pode, por ex., ser aplicada ao arguido a pena acessória, prevista no nº 6 do mesmo artigo 152º, de proibição de contacto com a vítima, incluindo a de afastamento da residência desta. Mas, verificado o crime de maus tratos, a 32 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. desistência de queixa não está autorizada, atenta a sua natureza pública, ainda que pudesse ter relevado relativamente a cada uma das condutas parcelares que o integram, as quais, desinseridas e atomisticamente consideradas, e porventura submetidas à disciplina dos crimes de natureza semi-pública, ficariam expostas aos efeitos da renúncia e da desistência da queixa, nos termos do artigo 116º. Nos crimes de perigo não se requer o sacrifício ou a efectiva lesão do bem jurídico, mas como o perigo se identifica com a probabilidade de dano, o legislador previne o dano com a incriminação de perigo. De perigo concreto, desde logo, como na violação da obrigação de alimentos (artigo 250º); ou de perigo abstracto, como na importação, fabrico, guarda, compra, venda, transporte (...) de armas proibidas (artigo 275º, nºs 1 e 3). Os crimes de perigo concreto são crimes de resultado, não de resultado de dano, mas de resultado de perigo: o resultado causado pela acção é a situação de perigo para um concreto bem jurídico. Exige-se que no caso concreto se produza um perigo real para o objecto protegido pelo correspondente tipo, por exemplo, se a norma (como no artigo 291º, nº 1), para além da maneira perigosa de conduzir, nela descrita, exige ainda que se ponha em perigo a vida ou a integridade física de outrem ou bens patrimoniais alheios de valor elevado. Se simplesmente ficarem expostos ao perigo bens patrimoniais alheios que não sejam de valor elevado, a incriminação não se aplica. Existe, por outro lado, um certo número de ilícitos em que o legislador, partindo do princípio de que certos factos constituem normalmente um perigo de lesão, puniu-os como crime consumado, independentemente da averiguação de um perigo efectivo em cada caso concreto: "para fazer nascer a pretensão punitiva, basta a prática de uma conduta considerada tipicamente perigosa, segundo a avaliação do legislador" (W. Hassemer, A segurança pública no estado de direito, p. 67). São os crimes de perigo abstracto. Por ex., pune-se a condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292º) pelos perigos que advêm para os participantes no trânsito de alguém conduzir excedendo os limites toleráveis de álcool no sangue; ou a detenção de arma proibida (artigo 275º, nºs 1 e 3) porque o legislador quis evitar os perigos que para as pessoas podem derivar de alguém se passear com uma arma de guerra. O preceito fica preenchido mesmo que no caso concreto se não verifique uma ameaça para a vida ou para a integridade física de outrem. O artigo 275º, nºs 1 e 3, limita-se a descrever, pormenorizadamente (quem importar, fabricar, guardar, comprar, vender, ceder ou adquirir a qualquer título, transportar, etc., armas proibidas), as características típicas de que resulta a perigosidade típica da acção. Se, por ex., um 33 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. contabilista —que anda de candeias às avessas com um seu cunhado, por quem até já foi ameaçado de morte—, conscientemente, se desloca de casa para o emprego com uma pistola de 9 milímetros (arma proibida), a correspondência da acção com o tipo legal do artigo 275º, nº 1, fica logo estabelecida. Neste caso, o perigo abstracto é um perigo presumido pelo legislador: ao juiz fica vedada qualquer averiguação sobre a falta de perigosidade do facto. "Se o tipo [do artigo 275º, nº 1] está redigido de forma a inviabilizar a apreciação negativa do perigo, se ele se funda numa presunção inilidível de perigo, o seu desvalor de acção assenta na mera desobediência e a sua insconstitucionalidade pode ser arguida por violação dos princípios da ofensividade e da culpa" (Augusto Silva Dias). Os crimes de mão própria (délits personalissimes, eigenhändige Delikte) requerem uma intervenção pessoal do autor. São aqueles que exigem uma execução pessoal imediata do facto descrito na norma e portanto não se podem cometer através de outra pessoa. Trata-se de tipos legais que não admitem a autoria mediata, como o do artigo 171º (actos exibicionistas), em que se pune quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista, ou o do artigo 292º (condução de veículo em estado de embriaguez). A pessoa que consegue que outra conduza em estado de embriaguez pode ser instigadora (ou eventualmente cúmplice) mas não co-autora ou autora mediata. III. Estrutura e elementos do ilícito 1. Desvalor de acção / desvalor de resultado. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos, diz-se no artigo 40º, nº 1, do Código Penal. A classificação de um comportamento como típico, como integrando a tipicidade que fundamenta a ilicitude, consiste desde logo, dum ponto de vista material, na lesão do bem jurídico de outrem. Neste sentido, a ilicitude é violação de um bem jurídico. O conceito de bem jurídico —Rechtsgut, termo cunhado em 1834 por Birnbaum— é a base reitora do tipo, de modo que o tipo provém da norma e da norma do bem jurídico (Jescheck). A conduta (conduta humana) descrita é considerada antijurídica porque pode lesar algum bem jurídico. Os bens jurídicos são relações sociais concretas: a vida ou a liberdade são relações entre pessoas que adquirem significado de bem jurídico na medida em que são confirmadas pela norma. Por isso, não lesa um bem jurídico a agressão de um 34 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. animal ou um facto da natureza (Bustos Ramírez) ( 7 ). Schmidhäuser recorda que bem significa algo valioso para o indivíduo ou para a comunidade. Para o indivíduo são bens por ex., a vida, a liberdade, os teres e haveres, enquanto a eles se não renuncia validamente. Ao lado dos bens jurídicos individuais encontram-se os bens jurídicos da colectividade, de titularidade supra-individual: os que, por ex., se identificam com a tutela da realização da justiça, ou o exercício de funções públicas. Registam-se igualmente situações concretas a que o legislador oferece uma protecção simultânea de bens jurídicos de orientação individual e colectiva, tipificando condutas que protegem ao mesmo tempo interesses com essa dupla natureza. Cf., entre outros casos, o que acontece com a infracção de regras de construção (artigo 277º), a poluição (artigo 279º) ou a corrupção de substâncias alimentares ou medicinais (artigo 282º). Alinhados com o instituto da acção popular, referem-se os bens jurídicos da sociedade civil, “de estrutura circular, de titularidade intersubjectiva, cujo objecto é indivisível e que são responsáveis pelo aparecimento, no plano da tutela processual, da noção de interesse difuso” (Augusto Silva Dias, in Jornadas de direito processual penal 2004, p. 58). A noção liberal do bem jurídico anda geralmente associada à questão dos chamados crimes sem vítima, por ex., as relações homossexuais, com consentimento, entre adultos, a pornografia ou a prostituição. Na maior parte dos países ocidentais, deu-se nesta área uma larga descriminalização. As prostitutas são hoje sobretudo vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social (cf. Rita Garnel, A loucura da prostituição, in Themis, ano III, nº 5, 2002) — o significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem (acórdão do Tribunal Constitucional nº 144/2004, publicado no DR II série de 19 de Abril de 2004). 7 “O direito penal, por exemplo, não pode proteger uma moral ou uma religião determinada. Quando se protege a moral ou a religião está-se a impor crenças que podem ser muito respeitáveis, mas que não podem ser impostas aos restantes cidadãos pois significaria uma intromissão intolerável no âmbito da sua liberdade, constituindo-se o direito penal em factor de discriminação” (cf. Bustos Ramírez, p. 59). Com a Revolução francesa, o direito penal foi reduzido às infracções atentatórias de interesses alheios ou de interesses públicos. Trata-se de uma fórmula saída da Declaração dos direitos do homem e do cidadão (de 1789, artigo 5º), que deixava uma boa margem de apreciação ao legislador, mas que, enquanto programa legislativo, marcou a política criminal até aos nossos dias (cf. Martin Killias, Précis de droit pénal, 2ª ed., 2001, p. 23). O acórdão nº 144/2004 do Tribunal Constitucional, publicado no DR II série de 19 de Abril de 2004, ocupa-se com algum pormenor da relação entre o direito e a moral a propósito da eventual inconstitucionalidade da norma contida no artigo 170º, nº 1, do CP (lenocínio). 35 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Paralelamente, há quem faça assentar no princípio volenti non fit iniuria a descriminalização do consumo de drogas, chamando-se a atenção para a não punibilidade da tentativa de suicídio. O tema da descriminalização convoca, ainda, a ideia de que o direito penal representa uma espécie de último recurso ou ultima ratio, intervindo nos casos em que os outros meios à disposição da colectividade não sejam suficientes para prevenir a lesão de bens jurídicos. Ao mesmo tempo que descriminalizavam, os legisladores foram-se mostrando cada vez mais sensíveis às infracções que põem em causa a liberdade de acção de pessoas particularmente indefesas, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez. Cf. a Lei nº 65/98, que alterou a alínea b) do nº 2 do artigo 132º, e introduziu a actual redacção da alínea b) do nº 1 do artigo 155º (coacção realizada contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez), entre outras disposições. “Nos países ocidentais, o denominador comum parece ser agora uma sensibilidade acrescida aos sofrimentos individuais, sensibilidade que se substitui progressivamente aos valores morais comuns de outrora” (cf. Martin Killias, p. 24). Há quem veja na vitimização ou, mais exactamente, na solidariedade para com a vítima, o único denominador comum com que as sociedades ocidentais passaram a contar após o desaparecimento de convicções morais geralmente partilhadas e aceites (Hans Boutellier, Crime and Morality: The Significance of Criminal Justice in Post-modern Culture, Boston: Kluwer, 2000, citado por M. Killias). O homicida, no sentido do artigo 131º, ao causar a morte de outra pessoa, viola o bem jurídico “vida”. A lesão do bem jurídico compreende assim a intervenção de alguém na esfera, protegida pelo direito, da liberdade de outrem. Com a violação deste bem jurídico realiza o agente desde logo um ilícito de resultado, e nessa medida um desvalor de resultado. Quando na produção do facto criminoso o sacrifício do bem jurídico aparece acompanhado da ofensa de outros interesses com projecção económica teremos — ao lado do sujeito passivo, i. é, do titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger proteger com a incriminação (artigo 68º, nº 1, alínea a), do CPP, ou seja, o ofendido — a figura do lesado pelo crime: o pedido de indemnização é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, diz-se no artigo 74º, nº 1, do Código de Processo Penal. Este artigo 74º, nº 1, abarca na sua noção de lesado mesmo aquele que não possa constituir-se assistente. Recorde-se também o artigo 129º: a indemnização de perdas e danos por crime é regulada, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil; e os artigos 71º e ss. do Código de Processo Penal, sobre as partes civis e o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime. “A apreciação num mesmo processo — no processo penal — da questão criminal e da questão civil funda-se essencialmente na existência de uma conexão entre os dois ilícitos, resultante da unidade do facto simultaneamente gerador de responsabilidade civil e de responsabilidade penal. A razão de ser deste sistema de adesão está na "natureza tradicionalmente absorvente do facto que dá causa às duas acções". É 36 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. essa unidade que justifica um julgamento global do caso, fundamental para a coerência e racionalidade da decisão final”. Cf. o acórdão do Trib. Constitucional nº 183/2001, de 18 de Abril de 2001, publicado no DR-I-A, de 8 de Junho de 2001. ( 8 ) O ilícito não se esgota, porém, na realização do desvalor do resultado através da lesão do bem jurídico. Essa realização representa, além disso, e de modo necessário, aquilo a que chamamos o desvalor da acção. Com o desvalor da acção queremos referir-nos ao modo externo de realização do resultado (lesão do bem jurídico). Por ex., o direito penal só protege o património de terceiro na medida em que o criminoso actua com astúcia (enganando ou induzindo outrem em erro), por meio de violência ou de ameaça com mal importante, com grave violação dos deveres, ou explorando situação de necessidade (artigos 217º, 223º, 224º e 226º). É corrente, hoje em dia, distinguir no tipo de ilícito entre desvalor da acção e desvalor do resultado. Olhando ao dolo do tipo e a outros elementos subjectivos como fazendo parte do tipo de ilícito, não se esgota este no desvalor do resultado, isto é, na produção de uma situação juridicamente desaprovada. Para a ilicitude da acção do agente envolvida na sua finalidade contribuem ainda as restantes características e tendências subjectivas, bem como outras intenções exigidas pela norma penal. Está aí compreendida, por ex., a intenção de apropriação no furto. Em geral, não se dando o resultado típico, o crime não passa da tentativa, se ocorrerem os elementos próprios do desvalor da acção. Mas não haverá ilicitude se o resultado se verificar sem que se verifique o correspondente desvalor de acção — o causador do resultado não será então punido. À lesão do bem jurídico tanto de liga pois a consumação como a tentativa. No primeiro caso, há destruição, diminuição ou compressão do bem; no segundo, há uma probabilidade associada à destruição, diminuição ou compressão do bem jurídico. Para compreensão do desvalor de acção concorrem portanto elementos subjectivos, especialmente o dolo do agente, que aparece como o cerne do desvalor pessoal da acção — ou seja, do desvalor da intenção. 8 Processualmente, ao tratar o ofendido como mero participante e ao vincular à sua constituição como assistente para assumir a veste de sujeito do processo, "é ainda da formalização necessária a uma realização mais consistente e efectiva dos direitos da vítima que se trata — e assim, a seu modo, de algo paralelo ao que sucede com a substituição formal do suspeito como arguido". Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais, p. 10. 37 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2. Qual o sentido da norma penal? Quem são os destinatários das normas penais: apenas aqueles que têm capacidade para lhes desobedecer, ou a generalidade dos cidadãos? O carácter “impessoal” do ordenamento jurídico objectivo em contraposição com a culpabilidade. Com a bibliografia relativa ao tema do correcto destinatário da norma pode formar-se uma pequena biblioteca. A. Kaufmann, Teoría de las normas, Buenos Aires, 1977, p. 162. À primeira vista, a norma penal nada mais representa do que um comando — é uma norma de determinação. O artigo 131º determina: “não deves matar”; o artigo 200º exprime uma ordem com o seguinte sentido: “deves prestar auxílio”. Compreende-se por isso que uma doutrina muito difundida encare as regras jurídico-penais como imperativos. ”A fórmula quer dizer que as regras jurídicas exprimem uma vontade da comunidade jurídica, do Estado ou do legislador. Esta vontade dirige-se a uma determinada conduta dos cidadãos e exige esta conduta com vista a determinar a sua realização. Enquanto vigorarem, os imperativos jurídicos têm força obrigatória. (…). A partir daqui, a teoria imperativa proclama que, de acordo com a sua substância, o direito consiste em imperativos e só em imperativos”. Cf. Engisch, Einführung, p. 22. Para uma teoria destas, a ameaça da pena pretende determinar, motivar os cidadãos para que se abstenham de cometer crimes. Todavia, deste modo não se explica o carácter ilícito das condutas de inimputáveis e em geral dos que actuam sem culpa, tornando impossível a distinção entre ilicitude e culpa, já que numa tal perspectiva o imperativo dirige-se apenas e vincula unicamente a vontade daqueles que “são capazes de o conhecer, de o compreender e de o seguir” (Luzón Peña, p. 340; cf., também, Bockelmann / Volk, p. 34). Numa outra concepção, os imperativos e as proibições cominadas penalmente vão dirigidos à generalidade dos cidadãos, sem distinguir se estes são susceptíveis de culpa ou não, “não só para deixar claro qual é a conduta de modo geral proibida, como também entre outras coisas porque por vezes e em certa medida também os inimputáveis se deixam determinar ou motivar pela norma penal. Mas em qualquer caso, embora os não culpáveis só anormalmente sejam acessíveis ou praticamente inacessíveis à norma penal (problema de culpa), isso não significa que não actuem de modo contrário à mesma, já que os respectivos comportamentos estão proibidos para todos. Portanto, a norma a que 38 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. o acto antijurídico se opõe é também norma — objectiva, geral — de determinação” (Luzón Peña). Esta perspectiva tem a vantagem de possibilitar a distinção entre ilicitude e culpa, essencial para a moderna teoria do crime. Na realidade, as normas penais são normas de determinação (tu não deves matar), mas são igualmente normas de valoração (não se deve matar): são modelos de comportamento, na medida em que contêm uma ordem objectiva para a vida em sociedade. Ao exprimirem aquilo que a ordem jurídica tem como juridicamente correcto e, simultaneamente, aquilo que é desaprovado, dão aos seus destinatários indicações a respeito da forma como se devem comportar. E porque assim exprimem também um juízo sobre a conduta humana, as normas de direito penal contêm juízos de desvalor: a desaprovação que comportam exprime-se por sua vez através da cominação de uma pena. Naturalmente que, como se começou por acentuar, a norma —que não desaprova factos, mas condutas— tem igualmente um elemento imperativo, e a conjugação destas duas ideias merece ser um pouco mais desenvolvida. Seguindo a exposição de Bockelmann / Volk: a norma não diz, por ex.: “as pessoas não devem morrer antes da sua hora”, pois se assim fosse entendida, a vida de uma pessoa aniquilada por um raio, por ocasião dum desabamento de terras ou numa avalanche, seria também objecto desse desvalor. Mas não é assim que compreendemos a norma, os acontecimentos naturais não comportam este tipo de valoração penal. Só assim valoramos os comportamentos humanos, mas nem todos, como já se viu. Por isso mesmo, a norma também não pode ser entendida com o seguinte sentido: “As pessoas não devem dar causa a resultados lesivos”, pois nela ficaria incurso todo aquele que num simples movimento reflexo, por ex., num ataque de epilepsia, partisse um vaso de flores alheio. A norma deverá antes comportar um sentido como este: “As pessoas devem fazer isto e não aquilo, devem actuar assim ou não devem actuar assim”. Uma tal norma será portadora não só de uma valoração como também de um imperativo, será uma norma de proibição ou um comando. Ora, “os comandos e as proibições do Direito têm as suas raízes nas chamadas normas de valoração”, de modo que a força de imperativo da norma penal, ao não reflectir uma pura arbitrariedade, obedece a um prius lógico, “obedece normalmente a prévias reflexões ou valorações” (Luzón Peña; Mezger) — “um prius lógico do Direito como norma de determinação é sempre o Direito como norma de valoração, como 39 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. “ordenação objectiva da vida” (Engisch, p. 28), ou, como escreve Jorge de Figueiredo Dias, O problema da consciência da ilicitude em direito penal, 3ª ed., 1987, p. 129, “a norma imperativa ou de determinação supõe sempre logicamente uma norma de valoração que a antecede ou, quando menos, coexiste com aquela, sendo a determinação proposta, uno acto, com a valoração”. Assim entendida, a norma é “um imperativo generalizador” (Bokelmann / Volk, p. 35), o seu destinatário é, por conseguinte, e em primeira linha, o conjunto dos que integram uma comunidade jurídica, estabelecendo-se uma máxima de carácter geral donde resulta, por assim dizer, a dedução das linhas directoras da conduta dos indivíduos (“Tu não deves fazer aquilo que se não deve fazer”). Nas palavras do Prof. Faria Costa, O perigo, p. 409, sendo a função de valoração um prius lógico e temporal relativamente à função de determinação, isso faz com que “o juízo sobre o ilícito esteja ligado à função de valoração de um modo objectivo, na medida em que subjaz a todas as acções humanas, a todos os factos da vida independentemente da sua capacidade”. Ora, se num determinado caso não for possível dirigir um juízo de censura ao agente, se não for possível censurar aquele que violou a norma penal, por ter actuado sem culpa, fica excluída a pena, mas continua a existir um juízo de desvalor sobre o facto —a conduta é uma conduta ilícita. Estas diferenças fazem com que tenhamos que separar os elementos que pertencem à ilicitude dos que pertencem à culpa. ( 9 ) Fazem parte da antijuridicidade todos aqueles factores (e só eles) de cuja presença resulta ser a conduta concreta do agente alvo da desaprovação prevista na norma. Na categoria da culpa integram-se todos aqueles outros momentos que justificam dirigir-se um juízo de reprovação ao agente (cf. Bokelmann / Volk, p. 36). O deslindar conceptual entre as normas jurídicas como normas de valoração que se dirigem 9 Quanto a esta matéria, uma das exposições mais conhecidas é a de Mezger, Derecho Penal, p. 133 e ss.), que distingue entre normas objectivas de valoração e normas subjectivas de determinação. As normas de direito aparecem como juízos a respeito de determinados acontecimentos e estados do ponto de vista do direito. Objecto desta valoração pode ser tanto a conduta de pessoas capazes ou incapazes de acção, culpáveis ou não culpáveis, os acontecimentos ou estados do mundo circundante, etc. A esta concepção do direito corresponde a antijuricidade (primeiro pressuposto da norma jurídico-penal), ou seja: o do ilícito como uma lesão das normas jurídicas de valoração. Das normas objectivas de valoração deduzem- se as normas subjectivas de determinação, que se dirigem ao concreto súbdito do direito. A lesão destas normas é de importância decisiva para determinar a culpa. 40 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a “todos” e a norma de dever como norma de determinação que se dirige “só” a quem está obrigado, torna possível o contraste entre os pressupostos básicos do delito, entre a antijuricidade objectiva e a censura pessoal (cf. A. Serrano Maíllo, p. 325). É na categoria do ilícito que se reflecte de modo directo a tarefa do Direito Penal: impedir as condutas socialmente danosas não evitáveis de outro modo. Já se observou que nem toda a conduta típica é uma conduta punível. Ainda que realizada, a proibição geral de matar (na manifesta simplicidade da expressão literal do artigo 131º: "Quem matar outra pessoa...") pode estar justificada por legítima defesa, por uma causa de justificação, que em nada afecta a tipicidade da conduta, ainda que excluindo a sua ilicitude, ou seja, a sua antijuridicidade ou contradição com o direito. Quem se defende realiza o tipo do homicídio mas não será punido porque não actuou de forma ilícita. Por conseguinte, ao analisarmos a punibilidade de uma conduta devemos examinar sempre, após a comprovação da tipicidade, se concorre no caso uma eximente da ilicitude. "O injusto implica a desaprovação do facto como socialmente danoso em sentido penal, enquanto que a afirmação da tipicidade comporta um mero indício — um indício provisório do juízo de antijuridicidade, que se pode refutar em cada caso concreto. Consequentemente, é na categoria do ilícito que se exprime de modo directo a tarefa do Direito Penal: impedir as condutas socialmente danosas não evitáveis de outro modo" (Roxin, in Introducción, p. 38). 3. O tipo objectivo. Consideremos o artigo 212º, nº 1: “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia é punido…”. A palavra “quem” aponta o sujeito do crime, o seu autor. Para a acção e o resultado apontam os termos “destruir, danificar, desfigurar, tornar não utilizável”. O objecto da acção é uma coisa alheia. Trata-se aqui de um crime comum, que poderá ser cometido por qualquer pessoa, em contraste com os crimes específicos ou especiais (delicta propria), em que a lei menciona expressamente as pessoas qualificadas para serem autores, só elas podendo ser autores. Por ex., sujeito de um crime de atestado falso do artigo 260º, nº 1, só poderá ser uma das pessoas nele mencionadas: médico, dentista, enfermeiro, parteira, etc. —é um crime específico. Já o crime do respectivo nº 4 (“quem fizer uso dos referidos certificados ou atestados…”) é crime comum. Nos casos em que a norma exige um certo resultado estaremos perante um crime de resultado, que se deverá distinguir dos crimes de mera actividade, como é o crime de violação de domicílio (artigo 190º). Os crimes de resultado tanto podem ser de resultado de dano como de resultado de perigo. É matéria já abordada e de que mais adiante afinaremos conceitos. Mas não se esqueça que a tarefa de imputar um determinado resultado à actuação de um sujeito, como “obra” deste, tem a ver com a parte geral do Código. Ao lado do autor do crime, do resultado e do 41 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. correspondente nexo de imputação, pertencem ainda ao tipo outras circunstâncias típicas, “que caracterizam mais pormenorizadamente a acção do agente” (Roxin, AT, p. 244). Veja-se o caso da usura (artigo 226º) e a quantidade de características típicas exigidas para o crime se consumar. Uma particular atenção merece a distinção entre elementos típicos descritivos e normativos. Diz Mezger, p. 147, quanto aos elementos típicos normativos, que “o juiz deve realizar um juízo ulterior relacionado com a situação de facto”, são portanto aquelas características cuja presença supõe uma valoração. “Edifício” ou “construção” (artigo 272º, nº 1), “subtracção” (artigo 203º, nº 1) são elementos descritivos —“designam “descritivamente” objectos reais ou objectos que de certa forma participam da realidade, isto é, objectos que são fundamentalmente perceptíveis pelos sentidos ou por qualquer outra forma percepcionáveis” (Engish, Introdução ao pensamento jurídico, p. 210). Palavras como “alheio” (artigo 203º, nº 1), “acto sexual de relevo” (artigo 163º, nº 1), “doença contagiosa” (artigo 283º, nº 1), ”ou “honra” (artigo 180º, nº 1) exigem ulteriores diferenciações, são características normativas. Em situações como a do artigo 386º ou do artigo 255º é a própria lei que adianta a definição, por ex., a de “funcionário”, no primeiro caso, ou de “documento”, no segundo. 4. O tipo subjectivo. Como se viu, acabou por se impor a perspectiva de um tipo com elementos subjectivos, o dolo e outras características subjectivas, que o sistema clássico, sujeito à ideia de um tipo de ilícito reduzido ao seu lado objectivo, encarava como forma de culpa. Foi a teoria finalista que primeiro remeteu o dolo para o âmbito do tipo, permitindo-nos agora enquadrá-lo, enquanto elemento subjectivo geral, nesse lugar sistemático. O dolo tem que se estender a todas as características objectivas do tipo, garantindo a congruência entre o lado objectivo e o lado subjectivo. Sem a comprovação do dolo, não é possível, portanto, afirmar a realização de um crime dessa natureza. Ocasionalmente, ao lado do dolo como elemento subjectivo geral, detectam-se no tipo outros elementos subjectivos, específicos de certos crimes, que não têm correspondência do lado objectivo, caracterizando o que por vezes se designa por tendências internas transcendentes, como o ânimo de lucro na burla (artigo 217º, nº 1) ou a intenção de apropriação no furto (artigo 203º, nº 1). Enquanto elementos subjectivos do ilícito estes 42 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. factores são na prática de difícil comprovação, embora externamente não faltem elementos a funcionar como indicadores da sua existência. 5. Os elementos típicos do crime de homicídio encontram-se todos eles no artigo 131º, e isso importa para a boa compreensão de que não é o maior desvalor da conduta o determinante da qualificação prevista no artigo 132º, antes a ele se chega sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Também o homicídio privilegiado do artigo 133º assenta na forte diminuição de culpabilidade que se verifica quando o agente é dominado por emoção violenta, compaixão, desespero ou outro motivo de relevante valor social ou moral, desde que esse estado de espírito seja compreensível. É o reconhecimento, por parte da lei, de que há momentos em que o ser humano é sujeito a tão fortes tensões que não consegue, por virtude delas, dominar-se como normalmente lhe é exigível; são circunstâncias que, não chegando para legitimar o seu comportamento, o tornam, em todo o caso, alvo de uma crítica bem inferior à que de outro modo lhe seria dirigida. 6. O ilícito é quantificável — o artigo 71º, nº 2, alínea a), manda que na determinação concreta da pena, o tribunal atenda, entre outras circunstâncias, ao grau de ilicitude do facto. O desvalor dum crime doloso é mais intenso do que o desvalor do crime simplesmente negligente. Actuando o arguido com intenção de realizar o crime (artigo 14º, nº 1), o desvalor da acção é mais elevado do que havendo dolo eventual, é mais intenso na negligência grosseira do que na negligência leve. O desvalor é ainda mais elevado quando ao desvalor de acção se vem juntar um desvalor de resultado —é assim quando a conduta antijurídica é acompanhada de certas consequências, como por ex., a criação de um perigo concreto (o perigo concreto caracteriza-se por uma situação crítica aguda que tende para a produção do resultado danoso, o qual só não ocorre por acaso) ou de um resultado de dano (=resultado de lesão), que representa a ofensa do bem jurídico em consequência do desenvolvimento do perigo). Quanto à medida do desvalor do resultado de dano, o agente pode produzir um ferimento ligeito, um ferimento grave ou até a morte da vítima 43 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. CASO nº 2: Desvalor de acção / desvalor de resultado. A segue conduzindo o seu automóvel por uma estrada de montanha. Numa curva apertada aventura-se a meter pela faixa à sua esquerda, por ter conseguido ver com antecipação que nenhum carro transitava em sentido contrário. Na ausência de um perigo concreto, que na verdade não chegou a ocorrer, A é responsável por uma situação (acção) de perigo abstracto e só pode ser punido por uma contra-ordenação ao Código da Estrada. O desvalor de acção não está acompanhado (do desvalor) de qualquer resultado. Suponha-se agora que na mesma curva um condutor surgia às tantas em sentido contrário, mas na sua mão. O embate só foi evitado por este, no último instante, mediante uma manobra arrojada. Poderá aqui detectar-se, a acompanhar o desvalor da acção de A, o desencadear de um perigo concreto para a vida do condutor respeitador das normas (desvalor do resultado de perigo). Por último, considere-se que na mesma situação o choque não pôde ser evitado e o condutor que seguia na sua mão sofre lesões de alguma gravidade. Ao desvalor da acção perigosa de A junta-se o desvalor do resultado de dano (ou de lesão). Já atrás se observou que, nos crimes dolosos, não se dando o resultado típico, o crime não passa da tentativa, mas mesmo assim é necessária a presença dos elementos próprios do desvalor de acção. Mas não haverá ilicitude se o resultado se verificar sem que se verifique o correspondente desvalor de acção —o causador do resultado não será então punido. Nos crimes negligentes não existe a correspondente tentativa. Cf., no entanto, um tipo de ilícito como o do artigo 292º (condução de veículo em estado de embriaguez), onde, mesmo na forma negligente, para a consumação se não exige qualquer resultado: é crime de perigo abstracto, de mera actividade. Mas na maior parte das vezes a conduta negligente só é susceptível de integrar um crime, sendo portanto punida, se ocorrer um desvalor de resultado imputável ao agente. IV. A diferença entre ilicitude e culpa residirá na distinção entre desvalor de conduta e desvalor de atitude. A ilicitude é caracterizada pelo desvalor de acção e pelo desvalor de resultado —à culpa liga-se um desvalor de atitude (por ex., se o agente mata pelo prazer de matar). “A distinção entre ilicitude e culpa é o legado mais importante da ciência alemã do Direito Penal na primeira metade do nosso século. Actua ilicitamente quem, sem justificação, realiza um tipo jurídico- penal e, desse modo, uma acção socialmente danosa. Mas esse comportamento só é culposo quando for possível censurá-lo ao seu autor por ter podido actuar de maneira diferente, isto é, de acordo o com o direito. É igualmente doutrina absolutamente dominante na ciência alemã do Direito Penal — e considera-se isso como uma quase evidência — que, a par da distinção entre ilicitude e culpa, se devem também distinguir as causas de justificação das causas de exclusão da culpabilidade”. Claus Roxin, Concepción bilateral y unilateral del princípio de culpabilidad, in Culpabilidad y prevencción en derecho 44 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. penal; cf., ainda, Sentido e limites da pena estatal, in Problemas fundamentais de Direito Penal, 1986, p. 15 e ss.). O derradeiro nível de valoração, passada a prova de fogo da tipicidade e da ilicitude, situa-se na culpa. Sem culpa não se poderá aplicar uma pena —e o ilícito penal, isto é, uma conduta típica e ilícita, não é, sem mais, punível: "a qualificação do comportamento como ilícito significa apenas que o facto realizado pelo autor é desaprovado pelo Direito, mas não nos autoriza a conclusão que aquele deva responder pessoalmente por ele" (Roxin). Desde logo, são inimputáveis os menores de 16 anos: são absolutamente inimputáveis em razão da idade (artigo 19º) — a prática, por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime dá lugar à aplicação de medida tutelar educativa em conformidade com a Lei nº 166/99, de 14 de Setembro. Exige-se, por outro lado, que concorram no autor da infracção de uma norma determinadas condições de receptividade dessa mesma norma: no momento da sua actuação, o agente deverá encontrar-se em condições que lhe permitam receber a mensagem normativa e de poder ser influenciado por ela. Se o agente actuou sem culpa, se porventura procedeu em situação de anomalia psíquica, encontrando-se preenchidos os pressupostos do artigo 20º, nº 1, por forma a torná-lo incapaz de avaliar a correspondente ilicitude, não poderá aplicar-se-lhe uma pena. Incluem-se aqui, entre outras, as patologias mentais no sentido clínico, como a esquizofrenia, e a intoxicação por drogas ou pelo álcool. A inimputabilidade que assim se desenha não é, contudo, a única causa de exclusão da culpa, a censurabilidade pessoal que fundamenta o juízo por culpa pode ser excluída em caso de falta de consciência da ilicitude (artigo 17º, nº 1). Actuando o agente em estado de necessidade desculpante (artigo 35º) há um fundamento de desculpa, uma derimente da culpa. Recorde-se a tábua de Carneâdes: após o naufrágio de um navio, os dois marinheiros sobreviventes, A e B, agarraram-se a um tábua que só chegava para um (tabula unius capax). Para salvar a vida, A afastou B da tábua e este morreu afogado. Põe-se o problema de saber se A pode ser condenado por homicídio. Uma vez que age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameace a vida — não há dúvida de que a actuação de A, ainda que ilícita, não poderá ser punida. Neste contexto, assumem particular importância os casos de actiones liberae in causa (artigo 20º, nº 4), em que 45 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pré-ordenadamente o sujeito utiliza o seu estado para praticar o crime. À semelhança do código alemão, também no artigo 295º se adoptou um regime que prevê a punição daquele que, pelo menos por negligência, se colocar em estado de inimputabilidade e nesse estado praticar um facto ilícito típico. CASO nº 2-A. Os artigos 34º e 35º apontam, respectivamente, para a ilicitude e para a culpa. Conduta justificada; conduta simplesmente desculpada. O caso Mignonnete. No ano de 1884, após o naufrágio do navio com este nome, dois dos sobreviventes, em situação de extrema necessidade, mataram um terceiro, mais jovem, e para não morrerem alimentaram-se do corpo —de outro modo, não teriam sobrevivido. Na Inglaterra, o tribunal que julgou o caso recusou-se a absolver os dois infelizes argumentando que a vida é um bem absoluto, não sendo tolerada a morte de um inocente, mesmo nos casos mais extremos. Por isso condenou os dois náufragos à morte, mas logo a seguir uma medida de clemência substituiu a pena pela de 6 meses de trabalhos forçados. Na altura, o direito penal não tinha ainda chegado à fase que lhe permitiu distinguir as causas de justificação das causas de desculpação —por isso mesmo era impensável pronunciar uma sentença absolutória. Hoje em dia, com base no artigo 35º, os dois sobreviventes seriam absolvidos por terem agido em estado de necessidade desculpante: o comportamento de ambos continua a ser antijurídico, por acordo deram a morte ao companheiro de infortúnio (“outra pessoa”) e actuaram dolosamente, com conhecimento e vontade, realizando o tipo de ilícito do artigo 131º. Mas a conduta não está justificada, só assim seria se, por ex., o rapaz tivesse sido morto em legítima defesa. Não foi isso que aconteceu, mas num caso como este, o direito de hoje tem instrumentos que configuram a renúncia a castigar quem não merece censura pelo acto ilícito que cometeu. Tanto as causas de exclusão da ilicitude como os fundamentos de desculpa conduzem à impunidade, levam ao mesmo resultado. Ainda assim, há-de reparar-se que a conduta justificada, estando autorizada pelo direito, obriga quem por ela se encontra afectado a suportá-la. Pelo contrário, a vítima de uma conduta simplesmente desculpada pode defender-se da agressão (ilícita) amparado por legítima defesa. O B da tábua de Carneâdes pode virar-se eficazmente contra o seu agressor, agindo em legítima defesa. As causas de desculpação não concedem nenhum direito a actuar, tão só eximem da pena. O que verdadeiramente distingue justificação e desculpa: “a permissão (ou não proibição) do acto como expressão de um direito (justificação) em confronto com a mera desvinculação da pessoa do seu acto ilícito (própria da desculpa)”. (Fernanda Palma). Os pressupostos de punição do agente capaz de culpa (artigo 20º, nº 1: “é inimputável quem (…) for incapaz (…) de avaliar a ilicitude…”) mostram, desde logo, que a culpa se refere ao facto ilícito. 46 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Quando o portador de uma anomalia mental mata outra pessoa sem ser em situação de necessidade, a doença nada muda quanto a ser o facto desaprovado. Mesmo aquela criança que num golpe de fúria atira o companheiro de brincadeiras para a água, onde o deixa morrer afogado, actua ilicitamente no sentido de que se trata da morte de outra pessoa. Contudo, em nenhum destes exemplos se nos afigura ajustada a imposição de uma pena. O mesmo deverá acontecer quando um adulto são de espírito actua sem consciência da ilicitude do facto, “se o erro lhe não for censurável”, conforme dispõe o artigo 17º. Se, por ex., aquela mãe que nada percebe de medicamentos ministra ao filho doente o remédio errado, por o médico se ter enganado ao passar a receita, ficando, por isso, a criança ainda mais doente —tanto a mãe como o médico preenchem elementos típicos dum crime contra a integridade física. Dum ponto de vista objectivo, é de reconhecer que a criança ficou afectada na sua saúde ainda mais do que estava antes. O médico não deveria ter receitado este medicamento a esta criança. Observando, provisoriamente, as coisas tal como resultam do que se acaba de expor, deveríamos castigar o médico por ofensas corporais negligentes. Todavia, deixaríamos a mãe em paz: como pessoa que não estudou medicina não possuía os conhecimentos para reconhecer os perigos associados à ministração do remédio ao filho. Outro caso: Quando hoje em dia assistimos à peça de Sófocles sobre o mito tebano do Rei Édipo, estremecemos com a enormidade do castigo sofrido. Édipo matou o próprio pai e tomou a própria mãe como sua esposa, mas sem saber, tanto num caso como no outro, que se tratava dos seus próprios progenitores. Podemos igualmente concluir que os gregos partiam de um outro conceito de culpa, diferente do nosso. Finalmente, ficamos aptos a melhor compreender que a imputabilidade não está só associada às anomalias mentais, mas tem a ver com a consciência do ilícito. É nestes momentos que intervêm situações desvaliosas respeitantes à culpa, que acrescem à ilicitude da conduta. Cf. Eb. Schmidhäuser, AT, p. 117; e Verbrechen und Strafe, p. 99 e ss. A este propósito, anote-se que o Código alude ao “facto” (por ex., no artigo 1º) e ao “facto não ilícito” (por ex., no artigo 34º, nº 1). Alude à “ilicitude do facto” (por ex., no artigo 28º, nº 1) e ao “facto punível” (por ex., no artigo 13º). Alude à “culpa” (por ex., no artigo 35º, nº 1). A referida circunstância suscita, entre outros problemas, a separação do ilícito e da culpa. Os artigos 34º e 35º apontam, respectivamente, para a ilicitude e para a culpa. V. Interesse prático da distinção entre ilicitude e culpa i) A participação num facto justificado fica sempre impune. Mas o Código não permite que a punição do partícipe, por ex., o cúmplice, fique dependente da culpa de outrem, como se retira do artigo 29º, onde se dispõe que cada participante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros participantes. É altura de recordar os pressupostos da acessoriedade limitada. 47 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ii) Em matéria de erro, dispõe o artigo 16º, nº 2, que exclui o dolo o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente. Trata-se da suposição errónea de uma causa de justificação ou de uma causa de exclusão da culpa, que no direito português têm o mesmo regime legal, mas cujo tratamento noutros espaços (por ex., pela generalidade da doutrina alemã) é diferenciado. iii) No que respeita à legítima defesa, é seu requisito uma agressão actual e ilícita (artigo 32º). iv) Como elemento típico do crime de auxílio material previsto no artigo 232º, nº 1, bem como do de receptação do artigo anterior, a lei descreve o facto precedente como “facto ilícito típico” contra o património. v) Artigo 72º, nº 1: se uma circunstância, qualquer que ela seja, diminui acentuada ou essencialmente a ilicitude do facto ou a culpa do agente, o aplicador da sanção pode atribuir-lhe valor atenuativo especial. vi) Não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, e a medida da pena em caso algum deve ultrapassar a medida da culpa. Mas as finalidades da pena só podem ser de natureza exclusivamente preventiva e não retributiva. VI. Indicações de leitura • Artigo 368º, nº 2, do Código de Processo Penal: questão de saber, a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime; b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou; c) Se o arguido actuou com culpa; d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa; Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança. • Actas das sessões da Comissão revisora do Código Penal, Parte Especial, ed. da AAFDL, Lisboa, 1979. • Acórdão do Tribunal Constitucional nº 93/2001, de 13 de Março de 2001, publicado no DR II série de 5 de Junho de 2001: Tipicidade. Exploração ilícita de jogo. Tipo excessivamente aberto. Falta de precisão da norma. 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Tipicidade. § 4 O tipo objectivo: nexo de causalidade e imputação do resultado à acção. 50 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. I. Conexão entre acção e resultado. Causa, condições. Causalidade. Imputação objectiva. Causalidade naturalística e causalidade valorativa. CASO nº 3: A e B trabalham no mesmo matadouro, mas são como o cão e o gato, andam continuamente em discussão um com o outro e até já foram chamados à gerência, que os pôs de sobreaviso: ou acabam com as disputas, ou vão ambos para a rua. Mas nem isso chegou para os acalmar. Uma tarde, A, porque não gostou dos modos do companheiro, atirou-lhe ao peito, com grande violência, o cutelo com que costumava trabalhar, enquanto lhe gritava: “desta vez, mato-te mesmo!”. A força do golpe foi atenuada pelo blusão de couro que B usava por debaixo do avental de serviço e A só não prosseguiu a agressão porque disso foi impedido por outros trabalhadores, que entretanto se deram conta da disputa. A ferida produzida pelo cutelo não era de molde a provocar a morte da vítima, mas B foi conduzido ao hospital onde, por cautela, ficou internado, em observação. Numa altura em que estava sob o efeito de sedativos, B recebeu a visita de C, sua mulher, a qual tinha “um caso” com A, motivo de todas as discórdias. Logo aí C, que ambicionava vir a casar-se com A, aproveitou para se ver livre do marido, que se recusava a dar-lhe o divórcio: aproveitando um momento de sono, aplicou-lhe uma almofada na cara, impedindo-o de respirar, até que o doente se finou. O posterior relatório da autópsia descreveu a causa da morte, mas os peritos adiantaram que B sofria de uma doença do coração que não lhe permitiria sobreviver senão uns dias. Punibilidade de A e C. A agiu dolosamente, com intenção de matar B, ao atirar-lhe com violência o cutelo de que estava munido, visando uma zona nobre do corpo, que foi atingida. A morte de B não ocorreu, porém, em resultado da conduta de A, pois foi causada pela aplicação da almofada, que o asfixiou. Neste sentido, a morte de B não pode ser atribuída (imputada) a A, não é "obra" de A. Todavia, uma vez que A praticou actos de execução do crime que decidiu cometer, fica desde logo comprometido com o tipo de ilícito de homicídio tentado dos artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nºs 1 e 2, e 131º. Ao penalista interessa a causa de um determinado fenómeno, de um evento particular, que pode ser, por ex., a morte de uma pessoa, um atropelamento com lesões corporais no peão, ou o desencadear de um incêndio com perigo para a vida de outrem, como acontece com muitos tipos da PE do Código: ao lado da acção, o tipo descreve o correspondente resultado —de lesão, como por ex., no homicídio (artigo 131º), ou de perigo concreto, como, por ex., no crime de exposição ou abandono (artigo 138º). A estes crimes, insiste-se, chamamos crimes de resultado (de resultado de lesão ou de dano; ou 51 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de resultado de perigo), por oposição aos crimes de mera actividade, em que a lei se limita a descrever a actividade do sujeito, como são todos os crimes de perigo abstracto. Numa certa perspectiva, todos os factores de que depende o acontecer desse efeito —a morte de uma pessoa no homicídio, certos perigos derivados de um incêndio, etc.— são considerados, em conjunto, como a sua causa. Noutra perspectiva, causa será apenas um desses factores e só um deles: os outros serão meras condições. Numa boa parte das hipóteses nem sequer surgem dúvidas a esse respeito: se A dispara dois tiros a três metros de distância de B, atingindo-o na cabeça e no fígado, e B morre logo em seguida, não se coloca nenhum problema especial —os disparos são a causa da morte da vítima; esta "é obra" de A e pode ser-lhe imputada objectivamente. Outra é a questão da imputação subjectiva, a questão de saber se A actuou com dolo ou negligentemente. Noutras hipóteses, os problemas ganham contornos por vezes difíceis de destrinçar. No caso nº 3, B foi agredido por A, que agiu com intenção de matar. A lesão provocada pela agressão não era de molde a provocar a morte de B, mas esta veio a dar-se por acção da mulher, na sequência da hospitalização para tratamento da ofensa recebida. Aliás, B podia ter morrido quando era transportado ao hospital se a ambulância em que seguia se tivesse despistado por excesso de velocidade ou fosse colhida por um comboio numa passagem de nível sem guarda. Podia até ter morrido por ser hemofílico, ou por erro médico. Ou mesmo por ter sido alcançado por um incêndio que alguém ateou no edifício da clínica onde fora internado. De qualquer forma, A sempre teria morrido uns dias depois, devido a irremediáveis problemas de coração. Outro exemplo (Eser) de dificuldades no âmbito da causalidade: A esbofeteou B, dando-lhe com a mão aberta na parte esquerda da cara. B sofreu por isso comoção cerebral e em consequência dela a lesão dos vasos cerebrais que lhe ocasionou a morte imediata. Existe aqui uma dupla relação de causalidade: em primeiro lugar, o nexo entre a acção da lesão (a bofetada de mão estendida) e o resultado da lesão (a comoção cerebral); em segundo lugar, a relação entre a lesão corporal e a morte de B. Nestes casos, há fundamentalmente dois caminhos diferentes para responder à questão da conexão entre acção e resultado: causalidade e imputação. Ao falarmos de causalidade estamos a pensar na acção (causa) que provoca um determinado evento ou resultado (efeito). Quando falamos de imputação partimos do resultado para a acção. O primeiro 52 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. caminho é conforme às leis naturais e corresponde à doutrina clássica. O segundo caminho tem características normativas e busca resolver insuficiências dos pontos de vista tradicionais. Como veremos em breve, causalidade e imputação objectiva não podem ser confundidas. II. Trilhando os caminhos da causalidade. A doutrina da csqn: todas as condições são equivalentes —"o que é causa da causa é causa do mal causado"; o processo de eliminação —"se não tivesses feito o que fizeste não teria acontecido o que aconteceu". CASO nº 3-A: C seguia conduzindo o seu automóvel por uma das ruas da cidade quando lhe surgiu uma criança a curta distância, vinda, em correria, de uma rua perpendicular. C conseguiu evitar o embate à custa de repentina travagem, mas, no momento seguinte, V, homem dos seus 30 anos, que seguia a pé pelo passeio, começou a invectivá-lo em alta grita pelo que tinha acontecido. Perante o avolumar da exaltação e do descontrolo de V, C, indivíduo alto e fisicamente bem constituído, saiu do carro e pediu- lhe contenção, obtendo como resposta alguns insultos que, indirectamente, envolviam a mãe de C. Este reagiu dando dois murros em V, que o atingiram na cara e no pescoço. V começou então a desfalecer e, apesar de C lhe ter deitado a mão, caiu, sem dar acordo de si. Transportado a um hospital, acabou por morrer, cerca de meia hora depois. A autópsia revelou que a morte foi devida a lesões traumáticas meningo-encefálicas, as quais resultaram de violenta situação de "stress", e que a mesma ocorreu como efeito ocasional da ofensa. Esta teria demandado oito dias de doença sem afectação grave da capacidade de trabalho. No plano da causalidade, a doutrina da equivalência das condições (doutrina da "condicio sine qua non") continua, ainda hoje, a ter larga aplicação prática, nomeadamente, para a jurisprudência alemã. A teoria, cujos fundamentos vêm dos tempos de Stuart Mill ("cause"—"the sum total of the conditions") e que terá sido divulgada nos países de língua alemã por v. Buri, assenta em que causa de um fenómeno é todo e qualquer factor ou circunstância que tiver concorrido para a sua produção, de modo que, se tal factor (condição) tivesse faltado, esse fenómeno (por ex., a morte de uma pessoa) não se teria produzido. Partindo deste quadro naturalístico da equivalência das condições, causa é, no sentido do direito penal, toda a condição de um resultado que não possa suprimir-se mentalmente sem que desapareça o resultado na sua forma concreta, ou, na formulação de Mezger, causa do resultado é qualquer condição, positiva ou negativa, que, suprimida in mente, 53 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. faria desaparecer o resultado na sua forma concreta. Exemplo (de v. Heintschel-Heinegg, p. 147): A mergulhou numa situação financeira muito grave após ter perdido um processo judicial movido por um credor. Para se vingar do juiz, telefonou para casa deste e disse à mulher, fingindo ser da polícia, que o marido tinha tido um gravíssimo acidente pouco antes e que não resistira aos ferimentos. A mulher, perante a inopinada notícia, perdeu os sentidos e não resistiu: pouco depois falecia. (Cf., a propósito de actos desencadeadores de perturbações psíquicas, Faria Costa, O Perigo, p. 531). Nos parâmetros da teoria da equivalência, a causalidade da notícia para a morte da mulher estabelece-se do seguinte modo: “O que é que teria acontecido se A não tivesse feito o telefonema para casa do juiz? Nesse caso, não tendo sido informada do infausto acontecimento, a mulher nem teria desmaiado, nem teria morrido pouco depois. Se se eliminar o telefonema, suprime-se o resultado, de forma que a conduta de A causou a morte da mulher.” Para a fórmula habitual da condicio, qualquer condição do resultado, mesmo que seja secundária, longínqua ou indirecta, é causa do mesmo: para efeitos causais todas as condições são equivalentes. Condição é assim qualquer circunstância sem a qual o resultado se não produziria. Para decidir se uma situação, conduta ou facto natural é condição, utiliza-se a "fórmula hipotética". A crítica mais acertada, e ao mesmo tempo a menos justa, que se dirige à teoria das condições é a do "regresso ao infinito", por se considerarem causais, por ex., circunstâncias muito remotas ou longínquas. A morte da vítima foi causada pelo assassino, mas também se poderia dizer o mesmo dos ascendentes deste, os pais, avós, bisavós. Um acidente de viação com vítimas terá sido causado não só pelo condutor mas também pelo fabricante e pelo vendedor do carro. Poderia até ser causa do adultério o carpinteiro que fez a cama onde os amantes o consumaram. Outra objecção é a de que assim se responsabilizam pessoas mesmo quando entre o facto e o evento danoso as coisas se passaram de forma totalmente imprevisível, anómala ou atípica, como no exemplo do ferido, que não morre da agressão, mas no acidente da ambulância que o transporta ao hospital: sendo as condições equivalentes, o agressor seria responsável pelo efeito letal, mesmo que a ferida por si produzida fosse de molde a curar-se em oito dias. Ainda assim, certas insuficiências da doutrina foram sendo corrigidas, por ex., recorrendo à imputação subjectiva: quem causa a morte de outra pessoa, ou actua dolosamente ou o faz por negligência, e só nessa medida é que o facto será punível. A 54 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. doutrina da adequação (causalidade adequada) foi chamada a preencher algumas das insuficiências da fórmula da condicio. No caso nº 3, A, ao atirar com o cutelo contra o peito do colega de trabalho, ferindo-o, pôs uma condição que, lançando mão da teoria da equivalência, não poderá eliminar-se mentalmente sem que desapareça o resultado. Deste modo, não tem significado, face à equivalência das condições, a circunstância de se tratar de um processo completamente atípico, e de à acção de A se vir juntar a conduta de C. Para esta teoria, mesmo a intervenção de um terceiro, seja ela dolosa ou simplesmente negligente, não quebra a cadeia causal. Nesta perspectiva, a actuação de A é causal da morte de B. O exemplo nº 3 adianta a hipótese de A morrer devido a problemas cardíacos. Os processos causais hipotéticos são aqueles em que o autor provoca o resultado, mas este sempre teria acontecido por forma independente daquela acção. Ora, o que aconteceu foi que uma outra condição, adiantando-se, apressou a morte — acelerou-se o resultado, como em geral acontece quando se dispara sobre um moribundo, ou quando vem um indivíduo, diferente do carrasco, e antes da hora oficialmente marcada para a execução, accionando a guilhotina, mata o condenado. O comportamento da mulher, ao aplicar a almofada na cara de quem, prostrado na cama do hospital, não se podia defender, é causal do resultado (artigo 131º), de acordo com a fórmula habitual da condicio, mesmo que, sem essa actuação, a morte fosse inevitável e se daria num momento posterior devido à doença (processo causal hipotético). A morte (note-se: o mesmo resultado) sempre ocorreria, embora de outra maneira. Se se atender ao decurso causal efectivo, a causalidade não se exclui nos casos em que intervêm processos causais hipotéticos. Isto significa que não se pode contar com tais processos. Não é legítimo perguntarmos, por ex., o que se teria passado se o ofendido não tivesse sido transportado ao hospital: são as circunstâncias efectivamente realizadas que deverão ser suprimidas in mente, e não as hipotéticas (cf. Bustos Ramírez, p. 170). Decisivo é o resultado concreto na sua especial conformação, não uma morte qualquer, como resulta do artigo 131º, mas a morte ocorrida em Salzburg, no dia 7 de Novembro de 1983, pelas 23h12m, junto à casa do compositor Amadeus Mozart, depois de uma refeição a que alguém adicionou uma porção de veneno para os ratos (Triffterer; Öst. StrafR, p. 123). 55 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Havendo várias condições em alternativa (não cumulativas) qualquer delas poderá eliminar-se mentalmente sem que desapareça o resultado na sua forma concreta. Portanto, cada uma delas é causal do resultado — o que contraria a fórmula da condicio. Se A e B disparam simultaneamente sobre C, atingindo-o, um na cabeça outro no coração, a hipótese é de causalidade alternativa (dupla causalidade). Aplicando-lhe a fórmula da condicio, i. é, se por forma independente suprimirmos mentalmente cada uma das condições (o disparo) o resultado não deixa de se verificar. Consequentemente, na lógica da condicio, nenhum dos disparos seria causa da morte —o que levaria à absolvição de ambos. O resultado só se eliminaria se afastássemos cumulativamente os dois disparos, o que certamente demonstra os limites desta teoria, como observa Bustos Ramírez, exigindo que se lhe introduzam certas correcções, com os olhos postos nos objectivos do direito penal. Dizendo por outras palavras, a fórmula já não serve— nem mesmo colocando o resultado na sua conformação concreta —quando se trata de causas idênticas e contemporâneas, capazes de produzir o mesmo efeito independentemente uma da outra (gleichzeitiger, gleichförmiger und unabhängig voneinander wirksamer Ursachen). Noutro exemplo, citado por Eser, do filho e da filha que odeiam o pai, cada um deles, sem o outro saber, prepara-lhe uma bebida, adicionando-lhe uma dose mortal de veneno; o pai bebe o copo preparado pela filha e morre, mas teria acontecido o mesmo se tivesse bebido do outro copo. Cf. também Kühl, JR 1983, p. 33. No caso nº 3-A, está fora de dúvida que C agrediu V corporalmente, em termos de lhe produzir, como consequência da sua actuação dolosa, oito dias de doença. A mais disso, o resultado mortal — que na sua expressão naturalística, enquanto acontecimento infausto e infelizmente definitivo, também não deixa espaço para discussão —, fica vinculado à apreciação da relação causal, como qualquer outro pressuposto geral da punibilidade. Está em causa, portanto, um comportamento humano e todas as suas consequências. No caso nº 3-A, e utilizando a fórmula da condicio, não é possível excluir a causalidade mortal do murro dado por C — ainda que V já estivesse em risco de morrer por se encontrar extremamente depauperado. Todavia, mesmo para um não jurista, parece claro que a morte de V não deverá ser atribuída a C. O caso nº 3 representa um processo causal atípico, como são todos aqueles em que A, com intenção de matar B, o fere tão ao de leve que este só tem que receber ligeiros 56 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. curativos no hospital, para onde é transportado, mas no caminho, por hipótese, a ambulância onde B seguia intervém num acidente, batendo fragorosamente num automóvel que se lhe atravessa à frente num cruzamento, e B morre, por ter saído gravemente ferido do acidente. Para a fórmula da condicio— e recapitulando —a atipicidade do processo causal não exclui a causalidade. Como veremos a seguir com mais pormenor, a resposta será diferente para quem opere com a teoria da adequação. Esta teoria não identifica causa com qualquer condição do resultado, mas apenas com aquela condição que, em abstracto, de acordo com a experiência geral, é idónea para produzir o resultado típico. Deste modo, não haverá realização causal (adequada) se a produção do resultado depender de um curso causal anormal e atípico, ou seja, se depender de uma série completamente inusitada e improvável de circunstâncias com as quais, segundo a experiência da vida diária, não se poderia contar. A teoria da adequação, não sendo uma teoria da equivalência, procura limitar os inconvenientes que dela resultam, restringindo o âmbito da responsabilidade penal no plano da causalidade: é por isso, mais exactamente, uma teoria da responsabilidade, e não, propriamente, uma teoria da causalidade. O caso do homem do matadouro mostra igualmente que, na perspectiva da teoria da adequação, a morte não pode ser atribuída à agressão com o cutelo, pois foi directa e imediatamente provocada pela mulher —com a particularidade de a acção desta se seguir à acção do primeiro agressor. De resto, o homem sempre teria morrido uns dias depois, de irremediáveis problemas de coração, ou poderia ter morrido num acidente quando era transportado ao hospital. Até agora, o nosso objectivo tem consistido em averiguar se a morte das vítimas foi causada, num caso, pela agressão inicial com o cutelo, ou pelo murro, no outro — enfim, se a morte "é obra" do agressor, ou se é atribuível à acção de outra pessoa, ou se "é obra" do acaso. A primeira indagação faz-se no plano da causalidade da acção relativamente ao resultado. O ponto de partida é o da teoria das condições (condicio sine qua non: csqn), donde arranca a teoria da causalidade adequada. A qual tem desde logo a vantagem de excluir os processos causais atípicos. Ou, mais modernamente, a teoria da imputação objectiva, que nalguns casos supera e elimina algumas das desvantagens daquelas outras teorias. 57 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. III. A importância do nexo causal e da previsibilidade do resultado. À teoria da adequação (teoria da causalidade adequada) já não basta a existência de um nexo causal, é ainda necessário que o resultado seja objectivamente previsível. O caso da embolia pulmonar. Quando, em 19 de Agosto de 1993, A seguia conduzindo uma carrinha começou a descrever uma curva para a direita e encostou demasiado a viatura às guardas da ponte que se propunha atravessar de tal modo que apertou entre a carroçaria e as referidas guardas o peão B, de 70 anos, que não teve qualquer hipótese de evitar ser entalado. B sofreu diversas fracturas, incluindo uma do colo do fémur, vindo a falecer em 5 de Setembro de 1993, durante o período de tratamento hospitalar, de embolia pulmonar. O único problema a resolver é o de saber se a morte por embolia pulmonar resultou, directa e necessariamente, das lesões sofridas por B, em consequência adequada do acidente. Sustentou-se (cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 2 de Abril de 1998, CJ, 1998, tomo II, p. 56) que "este tipo de lesões e a imobilização prolongada são apenas dois dos quarenta factores de risco dos quais pode resultar uma embolia pulmonar". O relatório da autópsia concluíra que a morte de B foi devida a embolia pulmonar. Posteriormente o médico que o elaborou esclareceu que não foi possível estabelecer uma relação directa entre o acidente ocorrido em 19 de Agosto de 1993 e a embolia pulmonar que causou a morte de B em 5 de Setembro seguinte; pode contudo haver uma relação indirecta já que as fracturas sofridas em consequência do acidente obrigam a imobilidade prolongada o que, numa pessoa de 70 anos, é um factor de risco. Solicitado parecer ao Conselho Médico-Legal de Coimbra (artigo 9º, nº 2 do Decreto-Lei nº 387- C/97, de 29 de Dezembro), conclui-se: "as fracturas sofridas pela vítima do acidente de viação ocorrido em 19/8/93 obrigaram a uma situação de imobilização no leito. Em tais situações, a ocorrência de uma trombo-embolia pulmonar, favorecida pelo processo de imobilização, é uma eventualidade sempre possível, surgindo mais frequentemente nas primeiras 2 a 3 semanas após o traumatismo." O tribunal acabou assim por concluir que as lesões traumáticas decorrentes do acidente de viação, devem ser consideradas causa adequada da morte. Invocou-se na sentença o artigo 127º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal, salvo quando a lei dispuser de modo diferente. Portanto, não se tratou de uma circunstância extraordinária, a embolia é efeito das fracturas provocadas pelo acidente, e por conseguinte as consequências estão ligadas a estas lesões e são da responsabilidade de quem as fez. Não se provou, aliás, ao contrário do que se insinuava, que a vítima não tenha recebido o tratamento adequado. A teoria da causalidade adequada parte da teoria da equivalência das condições, na medida em que pressupõe uma condição do resultado que não se possa eliminar mentalmente, mas só a considera causal se for adequada para produzir o resultado segundo a experiência geral. Só é adequada —portanto, juridicamente significativa— uma causa que de acordo com o curso normal das coisas e a experiência da vida, tenda a 58 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. produzir um resultado idêntico ao efectivamente produzido. Deste modo, deverão excluir-se todos os processos causais atípicos que —como se viu anteriormente— só produzem o resultado devido a um encadeamento extraordinário e improvável de circunstâncias. O modelo de determinação da adequação assenta numa prognose póstuma: trata-se de um juízo de idoneidade referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado — é um juízo ex-ante. (Cf. Eduardo Correia, p. 258). Em seu juízo sensato, o julgador opera com as circunstâncias concretas em geral conhecidas e as regras da experiência normais (saber nomológico), sem abstrair daquelas circunstâncias que o agente efectivamente conhecia (saber ontológico). Se só o agente sabia que a vítima era hemofílico, isso deve tomar-se em conta para determinar a idoneidade. O juízo de adequação é levado a cabo mediante uma prognose posterior objectiva. Posterior, porque é o julgador que se coloca no momento da acção, i. é, ex ante e não no momento da produção do resultado (ex post, pois então deixaria de ser uma prognose e deveria atender-se a condições que o sujeito não teve em mente no momento da actuação). O aplicador do direito, situado no momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado (ex ante), deverá ajuizar de acordo com as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas do caso (juízo objectivo, enquanto juízo de experiência ou de probabilidade), levando ainda em conta as circunstâncias que o agente efectivamente conhecia, a sua "perspectiva". O juízo valorativo posterior ex ante tem por objecto estabelecer de forma objectiva, já depois de produzido o facto, o que teria prognosticado um observador objectivo no momento da realização do facto. Trata-se, sem dúvida, de uma ficção, por se ajuizar a posteriori, i. e., com o conhecimento certo do que efectivamente se passou, o que teria podido prognosticar uma pessoa inteligente e com conhecimentos especiais da ciência ou arte em questão, se tivesse estado nesse lugar ou nesse momento. Por ex., se uma pessoa convida outra para sua casa numa noite de tempestade e esta morre na queda dum raio, a ficção de pôr alguém sensato e com conhecimentos de meteorologia no momento do convite levará à conclusão que estatisticamente não era previsível que essa pessoa morresse, e portanto que não se havia produzido uma situação de risco certo. O juízo valorativo ex ante concluirá que apesar de ter havido uma morte não se verificou perigo com o convite. A prognose posterior objectiva não passa de uma ficção, como se disse; apesar disso, constitui uma boa fórmula de trabalho e como tal tem de ser admitida. O juízo ex ante tem por objecto predizer o que há-de suceder quando já se sabe o que sucedeu e se simula, como se não se soubesse. O juízo ex post, pelo contrário, é uma constatação valorativa feita a posteriori e com todos os dados do que realmente se passou. Bustos Ramírez, p. 32. Ex ante. Ex post. A causa a B uma forte comoção ao comunicar-lhe a morte do filho. B, perante a notícia e o seu estado de saúde, devido a problemas cardíacos, acaba por morrer. Comentário de Mir Puig, La 59 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. perspectiva ex ante en derecho penal, in El Derecho penal en el estado social y democrático, p. 93: “A morte de B foi causada por A. Todavia, ex ante, no momento em que A deu a notícia, a conduta não se apresentava como perigosa para a saúde de B. Terá A infringido a proibição de matar? Se se adoptar a perspectiva ex post, teremos que concluir que sim, mas se a proibição se refere ao momento da acção (ex ante), e se nos perguntamos se naquele instante o Direito proibia o A de comunicar a B a morte do filho, a resposta deverá ser negativa”. Como se viu, a teoria da csqn levava nalguns casos a consequências inadmissíveis (por ex., nos processos causais atípicos) e, geralmente, só através da imputação subjectiva se podiam estabelecer limites. A teoria da adequação, não sendo uma teoria da equivalência, procura limitar os inconvenientes que dela resultam, restringindo o âmbito da responsabilidade penal no plano da causalidade: é por isso, mais exactamente, uma teoria da responsabilidade, e não, propriamente, uma teoria da causalidade. Não identifica causa com qualquer condição do resultado, mas apenas com aquela condição que, em abstracto, de acordo com a experiência geral, é idónea para produzir o resultado típico. Deste modo, não haverá realização causal (adequada) se a produção do resultado depender de um curso causal anormal e atípico, ou seja, se depender de uma série completamente inusitada e improvável de circunstâncias com as quais, segundo a experiência da vida diária, não se poderia contar. A teoria da causalidade adequada parte da teoria da equivalência das condições, na medida em que pressupõe uma condição do resultado que não se possa eliminar mentalmente, mas só a considera causal se for adequada para produzir o resultado segundo a experiência geral. Não está em causa unicamente a conexão naturalística entre acção e resultado, mas também uma valoração jurídica. Excluem-se consequentemente os processos causais atípicos que só produzem o resultado típico devido a um encadeamento extraordinário e improvável de circunstâncias. "À base destes juízos podem dar-se várias hipóteses. A primeira é a de que o resultado verificado era imprevisível. Nesta hipótese, a causalidade fica logo excluída. A segunda hipótese é a de que o resultado era previsível, mas de verificação muito rara. Assim, v. g., A entra num comboio que vem, daí a pouco, a descarrilar. É claro que um comboio pode descarrilar, mas normalmente não descarrila. Eis aqui um efeito que, embora previsível, é anormal na sua verificação. Ora, também neste caso a causalidade deve considerar-se excluída. A terceira hipótese é a de que o resultado era previsível e de verificação normal. Neste caso existe justamente a idoneidade abstracta, e, por consequência, quando 60 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. verificado o evento, deve considerar-se adequado à acção que foi sua condição". (Cf. Eduardo Correia, p. 258). Mas — agora vêm as críticas! —, como observava Roxin: "abstractamente, podemos prever quase tudo...". Por isso, se se parte da visão de um "observador óptimo", alarga-se de tal forma o círculo das circunstâncias a ter em conta que a teoria da causalidade adequada se torna ineficaz para delimitar os casos atípicos, salvo nas situações extremas, preferindo-se por isso a figura do "observador médio", como observador objectivo que tem os conhecimentos especiais do sujeito (Eser, p. 57; Schünemann, GA 1999, p. 216). A esta luz, faltará a adequação no caso da paralisia facial julgado pelos tribunais alemães: certo indivíduo teve uma discussão com outro e começou a sentir-se indisposto. Devido à excitação, sofreu uma lesão dos vasos sanguíneos do cérebro com paralisia temporária, grave da fala e dos movimentos — acontecimento ocorrido em circunstâncias especialmente extraordinárias e improváveis, com que se não podia contar na perspectiva de um observador objectivo, considerando tanto as circunstâncias conhecidas como as desconhecidas pelo sujeito. Também entre nós se pode ler, já em Pereira e Sousa, Páginas de Processos, que mesmo demonstrando-se que uma hemorragia cerebral resultou de emoção e de excitação provocadas por determinado conflito não pode o autor dele ser responsabilizado por essa consequência, desde que ele a não previu nem podia prever. O acórdão de 20 de Novembro de 1963, BMJ-131-272, concluiu que não sendo o ferimento mortal, nem produzindo enfermidade mortal, e encontrando-se a causa da morte em infecção superveniente, circunstância estranha, desconhecida do réu e que não era consequência normal do acto que praticou, não existe nexo de causalidade entre a conduta e o evento. Por sua vez, o acórdão do STJ de 25 de Junho de 1965, BMJ- 148-184, entendeu que sendo a perfuração intestinal que está na origem de uma peritonite de que a vítima veio a morrer da autoria do réu, mas provando-se que a vítima não foi convenientemente tratada e que, se o houvesse sido, normalmente não resultaria a morte, não existe nexo de causalidade adequada entre o comportamento do réu e a morte. No caso da embolia pulmonar, os tribunais, como se viu acima, pronunciaram-se pela adequação da causalidade. Quem habitualmente consulta o Boletim do Ministério da Justiça ou a Colectânea de Jurisprudência encontra a teoria da causalidade adequada aplicada sistematicamente pelos tribunais portugueses, que remetem para o artigo 10º do Código Penal, quando refere a acção adequada a produzi-lo. "No entanto, não deve entender-se esta referência como vinculativa, no sentido de excludente, ficando em aberto a possibilidade de complementar a abordagem do problema com a teoria do risco, corrigida pela esfera de protecção da norma — desde que não conduza a soluções conflituantes com o artigo 10º" (Carlota Pizarro de Almeida, in Casos e materias, p. 302). No caso nº 3-A, provando-se apenas que o agente reagiu dando dois murros na vítima que o atingiram na cara e no pescoço e que esta começou então a desfalecer e caiu, sem dar acordo de si, acabando por morrer, cerca de meia hora depois, no hospital — o crime é unicamente o do artigo 143º, nº 1, por também se ter apurado que a ofensa teria 61 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. demandado apenas oito dias de doença sem afectação grave da capacidade de trabalho. O acerto da decisão é acompanhado pelas conclusões da autópsia, reveladoras de que a morte foi devida a lesões traumáticas meningo-encefálicas, as quais resultaram de violenta situação de "stress", e que a mesma ocorreu como efeito ocasional da ofensa. Vamos transitar a seguir para a problemática da imputação objectiva. Anotemos, a propósito, que nos casos em que o tipo penal exige um certo resultado, a causalidade é uma condição necessária, mas não suficiente para a afirmação da imputação objectiva. De forma que se insiste numa coisa: causalidade e imputação objectiva não devem ser confundidas. As teorias normativas da imputação servem especialmente para suprir as insuficiências da fórmula da condicio, como veremos a seguir. É um papel que já antes coubera à teoria da adequação, mas que agora permite obter soluções mais adequadas, nomeadamente, nos seguintes pontos (cf. Ebert, AT, p. 44; e Jura 1979, p. 561; cf. também Eser, p. 58): • Nas condições muito remotas, negando-se a imputação, por ex., aos avós do réu, ou ao Adão e à Eva da Bíblia, ainda que essa imputação se pudesse fazer de acordo com os critérios mais alargados da csqn; • Nos processos causais atípicos, aqueles casos que fogem inteiramente às regras da experiência, com os quais se não pode razoavelmente contar empregando um juízo de adequação: processos naturais incontroláveis, acontecimentos imprevisíveis; faltará o nexo de risco se A causa um leve arranhão em B, que acaba por morrer por ser hemofílico, circunstância que aquele desconhecia no momento da acção; • Nas condições que não aumentaram de modo essencial o desvalor de resultado ou que o fizeram diminuir: A desvia o golpe que B dirigia à cabeça de C para um dos ombros, onde acaba por produzir menor dano; • Nas acções cuja antijuridicidade não se manifestou no resultado, como é ainda o caso dos processos causais acidentais, de todo alheios à vontade do agente, que não são por ele domináveis; • Nos resultados que, ainda que baseados numa acção ilícita, estão excluídos do âmbito de protecção da norma de cuidado violada; • Na ocorrência de uma acção (dolosa ou culposa) de terceiro. 62 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Parte-se da ideia de que só é objectivamente imputável um resultado ilícito, causado por um comportamento humano, se esse comportamento tiver criado um perigo de produção do resultado juridicamente desaprovado e se esse perigo se tiver efectivamente realizado na concreta materialização do acontecimento. Mas, como acentua o Prof. Faria Costa, p. 511, "a imputação objectiva não vem postergar ou remeter para o sótão das noções jurídico-penalmente inúteis, por ex., a noção de causalidade. A adequação causal continua a perfilar-se como o primeiro cânone interpretativo de que nos devemos socorrer para sabermos se aquele facto deve ser ou não imputado ao agente". Mas diz ainda, a p. 506: "por mais maleabilidade ou elasticidade que se empreste à causalidade adequada, dificilmente esta permite que se consiga estabelecer um juízo de causação entre a acção e, por ex., um resultado de perigo". IV. Trilhando os caminhos da imputação objectiva. A doutrina do aumento do risco: o resultado como "obra do agente"; o resultado como "obra do acaso". Causalidade e imputação objectiva não podem ser confundidas. O risco de comer uma sopa (OLG Stuttgart, NWJ 1982, 295; I. Puppe Jura 1997, p. 625): O arguido atropelou um reformado quando seguia com velocidade superior à legal. O peão, devido à gravidade dos ferimentos, teve que ser operado, ficando nos cuidados intensivos, e passou a ser alimentado artificialmente. Quando o doente recuperou a consciência e começou a comer normalmente, "engoliu" um prato de sopa de tal forma que o líquido lhe invadiu os pulmões. Ainda que imediatamente socorrido, o doente não sobreviveu à consequente pneumonia. Variante: a sopa entrou nos pulmões porque o doente estava tão fraco, depois do que lhe aconteceu, que os seus reflexos se encontravam particularmente diminuídos. A ideia fundamental da imputação objectiva é, pois, a de que o agente só deve ser penalmente responsabilizado pela realização do perigo juridicamente relevante. Qualquer outro resultado não é “obra sua”. Se alguém aponta e dispara um tiro noutra pessoa, matando-a, pode ser acusado de homicídio voluntário, pois o risco criado pelo agressor realizou-se na morte da vítima. Mas se o tiro, ainda que disparado com dolo homicida, apenas provoca um ferimento ligeiro e a vítima morre num acidente em que interveio a ambulância que o transportava ao hospital, esta morte não é “obra do agressor”. A conduta deverá conter um risco implícito (um perigo para o bem jurídico) que deverá posteriormente realizar-se no resultado a imputar. 63 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Os autores advertem (por ex., Fuchs, p. 93) que o conceito de imputação é por vezes manejado com outros significados, de forma que se deverá ter isso em atenção. Alguns autores, como Frisch e Jakobs, distinguem entre a imputação objectiva do resultado e a imputação (objectiva) da conduta. Em sentido muito alargado, pode falar-se de imputar (atribuir) um acontecimento a alguém, por ex., quando se atribui o desvalor de resultado a um determinado sujeito ou até o resultado das suas boas acções. Pode, aliás, imputar-se um determinado resultado (pelo menos) a título de negligência, como o código dispõe no artigo 18º. No artigo 22º, nº 1, há tentativa quando não existe um resultado atribuível ao agente que pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer. O resultado decorrente da actuação em legítima defesa (artigo 32º) pode ser imputado à conduta do defendente, não obstante actuar justificadamente. Diz Melo Freire, Instituições de Direito Criminal Português, BMJ-155-180, que “a ninguém deve imputar-se o que sucede por acaso”. E o Código de Processo Penal, no nº 1 do artigo 345º, dispõe quanto a perguntas sobre os factos imputados ao arguido. Em sede de imputação objectiva parte-se do princípio de que a causalidade e a imputação objectiva são categorias distintas dentro do tipo de ilícito. Para as modernas teorias, a causalidade é necessária, mas não é condição suficiente para imputar o resultado à acção do agente como "obra sua". O juízo naturalístico de causalidade é corrigido por um juízo normativo de imputação. Os critérios utilizados são porém discutíveis e não parece que tenha sido apresentado até hoje um sistema acabado que rivalize com a solidez dos critérios tradicionais. Como quer que seja, no plano da imputação objectiva: a) O juízo de causalidade é deixado para a teoria das condições (única correcta no plano causal): em primeiro lugar, deverá verificar-se se existe relação de causalidade entre a acção e o resultado, no sentido da csqn; b) Só será objectivamente imputável um resultado causado por uma acção humana quando a mesma acção tenha criado um perigo juridicamente desaprovado (=risco proibido, violador da norma) que se realizou num resultado típico, com base num processo causal tipicamente adequado — em suma, a conduta deverá conter um risco implícito (um perigo para o bem jurídico) que deverá posteriormente realizar-se no resultado a imputar. Em resumo: ao aplicarmos a teoria do risco, deveremos averiguar, em primeiro lugar, a questão da causalidade, aferindo-a pelos critérios da csqn; depois, indagar se ocorre um perigo (=risco) juridicamente relevante como requisito relacionado com a conduta do autor, i. é, se o autor criou em geral um novo risco para a produção do resultado, ou se 64 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. aumentou um risco já existente; finalmente, se se realizou, i. é, se materializou ou se se concretizou o perigo (nexo de risco). (Cf. Haft, p. 63; Eser, p. 120). O perigo típico (perigo juridicamente relevante) poderá afirmar-se, por ex. (ainda Haft, p. 63), se A, sabendo que B sofre de graves problemas cardíacos, dolosamente, lhe dá a falsa notícia de que uma pessoa muito querida tinha morrido, e com isso B sofre um ataque cardíaco. O perigo não será tipicamente relevante se a acção não criar um risco adequado e juridicamente reconhecível para a produção do resultado, como acontece na generalidade dos processos causais atípicos. A oferece uma viagem de avião ao tio rico esperando que o avião venha a cair, o que na realidade acontece. A acção não produziu qualquer perigo efectivo para o bem jurídico. Acontece o mesmo quando o perigo se contém no quadro do risco geralmente permitido. O condutor T causa a morte do peão O, porque este vai de encontro ao automóvel que T conduzia de acordo com todas as regras de trânsito. A morte não é de imputar objectivamente ao condutor, porque a participação no tráfego rodoviário de acordo com as correspondentes prescrições se contém no âmbito do risco permitido; aliás não há violação do dever de cuidado. Inclusivamente, o perigo típico está fora de questão quando a acção não incrementa o risco, podendo dar-se uma diminuição do risco. Ex., quando T ia para bater com uma matraca em B, A faz com que este seja atingido apenas a murro, vibrado com o outro braço do agressor, mas esta actuação de A, que não participa da agressão e se limita a desviar o golpe inicial, não cria qualquer perigo juridicamente relevante e não é punível. A imputação objectiva do resultado supõe que o perigo criado pela acção se materializou no resultado concreto final. No caso em que A provoca ofensas corporais em B e este vem a morrer a caminho do hospital por despiste da ambulância, não é o perigo resultante da acção de A que se realizou na morte de B, mas o perigo ligado à referida acção por "obra do acaso" e que levou à morte por acidente. Como mostra o exemplo, o critério do nexo de risco entronca na noção de domínio: para imputar o processo causal a alguém é necessário que este o pudesse dominar, que não seja, pura e simplesmente, um acidente da sua actuação. Num acidente involuntariamente provocado por T, B sai ligeiramente ferido. Durante uma operação imposta pelo acidente, mas em princípio sem 65 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. quaisquer riscos, B morre devido a complicações com a aplicação da anestesia. Há aqui a realização dum risco geral da vida: na morte de B não se realizou o risco especificamente ligado à produção de um acidente de trânsito. Consequentemente, não se dá a concretização do risco nos processos causais acidentais, que não são dominados pela vontade do agente, negando-se a imputação. Também não serão imputáveis resultados que não caiam na esfera de protecção da norma de cuidado violada pelo agente: o ladrão que ao praticar o furto dá lugar à perseguição pelo guarda, que vem a morrer atropelado, não infringe um dever de cuidado e não é responsável por essa morte. Efeitos tardios. Não se podem imputar efeitos tardios por um tempo indefinido. A conclusão do processo de cura deverá ser o momento decisivo. R. Dutschke, um dirigente da revolta estudantil alemã de 1968, foi vítima de um atentado político e passou a sofrer de deficiência, que permanentemente o afectava. Uns anos mais tarde, por causa disso, perdeu a consciência, quando se encontrava no banho, e morreu por afogamento. Cf. Roxin, AT, p. 904; I. Puppe, p. 626. Outro exemplo: O condutor T segue a alta velocidade e atropela o menor M que atravessa de modo imprevisto. T causa a morte de M no exercício da condução, todavia, mesmo à velocidade regulamentar, o acidente não teria sido evitado: pode invocar-se aqui um comportamento lícito alternativo. No caso do matadouro, salta à vista que o B não morreu por causa da pancada do cutelo, mas pela aplicação da almofada no quarto do hospital. Ora, só será objectivamente imputável um resultado causado por uma acção humana quando a mesma acção tenha criado um risco proibido para o bem jurídico, que deverá posteriormente realizar-se no resultado a imputar. Esta última exigência para a atribuição do resultado a uma acção humana não se encontra satisfeita no caso nº 3, onde falta o nexo de risco. Na verdade, o B veio a morrer no quarto do hospital por acção da mulher. Hipóteses como as que aqui se apresentam, que arrastam questões de resolução mais difícil ou duvidosa, costumam aparecer nos textos práticos dos exames e têm que ser identificadas e convenientemente depuradas e resolvidas. Se não se levantam problemas, se a relação de causa e efeito é evidente, como quando A dispara sobre B a 3 metros de distância e B morre logo ali por ter sido atingido no coração, só temos que lhe fazer uma ligeira referência e concluir que, em sede de causalidade (causalidade adequada: artigo 10º, nº 1, do Código Penal), a agressão a tiro, conduzida por A, é a causa da morte — ou que, em 66 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. sede de imputação objectiva, o evento letal é "obra de A". Se tivermos um caso em que A, à paulada, reduziu a cacos o vaso de flores da vizinha, só teremos que apurar que o vaso é uma coisa que não pertence a A e concluir: "A partiu o vaso de flores de B — os danos por ele produzidos foram em coisa alheia". Será perfeitamente desajustado insistir noutro tipo de considerações. V. Processos causais atípicos, processos causais hipotéticos, interrupção do nexo causal. CASO nº 3-B: A e B são inimigos de C. Certo dia, A, com dolo homicida, ministra a C um veneno que lhe produzirá inevitavelmente a morte, mas lentamente. Antes de surgir a morte, C é morto a tiro por B. Há no caso nº 3-B uma quebra do nexo causal. O processo causal iniciado com a ministração do veneno não chegou ao fim, foi "ultrapassado" por um outro processo que apressou a morte. Nos casos de interrupção do nexo causal, em que inicialmente se põe em marcha uma cadeia causal com capacidade para produzir o resultado, um sucesso posterior abre — de forma totalmente independente da condição posta anteriormente — uma nova série causal que, por si só, produz o resultado. Consequentemente, dá-se a quebra da primeira série causal por outra que se lhe antecipa, o que pressupõe que a condição posta anteriormente continuaria a surtir efeito até à produção do resultado. Aplicando a teoria da adequação ou a teoria do risco, a conclusão só poderá ser esta: a acção de A não é eficaz para a morte de C, pois a série causal que iniciou foi ultrapassada pela acção de B. A só poderá ser sancionado por homicídio tentado. A conduta de A criou um perigo juridicamente desaprovado, que, porém, se não realizou no resultado típico através de um processo causal tipicamente adequado. Há porém divergências acentuadas quanto à determinação do elemento capaz de interromper um processo causal já iniciado, exigindo-se umas vezes a actuação dolosa, bastando para outros a negligente. De qualquer forma, a "participação negligente" não chega a ser punida (artigos 26º e 27º). Se um processo causal baseado em acção não dolosa (deixar uma arma carregada ao alcance de alguém) for aproveitado por outrem que actua dolosamente para directamente provocar o resultado, o que está em causa é apenas a responsabilidade por dolo. A intervenção de um terceiro que comete dolosamente um crime exonera do risco o primeiro causador negligente. O risco realizado no resultado é unicamente o do crime doloso. São realidades que têm a ver com a antiga teoria da proibição de regresso e com a actual ideia da autoresponsabilidade. Cf. Weber, in Baumann / Weber / Mitsch, AT, p. 225; Roxin, p. 159. 67 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Como já antes se anotou, o caso nº 3 representa um processo causal atípico, como são todos aqueles em que A, com intenção de matar B, o fere tão ao de leve que este só tem que receber ligeiros curativos no hospital, para onde é transportado, mas no caminho, por hipótese, a ambulância onde B seguia intervém num acidente, batendo fragorosamente num automóvel que se lhe atravessa à frente num cruzamento e B morre, por ter saído gravemente ferido do acidente. É pertinente inquirir em que medida se pode ou deve considerar a primeira causa (o acto de ferir ligeiramente) como causal para a produção do resultado mortal, já que à primeira causa se vem juntar esta segunda. De qualquer forma, todos estarão de acordo em que A só poderá ser punido por homicídio tentado: quis matar a vítima e praticou actos de execução do crime que planeou, mas a morte tem outra causa, diferente da agressão com o cutelo, não ocorreu como efeito da conduta de A, e portanto não é "obra" deste, já que o perigo criado também aqui não cristalizou no resultado típico. Casos como estes acompanham frequentemente agressões voluntárias e mesmo homicídios. O comportamento que vem a produzir o resultado tanto pode ser de terceiro como da própria vítima, se por ex. o agredido recusa qualquer assistência médica de que necessita, acabando por morrer (Eser, p. 65; E. Correia, Crime de ofensas corporais voluntárias); ou quando, terminada a agressão, a vítima morre na fuga, por não ter prestado atenção ao caminho. A questão está em averiguar se a primeira acção continua ou não a produzir efeitos até ao advento do resultado. Entre outros casos semelhantes, frequentes na praxis e retomados pela doutrina, destacamos, desde logo, o da vítima de uma tentativa de homicídio, que sai ligeiramente ferida e acaba por morrer num acidente provocado pelo motorista da ambulância, ou por um outro interveniente no tráfico, ou porque o operador ou o anestesista comete um erro que viola gravemente as leges artis da profissão (Kienapfel, p. 10). Ou aquele em que A foge ao golpe mortal de B, mas na fuga é atingido por um tijolo que se desprende de uma obra em construção, ou é picado por um insecto e morre, por ser alérgico ao "veneno". Nenhum destes dois processos era previsível, por estarem completamente fora da experiência comum. Faltará nestes casos um nexo de adequação, de forma que B só poderá vir a ser castigado por tentativa. 68 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Ainda outra hipótese, considerada entre os autores alemães como um processo causal anómalo: A, que não sabe nadar, afastou-se da praia e está em perigo de morrer afogado. O banheiro B prepara-se para intervir, mas no momento de se lançar ao mar é impedido de o fazer por C, que, ao aperceber-se de que quem estava em dificuldades era A, seu inimigo e credor, logo jurou que seria aquela a oportunidade para se ver livre dele. A morre afogado e C, que interrompeu um processo causal dirigido à salvação de uma pessoa em perigo, foi quem causou essa morte. Num caso de broncopneumonia (acórdão do STJ de 1 de Abril de 1993, BMJ-426-154), o Colectivo deu como provado que, logo que a vítima caiu na calçada granítica o arguido sujeitou-o enganchando-se nele; e agarrando-lhe a cabeça, embateu-a repetidamente contra o solo, ocasionando-lhe lesões cranio-meningo- encefálicas, necessariamente causais da sua morte. O tribunal de recurso confirmou que a conduta agressiva do arguido constitui, objectivamente, causa adequada à ocorrência daquela morte. Ora, a defesa alegara que, para a morte da vítima, tinha também contribuído uma broncopneumonia bilateral de que era portador, e que se não tinha verificado o tratamento médico devido, por inexistência atempada da terapêutica adequada. De forma que, perante aqueles factos, é irrecusável a conclusão que nem a falta de assistência clínica em pronto internamento hospitalar nem a eclosão da broncopneumonia interromperam o nexo de causalidade adequada que liga a morte da vítima às lesões que o réu lhe infligiu. Tendo querido molestar fisicamente a vítima, o arguido praticou a agressão prevendo a possibilidade da ocorrência letal. E aceitou-a: pois tal previsão não foi inibitória do comportamento agressivo. Movida com dolo eventual (artigo 14º, nº 3), a sua conduta vai, portanto, preencher a autoria de um crime de homicídio voluntário simples. O caso nº 3 adianta ainda a hipótese de A morrer devido a problemas cardíacos. Já anteriormente aludimos a estes processos causais hipotéticos, em que uma ou mais condições ficam como que "à espreita", de reserva (Reserveursachen). A, que recentemente entrou a fazer parte de um bando de criminosos, é incumbido de matar B, o que consegue, não obstante ser novato e se tratar da sua primeira "actuação"; B, porém, sempre teria sido morto por C, outro membro do bando e velho profissional do crime, bem preparado para estas andanças, que estava pronto para disparar, se A tivesse falhado o tiro. Aqui interessa a conformação concreta dos fenómenos. O tiro de A foi a causa da morte da vítima. Esta, enquanto resultado, é "obra" de A, não obstante a hipótese considerada. Se os intervenientes actuam independentemente um do outro —não será então caso de co-autoria nem de participação—, se naquele exemplo em que A quer matar o seu marido, 69 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. dando-lhe sucessivamente, em dias seguidos, pequenas quantidades dum certo veneno, mas ao amante, C, também ocorre a ideia de misturar um poucochinho do veneno na mesma sopa, de forma que, em certo dia, as duas doses juntas chegam para provocar a morte do odiado marido — A e C só poderão sofrer castigo por tentativa de homicídio (crime impossível, reconhecendo-se um erro relevante sobre o decurso causal?). É a hipótese corrente de causalidade cumulativa — autoria aditiva. No exemplo, é manifesto que nenhum dos processos desencadeados é suficiente, por si só, para a produção do resultado e que se tem como assente que os intervenientes actuam independentemente um do outro. O evento típico resultará de mais do que uma causa, sendo cada uma, por si só, insuficiente para produzir o resultado. Há quem enquadre a hipótese na autoria acessória, tratando-a como causalidade simultânea ou de efeito simultâneo, já que os respectivos efeitos se unem ou potenciam (cf. Luzón Peña, p. 363). As causas, aliás, podem ser múltiplas, dificultando ainda mais a imputação (poluição de um rio). E se o excesso de velocidade do condutor levou à morte de uma criança que, inadvertidamente, atravessa a estrada por manifesta falta de cuidado da mãe — como deve responder o Direito? pergunta a Prof. F. Palma, RPCC 9 (1999), p. 549. Detectamos aqui duas causas que convergem no evento, mas "o atropelamento explica apenas parcialmente a morte da criança, tal como o próprio comportamento negligente da mãe". Só mais um exemplo, vindo de Espanha: num encontro no campo, José deixa ficar a espingarda carregada, sem accionar a patilha de segurança. Uma amiga pergunta-lhe se está carregada e José, despreocupadamente, responde-lhe que não. A jovem aponta a arma a um terceiro, dizendo-lhe, em tom de brincadeira: "Tony, vou-te matar!", apertando o gatilho e produzindo a morte instantânea deste. Neste exemplo, diz A. Cuerda Riezu, o resultado produz-se pela soma das intervenções do dono da arma e da jovem que a manejou. A solução, na ausência de dolo, pode ser a de fazer responder cada um deles por crime negligente, portanto consumado. A questão está relacionada com a da autoria nos crimes negligentes, onde todo aquele que infringe o cuidado devido em relação a um resultado lesivo deve responder como autor. Se A e B disparam simultaneamente sobre C, atingindo-o, um na cabeça outro no coração, já vimos que a hipótese se enquadra na causalidade alternativa (ou dupla causalidade, embora certos autores prefiram empregar aqui o termo "cumulativa", com que 70 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. qualificamos hipótese diferente). Como nos pelotões de fuzilamento, em que as balas dos soldados atingem o condenado na cabeça ao mesmo tempo, as duas condições levam, simultaneamente, ao resultado. Se os irmãos A e B querem ver-se livres de C, o tio rico, e cada um deles, independentemente um do outro, lhe ministra no mesmo prato de sopa uma dose letal de veneno, C, com a dose dupla, inevitavelmente, acaba por morrer. Se a autópsia revela que qualquer das doses podia provocar a morte, ainda assim, os irmãos só poderão ser sancionados por homicídio tentado, atenta a inarredável dificuldade probatória. O problema será então de prova e não de causalidade (Triffterer, p. 133). Contudo, só haverá dupla causalidade quando as duas acções concausam o resultado — se o segundo tiro for disparado quando o primeiro já produziu o resultado o que se atinge é, obviamente, um cadáver, e não será causal da morte. Igualmente se levanta a problemática dos processos causais não verificáveis, casos em que reiteradamente o resultado se faz sentir, afectando um número elevado de pessoas que anteriormente estiveram em contacto com um determinado factor, por ex., ingeriram o mesmo produto ou medicamento, havendo uma fundada suspeita ou uma grande probabilidade de que esse seja o agente causal do resultado, embora se desconheça qual o exacto mecanismo ou o processo, químico ou físico, produtor do dano. São casos em que as correspondentes ciências empíricas não foram capazes de o reconstruir a posteriori, como no chamado caso Contergan (talidomida). O Prof. Luzón Peña, cuja descrição estamos agora a seguir, alude ao muito falado caso do óleo "de colza", que em Espanha provocou há anos (a sentença do caso da colza é de 23 de Abril de 1992) graves lesões e enfermidades, com sintomatologia bastante anómala, e até mortes. O óleo tinha sido adulterado com substâncias que não foi possível determinar, com a particularidade de nem todos os consumidores terem manifestado o síndroma tóxico. Aqui, explica o nosso informador, a questão está em determinar se basta ou não uma grande probabilidade, por vezes raiando a certeza, para afirmar a existência da relação causal —embora se não conheça exactamente a totalidade do processo causal. Claro que a acompanhar este entendimento estará uma concepção do dolo de tendência objectivadora, a qual prescinde, como iremos ver no lugar próprio, do elemento volitivo, ou em que, se se preferir, o elemento cognitivo é suficiente para induzir a existência de uma vontade de realizar o tipo penal. Sobre o caso da colza cf., ainda, alguns dos estudos publicados na 71 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. obra colectiva, org. por Santiago Mir Puig e Diego-Manuel Luzón Peña, Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y responsabilidad por el produto, Bosch, 1996; e as considerações de Maíllo, p. 268. VI. Exercícios 1º exercício: A partir do caso nº 3, suponha que i) A, devido a hemorragia, desmaia na ambulância que o transporta ao hospital, vomita e morre; ii) durante o trajecto para o hospital, a ambulância choca com um camião que vinha fora de mão e A sofre ferimentos mortais; iii) após uma operação levada a efeito com êxito, A morre por infecção dos ferimentos; iv) momentos antes de deixar o hospital, A morre devido a um incêndio que se declara no quarto em que se encontra. Tenha-se em atenção que o facto de uma pessoa ferida perder a consciência como consequência da perda de sangue e vomitar, seguindo-se-lhe a asfixia, não é improvável, é antes previsível. Isto vale também para a infecção da ferida. A morte de B, provocada por estas circunstâncias, deve imputar-se objectivamente a A. Nos outros casos, o resultado mortal fica a dever-se a um processo completamente inusitado e atípico, e nele não chega a concretizar-se o risco criado por A ao atirar o cutelo, mas um risco de outra natureza, que não tem nenhuma relação com a acção de A. O perigo, correspondente ao risco geral da vida, de ser vítima de um acidente de trânsito ou de ficar intoxicado pelo fogo não se cria nem aumenta sensivelmente por ter havido a agressão com o cutelo. Conforme à experiência geral, é improvável, sem mais, que uma lesão como essa tenha como consequência um resultado dessa espécie. Por conseguinte, a morte por acidente de B não deverá imputar-se a A como obra sua, mas ao condutor do camião. A só responde por homicídio tentado. O mesmo critério vale para a intoxicação mortal, a qual deverá imputar-se ao autor do incêndio como obra sua. 2º exercício: Durante uma festa que meteu bebidas em abundância, A, um dos convidados, deitou fogo ao andar superior da moradia. Em elevado estado de embriaguez, o filho do dono da casa subiu ao andar em chamas, para salvar alguém que por ali estivesse sem dar acordo de si, ou para retirar umas coisas valiosas, mas veio a morrer asfixiado, devido aos fumos. O primeiro problema que aqui intervém é o da livre e responsável auto-exposição ao perigo em relação com a imputação objectiva. Uma auto-exposição ao perigo plenamente responsável quebra a imputação aos outros intervenientes? Será que neste caso a intervenção do filho do dono da casa foi inteiramente livre? Cf. I. Puppe, p. 30. Outros casos de participação da vítima: o parceiro sexual que conscientemente tem relações com um infectado pelo HIV sem as cautelas próprias do safe sex; o caso de 72 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. quem vende a porção de heroína que causa a morte do viciado que com ela se injecta. Cf. Schünemann GA 1999, p. 222. 3º exercício: Ainda a propósito dos processos causais hipotéticos. Até que ponto a causalidade hipotética se sobrepõe à consequencialidade? pergunta a Prof. F. Palma. Veja-se o exemplo da derrocada na RPCC 9 (1999), p. 544, e as suas implicações. E leia- se Curado Neves, p. 394: "A verificação do curso hipotético dos eventos em caso de comportamento lícito alternativo do agente não desempenha qualquer papel na determinação da responsabilidade do autor do facto. Não influi sobre a caracterização da conduta típica ou sobre a existência de um desvalor de perigo; não é, também, relevante para a imputação do resultado." 4º exercício: Ainda os processos causais não verificáveis e certos casos de causalidade cumulativa. Pergunta, de novo, a Prof. F. Palma, loc. cit., p. 549: "Como se delimita a imputação objectiva nas situações em que uma pluralidade de causas concorre num evento? As causas cumulativas não anularão a possibilidade da própria imputação objectiva, paralisando o juízo de imputação em situações típicas das sociedades complexas (responsabilidade dos produtores e das empresas relativamente a danos ambientais, por exemplo)?". Como tratar a poluição dum rio, desde que haja muitos a contribuir para o efeito, como normalmente acontecerá? O legislador "foge" a estas questões criando crimes de dever e crimes de perigo que prescindem da imputação do resultado. Cf. Fernanda Palma, loc. cit., e Direito Penal do Ambiente — uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente, 1994, p. 431. VII. Indicações de leitura • Acórdão do STJ de 29 de Julho de 1932, Col. Of., vol. 31: dando-se como demonstrado que a impossibilidade de trabalhar por toda a vida do ofendido era efeito de doença de que estava atacado — sífilis — e não efeito necessário do traumatismo, que simplesmente podia intervir como causa adjuvante, não deverá o ofensor ser incriminado pela infracção mais grave. • Acórdão do STJ de 15 de Janeiro de 2002, CJ 2002, tomo I, p. 37: processo atípico; menor que quando brincava com outros dois num edifício em adiantado estado de construção, no 2º andar tocou num tijolo que, caindo, atingiu um deles, que se encontrava no rés-do-chão. A falta de sinalização do estaleiro não pode considerar-se causa adequada das lesões sofridas pelo menor. 73 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Dezembro de 1999, BMJ-492-480: não havendo na lei nada que faça presumir que a morte ocorrida após um acidente de viação é consequência deste, não tem cabimento a pretensão de que se considere verificado o referido nexo de causalidade por força das disposições legais relativas à prova por presunção, nomeadamente o artigo 349º do Código Civil. Numa área de grande melindre, em que são requeridos particulares conhecimentos científicos, a conclusão de que a morte do ofendido foi causada pelos ferimentos por ele sofridos no acidente há-de resultar da prova que constar dos autos e não do recurso a meros juízos de normalidade. Se da prova resultarem incertezas quanto às causas da morte não poderá estabelecer-se o nexo de causalidade por obediência ao princípio in dubio pro reo. Se o julgador divergir do estado de dúvida do perito (que no fundo afirmou que face aos elementos técnicos e científicos disponíveis não é possível estabelecer o nexo de causalidade), optando pela existência do nexo de causalidade, deverá fundamentar a divergência nos termos impostos pelo artigo 163º, nº 2, do CPP. • Acórdão da Relação de Coimbra de 2 de Abril de 1998, CJ, 1998, tomo II, p. 56: crime de homicídio por negligência, prova pericial, falecimento por embolia pulmonar durante o tratamento de fracturas ósseas sofridas em acidente de viação. • Acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1988, BMJ-382-276: homicídio qualificado; interrupção do nexo causal. A adequação a exigir não se deve estabelecer só entre a acção e o resultado, mas em relação a todo o processo causal. • Acórdão da Relação do Porto de 10 de Fevereiro de 2000, CJ ano XXV (2000), tomo I, p. 215: artigo 563º do Código Civil; causalidade indirecta; concurso real de causas. • Acórdão do STJ de 2 de Junho de 1999, BMJ-488-168: causalidade adequada e perda de instrumentos do crime de tráfico de estupefacientes. • Alfonso Serrano Maíllo, Ensayo sobre el derecho penal como ciencia, Madrid, 1999. • Bernardo Feijóo Sánchez, Teoria da imputação objectiva, trad. brasileira, 2003. • Bernd Schünemann, Über die objektive Zurechnung, GA 1999, p. 203. • Bockelmann/Volk, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 4ª ed., 1987. • Carlota Pizarro de Almeida, Imputação objectiva. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1988, in Casos e materiais de direito penal, p. 299. • Carmen Gómez Rivero, Zeitliche Dimension und objektive Zurechnung, GA 2001, p. 283. • Claus Roxin, Reflexões sobre a problemática da imputação em direito penal, in Problemas fundamentais de direito penal, p 145 e ss. • Cuello Calón, Derecho Penal, t. I (Parte general), vol. 1º, 16ª ed. • Gimbernat Ordeig, Delitos cualificados por el resultado y causalidad, 1990. • E. Gimbernat Ordeig, Causalidad, omisión e imprudencia, in Ensayos penales, Tecnos, 1999. • E. Gimbernat Ordeig, Qué es la imputación objetiva?, in Estudios de derecho penal, 3ª ed., 1990. • Eduardo Correia, Crime de ofensas corporais voluntárias, CJ, ano VII (1982), tomo 1. • Eduardo Correia, Direito Criminal, I, reimp., 1993. • Eser/Burkhardt, Derecho Penal, Cuestiones fundamentales de la Teoría de Delito sobre la base de casos de sentencias, Ed. Colex, 1995. 74 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Haft, Strafrecht, AT, 6ª ed., 1994. • Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, especialmente, p. 471 e ss. e p. 542 e ss. • Gomes da Silva, Direito Penal, 2º vol. Teoria da infracção criminal. Segundo os apontamentos das Lições, coligidos pelo aluno Vítor Hugo Fortes Rocha, AAFD, Lisboa, 1952. • H.-H. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts: Allg. Teil, 4ª ed., 1988, de que há tradução espanhola. • Hans Welzel, Das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., 1969, de que há tradução para o espanhol. • Ingeborg Puppe, Die Lehre von der objektiven Zurechnung, Jura 1997, p. 408 e ss. • Ingeborg Puppe, La imputación objectiva. Presentada mediante casos ilustrativos de la jurisprudencia de los altos tribunales. Granada, 2001. • Ingeborg Puppe, Strafrecht Allgemeiner Teil im Spiegel der Rechtsprechung, Band I, 2002. • J. Seabra Magalhães e F. 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Ao dolo, entendido como elemento subjectivo geral, chamamos dolo-de-tipo. Tomemos de novo o exemplo do artigo 131º: “Quem matar outra pessoa…”, pondo-o em confronto com o artigo 137º: “Quem matar outra pessoa por negligência…”. Tanto num caso como no outro, o legislador descreve o resultado típico, a morte de outra pessoa, contentando-se com acentuar no artigo 137º que a correspondente reacção criminal (pena de prisão até 3 anos ou pena de multa) cabe ao crime cometido por negligência. Se agora repararmos no teor do artigo 13º: “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, detectamos desde logo o carácter de numerus clausus (princípio da excepcionalidade da punição das condutas negligentes) reservado aos crimes cometidos por negligência. Por outro lado, o dolo forma a característica geral do tipo subjectivo do injusto e a base para a imputação subjectiva do resultado típico. Ora, o legislador, tratando-se de crime doloso, qualquer que ele seja, limita-se a descrever os correspondentes elementos objectivos —o lado subjectivo fica implicitamente reservado ao dolo como elemento subjectivo geral, i. e como característica geral do tipo subjectivo do ilícito. Por isso mesmo, o artigo 131º deverá ser lido como se rezasse: “Quem [dolosamente] matar outra pessoa…”, mas dá no mesmo dizer: “Quem matar outra pessoa…”. Certos tipos de crime descrevem determinadas características subjectivas específicas, que não se confundem com o dolo. Ainda assim, por vezes, no tipo descrevem-se certas circunstâncias subjectivas, como a intenção de apropriação no furto (artigo 203º, nº 1), que se não identificam com o dolo, entendido como elemento subjectivo geral, quer dizer: como dolo de tipo. A opinião geral é que elementos 76 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. subjectivos como estes formam parte integrante do tipo de ilícito como características que aí têm o seu carácter próprio e se situam de forma autónoma ao lado do dolo de tipo (Wessels, AT, p. 61). O legislador serve-se desses elementos subjectivos que contribuem para caracterizar a vontade do agente contrária ao direito e que se repercutem nos modos de cometimento do crime, no objecto da acção e no próprio bem jurídico (cf. Jescheck, p. 284; Wessels, AT, p. 61; e Teresa Serra, Homicídio qualificado, p. 32). São elementos subjectivos específicos de certas classes de crimes dolosos. Veja-se igualmente a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, que é própria da burla (artigo 217º, nº 1) ou da extorsão (artigo 223º, nº 1), e a intenção de obter benefício ilegítimo, que caracteriza o crime de falsificação documental (artigo 256º, nº 1). No furto, a ilegítima intenção de apropriação é a circunstância de ordem subjectiva que, uma vez presente, faz com que tanto a subtracção de uma viatura como a dum livro possam envolver-se no ilícito consumado do artigo 203º, nº 1, mas que, faltando —e concorrendo os restantes factores do crime de furto de uso—, atira a situação para o artigo 208º (furto de uso de veículo) no caso da subtracção da viatura, deixando impune a do livro. II. A estrutura do dolo. Ao prescrever, no artigo 14º, que “1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”, o legislador português —“de modo diverso do que se passa noutras legislações, nomeadamente a alemã e mesmo em confronto com o antigo código penal português, mas em consonância, por exemplo, com os códigos penais austríaco e italiano— quis tomar posição sobre as grandes linhas doutrinais que tocam esta matéria”, representando, com a definição de negligência, “sem dúvida alguma, o repositório de uma larga e profunda elaboração doutrinal mas, obviamente, não podem espelhar a diversificada pluralidade de correntes que dentro desta matéria se expressam” (assim, Faria Costa, As definições legais, in BFD, vol. LXIX, p. 371). 77 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. O dolo é essencialmente representação e vontade, é a vontade de realizar um tipo penal conhecendo o sujeito todas as suas circunstâncias fácticas objectivas. De modo que a partir de certa altura começou a impor-se uma fórmula simplificada, referindo o dolo como conhecimento e vontade da realização do tipo. O chamado “duplo lugar” do dolo. Dolo em sede de tipo de ilícito; dolo como forma de culpa. Desvalor de conduta e desvalor de atitude. Portanto, dolo é saber e querer — e é algo mais: "em sede de tipo de ilícito, enquanto determinante da direcção do comportamento, o dolo entende-se como conhecimento e vontade da realização do tipo objectivo; como forma de culpa, enquanto modo de formação da vontade que conduz ao facto, o dolo é portador da atitude pessoal contrária ao direito, especificamente ligado à realização dolosa do tipo". "A diferença entre ilicitude e culpa residiria na distinção entre desvalor de conduta e desvalor de atitude. E sendo, em regra, o dolo o portador destes dois juízos de desvalor, desempenharia necessariamente uma dupla função: na ilicitude, ele exprime a finalidade, o sentido subjectivo da acção; na culpa, será a expressão da atitude contrária ou indiferente ao direito característica da realização dolosa do tipo". Cf. Teresa Serra, p. 32, com mais dados; Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 48 e ss.; e Cobo del Rosal / Vives Anton, Derecho Penal, PG, 3ª ed., 1991, p. 457. Dolo significa portanto "conhecer e querer os elementos [objectivos] do tipo". ( 10 ) "Realização do tipo" significa, nem mais nem menos, que "realização de todas as características objectivas do tipo". Mas nem o conhecimento (elemento do lado intelectual, cognitivo, o lado da representação) nem a vontade (elemento do lado volitivo, do querer) são características perfeitamente definidas. A extensão do elemento intelectual do dolo corresponde não só ao conhecimento seguro, mas também à simples possibilidade da realização típica —vai do absolutamente certo à região do muito pouco provável, formando um campo tão vasto e abrangente de situações que incluem a probabilidade altíssima, a probabilidade baixíssima e a maior ou menor possibilidade. Do lado da vontade, entre o querer e o não querer existe abertura para uma progressão do mesmo tipo. No seu íntimo, o agente tanto pode aprovar o resultado criminoso que 10 Ou conhecer e conformar-se (dolo eventual). Ainda assim, não se deverá exigir que o agente queira realizar todas as características típicas objectivas, mas só a acção e o resultado dela decorrentes. No tocante a outros elementos, como por ex. a situação de embriaguez do condutor, a idade da vítima nos abusos sexuais, ou a possibilidade de infectar o parceiro com o vírus da sida, unicamente se exige que o agente conheça essas circunstâncias (cf. Kühl, AT, p. 67). 78 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. previu como possível, como encará-lo com a mais absoluta indiferença ou mesmo nem sequer o desejar. Consciência e vontade não são, assim, separáveis senão por necessidade de análise (Cavaleiro de Ferreira), são elementos que não podem ser vistos isoladamente. O dolo não prescinde de qualquer deles, inclusivamente, porque —de acordo com a perspectiva corrente— nihil volitum nisi praecognitum: só se pode querer aquilo que se conhece. Ainda assim, devemos estar advertidos para a correcta definição desse segundo elemento quando daqui a pouco considerarmos o dolo eventual. Ao objecto do dolo chega-se através do artigo 16º, nº 1: são "os elementos de facto ou de direito de um tipo de crime". Por exemplo, o receptador (artigo 231º, nº 1) deverá saber (representar) que a coisa que adquire foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património. O ladrão deverá saber (representar) que a coisa subtraída é alheia. Como se disse, o dolo refere-se ainda às circunstâncias que privilegiam ou qualificam o crime (cf., por ex., os artigos 133º e 204º, nº 2, alínea e)). Para actuar dolosamente, o autor deve ter previsto o processo causal (elemento futuro, portanto, de previsão) nos seus traços essenciais, porque a relação de causalidade é um elemento do tipo, como o são a acção e o resultado. Consequentemente, o dolo do agente deve estender-se também ao nexo causal entre a acção do agente e o resultado —de outro modo, não haverá actuação dolosa. Deve contudo reparar-se que normalmente só um especialista poderá dominar inteiramente o processo causal —na maior parte dos casos, o devir causal só será previsível de forma imperfeita. De modo que o jurista também nestes casos aceita a ideia de que o dolo tem que coincidir com o conhecimento da relação causal por parte do agente, mas em traços largos, nas suas linhas gerais. Se assim não acontecesse, bem difícil seria sustentar que uma pessoa agiu dolosamente. Basta portanto que o agente preveja o decurso causal entre a sua acção e o resultado produzido nos seus traços essenciais. Um caso especial de erro sobre o processo causal dá-se quando o crime se executa em dois actos, julgando o agente que o resultado se deu com o primeiro, quando, na verdade, foi com o segundo que se produziu. A opinião geralmente seguida encara a hipótese como um processo unitário: o dolo do primeiro acto vale também para o segundo. Trata- se assim dum dolo "geral" (doutrina do dolus generalis) que cobre todo o processo e que não merece nenhuma valoração jurídica privilegiada (Jescheck). Nesta perspectiva, se A, julgando que a sua vítima morreu quando lhe deitou as mãos ao pescoço, deita à água o 79 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. suposto cadáver, vindo a morte a ocorrer por afogamento, deve ser castigado como autor material de um homicídio doloso consumado. Outros pontos de interesse residem, por ex., no erro sobre a factualidade típica (1ª parte do artigo 16º, nº 1): o dolo fica excluído quando o erro versa sobre um elemento constitutivo do tipo de ilícito objectivo; ou, na tentativa, a chamada do artigo 22º, nº 1, à decisão do agente. Fora do objecto do dolo ficam, entre outras, as condições objectivas de punibilidade. O dolo é o elemento subjectivo geral do tipo de ilícito. Os elementos de natureza objectiva (tipo objectivo) caracterizam a acção típica (o autor, as formas, modalidades e objecto da acção, o resultado, etc.). A actuação dolosa pressupõe que o autor conheça os elementos tipicamente relevantes. Alguns desses elementos típicos são meramente descritivos e não levantam dificuldades. Outros são elementos normativos —por ex., o carácter alheio da coisa subtraída no furto, o documento nos crimes de falsificação documental, o funcionário nos crimes de funcionário, etc.— que, esses sim, levantam particulares problemas em matéria de culpa e erro (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, sumários das Lições, p. 151). Estes e outros elementos normativos exigem do agente, para que se imputem ao seu dolo, que conheça o sentido correspondente, no essencial e ao nível do mundo das suas representações, à valoração jurídica que contêm. Em geral bastará um sentido prático-social, não se exigindo o conhecimento dos pressupostos materiais nem o dos critérios jurídicos determinantes da qualificação normativa. Fora do objecto do dolo, ficam, em princípio, as condições objectivas de punibilidade —e os pressupostos da culpa (como, por exemplo, a idade do agente ou, de forma mais geral, a convicção sobre a sua própria inimputabilidade), a pena e as circunstâncias que a permitem graduar em concreto e os pressupostos processuais (T. Beleza, O regime do erro, p. 14). As chamadas condições objectivas de punibilidade são elementos do crime que se situam fora tanto da ilicitude como da culpa, “não se exigindo, para a sua relevância, que entre elas e o agente exista uma qualquer conexão psicológico- intelectual, podendo ainda serem fruto do mero acaso” (Taipa de Carvalho, p. 143). Por ex.: o participante em rixa (artigo 151º, nº 1) só é punido se ocorrer morte ou ofensa corporal grave, funcionando esta condição como limitadora da punibilidade —e é punido independentemente de ter previsto ou querido que uma pessoa pudesse morrer ou ser gravemente atingida na sua integridade física. A explicação de alguns autores assenta em 80 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que o comportamento básico incluído na exigência de culpa oferece já um certo grau de merecimento de pena, porque através dele se desencadeia um perigo. Veja-se ainda a insolvência negligente (artigo 228º), que só é punida se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente. As condições objectivas de punibilidade caracterizam assim um especial desvalor de resultado que tem de acrescer a um desvalor de acção já existente para que a conduta surja como punível. Cf. H. Otto, AT, 5ª ed., p. 90; Jescheck, AT, 4ª ed., p. 504. O momento decisivo para a existência do dolo é o da prática do facto. Em direito penal, o dolo abrange o período que vai do começo ao fim da acção que realiza o correspondente tipo objectivo. Os autores aludem a este propósito à possibilidade tanto de um dolo antecedente como de um dolo subsequente, que tratamos noutro local. III. As formas de manifestação do dolo de tipo. Dolo directo; dolo necessário; dolo eventual. Elemento intelectual do dolo; elemento volitivo do dolo. Dolo eventual e negligência consciente. CASO nº 4: A, possuído de um ódio implacável, quer matar B custe o que custar. Pega na pistola que sabe estar carregada e a 2 metros de B aponta-lhe ao coração e dispara. CASO nº 4-A: A quer matar B, seu inimigo político. Quando este se desloca num carro aberto, acompanhado do motorista e de dois guarda-costas, A atira uma granada para dentro do carro. A morte dos acompanhantes, tida como consequência certa da explosão, é-lhe indiferente. CASO nº 4-B: Caso de Lacmann. Num terreiro de diversões A promete uma determinada quantia em dinheiro a B se este estilhaçar com um disparo de arma de fogo a bola de cristal que uma das raparigas da barraca de tiro segura na mão, sem que esta fique ferida. B sabe que não é um bom atirador e tem como bastante provável que o tiro não atinja o copo mas a mão da rapariga. Apesar disso dispara e atinge a rapariga na mão. CASO nº 4-C: A quer matar T, seu tio, de quem é herdeiro. Trata de montar um engenho explosivo num pequeno avião, que é invariavelmente pilotado por P, o qual deverá explodir quando se atingir a altura de mil metros, por forma a causar danos graves na cabina do aparelho. A não tem a certeza absoluta de que T seguirá na próxima viagem do avião. Ainda assim, o plano acaba por ter êxito: a bomba rebenta, o aparelho despenha-se, T e P morrem. Além disso, um camponês que se encontrava nas proximidades é atingido pelos destroços e fica gravemente ferido. A tinha previsto isso como possível (cf. Samson, caso nº 6). Punibilidade de A no caso nº 4-C? 81 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A causou quatro eventos: a destruição do avião, a morte do tio, a morte do piloto e lesões corporais no camponês. A partir deste exemplo, vamos ter a oportunidade de contactar com as diversas formas de atitude cognitiva: pode entender-se algo como improvável, como provável, como possível ou como certo; utilizando a linguagem corrente, pode saber-se de certeza certa, pode supor-se, duvidar, acreditar, estar convencido, etc.; o sujeito pode ter um conhecimento certo ou incerto, seguro ou inseguro. E vamos ver que também se pode ordenar a intensidade da outra componente do dolo, a volitiva. No plano da vontade, o dolo de tipo manifesta-se na intenção, no dolo necessário e no dolo eventual. ( 11 ) O dolo directo (dolo de intenção ou de primeiro grau) está identificado, grosso modo, com a intenção criminosa no nº 1 do artigo 14º. O agente prevê a realização do facto criminoso e tem como fim essa mesma realização: a realização do tipo objectivo de ilícito surge como o verdadeiro fim da conduta (Figueiredo Dias, Textos, p. 115). Intenção ( 12 ) significa que o elemento dominante, a vontade do agente, 11 As diversas formas de dolo não gozam de designação rígida na doutrina. Na Itália, Pagliaro (Principi di diritto penale. Parte generale, 7ª ed., Milão, 2000, p. 274) fala de dolo intenzionale ou diretto, de dolo indiretto e de dolo eventuale. Na Alemanha, correntemente, aponta-se para o trio intenção (Absicht), dolo directo (direkter Vorsatz; dolus directus) e dolo condicionado / eventual (bedingte Vorsatz; dolus eventualis). Também se usa chamar à intenção — dolo imediato (unmittelbarer Vorsatz) ou dolo directo de primeiro grau (dolus directus ersten Grades); ao dolo directo — dolo mediato (mittelbarer Vorsatz) ou dolo directo de segundo grau (dolus directus zweiten Grades). 12 Nos códigos usa-se o termo intenção com diversos significados. Já vimos alguns, como a intenção de apropriação ou a intenção de enriquecimento, chamadas “intenções especiais”. Intenção é ainda a forma mais intensa do dolo e existe quando o agente tem a vontade de produzir, de forma directa e imediata, o resultado típico ou de realizar as circunstâncias típicas que a lei exige serem intencionalmente produzidas; quando, por outras palavras, existe uma vontade finalisticamente dirigida àquele resultado ou àquelas circunstâncias. Veja-se, a ilustrar, o artigo 227º-A (Frustração de créditos), recentemente aditado ao Código Penal pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (e volvido uma ano alterado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março), onde se faz depender a punição da circunstância de o devedor actuar para intencionalmente frustar, total ou parcialmente, a satisfação de um crédito de outrem. O Código conhece alguns crimes de tendência interna transcendente, em que as intenções normativas não se limitam simplesmente a acompanhar as acções típicas, na medida em que remetem para resultado posterior. É suficiente que o sujeito realize apenas uma parte da acção lesiva, sempre que esta vá acompanhada da intenção ulterior de completar o processo interrompido, o que pode ser ilustrado com os chamados crimes 82 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. está conotado com a acção típica ou com o resultado previsto no tipo, ou com ambos: o resultado é o fim, a meta que o agente se propunha. A vontade é, por assim dizer, plena, completa (Cadoppi/Veneziani, p. 271), como no caso nº 4. A intenção como forma de dolo caracteriza-se portanto por um especial e intenso querer. Em termos cognitivos, o resultado aparece então como "altamente provável ou como certo" (cf. Faria Costa, Tentativa e dolo eventual, p. 26). É a forma de dolo que menos problemas levanta. O dolo necessário (dolo de consequências necessárias) está previsto no nº 2 — o facto criminoso não constitui o fim que o agente se propõe realizar, é, antes, consequência necessária da realização pelo agente do fim que se propõe. “Produz-se um facto típico indissoluvelmente ligado ao almejado pelo autor e que, por isso mesmo, é conhecido e querido por ele” (Bustos Ramírez). No caso do dolo necessário, o resultado típico é representado pelo agente como consequência certa da sua conduta, enquanto que no dolo de intenção “a tensão do agente é forte e marcante, pois o resultado típico corresponde ao objectivo primeiro e final da conduta do agente”. “O agente que actua com dolo necessário move-se ao nível ético-jurídico no plano da certeza”. No caso nº 4-B a morte dos acompanhantes do odiado político é tida pelo autor como consequência certa da explosão, e é necessária para que também aquele morra. A morte do político —o fim da actuação do bombista— foi causada com intenção, as mortes dos acompanhantes, que para o autor eram indiferentes, foram causadas com dolo directo (de segundo grau), no fundo, um dolo necessário ou de consequências necessárias. mutilados de dois actos, como a falsificação documental —o legislador, para prevenir o uso do documento falso, antecipa a punição de quem falsifique com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo (artigo 256º). Tenha-se também em conta a burla do artigo 217º, nº 1, onde a expressão "quem, com intenção de obter..." aponta para o que alguns autores (por ex., Jescheck, AT, p. 286) chamam crime de resultado cortado, em que à acção típica acresce a prossecução de um resultado ulterior que vai para além do tipo objectivo e que poderá ocorrer por si mesmo após o facto, i. é, sem outra intervenção do agente. O conteúdo da intenção não terá que ser realizado para haver consumação. Se o ladrão, com intenção de fazer seu o relógio alheio, o furta ao dono e o mete no bolso, sendo apanhado pouco depois e obrigado a restituir a coisa, o crime estará consumado, ainda que a intenção não tenha sido realizada, porque o golpe falhou. Merece igualmente atenção o disposto no nº 4 do artigo 20º: “A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto”. 83 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Tanto o dolo necessário como o dolo eventual compreendem duas ou mais finalidades. Contudo, o agente que actua motivado pelo dolo necessário, ao almejar a finalidade primeira sabe de certeza certa, ou pelo menos tem como seguro que lateralmente, mas de modo necessário, a sua conduta irá realizar um facto que preenche um tipo legal de crime (cf. Faria Costa, Dolo eventual, p. 15). No nº 3 do artigo 14º consagra-se legislativamente o dolo eventual. A sua exacta compreensão move-se no espaço da mera representação como possível do resultado proibido, "a que se não pode juntar um querer directo e inequívoco" —trata-se de um espaço "onde o elemento da vontade não se perfila frontalmente, antes se insinua na conformação da realização de um facto que preenche um tipo legal de crime". De resto, e como já se notou, "é perfeitamente patente, na estrutura funcional do dolo eventual e independentemente da posição doutrinal que se adoptar, a possibilidade de verificação de dois ou mais resultados”. (Cf. Faria Costa, p. 28). No caso nº 4-C, A quer a herança do tio, portanto, o fim da sua actuação é o de alcançar a riqueza do tio e para isso é necessária a morte deste e a destruição do avião. A morte do piloto e os ferimentos no camponês são simples consequência da realização daquele objectivo. Num caso como no outro, trata-se de relações volitivas de A com os apontados resultados. Para além disso, é possível estabelecer outro tipo de relações, de natureza intelectual, ao nível da representação, com os resultados produzidos. Pode por ex. sustentar-se que A estava certo de que a bomba iria explodir e que o avião seria destruído. A morte do piloto dum avião que estava destinado a explodir a mil metros de altitude era também um evento certo para A. Mas já em relação à morte de T, que tanto poderia embarcar como ficar em terra, já não havia o mesmo grau de certeza. Vale o mesmo para os ferimentos no camponês. A representou estes dois últimos eventos como possíveis, mas não estava certo de que um e outro se viriam a produzir. A destruição do avião e a morte do tio eram as principais consequências queridas por A, já que, para aspirar à herança (fim da actuação de A), ambas essas consequências são pressuposto necessário; consequências secundárias ou acessórias são a morte do piloto e os ferimentos na pessoa do camponês. 84 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Delicado é apurar o conteúdo verdadeiro da vontade no chamado dolo eventual. A estrutura fundamental do dolo como combinação de elementos cognitivos e volitivos é- nos de algum modo familiar, resulta inclusivamente do artigo 14º do Código: mesmo no dolo eventual não se prescinde de uma qualquer relação volitiva ou emocional. Na doutrina, contudo, sobram as divergências —o único ponto de acordo consiste em que, nesta forma de dolo, o agente tem que representar o facto, pelo menos, como consequência possível da conduta (momento intelectual). Delicado é —como escreve Paulo José da Costa Jr.—, apurar o conteúdo verdadeiro da vontade no chamado dolo eventual, “onde se age não a fim de produzir a morte, mas a custo de causá-la”. De "peculiar configuração do elemento volitivo no dolo eventual" fala Cerezo Mir. São numerosas as divergências doutrinárias quanto a saber se poderá prescindir-se de uma relação emocional do agente com o resultado; ou se o dolo eventual supõe pelo menos um rudimento do antigo dolus malus, i. é, uma atitude hostil ou no mínimo indiferente em face do bem jurídico ameaçado. Cf. Th. Weigend, p. 661. A discussão faz sentido —e ajuda a compreender as clivagens entre o dolo eventual e a negligência consciente, apontando para onde se separam as águas. Na prática, não será indiferente assentar em que determinada conduta foi realizada dolosamente, ainda que com dolo eventual, ou foi simplesmente negligente. O crime involuntário tem molduras penais consideravelmente aligeiradas. Pode até nem haver punição, por se encontrar unicamente prevista a dos comportamentos dolosos —numerus clausus da negligência: artigo 13º. ( 13 ) Além disso, a tentativa e a participação são compatíveis apenas com a 13 "É bem possível que a abordagem diferenciada que se faz entre crimes dolosos e culposos seja consequência da diferente atitude fundamental do autor: quem age com dolo, decide-se pela lesão do bem jurídico, quem involuntariamente pratica um crime, não". G. Stratenwerth, Derecho Penal, I, p. 94. O agente decide-se contra o bem jurídico tipicamente protegido e é porque assim se decide que o autor dum crime doloso se distingue do responsável por um crime involuntário. É uma ideia que nos parece poder ser encontrada no ensinamento do Prof. Claus Roxin e noutros autores que afirmam: “o crime doloso supõe uma rebelião consciente contra o bem jurídico protegido”. Segundo Mir Puig (El Derecho penal en el Estado social y democrático de derecho, 1994), qualquer forma de dolo outorga à conduta um significado de negação ou de claro desprezo pelo bem jurídico atacado, que se não encontram na conduta imprudente. O interesse prático destas perspectivas será para outros bem pequeno: o que se aproveita (cf., 85 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. prática da infracção dolosa (artigos 22º e 26º e 27º). Um olhar breve pelos livros mostra, aliás, os cuidados que os penalistas têm posto no dimensionamento correcto destas fronteiras. A ponto de se ter chegado a um autêntico beco sem saída (R. Herzberg). A teoria do consentimento, de uma maneira ou de outra, enfrenta o autor com o resultado: se aquele consente neste, se o aprova, o aceita, se conforma ou se resigna com o resultado, então há dolo eventual, caso contrário, não há. As teorias da representação, pelo contrário, caracterizam-se pela renúncia a enlaçar volitivamente o autor com o resultado: para afirmar a existência de dolo (eventual) basta que ao agente pareça sumamente provável, considere séria a possibilidade de produção do resultado, conte com este (assim, Gimbernat). No primeiro caso, o acento tónico põe-se ou na vontade, ou em atitudes emocionais ou de aceitação. O dolo eventual, sustentam os partidários destas teorias (teorias do consentimento ou da aceitação), apela efectivamente a um elemento cognitivo que lhe é imanente e que tem a ver com a possibilidade da realização das circunstâncias típicas. A diferença, porém, entre esta forma do dolo e a negligência consciente, reside na atitude emocional que leva o agente a aceitar, a aprovar ou a conformar-se com o resultado proibido. Se o agente, no confronto com o evento que representou como possível, o aceitou, o aprovou no seu íntimo, se conformou com ele, então podemos afirmar o seu dolo. Não pode ser assim!, dizem, por seu turno, os partidários das teorias da representação, para quem sempre foi difícil demonstrar a existência de qualquer relação volitiva, que aliás têm por desnecessária e injustificável: a distinção deve fazer-se a partir da representação do agente —e é quanto basta. No dolo eventual há um elemento específico do conhecimento que não existe na negligência consciente: o agente sabe que o resultado se pode verificar com a sua actuação, mas só haverá dolo se o sujeito souber que esta se reveste de um elevado grau de perigosidade. Noutras situações paradigmáticas, haverá dolo eventual a partir de uma certa probabilidade de realização típica, por ex., se o agente “toma a sério” a possibilidade de violação dos bens jurídicos respectivos. Abaixo deste patamar de por ex., a exposição de Ragués I Vallès, p. 39) é a ideia de que quem se decide contra os bens jurídicos mostra uma maior maldade ou insensibilidade e por esse motivo deve ser mais gravemente castigado do que o autor negligente. 86 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. certeza, se porventura o agente só remotamente encara essa possibilidade, é de negligência consciente que se pode falar, e só desta. Jakobs, AT, p. 271, afasta-se da dogmática tradicional do dolo, ao pretender que há dolo eventual quando o autor julga, no momento da acção, que a realização do tipo penal como consequência da acção não será improvável. Frisch (Vorsatz und Risiko, p. 118, 160 e 210), por sua vez, considera suficiente para o dolo que o autor tenha tido conhecimento (Eser/Burkhardt: “um conhecimento qualificado”) que a sua acção realiza um risco (concreto) juridicamente desaprovado. Frisch entende o dolo como conhecimento da dimensão do risco juridicamente relevante da conduta: age dolosamente aquele que sabe estar a agir para além do risco permiitido. Não actua dolosamente, na medida em que deixa de representar correctamente a dimensão do risco da sua conduta, quem conhece a perigosidade em abstracto do seu comportamento, mas confia em que o resultado se não vai produzir, ou não toma o risco a sério. Eb. Schmidhäuser, outro dos mais conhecidos representantes destas teorias, não exige para o dolo mais do que “a consciência de que a produção das circunstâncias típicas estaria iminente”. O condutor que segue em velocidade elevada para chegar a tempo e não perder o melhor da festa pode bem representar abstractamente o perigo de não poder controlar adequadamente o veículo numa curva perigosa. Poderá faltar-lhe a representação da perigosidade concreta e actual da própria conduta por estar convencido de que as suas excelentes qualidades como condutor associadas à magnífica prestação do carro são suficientes para afrontar com êxito qualquer risco de colisão com terceiros. Só haverá portanto dolo eventual se no decisivo momento da acção o agente tiver a consciência, ainda que insegura, da "concreta possibilidade" de se desencadear o resultado típico. Para aqueles outros autores (e em face da nossa lei penal), estas opiniões são de rejeitar, desde logo por se apoiarem unicamente no elemento intelectual. Um condutor (o exemplo é de Wessels/Beulke, p. 75) que quer entrar a horas ao serviço e numa estrada estreita, em horas de grande movimento e por alturas de um nevoeiro intenso, ultrapassa um camião e vai matar o condutor de uma motorizada que circulava em sentido contrário e pela sua mão de trânsito, tem sem dúvida a concreta possibilidade de representar uma colisão deste tipo. Qualquer outra opinião será certamente contrária às regras da experiência comum. O único aspecto decisivo é se o condutor, ao ultrapassar, apesar de o fazer com a consciência do perigo, confia em que tudo vai correr bem, agindo na esperança de que um desastre se não verifique. Sem esquecer o caso nº 4-B (caso Lacmann), vamos insistir, agora com o caso da roleta russa. 87 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. CASO nº 4-D: O caso da roleta russa. Os dois amigos, já algo bebidos, fazem rodar o tambor do revólver, carregado com uma bala, e só uma. Um deles encosta-o à cabeça e prime o gatilho — tac!, ouviu-se o percutor a bater em seco. Trocam de papéis, como mandam as regras — tac! e a bala não sai... Até ver, ambos continuam vivos. O tambor do revólver pode ser carregado com seis balas, mas, como se viu, por imperativo da "roleta russa", só leva uma — os dois amigos sabem que o risco de resultado é de 1 : 5. No caso da roleta russa deverá este conhecimento bastar, morrendo um dos rapazes, para nisso implicar o outro a título de dolo? Poderemos, em geral, reduzir o dolo à consciência do risco normal da conduta? E se o risco da conduta for muito elevado? O dolo deverá reconduzir-se ao conhecimento de riscos graves para o respectivo bem jurídico? O dolo esgotar-se-á num conhecimento qualificado do agente acerca do risco tipicamente relevante para o bem jurídico? E, na inversa, se a probabilidade de realização típica for manifestamente remota ou insignificante? A prática mostra outros casos de alta probabilidade do resultado, como o dos "condutores suicidas" que para ganhar uma aposta conduzem em velocidade elevada, durante quilómetros, pelo lado contrário da auto-estrada. Ou como o do torturador que para arrancar uma declaração do acusado o interroga "habilmente". "Nestas condutas”, escreve o Prof. Muñoz Conde, “a morte de outros condutores ou do interrogado não é exactamente querida, já que assim se perde a aposta ou se fica sem conhecer a verdade dos factos, nem são queridas outras consequências, como a lesão do próprio condutor, ou o escândalo e a responsabilidade criminal, no caso do torturador". IV. O dolo no Código Penal português — os artigos 14º e 15º. O dolo é mesmo "conhecimento e vontade", é mes mo "saber e querer"; a fórmula da "conformação" é o elemento diferenciador entre o dolo eventual e a negligência consciente. Entre nós, a definição tanto do dolo eventual como da negligência consciente encontra-se normativamente condicionada. Num caso como no outro, o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime: compare-se a formulação dos artigos 14º, nº 3, e 15º, a ): "...representada como consequência possível...", "representar como possível...". 88 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A diferença está em que, neste último caso, o agente actua sem se conformar com a realização fáctica. Aceitação; resignação. Conformação. O Supremo, invocando Mezger, Eduardo Correia e Cuello Calón, já entendeu (acórdão do STJ de 25 de Novembro de 1992, BMJ-421-323) que "o resultado (morte) da actuação do arguido, pensado como possível, considera-se dolosamente querido enquanto o sujeito consente nesse mesmo resultado"; "no dolo eventual", escreve-se, "o sujeito aceita o resultado cuja produção se lhe configurou como provável" (itálicos nossos). Foi com o caso Lacmann (cf. supra) que os tribunais alemães começaram “a referir-se a uma aceitação em sentido jurídico sempre que o agente —em vista da finalidade prosseguida, nomeadamente por não poder alcançá-la de outro modo— se resigna com a possibilidade de que a sua acção venha a ter o efeito indesejado.” (Cf. Figueiredo Dias, Textos, p. 122; Ragués I Vallès, p. 103 e ss.). O agente toma a sério o risco de possível produção do resultado —apesar disso, não omite a conduta. Haverá certamente dolo eventual quando o agente aceita —ou aprova— o resultado que previu como possível, mas estas são fronteiras demasiado apertadas, ainda assim, próximas da teoria da conformação, adoptada no artigo 14º, nº 3. Seguindo a opinião entre nós mais elaborada (Figueiredo Dias; cf. também Stratenwerth e Roxin), age com dolo eventual quem, tendo previsto um certo resultado como consequência possível da conduta (elemento intelectual), toma a sério a possibilidade de violação dos bens jurídicos respectivos e, não obstante isso, decide-se pela execução do facto. Exige-se, como se vê, que a representação do facto seja "levada a cabo de modo sério". "Precisamente porque não se pode determinar matematicamente a percentagem de probabilidade com que o agente representa o resultado, é que a inescapável normatividade se introduz com apelo à seriedade, referida ao elemento da possibilidade e não a qualquer outro" (Faria Costa). O intérprete abre mão, em suma, de qualquer quantificação da ideia de probabilidade ou de identificá-la simplesmente com a possibilidade da realização fáctica. E também não adere, sem mais, ao entendimento de que a ligação psicológica entre o agente e o resultado subsidiariamente visado se tem de estruturar na atitude de aceitação. Com efeito, para alcançar o elemento diferenciador entre o dolo eventual e a negligência consciente, o legislador optou (artigo 14º, nº 3) pela fórmula da conformação do agente com a realização do tipo de ilícito objectivo. CASO nº 4-E: O caso dos mendigos russos. São, como se vê, inúmeros os casos difíceis e de fronteira, que se encontram na zona cinzenta. A literatura da especialidade tem exemplos continuamente 89 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. retomados e discutidos, como o dos mendigos russos, que mutilavam meninos para melhor conseguirem a esmola dos passantes. Algumas das crianças morreram, mas mesmo assim continuaram a mutilar outras e uma destas também morreu. Como os mendigos queriam o menino mutilado, mas vivo, não haverá dolo directo nem dolo necessário. Haverá dolo eventual? E qual será então o seu conteúdo? CASO nº 4-F: O caso do cinturão: BGHSt, 363, a partir dos resumos de Roxin, p. 356; Eser / Burkhardt, p. 83; e Th. Weigend. A e B são visitas frequentes da casa de C, seu conhecido, que certo dia decidem roubar. Estão convencidos de que este os não denunciará por não querer que as suas tendências homossexuais sejam conhecidas. De qualquer modo, a morte de C seria para ambos altamente indesejada. O plano consiste em pô-lo inconsciente, dando-lhe com um saco de areia na cabeça. Ambos recusam uma outra possibilidade: a de o porem inconsciente aplicando-lhe um cinturão de couro em redor do pescoço para que não respire. Certo dia, combinam com C passarem a noite na casa deste. Por volta das 4 da manhã A aplicou um golpe na cabeça de C com o saco de areia, que imediatamente se desfez. A e B pegaram então no cinturão que, pelo sim pelo não, tinham levado. Envolveram-lho no pescoço e começaram a puxar, cada um pela sua ponta, até que o C deixou de estrebuchar. Deitaram depois a mão às coisas do C, para se retirarem, convencidos de que este continuava vivo. Ainda intentaram reanimá-lo, mas foi em vão. Se um condutor ultrapassa outro carro de forma arriscada, apesar das cautelas que o pendura lhe recomenda, e provoca um acidente, não se trata, por via de regra, de um acidente doloso, mas causado por negligência, ainda que consciente. E isso, não obstante o condutor —tal como no caso do cinturão— saber das consequências possíveis e ter sido para elas advertido. O que separa as duas situações é que o condutor normalmente confia, não obstante a consciência do perigo, em que o resultado pode ser evitado devido à sua habilidade como condutor —não fora isso, e procederia doutro modo, já que então poderia ser a primeira vítima do seu próprio comportamento. Como aqui não houve qualquer decisão contra os valores jurídicos tipicamente protegidos (por ex.: vida, integridade física, património alheio) é menor a censura e só se lhe adequa a sanção por negligência. Cf. Roxin, p. 357. No caso do cinturão, os dois amigos, conscientemente, estrangularam o dono da casa, não obstante terem previsto a morte como consequência possível da sua actuação. Ambos tinham consciência de que o uso do cinturão punha em perigo a vida do C, como o demonstra o facto de inicialmente terem descartado esse método para evitar tal resultado. Com o que fica comprovado o elemento intelectual. Os delinquentes porém não queriam causar a morte. Prova disso é que inicialmente, para deixar a vítima inconsciente, intentaram agir com um meio o menos lesivo possível. Depois, procuraram até evitá-la, tentando reanimar a vítima. Vale a pena confrontar 90 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ainda o caso do cinturão com o do professor que leva uma turma de alunos numa viagem às margens dum rio caudaloso. Alguns alunos insistem que ele os deixe tomar banho. O professor sabe que isso é perigoso e que algum dos alunos pode ser arrastado pela corrente e morrer afogado. Confia no entanto na sorte e nas capacidades natatórias dos seus alunos, acabando por autorizar umas braçadas na água. Um dos alunos afoga-se e morre. E se o agente não pensou no risco nem muito menos o tomou a sério ou sequer entrou com ele em linha de conta por lhe ser completamente indiferente o bem jurídico ameaçado? Que significa a "conformação" referida no nº 3 do artigo 14º e quando deve ela considerar-se existente? Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, ao menos nos casos mais difíceis e duvidosos, não é possível lograr uma afirmação do dolo teleologicamente fundada sem apelar, em último termo, para a indiferença do agente perante a realização do tipo. "O agente que revela uma absoluta indiferença pela violação do bem jurídico, apesar da representação da consequência como possível, sobrepõe de forma clara a satisfação do seu interesse ao desvalor do ilícito e por isso decide-se (se bem que não sob a forma de uma "resolução ponderada", ainda que só implicitamente, mas nem por isso de forma menos segura) pelo sério risco contido na conduta e, nesta acepção, conforma-se com a realização do tipo objectivo. Tanto basta para que o tipo subjectivo de ilícito deva ser qualificado como doloso" (cf. Textos, p. 130). Com este critério poderemos talvez dar resposta a alguns dos casos indicados, convocando-os para o lado do dolo eventual. Veja-se agora um caso actual, em que o agente infectado com sida, no momento dos contactos sexuais não protegidos, conhecendo a probabilidade de transmissão do vírus, encara-a como um risco meramente abstracto —não podendo concluir-se que se decidiu contra o respectivo bem jurídico. V. Dolo eventual; negligência consciente. CASO nº 4-G: O primeiro caso da SIDA. A, numa viagem de negócios a Barcelona, esquece- se da sua condição de homem casado —há já alguns anos com B —, e envolve-se com uma mulher que conheceu numa visita ocasional a um bar. Pouco depois do regresso a casa, A começa a sentir-se febril e consulta um médico seu amigo que o informa de que os sintomas são típicos da infecção pelo vírus da 91 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. sida e o aconselha a fazer um teste. Do teste resulta que A foi contaminado com o vírus da sida e isso terá certamente acontecido nessa sua deslocação a Barcelona. A sabe que a infecção pode resultar de uma relação sexual, ainda que a probabilidade de transmissão seja muito baixa, da ordem de 0,1% a 1% de possibilidade por cada contacto, e que ainda não há cura para a doença. A fica a saber pelo médico que da infecção pode não resultar qualquer incómodo especial e que a doença só aparece normalmente ao fim de seis anos ou mais, mas que uma vez declarada a doença a morte lhe sobrevem inevitavelmente e de forma muito dolorosa. O médico preocupa-se especialmente em fazer ver a A que não pode ter relações sexuais sem tomar as precauções adequadas, tendo em conta a possibilidade de contágio. Numa das idas posteriores ao médico, A disse-lhe que nada comunicara à família acerca do contágio pelo vírus, pois tinha um medo terrível de que o seu casamento se desfizesse. Confidenciou-lhe também que tivera entretanto relações com a mulher, de quem tanto gostava, sem ter tomado quaisquer precauções especiais, pois receava suscitar nela quaisquer suspeitas. Aconteceu que B estava a concorrer a um emprego onde lhe exigiam certos comprovativos do seu estado de saúde e submeteu-se por isso a um teste que deu resultado positivo quanto ao HIV. B que comprovadamente só tinha tido relações íntimas com A, pediu o divórcio e apresentou queixa contra este por homicídio tentado. Cf. Schramm, Die Reise nach Bangkok, JuS 1994, p. 405. Numa simples leitura, ocorre dizer que A tinha o exacto conhecimento do risco da sua conduta para a vida da mulher. Mas como já resulta da nossa exposição anterior, o dolo não prescinde da sua dimensão volitiva. Não haverá lugar, mesmo num casos destes, para acolher uma noção de dolo diferente da que resulta do artigo 14º. A afirmação ou a negação do elemento subjectivo geral, nos casos de infecção de outrem com o vírus da sida, por ocasião de relações sexuais de risco, parte também da análise do caso concreto, ainda que a atitude mental dos parceiros sexuais perante a realização típica possa ser a mais diversa. Há ocasiões em que indivíduos mantêm relações sexuais com um número elevado de parceiros, aceitando o agente o perigo da transmissão do vírus como uma possibilidade real. Noutras, actua com dolo directo, no sentido de querer mesmo infectar o parceiro, sendo esse o fim da conduta sexual do agente. Mas também são de ponderar as hipóteses em que é o parceiro do infectado a aceitar livremente o risco de ser contaminado, participando conscientemente duma conduta perigosa sem as cautelas próprias do safe sex. Na prática, para a afirmação do dolo, o indispensável elemento volitivo é para observar à lupa, considerando o modo, a intensidade e a frequência dos contactos, tendo-se em conta, se comprovadas, certas práticas sexuais especialmente perigosas ou antes as que intentam diminuir o risco (por ex., o coitus interruptus), o grau de esclarecimento ou o nível de inteligência do agente. Cf. Lackner, 92 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. StGB, 20ª ed., p. 1068. "Não basta, com efeito, em qualquer situação, um risco objectivamente intenso de um resultado" —e não é isso o que acontece no caso da sida, em que a probabilidade de transmissão é baixíssima— "para se poder afirmar a aceitação do mesmo, sendo sempre necessário que haja um contexto motivacional, objectivamente perceptível, que permita ao agente representar a sua conduta, em concreto, como associada à produção daquele resultado" (Prof. F. Palma, Casos e materiais, p. 313). A pode estar comprometido com o crime do artigo 144º, alínea d). A teve relações sexuais com B e daí resultou ficar esta infectada com o vírus da sida. A ofendeu a saúde de B, provocando-lhe perigo para a vida. Podem decorrer anos até que a sida se manifeste (6 anos, e mesmo mais, lê-se em Dreher / Tröndle, Strafgesetzbuch, 47ª ed., p. 1107, com outros dados) sem que entretanto haja dores ou outros incómodos relevantes para o bem estar da pessoa infectada. Ainda assim há uma diferença entre o estado de saúde da pessoa infectada e o de outra pessoa não atingida pelo vírus e isso tem certamente um significado patológico. Por outro lado, o desencadear da imunodeficiência fica como que pré-programado, em termos de se poder afirmar uma ofensa à saúde e a concretização de um perigo para a vida. (Cf. Schramm, JuS 1994, p. 405; outras indicações em Eser, S/S, Strafgesetzbuch, 25ª ed., p. 1603 e s.). Não se colocam problemas especiais de imputação objectiva, mesmo atendendo ao grau de possibilidade de transmissão do vírus. B não aceitou o risco —e não é de modo nenhum responsável pela transmissão do vírus, já que desconhecia por completo que A estivesse infectado e nessas condições não lhe eram exigíveis as cautelas próprias do sexo seguro. O crime é de natureza dolosa, mas a questão do elemento subjectivo, como já se deixou entendido, coloca-se aqui com particular acuidade, sendo manifesto que A não quis infectar B. A afirmação do dolo eventual também se reveste da complexidade inerente a casos como este. O recurso aos elementos agora mesmo analisados —mas também os motivos, o animus, e a pergunta inevitável: decidiu-se A pelo ilícito ou simplesmente foi imprevidente?— resulta também determinante na negação do dolo homicida, mesmo na forma “enfraquecida”. A foi claro: procedeu sem as necessárias cautelas porque se a mulher soubesse ou desconfiasse o casamento estaria perdido. A matéria de facto não deixa margem para a afirmação do dolo de matar, pelo contrário, tudo indica que não houve a decisão de tirar a vida de B (artigo 22º), o que exclui qualquer forma de tentativa homicida (B continua viva). Solução esta 93 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que não deverá repugnar, não obstante as fortíssimas necessidades, de ordem político- social, de luta contra a expansão da sida. Pois, como nota o Prof. Figueiredo Dias, “o legislador é naturalmente livre e está legitimado para, se assim o entender, criar um crime de perigo abstracto de prática de acto sexual desprotegido por portadores de HIV”. A cometeu pelo menos um crime do artigo 148º (ofensa à integridade física por negligência). Produziu-se o resultado, a ofensa à saúde de B, e A violou o dever de cuidado, pois toda a gente sabe que nas descritas condições os contactos sexuais exigem cautelas muito precisas para evitar que o parceiro fique infectado. A não tomou esses cuidados nas ocasiões em que teve contactos sexuais com B, pelo que violou o seu dever de cuidado. Não se descortinam dificuldades no respeitante à imputação objectiva. Tanto o resultado como o processo causal correspondente eram objectivamente previsíveis. O tipo objectivo negligente mostra-se por isso preenchido. Não se pode validamente sustentar que houve acordo de B, por falta de vontade desta em ter relações de sexo com uma pessoa infectada pelo HIV. B não tinha conhecimento do estado do parceiro. É de excluir portanto qualquer causa de justificação. A actuação de A é censurável e punível nos termos já referidos. CASO nº 4-H: O segundo caso da SIDA. A conhecia perfeitamente o seu estado de seropositivo e as modalidades de contágio da sida. Mesmo assim, e sem que alguma vez tivesse usado qualquer protecção, durante cerca de 10 anos manteve um número elevado de relações sexuais de cópula com B, sua mulher. B, que nunca suspeitou do estado de seropositivo do marido, acabou por morrer, vítima da sida. No julgamento, provou-se que o A aceitou o alto risco, que efectivamente se concretizou, tanto de um possível contágio como do provável evento letal derivado da infecção eventualmente produzida. Cf. a sentença de 14 de Outubro de 1999 do Tribunale di Cremona, in Il Foro Italiano, 2000, Parte seconda, p. 347. CASO nº 4-I: O terceiro caso da SIDA. A, que era seropositivo, manteve repetidas vezes relações sexuais com B, com quem vivia, sem adoptar as cautelas aconselháveis nesses casos. A explicou à companheira, com todos os pormenores, a doença de que sofria, os riscos de infecção e a ausência de qualquer esperança de cura, mas esta insistiu em manter com ele relações sem preservativo, com o que ele, por fim, acabou por concordar. A veio a ser acusado de tentativa de ofensa à integridade física, mas o tribunal alemão absolveu-o, considerando que aquele que se limita a promover, torna possível ou favorece a autocolocação em perigo decidida e levada a cabo de maneira auto-responsável, não pode, do ponto de vista jurídico, ser sancionado por crime de ofensa à integridade física ou de homicídio, mesmo naqueles casos em que se realiza o risco aceite conscientemente. Quem toma parte numa autocolocação em perigo, decidida de maneira auto-responsável, participa em algo que não representa um crime no sentido dos §§ 94 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 25, 26 e 27 I do StGB. Para estas posições, tais casos ficam assim fora do âmbito de protecção típica. Mas a vida não é um bem jurídico disponível e entre nós pune-se tanto o incitamento como a ajuda ao suicídio (artigo 135º do Código Penal). VI. Dolo eventual; negligência (continuação). CASO nº 4-J: O caso do very-light. A foi assistir ao Benfica-Sporting, integrando a claque dos No Name Boys. Do outro lado, no topo norte, ficavam as bancadas da Juve Leo. Antes do início do jogo, A lançou um very-light, igual aos foguetes que são usados para sinalização luminosa das embarcações, por cima da bancada da Juve Leo. Quando nas bancadas se festejava o 1º golo do Benfica, A disparou outro very-light. O foguete atingiu a bancada do outro lado, matando aí um adepto do Sporting. A distância entre as duas bancadas é de cerca de 200 metros, em linha recta. A lançou o 1º foguete com a mão esquerda, inclinou-o em posição oblíqua, para cima e ligeiramente para a frente, retirou a protecção de borracha que faz aparecer a patilha e empurrou esta de modo a activar o sistema de propulsão. Assim accionado, o foguete descreveu uma trajectória em arco, indo cair para além das bancadas do topo norte, em cima de umas árvores, junto aos balneários. A previra que o foguete assim disparado sobrevoasse a bancada do topo norte do Estádio, reservada aos adeptos sportinguistas, e que já na altura se encontrava repleta de pessoas. Fê-lo de modo a que o mesmo fosse projectado de baixo para cima, em arco, sobrevoando a bancada que avistava à sua frente. Dez minutos depois do início do jogo, imediatamente a seguir ao primeiro golo do Benfica, o A, aquando dos festejos por este golo, lançou um segundo foguete. Verificava-se, nessa mesma altura, uma grande agitação no grupo de espectadores, e particularmente nos elementos afectos aos No Name Boys, que rodeavam o A, havendo abraços, empurrões, saltos, gritos e outras exaltações de grande regozijo. Também desta vez, o A segurou o foguete very-light com a mão esquerda, colocou-o obliquamente para cima e inclinado para a frente, no sentido norte, e, com a mão direita, retirou a protecção de borracha que faz aparecer a patilha. Em virtude do seu próprio estado de euforia e da permanente agitação das pessoas que se encontravam junto a si, envolvendo-o, o A, no momento em que empurrou a patilha que acciona a respectiva propulsão, inclinou mais o foguete do que havia feito aquando do primeiro lançamento. Assim disparado, o foguete seguiu uma trajectória tensa e quase em linha recta, sobrevoou os jogadores, percorreu toda a distância entre as duas bancadas e foi chocar com o corpo da vítima, que assistia ao jogo no sector 17, do topo norte do estádio, penetrando na região do peito, de frente para trás, da esquerda para a direita e, ligeiramente, de baixo para cima. Este embate provocou na vítima (...), lesões que, por si só ou associadas, foram causa da morte da vítima. O A apercebeu-se, poucos momentos após, do impacto deste foguete na bancada de adeptos sportinguistas onde se abriu uma clareira. Ao efectuar este segundo lançamento do foguete, A previu que tal instrumento se dirigisse na direcção norte, sendo sua intenção que o mesmo sobrevoasse a bancada de espectadores, confiando que seguisse uma trajectória idêntica ao primeiro. Conhecia o modo de activação, potência e alcance do foguete, bem sabendo que se o mesmo, na sua trajectória, viesse a embater em alguém lhe poderia causar a morte. Sabia que o modo correcto de lançar tal foguete é na vertical. Tinha ainda conhecimento que o foguete percorre em linha recta uma distância superior a 200 metros em poucos 95 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. segundos. No instante do disparo, não previu o A que logo que accionado o mecanismo de propulsão naquelas circunstâncias o artefacto saísse, como efectivamente saiu, quase em linha recta, na direcção da bancada em frente de si e que fosse atingir qualquer espectador, ferindo-o ou matando-o. Próximo do intervalo, ouviu dizer que morreu uma pessoa atingida pelo foguete, tendo concluído que essa pessoa fora mortalmente atingida pelo very-light por si lançado. Nessa noite, ao ver as imagens na televisão em companhia de um seu amigo, o A ficou emocionado e chocado, não contendo o incómodo que as mesmas lhe causavam. Cf. o acórdão de 13 de Fevereiro de 1998 do Tribunal de Círculo de Oeiras, publicado em Sub judice / causas - 2, 1998, p. 49 e ss.; e, a propósito, Maria Fernanda Palma, Casos e Materiais de Direito Penal, Coimbra, 2000, p. 307, e O caso do Very-light. Um problema de dolo eventual, in Themis, ano I, nº 1, 2000, p. 173. A tinha sido acusado de ter lançado o foguete, propositadamente, na direcção da bancada dos adeptos contrários, para os assustar e intimidar, representando a possibilidade de o foguete, na sua trajectória, vir a embater nalgum espectador. Ainda segundo a acusação, A sabia que se tal sucedesse o impacto do foguete era susceptível de produzir a morte do espectador atingido, pelo que se conclui que A admitiu essa mesma possibilidade, conformando-se com a sua eventual verificação (fórmula do dolo eventual). A fórmula positiva de Frank: "em qualquer caso, eu actuo". O acórdão sublinha que o Código Penal português acabou por perfilhar, em matéria de dolo eventual, a fórmula positiva de Frank segundo a qual se o agente no momento da realização do facto, e não obstante a sua previsão como possível, quer actuar, e aconteça o que acontecer, seja qual for o resultado da sua actuação, não renuncia à sua actuação, será responsável a título de dolo pelo facto previsto. Haverá dolo se A diz: tanto se me dá que o livro seja meu ou alheio — em qualquer caso, levo-o; ou, o que dá no mesmo: aconteça o que acontecer, em qualquer caso, eu actuo. Não haverá dolo se A separar as águas: se tivesse tido a certeza de que o livro era alheio, não o teria subtraído. Com outra formulação aparece-nos a chamada fórmula hipotética de Frank: haverá dolo eventual quando pudermos concluir que o agente, que previu o facto como possível efeito da sua conduta, não a teria alterado, para o evitar, mesmo que previsse aquele efeito como necessário (cf. Beleza dos Santos, Crimes de Moeda Falsa; e Eduardo Correia, Direito Criminal, I, p. 381). O Prof. E. Correia, autor do Projecto, criticou as duas fórmulas, e acabou por propor que a Comissão adoptasse a seguinte redacção, que amplia a da fórmula negativa de Frank: Se a realização do facto for prevista como mera consequência possível ou 96 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. eventual da conduta, haverá dolo se o agente, actuando, não confiou em que ele se não produziria — ou seja: desde que o agente actuou, não confiando que o facto previsto como possível se não produziria, haverá dolo. No decorrer da discussão, um dos membros da Comissão revisora assinalou a sua preferência por uma fórmula que consagrasse a ideia alemã do "in Kauf nehmen" ou do "sich mit ihr abfinden"; outro preferia que se fizesse apelo à ideia da "indiferença do agente pela realização do facto", um terceiro foi mais longe na ideia da restrição ao âmbito do dolo, preconizando que este só deveria considerar-se existente quando o agente "aceitou a realização do facto previsto como possível". A Comissão acabou, como se sabe, por adoptar a fórmula da conformação, de sentido positivo: "actuou conformando-se com a sua produção". (Sobre tudo isto, cf. Actas, acta da 7ª sessão, p. 116 e ss.). O Projecto alemão de 1962 continha idêntica proposta: "actua dolosamente (...) quem considera possível a realização típica e se conforma com ela" (§ 16). Opção entre alternativas. O agente pretende realizar um facto mas, em via subsidiária, conforma-se com a realização de outro que àquele se encontra ligado. A expressão in Kauf nehmen é difícil de traduzir, diz Gimbernat. Originariamente, tinha a ver com a argúcia de alguns comerciantes que, para dar saída a produtos menos apetecíveis, vinculavam a venda das mercadorias desejadas à obrigação de o cliente adquirir também aqueles produtos pouco procurados. Se o interessado não compra o produto de baixa qualidade, também não conseguirá levar o que lhe interessa: diz-se assim que o cliente nimmt ihn in Kauf: leva-o, comprado, por acréscimo. O resultado produzido com dolo eventual não era perseguido directamente; o que o autor queria directamente era outro resultado, e para alcançar este "comprou o outro", i. e, resignou-se a ficar com ele. Cf. Gimbernat, Estudios de Derecho Penal, p. 247. No caso do cinturão, os dois ladrões não tinham a certeza de que a vítima morreria estrangulada. Conheciam, no entanto, o perigo concreto, e sabiam que não poderiam dominá-lo, face à maneira como actuavam. Por outro lado, nenhum deles queria, directamente, a morte do dono da casa; o que eles queriam era pô-lo inconsciente para poderem roubá-lo à vontade. Só que, para conseguirem este resultado, "compraram" o outro, resignaram-se com a produção duma morte que não queriam —e ainda por cima, acabaram por levar as coisas, apoderando-se delas. No caso do professor que vai com os alunos para a beira do rio também podemos afirmar que o agente conhecia o perigo concreto para a vida dos alunos que se metessem na água, ainda que confiando em que tudo iria correr bem. É claro que o professor tem a nossa simpatia —o que não acontece 97 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. com os dois ladrões: limitou-se a deixar ir os alunos para a água, fê-lo por ser "um tipo porreiro", houve o contributo "culposo" do próprio aluno que morreu... E não houve qualquer decisão contra a vida do aluno, pelo que ao professor só poderá imputar-se a infracção negligente. O adepto benfiquista representou o risco de acertar nos espectadores do outro lado do estádio? E conformou-se com esse risco de resultado? Num caso como o do very light, que comporta acção de grande risco, em que —como acentua a Prof. Fernanda Palma— a possibilidade de erro e do desvio do processo causal é grande, "o objecto do elemento intelectual do dolo é a própria possibilidade de desvio do processo causal" (recorde também o que oportunamente escrevemos sobre o objecto do dolo). Se for possível concluir que, in casu, este risco de resultado foi objecto da representação do agente, ainda assim temos que abordar a questão do enlace volitivo, analisando as motivações do adepto benfiquista e, nomeadamente, interpretando a "sequência lógica entre as motivações do agir e o desfecho da acção, numa perspectiva de raciocínio prático". Essencial será —e aqui continuamos a seguir a lição da Prof. F. Palma— a consideração de que o fim lúdico associado ao disparo festivo do "very light" não engloba, nos casos de uma personalidade determinada por motivações normais, a aceitação da morte de um espectador". Por outro lado, "para revelar que a acção realizada é uma acção tipicamente deficiente na sua consistência racional, e, portanto, não dolosa", "é essencialíssima a descrição da reacção do arguido, em sua casa": nessa noite, ao ver as imagens na televisão, o arguido ficou emocionado e chocado, não contendo o incómodo que as mesmas lhe causavam. Não estaremos assim perante uma personalidade indiferente ao resultado, pelo que ao autor do disparo não será de endereçar uma censura própria da culpa dolosa. O Tribunal de Círculo de Oeiras considerou A autor dum crime de homicídio negligente do artigo 137º, nº 2 (negligência grosseira). VII. A recklessness. A partir do estudo, já por várias vezes citado, de Th. Weigend (cf. também, por ex., Markus Dubber, Reforming American Penal Law, in The Journal of Criminal Law & 98 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Criminology, vol. 90, p. 49), podemos apreender algumas realidades do direito penal americano, que nem sempre se encontram disponíveis, mas que de algum modo se projectam na boa compreensão do chamado dolo eventual. Interessa-nos sublinhar o sentido da recklessness, termo que faz parte do espectro dos elementos subjectivos (mens rea), que vai da "improperly" àquela expressão terrível que dá pelo nome de "willful, deliberate, malicious and premeditated". A edição de um modelo de código penal moderno (Model Penal Code), no ano de 1962, contribuiu para reduzir significativamente a complexidade existente, de forma que impera agora a tendência para empregar apenas quatro diferentes formas de culpa: "intention, purpose", "knowledge", "recklessness" e "negligence". Se lermos as definições que estas quatro formas de mens rea têm, por ex., no Model Penal Code, encontraremos a equivalência de "intention" na intenção (dolo directo), de "knowledge" no dolo necessário, e de "negligence" na nossa negligência inconsciente, mas neste caso só se houver uma violação grosseira das regras de cuidado. A recklessness ficará situada entre o dolo e a negligência consciente (grave) e define-se assim: "A person acts recklessly with respect to a material element of an offense when he consciously disregards a substantial and unjustifiable risk that the material element exists or will result from his conduct. The risk must be of such a nature and degree that, considering the nature and purpose of the actor's conduct and the circumstances known to him, its disregard involves a gross deviation from the standard of conduct that a law-abiding person would observe in the actor's situation. "Actua recklessly relativamente a uma circunstância típica quem, conscientemente, se comporta de forma descuidada perante um risco injustificado e de certa monta, cujo elemento material se verifica ou se realiza com essa conduta. A natureza e a medida do risco deverão ser de tal ordem que a falta de atenção ao mesmo, considerando a espécie e os fins da conduta do agente, bem como as circunstâncias por este conhecidas, representará um grosseiro desvio do padrão comportamental que uma pessoa fiel ao direito observaria na situação do agente. A uma leitura atenta —comenta o nosso informador—, esta descrição complicada revela o que há de específico na recklessness e que consiste no agir face à realização típica do risco. A literatura anglo-americana desenvolve este ponto de maneira mais clara que o próprio texto legal. Diz-se, simplesmente, por ex., no comentário ao Model Penal Code "... recklessness involves conscious risk creation"; e Galligan fala de recklessness quando o agente sabe que a produção do resultado é provável (mas não certa) e, não obstante, age. Se além disso a recklessness exige um elemento de atitude interior, 99 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. nomeadamente a indiferença em relação ao bem jurídico ameaçado —é coisa que se discute entre os juristas do common-law tanto quanto acontece na Alemanha. VIII. Dolo de dano e dolo de perigo; violação do dever de cuidado CASO nº 4-k: A quer dar uma lição a B e não se importa mesmo de o mandar para o hospital a golpes de matraca, mas como o quer bem castigado afasta completamente a hipótese da morte da vítima, a qual, inclusivamente, lhe repugna. A morte de B, todavia, vem a dar-se na sequência da sova aplicada por A. Repare em que há aqui 3 resultados: as ofensas são provocadas com dolo de dano; o perigo para a vida fica coberto com o chamado dolo de perigo; a morte, subjectivamente, pode vir a ser imputada a título de negligência, por violação do dever de cuidado. A representou as ofensas à integridade física de B e quis provocar-lhas. Além disso, representou o perigo para a vida deste, embora tivesse afastado por completo a hipótese de lhe provocar a morte. Apesar da morte de B, fica afastado o homicídio doloso, por falta de dolo homicida, mesmo só na forma eventual. A, no entanto, provocou ofensas à integridade física de B e quis isso mesmo; além disso, representou o perigo para a vida deste: a hipótese cai desde logo na previsão do artigo 144º, alínea d). Um dos elementos típicos deste crime é a provocação de perigo para a vida: o crime é de perigo concreto e o agente deve representar o perigo que o seu comportamento desencadeia, tem de agir com dolo de perigo. Existirá dolo de perigo concreto quando o sujeito actua, não obstante estar consciente de que a sua conduta é apta, na situação específica, para produzir um determinado resultado de pôr em perigo concreto, ainda que, simultaneamente, lhe negue a aptidão para produzir um resultado de lesão. (Cf. Raguès I Vallés, p. 173). Mas se para além do resultado de ofensas à integridade física querido pelo agente e do resultado de perigo para a vida que o mesmo representa se der o resultado morte, que excede a intenção do agente, podendo este, no entanto, ser-lhe imputado a título de negligência (artigo 18º), o crime é punido com a pena de prisão de 3 a 12 anos — artigos 18º, 144º, d), e 145º, nº 1, b). Como o faria a generalidade das pessoas, A devia ter previsto, ao agredir B com sucessivos golpes de matraca, a possibilidade de vir a ocorrer 100 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. o resultado letal, pelo que a morte lhe pode ser subjectivamente atribuída com base na violação do dever de cuidado. A hipótese será diferente —e de resolução mais difícil— se ao agente for possível imputar o resultado de perigo a título de simples dolo eventual, discutindo-se se é configurável um dolo de perigo como um momento de dolo eventual (em que o elemento volitivo do dolo resulta da conformação do agente com o perigo). Diz-se que, se o agente se conforma com a possibilidade de se verificar o perigo, está a conformar-se com a possibilidade de uma possibilidade e, desse modo, com a lesão... e então no nosso caso haveria homicídio voluntário. Quando alguém aceita o risco está a conformar-se com o dano... Os autores, sensíveis à dificuldade da questão, dizem que se o agente, podendo prever o resultado, actuou com inconsideração, confiando em que ele se não verificava, ou se não se conformou com a sua verificação, terá praticado um crime contra a integridade física. Se pelo contrário ele actuou conformando-se com o resultado, que previra, haverá dolo eventual e, consequentemente, não se verificará este crime, mas o de homicídio voluntário. Mas uma parte da doutrina aceita que é possível representar o perigo, pretendê-lo como tal, para conseguir um objectivo, mas não aceitar o dano, e até nem o representar (cf. Rui Carlos Pereira; Silva Dias). IX. Dolo; tentativa. A dúvida e a certeza. Tentativa e dolo eventual: um casamento possível? Homicídio qualificado com dolo eventual; tentativa de homicídio qualificado; crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual. CASO nº 4-L: A dá-se muito mal com B, seu inimigo de longa data, e quer vingar-se dele, custe o que custar. Como B tem um prédio, quase todo arrendado a uma firma de exportações, com excepção do último andar —onde vive, sozinho, um indivíduo de idade—, A, para tramar a vida a B, resolve deitar fogo ao prédio. Nada disso lhe parece difícil, até porque já em ocasião anterior se tinha ocupado de tarefa semelhante e tudo correra bem. A hora ideal será por volta das dez da noite, quando todos os empregados da firma, incluindo as mulheres da limpeza, já estão nas suas casas. Problema é o inquilino do último andar. Para evitar a morte deste, A remete-lhe um telegrama, pouco antes de dar início aos seus planos, fingindo que um filho do idoso está a morrer e o quer à sua cabeceira. A espera firmemente que o telegrama chegue a tempo. Entretanto, prepara na cave do edifício uma mecha e rodeia-a de materiais facilmente inflamáveis. Rega tudo com gasolina a que põe fogo, o qual se propaga imediatamente e em 101 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. grande velocidade. Quando as chamas já lambiam o último andar, os bombeiros conseguem extingui-lo, depois de chamados pelo morador, que a tempo sentiu o intenso cheiro dos materiais a arder. Punibilidade de A ? Ninguém morreu, mas A pode ter cometido homicídio tentado, com dolo eventual, talvez qualificado pela utilização de meio que se traduz na prática de crime de perigo comum: artigos 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, nºs 1 e 2, f ), e 272º, nº 1, alínea a). A indagação deve começar pelo tipo subjectivo do homicídio, procurando saber se este se mostra preenchido, portanto, se A actuou com dolo de matar outra pessoa. Só poderá tratar-se de dolo eventual relativamente à pessoa do ocupante do último andar. Repare-se que A não estava certo de que o seu telegrama chegasse a tempo. Quanto ao pessoal da firma, seguramente que não se poderá afirmar qualquer dolo, mesmo eventual, sendo de excluir desde logo o correspondente momento intelectual: A não chegou sequer a representar como possível a morte de qualquer dessas pessoas, e essa representação é o primeiro pressuposto do dolo (artigo 14º, nºs 1, 2 e 3), pelo que fica arredada a punição a esse título. Por outro lado, o crime de homicídio negligente é de resultado material (artigo 137º) e neste âmbito não se verificou qualquer resultado, ninguém morreu. Deve recordar-se, aliás, que a tentativa não é normativamente compaginável com a negligência (artigo 22º), quer dizer, existe a impossibilidade legal de castigar a "tentativa" de homicídio fora das hipóteses dolosas. Quem actua dolosamente conhece a situação típica e prevê o resultado ao menos como consequência possível do seu comportamento. Esta forma passiva de encarar o dolo, limitada à sua dimensão cognitiva, é no entanto insuficiente. Há nele ainda um momento activo que mesmo na linguagem corrente podemos identificar como a decisão para a acção —e do mesmo passo para as suas consequências. No caso nº 4-k, "representar o preenchimento do ilícito típico como consequência possível da conduta" de A é elemento comum ao dolo eventual e à negligência consciente. A representação da morte do indivíduo idoso não é, pois, o elemento decisivo que permita imputar o crime a título de dolo eventual: o traço comum às duas categorias dogmáticas —dolo e negligência— é justamente o referente cognitivo. É necessário algo 102 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. mais. Se pudermos sustentar que A agiu com indiferença perante a vida dessa pessoa, poderemos certamente enlaçar a vontade de A com os elementos objectivos do homicídio, dando como preenchido o correspondente elemento subjectivo do ilícito. Deste modo: A previu a possibilidade de as chamas por si ateadas atingirem o último andar do prédio e de o idoso aí se encontrar nesse momento, apanhando-o as chamas desprevenido e provocando-lhe a morte. A conformou-se com este resultado, sendo-lhe indiferente que o mesmo derivasse da execução do seu plano, primordialmente destinado a cumprir um desejo de vingança. Por outro lado, houve actos de execução: A preparou na cave do edifício uma mecha e rodeou-a de materiais facilmente inflamáveis. Regou tudo com gasolina a que pôs fogo que se propagou imediatamente e em grande velocidade. Como o resultado, a morte do idoso, não chegou a verificar-se (A continua vivo), o caso não passa da tentativa (artigos 22º e 23º). Mas, como conciliar a tentativa com o dolo eventual? Crime tentado cometido com dolo eventual —uma impossibilidade? Tradicionalmente, a jurisprudência vem-se manifestando no sentido da admissibilidade de um crime tentado cometido com dolo eventual. Cf., entre muitos outros, o acórdão do STJ de 20 de Novembro de 1996, BMJ-461-194); por último, o acórdão do STJ de 31 de Março de 2004, CJ 2004, tomo I, p. 234. A tentativa é compaginável com qualquer das modalidades do dolo no artigo 14º do CP, escreve-se no acórdão STJ de 2 de Março de 1994, CJ do STJ, ano II, tomo 1, p. 243, assim, se o arguido, ao disparar 3 tiros de pistola sobre a ofendida, a cerca de 2 metros, livre e conscientemente, admitiu que lhe podia causar a morte, a qual só não se verificou por haver sido operada de urgência, a sua conduta preenche todos os elementos típicos do crime de homicídio na forma tentada. A solução não é aceite por todos, desde logo pelo voto de vencido neste último aresto. Também para o Prof. Faria Costa se afigura indispensável que na tentativa se verifique a intenção directa e dolosa por parte do agente, “em que parece de excluir o dolo eventual, já que o agente, apesar da representação intelectual do resultado como possível, ainda não se decidiu." Cf. Jornadas, p. 160; e STJ, Acórdão de 3 de Julho de 1991 (Tentativa e dolo eventual revisitados), RLJ, ano 132º, nº 3903, p. 167 e ss. A tese jurisprudencial aparece creditada com as palavras de Jescheck, para quem a tentativa exige o tipo subjectivo completo. Em primeiro lugar, o dolo, tal como no delito consumado, também na tentativa se deve referir aos elementos subjectivos do tipo. Do mesmo modo, nos 103 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. tipos qualificados os elementos qualificadores devem ser abrangidos pelo dolo. O dolo pode igualmente revestir a forma de dolo eventual, sempre que o mesmo seja suficiente para o tipo respectivo. (Cf. o ac. do STJ de 3 de Fevereiro de 1995, cit.). Muñoz Conde (Derecho Penal, PG, 1993, p. 372), para efeitos de imputação subjectiva, aceita a compatibilidade entre a comissão dolosa eventual e a tentativa: o terrorista que põe uma bomba, admitindo a possibilidade de ferir mortalmente alguém, comete um homicídio na forma tentada se a bomba não chega a explodir, ou se, explodindo, não fere ninguém ou fere ligeiramente alguém que por ali passava no momento. Na Itália prevalece a orientação da jurisprudência a favor da solução positiva: o dolo da tentativa é dolo de consumação, vontade de cometer o delito perfeito, e neste compreende-se também o dolo eventual. Em sentido contrário, todavia, pode ver-se a Cass., de 20 de Outubro de 1986, in Foro Italiano, 1987, II, 509, com apontamento de Fiandaca; e parte da doutrina, ao afirmar que não é possível punir a tentativa com dolo eventual sem violar a proibição de analogia in malam partem. Com efeito, no dolo eventual não seria admissível a representação dos actos "come univocamente diretti", como univocamente dirigidos à prática do crime. Desde Carrara vem-se entendendo na Itália que o momento executivo do delito exige não só a idoneidade da conduta como também a sua inequivocidade: acto executivo é o acto dotado de idoneidade (capacidade potencial de produção do evento) e de inequivocidade. Na situação concreta, o acto deve denotar in modo non dubbio o propósito criminoso do seu autor. Se o acto, além de inidóneo, se apresentar como equívoco, isto é, ambíguo, não passa de acto preparatório. No exemplo de Paulo José da Costa Jr., aquele que for surpreendido no topo de uma escada, apoiada numa janela, se estiver praticando um acto idóneo, não estará por certo realizando um acto inequívoco. A escalada poderá visar o furto, o rapto de mulher, que poderá ser violento ou consensual; o sequestro de pessoa, com fins de resgate ou políticos. Poderá também tratar-se de conduta inócua, se o sujeito pretender proceder a reparos de pedreiro, ou à pintura do prédio. (Cf. Mantovani, Diritto penale, p. 438; e Giovannangelo de Francesco, Dolo eventuale e colpa cosciente, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Jan. Março, 1988, p. 151). Homicídio qualificado com dolo eventual? Ultrapassada a questão da compatibilidade da tentativa com o dolo eventual, com resposta positiva, de acordo com a posição maioritária, cabe ainda perguntar se existirá uma tentativa de homicídio qualificado no nosso Código. Será que a especial censurabilidade ou 104 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. perversidade indiciadas pelas circunstâncias do nº 2 do artigo 132º se circunscrevem "ao último grau de lesão da vida —a consumação— ou compreendem também as outras formas de crime?" Cf. Teresa Serra, Homicídio qualificado, p. 79 e ss. Uma outra questão, que o Supremo já resolveu dando-lhe resposta positiva, é a da conformidade do homicídio qualificado com o dolo eventual: "em princípio, o facto de o agente actuar com dolo eventual, não impede que a sua conduta possa corresponder à comissão de um crime de homicídio qualificado. Assim, cometem o crime de homicídio qualificado, ainda que com dolo eventual, aqueles que agridem a vítima, actuando e conformando-se com a sua morte, que ocorre, apenas com o propósito de obstar a que a vítima impedisse os seus intentos de se apropriarem dos seus bens, pelo que a actuação dos arguidos foi motivada por avidez" (ac. do STJ de 2 de Dezembro de 1992, BMJ- 422-79). Cf., ainda, o acórdão do STJ de 7 de Maio de 1997, BMJ-467-419: “o dolo eventual é perfeitamente compatível com a punição pelo crime do artigo 132º”. Crime de homicídio qualificado na forma tentada com dolo eventual? O ac. do STJ de 6 de Maio de 1993, CJ, ano I (1993), p. 227, considerou que o arguido —cuja conduta não pode deixar de revelar especial censurabilidade, por ser grande a sua torpeza— que actuou livre, voluntária e conscientemente, admitindo, ao efectuar o disparo contra o J —seu companheiro de café, apenas porque este pretendia dissuadi-lo de ir à procura da mulher e do amante para os matar—, que lhe podia causar a morte e conformando-se com tal resultado, o que só não veio a acontecer por o J ter sido prontamente socorrido, cometeu um crime de homicídio qualificado na forma tentada (com dolo eventual): artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, c), 14º, nº 3, 22º, nºs 1 e 2, c), 23º, nº 2, e 74º, nº 1, a). Outros problemas de congruência dolo eventual / tentativa. Os problemas de "congruência" envolvendo o dolo eventual estendem-se a outras áreas, como no caso tratado pelo acórdão do Tribunal Constitucional de 5 de Fevereiro de 1997, DR, II série, nº 88, de 15 de Abril de 1997, e BMJ-464-113, que se ocupou de um crime de difamação cometido através de meios de comunicação social com dolo eventual. Sustentava-se tratar-se de uma restrição desproporcionada ao exercício da liberdade de expressão e de opinião. Dizia-se mais exactamente que o considerar-se que a mera hipótese de uma eventual lesão ao bom nome e reputação implica a criminalização de uma conduta praticada no exercício da liberdade de expressão e de opinião, no âmbito da participação na vida política, configura uma restrição desproporcionada, desmedida, excessiva, violando o princípio da proibição de excesso consagrado no artigo 18º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa. Cf., ainda, a propósito, o Acórdão de 28 de Setembro de 2000 do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Caso Gomes da Silva contra Portugal: liberdade de imprensa; restrições para protecção do bom nome e da reputação), com um comentário de Eduardo Maia Costa, Revista do Ministério Público, ano 21 (2000), nº 84. 105 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. X. A questão da comprovação do dolo. Os motivos do agente representam o fio lógico que pode coordenar as restantes vertentes da sua responsabilidade, atribuindo-lhes a necessária univocidade. Não existem presunções de dolo. Sobre a velha e ultrapassada ideia de um "dolus in re ipsa" que sem mais resultaria da comprovação da simples materialidade de uma infracção, cf. Jorge de Figueiredo Dias, Ónus de alegar e de provar em processo penal?, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 105º, nº 3474, p. 125. É sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos do dolo e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas da parte especial — não existem presunções de dolo. "Outra coisa completamente diferente — seria a necessidade de o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência". Não há dúvida: a alta probabilidade da verificação do resultado desempenha um relevante papel indiciário. Recorde-se, a propósito, que por ex. a intenção homicida do agente, sendo o resultado de um processo que ocorre no íntimo, fica subtraída à possibilidade de verificação directa e objectiva por parte do juiz. Processualmente, o dolo só é apreciado de forma indirecta, através de actos de natureza externa. Numa agressão com resultado mortal, o dolo homicida é revelado, por exemplo, pelo número e a extensão dos ferimentos, mas também pela violência da agressão e a reiteração dos golpes, pela natureza do instrumento utilizado e pela zona do corpo procurada e atingida. Do mesmo modo, podem tirar-se ilações da circunstância de o agente confessar que confiou na sorte ou da escolha assumida de meios ou processos reconhecidamente perigosos, por exemplo, o infectado com sida que conscientemente prescinde de qualquer protecção quando tem relações sexuais. Estes elementos devem ser analisados como um todo e conferidos com os motivos do agente, os quais representam o fio lógico que pode coordenar as restantes vertentes da sua responsabilidade, atribuindo-lhes a necessária univocidade, sendo difícil que um único desses elementos baste para assegurar a existência, por exemplo, do dolo homicida. Do catálogo desses indicadores fazem parte os que giram em torno da situação objectivamente perigosa para o bem jurídico tipicamente protegido: a maior ou menor força explosiva duma bomba e a distância do alvo a que é colocada; a possibilidade de orientar o tiro duma arma de fogo para o alvo pretendido; a utilização dum silenciador; o período de tempo, mais ou menos prolongado, de que o criminoso dispôs. Podem obter-se dados sobre a representação do 106 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. perigo, por ex., com a comprovação da presença do agente no local; a proximidade espacial do objecto; a maior ou menor capacidade de observação. No que respeita à decisão em favor da acção perigosa: a participação do agente em condutas destinadas a evitar o resultado, não esquecendo que a vontade de evitação por vezes é reveladora de um cálculo criminoso estratégico e não indício de uma atitude conforme ao direito; as condutas anteriores do sujeito em situações semelhantes que se encontram com a situação actual num nexo doloso relevante (como seja o comportamento anterior para com as crianças dum indivíduo que agora é acusado de matar uma menina); os sinais emocionais que aproximam o criminoso da vítima, como no caso do cinturão, quando os dois ladrões tentam reanimar o dono da casa. Mais dados em W. Hassemer, Kennzeichen des Vorsatz, p. 307 e s.; e em Joerg Brammsen, p. 77. Uma vez que o conteúdo do que se passa na cabeça dos outros não se pode apreender directamente há quem, na comprovação do dolo, faça entrar, com um papel importante, tanto o começo do facto (“Tatausgang”) como a carga prévia (“Vorbelastung”). Nos Estados Unidos certas dificuldades relacionadas com a comprovação do dolo foram, em parte, ultrapassadas qualificando uma série de delitos como “strict liability offences”: não interessa, por ex., se o agente sabia ou não a idade da vítima nos crimes sexuais. Cf. Eser / Burkhardt, caso nº 6. “Compreendemos o lenhador ou o apontar de uma arma não só de um modo actual, mas também segundo a sua motivação, ao sabermos que o lenhador executa essa acção por um salário ou para cobrir as suas necessidades, ou para sua recreação (racional) ou, porventura, “porque reagiu a uma excitação” (irracional), ou quando aquele que dispara o faz por uma ordem com o fim de executar alguém ou de combater os inimigos (racional) ou por vingança (afectiva e, nesse sentido, irracional). Compreendemos, finalmente, a cólera quanto à sua motivação ao sabermos que lhe está subjacente o ciúme, a vaidade doentia ou a honra lesada (afectivamente condicionada, por conseguinte, compreensão irracional da motivação)”. Max Weber, p. 26. No que respeita a noções como intenção, dolo, voluntariedade (cf. o artigo 24º, nº 1), as dificuldades derivam da circunstância de o seu objecto se encontrar escondido atrás dum muro —em regra, por detrás do cérebro duma pessoa. Só se pode "saber" o que está por detrás do muro com o auxílio dum conjunto de dados e não à simples vista desarmada. À intenção, dolo, ânimo de lucro, etc., dá-se-lhes o nome de "conceitos de disposição" por reflectirem uma disposição subjectiva ou tendência anímica do sujeito. Não se trata 107 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. portanto de objectos apreensíveis do mundo exterior como relógios ou árvores. E como não é possível observá-los empiricamente, torna-se necessário deduzi-los de outros elementos — estes sim, empiricamente observáveis e que funcionam como indicadores da sua existência. Cf. W. Hassemer, Einführung, p. 183; e Kennzeichen des Vorsatz, p. 304. XI. Saber. Querer, desejar. Os fins. Os motivos. Dolo específico, dolo genérico. A vontade é o elemento dinâmico do dolo, mas só se pode querer aquilo que ainda não aconteceu —a componente intelectual é estática, observa Triffterer. "Saber" significa apreender intelectualmente, ter conhecimento ou estar consciente relativamente a elementos da realidade fáctica ou de direito dum tipo de crime. O Código exprime-o de diferentes modos: no artigo 14º diz-se que o agente "representa"; no artigo 16º usa-se o termo "conhecimento"; no artigo 17º alude-se à "consciência". "O querer só tem sentido enquanto plena manifestação da vontade, quando se estriba no conhecimento, nisso se distinguindo do mero desejo" (Faria Costa, Tentativa e dolo eventual, p. 41; Fabien Lamouche, Le Désir, Hatier). Portanto: o "querer" não se confunde com o "desejar" nem se confunde com os motivos do sujeito. O caso paradigmático é o do sobrinho que convence o tio rico a dar um passeio pela floresta em dia de tempestade na esperança que um raio lhe caia em cima, ou que o convence a tomar um avião, esperando que num acidente o tio acabe por morrer. Num caso destes, há quem observe que o sobrinho actua claramente com o objectivo de conseguir determinado resultado, não se duvidando que o faz intencionalmente, portanto com dolo, mas outros afastam o querer, explicando que o sobrinho não quis a morte do tio, simplesmente a desejou. Se o assaltante mata o empregado do Banco para se apoderar do dinheiro, provavelmente não lhe deseja a morte, talvez preferisse não lha provocar; apesar disso quer produzir a morte na medida em que não lhe resta outro caminho para deitar a mão ao dinheiro. O assalto é doloso independentemente dos motivos: lucrativos, de vingança, políticos, etc. (Muñoz Conde). Os motivos do Zé do Telhado, de tirar aos ricos para dar aos pobres, não descaracterizam os ilícitos, embora façam dele um assaltante (historicamente) simpático. O motivo é a causa desencadeante da conduta e está quase sempre imbuído de natureza emocional —é o que nos leva a agir ou a adoptar uma atitude; "é a unidade indissolúvel do pensar e do agir" (Cesare Segre, Introdução à análise do texto literário, p. 387). 108 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. “Motivo” quer dizer uma conexão de sentido que surge ao próprio agente ou ao observador como “fundamento” significativo de um comportamento” (Max Weber, p. 29). As motivações associam-se, mesmo na linguagem vulgar, ao ânimo e à intencionalidade —é neste plano que actuam a vontade e o desejo, o querer e o impulso, as forças conscientes e as pulsionais ( 14 ). Mas a motivação da avidez do homicida agrava a sua culpa, nos termos do artigo 132º, nº 2, alínea d). O motivo pode aliás ser torpe ou fútil (artigo 132º, nº 2, alínea d), mas então deve indagar-se o que é que determinou o crime, o motivo concreto da atitude do agente, sem o que não é possível afirmar que o motivo foi fútil (acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1999, BMJ-492-168). O fim é consciente e volitivo, diz Paulo José da Costa Jr. Ainda que os fins determinados pelo agente e os motivos que o tenham impelido a agir não sejam normalmente considerados como elementos integrantes do dolo, por vezes o tipo legal inclui como elemento do crime um certo fim ou motivo: chama-se-lhe dolo específico, por oposição a dolo genérico. Considerando que "nem sempre o móbil do crime tem de ficar provado para que o crime se consume" e com considerações a propósito da motivação do crime e do dolo como categorias distintas, podem ver-se os acórdãos do STJ de 9 de Novembro de 1994, BMJ-441-49, e de 14 de Abril de 1999, BMJ-486-110. XII. Dolus antecedens CASO nº 4-M: T anda desde há semanas a congeminar um plano para matar O, simulando um acidente mortal. Durante uma caçada em que ambos intervêm com outros, T dispara inadvertidamente 14 A Prof. Fernanda Palma (Direito Penal. Parte Especial. Crimes contra as pessoas, Lisboa, 1983, p. 63) recorda que o comportamento intencional é definido, na leitura de Anscombe ("Intention", de 1963), como aquele que é possível utilizar no discurso linguístico como resposta à pergunta "porquê". "Na base desta perspectivação do acto intencional está toda uma orientação filosófica sobre o conceito de vontade que nega a equiparação da vontade a qualquer estado íntimo do agente, como um estado emocional (por ex., desejo). Essa orientação "extrovertida" sobre a vontade já vem de Aristóteles, para quem o acto voluntário se caracteriza pelo estado cognitivo do agente que consistiria no desenvolvimento de um raciocínio prático dirigido à acção de que a própria acção surgisse como conclusão lógica". O livro de Anscombe pode ser lido na tradução espanhola, com o título “Intención”, valorizada com uma interessante “introdução” de Jesús Mosterín. 109 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. sobre O, em cuja presença não reparara. T estava até convencido de que tinha apontado e que disparava sobre uma peça de caça escondida no mato. O foi atingido e morreu em consequência do disparo. O primeiro passo é o de saber se estão preenchidos os elementos objectivos do crime de homicídio doloso do artigo 131º do Código Penal. Se a resposta for afirmativa, deverá apurar-se se também o lado subjectivo se encontra preenchido. Só há homicídio doloso quando o agente actua dolosamente (artigos 13º e 14º do Código Penal). Mostra-se preenchida a vertente objectiva do tipo do homicídio doloso. A morte de O produziu-se por acção de T —ao disparar a arma— e pode ser-lhe objectivamente imputada enquanto resultado mortal. Como se sabe, uma acção será adequada para produzir um resultado (causalidade adequada) quando uma pessoa normal, colocada na mesma situação do agente, tivesse podido prever que, em circunstâncias correntes, tal resultado se produziria inevitavelmente (“prognóstico posterior objectivo”). Isso significa também que só será objectivamente imputável um resultado causado por uma acção humana quando a mesma acção tenha criado um perigo juridicamente desaprovado que se realizou num resultado típico (imputação objectiva do resultado da acção). No caso concreto, a conduta continha um risco implícito (um perigo para o bem jurídico), que posteriormente se realizou no resultado, o qual assim pode ser imputado ao agente. O tipo subjectivo do homicídio não se mostra porém preenchido. T não produziu a morte de O dolosamente. Dolo é conhecimento e vontade de realização dos elementos típicos, mas T não sabia (elemento intelectual) que disparava sobre uma pessoa. Quando T apertou o gatilho da espingarda não previu que ia atingir O. T desconhecia uma circunstância actual e relevante, no sentido do artigo 16º, nº 1, do Código Penal. Nada se altera pelo facto de T, anteriormente, ter gizado um plano para matar O, simulando um acidente. Este plano não substitui a indispensável previsibilidade do resultado como consequência da acção, é um simples "dolus antecedens". No fundo, não se trata de um dolo em sentido técnico-jurídico: o dolo, em direito penal, abrange o período que vai do começo até ao fim da acção que realiza o correspondente tipo objectivo. 110 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Uma vez que o tipo objectivo do homicídio está preenchido, mas não o subjectivo, trata- se agora de saber se T cometeu um homicídio negligente do artigo 137º do Código Penal. Veja-se também o disposto no artigo 16º, nºs 1 e 3, do Código Penal: o erro exclui o dolo, ficando ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais. No caso do nº 1 do artigo 16º, o erro versa sobre um elemento constitutivo do tipo-de-ilícito objectivo e não permite, em consequência, que se verifique a congruência indispensável entre este e o tipo-de-ilícito subjectivo doloso. Pode haver, nestes casos, punição a título de negligência, mas aqui a existência de negligência depende da censurabilidade do erro. Essa censurabilidade assenta no exame descuidado da situação, o que explicará a punibilidade a título de negligência, se esta for possível. A comprovação da negligência tem que se fazer tanto no tipo de ilícito como no tipo de culpa: é um exame de dois graus — cf. o artigo 15º do Código Penal que, ao referir o cuidado a que o agente "está obrigado" e de que é "capaz", num caso e noutro "segundo as circunstâncias", aponta para a consideração de um dever de cuidado objectivo, situado ao nível da ilicitude, a par de um dever subjectivo, situado ao nível da culpa. O artigo 137º, nº 1, pune quem matar outra pessoa por negligência. São momentos típicos a causação do resultado e a violação do dever de cuidado que todavia, só por si, não preenchem o correspondente ilícito típico. Acresce a necessidade da imputação objectiva do evento mortal. Este critério normativo pressupõe uma determinada conexão de ilicitude: não basta para a imputação de um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou; por outro lado, a produção do resultado assenta precisamente na realização dos perigos que deve ser salvaguardada de acordo com o fim ou esfera de protecção da norma. O risco desaprovado pela ordem jurídica, criado ou potenciado pela conduta descuidada do agente, e cuja ocorrência se pretendia evitar de acordo com o fim de protecção da norma, deve concretizar-se no resultado mortal, acompanhando um processo causal tipicamente adequado. No âmbito da culpa deve comprovar-se se o autor, de acordo com a sua capacidade individual, estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado. 111 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. T terá violado o dever objectivo de diligência? A valoração jurídico-penal realiza-se comparando a conduta do agente com a conduta exigida pela ordem jurídica na situação concreta. Ora, o homem "sensato e cauteloso" do "círculo de actividade do agente" (i. é, um caçador sensato e prudente...) teria previsto os perigos que rodeavam a actividade desenvolvida e ter-se-ia abstido de a levar a efeito sem que antes se tivesse informado de que disparava contra uma peça de caça e não contra uma pessoa. O caçador está autorizado a realizar a acção perigosa somente com as suficientes precauções de segurança, doutro modo, impõe-se-lhe que a omita completamente. T estava aliás em condições tanto de se abster de disparar como de se informar (exame da capacidade individual em sede de tipo de culpa). T devia e podia ter procedido como fica indicado. Em suma: o risco criado pela conduta descuidada de T concretizou-se no resultado mortal: T cometeu um crime de homicídio negligente do artigo 137º, nº 1, do Código Penal. CASO nº 4-N: Dolus subsequens. A compra a B uma câmara de vídeo, que B tinha furtado. A não suspeita de que se trata de coisa furtada, nem tem motivos para isso. Mais tarde A lê num jornal que a câmara tinha sido furtada, mas nada faz. Poderá falar-se de receptação (artigo 231º, nº 1)? XIII. Desvio do processo causal; dolo; essencialidade do erro. CASO nº 4-O: T aponta contra O com dolo homicida, aperta o gatilho da espingarda, mas falha o alvo. Todavia, o tiro assustou uns cavalos que, em tropel, lançados em correria e desnorteados, foram colher O mortalmente. Mostra-se preenchido o tipo objectivo do homicídio doloso. Não se poderá razoavelmente questionar um nexo de causalidade entre o tiro disparado por T e a morte de O. Vistas as coisas de um ponto de vista objectivo, a circunstância de o agente ter espantado uns cavalos que vão provocar a morte da vítima é seguramente um meio apto para atingir o fim, a morte de uma pessoa. Os problemas surgem quando se pergunta se o lado subjectivo do ilícito se encontra do mesmo modo preenchido. Com efeito, o dolo do agente não abarcou, nem sequer 112 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. eventualmente, o curso efectivo dos factos. Há aqui um desvio do curso dos acontecimentos relativamente à representação que deles fazia T. Ora, como se sabe, a relação causal entre a acção e o resultado também pertence, como ponto de referência do dolo, ao tipo de ilícito objectivo (Wessels, p. 77). O dolo homicida refere-se ao conjunto dos elementos típicos do caso concreto. Se assim não acontecer, faltará um elemento essencial do agir doloso e o agente não poderá ser sancionado por conduta dolosa (artigo 16º, nº 1). Um desses elementos típicos, cuja presença deve ser apurada, é, nos crimes de resultado, a relação de causalidade entre a acção e o resultado produzido. Para actuar dolosamente, o autor tem que conhecer tanto a acção como o resultado; além disso, deve ter previsto o processo causal nos seus traços essenciais, porque a relação de causalidade é um elemento do tipo, como o são a acção e o resultado. Consequentemente, o dolo do agente deve estender-se também ao nexo causal entre a acção do agente e o resultado — de outro modo, não haverá actuação dolosa. Deve contudo reparar-se que normalmente só um especialista poderá dominar inteiramente o processo causal - na maior parte dos casos, o devir causal só será previsível de forma imperfeita. De modo que o jurista aceita a ideia de que o dolo tem que coincidir com o conhecimento da relação causal por parte do agente, mas em traços largos, nas suas linhas gerais. Se assim não fosse, bem difícil seria sustentar que uma pessoa agiu dolosamente. Basta portanto que o agente preveja o decurso causal entre a sua acção e o resultado produzido nos seus elementos essenciais. Qualquer desvio do processo causal que se enquadre na experiência geral ou seja adequadamente causado é um desvio não essencial (Hans Welzel, Das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., p. 73). Dito de outro modo: as divergências entre o processo causal representado e o real não são essenciais e carecem de significado para o dolo de tipo se se mantiverem ainda dentro dos limites previsíveis de acordo com a experiência geral e não justifiquem outra valoração do facto (Wessels, p. 77). Mas se o desvio do processo causal efectivamente representado pelo agente for essencial o dolo fica excluído (artigo 16º, nº 1), por ser o erro relevante. 1. Deste modo. 113 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a) Não é relevante o desvio, e consequentemente o agente pratica um homicídio doloso consumado, quando A atira B duma ponte para que este se afogue, se porventura B cai desamparado nos rochedos junto à ponte e vem a morrer por via disso e não por afogamento (exemplo de Welzel). T dispara contra O com dolo homicida supondo que O morreria imediatamente. Porém, O morreu uns dias depois no hospital, por não ter sobrevivido aos ferimentos provocados pelo tiro. O tipo objectivo do crime do artigo 131º mostra-se preenchido, bem como o subjectivo. O desvio do processo causal relativamente à representação de T não é essencial e não é apropriado para excluir o dolo homicida. b) Se o desvio for relevante (essencial), o enquadramento faz-se no crime tentado. No ex. anterior, O não morre imediatamente e é socorrido, mas quando era transportado para o hospital a ambulância foi esmagada por um comboio quando atravessava uma passagem de nível sem guarda e O morreu. A morte de O não pode ser imputada a T. Há um desvio essencial entre o processo causal representado por T (a morte imediata de O) e o efectivamente acontecido, não sendo este previsível no momento em que T disparou contra a vítima. Ainda assim, há homicídio tentado. T decidiu matar O (outra pessoa) e disparou contra O - artigos 22º e 131º. 2. Merece especial atenção o desvio do processo causal sempre que neste se possam destacar diversos momentos. Se o resultado se dá num estádio anterior ao que foi previsto pelo agente, então adopta- se o critério já referido antes. A atira B duma ponte para que este se afogue; B cai desamparado nos rochedos junto à ponte e vem a morrer por via disso e não por afogamento (exemplo de Welzel, já mencionado). Não é relevante (essencial) o desvio, e consequentemente o agente pratica um homicídio doloso consumado. CASO nº 4-P: Desvio do processo causal; dolo; essencialidade do erro. A esconde uma bomba, pronta a detonar a certa hora, nas instalações duma casa editorial. E, a empregada da limpeza, bate na bomba com a vassoura e morre na explosão que imediatamente se seguiu. A concordava com a morte de qualquer pessoa. (Cf. Eric Samson, Strafrecht I, 4ª ed., 1980, p. 105 e ss.). 114 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A encontra-se comprometido com um crime de homicídio. O lado objectivo supõe a morte de uma pessoa. A provocou a morte de E ao colocar a bomba no edifício da editora. Para a causalidade é irrelevante que tenha sido E a detonar a bomba. Deu-se uma situação de perigo comum em que o agente não pode em geral determinar nem limitar os efeitos das forças que ele próprio desencadeia. A não podia avaliar antecipadamente o número de pessoas que iriam morrer: a bomba era portanto um instrumento dessa natureza. O tipo subjectivo supõe o dolo. A contava que com a explosão iriam morrer pessoas, mas não sabia quem iria ser atingido. Para o dolo do tipo não é contudo necessário que o agente represente uma concreta pessoa como vítima. Basta, pelo contrário, que a vítima seja individualizada segundo outros critérios. Foi o que aconteceu: A queria a morte de quem ali se encontrasse no momento da explosão. Uma dessas pessoas era E. A quis portanto a morte de E, quis causar a morte de E. A representou diferentemente o processo causal: tratava-se de uma bomba relógio e a explosão tinha hora marcada, mas a detonação deu-se quando a vassoura da limpeza lhe bateu. Não há aqui realmente nenhum desvio do processo causal representado. Tradicionalmente, fala-se do desvio do processo causal como um problema de dolo e numa coisa todos estão de acordo: se o desvio for insignificante, haverá crime doloso na forma consumada. Se, pelo contrário, o desvio for relevante, o enquadramento faz-se no crime tentado. O desvio será não essencial se o decurso causal se contiver ainda nos limites da previsibilidade ditada pela experiência geral e não se justifique qualquer outra valoração do facto. Para a determinação daquela previsibilidade opera-se com a doutrina da causalidade adequada. No caso concreto, o desvio contém-se nos limites previsíveis, consequentemente os factos representados e os realizados não entram em grave contradição. Por outro lado, A agiu com dolo homicida, sabendo que não podia dominar os efeitos da explosão. A agiu também com dolo no que respeita ao perigo comum que representava o meio letal por si escolhido. Cf. o artigo 132º, nº 2, f). XIV. Dolus generalis. CASO nº 4-Q: A, enquanto estrangula uma sua vizinha — B —, enche-lhe a boca com duas mãos cheias de areia, para evitar que os gritos dela se ouçam. Ao proceder assim, A actuou com dolo eventual, como o Tribunal, mais tarde, veio a apurar. B fica prostrada, sem dar acordo de si, mas continua viva. A, julgando-a morta, atira o que supunha ser o cadáver de B à água e B morre afogada. 115 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Como fizemos em casos anteriores, também aqui devemos distinguir um primeiro arco de tempo durante o qual A actuou com dolo homicida, ainda que eventual. Com efeito, enquanto estrangulava B e lhe enchia a boca com areia, representou a morte desta como consequência necessária da sua conduta. Isso significa que durante a primeira parte dos factos — enquanto a estrangulava, etc. —, A actuou com dolo homicida, mas já não se poderá sustentar o mesmo para a segunda parte do acontecido — quando o suposto cadáver foi atirado à água e B morreu afogada —, pois aí A não actuou, seguramente, com dolo homicida. A primeira questão é a de saber se A cometeu um crime de homicídio do artigo 131º do Código Penal, ao atirar B para a água, onde morreu. O tipo objectivo do homicídio mostra-se preenchido. A vítima morreu. Existe um nexo de causalidade entre esta actuação de A e a morte da vítima. Na verdade, B morreu afogada. O facto de se atirar alguém à água, ainda por cima inconsciente, é meio adequado para dar a morte por afogamento. Todavia, a vertente subjectiva não se mostra preenchida. A não sabia que atirava à água uma pessoa viva e que assim lhe dava a morte. A supunha-a morta. Ora, para se afirmar o dolo, seria necessário que o agente soubesse que estava perante uma pessoa ainda com vida. Esta parte do comportamento de A não se pode envolver com o homicídio doloso. Intervém o artigo 16º. Como já se observou, o crime executa-se em dois actos, julgando o agente que o resultado se deu com o primeiro, quando, na verdade, foi com o segundo que se produziu. A opinião geralmente seguida encara estas hipóteses como um processo unitário: o dolo do primeiro acto vale também para o segundo. Trata-se assim de um dolo "geral" (doutrina do dolus generalis) que cobre todo o processo e que não merece nenhuma valoração jurídica privilegiada (Jescheck, AT, 4ª ed., 1988, p. 282). Nesta perspectiva, A deve ser punido como autor material de um homicídio doloso consumado. Esta doutrina do dolus generalis, para a qual o desvio do processo causal é puramente acidental, esquece, contudo, que só se pode falar de dolo homicida enquanto o agente encara seriamente como possível a realização dos elementos objectivos do crime e se 116 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. conforma com o resultado. Mas, no nosso caso, o dolo homicida de A termina naquele ponto em que A supõe que B está morta. Os restantes momentos típicos já não estão cobertos pelo dolo do agente com este significado e alcance. Relativamente a esta segunda parte do acontecido, o dolo que cobre a primeira parte funciona como um simples "dolus antecedens", já não é, para este efeito, um dolo verdadeiro e próprio. O que significa ainda que a doutrina do dolus generalis aceita um mero dolo antecedente como se de verdadeiro e próprio dolo se tratasse (J. Hruschka, Strafrecht, 2ª ed., p. 27). Face à conclusão a que se chegou, cabe perguntar então se A, na medida em que atirou uma pessoa em estado de insconsciência para a água, praticou um crime de homicídio involuntário do artigo 137º. As respectivas condições objectivas (infracção do dever objectivo de cuidado, previsibilidade do resultado...) estão certamente preenchidas. Além disso, A, ao agir nas circunstâncias apuradas, deveria ter previsto a morte da vítima, tanto mais que no momento anterior tinha agido com dolo eventual. Parece igualmente que A poderia ter previsto a morte de B através da sua descrita actividade. (Esta última possibilidade ficará excluída para quem pense que os dados de facto são escassos. Com efeito, pode pôr-se em dúvida que B podia saber que a segunda parte do acontecido - atirar B à água... - era uma actuação homicida). No que respeita à primeira parte do acontecido - estrangulamento da vítima, deitar-lhe areia na boca -, trata-se de saber se ela constitui um homicídio doloso do artigo 131º. A primeira pergunta: estarão reunidos os respectivos elementos típicos objectivos? B morreu, o que significa que se produziu um resultado que, em princípio, será o resultado de uma acção homicida. Ponto é que se estabeleça um nexo de causalidade entre esta parte do comportamento de A e a morte de B. A conclusão não será de modo nenhum óbvia. Há quem negue essa conexão entre a acção de estrangular, por um lado, e, por outro, a morte da vítima, tal como ela ocorreu no caso concreto: supondo que a morte da vítima por afogamento é o objectivo pretendido pelo agente, então o estrangulamento não será o meio adequado para atingir essa finalidade. Dito de outro modo: com o 117 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. estrangulamento (etc.) não se materializa objectivamente o perigo da morte por afogamento. ( 15 ) ( 16 ) Nessa medida, A só poderá ser responsabilizado por tentativa de homicídio, se esta for compatível com o dolo eventual. A este propósito, a corrente dominante na jurisprudência é a de que a tentativa é punível, ainda que o agente tenha actuado com dolo eventual (ac. do STJ de 14 de Junho de 1995, BMJ-448-136). O facto de o crime ser imputado ao arguido a título de dolo eventual não é obstáculo à punição da tentativa (ac. da Relação de Coimbra, de 26 de Abril de 1989, BMJ-386-518). A tentativa é compaginável com qualquer das modalidades do dolo no artº 14º do CP (ac. STJ de 2 de Março de 1994, CJ do STJ, ano II, tomo 1, p. 243). Aderindo à corrente dominante, diremos, a concluir, que A é autor material de um crime de homicídio doloso, na forma tentada (artigos 22º e 131º), podendo os factos, eventualmente, preencher também o ilícito típico ao artigo 137º, gerando-se então uma situação de concurso aparente. Cerezo Mir refere o seguinte episódio julgado em Teruel (recorde, a propósito, os Amantes de Teruel, personagens do século 13, que inspiraram poetas e dramaturgos como Tirso de Molina): A surpreendeu sua mulher, B, com C, amante desta, na própria 15 A solução será diferente para quem afirme a conexão entre a acção e o resultado: o eventual erro por parte de A quanto à causação da morte funcionaria como elemento de ligação entre a actuação de A - estrangulamento, etc. - e a morte da vítima. 16 Repare-se na solução dada por Stratenwerth (Derecho Penal, Parte especial, I, 1982, p. 103): "Se partirmos do critério da adequação, a solução está em saber se o curso realmente seguido era ou não previsível no momento da primeira acção, ainda coberta pelo dolo. A resposta terá que ser afirmativa quando o autor, desde o princípio, tinha a intenção de cometer o segundo acto que mais tarde se verifica ser o que directamente causou o resultado. O crime doloso deverá entender-se assim como consumado. Se o segundo acto não estava planeado desde o princípio, mas o autor só se decide a executá-lo no momento em que se acha concluído o primeiro, então a adequação do desenrolar do processo que levou à produção da morte é mais que duvidosa e provavelmente deveria ser negada: a resolução posterior apenas se pode prever em geral durante a execução da primeira acção, ainda dominada pelo dolo homicida. Aqui estaríamos perante uma tentativa e a eventual causação negligente de um resultado". 118 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. casa do casal. Iniciou-se luta corporal entre os dois homens e B começou, às tantas, a dar o seu contributo contra o marido, ajudando o amante, até que A caiu inanimado, pensando os dois que lhe tinham tirado a vida. C levou então o corpo para debaixo de uma viga onde havia uma argola, fez um nó corrediço com uma corda, passando uma ponta desta pela argola e o laço da outra ponta foi passado pelo pescoço do dono da casa. Foi ao içarem o corpo que os dois amantes provocaram a morte do infeliz, por asfixia. CASO nº 4-R: Strangers on a train. Dolus generalis; autoria e participação; dolo homicida. Numa viagem de comboio, A conhece B, que toma por atrasado mental. A, que desde há muito vem acalentando a ideia de deitar a mão à fortuna considerável de sua mulher, M, decide aproveitar-se da “inimputabilidade” de B para alcançar os seus fins. Conta a B que a mulher é uma enviada do demónio e que deve ser morta, mas a morte tem que ficar a cargo de alguém de fora. A promete a B a vida eterna e, além disso, uma recompensa de mil contos. B, que está desempregado, mas não é nenhum atrasado mental, embora tenha bebido uma boa quantidade de cervejas no “bar” do comboio, agarra a oferta de A, pois precisa do dinheiro. A e B combinam a morte de M para a segunda-feira da semana seguinte, pois nessa ocasião, como A supõe, M estará sozinha em casa. A, como todas as segundas-feiras, vai estar ausente de casa e não quer saber do que vai acontecer: deixa a B a planificação e a execução, embora contribua com algumas ideias. Dois dias depois, B faz o exame do local. Decide-se a aproveitar o começo da noite para actuar para, depois de matar M, atirar o cadáver para a piscina da casa, “deixando-o desaparecer”. Na data combinada, B entra no interior da casa pela porta da varanda que M deixara aberta e esgueira-se para a sala, onde M via televisão com o som bem alto. B chegou-se perto de M, que de nada se apercebeu, por detrás, e deu-lhe uma pancada na cabeça com um martelo que levava consigo. B convenceu-se de que a pancada tinha sido mortal. M caiu sem sentidos no chão, onde ficou como se estivesse morta. B desligou a televisão mas logo a seguir ouviu ruídos e tratou de se esconder atrás de uns cortinados. R, o amante de M, entrou na sala. Debruçou-se sobre M, que realmente estava apenas sem sentidos, e deu-se conta de que os ferimentos desta não eram de molde a causar-lhe necessariamente a morte. Pela natureza dos ferimentos, R convenceu-se de que M tinha caído pelas escadas e, como tencionava pôr termo á relação que mantinha com ela, decidiu aproveitar a situação para se livrar de discussões intermináveis. Agarrou numa almofada do sofá e pressionou-a contra a cara de M. Quando R se convenceu de que M já não respirava, colocou de novo a almofada no sofá e retirou-se da casa. B, que se mantivera quieto atrás das cortinas, e que de nenhum modo colaborou na actuação de R, aguardou 10 minutos e então arrastou M para a piscina e atirou-a para a água. M morreu por afogamento na água da piscina. Buttel/Rotsch, Der Fremde im Zug, JuS 1995, p. 1096. A ideia foi baseada no filme de Alfred Hitchcock, Strangers on a train. 119 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. I. Punibilidade de B. Homicídio. B pode ter cometido um crime do artigo 131º. M morreu. B deu-lhe com um martelo na cabeça. Põe-se porém a questão de saber se a pancada na cabeça é causal relativamente ao resultado apontado e se a morte de M pode ser objectivamente imputada a B, já que M morreu por afogamento. Sem a acção de B, M não teria desmaiado e não teria morrido depois por afogamento na piscina, o que significa que a pancada dada por B é condicio- sine-qua-non da morte de M. Os problemas põem-se no plano da imputação objectiva. Aqui tem que se averiguar se entre a pancada do martelo que cria o perigo juridicamente desaprovado e a morte por afogamento existe o necessário nexo de risco, i. é, se o perigo criado por B — produção da morte em razão da lesão com uma pancada — se manifesta no resultado (a morte por afogamento) por forma tipicamente relevante. Do que não há dúvida é que a primeira acção de B está coberta pelo seu dolo homicida, não assim a segunda, pois quando B atira o que julga ser o cadáver para a piscina não actua seguramente com dolo homicida. Como se viu antes, há autores que afirmam um nexo de risco entre a primeira acção e o resultado final se o curso realmente seguido era previsível no momento da primeira acção, coberta pelo dolo. No caso em análise, B tinha, desde o princípio, a intenção de cometer o segundo acto, tinha a intenção atirar M para a água da piscina, e esta segunda actuação é a que directamente vem a causar o resultado. Quem optar por este caminho conclui que B cometeu um crime de homicídio consumado. Resta averiguar a existência de um exemplo-padrão, já que as circunstâncias podem apontar para uma especial censurabilidade ou perversidade de B (artigo 132º, nº s 1 e 2). Convém desde logo indagar se o agente foi determinado por avidez (alínea c), em vista da recompensa prometida. II. Punibilidade de R. Homicídio. R pode ter cometido um crime do artigo 131º (eventualmente 132º se se verificarem circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente). Com efeito, R aplicou a almofada na cara de M. Esta morreu, i. é, produziu-se o resultado típico. Todavia, não é possível afirmar a causalidade. Na falta de um resultado imputável a R, este só pode ser castigado por tentativa, sendo certo que o agente decidiu cometer o homicídio na pessoa de M e que houve começo de execução (artigos 22º e 23º). 120 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. III. Punibilidade de A. A, que prometeu uma quantia em dinheiro a B para que este praticasse o homicídio, não é seguramente seu co-autor. Conforme a definição legal (artigo 26º), várias pessoas podem ser co-autores, tomando parte directa na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, mas não foi isso que aconteceu. Nada indica, por outro lado, que o papel de A seja o de autor mediato. É certo que A estava convencido de que utilizava B na execução do homicídio, que este era cometido através de B, mas o que realmente se verificou foi o completo domínio do facto por parte deste. O papel que cabe a A é o de instigador (artigo 26º, última variante) de B na morte de M. A determinou B através da paga em dinheiro, não se colocando especiais problemas quanto à natureza do seu dolo já que A queria que o crime fosse cometido por B e foi isso que aconteceu. Resta saber se A deve ser punido como instigador de um homicídio simples ou qualificado (artigos 131 e 132º, nºs 1 e 2, c), recordando-se aqui que B terá sido determinado por avidez. Cf. o disposto no artigo 29º, mas A terá sido determinado igualmente por avidez, na medida em que aspirava à herança da mulher. XV. Aberratio ictus e error in persona vel objecto. Dolus alternativus. CASO nº 4-S: A quer matar B, seu marido, que nesse dia se encontra de turno ao serviço de bombeiros da região. Lembrando-se do gosto que ele tem por uma certa marca de vinhos, leva-lhe uma garrafa, mas tem o cuidado de lhe adicionar uma dose de um certo veneno que sem dúvida será suficiente para lhe dar a morte. B, todavia, é chamado para ir combater um incêndio e oferece a garrafa a C, um dos companheiros que ficam no aquartelamento, e qual é também um conhecido apreciador. C bebe o vinho e morre envenenado. A situação de desvio de golpe corresponde àqueles casos em que na execução do crime ocorre um desvio causal do resultado sobre um outro objecto da acção, diferente daquele que o agente queria atingir: A quer matar B, mas em vez de B o tiro atinge mortalmente C, que se encontrava ali ao lado. Distingue-se do típico “error in persona” na medida em que o agente não está enganado sobre a qualidade (ou identidade) da pessoa ou da coisa, pois no “error in persona” há uma confusão. Assim, no exemplo de Stratenwerth, o “assassino” profissional mata um terceiro completamente alheio ao caso, por supor que é a vítima que lhe fora indicada e que só conhece por fotografia. Pelo contrário, na 121 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. “aberratio ictus” atinge-se quem (ou o que) está ao lado. A discussão sobre o tratamento a dar a este grupo de casos movimenta-se, tradicionalmente, na Alemanha, entre os pólos da teoria da individualização e da teoria da equivalência. A doutrina e a jurisprudência manifestam a sua preferência pela teoria da individualização. O dolo individualizado num objecto determinado conduz unicamente à punibilidade por uma tentativa de homicídio (de B, no exemplo), uma vez que ele se realizou não no concreto objecto, mas num objecto que lhe estava ao lado (C, no exemplo). A lesão (mortal) querida não se verificou; a lesão (mortal) efectivamente produzida fica de fora do dolo individualizado e quando muito pode integrar um crime negligente. Mas se o agente quis matar uma pessoa (B) e também matou uma pessoa (C), então estamos perante um homicídio doloso consumado, pois todos os homens têm o mesmo valor perante a lei. É o que sustentam os partidários da teoria da equivalência, para quem o dolo tem que abranger unicamente os elementos genéricos do resultado típico: o desvio causal não tem aqui nenhuma influência sobre o dolo. Ainda assim, apontam-se três casos (Roxin, AT, p. 420) que são especiais por terem um tratamento unitário. O primeiro envolve as ocorrências em que o objecto visado e o atingido não são tipicamente idênticos (A aponta para uma jarra valiosa e atinge mortalmente B, que estava ao lado: tentativa de dano e homicídio negligente; a actuação com dolo homicida sobre uma pessoa falhou o alvo desejado e atingiu apenas o animal que a pessoa visada levava pela coleira) ou, sendo tipicamente equivalentes, existe uma causa de justificação contra o visado, a qual, todavia, não ocorre relativamente ao atingido (o defendente, querendo atingir o atacante, vem a ofender corporalmente a mulher deste, que estava ao lado e não tivera qualquer intervenção: haverá uma tentativa, justificada por legítima defesa, de ofensas corporais e, eventualmente, um crime negligente na pessoa da mulher). O segundo tem a ver com processos causais que se desenvolvem fora do contexto adequado. No exemplo, ainda de Roxin, em que A dispara sobre B, mas o tiro falha o alvo e vai sucessivamente fazer ricochete na parede de uma casa e noutro qualquer objecto, até que atinge um transeunte na esquina da rua, de forma completamente imprevisível, só pode sustentar-se a tentativa de homicídio de B, não obstante tratar-se de bens jurídicos eminentemente pessoais, que a teoria da equivalência colocaria, nas hipóteses normais, ao mesmo nível. Finalmente, haverá homicídio consumado se o agente aceitou como possível (dolo eventual) a morte da pessoa que não tendo sido visada com a sua acção acabou no 122 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. entanto por ser atingida (caso, por ex., do guarda-costas do visado: A quer atirar sobre B, apercebe-se, contudo, que pode atingir C, que o protege, e apesar disso dispara, vindo a matar o último). Num caso destes, em que mesmo os partidários da teoria da individualização têm que admitir um homicídio consumado, põe-se a questão de saber se acresce um homicídio tentado (na pessoa do visado que não chegou a ser atingido), respondendo-se geralmente pela negativa, pois o dolo homicida já foi “gasto”: o agente quis e conseguiu matar uma pessoa (contra, Roxin, ob. cit., p. 421, para quem se verifica também uma tentativa de homicídio; a questão está relacionada com o chamado dolo alternativo, em que o agente se propõe ou de conforma com a realização de um ou de outro tipo de ilícito). Para os casos em que a discussão se mantém, há propostas de solução que se situam entre a teoria da individualização e a da equivalência. Alguns autores sustentam que não faz sentido falar de “aberratio ictus” quando se trata exclusivamente de bens jurídicos patrimoniais (teoria da equivalência material), pois carece de significado a individualização do objecto da acção para a correspondente realização típica e para a correspondente ilicitude: só os motivos que levaram à actuação é que, na representação do agente, têm a ver com a individualização do objecto, o que é irrelevante. Roxin entende que a teoria da individualização merece ser acolhida na medida em que a realização do plano criminoso (“Tatplan” - Theorie) supõe um objecto individualizado, caso contrário, aplicam-se os critérios da teoria da equivalência. Assim, se A, durante uma altercação num bar, quer matar o seu inimigo B e em vez dele atinge o seu próprio filho, o plano do agente soçobra, tanto do seu ponto de vista subjectivo, como por critérios objectivos. Não seria exactamente o mesmo se o tiro tivesse atingido um terceiro, completamente desconhecido. Saber se o agente, que tivesse contado com o desvio de golpe, ainda assim teria actuado, é um caminho que pode indiciar uma solução correcta nestes casos. Entre nós, o tratamento a dar aos casos de “aberratio ictus” tem sido objecto de larga querela (M. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 5ª ed, Coimbra, 1990, p. 100), mas o Prof. F. Dias entende que a única solução correcta estará em punir o agente por tentativa, em concurso eventual com um crime negligente consumado (Figueiredo Dias, Direito Penal, sumários das Lições, p. 193). 123 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. XVI. Excesso na execução. CASO nº 4-T: Dolo directo / dolo eventual. A e B haviam decidido cometer diversos crimes de roubo, actuando sempre em conjunto. Na execução de um desses roubos, o B, indo além do acordado, começou a disparar, atingindo três pessoas, das quais duas morreram, com intenção de as matar. B agiu com dolo directo de homicídio. A, por sua vez, não planeou tal resultado. Provou-se porém em julgamento que A previu que tal resultado pudesse acontecer, conformando-se com o mesmo. Na verdade, o A forneceu as armas e respectivas munições ao B para efeito do cometimento dos crimes de roubo, prevendo que do seu uso pudesse resultar a morte dos visados e deslocando-se ambos para o local com a intenção de roubarem. Chegados ao local, o A aguardou na viatura a consumação dos ilícitos por parte do B, proporcionando de imediato a fuga. Conclusão do acórdão do STJ de 6 de Dezembro de 2001, CJ 2001, ano IX, tomo III, p. 227: no que respeita aos crimes perpetrados —excluídos os homicídios— ambos os arguidos são co-autores; no que respeita aos crimes de homicídio, o B, executor material, responde a título de dolo directo, enquanto que o A, para quem tais homicídios configuram um excesso ao plano traçado quanto à execução do roubo, responde apenas a título de dolo eventual. XVII. Outras indicações de leitura • Acórdão do STJ de 12 de Dezembro de 1984, BMJ-342-227: não se provou que o arguido, ao desfechar a espingarda a cerca de 1,35 metros de distância sobre a vítima, tivesse tido a intenção de causar a morte desta, e consequentemente que tivesse agido com o chamado dolo directo. Porém, como essa morte se lhe representou como uma consequência possível da conduta, e não obstante o arguido actuou, conformando-se com tal resultado —agiu com o chamado dolo eventual. • Acórdão do STJ de 18 de Setembro de 1991, BMJ-409-433: o arguido desfechou contra o ofendido um golpe com um canivete, dirigido de baixo para cima, atingindo-o na zona do pescoço, de modo voluntário e livre, na intenção de ferir: tais factos apontam inequivocamente, ainda que de forma oblíqua e indirecta, que o golpe foi intencionalmente dirigido ao pescoço e não, às cegas, contra outra zona corpórea. • Acórdão do STJ de 1 de Abril de 1993, BMJ-426-154: dolo eventual: comprovação dos actos psíquicos. A e B envolveram-se em discussão, tendo o B caído no solo. Uma vez este no solo, o A encavalitou-se nele, e agarrando-o pela cabeça por várias vezes lhe deu com ela no pavimento de paralelepípedos de granito. Apesar de não ter havido um pronto internamento hospitalar, o Supremo deu como assente a conexão, em termos de adequação causal, entre as lesões produzidas e a morte. Como o A praticou a agressão prevendo a possibilidade da ocorrência letal, aceitando-a, é autor de homicídio voluntário simples com dolo eventual. 124 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do STJ de 16 de Janeiro de 1990, CJ, 1990, tomo I, p. 6: sobre o apuramento da intenção a partir da avaliação da conduta do réu. • Acórdão do STJ de 11 de Dezembro de 1996, BMJ-462-207: sendo o dolo um acto psíquico, porque ocorre no interior do sujeito, só é revelado indirectamente através de actos exteriores. Se a natureza do instrumento utilizado, a zona atingida e as características da lesão consentirem a ilação de que o arguido, agredindo a vítima, representou a morte desta como consequência possível da sua acção e agiu conformando-se com tal evento, estará fundamentada a existência de dolo eventual. • Acórdão do STJ de 14 de Junho de 1995, CJ do STJ, ano III (1995), tomo II, p. 226: o dolo eventual é integrado pela vontade de realização concernente à acção típica (elemento volitivo do injusto da acção), pela consideração séria do risco de produção do resultado (factor intelectual do injusto da acção) e, por último, pela conformação com a produção do resultado típico como factor da culpabilidade. • Acórdão do STJ de 18 de Junho de 1986, BMJ-358-248: provando-se que o réu representou a morte da vítima como consequência possível dos disparos que fez, e mesmo assim disparou, conformando- se com o resultado representado e a que se mostrou indiferente, não pode duvidar-se que agiu com dolo eventual e não apenas com negligência. • Acórdão do STJ de 7 de Maio de 1997, BMJ-467-419: os arguidos muniram-se da caçadeira, que todos sabiam estar carregada com a respectiva munição, prevendo a possibilidade de ser efectuado um disparo que atingisse mortalmente o acompanhante da mulher e conformando-se com esse resultado, sendo-lhes indiferente que da execução do seu plano, primordialmente destinado à satisfação do instinto sexual, pudesse resultar a morte de um dos membros do casal. • Albin Eser/B. 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Se o fez, por ex., em legítima defesa, a conduta, apesar de formalmente típica, é aprovada pela ordem jurídica, devendo ser tolerada pelo afectado (artigos 31º, nºs 1 e 2, a), e 32º). Num caso como este ( 17 ) entram em colisão uma norma de proibição e uma norma de permissão, ficando esta em vantagem. As causas de justificação ou de exclusão da ilicitude representam portanto decisões de conflito. Devemos distingui-las das causas de desculpação, pois nestes casos 17 A discussão teórica envolve diferentes maneiras de ver. Falam alguns na função indiciária da tipicidade, o mesmo é dizer que, normalmente, a realização de um facto típico gera a suspeita de que esse facto é também antijurídico, embora essa presunção possa ser desvirtuada pela concorrência de uma causa de justificação. Se não concorre nenhuma destas causas afirma-se a ilicitude. Deduz-se daqui que na prática a função do juízo de ilicitude se reduz a uma constatação negativa da mesma (cf. Muñoz Conde, p. 83). A propósito da complementaridade material e funcional do tipo legal e das causas de justificação na fundamentação e formulação tanto do juízo de justificação como do juízo de ilicitude, cf. T. de Carvalho, A legítima defesa, p. 148 e ss. Cf. também Costa Andrade, Consentimento e Acordo, p. 23 e 245; e Fernanda Palma, Legítima defesa, p. 704 e ss. Para a chamada teoria dos elementos negativos do tipo, as causas de justificação constituem verdadeiros elementos do tipo, elementos que porém devem inexistir para que haja tipicidade. Deste modo, o tipo de homicídio não se esgotaria no "matar outra pessoa", passando a exprimir-se num "matar outra pessoa, sem que concorra legítima defesa, estado de necessidade, ou outra causa de justificação". 128 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a conduta continua a ser ilícita (antijurídica), embora o agente não seja punido por não haver lugar à censura própria do agir culposo. Nas hipóteses práticas interessa portanto averiguar se uma determinada conduta é ilícita ou se está justificada. Uma das questões envolvidas é a da unidade da ordem jurídica (artigo 31º, nº 1), donde decorre que as causas de justificação não são apenas as que constam do Código Penal (a legítima defesa, o direito de necessidade, a prossecução de interesses legítimos, etc.), mas também as que derivam de outros ramos do direito (o estado de necessidade do direito civil, a acção directa), mesmo quando não se encontram legalmente explicitadas (causas de justificação implícitas): a “adequação social”, o "risco permitido". Quem, pois, exerce um direito não pode agir contra o direito — o facto não é ilícito quando levado a efeito no exercício de um direito. Normas de ilicitude e normas de justificação de ilicitude. “O reconhecimento de um acto autorizativo público, como causa justificativa de actividades privadas ilícitas lesivas de direitos e interesses de terceiros, com eventual irradiação para outras ordens jurídicas (a ordem jurídico-civil e a ordem jurídico- penal), está longe de obter respostas concordantes na doutrina e na jurisprudência. (…) Se a ilicitude é uma invariante quanto aos pressupostos, então é ainda compreensível que em nome da unidade da ordem jurídica as causas justificativas da ilicitude tenham um efeito irradiante de um ramo para outro ramo de direito. (…) Se um acto autorizativo administrativo exclui a ilicitude no âmbito do direito administrativo, ele deverá também ser considerado como causa justificativa da ilicitude no domínio jurídico-civil e, eventualmente, também no âmbito jurídico-penal. Mas será assim? Não deveremos partir de pressupostos radicalmente divergentes, como os da independência e especificidade da qualificação jurídica da ilicitude dentro dos vários ramos da ordem jurídica global?” Cf. J. J. Gomes Canotilho, Actos autorizativos jurídico-públicos e responsabilidade por danos ambientais, BFD (1993), p. 23. As formas porventura “mais estabilizadas” de justificação são a legítima defesa e o direito de necessidade. Na legítima defesa nota-se uma ausência de ponderação do valor dos bens jurídicos, intervindo a ideia, divulgada desde meados do século dezanove, de que "o Direito não tem que ceder perante o ilícito”. No direito de necessidade dominam razões de recíproco solidarismo entre os membros da comunidade jurídica. A legítima defesa tem na sua base uma agressão actual e ilícita, quer dizer: um atentado à autonomia alheia. A agressão é qualquer ameaça de lesão a bens ou interesses penalmente tutelados. A agressão actual é a que se mostra iminente, está em curso ou ainda perdura. A agressão é ilícita se for objectivamente contrária ao ordenamento jurídico. Por seu turno, o valor dos bens sacrificados pela acção defensiva não determina, à partida, qualquer limite às 129 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. possibilidades de defesa, a qual deverá ser objectivamente necessária e subjectivamente conduzida pela vontade de defesa, dirigida contra o agressor e não contra bens jurídicos de terceiros. A defesa é necessária se e na medida em que, por um lado, é adequada ao afastamento da agressão e, por outro, representa o meio menos gravoso para o agressor. O direito de necessidade é a forma justificante do estado de necessidade, configurando- se como outra das causas de exclusão da ilicitude. De acordo com o artigo 34º, não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos de terceiro. Ponto é que se verifiquem os requisitos das três alíneas seguintes, destacando-se no pensamento legislativo a qualificação da superioridade do interesse (alínea c): “haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado”. Tem de ser um perigo não susceptível de ser conjurado de outro modo, colocando-se no âmbito do confronto ou colisão entre bens jurídicos, em que o sacrifício de um é a salvaguarda de outro. A “acção” do estado de necessidade, como única hipótese de afastar o perigo, deve ser objectivamente necessária e subjectivamente conduzida pela vontade de salvamento. Podem existir diferentes modos de afastar o perigo e se uma dessas modalidades produz menor dano, se é a menos gravosa, corresponderá então ao meio adequado. O facto de esse meio coactivo não ser substituível por outra medida menos gravosa torna-o necessário. A mais do conflito de bens ou interesses do artigo 34º, o Código regula o conflito de deveres no artigo 36º, com as roupagens de uma “especialização do estado de necessidade justificante”. Fica excluída a ilicitude sempre que o agente deixe de cumprir um dever para cumprir outro de valor superior ou igual. Também aqui prevalece a ideia de que “o direito não pode exigir dos seus destinatários nada que seja de cumprimento impossível, pelo que, em estado de colisão inextrincável de deveres iguais, só pode ser exigido do agente que cumpra um deles, conferindo-lhe a ordem jurídica uma plena liberdade de escolha” (Faria Costa, Jornadas, p. 63). Adverte o mesmo ilustre autor que “verdadeiro conflito de deveres, nos termos e para os efeitos do art. 36º, só se dá quando inexoravelmente colidam dois deveres de acção e quando, por conseguinte, a problemática do facto a justificar ocorra no domínio da omissão penalmente relevante; quando, diferentemente, a colisão se verifique entre um dever de acção e um dever de omissão, a problemática respectiva já não cabe no âmbito do conflito de deveres, regulado no art. 36º, mas reentra sim de pleno no âmbito do direito de necessidade, a que 130 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. se refere o art. 34º”. O Código erige os bons costumes em critério geral de limitação da validade e eficácia do consentimento do ofendido. “Enquanto o artigo 149º se propõe explicitar e concretizar o conteúdo da cláusula no domínio específico dos crimes contra a integridade física, o artigo 38º prescreve-a em termos extensivos a todas as manifestações do consentimento” (Costa Andrade, Consentimento e acordo, p. 537). Será legítima a punição de lesões corporais consentidas em nome da sua imoralidade? Pense-se nas ofensas corporais, mesmo ligeiras, praticadas para satisfação de perversões sadomasoquistas ou com a esterilização voluntária. Ou as levadas a cabo para a obtenção indevida de um seguro ou quando um médico efectua uma intervenção cosmética no rosto do paciente para ocultar a autoria de um crime. Parece ser o carácter grave e irreversível da lesão que deve servir para integrar, essencialmente embora não só (cf. Faria Costa, Jornadas, p. 60), a cláusula dos bons costumes, o que excluirá a punição do autor duma insignificante ofensa sadista ou masoquista. Por aqui se detectam as dificuldades de determinar a extensão a conferir aos interesses jurídicos que devam considerar-se livremente disponíveis. A vida humana integra um bem jurídico absolutamente indisponível. Mas não se pune o suicídio; o suicídio e a automutilação ( 18 ), não sendo atitudes lícitas ou ilícitas, são manifestações de uma "posse natural", distintas do puro exercício de um direito (Orlando de Carvalho, Teoria Geral da Relação Jurídica (Bibliografia e Sumário desenvolvido), polic., 1970, p. 50). Ao consentimento efectivo é equiparado o consentimento presumido, prescreve o artigo 39º, nº 1. A acção directa, nos termos do artigo 336º do Código Civil, só exclui a ilicitude do crime de dano, consistindo no abate a tiro de pombos alheios em prédio rústico, se estes estivessem a causar danos nas culturas agrícolas e houver sido feita prevenção ao dono dos animais (acórdão da Relação de Coimbra de 29 de Março de 1989, CJ 1989). O dever de obediência consiste em acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos, 18 A mutilação para isenção de serviço militar era punida no artigo 321º do Código Penal, redacção originária, mas a incriminação desapareceu em 1998. Os ferimentos auto-infligidos constituem um fenómeno produzido pela Primeira Guerra Mundial e estão relacionados com os avanços recentes da medicina. John Keegan (O rosto da Batalha, ed. Fragmentos, 1976, p. 208) revela que não encontrou exemplos de ferimentos auto-infligidos antes do desenvolvimento dos anti-sépticos. 131 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. dadas em objecto de serviço e com a forma legal. Mas o dever de obediência hierárquica cessa quando conduz à prática de um crime (artigo 36º, nº 2). § 7 Causas de justificação: a legítima defesa I. A legítima defesa: pressupostos, requisitos e limites. Legítima defesa putativa; erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto. Erro sobre os motivos; error in persona. CASO nº 23: A e B são velhos amigos do tempo da "tropa", mas não se vêem vai para 20 anos. B vem ao Porto e encontra o amigo no final de uma animada partida de futebol. O facto de cada um "torcer" pelo seu "clube" não impede que A convide o amigo para passar a noite em sua casa e partir no dia seguinte para Lisboa. Entretanto, animados, aproveitam para jantar juntos e beber uns copos. Até que, finalmente, por volta das duas da manhã, apanham um táxi para casa. Chegados, A, por gentileza, dá a dianteira ao amigo que na fraca claridade do "hall" de entrada se vê violentamente agredido com a única "arma" que havia em casa: o rolo da massa. Como é seu timbre, B reage de imediato à ofensa e, para evitar "levar" mais, como tudo indicava, assesta um vigoroso murro no agressor vindo do escuro, que logo cai no chão, desamparado. Era, porém, uma agressora, a mulher de A, que já não se opunha às contínuas escapadelas nocturnas do marido, mas que, estando sozinha em casa e temendo ser assaltada, se munira do que tinha à mão, intentando defender-se do que supunha ser um assaltante. Punibilidade da mulher? A mulher de A ofendeu B voluntária e corporalmente, assentando-lhe um golpe com o rolo da massa, pelo que fica desde logo comprometida com o disposto no artigo 143º, nº 1, do Código Penal. Não há dúvida de que, apesar de o local se encontrar envolto na penumbra, a mulher de A sabia que atingia uma pessoa com o golpe e quis isso mesmo. Ainda assim, a mulher de A queria evitar que a sua casa fosse assaltada e agiu com esse propósito, não pensando sequer que estava a atingir o amigo do marido. Trata-se, no entanto, de um "erro" irrelevante, por ser um erro sobre os motivos: a mulher atingiu corporalmente a pessoa que estava à sua frente. É um caso típico de error in persona: no artigo 143º, nº 1, pune-se simplesmente quem ofender o corpo ou a saúde de "outra 132 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pessoa" [sem atender, por ex., às qualidades, à idade ou à saúde desta], e foi isso o que aconteceu. Poderá a conduta da mulher de A ser justificada por legítima defesa? Para tanto deveria existir uma agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos (artigo 32º). Entre esses interesses ameaçados de lesão por B não se encontrava —numa perspectiva objectiva— a propriedade de A, pois B não lhe pretendia subtrair o que quer que fosse. Ainda assim, pode considerar-se a hipótese de uma violação de domicílio (artigo 190º). Todavia, como A e a mulher viviam juntos nessa casa, qualquer deles tinha o direito de convidar um estranho a entrar e permanecer no domicílio para aí passar a noite. Como B fora convidado por A, não existia qualquer agressão e portanto não se configurava uma situação de legítima defesa. A mulher de A actuou ilicitamente. Deve contudo notar-se que a mulher de A agiu na suposição errónea de que B era um assaltante —e se tal fosse o caso existiria uma agressão à propriedade e ao domicílio alheios. Para defesa desses valores seria então necessário o emprego do rolo da massa e portanto o uso que dele a mulher de A fez estaria justificado, de acordo com o disposto no artigo 32º. Ora, uma vez que, assim, a mulher de A actuou em erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, à situação aplica-se o disposto no artigo 16º, nºs 1 e 2, ficando excluído o dolo. A mulher de A só poderá ser punida por negligência (artigos 16º, nº 3, e 148º, nº 1). Se não se puder afirmar que a mulher de A violou um dever de cuidado, então fica excluída a punição, mesmo só por negligência (artigos 15º e 148º). Punibilidade de B? Ao agredir a mulher a murro, B ficou desde logo abrangido pelo disposto no artigo 143º, nº 1. B ofendeu corporalmente outra pessoa, e agiu voluntariamente. No entanto, o comportamento de B está justificado por legítima defesa (artigo 32º). A agressão com o rolo da massa por parte da mulher era ilícita, por não estar coberta por qualquer causa de justificação (artigo 31º). Além de ilícita, a agressão era actual —estava ainda a desenvolver-se quando se deu o contra-ataque de B. A questão que pode ser 133 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. levantada é a de saber se a acção defensiva era necessária. Para ser legítima, a defesa há- de ser objectivamente necessária: "o modo e a dimensão da defesa estabelecem-se de acordo com o modo e a dimensão da agressão". A defesa só será pois legítima se se apresentar como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido e, portanto, como o meio menos gravoso para o agressor. (Cf. Figueiredo Dias, Legítima defesa, Pólis). Acontece que B entrava pela primeira vez na casa que, ainda por cima, se encontrava envolta na escuridão. Consequentemente, não lhe seria exigível supor, naquela quase fracção de segundo, que a agressão viesse da mulher de A e, inclusivamente, que esta estivesse em erro. Como B actuou com vontade de defesa, a ofensa à integridade física da mulher de A mostra-se justificada. B não actuou ilicitamente. As conclusões que apresentámos sugerem que se pode chegar ao extremo de, não obstante haver duas agressões, nenhum dos autores dessas agressões dever ser sancionado pela sua respectiva conduta. Na apontada perspectiva, quem por erro não censurável pensa exercer legítima defesa expõe-se ao direito de legítima defesa do "suposto" agressor. Atente-se, todavia, no seguinte modo de encarar a questão. Uma vez que, na hipótese de "legítima defesa putativa" por erro objectivamente inevitável, se não verifica a ratio supra-individual, o que significa que não está em causa a salvaguarda da ordem jurídica — não haverá lugar à legítima defesa. No entanto, continua a afirmar-se a ratio individual de autoprotecção, de autodefesa face a uma agressão que, embora não ilícita, todavia o agredido não tem o dever de suportar — então, diante de tal agressão, B, ou um eventual terceiro, pode opor-se mediante o direito de necessidade defensivo, que lhe permite o sacrifício de um bem superior, embora (diferentemente da legítima defesa) não muito superior (Cf. Prof. Taipa de Carvalho, p. 187). Aliás, já se viu que tanto o "defendente" como o "agressor" são juridicamente inocentes, como diria a Prof. Fernanda Palma, justificando-se provavelmente o tratamento do caso, ao nível do direito de necessidade defensivo, com referência à ideia de equidade. Na legítima defesa putativa acontece um fenómeno muito curioso de troca de papéis: aquele que crê defender-se é, na realidade, um agressor; aquele que foi tomado por um agressor acaba, ao fim e ao cabo, por se defender legitimamente de uma agressão real de 134 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que é vítima. E, por paradoxal que pareça, ambos podem ficar isentos de responsabilidade criminal, mesmo que, inclusivamente, provoquem um ao outro graves lesões. Francisco Muñoz Conde, "Legítima" defensa putativa? Un caso límite entre justificación y exculpación, in Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, 1995, p. 183. II. Protecção individual; afirmação do Direito. A legítima defesa não está à partida limitada por um critério de proporcionalidade. A defesa está porém limitada pelo meio necessário para repelir a agressão. Qual o fundamento da legitimidade de uma defesa, ela mesma violadora de bens jurídicos? Para responder de imediato a estas questões demos a palavra, uma vez mais, a Eduardo Correia: "Porquê? Por se entender que, em princípio, o uso do meio exigido ou necessário para a defesa ou prevenção de uma agressão actual e ilícita do agente ou terceiros corresponde à prevalência do justo contra o injusto, à defesa do direito contra a agressão, ao princípio de que a ordem jurídica não quer ceder perante a sua agressão". (Faria Costa, O perigo em direito penal, p. 393). Em termos muito gerais, o fundamento justificador da legítima defesa encontra-se na ideia (de origem hegeliana), divulgada desde meados do século dezanove, de que "o Direito não tem que ceder perante o ilícito", ainda que esta fórmula não deixe de ser contraditória e, para alguns autores, vazia de sentido. É porém a concepção tradicional, que se identifica com um critério objectivo da ilicitude. Para a doutrina ainda hoje largamente dominante, com a legítima defesa visa-se a tutela dos interesses individuais ameaçados pela agressão e, do mesmo passo, a salvaguarda da ordem jurídica, conseguida, dentro do espírito da prevenção geral, pela criação de um importante factor dissuasório nos potenciais agressores (concepção dualista). Com a invocação da necessidade de defesa da ordem jurídica pretende-se justificar o sacrifício de bens jurídicos de valor superior ao da agressão, assim se rejeitando, decididamente, a ideia de que a legítima defesa está, à partida, limitada por um critério de proporcionalidade entre os bens jurídicos que são sacrificados pela defesa, por um lado, e os que são ameaçados pela agressão, por outro (cf. C. Valdágua, Aspectos da legítima defesa, p. 31). Exemplo: de forma actual e ilícita, B ataca o património de A, que reage e mata B em legítima defesa, sendo que a morte de B era o meio necessário para defesa do 135 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. património. Nesta perspectiva, a lei legitima a conduta de A para a defesa do seu património à custa da vida do agressor. Com a necessidade de protecção dos bens jurídicos individuais estará em causa a "defesa — e consequente preservação — do bem jurídico (para mais ilicitamente) agredido, deste modo se considerando esta causa justificativa um instrumento (relativo) socialmente imprescindível de prevenção e por aí, de defesa da ordem jurídica". São palavras do Prof. Figueiredo Dias (cf. Textos, p. 164), para quem, em matéria de fundamento de legítima defesa "se não deve sufragar nem uma concepção supra-individualista, nem individualista, mas "intersubjectiva": "à defesa de um bem jurídico acresce sempre o propósito da preservação do Direito na esfera de liberdade pessoal do agredido, tanto mais quanto a ameaça resulta de um comportamento ilícito de outrem. Só assim ficando explicada - na medida possível - a razão por que a defesa é legítima ainda quando o interesse defendido seja de menor valor do que o interesse lesado pela defesa: é que, dir-se-á, ainda neste caso o interesse defendido é aquele que prepondera no conflito, porque ele preserva do mesmo passo o Direito na pessoa do agredido." Para a doutrina tradicional —à luz da necessidade de defesa da ordem jurídica— justifica- se o sacrifício de bens jurídicos de valor superior ao da agressão, quer dizer: ao agredido não se exige nenhum tipo de consideração face à proporcionalidade da sua defesa, já que o próprio agressor se situou fora do ordenamento jurídico, devendo as consequências ficar a seu cargo. A defesa está limitada pelo meio necessário para repelir a agressão. No entanto, ainda que se aluda ao requisito da necessidade, recusa-se decididamente a ponderação dos bens afectados. Nesta perspectiva, já se disse, quem defende a sua propriedade poderá fazê-lo à custa de um valor superior (por ex., a vida do ladrão), o único limite imposto ao exercício da legítima defesa dependerá da intensidade da agressão e dos meios à disposição no caso concreto, mas não do valor dos bens em conflito. É esta a ideia que arranca em 1848 com um trabalho de Berner e que Ihering acentua ainda com maior ênfase numa sua monografia sobre a luta pelo direito. Berner reconhecia que "sem dúvida, a vida vale mais do que um objecto patrimonial, mas esta comparação não deve estabelecer-se: o Direito vale mais do que o injusto". Seguindo esta corrente, Ihering insistia na ideia de que introduzir o princípio de proporcionalidade na legítima defesa significaria atrofiá-la, reduzindo-a a um papel semelhante ao do estado de necessidade, 136 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. com a consequente desprotecção do agredido e privilégio para os delinquentes (cf. Iglesias Río, p. 315). Mas então, como resolver o caso do dono da macieira que, para conservar a sua maçã, mata a criança? A solidez da concepção tradicional, assente em que a legítima defesa —qualquer que seja a proporção entre os bens do agredido e do agressor a afectar pelo exercício da defesa— "realiza sempre o mais alto de todos eles, que é, por força da sua essência, a defesa da ordem jurídica" (Prof. Eduardo Correia), não deixou de ser temperada, nos casos de mais chocante desproporção entre os interesses em causa, pelo recurso ao "abuso do direito". A ilegalidade da agressão, considerada apenas sob o ponto de vista objectivo, não podia deixar de ser confrontada com os casos de ataque de animais e de crianças e inimputáveis, nem com o caso do proprietário que mata a criança que lhe tenta furtar uma maçã (além de termos o sacrifício da vida para recuperar a maçã, o valor desta é manifestamente "insignificante"). As grandes áreas problemáticas que contendem com a legítima defesa continuam a ser, como melhor se verá na exposição que se segue, i) as agressões com origem em pessoas incapazes de culpa, por ex., crianças, ou com culpa sensivelmente diminuída, por ex., em virtude de embriaguez; ii) a legítima defesa em caso de provocação do defendente; iii) as agressões a bens de insignificante valor ou de valor desproporcionadamente inferior ao dos bens a sacrificar por via da defesa; iv) as agressões que ocorrem entre pessoas ligadas por particulares relações de garantia. Também, a partir de certa altura, se passaram a ouvir as vozes dos que pretendiam introduzir-lhe um ingrediente ético-social, de consequências ainda mais amplas, "que exclui a sua legitimidade, no caso de uma flagrante desproporção entre os interesses do defendente postos em perigo pelo ataque e os do agressor sacrificados pela necessidade da defesa" (Prof. Eduardo Correia). Ao ponto de que, hoje, "tudo é questionado na legítima defesa" (Prof. Taipa de Carvalho). E assim, para este Autor (A Legítima Defesa, dissertação de doutoramento, 1995), se bem compreendemos, a agressão, para além de ilícita e actual, deverá ser dolosa, censurável e não insignificante — e dirigida aos bens jurídicos individuais vida, integridade física, saúde, liberdade, domicílio e património do defendente ou de terceiro, ficando de fora da legítima defesa os casos em que tenha havido provocação. Adiante se voltará a estes pontos de vista. Acrescente-se apenas que, numa obra igualmente recente (A justificação por legítima defesa como problema de 137 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. delimitação de direitos, 1990), a Prof. Fernanda Palma distingue entre uma legítima defesa ilimitada e uma legítima defesa limitada ou moderada. A legitimidade da defesa fica sujeita à igualdade da natureza (não do valor concreto) dos bens defendidos e lesados. "Toda a legítima defesa é regida por uma não desproporcionalidade, possibilitando a ofensa de bens superiores, mas não qualitativamente superiores aos assegurados, numa espécie de inversão do critério ponderativo previsto para o direito de necessidade, nas alíneas b) e c) do artigo 34º do Código Penal" (F. Palma, A Justificação, p. 565 e ss. e 837). Deste modo, relevará “a distinção entre os bens jurídicos imediatamente conexionados com a essencial dignidade da pessoa humana, cuja afectação permitiria uma defesa que pode atingir a intensidade máxima (provocar, por exemplo, a morte do agressor), e os restantes bens jurídicos tutelados constitucional e penalmente, cuja ofensa apenas implicaria uma defesa que pode sacrificar bens da mesma natureza” (Rui Carlos Pereira, Os crimes contra a integridade física na revisão do Código Penal, in Jornadas sobre a revisão do Código Penal, AAFDL, 1998, p. 183). Questão é saber "se assim se não foi (ou está a ir-se) longe de mais e a assistir-se àquilo que, com Hassemer, se pode chamar uma verdadeira "erosão da dogmática da legítima defesa": Prof. Figueiredo Dias, Textos, p. 168. III. Requisitos da legítima defesa. Os requisitos de eficácia e os pressupostos da legítima defesa tornam mais claro tudo o que se acaba de dizer. Não podemos ignorar, naturalmente, o que se dispõe no artigo 32º. Se A se dirige a B para lhe dar um abraço e B supõe (por erro) que este o vai agredir, a situação não legitima uma defesa e só pode contar com os efeitos associados à chamada legítima defesa putativa. As aparências de agressão, por ex., o empunhar uma pistola de brinquedo ou as "agressões" combinadas entre "agressor" e "defendente" não legitimam, objectivamente, a defesa. Mas se alguém empunha uma pistola sem munições em termos de conscientemente afectar a liberdade de disposição de outrem pode o ameaçado usar os meios da legítima defesa. Notar-se-á também que à actuação do defendente só estão expostos os bens jurídicos do agressor. Se na defesa se atingem bens jurídicos de um 138 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. terceiro (não agressor) poderá desenhar-se uma situação de estado de necessidade (artigo 34º), com as correspondentes consequências, mas nunca uma legítima defesa. Uma pessoa leva a efeito uma Em situação de LD, o agredido exerce a agressão d e f e s a actual A agressão actual é a que se mostra iminente, está em curso ou ainda perdura. necessária A defesa é necessária se e na medida em que, por um lado, é adequada ao afastamento da agressão e, por outro, representa o meio menos gravoso para o agressor. e ilícita A agressão é ilícita se for objectivamente contrária ao ordenamento jurídico: ex., não há legítima defesa contra legítima defesa. com animus defendendi A defesa deve ser subjectivamente conduzida pela vontade de defesa. Estrutura da legítima defesa Para a legítima defesa exige-se em primeiro lugar uma agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. A agressão supõe a ameaça directa, imediata, desses interesses, através de um comportamento humano. Não são porém agressões nesse sentido certos comportamentos em geral tolerados, como os encontrões nos transportes públicos —, nem os ataques de animais, na medida em que as normas têm como naturais destinatários os entes humanos. É diferente o caso em que o cão é açulado por uma pessoa contra a outra, podendo esta reagir em legítima defesa, mas então reage à acção humana. Discute-se se a agressão pode ocorrer por omissão, sendo caso paradigmático o da mãe que recusa alimentar o filho acabado de nascer ou o do preso que procura, pelos seus próprios meios, sair da cadeia, agindo inclusivamente contra a pessoa dos guardas, depois de cumprida a pena, quando estes se recusam a executar a ordem judicial de libertação. 139 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Cf. outros dados em Figueiredo Dias, Textos, p. 171, nomeadamente quando esteja em causa a legitimidade da defesa às omissões puras e impuras. Ex., poderá forçar-se um automobilista a transportar ao hospital a vítima de um acidente? Não existe, porém, unanimidade no estabelecimento das fronteiras de certos interesses juridicamente protegidos, como os ligados à privacidade. Haverá diferenças entre espreitar sem consentimento para o interior do quarto de dormir de uma senhora, intervindo o sujeito na esfera íntima da pessoa, e espreitar de longe um par de namorados que permanecem juntos no interior dum carro, à beira-mar. O acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 1981, BMJ-304-235, ocupou-se do caso de A que, a cerca de 4 metros, disparou a caçadeira contra o vulto dum mirone que, em Agosto, por volta das 22 horas, lhe surgira defronte da janela do quarto e se quedou a espreitar para o interior. Anteriormente, em noites sucessivas, já o voyeur tivera idêntico procedimento. Questões como esta prendem-se com a privacidade e o estado emocional dos importunados, mas também têm a ver com a actualidade da agressão, entrando num grupo de casos a conformar a chamada legítima defesa preventiva. A corrente maioritária entende que a agressão não precisa de ser praticada dolosamente. Bastará uma conduta negligente ou mesmo um comportamento desprovido de culpa. Neste sentido vai a opinião do Prof. Eduardo Correia: "Sendo antijurídica, a agressão não precisa, de qualquer forma, de ser culposa: mesmo actos involuntários (v. g., em estado de epilepsia), actos não dolosos, actos de crianças, de dementes (...)." Também Figueiredo Dias escreve que "a situação de legítima defesa pressupõe a ilicitude da agressão, mas não a culpa do agressor" — podem assim ser repelidas em legítima defesa agressões em que o agente actue sem culpa, devido a inimputabilidade, à existência de uma causa de exclusão da culpa ou a um erro sobre a ilicitude não censurável". Todavia, estas posições conduzem, inevitavelmente —diz-se—, ao "vago, genérico e indefinível tópico" das limitações ético-sociais, pelo que, alguns autores (cf., por ex., Prof. Taipa de Carvalho, p. 258 e ss.) entendem que a legítima defesa pressupõe o carácter doloso [e censurável] da agressão. A ideia é que o próprio conceito de agressão "exige vontade lesiva e, sobretudo, porque face a acções imprudentes carece de sentido e não pode realizar-se a função de intimidação da legítima defesa” (outros desenvolvimentos em Taipa de Carvalho, cit., p. 259). Nesta perspectiva, contra a acção imprudente caberá estado de necessidade defensivo (supra-legal). 140 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A propósito de agressões de inimputáveis. Necessidade de protecção de bens colocados em perigo. Estado de necessidade defensivo. Princípio da solidariedade. Equidade. O estado de necessidade defensivo tem sido colocado entre a legítima defesa (artigo 32º) e o estado de necessidade (artigo 35º). Os autores que, como Taipa de Carvalho, Luzón Peña, Eb. Schmidhäuser e H. Otto exigem que a agressão seja culposa propõem a aplicação das regras do estado de necessidade defensivo, que requer a ausência de grande desproporção e a subsidiariedade da defesa. As condutas que apontam para o estado de necessidade defensivo "têm algo a menos do que a agressão ilícita pressuposta pela legítima defesa e algo a mais do que o perigo para um bem jurídico do estado de necessidade justificante. Nelas, o agente desencadeia uma defesa contra uma agressão que não pode constituir o substrato de um direito de legítima defesa (...). O problema do estado de necessidade defensivo, tal como o da defesa preventiva, nasce da necessidade de protecção de bens colocados em perigo, apesar de não ser claramente configurável um dever de suportar a defesa preventiva, inere, todavia, a esta figura uma necessidade actual de defesa, intensificando-se, materialmente, as exigências de protecção do titular dos bens jurídicos ameaçados. O contexto ético que torna o tratamento jurídico destas situações problemático respeita, ainda e sempre, à equidade, pois tanto defendente como agressor são juridicamente inocentes". (Prof. Fernanda Palma, A Justificação, p. 798). "No estado de necessidade defensivo, penso que o princípio fundamental é o da autodefesa, intervindo o princípio da solidariedade como princípio-limite. Isto é, embora seja justo e razoável que seja a fonte da agressão a suportar as consequências da resolução do conflito, já se compreende, todavia, em nome do princípio da solidariedade, que, tratando-se, por exemplo, de um agressor inimputável, se proiba a intervenção defensiva, quando esta for afectar um bem muito superior ao defendido." (Prof. Taipa de Carvalho, p. 185). Para o Prof. Figueiredo Dias (Textos, p. 183), "o que agressões de crianças, de doentes mentais ou, em geral, de agressões de quem actua notoriamente sem culpa pode determinar é uma modificação dos limites da necessidade da acção de defesa" — o agredido, poderá, por ex., sem desdouro, esquivar-se à agressão. Fuga? Turpis fuga? Desvio? Commodus discessus? Quando está em causa uma agressão actual, ilícita, dolosa e praticada por uma pessoa plenamente consciente da censurabilidade social do seu acto — não há qualquer fundamento para impor ao agredido ou o dever de fuga ou desvio ou o dever de não sacrificar bens do agressor que sejam muito superiores aos que são objecto de uma tal agressão: a recusa de uma tal proporcionalidade dos bens, não violando qualquer princípio ético-jurídico, é, ainda, necessária, sob o ponto de vista da função preventiva, geral e especial, de uma tal categoria de agressões. Cf. Prof. Taipa de Carvalho, p. 390. Por commodus discessus entende-se a retirada cómoda da pessoa ameaçada, desviando-se do caminho, saindo pelos fundos, etc., mas o direito não lhe pode impor a covardia, a turpis fuga. Cf. Paulo José da Costa Jr. A agressão deverá ser actual. A agressão actual é a que se mostra iminente, está em curso ou ainda perdura. Se ainda pode ter êxito, se não está consumada, é actual. A actualidade da agressão exige assim que, em "ambiente" de sincronização, se estabeleçam os seus parâmetros "antes" e "depois". No primeiro caso, deverá atentar-se na 141 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. formulação do artigo 22º, nº 1, e verificar se o agente pratica actos de execução de um crime (critério do início da tentativa). Se o sujeito com quem se inicia uma discussão saca da pistola para imediatamente a disparar, a vida e a integridade física da vítima ficam imediatamente ameaçadas. Mas, como logo se vê, estes parâmetros serão porventura insuficientes quando se não disponha da amplitude normativa do artigo 22º, nº 1. Por isso se discute na Alemanha se a actualidade da agressão não deverá antes começar naquele estádio de desenvolvimento que se situa entre a preparação e o começo de execução. Certo é que, para qualquer teoria que se reclame da defesa mais eficaz, o ladrão de bancos chegou já ao estádio da agressão quando, no hall de entrada do edifício, coloca a meia na cara para não ser reconhecido. Os partidários da legítima defesa preventiva admitem que se atinja a tiro o voyeur que, em dias seguidos, "espreita" uma e outra vez, e que vai a fugir, por ter sido surpreendido, desde que haja a certeza de que se assim não for, o indiscreto metediço voltará a fazer das suas. A aplicação da norma da legítima defesa, por analogia, a situações desse cariz explicará igualmente que se invoquem os critérios da legítima defesa no caso do tirano familiar, por ex., para justificar a actuação da mulher que, apanhando a dormir o marido que permanentemente, anos a fio, inferniza a vida de toda a família, aproveita para o abater e ter finalmente descanso. Tratar-se-ia daquelas situações em que a ameaça da agressão está próxima mas não está iminente e só poderiam rotular-se de situação análoga à legítima defesa. A aceitação, por antecipação, destas situações de legítima defesa é de rejeitar perante a nossa lei penal, mas não seria de todo desajustado afeiçoá-las ao estado de necessidade desculpante do artigo 35º. "Fernanda Palma, depois de, adequadamente, criticar e recusar a "teoria da eficácia da defesa", sugere que haverá uma certa analogia entre estas situações de criação de um perigo actual de uma próxima (embora não iminente) agressão ilícita e as situações subsumíveis à disposição jurídico-civil sobre a acção directa, prevista no Código Civil, art. 336º. É minha convicção, todavia, que nem o teor literal, nem a função, nem a natureza dos direitos objecto de protecção pelo art. 336º do Código Civil permitem a sua aplicação analógica às situações de perigo actual de uma agressão (ou repetição de agressão) ilícita." Prof. Taipa de Carvalho, p. 290. Cabe também aqui a discussão sobre o que representam certas instalações agressivas, por ex., muros e cercas electrificados, armadilhas colocadas com intenção de proteger 142 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. vivendas isoladas contra assaltos, ou até minas explosivas, falando alguns autores de legítima defesa antecipada. Esta, nos casos indicados, e em outros semelhantes (no Minho, por ex., coroavam-se os muros de cacos de vidro), limita-se à aparência da simultaneidade da agressão e da acção de defesa e é rejeitada, inclusivamente, por poder atingir um não agressor, que até pode ser uma criança. Falta a actualidade do perigo no momento em que as offendicula são predispostas, explica G. Bettiol, Direito Penal, PG, tomo II, Coimbra, 1970, p. 211, que entende reconduzir a questão para o âmbito do exercício do direito de propriedade, ainda que seja de exigir uma relação de proporção entre o bem que se pretende proteger e aquele que poderá, eventualmente, ser ofendido. O sentido originário destes dispositivos automáticos de defesa, escreve Miguel Ángel Iglesias Río, significava "obstáculo", "estorvo" ou "resistência", de acordo com a interessante reconstrução etimológica do termo offendicullum ou offensaculum realizada pelo italiano Massari. O offendiculum reduzia-se a meios que, por sua natureza, serviam unicamente para constituir um obstáculo impeditivo do livre e fácil acesso à propriedade privada, mas sem possuir capacidade de reacção ofensiva. Incluíam-se no conceito objectos de características as mais diversas: vidros cortantes incrustados na parte superior de um muro, cancelas com pontas, valas com arame farpado, pontas de lança, fossas a impedir a passagem, etc. O affaire Lègras. Há mais de 20 anos, discutiu-se nos tribunais franceses um caso em que, nas palavras do representante do Ministério Público, se enfrentavam duas concepções do homem e da sociedade: dum lado os fanáticos da ordem pública desejavam que se lhes reconhecesse o direito de julgar soberanamente ou de executar a justiça da forma mais expedita. Havia outros para quem a pessoa humana estará sempre em primeiro lugar. A casa de campo de Mr. Lègras fora assaltada umas doze vezes até que o proprietário decidiu encher de pólvora um transistor que meteu num armário. Dois "visitantes" não autorizados sofreram na cara os efeitos da explosão. Um dos ladrões morreu e o Sr. Lègras foi conduzido perante um tribunal de jurados que o absolveu. A posição radical de alguns juristas que apoiaram a decisão fazia assentar este "enérgico" direito de legítima defesa na circunstância de que uma nova "agressão "podia verificar-se a qualquer momento...". Nos crimes permanentes, como o sequestro (artigo 158º) e a violação de domicílio (artigo 190º), a agressão dura pelo tempo que durar a situação típica. Se o intruso que permanece no domicílio alheio recusa retirar-se, pode o dono da casa invocar a legítima defesa, mas não assim se simplesmente lhe bloqueia a saída com o pretexto de que já 143 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. chamou a polícia. Deve ter-se igualmente em atenção a permanência da agressão no caso do ladrão que vai a fugir com o produto do furto. Aliás, no que toca aos crimes patrimoniais, a doutrina geralmente entende que a agressão permanece enquanto se não der o esgotamento, terminação ou consumação material, independentemente da consumação formal ou jurídica (Kühl, Jura 1993, p. 62). Segundo Iglesias Río, p. 170, nos crimes contra a propriedade, como o furto — cuja forma de execução possibilita a protecção defensiva, mesmo depois de se dar a consumação do facto delitivo concreto — a agressão será actual enquanto o ladrão não tiver a coisa subtraída em pleno sossego, enquanto não dispuser pacificamente do produto do furto, quer dizer: até que a lesão do direito de propriedade para a vítima não seja irreversível. Por conseguinte, a vítima poderá perseguir, in actu, o delinquente para recuperar o subtraído — justificando-se que para recuperar os bens ou valores se utilizem os meios da legítima defesa. No entendimento do Prof. Figueiredo Dias, Textos, p. 177, releva "o momento até ao qual a defesa é susceptível de deter a agressão, pois só então fica afastado o perigo de que ela possa vir a revelar-se desnecessária para repelir a agressão. Até esse último momento a agressão deve ser considerada como actual. É à luz deste critério que devem ser resolvidos os casos que mais dúvidas levantam neste ponto, os dos crimes contra a propriedade, nomeadamente o do crime de furto. Ex.: A dispara e fere gravemente B, para evitar que este fuja com as coisas que acabou de subtrair. Poder-se-á considerar a agressão de B como ainda actual? A solução não deve ser prejudicada pela discussão e posição que se tome acerca do momento da consumação do crime de furto. O entendimento mais razoável é o de que está coberta por legítima defesa a resposta necessária para recuperar a detenção da coisa subtraída se a reacção tiver lugar logo após o momento da subtracção, enquanto o ladrão não tiver logrado a posse pacífica da coisa". O furto é (para a posição dominante) um crime instantâneo, mas os seus efeitos são permanentes. Cf., aliás, com a situação desenhada no artigo 211º (violência depois da subtracção) e com os casos de agressão frustrada em que o ladrão foge de mãos a abanar porque não conseguiu apanhar o que queria. Se o ladrão abandonou o que subtraiu e foge de mãos vazias, o lesado não está autorizado a exercer a legítima defesa, que é desnecessária. De qualquer forma, se o dono da coisa furtada não a recupera de imediato, 144 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. i. e, se a agressão perde a sua actualidade, no indicado sentido, a recuperação forçada da presa só poderá fazer-se com apoio na acção directa (artigo 336º do Código Civil). Discute-se muito igualmente se e em que medida é que a vítima de uma tentativa de extorsão (artigo 223º) fica em posição de se defender legitimamente. Para negar a necessária actualidade, sustenta-se que a agressão à liberdade de disposição cessa logo que a ameaça é proferida e que os perigos para os interesses patrimoniais do visado se situam ainda no futuro, mas o critério é muito discutível. A agressão deverá ser ilícita. A agressão é ilícita se for objectivamente contrária ao ordenamento jurídico — mas não se exige, como logo decorre da letra do artigo 32º, que a conduta preencha um tipo de crime. O livreiro pode reagir contra o estudante que pretende levar para casa um livro, só para o ler, restituindo-o em seguida: o furtum usus do livro não é penalmente punido, mas a situação é objectivamente ilícita, os interesses do livreiro, proprietário do livro, são interesses juridicamente protegidos. Aponta-se, porém, uma restrição a esta unicidade entre ilicitude geral e ilicitude da agressão para efeitos de legítima defesa (Prof. Figueiredo Dias, Textos, p. 179): "a agressão não será ilícita para este efeito relativamente a interesses ("direitos relativos") para cuja "agressão" a lei prevê procedimentos especiais, como será o caso dos direitos de créditos e dos de natureza familiar. Não estarão por isso cobertas por legítima defesa, v. g., as agressões ou ameaças tipicamente relevantes levadas a cabo pelo credor sobre o devedor para que este lhe pague; ou pelo marido sobre a mulher para impedir que ela abandone o lar conjugal". Deve por outro lado notar-se que não há legítima defesa contra legítima defesa. Se A actua justificadamente perante a pessoa de B (em legítima defesa, em estado de necessidade justificante, por ordem da autoridade, por ex., para o prender, etc.) não pode este ripostar em legítima defesa, antes tem o dever de tolerar tal situação. Não está legitimada por legítima defesa a agressão do ladrão sobre o seu perseguidor que intenta, pela força, recuperar as coisas roubadas. Recordem-se ainda os frequentes casos de legítima defesa putativa: se A vê que o seu carro está a ser deslocado do sítio em que o estacionara e reage ao que toma pelo furto do carro, quando na realidade do que se tratava era de acudir com ele a uma emergência, por ser o único meio de salvar uma vida, 145 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a intervenção na esfera jurídica de A, por não ser ilícita, não autoriza a legítima defesa, pois lhe falta um dos pressupostos do artigo 32º— mas poderá prevalecer-se do regime, que lhe é favorável, do artigo 16º, nºs 2 e 3. As relações cidadão / polícia podem também suscitar problemas nesta área, como quando se pretenda impor certos procedimentos relativos a provas de sangue ou a testes de alcoolémia ou se empregam cães polícias. IV. Requisitos da acção de defesa. Com a defesa do agredido converte-se o próprio agressor em vítima e o agredido em autor. Para ser legítima, a defesa há-de ser objectivamente necessária: "o modo e a dimensão da defesa estabelecem-se de acordo com o modo e a dimensão da agressão". O agredido pode defender-se com tudo o que seja necessário, mas só com o que for necessário. A defesa só será pois legítima se se apresentar como indispensável (unumgänglich), imprescindível (unerläßlich), actuando o defendente com os meios exigíveis para a salvaguarda de um interesse jurídico, portanto, com o meio menos gravoso para o agressor. O juízo sobre a adequação do meio defensivo depende do conjunto das circunstâncias (a "Kampflage") em que se desenrolam tanto a agressão como a acção de defesa, devendo ter-se especialmente em consideração a intensidade da agressão, a força e a perigosidade do agressor e as possibilidades de defesa do defendente: contra um agressor de 130 quilos, que bate repetidamente com a cabeça da vítima na capota do automóvel, pode o agredido defender-se à facada (BGHSt 27, 336). No caso do acórdão do STJ de 10 de Fevereiro de 1994, BMJ-434-286, o defendente, de 77 anos, repeliu uma agressão actual e ilícita (tiro de arma de fogo contra ameaças de agressão corporal, antecedidas de insultos), mas provou-se que o fez em situação de medo prolongado, convencido de que a vítima, homem forte, de 30 anos, o ia atacar, bem como a sua mulher, com mais de 90, na sua própria casa. “A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da forma de agir”. Cf. o acórdão do STJ de 4 de Novembro de 1993, referido pelo acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1999, BMJ-492-159. "O juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão, tem natureza ex ante, e nele deve ser avaliada objectivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo todavia 146 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. especial atenção as características pessoais do agressor (idade, compleição física, perigosidade), os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em contraposição com as características pessoais do defendente (o porte físico, a experiência em situações de confronto) e os instrumentos de defesa de que poderia lançar mão" (Figueiredo Dias, Textos, p. 185). Onde em princípio se rejeita o exemplo de Lucky Luke, que disparava mais rápido do que a sua própria sombra! Há situações em que é possível não usar logo a arma de fogo que está à mão, dando ao meio de defesa uma utilização gradual ou escalonada, podendo inclusivamente começar-se com uma ameaça verbal ou um tiro de aviso. Pode, no entanto, o defendente ver-se na necessidade de visar logo o agressor se com o aviso se perder tempo, piorando a situação de quem se defende ou tornando definitivamente impossível a defesa. Nesse caso, o disparo deverá ser dirigido a zonas do corpo do agressor que não sejam vitais: as pernas, o braço, etc. A fuga do defendente não tem qualquer influência na defesa necessária, fugir não é defender-se. Acontece também, por vezes, que há vários indivíduos simultaneamente em situação de legítima defesa. Se um deles pode, eficazmente, usar um meio menos gravoso, se o mais forte — por ex., um praticante de luta livre — tem à sua disposição o meio menos gravoso que é a defesa corporal, não deve o outro defendente, o mais fraco, usar a pistola que traz consigo. Finalmente, se houver ocasião de chamar a polícia, é isso que se deve fazer. Já anteriormente referimos a tendência para não admitir a legítima defesa (excluindo-a) contra agressões insignificantes, como no caso do furto das maçãs. Todavia, não será sinónimo de agressão insignificante a crassa desproporção dos bens, existindo esta, por ex., no caso do furtum usus ou mesmo no caso do furto da propriedade de um automóvel, mas em que o bem jurídico do agressor a ser lesado pela necessária acção de defesa é a substancial integridade física do ladrão ou mesmo, eventualmente, a sua vida. Agressão insignificante não é o equivalente de crassa desproporção. (Prof. Taipa de Carvalho, p. 487). Para o mesmo autor, não sendo a agressão dolosa e culposa intervirá, como também já se acentuou, um direito de necessidade defensivo: o interesse lesado pelo defendente não será então muito superior ao interesse defendido. As agressões de crianças, doentes mentais notórios e de pessoas manifestamente embriagadas terão assim um tratamento particularizado. Nos casos em que o agente pretende criar uma situação de legítima defesa para, impunemente, atingir o agressor, há quem entenda que, para lá da falta de vontade de defesa, não se verifica a própria necessidade de defesa — o direito entraria em contradição consigo mesmo se permitisse tais acções defensivas. Poderia sempre invocar-se o abuso do direito. Se a provocação não é intencional, mas apenas 147 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. negligente, deve-se evitar a legítima defesa agressiva. Mas do conceito de necessidade resulta, por último, que não está em causa uma proporcionalidade dos bens jurídicos — tanto a propriedade como o domicílio podem ser defendidos com os meios necessários para repelir a agressão, ainda que, nas concretas circunstâncias, o defendente deva servir- se, unicamente, do meio menos gravoso para a sustar. Não será adequada como acção de defesa a reacção de quem foi intencionalmente fechado numa cave e que aproveita para destruir as garrafas de vinho do proprietário. Na verdade, nenhuma relação existe entre a agressão e a apontada reacção de quem foi privado da sua liberdade. A defesa é necessária se e na medida em que, por um lado, é adequada ao afastamento da agressão e, por outro, representa o meio menos gravoso para o agressor. Saber se é necessária uma vontade de defesa foi objecto de larga controvérsia, por detrás da qual se encontravam, dum lado, os partidários da ilicitude objectiva, do outro, os da doutrina do ilícito pessoal. O conceito objectivista é definido pelo desvalor de resultado, mas o ilícito como desvalor de acção e com os elementos pessoais (subjectivos) que lhe estão associados passou a influenciar largos sectores da doutrina. Hoje em dia entende- se, predominantemente, que o ilícito é desvalor de resultado mas é também desvalor de acção e ambos têm o mesmo peso na sua conformação. Deste modo, se A, dolosamente, cometeu homicídio na pessoa de B a conduta só estará justificada se à situação de defesa e à acção de defesa se juntar o elemento subjectivo do tipo permissivo que é a vontade de defesa, pois só assim se afasta o desvalor de acção, i. e, a vontade de realização do crime. O acórdão do STJ de 19 de Janeiro de 1999, no BMJ-483-57, parece ser o exemplo de uma orientação pacífica no sentido de se exigir que o agredido aja com intenção de se defender de uma agressão — portanto, que o animus defendendi é requisito da legítima defesa. A defesa deve, portanto, ser subjectivamente conduzida pela vontade de defesa, não lhe bastam os critérios objectivos anteriormente assinalados. É necessário que o agente tenha consciência de que se encontra perante uma agressão a um bem jurídico próprio ou de terceiro, e que actue com animus defendendi, ou seja, com o intuito de preservar o bem jurídico ameaçado (cf. Figueiredo Dias, Legítima defesa, Pólis). Frequentemente, os autores distinguem entre a defesa de protecção e a agressiva, no primeiro caso, se, por 148 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ex., o defendente se limita a levantar ou a exibir a arma, fazendo ver ao adversário o que o espera. O defendente pode até evitar o ataque, escapando à agressão, ou pedir a ajuda de outrem, por ex., da polícia. A forma agressiva corresponde ao dito "a melhor defesa é o ataque". As situações têm a ver, naturalmente, com a necessidade de defesa. Voltaremos ao assunto a propósito da provocação intencional (pré-ordenada), nos casos em que o agente pretende criar uma situação de legítima defesa para, impunemente, lesar um bem do agressor. "Dado que a principal intenção do agente é, não defender-se, mas sim atacar o outro indivíduo, não se encontra satisfeito o indicado elemento subjectivo" (Figueiredo Dias). Já se viu que, nestes casos, a conduta deve considerar-se sempre ilícita. Outra questão liga-se com as consequências do "desconhecimento da situação objectiva justificante". De acordo com o artigo 38º, nº 4, Código Penal é punível, com a pena aplicável à tentativa, o facto praticado sem conhecimento da existência de consentimento do ofendido susceptível de excluir a responsabilidade criminal. Na sua interpretação corrente, a solução do Código aplica-se ao consentimento e em todos os outros casos em que o agente actua sem conhecer uma situação justificadora realmente existente. Segundo o Prof. Figueiredo Dias, entrar-se-ia em contradição normativa se o Código, que aceita em princípio a punibilidade da tentativa impossível, “deixasse de punir, também a título de tentativa, aquele que actuou numa situação efectivamente justificante, mas sem como tal a conhecer” (Pressupostos da punição, p. 61). A solução é correntemente aceite pelos autores alemães. Cf., por todos, Kühl, StrafR, p. 167. A situação contrária, a de alguém agir com vontade de defesa sem que se verifiquem os pressupostos objectivos da legítima defesa, leva, como já se viu, à figura da legítima defesa putativa. Também a jurisprudência aponta como requisitos da legítima defesa: — A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. — Agressão essa que deve ser actual no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente. — E ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter o direito de o fazer, não se exigindo que ele actue com dolo, com culpa ou mesmo que seja imputável. — Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão, paralisando a actuação do agressor aqui se incluindo a impossibilidade de recorrer à força pública. —Animus defendendi, ou seja o intuito de defesa por parte do defendente. Acentua-se que não é requisito da legítima defesa a proporcionalidade entre o bem agredido e o defendido devendo entender-se não ser exigível do defendente rápida e minuciosa valoração dos bens em jogo; os casos de manifesta e grande desproporção entre o bem agredido e o defendido podendo ser resolvidos através do abuso de direito. Igualmente se acentua a necessidade racional do meio empregado, requisito este que, não devendo ser afastado, deve antes ser visto sob a perspectiva do excesso de legítima defesa. (Cf., entre 149 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. outros, os acórdãos do STJ de 5 de Junho de 1991, BMJ-408-180; e de 19 de Julho de 1992, BMJ-419- 589). CASO nº 23-A: A, que foi contactado na sua residência por um vigilante nocturno de uma escola, pedindo-lhe auxílio em virtude de a escola estar a ser assaltada por quatro indivíduos e não ter conseguido contactar as autoridades policiais e que dispara um tiro sobre um dos assaltantes que perseguia, o qual o enfrenta empunhando uma faca - tiro que vem a ser a causa determinante da morte do assaltante - actua no exercício de um direito - a legítima defesa e, por isso, não pode ser criminalmente punido (ac. do STJ de 5 de Junho de 1991, BMJ-408-180). CASO nº 23-B. Agiu em legítima defesa o agente policial trajando à civil que pretendendo interferir em defesa de um indivíduo que estava a ser agredido por outros três, foi por estes rodeado em disposição de o agredirem, um deles empunhando uma faca, e recuou, e disparou sem êxito um tiro de revólver para intimidação e, em estado de perturbação, disparou outro tiro contra a perna esquerda daquele que empunhava a faca, prostrando-o no solo e provocando-lhe lesões determinantes de 30 dias de doença. Mas já não agiu em legítima defesa quando disparou o terceiro tiro contra a região malar de outro dos mencionados indivíduos que tinha na mão um rádio portátil e distava um metro e meio, provocando-lhe a morte, por não ter o propósito de defesa nem subsistir o perigo de agressão iminente (acórdão do STJ de 20 de Novembro de 1991, BMJ-411-244). Um dos problemas mais relevantes do direito de justificação é o de saber se se pode salvar um simples bem patrimonial (com excepção, naturalmente, dos de valor insignificante) à custa do sacrifício de uma vida humana ou de uma grave lesão da integridade física. A lei ordinária portuguesa não impõe quaisquer limites à legítima defesa, em função da natureza —patrimonial ou não patrimonial— dos bens jurídicos protegidos. Cf. agora, na área jurisprudencial, o acórdão do STJ de 10 de Outubro de 1996, BMJ-460-359. A proporcionalidade entre os valores dos bens agredido e defendido não é requisito imposto pela disciplina jurídica da legítima defesa no nosso Direito e, por isso, em princípio, não pode sustentar-se que o valor do património haja de ceder perante o valor da integridade física ou da vida. Isto, sem prejuízo de exclusão do âmbito da legítima defesa das hipóteses em que, atentos os critérios ético-sociais reinantes, se verifique uma manifesta e gritante desproporção dos interesses contrapostos. Acórdão do STJ de 4 de Novembro de 1998, proc. nº 892/98. 150 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. V. Excesso de legítima defesa — excesso intensivo: artigos 32º e 33º. Manipulação consciente da situação? CASO nº 23-C: Os arguidos A e B viveram durante algum tempo no estrangeiro, onde os pais tinham estado emigrados, e quando voltaram para Portugal propuseram-se explorar uma casa de passe num dos bairros de Lisboa. S, o chefe dum grupo de jovens “cabeças rapadas”, tinha-se proposto combater o comércio da prostituição naquela zona. Decidiu, por isso, com os seus seguidores, atacar a casa de passe dos arguidos por volta da meia noite de 31 de Maio de 1991. As ordens eram para inutilizar as instalações e empregar a força contra quem se lhes opusesse. Os arguidos souberam destas intenções da parte de tarde desse mesmo dia, quando dois indivíduos do grupo extremista lhes vieram propor que, se os arguidos pagassem à volta de cinco mil contos, nada aconteceria. A e B recusaram-se a pagar e decidiram fazer frente aos atacantes, sem nada comunicarem à polícia. Com isso quiseram deixar claro que não consentiam que se lhes extorquisse dinheiro nem se deixavam influenciar por acções violentas. A polícia, se tivesse sido informada, teria comparecido no local com forças suficientes para frustrar qualquer ataque. Por volta das 23h30, A e B aperceberam-se de que a uns 150 metros do local onde se encontravam se juntavam uns 30 a 50 jovens, armados de paus, matracas e chicotes. Para lhes fazer ver que não tinham qualquer hipótese de atacar a casa de passe, A e B avançaram para o ajuntamento, transportando-se no seu automóvel. O arguido A levava consigo uma espingarda carregada e B uma pistola de gases. Já perto dos jovens, A saiu do carro, mostrou-se com a arma empunhada e convidou os do grupo a "desaparecerem" e a deixá-los em paz. Ao mesmo tempo ia apontando a arma para os jovens que na rua o rodeavam a uma distância entre 10 e 50 metros. Os jovens puseram-se em fuga e acolheram-se atrás dos carros, das árvores e nas entradas das casas que por ali havia. A, convencido de que tinha os antagonistas em respeito, dirigiu-se, de volta ao carro, para dali se retirar com B. Foi então que S, o chefe dos rapazes, saiu do seu próprio automóvel, que ficara estacionado à beira da estrada, e com as mãos no ar, em lentidão provocadora, se foi aproximando até 6 ou 8 metros de A. Quando este lhe apontou a arma, S gritou-lhe: "dispara, dispara, sacana! — vê se te atreves!". A ficou alterado por causa da repentina mudança dos acontecimentos e foi recuando, com a arma pronta a disparar, de volta para o carro. Quando já estava quase sentado ao volante da viatura, o S aproximou-se até cerca de um metro, e segurou com a mão direita na porta do carro do lado do condutor. O tribunal não deu como não provado que o S levava uma navalha na mão, pronta a usar, com a lâmina à vista. Entretanto, alguns dos rapazes que se tinham escondido voltaram a mostrar-se e aproximaram-se até cerca de 6 metros do carro dos arguidos. Foi então que B, para evitar o ataque que estava a todas as luzes iminente, lançou gás na direcção de S, através da porta aberta do lado do condutor. S, para se livrar do gás, desviou a cara para a direita. Nesse momento, A disparou, a pelo menos meio metro de distância da cabeça de S, aceitando a morte deste como consequência dessa sua actuação. S foi atingido mortalmente atrás do pavilhão auricular direito. (Adaptação do texto comentado por Bernd Müller-Christmann, Überschreiten der Notwehr - BGHSt 39, 133, in JuS 1994, p. 649. A decisão apareceu noutras publicações, igualmente com comentários, nomeadamente, de Roxin, NStZ 1993, p. 335, e Arzt, JZ 1994, p. 314; cf. também Fritjof Haft / Jörg Eisele, Jura 2000, p. 313). 151 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A questão que aqui se levanta prende-se com a aplicação do artigo 33º: 1 — Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada. 2 — O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis. No caso nº 23-C está em causa o chamado excesso intensivo de legítima defesa — o agente, numa situação de legítima defesa, perante a agressão iminente de que era vítima, utilizou um meio não necessário para repelir a agressão, i. é, excedeu-se nos meios necessários para a defesa. O artigo 33º aplica-se a situações destas. O defendente actua também ilicitamente se ultrapassa os limites temporais da legítima defesa, se se defende em caso de ataque que já não seja actual ou tenha deixado de o ser (excesso extensivo de legítima defesa). O defendente excede, conscientemente, os limites temporais da legítima defesa se, por ex., estando o agressor já no chão, neutralizado, o defendente continua a bater-lhe, dando-lhe repetidos pontapés. Neste caso, pode acontecer que o defendente tenha consciência de que está a agredir o seu antagonista — o agressor inicial — e que o faz ilicitamente, sem qualquer justificação, podendo a sua pena, eventualmente, ser atenuada nos termos do artigo 73º, nº 1. Se o defendente reage cedo demais, quando a agressão ainda não é actual, mas ele a tem como tal, ou supõe erroneamente que a sua conduta ainda é justificada, autorizada pelo direito, por ex., pensa que o seu agressor, apesar de estar por terra, ainda está em condições de voltar a agredi-lo, então tratar-se-á de uma hipótese a resolver em sede de erro (artigos 16º, nº 2). Certo é que, sempre que se trate de uma falsa representação dos pressupostos objectivos necessários à legítima defesa estaremos perante uma legítima defesa putativa, a que são aplicáveis os princípios gerais sobre o erro. Como já anteriormente vimos, a defesa é necessária se e na medida em que, por um lado, é adequada ao afastamento da agressão e, por outro, representa o meio menos gravoso para o agressor. Os casos mais frequentes de excesso têm a ver com a utilização de um meio de defesa que, "sendo adequado para neutralizar a agressão, é, porém, claramente mais danoso (para o agressor) do que um outro de que o agredido ou terceiro dispunha e que também era, previsivelmente, adequado" (Prof. Taipa de Carvalho). Por ex., durante 152 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. uma discussão por razões de trânsito, os dois condutores saem dos respectivos carros e entram a discutir; a dado passo, A começa a esmurrar o seu antagonista e B saca do revólver que sempre o acompanha, dispara-o na cabeça de A e provoca-lhe a morte, a qual poderia ter sido evitada se B se tivesse limitado a defender-se a soco ou a visar as pernas do agressor. Note-se que a decisão sobre a existência ou não de excesso "não pode deixar de atender á globalidade das circunstâncias concretas em que o agredido se encontra, nomeadamente, a situação de surpresa ou de perturbação que a agressão normalmente constitui, a espécie de agressor e os meios agressivos, de que dispõe, bem como as capacidades e os meios de defesa de que o agredido se pode socorrer". (Cf. Taipa de Carvalho, p. 346). De qualquer forma, o artigo 33º, havendo excesso de legítima defesa, e independentemente de se tratar de um excesso asténico (perturbação, medo, susto) ou esténico (cólera, ira), prevê a possibilidade de atenuação especial da pena. Deve no entanto notar-se que, em caso de excesso de legítima defesa, o facto é sempre ilícito (nº 1). O agente só não será punido (nº 2) se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis. É difícil explicar, do ponto de vista da “culpa”, que o antigo § 53, 3, do StGB (comoção, medo ou susto) e o novo § 33 (perturbação, medo ou susto) só concedam a exclusão da responsabilidade nos estados anímicos asténicos, mas não nos esténicos, como a cólera ou a ira, pois tanto se compreende uma reacção como a outra. Contudo, a diferença justifica-se por critérios de prevenção. Com efeito, geralmente, os estados anímicos agressivos são muito mais perigosos e por isso há que evitá-los por todos os meios (e portanto também ao preço da sanção) no interesse da conservação dos bens jurídicos. Os estados de “perturbação, medo ou susto” não provocam a imitação e por isso podem ser tratados com maior benignidade. Claus Roxin, Culpabilidade y prevencion en Derecho Penal, Madrid, 1981, p. 80. Compreende-se, porém, que a perturbação, medo ou susto causados pela agressão impeçam a justa avaliação ou ponderação da necessidade dos meios para a defesa, em termos de tornar não censurável o defendente pelo seu excesso; estar-se-á então, pois, em face de um caso de não exigibilidade e, portanto, de exclusão da culpa. Não deve todavia entender-se que os efeitos do referido estado de afecto asténico sejam automáticos, como pretende Maurach, mas haverá antes que relacioná-los sempre com a teoria da falta de culpa, pelo caminho da não exigibilidade. Tratando-se, por outro lado, de estados de afecto esténico (como cólera, furor, desejo de luta, etc.), o seu efeito não deve ser já o de excluir a culpa. Igualmente não deverá considerar-se razão para excluir a culpa um excesso nos meios conscientemente dirigido v. g. ao castigo do primeiro agressor. Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, p. 49. No caso nº 23-C, pode pôr-se ainda a questão de saber se A intentou criar uma situação de legítima defesa para, impunemente, atingir o agressor S (agressão pré- 153 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ordenadamente provocada). Uma vez que a principal intenção do agente é então a de atacar o outro indivíduo, não se encontra satisfeito o elemento subjectivo da legítima defesa, a vontade de defesa. Ademais, a defesa não será então necessária por também se não verificar a necessidade de afirmação da ordem jurídica — não há uma defesa do lícito perante o ilícito. Nesse caso, ficaria excluída a legítima defesa e a aplicação do regime do artigo 32º. Do mesmo modo, também se não poderia aplicar o regime do artigo 33º, que supõe a afirmação da legítima defesa. Se se considerar que a provocação não foi intencional, a legítima defesa não estará excluída. Os dados postos à nossa disposição não permitem porém concluir que A tinha qualquer hipótese de evitar a legítima defesa agressiva. Mas a defesa de A, tal como se processou, não representa, de modo nenhum, o meio menos gravoso para o agressor. A, em vez de visar e atirar na cabeça do antagonista, para conseguir neutralizá-lo, poderia tê-lo visado noutra parte do corpo, sem lhe provocar a morte. Nesta perspectiva, face ao excesso de legítima defesa (artigos 32º e 33º, nº 1), a morte de S é ilícita (artigo 131º), não se encontra justificada, mas a pena pode ser especialmente atenuada (artigo 72º, nºs 1 e 2) perante a provocação injusta e a circunstância de A ter actuado sob a influência de ameaça grave. Em último termo, se se concluir que o excesso na actuação de A resultou de perturbação, medo ou susto, o mesmo não será punido, mas para tanto é necessário que o defendente não deva ser censurado pelo seu excesso. O tratamento da provocação intencional tem tido as mais variadas respostas na doutrina (cf. Hillenkamp, 32 Probleme, p. 16 e ss.): i) Há quem entenda que a acção de defesa é justificada por legítima defesa mesmo quando o defendente provocou intencionalmente a situação. Argumenta-se com a ideia de que o direito não tem que ceder perante o ilícito e que, portanto, o provocador não perde o direito ao exercício da defesa, na medida em que o faz enquanto representante da ordem jurídica. Outros concluem igualmente pelo efeito eximente se o princípio da auto-defesa não se puder impor de outro modo, especialmente se o sujeito não se puder esquivar à agressão. Por sua vez, os partidários da doutrina da actio illicita in causa (aiic) entendem que a provocação não faz desaparecer o direito de defesa e que, portanto, a defesa necessária se justifica — todavia, o "defendente" será responsabilizado pela causação do facto anterior no tempo (actio praecedens), intencionalmente dirigido à execução da acção típica que posteriormente levou a cabo. ii) Para a teoria do abuso do direito, quem tiver provocado intencionalmente uma agressão, para assim poder lesar outrem a pretexto de legítima defesa, movimenta-se a descoberto da lei, agindo sem a 154 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. "legitimação supra-pessoal" (Roxin) de que carece para exercitar o seu papel de representante da ordem jurídica. Noutro entendimento, o provocador renuncia à protecção jurídica, de forma que o seu contra- ataque não integra qualquer defesa. Quem, de antemão, inclui nos seus planos a agressão do adversário renuncia, de forma inequívoca, à protecção de um bem jurídico, agindo sem vontade de defesa. VI. Interpretação corrente do artigo 32º. Onde se fala do abuso do direito e da crassa desproporção do significado da agressão e da defesa. CASO nº 23-D: A estava desde o começo da noite de guarda a umas árvores de fruto numa sua pequena propriedade. Acompanhava-o um pequeno cão e tinha consigo uma espingarda de caça. Pela manhã, viu dois homens que subtraíam fruta. A chamou-os e os homens puseram-se em fuga, levando consigo a fruta, uma meia dúzia de maçãs. Não responderam aos avisos que A lhes fazia, ameaçando-os com a arma, para pararem. A não viu outra possibilidade de recuperar a fruta senão disparar um tiro. Ao disparar, A ofendeu corporalmente um dos homens, de forma grave. Considere-se, com ligeira variante, que A era um inválido que utilizava uma cadeira de rodas. A questão que se coloca é a de saber se A pode ser responsabilizado pela prática, em autoria material, de um crime do artigo 144º (ofensa à integridade física grave). Não há dúvida que houve uma lesão grave provocada com a arma. Pode entender-se que A podia recuperar a fruta dos ladrões mesmo com violência, por via da legítima defesa (artigos 31º, nºs 1 e 2, a), e 32º), já que no caso concreto não tinha outro meio senão o uso da arma. Pode todavia perguntar-se se existia uma agressão actual. Numa certa perspectiva, os ladrões estavam em fuga e a agressão terminara (este não será, contudo, o entendimento corrente, pois os dois homens iam a fugir e levavam consigo a fruta, que ainda não tinham em pleno sossego). Por outro lado: seria ainda admissível este tipo de defesa? Seria relevante o valor da coisa furtada? De muitos lados, a limitar a necessidade de defesa, exige-se que não haja uma sensível (escandalosa, crassa) desproporção entre os interesses ofendidos pela agressão e a defesa, negando-se a defesa a qualquer preço. Na medida em que a defesa constitua resposta proporcionada a uma agressão injusta não há dúvida de que, seja qual for a atitude anímica que acompanha a vontade de defesa, existe autêntica causa de justificação que legitima o acto realizado. Contudo, a importância e a transcendência contidas na concessão a uma pessoa de direitos que inclusivamente se negam ao Estado, como, por exemplo, o de matar outra pessoa, impõem a necessidade de limitar esse direito 155 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. individual a certas situações realmente excepcionais (Muñoz Conde, Derecho Penal, PG, 1993, p. 292). Com efeito, se é certo que a legítima defesa visa salvaguardar interesses individuais e com isso a salvaguarda geral do direito, nem sempre estas necessidades individuais e comunitárias têm que ser valoradas de igual maneira, podendo haver casos em que se exclua a protecção individual ou a de um interesse geral, limitando-se ou excluindo-se o direito de legítima defesa (rectius, restringindo, em certos casos, a possibilidade de defesa ou condicionando-a à inevitabilidade da agressão: F. Palma, p. 835). Também entre nós se anotam os recentes ventos da renovação, que pode fazer-se caber sem esforço no rótulo geral das limitações ético-sociais do direito de legítima defesa (Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, in Jornadas, p. 59). Nelas avulta, como já se disse, a recusa de legitimidade da defesa em caso de escandalosa desproporção entre o bem jurídico defendido e o lesado pela defesa, mas também a limitação dos bens que podem ser defendidos à custa da morte do agressor. Invoca-se o artigo 2 II a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o "abuso de direito" como limite da legítima defesa. Uma parte da doutrina entende que a morte de uma pessoa só se justifica para defesa da vida, da integridade física e da liberdade, mas nunca para a defesa de coisas ou de bens patrimoniais. O artigo 2 II a) da Convenção ("ninguém pode ser intencionalmente privado da vida, excepto para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal") dirige-se, no entanto, unicamente às relações Estado-cidadão. Os particulares, que não são destinatários da Convenção, só em casos excepcionais é que podem defender os seus bens com o recurso à força das armas. Os campos problemáticos estendem-se às agressões realizadas por inimputáveis (pode haver legítima defesa, mas serão frequentes as limitações da necessidade da defesa, impondo-se antes uma "defesa de protecção"); às agressões provocadas por acto ilícito do agredido; às agressões associadas a uma certa relação especial de garantia (como, por ex., entre cônjuges); e às agressões leves, proporcionalmente inofensivas (Eser, Strafrecht I, 4ª ed., 1992, p. 122; C. Valdágua, p. 31). 156 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Estes grupos de situações em que a legítima defesa está sujeita a limitações "ético- sociais" foram especialmente eleitos pela jurisprudência e literatura alemãs. O Prof. Welzel (Das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., p. 87), por exemplo, entendia que não era admissível legítima defesa no caso de absoluta desproporção, relacionando a lesão, não com o bem jurídico ameaçado, mas com a irrelevância criminal da agressão. A jurisprudência proclama, com frequência, que não será necessário estabelecer uma relação entre o bem jurídico agredido e o lesado pela defesa; contudo, uma defesa em que o dano causado seja desproporcionado relativamente ao dano ocasionado pela agressão constitui um abuso de direito, e é, portanto, antijurídica. Na nossa hipótese, caso nº 23-D, a agressão era actual. Os ladrões estavam em fuga e levavam consigo a fruta subtraída, que não largaram. O furto não estava exaurido ou materialmente consumado, a presa não se encontrava em pleno sossego. Será caso de ter presente toda a teoria da permanência da consumação, "que evidentemente permitirá sempre o exercício da legítima defesa” (Prof. Eduardo Correia; Antolisei, p. 257). Também será difícil contestar os restantes requisitos da legítima defesa, sobretudo a necessidade do tiro como a única possibilidade de imediatamente pôr termo à agressão. Ainda assim, face à extrema (crassa) desproporção entre o valor da fruta defendida e o perigo para a vida, provocado pelo disparo, seria de denegar a legítima defesa de A ? Em que termos? Na interpretação corrente do artigo 32º do Código Penal continua a entender-se, como já repetidamente se acentuou, que o defendente tem o direito de praticar todos os actos de defesa idóneos para repelir a agressão, desde que lhe não seja possível recorrer a outros, também idóneos, mas menos gravosos para o agressor, não estando sujeito a quaisquer limitações decorrentes da comparação dos bens jurídicos, interesses ou prejuízos em causa (C. Valdágua, p. 54). O Prof. Figueiredo Dias (Legítima defesa, cit.) escreve que "a L.D., enquanto causa de exclusão da ilicitude, atribui ao agente um autêntico "direito de defesa", cujo exercício, à semelhança de qualquer outro direito subjectivo, se tem de submeter aos limites do abuso de direito, regulado no artigo 334º do Código Civil. Neste preceito consagra-se, ao estilo de cláusula geral, um princípio fundamental do direito, que ultrapassa o domínio privatístico do diploma em que se insere. De acordo com ele, 157 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. também a L. D. encontraria determinados limites "[...] impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito", circunstância que levaria a excluir do seu âmbito as hipóteses em que, atentos os critérios ético-sociais reinantes, se verificasse uma manifesta e gritante desproporção dos interesses contrapostos". Existe hoje unanimidade sobre a ilegitimidade da defesa abusiva. "A necessidade da defesa deve ser negada sempre que se verifique uma insuportável (do ponto de vista jurídico) relação de desproporção entre ela e a agressão: uma defesa notoriamente excessiva e, nesta acepção, abusiva, não pode constituir simultaneamente defesa necessária". Prof. Figueiredo Dias, Textos, p. 199. Certos aspectos inovadores constituem [em certo sentido], ao nível da legítima defesa, "reflexo do trânsito de uma concepção marcadamente individualista para uma mundividência social ou solidarista, que se observa no âmbito criminal" (Prof. Figueiredo Dias). Os autores alemães têm, com efeito, procurado introduzir limitações de sentido ético-social em atenção à solidariedade, à consideração para com o atacante, sem que, todavia, as opiniões sejam uniformes. Deve aliás notar-se que a solidariedade é um “corpo estranho” (Naucke, StrafR., p. 298 e ss.; Kühl, StrafR., p. 179) ao direito penal, ainda que, em alguns lugares, se não excluam os correspondentes deveres. Recorde-se o disposto no artigo 200º e os fundamentos do estado de necessidade justificante (artigo 34º), que apontam para a solidariedade devida a quem se encontra em situação de necessidade. Em sentido alargado, nas tentativas de limitação ético-social argumenta-se com os correspondentes princípios legitimadores: a tutela dos interesses individuais ameaçados pela agressão e a salvaguarda da ordem jurídica, registando-se situações que exigem o recuo de ambos os princípios e mesmo a exclusão da legítima defesa. No caso nº 23-D há uma crassa desproporção do significado da agressão e da defesa. Face à diminuta relevância da agressão, expressa pelo insignificante valor da fruta subtraída (uma meia dúzia de maçãs), e ao também diminuto prejuízo patrimonial do ameaçado, a medida defensiva tão drasticamente adoptada não se justificava nem por uma ideia de defesa nem pelo princípio da salvaguarda geral do direito, porquanto era 158 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. abusiva. Mas era abusiva justamente por via dessa crassa desproporção, ainda que no caso tivesse sido utilizado o meio necessário. A é autor material de um crime do artigo 144º do Código Penal. Estão reunidos os correspondentes elementos objectivos e subjectivos. Não opera a justificação por legítima defesa nem qualquer outra. Mas não se exclui que a pena possa ser especialmente atenuada nos termos do artigo 72º, nºs 1 e 2. VII. Em jeito de balanço. Em jeito de balanço, poderemos dizer o seguinte. i) Agressões não culposas (doentes mentais, crianças, pessoas agindo em erro objectivamente inevitável ou em estado de necessidade desculpante) — não põem seriamente em causa a validade da ordem jurídica, ficando a legítima defesa limitada à sua função de protecção individual. Deste modo, se lhe for possível, deve o defendente evitar o agressor ou procurar a ajuda da autoridade, se não for possível, deverá orientar-se ainda na linha de uma defesa de protecção, através duma resistência dissuasora e suportando o risco de pequenos danos. Todavia, conserva o seu direito de legítima defesa, protegendo-se no âmbito do necessário, segundo uns (Roxin, p. 211). Outra solução passa pelo recurso ao estado de necessidade defensivo (Jakobs; Frister, GA 1988, p. 305; e os restantes autores referidos antes), ou pelo estado de necessidade desculpante, nomeadamente, nas situações em que um indivíduo tresloucado (Amok, em alemão) “decide” matar quantos encontra até ser abatido. A palavra Amok tem origem nas línguas malaias. Pode corresponder a uma modalidade de loucura ou uma forma de suicídio. "O que está em causa, decerto, é o surto brutal de uma agressividade que foi longamente recalcada e que em certo momento se tornou incontrolável" (L. Knoll, Dicionário de psicologia prática, p. 21). Os nossos autores, como Tomé Pires e Fernão Mendes Pinto referem-se abundantemente à utilização de amoucos nos exércitos do mundo malaio. A forma portuguesa amouco parece resultar do cruzamento do malaio amok com o termo vernáculo mouco (A abertura do Mundo, vol. II, p. 217). Neste âmbito, os casos mais facilmente reconhecíveis são os de ataques à propriedade feitos por crianças ou por doentes mentais notórios, ou as palavras com que ofendem a honra de outrem. Os casos de erro serão mais difíceis de detectar, como quando alguém leva consigo o guarda chuva alheio, convencido de que é o seu. O que então se impõe é o 159 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. esclarecimento da confusão. Há, porém, quem exclua deste grupo os indivíduos embriagados, que culposamente se colocaram nesse estado. ii) Nos casos de sensível desproporção entre os interesses ofendidos pela agressão e pela defesa (face à modalidade dos bens jurídicos e a medida da respectiva lesão) não é admissível legítima defesa, já que então se trataria de abuso do direito — não se mata a tiro de espingarda o ladrão que vai a fugir com umas maçãs de pouco mais de dois euros. Os autores (por ex., Ebert, p. 72) advertem, no entanto, que o facto de se admitir este tipo de limitações não equivale a acolher, em termos gerais, o critério da proporcionalidade da legítima defesa. iii) Nas relações entre pessoas muito chegadas (por ex., entre cônjuges), nomeadamente, com relações de garantia, certos autores introduzem igualmente sensíveis limitações na legítima defesa. A atenção para com as outras pessoas e o ideal da solidariedade sobrepõem-se ao interesse da defesa da ordem jurídica. iv) Nos casos de provocação, dolosa ou intencional, em que o agressor se pretende acolher ao manto da legítima defesa para assegurar impunidade, existe, claramente, um abuso do direito e o agente será punido por crime doloso. Já acima se deu conta de outras justificações para negar a legítima defesa em casos destes. v) Se a provocação não for dolosa, por ex., se alguém causa uma agressão com negligência consciente, se no hotel abre a porta errada, ou se, na condução, por falta de consideração, põe repetidamente em perigo a vida de um peão, a legítima defesa fica limitada, em atenção à função de protecção de interesses individuais, colocando-se, nomeadamente, a hipótese de evitar a legítima defesa agressiva. Também aqui certos autores consideram, por último, as regras do estado de necessidade defensivo e de situações de necessidade “análogas” ao estado de necessidade justificante. "O revide a um ataque passado é represália ou vingança. Jamais legítima defesa." Paulo José da Costa Jr., p. 60. CASO nº 23-I: Criação propositada da aparência de uma situação de legítima defesa. Num café duma vila beirã, houve uma escaramuça inicial entre A e B, provocada por este: logo após a entrada do A no café, o B insistiu em humilhar e agredir o seu antagonista, dizendo-lhe, inclusivamente, “Ah, ladrão, que te hei-de matar”, ao que o outro respondeu: “Se queres matar-me, mata-me”. Pouco depois, o A voltou ao café, pediu água quente para descongelar o pára-brisas do carro, regressou ali para 160 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. devolver a garrafa vazia e pediu uma cerveja, tendo permanecido no interior do café até que este fechou e todos saíram. O A foi à frente, o B atrás e, saindo quase ao mesmo tempo, dirigiram-se cada um para os respectivos carros, estacionados do outro lado da rua. O B, que se encontrava manifestamente embriagado, foi ao seu carro donde retirou uma bengala. O A retirou, por sua vez, um revólver do seu carro. O B então desferiu uma bengalada na cabeça do outro e o A, cambaleante, em resposta, efectuou um disparou com o revólver, atingindo o B numa parte não apurada do corpo. Por causa da bengalada, o A veio a cair do outro lado da estrada, tendo sido seguido pelo B, que o pretendia agredir pela segunda vez com a bengala. Receando ser de novo atingido, o A efectuou mais quatro disparos. Os cinco tiros atingiram o B, designadamente no tórax e no abdómen, tendo um deles atingido órgãos vitais, provocando a morte do B como causa directa e necessária. O A agiu voluntária, livre e conscientemente, com o propósito de matar o B. Uma vez que A deu vários tiros na pessoa de B fica desde logo comprometido com a tipicidade do artigo 131º. A disparou e B morreu. A morte foi produzida pelos tiros disparados por A. Este agiu dolosamente, com conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito indicado. A sabia que matava B (outra pessoa) com os tiros e quis isso mesmo. Trata-se agora de saber se se encontra presente qualquer causa de justificação ou de desculpação. O Tribunal de Trancoso condenou A como autor material de um crime de homicídio com atenuação especial da pena (artigos 72º, nºs 1 e 2, alínea b), 73º, nº 1, alíneas a) e b), e 131º) na pena de 5 anos de prisão. O A recorreu, desde logo por entender que agiu em legítima defesa. Argumenta ter praticado o facto como meio necessário para evitar a sua morte, intentando repelir a agressão que se iniciara e era actual e ilícita. Além disso, quis defender-se e a existência de vários tiros não retira o animus defendendi, pois um homem médio não tem tempo para pensar, após levar uma arrochada na cabeça que o atira à distância. O Supremo (acórdão de 7 de Dezembro de 1999, BMJ-492-159, relator Conselheiro Martins Ramires) entendeu que se não configura “situação de legítima defesa”, pois o que existe é a propositada criação, pelo A, da “aparência de uma situação de legítima defesa”. O A andou a entrar e a sair do café; entretanto, o B, que se encontrava com uma elevada taxa de alcoolémia no sangue, permanecera sempre ali e não há referência a que se tivesse intrometido de novo com o A, apesar daquelas idas e voltas deste, e só saiu quando saiu toda a gente, incluindo o A. Porque não foi o A embora enquanto o B estava no café, sabendo-se (porque também ficou provado) que este era pessoa conflituosa? Cá fora, o A podia ter-se metido na viatura e partido, ma optou por aguardar que o B estivesse armado com a bengala para, munido do revólver e empunhando-o em direcção àquele, se dirigir para a vítima, encurtando assim a distância entre os dois de modo a instigar o B a desferir-lhe a bengalada e a poder ser por ela atingido, em vez de o intimidar com o revólver, mantendo-se fora do alcance da bengala manejada pelo B. 161 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Não pode por isso deixar de concluir-se, como se fez no acórdão do Supremo, que o A, conhecedor do temperamento conflituoso e agressivo do B, quis tirar desforço da humilhação que este lhe infligira — e provocou deliberadamente uma situação objectiva de legítima defesa, para deste modo alcançar, por meio ínvio, a impunidade de um ataque que fez desencadear propositadamente. Não há assim legítima defesa. E porque não há legítima defesa, também se não configura excesso de legítima defesa, porque este pressupõe a existência de uma situação autêntica de legítima defesa a que se responde com excessos dos meios empregados. VIII. Outras indicações de leitura • Sobre movimentos alternativos ao monopólio estatal da força (empresas privadas de segurança, milícias de bairro, movimento do vigilantism nos Estados Unidos): cf. a monografia de Iglesias Río adiante referida, nomeadamente, p. 282 e ss. • Artigo 151º, nº 2, do Código Penal: A participação em rixa não é punível quando for determinada por motivo não censurável, nomeadamente quando visar reagir contra um ataque, defender outrem ou separar os contendores. • Decreto-Lei nº 457/99, de 5 de Novembro de 1999, aprova o regime de utilização de armas de fogo e explosivos pelas forças e serviços de segurança. De acordo com os artigos 2º, nº 1, e 3º, nº 2, "o recurso a arma de fogo só é permitido em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias, só sendo de admitir o seu uso contra pessoas quando tal se revele necessário para repelir agressões que constituam um perigo iminente de morte ou ofensa grave que ameace vidas humanas." • Direito de legítima defesa jurídico-civil (art. 337º do Código Civil): cf. Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal, 2001, p. 206 e ss. • Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de Outubro de 2001, CJ ano XXVI 2001, tomo IV, p. 24: acção directa — artigo 336º do Código Civil. • Acórdão da Relação de Coimbra de 17 de Setembro de 2003, CJ 2003, tomo IV, p. 39: legítima defesa, agressões insignificantes ou irrelevantes (puxar as barbas). • Acórdão da Relação do Porto de 17 de Março de 1999, CJ, 1999, tomo II, p. 220: pressuposto da "necessidade" da acção directa. • Acórdão do STJ de 10 de Dezembro de 1998, processo nº 1084/98: sendo a matéria de facto perfeitamente elucidativa de que o disparo efectuado pelo arguido teve lugar quando já havia terminado a agressão de que tinha sido vítima, bem como de que a sua conduta se ficou a dever a uma mera atitude de desforço, inexistindo actualidade da agressão ou animus defendendi, inexiste legítima defesa ou o seu excesso. 162 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do STJ de 12 de Junho de 1997, BMJ-468-129: agente que, para pôr termo a uma discussão a soco e a pontapé, dispara três vezes uma pistola para uma zona vital do corpo do agressor, a uma distância não superior a 1 metro: o acto não é praticado em LD nem com excesso de LD, é um crime de homicídio voluntário simples. • Acórdão do STJ de 16 de Janeiro de 1990, CJ, 1990, tomo I, p. 13: medida da pena aplicável ao crime de homicídio voluntário tentado, cometido com excesso de legítima defesa: atenuação especial do artigo 33º, nº 1, e o disposto no artigo 23º, nº 2, para a punição do crime tentado. • Acórdão do STJ de 19 de Março de 1998, Processo nº 1413/97 - 3.ª Secção: A chamada "legítima defesa putativa" e o excesso de legítima defesa não se confundem: A primeira, traduz-se na errónea suposição de que se verificam, no caso concreto, os pressupostos da defesa: a existência de uma agressão actual e ilícita. A «perturbação, medo ou susto não censuráveis» de que fala o n.º 2, do artº 33, do CP, respeita ao «excesso dos meios empregados em legítima defesa», isto é, aos requisitos da legitimidade da defesa: necessidade dos meios utilizados para repelir a agressão. Uma coisa é o erro sobre a existência de uma agressão actual e ilícita no qual o agente desencadeia a defesa (legítima defesa putativa), e outra distinta, a irracionalidade, imoderação ou falta de temperança nos meios empregues na defesa, resultantes do estado afectivo (perturbação ou medo) com que o agente actua. • Acórdão do STJ de 19 de Novembro de 1998, CJ VI (1998), tomo III, p. 221: tendo a acção do arguido ocorrido após ter terminado a agressão de que foi vítima, não existe legítima defesa e, não existindo esta, não pode falar-se em excesso de legítima defesa. • Acórdão do STJ de 21 de Janeiro de 1998, BMJ-473-133: caso da prostituta brasileira. LD, não punibilidade; conduta ilícita da vítima, in dubio pro defendente; excesso culposo e doloso. Tem voto de vencido. Neste caso, o tribunal considerou correctamente que se usou do meio necessário para repelir a agressão, afirma Figueiredo Dias, Textos, p. 188. • Acórdão do STJ de 25 de Junco de 1992, BMJ-418-569: legítima defesa, direito de necessidade, estado de necessidade desculpante, excesso de legítima defesa. • Acórdão do STJ de 26 de Maio de 1994, CJ, ano II (1994), tomo II, p. 239: não existe excesso de LD, mas excesso extensivo, a pretexto de legítima defesa, nem conduta em estado de perturbação, medo ou temor quando objectivamente não existe ou não existe já uma situação de LD, nomeadamente por o arguido ter feito terminar a agressão de que tinha sido vítima. • Acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1999, BMJ-492-159: não se pode considerar agindo em legítima defesa aquele que provoca deliberadamente uma situação objectiva de legítima defesa para alcançar, por esse meio ínvio, a impunidade de um ataque desencadeado propositadamente já com intenção de matar o agressor. • Américo A. 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O estado de necessidade. 165 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. I. Estado de necessidade. Colisão de deveres. Causação do resultado; violação do dever de cuidado; imputação objectiva do resultado; conexão de ilicitude; comportamento lícito alternativo; doutrina do aumento do risco; princípio da confiança. CASO nº 24: A é médico e o único especialista em doenças dos rins na região. Na noite de Fim de Ano, cerca da uma hora, A foi chamado de urgência por D, sua doente, que vem sendo submetida a diálises periódicas. Dado o estado da paciente, A sabia que na ausência de cuidados imediatos a vida de D correria perigo. Por isso, e porque tinha ingerido uma boa quantidade de álcool (como médico sabia que a taxa de álcool no sangue deveria andar por 1,4 g/l, como efectivamente acontecia), chamou um táxi. Foi em vão: não havia táxis disponíveis àquela hora. Contrariado, acabou por se pôr ao volante do seu próprio carro, a caminho da casa de D. Quando, porém, seguia por uma das ruas da localidade, de repente, sem que nada o fizesse prever, apareceu-lhe na frente do carro H, que saíra alegremente de uma festa ali ao lado e por breves instantes tinha estado parado atrás de um muro, à beira da rua, sem que o condutor o pudesse ter visto antes. Foi-lhe impossível evitar embater no peão, não obstante seguir a velocidade que não era superior à velocidade regulamentar de 50 km/h. A vítima sofreu ferimentos graves e caiu, inconsciente, no chão. A parou, saiu do carro, mas viu logo que para salvar a vida de H tinha que o transportar imediatamente ao hospital. E assim fez, pelo caminho mais rápido, sabendo muito bem que punha em jogo a vida da sua doente renal. Logo que deixou H no hospital, A dirigiu-se imediatamente para casa da doente. Mal chegou, apercebeu-se da morte desta, ocorrida poucos minutos antes. Se A tivesse chegado uns minutos mais cedo, D, muito provavelmente teria sido salva. A deu conhecimento do atropelamento à polícia. Cf. M. Aselmann e Ralf Krack, Jura 1999, p. 254 e ss., cuja proposta de solução serviu de apoio a estas notas. Cf., igualmente, Bockelmann / Volk, AT, p. 99, e Otto, AT, p. 131. Punibilidade de A ? 1. O atropelamento de H. Punibilidade de A por ofensas corporais por negligência (artigo 148º, nº 1). Do acidente resultaram ofensas corporais graves na pessoa de H, pelo que A pode estar comprometido com o disposto no artigo 148º, nº 1. A estava obrigado a pôr na condução que empreendeu os necessários cuidados. Seguia pela via pública, ao volante do seu automóvel, não obstante a taxa de álcool no sangue ser superior a 1,2 g/l e deste modo contrariar o comando do artigo 292º do Código Penal. Todavia, é duvidoso que o resultado típico, as lesões corporais na pessoa de H, possa 166 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ser objectivamente imputado a A. A causação do resultado e a violação do dever de cuidado, só por si, não preenchem o correspondente ilícito típico. Tratando-se de ofensas à integridade física, acresce a necessidade da imputação objectiva do evento. Este critério normativo pressupõe uma determinada conexão de ilicitude: não basta para a imputação de um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou. "Podemos conceber situações em que há uma violação do dever objectivo de cuidado e, todavia, em termos de imputação objectiva, o resultado não poder ou não dever ser imputado ao agente. Basta para isso pensar em um qualquer caso que a jurisprudência e a doutrina alemãs já sedimentaram, transformando-os em exemplos de escola. Enunciemo-los: a) o caso do ciclista embriagado (A) que é ultrapassado por um camião que ao desrespeitar as regras de trânsito o atropela mortalmente com o rodado anterior; b) a hipótese do farmacêutico que não cumprindo a receita médica avia, várias vezes, a pedido da mãe, doses de fósforo para uma criança que vem a morrer por intoxicação; c) o caso do director de uma fábrica que, não cumprindo as disposições legais, não desinfecta os pelos de cabra, importado da China, provocando, assim, a morte de quatro trabalhadores; d) a hipótese do médico que anestesia com cocaína, não cumprindo as leges artis, já que o indicado na situação seria a aplicação de novocaína, o que provoca a morte do paciente. (...). Uma tal enunciação e o seu tratamento pela doutrina alemã permite-nos ter imediata consciência de que, para uma parte da doutrina, alguns daqueles casos, conquanto haja em todos violação de dever objectivo de cuidado, se radicalizam em uma ausência de imputação objectiva do facto ao agente. Daí que, se a violação do dever objectivo de cuidado é condição necessária para que o facto nas acções negligentes possa ser objectivamente imputado ao agente, é também certo que a não imputação do facto passa necessariamente pela ausência de violação do dever objectivo de cuidado. Por outras palavras: as acções negligentes de resultado pressupõem uma estrutura limitadora da responsabilidade que se perfila de forma dúplice: de um lado, a violação de um dever objectivo de cuidado (...), valorado também pelo critério individual e geral, e de outro, a exigência de um especial nexo, no "sentido de uma conexão de condições entre a violação do dever e o resultado". Prof. Faria Costa, O perigo em direito penal, p. 487. Na altura do acidente, A circulava à velocidade regulamentar, fazendo-o pela sua mão de trânsito. Um condutor sóbrio não teria procedido de outra maneira —nomeadamente, não poderia ter previsto que um peão saísse inopinadamente detrás de um muro, à beira da estrada, e se atirasse em correria para debaixo do automóvel, sem dar ao condutor a mínima possibilidade de travar ou de se desviar para não embater na vítima. Ora, uma vez que temos como apurado que o comportamento lícito alternativo provocaria igualmente o resultado danoso, este não deverá ser imputado ao condutor. Não obstante a elevada taxa de álcool no sangue (TAS) do condutor, não se pode concluir que os 167 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. perigos daí advindos se tivessem concretizado no resultado típico, i. e. nas ofensas à integridade física graves sofridas pelo atropelado. A doutrina do aumento do risco chegaria aqui a idênticos resultados, porquanto a alcoolémia do condutor não aumentou o risco de embater no peão. Observe-se, por outro lado, que, de acordo com os critérios correntes do princípio da confiança, "ninguém terá em princípio de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem" (Figueiredo Dias, Direito penal, sumários e notas, Coimbra, 1976, p. 73). Quem actua de acordo com as normas de trânsito pode pois contar com idêntico comportamento por banda dos demais utentes da via e A podia confiar em que ninguém, de repente, sairia de detrás do muro nas apontadas circunstâncias. O condutor só pode confiar que, pelo facto de agir segundo o direito, não pode ser penalmente responsabilizado por factos que não pode evitar. No caso, o condutor não podia evitar o que aconteceu, porque, para além do mais, não previu — nem tinha que prever — o resultado. Falta também aqui, como se vê, um elemento essencial à imputação por negligência, que é a previsibilidade. Podemos assim concluir que A não cometeu o crime de ofensas à integridade física por negligência do artigo 148º, nº 1. "Há quem entenda — quanto a nós bem, adiante-se — que o interagir motivado pelo tráfego rodoviário só tem sentido se for compreendido através do princípio geral da confiança. Mais do que o cumprimento das regras de cuidado, o que importa ter presente é que, objectivamente, vigora a ideia de que qualquer utente da via tem de confiar nos sinais, nas comunicações, dos outros utentes e tem, sobretudo, de confiar, em uma óptica de total reciprocidade, na perícia, na atenção e no cuidado de todos os outros utilizadores da via pública." Prof. Faria Costa, O Perigo, p. 488. Punibilidade de A pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário (artigo 291º). A conduzia em estado de embriaguez e atropelou H, que sofreu ferimentos graves. O artigo 291º castiga quem conduzir veículo automóvel, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool. Ponto é que se crie deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem. Trata-se, portanto, de crime de perigo concreto: o perigo é elemento típico do crime. Para haver crime, seria então necessário demonstrar que no caso o resultado de perigo teve origem na condução em estado de embriaguez de A. Como logo se vê, houve um perigo que se concretizou, chegou a ocorrer 168 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. uma situação de dano para a integridade física do atropelado, de que essa situação de perigo concreto foi um estádio intermédio. Todavia, não foi o perigo decorrente da condução em estado de embriaguez que cristalizou no evento danoso — a condução não ultrapassou o risco permitido na correspondente actividade. Na verdade, só a conduta inadequada de H pode explicar a realização do risco que ficou caracterizado. A não cometeu este crime. Punibilidade de A pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292º). A conduzia com uma TAS (taxa de álcool no sangue) superior a 1,2 g/l. Fazia-o, como já se disse, por ser médico, com suficiente conhecimento de que a taxa andaria por esse valor, e consequentemente com dolo eventual, na medida em que igualmente se conformou com a condução nessas circunstâncias (artigo 14º, nº 3). Ainda assim, e porque a taxa estava muito perto do seu valor mínimo, sempre se poderia afirmar, pelo menos, a negligência do condutor, sendo certo que a norma prevê igualmente a punição desta forma de culpa. Repare-se que em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos não é ilícito o facto de quem satisfizer dever de valor igual ou superior ao do dever que sacrificar (artigo 36º, nº 1). Existe uma situação de conflito de deveres quando o agente se encontra pelo menos perante dois deveres jurídicos, com a consequência inevitável de só poder satisfazer um à custa do outro. Em geral, distinguem-se três grupos de hipóteses. Ou o agente tem de obedecer a dois comandos (deveres de acção), por ex., se um médico em caso de acidente presta os primeiros socorros apenas a uma das vítimas, embora se lhe impusesse o dever de acudir a todas. Ou pode haver colisão entre uma acção e uma omissão (conflito entre um dever de acção e um dever de omissão), "questão que, como é sabido, foi abundantemente tratada após (e em consequência das ordens criminosas dadas pelos "superiores" nazis) a segunda grande guerra — é, hoje, maioritariamente, entendido que é uma questão a equacionar e a resolver segundo os princípios e disposições do direito de necessidade (geral — C. P., art. 34º — ou especiais — casos de detenção em flagrante por autoridade (...)". Prof. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, p. 172. Há quem não 169 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. aceite, porém, que se possa dar uma situação de colisão entre dois deveres de omissão. O condutor que entra na auto-estrada pela via de acesso errada não pode voltar para trás nem seguir para a frente — nem pode ficar ali parado, mas isso provavelmente não representa qualquer colisão de deveres, uma vez que a situação se esgota em transgredir a norma que na condução em estrada proíbe que se circule contra a mão. No caso que nos ocupa, A, por um lado, tinha o dever de omitir a condução em situação de alcoolémia (dever de omissão), por outro, era seu dever prestar em tempo útil os cuidados de que a sua paciente estava tão necessitada (dever de acção). Acontece que a situação assim desenhada representa mais fielmente um direito de necessidade. "O chamado "conflito de deveres", quando, verdadeiramente, coenvolver um problema de justificação (de exclusão da ilicitude), é ao direito de necessidade que se deve subsumir e como tal ser resolvido." Prof. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, p. 173. De acordo com o artigo 34º, não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos de terceiro. Ponto é que se verifiquem os requisitos das três alíneas seguintes. No caso concreto, existia um perigo actual para a vida da paciente, existia, portanto, uma situação de necessidade. Conduzir em estado de alcoolémia até à casa da doente (acção em estado de necessidade) deveria ser —e era, objectivamente—, a maneira necessária de afastar o perigo, coberta, subjectivamente, pela vontade de salvar a vida da doente. A procurou em noite de Fim de Ano um táxi, consciente de que não podia conduzir a sua própria viatura, mas sem êxito. Por outro lado, A não estava em posição de chamar um colega que fizesse o seu trabalho, pois era o único especialista da região e o único que podia acudir à paciente. De forma que se não descortina um meio menos gravoso, rodeado de menores custos, de afastar o perigo. Além disso, A actuou com conhecimento da situação de necessidade. Finalmente, pode muito bem garantir-se que o interesse a salvaguardar era sensivelmente superior ao interesse a sacrificar. Havia claramente um perigo concreto para a vida da doente renal em contraposição com um perigo abstracto que era a segurança do trânsito rodoviário. Os bens jurídicos protegidos num caso e no outro serão idênticos, mas a segurança do trânsito tem a ver, de forma abstracta, com a protecção da 170 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. vida dos que andam nas ruas e estradas. O que é decisivo é a proximidade e a probabilidade de se verificar o perigo. No crime de perigo abstracto que é o do artigo 292º ocorre simplesmente a possibilidade, a eventualidade, de pôr em perigo a vida de uma qualquer pessoa, é uma situação de perigo presumido. O que estabelece a diferença com o artigo 291º é que aqui se exige a concretização de um perigo para a vida de uma ou mais pessoas. E assim, concretizado o perigo, a pessoa cuja vida correu perigo é A — ou A e B —, e já não simplesmente A ou B ou C ou D, etc. Basta atentar nas penas cominadas para os dois tipos de crime para se concluir que o peso recai mais intensamente no crime de perigo concreto. Pode por isso dizer-se que a protecção da vida da doente, que estava em risco de morrer e morreu mesmo, representa um interesse sensivelmente superior aos que têm a ver com a segurança abstracta dos participantes no trânsito rodoviário. Com isto, podemos concluir que a conduta de A está justificada por aplicação dos artigos 31º, nºs 1, e 34º. Todavia, e como se deixou dito, a solução poderá já ocorrer no domínio do artigo 36º, no âmbito do conflito de deveres, com a vantagem de não ser necessário assentar na sensível superioridade do interesse a salvaguardar, já que, no caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos, não é ilícito o facto de quem satisfizer dever de valor igual ou superior ao do dever que sacrificar. Contentando-se a lei com um dever de valor igual, a tarefa do intérprete ficará muito mais facilitada. Apontamento jurisprudencial. Cf. o acórdão da Relação de Lisboa de 5 de Maio de 1998, CJ 1998, tomo III, p. 141: A, em estado de embriaguez, conduziu a mulher ao hospital, depois de esta ter sido acometida de doença súbita e grave — e de A ter, sem sucesso, diligenciado por conseguir outro transporte. Apenas se admitiu no acórdão a exclusão da culpa (artigo 35º). O Prof. Figueiredo Dias (Textos, p. 224) cita o acórdão da mesma Relação de 19 de Junho de 1996 e comenta que no caso em que A, embriagado, conduziu um automóvel para socorrer a mãe, que, sofrendo de doença grave e vivendo só, lhe tinha telefonado dizendo que se sentia mal e necessitava de assistência — pode ser uma conduta justificada se ela traduzir o meio único de conduzir em tempo um doente grave ao hospital. 2. O que aconteceu depois. Punibilidade de A: comissão por omissão do crime dos artigos 10º e 131º. Uma vez que A não prestou o auxílio médico à sua paciente e esta morreu, A pode ter cometido o crime em referência. 171 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Deu-se o resultado mortal e isso pode ser imputado a A, já que este, com uma probabilidade quase a raiar a certeza, o podia ter evitado. A causalidade omissiva constrói-se em termos hipotéticos e não em termos naturalísticos. O juízo formulado em matéria de causalidade omissiva é, por sua própria natureza, fundado num método de estrutura probabilística e será tanto mais válido quanto mais perto da certeza se encontrar. "Uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida”. (Arthur Koestler, Um Testamento Espanhol). Como a doente estava a ser tratada por A, este encontrava-se em posição de garante por vias do contrato estabelecido entre ambos (critério tradicional) ou por assunção do dever de protecção e auxílio (critério doutrinal mais recente). A conhecia a sua posição de garante, sabia que havia a possibilidade de salvar a vida da doente e que esta podia morrer — houve, por isso, dolo da sua parte. Não intervém o artigo 34º porque falta a sensível superioridade do interesse a salvaguardar, que é requisito da alínea b). A conduta poderá todavia analisar-se no âmbito da colisão de deveres. É certo que A tinha o dever de garante perante a sua doente renal e não o tinha relativamente ao atropelado — neste caso, a ingerência não vem acompanhada da culpa do condutor, nem o acidente lhe pode ser ilicitamente atribuído. O responsável pelo acidente foi sem dúvida nenhuma o peão. O dever de acudir à paciente renal seria valorativamente mais elevado do que o de ajudar o peão atropelado. Há-de notar-se contudo que no artigo 36º se não faz uma valoração deste tipo, o bem jurídico da vida não é mensurável em função da idade ou de privilégios sociais, nem em função de critérios exteriores como aqueles que vinham sendo apontados. A estava em posição de apenas poder salvar uma das vidas —e foi isso que fez. A conduta não é portanto ilícita. “Autêntico conflito de deveres susceptível de conduzir à justificação existe apenas quando na situação colidem distintos deveres de acção, dos quais só um pode ser cumprido”. Figueiredo Dias, Textos, p. 239. Mas se se rejeitarem os pressupostos justificadores da situação, i. e, se se concluir que a conduta de A é ilícita, não se lhe poderá recusar os efeitos do estado de necessidade desculpante, tal como decorrem do artigo 35º. 172 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. O direito de necessidade é uma causa de justificação que tem a ver com a ponderação de interesses. ( 19 ) O direito de necessidade (estado de necessidade justificante) aproxima-se da legítima defesa: desde logo, a "agressão" é uma manifestação de "perigo" para a pessoa do defendente, é um caso especial de perigo (Kühl). E aproxima-se do estado de necessidade desculpante, primeiro, pela semelhança dos respectivos elementos típicos; depois, por cumprirem a sequência legal dos artigos 34º e 35º. Mas têm consequências diferentes, que é bom ter sempre em atenção. Por outro lado, são várias as manifestações do estado de necessidade justificante, incluindo as dos artigos 34º do Código Penal e 339º do Código Civil e o já aludido estado de necessidade defensivo, supra-legal. Todas essas formas do estado de necessidade justificante são concretizações dos princípios da necessidade e da ponderação de interesses. Justifica-se a conduta típica quando, em situação de necessidade, havendo sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, for razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse, i.e, dá-se a salvaguarda de um dos interesses à custa do outro (artigo 34º). Mas logo se vê que a ponderação de interesses só se suscita como requisito do direito de necessidade. Fora de uma situação de "necessidade" fica afastada tanto a possibilidade de a conduta ser justificada como a de o agente ser desculpado. Dá-se uma situação de necessidade quando um perigo actual para um bem jurídico só for removível através de uma acção típica que lesa ou põe em perigo um outro bem jurídico. Bockelmann / Volk, AT, p. 96. São numerosas as situações de necessidade em que existe um bem ou um interesse jurídico em perigo, cujo afastamento se faz à custa de outro bem ou interesse jurídico. Um desses casos é a situação de legítima defesa — o agressor cria um perigo que vai ser afastado à sua própria custa, mas podem configurar-se muitas outras variantes. A fonte do perigo pode, por ex., ser uma coisa (ataques de animais, o fogo numa mata), ou pode empregar-se coisa alheia para afastar o perigo, e então teremos o afastamento do perigo à custa de terceiro. Cf. Haf, p. 87. 19 “Há situações da vida em que uma acção, que pelo seu recorte externo preenche a factualidade típica de um crime, constitui o único meio de defesa de um bem jurídico ou o cumprimento de um dever imposto ou reconhecido pelo direito. Em tais casos, a qualificação como conforme ao direito, não proibida ou ilícita, da mesma acção terá de decidir-se a partir das relações de valor entre os bens jurídicos ou deveres em conflito, sancionados pelo direito vigente” (aresto do RGSt, citado por Faria Costa, O perigo, p. 163). É o princípio da ponderação de bens e deveres. 173 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. O direito de necessidade do artigo 34º supõe desde logo um "perigo" que ameaça interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. Há situações a que, face às circunstâncias concretas, provavelmente se seguirá um evento lesivo — são situações de perigo. Perigo é portanto a probabilidade séria de dano, é o dano em potência. Do conceito de dano e do conceito de probabilidade chega-se assim ao de perigo. O juízo de probabilidade é resultado de um silogismo, em que a premissa maior é representada por aquilo que sói acontecer (conhecimento nomológico) e a premissa menor pelo caso concreto (conhecimento ontológico). Destarte, uma dose de veneno costuma matar (conhecimento nomológico); Tício ministra uma taça de veneno a Caio (conhecimento ontológico); logo, Tício provavelmente matará Caio. A probabilidade é um critério apriorístico. Dele se parte para se chegar ao perigo. Probabilidade é abstração de provável. Provável opõe-se a efectivo, como probabilidade (ou possibilidade) opõe-se a efectividade. Efectivo é aquilo que já se verificou. Refere-se a um processo causal já desenvolvido. Diz respeito ao passado, ou ao presente. Jamais ao futuro. Provável, ao contrário, é aquilo que ainda não se efectivou. É um processo causal in fieri (que está sendo feito), em estado embrionário. Projecta-se rumo ao futuro. Quando aquilo que pode acontecer se realiza, a probabilidade se transmuda em certeza. Probabilidade, porém, ainda não é certeza. É atitude potencial, é possibilidade relevante de vir a ser. Paulo José da Costa Jr., Direito Penal Objetivo, p. 24. Mas é ainda de perigo a situação em que se encontra um bem jurídico cuja lesão já se iniciou e pode ser continuada, pois o perigo não acaba necessariamente com o começo da lesão. O dano não é um aliud, mas um plus, relativamente ao perigo. No exemplo de Mitsch, quando as chamas que lavram numa casa começam a "lamber" a casa do vizinho, esta fica em perigo. Do mesmo modo, num edifício em chamas, há o perigo de o fogo alastrar e danificar outras partes do mesmo edifício. Só quando se extingue o fogo ou a casa ardeu completamente é que o perigo desaparece. A situação de perigo distingue-se de uma situação não perigosa pela existência de elementos que tornam provável a imediata produção de um dano (Lenckner, S/S). Quando no interior de uma casa de lavoura se deita um cigarro aceso para um molho de palha, torna-se provável, num juízo de prognose ex ante, o desencadear de um incêndio. Portanto: um cigarro aceso deitado para um molho de palha corresponde à criação de uma situação de perigo. Se não se ateia o fogo, mesmo assim a situação não deixou de ser perigosa. Ainda que sem dano, o perigo verificou-se. Há coisas que, por vezes, ameaçam produzir danos — animais, explosões, emissões tóxicas, queda de edifícios, ou fenómenos naturais, como as tempestades, tremores de terra, avalanches, inundações, furacões (Mitsch, p. 329). No 174 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. artigo 34º, a lei renova a expressão, vinda já do artigo 32º, "interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro" como sendo o objecto do perigo — e aí reside uma diferença importante relativamente ao estado de necessidade desculpante, onde se limita a ameaça à vida, à integridade física, à honra ou à liberdade. Neste contexto, uma greve de fome, voluntariamente assumida, ou uma tentativa de suicídio não representam uma situação de perigo, mas se alguém é encontrado inconsciente na via pública, em estado que faz perigar a vida, justifica-se o uso não autorizado de um carro alheio para o transporte ao hospital. O perigo deve ser actual, simultâneo ao facto. O perigo é actual se a qualquer momento puder conduzir ao dano. Se no momento da prática do facto já existe uma lesão do interesse protegido, o perigo é obviamente actual — aliás, o que é decisivo não é propriamente a actualidade do perigo mas a situação de constrangimento. A situação de necessidade pode concretizar-se num perigo para o agente ou para terceiro (repare na expressão correspondente do artigo 32º: interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro). Exemplos: A causa lesões corporais em B para salvar a própria vida. A causa lesões corporais em B para salvar a vida de C. O pai, na casa em chamas, atira pela janela o filho que quer salvar, mas à custa de ferimentos na criança. Neste caso, a vida do terceiro é salvaguardada à custa da integridade física do mesmo terceiro, havendo portanto identidade entre o portador do interesse a salvaguardar e o portador do interesse sacrificado. A actuação (“o facto praticado”) deverá ser adequada para afastar o perigo, de modo que não se justificam aquelas medidas que à partida não oferecem a mínima possibilidade de eficácia. Podem existir diferentes modos de afastar o perigo e se uma dessas modalidades produz menor dano, se é a menos gravosa, corresponderá então ao meio adequado. O facto de esse meio coactivo não ser substituível por outra medida menos gravosa torna-o necessário. "Même dans la destruction, il y a un ordre, il y a des limites" (A. Camus, Les Justes). Se houver outras variantes tão danosas como a considerada, então o perigo não será removível de outro modo. A fuga e o afastar-se alguém perante o perigo são modalidades 175 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que em situação de necessidade devem ser assumidas — ao contrário do que se passa com a legítima defesa, em estado de necessidade, a fuga não é desonra nem covardia. Tudo isso corresponde, aliás, à natureza subsidiária do estado de necessidade: não é caso de invocá-lo se o agente puder conjurar o perigo de outro modo, sem ofender o direito de outrem. Se o perigo só puder ser afastado mediante uma certa e determinada actuação, então passa esta a assumir-se, automaticamente, como necessária. A acção de necessidade configura-se como uma actio duplex, por ter dois lados: "uma vertente de lesão de um bem jurídico e uma dimensão de salvaguarda de bens jurídicos" (Küpper JuS 1987, p. 81, e Costa Andrade, p. 164). No artigo 34º, o pressuposto de justificação mais complicado (Mitsch, p. 334) é o da alínea b): haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado — e representa uma diferença significativa no confronto com o artigo 35º. A vida humana está no lugar cimeiro destas considerações, é, em absoluto, o valor mais elevado — e isso sem referências qualitativas à idade, à posição social, à eventual doença do sujeito, ou mesmo quantitativas, porquanto se rejeita o confronto entre uma e várias vidas. Considere-se o caso, a analisar em sede de estado de necessidade desculpante, do agulheiro que, para salvar a vida das centenas de pessoas que viajam no comboio, admite a hipótese de o desviar para uma linha secundária onde dois ou três trabalhadores serão inevitavelmente trucidados. Em geral, nos interesses em jogo não se trata, porém, de uma avaliação abstracta — em abstracto, a saúde é mais valiosa que o património, mas o decisivo consistirá antes numa ponderação global concreta dos interesses em conflito. Um quadro de van Gogh pode bem ser salvo à custa dumas arranhadelas na pessoa do guarda do museu. Recomenda-se que se aprecie a extensão e a iminência do perigo, a intensidade dos sacrifícios, o tipo e a dimensão das consequências secundárias ou mediatas, a obrigação especial da tolerância do perigo por parte, por ex., de bombeiros ou polícias e, por fim, a esfera de procedência da fonte de perigo (Eser, p. 260; pormenorizadamente, Figueiredo Dias, Textos, cit.). No caso nº 24, o médico levou o atropelado com ferimentos graves ao hospital, não obstante conduzir com uma elevada TAS, e nesse percurso não pôs em perigo (perigo concreto!) qualquer bem jurídico dos restantes intervenientes no tráfego. Num caso destes, como anteriormente já se acentuou, estão frente a frente a concreta saúde de um e o perigo 176 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. abstracto de alguém morrer atropelado por um condutor embriagado (perigo presumido, do artigo 292º do Código Penal). Imposição coactiva da doação de sangue? Pode acontecer que, por causa da raridade do seu grupo sanguíneo, a vida de uma pessoa gravemente ferida só possa ser salva à custa da transfusão de outra pessoa que, porém, se recusa a dar o seu sangue. Quid juris? A doutrina maioritária sustenta que a imposição coactiva da doação de sangue transcende a eficácia justificativa do direito de necessidade — descontadas as hipóteses de subsistência de particulares deveres de garante. E isto pese embora a particular e evidente natureza do conflito: de um lado o valor da vida, do outro uma agressão relativamente inócua à integridade física. Só que a imposição coactiva da doação contraria pura e simplesmente o princípio da liberdade e da dignidade humana. Em tais casos, a expressão da solidariedade só poderá ter sentido se constituir um acto de liberdade ética. O homem não deverá em qualquer caso ser utilizado como meio. Cf. Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, p. 239; e Bockelmann / Volk, p. 99. A origem do perigo é vista, fundamentalmente, em dois sentidos: um estado de necessidade defensivo, como quando o facto praticado lesa um objecto de que provém o perigo — o agente abate o cão de O, quando o animal (a fonte do perigo) estava prestes a abocanhar o bébé; e o estado de necessidade agressivo, quando o facto é praticado contra um interesse jurídico neutro relativamente ao perigo — o agente pega no extintor de O para apagar o incêndio. Do lado subjectivo, deve o sujeito actuar com vontade de salvaguardar o interesse jurídico em perigo, com conhecimento de todas as circunstâncias do tipo de justificação. Há um estado de necessidade justificante e outro desculpante: a teoria da diferenciação. Como já se compreendeu, no tratamento do estado de necessidade, o Código adoptou uma via que distingue o estado de necessidade justificante (artigo 34º) e o estado de necessidade desculpante (artigo 35º). Na Alemanha, isso acabou por acontecer sob a influência de Goldschmidt, que falava de um microcosmos jurídico em que coincidiam os pontos de vista da ilicitude e da culpa (solução diferenciada: o estado de necessidade constitui obstáculo à ilicitude quando o interesse protegido é sensivelmente superior ao sacrificado e obstáculo à culpa nas restantes hipóteses). Muito conhecido é o caso Mignonette, de 1884, em que uns náufragos, à míngua de alimentos, sacrificaram o companheiro mais novo para conseguirem sobreviver. O tribunal condenou-os à morte, mas os réus foram depois agraciados e a pena substituída por seis meses de cárcere. O caso seria hoje tratado 177 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. no âmbito do estado de necessidade desculpante (cf., a seguir, a tábua de Carnêades). O tribunal inglês, como nota Roxin, não tinha outra alternativa — o direito insular tinha que rejeitar, logicamente, a causa de justificação, sendo certo que ali se não conhecia uma isenção da responsabilidade independente da justificação. A sentença, ainda assim, não fugiu a manifestar "a mais sentida expressão de compaixão pelos sofrimentos dos acusados", e a Coroa, lançando mão do indulto, comutou a pena, como já se disse, para seis meses de privação da liberdade "sem trabalhos pesados". E Roxin comenta: alcançou-se assim, por vias travessas ao estrito plano do Direito positivo, uma solução próxima da que o direito continental oferece com a solução diferenciada entre ilícito e culpabilidade. Excerto da sentença do caso Mignonette. Queens Bench Division 1884 (14 QBD, 273), apud J. Verhaegen, L'humainement inacceptable en droit de la justification, RICPT, 1981, p. 269: "Não é correcto dizer-se que existe uma necessidade absoluta e sem reservas de alguém preservar a sua própria vida (...). Não é necessário sublinhar o grande perigo que decorre da circunstância de se admitir o princípio que aqui foi discutido. Qual o critério valorativo que permite comparar as vidas? Será o de se ser forte ou inteligente? (...) No caso que nos ocupa, foi escolhido o mais fraco, o mais jovem, o menos capaz. Haveria uma maior necessidade de o matar e não os adultos? A resposta deverá ser "não". Não se contesta, neste caso particular, que os factos eram "diabólicos", mas também é evidente que uma vez admitido tal princípio o mesmo poderá constituir o manto legal para que se passem a praticar crimes horríveis ...". A ideia do efeito justificante da situação de necessidade entronca na teoria da colisão de Hegel, cujo cerne reside numa ponderação de interesses — do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse a sacrificar. O facto estará justificado perante a sensível superioridade do primeiro. "O problema, posto com a maior largueza por Hegel a propósito da colisão entre a vida e a propriedade, conduziu a admitir neste caso um verdadeiro direito (não, pois, equidade ou mero "ius aequivocum"), um direito de necessidade: para conservação do bem jurídico da vida, quando em perigo, pode sacrificar-se a este o bem jurídico da propriedade de outrem. É a esta luz, como nota Bockelmann, que se considera legítima a manutenção daquele bem cuja destruição representaria a maior violação jurídica. O que, posto em linguagem moderna, significa considerar lícita a realização de um interesse superior àquele que se sacrifica" (Eduardo Correia, Direito Criminal II, p. 81). A ideia do efeito desculpante da situação de necessidade identifica-se com a teoria da adequação de Kant: quem actua em estado de necessidade age e permanece em situação de ilicitude, mas porque lhe não é exigível outra conduta deverá ser desculpado. Cf. Haft; e F. Palma, A Justificação, p. 327 e ss., igualmente com considerações a propósito do caso Mignonette. Os ingleses quando falam neste estado de necessidade, causa de justificação ou causa de exclusão da ilicitude, utilizam a expressão correspondente a necessidade, ou seja necessity; aí é mesmo uma situação de necessidade objectiva. Quando estão a falar na outra situação, da pessoa que age em estado de necessidade, mas no sentido de coacção moral ou situação de medo, usam a expressão duress. É mais fácil, assim discutir a contraposição de situações. Cf. Teresa P. Beleza, p. 290. Veja-se, a propósito, o título dos trabalhos publicados in S. H. Kadish, Encyclopedia of Crime and Justice, 1983, 178 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. nomeadamente, Morawetz, “Justification, Necessity”, e Levine, “Excuse, Duress”. E veja-se ainda B. Schünemann, La función de delimitación de injusto y culpabilidad, in Fundamentos de un sistema europeo de Derecho Penal, Libro-Homenaje a Claus Roxin, 1995. CASO nº 24-A: Após um acidente com várias vítimas, imediatamente compareceu uma ambulância, vislumbrando-se a possibilidade de salvar algumas vidas. Todavia, todos os presentes reconheceram desde logo que A, o motorista, estava fortemente embriagado, não havendo ninguém em condições de o substituir. O motorista conduziu a viatura até ao hospital em velocidade adequada e com respeito de todas as regras de trânsito. A condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292º) encontra-se justificada por estado de necessidade (artigo 34). Era absolutamente necessário que alguém levasse os feridos graves ao hospital e ninguém mais sabia conduzir a ambulância. A distância para o hospital era curta e não se verificou um perigo concreto para outros utentes da via. O risco contido na condução em estado de embriaguez ficou-se por limites adequados. CASO nº 24-B: Um bombeiro pode salvar uma criança, mas só atirando-a, lá bem do alto do edifício em chamas, para os colegas que improvisaram uma tela amortecedora na base do prédio. Existe o perigo de a criança cair mal e partir a base do crânio. O perigo que assim ameaçava a criança realizou-se e a morte, infelizmente, veio a ocorrer. A acção do bombeiro encontra-se coberta pelo artigo 34º. Só havia uma alternativa à morte da criança pelas chamas. Quando o bombeiro se decidiu por atirar a criança do alto do prédio em chamas escolheu pôr em perigo um bem jurídico para evitar a lesão certa do bem jurídico. A situação reporta-se ao mesmo bem jurídico mas isso não obsta à aplicação do artigo 34º. Trata-se de um caso de ponderação de riscos. Cf. Otto, p. 131. CASO nº 24-C: Um médico, que tem que proceder a uma transfusão de sangue no local de um acidente para salvar uma vida, dirige-se para onde se deu o sinistro, a curta distância da sua residência, durante a noite, por uma estrada bem iluminada mas a velocidade bem superior à legalmente permitida. Como no caso nº 24, um perigo abstracto e remoto confronta-se com uma situação de perigo concreto para a vida da vítima do sinistro. A conduta do médico está justificada por direito de necessidade. CASO nº 24-D: A, médico, obriga P, um doente internado no hospital onde presta serviço, a dar sangue a B, que sem ele teria morrido. P, todavia, tinha-se recusado a dar sangue voluntariamente. 179 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Estão aqui, frente e frente, a preservação da vida de B, e uma ofensa à integridade física de P, bem como a sua liberdade de decisão. A mais disso, está em causa o sentimento de segurança de todos os outros doentes internados naquele estabelecimento hospitalar. A doutrina maioritária sustenta que a imposição coactiva da doação de sangue transcende a eficácia justificativa do direito de necessidade — descontadas as hipóteses de subsistência de particulares deveres de garante. E isto pese embora a particular e evidente natureza do conflito: de um lado o valor da vida, do outro uma agressão relativamente inócua à integridade física. Só que a imposição coactiva da doação contraria pura e simplesmente o princípio da liberdade e da dignidade humana. Em tais casos, a expressão da solidariedade só poderá ter sentido se constituir um acto de liberdade ética. O homem não deverá em qualquer caso ser utilizado como meio. (Cf. Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, p. 239, e os diversos autores aí citados). II. A problemática da justificação por estado de necessidade. A dupla previsão normativa dos artigos 34º e 35º. Há inúmeras situações em que o afastamento de um perigo actual que ameaça bens jurídicos do agente (ou de terceiro) se faz através da prática de um facto típico. Quer dizer: perante uma situação de perigo para bens jurídicos, surge a necessidade de os salvaguardar ou de os proteger, e isso só se consegue lesando ou afectando outros interesses juridicamente protegidos. Os autores (vd., por ex., Eduardo Correia, Direito Criminal II, p. 70) ocupam-se não só das hipóteses em que os interesses a defender e os que se torna para tal necessário sacrificar são de igual valor, como aqueles em que eles são de valor superior ou de valor menor, uns relativamente aos outros. "A história, a jurisprudência e os autores fornecem-nos os mais variados exemplos destes diversos tipos": o da "tabula unius capax", em que os interesses em conflito são de valor equivalente: vida contra vida; "ou quando, para salvar uma vida é necessário fazer outrem cair de um andaime, causando-lhe graves ferimentos; quando, para evitar um naufrágio, o capitão tem de lançar ao mar parte da carga; quando, para vencer uma doença grave ou mortal, é necessário utilizar remédios pertencentes a outrem; quando, para debelar um incêndio, importa utilizar ou danificar coisas pertencentes a outrem, v. g. utilizando para as mangueiras água de um poço alheio ou arrombando a porta de um vizinho, etc. E é ainda possível que alguém, como único meio de v. g. evitar uma grave ofensa corporal, não resista a sacrificar a vida alheia (p. ex. para evitar a perda de um braço ou da vista não resista a atirar sobre outrem, causando-lhe a morte, a bomba que vai explodir nas suas mãos) — caso em que, seguramente, o interesse a defender é de valor inferior ao do interesse sacrificado". 180 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Verifica-se portanto uma situação de conflito ou colisão entre interesses jurídicos. Já vimos que, por ex., numa situação de legítima defesa o perigo provém de um agressor injusto à custa do qual é afastado. Mas o perigo pode também provir de uma coisa (pense-se no ataque de um animal) ou pode até ser endossado a um terceiro, utilizando- se uma coisa alheia para o afastar. Os juristas, já desde tempos antigos, vêm-se ocupando com estes problemas, contribuindo até hoje com três ideias fundamentais: a doutrina do espaço livre de direito, segundo a qual existe entre a antijuridicidade e a justificação uma terceira categoria de comportamentos "não proibidos". Tratar-se-ia de casos que não são de justificação nem entram no âmbito da culpabilidade, antes se apresentam como juridicamente neutros (também por isso integrados na chamada "doutrina da neutralidade"). Não seriam antijurídicos nem conforme ao direito, de modo que o direito prefere não intervir, deixando-os a vogar em espaço livre. O exemplo mais conhecido que cabe nesta fórmula é o do alpinista suspenso com outro por uma corda que se encontra quase a ceder e que por isso suporta apenas um deles. O da frente decide cortá-la, deixando despenhar-se no abismo o companheiro, pendurado a seguir. A crítica que se faz a esta posição tem a ver com a necessidade de uma clara distinção entre a antijuridicidade (que autoriza alguém a defender-se) e a conformidade ao direito (que gera um dever de tolerar). Por sua vez, a teoria do efeito justificante do estado de necessidade tem as suas raízes na teoria da colisão de Hegel. A ideia chave é a seguinte: entre o bem a salvaguardar e o bem a sacrificar para sua protecção deverá interceder uma ponderação de bens e interesses. Resultando dessa ponderação a predominância do bem ou do interesse a salvaguardar, o agente estará justificado. Por ex.: A parte os vidros da janela de um terceiro porque esse é o único meio de ventilar uma habitação cheia de gás onde A está prestes a morrer asfixiado. A doutrina do efeito desculpante do estado de necessidade tem o seu fundamento na teoria da adequação de Kant. A ideia base é a seguinte: aquilo que o autor faz ao actuar em estado de necessidade é e permanece ilícito. Mas porque lhe não era exigível outra conduta deverá ser desculpado. Ex.: A mata outra pessoa para salvar a própria vida. A doutrina alemã distingue a salvaguarda de interesses próprios ou alheios realmente (wesentlich) preponderantes sobre outros em conflito como causa de justificação; e como causa de desculpação a salvaguarda de interesses próprios e fundamentais, como a vida, a integridade física e a liberdade, face a outros iguais ou mesmo superiores. Cf. os §§ 34 e 35 do StGB: Lackner, p. 257 e ss. Partindo desta ideia 181 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. diferenciada, o Código Penal português acolheu o estado de necessidade justificante no artigo 34º: se o interesse salvaguardado for de valor sensivelmente superior ao sacrificado, o facto estará justificado por direito de necessidade. E acolheu no artigo 35º o estado de necessidade desculpante: se o interesse salvaguardado não for de valor sensivelmente superior ao sacrificado o facto é ilícito, mas o agente poderá ver a sua culpa excluída. Umas vezes o estado de necessidade exclui a ilicitude: casos de sacrifício de valores menores para salvar valores maiores. Outras vezes exclui a culpa: casos de sacrifício de valores iguais aos que se salvam, ou mesmo de valores maiores, quando ao agente não era exigível outro comportamento. "O fundamento da justificação do estado de necessidade parte da compatibilização da missão do direito de proteger bens jurídicos com uma situação de perigo e de conflito em que não se podem salvar todos — e aí entram em jogo a ponderação de interesses e a ideia da inexigibilidade. A ponderação de interesses determina a inconveniência de se protegerem interesses inferiores à custa de interesses superiores. Mas quando se podem salvar interesses preponderantes à custa de outros menos valiosos, a preferência do direito inclina-se, logicamente, para eles e valora positivamente a acção. E quando os interesses em conflito são equivalentes, então, ante a indiferença do direito por qualquer resultado, por não ser além disso a sanção jurídica o meio mais adequado para resolver o conflito e impor o sacrifício próprio ou a simpatia ou conveniência por interesses alheios, e sobretudo para permitir o máximo de liberdade aos cidadãos — o direito não quer exigir a ninguém que se abstenha de actuar. Por outro lado, a inexigibilidade geral em determinadas situações ou, ao contrário, a exigibilidade específica ou superior por certos motivos são factores que também intervêm na ponderação de interesses. Deste modo, ponderação de interesses e inexigibilidade estão estreitamente relacionados". Cf. Luzón Peña, Curso de Derecho Penal, PG I 1996, p. 622. "O Autor do Projecto começou por, sumariamente, expor a teoria do chamado estado de necessidade. Referiu as três posições possíveis que sobre ele podem ser e têm sido defendidas: a que o vê sempre como causa de exclusão da ilicitude; a que o vê sempre como causa de exclusão da culpa; e a dita "teoria diferenciada", que o considera como obstáculo à ilicitude quando o interesse protegido é sensivelmente superior ao sacrificado e como obstáculo à culpa nas outras hipóteses. (…) E acrescentou: numa visão puramente individualista do direito e dos bens jurídicos que aquele protege não se compreende que seja lícita a intervenção de alguém na esfera jurídica alheia; mas à medida que nos aproximamos de uma visão mais social do direito e dos bens jurídicos, tal intervenção começa a ser progressivamente admitida e, nesta medida, pode falar-se de um verdadeiro direito de necessidade ou, o que é o mesmo, de um estado de necessidade que exclui a ilicitude do facto". Acta da 15ª Sessão, Actas, p. 234. Alguns dos problemas que rodeiam a figura do estado de necessidade têm a ver com formulações "pouco precisas" com que a norma aparece dotada: "meio adequado", 182 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. "sensível superioridade do interesse a salvaguardar", "ser razoável impor ao lesado", etc. Por outro lado, e ao contrário do que acontece na legítima defesa, em que o agente responde a uma agressão ilícita, aquele que age em estado de necessidade envolve um terceiro "inocente" no afastamento da situação de necessidade — o que, como se viu já, induz um outro sentido para a justificação. A estrutura do estado de necessidade justificante (estado de necessidade "objectivo" ou "direito" de necessidade). Podemos associar nesta altura, para melhor as compreender, a figura do artigo 34º (direito de necessidade) e a do artigo 339º do Código Civil (estado de necessidade jurídico-civil). Neste artigo 339º encontra-se consagrado um verdadeiro direito de necessidade, proclamando-se que é lícita a acção daquele que destruir ou danificar coisa alheia com o fim de remover o perigo actual de uma dano manifestamente superior, quer do agente quer de terceiro. No artigo 34º, o direito de necessidade torna a conduta lícita, mas é preciso: a ) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro; b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado. Um interesse a salvaguardar (interesse juridicamente protegido) e um interesse a sacrificar estão assim frente a frente. O interesse a salvaguardar é alvo da ameaça de um perigo actual. O afastamento do perigo conduz ao sacrifício de um outro interesse. Uma ponderação entre os interesses contrapostos aponta para a prevalência do interesse protegido. A ponderação compreende todas as circunstâncias que caracterizam a concreta situação de colisão, comparando-se ambos os bens, por ex., a vida dum lado, a propriedade do outro. A situação de necessidade ("… um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro…"). A situação de necessidade pressupõe uma situação conflitual de bens jurídicos, mas os bens ou interesses em conflito não se encontram tipificados no artigo 34º. Protegido pelo direito de necessidade pode ser assim, em princípio, qualquer bem jurídico, penal ou não penal (cf. Figueiredo Dias, p. 214). Podem estar cobertos pelo direito de necessidade, segundo a norma homóloga do código penal alemão, o corpo, a vida, a honra e a propriedade, mas esta enumeração é aí apenas exemplificativa, não tem um significado taxativo nem se encontra limitada aos 183 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. bens do sujeito. Por conseguinte, na justificação qualquer bem jurídico é merecedor de protecção pelo direito de necessidade. Por outro lado, se no artigo 35º o bem a salvaguardar não tem que ser mais valioso do que o bem a sacrificar, na justificação essa ponderação de bens jurídicos tem um significado decisivo. Daí que se possa afirmar que são susceptíveis de gozar da cobertura do direito de necessidade também os interesses da comunidade ou qualquer outro interesse geral. Assim, no exemplo do Prof. Figueiredo Dias, se alguém comete um facto típico patrimonial de valor relativamente pequeno para afastar um perigo actual de contaminação ambiental. Os autores como Eser / Burkhardt apontam uma excepção: a vida (nascida), porque o seu sacrifício não se pode justificar nunca, nem sequer para salvar outra vida. Se nos encontramos face a um caso de "vida contra vida", como no exemplo da tabula unius capax, que só podia transportar um dos náufragos, se o sujeito mata o companheiro para se salvar a si mesmo, a situação corresponde, quando muito, a um estado de necessidade desculpante. O bem jurídico a salvaguardar tem que se encontrar objectivamente em perigo e este deverá ser actual. Um perigo actual existe quando a possibilidade de um dano é tão iminente que com quase total certeza vai ter lugar se não se adoptar imediatamente uma medida de defesa, o que também pode ocorrer com os chamados "perigos duradoiros", em que a qualquer momento, e portanto a configurar igualmente a actualidade do perigo, se pode dar uma situação de perigo, como por ex., o da derrocada de um edifício em ruínas. A aponta para B com intenção homicida uma pistola carregada — nesse momento, a vida de B está em perigo, ainda que o tiro não acerte. Mas não haverá perigo para a vida se nas mesmas condições a pistola não estiver carregada. CASO nº 24-E: Na madrugada de 15 de Abril de 1970, quando A seguia conduzindo o seu veículo automóvel pelo troço da então chamada auto-estrada dos Carvalhos, nas proximidades do Porto, fazendo- o de acordo com as pertinentes regras de direito rodoviário, viu, a uns escassos cinco ou seis metros de distância, que um vulto humano se lançava em correria para atravessar a faixa de rodagem. A ainda se esforçou por travar e desviar a trajectória do seu carro mas, atenta a curta distância e o inopinado da situação, não conseguiu evitar o embate, que foi violento, ficando o peão estendido no chão, sem dar acordo de si. A ia a sair do carro para se inteirar do real estado da pessoa atropelada e providenciar socorros, mas deu-se conta de que uma chusma de indivíduos armados de paus e em berreiro desenfreado, gritando que o iam matar, se aproximava do local do acidente. Temendo não poder explicar o sucedido 184 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. nem deter a multidão, que manifestamente se preparava para fazer "justiça" por sua conta, A, ainda que consciente de que abandonava a vítima do atropelamento e que o "abandono de sinistrado" era punido pela lei, voltou a entrar no carro, que acelerou, indo entregar-se à polícia, em Vila Nova de Gaia, onde fez um relato circunstanciado de tudo o que acontecera. Na ponderação de interesses pode interessar saber, para solucionar casos como o apresentado, se o perigo foi ou não provocado pelo próprio sujeito, já que, nos termos do artigo 34º, alínea a), é necessário à justificação "não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro". Interessa saber desde logo, explica o Prof. Figueiredo Dias, "o que pretendeu a lei com o requisito, neste contexto, da voluntariedade da criação do perigo", sabendo-se que o fundamento justificante do estado de necessidade é a solidariedade devida a quem se encontra em situação de necessidade. Ora, a justificação só deverá considerar-se afastada se a situação for i nt enci onal ment e provocada pelo agente, isto é, se ele premeditadamente criou a situação para poder livrar-se dela à custa da lesão de bens jurídicos alheios. De qualquer modo, sempre haverá que ter em conta a ressalva da última parte da alínea a) do artigo 34º quando se trata de proteger interesses alheios. Analisemos a propósito a seguinte situação factual, onde é evidente a responsabilidade do agente pelo seu estado de necessidade, mas onde se não vê uma concreta “provocação” da sua parte: B tem casa e jardim fora do perímetro urbano e porque teme ser assaltado, adquire um cão treinado para essas necessidades. A passa por ali perto e, pensando divertir-se, põe~se a acicatar os ânimos do animal, que o persegue e ameaça morder nas pernas. A toma consciência de que já não consegue safar-se, tem porém tempo para pegar num pau bem grosso e dá uma pancada no cão, que o atinge num dos olhos, em termos de o deixar cego. A pancada era necessária para A não ser mordido pelo animal. A acção de necessidade A acção de necessidade pressupõe em primeiro lugar uma ponderação de interesses, pois de acordo com o disposto na alínea b) do artigo 34º só tem lugar a justificação se houver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado. Por conseguinte: segundo o princípio do interesse preponderante, só poderá considerar- 185 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. se o facto justificado quando o valor do bem posto a salvo (bem ou interesse jurídico a preservar) é superior ao do interesse lesado (bem ou interesse sacrificado). Como se deverá realizar essa ponderação? O ponto de partida nesta questão é a ponderação abstracta de interesses. Leva-se esta a cabo contrapondo os bens jurídicos em colisão e considerando o grau de protecção que lhes é outorgado pelo ordenamento jurídico. Um dos índices poderá ser a medida legal da pena cominada: a vida de uma pessoa, bem jurídico protegido no artigo 131º, é hierarquicamente superior ao bem jurídico da integridade física, protegida pelos artigos 143º e ss. O legislador reconhece um maior valor ao direito à vida da pessoa nascida relativamente ao não nascido. Justifica-se a corrida perigosa da ambulância que transporta um ferido em estado crítico, mas já não quando transporta um doente com uma insdisposição ligeira (figueiredo Dias). Mas em definitivo o que resulta decisivo é a ponderação global concreta de ambos os interesses contrapostos. Os bens jurídicos afectados só constituem uma parte, se bem que considerável, dos factores valorativamente relevantes. Há que valorar outros factores (positivos ou negativos), como, por ex.: a dimensão e a proximidade do perigo, a quantidade e a intensidade da lesão do bem jurídico (interesse completamente aniquilado ou só parcialmente ou ligeiramente afectado), o tipo e a dimensão das consequências secundárias ou remotas, a obrigação especial de tolerância do perigo por parte dos afectados em virtude da aceitação profissional (polícias, bombeiros, etc.), e finalmente a esfera de procedência da fonte de perigo. Este último factor pode ser importante, como já se disse, no caso de auto-provocação da situação do estado de necessidade ainda que, desde logo, se não exclua a aplicação do artigo 34º (como acontece com o artigo 35º) pelo facto de o autor ter provocado o mesmo ou cooperado na produção da situação de necessidade. Há que igualmente levar em conta a limitação imposta pela alínea c) do artigo 34º, exigindo, para a justificação, que seja razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza e ao valor do interesse ameaçado. São conhecidas as dificuldades que uma avaliação em concreto da hierarquia dos interesses conflituantes pode suscitar, recorda Faria Costa (Jornadas, p. 62). “Nesta matéria devo bastar-me com acentuar que pontos de apoio para a levar a cabo são oferecidos, quer pela medida das sanções legais cominadas para a violação dos respectivos bens jurídicos, quer pelos princípios ético-sociais vigentes na comunidade em 186 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. certo momento, quer pelas modalidades do facto, a medida da culpa ou por pontos de vista político- criminais. Como ainda e também, noutro plano pela extensão do sacrifício imposto e pela extensão e premência do perigo existente”. CASO nº 24-F: A apresentou queixa contra B, seu antigo empregado, por factos que em seu entender integram a prática de vários crimes de abuso de confiança. No decorrer das diligências em sede de inquérito apurou-se que uma das letras em causa foi apresentada a desconto no Banco ARP, tendo sido o respectivo produto líquido do desconto creditado na conta de depósitos à ordem com o nº 0001.222222.001. Para aquilatar da responsabilidade criminal do arguido entendeu-se ser necessário apurar quem são os titulares da conta onde foi efectuado o referido movimento, e bem assim quem procedeu ao desconto, para o que se contactou o Banco ARP que, todavia, se escusou a prestar tais informações, invocando sigilo bancário: artigo 78º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro No Código Penal revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, o crime de violação de segredo profissional vem previsto no artigo 195º, excluindo-se apenas do seu âmbito de aplicação a revelação de segredo profissional com consentimento. Ao invés, na redacção do Código Penal de 1982, o artigo 184º excluía desse mesmo âmbito de aplicação a revelação de segredo com justa causa ou com consentimento de quem de direito, estabelecendo o artigo 185º do mesmo Código os pressupostos da exclusão da ilicitude da violação do segredo profissional e que servia de fundamento à quebra desse segredo, preceito este que não tem correspondência no Código Penal actualmente em vigor. Em resultado dessa revisão, em que foi eliminada a referida cláusula da exclusão da ilicitude constante da versão originária do Código Penal, o Código de Processo Penal aprovado pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, no artigo 135º, nº 2, dispõe que “havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento”, preceituando o nº 3, que “o tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado (…) pode decidir da prestação de testemunho com quebra de segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. Do exposto resulta que a intervenção do tribunal superior na resolução do incidente previsto no artigo 135º, nº 3, do Código de Processo Penal, surge se o tribunal considerar que a escusa é legítima mas, mesmo assim, entende que no caso concreto a quebra do sigilo profissional se mostra justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante (vd. acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Dezembro de 1996, in CJ 1996, tomo V, p. 154). "Onde estas regulamentações [artigo 339º do CC, artigos 195º do CP e 135º do CPP e outras diversas regulamentações dos actos de autoridades, nomeadamente policiais] se revelem mais estritas do que o art. 34º não pode recorrer-se a este para cobrir uma situação como capa da justificação. Mas, por outro lado, o 187 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. art. 34º contém concretizações, v. g. na exigência de adequação do meio, que podem reflectir-se na interpretação de especiais causas de justificação baseadas também na ideia da prevalência, em situação conflitual, de interesses mais valiosos, valendo em tais questões o art. 34º como lex generalis na matéria." Figueiredo Dias, Textos, p. 214. CASO nº 24-H: O cão de estimação de A é um animal de raça e muito valioso, com vários prémios já ganhos, mas que tem uma especial embirração pelo pequeno cão do vizinho, um pacífico cachorro, rafeiro, igualmente estimado por B, seu dono. Em dado momento, um ataque, fulminante, fazia adivinhar que o pequeno cachorro, inevitavelmente, sairia morto das investidas do inimigo. B, para o salvar, pegou no taco de golfe que tinha à mão e deu com ele no cão de raça, que ficou sem um olho. Sem essa sua enérgica actuação, o cão de B teria sido morto. Variante: O cão de estimação de A é um animal de raça e muito valioso, com vários prémios já ganhos, que foi à cozinha do vizinho, B, donde tirou um par das suas salsichas preferidas. B, dando-se conta do acontecido, pretendendo recuperar as suas salsichas, dá uma pancada no animal com o taco de golfe que tem ali à mão. O cão, com a violência da pancada, acabou por ficar sem um olho. A pancada com o taco era a única maneira possível de evitar que o cão comesse as salsichas ou as levasse consigo. Na verdade, B recuperou as suas salsichas. Eb. Schmidhäuser, StrafR AT Studienbuch, p. 144; J. Hruschka, StrafR, p. 100. Punibilidade de B? III. A justificação do aborto no Código Penal. "Como crime contra a vida intra-uterina, o aborto resiste quase incólume à lógica justificadora da Parte Geral do Código Penal. Causas de exclusão da ilicitude como a legítima defesa, o direito de necessidade e o consentimento do ofendido são-lhe inaplicáveis. A invalidade da justificação por legítima defesa resulta da ausência de um pressuposto definido no artigo 32° do Código Penal: a agressão ilícita e actual. O feto não pode, com efeito, praticar uma agressão, em nenhuma acepção juridicamente relevante. É, em todos os sentidos, um ser inocente. Tão pouco o direito de necessidade previsto no artigo 34° do Código Penal pode justificar o aborto. Em primeiro lugar, porque a vida (embora intra-uterina) assume um valor tal que se torna difícil afirmar, relativamente a ela, a "sensível superioridade" de qualquer outro bem jurídico (incluindo mesmo a vida autónoma), nos termos do disposto na alínea b) do artigo 34º. Em segundo lugar, porque tomando o nascituro como lesado não se pode concluir pela razoabilidade da imposição do sacrifício da sua própria vida, como seria exigível por força do disposto na alínea c) do artigo 34º. Por fim, o feto não pode prestar o seu consentimento na lesão. E se o pudesse fazer, o consentimento não excluiria a ilicitude do aborto, por não estar em causa um interesse jurídico livremente disponível (artigo 38º, nº 1). Apenas o conflito de deveres pode ser seriamente encarado como causa de justificação do aborto. Porém, não são nítidos os limites deste instituto, quando aplicáveis a tal crime. Indiscutível é apenas que a salvação da vida da mãe à custa da vida do feto é lícita, ante o disposto no nº 188 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 1 do artigo 36º. A vida da mãe representa um valor pelo menos igual ao da vida do nascituro. Pode mesmo afirmar-se uma relação de superioridade, que se manifesta, nomeadamente, na inferior penalidade cominada para o aborto e na impunidade do aborto negligente. Já é duvidoso, contudo, que o aborto possa ser directamente provocado, através de uma conduta activa, para obter como efeito a salvação da vida da mãe. Se se admitir uma tendencial igualdade dos bens jurídicos conflituantes, a violação do dever de omitir uma actuação lesiva assume maior gravidade do que a violação do dever de empreender uma actuação salvadora. Não é justificável, por exemplo, a conduta do médico que retirar a um doente uma máquina de reanimação para a colocar ao serviço de outro doente, quando ambos requeiram idênticos cuidados. E igualmente problemática será a justificação do aborto por conflito de deveres quando a morte do feto vise assegurar não já a sobrevivência da mãe mas a preservação da sua saúde. É certo que uma grave lesão no corpo ou na saúde é mais gravemente sancionada, no Código Penal, do que um aborto: para as ofensas corporais graves comina-se uma penalidade de 1 a 5 anos e para o aborto consentido uma penalidade até 3 anos de prisão. Estes raciocínios quantitativos não são, porém, decisivos. Na escala constitucional de bens jurídicos, dá-se primazia à vida relativamente a integridade pessoal (artigos 24° e 25° da Constituição) e no Código Penal respeita-se essa ordem (artigos 131° e ss. e 142° e ss.). O facto de a um homicídio poder caber penalidade menos gravosa do que a um crime de ofensas corporais (cfr. os artigos 134° e 143°) não subverte aquela ordem axiológica; deve-se, exclusivamente, à necessidade de graduar a responsabilidade em função da gravidade do crime e da culpabilidade do agente, que não dependem só da relevância do bem jurídico tutelado. De todo o modo, a possibilidade de justificar através de uma causa de exclusão da ilicitude tradicional o aborto terapêutico implicará que tenha sido apenas este que, cautelosamente, Eduardo Correia pretendeu despenalizar no artigo 152° do Anteprojecto da parte Especial do Código Penal, seguindo uma via que Melo Freire preconizara em 1786, no seu Projecto de Código Penal. Na discussão travada no âmbito da Comissão Revisora, Eduardo Correia pronunciou-se pela inevitabilidade da justificação do aborto terapêutico, invocando as leis penais de outros países e advertiu que, na falta de consagração expressa, a jurisprudência acabaria por criar - com o risco de abusos - uma causa de exclusão da ilicitude supralegal. A verdade, contudo, é que o Código Penal de 1982 não contemplaria, originariamente, nenhuma causa de justificação (ou, na versão mais descomprometida do Anteprojecto de Eduardo Correia, de impunibilidade) do aborto. Só a Lei n° 6/84, de 11 de Maio, o viria fazer." Rui Carlos Pereira, O crime de aborto e a reforma penal, 1995, p. 45 e ss. IV. Outras indicações de leitura • Código Civil: artigo 339º, nº 2 — obrigação de indemnizar o lesado pelo prejuízo sofrido. • Acórdão do STJ de 25 de Junho de 1992, BMJ-418-569: legítima defesa, direito de necessidade, estado de necessidade desculpante, excesso de legítima defesa. • Acórdão da Relação de Coimbra de 5 de Julho de 2000, RPCC 10 (2000): Segredo. Artigo 135º. Segredo médico. O tribunal só pode impor a quebra do segredo profissional se verificar que os interesses que o segredo visa proteger são manifestamente inferiores aos prosseguidos com a sua revelação. 189 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão da Relação de Coimbra de 11 de Julho de 2002, CJ 2002, tomo V, p. 36: exclusão da ilicitude. Princípio da ponderação dos valores conflituantes. Condução sem habilitação legal. • Américo A. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, dissertação de doutoramento, 1995, especialmente, p. 172 e ss. • António Carvalho Martins, O aborto e o problema criminal, 1985. • Baumann / Weber / Mitsch, Strafrecht, AT, Lehrbuch, 10ª ed., 1995. • Boaventura de Sousa Santos, L'interruption de la grossesse sur indication médicale dans le droit pénal portugais, BFDC, XLIII, 1967. • Claus Roxin, G. Arzt, Klaus Tiedemann, Introducción al derecho penal y al derecho penal procesal, Ariel, Barcelona, 1989. • Claus Roxin, Teoria da infracção, Textos de apoio de Direito Penal, tomo I, AAFD, Lisboa, 1983/84. • Costa Andrade, O princípio constitucional “nullum crimen sine lege” e a analogia no campo das causas de justificação, RLJ ano 134º, nº 3924. • Eduardo Correia, Direito Criminal, I, p. 418; II, p. 49. • Eduardo Maia Costa, Evasão de recluso, homicídio por negligência, comentário ao ac. do STJ de 5 de Março de 1992, RMP (1992), nº 52. • Enrique Gimbernat Ordeig, El estado de necesidad: un problema de antijuridicidad, in Estudios de derecho penal, 3ª ed., 1990. • Enrique Gimbernat Ordeig, Rechtfertigung und Entschuldigung bei Befreiung aus besonderen Notlagen, in Rechtfertigung und Entschuldigung, III, her. von A. Eser und W. Perron, Freiburg, 1991. • Eser/Burkhardt, Strafrecht I, 4ª ed., 1992; em tradução espanhola: Derecho Penal, Cuestiones fundamentales de la Teoría de Delito sobre la base de casos de sentencias, Ed. Colex, 1995. • F. Haft, Strafrecht, AT, 6ª ed., 1994. • Giuseppe Bettiol, Direito Penal, Parte Geral, tomo II, Coimbra, 1970. • Gonzalo Quintero Olivares, Derecho Penal, PG, 1992. • Jorge de Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal. Doutrina geral do crime. Lições ao 3º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, elaboradas com a colaboração de Nuno Brandão. Coimbra 2001. • José António Veloso, "Sortes", Separata de Estudos Cavaleiro de Ferreira, RFDL, 1995. • José Cerezo Mir, Curso de Derecho Penal Español, PG II, Teoría Jurídica del delito/2, 1990; 2ª ed., em 1998, como Parte General III. • Juan Bustos Ramírez, Manual de derecho penal español. Parte general, 1984. • Karl Lackner, StGB, 20ª ed., 1993. • Maria Fernanda Palma, A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, 1990. • Maria Fernanda Palma, Justificação em Direito Penal: conceito, princípios e limites, in Casos e Materiais de Direito Penal, Coimbra, 2000, p. 109. 190 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Maria Fernanda Palma, O estado de necessidade justificante no Código Penal de 1982, in BFD, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, III, 1984. Publicado igualmente in Casos e Materiais de Direito Penal, Coimbra, 2000, p. 175. • Rui Carlos Pereira, O crime de aborto e a reforma penal, 1995. • Teresa P. Beleza, Direito Penal, 2º vol., AAFDL. • Teresa Quintela de Brito, O direito de necessidade e a legítima defesa no Código Civil e no Código Penal, 1994. • Vaz Serra, Causas justificativas do facto danoso, BMJ-85. § 9 Causas de justificação (outros desenvolvimentos). I. Ilicitude, justificação. Tipo de ilícito, tipo de justificação; elementos objectivos e subjectivos; limitações ético-sociais. CASO nº 25: T, indivíduo franzino e de poucas forças, quando se encontrava na casa de O2 começou a ser agredido sem motivo por O1, indivíduo de porte atlético. T bem podia ter fugido da dependência e da própria casa de O2, logo que foi ameaçada a sua integridade física. Em vez disso, porém, pegou num vaso de flores que se encontrava ali à mão e arremessou-o contra O1. O vaso atingiu O1 no peito, as flores bateram-lhe na cara. O1 tropeçou e caiu no chão. Sofreu uma ferida contusa. O vaso caiu e desfez-se em cacos. T previu tudo isso. Devemos começar por distinguir entre o que aconteceu com O1 e o que aconteceu com O2. Recomenda-se que se comece com O1, por se tratar do crime mais grave (artigo 143º do Código Penal). O artigo 143º, nº 1, corresponde ao crime fundamental de ofensas corporais, pelo que, se houver uma circunstância qualificativa, esta não deverá ser descurada. Havendo, pelo contrário, uma causa de justificação, o ilícito não se verifica. O tipo objectivo do crime fundamental contra a integridade física (artigo 143º, nº 1) mostra-se preenchido. Não há razões para pôr em dúvida que o ferimento sofrido por O1 é imputável a T. A vertente subjectiva do ilícito está, do mesmo modo, preenchida. T previu o resultado, a ofensa contra a integridade física, como consequência da sua descrita actuação. 191 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Pode todavia acontecer que o facto se encontre justificado. Uma justificação da ofensa corporal de O1 não se encontra excluída. Os pressupostos de justificação do dano podem ser no entanto diferentes e podem até não ocorrer. De qualquer forma, as situações não devem ser confundidas. A ofensa corporal de O1 poderá ser especialmente justificada por legítima defesa (artigos 31º, nºs 1 e 2, a), e 32º). Da actuação atribuível a O1 surgiu um perigo para a integridade física de T. O1 agrediu, no sentido do artigo 32º. A agressão era actual, face à imediata ameaça da integridade física de T, e era ilícita — O1 não tinha o direito (não tinha nenhum direito) de empregar a força contra T. Este encontrava-se em situação de legítima defesa. Nesta situação, o arremesso do vaso de flores representava uma actuação defensiva em princípio adequada perante a agressão. Era, por outro lado, o meio mais suave para a defesa. O1 era fisicamente muito mais possante e T limitou-se a atirar-lhe com o vaso ao peito — e não, por ex., à cabeça. A defesa escolhida por T foi o meio necessário no sentido do artigo 32º. Mostram-se preenchidos os pressupostos objectivos do tipo justificador. Contra esta solução não se pode objectar que T se poderia ter posto em fuga (commodus discessus). Em situação de legítima defesa, a defesa é sempre permitida. Não é caso de introduzir na discussão as limitações "ético-sociais" para que, hoje em dia, tanto se chama a atenção. Num caso regra, como este é, o defendente tem o direito de praticar todos os actos de defesa idóneos para repelir a agressão, desde que não lhe seja possível recorrer a outros, também idóneos, mas menos gravosos para o agressor. A situação não está sujeita a quaisquer limitações decorrentes da comparação dos bens jurídicos, interesses ou prejuízos em causa, nem T estava obrigado a evitar a agressão através da fuga, por mais cómodo e possível que isso fosse. Como já se disse, o artigo 32° do Código Penal exige, para que se verifique legítima defesa, que a conduta do agente tenha sido meio necessário para repelir uma agressão. A exigência de o facto ser praticado como meio necessário — de defesa — para impedir a agressão implica a necessidade de o agente actuar com animus defendendi. As condições deste (i. é, as condições subjectivas de justificação do facto por legítima defesa) encontram-se também satisfeitas: o defendente agiu com vontade de defesa. Há certas causas justificativas, por ex., a legítima defesa, relativamente às quais se põe o problema de saber se bastará, do lado subjectivo, o conhecimento pelo agente da situação justificadora, ou será ainda necessário um certo animus ou intenção de actuar no sentido da licitude (cf. Figueiredo Dias, Pressupostos da punição, in Jornadas de Direito Penal, CEJ, 1983, p. 61). 192 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. T conhecia a situação de legítima defesa e estava igualmente ciente da forma e da medida defensiva por si escolhida. A lesão corporal de O1 está consequentemente justificada por legítima defesa (artigos 31º, nºs 1 e 2, a), e 32º). Como fizemos noutros casos, devemos agora apreciar o que se passou com O2. Está em causa o dano causado por T. O tipo objectivo do artigo 212º do Código Penal mostra-se preenchido. O vaso foi destruído por acção de T. Também o lado subjectivo se encontra preenchido. T previu a destruição do vaso, que é coisa móvel alheia, em consequência da sua actuação. Não é necessário um dolo específico quando se trata de crime de dano. É caso para averiguar se ocorre alguma causa de justificação. A justificação já atendida (por legítima defesa) não se estende a este caso, ainda que se trate sempre da mesma acção. O vaso pertencia a O2 e este não praticou qualquer agressão. Os pressupostos do artigo 34º (direito de necessidade) estarão presentes? O estado de necessidade surge quando o agente é colocado perante a alternativa de ter de escolher entre cometer o crime, ou deixar que, como consequência necessária, se o não cometer, ocorra outro mal maior ou pelo menos igual ao daquele crime. Depende ainda da verificação de outros requisitos, como a falta de outro meio menos prejudicial do que o facto praticado e a probabilidade da eficácia do meio empregado (ac. da Relação do Porto de 2 de Janeiro de 1984, in Simas Santos-Leal Henriques, Jurisprudência Penal, p. 131). O direito de necessidade, justificado embora por razões de recíproco solidarismo entre os membros da comunidade jurídica, tem em todo o caso de recuar perante a possibilidade de violação da dignidade e da autonomia ética da pessoa de terceiro (exigibilidade ético-social do sacrifício imposto: cf. Figueiredo Dias, Jornadas CEJ, p. 63). Todavia, o estado de necessidade, contrariamente ao que ocorre com a legítima defesa, é eminentemente subsidiário. Não existe se o agente podia conjurar o perigo com o emprego de meio não ofensivo do direito de outrem. "A própria possibilidade de fuga (recaindo o perigo sobre bem ou interesse inerente à pessoa) exclui o estado de 193 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. necessidade, pois tal recurso, aqui, não representa uma pusilanimidade ou conduta infamante" (Nelson Hungria, cit. em Leal Henriques-Simas Santos, O Código Penal de 1982, 1º vol., comentário ao artigo 34º). Cf., ainda, J. Hruschka, Strafrecht, p. 18. Consequentemente, não se encontra, por esta via, justificado o crime de dano do artigo 212º. Repare-se, para terminar, que também o consentimento (artigo 38º) exclui a ilicitude do facto. Ao consentimento efectivo é equiparado o consentimento presumido, definido nos nºs 1 e 2 do artigo 39º. Atendendo, todavia, à escassez da matéria de facto, não nos será razoavelmente permitido supor que O2, o dono do vaso, teria eficazmente consentido. O Código não dispõe de uma norma geral sobre os elementos subjectivos das causas de justificação, mas o artigo 38º, nº 4, estabelece que no caso de o consentimento não ser conhecido do agente, este será punível com a pena aplicável à tentativa. A punibilidade da tentativa explica-se por o desvalor de resultado ser compensado pela ocorrência da situação objectiva justificante, mas é duvidoso que este regime, consagrado para o consentimento, valha analogicamente, para as restantes causas de justificação (cf. Rui Carlos Pereira, Justificação do facto e erro em direito penal; Raúl Soares da Veiga, Sobre o consentimento desconhecido, RPCC, ano 1 (1991), p. 327). 3ª Subsecção. Culpa. § 10 Generalidades. Em páginas precedentes procurámos distinguir a ilicitude da culpa. Distinção que o próprio código em várias ocasiões acentua, por exemplo, no artigo 17º, nº 1: “age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”. Ou no artigo 72º, nº 1: “o tribunal atenua especialmente a pena (…) quando existirem circunstâncias (…) que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”. Comprovando-se que uma determinada 194 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. conduta integra um tipo de ilícito penal significa darmos como comprovada a ilicitude, por violar o comportamento humano um dever imposto pela ordem jurídica (proibição ou comando). Já quando falamos da culpa, do que se trata é de saber se ao agente pode ser pessoalmente censurado o facto ilícito praticado, se lhe podemos reprovar o seu carácter desvalioso. Mas então o que estará em causa é um poder individual (um nexo pessoal entre o agente e o facto) e já não o dever que a todos compete: culpa é censurabilidade do comportamento humano por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter actuado de acordo com ele. Não há pena sem culpa e a medida da culpa é limite da medida da pena (artigo 40º). Com esta ou com formulações muito próximas temos o princípio da culpa: a pena funda-se na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo (Sousa e Brito). Entende-se assim a culpa como censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso, estando tal pensamento ligado à aceitação da liberdade do agente, à aceitação do seu “poder de agir doutra maneira”, como escreve o Prof. Eduardo Correia (Direito Criminal I, p. 361). Implica tal princípio que não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, e que a medida da pena em caso algum deve ultrapassar a medida da culpa. O princípio da culpa tem assento constitucional, decorrendo da dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade (artigos 1º e 27º, nº 1, da Constituição). “São consequências desta consagração constitucional, entre outras, a exigência de uma culpa concreta (e não ficcionada) como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, e a inerente proscrição da responsabilidade objectiva; a proibição de aplicação de penas que excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa ( 20 ) e a proibição das penas absoluta ou tendendialmente fixas” (acórdão 20 Fernanda Palma (in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, p. 25) fala de uma função meramente restritiva da culpa na determinação da pena (artigos 40º, nº 2, e 70º (a contrario) do Código Penal. Significa isso que “a culpa como censura da pessoa do agente (da sua vontade ou da sua orientação de conduta) não justifica a pena nem a sua medida judicial, apenas impede que razões preventivas justifiquem uma pena não proporcionada (superior) à da culpa do agente”. 195 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. do Tribunal Constitucional nº 432/2002, de 22 de Outubro de 2002, publicado no DR II série de 31 de Dezembro de 2002). O princípio da culpa, derivando da essencial dignidade da pessoa humana, acha-se consagrado nos artigos 1º e 25º, nº 1, da Constituição, e articula-se com o direito à integridade moral e física. Além disso, no âmbito do direito penal, exprime-se a diversos níveis: veda a incriminação de condutas destituídas de qualquer ressonância ética, impede a responsabilização objectiva, obsta à punição sem culpa e à punição que exceda a medida da culpa. Acórdão do Tribunal Constitucional, de 7 de Junho de 1994, DRep., II série, nº 249, de 27.10.94. Culpa é censurabilidade — é um juízo normativo (valorativo) sobre o agente. A capacidade de motivação indica que o agente pode ser considerado responsável, por ter podido actuar de outra maneira.. Já anteriormente observámos que à visão causalista andava associada a da teoria psicológica da culpa. A culpa era concebida como um simples nexo subjectivo. Atendia-se à natureza psicológica entre o facto e o seu autor, que tanto podia revestir a forma dolosa como a negligente. Esgotava-se portanto na presença ou na ausência de dolo ou negligência. Mas a culpa não está apenas na cabeça do criminoso. Foi Frank quem, referindo-se à insuficiência da relação psicológica para a culpa, utilizou o termo censurabilidade para a definir e ampliar os seus contornos: A relação psíquica entre o agente e o facto passa a ser observada sob a perspectiva da censura que o seu carácter desvalioso implica. Culpa é portanto censurabilidade, torna- se juízo de reprovação assente na estrutura lógico real do livre arbítrio — a culpa fundamenta a censura pessoal contra o agente, já que este não omitiu a conduta antijurídica, embora a pudesse ter omitido. ( 21 ) 21 Esta posição, assente no livre arbítrio, no poder-agir-de-outra-maneira, parte de uma premissa cientificamente inverificável. Como veremos a seguir, apareceram entretanto posições que relacionam a culpa com os fins das penas, de que não pode ser compreendida separadamente. As novas discussões levaram também ao estabelecimento de uma mais clara distinção entre culpa como fundamento da pena e culpa como critério da medida da pena. Para Roxin, a culpa, por si só, seria incapaz de fundamentar a pena num direito penal orientado exclusivamente para a proteção de bens jurídicos (não retribucionista), tornando-se necessário acrescentar-lhe considerações de prevenção geral e especial. Culpabilidade e necessidades preventivas passam assim a integrar o terceiro nível da teoria do delito, que Roxin chama de "responsabilidade" (Verantwortlichkeit).Cf. a tradução por Maria da Conceição Vladágua do § 19 do 1º 196 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Por conseguinte: “não haverá culpa onde não houver censurabilidade, mesmo que o substracto psíquico do tipo requerido se mantenha. A culpa exige, para além da comprovação cognitiva de um certo substracto psíquico, uma valoração pelo juiz daquele substrato” (cf. Figueiredo Dias, O problema, p. 141, e os autores referidos na nota 21). Nos trabalhos práticos habituámo-nos à afirmação de que, comprovado o carácter ilícito- típico do facto, fica também afirmado prima facie o seu carácter culposo. De modo que “a questão da culpa” vem assim a reduzir-se (cf. Figueiredo Dias, RPCC 2 (1992), p. 10) “à questão da sua negação ou exclusão em certas situações específicas: na situação de inimputabilidade, de falta de consciência do ilícito não censurável ou de inexigibilidade legalmente prevista, máxime de estado de necessidade, de conflito de deveres e de excesso de legítima defesa desculpantes”. Ao longo das páginas que antecedem, fomos analisando, com algum pormenor, alguns desses variados aspectos. De igual modo, pudemos concluir que o princípio da culpa supõe a liberdade de determinação da pessoa. “A liberdade, como característica da pessoa, é o pressuposto irrenunciável de toda a culpa jurídico-penal e do modelo político-criminal próprio de um Estado de Direito democrático. Só assim se pode falar da dignidade pessoal como o valor mais alto e o bem mais digno de protecção de toda a ordem jurídica constitucional” (Figueiredo Dias, idem, p. 12). “A liberdade de cada um para se autodeterminar de harmonia com os valores, pressuposto da culpa ética, está em larga medida confirmada pelos estudos sobre o homem, que as próprias ciências da natureza não podem contestar” (Eduardo Correia, idem, p. 316). Uma questão actual: a negação da culpa significaria o fim do direito penal clássico. A culpa é garantia da pessoa e limita o jus puniendi do Estado. Ainda a este propósito, cabe aqui um rápido apontamento sobre o sentido e a função da punição. O Código refere-se às finalidades da punição em diferentes ocasiões, nos artigos 40º, 50º (suspensão da execução da pena de prisão), 58º (prestação de trabalho) e 60º (admoestação). A expressão ganha os seus mais exactos contornos por vir acompanhada volume do Tratado do Prof. Claus Roxin, em RPCC 4 (1919), e as considerações do Prof. Figueiredo Dias na mesma RPCC 2 (1992). 197 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. do complemento da adequação e da suficiência. Ora, tem-se hoje por adquirido que as finalidades da pena só podem ser de natureza exclusivamente preventiva e não retributiva. Como escreve Roxin, a pena estatal é uma instituição exclusivamente humana, criada com o fim de proteger a sociedade, não podendo, por isso, ser imposta se razões preventivas a não exigirem. Como finalidade básica da aplicação da pena aponta- se para o “restabelecimento, através da punição, da paz jurídica comunitária”, a acompanhar a ideia da prevenção geral positiva ou de integração. Compreende-se que a categoria do delito mais afectada pela ideia de prevenção seja a culpa. Figueiredo Dias fala da possível desconsideração da culpa jurídico-penal na seguinte base: “ou se vai ao ponto de eliminar a culpa como elemento constitutivo do sistema, substituindo-a por outras categorias como a da proporcionalidadde (Gimbernat Ordeig, Ellscheid, Hassemer); ou, quando a categoria da culpa se mantenha, ela não poderá ser outra coisa senão um mero “derivado da prevenção” e das exigências desta (Jakobs)”. A procedência desta argumentação, escreve ainda o ilustre penalista, “constituiria uma perda irreparável no sistema e não é de modo algum imposta pelas premissas de que arranca. Se as finalidades da pena são na verdade exclusivamente preventivas, só o são porque do mesmo passo se chama a debate o princípio da culpa enquanto elemento limitador do poder e do intervencionismo estatais, comandado por exigências irrenunciáveis de respeito pela dignidade da pessoa”. A culpa, “não constituindo uma finalidade da aplicação da pena, constitui todavia um limite inultrapassável da sua medida, de tal modo que toda a pena preventiva é do mesmo passo suportada pela culpa (…). A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial — nomeadamente de prevenção especial de socialização —, os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena” (Figueiredo Dias, idem, p. 28). Repressão Prevenção Orientação Para trás, kantiana, hegeliana. Para a frente, anti-kantiana. 198 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Ideia Retribuição, expiação da culpa Prevenção, re-socialização Teorias Teorias absolutas. “A pena, pela sua própria natureza, apenas pode ser retribuição (Vergeltung) e nada mais. Não importa se esta retribuição é eficaz como prevenção. Pelo contrário, o fim de prevenção implica uma ut i l i zação i l egí t i ma do delinquente no interesse dos outros” (Maurach). Mas só se legitima a pena se esta for justa. A pena necessária será a que produza um mal ao autor do crime, compensando o mal que livremente causou. Só será legítima a pena justa, mesmo que não seja útil. Teorias relativas. O critério de legitimação assenta na utilidade da pena. Prevenção geral: entendida agora como prevenção positiva ou de integração, i. e, de reforço da cons ci ênci a jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida. Prevenção especial: põe-se em 1º lugar a ressocialização do criminoso. Execução Inflição de um mal. Educação; tratamento. Finalidade Castigo (=reconciliação com a sociedade), sendo a culpa fundamento e medida da pena. Restabelecimento, através da puni ção, da paz jurídica comunitária A pena visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente (artigo 40º do CP). Finalidades da punição (adaptado de F. Haft, AT, p. 122). § 11 Imputabilidade. A imputabilidade traduz-se naquele conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para ser possível a censura ao agente por ele não ter agido de outra maneira. “Refere-se, pois, ao lado endógeno do crime, sendo necessário tomar em conta os seus efeitos na vida psíquica” (Eduardo Correia, Direito Criminal I, p. 331). A falta de liberdade para se determinar decorre ou da idade (artigo 19º) ou de uma incapacidade motivada por anomalia psíquica (artigo 20º) Os artigos 19º (inimputabilidade em razão da idade) e 20º (inimputabilidade em razão de anomalia psíquica). Esclareça-se desde já que a inimputabilidade não é propriamente uma causa de exclusão da culpa mas, mais exactamente, uma "causa 199 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. impeditiva fáctica da determinação da culpa” (Prof. Figueiredo Dias, apud M. Cortes Rosa, La función de la delimitación de injusto y culpabilidad en el sistema del derecho penal, in Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, Bosch, 1995). São inimputáveis os menores de 16 anos, assim declarados por virtude da sua incompleta maturidade, que lhes não permitirá uma correcta avaliação e decisão: são absolutamente inimputáveis em razão da idade (artigo 19º). A prática, por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime, dá lugar à aplicação de medida tutelar educativa em conformidade com a Lei nº 166/99, de 14 de Setembro. Exige-se, por outro lado, que concorram no autor da infracção de uma norma determinadas condições de receptividade dessa mesma norma: no momento da sua actuação, o agente deverá encontrar-se em condições que lhe permitam receber a mensagem normativa e de poder ser influenciado por ela. Se o agente actuou sem culpa, se porventura procedeu em situação de anomalia psíquica, encontrando-se preenchidos os pressupostos do artigo 20º, nº 1, por forma a torná-lo incapaz de avaliar a correspondente ilicitude, não poderá aplicar-se-lhe uma pena. Incluem-se aqui, entre outras, as patologias mentais no sentido clínico, como a esquizofrenia, e a intoxicação por drogas ou pelo álcool. O substracto biopsicológico da inimputabilidade passa agora a poder abranger “não apenas a “doença mental” em sentido estrito, mas toda e qualquer “anomalia psíquica”: das psicoses à oligofrenia, das psicopatias às perturbações da consciência, das neuroses às personalidades com reacções ou tendências anómalas isoladas” (Figueiredo Dias, Sobre a inimputabilidade, in Temas Básicos, p. 265; cf. também o acórdão do STJ de 11 de Fevereiro de 2004, CJ 2004, tomo I, p. 197). O que significa dever contar-se com o carácter permanente ou simplesmente transitório do transtorno mental no momento da prática do facto. Está excluída a aplicação de qualquer pena aos inimputáveis, a estes estão reservadas as medidas de segurança, referidas à perigosidade. “Pressuposto mínimo de aplicação da medida de segurança é a conjugação da prática de um ilícito típico com outros elementos do crime que não tenham a ver com a culpa do agente”. Não é legítimo aferir da perigosidade criminal para efeito de aplicação de uma medida de segurança de internamento, por exemplo, quando o inimputável age em legítima defesa, em erro sobre a factualidade típica ou quando desiste validamente da tentativa de cometimento de um crime; mas já é legítimo, por exemplo, quando a situação for de estado de necessidade desculpante, de erro sobre 200 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para tomar consciência do ilícito ou de falta de consciência do ilícito não censurável. Nestes últimos casos estamos perante verdadeiros problemas de culpa e, por conseguinte, não é possível aferir dos pressupostos de que dependem relativamente ao inimputável em virtude de anomalia psíquica. (Figueiredo Dias; Maria João Antunes). É necessário recorrer aos elementos biológico e psicológico como critérios substanciais integradores da imputabilidade. Circunstâncias biológicas e… …elemento psicológico Quadro das “anomalias psíquicas”. • Doenças mentais: psicoses orgânicas (v. g., a demência senil), tóxicas (ex: a chamada embriaguez aguda), funcionais (ex: a esquizofrenia); • Perturbações profundas da consciência: por ex., o estado artificial de sono na hipnose; • A debilidade mental; ou • As psicopatias, as neuroses e as perturbações da vida instintiva e dos afectos vitais, como as da vida sexual, incluindo as personalidades com reacções ou tendências anómalas isoladas. • Incapacidade, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste; ou • De se determinar de acordo com essa avaliação. Fundamentação Estas características são tarefa de peritos e i nvest i gadas pel a psi qui at ri a, a psicopatologia, a psicanálise e a psicologia. Tem-se em vista comprovar a gravidade e o significado das “anomalias psíquicas” para o facto concreto. Estrutura das “perturbações” da vida mental. I. Homicídio; homicídio qualificado; imputabilidade; inimputabilidade; artigo 20ª do Código Penal; imputabilidade diminuída por motivo de anomalia psíquica. Situações de borderline. CASO nº 33: A, médico, estava convencido de que B tinha algo a ver com a morte de um seu cavalo e levou-o consigo numa carrinha de caixa aberta para a sua quinta, onde começou por amedrontá-lo. Mas como B nada lhe contasse sobre a morte do animal, A empurrou-o para dentro de casa e começou aos berros e a exibir uma pistola e um punhal que trazia á cinta, ameaçando-o de morte, após o que o começou a agredir com as mãos e aos encontrões contra as paredes. A dado passo, A apercebe-se de que B 201 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. jazia inanimado, sem dar acordo de si e a esvair-se em sangue. Sem cuidar de, como médico que é, o examinar e socorrer, se acaso ainda estivesse com vida, A, que já havia decidido matar B, agarrou no corpo deste e depositou-o, dobrando-lhe as pernas, dentro de um baú e sobre este colocou uma mala de viagem. A procedeu assim com o objectivo de acabar com a vida de B, se acaso tal ainda não tivesse acontecido, e ainda o de ocultar o seu cadáver. A morte de B foi provocada, de forma directa e necessária, pelas múltiplas agressões que A lhe infligiu, tendo agido sempre de modo frio, lento, persistente e indiferente ao sofrimento, ao medo e à dor da vítima. A padece de doença (psicose maníaco-depressiva) que em fases mais agudas lhe provoca o enfraquecimento da sua capacidade volitiva, mormente quando não se submete ao adequado tratamento. O acórdão do STJ de 23 de Setembro de 1992, BMJ-419-454, reconheceu que A estava próximo da inimputabilidade em razão da sua doença mental, mas como o arguido não perdeu a consciência da ilicitude dos actos que cometeu com a maior barbaridade e crueldade, não se justifica que a diminuição da imputabilidade conduza à atenuação da culpa e da pena. A foi condenado pela prática, em concurso real, de um crime de homicídio qualificado (artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea g) e de um crime de ocultação de cadáver (artigo 254º). Escreve-se no acórdão: "Dispõe o artigo 20ª do Código Penal: 1—É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica é incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação. Ora, entre a anomalia mental, cujos efeitos conduzem à inimputabilidade, e a saúde mental, existe toda uma gama de estados intermédios que, embora sem o anular, enfraquecem todavia mais ou menos o poder de inibição dos homens ou a sua capacidade para compreender a ilicitude da própria conduta. A partir deste postulado discorre o Prof. Eduardo Correia: Se o juízo de censura em que se analisa a culpa ética pressupõe a liberdade, e, nessa medida, a imputabilidade, não pode haver dúvidas de que a menor liberdade derivada duma anomalia mental (imputabilidade diminuída), quando a não exclua, há-de, nesse plano ético, fazer aumentar ou diminuir a gravidade daquele juízo. Mas será compatível com as exigências da protecção e defesa criminal considerar diminuída a culpa e a pena a aplicar a um delinquente na medida em que uma especial conformação psicobiológica, por exemplo uma psicopatia ou uma certa disposição caracteriológica, o arrasta para o crime? Seguramente que não. Pode mesmo dizer-se que isso seria verdadeiramente catastrófico na luta contra a criminalidade. Com efeito—escreve Mezger—na maior parte dos casos, senão 202 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. em todos, é precisamente a psicopatia do agente o motivo da sua criminalidade, e, por isso, também o fundamento da sua perigosidade criminal. Do mesmo modo se exprime o Prof. Figueiredo Dias (Pressupostos da Punição, Jornadas, p. 75 e ss.) quando, a propósito, afirma: Não diz a lei se a imputabilidade diminuída deve por necessidade conduzir a uma pena atenuada. Não o dizendo parece, porém, não querer obstar à doutrina—também entre nós defendida por Eduardo Correia e a que eu próprio me tenho ligado—de que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isto sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v. g., em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos. Porque assim é, não pode ter-se como diminuída a culpa do A em razão dos seus prejuízos mentais. Aquele que é médico e que não quis tratar dos seus males psíquicos, não perdeu a consciência da ilicitude dos actos que cometeu com a maior barbaridade e crueldade, não se justificando assim uma atenuação da culpa em proporção da sua muito diminuída imputabilidade. No entanto, como não se vê que a anomalia mental do A haja sido provocada por ele nem que o ter-se arredado do tratamento médico tenha tido lugar com vista a mantê-la, no propósito determinado de cometer o crime, também não pode tal anomalia constituir circunstância agravativa considerada só por si." CASO nº 33-A: A entrou na taberna de B e apropriou-se de 575$00 que lhe subtraiu por meio de violência física e também por meio de ameaça com uma pistola de alarme, levando-a a crer tratar-se de uma arma de fogo. A perícia médico-legal refere que A apresenta uma ideação e senso críticos deficitários, sem noção nem extensão das datas, sendo notória alguma dificuldade apresentada na compreensão, abordagem e extensão das questões, concluindo da seguinte forma: A apresenta um nível intelectivo baixo (borderline); deve ser considerado imputável com atenuantes perante a lei; deve ser conduzido com regularidade à consulta de psiquiatria e assim sendo não apresentará perigosidade social. O acórdão do STJ de 4 de Junho de 1997, BMJ-468-105, concluiu pela imputabilidade diminuída de A. Considera-se que "num sistema penal como o nosso, estruturado com base na culpa do agente, onde a determinação da medida da pena é função da culpa, e no qual, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nº 2), óbvio é que, a não existir especial perigosidade censurável ao agente, a imputabilidade diminuída 203 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. deve conduzir a uma atenuação da pena — cf. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral I, 1992, p. 280." E sendo evidente que a culpa do agente diminui em função do abaixamento das suas faculdades intelectuais e volitivas, segue-se que, situando-se o nível intelectivo do arguido, como se situa, na linha limite (borderline), a graduação da pena não deverá exceder o mínimo da respectiva moldura, mas sem que tal diminuição da imputabilidade dê lugar obrigatoriamente a atenuação especial da pena. A lei não diz que a imputabilidade diminuída deva determinar, necessariamente, uma atenuação da pena e pode haver situações em que essa diminuição conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena, como nos casos em que, apesar da diminuição da imputabilidade, as qualidades pessoais do agente, que fundamentam o facto, se revelem particularmente desvaliosas e censuráveis, v. g., por actos de brutalidade ou crueldade que acompanham muitos factos praticados por psicopatas insensíveis, ou por fanáticos. Acórdão do STJ de 18 de Abril de 1996, CJ, ano IV (1996), p. 173. II. O artigo 20º e a embriaguez. O artigo 20º, nº 1, tem como pressupostos cumulativos da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, por um lado, a existência de uma anomalia psíquica (factor biológico), por outro, a incapacidade de o arguido, em consequência dessa anomalia, avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação (factor de ordem psicológica). É nos parâmetros do artigo 20º, nº 1, a partir desses pressupostos, que se avalia a situação de embriaguez. O arguido será inimputável devido a embriaguez somente se esta provocar a aludida incapacidade de avaliação e de autodeterminação. Pondere-se, a título de exemplo, o acórdão do STJ de 29 de Março de 2000, BMJ-495- 120: Provando-se que o arguido havia ingerido grande quantidade de bebidas alcoólicas, daí não se infere necessariamente que se encontrava em estado de embriaguez e, como tal, em situação de inimputabilidade, não sendo assim contraditório considerar-se que em tais circunstâncias o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente. 204 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. III. Actio libera in causa. Artigos 20º e 295º do Código Penal CASO nº 34: A foi convocado como testemunha num julgamento. Durante a audiência, A prestou depoimento falso, depois de ajuramentado e de ter sido advertido pelo juiz das respectivas consequências penais. A sabia que um tal comportamento era contrário à lei. Todavia, na altura, A estava sob o efeito de psicofármacos, tendo os peritos concluído que, por isso, se encontrava incapaz de avaliar a ilicitude do facto, sendo-lhe esta inteiramente indiferente. A estava em situação de inimputabilidade (artigo 20º do Código Penal). A conduta relevante de A começara antes da prestação do depoimento. Ainda assim, podemos distinguir várias hipóteses: a) foi o próprio A quem resolveu tomar o psicofármaco; b) A não se opôs, por ex., a que um terceiro lhe injectasse a droga, e, portanto, não impediu a situação de inimputabilidade (omissão); c) A não evitou, através de um comportamento activo de terceiro, a situação de inimputabilidade: logo após a ministração da droga, podia ter procurado um médico que lhe aplicasse um antídoto; d) A evitou, através do seu comportamento activo, que a situação de inimputabilidade que o ameaçava fosse eliminada: logo após a ministração da droga, impediu que um médico lhe aplicasse um antídoto. A actuação de A preenche os elementos objectivos do crime do artigo 360º, nºs 1 e 3, do Código Penal. A sabia o que fazia, nomeadamente, sabia que o seu depoimento era falso. Com o que ficam preenchidos os momentos subjectivos. Não se descortina qualquer causa de justificação. Como o facto se consumou e foi cometido de forma dolosa é ilícito. Põe-se porém a questão de saber se estamos perante um facto culposo. As considerações devem fazer-se, em especial, a propósito do artigo 20º. A prestou o seu depoimento falso em situação de anomalia psíquica, a qual o tornava incapaz de avaliar a correspondente ilicitude. Mostram-se assim preenchidos os pressupostos do artigo 20º, nº 1. Bem se poderá, por isso, concluir que A actuou "sem culpa". Com o que não ficarão definitivamente arrumados todos os problemas aqui envolvidos. IV. Embriaguez e intoxicação; alic. CASO nº 34-A: A, que mora em Braga, vem de há muito congeminando o plano de assaltar uma ourivesaria em Faro, onde estivera a passar férias. Com esse objectivo, meteu-se no comboio para o Algarve e aproveitou o "bar" para ir bebendo, sabendo, embora, que, finda a viagem, estaria 205 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. completamente embriagado. E fez tudo isso porque a viagem o aborrecia. Chegado a Faro, arrombou a porta da ourivesaria e apoderou-se de várias jóias, tudo com o valor superior a 3 mil contos. Fez tudo, de resto, como tinha planeado. CASO nº 34-B: A, que mora em Braga, vem de há muito congeminando o plano de assaltar uma ourivesaria em Faro, onde estivera a passar férias. Com esse objectivo, meteu-se no comboio para o Algarve e aproveitou o "bar" para ir bebendo, sabendo, embora, que, finda a viagem, estaria completamente embriagado. E fez tudo isso, conscientemente, para ganhar coragem, pois temia ser descoberto pela polícia. Chegado a Faro, arrombou a porta da ourivesaria e apoderou-se de várias jóias, tudo com o valor superior a 3 mil contos. Fez tudo, de resto, como tinha planeado. Os peritos concluíram que no momento da prática do assalto, A se encontrava incapaz de avaliar a ilicitude do facto, sendo-lhe esta inteiramente indiferente. A estava em situação de inimputabilidade (artigo 20º do Código Penal). Também aqui se podem distinguir dois arcos de tempo. Não se trata porém da congruência entre o lado objectivo e o subjectivo do ilícito de furto, mas da questão de saber se há coincidência entre a acção, objectiva e subjectivamente típica, e a culpa do agente. A "separação" dá-se no momento em que começa a anomalia psíquica com relevância penal (artigo 20º, nº 1). Recomenda-se que se comece com a segunda parte do acontecido, quando ocorre a subtracção das jóias. Em geral, em casos como estes, traz-se à colação o crime autónomo de embriaguez e intoxicação e/ou a chamada actio libera in causa (alic). São constelações de casos com a seguinte estrutura: o autor, encontrando-se em estado que exclui a capacidade de culpa (artigo 20º) comete um facto antijurídico (actio), após ter produzido na sua pessoa, de forma censurável, aquele estado, sabendo, ou pelo menos podendo saber (causa libera) que em posterior situação de inimputabilidade cometeria precisamente esse facto. Trata- se, como já se acentuou, de processos que se desenrolam em vários actos. O primeiro acto, anterior no tempo (produção da anomalia, actio praecedens, causa) tem uma relação relevante, no que toca à culpa, com o segundo acto, posterior no tempo (facto cometido com anomalia psíquica, actio subsequens). O Código prevê no artigo 295º o crime autónomo de embriaguez e intoxicação. No artigo 20º, nº 4, consagra a doutrina da imputabilidade livre em causa. Trata-se, nesta última hipótese, de uma disposição que visa resolver uma parte da problemática que corre doutrinalmente sob a epígrafe da actio libera in causa. Mas, em todo o caso, com a 206 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. sensível restrição de abranger apenas a actio libera in causa dolosa ou, talvez melhor se diria, preordenada. Para os restantes casos valerá o artigo 295º, se a anomalia psíquica se traduzir em embriaguez ou outro estado tóxico não preordenado (assim, Prof. Figueiredo Dias, Pressupostos, Jornadas, p. 75). Uma alic dolosa pressupõe em primeiro lugar que o autor, estando em situação de anomalia psíquica, comete um facto doloso antijurídico. Antes deste facto doloso, deve existir um determinado comportamento prévio que origina a anomalia. Parece necessário um duplo dolo. Em primeiro lugar, o autor há-de ter produzido a anomalia de maneira dolosa. Em segundo lugar, é necessário que o dolo estivesse dirigido, já no momento em que o autor ainda tinha capacidade de culpa, à execução da acção típica que posteriormente levou a cabo, uma vez perdida a sua capacidade de culpa. Nos casos nº 34-A e 34-B, que crimes cometeu A ? i) No artigo 20º, nº 4, a inimputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto — compreende apenas a alic com dolo directo ou com dolo necessário. ii) Os casos de dolo eventual e os negligentes estão abrangidos pelo artigo 295º, nº 1. iii) Cabem no nº 1 do artigo 295º os casos em que o agente pratica um facto ilícito típico num momento de inimputabilidade provocada por ele próprio — sem qualquer conexão psicológica no momento da autocolocação em perigo. iv) Os casos de imputabilidade diminuída autoprovocada seguem a regra geral, não cabem no artigo 295º, que pressupõe um estado de inimputabilidade autoprovocada. CASO nº 34-C: A sofre continuadamente de ciúmes por causa da namorada, que se dá com outros rapazes. Resolve, por isso, aplicar-lhe um sova que lhe há-de servir de lição. Sabe no entanto que estando sóbrio não tem coragem de lhe pôr a mão. E é por isso, para ganhar coragem e para depois fazer o que tem a fazer, que se decide a visitar o seu bar preferido, montado na motorizada com que costuma deslocar- se. Bebe até ficar incapaz de avaliar o alcance dos seus actos, como os peritos acabaram por concluir. Quando se retirava, já quase a alcançar a porta do estabelecimento, A tropeçou e foi cair em cima de um móvel antigo, que o dono do bar tinha em grande estima, e que logo se partiu com o peso do corpo de A. Mas nem isso o deteve. Pegou na motorizada e, conduzindo-a, rumou na direcção da casa da namorada, como tinha planeado. Ali, encontrou, não a namorada, mas a irmã desta, com quem era extremamente 207 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. parecida, e que, como A bem sabia, estava a passar férias com a irmã. A, por engano, encheu de bofetadas a cara da rapariga, provocando-lhe bastantes dores. Punibilidade de A, sabendo-se que foram feitas as queixas indispensáveis (artigo 113º). Aparentemente, o comportamento de A poderá integrar a tipicidade dos artigos 212º, nº 1 (dano), 292º (condução de veículo em estado de embriaguez) e 143º, nº 1 (ofensa à integridade física simples), mas, atenta a estrutura destes casos (alic), não se prescinde de determinar o que aconteceu no momento anterior àquele em que começa a anomalia psíquica com relevância penal (artigo 20º). A simples excitação, resultante da ingestão de bebidas alcoólicas, não implica necessariamente a supressão ou a afectação da vontade ou do seu controle, nem afasta a possibilidade de uma actuação livre e consciente do agente ou da capacidade deste para avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com ela. No nosso caso, todavia, A não ficou, simplesmente, excitado, pois, com as bebidas que tomou, já não conseguia avaliar o significado dos seus actos. E conforme o disposto no artigo 20º, nº 1, é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação. Como A se encontrava em estado que excluía a capacidade de culpa, pode ter cometido um ou mais factos antijurídicos após ter produzido na sua pessoa, de forma censurável, aquele estado — e desse modo determinado a cometer precisamente esse ou esses factos em posterior situação de inimputabilidade. In casu, deverá apurar-se se o primeiro acto tem uma relação relevante, no que toca à culpa, com os actos posteriores. No que toca aos estragos produzidos no móvel antigo é duvidoso que se possa afirmar uma acção com relevância penal, pois tudo aconteceu por ter o A tropeçado. Está, aliás, fora de questão que o A tivesse tido a intenção de praticar este facto no momento anterior à provocação da anomalia psíquica (artigo 20º, nº 4) e sem dolo não existirá o crime de dano (artigo 212º, nº 1). Quanto à condução da motorizada em estado de embriaguez, sendo a TAS (taxa de álcool no sangue) bem superior, como tudo o indica, a 1,2 g/l, parece que também o dolo directo ou necessário se deverá excluir, desde logo, por não haver lugar à afirmação da intenção. Faltando um nexo de ordem subjectiva entre a pessoa do A e o facto ilícito praticado no indicado estado, pondere-se, ainda assim, a 208 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. responsabilidade derivada do artigo 295º, nº 1, que vai do dolo eventual à simples negligência, em congruência com a fórmula do artigo 292º. A será certamente autor de um crime de ofensa à integridade física simples (artigos 14º, nº 1, 20º, nºs 1 e 4, e 143º, nº 1) na pessoa da irmã da namorada. O error in persona é irrelevante. V. Falta de consciência da ilicitude censurável e não censurável. A censurabilidade pessoal que fundamenta o juízo por culpa pode ser excluída em caso de falta de consciência da ilicitude (artigo 17º, nº 1). Mas é, por ex., de considerar censurável, para os efeitos do artigo 17º, nº 2, o erro sobre a ilicitude do gerente de cooperativa que recebera dinheiro para ser transferido para terceiro e que não efectuou essas transferências, antes gastou esse dinheiro em proveito da cooperativa, sabendo que assim prejudicava aquele (acórdão do STJ de 28 de Fevereiro de 1996, CJ, ano IV (1996), tomo 1, p. 214; BMJ-454-397). Sobre o sentido do critério de não-censurabilidade da falta de consciência da ilicitude, veja-se a exposição de Figueiredo Dias, O Problema, p. 362, onde recomendava que o legislador, como veio a acontecer no artigo 17º, nº 1, tomasse partido a favor da possibilidade de uma falta de consciência da ilicitude não censurável e sobre o seu efeito eximente da culpa, fazendo a afirmação de princípio de que age sem culpa quem pratica um facto sem consciência da sua ilicitude, se o erro lhe não for censurável. O legislador, no artigo 17º, nº 2, resolveu também o problema de saber se a falta de consciência da ilicitude censurável poderá exercer influência autónoma na determinação da medida concreta da culpa, no sentido de a atenuar relativamente à do mesmo facto que tivesse sido praticado com consciência da ilicitude, bem como o de saber quando e em que medida exerce a falta de consciência da ilicitude uma tal influência. De modo que, se o erro lhe for censurável será o agente punido a título de dolo (com a pena aplicável ao crime doloso respectivo), podendo no entanto a pena ser especialmente atenuada. Outra é a questão de saber quando deve considerar-se dada a correcta orientação da consciência –ética do agente para o problema de desvalor jurídico (de ilicitude) do seu facto. A neutralidade ou relevância axiológica da conduta em si mesma considerada é o verdadeiro critério de relevância ou irrelevância do erro sobre proibições legais. Como melhor se verá noutro lugar, age sem dolo quem desconhece preceitos jurídicos cujo 209 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. conhecimento seria (razoavelmente) indispensável para tomar consciência da ilicitude do facto, em paridade com aquele que não representa circunstâncias do facto que correspondem a um tipo de crime. Num caso e noutro, fica ressalvada a punibilidade da negligência. Cf. o artigo 16º, nºs 1 e 3. § 12 Causas de exculpação / obstáculos à culpa. Já noutro lugar escrevemos que só se a conduta contiver as cores da ilicitude avançamos para o outro nível de valoração que é a culpa, só quando, pois, respondemos pela negativa à questão de saber se a actuação está ou não justificada. Exemplo: estando a defesa limitada pelo meio necessário para repelir a agressão, não é seguro que aquele que actuou em legítima defesa veja a sua acção justificada porque, no caso, usou de excesso de meios, aplicando-se-lhe o regime do artigo 33º e não o do artigo 32º. Quem se defende com excesso de meios por perturbação, medo ou susto não censuráveis beneficia de uma situação de desculpa, ficando impune, mas a sua actuação é ilícita, ainda que se possa concluir por uma ilicitude diminuída. O facto desenrola-se em situação de tal modo excepcional que a decisão relativamente a uma conduta conforme ao direito resulta claramente dificultada — e é desculpado porque a culpa que aí possamos ainda detectar fica para lá dos limites da dignidade penal dos bens jurídicos envolvidos, carecendo portanto a situação de tutela penal ( 22 ). Justifica-se igualmente que não intervenham considerações de prevenção geral e de prevenção especial. Na mesma linha se invoca a impunidade do estado de necessidade desculpante (artigo 35º) Não nos esqueçamos entretanto de articular estas noções com a de inexigibilidade. Como ensina Muñoz Conde, o direito não pode exigir comportamentos heróicos. As normas 22 Sobre os conceitos de “dignidade penal” e de “carência de tutela penal” como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime: Manuel da Costa Andrade, RPCC 2 (1992), p. 173; e Jorge de Figueiredo Dias, O critério da “necessidade” (ou da “carência”) de tutela penal, in Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001. 210 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. penais têm um âmbito de exigência fora do qual não se pode exigir responsabilidade a ninguém: quando a obediência à norma coloca o sujeito fora dos parâmetros da exigibilidade faltará esse elemento e com ele a culpa. Não pode, por conseguinte, impor- se uma pena quando em situações extremas alguém prefere realizar um facto proibido pela lei penal em lugar de sacrificar a sua própria vida ou a sua integridade física. O legislador português erigiu expressamente o princípio da exigibilidade como pressuposto autónomo da justificação (o artigo 34º prevê entre os requisitos do d. de n. “ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado”). Considere-se ainda o medo não censurável na legítima defesa, em que a situação continua a ser ilícita, mesmo quando seja desculpável. A não exigibilidade do comportamento é sobretudo um princípio regulador do ordenamento jurídico, que tanto pode exercer a sua influência no âmbito das causas de justificação, como também, e de forma até mais acentuada, no das causas de exculpação. Mas o legislador não abriu caminho à inexigibilidade como causa geral de desculpação, autorizou a sua relevância em concretizações como as apontadas, de estado de necessidade desculpante (artigo 35º) ou de perturbação, medo ou susto não censuráveis (artigo 33º, nº 2). I. O excesso de legítima defesa. Agressão ------------------ actuação em situação de defesa objectiva Situação Excesso extensivo de LD. O defendente reage cedo de mais quando a agressão ainda não é actual, mas ele a tem como tal, ou supõe erroneamente que a sua conduta ainda é justificada, autorizada pelo direito, por ex., pensa que o seu agressor, apesar de estar por terra, ainda está em condições de voltar a agredi-lo. Excesso intensivo de LD. O agente excedeu-se nos meios necessários para a defesa. Exemplo Pontapés contra o agressor que já está inconsciente. Tiro no fígado quando bastava atingir as pernas do agressor. 211 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Tratamento legal Não se aplica o artigo 33º. Hipótese a resolver nos termos do artigo 16º, nºs 2 e 3, quando concorram os correspondentes pressupostos. O facto é sempre ilícito (artigo 33º, nº 1), podendo haver atenuação especial. O agente é desculpado em situação de afecto a s t é n i c o (se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis). Estrutura do excesso de LD (adaptado de F. Haft AT, p. 137). CASO nº 23-E: A mantinha uma relação sentimental com F, mulher casada. O marido desta, homem habitualmente desconfiado, tinha proibido A de entrar na moradia do casal. A porém voltou à moradia. Às tantas, foi ali surpreendido por M (que se deslocava a casa durante o seu turno de trabalho nocturno), na companhia de F, a qual tratou de se vestir imediatamente e desaparecer de cena. M, irritado e furioso, pretendia ajustar contas, como marido enganado que era, retendo A na moradia até que chegasse gente, nomeadamente a polícia, para obter provas definitivas do adultério. Na luta que se seguiu, A foi-se defendendo bem das pancadas de M. A certa altura, M logrou agarrar uma garrafa de cerveja, mas A tirou- lha e deu-lhe com ela na cara de tal maneira que M sofreu fractura do osso do nariz e uma ferida ligeira. (Cf. Eser, Strafrecht I, 4ª ed., 1992, caso nº 11). Não há dúvida nenhuma de que A ofendeu M voluntária e corporalmente, provocando-lhe fractura do osso do nariz e um ferimento ligeiro, com o que, pelo menos, ficará incurso na previsão da norma fundamental dos crimes contra a integridade física (artigo 143º, nº 1, do Código Penal). Se não for caso de negar a legítima defesa, a questão estará em saber se a conduta de A podia ser justificada ou se A podia ser desculpado. Todavia, não deixará de ser razoável sustentar-se que A provocou o ataque de M com o seu comportamento adúltero e a entrada em casa de M contra a vontade deste. Deve por isso perguntar-se se, por sua vez, M não terá actuado em legítima defesa, e, consequentemente, com vontade de defesa, ponderando-se a (in)admissibilidade da legítima defesa contra outra legítima defesa. A ilicitude da agressão que a lei exige para que se possa verificar a legítima defesa engloba dois aspectos: a prática por alguém de um acto violador de interesses juridicamente protegidos de outrem, e a não contribuição do defendente para o aparecimento daquele acto. E compreende-se que assim seja, porque, quando o defendente, pelo seu comportamento, dá origem àquela actuação violadora dos interesses juridicamente 212 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. protegidos de alguém, esta última tem a susceptibilidade de funcionar como uma legítima defesa contra aquele comportamento, e porque não pode haver legítima defesa contra uma legítima defesa (acórdão do STJ de 25 de Setembro de 1991, BMJ-409-483). Ficará limitado ou excluído o direito de legítima defesa de A por causa do seu comportamento provocatório? Ou, simplesmente, A excedeu-se no seu direito de legítima defesa? M proibira expressamente a entrada de A na morada do casal, mas este violou o direito de M, verificando-se, com isso, a lesão de interesses juridicamente protegidos e susceptíveis de legítima defesa. Acontece todavia que A, ao ser surpreendido, só não terá desaparecido, saindo da moradia, porque M disso o impediu. Com o que bem se pode pôr em dúvida a actualidade dessa apontada agressão. Com efeito, no momento em que M impede a saída de A, fica totalmente excluído o perigo que anteriormente ameaçava o correspondente bem jurídico. Por outro lado, M só poderia alegar o seu direito de defesa, em termos de se excluir a legítima defesa de A, se tivesse actuado com a consciência de estar a defender-se. Para a existência deste elemento subjectivo da justificação, é necessário que o autor conheça a agressão ilícita e pretenda repeli-la. No entanto, M só pretendia reter A para ajustarem contas e para conseguir com isso provas da infidelidade da mulher, não existindo qualquer sinal de que M estivesse motivado por uma vontade subjectiva de defesa. Vendo-se assim na necessidade de se defender, A actuou para repelir uma agressão actual e ilícita. Embora no caso se verifiquem os requisitos da actuação em legítima defesa, A agiu com manifesto excesso nos meios empregados, por não se justificar que, para deter a agressão, fosse necessário golpear o seu antagonista na cara, de molde a fracturar-lhe a cana do nariz, numa altura em que este acabava de ser desapossado da garrafa de que o defendente justamente se serviu. A lesão produzida na pessoa de M deve ser considerada antijurídica. Havendo excesso dos meios empregados em legítima defesa o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada (artigo 33º, nº 1, do Código Penal). Todavia, o agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis (artigo 33º, nº 2). A legítima defesa justifica apenas as acções defensivas que são necessárias para afastar uma agressão actual e ilícita da forma menos gravosa para o agressor. Se o defendente ultrapassa esse limite, actua ilicitamente (excesso intensivo de legítima defesa). O defendente actua também 213 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ilicitamente se se defende em caso de ataque que não seja actual ou tenha deixado de o ser (excesso extensivo de legítima defesa). No 1º caso o autor excede-se na medida, no 2º transgride os limites temporais da legítima defesa. Quando o ordenamento jurídico manda que o defendente, em caso de legítima defesa, deve escolher o meio defensivo menos gravoso, não obstante a situação de perigo e de apuro, coloca-o perante uma tarefa árdua, pois tem que conservar a serenidade e a obediência ao direito numa situação em que o autodomínio se perde facilmente. Acresce a isto que o defendente tem de se haver com a lesão que tenha sofrido. Por isso, já no século passado se admitiu a possibilidade de uma atenuação penal. Chegou-se mesmo a equiparar o excesso devido a perturbação, medo ou susto com a própria legítima defesa no § 41 do StGB prussiano de 1851. Hoje em dia, como se viu, também no direito português o autor “não é punido”, segundo o artigo 33º, nº 2, se ultrapassou os limites da legítima defesa por perturbação, medo ou susto não censuráveis. Trata-de de uma causa de desculpação. É certo que o facto continua a ser ilícito e que apenas se reduziu o seu conteúdo de culpa. Porém, o legislador renuncia a formular a censura por culpa por considerar tão diminutos o conteúdo do ilícito e a culpa pelo facto que não se alcança o patamar do merecimento penal. No excesso de legítima defesa o desvalor do resultado diminui na medida do valor do bem protegido pelo autor, o desvalor da acção fica anulado em boa parte pela situação de legítima defesa e a vontade de conservação; a culpa toma outro aspecto, já que a perturbação, o medo e o susto dificultaram o essencial da formação da vontade com referência à norma. A perturbação, medo ou susto hão-de ser realmente a causa do excesso de legítima defesa, e para que haja impunidade haverá que exigir um grau elevado de estado anímico. Podendo intervir também outras manifestações anímicas, como a ira, o ardor da luta, o ódio ou a indignação, só serão, no entanto, decisivos os factores asténicos. (H.-H. Jescheck, AT, 4ª ed., 1988, p. 442 e s.). No presente caso, ainda que actuando com intenção de defesa (animus defendendi), A não utilizou os meios necessários para fazer cessar a agressão. Um desses meios seria o do recurso à força pública, que, no entanto, se vê logo como impraticável, pois o comportamento de M fora determinado justamente pela ausência da polícia no local. De qualquer forma, e como já se acentuou, não se justifica que, para deter uma agressão que o agressor só podia continuar com as mãos, se golpeie o antagonista na cara com a garrafa 214 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que o defendente acabara de lhe arrebatar. A situação é a de excesso de legítima defesa, enquadrável na previsão do artigo 33º, susceptível de uma punição especialmente atenuada (artigo 72º). Não se descarta, contudo, o acerto da absolvição, se a favor de A pudermos garantir o excesso resultante de perturbação, medo ou susto não censuráveis, que só a escassez da prova nos impede de afirmar em definitivo. CASO nº 23-F: Excesso de legítima defesa não punível; excesso asténico e não censurável. A matou B, seu irmão. Com uma faca de cozinha, A desferiu um golpe no tórax da vítima, causando-lhe, como consequência directa e necessária, ferida corto-perfurante transfixiva do lobo superior do pulmão esquerdo, e lesão determinante da morte. O Tribunal, considerando que A agiu em legítima defesa, com excesso asténico do meio utilizado, não censurável e, por isso, não punível, de acordo com o artigo 33º, nº 2, com referência ao artigo 32º, absolveu-o. O Supremo (acórdão de 5 de Junho de 1991, BMJ-408-180) confirmou a decisão. Provou-se que: —Houve por parte da vítima uma agressão actual, ou seja, um desenvolvimento iminente aos interesses pessoais (integridade física) de A e ilícita, por o seu autor não ter o direito de a fazer, já que a primeira se aproximou do segundo e seguiu-o, mesmo quando este recuou para o interior da cozinha, com o propósito de o agredir a murro e a pontapé, tal como já o fizera a uma irmã, a um irmão e ao pai de ambos. — Houve por parte de A agressão à vida da vítima em defesa do bem acima referido, como meio necessário, na impossibilidade manifesta de recorrer à força pública. para repelir ou paralisar a actuação do agressor, actual e ilícita. — A actuou com o propósito de defesa, com animus defendendi. — Mas com uso de meio excessivo, injustificável, irracional, para se defender, através de meio letal. — O excesso do meio usado pelo A ficou a dever-se ao medo que o A tinha da vítima, pessoa que, embora mais baixa de estatura, era mais encorpada e mais forte do que ele e tinha praticado luta grego-romana, de tal modo que já por diversas vezes o havia agredido e obrigado a tratamento hospitalar. Há que considerar aquele excesso como asténico e não censurável, por falta de culpa, com a consequente não punição do A, uma vez que sem culpa não há punição criminal. Cf. o acórdão do STJ de 10 de Fevereiro de 1994, BMJ-434-286: A repeliu uma agressão actual e ilícita (tiro de arma de fogo contra ameaças de agressão corporal, antecedidas de insultos). Provou-se o medo prolongado de A, de 77 anos, convencido de que a vítima, homem forte, de 30 anos, o ia atacar, bem como a sua mulher, com mais de 90, na sua própria casa: excesso de legítima defesa não punível - artigo 33º, nº 2. 215 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Cf. também o acórdão do STJ de 11 de Maio de 1983, BMJ-327-476: A vítima preparava-se para agredir o réu, pois logo que se deparou com ele disse-lhe: "É agora o fim da tua vida". Então, convencido de que a vítima o ia matar, o réu foi imediatamente buscar a caçadeira e, metendo-lhe dois cartuchos, disparou-a contra a vítima. As palavras ameaçadoras, proferidas por um homem como a vítima, não podem ser minimizadas. Este criara a imagem dum marginal perigoso, andava sempre armado, trazia as pessoas em sobressalto, chegara a abrir fogo contra agentes da GNR. A atitude da vítima denuncia claramente o perigo de uma agressão ilegal iminente, não motivada por provocação, ofensa ou qualquer crime actual praticado pelo réu. Houve, todavia, excesso nos meios empregados, mas o réu estava muito perturbado, agindo dominado pelo medo de que a vítima viesse a concretizar as suas ameaças: medo desculpável. O réu foi absolvido. CASO nº 23-G: Excesso de legítima defesa punível. A parou o carro que conduzia na Rua do Progresso para conversar com X, sua companheira. B aproximou- se do veículo e bateu na janela fechada. A abriu a janela e B pediu-lhe 50 escudos, que A lhe negou, após o que arrancou. Mais tarde, no Bairro do Aleixo, quando A com a companheira e os filhos saía do carro, B dirigiu-se-lhe dizendo: "Agora, filho da puta, passa para cá o dinheiro; vou-te roubar, filho da puta, passa para cá o dinheiro". A e B ficaram frente a frente. A avançou então para B munido de um instrumento corto-perfurante, espetou-o no tórax, atingindo o coração. A representou a morte de B como consequência possível do seu acto de espetar, no corpo dele, o instrumento corto-perfurante, mas espetou- o, conformando-se com a morte, que veio a ocorrer. (Cf. o ac. do STJ de 11 de Dezembro de 1996, BMJ- 462-207). O homicídio privilegiado difere do homicídio com atenuação especial da provocação pela diferença de grau de intensidade da emoção causada pela ofensa e ambos diferem da legítima defesa, "grosso modo", porque nos primeiros o agente, ao contrário do último, não actua com animus defendendi. E o excesso de legítima defesa não se enquadra em alguns daqueles porque o agente actua com a intenção de se defender mas exorbitando nos meios empregados. No caso, verificava-se a circunstância da provocação injusta prevista na al. b) do nº 2 do artigo 72º, mas a reacção não foi proporcional à ofensa, pelo que não é enquadrável na previsão do artigo 133º. A cometeu, como autor material, um crime de homicídio do artigo 131º, mas em excesso de legítima defesa, nos termos do artigo 33º, nº 1, por excesso dos meios empregados. A, quando desferiu o golpe, encontrava-se enervado e exaltado pelo comportamento de B : as circunstâncias recomendam a atenuação especial da pena, facultada no artigo 33º, nº 1 (artigo 73º). Pena 216 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. concreta: 3 anos e 2 meses de prisão. Escreve-se no acórdão: "a aplicação deste regime exclui a aplicação de qualquer outro". CASO nº 23-H: Insiste-se em que o excesso de legítima defesa pressupõe a legítima defesa. A, que andava incompatibilizado com B, agrediu-o a certa altura a socos e a pontapés, sem dar qualquer explicação. Por causa dessas agressões, B não sofreu lesões graves, cuja natureza o obrigasse designadamente a receber tratamento hospitalar. A determinada altura, estando A e B a uma distância não superior a um metro um do outro e A se preparava para continuar a agredir B a soco, este, já em estado de exaltação, empunhou uma pistola que trazia consigo e apontando-a ao tórax de A disparou pelo menos 3 tiros, atingindo-o com 2 balas nessa região do corpo e com uma bala na região abdominal, que foram causa necessária e adequada da sua morte. B disparou "com intenção de matar a vítima, querendo dessa forma obstar a que esta continuasse a agredi-lo". A situação corresponde à que foi tratada no acórdão do Supremo de 12 de Junho de 1997, assim parcialmente sumariado: sem legítima defesa, nos seus pressupostos, não pode ter lugar o excesso de legítima defesa. E assim, quando o agente, para pôr termo a uma agressão a soco e a pontapé, dispara três vezes uma pistola para uma zona vital do corpo do agressor, a uma distância não superior a um metro, não pratica o acto em legítima defesa nem com excesso de legítima defesa, mas sim um crime de homicídio voluntário simples (ac. do STJ de 12 de Junho de 1997, CJ, ano V (1997), p. 238). II. Estado de necessidade desculpante; artigo 35º. Actuando o agente em estado de necessidade desculpante (artigo 35º) fica igualmente excluída a culpa. A ideia do efeito desculpante da situação de necessidade identifica-se com a teoria da adequação de Kant: quem actua em estado de necessidade age e permanece em situação de ilicitude, mas porque lhe não é exigível outro comportamento deverá ser desculpado. Como já explicámos, o estado de necessidade constitui obstáculo à ilicitude quando o interesse protegido é sensivelmente superior ao sacrificado e obstáculo à culpa nas restantes hipóteses. Se nos encontramos face a um caso de "vida contra vida", como no exemplo da tabula unius capax, que só podia transportar um dos náufragos, se o sujeito mata o companheiro para se salvar a si mesmo, a situação corresponde, quando muito, a um estado de necessidade desculpante. 217 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. CASO nº 24-G: A tábua de Carneades (Cícero, De Re Publica, II, 15). Carneades, filósofo que viveu no século II antes de Cristo, conta que, após o naufrágio de um navio, os dois marinheiros sobreviventes, A e B, agarraram-se a um tábua que só chegava para um (tabula unius capax). Para salvar a vida, A afastou B da tábua e este morreu afogado. Põe-se o problema de saber se A pode ser condenado por homicídio. Só os problemas jurídicos é que estão aqui em causa — e nomeadamente a aplicação dos artigos 34º e 35º do Código Penal. Trata-se de um dilema jurídico, duma situação coactiva em que uma pessoa tem que escolher entre dois males. A só podia tentar salvar a vida afastando o outro da tábua, afogando-se este. B podia tentar salvar a vida actuando do mesmo modo contra A. Matar ou ser morto, eis o dilema dos marinheiros. H. Koriath (JA 1998, p. 250) propõe quatro variantes da situação, mas insiste numa delas, que é a seguinte: Elementos de facto: B tentou primeiro afastar A da prancha — foi em reacção a esta conduta do B que A, por sua vez, o empurrou, tendo B morrido afogado. Na medida em que A empurrou B e este morreu afogado, A pode estar implicado na prática de um crime do artigo 131º do Código Penal. Todavia, se a conduta de A, ao empurrar o outro, não tiver a qualidade de uma "acção", o resultado, a morte de B., não pode ser imputado, não haverá uma relação de causa e efeito. Na verdade, descrever a conduta de alguém como sendo uma "acção" supõe que na situação concreta o sujeito podia ter tido outro comportamento, que inclusivamente podia nada ter feito. E a pergunta é esta: poderia A ter-se abstido de empurrar B ? Não tendo havido uma situação de vis absoluta, A podia ter escolhido sacrificar-se e salvar a vida de B. A actuação de A não é um simples movimento reflexo, mas é intencional, presidido pela vontade, e assim tem a qualidade de uma acção. Nos termos do artigo 131º é autor de um homicídio quem matar outra pessoa, i. e, quem causar (produzir) a morte de outrem. O problema, agora, está em saber se A efectivamente matou B. Como estamos a referir-nos a um resultado concreto, a acção de A deverá ter sido condição necessária dessa morte, pois, se assim não fosse, a morte de B não se teria dado naquela altura e nas apontadas circunstâncias. A provocou a morte de B e esta pode-lhe ser imputada, de acordo com os critérios da imputação objectiva. Por outro lado, A previu a morte de B e conformou-se com ela. Agiu pelo menos com dolo eventual. A actuação de A é ilícita, a menos que se encontre coberta por uma causa de justificação. 218 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Terá A agido em legítima defesa? Devemos em primeiro lugar apurar se A se encontrava em situação de legítima defesa. Esta supõe uma agressão ilícita. Ora, não há motivo para duvidar que a actuação de B, ao pretender que A largasse a tábua, embora sem êxito, é uma agressão objectivamente ilícita. Alguns autores exigem que a agressão seja igualmente dolosa e culposa (cf. Prof. Taipa de Carvalho, passim), para que fique inteiramente livre a via da legítima defesa. Esta posição apoia-se no facto de com a legítima defesa se pretender a salvaguarda da ordem jurídica. O defendente defende não só os seus interesses individuais mas também a afirmação do Direito — e isso só pode ser conseguido quando se trata de acções culposas, ou seja, de um comportamento conscientemente dirigido contra o Direito. Nas circunstâncias trágicas em que se desenrolou, a morte de B não poderá ser taxada de conscientemente dirigida contra o Direito. Claro que, contra esta posição se pode argumentar desde logo com a letra da lei, que invoca apenas a agressão ilícita, sem mais. E depois, sempre ocorre perguntar: então, não podemos defender-nos de comportamentos objectivamente perigosos? A resposta é pela positiva, mas tem uma nuance: para nos defendemos de condutas perigosas não necessitamos de invocar os critérios estritos da legítima defesa — ilimitada, pois temos à nossa disposição o estado de necessidade defensivo e mesmo o estado de necessidade justificante do artigo 34º. Em conclusão: como B não actuou culposamente, não houve uma agressão aos interesses juridicamente protegidos de A, pelo que este não pode invocar uma situação de legítima defesa para justificar o que se seguiu. A também não pode invocar um direito de necessidade que justifique a morte de B. O direito de necessidade supõe uma situação de necessidade e a justificação arranca de ter sido o facto praticado numa situação de necessidade. O desenho é o de uma situação actual de perigo para um bem jurídico, que não pode ser afastado de outra maneira (artigo 34º). Ora, no caso, estas condições mostram-se cumpridas: A encontrava-se numa situação de perigo actual para a vida; e sem a morte de B o perigo não seria afastado. Entre os requisitos do direito de necessidade conta-se o da alínea b) do artigo 34º, onde se exige sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado. Ora, como o caso era de vida contra vida — A não pode invocar esta causa de 219 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. justificação. Não devemos sequer chamar aqui à colação o princípio da proporcionalidade, pois na situação trágica descrita, de óbvio dilema, não estava em jogo qualquer ponderação de interesses, mas unicamente a oportunidade de um deles sobreviver à custa do outro. A sensível superioridade a que se refere o artigo 34º, alínea b), não significa uma especial superioridade (quantitativa ou qualitativa) de um dos interesses. Antes designa o processo que permite concluir pela superioridade de um dos interesses: uma “normal sensibilidade aos valores (“cultural e socialmente determinada)”. Cf. Fernanda Palma, O estado de necessidade justificante; cf., ainda, Casos e materiais, p. 374. A conduta de A, ao causar dolosamente a morte de B, é ilícita, não está coberta por qualquer causa de justificação. Vejamos agora se A pode ser desculpado nos termos do artigo 35º, nº 1, uma vez que age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameace a vida ... III. O problema do “autor por convicção”. CASO nº : A é juiz numa comarca perto de Lisboa e num processo a seu cargo nega-se a aplicar determinada lei em vigor por considerar que a mesma representa uma violação considerável de princípios morais que são os seus. Já vimos que as normais penais exprimirem aquilo que a ordem jurídica tem como juridicamente correcto e, simultaneamente, aquilo que é desaprovado, dando aos seus destinatários indicações a respeito da forma como devem comportar-se. E porque assim exprimem também um juízo sobre a conduta humana, as normas de direito penal contêm juízos de desvalor. A desaprovação que comportam enuncia-se por sua vez através da cominação de uma pena. Compreende-se portanto que o Estado não possa conceder relevância eximente às crenças e opiniões individuais, já que isso faria depender a vigência objectiva das normas jurídicas da sua aceitação por cada indivíduo. Como resolver então problemas como o de objecção de consciência ao serviço militar quando este é obrigatório? Poderá falar-se de um conflito entre um dever moral (o imperativo de consciência) e um dever jurídico? Há ocasiões em que o direito vigente concede relevância às crenças incorrectas do autor da infracção ou a situações extremas em que não parece 220 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. necessário do ponto de vista preventivo impor uma pena. Para além disso, numa “sociedade aberta”, pluralista, tem Muñoz Conde como inevitável “um certo grau de discrepância e mesmo de rebeldia do indivíduo face a uma norma ou disposição concreta ou a um sector concreto do ordenamento jurídico, ficando tal discrepância a dever-se a conflitos de conciência: o sujeito tem uma atitude valorativa diferente da da norma que infringe e, se bem que conheça o âmbito proibido da mesma, não lhe reconhece eficácia motivadora”. Outras vezes a própria existência do conflito torna evidente uma falta de legitimação da norma infringida. “A comissão de um crime nem sempre é um conflito entre indivíduo e sociedade, mas uma contraposição entre diferentes sistemas sociais e formas diversas de entender a vida”. Ora, o que caracteriza uma sociedade democrática e pluralista é a possibilidade de coexistirem pacificamente diferentes sistemas de valores, por vezes contraditórios. Nalguns casos, o Estado resolveu o conflito, permitindo uma saída alternativa que respeite a consciência, sempre que ela naturalmente não ponha em perigo bens jurídicos fundamentais. Assim, por ex., reconhece-se a objecção de consciência do médico que entende não intervir num aborto terapêutico, sempre que a mulher possa ser assistida por outro médico. Ou à testemunha de Jeová a possibilidade de recusar, por motivos religiosos, a transfusão de sangue para o filho menor, sempre que esta possa ser substituída objectivamente por outros meios. Ou àquele que recusa o serviço militar obrigatório, desde que cumpra um serviço cívico ( 23 ). Quando as leis não prevejam alternativas que respeitem a liberdade de consciência, escreve ainda Muñoz Conde, o problema deve ser aferido pela natureza do bem jurídico, não se podendo dar relevância à decisão de consciência que ponha em causa a vida, a integridade física, a liberdade e a propriedade. São bens mais importantes do que a liberdade de consciência e são indispensáveis para o desenvolvimento das outras pessoas, que obviamente também têm direito à sua protecção jurídica. 22 A Constituição espanhola prevê o recurso de amparo perante o Tribunal Constitucional como aplicável à objecção de consciência ao serviço militar obrigatório reconhecida no artigo 30. 221 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. IV. Outras indicações de leitura • Acórdão da Relação de Coimbra de 29 de Outubro de 2003, CJ 2003, tomo IV, p. 49: retardo mental; tem legitimidade para o exercício do direito de queixa, o ofendido portador de oligofrenia em grau leve e que se demonstrou saber distinguir o bem do mal; as declarações prestadas em audiência por esse ofendido podem ser valoradas pelo tribunal em julgamento. • Acórdão do STJ de 26 de Fevereiro de 1998, CJ, 1998, tomo 1, p. 211; BMJ-474-184: ligeira deficiência mental do arguido; local de cumprimento da pena. • Acórdão da Relação de Coimbra de 3 de Outubro de 2001, CJ ano XXVI 2001, tomo IV, p. 54: na acusação para declaração de inimputabilidade do arguido apenas há que lhe imputar factos objectivos integradores de crime ou crimes, não sendo necessário dela constar matéria factual susceptível de integrar o elemento subjectivo (dolo) daqueles factos ilícitos típicos. • Acórdão da Relação de Évora de 9 de Fevereiro de 1999, CJ, 1999, tomo I, p. 289: O delinquente é inimputável criminalmente perigoso sempre que, por virtude da anomalia psíquica de que sofra e do facto típico que tenha praticado, haja receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie. • Acórdão de 19 de Outubro de 1995, CJ, ano III (1995), tomo III, p. 210: aceitando o tribunal colectivo o juízo científico quanto à inimputabilidade do arguido, tem, todavia, o poder de livre apreciação quanto aos elementos de facto que revelem a sua perigosidade; perturbações mentais geradoras de inimputabilidade. • Acórdão de 25 de Novembro de 1993 do Tribunal do juri do 4º Juízo Criminal de Lisboa, CJ, ano XVIII (1993), tomo V, p. 311: imputabilidade, crueldade. • Acórdão do STJ de 27 de Novembro de 1997, BMJ-471-177: declaração de inimputabilidade penal; condenação em internamento; suspensão da medida. • Acórdão do STJ de 30 de Maio de 2001, CJ, ano IX (2001), tomo II, p. 215: limite máximo do internamento; homicídio simples e qualificado; desconto da prisão preventiva. • Acórdão do STJ de 30 de Outubro de 2001, CJ, 2001, ano IX, tomo III, p. 202: limite máximo da medida de internamento; não aplicação dos perdões; obrigatoriedade da reapreciação da situação do internado; providência de habeas corpus e medida de segurança. • Acórdão do STJ de 28 de Outubro de 1998, proc. nº 894/98, BMJ-480-99: O prazo máximo de internamento de inimputável perigoso corresponde ao limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável, referindo-se pois à pena abstracta. Sendo o internamento um tratamento a que o internado vai ser submetido, aquele só deveria terminar quando a perigosidade criminal que lhe deu origem tivesse cessado. Porém, o legislador fixou, como regra, um prazo máximo de internamento, findo o qual o internado tem de ser posto em liberdade, tenha ou não cessado o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem, isto em obediência ao princípio constitucional consignado no art.º 32, da CRP. Apesar de haver um concurso de crimes cometidos pelo inimputável, não pode o período máximo de internamento ser determinado de acordo com a punição do concurso, em primeiro lugar porque o Código Penal, no seu art.º 77, só prevê o cúmulo 222 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de penas parcelares concretas, de prisão ou de multa, e por outro não é possível o recurso à analogia (art.º 1, n.º 3, do CP). • Acórdão do STJ de 12 de Abril de 2000, CJ ano VIII (2000), tomo 2, p. 172: medidas de segurança; pressupostos da duração mínima do internamento; crime de homicídio voluntário qualificado; com uma anotação na RPCC 10 (2000). Considerou-se incorrecta a decisão do tribunal a quo em integrar os factos na previsão do artigo 132º do Código Penal, para o qual relevam somente questões atinentes à culpa — o ilícito típico em questão para efeitos de aplicação da medida de segurança era o do artigo 131º. • Acórdão do STJ de 22 de Outubro de 1998, proc. nº 652/98: Internamento de inimputável. Integrando os factos praticados por inimputável a previsão normativa de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, o respectivo internamento tem um limite mínimo de 3 anos e máximo de16, devendo o despacho que fixa tais limites, ressalvar o seu termo, logo que constatada a cessação do estado de perigosidade ou a sua prorrogação, de harmonia com o disposto no n.º 3 do art.º 92, do CP. • Acórdão do STJ de 13 de Janeiro de 1998, BMJ-473-78: inimputabilidade; condenação no pedido cível do arguido não imputável. • Acórdão do STJ de 20 de Abril de 1994, CJ, ano II (1994), tomo II, p. 190: danos por inimputável; indemnização. • Acórdão do STJ de 13 de Maio de 1998, processo nº 276/98: Um "distúrbio emocional" resultante do falecimento de um ente querido, ocorrido anos antes da prática dos factos, também apodado de "destrambelhamento emocional", ainda que tivesse eventualmente sobrecarregado a "sua grave perturbação psíquica", não basta, segundo as regras da experiência, para constituir estados de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, relevantes em matéria criminal. • Acórdão do STJ de 7 de Maio de 1998, processo nº 170/98: A simples "excitação", resultante da ingestão de bebidas alcoólicas, não implica necessariamente a supressão ou a afectação da vontade ou do seu controle, nem afasta a possibilidade de uma actuação livre e consciente do agente ou da capacidade deste para avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com ela. • Acórdão do STJ de 14 de Julho de 1994, BMJ-439-269: dependência do álcool; a existência de um estado de embriaguez na comissão de crimes não tem natureza atenuativa. • Acórdão do STJ de 24 de Fevereiro de 1993, CJ, ano I (1993), t. 1, p. 204: a existência de um estado de embriaguez na comissão de crimes não tem natureza atenuativa e, antes pelo contrário, é tratada como um factor susceptível de conduzir a um acentuado agravamento da pena e, inclusivamente, à aplicação de uma pena relativamente indeterminada. • Acórdão do STJ de 14 de Outubro de 1998, proc. nº 780/98: A toxicodependência pode ser atenuante quando, por força dela, preenchendo os requisitos do art.º 20, n.º 2, do CP, a capacidade para avaliar a ilicitude do facto praticado ou para se determinar de acordo com essa avaliação se apresenta sensivelmente diminuída. A toxicodependência pode levar à aplicação ao agente de uma pena indeterminada, conforme dispõe o art.º 88, do CP, podendo esta situação qualificar-se como uma agravante qualificativa. Nos demais casos, a toxicodependência tem de considerar-se uma 223 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. circunstância que depõe contra o arguido, pois revela uma defeituosa formação da personalidade deste, ao viver em permanente estado de violação da lei criminal. • Acórdão do STJ de 6 de Dezembro de 2001, CJ 2001, tomo III, p. 231: não consideração da toxicodependência como atenuante — com justificação do sentido generalizado da jurisprudência do STJ. • Acórdão do STJ de 7 de Julho de 1999, BMJ-489-100: toxicodependência — inimputabilidade e imputabilidade diminuída. • Acórdão do STJ de 20 de Maio de 1998, CJ, ano IV (1998), tomo II, p. 205: A toxicodependência, por resultar normalmente da sucessiva reiteração de um facto ilícito penal — o consumo de droga — em princípio, não só não tem efeito desculpabilizante ou de atenuação geral como indicia falta de preparação para manter conduta lícita: do mesmo modo, embora essa circunstância possa implicar sempre uam redução da capacidade de entender e querer do agente, a imputabilidade diminuída daí decorrente não só não determina, necessariamente, uma atenuação da pena como até pode constituir fundamento da sua agravação, tudo dependendo do circunstancialismo específico de cada caso concreto. Cf. a anotação ao ac. do STJ de 24 de Novembro de 1998, BMJ-481-152. • Anotação ao acórdão do STJ de 23 de Outubro de 1997, BMJ-470-234: a toxicodependência não é motivo para atenuação da responsabilidade. Acórdão do STJ de 26 de Maio de 1994, CJ, ano II (1994), tomo II, p. 238: a toxicodependência, em si e sem mais, não atenua a responsabilidade dos crimes praticados nesse estado ou por causa dele. • Acórdão do STJ de 20 de Novembro de 1997, Processo nº 974/96: a circunstância de o recorrente apresentar uma taxa de alcoolémia de 6,50 g/l, não é incompatível com o ter-se como provado que agiu de forma deliberada e com conhecimento da ilicitude nas agressões por si perpetradas, já que quando assim actuou não estava morto ou em coma, como ensina a ciência médica, mas sim fortemente alcoolizado, ingestão esta que não tem para o nosso Código um sentido de exclusão da voluntariedade do acto ilícito que seja praticado sob a sua influência. • Acórdão do STJ de 20 de Outubro de 1999, CJ ano VII (1999), tomo 3, p. 196: relatório da perícia psiquiátrica médico legal, livre apreciação pelo tribunal. • Acórdão do STJ de 25 de Outubro de 1995, BMJ-450-333: inimputabilidade; medidas de segurança; perturbações mentais geradoras de inimputabilidade. • Acórdão do STJ de 28 de Junho de 1990, CJ, 1990, tomo 4, p. 92: arguido inimputável e perigoso: deve ser mantida a sua prisão preventiva, verificando-se, no decurso do inquérito, fortes indícios da prática de crime que a admite e de continuação da actividade criminosa. • Acórdão do STJ de 29 de Novembro de 2001, CJ 2001, tomo III, p. 225: Inimputável. Habeas corpus. Pertinência, relativamente ao internamento ilegal, da providência extraordinária de habeas corpus. • Acórdão do STJ de 30 de Setembro de 1998, proc. nº 720/98: A imputabilidade diminuída, embora de um modo geral deva logicamente conduzir a uma atenuação da pena aplicável, não é reconhecida pela lei como situação em si mesma especialmente atenuante: a lei vigente nem sequer a 224 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. inclui entre as circunstâncias elencadas no art.º 72, n.º 2, do CP, como exemplos ilustrativos de situações justificativas de atenuação especial da pena. • Lourenço Martins, Diagnóstico nas intoxicações. Problemática da imputabilidade e da criminalidade resultante ou ligada ao consumo de droga, RMP ano 8 nº 29. • Augusto Silva Dias, A relevância jurídico penal das decisões de consciência, 1986. • Carlos Pérez de Valle, Conciencia y Derecho Penal, Granada, 1994. • Carlota Pizarro de Almeida, Modelos de Inimputabilidade. Da teoria à prática, Coimbra, 2000. • Claus Roxin, Culpabilidad y prevención en derecho penal, tradução, introdução e notas de F. 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Erro — o erro intelectual exclui o dolo (artigo 16º, nºs 1 e 2); o erro moral, correspondendo a um problema de culpa, deve ser apreciado segundo um critério de censurabilidade que poderá conduzir à sua irrelevância, à exclusão da culpa ou à sua atenuação (artigo 17º, nºs 1 e 2). Por erro entende-se a ignorância ou má representação de uma realidade. Essa realidade pode ter uma natureza diversa, traduzindo-se em elementos fácticos ou normativos de um tipo de crime (artigo 16º, nº 1, primeira e segunda proposições), certas proibições (artigo 16º, nº 1, terceira proposição), em elementos que constituem pressupostos de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa (artigo 16º, nº 2) ou valorações do sistema penal (artigo 17º). [José António Veloso, Erro em Direito Penal, p. 6, usa os conceitos de ignorância e suposição como modalidades de erro consequentes face ao regime legal]. Relativamente ao seu objecto, o erro pode incidir sobre realidades de facto ou elementos da direito descritos no tipo de crime (artigo 16º, nº 1, primeira e segunda proposições) ou mesmo sobre certas proibições (artigo 16º, nº 1, terceira proposição). Pode ainda incidir sobre aspectos da realidade estranhos ao tipo de crime que correspondam aos pressupostos de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa (artigo 16º, nº 2, do Código Penal). Finalmente, o objecto do erro pode ser a própria proibição ou permissão legal, na medida em que a sua ignorância ou deficiente representação seja sinónimo de uma falta de consciência da ilicitude do agente (artigo 17º). O Código distingue o regime do erro consoante a sua natureza: a ignorância ou a errada apreensão da realidade pode corresponder a um problema cognitivo ou pode traduzir-se num problema valorativo. No primeiro caso, estamos perante um erro de natureza intelectual ou meramente cognitivo (erro de conhecimento ou erro intelectual); no segundo, estamos perante um problema de natureza axiológica ou de valoração do agente sobre a realidade (erro de valoração ou erro moral). Consequências: o erro intelectual excluirá o dolo (artigo 16º, nºs 1 e 2). O erro moral corresponderá a um problema de culpa, devendo a sua relevância ser apreciada segundo um critério de censurabilidade que poderá conduzir à sua irrelevância, à exclusão da culpa ou à sua atenuação, neste caso com a correspondente graduação da pena (artigo 17º, nºs 1 e 2). Cf. Teresa P. Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Regime Legal do Erro e as Normas Penais em Branco, p. 10 e 22. 227 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. II. Breve introdução à problemática do erro. A ignorância ou a errada apreensão da realidade como um problema cognitivo ou como um problema valorativo: erro de natureza intelectual ou de conhecimento, que corresponderá a um mero problema cognitivo / erro de valoração ou erro moral, correspondente a um problema de natureza axiológica. 1.No direito português há duas maneiras de encarar o erro do ponto de vista penal. A cada uma dessas duas formas de erro correspondem diferenças quanto à relevância e aos efeitos na responsabilidade penal do agente. Numa das formas de erro (erro intelectual) o dolo é excluído ficando o caso pendente da punibilidade do agente por negligência de acordo com as regras gerais. Na outra, se o erro (erro moral ou de valoração) não for censurável a culpa é excluída — poderá falar-se aqui, do ponto de vista dogmático, de um fundamento de exclusão da culpa; em caso de censurabilidade do erro permanece a punibilidade por facto doloso, ainda que a pena possa ser especialmente atenuada. A diferença entre as duas formas de erro nada tem a ver com a questão ultrapassada da distinção entre erro de facto e erro de direito ou com a possibilidade de distinguir este último sob o ponto de vista de um erro penal ou extra-penal. No Código Penal português o erro pode incidir sobre elementos de facto ou de direito descritos no tipo de crime ou mesmo sobre certas proibições ou pode incidir sobre pressupostos de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa (artigo 16º, nºs 1 e 2). O objecto do erro pode ser ainda a própria proibição (ou permissão) legal, na medida em que a sua ignorância ou deficiente representação seja sinónimo de uma falta de consciência da ilicitude (artigo 17º). Esta última regra fornece a chave da compreensão do que seja o verdadeiro fundamento da distinção entre as duas indicadas formas de erro. Vejamos o ex. do Prof. Figueiredo Dias (O problema da consciência da ilicitude, p. 279 e ss., que procuramos seguir muito de perto). O automobilista que, seguindo numa estrada em noite enevoada e sentindo um embate no veículo, continua o seu caminho porque supôs tratar-se de uma pedra ou de um animal — quando na realidade se tratava de uma criança que ficou gravemente ferida — actua, relativamente ao facto tipicamente relevante (abandono, omissão de auxílio), com falta de conhecimento de um elemento 228 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. típico, com uma falta ao nível da sua consciência psicológica que impede a consciência ética de se orientar esclarecidamente para o problema do desvalor em causa (o do abandono). Já porém o automobilista que se dá conta que embateu numa criança e, vendo-a gravemente ferida, se não põe a questão do dever de a socorrer, ou se não julga juridicamente obrigado a fazê-lo e assim (v. g. para se não atrasar no caminho ou não manchar de sangue os estofos do seu carro) a abandona, possui ao nível da sua consciência psicológica todos os elementos necessários para que a consciência ética se ponha e decida correctamente o problema de desvalor em causa. Pondere-se a circunstância de o automobilista não conhecer o artigo 200º do Código Penal, ou não o conhecer exactamente supondo v. g. que ele só impõe o dever de auxílio a quem tiver tido a culpa do acidente — na perspectiva do automobilista, a quem não falta qualquer conhecimento relevante da situação, já que se apercebera claramente de que atropelara uma criança, o abandono desta não será ilícito. O regime do erro é, em direito penal, uma decorrência do princípio da culpa ou da responsabilidade subjectiva, de forma que, basicamente, o problema que aqui se coloca é um problema de culpa. A relevância penal do erro constitui, portanto, um problema de culpa: a imputação a um agente de factos criminalmente relevantes assenta num nexo subjectivo na modalidade de dolo ou de negligência (artigos 14º e 15º). Daí a oportunidade da pergunta: o significado axiológico normativo destas condutas é o mesmo para a culpa? Perguntando doutra forma: onde é que, no que tange à culpa, se encontra a diferença específica que permite distinguir um erro que exclui o dolo dum outro erro que não exclui o dolo, mas que exclui sempre a culpa, quando não for censurável? A resposta está no seguinte: O erro exclui sempre o dolo quando no processo de motivação se interpõe um erro intelectual, uma falta de conhecimento que conduz a uma apreensão inexacta da situação e que impede o agente — como impediria qualquer pessoa, por mais conformada que estivesse com o dever-ser jurídico penal — de tomar consciência da ilicitude da conduta intentada. No primeiro exemplo, o do automobilista que atropela a criança mas julga erroneamente que embateu numa pedra, mesmo o agente dotado de uma consciência 229 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. conformada com exigências daquele dever-ser precisaria de saber que o veículo havia embatido num ser humano para que se pudesse pôr e decidir correctamente a questão do dever de auxílio. No segundo caso, o que está em causa é um erro moral ou de valoração — é uma questão de "bondade" ou "maldade" jurídica, de ilicitude ou licitude; e o que é bom, ou mau, lícito ou ilícito, não é qualquer conhecimento mas só pode ser a própria conduta. O agente teve neste caso presentes na consciência psicológica todos os elementos que eram necessários para que a sua consciência-ética se tivesse posto e decidido correctamente a questão do dever respectivo; pois todo o homem de consciência-ética conformada com as exigências do direito penal teria concluído, na base do conhecimento do agente concreto, pela ilícitude da não prestação de auxílio. Daí que possamos concluir o seguinte: quando falta ao agente o conhecimento de circunstâncias tipicamente relevantes, a censura da culpa funda-se em uma falta de conhecimento ao nível da consciência-psicológica; quando existe dolo-do-facto mas falta a consciência da ilicitude, a censura fundamenta-se em uma falta da consciência-ética, relacionada com os valores que ao direito penal cumpre proteger. No caso em que o condutor abandona a criança por julgar ter embatido numa pedra, e não sendo de esperar, mesmo do homem prudente e cuidadoso, mas dotado das qualidades intelectuais do agente, que nas circunstâncias da acção comprovasse a natureza do embate, cessa toda a censura e toda a culpa. Já porém no caso em que há dolo-do-facto mas falta a consciência da ilicitude do que se trata é de uma falta da própria consciência-ética e portanto de uma qualidade ético-juridicamente relevante da personalidade, susceptível de fundamentar por si mesma, quando documentada no facto, uma culpa de espécie particular. Ora, estas qualidades são valoradas de acordo com um padrão estritamente objectivo. 2.O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime exclui o dolo (artigo 16º, nº 1, 1ª parte). Estamos agora em condições de compreender que o erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime exclui o dolo (artigo 16º, nº 1, 1ª parte). Com efeito, o tipo é o portador da valoração da correspondente conduta como ilícita e o conhecimento de todos os seus elementos constitutivos (de facto ou de direito, positivos ou negativos, descritivos ou normativos, determinados ou indeterminados, 230 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. "fechados" ou "abertos") é indispensável a uma correcta orientação da consciência do agente. Deste modo, ainda que a acção preencha o tipo objectivo do ilícito, em caso de erro sobre a factualidade típica, a sanção fica excluída quando se tratar de crime doloso (artigo 14º). No exemplo do indivíduo que leva consigo o guarda-chuva de outra pessoa, no convencimento de que é o seu (desconhecimento da natureza alheia da coisa), o agente não é punido por furto (artigos 14º, 16º, nº 1, e 203º). Não obstante o disposto no artigo 16º, nº 3, a regra não funciona num caso como este por só serem puníveis situações de “furto” cometidas dolosamente. Mas se excepcionalmente o facto for punível por negligência (artigos 13º, última parte, e 15º), o agente poderá ser punido a este título: artigo 16º, nº 3 — “fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.” Exemplo: durante uma caçada, A atinge mortalmente o seu companheiro B a tiro, confundindo-o com um animal. B, por brincadeira, tinha-se escondido atrás de uns arbustos e começara a grunhir como se fosse uma peça de caça. A desconhecia que atirava sobre “outra pessoa” (artigo 131º) e isso exclui a punição por dolo (artigos 14º, 16º, nº 1, e 131º), mas se o erro for censurável, se o caçador disparou descuidadamente, sem proceder ao exame atento da situação, A será punido por crime negligente (artigos 13º, última parte, 15º, 16º, nºs 1 e 3, e 137º, nº 1). Conclusão: o dolo-do-tipo faltará no caso de um erro de tipo ou erro sobre a factualidade típica — erro intelectual ou erro de conhecimento, que exclui o dolo (artigo 16º, nº 1). Poderá, quando muito, haver punição a título de negligência (artigo 16º, nº 3), nos termos gerais. 3.No artigo 16º, nº 2, o erro é ainda de natureza intelectual — o seu regime é idêntico ao erro sobre o facto típico, ficando excluído o dolo (e isso, não obstante tratar-se de uma realidade que transcende o facto típico (Teresa Beleza), pois incide sobre os pressupostos de facto de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa). O artigo 16º, nº 2, dispõe que o preceituado no nº anterior — quanto ao erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime (...) —, abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude ou a culpa do agente. O regime deste nº 2 segue materialmente o regime do erro sobre o facto típico — por se tratar de 231 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. um erro de natureza intelectual ele possui um efeito idêntico ao erro sobre o facto típico, de forma que também aqui se exclui o dolo. Os casos de erro sobre um pressuposto objectivo, de facto ou de direito, de uma causa de justificação, situam-se entre o autêntico erro de tipo e o autêntico erro de proibição. Assemelham-se ao erro de tipo porque, tal como neste, o agente erra sobre elementos objectivos de facto ou de direito (normativos ou descritivos); estão perto do erro de proibição porque ao errar a respeito do conhecimento de circunstâncias que fundamentam a ilicitude erra afinal o agente a respeito da ilicitude do facto. Quem actua na suposição de que o faz com o beneplácito de uma causa de justificação alcança o apelo da norma de Direito tanto quanto aquele que ignora a existência de um elemento do facto. Quem erra sobre um elemento de facto ou de direito do tipo de crime fica creditado da mesma atitude de conformidade com o Direito daquele que erra a respeito de um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude ou a culpa, pois só actua contra o Direito por causa do erro de que está possuído. Ambas as situações conferem com a razão de ser da regulamentação prevista no artigo 16º, mas não com a prevista no artigo 17º. É mais exactamente excluída a culpabilidade dolosa (não o dolo do tipo). “A razão porque o erro de tipo permissivo não segue o regime do erro de proibição reside, por um lado, na diminuição — que não na supressão — do desvalor da conduta, já que o agente acredita estar a actuar justificadamente, isto é, de acordo com o Direito e não contra o Direito. Em consequência, por outro lado, também o conteúdo da culpa se reduz consideravelmente uma vez que a motivação que conduziu à formação do dolo não se funda num ânimo, numa atitude contrária ao Direito, mas tão somente no exame descuidado da situação. O que deve censurar-se ao agente é o facto de ter actuado descuidadamente, sem proceder ao exame atento da situação. Significa isto que se mantém incólume o dolo de tipo, havendo participação punível, mas que não estão reunidos os pressupostos da culpa dolosa, na medida em que falta a atitude contrária ao Direito por parte do agente. Consequentemente, vai ser afastada a censura dolosa, para o agente vir a ser punido com a pena correspondente ao crime negligente, nos termos dos artigos 16º, nº 3, e 13º.” (Cf. Teresa Serra, p. 85, chamando, por isso, a atenção para a dupla função do dolo). No exemplo em que A interpreta erroneamente como agressivo um gesto de B que de noite se aproxima de si (por ex., para lhe pedir uma informação, ou para lhe pedir um cigarro) e o golpeia, com intenção de se defender, A só pode ser sancionado pelo artigo 148º, mas nunca pelo artigo 143º. 232 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 4.A ignorância da proibição nos casos de conduta axiologicamente neutra será ainda um problema de conhecimento (de natureza cognitiva ou intelectual), pelo que igualmente se excluirá o dolo (artigo 16º, nº 1, última parte). Finalmente, em face do artigo 16º, nº 1, última parte, as considerações antes feitas ajudam a compreender que, também aqui, perante uma conduta axiologicamente neutra, se o agente desconhece a proibição legal e em consequência disso não alcança a consciência da ilicitude fica excluído o dolo do agente e a punição a esse título (artigo 16º, nº 1, última parte) — o erro fica a dever-se ainda a uma falta de ciência, que não a um engano da sua consciência. A consciência-ética não se exprime na conduta realizada e não pode ser atingida pelo juízo de censura da culpa. O que pode censurar-se ao agente não é uma falta de consonância da sua consciência-ética com os critérios de valor da ordem jurídica, mas só eventualmente uma falta de cuidado, traduzida na omissão do dever de se informar e esclarecer sobre a proibição legal, que torna a sua conduta axiologicamente relevante: a censura típica da negligência. Com efeito, a norma de proibição pode ser indispensável à relevância "axiológica da conduta" (Figueiredo Dias) ou "de criação predominantemente política" (Cavaleiro de Ferreira). Neste caso, o seu conhecimento é "razoavelmente indispensável à tomada de consciência da ilicitude" e a ignorância dita a exclusão do dolo. Se o agente ignorar a vigência da norma incriminadora, desconhecerá a existência da proibição e estará em situação de erro intelectual, que o impede de tomar consciência da ilicitude, ficando excluído o dolo. Por ex., tratando-se de norma do chamado direito penal económico secundário ou extravagante o bem jurídico protegido pode não possuir um substracto ontológico concreto nem se referir a pessoas particulares; tratar-se-á assim de um crime em que as condutas que o integram não assumem, independentemente da proibição, um evidente carácter ético de desvalor, a ponto de se poder considerar irrelevante o erro sobre a proibição (Figueiredo Dias, Crime de câmbio ilegal, p. 55). Recorde-se que para que haja dolo do tipo (possibilitando uma ulterior afirmação de uma culpa dolosa) necessário se torna que o agente conheça todos os elementos indispensáveis para que a sua consciência-ética se ponha e possa resolver correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento, quer tais elementos sejam factos materiais, ou até as próprias concretas proibições. A maior ou menor extensão do conhecimento exigido varia em 233 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. função do tipo de crime em presença e da conduta que o preenche. O critério é, no entanto, sempre o mesmo: o erro intelectual exclui o dolo e tal erro existe quando falta ao agente, ao nível da sua consciência psicológica, o conhecimento de um qualquer elemento que seja necessário para que a sua consciência moral esteja na posse de todos os dados necessários para se colocar e resolver o problema da ilicitude. Na situação psicológica documentada pelo caso de câmbio ilegal tratado pelo Prof. Figueiredo Dias (Crime de câmbio ilegal, CJ, ano XII (1987), tomo 2, p. 53) falta qualquer substracto material (ao nível do agente) sobre o qual aplicar o juízo de censura próprio da culpa dolosa. "Como poderia no facto praticado demonstrar o agente contrariedade ao direito, quando não possuía o conhecimento necessário para sequer poder aventar a possibilidade de a sua acção ser antijurídica?" Há portanto condutas que — diferentemente do que sucede com um homicídio, um roubo, uma violação ou uma falsificação documental — não podem reputar-se, em si mesmas, como axiologicamente relevantes: são axiologicamente neutras. O que então pode eventualmente censurar-se ao agente — repete-se — não é uma falta de consonância da sua consciência-ética com os critérios de valor da ordem jurídica, mas só uma falta de cuidado (omissão do dever de se informar e de se esclarecer sobre a proibição legal), isto é, a censura típica da negligência. A censura fundamenta-se aqui no incumprimento de um dever de informação e esclarecimento sobre proibições legais e não no de um dever de pôr em tensão a consciência-ética e de a conformar com as valorações da ordem jurídica. Deve contudo acentuar-se que o erro sobre a proibição será em regra censurável para o agente pertencente ao círculo (nos casos de condutas axiologicamente neutras que se relacionam com a actividade profissional do agente ou com o círculo de vida a que este pertence, por ex., as proibições que atingem a actividade do médico, do farmacêutico, do caçador, do automobilista) não censurável para o estranho (F. Dias, O Problema, p. 409). Crítica: o que é uma conduta "axiologicamente neutra" ou "axiologicamente relevante"? Com base em que critérios vai o Tribunal decidir dessa natureza? Como é que é possível garantir o cumprimento do princípio do contraditório relativamente à decisão desta questão? Barbara Wooton escrevia há já muito, com a ironia que lhe era peculiar, que desconfiava que os mala in se eram, simplesmente, mala prohibita há mais tempo. Bater na mulher era, há quarenta anos, quando os Tribunais portugueses ainda admitiam expressamente o poder de "moderada correcção doméstica" do marido, um (mero) malum prohibito? Assim, Teresa Beleza / Costa Pinto, O erro sobre normas penais em branco. 234 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 5.O erro moral ou erro de valoração corresponde a um problema de culpa e pode conduzir à exclusão da culpa ou à sua atenuação (artigo 17º, nºs 1 e 2). Se a conduta for em si mesma axiologicamente relevante a ignorância da proibição será ainda um problema de culpa — a resolver segundo os critérios do artigo 17º. Estarão aqui em causa a errónea convicção do agente de que a incriminação não existe, ou de que, existindo, todavia não cobre a conduta intentada, bem como a errónea aceitação quer da existência de um obstáculo à ilicitude que o direito não reconhece, quer de que o âmbito de um obstáculo juridicamente reconhecido é mais amplo do que na realidade o é, cobrindo com a sua força justificadora a conduta intentada. Exemplos: i) De erro de proibição: T, que se encontra há pouco tempo em Portugal, vindo de um país estrangeiro, conhece aqui R e sabe que esta vai fazer 14 anos daí a dois meses, inclusivamente, fazem projectos para comemorar a data. Apesar disso, T pratica com R relações sexuais de cópula. No país donde T é originário só se proíbem relações sexuais do tipo das descritas com raparigas de idade inferior a 13 anos. Como T desconhece o que se passa em Portugal não tem consciência do seu facto, não sabe que comete um crime. Na verdade, T preencheu todos os elementos do tipo do artigo 172º do Código Penal, mas falta-lhe a consciência da ilicitude, pois não conhece a proibição (a norma de proibição). (Tratar-se-ia de erro de tipo se, pelo contrário, T, conhecendo a proibição, estivesse convencido de que a rapariga de 13 anos tinha de facto 17). ii) De erro sobre o âmbito de aplicação da norma: T, estudante de Direito, entra em discussão com a sua irmã mais nova e não tendo gostado dos modos desta, deixa-a adormecer e aproveita para lhe cortar uma abundante porção de cabelo. Depois, sustentou que não tinha cometido nenhuma acção ilícita, pois só pode haver ilicitude quando um tipo de crime da parte especial do Código Penal se mostrar preenchido. É certo — continuou T, mas sem razão! — que o artigo 143º pune quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, mas isso não acontece quando simplesmente se corta o cabelo de alguém. iii) De erro sobre a existência de uma norma de permissão: o funcionário T sabe que a norma penal que pune a corrupção (artigo 373º) não lhe permite receber dinheiro como contrapartida de um serviço prestado no exercício de funções, mas supõe erradamente que isso não se aplica aos valiosos presentes que lhe queiram dar por altura do Natal e aceita receber vários. iv) De erro sobre o âmbito de aplicação de uma norma de permissão: T conseguiu finalmente pôr termo à agressão de O. Quando este jaz, estendido no chão, T dá-lhe ainda uns vigorosos pontapés que o atingem por várias partes do corpo (artigo 143º), partindo da suposição errónea de que o facto estava ainda coberto por legítima defesa (artigo 32º). Num caso destes, o agente terá actuado com todo o conhecimento necessário a uma correcta orientação da sua consciência-ética para a questão do desvalor do facto, i. é, para o problema da ilicitude, de tal forma que a censura do erro e do ilícito-típico que este 235 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. fundamenta só pode repousar em uma desconformação entre os critério de valor da consciência-ética do agente e os reconhecidos pela ordem jurídica. O que então poderá eventualmente censurar-se ao agente é — não uma falta de cuidado, traduzida, por ex., na omissão do dever de se informar e de se esclarecer sobre a proibição legal, isto é, a censura típica da negligência —, mas uma falta de consonância da sua consciência-ética com os critérios de valor da ordem jurídica. Mesmo quando o agente incorre em um erro censurável sobre a existência ou o âmbito de um obstáculo à ilicitude a censura não se dirige à circunstância de ele "desconhecer" os exactos limites de que a ordem jurídica faz depender a exclusão da ilicitude, antes sim à circunstância de, apesar de um exacto conhecimento da situação e de uma correcta orientação para o problema da ilicitude, não ter alcançado a consciência do desvalor da conduta intencionada. Consequentemente, a relevância do erro moral como problema de culpa deverá ser apreciada segundo um critério de censurabilidade que poderá conduzir à sua irrelevância, à exclusão da culpa ou à sua atenuação (artigo 17º, nºs 1 e 2). Todavia, a falta de consciência da ilicitude só deverá reputar-se não censurável quando, para além de se não lograr a comprovação de que ela ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do agente, for possível verificar, positivamente, a manutenção no agente, apesar daquela falta, de uma "recta consciência", fundada em uma atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevantes (Figueiredo Dias, RLJ; O Problema, p. 307; Liberdade, Culpa, Direito Penal, p. 242). III. Erro de tipo; erro sobre a factualidade típica. CASO nº 27: T, que se encontra na casa de O, vê ali um livro que supõe erradamente ser seu. Para não ter que voltar ali só para levar o livro, mete-o na saca com que anda e leva-o consigo, sem nada dizer. Falta o dolo quando o agente desconhece uma circunstância do tipo de crime. Falta a consciência da ilicitude quando o agente desconhece a proibição do facto. É assim que emergem o erro de tipo ou sobre a factualidade típica e o erro na proibição como as duas formas do erro-ignorância. Objecto do erro de proibição é em primeira linha a norma de proibição. Objecto do erro de tipo é a base factual a subsumir no tipo de proibição. 236 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. No caso nº 27, como se trata de subtracção de coisa alheia, o tipo de ilícito objectivo do furto mostra-se preenchido. Todavia, T desconhece uma circunstância factual típica, desconhece que o livro é alheio. T está em erro sobre a factualidade típica, pelo que não será punido (artigos 14º, 16º, nº 1, e 203º). Trata-se de um “erro intelectual ou de conhecimento” (correspondente a um problema cognitivo) que pode versar sobre quaisquer elementos, descritivos ou normativos, tipicamente relevantes. Não obstante o disposto no artigo 16º, nº 3, a regra não funciona num caso como este por só serem puníveis situações de “furto” cometidas dolosamente. Mas se excepcionalmente o facto for punível por negligência (artigos 13º, última parte, e 15º), o agente poderá ser punido a este título: artigo 16º, nº 3 - “fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.” A existência de negligência depende então da censurabilidade do erro. Durante uma caçada, T atinge mortalmente o seu companheiro O a tiro, confundindo-o com um animal. O, por brincadeira, tinha-se escondido atrás de uns arbustos e começara a grunhir como se fosse uma peça de caça. T desconhecia que atirava sobre “outra pessoa” (artigo 131º) e isso exclui a punição por dolo (artigos 14º, 16º, nº 1, e 131º), mas se o erro for censurável, T será punido por crime negligente (artigos 13º, última parte, 15º, 16º, nºs 1 e 3, e 137º, nº 1). IV. Erro; erro sobre a proibição; falta de consciência da ilicitude; erro sobre a licitude do facto; crime putativo. CASO nº 27-A: O pedreiro “promovido” a dono de café. A colocou no seu estabelecimento de confeitaria, situado em Rio Tinto, uma máquina, contendo várias bolas e, junto dela, um cartaz, todo ele numerado. A máquina destinava-se a uma modalidade de jogo, na qual o jogador introduz uma moeda de 100$00 e, rodando o manípulo para a direita, recebe em troca uma bola, dentro da qual se encontram duas senhas. Se nas senhas se encontrar um número que coincida com algum dos números existentes no cartaz, o jogador terá direito ao prémio pecuniário, indicado em pontos, por baixo do número premiado. A sabia que tal jogo é um jogo de fortuna ou azar. Agiu de forma voluntária e consciente. Anteriormente, trabalhava na construção civil como pedreiro. Não se provou que A sabia que a exploração de tais máquinas fora das zonas autorizadas de jogo é proibida. Também se não provou que A sabia que a sua conduta era reprovável e contrária à lei. A fora acusado da prática de um crime p. e p. pelos artigos 3º, 4º, 108º e 115º do DL 422/89 de 2 de Dezembro. O artigo 1º dispõe que "jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte". O artigo 3º, nº 1, prescreve que a exploração de tais jogos só é permitida nos casinos (existentes nas zonas previstas no nº 3) ou nos locais referidos nos artigos 6º a 8º. A máquina existente no estabelecimento de A destinava-se a um jogo de fortuna ou azar, para os efeitos do artigo 1º citado (uma vez que, depois de o jogador introduzir uma moeda de 100$00 e 237 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. rodar o manípulo aí existente, é aleatório, dependendo da sorte, o conteúdo da bola que sai em troca). A sua exploração era feita em local não permitido, ou seja, fora das zonas de jogo legalmente instituídas, não constando dos autos qualquer autorização das autoridades competentes. Por outro lado, o artigo 108º prevê que "quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido...", mas não se incrimina a conduta simplesmente negligente. Encontram-se preenchidos os elementos objectivos deste tipo-de-ilícito. Vejamos se a conduta integra o correspondente elemento subjectivo, sendo certo que (artigo 13º do Código Penal), "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência". Age com dolo aquele que, representando um facto que preenche um tipo de crime, actua com intenção de o realizar — artigo 14º, nº 1, do Código Penal. Ora, como ficou provado, A representou que, ao colocar a máquina em causa no seu estabelecimento, estava a explorar um jogo de fortuna ou azar e quis fazê-lo, tendo agido voluntária e conscientemente. Estão, assim, preenchidos os elementos intelectual (conhecimento ou representação dos factos constitutivos de um tipo legal de crime) e volitivo (vontade de realização desses factos) do dolo (enquanto tipo-de-ilicito). Porém, não se provou que A soubesse que a sua conduta — exploração do jogo — era proibida por lei, ou seja, não se provou que agiu com consciência da ilicitude. E se, de acordo com o artigo 16º, nº 1, do Código Penal "o erro (...) sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo", de acordo com o artigo 17º, nº 1,, "age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável". A delimitação entre o regime do artigo 16º e o do artigo 17º faz-se a partir da natureza axiológica da conduta do agente. Importa, pois, determinar qual o critério decisivo de distinção entre os dois tipos de erro (o previsto no artigo 16º e o previsto no artigo 17º), para sabermos se, no caso, se aplicará alguma dessas normas. O problema envolve-se na questão mais geral da distinção entre erro sobre a mera proibição legal e a verdadeira e própria falta de consciência da ilicitude que é agora entendida como elemento material do juízo de culpa e com completa autonomia relativamente ao dolo. 238 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Em primeiro lugar, será necessário verificar se, no caso concreto, o simples conhecimento do tipo objectivo por A, em todas as circunstâncias relevantes, de facto e de direito, era suficiente para uma correcta orientação do mesmo para o desvalor do ilícito. Se concluirmos que não e que, no caso, era ainda para tanto necessário o conhecimento da proibição (v. g., porque é fraca a coloração ética da conduta em causa, porque são razões de pura oportunidade ou de estratégia social que baseiam a proibição, ou porque nos deparamos com uma hipótese de neocriminalização que ainda não ganhou a devida ressonância ético-social), estaremos perante um erro sobre a proibição relevante (artigo 16º, nº 1). Se, porém, se concluir que A possuía todo o conhecimento razoavelmente indispensável para tomar consciência da ilicitude do facto e todavia não a alcançou, então trata-se de uma hipótese que cabe na previsão do artigo 17º, por não estarmos perante um caso de falta de informação ou de esclarecimento, mas de deficiência da própria consciência ético jurídica de A, que não lhe permite apreender correctamente os valores jurídico-penais. (Cf. Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, Jornadas, p. 72 e s.) O teor do artigo 16º, nº 1, significa que é também objecto de conhecimento, no dolo, a norma proibitiva que incrimina o facto, mas não o é sempre — só se for indispensável para o agente tomar consciência da ilicitude. É que a consciência da ilicitude está, em geral, implícita no conhecimento do próprio facto. As directrizes básicas de ordem moral e social são manifestas a todos os homens providos de razão, e o Direito penal só incrimina, em geral, as ofensas a princípios fundamentais da ordem moral e social (Direito penal primário). Na verdade, toda a gente sabe que não se pode matar, nem roubar, nem violar, nem ofender corporalmente, nem injuriar, nem acusar falsamente, pois todas estas condutas, citadas como exemplo, correspondem ao que Garófalo chamava “delitos naturais”, cuja reprovabilidade faz parte da cultura social. A falta de consciência da ilicitude não é, então, de admitir e não é excusável, porque a consciência da ilicitude acompanha naturalmente o conhecimento dos elementos essenciais do facto ilícito. Há, porém, crimes predominantemente de criação política, nos quais essa presunção não se verifica, por neles sobrelevar a imposição de deveres de disciplina social (direito penal secundário). Em tais casos, para tomar consciência da ilicitude, tem o agente de conhecer 239 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a própria norma que os impõe e, então, só haverá dolo se o agente tiver conhecimento da proibição legal, por se tratar de condutas axiologicamente neutras (como em parte do direito penal extravagante), em que a consciência ética, para se pôr correctamente o problema da ilicitude, precisa de conhecer, não só a factualidade, como a própria proibição, uma vez que só esta dá relevância axiológica à conduta (cf. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal - Parte Geral 1, 1992, p. 337 e s.; Figueiredo Dias, Direito Penal, Sumários das Lições, 1975, p. 247). Significa isto, em suma, que a estas normas não se podem ligar as virtudes dos chamados “axiomata media”, isto é, dos princípios que gozam de validade universal e que “ajudam a reduzir a complexidade de um Sistema (de uma Sociedade regional ou universal), por constituírem pontos de contacto entre concepções morais de diferentes proveniências” (F.A.Z. de 26.4.96: Wie weit fällt der Apfel?, recensão ao livro de Detlef Horster, Der Apfel fällt nicht weit vom Stamm. Moral und Recht in der postchristlichen Moderne, Surkamp, 1995). Na verdade — e é isso que temos vindo a acentuar —, existe um grande número de ilicitudes de cuja existência só têm cabal conhecimento algumas pessoas particularmente informadas. É a propósito deste grupo de infracções que se põem boa parte dos casos ou problemas de erro. O Direito Penal deverá ter regras para solucionar, de acordo com o ideal de justiça, os defeitos de conhecimento que compreensivelmente possam surgir. É opinião de há muito aceite que isso não afectará a eficácia geral das leis, pois apenas exigirá que se faça uma valoração das circunstâncias pessoais de cada sujeito a fim de medir o melhor possível a resposta jurídica que a sua conduta merece (Quintero Olivares/Muñoz Conde, La reforma penal de 1983, p. 41). Assim, para que o dolo se ache excluído por aplicação do art. 16º, nº 1, última parte, torna-se necessária a análise prévia do conteúdo de ilicitude da norma incriminadora, por referência ao bem jurídico protegido, a fim de determinarmos, com segurança, se estamos perante uma proibição cujo conhecimento era razoavelmente indispensável para que A pudesse tomar consciência da ilicitude dos factos praticados. Apreciar a conduta de A à luz dos indicados critérios. Considere que o crime cujos elementos típicos foram praticados por A se encontra previsto em diploma avulso e não, por ex., no Código Penal. A discussão passa pela distinção entre Direito penal primário e secundário e pela natureza dos bens jurídicos protegidos. Repare-se que no preâmbulo do Decreto-Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro, que procedeu a um reenquadramento da actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar, se reconhece que neste domínio sempre foi assumida a tutela de interesses de ordem 240 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pública, desde logo, os ligados à “função turística” do jogo, “designadamente como factor favorável à criação e ao desenvolvimento das áreas turísticas”. E isto, naturalmente, porque a inevitável proliferação do jogo clandestino coincide, em toda a linha, com a subversão dessa reiterada intenção. Repare-se ainda que a incriminação em causa pressupõe a violação de um dever extra-penal, sendo certo que a autorização para a exploração de jogos de fortuna ou azar depende de uma decisão materialmente administrativa. No acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Janeiro de 1998, CJ, ano XXIII (1998), t. I, p. 51, concluíra-se, de modo diferente, que o arguido não conhecia a proibição de explorar um jogo de fortuna ou azar, pelo que não se colocava a problemática do erro que exclui o dolo, ou seja, do artigo 16º. O que se verificou, por parte do arguido, foi a crença errónea de estar a agir licitamente, ou seja, de um erro de valoração ou erro moral. O arguido foi absolvido com fundamento em erro não censurável sobre a ilicitude — artigo 17º, nº 1. A situação inversa a esta (à do erro sobre a licitude do facto) integra-se no chamado "crime putativo". O agente pratica o facto ao abrigo de uma causa de justificação, mas convencido de que a ordem jurídica a não prevê. Exemplo: A introduz-se na casa de B, arrombando a porta, para salvar C, que está prestes a ser devorado por um incêndio. A terá agido ao abrigo do estado de necessidade justificante, mesmo que ignore a licitude do facto. Na hipótese (cf. Rui Carlos Pereira), o agente não será punível por violação de domicílio e dano — a solução resulta dos conjugados princípios da legalidade e da necessidade das penas e das medidas de segurança: "nem a ilicitude penal pode ser delimitada pelas figurações do agente, em substituição do legislador, nem se requer a tutela penal de bens jurídicos em situações em que o mal do crime apenas existe na consciência do agente". V. Erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto; erro sobre os pressupostos objectivos, de facto ou de direito, de uma causa de justificação. CASO nº 27-B: A mascarou-se de assaltante de bancos e para divertir os amigos dirige-se ao Banco x. O caixa C, atemorizado, acredita que se trata de um assalto a sério e mata A, com a arma que tinha ali à mão. 241 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. C supôs erroneamente que se verificavam os pressupostos da legítima defesa. De acordo com o disposto no artigo 16º, nº 2, o dolo fica excluído. C só poderá ser condenado por negligência: artigo 16º, nº 3. C, que actuou em situação de erro-suposição, não revelou uma atitude de indiferença ou de hostilidade ao direito, bem pelo contrário: a atitude de C é comparável à daquele que actua em erro sobre a factualidade típica e portanto desconhece um elemento, descritivo ou normativo, do tipo de crime. No caso de C existe, sem dúvida, o desvalor do resultado a que a sua vontade se dirigia, mas falta-lhe o desvalor de acção que se verifica no facto doloso. CASO nº 27-C. Dar uma bofetada. P é professora do ensino básico. Na sala de aulas, P escreve no quadro, de costas viradas para os alunos, com idades que andam pelos dez anos. Às tantas, P dá-se conta do arremesso de uma bola de papel, e volta-se rapidamente, agarrando A por um braço, e aplicando- lhe um tabefe na cara.. Ao agarrar A por um braço, aplicando-lhe um tabefe na cara, P pode ter cometido um crime doloso de ofensa à integridade física simples. O ilícito do artigo 143º, nº 1, consuma-se com qualquer ofensa no corpo ou na saúde. Há dano da integridade corporal, por ex., quando o agressor provoca equimoses, arranhadelas, ferimentos, fracturas, mutilações ou outras lesões do mesmo género na vítima. Mas nem o derramamento de sangue (hemorragia) nem a solução de continuidade dos tecidos são indispensáveis à existência de uma ofensa no corpo. A dor e o sofrimento também não são imprescindíveis. Quem dá uma bofetada noutra pessoa agride-a fisicamente, ofendendo-a no corpo (eventualmente na saúde), mesmo que não ocorram lesões, incapacidade para o trabalho ou, mesmo só, dor. O direito dos pais corrigirem os filhos deverá ser considerado uma causa de justificação. A legitimação dos pais deduz-se do direito de educar. Cf. os artigos 1877º, 1878º e 1885º do Código Civil. Mas não existe uma norma escrita a conferir aos professores um direito de castigo na escola. Hoje em dia, aliás, nega-se um direito de castigo do professor relativamente aos seus alunos, mesmo que este pretenda que à sua actuação preside uma finalidade pedagógica e se guarda uma relação adequada com a falta cometida e a idade do jovem. Também por isso mesmo se não poderia prevalecer o professor da adequação social da ofensa. 242 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. O critério da adequação social. No que toca à adequação social, escreve o Prof. Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 48, “a ideia básica é a de que não pode constituir um ilícito jurídico-penal uma conduta que ab initio e em geral se revela como socialmente aceite e reconhecida”. O acto de atirar uma bola de papel não representa, certamente, uma agressão que justifique a adopção de uma acção de defesa, pelo que estará do mesmo modo excluída a legítima defesa (artigo 32º). Pode-se assim assegurar que o comportamento da professora é ilícito, por não se encontrar coberto por qualquer causa de justificação (artigo 31º). Vamos contudo ver se a punibilidade de P poderá eventualmente ser afastada pela circunstância de esta, no momento de actuar, estar convencida de que tinha um direito ao castigo e que, no caso, estavam reunidos os pressupostos fácticos dessa presumida causa de justificação (hipótese de duplo erro). Detecta-se aqui um erro sobre o tipo permissivo (admissão errónea de uma situação que, a existir, seria de molde a justificar o facto concreto), a resolver de acordo com os critérios do artigo 16º, nºs 1 a 3, excluindo- se o dolo, mas possibilitando a punibilidade do agente por ofensa à integridade física negligente (artigo 148º), tanto mais que, sendo o crime de natureza semipública, houve queixa de quem de direito, os pais do aluno. A solução não é pacífica. Veja-se o exemplo do Prof. Figueiredo Dias (O problema, p. 444, nota 59), do educador que julgando ter sido o aluno A quem lhe faltou ao respeito (na realidade foi B) — erro sobre os pressupostos do direito de correcção — se crê legitimado a corrigi-lo com ofensas corporais graves — erro sobre o âmbito do direito de correcção. “Suposta a censurabilidade dos erros, seria evidentemente absurdo pretender que logo o erro sobre os pressupostos do obstáculo à ilicitude tornaria o crime negligente, quando é certo que, se tal erro não existisse e o professor tivesse castigado da mesma forma o aluno respeitador (B), o crime seria doloso. A razão está, como é claro, em que o erro sobre os pressupostos só releva (ou mesmo só existe em sentido próprio) quando conduz o agente a aceitar um estado de coisas que, a existir, excluiria efectivamente a ilicitude do facto, mas já não quando, mesmo a existir, só na concepção do agente a excluiria”. Ora, o agente “aceitou erroneamente os pressupostos, não de um obstáculo à ilicitude existente, mas de um que o direito não reconhece”. VI. Um caso particular de erro: erro sobre circunstâncias que fazem funcionar um tipo de crime privilegiado. CASO nº 27-D: Segundo o artigo 134º, nº 1, do Código Penal, "quem matar outra pessoa determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito é punido com pena de prisão até 3 anos." A está junto ao leito de B, doente terminal, e supõe erradamente que este lhe pede que lhe acabe com a vida, por estar farto dela. Todavia, B limitara-se a lamentar-se da sua triste sorte. 243 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Existe aqui um erro sobre a própria existência do pedido. Mas o erro no artigo 134° também pode incidir sobre as características do pedido: como se viu, o pedido tem de ser "instante", "sério" e expresso". A doutrina aparece dividida. Maria Paula Gouveia Andrade (Algumas considerações sobre o regime jurídico do art. 134º do Código Penal, Usus editora, Lisboa, s/d.) comenta os seguintes exemplos. A mata B, maior e imputável porque pensa que o seu pedido é livre quando não é porque se trata de um pedido que B fez quando se encontrava sob hipnose (o que A ignora), ou porque pensa que o pedido é consciente: B formulou o pedido porque pensava sofrer de doença incurável mas está de perfeita saúde (o que tanto A como B desconhecem). Embora as circunstâncias relativas à vítima sejam circunstâncias típicas, como típicas são as características do pedido, não se pode dizer que este "erro sobre o tipo" releve nos termos preconizados pelo artigo 16º, 1 — o dolo de homicídio existe sempre e não é excluído por este erro, já que o autor não está em erro quanto à sua própria conduta, quanto à sua acção homicida. No entanto, deve entender-se que este erro releva, e a sua relevância será sempre favorável ao agente". O Prof. Costa Andrade entende que o erro releva — de modo que se deverá aplicar o tipo privilegiado que o agente supõe realizar (artigo 134º). Cf. Comentário Conimbricense, tomo I, anotação ao artigo 134º, p. 69. Outra é a opinião da Prof. Teresa Beleza: o erro deverá projectar a sua influência dirimente apenas no desvalor da acção e não no desvalor do resultado do facto — quem mata outrem em erro sobre o pedido, e é o que acontece no caso 27-C, tem intenção de matar uma pessoa, i. é, tem dolo de homicídio, mas erra sobre uma circunstância desse facto, sobre a existência do pedido. O agente deverá ser punido por tentativa de um homicídio privilegiado (artigos 134º, 22º e 23º) em concurso efectivo com um crime de homicídio negligente (artigo 137º), desde que concorram os correspondentes pressupostos. Se não houver negligência, o resultado não poderá ser imputado ao agente. Afasta-se igualmente a aplicação do artigo 16º. Cf. Teresa P. Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Regime Legal do Erro, p. 15 e ss. VII. Erro e norma penal em branco; o exemplo do conceito de valor nos crimes patrimoniais. O tipo subjectivo do artigo 203º, nº 1, exige a actuação dolosa do agente e a intenção de apropriação de coisa móvel alheia. A subtracção negligente não se projecta no âmbito do penal. O dolo deve pois abranger todos os elementos objectivos do tipo, só assim se estabelecendo a necessária congruência entre o lado objectivo e o lado subjectivo do ilícito. O ladrão deve especialmente saber que a coisa subtraída é alheia, embora não se exija o conhecimento da concreta identidade do lesado. O dolo estará excluído perante a errónea suposição de que a coisa pertence exclusivamente ao agente (erro sobre a 244 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. factualidade típica ou erro de tipo: artigo 16º, nº 1, do Código Penal). Não tem lugar a censura própria da negligência (artigo 16º, nº 3) porque, como se disse, a subtracção negligente de coisa alheia não goza de expressão típica. É por outro lado indiferente que o dolo do agente se dirija a um concreto objecto ou a um conjunto indeterminado de valores. Por isso mesmo, haverá um só furto se o dolo do agente começa por se circunscrever a um espaço determinado e este depois se amplia ou altera, em suma, se o ladrão em momento posterior "alarga" o seu dolo ou o faz incidir em objectos que inicialmente não lhe passava pela cabeça subtrair. A abre a secretária de B para lhe subtrair a pasta com documentos mas logo ali vê um relógio de ouro e leva-o também consigo: há um só furto, consumado. A abre a secretária de B para lhe subtrair um relógio de ouro que afinal não encontra, mas aproveita e leva a pasta com documentos: o furto continua a ser um só, não é caso de tentativa por um lado e furto consumado por outro. Outro é o problema suscitado com as questões de valor, após a adopção de critérios quantificados, como os de valor diminuto, elevado e consideravelmente elevado da revisão de 1995 (artigo 202º, alíneas a), b) e c). Intervém aqui o conceito de Uc, unidade de conta. A circunstância de o valor da coisa ultrapassar o patamar de qualificação deve ser abrangida pelo dolo do agente, mas basta o dolo eventual. Na Áustria, cujo sistema de qualificação é nesta parte idêntico ao nosso, critica-se o baixo nível de exigência dos tribunais quanto a este aspecto, raramente se colocando questões quanto ao conhecimento do valor da coisa objecto do furto. A circunstância qualificativa aproxima- se assim de uma condição objectiva da sanção mais elevada. (Cf. Kienapfel, p. 80). Se o ladrão pretende subtrair coisa alheia com "um valor o mais possível elevado: einen möglichst hohen Wert" (Triffterer, p. 189) não se contesta o dolo. Mas podem surgir dificuldades por se tratar de norma penal em branco: a graduação do conceito de valor nos crimes patrimoniais (artigo 202º, a), b), e c), faz-se por referência ao conceito de Uc, unidade de conta, cujo valor é o estabelecido nos termos dos artigos 5º e 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 212/89, de 30 de Junho, "e que, por essa razão, implicará modificações no âmbito de aplicação dos crimes patrimoniais por alteração de legislação não penal". Cf. Teresa P. Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Regime Legal do Erro, p. 51. 245 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. VIII. Indicações de leitura • António Pinto Monteiro, Erro e vinculação negocial: o erro-vício consiste no desconhecimento ou falsa representação da realidade; se, pelo contrário, a falsa representação se reportar ao futuro, é a previsão que falha ou o quadro de acontecimentos pressuposto que não se verifica ou evolui em termos diferentes do previsto. É claramente dominante a opinião segundo a qual o erro se reporta ao presente ou ao passado enquanto a pressuposição se refere ao futuro. • Acórdão do Tribunal Constitucional nº 450/99 de 8 de Julho de 1999, DR II série nº 262, de 10 de Novembro de 1999 (16956): contra-ordenação, erro de valoração; violação de deveres de cuidado e de conhecimento; menosprezo ou falta de consideração pelos deveres legais. • Acórdão da Rel. de Lisboa de 17 de Março de 1998, CJ, 1998, tomo II, p. 147: erro sobre os limites da causa de justificação; hipótese em que o arguido invoca a convicção de ter agido na convicção de que exercia um direito de crítica, a coberto da liberdade de imprensa; age com erro que lhe é censurável aquele que dirige a sua crítica hostil e maliciosa ao apresentador dum programa televisivo, enquanto homem e actor, vilipendiando-o e depreciando-o; erro de valoração; artigo 17º. • Acórdão da Relação de Évora de 14 de Março de 1995, CJ, ano XX (1995), tomo II, p. 274: crime de prisão ilegal; erro sobre a proibição e erro sobre a factualidade típica; crime negligente. • Acórdão da Relação de Coimbra de 10 de Abril de 2002, CJ 2002, tomo II, p. 52: arguido de crime de corrupção passiva que alega ter agido sem consciência da ilicitude. Crimes artificiais, crimes de criação meramente estadual, crimes meramente proibidos ou mala prohibita. Dever reforçado de reconhecer as regras da actividade permanente do agente (advocacia, medicina, comércio, indústria, etc.). • Acórdão da Relação de Coimbra de 2 de Outubro de 2002, CJ 2002, tomo V, p. 38: a ignorância de proibição associada a actividades permanentes do agente (advocacia, medicina, comércio, indústria, etc.) impõe um dever reforçado de conhecimento das regras que as regulamentam, pelo que a estes casos não é aplicável o regime da segunda parte do nº 1 do artigo 16º. • Acórdão de 16 de Março de 1994, CJ, ano II (1994), tomo I, p. 253: crimes “sexuais”; erro não desculpável sobre a identidade da vítima. • Acórdão de 8 de Novembro de 1995, CJ, ano III (1995), tomo III, p. 230: crime de fraude na obtenção de subsídios; erro sobre a proibição; as fraudes dessa natureza não são condutas de fraca coloração ética ou tipos legais previstos devido a razões de pura oportunidade de estratégia social ou hipóteses de neo-criminalização que ainda não ganharam ressonância ético-social. • Acórdão do STJ de 18 de Dezembro de 1996, CJ, ano IV (1996), tomo 3, p. 204: aborda a questão de saber se agentes da PJ acusados de sequestro agiram com erro e sem consciência da ilicitude da sua conduta. • Acórdão do STJ de 19 de Novembro de 1997, BMJ-471-115: no roubo, o ilícito atinge valores essenciais e perceptíveis por qualquer ser humano, independentemente do seu extracto social e cultural, pelo que não se compreende quanto ao mesmo a alegação de causa de exclusão de culpa e 246 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. violação do artigo 17º. Aliás a tipicização de tal ilícito vem de tempos imemoriáveis e a ela já se referiu a “Lex Cornelia de Sicariis” (Sila) como crime público – vd. R. Devesa, Derecho Penal. • Acórdão do STJ de 28 de Fevereiro de 1996, CJ, ano IV (1996), tomo 1, p. 214; BMJ-454-397: é de considerar censurável, para os efeitos do artigo 17º, nº 2, o erro sobre a ilicitude do gerente de cooperativa que recebera dinheiro para ser transferido para terceiro e que não efectuou essas transferências, antes gastou esse dinheiro em proveito da cooperativa, sabendo que assim prejudicava aquele. • Albin Eser/Björn Burkhardt, Strafrecht I. Allgemeine Verbrechenselemente. (Há tradução espanhola). • Augusto Silva Dias, A relevância jurídico penal das decisões de consciência, 1986. • Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, 1992, p. 339. • Celia Suay Hernández, Los elementos normativos del error, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, tomo XLIV, fasc. I, Madrid, Janeiro-Março de 1991. • Claus Roxin, Sul problema del diritto penale della colpevolezza, Riv. ital. dir. proc. penale, 1984, p. 16. • Francisco Muñoz Conde, "Legítima" defensa putativa? Un caso límite entre justificación y exculpación, in Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, 1995, p. 183. • Francisco Muñoz Conde, El error en Derecho Penal. • Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal, RPCC 7 (1997). • Gomes da Silva, Direito Penal, 2º vol. Teoria da infracção criminal. Segundo os apontamentos das Lições, coligidos pelo aluno Vítor Hugo Fortes Rocha, AAFD, Lisboa, 1952. • Hans Joachim Rudolphi, A consciência da ilicitude potencial como pressuposto da punibilidade no antagonismo entre “culpa” e “prevenção”, Direito e Justiça, vol. III, 1987/1988, p. 81 e ss. • Harro Otto, Der Verbotsirrtum, Jura, 1990, p. 645. • J. Wessels, Derecho Penal. • Jorge de Figueiredo Dias, Acerca do tratamento do erro no sistema penal moderno, in Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001. • Jorge de Figueiredo Dias, Crime de câmbio ilegal, CJ, ano XII (1987), tomo 2, p. 53. • Jorge de Figueiredo Dias, Der Irrtum als Schuldausschliessungsgrund im portugiesischen Strafrecht, in Rechtfertigung und Entschuldigung, III, herausg. von A. Eser und W. 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I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Jorge de Figueiredo Dias, Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Lisboa, 1983, p. 72. • Jorge de Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, RPCC, I (1991), p. 9; 2 (1992), p. 7. • Jorge de Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal. Doutrina geral do crime. Lições ao 3º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, elaboradas com a colaboração de Nuno Brandão. Coimbra 2001. • Jorge de Figueiredo Dias/Manuel da Costa Andrade, O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português (Considerações sobre a Faculdade Típica e o Concurso de Infracções), RPCC 6 (1996), p. 71. • Jorge de Figueiredo Dias/Pedro Caeiro, Erro sobre proibições legais e falta de consciência do ilícito (artigos 16º e 17º do Código Penal) - Violação de normas de execução orçamental. RPCC, 5 (1995), p. 245 e ss. • José António Veloso, Erro em direito penal, AAFDL, 1993. • José Caetano Duarte, O erro no Código Penal. • Luis Duarte D’Almeida, Sobre leis penais em branco, BFDUL, vol. XLII (2001), nº 1. • Luzón Peña, Curso de Derecho Penal, PG I, 1996. • M. Cortes Rosa, La función de la delimitación de injusto y culpabilidad en el sistema del derecho penal, in Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, Bosch, 1995. • Rui Carlos Pereira, Justificação do facto e erro em direito penal, Jornadas de Homenagem ao Professor Doutor Cavaleiro de Ferreira, separata da RFDUL, 1995. • Rui Patrício, Erro sobre regras legais, regulamentares ou técnicas nos crimes de perigo comum no actual direito português (Um caso de infracção de regras de construção e algumas interrogações no nosso sistema penal), Lisboa, AAFDL, 2000. • Rui Patrício, Norma penal em branco. Em comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.4.2001, RMP 2001, nº 88. • Rui Pereira, A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável ao arguido, RPCC 1 (1991), p. 67. • Teresa P. Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Regime Legal do Erro e as Normas Penais em Branco, 1999. • Teresa P. Beleza, Direito Penal, 2º vol., 1983, p. 305. • Teresa Serra, Problemática do erro sobre a ilicitude. • Ulrich Neumann, Der Verbotsirrtum (§ 17 StGB), JuS 1993, 10, p. 793 e ss. • Wolfgang Frisch, Der Irrtum als Unrechts- und / oder Schuldausschluß, in Rechtfertigung und Entschuldigung, III, her. von A. Eser und W. Perron, Freiburg, 1991. 248 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. § 14 Situações putativas. I. Legítima defesa putativa. Estado de necessidade putativo CASO nº 26 (legítima defesa putativa): A vem a sair dum parque de estacionamento, de madrugada, cerca das 3 horas. De repente, convencido de que vai ser agredido por X, que dele se aproximava para se certificar do caminho mais curto para o hotel onde está hospedado, empurra-o, fazendo com que X, caindo para o lado, sofra uma lesão num joelho. CASO nº 26-A (estado de necessidade putativo): A, que se sente perdido na serra, onde foi apanhado por uma tempestade de neve, arromba a porta de uma vivenda isolada, vendo nisso a derradeira possibilidade de não morrer de frio durante a noite que se aproxima. A, todavia, podia ter entrado por uma das janelas da casa, sem causar qualquer dano, já que a mesma não estava fechada. CASO nº 26-B (excesso, excesso asténico, excesso na legítima defesa putativa): A, de 19 anos de idade, é titular de uma licença de caça. Um dia, enquanto caçava, avistou B, julgando tratar-se de um caçador furtivo. B pôs-se em fuga, o que fez avolumar as suspeitas de A, que o perseguiu. B acabou por parar numa clareira, voltou-se e encaminhou-se na direcção de A. Este julgou que ia ser por ele atacado, o que objectivamente não correspondia à verdade. No entanto, A acreditou que o outro se dirigia para ele querendo agredí-lo. A disparou a espingarda e acertou mortalmente em B. Noutra variante, A dispara a espingarda por estar assustado e profundamente perturbado com a situação. Numa última variante, A dispara a espingarda porque odeia caçadores furtivos e está cada vez mais convencido de que B é um deles. Se quem se defende crê erroneamente que se verifica uma agressão actual, dá-se um caso de excesso extensivo ( 24 ) de legítima defesa. A esta suposição errónea de uma situação de 24. Diferente do excesso intensivo ou nos meios, que ocorre quando, apesar de se encontrarem preenchidos os diversos requisitos da legítima defesa, o agente causa ao agressor mais danos do que os necessários à estrita preservação do bem jurídico ameaçado. Para que se verifique o excesso intensivo é indiferente o valor relativo dos interesses conflituantes, bastando apenas que, na defesa, se hajam ultrapassado os meios considerados "idóneos" ou "adequados" para impedir a agressão. Não intervém aqui a teoria geral do erro, mas toda a problemática da "inexigibilidade". 249 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. facto justificante chama-se vulgarmente legítima defesa putativa, a qual engloba situações que, em última análise, se reconduzem à disciplina do erro. Compreendem-se aí, tanto a hipótese em que o agente actua na falsa convicção de que se verificam os pressupostos da legítima defesa - erro sobre as circunstâncias de facto (Código Penal, artigo 16º, nº 2), como aquelas em que o agente, "não obstante representar de forma correcta o circunstancialismo fáctico em que actua, erradamente pensa que o âmbito da legítima defesa abrange também a sua conduta - erro sobre a ilicitude (Código Penal, artigo 17º). Em ambos os casos o comportamento do defendente apresenta-se como ilícito, passando a respectiva punição a constituir um problema a resolver em sede de culpa" (Figueiredo Dias, Legítima defesa, Pólis). No caso nº 26 está, assim, fora de questão invocar o artigo 33º do Código Penal, cujo nº 1 se refere ao "excesso nos meios empregados em legítima defesa". Como A actuou na falsa convicção de que se verificavam os pressupostos da legítima defesa, a hipótese enquadra-se no regime do artigo 16º, nº 2, sendo certo que o crime de ofensas à integridade física se exprime tipicamente tanto na forma dolosa como na negligente. O caso nº 26-A resolve-se nos mesmos parâmetros, mas o Código só refere o desenho doloso do dano (artigos 13º e 212º). O caso nº 26-B pode enquadrar-se no "excesso de legítima defesa putativa": o autor julga erroneamente que se está a iniciar uma agressão e excede, em legítima defesa presumida, os limites da defesa. Pode parecer que também este caso deve ser tratado no quadro normativo do erro, por se tratar de legítima defesa putativa. Repare-se, todavia, que o agente excede os limites da justificação, admissíveis na própria situação por ele suposta. Mesmo que B, efectivamente, tivesse agredido A ilicitamente - o que não aconteceu -, então não teria sido necessário, atenta a natureza das coisas, matar B para afastar a agressão. Teria havido meios menos gravosos com que se poderia obter imediatamente o mesmo efeito. Por exemplo, A podia ter disparado para as pernas de B, tanto mais que este se encontrava afastado de A quando o tiro partiu. A podia ter visado outra parte do corpo menos sensível. Não há razão para impor as consequências jurídicas decorrentes da disciplina do erro. Pelo contrário, releva o excesso de meios empregados, pelo que o agente deve, em princípio, ficar inteiramente responsável a título de dolo (cf., a este respeito, por ex., Helmut Fuchs, Öst. Strafrecht, AT I, p. 182; J. Hruschka, Strafrecht, 250 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2ª ed., 1988, p. 269). Em Portugal, conhece-se um caso em que conflui, por um lado, uma legítima defesa putativa e, por outro, um excesso de legítima defesa: o STJ, por acórdão de 30 de Setembro de 1993 (CJ, acs. do STJ, ano I, tomo III, 1993, p. 215; BMJ-429-523), decidiu que "age em legítima defesa putativa o agente que entendeu o gesto da vítima, de erguer um cajado no decurso de uma discussão, como sendo o início de uma agressão e, em seguida, a agride de forma a causar-lhe a morte. Quando o arguido representou - ainda que porventura falsamente - os pressupostos objectivos necessários à legítima defesa, a situação fica equiparada à existência real desses pressupostos. Verifica-se a situação do artigo 33º, nº 1, do CP, quando o arguido empregou um meio de defesa para além de todos os limites necessários à manutenção da sua integridade física". Na legítima defesa putativa acontece um fenómeno muito curioso de troca de papéis: aquele que crê defender-se é, na realidade, um agressor; aquele que foi tomado por um agressor acaba, ao fim e ao cabo, por se defender legitimamente de uma agressão real de que é vítima. E por paradoxal que pareça, ambos podem ficar isentos de responsabilidade criminal, mesmo que, inclusivamente, provoquem um ao outro graves lesões. Francisco Muñoz Conde, "Legítima" defensa putativa? Un caso límite entre justificación y exculpación, in Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, 1995, p. 183. Na hipótese tratada pelo Supremo, a questão de o agente ter actuado por medo não chegava a pôr-se, mas é neste sentido que temos que apreciar a conduta de A na primeira variante do caso ("excesso asténico de legítima defesa putativa") e decidir do mesmo passo se lhe é aplicável a regulamentação favorável do artigo 33º, nº 2, em consonância com a mencionada orientação jurisprudencial. Como se sabe, em estado de afecto asténico (perturbação, medo, susto), o agente fica impedido de ponderar devidamente os meios necessários para a defesa, consagrando-se a impunidade do excesso asténico não censurável. Mas quando estamos perante um estado de afecto esténico (cólera, furor, desejo de vingança) - e será porventura a última variante -, o enquadramento faz-se na previsão do nº 1. Resta, no entanto, saber se a natureza esténica do afecto não deverá nestes casos excluir, ao menos as mais das vezes, a atenuação especial da pena que ali se prevê. De qualquer modo, o afecto esténico não detém nunca efeito desculpante (cf. 251 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Figueiredo Dias, Legítima defesa, cit.; Pressupostos de punição, Jornadas, CEJ, p. 79; Sobre o estado actual da doutrina do crime, RPCC 2 (1992), p. 27 e ss.) ( 25 ). Quais os crimes praticados por A nas diversas situações apontadas? II. Indicações de leitura: • Acórdão do STJ de 28 de Abril de 1993, BMJ-426-257: crime de burla agravada; emissão de cheque; crime de usura; direito de necessidade. • Acórdão do STJ de 29 de Setembro de 1994, BMJ-439-319: homicídio voluntário; estado de necessidade. • Fernando Camilo Vasconcelos, O Estado de Necessidade no Direito Penal, Porto, 1982. • Francisco Muñoz Conde, "Legítima" defensa putativa? Un caso límite entre justificación y exculpación, in Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, 1995, p. 183. • Francisco Muñoz Conde, El error en Derecho Penal. • J. Wessels, Derecho Penal. • Jorge de Figueiredo Dias, Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Lisboa, 1983, p. 72. • Jorge de Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, RPCC I (1991), p. 9; 2 (1992), p. 7. • Jorge de Figueiredo Dias/Pedro Caeiro, Erro sobre proibições legais e falta de consciência do ilícito (artigos 16º e 17º do Código Penal) - Violação de normas de execução orçamental. RPCC, 5 (1995), p. 245 e ss. • José Caetano Duarte, O erro no Código Penal. • Maria Fernanda Palma, O Estado de Necessidade Justificante no Código Penal de 1982, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, III, BFD, 1984. • Rui Carlos Pereira, Justificação do facto e erro em direito penal. • Teresa Serra, Problemática do erro sobre a ilicitude. 23 A propósito do pensamento da inexigibilidade, a que no Código se não reconheceu valor geral, no sentido de uma cláusula geral desculpante, e dos factos praticados em estado de afecto grave, que o agente criou culposamente, o Prof. Figueiredo Dias admite, se bem percebemos, a possibilidade de analogia com o que se estabelece no artigo 33º, nº 2, sendo decisivo apenas que aquela criação [e desenvolvimento] "não radique em qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da personalidade, pelas quais o agente deva responder" (cf. Pressupostos, p. 79, e, especialmente, Sobre o estado actual, cit.). 252 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 3ª Secção. Tentativa e desistência da tentativa. § 15 O iter criminis: etapas de realização do facto punível doloso. O âmbito da tentativa é, por vezes, difícil de estabelecer. Trata-se porém de uma matéria com acentuada relevância para a boa compreensão dos fundamentos da intervenção do direito penal. A tentativa representa uma forma especial dessa intervenção, já que, com ela, os propósitos criminosos não são por inteiro conseguidos. Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, diz-se no artigo 22º, nº 1. Na tentativa, os fundamentos subjectivos do facto criminoso encontram-se completamente preenchidos, mas a consumação delitiva não chega a ocorrer, pelo que também não se realiza a lesão do correspondente bem 253 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. jurídico, que quanto muito foi posto em perigo pela actuação do sujeito. Os pressupostos do crime tentado estão, por um lado, preenchidos quando, como diz a lei, o crime não chega a consumar-se, mas tais pressupostos estão igualmente preenchidos quando o tipo objectivo do ilícito se encontra por completo realizado. Também aqui o crime que acabou por consumar-se teve que passar, necessariamente, pela fase da correspondente tentativa, enquanto fase intermédia. Podemos por outro lado afirmar que a ideia delitiva surge na pessoa e que a partir daí até à consumação vai percorrer um caminho, o chamado iter criminis, em que se distinguem diversas etapas: a fase interna (a fase da tentação: assim lhe chamavam os escolásticos), ou seja, a decisão de cometer o crime, durante a qual o autor idealiza o seu plano; a fase preparatória; a da execução; e a da consumação, quando todas as características típicas se encontram preenchidas. “Há consumação quando, digamo-lo em linguagem de sabor marcadamente normativista, o crime é perfeito. De forma que ficam fora desta categoria todas as situações anteriores em que se desenvolve o iter criminis, no qual aquelas se mostram clara e indiscutivelmente relevantes: a tentativa acabada e a tentativa inacabada. Por isso, julgamos que, por razões de clareza, se não deve nem pode falar em tentativa “consumada”. Que os actos qualificáveis como tentativa se consolidam e não têm retorno, isto é, se mostram imodificáveis, é coisa de meridiana apreensão. Todavia, em uma lógica de percepção cronológica e itinerante dos diferentes estádios do crime, fácil é de ver que tudo tende para a consumação, para a “perfeição”, e que só dessa maneira se pode falar quando todos, mas todos, os elementso do tipo foram preenchidos de forma cabal e plena”. Faria Costa, RLJ ano 134º, p. 254. A distinção entre actos preparatórios e actos de execução arranca da ciência medieval italiana, que distinguiu o conatus proximus e o conatus remotus em função da maior ou menor proximidade relativamente ao resultado final (Devesa, Derecho penal español, PG, 1992, p. 783). O termo latino conatus designa a noção de esforço, de tendência (Fabien Lamouche, Le Désir, p. 79); é o empenho, o impulso, a tentativa (Torrinha, Dic. latino-português). A possibilidade de uma tentativa como forma, hoc sensu autónoma de ilícito só se revela naquela primeira constelação de casos; a segunda não é mais do que um “estádio intermédio” que a consumação absorve (cf. J. Rath, JuS 1998, p. 1006). Quando, mais à frente, estudarmos os problemas de concurso, estes aspectos, em especial o conceito de “estádio intermédio”, serão mais detalhadamente expostos, a par das noções de “subsidiariedade” e “consunção”. 254 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Só existe tentativa do crime doloso. E se para a consumação é suficiente o dolo eventual, também o será para a tentativa. No direito vigente só se pune a tentativa dolosa, não existe a “tentativa” dos crimes negligentes. Tentativa e negligência são, por assim dizer, noções antitéticas. Atente-se, no entanto, em que, por vezes, se pune autonomamente a violação negligente do dever de cuidado: cf. o artigo 292º, onde se não descreve a realização de um resultado. Cf. o que se diz noutro lugar a propósito da congruência entre dolo eventual e tentativa. CASO nº 31-A: 1. A encontra-se numa situação financeira bastante delicada e projecta arranjar dinheiro com o assalto a um banco. 2. Sabe mais ou menos o tipo de estabelecimento adequado e acaba por encontrar uma filial da Caixa, numa localidade do distrito de Aveiro, com um sistema de alarme aparentemente antiquado e com uma saída para a auto-estrada, logo ali a meia dúzia de quilómetros. 3. A tem perfeita consciência de que não pode realizar sozinho o assalto, de modo que associa um seu antigo companheiro de “negócios” — B — ao plano assim pacientemente elaborado. 4. No dia combinado, A e B deslocam-se para as proximidades da agência da Caixa num Mercedes a que conseguiram deitar a mão pouco antes, levando consigo uma pistola metralhadora, estacionam o carro perto do banco, num local donde podem facilmente encaminhar-se na fuga para a auto-estrada, saem, levando A a arma escondida debaixo do casaco, e entram na agência, mas logo A se dá conta da presença de dois polícias uniformizados entre os clientes e faz sinal de retirada para o companheiro, abandonando ambos o local. 5. Contudo, poucos dias depois vão pôr de novo o plano em prática, deixando desta feita a arma no carro, depois de A chegar à conclusão de que na agência estava só o gerente, que lhe seria fácil imobilizar de surpresa enquanto B deitava a mão ao dinheiro. 6. Como tinham planeado, realizado com êxito o assalto, A e B, com o dinheiro num saco, entram no Mercedes, mas ao ver que um transeunte, desconfiado, ia para anotar a matrícula do carro, o A dispara uma rajada de aviso para o ar com a pistola metralhadora, a qual, conforme era vontade de A, não atingiu ninguém. 7. A e B fugiram do local sem serem identificados, tendo abandonado o Mercedes em Aveiro, onde dividiram o dinheiro roubado no banco, separando-se em seguida. Neste exemplo (adaptado) de Kühl, AT, p. 434, detectam-se nitidamente duas distintas fases de realização de um mesmo caso. De acordo com a avaliação que dele faz o legislador, o descrito conjunto de factos tem o seu centro de ilícito e de culpa na totalidade das características típicas desenvolvidas por A e B e referidas sob o nº 5, as quais integram a co-autoria de um crime de roubo (artigos 26º e 210º, nº 1), sem que interesse aos nossos actuais propósitos determinar se se trata de roubo simples ou qualificado. Com efeito, na execução do plano conjunto, A imobilizou, pela força, o 255 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. gerente, enquanto B deitava a mão ao dinheiro, recolhendo-o no saco, actuando ambos com intenção de apropriação de coisa móvel (o dinheiro) que sabiam ser alheia. Se agora repararmos na factualidade referida sob o nº 4, apenas nos resta subsumi-la na tentativa de roubo (artigos 22º, nºs 1 e 2, e 210º, nº 1), eventualmente qualificado, pois quem decidiu cometer um crime de roubo e, sem alcançar o resultado, se limita a praticar actos de execução desse crime — o qual se consuma por meio de violência contra uma pessoa para subtrair coisa móvel alheia — será castigado por tentativa de roubo. No caso, as dificuldades de integração de tais factos na tentativa não deixam de ser acentuadas, já que, por uma lado, os contornos do ilícito típico que a lei descreve como consumado na parte especial do código não são simplesmente lineares, por outro, porque a noção de actos de execução não é inteiramente precisa, ainda que o código, nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 22º, nos forneça directivas de alguma valia. Tomando a factualidade descrita sob o nº 4, o anterior furto do Mercedes não pode seguramente ser visto como acto de execução, no sentido do emprego de violência contra uma pessoa, mas haverá começo de execução, possivelmente, quando A e B se aproximam do local do crime ou, pelo menos, quando entram nas instalações do banco com a arma, já que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, é de esperar que a estes actos se lhes sigam actos idóneos a produzir o resultado típico, havendo uma estreita conexão temporal entre a acção de A e B e o resultado que ambos pretendiam alcançar. A descrita actuação de A e B integra actos que precedem imediatamente a acção típica inserindo-se na execução, de acordo com o plano concreto que os assaltantes se propõem realizar. Decorridos mais uns segundos e dados mais meia dúzia de passos, se nada acontecesse de imprevisível, A e B teriam sacado da arma, exigindo a entrega do dinheiro em caixa. Praticaram pois actos de execução, como tal definidos no artigo 22º, nº 2, alínea c). Ainda assim, A e B não passaram do estádio da tentativa, acontecendo até que ambos abandonaram o cometimento do crime de roubo, pois, como se vê do mesmo nº 4, deixaram o local quando se deram conta da presença de dois polícias uniformizados entre os clientes. Mas não se pode dizer que, com isso, A e B desistiram de prosseguir na execução do crime, no sentido de beneficiarem do regime do artigo 24º, nº 1, deixando a tentativa de ser punível, já que manifestamente faltam os pressupostos de aplicação desta norma, sendo até difícil sustentar que, afinal, A e B desistiram de prosseguir na 256 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. execução do crime, pois continuaram, dias depois, a execução do mesmo plano que anteriormente tinham elaborado. Na verdade, "quando não haja desistência do propósito criminoso não há ainda desistência voluntária da tentativa, mas interrupção voluntária da execução e a interrupção voluntária da execução, para nela prosseguir mais tarde, não equivale à revogação da intenção de consumar o crime" (Prof. Cavaleiro de Ferreira). Na medida em que os factos que integram a tentativa decorrem de uma resolução autónoma tomada por A e B, ficará para determinar se os mesmos se encontram em situação de concurso efectivo com os restantes crimes praticados, nomeadamente, o furto do Mercedes (artigo 30º, nº 1; artigo 203º, nº 1). Certo é que a matéria do nº 1, o projecto de assaltar um banco, não é punível, na medida em que a simples manifestação de vontade, como diria von Liszt, não integra nenhuma acção, nenhum ilícito, nenhum crime: cogitationes poenam nemo patitur. A actividade descrita sob o nº 2, a busca de uma agência adequada para o assalto, fica-se pela região dos actos preparatórios, ainda que levados a efeito na execução do plano criminoso, mas que não chegam a ser actos de execução do crime planeado. Estes actos preparatórios não são puníveis (artigo 21º), embora, por vezes, uma disposição legal preveja tais espécies de actos como crime autónomo. Veja-se, por ex., o artigo 271º, onde se pune quem preparar a execução dos actos referidos nos artigos 262º (contrafacção de moeda), 263º (…), fabricando, importando, adquirindo para si ou para outra pessoa, expondo à venda ou retendo: formas, cunhos, clichés, prensas de cunhar, punções, negativos, fotografias ou outros instrumentos que, pela sua natureza, são utilizáveis para realizar crimes. A rajada disparada para o ar pode constituir um crime de ameaça do artigo 153º, mas não seguramente o do artigo 211º (violência depois da subtracção), pois, não obstante a situação de flagrante delito aí prevista, os arguidos não actuaram para conservar ou não restituir o dinheiro subtraído. Tanto aqui como naquilo que se descreve sob o nº 7 poderemos surpreender a fase de exaurimento ou esgotamento do crime de roubo, que se consumou quando da subtracção do dinheiro por meio da violência (consumação formal ou jurídica), mas que agora logra a sua consumação material, com o completo êxito do assalto, a proporcionar a divisão da presa em pleno sossego. Diga-se, por último, que também será punível o uso da pistola metralhadora, que é arma proibida (arma de guerra), com o cometimento do crime do artigo 275º, nº 1. Por aqui se vê a importância da distinção entre actos preparatórios e actos de execução, pois só estes são puníveis, em 257 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. princípio, e ainda assim nem sempre. Com efeito, só é punível a tentativa dos crimes mais graves (artigo 23º, nº 1: a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão), salvo disposição em contrário, como acontece, por ex., com o furto (artigo 203º, nºs 1 e 2). No ilícito de ofensa à integridade física simples (artigo 143º, nº 1) os limites da punição manifestam-se com a consumação do crime, pois nenhuma disposição legal prevê a punição numa fase anterior: nem os actos preparatórios nem a correspondente tentativa são puníveis. § 16 A tentativa I. Generalidades 1. No artigo 22º, nº 1, o Código limita-se a dispor que “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”, sem adiantar qualquer definição do que verdadeiramente seja a tentativa. Trata-se de uma formulação relevante para estabelecer a distinção entre actos preparatórios, que no artigo 21º se consigna que não são puníveis, salvo disposição em contrário, e a tentativa, e onde é patente a recepção, sublinhada por diversos autores, de uma noção objectiva de tentativa ( 26 ) coincidente com a definição que de actos de execução se faz nas três alíneas do respectivo nº 2. Mas a referência à expressão “actos 26 O Prof. Faria Costa entende que no nosso Código se consagra um critério objectivo mitigado. É necessário que se verifiquem actos de execução de um crime que o "agente decidiu cometer". O critério fundamental apresenta-se como objectivo "já que a tentativa tem que integrar uma referência objectiva a certa negação de valores jurídico-criminais na forma de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos protegidos mas a que há que adicionar o próprio plano do agente integrado na sua intencionalidade volitivamente assumida, que, face ao texto legal e segundo a nossa opinião, não pode ser limitado ao mero papel de esclarecer o significado objectivo do comportamento do agente, antes dever ser valorado em si mesmo. Por outro lado, é indiscutível que na seriação do que são actos de execução se adoptou deliberada e conscientemente um critério que assenta no pressuposto da causalidade adequada...". 258 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de execução de um crime que [o agente] decidiu cometer” leva a incorporar na tentativa um elemento subjectivo sem o qual se renunciaria à exigência de tipicização da ilicitude. Pois se um homem pega numa escada e a coloca por forma a poder aceder à janela do primeiro andar, onde vive uma família abastada de que faz parte uma jovem de 18 anos, logo se porá a questão do significado de tal acto. Pode muito bem tratar-se do operário que vai iniciar a pintura das janelas encomendada na véspera. Mas se o homem actua pela calada da noite e quando é preso tem consigo uma pistola levanta-se legitimamente a hipótese de perigo para bens jurídicos. Qual, ou que bens jurídicos ficam então comprometidos — é a pergunta que aparece a seguir, uma vez que a actuação do sujeito tanto pode acompanhar a intenção de cometer um furto ou um roubo, representar o primeiro passo para um rapto com violação ou até atentar contra a vida de um dos que ali moravam. Como escreve o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal, Sumários e notas, 1976, p. 15), "aferir da ilicitude da tentativa na base da criação de um perigo para bens jurídicos significaria, pura e simplesmente, renunciar à exigência de tipicização da ilicitude! Se um homem derruba uma rapariga e nesse momento é preso, qual o tipo de ilícito perante o qual vai pôr-se a questão da tentativa? O do roubo, o do homicídio, o de [coacção sexual], o da violação...? Eis o que só é possível responder através da referência à resolução do agente". Sem uma referência ao dolo, ao menos como "dolo-do-tipo", i. é, como conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito objectivo, "não é possível fundamentar tipicamente o ilícito da tentativa, não é possível, por outras palavras, realizar, relativamente à tentativa, a função de tipicização do ilícito" (Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, RPCC 1 (1991), p. 50). No artigo 23º, nº 2, sublinha-se que a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado especialmente atenuada, o que remete directamente para o artigo 73º. É de atenuação obrigatória que se trata e não simplesmente facultativa. A moldura penal modificada nos termos deste artigo é uma nova penalidade, “e é-o para todos os efeitos legais”, escreve Pedrosa Machado: “pode ser objecto de substituição nos mesmos termos em que o poderia ser a pena concreta correspondente à determinação da medida abstracta de que aí se parte como função do cálculo a efectuar”. Tomemos como exemplo o crime de homicídio doloso do artigo 131º, punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. Pegando no critério do artigo 73º temos: 1º O limite máximo (16 anos) é reduzido de um terço = 5 259 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. anos e 4 meses de prisão; 2º O limite mínimo (8 anos) é reduzido a um quinto, por ser superior a 3 anos = 1 ano 7 meses e 6 dias de prisão. O que se reconduz à moldura penal abstracta cabida à tentativa de 1 ano 7 meses e 6 dias de prisão a 5 anos e 4 meses de prisão. Se nestes parâmetros a pena judicial não for fixada em medida superior a 3 anos, nada obsta, bem pelo contrário, à sua suspensão, supondo presentes todos os requisitos de que a lei a faz depender (artigo 50º). No artigo 23º, nº 3, que regula a denominada tentativa inidónea ou impossível, para que esta não seja punível exige a lei que a inidoneidade do meio ou a inexistência do objecto não sejam manifestas, portanto, que tal circunstancialismo seja patente, segundo as regras da experiência comum, isto é, objectivamente, para a generalidade das pessoas, e não simplesmente na perspectiva do agente. Punem-se por conseguinte hipóteses de tentativa inidónea que concretizam situações em que não é manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime. Falando da punibilidade da tentativa inidónea no Código Penal, pode afirmar-se uma concepção ainda fundamentalmente objectiva, por via de uma construção “marcada pelo pensamento da adequação e atravessada por um conceito de perigo, aferido por um juízo ex ante que releva da ideia de uma aptidão de determinados actos para gerar um sentimento, reconhecível pela generalidade das pessoas, de perturbação da comunidade social, em última análise a portadora dos bens jurídicos que, desse modo, surgem ameaçados” (Almeida Fonseca, p. 104). E isto, não obstante ser claramente impossível alcançar o horizonte da consumação, seja porque o meio utilizado é inidóneo seja porque falta o objecto essencial; nem existiria qualquer perigo concreto, efectivo, real, típico, para o bem jurídico que se pretende tutelar (embora seja lícito o reconhecimento dum perigo aparente, susceptível de causar alarme e intranquilidade social). O artigo 23º, nº 1, contém a regra fundamental da punibilidade da tentativa: “salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão”. Quer isto significar que em princípio só se pune a tentativa dos crimes dolosos mais graves, mas sempre, como vimos, com a pena aplicável ao crime consumado correspondente, especialmente atenuada (artigo 23º, nº 2). Em casos contados, prevê-se a punibilidade da tentativa de crimes menos graves, como o furto — artigo 203º, nº 2: “a tentativa é punível”. Como acontece noutros casos, 260 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. para a ofensa à integridade física simples o artigo 143º nada dispõe de semelhante. Só é punida a tentativa de ofensas corporais nos casos mais graves. O Código consagrou um regime diferenciado para a desistência da tentativa. No artigo 24° é condição absoluta de relevância eximente da desistência que a consumação do crime efectivamente se não verifique e que esta não verificação fique a dever-se ao agente. Nas situações de comparticipação previstas no artigo 25° o legislador contentou-se com o esforço sério do comparticipante desistente no sentido de ser evitada a consumação material do facto, não fazendo depender a relevância isentadora da desistência da efectiva ausência de consumação. A isenção de pena tem lugar “ainda que os outros comparticipantes prossigam na execução do crime ou o consumem”. 2. Vamos analisar agora dois casos práticos, o primeiro bem mais simples do que o outro. CASO nº 31: B, secretária de A, dirige-se ao gabinete deste para assunto de serviço. Aí, A agarra-a pelos braços e empurra-a contra a parede, tentando beijá-la. Acto contínuo, A introduz uma das mãos por baixo da camisola que B vestia e apalpou-lhe os seios, ao mesmo tempo que a forçou a deitar-se. Apesar dos gritos de B, A puxou-lhe violentamente as meias e as cuecas e, com uma das mãos, esfregou-lhe a vagina, o ventre e as pernas. A tentou ainda introduzir um dedo na vagina de B. Só não o conseguiu por ela ter fugido. A foi em sua perseguição e forçou-a a entrar de novo no escritório, o que não sucedeu porque B, agarrando-se à porta, acabou por fugir. Era intuito de A manter pela força relações sexuais de cópula com a B, contra a vontade desta. CASO nº 31-B: A que acabara de ter um forte desentendimento com o cônjuge decide pôr termo à vida. Para isso enche um copo com uma bebida alcoólica à qual adiciona veneno. No entanto, A afasta-se momentaneamente do aposento onde deixara o copo com veneno com a manifesta intenção de ao voltar o tomar. Só que, passados momentos, por uma qualquer resolução interior (in)condicionada, decide antes, por aquele mesmo meio, matar o cônjuge já que sabia que este tinha uma forte dependência alcoólica e não deixaria de beber o conteúdo do copo que deixara ficar na outra sala. B não chega a beber o líquido envenenado por razões que para o caso pouco montam. (Exemplo do Prof. Faria Costa). Começaremos por observar que na resolução de casos práticos deve verificar-se se o facto se não consumou (artigo 22º, nº 1) e se a tentativa é punível (artigo 23º). A primeira questão nem sempre tem resposta linear, basta retornarmos ao furto, que uns têm por crime de realização instantânea, deixando escasso lugar para a afirmação da tentativa, 261 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. defendendo outros uma mais ampla latitude para o crime ficar perfeito. A verdade é que “a consolidação de um critério material de consumação não pode, de modo algum, ser levada a cabo através de uma formulação geral abstracta válida para todos os crimes” (Faria Costa, RLJ ano 134, p. 255). Recorde-se o que atrás dissemos, por ex., a propósito do crime de sequestro, crime permanente, onde se detecta um facere e um omittere. Nos crimes de perigo concreto é até possível discutir a viabilidade de em geral se aceitar a tentativa, teríamos então um crime de perigo de perigo, solução que de muito lado se contesta. Indo mais longe, ao capítulo da causalidade, temos o exemplo de A que tudo fez para matar B, mas este, quando em desespero era levado para o hospital, vem a finar-se no trajecto da ambulância devido a acidente por excesso de velocidade. Um tal processo causal anómalo responsabiliza certamente o condutor da ambulância. E como a morte de B não é “obra” de A, este só poderá responder por tentativa de homicídio. Depois, seguindo a técnica do próprio Código, é altura de determinar se o agente decidiu cometer um crime. Por fim, verifica-se se houve começo de execução, se o agente pôs em marcha o plano que concebeu, praticando actos de execução (artigo 22º, nºs 1 e 2). O tipo tentado, tal como na consumação, tem as componentes objectiva e subjectiva. Nas infracções consumadas, o elemento objectivo revela-se completo, não assim nos casos de tentativa, que devem começar pela comprovação integral do tipo subjectivo. Só assim ficamos em condições de determinar se quando o agente desfechou o tiro queria matar ou simplesmente ferir a pessoa que se encontrava a uns 10 metros, ou até pura e simplesmente assustá-la para melhor a roubar. Pode até alguém tomar a resolução firme de, por exemplo, matar o mandarim na China, como no livro de Eça de Queiroz. Maldosamente, A vai aplicando um estilete, com empenho pertinaz e meticuloso, à figura do mandarim, que a cada punhalada, no outro lado do globo, presumivelmente atormentado, espicha e vai-se agitando até ficar exangue. Não há aqui a ideia da tentativa inidónea, tal como dela nos ocupámos, mas o que habitualmente se chama de tentativa irreal ou supersticiosa. Esta, todavia, dando razão a Jescheck, não desestabiliza a confiança da comunidade na vigência do ordenamento jurídico e não é punida — a tentativa inidónea, será bom lembrá-lo, nem sempre se submete aos rigores da lei, mas às vezes o quadro é radicalmente outro. Na tentativa irreal, o dolo do “agente” (assim, entre aspas) não se dirige à realização das circunstâncias de um tipo penal realmente existente, 262 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. como acontece na tentativa inidónea, e isso mesmo contribui para distinguir estas duas realidades. À verificação do elemento subjectivo, incluindo as circunstâncias subjectivas especiais, como a intenção de apropriação no furto, segue-se a comprovação de que o agente praticou actos de execução do crime que decidiu cometer, o que nalguns hipóteses se revela mais complicado do que no caso nº 31, bastando pensar, por ex., na burla ou na usura, que são crimes de execução vinculada ou de meios determinados, em que é a própria lei que descreve a actividade do agente com maior ou menor cópia de dados. Para que o agente seja condenado por tentativa não basta que os factos do crime consumado tenham sido planeados e existam na mente daquele e que a consumação não ocorra por circunstâncias alheias à sua vontade. Todo o crime tem um sujeito passivo — a vítima — e, por isso, os actos de execução têm de ser exteriorizados, de modo a mostrar a intenção criminosa do agente. No crime de burla, na modalidade de "conto do vigário", os actos de execução têm de incidir sobre o burlado, a vítima em perspectiva. Na verdade, tendo os arguidos procurado testar a ingenuidade da pseudo vítima e envolvê-la na distribuição pelos pobres da quantia de um milhão de escudos, sem que esta tenha aceite a proposta daqueles e, desconfiando das suas intenções, foi contar o que se passava à GNR, que procedeu à detenção imediata dos arguidos pondo termo às intenções destes, não se passou dos actos preparatórios. Acórdão do STJ de 11 de Março de 1998 Processo n.º 1493/97 - 3.ª Secção. Por facilidade, nos trabalhos práticos perfilharemos o seguinte esquema: Verificação prévia: a) se o crime se não consumou; e b) se, no caso concreto, a tentativa é punível. Tipo de ilícito: a) Elementos subjectivos: a resolução de cometer um crime; b) elementos objectivos: a prática de actos de execução. Inexistência de causas de justificação. Inexistência de causas de desculpação. Verificação posterior: desistência da tentativa, nos termos do artigo 24º, deixando a mesma de ser punível. Na prova de um caso prático, a resolução tem de se discutir, logo de início, como primeiro elemento da tentativa. Nessa medida, é tratada de forma diferente do crime consumado, onde se começa sempre com a investigação do tipo objectivo e o tipo subjectivo só complementa. A necessidade de escolher, na tentativa, uma ordem diferente resulta de não poder ser averiguado o complemento para o preenchimento do tipo objectivo, enquanto não se sabe a que é que o autor estava resolvido. Quando, por ex., numa troca de palavras, alguém puxa de uma pistola, isto pode ser o complemento de um homicídio, se o autor simultaneamente quer disparar sobre o interlocutor; se, pelo contrário, ele só quer ameaçar com a arma, 263 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. trata-se, quando muito, do elemento que faltava para uma coacção. C. Roxin, Problemas fundamentais, p. 298. No caso nº 31, A praticou, sem dúvida, um crime de violação, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 73º e 164º, nº 1. Escreve-se no acórdão do STJ de 1 de Abril de 1992, BMJ-416-341 (a questão fora já apreciada pela Relação de Lisboa, CJ 1991-IV-207): "A decisão de cometer um crime é o primeiro pressuposto de toda a tentativa punível. É o que desde logo resulta do nº 1 do artigo 22º do Código Penal ao dispor que: “1. Há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se". Depois, como também resulta do mesmo preceito legal, a tentativa exige a prática de actos de execução do crime que o agente decidiu cometer, sem que contudo se tenha operado a consumação. Utilizando um critério formal, a alínea a) do artigo 22º, nº 2, considera actos de execução os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime. Nem todos os tipos criminais descrevem contudo actividades a que possa subsumir-se a conduta do agente. Daí que ao lado de um critério puramente formal a lei adopte um critério objectivo definindo também como actos de execução: — Os que são idóneos a produzir o resultado típico (alínea b) do artigo 22º); — Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, são de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores (alínea c) do mesmo artigo). Ora, é nesta última categoria de actos que se integra a conduta de A. Embora se trate de actos formalmente preparatórios situam-se nos limites da acção típica, sendo manifesta a sua inerência à própria execução. São actos que se inserem no plano concreto que o agente se propõe realizar. Conforme vem provado, era intuito de A manter pela força relações sexuais de cópula com a B, contra a vontade desta. Na realização deste plano forçou-a a deitar-se, apalpou- lhe os seios, puxou-lhe violentamente as meias e as cuecas e de seguida com uma das mãos, esfregou-lhe a vagina, o ventre e as pernas. Quando tentava introduzir um dedo na vagina da ofendida, conseguiu esta libertar-se de A, o qual foi em sua perseguição e forçou-a a entrar de novo no escritório, o que não sucedeu porque a ofendida, agarrando- 264 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. se à porta, acabou por fugir. Segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, a estes actos seguir-se-iam actos idóneos a produzir o resultado típico. Há uma estreita conexão temporal entre a acção de A e o resultado que pretendia alcançar. Os seus actos precedem imediatamente a acção típica inserindo-se na execução, de acordo com o plano concreto que se propôs realizar. São pois actos de execução e como tal definidos no artigo 22º, nº 2, alínea c)." No caso nº 31-B, um exemplo de escola muito conhecido, o Prof. Faria Costa (Jornadas, p. 161), aponta para uma tentativa de envenenamento (artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nº 1, e 146º da primitiva versão do Código) e comenta: “Em primeiro lugar, os actos de “execução” (v. g., deitar veneno no copo) não têm qualquer relevância na sua forma activa já que primeiramente foram praticados tendo em vista um acto que não é punido criminalmente. Eles só podem ganhar valor jurídico-penal quando socialmente era de esperar que o agente tivesse actuado de modo a evitar a lesão do bem jurídico da vida. Só que, em segundo lugar, neste caso, o momento objectivo em que socialmente se esperava a actuação do agente tem de passar necessariamente pelo próprio agente. Isto é, só quando ele decide inverter o acto de suicídio em homicídio por envenenamento é que verdadeiramente era socialmente esperado que o agente removesse o copo com veneno. Nesta perspectiva (…) o desvalor da acção só adquire ressonância jurídica quando primeiramente tiver por base actos de execução objectivamente determinados”. 3. Natureza jurídica da tentativa. Como acontece na generalidade dos códigos penais, na parte especial a conduta punível é descrita por referência a um autor singular (“quem” matar outra pessoa; “o médico” que recusar o auxílio da sua profissão…) e à infracção na sua forma consumada. A técnica de abranger mais pessoas no tipo penal (por ex., um cúmplice) ou aquelas situações que não chegaram à consumação (A disparou a matar, mas o visado não morreu, continua vivo) exige que nos códigos se estabeleçam normas que permitam ampliar os tipos penais na correspondente medida. Diz-se que tais disposições, como o artigo 22º ou o artigo 27º, implicam uma extensão dos tipos penais: são uma causa de extensão da tipicidade, uma extensão dos tipos da parte especial. Sem a norma sobre a tentativa esta ficaria impune, por na parte especial se preverem unicamente as formas que levam à consumação. Nesta concepção, a tentativa não faz surgir tipos autónomos, mas tipos dependentes que devem ser referidos ao tipo de uma 265 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. determinada forma de delito. Mas há autores para quem na tentativa se cria um tipo diferente e autónomo. Por ex., Mir Puig (Derecho Penal, PG, 1990, p. 357, e ADPCP 1973, p. 349) é de opinião que a tentativa não constitui uma “forma de aparecimento” do delito consumado, já que a consumação e a tentativa supõem tipos distintos, ainda que relacionados. A distinção tem alcance prático: se considerarmos que a moldura penal do crime tentado é a correspondente a um tipo de crime autónomo, não se lhe aplicará o disposto no nº 2, última parte, do artigo 118º — o prazo de prescrição do procedimento criminal por um crime tentado deverá, nesta perspectiva, calcular-se com base no limite máximo da pena aplicável ao crime tentado (cf., em especial, Miguel Pedrosa Machado, Formas do Crime, p. 11). 4. Fundamentos da punibilidade da tentativa. Os partidários da teoria objectiva fundamentam a punibilidade da tentativa no perigo concreto para o bem jurídico protegido, que é quantitativamente inferior ao do crime consumado — nesta perspectiva dificilmente haverá lugar para a punição da tentativa inidónea (ou impossível). O juízo sobre o perigo é formulado na perspectiva de um observador objectivo situado no lugar do autor (ex ante), com todos os conhecimentos e possibilidades de que este dispõe, assim como o conhecimento médio existente na comunidade. Este requisito é um momento constitutivo de toda a acção de tentativa, não só da tentativa idónea, mas também da inidónea ou impossível. Já a teoria subjectiva considera a vontade do autor, comprovadamente hostil ao direito e que assim se manifesta no comportamento tentado, i. é, no desvalor subjectivo de acção, como o fundamento da respectiva pena. O que, se por um lado, justifica a punibilidade de qualquer forma de tentativa inidónea, por outro, possibilita o alargamento da tentativa à custa da fase preparatória do iter criminis. Na tentativa inidónea a resolução delitiva traduzida em actos executivos exteriores não pode conduzir à consumação do delito. Isto poderá ficar a dever-se, entre outras circunstâncias, a inaptidão do meio empregado e a inexistência do objecto material, essencial à consumação. As duas principais posições surgem frequentemente combinadas. Por ex., nos §§ 22 e 23 do StGB põem- se em relevo as representações do autor e prevê-se a punição da tentativa inidónea (§ 22); a mais disso, limita-se o âmbito da tentativa de acordo com critérios objectivos (§ 22: “unmittelbar ansetz” — 266 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. “realização imediata do tipo”) e exige-se para a tentativa impossível uma certa medida de perigosidade objectiva. (Cf. Ebert, p. 111). Nesta perspectiva mista, ainda assim domina a componente subjectiva (Baumann/Weber/Mitsch) e com ela a autorização para o juiz atenuar a pena, mas em moldes simplesmente facultativos. A teoria da impressão, especialmente sensível à vertente subjectiva da tentativa, é em geral a acolhida na Alemanha. De acordo com esta teoria, o fundamento da punibilidade é, certamente, a vontade contrária a uma norma de conduta, mas a punibilidade da exteriorização da vontade dirigida ao facto só poderá afirmar-se quando possa ser abalada a confiança da comunidade na vigência da ordem jurídica e lesado o sentimento de segurança colectiva e com ele a paz jurídica (Jescheck, AT, p. 463). Quer dizer: pune-se a tentativa porque a actuação da vontade contrária ao direito (componente subjectiva) possui a capacidade de perturbar a confiança da comunidade na vigência do ordenamento jurídico (componente objectiva). Os fundamentos da teoria não aparecem em oposição com o castigo da tentativa impossível, mas obstam à punibilidade da tentativa irreal ou supersticiosa, porque esta — já o dissemos — não desestabiliza a confiança da comunidade na vigência do ordenamento jurídico (ainda Jesheck, ob. e loc. cits.). O conceito subjectivo — acentua a propósito o Prof. Cavaleiro de Ferreira — "faz depender a existência da tentativa da manifestação inequívoca, em acto exterior, da intenção de cometer o crime. Reflecte de algum modo o direito penal da vontade (por oposição ao direito penal do facto), acentuando a malícia da vontade como essência do próprio crime e subalternizando-lhe o aspecto da ilicitude objectiva". CASO nº 31-D: A polícia soube que um “rato de hotel”, há muito conhecido pelas suas actuações, geralmente bem sucedidas, tinha sido visto a "rondar" uma residencial da “Baixa”. O visado admitiu que andava por ali à espera de uma oportunidade para actuar. Neste exemplo de Naucke, se nos orientarmos pelo critério da perigosidade objectiva do comportamento do ladrão de hotéis concluiremos que o marginal ainda não tinha feito nada de perigoso — não tendo havido "começo de execução", não se atingiu o limiar da punibilidade. Mas se partirmos da perigosidade subjectiva do agente, vendo-o sem mais como inimigo, facilmente chegamos a resultados opostos, que o legislador certamente não terá querido adoptar no artigo 22º. A opção por um ou outro sistema está de algum modo ligado à questão dos fins das penas. Historicamente, nem o pendor retribuicionista e de expiação nem as actuais finalidades de ressocialização exigiriam no nosso exemplo a efectividade da sanção. Mas a cominação legal através da perigosidade subjectiva do agente dum modo geral impõe que se adoptem as consequências penais cabidas ao caso. Fiandaca/Musco recordam como, durante o regime fascista italiano, se verificou a tendência para dilatar os limites da tentativa punível por meras razões de controlo político, abandonando-se o critério tradicional do início da execução. E concluem que o 267 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. verdadeiro punctum dolens da punição da tentativa coincide com a preocupação de evitar que o instituto se preste, na sua aplicação concreta, a ser manipulado. Em 1930, na Itália, com o Código Rocco, abandonou-se a fórmula do "início de execução" utilizada pelo Código Zanardelli, substituindo-a pela da idoneidade e inequivocidade dos actos. Já Carrara se referia a esta "univocità degli atti", pois, se alguém pega numa espingarda e se prepara para disparar, isso significa tanto que quer abater legitimamente uma peça de caça como a intenção de matar um companheiro ou simplesmente de lhe causar lesões corporais. Portanto, "se um acto destes tanto pode conduzir ao crime como à acção inocente, então não passa de um acto preparatório." II. O tipo de ilícito da tentativa 1. A componente subjectiva: a decisão criminosa. Tentativa com dolo eventual? É amiúde acentuada a inexistência de uma “tentativa negligente” — não se configura nos crimes negligentes nem “tentativa” nem "cumplicidade". Uma acção negligente, em que o autor “não representa” nem “quer” o resultado, nunca pode integrar uma decisão de actuar (artigo 22º, nº 1). Por ex., o artigo 137º (homicídio por negligência), na medida em que se limita a descrever os elementos objectivos "matar outra pessoa", condiz, por um lado, com a figura dum crime de resultado, implicando desde logo a imputação deste à acção, por outro, com um tipo de ilícito necessitado de complemento. Enquanto o resultado se não produz, não é possível aludir a um crime material negligente, o que afasta a possibilidade da sua realização na forma tentada. Tradicionalmente, a jurisprudência vem-se manifestando no sentido da admissibilidade de um crime tentado cometido com dolo eventual, sendo a tentativa compaginável com qualquer das modalidades do dolo no artigo 14º do CP, escreve-se no acórdão STJ de 2 de Março de 1994, CJ do STJ, ano II, tomo 1, p. 243. A solução não é aprovada por todos, desde logo pelo voto de vencido neste mesmo aresto. Também para o Prof. Faria Costa se afigura indispensável que na tentativa se verifique a intenção directa e dolosa por parte do agente, “em que parece de excluir o dolo eventual, já que o agente, apesar da representação intelectual do resultado como possível, ainda não se decidiu." Cf. Jornadas, p. 160; e STJ, Acórdão de 3 de Julho de 1991 (Tentativa e dolo eventual revisitados), RLJ, ano 132º, nº 3903, p. 167 e ss. 268 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Cabe também perguntar se existirá uma tentativa de homicídio qualificado no nosso Código. Será que a especial censurabilidade ou perversidade indiciadas pelas circunstâncias do nº 2 do artigo 132º se circunscrevem "ao último grau de lesão da vida —a consumação— ou compreendem também as outras formas de crime?" Cf. Teresa Serra, Homicídio qualificado, p. 79 e ss. E poderá conceber-se um crime de homicídio qualificado na forma tentada com dolo eventual? O acórdão do STJ de 6 de Maio de 1993, CJ, ano I (1993), p. 227, considerou que o arguido —cuja conduta não pode deixar de revelar especial censurabilidade, por ser grande a sua torpeza— que actuou livre, voluntária e conscientemente, admitindo, ao efectuar o disparo contra o J —seu companheiro de café, apenas porque este pretendia dissuadi-lo de ir à procura da mulher e do amante para os matar—, que lhe podia causar a morte e conformando-se com tal resultado, o que só não veio a acontecer por o J ter sido prontamente socorrido, cometeu um crime de homicídio qualificado na forma tentada (com dolo eventual): artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, c), 14º, nº 3, 22º, nºs 1 e 2, c), 23º, nº 2, e 74º, nº 1, a). CASO nº 31-C: A é um indivíduo com algumas luzes mas que preferiu dedicar-se, quase como modo de vida, ao furto de objectos valiosos com que invariavelmente abastece “clientes” de bom gosto e que pagam sem problemas. A tem em vista o local dum comerciante que ainda há dois dias anunciava a venda de uns biombos antigos, expostos bem à vista de todos. Tem quem lhos pague, por forma a viver durante uns meses sem atrapalhações de dinheiro. Da rua, A convence-se que é possível entrar na loja durante a noite sem grandes problemas e levar os biombos, mas no momento decisivo, por volta das 4 da manhã, apesar de tudo lhe correr pelo melhor, acaba por nada fazer quando pressente que seria uma maçada pegar às costas aquelas coisas tão belas mas também tão pesadas. Comparemos agora esta situação com a que se segue, sugerida igualmente por Samson, Strafrecht I, p. 163. CASO nº 31-D: O mesmo A, dias depois, apercebe-se de que um alfarrabista anunciava a venda da primeira edição da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto que com toda a certeza interessaria a um coleccionador, seu conhecido. Depois de se certificar que a livraria não dispunha do mais modesto sistema de alarme preparou-se para partir o vidro da montra, mas não chegou a rebentá-lo porque, ao meter o pé de cabra à madeira, vendo melhor, o livro já ali se não encontrava, bem podendo acontecer que tivesse sido entretanto vendido. Neste segundo caso, a componente subjectiva encontra-se preenchida. A actuou com dolo de subtrair o livro valioso, que sabia não lhe pertencer, para dele se apropriar. Pode no entanto objectar-se que A, no momento de actuar, não estava certo de levar o empreendimento até final, faltando por conseguinte uma incondicional decisão de vontade, o que representa um aspecto decisivo para alguns autores. De acordo com o plano que A idealizara, na livraria não deveria estar instalado qualquer sistema de alarme, 269 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a montra tinha que ser arrombada e o livro deveria achar-se ali exposto. A não sabia se todas estas condições estariam preenchidas, mas dando-se o caso de estarem, a decisão de executar o assalto era definitiva, o que significa que o sujeito se resolveu não obstante estar consciente da incerteza de tais circunstâncias. Tanto basta para que possamos assegurar que ele agiu dolosamente, com intenção de se apropriar do livro. Ademais, o A praticou actos de execução do crime que decidira cometer, pois queria sem dúvida tirar o livro da montra logo que conseguisse rebentá-la, chegando até a meter o pé de cabra à madeira. Quer dizer que esta actuação se situa na zona imediatamente anterior à subtracção idealizada, descortinando-se portanto uma estreita conexão temporal entre a acção de A e o resultado que pretendia alcançar. São pois actos de execução e como tal definidos no artigo 22º, nº 2, alínea c). Tanto a ilicitude como a culpa resultam provadas, por não haver justificação ou causas de desculpação. Por fim, como o livro não estava disponível, tudo sugere a impossibilidade de uma desistência relevante. No caso nº 31-D, o que se poderá afirmar é que A não tinha no momento da acção uma incondicional decisão de vontade, daí, para alguns autores, a inexistência de dolo de furto, ficando a conduta impune. 2. É ainda necessário que se verifiquem actos de execução de um crime que o "agente decidiu cometer". Entre nós sempre predominou o carácter objectivo do instituto (cf. as Actas, a partir da p. 164). A tentativa tem vindo a prestar homenagem ao critério da causalidade adequada, ainda que sem se renunciar ao próprio plano do agente. Frequentemente, destaca-se também a ideia de que o ordenamento jurídico-positivo valora muito mais intensamente o desvalor de resultado do que o desvalor de perigo —na expressão do Prof. Faria Costa—, correspondendo-lhe por isso a obrigatoriedade da atenuação especial, em conformidade com o artigo 23º, nº 2. No Projecto da autoria do Prof. Eduardo Correia (1963) haveria tentativa "quando o agente pratica actos de execução de um crime que, todavia, não vem a consumar-se", mas logo houve objecções à proposta por não existir nela referência ao elemento subjectivo, à intenção, rectius, à resolução do agente — por um lado, não seria possível ganhar qualquer significado ou sentido o “praticar actos de 270 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. execução”, por outro, renunciava-se à exigência de tipicização da ilicitude, expressão de que já apreendemos o sentido. "A ilicitude material da tentativa [é] constituída pelo desvalor da acção. Entre nós essa afirmação não é inteiramente correcta. Desde a crítica endereçada à concepção subjectiva da punibilidade da tentativa defendida por Beleza dos Santos, que a doutrina portuguesa se inclina para uma fundamentação material- objectiva assente na ideia de perigo para o bem jurídico, embora mitigada pela valoração do plano do agente. Portanto, o ilícito material do facto tentado comporta um momento de desvalor de resultado, traduzido na colocação em perigo [perigo real no caso da tentativa possível, aparência de perigo no caso da tentativa impossível punível] de bens jurídicos, reconduzindo-se, desse modo, ao fundamento geral da intervenção penal. ". Augusto Silva Dias, Entre "comes e bebes", RPCC 8 (1998), p. 587. Caso nº 31-C: A quer matar B com uma bomba e trata de reunir o explosivo e os materiais para fazer uma bomba relógio, que monta em sua casa. Em seguida, escapa-se pela calada da noite e entra na casa de B, que supõe vazia. Começa por tirar a bomba do saco onde a transporta. B, todavia, encontra-se em casa, no piso mais elevado, e como ouviu barulho acende a luz para ver o que se passava. A dá-se conta de tudo. Com medo de ser preso, agarra no saco e deixa a bomba sem ter posto a trabalhar o maquinismo que conduz à deflagração (cf. Samson, caso nº 28, p. 155; Actas da Comissão Revisora do Código Penal, Parte geral, AAFDL, p. 171). Punibilidade de A ? Para a "vexata quaestio" da caracterização dos actos que importam já um começo de execução, o Prof. E. Correia propunha o que se consigna agora nas três alíneas do nº 2 do artigo 22º do Código. Assim, são actos de execução, desde logo, os que preenchem um elemento constitutivo do tipo legal. "Só que, por vezes, — sobretudo quando a lei não descreve de forma vinculada uma certa acção, mas só o resultado típico — é difícil saber se um certo acto preenche ou não um elemento típico. Certo será, todavia, que a execução que todo o tipo supõe há-de abranger os actos idóneos a causar o resultado nele previsto — razão por que também tais actos hão-de considerar-se como executivos". Deste modo, a tese da perigosidade do acto como reveladora do seu carácter executivo, impõe o recurso ao plano do agente, ao menos considerado na sua significação objectiva. Mas é possível ir mais longe, pois pode haver actividades que envolvam um perigo de lesão tal que devam ser abrangidas pela função extensiva da punibilidade que encerra o conceito de tentativa. Por exemplo: A deixa uma bomba de relógio em casa de B, 271 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. mas é preso antes de ter posto a trabalhar o maquinismo que conduz à deflagração. O critério da alínea c) do aludido nº 2, com apelo à experiência comum, visa melhorar a chamada fórmula de Frank, que tem servido para solucionar casos semelhantes. CASO nº 31-D: A planeia amedrontar, alarmar e intimidar B, C e D, de modo a que se sintam inseguros para assim os obrigar a pagarem-lhe avultadas somas, através de explosões de grande porte. A, porém, foi surpreendido e preso, sem ter conseguido o constrangimento das vítimas, no momento em que entrava em acção, ficando deste modo impossibilitado de prosseguir o seu escopo criminoso. A intimidação constrangedora através de explosões de grande porte encontra-se já "na zona imediatamente anterior à realização do tipo legal do crime", pois através da mesma se cria situação da qual se deve esperar, normalmente, o efeito pretendido pela realização do fim do agente. A sua idoneidade para conduzir ao constrangimento propriamente dito é ponto que se não discute, em nome das regras da vida e das formulações da lógica e do senso comum. No concreto, há mesmo sinais de que tudo estava projectado para a passagem, sem solução de continuidade, à chamada "fase decisiva do facto". Há dolo (dolo directo) de extorsão consumada: A previu, quis e perpetrou - até onde lho consentiu a causa externa impeditiva - o facto mesmo de operar para constranger à entrega de somas elevadas, na mira de, em último termo, conseguir a entrega das mesmas. Mostra-se assim preenchido o tipo especial do crime (extorsão) na forma tentada (cf. o ac. do STJ de 16 de Janeiro de 1992, BMJ-413-206). Sublinha-se a expressão "sem solução de continuidade", empregada pelo Supremo como adequada linha de orientação. No acórdão do STJ de 1 de Abril de 1992, BMJ-416-341, acima referido, alude-se a uma "estreita conexão temporal entre a acção e o resultado", com o mesmo sentido. Os principais critérios. O do começo de execução da acção típica ou o dos actos idóneos, dirigidos de modo não equívoco à prática dum delito? É difícil apontar com precisão o momento em que se passa da fase dos actos preparatórios e se chega à dos actos executivos. Os práticos, informa Paulo José da Costa Jr., ofereceram um critério meramente cronológico para distinguir os vários momentos do iter criminis: "Actus remotus, remotissimus, propinquus et proximus". Para a doutrina, a distinção constituiu verdadeira via crucis. Critérios os mais variados foram propostos. Muito se discutiu a respeito, nas inúmeras monografias e tratados, com conclusões diversificadas e opostas. O Código italiano de 1930 construía o crime tentado com referência aos contornos imprecisos do conceito de "atti idonei" e "diretti in modo non equivoco" a commetere il delito: actos idóneos, dirigidos de modo não equívoco à prática do delito. Todavia, o requisito da idoneidade não contribui decisivamente para a tipificação da conduta da tentativa. Por sua vez, o requisito da direcção não equívoca dos actos — a inequivocidade do 272 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. comportamento — não atinge suficientemente o perfil da tipicidade, ficando o juiz com a liberdade de determinar o conteúdo e os limites do instituto. Na maior parte dos sistemas europeus, a conduta tentada continua a ser individualizada através do conceito do começo de execução da acção típica. Nalguns casos, remete-se simplesmente para "um começo de execução", como no art. 121-5 do Código francês, caracterizando-o a praxis pelos actos que devam ter como consequência directa e imediata a consumação do crime. Noutros casos, a fórmula do começo de execução completa-se pela referência a factos exteriores, como no artigo 16º, nº 1, do Código espanhol: Hay tentativa cuando el sujeto da principio a la ejecución del delito directamente por hechos exteriores, practicando todos o parte de los actos que objetivamente deberían producir el resultado, y sin embargo éste no se produce por causas independientes de la voluntad del autor. O Código português empenha-se numa definição analítica dos actos de execução — sem que esta especificação, diz por ex., o relatório da Comissão ministerial para a reforma do Código Penal italiano (constituída em 1 de Outubro de 1998), "seja realmente de molde a contribuir para a definição da conduta, por ser evidente que a exigência de uma manifestação exterior da resolução criminosa se retira já do princípio geral da materialidade do crime. Ora, o problema é o da individualização do grau de desenvolvimento da conduta punível, cuja solução se procura conseguir com o critério do início de execução." Tanto no código penal alemão como no austríaco o critério da individualização da conduta típica continua a ser o da "execução do tipo", mas o limiar da punibilidade é antecipado com a referência aos actos que precedem "directamente", "imediatamente", os actos executivos. Também o nosso código equipara aos actos executivos os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos executivos. A disciplina da tentativa orienta-se assim, entre nós, numa direcção objectiva, centrada no conceito da punibilidade dos actos executivos da conduta típica. São actos de execução do crime de violação os de agarrar a ofendida, traçá-la pelas costas, empurrá-la, arrastá-la à força desde a casa dela para o interior da sua, atirá-la para cima da cama do seu quarto de dormir, deitar-se sobre ela, desapertar as calças, baixar as cuecas e puxar as saias dela, de forma a deixar à vista a zona pubiana e apontar o seu pénis erecto na direcção da vagina da ofendida, roçando com ele na área dos grandes lábios (ac. do STJ de 13 de Dezembro de 1991, CJ, 1991, t. 1, p. 21). Os actos praticados pelos arguidos preenchem um elemento típico do crime (a violência), são idóneos a causar o resultado típico e a intenção era a da prática de relações sexuais contra a vontade da ofendida. Mesmo sem contacto entre os órgãos sexuais, como aliás a 273 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. jurisprudência tem vindo uniformemente a salientar (acórdãos do STJ de 7 de Julho de 1948, BMJ-8-120; de 24 de Junho de 1953, BMJ-37-132; de 5 de Abril de 1961, BMJ- 106-335; de 17 de Junho de 1981, BMJ-308-95; de 18 de Outubro de 1989, CJ, 4º, p. 17): acórdão do STJ de 11 de Novembro de 1992, BMJ-421-209. Constituem actos de execução do crime de violação o agarrar a ofendida, menor de 12 anos de idade, arrastá-la para o meio do mato e, ali, derrubando-a e tapando-lhe a boca, retirar-lhe as cuecas e, ao mesmo tempo, abrindo a braguilha das calças que trazia vestidas, expor o seu órgão sexual, deitando-se de seguida em cima dela - porque, além de configurativos de violência - elemento constitutivo do crime, são absolutamente aptos, segundo a experiência comum, à produção do resultado final - cópula com a ofendida (acórdão do STJ de 21 de Novembro de 1990, BMJ-401-240). Outros casos. III. Tentativa; tentativa impossível (artigo 23º, nº 3); crime putativo; crime impossível; impossibilidade do crime; tentativa irreal ou supersticiosa. CASO nº 31-G: Durante uma caçada, A dispara para uns arbustos, na convicção de que aí se encontra um outro caçador, seu inimigo, que pretende matar com o disparo. Afinal, não era uma pessoa que ali se encontrava, mas uma peça de caça. Artigo 23º, nº 3: “A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime.” Nem toda a tentativa inidónea é punível. Este n° 3 soluciona uma das questões mais discutidas na doutrina: a da punibilidade da tentativa inidónea, dispondo que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime. Assim, a inidoneidade do meio ou a carência do objecto, salvo nos casos em que são manifestas, não constituem obstáculo à existência da tentativa. Consagra-se legislativamente a punição do chamado crime impossível, que no regime anterior — como nota Maia Gonçalves, remetendo para a anotação ao acórdão do STJ de 21 de Março de 1962, BMJ-115-263— a jurisprudência rejeitava. 274 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Já não estão aqui em causa os limites entre actos preparatórios e actos de execução, mas um problema de limites qualitativos: existe tentativa inidónea quando, na perspectiva de um terceiro, e examinada ex post, a actuação do sujeito não podia, desde o início, chegar à consumação do delito pretendido; todavia, examinada ex ante, do ponto de vista do autor, o plano deste, racionalmente, podia alcançar a consumação (Barja de Quiroga, p. 68). Adiante-se desde já que a falta de objecto verifica-se quando o autor pretende matar quem já está morto ou quando dispara para a cama julgando que um seu inimigo ali se encontrava, quando na verdade era a almofada que semelhava o vulto. A inidoneidade do meio aparece quando o autor pretende matar com açúcar, no convencimento de que era arsénico. A inidoneidade do meio ou a carência do objecto não devem ser aferidas através daquilo que o agente se representa, mas objectivamente. “Saliente-se no entanto que a lei exige do mesmo modo a prática de algo de objectivo, isto é, de actos de execução; simplesmente estes não contêm um perigo real, mas um perigo tão-só aparente. Assim a tentativa impossível, também conhecida pela designação de crime impossível, só não é punível quando a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime forem manifestas. Esta formulação integra-se na orientação expendida pelos Professores Eduardo Correia e Figueiredo Dias, Direito Criminal, II, 1965, págs. 233 e segs. e também acompanha de perto o Projecto de 1963. De notar, porém, que do § único do art. 22° do Projecto constava o texto seguinte: "A inidoneidade do meio empregado ou a carência do objecto só excluem a tentativa quando sejam aparentes". A substituição de aparentes por manifesta, efectuada após discussão na Comissão Revisora, visou significar que a inidoneidade do meio ou a carência do objecto não devem ser aferidas através daquilo que o agente se representa, mas sim através das regras da experiência comum ou da causalidade adequada, portanto objectivamente, segundo o critério da generalidade das pessoas”. Maia Gonçalves, Código Penal Português, em anotação ao artigo 23º. A perigosidade denotada em relação a um bem jurídico de mera aparência. "O verdadeiro cerne da punibilidade da tentativa impossível reside na avaliação da perigosidade referida no bem jurídico, sendo certo que nesta hipótese, em boas contas, o bem jurídico não existe; o que há é uma aparência de bem jurídico e neste sentido pareceria que a tentativa impossível, quando não fosse manifesta a inexistência do objecto, também não deveria ser punível, pois que falta o bem jurídico. Todavia tem de se fazer apelo, neste ponto, a uma ideia de normalidade — segundo as aparências — que se baseia num juizo ex ante de prognose póstuma. É que, entende-se, dado o circunstancialismo em que o agente actuou, o desvalor da acção merece ser punido não obstante não existir o bem jurídico. E merece-o porque denotou perigosidade em relação a um bem jurídico ainda que este assuma a forma de mera aparência. Mas mesmo que assim se 275 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. não entenda é correcto dizer-se que o Direito Penal ao visar primacialmente a protecção de bens jurídicos precipitados no tipo legal não pode esquecer, do mesmo passo, que a norma incriminadora—na sua dimensão de determinação— também proíbe as condutas que levam à violação ou perigo de violação daqueles bens jurídicos.” Faria Costa, Jornadas, p. 165. "Se a chamada tentativa impossível se afirma como a mais completa e radical manifestação, ao nível do ser causal, de inaptidão de atingir o resultado, isto é, de preencher formal e materialmente o tipo legal, então, o agente parece que não tenta nada." Faria Costa, Tentativa e dolo eventual, p. 59. Nos casos de tentativa impossível punível, que gira no espaço dos chamados crimes de perigo abstracto, põe-se em perigo o bem jurídico de forma abstracta (na tentativa idónea põe-se em perigo o bem jurídico de modo concreto) — assim afirma-se a punibilidade mesmo onde falta o bem jurídico e, por isso, inexiste real perigosidade, sendo que o ordenamento penal visa exclusivamente a protecção (directa) de bens jurídicos; no entanto, a noção de bem jurídico beneficia ainda de reservas explicativas em ordem a fundamentar materialmente muitas das situações de, por exemplo, ausência de objecto” (Cf. Faria Costa, Jornadas, p. 160 e ss.). No caso nº 31-G, existe uma discrepância entre a representação e a a vontade do agente em relação à realidade objectiva: o caçador queria matar uma pessoa, mas matou um animal, que não era objecto do seu dolo. Há aqui uma situação oposta à do erro sobre a factualidade típica. De acordo com o regime do artigo 16º, nº 1, ocorrendo a situação de erro, exclui-se o dolo (ainda que o agente possa ser punido por negligência: artigo 16º, nº 3). "Nos casos de tentativa impossível (artigo 23º, nº 3) o facto (tentado) subsiste como um facto doloso (pois o dolo do facto típico não é afectado pela discrepância entre a representação do agente e a realidade)." Cf. Teresa P. Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Regime Legal do Erro e as Normas Penais em Branco, p. 12. Tentativa impossível, impossibilidade do crime, tentativa irreal ou supersticiosa. Inidoneidade absoluta. A referência legal básica, no actual Direito português, obtém-se através da indicação dos limites da punibilidade da tentativa inidónea, nos termos do nº 3 do artigo 23º do Código Penal. Esta forma de tratar a matéria é própria da doutrina germânica, mas exige precisões complementares —a inidoneidade absoluta, quando diz respeito não somente aos meios, mas ao objecto do delito, conduz, mais do que à noção de tentativa impossível, ao conceito da própria impossibilidade do crime, sendo que uma das versões dessa impossibilidade é precisamente constituída pela tentativa irreal ou 276 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. supersticiosa. (Cf. Miguel Pedrosa Machado; ainda, Almeida Fonseca, p. 97). A inidoneidade absoluta dá-se perante a impossibilidade, em si e em todos os casos, de um certo meio empregado, v. g., uso de açúcar em vez de veneno (Eduardo Correia). Na tentativa impossível —tentativa de um crime que nunca poderia ser consumado, a não ser na perspectiva do sujeito— o agente figura a existência de um elemento típico que na realidade não existe. Este erro, como já se observou, constitui o reverso do erro sobre os elementos essenciais do facto típico (artigo 16º, nº 1), em que o agente ignorou a existência de um elemento que na realidade existe. Se o agente dispara sobre uma pessoa morta na cama, pensando ele que a pessoa está apenas a dormir, comete uma tentativa impossível (o objecto não existe mas ele pensa que existe: será um caso de erro por excesso, punível de acordo com o critério da teoria da impressão, acolhido no artigo 23º, nº 3, na expressão de Teresa P. Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, cit., p. 12. Se o agente dispara sobre uma pessoa que está a dormir na cama, pensando ele que está morta, actua em erro nos termos do artigo 16º, nº 1, sendo punível nos termos do artigo 16º, nº 3. Se alguém dispara no escuro contra uma árvore, convencido de que está a alvejar a pessoa ali ao lado, pratica uma tentativa de homicídio. Mas se alguém na floresta dispara contra uma árvore no convencimento de que isso é punível pratica um crime impossível, a tentativa é irreal. Este último caso não é punível, por imperativo do princípio nullum crimen sine lege. Quando a descrição típica não existe, tanto a consumação como a tentativa são impossíveis: a atitude hostil ao direito não é só por si fundamento da punibilidade. Punibilidade universal do public drinking? A propósito: que é um crime putativo? "Essa palavra vem do verbo latino putare, que significa julgar, pensar e acreditar. Mas no delito putativo não existe crime. O exemplo clássico é o do comerciante que, em mercadoria tabelada —quando ainda as havia—, equivoca-se e cobra menos, pensando cobrar mais do que é permitido. É raro, mas enfim, elucida... Isso é que é crime putativo, porque a pessoa está julgando cometer um delito, porém, não o pratica." (Magalhães Noronha, Crimes contra o património, BMJ-138-58). Há crime putativo se o autor pratica a magia crendo que a bruxaria continua a ser punível; ou se A e B, ambos maiores, têm relações homossexuais, julgando que estas são puníveis; ou se um turista americano crê que lhe é proibido beber vinho do Porto no Passeio Alegre, por admitir a punibilidade universal do public drinking (cf. M. Killias, Précis de droit pénal general, 2ª ed., 2002, p. 69). 277 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Tentativa impossível punível. Meio (in)idóneo. CASO nº 31-H: A quebrou o vidro duma janela do cartório da paróquia de x, em Viana do Castelo, correu os fechos que cerravam a janela e levantou a parte inferior da mesma, que era de guilhotina, com o propósito de aí se introduzir para se apoderar de dinheiro e objectos existentes no interior, mas foi surpreendido quando levantava a janela, tendo desistido dos seus intentos. Dentro da janela havia grades com a mesma configuração daquela, i. e, os rectângulos ou quadrados têm as mesmas dimensões dos caixilhos dos vidros da janela, de modo a não serem notados do exterior, e disso o arguido só se apercebeu após ter subido a parte de baixo da janela. Tais grades não lhe permitiriam a entrada no cartório, atentas as suas dimensões. Cf. o acórdão do STJ de 7 de Janeiro de 1998, CJ 1998, tomo I, p. 151. O A foi absolvido em 1ª instância do crime de furto qualificado na forma tentada — artigos 203º, nº 1, 204º, nº 2, alínea c), 22º, 23º, nºs 1 e 2, e 73º, alínea b) — de que vinha acusado pelo MP. Os factos assentes foram equacionados com o disposto no artigo 23º, nº 3, que refere não ser punível a tentativa quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente. O Colectivo, porém, concluiu que a hipótese configurava precisamente um caso de tentativa não punível por absoluta inidoneidade do meio utilizado pelo A. Ponderou-se em especial não se ter provado que o A fosse portador de qualquer instrumento que lhe facultasse ultrapassar o dito obstáculo (como uma serra de metal ou coisa semelhante), sendo manifesto, em face das circunstâncias — os factos, de resto, ocorreram por volta das 14 horas — e segundo as regras da experiência comum que o A não conseguiria realizar os seus intentos. O Supremo apreciou o caso na sequência de recurso do Ministério Público e concluiu que o A cometeu o crime de que vinha acusado, por tentativa impossível punível: o arguido, quebrando o vidro e correndo os fechos, e levantando em seguida a parte inferior da janela de guilhotina, usou meio idóneo ou apto para consumar o tipo de crime que se propunha levar a cabo. No entanto, tal meio tornou-se depois inapto dadas as circunstâncias, o que redunda em inidoneidade superveniente, portanto: relativa, e não absoluta, pelo que não é manifesta. Além disso, o A, com a sua conduta denotou perigosidade em relação ao bem jurídico protegido. Paulo Saragoça da Matta comenta o acórdão ("comentário breve da solução jurisprudencial") in Maria Fernanda Palma (coord.) Casos e Materiais de Direito Penal, p. 341. Começa por colocar a questão de saber se a fundamentação da punição da tentativa se encontra no dever de censurar a intenção criminosa do agente ou no reagir 278 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. contra o atentado ao bem jurídico protegido. Por outro lado, concorda que não cabe apreciar o facto de ser ou não o A portador de qualquer instrumento que lhe facultasse ultrapassar o dito obstáculo sem antes analisar a notoriedade do obstáculo para o agente e para a generalidade das pessoas. Discorda porém do Supremo quando este remete, como justificação para o decidido, para a posição doutrinal que distingue a inidoneidade em absoluta ou relativa, pois, para além de outras considerações que no texto também se apuram, tal distinção "tem em vista permitir ao intérprete a compreensão do artigo 23º, nº 3 do CP quando refere a "inaptidão do meio empregado", e não quando utiliza a expressão "manifesta". IV. Começo da tentativa na co-autoria; teoria do domínio, pelo co-autor, do facto global. CASO nº 31-E: Três assaltantes combinam que qualquer perseguidor deve ser abatido. Quando um deles ouve, atrás de si, um perseguidor, dispara sobre ele, enquanto os outros continuam a fuga (Roxin, p. 334). A questão tem a ver com os limites temporais da co-autoria. No caso de co-autoria, a tentativa começa, para todos os participantes, a partir do momento em que um deles entra no estádio da execução. Há um domínio do facto conjunto: como o acontecimento global da co-autoria pode ser imputado a cada um dos autores, cada acção de execução que um deles realiza, segundo o plano, é, simultaneamente, uma acção de execução de todos. Segundo o plano conjunto, os três assaltantes seriam co-autores do crime em apreço. A solução global baseia-se assim na imputação recíproca de actos: a actividade de cada co-autor, na medida em que estiver de acordo com o plano comum, deve ser imputada a cada um deles como se se tratasse da sua própria. É como se as contribuições para o facto fossem as de uma pessoa com muitas mãos, muitos pés, muitas línguas... (Kühl). A crítica que se faz à solução global, perante o princípio da legalidade e o artigo 26º do Código Penal português (Valdágua), é que neste se exige que o co-autor tome "parte directa na ... execução (do facto)". A solução passará então pela conjugação do artigo 26º com as diversas alíneas do artigo 22º e a análise do plano de execução do facto acordado entre o agente e os outros comparticipantes, justamente porque a 279 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. intervenção do co-autor na fase executiva é um requisito essencial da co-autoria (cf. Valdágua, p. 182). Considere-se o exemplo clássico (referido também por Valdágua, p. 59 e 183): um casal planeou um furto em casa alheia, empregando chave falsa, ficando combinado que ambos entrariam para subtraírem diversos objectos. O plano passava por uma primeira fase, em que o marido entraria sozinho. Quando este já tinha a chave metida na fechadura da porta e procurava abri-la, estando a mulher inactiva, a aguardar a sua vez de intervir, de acordo com o combinado, apareceu o dono da casa. A mulher é co-autora da tentativa de furto: com a sua presença no local do crime "praticou já um acto de auxílio moral (...) e a esse acto deveria, segundo o plano comum, seguir-se, muito em breve, a intervenção dela na subtracção, que é elemento constitutivo do respectivo tipo legal de crime (artº 22º, nº 2, alínea c)". Cf. Valdágua, p. 183, que adverte que ao mesmo resultado chegaria a solução global, mas através da imputação, à mulher, do comportamento do marido, como se de uma conduta própria se tratasse, ou pela via do domínio ou condomínio do facto global pela mulher, dado o carácter essencial da sua tarefa (cooperar na subtracção). V. Medida da pena da tentativa; concorrência de agravantes especiais e factores atenuativos especiais; reincidência. CASO nº 31-F: Para a determinação da pena quando ocorram agravantes especiais, como a reincidência, e factores atenuativos também especiais, como a tentativa, que conduzem à aplicação do regime dos artigos 72º e 73º, há que atender, em primeiro lugar, ao conjunto dos elementos agravativos para se obter a correspondente moldura penal, para depois se fazerem actuar os requisitos atenuativos e se determinar a respectiva moldura punitiva. Segundo o CP 95, o furto qualificado agravado por reincidência tem como moldura penal uma punição entre 2 anos e 8 meses e 8 anos de prisão; sendo ele especialmente atenuado deve ser punido com prisão entre 30 dias e 5 anos e 8 meses de prisão. Ac. do STJ de 2 de Maio de 1996, CJ, ano IV (1996), p. 175. A pena da reincidência alcança-se obtendo uma moldura penal, só depois passando o juiz à determinação da pena concreta (artigo 76º). O mecanismo é o seguinte (Actas, 9, 83): — num primeiro momento o juiz determinou a medida concreta da pena como se não houvesse reincidência; — num segundo momento, verificada a reincidência, o juiz retoma a moldura abstracta, construindo uma nova moldura penal agravada de um terço no mínimo; — em terceiro lugar, ele fixa uma pena dentro da moldura encontrada; — por último, ele procede à comparação das duas penas concretas, indo ver se a agravação é superior à pena concreta mais grave anteriormente fixada. No ac. do STJ de 16 de Janeiro de 1990, CJ, 1990, tomo I, p. 13, trata-se da moldura penal aplicável ao crime de homicídio voluntário tentado, cometido com excesso de 280 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. legítima defesa: atenuação especial do artigo 33º, nº 1, e o disposto no artigo 23º, nº 2, para a punição do crime tentado. No ac. do STJ de 19 de Setembro de 1990, CJ, 1990, tomo 4, p. 17, conclui-se ser possível a atenuação especial por qualquer das circunstâncias do artigo 73º [72º] em relação ao crime tentado. O acórdão do STJ de 1 de Março de 2000, BMJ-495-59, contém uma operação de cúmulo sucessivo dos efeitos de diversas atenuantes especiais aplicáveis. VI. Começo de execução; tentativa inacabada; tentativa acabada. CASO nº 31-C: Uma mulher casada quer matar o seu marido, confecciona-lhe uma sopa envenenada e coloca-a sobre a estufa, na cozinha. O marido costuma, todos os dias, depois do regresso do escritório, tirar daí a refeição quente, já preparada. 1) A mulher está presente no momento da entrada do marido em casa, e observa o comportamento deste. 2) A mulher sai de casa antes da entrada do marido. Ela pretende regressar somente horas mais tarde, e espera vir a encontrar o marido morto. (Cf. Roxin, p. 321 e ss.). Está aqui implicada a boa compreensão do que seja a tentativa perfeita ou acabada e, por extensão, o que se entende por tentativa inacabada. Nesta, o agente não chega a esgotar a sua capacidade ofensiva contra o bem jurídico visado (Mezger), pelo que se a conduta (ainda não exaurida) for voluntariamente suspensa dá-se a desistência. Naquela outra hipótese, como o agente fez tudo o que podia para obtenção do resultado almejado, não lhe cabe outra alternativa que regredir na sua conduta para impedir o evento. Paulo José da Costa Jr. dá-nos o seguinte exemplo, ilustrativo da situação: o agente amordaça e amarra a vítima, colocando-a num saco, atado a uma pedra, atirando tudo ao rio. Como o agente fez tudo para obtenção do resultado almejado, não lhe cabe outra alternativa que regredir em sua conduta para impedir o evento. Faz-se mister uma conduta positiva e actuante. “Terá o agente de atirar-se ao rio, clamar por socorro, activar-se para dar marcha à ré na conduta encetada”. No exemplo do Dom Casmurro, de Machado de Assis, Bentinho deposita veneno na xícara de café que Ezequiel, filho adulterino de sua mulher Capitu, vai beber, mas não ultima a tarefa, detendo-se em meio à tentativa de envenenamento. Quer dizer: “o envenenador”, “que não chegou a executar tudo que estava a seu alcance, terá condições de suspender o processo executivo apenas iniciado. Basta a omissão, cessando sua conduta”, explica o penalista brasileiro. 281 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A especialidade do caso nº 31-C está em que a mulher fez tudo o que era necessário da sua parte para a produção do resultado. Só que se trata de dois diferentes tipos de matéria de facto: no primeiro, ela detém nas suas mãos o acontecimento até ao seu último momento — a mulher pode, em qualquer altura, deitar fora a sopa, o processo causal pertence ainda à sua esfera de domínio. Roxin, p. 322: no 1º caso equipara-se estruturalmente a tentativa inacabada ao facto de que o autor detém, nas suas mãos, o acontecimento até ao seu último momento. Assim, tal como o autor pode em qualquer momento interromper a tentativa inacabada do crime, assim também a mulher pode, em qualquer momento, atirar fora a sopa. VII. Consentimento desconhecido; artigo 38º, nº 4 do Código Penal. CASO nº 31-I: A, de visita a casa do avô, tenta-se e tira da gaveta de uma secretária uma valiosa moeda comemorativa, desconhecendo que o avô, dias antes, lha tinha oferecido, dizendo para a empregada: "esta moeda já é do meu neto A". Segundo o artigo 38º, nº 4, Código Penal é punível, com a pena aplicável à tentativa, o facto praticado sem conhecimento da existência de consentimento do ofendido susceptível de excluir a responsabilidade criminal. Na sua interpretação corrente, a solução do Código aplica-se ao consentimento e em todos os outros casos em que o agente actua sem conhecer uma situação justificadora realmente existente. Segundo o Prof. Figueiredo Dias, entrar-se-ia em contradição normativa se o Código, que aceita em princípio a punibilidade da tentativa impossível, “deixasse de punir, também a título de tentativa, aquele que actuou numa situação efectivamente justificante, mas sem como tal a conhecer” (Pressupostos da punição, p. 61). Há, porém, quem sustente que o nº 4 do artigo 38º tem a sua origem num persistente equívoco. Aí, “o facto não é efectivamente tentativa; o facto também não é ilícito porque é justificado; e o facto não é culpável” (Cavaleiro de Ferreira). A divergência de pontos de vista prende-se com a questão dos elementos subjectivos das causas de justificação. Para o Prof. Cavaleiro de Ferreira, que adoptava uma concepção objectiva da ilicitude, os elementos subjectivos do crime pertencem à culpabilidade, pelo que as circunstâncias eximentes da ilicitude têm unicamente natureza objectiva. Consequentemente, não será punido o agente cuja conduta se integre, objectivamente, numa norma de justificação. Cf. 282 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Raul Soares da Veiga, Sobre o consentimento desconhecido, RPCC 3 (1991); Manuel da Costa Andrade, Consentimento e acordo, p. 521 e ss. e 668; e Rui Carlos Pereira, Justificação do facto e erro em Direito Penal, in Casos e Materiais de Direito Penal, Coimbra, 2000, p. 150. VIII. Indicações de leitura • Acórdão do STJ de 10 de Dezembro de 1997, BMJ-472-116: idoneidade do meio; manifesta inaptidão do meio empregado pelo agente. • Acórdão do STJ de 13 de Março de 1996, BMJ-455-257: punição do crime tentado; dupla atenuação especial; na punição da tentativa do que se trata é da fixação de uma moldura penal abstracta, a qual comporta portanto a atenuação especial do artigo 73º, do que resultaria que no fundo não se está perante uma dupla atenuação especial. • Acórdão do STJ de 14 de Abril de 1993, BMJ-426-180: os arguidos ainda estavam a fazer o carregamento dos materiais quando chegou a polícia. A situação é seguramente de furto consumado em relação aos objectos já carregados. No mais, o plano criminoso dos arguidos, que não foi completado, não passou da tentativa. No final, com todos os objectos que subtraíram, os arguidos cometeram um crime de furto consumado, independentemente do fim subjectivo que tinham de levar mais objectos. Portanto, consumado um crime de furto, com a subtracção de materiais nos termos expostos, não mais se pode falar de tentativa desse mesmo crime. De tentativa só pode falar-se se justamente a consumação do crime não chegou a ter lugar. Acórdão do STJ de 18 de Junho de 1998, processo nº 256/98: no domínio dos crimes de tráfico de estupefacientes não é possível uma actuação enquadrável na figura da tentativa, dado que a previsão do respectivo tipo incriminador engloba todos os actos possíveis que teoricamente lhe podem vir a corresponder. • Acórdão do STJ de 19 de Setembro de 1990, CJ, ano XV (1990), p. 17: crime tentado, dupla atenuação especial. • Acórdão do STJ de 24 de Março de 1999, BMJ-485-267: Tentativa, Tentativa impossível. Crime impossível. A acordou com B arranjar alguém que incendiasse uns armazéns, mas nunca foi intenção deste fazê-lo, já que este apenas pretendia receber do A e fazer seu o preço combinado pelo serviço e com isso ludibriá-lo. Ora, o comportamento do autor mediato será punido se ele determinou outro ou outros à prática do facto e desde que haja execução ou começo de execução do facto criminoso induzido ou praticado por determinação do autor mediato. • Acórdão do STJ de 28 de Fevereiro de 1996, CJ, ano IV (1996), tomo 1, p. 219: para a punibilidade da tentativa há que considerar o carácter externo da conduta e a sua apreensibilidade para a generalidade das pessoas e que o juízo sobre a existência ou inexistência do objecto tem que ser, em primeiro lugar, um juízo objectivo, pelo que não releva aquilo que o agente considera existente ou inexistente. Todavia, tem de fazer-se apelo, neste ponto, a uma ideia de normalidade, segundo as aparências, que se baseia num juízo de prognose póstuma. 283 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do STJ de 4 de Janeiro de 1996, CJ, ano IV (1996), t. II, p. 161: A figura da tentativa impossível só se verifica quando forem manifestas a inidoneidade do meio empregue pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime. Não se verifica uma actuação de crime impossível nos casos em que o agente pratica todos os actos necessários para a prática de um crime (de extorsão), mas o mesmo se não consuma, em resultado da actuação conjugada dos lesados, das autoridades policiais e de outro co-arguido. • Acórdão do STJ de 7 de Janeiro e 1998, CJ, 1998, tomo I, p. 151: A inidoneidade do meio pode ser absoluta ou relativa. A primeira existirá quando o meio for, por natureza, inapto para produzir o resultado. A segunda verifica-se quando, sendo o meio em si mesmo inidóneo, ou apto, se torna inapto para produzir o resultado. Ao exigir-se no artigo 23º, nº 3, que a inaptidão do meio seja manifesta, para que a tentativa não seja punível, tem-se em vista a inidoneidade absoluta. • Acórdão do STJ de 7 de Junho de 1995, BMJ-448-115: Estando provado que os dois arguidos aprovaram entre si e decidiram apropriar-se das quantias monetárias que pudessem estar no interior do cofre do estabelecimento e, em execução desse projecto conjunto e com esse objectivo, enquanto um procurava forçar a fechadura da porta de entrada o outro vigiava a curta distância, tendo sido entretanto surpreendidos e detidos por agentes policiais, não obsta à verificação do crime de furto, na forma tentada, a circunstância de não terem ficado demonstrados, em julgamento, a existência e o valor das quantias eventualmente guardadas no referido cofre, porquanto: a) é inegável que os arguidos praticaram actos de execução; b) a inexistência dos valores a apropriar não era manifesta; c) segundo as regras da experiência comum, era previsível que o cofre conteria importâncias monetárias; d) os meios empregues pelos arguidos, nas exactas circunstâncias em que actuaram, foram adequados a alcançar a apropriação, isto é, a preencher o tipo legal do crime de furto; e) a falta de prova da existência e do valor das quantias monetárias eventualmente guardadas no cofre apenas acarreta a impossibilidade de qualificação do crime de furto tentado. • Acórdão do Tribunal Constitucional de 30 de Maio de 2001, proc. nº 262/2001, DR II série de 18 de Julho de 2001: qualificação dos factos como crime de tráfico na forma consumada, sendo que na perspectiva do arguido recorrente a factualidade apurada apenas permitiria a qualificação como detenção na forma tentada, por não ter havido efectiva disponibilidade sobre o produto. • Relazione della Commissione Ministeriale per la Riforma del Codice Penale, in Riv. ital. dir. proc. penale, 1999, p. 616 e ss. • Actas das sessões da Comissão revisora do Código Penal, parte geral, vol. 1 e 2, AAFDL, p. 184 B. Petrocelli, Il delito tentato. Studi. Cedam, Padova, 1966. • Beleza dos Santos, RLJ, ano 66, p. 194 e ss. • Bernd Heinrich, Die Abgrenzung von untauglichem, grob unverständigem und abergläubischem Versuch, Jura 1998, p. 393. • Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral I, 4ª ed., 1992. • Claus Roxin, Die Abgrenzung von untauglichem Versuch und Wahndelikt, JZ 1996, p. 981. • Claus Roxin, Resolução do facto e começo da execução na tentativa, in Problemas fundamentais de direito penal, p. 295. 284 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Claus Roxin, Teoria da infracção, Textos de apoio de Direito Penal, tomo I, AAFD, Lisboa, 1983/84. • Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 1965, p. 229 e s. • Eduardo Correia, Direito Criminal. I - Tentativa e Frustração. II - Comparticipação Criminosa. III - Pena Conjunta e Pena Unitária, 1953. • F. Haft, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 6ª ed., 1994. • Faria Costa, Formas do Crime, in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983, p. 152 e ss. • Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, dissertação de doutoramento, 1992. • Faria Costa, STJ, Acórdão de 3 de Julho de 1991 (Tentativa e dolo eventual revisitados), RLJ, ano 132º, nº 3903, p. 167. • Faria Costa, Tentativa e dolo eventual, separata do nº especial do BFD, Coimbra, 1987. • Ferrando Mantovani, Diritto penale. Parte generale, 1992. • Georges Vigarello, História da violação, séculos XVI—XX, Editorial Estampa, 1998, p. 156. • Herzberg, Das Wahndelikt in der Rechtsprechung des BGH, JuS 1980, p. 469. • Ignazio Giacona, L’idoneitá degli atti di tentativo come “probabilitá”?, Riv. Ital. Dir. Proc. Penale, 4 (1993), p. 1336. • J. Damião da Cunha, Tentativa e comparticipação nos crimes preterintencionais, RPCC, 2 (1992), p. 561. • J. López Barja de Quiroga, Derecho Penal, Parte general, III, 2001. • Jorge de Almeida Fonseca, Crimes de empreendimento e tentativa, Coimbra, 1986. • Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Sumários e notas, 1976. • José Ramón Serrano-Piedecasas Fernández, Fundamentación objectiva del injusto de la tentativa en el Código Penal, ADPCP, vol. LI, 1998. • M. Isabel Sánchez García de Paz, El moderno derecho penal y la antecipación de la tutela penal, Valladolid, 1999. • M. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 8ª ed., 1995. • Miguel Pedrosa Machado, Da tentativa como tipo de crime - Um parecer, in Formas do Crime, Textos Diversos, 1998. • Miguel Pedrosa Machado, Na fronteira entre o crime impossível e o crime putativo, in Formas do Crime, Textos Diversos, 1998. • Muñoz Conde / Mercedes Arán, Derecho Penal, Parte General, 1993, p. 373. • Paulo José da Costa Jr., Comentário ao Código Penal, Ed. Saraiva, 6ª ed., 2000. • Raul Soares da Veiga, Sobre o consentimento desconhecido, RPCC 3 (1991). • René Bloy, Unrechtsgehalt und Strafbarkeit des grob unverständigen Versuchs. • Siniscalco, La struttura del delitto tentato, Milão, 1959. • Teresa P. Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O erro sobre normas penais em branco. • Teresa P. Beleza, Direito Penal II, 1983, p. 396 e ss. 285 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. § 17 A desistência da tentativa. I. Ideias gerais. Artigo 24ª: desistência da tentativa, impedimento activo e esforço sério. Artigo 25º: desistência em caso de comparticipação. 1. Se alguém intenta cometer um determinado crime punido por lei também na forma tentada sem que o resultado se dê e sem convergir no caso uma qualquer justificação ou desculpação torna-se inevitavelmente culpado da prática de um crime tentado. Ainda assim, e ao contrário do que sucede com a consumação, comportamentos posteriores do autor da tentativa, como a desistência voluntária, em certas condições específicas ganham relevância isentadora: a tentativa deixa então de ser punível. O nº 1 do artigo 24º indica em alternativa a desistência voluntária de prosseguir na execução do crime e o impedimento voluntário da consumação do crime ou o impedimento da verificação do resultado não compreendido no tipo de crime. O nº 2 do artigo 24º dispõe que quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidos por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra. Já nas situações de comparticipação do artigo 25°, bastará o “esforço sério” do comparticipante desistente no sentido de ser evitada a consumação material do facto. A isenção de pena tem lugar ainda que outros comparticipantes prossigam na execução do crime ou o consumem. No Código, a ideia de utilidade da contra-conduta, do actus contrarius do agente, pode encontrar-se ainda na parte especial, constituindo situações que se projectam normalmente no aligeiramento da sanção ou levam a que o tribunal decrete a dispensa de pena. Por exemplo, a pena pode ser especialmente atenuada se, em caso de rapto ou tomada de reféns, o agente voluntariamente renunciar à sua pretensão e libertar a vítima, ou se esforçar seriamente por consegui-lo (artigo 162º). Levam à dispensa de pena os “esclarecimentos ou explicações” dados em juízo pelo agente da ofensa de que foi acusado, aceites como satisfatórios (artigo 186º, nº 1). A renúncia à entrega da vantagem pecuniária pretendida e actos análogos que tenham lugar até ao início da audiência de julgamento em 1ª instância no crime de usura (artigo 226º, nº 5) tem como efeito a atenuação especial da pena ou então o facto deixa de ser punível. Em certos crimes de 286 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. perigo comum e outros contra a segurança das comunicações, se o agente remover voluntariamente o perigo antes de se ter verificado dano considerável verifica-se a atenuação especial ou mesmo a dispensa de pena. Veja-se ainda a retractação, por ex., no caso de falsidade de depoimento, a tempo de poder ser tomada em conta na decisão e antes que tenha resultado prejuízo para terceiro (artigo 362º, nº 1); e, com alguma semelhança, o caso da restituição ou reparação da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada (artigo 206º, nº 1), que a lei não põe, necessariamente, a cargo do agente. De modo diferente, se o facto se encontra ainda na fase da tentativa, o autor beneficia de completa isenção, deixando a acção de ser punível, como na desistência prevista no artigo 24º, nº 1. A consequência não é assim uma simples atenuação especial ou a dispensa de pena, mas a completa isenção. O diferente tratamento dado num caso concreto pela parte especial afasta o geral dos artigos 24º e 25º (prevalência da lex specialis), devendo acentuar-se que o desistente de uma tentativa de violação não fica necessariamente eximido de responsabilidade civil por danos não patrimoniais causados à vítima. 2. No artigo 24º é condição absoluta de relevância eximente da desistência que a consumação material se não verifique. No artigo 25º não se faz depender a relevância isentadora da desistência da efectiva ausência de consumação. Como se alcança destes dois preceitos e vem acentuado por Costa Pinto, o Código consagrou "um regime diferenciado para a desistência, assente em diferentes graus de exigência condicionantes da relevância a atribuir à conduta do agente que vise salvaguardar o bem jurídico em perigo. No artigo 24° (quer no n° 1 quer no n° 2) é condição absoluta de relevância eximente da desistência que a consumação material se não verifique. Diferentemente, nas situações de comparticipação (artigo 25°) exige e basta-se o legislador com o esforço sério do comparticipante desistente no sentido de ser evitada a consumação material do facto, não fazendo depender a relevância isentadora da desistência da efectiva ausência de consumação. E esclarece mesmo, caso dúvidas subsistissem, que a isenção de pena tem lugar ainda que outros comparticipantes prossigam na execução do crime ou o consumem". 3. Fundamento da não punição da tentativa: razão do privilegiamento a que conduzem as normas de desistência — facilitar a dissociação entre o agente e o 287 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. seu projecto criminoso. Se o agente é nas hipóteses de desistência voluntária completamente isentado de pena "é solução ditada por considerações de política criminal, nomeadamente a de facilitar a dissociação entre o agente e o seu projecto criminoso. De outro modo não se compreenderia que só a desistência lograda tivesse por efeito a isenção da pena." (Figueiredo Dias; ainda, Faria Costa, p. 165). Mas sobre o fundamento de uma disposição como o artigo 24º não existe consenso entre os autores. O mais antigo assenta na denominada teoria do prémio: a lei quis criar um motivo para que o autor desista do seu facto, tendo em vista o benefício da isenção da pena. Informa Bacigalupo (Principios de derecho penal, p. 202) que muitos autores seguiram esta posição recordando a frase de von Liszt de que a lei outorgava “uma ponte de ouro” ao delinquente que se retirava da comissão do delito, mas a teoria foi criticada já por M. E. Mayer, pois não tendo a maioria das pessoas conhecimento desta ponte de ouro, mal poderia ser erigida em motivo de desistência. Mais modernamente, tem-se entendido que se trata de um caso de isenção da pena fundado no facto de que o autor, desistindo, demonstrou que a sua vontade criminosa não era suficientemente forte ou intensa, pelo que, tanto dum ponto de vista preventivo especial como preventivo geral a pena aparece como desnecessária. 4. A desistência da tentativa: o artigo 24º, nº 1. Pode pois acontecer que a tentativa deixe de ser punível, mas para isso é necessário que o resultado ou a consumação se não verifiquem e que a desistência seja voluntária, no sentido de que deverá ser espontânea, isto é: aquela que ocorre “quando o agente desiste, não obstante poder prosseguir na execução do crime” (Maia Gonçalves, p. 254). A voluntariedade supõe uma decisão autónoma e espontânea, derivada da livre iniciativa do sujeito, i. e. que não seja imposta por facores externos. Ninguém pode desistir do que não se propôs, de modo que a exigência dum comportamento voluntário percorre todo o preceito e vale inclusivamente para os casos de tentativa acabada, sendo o seu significado de elevada valia para se compreender que uma tentativa levada a efeito de modo ilícito e culposo afinal acabe sem ser sancionada, mostrando que o agente está de regresso à legalidade e aos caminhos do direito. CASO nº 32-A: A quer violar uma mulher e para isso dirige-se a uma garagem nos fundos dum prédio de grandes dimensões, pondo-se à espreita, escondido atrás duma coluna. Quando B se aproxima e 288 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. se prepara para abrir o carro, A atira-se a ela, por detrás e de surpresa, derrubando-a. Enquanto lhe deita uma mão aos seios, desnuda-a da cintura para baixo, arrancando-lhe as cuecas, após o que lhe mete um dedo na vagina, atando-a, em seguida, de pés e mãos com uma corda que tinha no bolso e fazendo-lhe uma mordaça com a gravata — tudo para conseguir as práticas sexuais que se propusera. Só que, no momento decisivo, repara na carteira de B, põe-se a revistá-la, mas não encontra dinheiro. Pega, todavia, no cartão multibanco de B, a quem, com uma navalha nas mãos e as palavras “senão retalho-te a cara”, ordena que lhe dê o número secreto da conta bancária, ao mesmo tempo que lhe retira ligeiramente a gravata da boca. Logo que consegue decorar o código, A abandona sem mais a vítima, amarrada e amordaçada, no local, e dirige-se a uma caixa multibanco, apropriando-se aí de 60 contos da conta de B. Punibilidade de A quanto ao crime de natureza sexual que este se propunha levar a efeito na pessoa de B. A desistência será involuntária e irrelevante quando por exemplo aparece a polícia. A desistência supõe da parte do agente a possibilidade de escolher entre pôr termo à sua actuação ou prossegui-la, sendo a intervenção dos agentes um elemento extrínseco à actividade do assaltante que o impede de prosseguir a sua actividade e de levar até ao fim o plano que se propusera. Outros casos são bem mais complicados. Imagine-se que os propósitos de A eram de envenenar a mulher mas apercebe-se que contra as suas expectativas também a sua pequena filha provou do prato envenenado. A decide chamar um médico e contar o sucedido, salvando-se as duas. Observa Júlio Gomes que nesta hipótese de envenenamento a doutrina alemã alinha por maioria na desistência involuntária. Confrontemos agora as explicações sumariadas sobre o regime legal com esta meia dúzia de exemplos de Barja de Quiroga: o ladrão, no momento em que aplica o pé de cabra à porta da casa que julgava vazia, decide abandonar o plano de a assaltar, ao ouvir barulho vindo de dentro; o ladrão, que no interior da casa já reuniu uma porção de objectos, ouve as sirenas que indicam a chegada da polícia e foge; o agente deita por terra a sua vítima e obriga-a a tirar a roupa sob a ameaça de uma navalha, mas nesse momento sente medo de ser reconhecido e deita a fugir; num transporte público urbano, o carteirista deita a mão ao bolso da vítima, mas esta dá-se conta e faz um gesto instintivo de defesa, aproveitando o ladrão para fugir na paragem do autocarro; na casa onde penetrou, o agente consegue arrombar a gaveta do móvel onde supõe que haja dinheiro, mas como só encontra umas moedas vai-se embora sem nada; no autocarro, o ladrão consegue 289 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. apoderar-se da carteira do passageiro do lado, mas como vê que não leva dinheiro, entrega-lha, gentilmente, explicando que ele a deixara cair; A quer matar um seu inimigo e dispara, acertando-lhe no peito, e já com a vítima por terra acerca-se dela, vendo-a viva, mas mesmo assim não dispara o tiro fatal, podendo fazê-lo, sendo o ferido socorrido um pouco mais tarde por uma terceira pessoa, tendo-se salvo; A quer matar um seu inimigo e dispara, acertando-lhe no peito, e já com a vítima por terra acerca-se dela, vendo-a viva, mas mesmo assim não dispara o tiro fatal, podendo fazê-lo, antes a mete no carro e a leva ao hospital, acabando o ferido por sobreviver. Em caso de tentativa propriamente dita, do agente exige-se uma simples omissão das restantes actividades. Em caso de tentativa acabada, a lei obriga a uma intervenção activa de modo a evitar que o evento se produza. O nº 1 termina reconhecendo a relevância do impedimento voluntário do resultado (do evento material) nos “crimes formais”, aqueles que se consumam independentemente da produção do resultado. Por influência do Projecto, explicava-se que um dos casos que se queria prever e regular era, por ex., o daquele que, tendo ministrado substâncias venenosas a outrem, “vem a impedir que este morra, v. g., através da administração de um vomitório ou de uma lavagem ao estômago”. Dir-se-ia que se o autor agiu com intenção de matar, o crime já se consumou, pelo que a situação seria mais exactamente equiparada à desistência do que uma desistência verdadeira. No Código de 1886 (artigo 353º), o crime de envenenamento era um desses crimes formais. Seguia-se a tradição romana e francesa, tratando o envenenamento de forma especial em relação ao homicídio. Já nas Ordenações o envenenamento tentado era equiparado ao consumado: “Toda a pessoa que a outra der peçonha para a matar, ou lh’a mandar dar, postoque de tomar a peçonha se não siga a morte, morra de morte natural” (liv. 5º tit. 35º § 2º: cf. Silva Ferrão, Theoria do Direito Penal, vol. VII, 1857, p. 30; e Ordenações Filipinas, Livros IV e V, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1185). Hoje, o envenenamento, como crime especial (formal), desapareceu do Código Penal, ainda que possa constituir um homicídio qualificado dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea h), ou uma ofensa à integridade física, igualmente qualificada, do artigo 146º, nºs 1 e 2, e 132º, nº 2, alínea h), mas nem o nosso antigo código nem o código francês, como salientava Silva Ferrão, tratavam “de punir o homicídio voluntario qualificado pelo veneno, mas o attentado, e este consiste sempre na propinação ou no emprego com a 290 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. intenção de matar, de qualquer modo que estas substancias sejam empregadas ou administradas.” O preceituado nesta última parte do nº 1 do artigo 24º poderá ter o seu campo de aplicação privilegiado nos crimes de perigo, enquanto crimes de consumação antecipada. Não se deve todavia esquecer as disposições afins dos artigos 286º (o agente remove voluntariamente o perigo antes de se ter verificado dano considerável) e 294º, nº 3, entre outras normas da parte especial. Problemático é saber, como acentua Costa Pinto, se aos crimes de consumação antecipada se deve ou não acrescentar os crimes duradouros ou permanentes, como por exemplo o “sequestro”. “As dificuldades do problema decorrem, por um lado, de não se poder afirmar que estando preenchido o tipo da parte especial (por “detenção” da vítima, por exemplo) ainda não ocorreu materialmente a lesão do bem jurídico, pois é inequívoco que a liberdade da pessoa em causa já foi lesada; mas, por outro lado, reconhece-se que ainda reveste utilidade político criminal uma contra-actividade de um dos agentes que tente obstar à lesão progressiva (na terminologia própria destes tipos, à “compressão”) do bem jurídico, que terá lugar se se “mantiver presa ou detida” a vítima”. Outras duas notas. A primeira, sublinhada por Faria Costa, é que tudo leva a concluir pelo afastamento da teoria do arrependimento activo. “Esta visão das coisas, como é facilmente perceptível, não consegue abarcar as situação de desistência em que o que verdadeiramente se exige é um non facere”. ( 27 ) Por outro lado, se o agente quer impedir o resultado, tornam-se indiferentes os motivos por que o faz. Pode fazê-lo porque lho manda a consciência, por arrependimento ou vergonha, a rogo de terceiro ou às súplicas da vítima. “Desde que seja uma verdadeira desistência, i. é, desde que seja voluntária, são irrelevantes as motivações, não é necessário um como que “dolus bonus”, não é preciso que a desistência represente como que uma reintegração no espírito de “fidelidade ao direito”; o que interessa é que desista e, assim, o bem jurídico acabe por não ser destruído; assim, a desistência, contra o que alguns dizem, nada tem a ver com uma como que negação retroactiva da “dignidade penal” da conduta já praticada, pois que essa, uma 25 Nos crimes de comissão por omissão a desistência terá que resultar de uma actividade e não de um simples não fazer 291 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. vez existente, jamais se pode banir do mundo”. (Prof. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, p. 381). Há contudo precisões a fazer. Só para dar um exemplo: quem por medo põe fim aos seus propósitos, já iniciados, de assaltar um banco desiste voluntariamente se a sua decisão não for ditada pelo medo mas se o medo constituir apenas um dos elementos dessa mesma decisão. 5. Intervenção de terceiro dirigida a evitar a produção do evento típico ou a consumação. O artigo 24º, nº 2. CASO nº: A lança B ao rio para o afogar, desiste, lança-se à água para o salvar, mas uns bombeiros que ali faziam exercícios é que acabam por retirar o B, que não sabia nadar, das águas revoltas da correnteza. Noutras ocasiões o agente voluntariamente assume o papel de “desistente” mas a consumação ou a não verificação vêm a ser conseguidas não por ele mas por um facto independente da sua conduta, entrando um terceiro em cena. Esta intervenção de terceiro tem que ser acompanhada de um esforço sério do agente (Faria Costa: “esforço sério evidente”) no sentido de impedir que o resultado (ou a consumação) se verifique. A cláusula de “esforço sério” é daquelas que comportam larga margem de prudente arbítrio do intérprete, observando a propósito o Dr. Maia Gonçalves que “parece certo que o pensamento legislativo se não basta com a simples atitude interior de repulsa, exigindo, para além disso, um comportamento exterior, activo ou omissivo, que seja idóneo para evitar a consumação ou o resultado. Trata-se de uma intensificação das formas de tutela dos bens jurídicos e da protecção dos interesses ameaçados da vítima”. Em face do nº 2 do artigo 24º (que não constava do Projecto), o agente não será punido se por actividade própria e voluntária consegue evitar a verificação do resultado, isto é daquele resultado que se intentava com a tentativa, e não de qualquer outro. O uso da contracção do, com uso do artigo definido e não de um, como foi considerado pela Comissão de revisão, na 40ª sessão, em 25 de Setembro de 1990, tem precisamente este alcance. "Dado que aqui o agente praticou todos os actos de execução que deveriam produzir o resultado o crime consumado”, escreve o Prof. Figueiredo Dias, Sumários, p. 292 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 37, “deve ele intervir activa e voluntariamente no sentido de evitar a produção do resultado (v. g. administrando um contra-veneno); e tem, para além disso, de conseguir evitá-lo. Claro que para tanto pode ter de servir-se da actividade de terceiros (chauffeur de taxi, médico, etc.). Mas tem de estar aí incluída também uma actividade própria. Como porém tratar o caso em que o evento não surge por outros motivos que não a actividade do agente? Hoje tende-se a estender a estes casos o privilégio da desistência activa face à actuação voluntária e séria do agente...". O Prof. Faria Costa fornece um exemplo de resultado que é evitado por terceiro que dá um vomitório à vítima antes da chegada do médico trazido pelo agente que fez contramarcha na sua própria conduta. Não basta que o agente “demonstre somente a intenção de se esforçar, é necessário que exteriorize por actos que o seu propósito era, para lá de toda a dúvida razoável, evitar a consumação ou a verificação do resultado. Se C — sem conhecimento de A — não tivesse dado a B um vomitório este teria morrido antes da chegada do médico chamado por A. É indiscutível que se verifica nestas hipóteses um pouco de “álea”. “Efectivamente, é a actuação de um terceiro que, ao cabo e ao resto, vai determinar a punição ou não punição do agente. Pondere-se, todavia, que a injunção de um juízo aleatório não tem à nascença uma carga de responsabilidade objectiva que é, como se sabe, de dever rejeitar. Encurtando razões: dir-se-á que se a consumação veio a ter lugar porque um terceiro não actuou o resultado final deve indiscutivelmente imputar-se ao agente (sibi imputet). Ele desencadeia um processo que posteriormente quer parar só que não o consegue. Decerto que o valora da acção da desistência quando muito será suficiente para neutralizar o desvalor da acção inicial mas já o não será pra compensar o efectivo e real desvalor do resultado”. Este n° 2 refere-se tão-só à tentativa acabada; a tentativa inacabada ou incompleta não é punível sempre que se verifique o circunstancialismo do n° 1, bastando portanto o abandono voluntário dos actos de execução. Na tentativa é essencial que não haja consumação do crime por circunstâncias alheias à vontade do autor. Na desistência, pelo contrário, é essencial que o resultado não se produza por sua vontade. A “desistência”, de qualquer modo, tem diferentes pressupostos segundo o grau de realização alcançado pelo facto. Neste sentido, haverá que distinguir entre tentativa acabada e tentativa inacabada. Se o autor vai a meio da execução pode desistir, se já chegou ao fim da execução isso quer dizer que já fez tudo o que tinha a fazer, “já não tem nada de que desistir”, como diz a Profª Teresa Beleza; e exemplifica: se uma 293 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pessoa resolver matar outra dando-lhe tiros e lhe dá os tiros, não pode desistir de dar os tiros, que já os deu, mas pode agarrar na pessoa, levá-la ao hospital, e conseguir que a pessoa seja salva, e não se dê o resultado que é a morte. 6. No artigo 25º releva o princípio da pessoalidade da desistência. “No artigo 25º estabelece-se o princípio da pessoalidade da desistência da tentativa, cujos efeitos são estritamente pessoais. Só não é punível o próprio desistente, e não quaisquer comparticipantes, mas quando a desistência de um só evita a consumação do crime é manifesto que aos outros agentes cabe tão-só a pena correspondente à tentativa. Se há vários comparticipantes a impedirem voluntariamente a consumação ou a esforçarem-se seriamente para que ela se não verifique, nenhum deles é punível. Há nestes preceitos um fundo de política criminal que os autores apontam, o qual consiste em dividir os comparticipantes, mostrando-lhes que podem tirar proveito da dessolidarização e, através disso, evitar a produção do resultado antijurídico.” Cf. Maia Gonçalves, p. 257. Quis-se de alguma forma dividir os comparticipantes, mostrar-lhes que a dessolidarização pode ser útil — concorrendo assim de maneira não dispicienda, diz-se nas Actas, para alcançar a finalidade que preside a toda a teoria da desistência: evitar que se produzam resultados criminosos. III. A chamada tentativa qualificada. CASO nº 32: Durante uma discussão doméstica com sua mulher B, A pega numa faca de cozinha que estava logo ali à mão e, num golpe repentino, espeta-lha na região torácica, com intenção de a matar. B cai no chão e, numa grande aflição, sentindo que as forças começam a faltar-lhe, pede ao marido que a salve. A sabe que o golpe profundo provocado pela faca provocará a morte de B daí a pouco e arrepende-se do que fez. Imediatamente chama uma ambulância e B salva-se. Punibilidade de A ? O tipo subjectivo da tentativa de homicídio encontra-se preenchido — A decidiu matar B, mas esta não morreu. A praticou actos de execução do crime que decidira cometer, ao agredir B na região torácica, onde lhe produziu um golpe profundo, capaz de provocar a morte (artigos 22º, 23º e 131º). A agiu ilicitamente, sem justificação, não tendo o facto passado da tentativa, pois B continua viva. 294 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. No caso nº 32 pode falar-se de uma tentativa acabada, porquanto B não sobreviveria à agressão se não fosse a iniciativa do agressor e, tudo o indica, A estava convencido de que tinha feito tudo o que, do ponto de vista causal, era necessário para dar a morte. Para a opinião maioritária, a distinção entre tentativa inacabada e tentativa acabada — esta correspondente ao que no Código de 1886 se chamava, no artigo 350º, de delito frustrado — com interesse para a aplicação do artigo 24º, nºs 1 e 2, faz-se de acordo com a representação do agente, no momento da desistência, a respeito da possibilidade da produção do resultado (face ao já realizado até esse momento). "Há tentativa inacabada quando o agente ainda não fez tudo o que, de acordo com a sua representação, é necessário para a realização típica. A tentativa está acabada quando o agente, de acordo com a sua representação, fez tudo o que era necessário à realização típica" (Udo Ebert, AT, p. 116). Dá-se a tentativa acabada quando o agente tiver realizado tudo aquilo que estava ao seu alcance para obter o êxito desejado, que só não consegue pela interferência de circunstâncias alheias à sua vontade. Na tentativa inacabada, o agente não chega a esgotar a sua capacidade ofensiva contra o bem jurídico visado. Como o resultado não se produziu — a mulher foi salva pelos médicos — e o A se esforçou seriamente por evitar a consumação, a tentativa deixa de ser punível: nºs 1 e 2 do artigo 24º. A contra-actuação do A foi coroada de sucesso: o seu esforço sério evitou a consumação. Estão também presentes todos os necessários elementos subjectivos: o A quis, com a sua actividade esforçada, evitar a morte da mulher, prevendo que sem isso o evento mortal se consumaria. Na tentativa acabada, para que se considere existente um esforço sério do agente para evitar a consumação, é necessário que haja um comportamento voluntário e activo, idóneo para impedir que as forças da natureza por ele desencadeadas determinem o resultado. A deixa de ser punível por tentativa de homicídio. A lei limita-se à expressão "a tentativa deixa de ser punível", havendo divergências doutrinais quanto a saber se se trata de um fundamento pessoal de exclusão da pena ou de uma causa de desculpação. Se o agente é nas hipóteses de desistência voluntária completamente isento de pena "é solução ditada por considerações de política criminal, nomeadamente a de facilitar a dissociação entre o agente e o seu projecto criminoso. De 295 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. outro modo não se compreenderia que só a desistência lograda tivesse por efeito a isenção da pena." (Figueiredo Dias; ainda, Faria Costa, p. 165). A, no entanto, ofendeu o corpo de B, provocando-lhe perigo para a vida (artigo 144º, alínea d). Trata-se de um crime de perigo concreto. Na hipótese sub judice o perigo provocado pela actuação do agressor verificou-se, pois B, claramente, estava ferida de morte e só não morreu por causa do golpe desferido com a faca por ter sido imediatamente socorrida. Os elementos objectivos da incriminação encontram-se reunidos. Duvidoso é o elemento subjectivo, na medida em que A agiu com dolo homicida. Parte da doutrina entende que o dolo homicida exclui, por definição, a existência de um dolo de ofensa ao corpo ou à saúde, o qual supõe que quem sofre uma ofensa corporal continuará vivo: quem agride não pode querer ao mesmo tempo o dano do corpo ou da saúde e a morte de outrem. A teoria unitária entende porém que o dolo de ofensa corporal está contido no dolo homicida. O homicídio e os crimes contra a integridade física são em princípio compatíveis, salvo os casos de agravação pelo resultado, pois a lesão corporal é o estado intermédio por onde passa o homicídio, ficando portanto abrangida pela intenção de matar (cf. Küpper, Strafrecht, BT 1, 1996, p. 45; Eser, in S/S, § 212, nº de margem 17 e ss.). Ainda sobre a relação que intercede entre o homicídio e as ofensas corporais: cf. Faria Costa, O perigo em direito penal, p. 389. Aderindo a esta visão das coisas, dir-se-á que A, ao actuar, representou tanto a produção de lesões do tipo das descritas como a decorrente situação de perigo para a vida de B. O dolo de dano na saúde e no corpo da vítima (ofensa à integridade física) é manifesto, e com ele o preenchimento do ilícito do artigo 144º, alínea d), face à representada situação de perigo, não havendo qualquer causa de justificação ou de desculpação. Conclusão: A ofensa corporal, com as consequências apontadas, é irreversível para A: já não há lugar a uma contra actividade que pudesse evitá-la. A cometeu pois, em autoria material, uma ofensa à integridade física grave do artigo 144º, alínea d). 296 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Considere agora a hipótese de, no caso nº 32, a ambulância, quando seguia a caminho do hospital, ter ficado inapelavelmente atascada num engarrafamento. Resultado: não chegou ao hospital a tempo de B se salvar. Veja-se também a solução que o Supremo deu a um caso semelhante, considerando apenas o arrependimento posterior ao crime, com o peso, quanto muito, da atenuação especial. IV. Tentativa acabada. Arrependimento post delictum. CASO nº 32-B: A vivia maritalmente com B, mas as relações de ambos estavam degradadas. O A não permitia que a B trabalhasse ou contactasse com outros homens e qualquer telefonema ou conversa era motivo para ciúme e pretexto suficiente para a agredir, o que vinha fazendo com regularidade, utilizando para o efeito um chicote feito com fios eléctricos. A B já por diversas vezes se queixara do A, mas depois desistia e os processos eram arquivados. Em certa altura, na sua residência, ambos se envolveram em discussão por causa de um telefonema que ela atendeu, tendo o A sacado uma pistola, calibre 6,35 mm, transformada de uma pistola de alarme, municiada, que a uma distância de cerca de 2 metros apontou à cabeça da B, e de seguida premiu o gatilho, disparando-a. O tiro atingiu a B na região fronto temporal esquerda, mas a bala fez ricochete e voltou a sair. Em seguida, o A arrependeu-se e levou a B ao hospital. A morte da B só não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do A, que agiu com intenção de lhe tirar a vida. Cf. o acórdão do STJ de 18 de Fevereiro de 1999, CJ, 1999, tomo I, p. 217 Escreve-se no acórdão: Perante o circunstancialismo descrito, não pode concluir-se que a conduta do A imediatamente posterior ao disparo constitua aquilo a que a lei chama de esforço sério (no sentido de real, sincero ou importante) para evitar a consumação do homicídio. Na determinação de esforço sério do desistente para evitar a consumação do crime, ou a verificação do resultado, deve seguir-se um critério objectivo, moldado na teoria da causalidade adequada, em termos de poder concluir-se que o agente abandonou, activamente, o projecto inicial e tudo fez dentro das suas capacidades e conhecimentos, para interferir no processo causal em movimento e evitar a consumação do crime que decidira cometer. Assim, na tentativa acabada, para que se considere existente um esforço sério do agente para evitar a consumação, é necessário que haja um comportamento voluntário e activo, idóneo para impedir que as forças da natureza por ele desencadeadas determinem o resultado. 297 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Do arrependimento activo, a que se refere o artigo 24º do Código Penal, há que distinguir o arrependimento post delictum em que o agente se limita a desenvolver uma actividade posterior ao crime, destinada a eliminar ou atenuar os seus efeitos danosos ou perigosos, a qual pode constituir apenas uma atenuante geral — a prevista na alínea e) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal — ou uma atenuante especial — a prevista na alínea c) do nº 2 do artigo 72º do mesmo Código). O repentir sincère e a figura do pentito: consumada a infracção, já o seu autor a não pode apagar. Pode, ainda assim, fazer tudo o que estiver ao seu alcance para a atenuar e sobretudo para reparar os prejuízos. O código suíço fala a este propósito de repentir sincère (aufrichtige Reue) que é uma das circunstâncias atenuantes do artigo 64, e dá lugar às penas atenuadas previstas no artigo 65. O “repentir sincère” aproxima-se da figura do “pentito” do direito penal italiano, uma vez que se refere a crimes consumados. Em matéria de tentativa, fala-se de desistência e de arrependimento activo, dependendo de estar ou não a tentativa acabada. M. Killias, Précis de droit pénal general, 2ª ed., 2002, p. 72. V. Outras indicações de leitura • Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, PG I, 1992, p. 417: “a desistência não é somente desistência voluntária de levar a cabo a execução ou consumação do crime, mas revogação da própria intenção ou resolução criminosa”. • Acórdão da Relação de Évora, de 9 de Março de 1985, CJ, X, tomo 2, 310: a desistência voluntária só tem relevo penal quanto a actos de tentativa, não quanto aos actos de execução completa de um dado tipo legal de crime. • Acórdão da Relação de Lisboa, de 24 de Abril de 1985, CJ, X, tomo 2, p. 174: a desistência do propósito criminoso é uma circunstância pessoal, não comunicável aos comparticipantes, a qual só beneficia o desistente. Não existe desistência penalmente relevante quando o agente desiste depois de verificar que a situação ilícita de que é autor se não pode produzir em virtude de factos que lhe são estranhos, surgidos depois do início da execução dos primeiros actos constitutivos do ilícito criminal. • Acórdão do STJ de 14 de Junho de 2000, CJ 2000, tomo II, p. 211: a fuga do agente apenas para não ser apanhado não pode ser um indicador de desistência voluntária da tentativa de cometer o crime, com a respectiva revogação da resolução criminosa. • Acórdão do STJ de 12 de Março de 1997, BMJ-465-308: violação; tentativa e desistência; arguido que desiste voluntariamente de copular com a ofendida. • Acórdão do STJ de 26 de Março de 1998 Processo n.º 1511/97: a desistência só é relevante quando a voluntariedade da mesma pressupõe a possibilidade de eleição entre duas condutas. Essa possibilidade falta não só quando uma delas é impossível, como no caso de abandono da empresa criminosa pela resistência da vítima e ainda quando a conduta diversa apresenta desvantagens ou 298 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. riscos tais que não podem esperar-se de uma pessoa razoável. Assim, a desistência é relevante, quando o arguido, ainda que não se saibam os verdadeiros motivos subjectivos, retrocede no seu plano criminoso, podendo livremente optar por prosseguir na sua execução em vez de retroceder. • Acórdão do STJ de 28 de Fevereiro de 1996, CJ, ano IV (1996), tomo 1, p. 219: é relevante a desistência quando o arguido entra numa residência mas, por não encontrar bens do tipo dos que particularmente lhe interessavam, renuncia à consumação do crime projectado e sai dali pela porta principal; ganha então autonomia a introdução em casa alheia, que anteriormente tinha servido apenas para qualificar o crime de furto. • Acórdão do STJ de 28 de Setembro de 1995, BMJ-449-90: "arrependido" membro de "organizações terroristas". • Acórdão do STJ de 29 de Outubro de 1998, proc. nº 670/98: o conceito de desistência (da tentativa) - art.º 24, do CP, seja necessário ou não um arrependimento efectivo, terá sempre de passar pela exteriorização (e comprovação) de uma atitude voluntária de sustação do desenvolvimento do iter criminis, inequivocamente divisada. Os limites da voluntariedade aferem-se precisamente pela própria essência do conceito: estarem ainda no poder volitivo do agente a não produção definitiva do evento e o não preenchimento total da tipicidade constitutiva do ilícito. • Acórdão do STJ de 29 de Outubro de 1998, proc. nº 852/98: na desistência da tentativa, não basta que o arguido deixe materialmente de prosseguir na execução do crime, por razões de estratégia dada a dificuldade ou impossibilidade de prosseguir ou até de receio de intervenção de terceiros. Tem de haver uma decisão voluntária, uma atitude interior, espontânea, de revogar a decisão anteriormente formada de cometer o crime, por motivos próprios, assumidos, de reconsideração e não por meras razões de estratégia. • Acórdão do STJ de 4 de Janeiro de 1996, CJ, ano IV (1996), p. 161: a desistência colaborante, da tentativa, com relevo para a exclusão do procedimento criminal contra o desistente (artigo 25º do Código Penal), por força da sua natureza pessoal não comunica os seus efeitos aos co-agentes da infracção e pode exigir, para se verificar, por parte do desistente, a prática de actos de prosseguimento da execução do crime, em colaboração com os não desistentes, mas neste caso sempre em conjugação de esforços com as autoridades policiais e, eventualmente, com os ofendidos. • Acórdão do STJ de 6 de Maio de 1998, CJ, ano IV (1998), tomo II, p. 195: para que a desistência seja relevante quando haja participação não basta que, após 2 dos participantes terem partido o vidro da porta do estabelecimento a assaltar, o 3º comparticipante decide não entrar nesse mesmo estabelecimento. • Actas das sessões da Comissão revisora do Código Penal, parte geral, vol. 1 e 2, AAFDL, p. 184 e ss. • Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral I, 4ª ed., 1992. • Faria Costa, Formas do Crime, in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983, p. 152 e ss. • Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A relevância da desistência em situações de comparticipação, 1992. 299 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Desistência de um comparticipante e imputação do facto cometido. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 1995, RPCC 7 (1997), p. 301 e ss. • Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Justificação, não punibilidade e dispensa de pena na revisão do Código Penal, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, FDUL, 1998, p. 55, nota 7. • Hans Kudlich, Grundfälle zum Rücktritt vom Versuch, JuS 1999, p. 240; p. 349. • Jorge de Almeida Fonseca, Crimes de empreendimento e tentativa, Coimbra, 1986. • Jorge de Figueiredo Dias, As “Associações Criminosas” no Código Penal Português de 1982 (Arts. 287º e 288º), separata da RLJ, nºs 3751 a 3760. • Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, sumários e notas, Coimbra, 1976. • Jorge de Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, RPCC, 1 (1991), p. 9 e ss. • Jorge Ribeiro de Faria, Sobre a desistência da tentativa, separata do vol. LVII do BFD (1981), Coimbra, 1982. • Júlio Gomes, A desistência da tentativa, 1993. • Küpper, Strafrecht, BT 1, 1996. • M. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 8ª ed., 1995. • Margarita Martínez Escamilla, Dos cuestiones básicas del desistimiento en Derecho Penal, in Política criminal y nuevo Derecho Penal, Libro Homenaje a Claus Roxin, 1997, p. 331. • Teresa P. Beleza, Direito Penal II, 1983, p. 396 e ss. • Udo Ebert, Strafrecht, AT, 2ª ed., 1993. 300 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 4ª Secção. Negligência. § 18 A negligência. I. Dolo e negligência. Crimes negligentes. A negligência como ilícito punível. CASO nº 29 A, guarda da linha, abre as cancelas logo após a passagem de um comboio. B, mal o caminho fica livre, inicia a travessia da dupla via férrea, ao volante do seu automóvel, onde viajavam outras três pessoas, mas o carro vem a ser aí embatido por um outro comboio, que surge em sentido contrário ao do primeiro. B morreu e com ele dois dos passageiros. O outro ficou gravemente ferido. Considere as seguintes variantes: a) A tinha-se levantado nesse dia descontente com a vida e "disposto a fazer sangue". Não lhe repugnava, até, que o seu nome viesse nas primeiras páginas dos jornais. Quando abriu as cancelas sabia muito bem que o segundo comboio estava prestes a passar pelo local e previu que o carro de B, que se aproximava, seria arrastado e esmagado pela composição. b) A segunda composição era especial, destinada a transportar os adeptos dum clube nortenho que ia jogar à Capital. A não fora informado da passagem deste segundo comboio nem lhe era possível saber que esse comboio iria passar. c) A fora informado da passagem do segundo comboio, mas esqueceu-se e foi por se ter esquecido que abriu as cancelas nas circunstâncias referidas. 301 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. d) A fora informado da passagem do segundo comboio, mas esqueceu-se. Foi por esquecimento que abriu as cancelas nas circunstâncias referidas. Encontrava-se na altura em estado de extrema fadiga por causa do trabalho a que vinha sendo submetido desde há dias. Com efeito, quem fazia os outros turnos, inclusivamente os turnos da noite, não comparecera ao serviço, e A não pregara olho. A chegou, inclusivamente, e por mais de uma vez, a protestar com veemência junto dos seus superiores, mas ninguém ligou. 1. “Age com negligência...”: é assim que se exprime o artigo 15º do Código Penal. Mas só é punível o facto praticado com negligência nos casos especiais previstos na lei: artigo 13º (princípio da excepcionalidade da punição das condutas negligentes, numerus clausus). Se alguém está acusado de homicídio do artigo 131º e não se comprova a correspondente actuação dolosa, pode ainda pôr-se a questão da sua punição nos termos do artigo 137º, desde que se conclua que o agente matou outra pessoa, já não com dolo, mas por negligência. Além deste preceito, e de outros, não muitos, prevê-se no Código Penal a punição da ofensa à integridade física por negligência (artigo 148º) e a condução, pelo menos por negligência, de veículo com uma TAS (taxa de álcool no sangue) igual ou superior a 1,2 g/l (artigo 292º). O Código conhece combinações dolo/negligência. Por ex., o artigo 272º (incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas) segue o esquema subjectivo adoptado em grande parte dos crimes de perigo comum: no nº 1 — acção dolosa e criação de perigo doloso; no nº 2 — acção dolosa e criação de perigo negligente; no nº 3 — acção negligente e criação de perigo negligente. Há também os crimes preterintencionais em que o agente actua como dolo relativamente ao tipo fundamental, com a ocorrência de um resultado que se imputa a título de negligência (ex., artigos 18º, 145º). Mas é em vão que se procura um dos vários crimes sexuais ou de falsificação documental com esse desenho típico, pois todos têm expressão dolosa. Por outro lado, em caso de erro sobre as circunstâncias do facto (artigo 16º) fica ressalvada a punibilidade por negligência, mas esta só ocorre se uma norma a prevê nos termos gerais, o que significa a necessidade de comprovação de todos os elementos de um determinado tipo de ilícito negligente. Não existe em direito penal o crimen culpae, um tipo geral de crime negligente que declare ilícita e puna qualquer violação do dever de cuidado. Existem crimes negligentes 302 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. concretos, crimina culposa, por ex., o homicídio negligente, os diversos crimes contra a integridade física por negligência, a receptação por negligência (artigo 231º, nº 2), etc. Enquanto crimes negligentes de lesão e de pôr em perigo como que acompanham a missão dos correspondentes tipos dolosos. Só uma parte, pequena, dos crimes dolosos é que tem um correspondente ilícito negligente, por ex., a ofensa à integridade física ou os crimes contra a vida tanto se prevêem e punem na forma dolosa como na negligente. Não acontece assim com o dano ou com o furto, que só têm expressão dolosa. No Código podemos encontrar crimes negligentes de resultado e crimes negligentes de mera actividade. Nestes, a lei limita-se a descrever a conduta que o agente realiza. Um crime de simples actividade negligente é — já o vimos — o do artigo 292º, na parte em que pune a condução, pelo menos por negligência, de veículo com uma TAS igual ou superior a 1,2 g/l. 2. Até há relativamente pouco tempo, os crimes negligentes tinham uma importância limitada. Historicamente, foram sendo tratados como uma raridade, só saíram da sombra em que se encontravam com a progressiva industrialização e o aumento significativo dos veículos em circulação: a dogmática teve de se render ao número crescente dos homicídios e das ofensas à integridade física por negligência no tráfego rodoviário. Na perspectiva clássica, a negligência recorta-se unicamente como problema de culpa. A teoria causal da acção limitava o conteúdo do ilícito do facto negligente à “causação do resultado” socialmente nocivo. Passou posteriormente a distinguir-se, ainda no âmbito da culpa, entre dois elementos significativos: a inobservância do cuidado objectivamente necessário e o cuidado que o autor estava em condições de observar (Frank; Mezger). Hoje em dia domina a opinião de que o delito involuntário constitui um tipo especial da acção penal com estruturas autónomas no que respeita à tipicidade, à ilicitude e à culpa: a negligência não é uma simples "forma de culpa", mas um tipo especial de conduta punível que reúne elementos de ilicitude e de culpa (Jescheck, AT, p. 509). Em tempos passados, quando os autores construíam o ilícito na base da causalidade, esta era igual, tanto dava que o crime fosse doloso como negligente. O crime construía-se então sobre o desvalor do resultado. Como o desvalor da acção não tinha importância, o 303 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. resultado era exactamente o mesmo nos dois casos, não era possível graduá-lo nem estabelecer diferenças: o ilícito era estático e absoluto. A teoria causalista, por isso mesmo, não aprofundou o problema do ilícito dos crimes negligentes, pura e simplesmente, aplicou-lhes as regras dos crimes dolosos. Em Bustos Ramírez, p. 262 e ss., podem ler-se os pormenores da evolução posterior dos crimes negligentes. Não é contudo o desvalor do resultado que separa os crimes dolosos dos negligentes. Tanto o artigo 131º (homicídio) como o artigo 137º (homicídio por negligência) começam pela expressão "quem matar outra pessoa": o resultado é o mesmo num caso como no outro. O que separa os dois ilícitos é o desvalor da acção: o agente actua intencionalmente ou prevê a realização típica como consequência necessária da sua conduta ou conforma-se com essa realização (artigo 14º) — a menos que se trate de um simples erro de conduta (artigo 15º). II. Noção e formas da negligência O artigo 15º formula, ainda, um juízo de dois graus, na medida em que se dirige a quem não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz. Aparentemente, o nosso Código Penal favorece a consideração de um dever de cuidado objectivo (ainda que concretizado), situado ao nível da ilicitude, a par de um dever subjectivo, situado ao nível da culpa, ao referir o cuidado a que o agente "está obrigado " e de que é "capaz" — em ambos os casos, "segundo as circunstâncias" — cfr. o artigo 15º. Rui Pereira, RPCC 1 (1991), p. 67. Deste modo, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, não chega sequer a representar a possibilidade da realização típica (negligência inconsciente). Age ainda negligentemente quem, de forma ilícita e censurável, representa como possível a realização típica mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente). Na negligência consciente (luxuria) o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com essa realização —o agente previu a possibilidade do resultado, por exemplo, um acidente, e apesar disso actua, ou 304 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. deixa de tomar as medidas recomendadas na situação concreta. Na negligência inconsciente (negligentia) o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto —o agente nem sequer pensou nas consequências, embora pudesse tê-lo feito e devesse tê-las previsto. A fórmula da "conformação" é o elemento diferenciador do dolo eventual com a negligência consciente. Entre nós, a definição tanto do dolo eventual como da negligência consciente encontra-se normativamente condicionada. Num caso como no outro, o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime: compare-se a formulação dos artigos 14º, nº 3, e 15º, alínea a): "...representada como consequência possível...", "representar como possível...". A diferença está em que, neste último, o agente actua sem se conformar com a realização fáctica. Às vezes, a lei prevê uma punição mais gravosa para a negligência grosseira. Cf., o nº 2 do artigo 137º, o nº 3 do artigo 156º e o artigo 351º. E usa a expressão "grave incúria ou imprudência […], grave negligência”. Cf. o artigo 228º, nº 1, alínea a) (insolvência negligente). No crime de receptação, a expressão "faz razoavelmente suspeitar", usada no artigo 231º, nº 2, aproxima-se da figura da negligência grosseira, "compreendida como fundada num especial grau de previsibilidade do agente" (Rui Carlos Pereira, O dolo de perigo, p. 111). A doutrina moderna parece negar importância prática à distinção entre negligência consciente e inconsciente, e o legislador também lha não atribui, só lhe interessa separar a negligência consciente do dolo eventual. As duas formas de negligência recebem tratamento idêntico, estão estruturalmente equiparadas, relevando em qualquer delas a violação do dever de cuidado, que na negligência inconsciente se refere ao não reconhecimento do perigo e na consciente a uma sua falsa valoração. Outra é a questão do "peso" com que cada uma delas contribui para a determinação concreta da pena, não faltando quem sustente que é na negligência inconsciente que reside a maior falta de respeito pelo outro. 305 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. III. Natureza e elementos do crime negligente. Os crimes negligentes de resultado. 1. Nem o exacto conteúdo da noção de negligência nem a sua integração na teoria do crime se encontram já suficientemente esclarecidos — muitas vezes são, até, amplamente discutidos, existindo um número considerável de modelos e de noções sistemáticas. (Cf. Lackner, p. 119). Kühl observa que, no respeitante à construção do crime negligente, nos vemos infelizmente confrontados com uma “multiplicidade de modelos em número dificilmente abarcável”. Continua a ser discutida a ordenação sistemática tanto da “violação do dever objectivo de cuidado” como do “conhecimento de realização típica” com que alguns a substituem ou que lhe dão como acrescento. Contudo, acabou por se impor um modelo que inclui esta característica no tipo de ilícito da negligência. Para fins didácticos, costuma-se alinhá-la logo à cabeça (depois da tipicidade, examina-se a ilicitude e a culpa). Sobre o crime negligente, entre as exposições mais conhecidas entre nós, para além dos autores nacionais (por ex., Jorge de Figueiredo Dias, Velhos e novos problemas da doutrina da negligência, in Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001), encontram-se as de Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts: AT, 4ª ed., 1988, de que há tradução espanhola; Johannes Wessels, Strafrecht, AT-1, 17ª ed., 1993 (com uma 32ª edição em 2002), de que há traduções para o português (Brasil) e para o espanhol a partir de edições muito anteriores; e Mir Puig, Derecho Penal, Parte general, Barcelona, com diversas edições. Cf., ainda, sempre com proveito, F. Muñoz Conde, Derecho Penal, Parte general, igualmente com diversas edições. Para a opinião dominante, a negligência é uma forma de conduta que reúne elementos de ilícito e de culpa. Nos crimes negligentes atendemos, no plano do ilícito típico, à violação do cuidado objectivo e à previsibilidade objectiva da realização típica — nos crimes negligentes de resultado não basta a simples causação do evento típico, por ex., a morte de uma pessoa; no plano da culpa, atendemos ao dever subjectivo de cuidado e à previsibilidade individual da realização típica. Nos crimes negligentes de actividade o tipo de ilícito esgota-se na realização da conduta típica descrita na norma e na não observância do necessário cuidado objectivo — e uma vez que nestes crimes se não prevê um resultado, não há lugar à indagação da causalidade nem à análise da 306 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. previsibilidade objectiva e subjectiva do resultado, de que se não prescinde quando tal resultado é elemento do tipo. Desvalor de acção e desvalor de resultado. Dissemos que o tipo de ilícito negligente supõe, no plano do desvalor da acção, a violação do dever objectivo de cuidado (=violação do cuidado objectivamente devido) e a previsibilidade objectiva da realização típica. Trata-se de dois elementos internamente ligados e que não devem ser apreciados isoladamente. Os dois pressupostos típicos não se encontram propriamente um ao lado do outro, estão antes tão “intimamente ligados” que “não podem ser apreciados isoladamente” (cf. Kühl). Wessels exprime assim esta articulação: “falta de atenção exigida pelo tráfico (= violação do dever de cuidado) como pressuposto objectivo do resultado típico”. Alguns autores contestam a necessidade da violação do dever de cuidado; outros, como Roxin, consideram-no irrelevante, por não trazer nada de novo relativamente aos critérios gerais de imputação objectiva (em que é por completo absorvido), na medida em que só haverá negligência se o agente criar um risco não permitido (AT, p. 892 e ss.). Além da violação do dever de cuidado e da previsibilidade objectiva, concorre o resultado como elemento dos crimes negligentes de resultado. Quem conduz um automóvel e, por seguir distraído, não pára num sinal vermelho, age com manifesta falta de cuidado, mas se nada aconteceu, se o condutor não matou ninguém ou se nenhum peão ficou ferido, falta a concorrência dum evento típico — consequentemente, não preenche a conduta o crime do artigo 137º, nem o do 148º, quanto muito uma contra-ordenação estradal, ou o crime do artigo 291º, ou o do artigo 292º, este de mera actividade, se estiverem presentes os restantes pressupostos. Doutrina do duplo grau: tipo de ilícito e tipo de culpa específicos da negligência. Consequentemente — e de algum modo repetindo o que ainda agora se escreveu —, uma coisa é a negligência enquanto elemento típico que fundamenta a ilicitude, outra a negligência como elemento da culpa. O tipo de ilícito negligente supõe a violação do dever objectivo de cuidado e a previsibilidade objectiva da realização típica. Estando indiciada a ilicitude, pode, ainda assim, intervir uma causa de justificação. No âmbito da culpa deverá apurar-se se o autor, de acordo com a sua capacidade individual, estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado e de prever o resultado. 307 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2. Abordemos agora, com outro pormenor, todos esses elementos, começando pela conduta descuidada do agente. A violação do dever de cuidado (=violação do dever de diligência) determina-se por critérios objectivos, nomeadamente, pelas exigências postas a um homem avisado e prudente na situação concreta do agente. A extensão do dever de cuidado é referida ao homem médio do círculo social ou profissional do agente, i. e, do concreto círculo de responsabilidades em que o agente se move (por ex., como médico, como motorista de pesados, etc.). A medida do cuidado devido é portanto independente da capacidade de cada um (opinião maioritária). Certos autores entendem, contudo, que este critério generalizador é dispensável. Apontando para a objectivização da capacidade individual de actuação, incluem no tipo de ilícito imprudente a inobservância de um dever subjectivo de cuidado ( 28 ), que ocorreria sempre que o agente tivesse podido prever a possibilidade da produção do resultado: na determinação da concreta ilicitude da negligência não interviria assim o homem medianamente prudente, na medida em que a diligência ou a violação da diligência deverão comprovar-se a partir das capacidades individuais do agente. Para muitos, é difícil entender porque é que os mais capazes não têm que se empenhar, com toda a sua capacidade, para evitar a lesão de bens jurídicos. Adiante veremos melhor que a opinião maioritária se sente obrigada a fazer uma excepção ao seu critério generalizador do homem médio: não obstante a observância das exigências gerais de cuidado deve excepcionalmente afirmar-se a lesão do dever de diligência se o agente, a quem não faltam conhecimentos especiais ou capacidades especiais, não os empregou para evitar o resultado danoso. Funcionalizando-se o dever de cuidado, este teria o seu limite mínimo demarcado objectivamente, enquanto o limite máximo seria fixado de acordo com as capacidades do sujeito. 28 Para estas posições, o cuidado subjetivo deve ser entendido já como um problema de tipo, por isso, quando o autor não seja capaz de atender ao cuidado objectivo, não se poderá censurá-lo — e nem sequer agirá ilicitamente. Na verdade, ad impossibilia nemo tenetur. 308 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. b) O dever objectivo de diligência concretiza-se, em numerosos sectores da vida, através de regras de conduta (normas específicas, como as normas de trânsito —que são as mais frequentemente invocadas, em vista do desenvolvimento a que chegou a circulação automóvel—, regulamentos da construção civil, regras de conservação de edifícios, etc.) ou por regras de experiência, por ex., as leges artis de determinadas profissões ou grupos profissionais, como o dos médicos, engenheiros, etc. Cf., especialmente, Figueiredo Dias, Velhos e novos problemas, que, a propósito do que se passa com "as normas profissionais e análogas (nomeadamente as de carácter técnico, as chamadas leges artis)" alude à actividade de "médicos, dentistas, enfermeiros, engenheiros, arquitectos, caçadores, desportistas, guardas prisionais, soldados, hoteleiros ou outras pessoas ligadas a qualquer nível, à cadeia alimentar". O médico, quando leva a efeito uma diligência da sua especialidade, em especial uma operação, deve agir de forma a evitar danos, procedendo como mandam as regras e a experiência da arte médica. Trata-se de “normas de trabalho”, expressas ou não, criadas por associações de interesse privado, nomeadamente, em áreas técnicas, que são o resultado da experiência e da prática de prevenir e de lidar com o perigo e que por isso estabelecem claramente os limites do risco permitido. O que em abstracto é perigoso poderá não o ser em concreto (Roxin). Todos esses preceitos e regras fornecem indicações para a determinação da medida de cuidado — a sua violação indicia, em medida elevada, uma falta de cuidado. Contudo, trata-se unicamente de indícios. Se numa emergência, para evitar atropelar uma criança que surge na via de forma inopinada, o automobilista invade a faixa esquerda, violando a norma que o manda circular pela direita, e vem a embater numa pessoa que na paragem aguarda o autocarro, causando-lhe ferimentos, compreende-se que esta violação é necessária para preservar o bem jurídico da vida da criança — não será essa circunstância que fundamenta uma conduta ilícita. Para evitar uma colisão, o condutor de um dos veículos pode — e deve — imprimir à sua viatura uma velocidade bem acima dos limites permitidos se essa for a forma de evitar embater no carro que vem em sentido contrário. Mas a observância de tais regras não exclui necessariamente a negligência. Numa central nuclear, o director, um perito altamente qualificado, apercebe-se em determinado momento duma estranha avaria no reactor e conclui imediatamente que, se cumprir o que está administrativamente determinado, poderá produzir-se uma fuga radioactiva de proporções catastróficas. As consequências poderão, todavia, minimizar-se se se contrariarem os regulamentos. Neste caso, o que se exige ao perito é 309 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que infrinja a norma, mesmo que, assim, se vá criar um outro risco. Ponto é que este seja menor e se evite a fuga radioactiva. Não haveria então um desvalor objectivo da acção, sendo o risco criado um risco permitido. Consequentemente, não poderíamos apontar ao perito a violação dum dever de cuidado. Pense- se, aliás, na susceptibilidade de reconduzir os factos a uma situação de necessidade e a um conflito entre dois males desiguais que pode chegar a impor a infracção da norma especial para evitar o mal maior. O estado de necessidade seria, in casu, de molde a excluir o desvalor objectivo da acção, ainda que subsistindo um desvalor de resultado. Cf. Teresa R. Montañes, p. 202. c) O Direito impõe a todos o dever de evitar a lesão de terceiros: é o dever geral de cuidado, de forma que, quando falamos das características típicas dos crimes negligentes e trabalhamos metodicamente, devemos indagar quais são os comportamentos que a ordem jurídica exige numa determinada situação — só assim poderemos medir a conduta do agente (Kühl), saber se ela corresponde à do homem homem avisado e prudente na situação concreta do agente. A medida do cuidado exigível coincidirá com o que for necessário para evitar a produção do resultado típico (Jescheck). Nas modernas sociedades industrializadas torna-se impossível proibir toda e qualquer acção que implique um perigo de lesão de bens jurídicos. No entanto, na prática torna-se igualmente impossível sistematizar cada um dos deveres de cuidado, tão diferentes são entre si. Mas o dever de cuidado radica, desde logo, na abstenção de qualquer acção idónea ao preenchimento do tipo de delito imprudente — cuidado como omissão de acções perigosas: "Sorgfalt als Unterlassung gefährlicher Handlungen". O autor deve buscar a tempo os conhecimentos, experiências e faculdades sem os quais a realização da acção seria irresponsável por causa do risco que lhe está associado. Quem pretender conduzir um camião deverá frequentar o número de aulas suficiente para obter a respectiva licença (Jescheck, p. 523 e s.). Também Roxin, p. 902, entende que onde não existem modelos de comportamento formulados para áreas especializadas devem servir duas regras gerais de orientação: quem pretender levar a cabo uma certa conduta cujo risco não está em condições de avaliar, deverá informar-se; se não se puder informar ou esclarecer deverá abster-se de agir. Cf., agora, Figueiredo Dias, Velhos e novos problemas, com dois exemplos, sem dúvida actuais: o da eventual responsabilização das instâncias decisoras, do procedimento de co-incineração, "se previamente se não tiverem esgotado todas as possibilidades oferecidas pelo conhecimento científico actual de determinação dos perigos para bens jurídicos individuais e colectivos" — e a utilização na guerra de munições com urânio empobrecido. Em muitos domínios, a afirmação de que 310 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a negligência começa quando se ultrapassam os limites do risco permitido, é uma ideia perfeitamente apreensível. Consideremos a condução automóvel, que, como outras actividades próprias das sociedades modernas —e como tal imprescindíveis— comportam riscos que, em certas ocasiões, nem mesmo com o maior cuidado se podem evitar. Põe-se em relação a tais actividades a questão da sua necessidade social ou da sua utilidade social e, por isso mesmo, o Direito aceita-as, não as proíbe, não obstante os perigos que lhes estão associados. As condutas realizadas ao abrigo do risco permitido não são negligentes, não chegam a preencher o tipo de ilícito negligente. Se o agente não criou ou incrementou qualquer perigo juridicamente relevante não existe sequer a violação de um dever de cuidado. A negligência exclui-se se o agente se contém nos limites do risco permitido, se num atropelamento não criou nem potenciou um risco para a vida ou para a integridade física da vítima. Não actua de forma negligente quem se mantém nos limites dum risco permitido. As actividades perigosas autorizadas pela ordem jurídica (transportes ferroviários, marítimos e aéreos, actividades mineira e industrial, etc.) e as que são permitidas no tráfego rodoviário a quem está habilitado não constituem qualquer causa de justificação para o homicídio, as lesões corporais, os danos, etc., que ocorram no âmbito de actividades perigosas, pois isso não necessita qualquer justificação, na medida em que a acção causadora do resultado — que assim não representa uma lesão do dever de cuidado nem tão pouco a realização dolosa de um tipo de ilícito — não ultrapasse o âmbito do risco permitido. Deste modo, actua negligentemente quem causa um resultado típico através de uma acção que aumenta o risco acima da medida permitida (aumento do risco da produção do resultado), como conduzir em velocidade desmedida, fazer uso de pneus gastos, pôr a navegar um navio incapaz, etc. (Cf. Wessels; T. R. Montañes; Bockelmann / Volk). O problema material é já antigo; embora em 1861 se dissesse que o caminho de ferro era um empreendimento antijurídico, isso só tinha a ver com os pressupostos da responsabilidade civil. Mas já muito antes da "época da técnica" não só a construção civil, as pedreiras, as minas, a navegação, etc., eram "actividades perigosas", como também havia cavalos que tomavam o freio nos dentes, crianças que caíam nos poços, combustões que causavam danos, em resumo, também certas coisas do uso diário eram perigosas. Para poder chegar à formulação do risco permitido foi preciso, por um lado, que se produzisse um aumento quantitativo dum novo tipo de perigos, que se tornou evidente especialmente no âmbito do tráfego ferroviário e rodoviário, e, por outro, que se soubesse até que ponto era possível dominar, com um comportamento cuidadoso, o âmbito do risco nas actividades perigosas que se iam ampliando — e mesmo saber até que ponto é que isso só se poderia obter renunciando ao "progresso". G. Jakobs, El delito imprudente, p. 173. d) O princípio da confiança: ninguém terá em princípio de responder por faltas de cuidado de outrem. Uma limitação (“sensata”: Wessels) das exigências de cuidado deriva 311 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. do princípio da confiança. Provindo o perigo da actuação de outras pessoas, não precisará o agente de entrar em conta com tal risco, "uma vez que as outras pessoas são (ou devem supor-se), elas próprias, seres responsáveis. Por outras palavras, ninguém terá em princípio de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem" (Figueiredo Dias, Direito penal, sumários e notas, Coimbra, 1976, p. 73). Se o condutor que goza de prioridade fosse obrigado a parar por via de uma possível transgressão do condutor obrigado a deter-se, então o direito de prioridade seria progressivamente desvalorizado e nunca mais seria possível um tráfego fluído. É uma conclusão inteiramente de acordo com o pensamento do risco permitido. Quem actua de acordo com as normas de trânsito pode pois contar com idêntico comportamento por banda dos demais utentes. Mas não se pode prevalecer do princípio da confiança quem não se conduz de acordo com as normas. O princípio também não é aplicável nos casos em que reconhecidamente se não justifica a confiança num comportamento regular de outrem. Exs: condutas inábeis de pessoas muito idosas ou de crianças; de peões manifestamente desorientados; situações de trânsito especialmente perigosas e complicadas; sempre que outro utente da via deixe entender, pelo seu comportamento, que não está a cumprir as regras de trânsito: se um condutor repara que outro não observa a prioridade deve também ele deter-se e não deve prosseguir, confiando no seu “direito” (cf. Roxin, com mais dados). O princípio da confiança não vale apenas para o trânsito rodoviário, mas em todos os casos em que muitos são "responsáveis" por um perigo" — trabalho de equipa (cf. Jakobs, El delito imprudente, p. 176). Define-se a diligência de cada um e o risco permitido mediante a compartimentação do círculo de responsabilidades (conf., por ex., para a colaboração em operações, experiências científicas, acções de salvamento e semelhantes). O BGH reconheceu que, numa operação, os médicos que nela participam podem, em princípio, confiar numa colaboração isenta de erros dos colegas das outras especialidades. Se não confiássemos nos outros não só seria impossível repartir tarefas como teríamos que omitir as condutas susceptíveis de serem influenciadas por uma conduta alheia. O princípio da desconfiança. Quem se comporta de maneira não cuidadosa confia na desconfiança dos outros? Quem entra numa via rápida com muito trânsito confia em que os condutores que vêm atrás travem? De acordo com jurisprudência constante, trata-se de uma confiança que não o deve ser, i. é, que não está permitida. Jakobs, El delito imprudente, p. 177. 312 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Dever de diligência e princípio da confiança no âmbito da circulação rodoviária. As pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou comodidade dos utentes das vias: artigo 3º, nº 2, do Código da Estrada. As relações do princípio da confiança com as regras de cuidado no âmbito da circulação rodoviária analisam-se numa série quase infindável de decisões judiciais, cujos principais exemplos se podem ver coligidos no lúcido comentário de Paula Ribeiro de Faria, no Conimbricense, PE, tomo I, p. 264 e s. (cf., ainda, K. Lackner, p. 122; Krümpelmann, Lackner-FS, p. 289; Cramer, S/S, p. 211 a 215). No mesmo local podem consultar-se outras indicações úteis relativamente à construção de edifícios ou outras obras e às lesões da integridade física (as quais justificam o comentário) que nesse âmbito possam vir a ser causadas a terceiros; bem como a aplicação do artigo 148º do Código Penal no âmbito da actividade médica. Cf., ainda, Kienapfel, p. 50, com extenso apontamento sobre normas de cuidado dirigidas à protecção da vida e da integridade física em diversos domínios, como o tráfego rodoviário; a indústria, o comércio e actividades similares; a protecção de trabalhadores; os tratamentos médicos; a vigilância de crianças; as actividades venatórias; as deslocações por água; o caso dos elevadores; as competições desportivas; o manejo de armas; etc. São hoje em número quase inabarcável as decisões sobre a velocidade em geral prescrita na circulação automóvel, particularizando-se casos de condução com mau tempo, em situações de invernia, ou com deficiente visibilidade; de acidentes por falta de segurança do próprio veículo; ou em cruzamentos de pouca visibilidade; de condução em estado de cansaço ou fadiga ou de condutor com pouca experiência; de encandeamento por outro veículo que circula em sentido contrário; de golpe de direcção na sequência da introdução de um insecto na cabine, etc. Também para Kienapfel aparece o princípio da confiança, bem como a questão do tempo de reacção, com especial significado no que toca à limitação dos deveres objectivos de cuidado na circulação rodoviária. e) Culpa na assunção. Ainda o cuidado como cumprimento do dever de informação e preparação prévia. Se alguém empreender uma tarefa para a qual não possui os necessários conhecimentos ou capacidades pode daí derivar uma falta de cuidado. Chama-se-lhe culpa na assunção ou culpa por excesso e representa um caso especial do dever de omissão. O dever de cuidado exige que para dominar a acção se possuam os necessários conhecimentos e capacidades. Por isso, actua de forma incorrecta o médico que inicia e prossegue um tratamento para que lhe falta a necessária especialização. Ao médico competia abster-se de tal tratamento, ou então impunha-se-lhe que adquirisse os necessários conhecimentos ou que solicitasse a assistência de um colega especializado. Viola o dever de cuidado quem conduzindo em estado de extremo cansaço atropela um peão, já que nesse estado não pode reagir com a suficiente rapidez. Também aqui o conteúdo do dever de cuidado consiste, antes de mais, em reconhecer os perigos que surgem da conduta concreta para o bem jurídico protegido e adoptar a atitude correcta correspondente, ou seja, realizar a acção perigosa somente com as suficientes precauções de segurança ou omiti-la completamente (Wessels, p. 196). Por isso actua objectivamente de forma contrária ao dever quem empreende uma actividade que, por falta de experiência, não é capaz de levar a cabo. 313 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Afirmamos a previsibilidade objectiva do resultado quando, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer, o resultado produzido pela acção é consequência idónea (adequada) da conduta do agente. i) Consequências imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara serão juridicamente irrelevantes (Figueiredo Dias, Sumários, p. 156). ii) Objectivamente previsível tem que ser, não só o próprio resultado, como igualmente o processo causal, ainda que apenas nos seus traços essenciais. A relação de causalidade é um elemento do tipo, como o são a acção e o resultado. Consequentemente, a previsibilidade do agente deve estender-se também ao nexo causal entre a acção do agente e o resultado. Deve contudo reparar-se que normalmente só um especialista poderá dominar inteiramente o processo causal — na maior parte dos casos, o devir causal só será previsível de forma imperfeita. De modo que o jurista aceita a ideia da representação da relação causal por parte do agente em traços largos, nas suas linhas gerais, essenciais. A é atropelado e fica tão ferido que não restam quaisquer esperanças de o salvar. Ainda assim, é conduzido ao hospital, mas no trajecto e ambulância despista-se e A morre, não dos ferimentos produzidos no atropelamento mas por causa do despiste da ambulância. O autor do atropelamento não poderá ser responsabilizado pela autoria negligente do homicídio de A, nos termos do artigo 137º, nº 1, mas só pelas ofensas corporais (artigo 148º, nº 1) produzidas. No plano objectivo, o nexo de imputação entre acção e resultado vale tanto para os crimes dolosos como para os negligentes. Há fundamentalmente dois caminhos para responder à questão da conexão entre acção e resultado: causalidade e imputação. Ao falarmos de causalidade estamos a pensar na acção (causa) que provoca um determinado evento ou resultado (efeito). Quando falamos de imputação partimos do resultado para a acção. O primeiro caminho corresponde à doutrina clássica. O segundo caminho busca resolver insuficiências dos pontos de vista tradicionais. a) A teoria da adequação parte da teoria da equivalência das condições, na medida em que pressupõe uma condição do resultado que não se possa eliminar mentalmente, mas só a considera causal se for adequada para produzir o resultado segundo a experiência geral. Não está em causa unicamente a conexão naturalística entre acção e resultado, mas também uma valoração jurídica. Excluem-se, consequentemente, os processos causais atípicos que só produzem o resultado típico devido a um encadeamento extraordinário e improvável de circunstâncias. Deste modo, não haverá realização causal (adequada) se a 314 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. produção do resultado depender de um curso causal anormal e atípico, ou seja, se depender de uma série completamente inusitada e improvável de circunstâncias com as quais, segundo a experiência da vida diária, não se poderia contar. b) Podemos, aliás, recorrer a outros critérios de imputação objectiva, associados à teoria do risco. Por ex., excluindo a imputação nos processos causais atípicos, que fogem inteiramente às regras da experiência, com os quais se não pode razoavelmente contar empregando um juízo de adequação. Se A ao conduzir o seu automóvel toca ligeiramente em B, produzindo-lhe pouco mais do que um arranhão e este vem a morrer por ser hemofílico, não lhe poderá ser imputada a morte mas só ofensas corporais por negligência — faltará o nexo de risco. Pressupõe-se, por outro lado, uma determinada conexão de ilicitude: não basta para a imputação de um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou (cf. Lackner; Wessels, p. 199; Curado Neves, p. 197). Com efeito, "as acções negligentes de resultado pressupõem uma estrutura limitadora da responsabilidade que se perfila de forma dúplice: de um lado, a violação de um dever objectivo de cuidado (...), valorado também pelo critério individual e geral, e de outro, a exigência de um especial nexo, no "sentido de uma conexão de condições entre a violação do dever e o resultado". Prof. Faria Costa, O Perigo, p. 487. Os autores, citando Exner, acentuam que a soma de uma conduta descuidada com um resultado causado por esta não pode bastar para fundar a responsabilidade por um crime negligente, sendo necessário que o perigo criado pelo agente com a sua conduta típica se concretize no resultado para que este possa ser imputado àquela. Faltará o nexo de ilicitude ou conexão de violação de cuidado (Pflicht-Rechtswidrigkeitszusammenhang) se o resultado se teria igualmente verificado observando o agente o cuidado devido. Dizendo doutro modo: o resultado só é objectivamente imputável ao agente se assentar na respectiva acção e no nexo de ilicitude. Falta este no caso em que o resultado se teria produzido também se o agente tivesse respeitado o cuidado a que estava obrigado. T, condutor de um camião, ultrapassa O, ciclista embriagado, guardando apenas a distância de 75 cms. O dá uma guinada para a esquerda, devido a uma inesperada reacção provocada pelo álcool, cai e é atropelado pelas rodas traseiras da viatura. Se o condutor tivesse observado a distância regulamentar (1m, 1,5m) o acidente mortal teria comprovadamente ocorrido e com ele o 315 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. resultado mortal. Se se puder suprimir mentalmente, não a acção de T (ultrapassagem), mas a contraditoriedade ao dever dessa acção (ultrapassar a curta distância) sem que o resultado desapareça com a necessária segurança, então não falta a causalidade mas a conexão de ilicitude. A actuação de T não é punível (cf., nomeadamente, Curado Neves). Consequentemente, nos crimes negligentes de resultado, como o homicídio (artigo 137º) ou as ofensas à integridade física (artigo 148º), a causação do resultado e a violação do dever de cuidado, só por si, não preenchem o correspondente ilícito típico. Para além da causalidade da conduta, o resultado tem que ser "obra" do sujeito, tem que lhe ser objectivamente imputável. Se A, por atropelamento, sofreu pouco mais do que uns arranhões, pode vir a morrer no despiste da ambulância que o transporta ao hospital. Se a vítima partiu uma perna pode vir a morrer de embolia entretanto sobrevinda como complicação. Devemos responsabilizar o condutor do carro pela morte do atropelado, como "obra" sua? E se a vítima vem a morrer por, ela própria, se ter recusado a fazer o tratamento adequado? A chocou violentamente com o carro de B quando procurava chegar a horas ao aeroporto. Sofreu lesões na cabeça, mas apesar das dores violentas e do conselho dos médicos, não desistiu da viagem e veio a morrer no avião. Se tivesse sido operado a tempo, havia todas as probabilidades de ser salvo. A responsabilidade penal do outro condutor não se pode estender à morte de A, mas não se exclui a eventualidade de o condenar por ofensas à integridade física negligentes. Como se vê, à causalidade acresce a necessidade da imputação objectiva do evento. Ao lado dum risco básico permitido, que não pode ser excluído mesmo quando concorram condições ideais, existe a permissão de correr riscos incrementados (trajectos com nevoeiro, partes de estradas com gelo, deslocações em horas de ponta) sempre que a realização da actividade sob as condições que incrementam o risco se considere mais útil do que a sua proibição absoluta. Torna-se por isso impossível indicar o risco permitido fazendo uso duma percentagem. (...) A medida mínima do risco quotidiano converte-se numa ampliação da liberdade de actuar: quem conduz com pneus gastos a uma velocidade de apenas 10 quilómetros por hora, ou quem não respeita às duas da manhã a velocidade de 30 quilómetros por hora estabelecida à porta da universidade actua de modo não permitido, mas não supera o risco mínimo permitido no tráfico rodoviário. G. Jakobs, El delito imprudente, p. 174. Uma vez por outra, em dia de forte tempestade e de ventania desusada, a polícia corta o trânsito na ponte da Arrábida, impedindo que se corram riscos mais do que incrementados. A mais do que se disse, não serão imputáveis resultados que não caiam na esfera de protecção da norma de cuidado violada pelo agente: o ladrão que ao praticar o furto dá 316 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. lugar à perseguição pelo guarda, que vem a morrer atropelado, não infringe um dever de cuidado e não é responsável por essa morte. Outro exemplo: O condutor T segue a alta velocidade e atropela o menor M que atravessa de modo imprevisto. T causa a morte de M no exercício da condução, todavia, mesmo à velocidade regulamentar, o acidente não teria sido evitado: pode invocar-se aqui um comportamento lícito alternativo. Se concluirmos que o comportamento lícito alternativo teria igualmente produzido o resultado danoso, este não dever ser imputado ao agente. A doutrina dominante limita a imputação objectiva com o fim de protecção da norma (Gimbernat; Lackner, p. 124): não são imputáveis resultados que não caem na esfera de protecção da norma de cuidado violada pelo agente. Deste modo, mesmo que tenha violado um dever objectivo de cuidado, o agente não é responsável se a norma donde este cuidado deriva não tinha por finalidade evitar resultados como o produzido. Exemplo: A conduz junto de um hospital à velocidade de 50 quilómetros por hora, excessiva, por haver no local sinalização indicadora de hospital e da proibição de se circular a mais de 30. Se um peão, imprevistamente, sai por detrás de um automóvel estacionado e em correria se mete na frente do carro de A, não tendo este qualquer possibilidade de travar ou de se desviar, o condutor, na ausência de um nexo de protecção, não deve ser responsabilizado pelas ofensas corporais porventura sofridas pelo peão pelo simples facto de circular a 50, já que a velocidade indicada no sinal tinha por exclusiva função evitar ruídos exagerados que perturbassem os doentes e não a disciplina do trânsito. Outro exemplo, no domínio dos cuidados médicos: um doente tem que ser anestesiado para ser submetido a uma operação, mas o seu médico, antes disso, não trata de averiguar, recorrendo a especialistas, se ele suportará a anestesia. O médico não poderá ser responsabilizado por homicídio involuntário, caso o paciente não sobreviva à anestesia, se se chegar à conclusão que não havia nenhuma contra-indicação relativamente à anestesia mas simplesmente que a vida do doente teria sido prolongada com o adiamento da operação. A função do dever de cuidado que impõe ao médico que mande verificar em primeiro lugar a tolerância do doente à anestesia não é conseguir aquele prolongamento. Na verdade, "o âmbito de protecção e a finalidade prosseguidos pela norma devem prevalecer sobre o registo do seu rigoroso cumprimento" (Prof. Faria Costa, O Perigo, p. 499). Faltará um nexo de ilicitude se se concluir que o resultado produzido também não teria sido evitado conduzindo-se o sujeito de acordo com o direito, i. e., usando do necessário cuidado. De acordo com a fórmula do comportamento lícito alternativo, haverá que colocar a seguinte hipótese: "O que é que teria acontecido se, na situação concreta, o agente se tivesse comportado de acordo com o direito?" Gimbernat recorda que para evitar este recurso a processos causais hipotéticos como fundamento de uma absolvição, Roxin estabeleceu, em 1962, a sua teoria do "aumento do risco", que não opera com nenhuma especulação hipotética, mas apenas com saber se a conduta negligente, em comparação com a correcta, incrementou ou não o risco de produção do resultado. O próprio Gimbernat, por seu lado e nesse mesmo ano, introduziu na ciência penal a teoria do "fim de protecção da norma", que igualmente prescinde, para 317 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. determinar se um resultado deve ou não ser imputado a um determinado comportamento formalmente negligente, do confronto com o que teria sucedido se o autor se tivesse comportado correctamente, estabelecendo como critério determinante o de saber se o resultado concreto produzido era um dos que o Direito queria evitar com a imposição de um determinado dever de diligência (Gimbernat, Ensayos, p. 219). Nos trabalhos práticos, tratando-se de um caso do dia-a-dia, i. é, de solução manifesta, procederemos à subsunção no preceito ou na regra correspondente. Mas se se trata de especialidades que o preceito ou a regra não comportam de modo explícito e imediato, então haverá que produzir considerações adicionais sobre a violação de um dever objectivo de cuidado ou a criação ou o incremento (aumento ou potenciação) de um risco não permitido. Com a realização do tipo de ilícito fica indiciada a ilicitude da conduta, a exemplo do que se passa com os crimes dolosos. No domínio das causas de justificação, as mais significativas serão, nesta área, a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento que não exclua a tipicidade. Mas, dizem alguns autores, que, por se tratar de negligência, não é necessário o elemento subjectivo de justificação. A negligência supõe que o agente seja capaz de cumprir o dever de cuidado e de prever o resultado típico. Só age negligentemente quem estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado — podendo então ser-lhe censurada a conduta violadora do dever de cuidado e o facto de ter agido não obstante a previsibilidade do resultado. Dizendo por outras palavras: para que exista culpa negligente é necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que estava obrigado; deve portanto comprovar-se se o autor, de acordo com as suas qualidades e capacidade individual, estava em condições de satisfazer as correspondentes exigências objectivas. Para tanto, deve ter-se em atenção a sua inteligência, formação, experiência de vida; deve olhar-se também às especialidades da situação em que se actua (medo, perturbação, fadiga). Se o agente, por uma deficiência mental ou física, ao tempo da sua actuação não estava em condições de corresponder às exigências de cuidado, não poderá ser censurado pela sua conduta. Ao tipo de culpa dos crimes negligentes pertence assim a previsibilidade individual (subjectiva). A previsibilidade do resultado típico e do processo causal nos seus elementos essenciais deverá verificar-se não só no plano objectivo, mas igualmente no 318 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. plano subjectivo, de acordo com a capacidade individual do agente. Na negligência inconsciente o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto, ficando excluída a previsibilidade individual, especialmente por falhas de inteligência ou de experiência. Na negligência consciente o agente representa sempre como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime. Recapitulando: Tal como o "dolo", o conceito jurídico da "negligência" tem, como forma de conduta e forma de culpa, uma dupla natureza, o que implica um exame "de dois graus". Dentro do tipo de ilícito deve comprovar-se que não foi observado o cuidado exigido objectivamente. No âmbito da culpa deverá apurar-se se o autor, de acordo com a sua capacidade individual, estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado. Consequentemente, uma coisa é a negligência enquanto elemento típico que fundamenta a ilicitude, outra a negligência como elemento da culpa. Elementos da culpa serão a capacidade de culpa, a consciência da ilicitude, ao menos na forma potencial, e a exigibilidade (recordem- se certas situações de conflito, que levam à exclusão da culpa, não obstante a violação do dever de cuidado). Acrescem os elementos específicos da negligência individual. Esquematicamente, a estrutura dos crimes negligentes poderá ser assim representada: Tipo-de-ilícito Acção ou omissão da acção devida. Recorde-se o que se disse oportunamente sobre os automatismos na condução automóvel. Os automatismos são produto da aprendizagem. A doutrina actual, mesmo quando se inclina para a não acção nos actos reflexos, afirma-a em geral ao nível dos automatismos, que se desenvolvem sem a intervenção da consciência activa. Violação do dever objectivo de cuidado. A violação do dever de cuidado determina-se por critérios objectivos, nomeadamente, pelas exigências postas a um homem avisado e prudente na situação concreta do agente. A extensão do dever de cuidado é referida ao homem médio do concreto círculo de responsabilidades em que o agente se move (por ex., como médico, como motorista de pesados, etc.). O dever de cuidado é limitado pelo princípio da confiança: ninguém terá em princípio de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem. Produção do resultado típico nos crimes negligentes de resultado. Por ex., a morte de “outra pessoa”, no artigo 137º, nº 1. Previsibilidade objectiva do resultado, incluindo o processo causal. Um resultado será objectivamente previsível se for previsível para um homem sensato e prudente, colocado na situação do agente no momento da acção, de acordo com a experiência geral (juízo de adequação). 319 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Imputação objectiva desse resultado à acção do sujeito. Causalidade. Imputação normativa. Adequação, nexo de risco, aumento do risco perante comportamento lícito alternativo. A produção do resultado pode ficar fora do âmbito de protecção da norma; o resultado pode verificar-se também em caso de comportamento lícito alternativo. Concorrência, ou não, de uma causa de justificação Tipo-de-culpa Censurabilidade da acção objectivamente violadora do dever de cuidado. Capacidade de culpa A negligência supõe que o agente seja capaz de cumprir o dever de cuidado e de prever o resultado típico. Deve comprovar-se se o autor, de acordo com as suas qualidades e capacidade individual, estava em condições de satisfazer as correspondentes exigências objectivas, tendo em atenção a sua inteligência, formação, experiência de vida; deve olhar-se também às especialidades da situação em que se actua (medo, perturbação, fadiga). Se o agente, por uma deficiência mental ou física, ao tempo da sua actuação não estava em condições de corresponder às exigências de cuidado, não poderá ser censurado pela sua conduta. Previsibilidade individual. A previsibilidade individual está excluída na negligência inconsciente; na negligência consciente o agente representa sempre como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime. A punibilidade poderá ocorrer por culpa na assunção. Exigibilidade do comportamento lícito. A conduta cuidadosa não será exigível quando a sua adopção não for de esperar duma pessoa na situação do agente. III. Questões de autoria. Tentativa. Autor de um crime negligente "pode ser não apenas o autor imediato, como o autor atrás do autor, desde logo, o mandante ou o incitador de um comportamento que, por ex., vem a terminar por um homicídio negligente: o patrão que manda o motorista circular a velocidade excessiva em virtude da qual ocorre a morte de um peão, ou aquele que dá droga a um dependente que com ela vem a morrer de overdose. Frequentes são na verdade os casos de autoria paralela, em que o resultado é produzido imediatamente por um, mas só porque outro anteriormente violou um dever objectivo de cuidado ou o risco permitido. Por ex., A mata B com uma manobra do seu automóvel absolutamente proibida e perigosa, porque obteve a carta de condução com os favores de C, que o aprovou no exame de condução, apesar de se ter apercebido da sua inaptidão." Prof. Figueiredo Dias, Conimbricense, p. 113. 320 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Face às correspondentes características, não há nos crimes negligentes nem “tentativa” nem "cumplicidade". Uma acção negligente, em que o autor “não conhece” nem “quer” o resultado, nunca pode representar uma decisão de actuar (artigo 22º, nº 1). IV. Dolo e negligência. O caso nº 29 No caso nº 29, A causou (produziu) a morte de B e dos 2 passageiros e lesões graves no outro. Salta à vista que tudo isso, enquanto resultado, lhe pode ser causalmente atribuído (elemento do tipo objectivo) nas diferentes hipóteses apresentadas. Nas hipóteses descritas sob as alíneas b), c) e d), A não previu que tal evento viesse a acontecer. No caso da alínea b), poderemos, já no domínio objectivo do ilícito, afastar a responsabilidade de A, uma vez que a conduta deste não violou qualquer dever de diligência (artigo 15º). Nenhum guarda da linha, na concreta situação de A, teria a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo, incluindo, nomeadamente, a produção do resultado típico. Essa violação pode ser claramente afirmada nas hipóteses das alíneas c) e d), mas nesta última situação, a da alínea d), parece não ser exigível que A adoptasse outro comportamento, pois tudo indica que não estava capaz, face às suas capacidades pessoais de momento, de reconhecer e cumprir o dever de cuidado objectivo. Podemos agora fazer o confronto com a hipótese mais simples, que é a da alínea a). A imputação objectiva do resultado, relativamente ao qual A actuou dolosamente, não oferece então qualquer dúvida. Podemos também reconhecer que o lado subjectivo do ilícito se encontra preenchido. A conhecia os perigos para os apontados bens jurídicos, tendo aberto a cancela com dolo homicida. Não existe qualquer causa de justificação ou de desculpação. A conduta integrará, pelo menos, a norma fundamental do homicídio doloso (artigo 131º do Código Penal). Fica para resolver a questão de saber quantos crimes foram cometidos e se algum deles foi simplesmente tentado (artigo 22º). Num homicídio doloso podemos contentar-nos com a verificação de que uma acção produziu a morte de uma pessoa em termos de, sendo causal, lhe poder ser imputável objectivamente. Na medida em que há dolo, fica fora de dúvida que o comando "não matarás", fundamento do preceito do artigo 131º, foi contrariado. 321 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A violação de um dever objectivo de cuidado é o eixo em torno do qual gira o conceito de negligência. Nos crimes negligentes não podemos contentar-nos com tão pouco. Tal como o "dolo", o conceito jurídico da "negligência" tem, como forma de conduta e forma de culpa, uma dupla natureza, que implica um exame "de dois graus": Em 1º lugar: dentro do tipo de ilícito deve comprovar-se que não foi observado o cuidado exigido objectivamente. Se a conduta observou o cuidado requerido na situação concreta não será ilícita. Se, pelo contrário, a conduta violou o cuidado imposto, dando lugar, de forma adequada, à verificação do correspondente resultado, fica preenchido o tipo de ilícito negligente — surgindo o resultado como uma consequência previsível e normal da violação do dever de cuidado pode ser imputado ao agente. Em 2º lugar: no âmbito da culpa deve apurar-se se o autor, de acordo com a sua capacidade individual, estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado. Está aqui em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizador, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades de agente, como se exprime o Prof. Figueiredo Dias, in Pressupostos, Jornadas, p. 71. Logo, se for irrazoável, ou inexigível não poderemos consubstanciar um juízo de censura ao agente e não há, por isso, fundamento para a punição (Prof. Faria Costa, O Perigo, p. 516). Na parte especial do Código, são de resultado a quase totalidade dos crimes negligentes. São estes — e não os de mera actividade negligente, em que a lei se contenta com a simples violação do dever de diligência — os que suscitam a maior parte dos problemas. Nos poucos crimes negligentes de mera actividade a acção típica está descrita na lei, por exemplo, no artigo 292º, que se refere à “condução de veículo em estado de embriaguez por negligência”. Num caso destes, deve comprovar-se não só o conhecimento da realização típica, mas igualmente a acção descuidada do agente. O artigo 137º (homicídio por negligência) do Código Penal, na medida em que se limita a descrever os elementos objectivos "matar outra pessoa", configura, por um lado, um crime de resultado, implicando desde logo a imputação deste à acção, e, por outro, um tipo de ilícito necessitado de complemento. Enquanto o resultado se não produz, não é possível aludir a um crime material negligente, o que afasta a possibilidade da sua realização na forma de tentativa (artigo 22º, nº 1). 322 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Recapitulando: O tipo-de-ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído pela violação de um dever objectivo de cuidado e a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação, pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado. A fórmula da previsibilidade objectiva põe ao aplicador do direito a tarefa de averiguar como teria agido um homem avisado e prudente do círculo de actividade do agente (por ex., um médico, um condutor de camião, um engenheiro civil, um guarda-linha) na situação concreta, com vista a prevenir perigos para outrem da maneira mais indicada. Esta valoração (objectiva) realiza-se comparando a conduta do agente com a conduta exigida pela ordem jurídica na situação concreta. Se porventura existir uma divergência entre a conduta efectivamente realizada e a conduta — conforme ao dever de cuidado — que deveria ter sido realizada, o tipo de ilícito objectivo da negligência fica preenchido, desde que o agente, pelo menos, pudesse ter previsto a sua realização como possível (negligência inconsciente, artigo 15º, b). Se o tipo de ilícito se mostra preenchido, é ainda necessário submeter o caso a critérios subjectivos, próprios do tipo-de-culpa. No que respeita à culpa, e à correspondente lesão do dever de cuidado, deve empregar-se, naturalmente, um critério subjectivo. Para que exista culpa negligente é necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que estava obrigado; deve portanto comprovar-se se o autor, de acordo com as suas qualidades e capacidade individual, estava em condições de satisfazer as correspondentes exigências objectivas. Para tanto, deve ter-se em atenção a sua inteligência, formação, experiência de vida; deve olhar-se também às especialidades da situação em que se actua (medo, perturbação, fadiga). Na hipótese concreta descrita na alínea d) do caso nº 29, as condições objectivas que moldam o tipo-de-ilícito negligente (infracção do dever objectivo de cuidado, previsibilidade do resultado) estão certamente preenchidas. Qualquer guarda da linha, avisado e prudente, teria feito tudo para não se esquecer que um comboio especial ia ali cruzar àquela hora, comportamento que, de resto, estará prescrito nos correspondentes regulamentos. Ficaria, em suma, advertido para os perigos que a abertura extemporânea da cancela acarretavam para a vida e a integridade física de quem confiadamente atravessasse a linha férrea. Assim, A, ao agir nas circunstâncias apuradas, devia ter previsto o acidente, com as mortes e as lesões corporais para as pessoas que viajavam no carro, e abster-se de abrir as cancelas antes da passagem do segundo comboio, o que não fez. No entanto, face à situação de extrema fadiga de A, será pelo menos arriscado afirmar que este podia ter previsto que o desditoso evento resultaria da sua descrita actividade. Com o que estamos em condições de afirmar que o tipo-de-ilícito se encontra preenchido. Não assim o correspondente tipo-de-culpa, pelo que a conduta de A, não sendo passível de censura, também não será alvo de punição por homicídio ou ofensas à integridade física negligente. Não seria certamente razoável nem exigível dirigir um juízo 323 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de censura a quem, encontrando-se nas descritas condições, não acatou a norma de cuidado que no caso cabia para evitar o resultado danoso. Negligência e pluralidade de eventos. A definição de culpa inconsciente tem estado ligada à corrente jurisprudencial que entende que, em regra, só é possível formular um juízo de censura por cada comportamento negligente - a pluralidade de eventos delituosos (por ex., no mesmo acidente verificou-se a morte de uma pessoa e ferimentos em outras duas) não pode ter a virtualidade para desdobrar as infracções (cf. o ac. anotado por P. Caeiro; ac. do STJ: BMJ-374-214; 387-320; 395-258; 403-150; CJ 1990, II, 11; cf., ainda, ac. do STJ de 15.10.97, CJ, 1997-V, p. 212). P. Caeiro discorda: o resultado não é irrelevante para o preenchimento do ilícito nos crimes negligentes; a punição do concurso ideal no quadro da unidade criminosa não poderia fundamentar a decisão do tribunal (artigo 30º, nº 1); ainda que a decisão se baseie - como parece - na unicidade do juízo de censura, em razões impostas pelo princípio da culpa, não é curial distinguir entre negligência consciente e inconsciente: a maior falta de respeito pelo outro reside precisamente na negligência inconsciente (Stratenwerth, p. 326). E havendo uma pluralidade de tipos preenchidos, imprescindível seria mostrar que a falta de representação dos factos só permite a formulação de um juízo de censura. Por outro lado, está excluída a continuação criminosa, visto tratar-se de bens eminentemente pessoais. A punição do crime continuado só tem sentido quando existem várias resoluções criminosas cuja censurabilidade é cada vez menor por força de um particular condicionalismo exterior ao agente. Não é possível estabelecer uma analogia com a diminuição da culpa que fundamenta as regras da punição do crime continuado. O caso enquadra-se na figura do concurso ideal heterogéneo (30º, nº 1, e 77º). Cumpriria então encontrar a pena única aplicável, de acordo com o princípio do cúmulo jurídico, começando por determinar a pena concreta cabida a cada um dos três crimes cometidos, nos termos do artigo 71º do CP; seguidamente, construir-se-ia a moldura do concurso (artigo 77º. nº 2, do CP) que teria como limite máximo a soma das três penas parcelares e como limite mínimo a pena concreta mais grave; finalmente, considerando conjuntamente os factos e a personalidade do agente, encontrar-se-ia a pena única a aplicar. O acórdão do STJ de 8 de Janeiro de 1998, CJ 1998, tomo I, p. 173, considera que se não verifica concurso de infracções quando, do mesmo acidente e do mesmo comportamento negligente, resultar a morte de uma pessoa e ofensas corporais em outras - trata-se de crime de resultado múltiplo, em que se pune o mais grave, funcionando os outros como agravantes a ter em conta na fixação concreta da pena. V. Negligência: critério generalizador; critério individualizador. CASO nº 29-A: A, durante um período, de Abril de 1995 aos começos de 1996, por diversas vezes ofereceu a seu sobrinho E, nascido a 20 de Junho de 1981, cassetes-vídeo com filmes de terror. Entre outros, havia alguns da série "Sexta-feira 13", que descreviam a morte de pessoas, reproduzida de forma perfeitamente animalesca. O herói da série era uma figura de terror conhecida por "Jasão". Na tarde de 2 de Março de 1996, E, aproveitando a ausência dos pais, resolveu pôr-se na pele de "Jasão" e pregar um bom susto à prima S, de 10 anos de idade. Confeccionou ele próprio um capuz e vestiu um camuflado, onde 324 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. derramou tinta vermelha, a fingir sangue. Munido dum machado e duma faca, E encaminhou-se para o local onde na sua ideia encontraria a pequena. Esta estava em casa na companhia de R, pessoa adulta, o que deixou E irritado. Então, aproximou-se de ambos e começou por vibrar duas facadas na cabeça de R, para o impedir de se opor aos seus propósitos. Logo a seguir, sentindo-se um autêntico Jasão, deu duas machadadas na cabeça da prima S e afastou-se do local. Bay ObLG, 28.10.98, NJW (1998), p. 3580. A, o tio, foi acusado de dois crimes de ofensas corporais por negligência. Contudo, o tribunal absolveu-o. O dever de cuidado é um dever objectivo, não é possível que o seu conteúdo se determine em função da capacidade individual de quem actua. Estão em causa os elementos constitutivos do crime negligente. Não basta, porém, a ocorrência do resultado desvalioso, por ex., as ofensas corporais ou a morte de uma pessoa. Na verdade, um comportamento só será negligente se, por um lado, o resultado se produzir pela violação daquelas exigências de cuidado que a ordem jurídica, na situação concreta, associa ao homem avisado e prudente do círculo de actividade do agente; e se, por outro lado, o resultado era previsível também para esse homem, dotado dessas qualidades e capacidades. A medida do cuidado devido é portanto independente da capacidade de cada um. Uma vez apurados estes elementos, que configuram o tipo de ilícito da negligência, é altura de averiguar (em sede de culpa) se ao agente pode ser dirigido um juízo de censura, se — atendendo à sua inteligência e formação, às suas qualidades e capacidades, à sua posição social e experiência de vida — o agente estava em condições de cumprir o dever objectivo de cuidado e de prever o resultado típico. Justifica-se que se ponha de lado a doutrina do duplo grau? Certos autores entendem, contudo, que o critério generalizador é dispensável. Apontando para a objectivização da capacidade individual de actuação, incluem no tipo de ilícito imprudente a inobservância de um dever subjectivo de cuidado, que ocorreria sempre que o agente tivesse podido prever a possibilidade da produção do resultado. O ponto de referência dessas opiniões situa-se assim na previsibilidade individual (subjectiva) e no cumprimento do dever individual (subjectivo) de cuidado: na determinação da concreta ilicitude da negligência não intervirá uma "pessoa avisada e sensata da mesma profissão ou círculo social do agente" porque a diligência ou a violação 325 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. da diligência deverão comprovar-se a partir das capacidades individuais do agente — consequentemente, não será em sede de culpa que os traços individuais do agente, as suas capacidades para evitar a lesão de determinados bens jurídicos, deverão ser analisados. Por detrás destas teses está uma particular concepção da ilicitude. Privilégios dos especialmente capazes? a lesão de certos bens jurídicos pela actuação de pessoas especialmente capazes deverá ficar a cargo das vítimas? É difícil entender porque é que os mais capazes não têm que se empenhar, com toda a sua capacidade, para evitar a lesão de bens jurídicos. A opinião maioritária sente-se obrigada a fazer uma excepção ao seu critério generalizador do homem médio (cf., por ex., Roxin, p. 907): não obstante a observância das exigências gerais de cuidado deve excepcionalmente afirmar-se a lesão do dever de diligência se o agente, a quem não faltam conhecimentos especiais ou capacidades especiais, não os emprega para evitar o resultado danoso. Como exemplo de conhecimentos especiais atente-se nos de um camionista quanto à perigosidade dum cruzamento que normalmente não é reconhecido com perigoso. Como exemplo de capacidade especial, mencione-se o cirurgião altamente dotado ou o corredor de rali. Um e outro ter-se-iam comportado cuidadosamente se se tivessem empenhado de acordo com os critérios médios de um cirurgião ou de um automobilista e assim causassem a morte ou a lesão de uma vítima, que no entanto teriam sido evitadas se um e outro se tivessem comportado de acordo com as suas especiais capacidades. Note-se, no entanto, que já em sede de imputação objectiva se entra em consideração com os conhecimentos especiais do agente, o que leva o Prof. Figueiredo Dias, negando a excepcionalidade do entendimento de ambos, a perguntar com Roxin: "Porque é que o que vale para o conhecimento especial não deveria ser igualmente válido para a capacidade especial?" Cf., ainda Teresa Quintela de Brito, RPCC 12 (2002), p. 395. No caso nº 29-A, uma pessoa sensata e prudente (critério generalizador) não teria certamente previsto os "crimes" de E e por isso nenhuma negligência se poderá imputar a A, que deverá ser absolvido. A solução talvez pudesse ser diferente optando-se logo por um critério onde os (eventuais) conhecimentos especiais do agente tivessem assento em igualdade com as restantes circunstâncias atendíveis. É por isso que, frequentemente, 326 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. esses conhecimentos especiais do indivíduo são tidos em conta no juízo de previsibilidade objectiva que serve de base à determinação da diligência devida. Esse juízo de previsibilidade leva-o o intérprete a cabo colocando-se no momento em que se desencadeia a acção, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto que uma pessoa sensata e inteligente podia reconhecer mais as conhecidas pelo autor (juízo de prognose póstuma, em que o observador, colocado ex ante, entra em consideração com os conhecimentos especiais do agente). Considere-se o caso de um cirurgião extraordinariamente capaz que durante uma operação perigosa se limita a usar a sua perícia e habilidade imprescindíveis para poder levar a cabo este tipo de operações: a correspondente conduta estará de acordo com a diligência objectivamente devida e não se integra no tipo de ilícito dos crimes de acção imprudente. Isto não significa, necessariamente, que o cirurgião fique impune, caso deixe de fazer uso da sua capacidade excepcional, apesar de ter previsto a possibilidade da morte do paciente e de a evitar mediante o uso das suas capacidades excepcionais (cf. Cerezo Mir). Cf., ainda, Mir Puig, El Derecho penal en el estado social y democrático, p. 70 e ss. A estrutura dos crimes negligentes de resultado, para a posição minoritária que defende a dispensabilidade do critério generalizador, poderá ser assim representada: 1. Tipicidade i) Tipo objectivo. Elementos típicos: acção, produção do resultado típico, conexão entre acção e resultado. ii) Tipo subjectivo: violação do dever subjectivo de cuidado tendo em conta os elementos típicos: acção, produção do resultado típico, conexão entre acção e resultado. 2. Concorrência, ou não, de uma causa de justificação 3. Culpa i) Capacidade de culpa. ii) Exigibilidade do comportamento lícito. VI. Negligência grosseira; graus de violação do dever objectivo de diligência; na negligência grosseira há uma intensidade superior da lesão do dever objectivo de cuidado. CASO nº 29-B: A e B vão juntos à caça para os lados da Idanha e resolvem ocupar o mesmo bungalow no parque de campismo junto da barragem. Antes de se deitarem, fazem o que em tais circunstâncias já se tornou um hábito, verificam mais uma vez que as respectivas armas estão 327 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. descarregadas. A desperta cedo, na manhã seguinte, pega na arma e aponta-a ao amigo, que ainda na cama se esforça por dormir "só mais um bocadinho". Ao mesmo tempo grita-lhe, com ar divertido — ó Zé!, se não te levantas já daí, levas um tiro. Então, para enorme surpresa de A, da espingarda sai o tiro que inesperadamente atinge o amigo e o mata. A não representou nem quis tal desfecho. Do comportamento de A bem se pode dizer que violou intensamente, de forma extremamente grosseira, o dever objectivo de cuidado. O próprio Código separa a negligência consciente da inconsciente, mas esta distinção não tem a ver com a noção de negligência grosseira. A origem da figura "parece radicar na distinção "escolástica" entre culpa lata, leve e levíssima que foi utilizada no direito penal comum por inspiração do direito civil. A moderna doutrina da negligência prescindiu dessa distinção porque ela pressupunha a concepção da negligência como forma de culpa sem um fundamento autónomo de ilicitude. A identificação da negligência com a violação do dever de cuidado implicava uma unificação ou generalização do conceito de negligência, tendencialmente incompatível com a distinção de graus de negligência. E, a reforçar esta incompatibilidade, encontrava-se também a concepção finalista de culpa que pretendia referir a culpa (quer a respeitante ao facto doloso, quer ao facto negligente) somente à potencial consciência da ilicitude)" (Prof. Fernanda Palma, Direito Penal. Parte Especial. Crimes contra as pessoas, Lisboa, 1983, p. 101). Existem normas estradais cuja violação apresenta um grau de perigo potencial superior ao de outras: são aquelas cuja violação o Código da Estrada classifica como contra- ordenações muito graves e cuja prática indicia uma conduta grosseiramente negligente. Ac. da Relação de Coimbra de 5 de Março de 1997, BMJ-465-657. A negligência grosseira a que alude o nº 2 do artigo 137º do Código Penal abrange aqueles casos em que, de forma mais flagrante e notória, se omitem os cuidados mais elementares (básicos) que devem ser observados ou aquelas situações em que o agente se comporta com elevado grau de imprudência, revelando grande irreflexão e insensatez (acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Março de 1997, BMJ-465-657). Agiu com negligência grosseira o condutor de um automóvel que imprimia ao mesmo mais do dobro da velocidade permitida no local onde transitava, circunstância que lhe fez perder o controlo sobre a 328 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. viatura, o que, por sua vez, deu lugar a que aquela saísse da faixa de rodagem da via e passasse a circular pela berma da estrada (acórdão da Relação de Coimbra de 13 de Janeiro de 1999, CJ, 1999, tomo I, p. 43). VII. Receptação negligente; dever de cuidado interno e dever de cuidado externo. CASO nº 29-C: A, residente no Bairro do Cerco do Porto, comprou a B, seu vizinho, um aparelho de rádio por 15 euros. B era conhecido no Bairro por ser toxicodependente, sem modo regular de ganhar a vida, e pela sua tendência para cometer pequenos furtos. A admitiu a hipótese de o aparelho de rádio ter chegado às mãos de B por forma irregular, mas acabou por se deixar convencer que afinal se tratava da prenda de anos dada por uma tia, como B insistentemente lhe assegurava. O rádio era efectivamente furtado, como se veio mais tarde a comprovar. De acordo com o artigo 231º do Código Penal, é desde logo autor do crime de receptação aquele que, "com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse", sendo por isso punido punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias (nº 1). Além disso, pratica o ilícito do nº 2, "quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património, sendo por isso punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias. Na estrutura do código, o crime de receptação, para além de comportar ainda uma forma agravada, integra-se nos chamados crimes contra direitos patrimoniais, sendo, a par do auxílio material, que lhe vem a seguir, um dos crimes de consolidação ou de perpetuação (ou perpetuidade, como se diz no acórdão do STJ de 18 de Junho de 1985, no BMJ-348- 296, citando Nelson Hungria) de uma situação patrimonial anormal, por oposição a outros que, como o furto ou o dano, se caracterizam pela subtracção de um objecto que é deslocado do seu legítimo dono para outrem ou que simplesmente é destruído ou danificado. Nos crimes de perpetuação impede-se conscientemente a correcta 329 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. reconstituição da situação do proprietário por via do crime parasitário, dificultando ou impossibilitando o retorno da coisa para a disponibilidade do desapossado. Na receptação, todavia, o agente actua com a intenção de obter, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial, ao passo que no auxílio material actua apenas no interesse de outrem. Na forma dolosa dos crimes de manutenção de uma situação anormal é além disso necessário que o agente tenha conhecimento de que se cometeu um crime contra o património, embora não se exija que se conheça, em concreto, o crime cometido, nem as respectivas circunstâncias de modo, tempo e lugar (cf., para um caso de receptação, o acórdão da Relação de Coimbra, de 15 de Fevereiro de 1984, no BMJ-334-540). No caso nº 29-C, A não praticou o crime correspondente à modalidade de receptação dolosa, justamente por faltar na sua actuação o correspondente elemento subjectivo geral. A adquiriu o rádio por 15 euros, mas, de acordo com a prova, não o fez dolosamente, nem sequer com dolo eventual. Todavia, o mesmo A, ao receber das mãos do B o rádio que pagou por aquela quantia, não se assegurou da sua legítima proveniência, podendo fazê-lo. Com efeito, perante a "pechincha" que lhe veio às mãos, ao A impunha-se que se informasse ou que se abstivesse de comprar o rádio, já que intuiu a possibilidade de ele ter sido furtado. Tinha, em suma, o dever de se acautelar, advertindo o perigo de adquirir coisa furtada ou ilicitamente subtraída a outrem, pois, tornados banais, são de todos os dias os assaltos a carros estacionados na via pública para deles se retirarem artigos ou peças. Ao A cumpria informar-se ou informar-se melhor quanto à proveniência da coisa, recusando a sua compra até estar suficientemente informado, ou até recusando-a em definitivo, se não chegasse a informar-se convenientemente. Jescheck (Lehrbuch des Strafrechts, p. 521 e ss.) distingue, dentro do desvalor da acção (lesão do dever objectivo de cuidado) entre um dever de cuidado interno (dever de acautelar — advertir — o perigo e valorá-lo correctamente) e um dever de cuidado externo (cuidado como omissão de certas acções que envolvem riscos; cuidado como actuação prudente em situações perigosas; cuidado como cumprimento do dever de informação e preparação prévia), distinção que provém de Engisch. 330 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. VIII. Regresso à questão da imputação objectiva. CASO nº 29-D: A dá a B, seu amigo, uma porção de heroína. B injecta-se com a substância, mas morre na sequência disso, de sobredose. Em muitos domínios, a negligência começa quando se ultrapassam os limites do risco permitido. As condutas realizadas ao abrigo do risco permitido não são negligentes, não chegam a preencher o tipo de ilícito negligente. Se o agente não criou ou incrementou qualquer perigo juridicamente relevante não existe sequer a violação de um dever de cuidado. O exemplo discutido de há muito é o do jovem que marca um encontro com a namorada e esta vem a morrer, no local do encontro, na queda de um meteorito (ou na queda dum raio, ou por outro fenómeno natural, tanto dá): a conduta do rapaz não criou um risco juridicamente relevante e não existe qualquer violação duma norma de cuidado, portanto, não se lhe poderá imputar a morte da namorada. Por outro lado, se alguém conduz uma viatura com observância das regras estradais e mesmo assim provoca lesões noutra pessoa que se atravessa na frente do carro — também se não verifica uma violação do dever de cuidado. A negligência exclui-se se o agente se contém nos limites do risco permitido, se não criou nem potenciou um risco para a vida ou para a integridade física da vítima do atropelamento. Também não existe lesão do dever de cuidado se o agente dolosamente se limita a colaborar na autocolocação em risco de outra pessoa, se, por ex., anima o condutor a carregar no acelerador e este vem a morrer no despiste do carro que acabou por não conseguir dominar. Imaginemos que A dá a B, seu amigo, uma porção de heroína e que este se injecta com a substância, vindo a morrer na sequência disso. Será A responsável pela morte de B ? Na medida em que A deu a heroína a B, pôs-se uma condição para a morte deste. A morte de B é, do mesmo modo, uma consequência adequada da acção de A. Com a entrega da heroína, A aumentou, de forma relevante, o risco da morte de B. Dir-se-á que a morte de B é assim de imputar a A. O BGH E 32, 262 decidiu, porém, em sentido contrário — uma vez que B ainda era capaz de, por si, tomar decisões, por ex., a de conscientemente se injectar com heroína, e como A não tinha deveres especiais para com B, não era, por 331 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ex., médico deste, a morte de B não pode ser imputada a A. B é o responsável pela sua própria morte — princípio da auto-responsabilidade. No caso do meteorito, ninguém dirá que o resultado era previsível: falta, desde logo, a criação dum perigo juridicamente relevante. Falta a realização do perigo criado se A, atingido a tiro, de raspão, num braço, vem a morrer no despiste da ambulância que o conduz ao hospital. Passa-se o mesmo com a evitabilidade. Se numa povoação segue um carro em velocidade excessiva e um peão se lhe atira para a frente, não haverá negligência do condutor se for claro que o atropelamento não poderia ter sido evitado mesmo que a velocidade fosse a prescrita. Em risco de perder o comboio, A promete uma boa gorjeta ao taxista se este o puser a tempo na gare. O passageiro não será responsável por homicídio involuntário se, por falta de cuidado do motorista, um peão for colhido mortalmente quando o carro seguia a velocidade superior à permitida. Mas A já será responsável se puser ao volante do carro, para que o conduza, uma pessoa notoriamente embriagada que vem a causar a morte do peão. Neste caso, A actua com manifesta falta de cuidado. Voltamos ao princípio da confiança. O princípio da confiança deve valer, inclusivamente, nos casos em que, por regra, se deve confiar em que outrem não comete um crime doloso. Se se tivesse que responsabilizar o vendedor e outros intervenientes não seria possível a venda de facas, fósforos, isqueiros, substâncias inflamáveis, machados e martelos. Se tivéssemos que adivinhar que estávamos a oferecer a outrem a oportunidade de cometer um crime doloso então a vida moderna seria o mesmo que renunciar ao trânsito nas estradas. Trata-se também aqui de um caso de risco permitido: os perigos inevitáveis são aceites por causa das vantagens individuais e sociais que o princípio da confiança oferece. Reside aqui o autêntico núcleo da velha teoria da proibição de regresso, segundo a qual não é punível a colaboração não dolosa em delitos dolosos. (Cf. Roxin, p. 899). 332 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. IX. Negligência e condução automóvel. Causação do resultado; violação do dever de cuidado; imputação objectiva do resultado; conexão de ilicitude; comportamento lícito alternativo; doutrina do aumento do risco; princípio da confiança. CASO nº 29-E: A é médico e o único especialista em doenças de rins da região. Na noite de Fim de Ano, cerca da uma hora, A foi chamado de urgência por D, sua doente, que vem sendo submetida a diálises periódicas. Dado o estado da paciente, A sabia que na ausência de cuidados imediatos a vida de D correria perigo. Por isso, e porque tinha ingerido uma boa quantidade de álcool (como médico sabia que a taxa de álcool no sangue deveria andar por 1,4 g/l, como efectivamente acontecia), chamou um táxi. Foi em vão: não havia táxis disponíveis àquela hora. Contrariado, acabou por se pôr ao volante do seu próprio carro, a caminho da casa de D. Quando, porém, seguia por uma das ruas da localidade, de repente, sem que nada o fizesse prever, apareceu-lhe na frente do carro H, que saíra alegremente de uma festa ali ao lado e por breves instantes tinha estado parado atrás de um muro, à beira da rua, sem que o condutor o pudesse ter visto antes. Foi-lhe impossível evitar embater no peão, não obstante seguir com atenção e à velocidade regulamentar, que não era superior a 50 km/h. A vítima sofreu ferimentos graves e caiu, inconsciente, no chão. A parou, saiu do carro, mas viu logo que para salvar a vida de H tinha que o transportar imediatamente ao hospital. E assim fez, pelo caminho mais rápido, sabendo muito bem que punha em jogo a vida da sua doente renal. Logo que deixou H no hospital, A dirigiu-se imediatamente para casa da doente. Mal chegou, apercebeu-se da morte desta, ocorrida poucos minutos antes. Se A tivesse chegado uns minutos mais cedo, D, muito provavelmente teria sido salva. A deu conhecimento do atropelamento à polícia. (Cf. M. Aselmann e Ralf Krack, Jura 1999, p. 254 e ss.). Punibilidade de A ? O atropelamento de H. Punibilidade de A por ofensas corporais por negligência (artigo 148º, nº 1, do Código Penal). Do acidente resultaram ofensas corporais graves na pessoa de H, pelo que A pode estar comprometido com o disposto no artigo 148º, nº 1. Para tanto, é necessário demonstrar que a conduta de A foi causa das lesões corporais sofridas por H, que o acidente foi condicio sine qua non dessas lesões — e quanto a isso não sobra espaço para quaisquer dúvidas. A estava obrigado a pôr na condução que empreendeu os necessários cuidados. Seguia pela via pública, ao volante do seu automóvel, não obstante a taxa de álcool no sangue ser superior a 1,2 g/l e deste modo contrariar o comando do artigo 292º do Código 333 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Penal. Todavia, é duvidoso que o resultado típico, as lesões corporais na pessoa de H, possa ser objectivamente imputado a A. A causação do resultado e a violação do dever de cuidado, só por si, não preenchem o correspondente ilícito típico. Tratando-se de ofensas à integridade física, acresce a necessidade da imputação objectiva do evento. Este critério normativo pressupõe uma determinada conexão de ilicitude: não basta para a imputação de um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou. "Podemos conceber situações em que há uma violação do dever objectivo de cuidado e, todavia, em termos de imputação objectiva, o resultado não poder ou não dever ser imputado ao agente. Basta para isso pensar em um qualquer caso que a jurisprudência e a doutrina alemãs já sedimentaram, transformando-os em exemplos de escola. Enunciemo- los: a) o caso do ciclista embriagado (A) que é ultrapassado por um camião que ao desrespeitar as regras de trânsito o atropela mortalmente com o rodado anterior; b) a hipótese do farmacêutico que não cumprindo a receita médica avia, várias vezes, a pedido da mãe, doses de fósforo para uma criança que vem a morrer por intoxicação; c) o caso do director de uma fábrica que, não cumprindo as disposições legais, não desinfecta os pelos de cabra, importado da China, provocando, assim, a morte de quatro trabalhadores; d) a hipótese do médico que anestesia com cocaína, não cumprindo as leges artis, já que o indicado na situação seria a aplicação de novocaína, o que provoca a morte do paciente. (...). Uma tal enunciação e o seu tratamento pela doutrina alemã permite-nos ter imediata consciência de que, para uma parte da doutrina, alguns daqueles casos, conquanto haja em todos violação de dever objectivo de cuidado, se radicalizam em uma ausência de imputação objectiva do facto ao agente. Daí que, se a violação do dever objectivo de cuidado é condição necessária para que o facto nas acções negligentes possa ser objectivamente imputado ao agente, é também certo que a não imputação do facto passa necessariamente pela ausência de violação do dever objectivo de cuidado. Por outras palavras: as acções negligentes de resultado pressupõem uma estrutura limitadora da responsabilidade que se perfila de forma dúplice: de um lado, a violação de um dever objectivo de cuidado (...), valorado também pelo critério individual e geral, e de outro, a 334 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. exigência de um especial nexo, no "sentido de uma conexão de condições entre a violação do dever e o resultado". Prof. Faria Costa, O Perigo, p. 487. Na altura do acidente, A circulava à velocidade regulamentar, fazendo-o com atenção e pela sua mão de trânsito. Um condutor sóbrio não teria procedido de outra maneira — nomeadamente, não poderia ter previsto que um peão saísse inopinadamente detrás de um muro, à beira da estrada, e se atirasse em correria para debaixo do automóvel, sem dar ao condutor a mínima possibilidade de travar e desviar-se, evitando embater na vítima. Ora, uma vez que temos como apurado que o comportamento lícito alternativo provocaria igualmente o resultado danoso, este não deverá ser imputado ao condutor. Não obstante a elevada taxa de alcoolémia do condutor, não se pode concluir que os perigos daí advindos se tivessem concretizado no resultado típico, i. é, nas ofensas à integridade física graves sofridas pelo atropelado. A doutrina do aumento do risco chegaria aqui a idênticos resultados, porquanto a alcoolémia do condutor não aumentou o risco de embater no peão. Observe-se, por outro lado, que, de acordo com os critérios correntes do princípio da confiança, "ninguém terá em princípio de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem" (Figueiredo Dias, Direito penal, 1976, p. 73). Quem actua de acordo com as normas de trânsito pode pois contar com idêntico comportamento por banda dos demais utentes da via e A podia confiar em que ninguém, de repente, sairia de detrás do muro nas apontadas circunstâncias. O condutor pode confiar em que, pelo facto de agir segundo o direito, não pode ser penalmente responsabilizado por factos que não pode evitar. No caso, o condutor não podia evitar o que aconteceu, porque, para além do mais, não previu — nem tinha que prever — o resultado. Falta também aqui, como se vê, um elemento essencial à imputação por negligência, que é a previsibilidade. Podemos assim concluir que A não cometeu o crime de ofensas à integridade física por negligência do artigo 148º, nº 1. "Há quem entenda — quanto a nós bem, adiante-se — que o interagir motivado pelo tráfego rodoviário só tem sentido se for compreendido através do princípio geral da confiança. Mais do que o cumprimento das regras de cuidado, o que importa ter presente é que, objectivamente, vigora a ideia de que qualquer utente da via tem de confiar nos sinais, nas comunicações, dos outros utentes e tem, sobretudo, de confiar, em uma óptica 335 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de total reciprocidade, na perícia, na atenção e no cuidado de todos os outros utilizadores da via pública." Prof. Faria Costa, O Perigo, p. 488. X. Indicações de leitura • Acórdão da Relação de Coimbra de 4 de Novembro de 1998, CJ, XXIII, 1998, tomo V, p. 45: para a punição da negligência é preciso, como segundo pressuposto (e aqui radica essencialmente o problema da culpa civil), a culpabilidade, a qual requer, para além do mais, a prova (...) de que por sua inteligência e cultura, sua experiência de vida e situação o agente está individualmente em condições de cumprir o dever de cuidado que havia sido objectivamente prescrito. • Acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Março de 2002, CJ 2002, tomo II, p. 41: nos crimes negligentes presume-se a negligência com a inobservância de lei ou regulamento; porém, o acidente produzido há-de ser do tipo daqueles que a lei quis evitar quando impôs a disciplina traduzida na norma violada. • Acórdão do STJ de 14 de Maio de 1998, BMJ-477-289: na negligência, a imputação subjectiva exige uma possibilidade concreta de agir de outra maneira, só podendo imputar-se ao agente, a título de culpa, o resultado que, dentro dos limites da sua conduta contrária ao dever, era para ele previsível. • Acórdão do STJ de 7 de Março de 1990, BMJ-395-258: ocupou-se da questão de saber se, quando por via do mesmo acidente resulta a morte de duas ou mais pessoas, o agente comete um só crime ou se, ao invés, perpetra tantos crimes quantos os sujeitos ofendidos. • Acórdão do STJ de 14 de Março de 1990, BMJ-395-276: acidente de viação; unidade e pluralidade de infracções. • Acórdão do STJ de 15 de Outubro de 1997, CJ, 1997-III, p. 212: culpa inconsciente; acidente de viação; unidade e pluralidade de infracções. • Acórdão do STJ de 29 de Abril de 1998, processo nº 149/98: na negligência simples é violado o dever objectivo de cuidado ou dever de diligência, aferido por um homem médio. A negligência grosseira exige grave violação do dever de cuidado, de atenção e de prudência, grave omissão das cautelas necessárias para evitar a realização do facto antijurídico, quando não se observa o cuidado exigido de forma pouco habitual ou que no caso concreto resulta evidente para qualquer pessoa. • Acórdão do STJ de 7 de Outubro de 1998, CJ, ano VI (1998), tomo III, p. 183; publicado também na Revista do Ministério Público, nº 76 (1998), com anotação de Paulo Dá Mesquita: sendo oito as mortes verificadas (por negligência), está-se perante um concurso de crimes, já que por oito vezes se encontra violado o mesmo dispositivo legal: art.º 136, n.º 1, do CP de 1982 ou art.º 137, n.º 1, do CP de 1995. Tendo as oito mortes resultado como consequência necessária, directa e única da conduta negligente - omissão dos deveres de fiscalização da qualidade da água tratada para diálise — do arguido, que se prolongou de meados de 1992 a 22 de Março de 1993, verifica-se uma situação de concurso ideal. Estando-se perante uma negligência inconsciente — o arguido não chegou a representar a possibilidade de morte dos insuficientes renais crónicos por não proceder com o cuidado a que estava obrigado -, não havendo manifestação de vontade de praticar actos ou omissões de que 336 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. saísse tal resultado, não pode falar-se de falta de consciência de ilicitude ou em erro sobre a ilicitude. Na negligência inconsciente a ilicitude está intimamente ligada tão só ao não proceder o agente com o cuidado a que está obrigado. • Acórdão do STJ de 21 de Janeiro de 1998, BMJ-473-113: crimes de homicídio com negligência grosseira e de condução sob o efeito do álcool. Dupla valoração da condução sob o efeito do álcool — na condenação por condução sob esse efeito e na agravação qualificativa do homicídio negligente na forma grosseira. Prisão efectiva. • Bernardo Feijóo Sánchez, Teoria da imputação objectiva, trad. brasileira, 2003. • Bockelmann/Volk, Strafrecht, allgemeiner Teil, 4ª ed., 1987. • Burgstaller, Wiener Kommentar, § 6. • Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal. • Claus Roxin, Strafrecht, allgemeiner Teil, Bd. 1. Grundlagen, der Aufbau der Verbrechenslehre, 2ª ed., 1994. • Cramer, in Schönke/Schröder, Strafgesetzbuch, Kommentar, 25ª ed., 1997. • Eduardo Correia, Direito Criminal, I e II. • Eduardo Correia, Les problemes posés, en droit pénal moderne, par le développement des infractions non intentionnelles (par faute), BMJ-109-5. • F. Haft, Strafrecht, AT, 6ª ed., 1994. • Faria Costa, As Definições Legais de Dolo e de Negligência, BFD, vol. LXIX, Coimbra, 1993. • Faria Costa, Dolo eventual, negligência consciente (parecer), CJ, acórdãos do STJ, ano V (1997). • Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, especialmente, p. 471 e ss. • Günter Stratenwerth, Derecho Penal, PG, I. El hecho punible, 1982. • Günter Stratenwerth, L'individualizzazione della misura di diligenza nel delitto colposo, Riv. ital. dir. proc. penale, 1986, p. 635. • Günther Jakobs, El delito imprudente, in Estudios de Derecho Penal, 1997. • H.-H. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts: Allg. Teil, 4ª ed., 1988, de que há tradução espanhola. • Hans Welzel, Das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., 1969, parcialmente traduzido para espanhol por Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez com o título Derecho Penal Aleman, Editorial Jurídica de Chile, 4ª ed., 1997. • Helmut Fuchs, Österreichisches Strafrecht. AT I, 1995. • Ingeborg Puppe, La imputación objectiva. Presentada mediante casos ilustrativos de la jurisprudencia de los altos tribunales. Granada 2001. • João Curado Neves, Comportamento lícito alternativo e concurso de riscos, AAFDL, 1989 • Johannes Wessels, Strafrecht, AT-1, 17ª ed., 1993: há tradução para o português de uma edição anterior. • Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal, sumários e notas, Coimbra, 1976. • Jorge de Figueiredo Dias, Pressupostos da punição, in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983. • Jorge de Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, RPCC 1 (1991). 337 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. 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Mas como B morreu com o disparo da pistola e este evento não pode ser envolvido no dolo do agente, que manifestamente não o quis —ainda que eventualmente o tivesse representado sem no entanto se conformar com o risco da sua produção— o crime será o 338 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. do artigo 145º (agravação pelo resultado), se pudermos imputar-lhe tal resultado a título de negligência (artigo 18º). O que, por outro lado, significa também que se o disparo mortal tivesse sido doloso, acompanhado da intenção de matar, o crime seria o do artigo 131º (homicídio). No artigo 145º consta um dos vários crimes qualificados pelo resultado previstos no Código. Quem voluntariamente mas sem dolo homicida ofender outra pessoa corporalmente e por negligência lhe produzir a morte (ou uma lesão da integridade física grave: nº 2 do artigo 145º) comete um só crime, um crime qualificado pelo evento, embora o facto seja subsumível a duas normas incriminadoras (no caso, a do artigo 143º, nº 1, e a do artigo 137º, nº 1). O artigo 145º é um crime contra a integridade física, ainda que o resultado agravativo seja a morte de outra pessoa. Para alguns autores porém o crime consiste, estruturalmente, num homicídio negligente cometido através duma ofensa corporal dolosa, o que permite incluí-lo entre os crimes contra a vida (cf. Schmidhäuser, BT 2/47), significado que face à lei portuguesa se rejeita por inteiro. Não funcionando as regras do concurso de crimes, o crime preterintencional revela então a “íntima fusão” de um facto doloso, que é já um crime, e um resultado negligente, que determina a agravação da responsabilidade. É esta agravação da pena nos crimes preterintencionais que os autores procuram explicar, a par dos critérios em face dos quais deve fazer-se a imputação ao agente do evento mais grave. Tarefa que nem sempre se apresenta com a simplicidade das coisas evidentes. Na verdade, um evento pode ocorrer por obra do acaso ou do fortuito, não sendo justo imputá-lo então a alguém como obra sua, nomeadamente depois que se reconheceu que não há responsabilidade sem culpa. Da escola clássica ao princípio de que não há responsabilidade sem culpa. No Código Penal [espanhol] de 1848 consagrava-se a ideia de que quem realiza um acto ilícito não se exime à responsabilidade pelos resultados fortuitos que possa causar. O Código estabelecia que quem actuou voluntariamente também se responsabiliza mesmo que o dano recaia sobre pessoa diferente da que o sujeito se propôs ofender (concluía-se assim que quem tivesse querido matar um terceiro e, por erro, matasse o próprio pai, era responsável por parricídio). O Código limitava-se a atenuar a pena de quem não teve a intenção de causar todo o mal que produziu. A origem destes preceitos encontra-se na concepção 339 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que do crime tinha a escola clássica — quem actua voluntariamente sabe que pode produzir consequências indesejadas. O homicídio preterintencional fundamentava-se nestas ideias — quem voluntariamente agride outra pessoa sabe que se expõe a ocasionar-lhe a morte. Neste sentido, afirmava-se que a morte tinha sido querida porque se produziu ao realizar-se um acto que a podia produzir: “versari in re illicita respondit etiam pro casu”. Essa morte, realmente não querida, mas que também não estava amparada pela eximente do caso fortuito, por ter sido precedida por um acto intencional ou culposo, deveria assim ser imputada ao sujeito — e como o autor realmente não tinha querido produzir tanto mal, atenuava-se-lhe a pena. Cf. Cuello Contreras, El Derecho Penal Español, vol. I, 1993, p. 251. Perante isto, é mais fácil entender W. Hassemer (Einführung, p. 190) quando escreve: “até à introdução, em 1953, do § 56 StGB (correspondente ao actual § 18 do StGB e de algum modo ao nosso artigo 18º), certos delitos eram qualificados pelo resultado e não pelo agente. (...). O § 18 representa agora, neste tipo de crimes, o lado do agente.” A agravação (Jakobs: “agravação considerável”) exige a imputação do evento ao agente sob os dois aspectos da imputação objectiva e da imputação subjectiva: artigo 18º. A par do desvalor do resultado (no exemplo, a morte), “terá que se afirmar um desvalor da acção que se traduz na previsibilidade subjectiva e na consequente violação de um dever objectivo de cuidado (negligência)”. Cf. Paula Ribeiro de Faria, p. 245. No artigo 145º prevê-se pena de prisão de 1 a 5 anos (alínea a) do nº 1) — em contraste com a moldura penal dos artigos 143º, nº 1, (ofensa à integridade física simples) e 137º, nº 1 (homicídio por negligência): em ambos os casos prisão até 3 anos ou multa até 360 dias. A integração do caso nº 12 nos artigos 145º, 18º, exclui, consequentemente, o concurso efectivo de crimes (artigo 30º, nº 1: na forma de concurso ideal), a punibilidade de A não se reconduz aos artigos 143º, nº 1, e 137º. Vamos ver se esta solução será ou não a adequada ao caso nº 12-A. Por conseguinte: no caso nº 12, A praticou — tudo o indica — um crime do artigo 145º, nº 1, a), do Código Penal. Foi a ofensa à integridade física (ofensa consumada), na forma da pancada voluntariamente dada na cabeça de B, a causa da morte deste. Não basta porém que a acção do agressor apareça como simples condição do resultado, a aplicação do artigo 145º supõe ainda um específico nexo de perigo entre o comportamento agressivo e o evento mais grave (morte ou ofensa à integridade física grave). Exige uma boa parte dos autores (cf. Küpper), por outro lado, que à realização dolosa do crime 340 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. fundamental esteja directamente ligado o perigo específico que venha a cristalizar no evento mortal. Só então existe o especial conteúdo do ilícito que justificará a pena realmente mais grave, correspondente ao crime agravado pelo resultado. Como bem se compreende, uma lesão corporal dolosa pode revelar o perigo que lhe é característico não só pela natureza do resultado lesivo mas também pela concreta maneira de actuar do agressor. Muito frequentemente, a própria lesão corporal espelha, de forma imediata e em si mesma, o risco específico que pode conduzir à morte da vítima (“vulnus letale”), reproduzindo a estreita “relação de afinidade” que intercede entre o crime fundamental doloso e o evento agravante. Este específico nexo de risco pode detectar-se, por ex., nestes outros casos, que seguramente se incluem no artigo 145º: A espeta B com uma faca pontiaguda — a ferida conduz imediatamente à morte, por ter sido atingido o coração; ou a morte ocorre logo a seguir, devido a uma grave hemorragia ou a uma infecção ou através duma infecção imediatamente a seguir à hospitalização. Em qualquer dos casos tenha-se presente que A actua unicamente com intenção de ofender corporalmente, por conseguinte fora de dolo homicida. Mas o resultado mais grave também pode ocorrer, repete-se, por simples acidente ou derivar de um processo causal de tal modo anómalo e imprevisto que nunca poderá ser posto a cargo do agente. Daí que, se por um lado deva acrescentar-se a necessidade de um nexo de adequação entre a acção fundamental dolosa e o evento agravante, a consequência lesiva — a morte ou a ofensa à integridade física grave — deverá, por outro, surgir directamente do crime fundamental, portanto, sem a mediação do comportamento imputável da vítima ou de terceiro (cf. Jakobs, AT, p. 331). A desferiu contra B, numa altura em que este se encontrava fortemente embriagado, dois murros que o atingiram na boca, em termos, todavia, de lhe causar apenas lesões ligeiras. Aliás, o atingido nem sequer chegou a cair. Não se poderá afirmar que os dois murros foram a causa da morte de B, por falta do específico nexo de adequação, já que, de acordo com a experiência geral da vida, é completamente improvável que a morte aconteça directamente em tais circunstâncias. A só poderá ser castigado pelo crime do artigo 143º, nº 1. Se A dá uma bofetada em B e esta, num berreiro injustificado, corre ao encontro do marido, mas sem adoptar as mais elementares cautelas inicia a travessia da rua com o sinal vermelho para os peões e vem a ser colhida por um automóvel, sofrendo lesões causais da morte, A só poderá ser responsabilizado pela agressão física inicial à bofetada. 341 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. No caso nº 12, A actuou dolosamente, mas o evento agravante não foi dolosamente causado nem acidentalmente produzido. Fazendo apelo ao princípio da normalidade ou da regra geral, ou às chamadas máximas da vida ou regras da experiência, não é possível excluir a responsabilidade de A na morte de B por negligência, já que, ao bater na cabeça da vítima com uma pistola carregada que por efeito da pancada logo se disparou, agindo portanto com flagrante violação dos mais elementares cuidados, A estava em condições de prever o infausto acontecimento. A morte de B é obra de A, que por isso cometeu um crime dos artigos 18º e 145º, nº 1, alínea a), se não houver, como julgamos que não há, qualquer causa de justificação ou de desculpação. 2. CASO nº 12-A: Numa esquadra de polícia, A saca da pistola, que em serviço tem sempre carregada, e vai para bater com ela na cabeça de B, que o insultara na véspera. Sem que, porém, tenha chegado a tocar no B, a pistola dispara-se, provocando a morte deste. A não chegou a agredir B com uma pancada da pistola, como pretendia, não se consumou, nesse sentido, a ofensa do corpo ou da saúde. A arma disparou-se antes de atingir a cabeça de B, dando-se o evento mortal, que não estava nos planos de A e só poderá ser-lhe assacado se comprovados os pressupostos da negligência. Teoricamente, teremos então preenchidas em concurso efectivo (concurso ideal) uma “tentativa de ofensa à integridade física simples” (atenção: não punível no nosso direito) e 15º e 137º, nº 1 (homicídio por negligência). A tentativa está excluída nos crimes qualificados pelo resultado? Mas não será caso de chamarmos a terreiro a tentativa dos crimes qualificados? Para a maioria, a tentativa está excluída nestes crimes qualificados pelo resultado, por se tratar de combinações de dolo-negligência. Com efeito, a negligência é normativamente incompatível com a tentativa, que supõe, no agente, a decisão de cometer um crime (artigo 22º, nº 1). Centrando de novo a nossa atenção no artigo 145º, este só ficará preenchido, ocorrendo o resultado imputável mais grave, se a lesão do corpo ou da saúde estiver consumada, mas se o evento mortal não ocorrer só poderá falar-se de uma tentativa se o plano do agente incluir a morte de outra pessoa. O crime será então o dos artigos 22º, 23º, nº 2, e 131º (tentativa de homicídio), não passando a ofensa corporal consumada dum estádio intermédio na realização do homicídio. Há contudo autores que admitem a possibilidade da tentativa naqueles casos em que o núcleo do crime preterintencional se manifesta mais incisivamente no seu segmento doloso, aparecendo consequentemente o delito, no seu todo, estruturado como facto doloso. Suponha-se o seguinte exemplo: A e B fazem montanhismo mas em certo momento desentendem-se e, na discussão, A, sem dolo homicida, atira uma pedra ao companheiro 342 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que se desvia mas perde o equilíbrio, despenhando-se no abismo. O perigo específico do resultado mais grave relaciona-se aqui com o desvalor da acção praticada por A, logo: artigos 22º e 145º. Os casos nºs 12 e 12-A serão mesmo diferentes, a ponto de exigirem diferente tratamento? No artigo 145º é elemento típico uma ofensa corporal dolosa (consumada): “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa...”, diz o nº 1; “quem praticar as ofensas previstas no artigo 143º...”, diz o nº 2, e isso só acontece no caso nº 12. No outro, a ofensa corporal não chegou a concretizar-se, daí que só possa aplicar-se-lhe o concurso de crimes (com a indicada limitação de não ser punível, no nosso direito, a tentativa de ofensa corporal simples). Ainda assim, há quem pretenda que o caso nº 12 não cabe no artigo 145º — diz-se que a ofensa corporal dolosa, mesmo consumada, não foi causa da morte, enquanto tal, não desempenhou nisso qualquer papel. Os autores que assim pensam só integram no artigo 145º aquelas hipóteses em que a ofensa corporal dolosa conduziu à morte, como no caso nº 12-B, ou naquele outro em que A, sem dolo homicida, atinge com um objecto perfurante o coração de B, que morre logo em seguida… Confuso? Vamos ver. 3. CASO nº 12-B (Hochsitzfall: BGH St 31, 96 — 30.6.82): A empurrou B dolosamente, fazendo-o despenhar-se duma altura de 3,5 metros, o que lhe provocou diversas fracturas e um longo internamento hospitalar. B morreu devido a complicações associadas a uma embolia pulmonar, derivada da permanente imobilização a que esteve sujeito. O artigo 145º exige, como se viu, um específico nexo de risco entre o comportamento agressivo e o resultado mais grave (morte ou ofensa à integridade física grave) — e que à realização dolosa do crime fundamental esteja directamente ligado o perigo específico que venha a cristalizar no evento agravante. Neste caso nº 12-B, o crime fundamental doloso mostra-se consumado: A, actuando dolosamente, fez com que B se precipitasse duma altura de 3,5 metros. Mas como não parece existir aqui uma estreita conexão entre a lesão corporal e a morte de B, que só veio a ocorrer na sequência de um prolongado internamento, haverá quem recuse em hipóteses como esta a aplicação do artigo 145º. O sentido e o alcance dos crimes preterintencionais exigem “uma adequação aferida nos termos mais estritos e exigentes”: i) por um lado aferida em concreto e relativamente ao crime fundamental doloso 343 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. cometido, no âmbito das circunstâncias e condicionalismos de que se revestiu; ii) por outro lado particularmente rigorosa na valoração normativa dos resultados ou eventos verificados e cuja imputação ao agente se discute; iii) finalmente, e sobretudo, impondo não só a comprovação positiva de que o crime fundamental doloso, tal como foi concretamente cometido, era tipicamente idóneo a arrastar consigo o evento agravante, mas também a comprovação negativa autónoma da inexistência de qualquer circunstância atípica que pudesse ter podido ocasionar o resultado agravante. (Figueiredo Dias; ainda, J. Wessels, Strafrecht, BT 1, 17ª ed., p. 63). Nos anais dos tribunais portugueses pode fazer-se o confronto com o caso de A, que podendo prever a morte de B, empurra-o com violência para trás, quando ambos se encontravam sobre um patamar em cimento, sem gradeamento ou qualquer outra protecção, situado a cerca de 2 metros do solo, fazendo cair a vítima de costas e bater com a cabeça no pavimento alcatroado da rua, em resultado do que sofreu fracturas necessariamente determinantes da morte. O Supremo (acórdão de 5 de Julho de 1989, BMJ-389-304) não hesitou em integrar a situação nos artigos 144º, nº 1, e 145º, nº 1, e condenou A, atentas as circunstâncias (os dois eram amigos, tinham estado a beber, o arguido andava dominado por um período de desorientação, por estar sem trabalho — e, em especial, uma reacção incompreensível da vítima), na pena de 3 anos de prisão. 4. CASO nº 12-C (caso Rötzel): A, quando se encontrava no andar superior da casa de sua mãe, agrediu B, a empregada doméstica, causando-lhe uma ferida profunda no braço direito e fractura do osso do nariz. O Tribunal veio a apurar que a empregada, amedrontada perante a intenção manifestada por A de continuar a agredi-la, procurou fugir pela janela do quarto para um terraço anexo, mas caiu e veio a morrer por causa dos ferimentos sofridos na queda. Já vimos, como exemplo de um crime qualificado pelo resultado (artigos 18º e 145º), o caso de quem, sem intenção homicida, golpeia a cabeça de outrem com uma pistola carregada, a qual, sem a vontade do agente, se dispara com a pancada e mata a vítima; para alguns autores terá idêntica estrutura a hipótese jurisprudencial em que a vítima das pancadas é projectada para a estrada, acabando por morrer atropelada. Mas as coisas complicam-se quando a vítima enceta a fuga perante o agressor e se expõe a uma situação de perigo para a vida. Os tribunais alemães [já antes das alterações do Código, em 1998] negam-se a enquadrar nos crimes qualificados pelo resultado alguns destes casos, especialmente quando o 344 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. perigo de lesão se esgota num único ataque. Em geral, no plano da causalidade, a jurisprudência opera com os critérios alargados da teoria da equivalência, a qual, aplicada aos feitos de moldura penal agravada, torna exigível a adopção de critérios correctivos e limitadores. Daí que, se a morte ocorreu indirectamente, quando a vítima tentava a fuga, o risco típico, específico dos crimes qualificados pelo resultado, não se realizou, não foi a ofensa sofrida que causou a morte da vítima. A consequência deve portanto surgir directamente do crime fundamental, sem a mediação do comportamento imputável da vítima ou de terceiro (Jakobs, AT, p. 331). No caso nº 12-C poderemos dar o nosso aplauso à seguinte solução: a reacção de B verificou-se na sequência de violenta agressão, de que são prova a natureza e a gravidade das lesões sofridas, e na iminência de voltar a ser agredida, B, procurando a fuga, pretendeu afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameaçava a sua integridade física — não lhe era exigível comportamento diferente (cf. o artigo 35º, nº 1). A concreta actuação de A era tipicamente idónea a arrastar consigo o evento agravante e deste não se pode dizer que foi obra da própria vítima, que manifestamente actuou em situação de pânico (daí que se não possa negar que a morte é directamente decorrente do perigo específico associado ao comportamento do agente). Nem, aliás, a morte resultou de acidente imprevisto que afectasse a relação de adequação entre aquela actuação do A e o evento agravante. Em suma: a morte de B é expressão de um perigo específico contido no comportamento de A e esse perigo específico encontra-se directamente relacionado com a agressão sofrida. A solução poderia ser diferente se a agressão já estivesse terminada e a vítima morresse, por ex., numa queda por não prestar atenção ao caminho por onde se retirava em pranto desatado. Nesta eventualidade, a morte aparecia como circunstância atípica de um processo causal em que o agente do crime de ofensas corporais já não estava envolvido. Ultrapassada a questão da imputação objectiva, nos termos referidos, restaria ao intérprete aplicar o artigo 18º. A violação do dever de cuidado era manifesta face ao agir de A, a quem se impunha que evitasse a lesão dos interesses de B. Resta por isso averiguar, como já se disse, a previsibilidade individual (subjectiva) do evento mortal, enquanto elemento da negligência. 345 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Certos crimes, como os “incêndios, explosões, inundações”, etc., são especialmente dotados para aparecerem qualificados pelo resultado: como crime fundamental, o ilícito do artigo 272º tem todas as condições para dele resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa. Outros crimes com idêntica aptidão são os dos artigos 273º, 277º, 280º, 282º, 283º, 284º, 287º a 291º — cf. o que, a confirmar isso mesmo, se dispõe nos artigos 285º e 294º. O roubo é também um desses crimes: cf., no artigo 210º, nº 3, a pena de prisão de 8 a 16 anos, idêntica à do homicídio do artigo 131º, com que se pune o autor do roubo de que resulta a morte de outra pessoa. Responda agora: por que motivo há um roubo agravado pelo resultado morte, ou um crime de violação agravado pelo evento mortal (artigos 164º, nº 1, e 177º, nº 3), e não há um crime de coacção agravado pelo mesmo resultado? II. Nexo de preterintencionalidade? — artigos 18º e 145º 1. CASO nº 12-D: C seguia conduzindo o seu automóvel por uma das ruas da cidade quando lhe surgiu uma criança a curta distância, vinda, em correria, de uma rua perpendicular. C conseguiu evitar o embate à custa de repentina travagem, mas, no momento seguinte, V, homem dos seus 30 anos, que seguia a pé pelo passeio, começou a invectivá-lo em alta grita pelo que tinha acontecido. Perante o avolumar da exaltação e do descontrolo de V, C, indivíduo alto e fisicamente bem constituído, saíu do carro e pediu-lhe contenção, obtendo como resposta alguns insultos que, indirectamente, envolviam a mãe de C. Este reagiu dando dois murros em V, que o atingiram na cara e no pescoço. V começou então a desfalecer e, apesar de C lhe ter deitado a mão, caiu, sem dar acordo de si. Transportado a um hospital, acabou por morrer, cerca de meia hora depois. A autópsia revelou que a morte foi devida a lesões traumáticas meningo-encefálicas, as quais resultaram de violenta situação de “stress”, e que a mesma ocorreu como efeito ocasional da ofensa. Esta teria demandado oito dias de doença sem afectação grave da capacidade de trabalho. A questão aponta, prima facie, para o chamado crime preterintencional ou agravado pelo resultado, o qual, visto no recorte típico do artigo 145º, nº 1, do Código Penal, se reconduz à existência de um crime fundamental doloso e de um evento agravante, não abrangido pelo dolo inicial do agente, a par de uma especial agravação da pena cominada para a reunião daquele crime fundamental doloso com o resultado. A abordagem do crime preterintencional faz-se acompanhar, frequentemente, duma análise diacrónica com raízes no versari in re illicita (v. i. r. i.), teoria sustentada muito especialmente pelo direito canónico, segundo a qual, quem se dispõe a realizar algo não permitido, ou com “animus nocendi”, fica responsável 346 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pelo resultado danoso que a acção vier a ocasionar. A teoria remonta, aliás, à chamada “irregularidade”, que tinha a ver com a exclusão de pessoas indignas para o desempenho de funções eclesiásticas (cf. Ed. Mezger, Derecho Penal, PG, Libro de estudio, Buenos Aires, 1957, p. 235; H. Blei, Strafrecht, I. AT, 18ª ed., 1983, p. 118). Já nas primeiras décadas do século vinte, o “delitto preterintenzionale” ficara contemplado no Código Rocco (artigos 42º e 43º), verificando-se quando “dall’azione od omissione deriva un evento dannoso o pericoloso piú grave de quello voluto dall’agente”. Ainda assim, e durante muito tempo, especialmente por influência do direito prussiano, continuou a estabelecer-se uma agravação da pena meramente objectiva, com as consabidas consequências, o que levou um penalista, em certa altura, a falar em “ignominiosa afronta”, permitindo ainda que, ultrapassada a questão, se recordasse um “despojo quase fóssil de um época passada do direito penal”. Foi Radbruch, um dos máximos representantes do conceito psicológico da culpa, quem concretizou a ideia da exclusão da culpa quando o resultado não era imputável a uma actuação dolosa ou negligente de quem o havia causado: nos crimes qualificados pelo resultado, o resultado qualificante cuja produção determina uma pena mais grave só pode ser imputado quando tenha sido causado ao menos por negligência. De qualquer modo, entre nós, ainda em 1977 o Dr. Maia Gonçalves escrevia, porventura a esconjurar hesitações ou mal entendidos, que no homicídio preterintencional o resultado (morte) não pode ser imputado dolosamente ao autor que só teve intenção de ofender corporalmente, acrescentando, de modo significativo, “que a jurisprudência do Supremo tem, ultimamente, exigido a negligência do agente quanto à produção do resultado”. A este entendimento, que se prolonga na rejeição da mera responsabilidade objectiva no domínio do penal, não terão sido alheios os trabalhos contemporâneos de Figueiredo Dias, em especial a “Anotação” ao acórdão do Supremo de 1 de Julho de 1970, que veio a ser publicada na Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XVII, nºs 2, 3 e 4, em clara sintonia com as teses do Anteprojecto, onde se fazia a exigência expressa da negligência do agente na produção do resultado (cf. Actas das sessões da Comissão Revisora, Acta da 4ª sessão, artigo 157º). Exigência essa que só não estará agora a acompanhar o correspondente artigo 145º, como se pretendia, por ter sido levada à parte geral do Código, incluída no artigo 18º, que, seguindo o modelo germânico (§ 18 do StGB), dispõe que “quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação é sempre condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência”. De modo que “a culpa continua a ser exigida e, consequentemente, a ter que ser provada a sua existência” (acórdão do STJ de 7 de Março de 1990, CJ, ano XV (1990), tomo II, p. 9). 347 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Acontece, todavia, que o sistema do facto punível é sequencial. Não pode proceder-se ao tratamento sistemático de um determinado problema de forma arbitrária, por existir uma hierarquia normativa dos graus de imputação (cf. W. Hassemer, Einführung, p. 203). Ainda que o conhecimento das diversas vertentes em que se desdobra a negligência, em casos como o que temos em mãos, seja o seu momento culminante, não se dispensa a análise prévia da existência dos restantes elementos objectivos do tipo, muito especialmente do nexo objectivo que porventura ligue a acção ao resultado. Ora, está fora de dúvida que C agrediu V corporalmente, em termos de lhe produzir, como consequência da sua actuação dolosa, oito dias de doença. A mais disso, o resultado mortal — que na sua expressão naturalística, enquanto acontecimento infausto e infelizmente definitivo, também não deixa espaço para discussão —, fica vinculado à apreciação da relação causal, como qualquer outro pressuposto geral da punibilidade. Está em causa, portanto, um comportamento humano e todas as suas consequências. De acordo com a teoria das condições, de que tantos juristas ainda continuam a fazer uso, a morte de V foi causada pela agressão. Com efeito, nesse contexto, todas as condições do resultado são equivalentes... Causa será, no sentido indicado, toda a condição de um resultado que não possa suprimir-se mentalmente sem que desapareça o resultado na sua forma concreta. É a fórmula da condicio sine qua non: causa do resultado é qualquer condição, positiva ou negativa, que suprimida in mente faria desaparecer o resultado na sua forma concreta (Mezger). Se procedermos a essa operação mental, com apego ao que aconteceu, i. é, suprimindo a agressão, logo se vê que o resultado não teria ocorrido, pelo menos nas circunstâncias que se encontram relatadas. Cedo se reconheceu, porém, que uma tal maneira de proceder, especialmente quando associada a casos destes, era claramente insuficiente, carecendo de ser demonstrada uma estreita relação entre a conduta do agente e o evento mortal. De modo que hoje em dia se situa a solução, predominantemente, na área das (modernas) doutrinas da imputação objectiva, ou se faz apelo à conhecida “teoria da causalidade adequada”, que se diz estar consagrada no Código Penal (artigo 10º). Não bastará portanto a simples afirmação da causalidade, é ainda necessário que à realização dolosa do crime fundamental esteja ligado um perigo específico que venha a 348 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. cristalizar no evento mortal. Só então existe o especial conteúdo do ilícito que justificará a pena realmente mais grave, correspondente ao crime agravado pelo resultado. O intérprete deve, desde logo, atender à maneira como o crime fundamental doloso foi cometido. Uma lesão corporal dolosa pode, aliás, revelar o perigo que lhe é característico não só pela natureza do resultado lesivo mas também pela concreta maneira de actuar do agressor. No caso nº 12-D as lesões teriam demandado um período de doença por oito dias, pelo que não podem ter sido elas, em si mesmas, a causa adequada do resultado letal. Concretamente consideradas, não são um meio idóneo para provocar a morte, nem esta pode reputar-se uma consequência normal e frequente daquela causa. Aliás, a confirmar isso mesmo, a perícia médico-legal não deixa de acentuar que a morte “ocorreu como efeito ocasional da ofensa”, o que põe de manifesto a própria impossibilidade de, transcendida a abstracta consideração dos fenómenos, se afirmar qualquer nexo de adequação. Nem outra conclusão seria compatível, em boa verdade, com a global consideração dos factos que rodearam a agressão: a vítima, exaltada, foi agredida a soco, começou a desfalecer e acabou por cair ao chão, num quadro humano perfeitamente compatível com a situação de stress que o relatório da autópsia também invoca. Não se apurou directamente a violência da agressão, mas o efeito, limitado a oito dias de doença, deixa margem ao entendimento de que se não ultrapassou o trivial de tais casos. Por outro lado, mesmo tratando-se de agressor mais forte‚ tudo indica que não terá sido a violência da pancada a determinar a queda do atingido, mas o desfalecimento de que ficou possuído. Podemos por isso concluir com a indispensável segurança que a morte do infeliz V se deu em circunstâncias especialmente extraordinárias e improváveis, situando- se fora do curso normal dos acontecimentos, em termos de, não podendo ser “obra” de C, também não concorrer para um nexo de preterintencionalidade. O artigo 145º não tem aqui aplicação. Resta a norma residual do artigo 143º, nº 1, do Código Penal, que deverá aplicar-se enquanto tipo de recolha, e cujos elementos objectivos e subjectivos se encontram preenchidos. 349 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2. CASO nº 12-E: A e B desentendem-se um com o outro quando, ao volante dos respectivos automóveis, seguem por uma das auto-estrada mais movimentadas do País, onde é quase contínuo o tráfego de grandes camiões de mercadorias. Acabam por parar na berma da auto-estrada, abandonam os carros e, por entre ameaças, A desfere um murro na cara de B. A seguir, saca de uma faca que levava consigo e só não a espeta no abdómen de B, como pretendia, porque este, num gesto repentino, se desvia. Ao desviar-se do golpe é, no entanto, apanhado pelo rodado traseiro de um dos camiões que por ali transitam. Os ferimentos sofridos com o atropelamento provocaram-lhe a morte. A, como o Tribunal mais tarde averiguou, não teve em momento algum dolo homicida. Neste caso, a agressão era actual e estava consumada. B desviou-se para evitar uma lesão mais grave. O impulso corresponde a uma reacção defensiva perfeitamente elementar, podendo afirmar-se o específico nexo de perigo entre o comportamento agressivo (doloso, consumado) e o resultado mortal. O crime fundamental doloso, tal como foi concretamente cometido, era tipicamente idóneo a arrastar consigo o evento agravante. Resta agora saber se, de acordo com os conjugados artigos 18º e 145º, o agente é responsável, a título de negligência, pelo evento mortal. A análise começa, portanto, com a realização do crime fundamental e o perigo que dele resulta para a vida da vítima, mas na afirmação da negligência não se pode prescindir da previsibilidade individual (subjectiva) do resultado mortal. Esta solução não encontrará unanimidade. O Tribunal alemão que em 1971 apreciou o caso Rötzel excluiu o crime preterintencional, na falta de uma relação directa entre o evento mortal e a agressão — acabando por responsabilizar o agressor por um crime doloso contra a integridade física e um homicídio negligente. A solução alemã para casos destes, encontrada no plano da unidade criminosa entre um crime doloso de ofensas corporais e um homicídio negligente, não tem correspondência entre nós, onde não se faz a distinção entre as regras do concurso ideal e as do concurso real de crimes. 3. CASO nº 12-F: A, para roubar B, agride-o, batendo-lhe na cabeça com uma barra de ferro. A não actuou com dolo homicida, mas deu-lhe com tanta força que B não resistiu à violência da pancada e morreu. O roubo é um crime complexo, composto de furto e coacção — o ladrão apodera-se da coisa alheia mas para a conseguir constrange outra pessoa a suportar a subtracção. A norma dirige-se em primeira linha à tutela da propriedade. E embora se proteja ao mesmo 350 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. tempo a liberdade individual, o atentado à liberdade representa apenas o meio para a realização do crime contra a propriedade. Deste modo, sendo o roubo um crime autónomo —e não, simplesmente, um furto agravado pelo emprego da violência—, comete tal ilícito aquele que, empregando a força contra outra pessoa, lhe tira a coisa que esta tem em seu poder, ainda que tal coisa seja de valor diminuto. O artigo 210º, nº 3, é um crime agravado pelo resultado: “se do facto resultar a morte de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”. O preceito aplica-se se qualquer dos ladrões, por negligência, causar a morte de outra pessoa, se, por ex., ao puxar da arma para amedrontar aquele que transporta o dinheiro, provoca um ataque cardíaco na pessoa do idoso que o acompanhava, e que acaba por morrer. “Outra pessoa”, no sentido em que se exprime o preceito, será desde logo o visado pelo roubo, como no caso 12-F. Mas poderá ser alguém alheio ao roubo, por ex., um passante que é atingido por uma bala perdida disparada por um dos assaltantes como forma de colocar a vítima do roubo na impossibilidade de resistir. Exclui-se porém a pessoa de qualquer destes, já que a norma não protege quem, realizando um perigo de vida, se torna responsável pela sua criação. Para haver esta agravação, não basta que o roubo tenha sido condição sine qua non do evento mortal. A mais disso é necessário que a morte resulte do comportamento do ladrão e do específico perigo que lhe está associado. Exemplo: durante um roubo o ladrão envolve-se em luta com a pessoa assaltada. Um dos tiros então disparados vai ferir mortalmente uma pessoa que ia a passar e não teve tempo de buscar refúgio. Há quem todavia identifique uma hipótese destas com a aberratio ictus: tentativa de homicídio na pessoa do visado com o tiro (artigos 22º e 131º) e homicídio negligente do atingido (artigo 137º). A situação de aberratio ictus (desvio de golpe) é um erro na execução, corresponde àqueles casos em que na execução do crime ocorre um desvio causal do resultado sobre um outro objecto da acção, diferente daquele que o agente queria atingir: A quer matar B, mas em vez de B o tiro atinge mortalmente C, que se encontrava ali ao lado. Distingue-se do típico “error in persona vel objecto”. No “error in persona” há uma confusão e não um erro na execução. Assim, no exemplo de Stratenwerth (Derecho Penal, parte general, I, Madrid, 1982), o “assassino” profissional mata um terceiro totalmente alheio, por supor que é a vítima que lhe fora indicada e que só conhece por fotografia. Ou então, durante a fuga, o ladrão dispara 351 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. mortalmente contra a pessoa que hipoteticamente o persegue, quando na realidade se tratava de um seu cúmplice, que igualmente fugia. Certo é que tal agravação já não ocorrerá se os ladrões, pondo-se em fuga de carro, acabam por atropelar mortalmente um peão que atravessava a rua. E se os ladrões se tivessem limitado a roubar os medicamentos urgentes que P transportava com destino a T (“outra pessoa”), o qual, por isso, não foi socorrido e morreu? A propósito do conceito de negligência grosseira e dos graus de negligência, recorda a Prof. Fernanda Palma que nos crimes agravados pelo resultado tenta-se justificar a medida da pena, em certos casos superior à que resultaria do concurso ideal entre o crime doloso-base e o crime negligente, através da exigência de uma negligência qualificada ou grave. (Direito Penal. Parte Especial. Crimes contra as pessoas, Lisboa, 1983, p. 102). Convém porém observar que na actual redacção do artigo 210º, nº 3, já se não exige, como no anterior artigo 306º, nº 4, que o agente actue com “negligência grave”. Considere-se agora o caso nº 12-G. 4. CASO nº 12-G: A, B e C iniciam, como combinado, um assalto aos escritórios da firma x. Sob a ameaça de armas, obrigam todos os presentes a recolherem-se num dos compartimentos, que isolam, e começam a reunir valores para levarem consigo. Porém, como o cofre é demasiado pesado e não conseguem transportá-lo pelas escadas, atiram-no por uma das janelas, mas ao cair do 5º andar o cofre atinge P, que por ali passava e que vem a morrer devido às lesões sofridas. Não será aqui decisivo apreciar a questão do segmento temporal de aplicação do artigo 210º, nº 3, i. é, saber se na agravação se incluem os casos letais ocorridos depois de conseguida a subtracção — se a morte, ocorrendo já em momento seguinte ao da disponibilidade do cofre pelos ladrões, ainda se dá no desenvolvimento deste crime, sem que isso se confunda com a violência “depois da subtracção”, típica do artigo 211º, a qual vai obrigatoriamente acompanhada da intenção de conservar ou não restituir as coisas subtraídas. Ainda assim, é pertinente perguntar se, in casu, o cofre estaria mesmo na disponibilidade dos assaltantes, que até tiveram necessidade de o atirar pela janela para acederem aos valores lá guardados. Quando é que afinal se consumou o crime? ou, o que dá no mesmo, como é que se “rouba” um cofre? 352 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. No plano objectivo, o evento agravante tem de ser em concreto consequência adequada do crime-base de roubo (simples), devendo averiguar-se se neste se continha um perigo típico, nos termos antes definidos. Como também já se acentuou, podem não ser lineares as seguintes constelações de casos: a morte de “outra pessoa” ocorre por acidente; é devida ao comportamento de um terceiro (princípio da confiança); é devida ao comportamento da própria vítima (princípio da auto-responsabilização). Mas não pode ser imputada aos assaltantes a morte de quem os persegue após o roubo sem qualquer reacção destes; ou de quem morre com os disparos do polícia que vai em perseguição do ladrão. Também se não dá a agravação deste crime, no sentido indicado, se um passante é atingido por uma rajada descontrolada do ladrão que procura a fuga, depois de irremediavelmente frustrada a acção; nem no caso daquele que é atropelado pela carrinha que transporta o produto do assalto e se despista por excesso de velocidade. No caso nº 12-G haverá quem afirme que o crime só poderá ser o do artigo 137º (homicídio por negligência) em concurso efectivo com um crime de roubo (este eventualmente agravado em razão do emprego de arma). E com razão, a nosso ver. Com efeito, a vítima morreu por lhe ter caído o cofre em cima, mas o perigo de isso acontecer não era específico do roubo, podia surgir dum crime de furto, executado sem violência contra as pessoas, bastando que os ladrões tivessem entrado na casa ou no escritório desertos, numa altura em que ninguém mais ali se encontrasse, e procedessem de modo idêntico com o cofre. Não deixa de ser verdade, por outro lado, que a morte do transeunte ocorreu já depois de empregados os meios coercivos (ameaça com arma de fogo) tendentes a colocar a pessoa visada pelo roubo na impossibilidade de lhes resistir. Vejamos, ainda a propósito, o seguinte caso. CASO nº 12-H: A e B fazem um cerco ameaçador a C, quando o encontram sozinho numa zona montanhosa, onde o frio é intenso e o tempo mostra muito má cara. Pretendem, e conseguem por esse processo, que este lhes entregue toda a roupa que levava vestida, incluindo um excelente casacão que lhe custara mais de mil euros na semana anterior. C morre de frio ao fim de algum tempo de exposição às intempéries. 353 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Num caso destes, relativamente à morte de C, bem difícil seria afastar o dolo (ao menos eventual). O castigo dos dois ladrões seria então por roubo (simples) e homicídio doloso, em concurso efectivo: antigo crime de latrocínio — a menos que se possa sustentar diferente solução com base no exemplo-padrão da alínea c) do nº 2 do artigo 132º, invocando-se a avidez do ladrão (punição por homicídio qualificado, cujo desvalor consumirá o do roubo), ou afirmando-se a relevância de qualquer outra circunstância do nº 2 do artigo 132º. Roubo e homicídio: latrocínio. O Código Penal de 1886 continha no artigo 433º (latrocínio) uma figura em que concorriam os elementos típicos dos crimes de homicídio e roubo. Actualmente, o Código não conhece a figura criminal complexa do latrocínio. As situações em que o roubo é acompanhado de homicídio voluntário da vítima, sendo distintos os bens jurídicos tutelados, passaram a constituir a comissão, em concurso real, de dois crimes autónomos, o de roubo e o de homicídio. Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 22 de Fevereiro de 1995, BMJ-444-217; de 29 de Abril de 1987, BMJ-366-332; de 16 de Março de 1994, CJ do STJ, ano II, 1º tomo, p. 247; e de 29 de Maio de 1991, BMJ-407-205. Pense-se, contudo, na solução apontada para a especial censurabilidade do criminoso, se for caso de detectar a avidez como exemplo-regra: o crime de homicídio será então o qualificado, absorvendo o desvalor do de roubo. Poderá até ser caso em que o homicida teve “em vista encobrir” o outro crime ou assegurar a sua impunidade, o que igualmente remete para exemplo-padrão do nº 2 do artigo 132º, desta vez o da alínea e). Vamos supor, no entanto, que não houve dolo homicida, ou que este se não provou — e recordemos que o homicídio negligente só pode resultar do facto, que não poderá ter lugar como motivo sob pena de configurar um absurdo. Consideremos que a vítima do roubo da roupa morreu de frio, mas que o mesmo poderia ocorrer com a simples subtracção, como naquele caso em que alguém toma banho, deixando a roupa descuidadamente à distância, e o ladrão aproveita para lha levar, vindo o infeliz banhista a morrer num resfriado, por entretanto se terem alterado profundamente as condições atmosféricas. No caso nº 12-H, o perigo do resfriamento da vítima do roubo não é típico deste, o mesmo poderia ter ocorrido por ocasião dum simples furto da roupa. Ainda que se possa estabelecer uma relação causal entre a violência empregada contra C e a subtracção da roupa, cuja falta provocou a morte deste pelo frio, não existe qualquer relação específica de risco entre os meios coactivos empregados e o evento mortal. Consequentemente, não aplicaremos o tipo preterintencional do artigo 210º, nº 3. Chegaríamos a idêntica solução, se o C, ao procurar um caminho de fuga, ou ao pretender 354 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. chegar à povoação seguinte o mais depressa possível para fugir duma ameaçadora tempestade, tivesse caído no abismo por não prestar atenção ao trilho por onde caminhava. III. Crime agravado pelo resultado; dolo de dano e dolo de perigo; violação do dever de cuidado. 1. CASO nº 12-I: A quer dar uma lição a B e não se importa mesmo de o mandar para o hospital a golpes de matraca, mas como o quer bem castigado afasta completamente a hipótese da morte da vítima, a qual, inclusivamente, lhe repugna. A morte de B, todavia, vem a dar-se na sequência da sova aplicada por A. Repare em que há aqui três resultados: as ofensas são provocadas com dolo de dano; o perigo para a vida fica coberto com o chamado dolo de perigo; a morte, subjectivamente, pode vir a ser imputada a título de negligência, por violação do dever de diligência. A representou as ofensas à integridade física de B e quis provocar-lhas. Além disso, representou o perigo para a vida deste, embora tivesse afastado por completo a hipótese de lhe provocar a morte. Apesar da morte de B, fica afastado o homicídio doloso, por falta de dolo homicida, mesmo só na forma eventual. A, no entanto, provocou ofensas à integridade física de B e quis isso mesmo; além disso, representou o perigo para a vida deste: a hipótese cai desde logo na previsão do artigo 144º, d). Um dos elementos típicos deste crime é a provocação de perigo para a vida: o crime é de perigo concreto e o agente deve representar o perigo que o seu comportamento desencadeia, tem de agir com dolo de perigo. Mas se para além do resultado de ofensas à integridade física querido pelo agente e do resultado de perigo para a vida que o mesmo representa se der o resultado morte, que excede a intenção do agente, podendo este, no entanto, ser-lhe imputado a título de negligência (artigo 18º), o crime é punido com a pena de prisão de 3 a 12 anos — artigos 18º, 144º, d), e 145º, nº 1, b). Como o faria uma pessoa medianamente sensata, A devia ter previsto, ao agredir B com sucessivos golpes de matraca, a possibilidade de vir a ocorrer o resultado letal, e como igualmente podia ter previsto, tal evento é-lhe subjectivamente atribuído com base na violação do dever de cuidado. 355 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. IV. Os crimes contra a liberdade agravados pelo resultado Repare-se agora que qualquer crime pode levar a uma consequência atípica mais grave. Imagine-se o dono da coisa furtada que corre atrás do ladrão mas escorrega, bate com a cabeça na calçada e morre; ou alguém que ao passar na rua leva com o cofre atirado do 5º andar, como se ilustrou em exemplo anterior. Ainda assim, o legislador só introduziu a agravação pelo resultado para certos crimes, em atenção à tendência geral para os mesmos produzirem tais consequências. E isso com base no perigo típico contido no crime fundamental, pois só então se verificará o necessário nexo entre ele e a consequência agravante (cf. Roxin, AT, p. 271; e I. Puppe, AT, p. 218). As exigências que, como vimos, se colocam quando tratámos das ofensas à integridade física dolosas entre o crime fundamental e o evento mortal ou a ofensa corporal mais grave explicam-se —escreve I. Puppe— pela grande amplitude do crime doloso de ofensas corporais, que se inicia num nível de ilicitude bastante baixo. Pense-se por ex. numa bofetada, a que muito raramente se seguem resultados mais graves. Bem diferente será o empurrão dado no condutor apeado na berma de uma auto-estrada de grande movimento ou em alguém que trabalha junto a uma máquina trituradora em movimento. Os crimes contra a liberdade, por ex., o sequestro (artigo 158º), comportam geralmente, desde que se iniciam, um elevado nível delitivo. Por isso mesmo, pode-se prescindir, no que respeita à conexão entre o ilícito básico e a consequência agravante, de exigências significativas. Se no caso nº 12-C o agressor igualmente mantém presa a empregada doméstica, de modo que a morte desta tanto pode ser explicada por a vítima procurar libertar-se da agressão como da detenção em que é mantida —a morte, como evento agravante, irá entroncar no sequestro e não na ofensa que se produziu. Vejamos o CASO nº 12-J (ainda Puppe, p. 219): A e B deitaram a mão a C, filho dum rico industrial, para conseguirem deste um elevado resgate. Meteram o preso num caixote de madeira com uma aparelhagem ligada por um cabo a uma corrente eléctrica, informando-o da existência de um microfone no interior, de modo que se ele gritasse ou procurasse fazer barulho ou mesmo libertar-se a corrente ligava-se, com “desagradáveis” consequências para o detido. A e B meteram o caixote numa viatura e um deles bateu a porta com tal violência que acabou por ligar a corrente eléctrica. A vítima sofreu com isso lesões na coluna de tal modo graves que ficou impossibilitada de se movimentar. 356 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Neste caso, verifica-se, sucessivamente, a lesão da liberdade e a manutenção dessa situação estando a vítima encerrada no “caixote eléctrico”, bem como a produção do evento agravante, ou seja, a ofensa à integridade física grave (artigos 144º, alínea b), 158º, nºs 1 e 2, alínea d), e 160º, nº 1, alínea c), e 2, alínea a)). Além disso, ocorre um comportamento negligente do agente que bate com a porta da viatura, o qual afinal não serviu para manter detida a vítima, como se pretendia, mas que ainda assim representa um acto de execução do crime contra a liberdade, por ser apto a prolongar no tempo a conduta ofensiva. Morresse a vítima simplesmente por ter tido um ataque cardíaco no cativeiro do “caixote eléctrico”, poderia igualmente concluir-se pela agravação pelo resultado (artigos 158º, nº 3, e 160º, nº 2, alínea b): “se da privação da liberdade resultar a morte da vítima…”), por ser típico de todos os crimes contra a liberdade que da vítima se apodere uma situação de medo e angústia. O correspondente perigo realizava-se por ter a vítima sofrido um enfarte mortal, na sequência dessa situação de stress. Os piratas do ar, recorda Puppe, devem em regra contar que entre os passageiros ou a tripulação do avião haja uma pessoa com insuficiência cardíaca. Por razões semelhantes, fica a cargo dos sequestradores a agravação da responsabilidade quando a pessoa mantida sob sequestro acidentalmente morre ao intentar libertar-se, ou é atingida pelos tiros disparados pela polícia que supunha tratar-se de um dos criminosos, ou quando é transportada de carro para outro esconderijo e vem a morrer no despiste da viatura, por negligência do condutor, um dos sequestradores.. V. Ainda os crimes agravados pelo resultado. 1. CASO nº 12-K. O comportamento de terceiro como factor causal. Sem dolo homicida, A agrediu B várias vezes, dando-lhe com um martelo na cabeça, de tal modo que B perdeu a consciência, pensando o agressor que lhe tinha tirado a vida. A foi logo contar a C, um seu familiar, tudo o que se tinha passado, tendo-se este dirigido de imediato à casa onde jazia a vítima, que conseguiu pendurar pelo pescoço, simulando um suicídio. A autópsia revelou que as pancadas produzidas com o martelo eram absolutamente idóneas a provocar a morte de B, ainda que esta tivesse ocorrido por efeito do estrangulamento, quando C pendurou com uma corda o que supunha ser um cadáver. A especialidade deste caso está na intromissão do terceiro que actua no interesse do agente e que provoca a morte da vítima, sem intenção de a apressar, não obstante isso ter acontecido. O A, com as pancadas de martelo, produziu um perigo de morte para a 357 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. vítima, a qual sempre viria a ocorrer por via das ofensas, ainda que algum tempo mais tarde. Se o C não tivesse intervindo no processo causal, a morte ter-se-ia produzido através de um processo causal que cumpriria tanto a exigência de ela ter ocorrido de forma imediata, como os requisitos da realização do perigo específico contido na ofensa corporal, que sem dúvida estava consumada, era letal e fora produzida dolosamente. 2. CASO nº 12-L. O comportamento da vítima como factor causal. A e B, actuando concertadamente, ainda que sem dolo homicida, agrediram C na cabeça, de forma tão violenta que esta teve que ser conduzida ao hospital e internada. Aí foi-lhe observado que corria perigo de vida se não se mantivesse em repouso e sujeita aos tratamentos prescritos. Ainda assim, C, que era uma alcoólica inveterada, logo que viu uma oportunidade, abandonou o hospital para procurar o que beber, mas veio a morrer três dias mais tarde, com uma comoção cerebral, que nas condições de hospitalização teria sido detectada e convenientemente tratada. Punibilidade de A e B? 3. CASO nº 12-M: A e B, depois de uma discussão com C, homem dos seus 60 anos, perseguiram- no e, em conjugação de esforços, agrediram-no repetida e violentamente, a soco e pontapés, na cabeça e pelo resto do corpo. Fora a cana do nariz partida, C sofreu apenas extensas contusões pelo corpo, mas com a excitação e a angústia o coração não aguentou e pouco depois C teve dois ataques cardíacos sucessivos, tendo morrido por altura do segundo. Punibilidade de A e B? VI. A propósito do artigo 18º e da expressão pelo menos “Este preceito, claramente inspirado pelo § 18 do StGB, constitui um afloramento do princípio da culpa, consagrado mais amplamente no artigo 13º, e constitui uma inequívoca proclamação da inadmissibilidade de responsabilização penal objectiva. A exigência mínima de negligência, como título de imputação subjectiva, não admite — apesar da ambiguidade da expressão “pelo menos”, também utilizada pelo legislador alemão (“wenigstens”) — a consideração de que se prevê, implicitamente, a agravação pelo resultado doloso. A existir dolo quanto a um evento típico, não haverá lugar à agravação pelo resultado mas sim à punição segundo o crime doloso — o que resulta do próprio princípio da culpa. A expressão “pelo menos” só pode, assim, ser entendida num contexto mais amplo de exclusão da responsabilidade objectiva, sem implicar a admissibilidade da agravação pelo resultado obtido a título de dolo, ou pode ser referida, quando se pretenda compreendê-la à luz de uma real alternativa de imputação, à hipótese de negligência grosseira ou grave (para a agravação pelo resultado basta a existência de negligência simples, podendo haver também negligência grosseira ou grave). Mas à expressão “pelo menos” parece-nos ainda 358 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ser atribuível um outro sentido, quando o evento mais grave não constitua resultado de nenhum tipo de crime (doloso). É o que sucederá, por exemplo, no crime de sequestro que tiver como resultado o suicídio da vítima (alínea e), nº 2, do artº 160 do Código Penal de 1982). Neste caso, mesmo que o agente queira que a vítima se suicide, mas desde que não pratique actos executivos dos crimes de homicídio ou de incitamento ou ajuda ao suicídio, deverá ser punido nos termos do nº 2 do artigo 160º, à semelhança do que acontece quando o suicídio da vítima lhe é imputável a título de negligência. (...).” (Rui Carlos Pereira, O Dolo de Perigo, 105). Cf., ainda, Rui Carlos Pereira, O crime de aborto e a reforma penal, 1995, p. 37; J. Damião da Cunha, Tentativa e comparticipação nos crimes preterintencionais, RPCC, 2 (1992), p. 561. VII. Participação em crime agravado pelo resultado 1. CASO nº 12-L: A pretende dar uma sova na pessoa de B e para isso utiliza uma matraca, atingindo-o, porém, na cabeça e produzindo-lhe aí lesões que foram a causa directa da morte de B. A não tinha sequer previsto o evento mortal como consequência da sua actuação. Acontece que o A tinha sido induzido por C a dar a sova no B, mas o C, quando convenceu o outro, nem sequer tinha pensado em que o B podia morrer. Punibilidade de A e C? A ofendeu B, voluntária e corporalmente (artigo 14º, nº 1), ficando desde logo comprometido com o disposto no artigo 143º, nº 1, sem que se verifique qualquer causa de justificação ou de desculpação. Como A ofendeu o corpo de B, e este veio a morrer, põe-se a questão de saber se este resultado, que não estava abrangido pelo dolo inicial de A, deve ser imputado à actuação deste, agravando o crime, nos termos do artigo 145º. A agravação exige a imputação do evento ao agente sob os dois aspectos da imputação objectiva e da imputação subjectiva: artigo 18º. Ao desvalor do resultado (no exemplo, a morte) acresce o desvalor da acção que se traduz na previsibilidade subjectiva e na consequente violação de um dever objectivo de cuidado (negligência). As dificuldades relacionam-se mais exactamente com a instigação nos crimes agravados pelo resultado e portanto com a responsabilidade de C, que convenceu o autor principal a dar a sova no B, embora sem ter, também ele, pensado nas consequências mortais. Como se sabe, a instigação deverá dirigir-se à consumação dum facto doloso: “quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto” (artigo 26º). No caso concreto, 359 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. só o ilícito base, de ofensa à integridade física, é que foi praticado dolosamente, a morte só poderá ser imputada a título de negligência. Pondere-se a solução do concurso (cf. J. Damião da Cunha, RPCC 2 (1992), p. 579): C será instigador do crime fundamental doloso e autor do crime negligente, se, relativamente a este, estiverem reunidos os correspondentes pressupostos (previsibilidade subjectiva e violação do dever de cuidado). E pense-se — 2ª hipótese de trabalho — em que, no artigo 18º, a expressão “agente” pode entender-se como remetendo para qualquer das formas de “comparticipação” admissíveis (artigos 26º e 27º). “No fundo, pois, a questão é a de saber qual a interpretação a dar à palavra “agente” (autor ou comparticipante) ... em função do papel que desempenha nos quadros do CP... aceitando a possibilidade de comparticipação no âmbito do artigo 18º” (ainda J. Damião da Cunha, e JA 1989, p. 166). VIII. Outras indicações de leitura • Acórdão do Tribunal Constitucional nº 483/2002, de 20 de Novembro de 2002, publicado no DR II série de 10 de Janeiro de 2003: início do prazo prescricional dos crimes agravados pelo resultado. Consumação para fins de punição e efeitos para fins de contagem de prazo prescricional. • Acórdão do STJ de 1 de Junho de 1994, BMJ-438-197: nexo de causalidade; regras da experiência comum; empurrão que leva alguém a embater com a cabeça numa parede. • Acórdão do STJ de 5 de Julho de 1989, BMJ-389-304: A, podendo prever a morte de B, empurra B voluntária e conscientemente para trás, quando ambos se encontravam sobre um patamar em cimento, sem gradeamento ou qualquer outra protecção, situado a cerca de 2 metros do solo, fazendo cair a vítima de costas e bater com a cabeça no pavimento alcatroado da rua, em resultado do que sofreu fracturas necessariamente determinantes da morte. • Acórdão do STJ de 6 de Março de 1991, BMJ-405-185, e CJ 1991-II-5: ofensas corporais — duas fortes bofetadas no ofendido — agravadas pelo resultado — morte; homicídio preterintencional; nexo de causalidade entre o resultado e a acção. • Acórdão do STJ de 7 de Março de 1990, BMJ-395-237: ofensas corporais agravadas pelo resultado; omissão de auxílio; concurso real. • Acórdão do STJ de 7 de Março de 1990, BMJ-395-241: ofensas corporais agravadas pelo resultado (morte); medida da pena. • Acórdão do STJ de 9 de Junho de 1994, CJ, ano II (1994), tomo II, p. 245: empurrão que leva a ofendida a embater com a cabeça numa parede, procedendo o arguido com negligência quando a abandonou sem a socorrer. 360 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do STJ de 13 de Dezembro de 1989, BMJ-392-232: arremesso de balde de chapa esmaltada contra outra pessoa, atingindo-a na cabeça e fazendo-a cair, desamparada, para trás. • Acórdão do STJ de 15 de Junho de 2000, CJ ano VIII (2000), tomo 2, p. 221: morte de menor; castigos corporais como projecto educacional. • Acórdão do STJ de 23 de Maio de 1990, BMJ-397-239: ofensas corporais graves, agravação pelo resultado. • Acórdão do STJ de 26 de Outubro de 1994, BMJ-440-306: homicídio preterintencional. • Acórdão do STJ de 27 de Junho de 1990, BMJ-398-336: ofensas corporais com dolo de perigo de que resultou a morte. • Acórdão do STJ de 9 de Maio de 2001, CJ, ano IX (2001), tomo II, p. 187: agravação pelo resultado; co-autoria, cumplicidade. • Anotação ao Ac. do STJ de 1 de Junho de 1994, BMJ-438-202: com numerosas referências jurisprudenciais. • Actas das sessões da Comissão Revisora, Acta da 4ª sessão (artigo 157º). • Christoph Sowada, Das sog. “Unmittelbarkeits”—Erfordernis als zentrales Problem erfolgsqualifizierter Delikte, Jura 1994, p. 643 e ss. • Conceição Ferreira da Cunha, Comentário ao artigo 210º (roubo), Conimbricense, PE, tomo II. • Eduardo Correia, Crime de ofensas corporais voluntárias, parecer, CJ, ano VII (1982), tomo 1. • Eduardo Correia, Direito Criminal, I, p. 440. • Georg Freund, Entwurf eines 6. Strafrechtsreformgesetzes, ZStW 109 (1997), p. 473. • Gerhard Dornseifer, Unrechtsqualifizierung durch den Erfolg — ein Relikt der Verdachtsstrafe?, in Gedächtnisschrift für Armin Kaufmann, 1989, p. 427. • Gimbernat Ordeig, Delitos cualificados por el resultado y causalidad, 1990, p. 165. • H. Hormazabal Malaree, Imputación objectiva y subjectiva en los delitos cualificados por el resultado, Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, tomo XLII, fasc. III, Madrid, Set./Dez., 1989. • Hans-Ullrich Paeffgen, Die erfolgsqualifizierten Delikte — eine in die allgemeine Unrechtslehre integrierbare Deliktsgruppe?, JZ 1989, p. 220 e ss. • Harro Otto, Grundkurs Strafrecht, BT, 3ª ed., 1991. • Ingeborg Puppe, Strafrecht Allgemeiner Teil im Spiegel der Rechtsprechung, Band I, 2002. • J. Damião da Cunha, Tentativa e comparticipação nos crimes preterintencionais, RPCC, 2 (1992). • Johannes Wessela, Strafrecht, BT-1, 17ª ed., 1993. • Jorge de Figueiredo Dias, “Anotação” ao acórdão do Supremo de 1 de Julho de 1970, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XVII. • Jorge de Figueiredo Dias, Responsabilidade pelo resultado e crimes preterintencionais, 1961 (não publicado). • Jorge de Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal. Doutrina geral do crime. Lições ao 3º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, elaboradas com a colaboração de Nuno Brandão. Coimbra 2001. 361 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • José Cerezo Mir, El “versari in re illicita” en el codigo penal español, in Problemas fundamentales del derecho penal, 1982, p. 60. • Jürgen Wolter, Zur Struktur der erfolgsqualifizierten Delikte, JuS 1981, p. 168 e ss. • Kai-D. Bussmann, Zur Dogmatik erfolgsqualifizierter Delikte nach dem Sechsten Strafrechtsreformgesetz, GA 1999, p. 21. • Küpper, Strafrecht BT 1, 1996. • Küpper, Unmittelbarkeit und Letalität. Zum Tatbestand der Körperverletzung mit Todesfolge, Festschrift für H. J. Hirsch, 1999, p. 615. • Küpper, Zur Entwicklung der erfolgsqualifizierten Delikte, ZStW 111 (1999), p. 785 e ss. • Kurt Seelmann, Grundfälle zu den Eigentums- und Vermögensdelikten, 1988. • Miguel A. Boldova Pasamar, La imputación subjectiva de resultados “más graves” en el Código Penal Español, Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, XLVII, fasc. II, 1994. • Paula Ribeiro de Faria, Comentário ao artigo 145º, Conimbricense, PE, tomo I. • Rudolf Rengier, Strafrecht BT II, 4ª ed., 2002. • Santiago Mir Puig, Preterintencionalidad y limites del articulo 50 del Código Penal, Libro Homenaje al Prof. J. Anton Oneca, 1982, p. 318 e ss. • Volker Krey, Strafrecht BT, Band 1, 9ª ed., 1994. 362 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 5ª Secção. Omissão. § 20 O crime doloso de comissão por omissão I. Omissão; delicta ommissiva; delicta commissiva per ommissionem CASO nº 28: Um casal, cujas relações estão praticamente desfeitas, passa férias junto ao mar. Em certo momento, durante um passeio pelo molhe, a mulher cai acidentalmente à água, num sítio já um pouco afastado da costa. Não sabe nadar e mal se pode mexer: como era já tarde, vestira roupa grossa por causa do frio. Vai-se afogar, inevitavelmente, dentro de instantes, se ninguém a ajudar. O marido, que também está pesadamente vestido, mas que é bom nadador, considera que deve “deixar que as coisas sigam o seu rumo” e é assim que se decide. No molhe passeiam numerosas pessoas que ali passam férias. Algumas não se deram conta do acidente. Outras observaram-no mas não fazem nada. A mulher morre afogada. Cf. Wolfgang Naucke, Strafrecht. Eine Einführung, 7ª ed., 1995. Ninguém mexeu uma palha, de forma que interessa definir o círculo dos que podem ser acusados de um crime omissivo. Na primeira linha encontram-se o marido e os outros veraneantes que estavam presentes quando se deu o acidente. Mas também fará parte dos "suspeitos" o porteiro do hotel que viu o casal a discutir e pensou que “aquilo” não iria durar mais de dois ou três dias? Poderão ficar excluídos os parentes do casal que conheciam a veemência das discussões? E o advogado a quem a mulher informara das razões porque queria o divórcio? E o grupo de turistas japoneses que a uns 200 metros do molhe sentiu que qualquer coisa estava para acontecer? O marido não prestou qualquer auxílio e deixou que as coisas seguissem o seu rumo, pelo que fica logo comprometido com o crime do artigo 200º, nº 1. O mesmo acontece com alguns veraneantes, sobretudo os bons nadadores ou os que tinham consigo um telemóvel e podiam comunicar com o 112 (número nacional de socorro). O artigo 200º aplica-se à omissão de auxílio, àqueles que pura e simplesmente nada fazem numa situação de grave necessidade — na norma não se exige que o afastamento do perigo seja efectivo, o que se exige é a prestação do auxílio necessário ao afastamento do perigo. É por isso que o preceito do artigo 200º se aplica ao marido — porque este, apercebendo-se de tudo o que se passava, dolosamente nada fez. Não é o facto da mulher ter morrido que se vai agora 363 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. imputar ao marido e/ou aos veraneantes, é apenas o facto de estes lhe não terem prestado o auxílio necessário. Eis a pedra de toque da distinção entre as omissões puras e impuras. Nas omissões puras pune-se a simples inactividade ( 29 ) — o dever de auxílio resulta directamente da lei. Nas omissões impuras, o dever de agir para evitar um resultado deriva de uma posição de garantia. Pune-se aquele que, sendo garante, numa situação de perigo, efectivamente nada faz para afastar a ameaça de lesão (da vida, da integridade física, etc.) de outrem. Aplicam-se então as normas sobre a comissão de crimes, por ex., o artigo 131º. Tanto dá que a mãe que quer matar o filho o deixe morrer de fome como o deite a afogar na banheira da casa. A expressão significa (Naucke, p. 278) que o agente não é penalmente responsável apenas pela omissão, mas que também o é pelas consequências danosas que derivarem dessa omissão. E como não existem preceitos especiais a castigar estas omissões impuras — empregamos os que punem as respectivas acções. Como já se viu, o marido e os veraneantes (só alguns, naturalmente) podem ser punidos por um crime de omissão pura. Bem difícil será sustentar, no entanto, que as mesmas pessoas são responsáveis pela morte da mulher, ou seja, por omissão impura (ou imprópria), como autores de um crime de comissão por omissão. Os tribunais são poucas vezes chamados a julgar um crime de omissão impura. Mas as omissões impuras 29 À primeira vista, "punir as omissões pode parecer semelhante a punir pensamentos ou intenções; por outro lado, omitir uma conduta é imediatamente equiparado a um "nada fazer" que não é abrangido por uma ordem de proibições basicamente constituída por proibições de acções". Todavia, "no campo ético", acções e omissões podem equiparar-se: "segundo a linguagem das normas, as proibições podem integrar comando de acções" (Prof. Fernanda Palma, RPCC 9, p. 553; cf. também Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, I vol., p. 271). Os crimes de omissão pura são crimes de desobediência — no artigo 200º o comando versa sobre o auxílio necessário ao afastamento do perigo na concreta situação de grave necessidade, o comportamento não consiste numa qualquer actividade, mesmo que em abstracto se trate de uma actividade útil. Os crimes de comissão por omissão (omissão impura) devem ser vistos como de não evitação do resultado ordenada pelo comando da acção com que se pretende obviar à lesão de um determinado bem jurídico. 364 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. aparecem frequentemente nos exames escritos, de modo que o candidato deve fazer um redobrado esforço por dominar o assunto. Deve, desde logo, atender-se a que são requisitos comuns gerais à omissão própria e à omissão imprópria: 1º O dever jurídico de agir; 2º A omissão da acção devida; 3º A possibilidade de agir ou capacidade de agir ou de acção: falta tal capacidade de acção quando ao agente não assistem a força física, a destreza manual, a inteligência, os conhecimentos técnicos, os instrumentos necessários para praticar a acção devida (J. A. Veloso). Os crimes de omissão são crimes de dever; os crimes de comissão por omissão são, além disso, crimes específicos. Em ambos os casos, autor é o omitente. Nos crimes próprios, o facto punível esgota-se na infracção de uma norma preceptiva, nos crimes impróprios a norma proíbe (norma proibitiva) a produção de um resultado. II. Artigo 200º — omissão de auxílio, omissão pura O Código contém uma série de tipos onde se prevê a punição de quem omite uma determinada acção, por ex., os artigos 200º (omissão de auxílio), 245º (omissão de denúncia), 249º, nº 1, alínea c) (recusa de entrega de menor), 284º (recusa de médico), 369º (denegação de justiça), 381º (recusa de cooperação). O mais conhecido, com lugar assegurado nos trabalhos práticos, é o do artigo 200º ): 1. Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2. Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. 3. A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou a integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível. A proibição penal de matar, de furtar, de violar ou de sequestrar exige unicamente do agente que omita certas acções, que, abstendo-se de matar alguém, de furtar, de violar, etc., deixe intocada a situação existente através da qual se protege a vida, a propriedade e a liberdade das pessoas. Pelo contrário, a punição das omissões, ao criar um dever de agir em favor do próximo, significa um impulso para melhorar as relações sociais. Um direito 365 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. penal que sanciona omissões próprias e impróprias pune quem não corresponde aos apelos e às expectativas de solidariedade dos outros membros da sociedade. A punição por “omissão de auxílio” deve ser entendida unicamente no sentido de que cada um deve preocupar-se com os outros, mesmo com os anónimos, em caso de grave e iminente perigo para essas pessoas. A questão do bem jurídico protegido tem pois a ver com a solidariedade humana, ainda que o seu lugar sistemático aproxime o preceito das "gravações e fotografias ilícitas" e da "subtracção às garantias do Estado de direito Português", que o Código alinha no capítulo dos crimes contra outros bens jurídicos pessoais. Consagrando-se um dever de solidariedade social, espera-se que o seu destinatário, enquanto membro da sociedade, se manifeste responsavelmente para com os outros, exigindo-se-lhe uma certa disponibilidade para ajudar. Objecto da tutela são efectivamente a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa. Não se incluem no artigo 200º, com referência ao perigo que justifica a prestação do auxílio, os bens patrimoniais alheios de valor elevado, como se faz, por ex., no artigo 272º, nº 1. Trata-se de um crime de omissão pura (assim, Wessels, AT, p. 215, e BT-1, p. 224) e de perigo concreto, sendo seu pressuposto típico a concretização dum perigo (caso que "ponha em perigo" a vida, etc.). O dever de auxílio obriga qualquer pessoa (a norma começa com o "Quem" anónimo dos crimes comuns) e isso o distingue do dever de garante que no artigo 10º, nº 2, recai pessoalmente sobre o omitente. A situação típica que desencadeia um dever de auxílio é um caso de grave necessidade. A grave necessidade significa uma situação, por ex., de desastre ou acidente, com risco iminente de lesão relevante para a vida, a integridade física ou a liberdade de alguém. Discute-se, no entanto, quais são esses perigos para a vida ou para a integridade física. Uma doença ou uma gravidez só serão de atender quando justamente se envolvam em caso de grave necessidade, isto é, quando estejam sob a ameaça de perigo iminente para a vida ou a integridade física. A norma porém atende à liberdade pessoal nas suas diversas manifestações, incluindo a liberdade e a autodeterminação sexual. Um desastre, um acidente, etc., pode ser provocado dolosamente, pode mesmo tratar-se de um ilícito típico. E pode ter sido originado inclusivamente pela própria vítima, a qual, mesmo assim, não perde a protecção que a norma lhe confere. Discute-se, no entanto, a questão da tentativa de suicídio, que terá 366 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que se apresentar como um caso de grave necessidade e que pode conduzir a situações de inexigibilidade em face da atitude de quem se encontra disposto a morrer a todo o custo (Küpper, p. 5 e 161). Veja-se, a propósito, o artigo 154º, nº 3, alínea b). A situação de perigo comum significa a possibilidade de lesão para um grande número de pessoas, a situação de calamidade pública é, por ex., a de um período de fome generalizada. A conduta que a lei descreve como ilícita é a não prestação (omissão) do auxílio necessário ao afastamento do perigo. O auxílio é o necessário ao afastamento do perigo e o critério ou juízo da necessidade é o do observador avisado. Uma boa parte da doutrina entende que a prestação do auxílio já não é necessária se, por ex., a vítima entretanto morreu; e que o dever cessa naqueles casos em que a vítima é socorrida por outros meios. Mas não tem sido esse o entendimento dos nossos tribunais. Sustenta-se, por ex., no acórdão do STJ de 10 de Fevereiro de 1999, CJ, ano VII, tomo 1 (1999), p. 207, que comete o crime de omissão de auxílio do artigo 200º, nºs 1 e 2, do Código Penal, o condutor que se afasta do local do acidente sem providenciar socorro à vítima — apesar de haver aí pessoas, uma delas haver mesmo chamado uma ambulância —, e ter regressado mais de 10 minutos depois, já que ele, como causador do acidente, continua obrigado a comportamento positivo no sentido da prestação de auxílio. O auxílio deve ser prestado em tempo oportuno, mas a correspondente actuação não tem que ser pessoal, basta que o obrigado promova o socorro, por ex., chamando um médico, o 112, etc. Se a prestação de auxílio logra êxito ou não — é irrelevante, a lei apenas exige que se preste o auxílio necessári o. Aliás, tudo depende das circunstâncias, inclusivamente, das capacidades pessoais de quem tem o dever de agir. É necessário ter em atenção as limitações da própria capacidade de agir. Trata-se aqui da capacidade física de executar uma determinada acção. Não se omite o auxílio com um barco a uma pessoa que se afoga se não existe barco (Stratenwerth, AT, p. 278 e ss.); ou, no exemplo de Wessels, quem passeia em Bona não omite o salvamento de pessoas que caíram ao Reno em Colónia. De quem não é médico só se podem esperar os “primeiros socorros”, e mesmo o socorro de um médico pode ser limitado se ele não dispuser dos instrumentos e dos medicamentos necessários. Como pressuposto do auxílio, está, pois, a possibilidade fáctica de o prestar. Aliás, a correspondente omissão não é punível quando se verificar o grave risco a que se alude no nº 3 do artigo 200º. Não omite o auxílio quem não puder ajudar, por exemplo, sem pôr a 367 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. sua vida em risco, porque isso não lhe é razoavelmente de exigir. Também é assim no artigo 128 do Código Penal suíço (Unterlassung der Nothilfe, na versão alemã; omissioni de soccorso, no texto italiano): Chiunque omette di prestare soccorso a una persona da lui ferita o in imminente pericolo di morte, ancorché, secondo le circostanze, lo si potesse da lui ragionevolmente esigere (...). O crime é unicamente doloso e o omitente deve saber, não só que se está perante uma situação de grave necessidade, como deve conhecer os restantes factores típicos, nomeadamente que a prestação do auxílio é necessária e lhe é exigível. Aquele que nada faz por supor, erradamente, que a vítima está morta, pode ficar impune por aplicação do artigo 16º, nºs 1 e 3. O crime estará consumado logo que o agente manifeste de forma perceptível a sua resolução de não prestar o auxílio. Outra questão prática está no contacto destas matérias com as situações de conflito de deveres (artigo 36º, nº 1), por ex., dum médico que é chamado para tratar um seu cliente que saiu ligeiramente ferido dum acidente e que se recusa a dar prioridade ao outro sinistrado cuja vida manifestamente corre perigo. Atender-se-á, no entanto, a que a recusa de auxílio da profissão de médico está prevista, como crime específico, no artigo 284º. No nº 2 do artigo 200º prevê-se a forma agravada de cometimento do crime por aquele que tiver criado a situação de grave necessidade (ingerência), por ex., actuando em legítima defesa. III. Artigo 10º — comissão por acção e por omissão, omissão imprópria. Princípio da legalidade. Nexo de causação/evitação do resultado desvalioso. Determinação das posições de garante a partir de planos que complementam os tipos. Especial relação de confiança; relação de proximidade; relação de domínio. 1. O contacto com o crime do artigo 200º confirma que só alguns tipos penais da parte especial comportam omissões. Tirando esse, e poucos mais, os desenhos típicos descrevem antes condutas activas, como no artigo 131º, aplicável a quem dolosamente “matar outra pessoa”. Tanto mata aquele que abate a tiros um vizinho por questões de águas como o que consciente e voluntariamente deixa morrer de fome a velhinha sua mãe, 368 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. com quem vivia desde sempre. A conduta do que mata o vizinho (por acção) entra directamente no artigo 131º, mas a daquele que dolosamente deixa a mãe morrer de fome, nada fazendo para impedir tal resultado, dificilmente se torna intelegível sem uma norma que estabeleça o correspondente dever de agir, alargando o âmbito de punibilidade da previsão do homicídio. A diferença está em que o dever de evitar que a senhora morra radica, não numa qualquer pessoa, mas naquele seu filho, ou seja: nas descritas circunstâncias, o indivíduo sobre quem recai um dever jurídico que pessoalmente o obriga a evitar esse resultado. Esta posição de garantia é por assim dizer o factor de legitimação da equivalência da omissão à acção e é afirmada em norma da PG, o artigo 10º, que, se por um lado alarga as margens de punibilidade, por outro faculta “uma razão de ser para que um non facere possa merecer o mesmo desvalor, quer de omissão, quer de resultado, que o próprio facere” (Prof. Faria Costa, Omissão). O artigo 10º funciona como tipo aberto, necessitado de complemento, por força do qual certos agentes são considerados como garantes da não-realização típica. A existência de um dever jurídico de garante pela não produção do resultado serve do mesmo modo para determinar o círculo de pessoas donde sai o omitente. A casa da senhora velhinha podia ser frequentada por uma sua irmã mais nova, que ali vinha de quando em vez, sabia-se até da existência de uma outra irmã, deslocada na Austrália, mas é na pessoa do filho que se apreendem o sentido e as razões político-legislativas para que a morte da mãe pela fome seja equiparada à do vizinho violentamente abatido por alturas duma altercação. Outra é a questão de saber quais os pressupostos sob os quais essa equiparação se justifica. Torna-se compreensível que deixar a mãe à míngua de comida é tão perigoso como alimentá-la com uma sopa envenenada e supõe não só que a mãe se encontrava em estado de se não poder alimentar por ela mesma mas também que o filho estava consciente de que a mãe acabaria por morrer se porventura ele lhe não valesse. Deste filho esperava-se que ele, como qualquer outra pessoa, se tivesse abstido de levar a efeito acções homicidas. Esperava-se, além disso, que se empenhasse em evitar que a morte da mãe se verificasse por qualquer outra causa. Na expressiva imagem de Maiwald (JuS 1981, p. 475), o filho era uma espécie de guarda-redes, pronto para impedir, não o golo na sua baliza, mas a morte da mãe, omitindo aquilo que a pudesse provocar e fazendo o necessário para que a mesma se não produzisse. 369 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2. Distinção entre acção e omissão. Perante condutas exteriormente equívocas ou ambíguas, suscitam-se por vezes questões de distinção prática entre crimes de acção e de omissão; a solução está ligada à circunstância de saber se o agente criou ou potenciou o perigo para o bem jurídico ameaçado (conduta activa) ou antes se não diminuiu ou eliminou um tal perigo (conduta omissiva). A distinção tem um grande significado porque só nos crimes impróprios se pressupõe um “especial dever jurídico de pessoalmente evitar o resultado” no sentido do dever de garantia. Nos seguintes grupos de casos, pode não ser nítida a distinção entre acção e omissão (cf. v. H.-Heinegg, p. 362): i) Acção e omissão seguem-se, uma à outra, no tempo — A, que, distraído, conduzia o seu automóvel, atropela B, ciclista, que seguia pela sua mão de trânsito; A não socorre B, e conscientemente abandona-o, ferido, sabendo que o mesmo, se não for socorrido, vai morrer, o que efectivamente acontece. Para boa parte da doutrina, trata-se de um problema de concurso: a um crime negligente por acção, segue-se um homicídio doloso, por omissão. ii) Durante a sua actuação, o sujeito omite o cuidado devido — A causa um acidente com danos pessoais, por conduzir, de noite, sem luz. iii) Em vez da acção esperada, segue-se uma outra — A, médico, opera por erro a perna direita do paciente, que está doente, mas da perna esquerda. iv) Um processo causal, destinado a salvar a vida de A, é interrompido por actuação consciente de B. v) O médico A desliga a máquina que no hospital mantinha artificialmente vivo o doente B. Para a opinião dominante, trata-se de uma acção consistente no desligar da máquina. vi) É o próprio sujeito quem se coloca na impossibilidade de actuar de acordo com o seu dever: O nadador-salvador não pode salvar B, que está prestes a afogar-se, por ter perdido a noite anterior numa festa de arromba. Vem de muito longe a questão da equiparação entre acções e omissões que num sentido jurídico provoquem um certo resultado, lembra a Prof. Teresa Beleza, p. 519. E cita uma disposição dos Fueros de Medinaceli relativa à omissão como uma forma de execução da pena capital: non coma nin beba ata que muera. A propósito do ius maletractandi, também García de Cortázar, na Historia de España Alfaguara II, p. 229, refere o amplo direito de coerção do senhor relativamente aos camponeses: "al 370 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. solariego puede el señor tomarle el cuerpo e todo cuanto en el mundo ovier", dirá el Fuero Viejo de Castilla, y cuanto a Aragón, Pedro IV reconoció en 1380 que el señor no sólo podía encarcelar al colono sino hacerlo morir de hambre, sed o frío." Uma visita a Peñiscola leva-nos invariavelmente à residência do “último” papa de Avinhão, o aragonês Pedro de Luna (Benedito XIII, o “Papa Luna”) e ao local dos emparedamentos. O condenado era metido num buraco aberto na parede da principal sala do “castelo”, que o carrasco se encarregava de tapar com tijolos. Faltando-lhe uma fresta para respirar, a morte era quase imediata (por acção?!). Na variante em que se lhe deixava uma fresta, o condenado continuava a respirar, mas morria de fome e sede, lentamente, ao fim duns dias (por omissão!), sem que lhe servisse de consolo o cheiro das iguarias alinhadas ali ao lado, à mesa de quem dispunha do poder de vida e de morte. Na ficção, o “Barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe, conta a história de um indivíduo que, sentindo-se humilhado, decide vingar-se ao jeito do Papa Luna — e castigar quem o injuriou, com a preocupação, conseguida, de ficar impune. Na cave, diz o narrador já no final da novela, ouviu-se por algum tempo o tilintar de guizos. Depois, e durante meio século, nenhum mortal perturbou o sossego dos ossos amontoados da desgraçada vítima. In pace requiescat! 3. Os elementos do crime doloso de comissão por omissão. A posição de garante ocupa o papel central destes crimes, cujo ilícito apresenta, como em qualquer outro crime doloso, um lado objectivo e um lado subjectivo. A posição de garante e a chamada cláusula de correspondência ("...o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo...") pertencem ambas ao tipo objectivo. Nos crimes de resultado, como o homicídio (artigo 131º), ao tipo objectivo pertence também a produção do resultado. Exige-se que o omitente tenha a possibilidade de evitar o resultado, de forma que, se ao sujeito falta a capacidade de intervir, também não omite a evitação do resultado. A mais disso, deve apurar-se a causalidade da omissão, a qual existirá se, com a execução da acção pelo omitente, tivesse sido possível evitar o resultado. Do lado subjectivo, o dolo deve abranger todos os elementos objectivos do ilícito, por ex., o omitente deve conhecer os elementos fácticos donde deriva a sua posição de garante: o marido do nosso exemplo deve saber que a pessoa que caiu à água é a sua mulher, ou o seu filho, etc. Apurando-se todos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito deve verificar-se se existe qualquer causa de justificação, que na maior parte dos casos estará relacionada com uma situação de necessidade ou de colisão de deveres, por ex., o caso do médico que num acidente com várias vítimas só pode salvar uma vida. A mais disso, no plano da culpa, deve apurar-se se existe qualquer situação de inexigibilidade como motivo de desculpação. 371 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Propõe-se o seguinte esquema estrutural do crime doloso de omissão imprópria: i) Tipo objectivo do ilícito: a) a produção do resultado típico (por ex., a morte ou a lesão corporal) — artigos 10º, nº 1, 14º e 131º ou 143º do Cód. Penal; b) a não execução da acção adequada a evitar o resultado, mau-grado a real possibilidade física de o evitar — artigo 10º, nº 1; c) a causalidade da omissão e a imputação objectiva do resultado; d) a posição de garante de quem omite (ver figura) - artigo 10º, nº 2; e) a cláusula de correspondência — artigo 10º, nº 1. ii) Tipo subjectivo do ilícito: a) o dolo do tipo; b) outras características subjectivas. iii) Inexistência de causas de justificação. iv) Inexistência de causas de desculpação. A produção do resultado. No que respeita ao lado objectivo do tipo, interessa desde logo averiguar se no caso nº 28 se produziu a morte por afogamento da mulher na sequência da inacção do marido, ou seja, se se verificou o resultado típico. Na falta do resultado, pode ainda assim colocar-se a possibilidade de crime de comissão por omissão na forma de tentativa face à resolução de o sujeito não evitar o resultado (artigo 22º, nº 1). Mas o nada fazer não corresponde, só por si, à omissão. Tem que haver algo determinado, para que se possa dizer que à omissão corresponde uma sanção penal. Esse algo determinado é, nos crimes de comissão por omissão, a evitação do resultado típico. O criminoso, para o ser, tem que, desde logo, omitir uma determinada acção de salvamento de cuja realização resultaria a possibilidade de evitar o resultado. Trata-se daquilo que no artigo 10º, nº 1, se chama a omissão da acção adequada a evitar o resultado. O Direito não exige que alguém se esforce inutilmente ou sem sentido. Uma das acções adequadas a evitar a morte da mulher, no caso nº 28, seria o marido atirar-se à água e nadar até junto da mulher, mantendo-a a boiar, ou, se não soubesse nadar ou se soubesse nadar mal, atirar-lhe uma bóia ou uma corda a que ela se pudesse agarrar. Ou pegar no primeiro barco que lhe aparecesse. A realização da acção adequada a evitar o 372 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. resultado típico deve estar ao alcance do sujeito, este deve ser capaz de a executar. Assim, se o marido não soubesse nadar, se não fosse capaz de se atirar à água (a circunstância de envergar roupa pesada não seria só por si motivo para não se atirar à água, pois a roupa tira-se rapidamente), seria manifesta a falta de capacidade para realizar qualquer destas acções, ainda que pudesse executar outras, também elas adequadas. Aliás, a falta de conhecimentos pode impedir o sujeito de agir, por ex., se não souber fazer funcionar o motor do barco. Justifica-se a imputação do resultado ao omitente e, consequentemente, a causalidade quando se puder afirmar que a acção devida e omitida teria certamente evitado o resultado. Naturalmente, nunca se pode ter a certeza absoluta de que o teria evitado. "Quando se fala de certeza neste contexto entende-se uma probabilidade muito elevada, uma probabilidade a raiar a certeza, de modo que não subsistam dúvidas suficientemente relevantes para impedir a condenação. Uma orientação moderna vai mais além e faz a imputação sempre que se pode afirmar que a acção devida teria diminuído o perigo de produção do resultado (critério do aumento de risco aplicado às omissões)". (J. A. Veloso). As posições de garantia. O dever de garantia, a posição de garante, assenta num dever especial (dever pessoal, como diz a lei: artigo 10º, nº 2) de evitar o resultado. O artigo 11º do Código Penal espanhol de 1995 equipara a omissão à acção quando exista uma específica obrigação legal ou contratual de actuar ou quando o omitente tenha criado uma situação de risco para o bem juridicamente protegido mediante uma acção ou omissão precedente. Mas o legislador português não seguiu essa linha de orientação. Nomeadamente, não limitou as fontes do dever jurídico de agir à enumeração tripartida tradicional, que é considerada pouco satisfatória: a lei, que define deveres jurídicos primários; o contrato, por ex., uma educadora assume o dever de vigiar a criança que foi confiada aos seus cuidado; e a ingerência, ou seja, uma actuação precedente geradora de perigos. A questão tem a ver directamente com o princípio da legalidade, aceitando-se correntemente a determinação das posições de garante — na esteira da doutrina alemã — a partir de planos que complementam os tipos. Em suma, a ordem jurídica tem que fornecer a fundamentação para relacionar o omitente com um certo resultado. 373 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Um dever moral não é fundamentalmente suficiente para determinar uma posição de garante, relevando o grau de intimidade da relação do sujeito com o bem jurídico, sendo que esta proximidade está dada aqui pela relação social que o omitente mantém com o titular do bem jurídico. Bacigalupo,apud Carlos del Valle, Conciencia y Derecho Penal, Granada, 1994, p. 176. Para o Professor Figueiredo Dias, o dever de garantia não resulta dos indicados fundamentos positivos (lei, contrato e ingerência), mas sim de "uma valoração ético-social autónoma, completadora do tipo, através da qual a omissão vem fundamentalmente a equiparar-se à acção na situação concreta, por virtude das exigências de solidarismo do homem para com os outros homens dentro da comunidade. Decisiva é uma relação fáctica de proximidade (digamos existencial) entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever pessoal de proteger, ou entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo controlo é pessoalmente responsável, alargando-se assim o catálogo das situações em que o dever de garantia se afirma. Esta concepção (que liga o dever de garantia à proximidade do agente com certos bens jurídicos e determinadas fontes de perigo, antes que directamente à lei, ao contrato e à ingerência) tem a seu favor o advérbio “pessoalmente” do nº 2 do artigo 10º. Deste modo, repete-se, não haverá objecção decisiva a que as margens da equiparação sejam alargadas, de modo a caberem dentro delas situações como as de “clara comunidade de vida” e as chamadas “posições de senhorio ou de domínio”, com especial incidência nas situações ditas de “monopólio”. Para alguns autores, a presença física do omitente, tratando-se de situações de monopólio de facto, comunidade de vida e comunidade de "perigo", é imprescindível no desencadear do resultado desvalioso. Trata-se de uma orientação doutrinária em que o ponto fulcral para considerar que uma situação fáctica é capaz de gerar um dever jurídico de garante residirá, antes de tudo o resto, na esfera de domínio positivo do omitente. Este tem de poder intervir, em termos reais, no nexo de causação/evitação do resultado desvalioso. "Na verdade — escreve o Prof. Faria Costa —, se o dever jurídico de garante emergir da lei e do contrato podemos conceber que o omitente não esteja fisicamente presente no momento em que se desencadeia o resultado proibido e nem por isso ele deve ver excluída a sua responsabilidade. O pai que, com manifesta negligência, deixa o filho, de 4 ou 5 anos, em casa onde há uma varanda sem gardeamento protector e sai, para ir ao cinema, é responsável, se bem que por negligência, pela morte de seu filho se este tiver caído da varanda abaixo. Todavia, mesmo assim, o critério da presença física situacional do omitente — fora, repete-se, das situações que não tenham sido envolvidas pela força conformadora da lei e do contrato — não é ainda de todo em todo convincente. Daí que ele deva ser visto tão-só como um critério adjuvante e densificador. Mas com ele, verdadeiramente, ainda se não responde à questão essencial, qual seja: porque razão é que um anónimo cidadão que passeia ao pé de um pequeníssimo lago de um jardim público e vê nele uma criança a afogar-se e nada faz — quando é a única pessoa presente — pode e deve ser penalmente 374 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. responsabilizado pela morte da criança? Porque motivo é que nasce para esse anónimo cidadão um especial dever de garante pela não produção do resultado desvalioso?". Faria Costa, A Omissão. Face ao que se dispõe no artigo 10º, suscita-se a questão de saber se, no caso nº 28, pelo menos o marido pode ser responsabilizado pela morte da sua mulher. Outro problema é o de saber se a pena aplicada ao marido que se torna responsável pela morte da sua mulher deve ou não ser mais elevada do que a pena dos que se limitaram a não prestar o auxílio a que estavam obrigados. Considerando agora as principais posições de garante, comece-se por atentar no quadro a seguir, onde se indicam as fontes respectivas, segundo o critério actualmente mais divulgado: o primeiro grupo tem por objecto o controlo de uma fonte de perigos. No segundo grupo, o dever de garante assenta no exercício de uma função de protecção de bens jurídicos. 375 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. UM BEM JURÍDICO UM PERIGO B E 1 2 4 5 Muitos bens jurídicos indeterminados (A-E) estão ameaçados por um perigo Muitos perigos indeterminados (1-5) ameaçam um bem jurídico 3 Deveres de assistência Deveres de segurança C D Situação Caso O conjunto é protegido de um doente mental Um doente mental é protegido do conjunto Solidariedade natural com o portador do bem jurídico Assunção voluntária A Ingerência Vigilância de fontes de perigo Vigilância de outrem Estrutura dos deveres de garante Segundo Fritjof Haft, Strafrecht, AT, p. 179 Comunidade de vida No caso de anterior intervenção geradora de perigos (ingerência) o sujeito é obrigado, como garante, a impedir a produção do correspondente dano. Quem cria o perigo tem o dever de impedir que este venha a converter-se em dano. Isso vale, muito especialmente, para os casos em que alguém, com a sua conduta, pôs a vida de outrem em perigo. Ainda assim, há quem tome posição contra, quem seja anti-ingerência (cf., com ampla informação, Hillenkamp, 29. AT-Problem, p. 228). A tendência é, aliás, para lhe introduzir limitações, como veremos. O caso típico de ingerência que não costuma levantar problemas é o do automobilista que negligentemente atropela um ciclista e o deixa ficar estendido na estrada, embora se aperceba que a vítima irá morrer se não receber assistência médica devido aos ferimentos graves que sofreu. Morrendo o ciclista, como o condutor se apercebeu que iria acontecer, este será responsável por um crime 376 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. negligente e por um homicídio doloso, desde que se tivesse conformado com a morte que assim representou (dolo eventual). Teremos então um ilícito negligente cometido por acção (atropelamento) e um crime doloso cometido por omissão. A conduta descuidada do automobilista é causal da morte do ciclista e este resultado pode ser-lhe imputado também a título negligente, pois o dolo posterior não é susceptível de interromper o nexo de imputação negligente (morte por atropelamento). A posição de garante do automobilista no crime doloso deriva, naturalmente, da situação de ingerência decorrente do seu comportamento ilícito anterior. Esta hipótese, como se disse, não deverá contar com ampla contestação porque o automobilista, por um lado, criou o perigo adequado, e, por outro, o perigo foi ilicitamente criado, pois, como vimos, o automobilista actuou negligentemente. Ainda assim, tem-se-lhe objectado com a questão do dolo subsequente: a passividade da omissão que se segue ao atropelamento, fortuito ou negligente, não conduz senão ao dolo subsequente e às objecções que contra este se formulam (outras informações em Gimbernat, Ensayos, p. 282). Não conhecemos, por outro lado, qualquer decisão jurisprudencial que coincida com a solução exposta, ficando-se a praxis pela aplicação do artigo 200º, ainda que na sua forma agravada do nº 3. Na Espanha, diz- nos ainda Gimbernat, tem acontecido o mesmo. Não falta hoje quem defenda (cf. Figueiredo Dias) que, na “ingerência”, não basta que o perigo seja adequado, mas é ainda necessário que ele tenha sido ilícita ou inadmissivelmente criado. Sendo assim, o automobilista não estaria investido na posição de garante de evitar o resultado letal se ele não tivesse produzido ilicitamente o acidente e ainda que este constituísse causa adequada da morte. Mas não estaria excluída a punibilidade pelo artigo 200º. A "ingerência" pode, aliás, estar associada à legítima defesa, criando o defendente um perigo para a vida do seu agressor. A opinião mais amplamente divulgada (Wessels, p. 232) entende que daqui não nasce qualquer posição de garante e por isso quem legitimamente e de forma necessária se defende não tem o dever de actuar no sentido de impedir a morte do agressor — foi a vítima da legítima defesa quem com a sua agressão ilícita colocou a sua própria vida em perigo e portanto não pode esperar ajuda de quem estava investido num direito de intervenção na sua esfera pessoal. Fica, no entanto, espaço para a discussão quando o defendente provoca o perigo para a vida do agressor depois de neutralizada a agressão. Um caso de que derivará a posição de garante será o seguinte: o do ciclista que, para salvar a vida, se desvia numa curva do automobilista que 377 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. em sentido contrário vem fora de mão e que, despistando-se, vai ferir uma pessoa que aguarda na paragem do autocarro. Podendo o ciclista invocar uma situação de necessidade justificante no afastamento dum perigo para a sua própria vida (vida em comparação com a integridade física), ainda assim, parece que lhe compete o dever de evitar outros danos maiores na pessoa do peão. Houve, da parte do ciclista, uma intervenção na esfera pessoal de um terceiro que nada tinha a ver com o que que se passou na estrada (Kühl, p. 590). Podemos chegar à mesma conclusão no caso do indivíduo que, sem saber que outro se encontra dentro, fecha a porta duma divisão dum edifício (actuação precedente), omitindo a libertação de quem ficou privado de se movimentar quando posteriormente se apercebe do que antes fizera. Por outro lado, não bastam perigos mínimos (princípio de bagatelas): quem, por ex., oferece álcool a outrem não é ainda garante relativamente ao perigo daí proveniente (por ex., através da condução automóvel). O perigo de causar um prejuízo a outrem deve ser, como já se disse, um perigo adequado. Assim, falta especialmente o perigo se se abre um círculo de responsabilidade para outrem. Quem, por ex., indica outrem como testemunha num processo não é cúmplice, por omissão, de falsas declarações (artigo 359º, nº 1). Finalmente, o dever de garante do condutor nos casos indicados é só em relação ao bem jurídico posto em perigo pela sua violação do dever (vida, integridade física da vítima do acidente), já não em relação a outros perigos que ameacem a vítima, ou que ameacem, por ex., o cônjuge do agente. No capítulo da responsabilidade por condutas ilícitas de terceiro (dever de garante por vigilância de outrem), cabe começar por observar que cada um é responsável pelos seus próprios actos e que a este princípio apenas fogem os educadores quanto aos menores, os professores relativamente aos alunos no respectivo círculo escolar, os guardas prisionais para com os maus tratos recebidos por presos de outros presos. A responsabilidade termina, por ex., no cônjuge. Entre marido e mulher haverá um especial dever de protecção, mas quem não impede o seu cônjuge de cometer crimes não assume qualquer posição de garante, restando apenas a questão residual de saber se existe uma forma de comparticipação. Os laços familiares impõem deveres de garantia, mas o âmbito em que isso ocorre não foi ainda estabelecido com a necessária precisão. O núcleo fundamental assenta no vínculo natural dos pais para com os seus filhos. Enquanto os filhos, por si sós, são incapazes 378 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de sobreviver, têm os pais o dever de lhes prestar a colaboração correspondente às suas necessidades. Não alimentar uma criança equivale a ministrar-lhe veneno, são duas maneiras de lhe fazer perigar a vida. O contrário levanta algumas perplexidades, porque os filhos não são "responsáveis" pela existência dos pais. Ainda que pais e filhos se devam, de acordo com a lei civil (artigo 1874º do Código Civil), mutuamente respeito, auxílio e assistência, só o vínculo entre pais e filhos é que é, por assim dizer, elementar — e mantém-se mesmo onde falta uma estreita comunidade de vida. Também nem todos aceitam que das relações conjugais derivam deveres de garante, mas do que não há dúvida é que qualquer dos cônjuges espera auxílio do outro e confia na sua protecção em situações de necessidade, rectius, de apuro, como coisa natural e justificada. Os vínculos conjugais determinam, pelo menos, o dever jurídico de ambos se protegerem e ajudarem, de acordo com as suas forças, em caso de perigo para a vida. Cf., quanto ao dever de cooperação e quanto ao dever de assistência, respectivamente, os artigos 1674º e 1675º do Código Civil. Mas já não se compreende tão bem um tal dever recíproco de protecção quando o casamento está desfeito e, sobretudo, se os cônjuges fazem vidas separadas. Neste caso, pelo menos, a confiança recíproca nas situações de necessidade já se não justifica. Estes deveres de garante podem ainda surgir em casos de estreita comunhão de vida ou de estreita comunhão de perigos. Tem-se em vista, em primeiro lugar, situações semelhantes ao casamento (incluindo uniões de homossexuais), com características duradouras e que, por força da mútua confiança estabelecida (critério restritivo e fundamentador), demandam igualmente deveres recíprocos em situações de necessidade. Já não assim com a "simples" amizade ou relações de namoro, como também não é possível estabelecer um critério geral que valha para os que moram na mesma casa, ou os que trabalham na mesma empresa, ou outras comunidades de acaso, pois aí do que se trata é de saber se entre duas pessoas se estabeleceram relações de confiança no sentido que ficou delineado. Pessoas que simplesmente vivem na mesma casa para pouparem nas despesas não estão, só por essa circunstância, ligadas de tal modo que daí lhes advenham recíprocos deveres de garantia. Mas não se exclui que o desenvolvimento das relações entre algumas dessas pessoas acabe nessa situação. Veja-se, a propósito, o caso nº 28-B. Outra hipótese é a de perigos para bens extremamente valiosos de quem participa em 379 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. expedições, por ex., na montanha, comprometendo, por um lado, os diferentes membros em recíprocos deveres, e, por outro, o guia que os assumiu por contrato. O que queremos acentuar é que quem toma parte numa destas expedições (repare-se: geralmente de curta duração), é responsável pela vida dos seus camaradas, mas não pelos respectivos bens. Não estão no mesmo plano os passageiros vítimas dum naufrágio, pois aí ninguém se constitui garante da vida de ninguém. A doutrina dominante nega a existência de deveres de evitação do resultado em comunidades originadas em desgraças (Unglücksgemeinschaften). Arzt, JA 1980, p. 713, põe em confronto duas situações extremas: os sobrevivente dum naufrágio que — até em sentido figurado — se sentam no mesmo barco, procurando salvar-se, e os clientes duma discoteca que se incendeia. A duração da situação e o isolamento do mundo exterior são essencialmente distintos. No caso da discoteca não se origina uma autêntica comunidade na desgraça. Mas, conclui Arzt, os náufragos, que se encontram no mais absoluto isolamento relativamente a outras comunidades e têm a responsabilidade de se manter unidos e de se apoiarem reciprocamente, são garantes da evitação dos danos que ameacem qualquer deles. No domínio da estreita relação de vida não existe pleno acordo quanto ao âmbito dos bens jurídicos cuja lesão há que impedir se não se quer incorrer num crime de comissão por omissão: "que se castigue por "homicídio por omissão" quem deixa morrer a tia doente com quem vive" não significa, porque seria "grotesco", que o sobrinho responda igualmente por "dano por omissão" se omite alimentar o canário da tia ou regar as suas flores. Gimbernat, que cita Grünwald nesta passagem, comenta: estes exemplos, com que se pretende demonstar que as posições de garante não fazem responder, em comissão por omissão e indiscriminadamente, por todos os bens jurídicos (vida, propriedade, etc.) de quem goza da garantia, fizeram carreira na doutrina posterior, que remete frequentemente para os exemplos de Grünwald do canário e das flores da famosa tia. Deveres de custódia podem ser assumidos, tomando o agente o bem jurídico à sua guarda, como no caso da baby-sitter, a qual se encarrega de substituir os pais, que estão vinculados ao portador do bem jurídico por um vínculo natural, mas que assume, do mesmo passo, deveres de garante para com a criança. Se o serviço se inicia, a eventual nulidade do contrato não pode deixar sem efeito a posição de garante da baby-sitter. Mesmo quando esta é contratada "só até à meia-noite" e os pais regressam depois das duas da manhã, permanece a posição de garante, por vias da correspondente "assunção fáctica", não obstante o termo do contrato. Se a baby-sitter abandona a criança responderá pelos eventuais danos da vida ou da saúde desta, como se os tivesse causado 380 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. (Gimbernat, p. 286). Mas se por ex., alguém contrata os seus serviços e a baby-sitter se encarrega de cuidar de uma criança na ausência dos pais, mas não chega a iniciar funções, e, não obstante, os pais ausentam-se em viagem pensando que aquela virá e tratará da criança — num caso destes quem viola o dever de garante são os pais e só eles. Se o guia de montanha não comparece no dia da excursão, o contrato não é cumprido, mas se os candidatos a alpinistas avançam por sua conta e risco o guia faltoso não pode ser responsabilizado pela morte de algum deles durante a expedição. Nesta área podem aparecer problemas específicos dos médicos nas relações com os seus clientes, nomeadamente, no auxílio médico à morte por omissão, se, por ex., o médico assiste, impassível, à agonia da sua doente, que acaba de se injectar com uma dose letal de heroína e lhe pede para nada fazer porque quer pôr termo à vida. Já antes se aludiu à ideia de domínio. Alguns autores transportam-na especificamente para o domínio da coisa (Sachherrschaft) e nela encontram uma das razões que lhes permite relacionar o omitente com um certo resultado. Cita-se o exemplo doutrinário, já dos primeiros anos do século 20, de quem, por curiosidade ou para realizar um assalto, penetra numa cave alheia, fechando-se-lhe a porta, que só poderá ser aberta por fora, na sequência dum golpe de vento. Como explica Gimbernat, aqui não existe uma intervenção precedente, porque a porta foi fechada por uma causa natural e não pelo proprietário. Ainda assim, será este quem tem o domínio da coisa e com ele um dever de actuar, gerador de uma comissão por omissão. Hoje em dia voltam-se a discutir estas ideias, reconduzindo-as, por último, aos deveres do tráfico. Os deveres de segurança no tráfico englobam todos os casos em que houve um agir precedente gerador de perigos. A mais disso, estes deveres, erigidos em critério independente, explicam como se pode reconduzir um resultado a uma omissão noutras situações que não conheceram um agir precedente (cf. Gimbernat). O proprietário do edifício que não repara os defeitos do telhado, sobrevindos por ocasião de uma forte tempestade, responsabiliza-se como garante pela integridade física de quem passa na rua relativamente à queda de telhas. Vale o mesmo para o dono do cão que é deixado à solta e que morde o filho do vizinho que brincava no jardim anexo à moradia, ou o carteiro. O morador duma casa ou o encarregado dum estabelecimento, como titulares do domínio da coisa, têm a obrigação de garante de impedir as lesões de bens jurídicos que se reconduzam a acidentes ou a acções 381 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. delitivas de terceiras pessoas que ameacem produzir-se dentro da sua esfera de domínio. Há, como já se disse, perigos que podem ter origem em instalações industriais ou em residências, por ex., em galerias ou sectores mal iluminados ou em escadas com deficiências, mas o dono do restaurante onde ocasionalmente se faz a divisão do produto dum assalto não comete qualquer receptação por via da sua omissão. ( 30 ) Nem existe qualquer dever jurídico que obrigue a remover escritos difamatórios na parede de uma casa. O dono da casa não comete nenhum crime contra a honra por omissão. A vigilância de fontes de perigo liga-se ainda a camiões, animais — pense-se no tigre fugido do jardim zoológico ou do circo, e a determinado tipo de instalações. Quando a ordem jurídica aprova o domínio sobre essas coisas nasce o dever de as controlar e de evitar os perigos que delas derivam. Já levantam dúvidas os casos em que um terceiro colabora na criação da situação perigosa. O proprietário dum camião tem que o manter em condições de circular mas também tem que impedir a condução por incapazes ou por quem não esteja habilitado. Na condução por pessoa embriagada, os perigos derivam do condutor e não da coisa, como bem se compreende. Uma palavra ainda sobre as denominadas posições de monopólio, para transcrever um apontamento do Prof. Taipa de Carvalho, p. 242, com o entendimento de que estas devem ser incluídas no dever geral de auxílio (artigo 200º) e excluídas do dever de garantia, pois "não deverá ser o facto de poderem ser vários ou apenas um a salvar o bem jurídico que fará com que se deva afirmar apenas o dever de auxílio ou o dever de garante". Mas não se esqueça a orientação doutrinária que apela à esfera de domínio positivo do omitente. Em situações de monopólio, o resultado desvalioso bem poderá (deverá?) imputar-se ao omitente recorrendo a esses pressupostos explicativos e fundamentadores. Se em local longínquo da serra, A tropeça e sofre um acidente com a própria espingarda, B, que o que o acompanha e é o condutor do jipe, embora nada tendo com o disparo que feriu gravemente o companheiro, não pode omitir a condução ao 30 Em Espanha foi muito comentada a decisão do Tribunal Supremo (106/1996) que, contra o parecer do Ministério Público, confirmou a condenação de J. Khalid por crime de tráfico de estupefacientes. O condenado não participou activamente em qualquer acto de tráfico, mas explorava um bar em que outros traficavam drogas (J. A. Lascuraín Sánchez, Los delitos de omisón, p. 16) 382 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. hospital mais próximo do desafortunado A, por ser B quem dispõe dos meios e da oportunidade de o fazer — e só ele. O catálogo antecedente, baseado essencialmente nos autores alemães, não é obviamente definitivo. Existem igualmente deveres de garante que não se adaptam a este esquema. Um exemplo, para alguns, é o da burla. Pode a burla cometer-se por omissão? Outra questão é a de saber se concorre mais do que um dever de garante. Por ex., o pai (que tem naturalmente um dever de custódia) coloca o seu próprio filho em situação de perigo para a vida (dever de segurança por actuação precedente, geradora de perigos). Nestes casos, o próprio dever não sai reforçado (dever não é um conceito graduável). Porém, sai reforçada a exigibilidade da acção de salvamento. Quanto ao lado subjectivo nos crimes de comissão por omissão dolosos. Nos delitos de acção o dolo refere-se aos elementos descritos no tipo. Nos delitos de omissão, o dolo refere-se às características típicas de que decorre um dever de acção. Em parte estão descritas no tipo, outras não estão descritas. O dolo estende-se também a estas características não descritas no tipo. O omitente deve saber que não intervém — deve portanto ter presente que omite uma acção — e deve estar consciente de que pode executar essa mesma acção. A posição de garante pertence ao tipo, mas já não o consequente dever de acção, que é elemento da ilicitude, tal como o correspondente dever de omissão nos delitos de comissão por acção. No que respeita ao elemento volitivo do dolo, há especialidades que devem ser assinaladas. Nos delitos de acção, há normalmente uma clara expressão. Nos de omissão, o omitente frequentemente "deixa as coisas seguirem o seu caminho", sem que se possa falar de uma vontade em sentido próprio. Na maior parte das vezes exclui-se aqui uma intenção. Para o dolo directo e o dolo eventual é decisivo assentar no factor intelectual. Ex., A, mulher casada, observa no decorrer do tempo que o seu amante se ocupa do plano de matar o marido. A situação aqui vai-se desenvolvendo, pouco a pouco, de tal modo que quanto à vontade da mulher — comparando-a com a vontade num delito de acção — nenhumas dúvidas se suscitam. Para o dolo basta que a mulher saiba da situação típica e conheça a sua capacidade de agir. Problemas de concurso. A função subsidiária do crime de omissão de auxílio (artigo 200º) perante os crimes de comissão por omissão: a omissão de auxílio só entra em questão onde não exista um dever de garante do agente pela não verificação de um 383 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. resultado típico. A interpretação do artigo 10º do Código Penal deve fazer-se em si mesma e por si mesma, independentemente da interpretação que se faça do artigo 200º. E se deste modo os âmbitos dos dois preceitos em alguma área se cobrirem, deve aí dar-se decidida prevalência ao artigo 10º sobre o artigo 200º. (Cf. F. Dias; tb. Wessels). No caso nº 28, parece que podemos agora colocar a pergunta decisiva: se perante um casamento a todos os títulos "desfeito", ao marido é de impor uma posição de garante e se, perante a sua omissão, será autor de um homicídio cometido por omissão (artigos 10º, 131º) ou se simplesmente deve ser castigado por aplicação do artigo 200º. Haverá ainda aí — ao menos — uma relação fáctica de proximidade, "digamos: existencial" (Prof. Figueiredo Dias), entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever pessoal de proteger? IV. Omissão; furto; ameaça existencial CASO nº 28-A: A, que acompanha B, sua mulher, repara, numa aglomeração de pessoas à entrada do Metro, que um carteirista deita a mão à bolsa da senhora e retira de lá uma nota de 500 escudos. A nada faz. Não está em causa a actuação do ladrão, mas o comportamento do marido, pretendendo- se saber se este, em comissão por omissão, pode ser responsabilizado pelo crime de furto (artigos 10º e 203º, nº 1). A quantia não constitui um bem patrimonial "existencialmente" importante para a mulher. Neste exemplo de Bärwinkel, referido por Gimbernat, o marido só seria responsabilizado pela comissão de furto por omissão se o ladrão tivesse subtraído "todo o património" da mulher, por ex., se lhe tivesse levado a caderneta de depósitos, supondo que com ela podia transferir todo o dinheiro para uma sua conta. Adviria então para o marido o dever de evitar o furto, por nele se conter uma ameaça existencial. Com efeito, entende-se geralmente que a garantia só entrará em jogo quando a omissão acompanha a ruina total do portador da garantia. Compare-se a solução com o que anteriormente se escreveu sobre os vínculos conjugais em caso de perigo para a vida. 384 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. V. Ainda a cláusula de equivalência (artigo 10º, nº 1). Burla por omissão CASO nº 28-B: A, ficando calado, aproveita-se astuciosamente de um engano de B, que A anteriormente tinha provocado involuntariamente, para o prejudicar patrimonialmente em seu benefício. A equiparação da omissão à acção faz-se de forma restritiva e a sua necessidade só se manifesta nos casos em que sobre o omitente "recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado" (artigo 10º, nº 2). Deste modo, a burla só pode ser cometida pelo silêncio autêntico se pudermos enquadrá-lo nos pressupostos da comissão por omissão imprópria. Há quem assim admita a burla por omissão, se houver um dever de informação por parte do agente, mas com carácter excepcional. Com efeito, na burla, o dever jurídico de emitir uma declaração rodeia-se das mesmas exigências postas a qualquer outra posição de garante, não chegam simples deveres contratuais derivados do princípio da boa-fé para que se possa qualificar o silêncio como típico (V. Krey). Esses especiais deveres de informação podem derivar, por exemplo, e segundo alguns autores, de relações particularmente estreitas, associadas a certas ligações negociais de longa duração. De qualquer forma, a omissão não prescinde das cores da astúcia, já que a lei não dispensa este elemento. Como crime de resultado, a burla pertence ao conjunto das infracções que requerem a realização de uma actividade específica para lesar de modo típico o bem jurídico, é crime de execução vinculada ou de meios determinados, na medida em que é a própria lei que descreve, com maior ou menor número de dados, a forma como deve produzir-se o resultado. A ressalva da primeira parte do nº 1 do artigo 10º do Código Penal ("outra intenção da lei"), que acresce à exigência de que o tipo legal de crime compreenda "um certo resultado", tem sido interpretada no sentido de excluir da equiparação da omissão à acção certos crimes de execução vinculada, como a burla, autorizando essa equiparação desde logo quanto aos crimes de forma livre, como o homicídio, que pode acontecer por envenenamento, por aplicação de uma corrente eléctrica, pelo disparo duma arma de fogo, etc. A recusa da burla omissiva feita por M. Fernanda Palma-Rui Pereira assenta na interpretação conjugada dos artigos 217º e 10º do Código Penal, que, no entender dos autores, só atribuem relevância à astúcia que se exprime por acção. Estará em causa o 385 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. modo de ser objectivo da acção, atendendo à energia, ao engenho ou à persistência criminosa que ela revela. Nos crimes de forma livre, a posição de garante é a decisiva na questão da equivalência da omissão com um agir positivo. Pelo contrário, nos crimes em que a lei descreve os meios de execução, a cláusula da equiparação funciona como obstáculo à comissão por omissão, se for essa "a intenção da lei". No caso do homicídio, atendendo ao elevado valor do bem jurídico que é a vida, basta qualquer acção que, de modo objectivamente imputável, seja causa da morte de outra pessoa (O. Triffterer, öst. Strafrecht, AT, 2ª ed., 1994, p. 56). Realmente, em certos casos, não se torna necessário "procurar critérios sofisticados de distinção" entre crimes de omissão e acção: a solução oferecida pela experiência comum e pelo sentimento imediato possui "o toque bom" das coisas evidentes (Prof. Figueiredo Dias, Pressupostos da punição, p. 53). Mas naqueles em que o tipo descreve uma forma vinculada de execução, ou pelo menos torna dependente dela o desvalor da acção, a apontada restrição legal "só pode ter o sentido de reenviar o aplicador do direito para uma valoração autónoma, de carácter ético-social, através da qual ele determine se, segundo as concretas circunstâncias do caso, o desvalor da omissão corresponde ou é equiparável ao desvalor da acção, na perspectiva própria da ilicitude. Se, atenta a interpretação devida ao tipo legal de acção quanto à espécie e ao modo de execução ou aos meios determinados que ela supõe, o aplicador se pronunciar pela não correspondência, deve ele então concluir que outra era no caso a intenção da lei, nos termos e para os efeitos da cláusula geral de equiparação contida no artigo 10º-1" (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 55). Ora, segundo alguns autores, na burla a omissão tem significado social idêntico à correspondente acção descrita no tipo, não está relacionada unicamente com a produção do resultado, está igualmente implicada no modo típico da sua produção: exige-se, não uma qualquer lesão, mas uma lesão provocada por erro ou engano (cf., Ebert, p. 163; Haft, p. 206). Ponto é que a astúcia, que na lei portuguesa é elemento típico imprescindível, se possa então afirmar. No caso nº 28-A pondera-se a hipótese do erro que o agente causou sem astúcia (por erro: ingerência), mas que astuciosamente não trata de remover. Se porém o aproveitamento desse erro não corresponder ao erro provocado pela astúcia do agente não haverá equivalência com a modalidade normal da burla, ficando, consequentemente, arredada a tipicidade. 386 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Ebert, p. 163: A cláusula de equivalência tem a ver com o modo de produção do resultado, diz respeito somente àqueles tipos que não se limitam a sancionar a simples causação do resultado (desvalor do resultado), mas que, para além disso, exigem uma determinada modalidade de acção (desvalor da acção). A equivalência da omissão à acção assenta, nestes tipos de ilícito, na circunstância de a omissão não estar em relação somente com a produção do resultado, mas também com o modo típico da sua produção. Na burla exige-se, não uma qualquer causação dum dano mas um dano por erro ou engano; a omissão deverá incluir portanto a não evitação de um erro. VI. Omissão, artigos 10º, 131º CASO nº 28-D: A é filho de um médico, B, com quem vive. A sofreu um acidente e para lhe salvar a vida impõe-se uma transfusão de sangue imediata. A situação é de tal ordem que B é a única pessoa cujo sangue serve para a transfusão. Acontece até que, de momento, B é também a única pessoa que pode proceder a essa transfusão. Está junto de si uma enfermeira que o pode ajudar a dar o sangue e a proceder à transfusão. Todavia, B não dá o sangue e A morre. A teria sido salvo se a transfusão se tivesse realizado em devido tempo. Cf. J. Hruschka. Trata-se de saber se B cometeu um homicídio por omissão (artigos 131º e 10º do Código Penal). A morreu. Deu-se um evento, a morte de uma pessoa, o qual corresponde ao "resultado", no sentido dos artigos 10º e 131º. B tinha podido evitar a morte de A, procedendo à transfusão do seu próprio sangue. Houve todavia omissão de B, não obstante, como pai de A, ser responsável pela vida deste, enquanto interesse ameaçado. Nessa medida, em razão dos laços que o ligavam a A, seu filho, com quem vivia, e dos correspondentes deveres de assistência (auxílio, guarda ou protecção), B encontrava-se investido na posição de garante (artigo 10º, nº 2). Quanto à transfusão, a mesma era, a todas as luzes, adequada e necessária. Além disso, era exigível que B procedesse à transfusão. O interesse (protegido) de A à conservação da vida era manifestamente superior ao interesse (a sacrificar) de B à sua integridade física. Mas, em definitivo, não seria só isto que fundamentaria a exigibilidade do sacrifício de uma quantidade de sangue que, de qualquer forma, não seria irrelevante. Esse sacrifício tem que ser também "ajustado" (adequado: artigo 34º) às exigências do dever de assistência. A necessária acção de salvaguarda tem que ser um meio "ajustado" (adequado) ao afastamento do perigo. 387 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Cf. as expressões "acção adequada a produzi-lo" e "omissão da acção adequada a evitá-lo" do artigo 10º, nº 1 — e "meio adequado para afastar um perigo" do artigo 34º. Cf., ainda, no artigo 35º, nº 1, a expressão "praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo". Recorde, por último, que no artigo 200º, nº 1, se emprega o termo "auxílio necessário ao afastamento do perigo". Perante um perigo actual que ameaça interesses juridicamente protegidos de terceiro, a transfusão sanguínea seria o meio adequado para o afastar (artigo 10º, nº 1). Havendo manifesta superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, era razoável impor a B o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza e ao valor do interesse ameaçado de A. No fundo, trata-se de fazer valer aqui as razões que justificam o direito de necessidade previsto no artigo 34º do Código Penal. O lado objectivo do tipo dos artigos 10º, 131º mostra-se preenchido e do mesmo modo o subjectivo. B conhecia todas as circunstâncias relevantes ao preenchimento do tipo objectivo. Não se descortinam causas de justificação ou de desculpação, pelo que B cometeu um homicídio consumado por omissão (artigos 10º, 131º). Terá B cometido igualmente um crime de omissão de auxílio (artigo 200º do Código Penal)? Houve um "acidente", no sentido referido na norma. B omitiu a actividade consistente no auxílio que lhe era possível. O auxílio era "necessário", também no sentido do artigo 200º. Todavia, a omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou a integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível (nº 3 do artigo 200º). No caso concreto não se verificaria, tudo o indica, grave risco para a vida e é de crer que também a integridade física de B não ficaria em grave risco. Todavia, parece que o direito de necessidade não justifica que se imponha a um qualquer — anónimo — uma doação de sangue necessária para salvar a vida de outrem. B, não obstante ser o pai de A, "joga" aqui, face aos elementos típicos, um papel idêntico a qualquer outra pessoa. A norma "desiste" de estabelecer qualquer relação entre os intervenientes. O "Quem" com que se inicia o preceito é o mesmo da generalidade dos preceitos incriminadores do Código. Ora, a doutrina maioritária sustenta que a imposição 388 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. coactiva da doação de sangue transcende a eficácia justificativa do direito de necessidade — descontadas as hipóteses de subsistência de particulares deveres de garante, como se viu antes. E isto pese embora a particular e evidente natureza do conflito: de um lado o valor da vida, do outro uma agressão relativamente inócua à integridade física. Só que a imposição coactiva da doação contraria pura e simplesmente o princípio da liberdade e da dignidade humana. Em tais casos, a expressão da solidariedade só poderá ter sentido se constituir um acto de liberdade ética. O homem não deverá em qualquer caso ser utilizado como meio. (Cf. Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, p. 239, e os diversos autores aí citados). No caso concreto, o auxílio "necessário" não será também o "meio adequado" ao afastamento do perigo. Existe assim um motivo relevante que permite sustentar que este auxílio não é exigível a B, no sentido do nº 3 do artigo 200º. O tipo de ilícito do artigo 200º não se encontra por isso preenchido. B não omitiu o auxílio necessário, no sentido do artigo 200º. VII. Omissão, artigo 200º CASO nº 28-E: X estava a tomar banho na albufeira de uma barragem quando, de repente, lhe deu uma cãibra, ficando prestes a afogar-se. A, que ia a passar, apercebeu-se de tudo. Podia, inclusivamente, ter-se lançado para um dos barcos que ali se encontravam ancorados e alcançar o X, para o salvar, mas nada fez. X morreu afogado, mas teria sido salvo se A se tivesse dirigido a ele com o barco, ali à sua disposição. Variante: O barco de brinquedo do menino Zézinho estava prestes a ir a pique nas águas da albufeira da mesma barragem o que, inevitavelmente, conduziria à sua perda. F, que por ali passava, e que podia ter-se metido num barco e retirado o barquinho das águas, nada fez. Se F tivesse acorrido a tirar o barquinho das águas, este não se teria afundado na barragem. Cf. J. Hruschka, StrafR. p. 91. O caso de X é de "grave necessidade" e a vida deste estava "em perigo" (artigo 200º, nº 1). A, que tinha a possibilidade de salvar a vida de X com o emprego do barco, todavia nada fez, mantendo-se inactivo. Esse auxílio era necessário ao afastamento do perigo, sendo certo que X, pelas suas próprias forças, não podia salvar a vida. Além disso, era exigível que A prestasse o auxílio, sendo o interesse no salvamento de X bem superior a qualquer interesse que, da parte do omitente, pudesse vir a ser prejudicado, como por ex., o de 389 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ficar com a roupa molhada. O lado objectivo do ilícito mostra-se, pois, preenchido, bem como o lado subjectivo. Não se descortinam causas de justificação ou de desculpação, pelo que A cometeu o crime do artigo 200º, nº 1. O caso do barco do Zézinho não será de "grave necessidade" e o "perigo" não tem a ver com a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, pelo que a omissão não preenche a tipicidade do artigo 200º. VIII. Omissão, artigos 10º, 212º. CASO nº 28-F: O cão de estimação de A é um animal de raça e muito valioso, com vários prémios já ganhos, mas que tem uma especial embirração pelo pequeno cão do vizinho, um pacífico cachorro, rafeiro, igualmente estimado por B, seu dono. A "fera", às tantas, avança sobre o pequeno animal que, imediatamente, fica ameaçado de morte. A, que sem esforço podia impedir o seu cão de atacar o outro, nada fez, embora se tenha apercebido de que o cãozinho mais fraco iria ser morto, como efectivamente veio a acontecer. Variante: O cão de A, animal de raça e muito estimado, acompanha o dono a um piquenique e aproveita para, "fraudulentamente", tirar duas pequenas salsichas da merenda de um dos acompanhantes humanos. A, que tudo viu, nada fez para evitar a "apropriação" indevida e definitiva das salsichas, ainda que, facilmente, pudesse ter evitado que tal acontecesse, fazendo com que o cão "devolvesse" o alheio. As salsichas acabaram por ser comidas pelo cão de A. Cf. Hruschka, p. 118. Punibilidade de A no caso nº 28-F e na sua variante. CASO nº 28-G: X estava a tomar banho na albufeira de uma barragem quando, de repente, lhe deu uma cãibra, ficando prestes a afogar-se. A, que de tudo se apercebeu, lançou-se para o barco de recreio de B, com intenção de rebentar a porta que dava acesso à cabina de pilotagem e com o barco em movimento salvar a vida de X. B, que também se apercebeu de toda a situação, e inclusivamente compreendeu as intenções de A, atirou-se violentamente a este — agarrando-se a ele com ambas as mãos —, impedindo-o assim de entrar na cabina de pilotagem e utilizar o barco. X morreu por afogamento. Teria sido salvo se B não tivesse impedido A de rebentar com a porta e de utilizar o barco para salvar X. A ilicitude da coacção (artigo 154º) tem a ver com a cláusula de censurabilidade do respectivo nº 3, a ), que põe o meio empregado em relação com o fim visado. Em geral, sustenta-se que a cláusula não intervém se ocorrer uma eximente de carácter geral (legítima defesa, consentimento, etc.). Se houver uma causa de exclusão da ilicitude, 390 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. então o facto fica justificado, não sendo necessário discutir expressamente a cláusula de censurabilidade apontada. B terá cometido um crime (consumado, tentado) de coacção? B impediu A, nas indicadas condições, de salvar X que se afogava. Terá B cometido um crime de homicídio (artigo 131º) por acção? IX. Omissão. Conflito de deveres — artigo 36º. CASO no 28-H: X, que volta de um passeio na montanha, encontra em chamas a casa paterna, situada numa encosta. Apercebe-se que seu irmão I, de 8 anos, se encontra no interior, no primeiro andar. A avó A, também no mesmo andar, mas em outra parte da casa, pede auxílio. O fogo no interior da casa impede um e outro de fugir. X apercebe-se que o telhado se vai desmoronar e que só terá tempo de, com o auxílio de uma escada, salvar o irmão I ou a avó A. Resolve rapidamente salvar I. Logo a seguir o telhado desmorona-se e A morre. Cf. J. Wessels. 1. Como é que se deve encarar o caso do ponto de vista penal? 2. Qual seria a situação se X tivesse encontrado na casa que ardia em vez da avó A a sua amiga M e a) salva I e M morre; b) salva M e, tendo-se o telhado desmoronado, e I perde a vida. Indicações para a solução: (cf. Wessels) Deve começar por verificar se é caso de omissão e se X tem, relativamente a A, um dever especial (pessoal) de garante ou se apenas violou um dever geral de auxílio. O resultado típico do homicídio (artigo 131º) produziu-se: o telhado, ao cair, matou a avó. No 1º caso, X não realizou a acção adequada para para salvar a avó. Antes de decidir ajudar o irmão, X tinha a possibilidade e a capacidade de salvar a avó. A omissão de X foi causal da morte da avó. X, como garante, em razão da existência de um laço estreito com a avó, tinha o dever de impedir a sua morte, pois familiares muito chegados e com quem se convive no quotidiano devem-se mútua assistência e ajuda em caso de perigo para a integridade física ou a vida. No caso não tem que se fazer qualquer prova da equiparação da omissão à acção, por se tratar de homicídio doloso. Pode pôr-se a questão de saber se a não actuação de X no que respeita à avó se encontra coberta por uma colisão de deveres justificante (sendo os deveres de diferentes categorias, o agente não actua ilicitamente se cumprir com o dever mais importante à custa do menos importante, em caso de deveres equivalentes se cumprir com um deles). No caso nº 28-G, trata-se de colisão de deveres. X estava obrigado a evitar como garante o resultado face a ambos, e para o direito todas as vidas são absolutamente equivalentes. Mas no conflito de deveres de salvamento equivalentes o ordenamento jurídico deixa liberdade ao destinatário da norma para se decidir por um ou por outro dever. Assim, X não omitiu ilicitamente o salvamento da avó. 391 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Em relação a I e a M só existia uma colisão aparente de deveres, porque só existia um dever de actuar, o de garante face ao irmão, que X cumpriu. Um dever de garantia afasta o dever geral de auxílio. No caso da alínea b) X realizou, face ao irmão, o tipo do artigo 131º. Não existe uma colisão de deveres. Não consta a razão pela qual X se equivocou acerca do seu dever jurídico de actuar, ou seja, se, por ex., tivesse acreditado que, na situação concreta, tinha a liberdade de salvar qualquer dos dois. (E se salvou a noiva porque esta (por ex., estavam noivos) lhe estava humanamente mais chegada?). X. Erro sobre a posição de garante; erro sobre o dever de garante. CASO nº 28-H: P, exímio nadador, enquanto passeia na praia, observa um rapaz que por entre as ondas se debate e que, manifestamente, se afoga se não for socorrido de imediato. P ignora que se trata do seu próprio filho e nada faz. O marido do caso nº 28 vê como a sua mulher se debate nas águas, prestes a afogar-se, mas nada faz, pois, conhecendo embora os recíprocos deveres que se devem os cônjuges que vivem em estreita comunhão de vida, ainda assim está convencido que, perante as contínuas infidelidades da mulher, só lhe cabe um difuso dever de auxílio e não o de evitar que a mesma morra. No primeiro caso, o pai erra sobre uma circunstância do tipo objectivo do ilícito. Como o dolo tem que se estender, inclusivamente, à posição de garante, mas o pai não sabe que é o filho que se está a afogar, aplica-se o artigo 16º, nºs 1 e 3. P só poderá vir a ser punido por homicídio negligente, se pudesse ter previsto que quem se afogava era o seu próprio filho. No segundo caso, concluindo-se por um erro de valoração ou erro moral, o marido pode ser absolvido com fundamento em erro não censurável sobre a ilicitude — artigo 17º, nº 1, ficando para resolver se nesse caso poderá vir a ser condenado com base no artigo 200º. XI. Tentativa de crime de comissão por omissão Nas omissões, a decisão de quem omite uma acção é dirigida à não evitação do resultado. Quem omite espera, por um lado, que o resultado se produza; por outro, tem a consciência de que a produção do resultado é evitável com a acção salvadora que está ao seu alcance. Na perspectiva de quem omite, a execução da acção salvadora deverá também evitar a produção do resultado com uma probabilidade rasante da certeza. A prova da decisão de cometer um crime por omissão é assim bem mais complexa do que nos crimes tentados de comissão por acção, exigindo-se, a mais do que se assinalou, que 392 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. o omitente tenha a posição de garante e conheça as correspondentes circunstâncias fundamentadoras. Ainda assim, o omitente que é garante da não produção do resultado e tem a real possibilidade de o evitar só entra no âmbito da punição (por tentativa) se "praticar" actos de execução (artigo 22º, nº 2, alíneas a), b) e c), o que traz para a discussão o problema da compatibilidade da solução legal aplicada às omissões com o desempenho de uma certa actividade corporal, como anteriormente se observou. A doutrina pronuncia-se correntemente por essa compatibilidade, sustentando-se que a tentativa dos delitos omissivos se inicia no momento em que a ordem jurídica exige de alguém que não viole o seu dever de garante permanecendo inactivo. Mas quando é que poderemos dizer que a situação para o bem jurídico em perigo é de tal modo ameaçadora que o garante tem que actuar, cumprindo o seu dever? Suponha-se o caso da mãe que vê o filho prestes a cair da janela do 5º andar onde residem. A mãe, que é garante, terá que intervir imediatamente, deitando-lhe a mão, agarrando-o por um braço — não lhe é dada uma segunda possibilidade de evitar a morte do filho. Mas se o guarda da linha vê um ébrio sentado nos carris e sabe que o próximo comboio passará só daí a uma hora não terá que intervir imediatamente. Em caso de perigo distante e faltando a proximidade do resultado a tentativa começa no momento em que o perigo entra numa fase aguda e o garante continua inactivo ou no momento em que este renuncia à possibilidade de intervir e deixa que as coisas sigam o seu rumo (Wessels, AT, p. 229). Pode, com efeito, o garante partir do princípio de que a acção salvadora do bem ameaçado ainda poderá impedir mais tarde o resultado desvalioso sem que entretanto se incremente o risco para o bem jurídico. Tome-se ainda o exemplo da mãe que quer deixar morrer o filho à fome e renuncia a dar-lhe a primeira refeição, ou o da enfermeira que não dá a injecção necessária para que o doente terminal se conserve vivo: uma e outra sabe que, só por isso, não surge um perigo para a vida do filho ou do paciente. De forma que, para a mãe que quer deixar morrer o filho, a tentativa só se inicia quando a privação de o alimentar prejudica, de forma relevante, o bem estar corporal da criança, quando haja um prejuízo para a saúde — consequentemente, um perigo concreto. Pode é acontecer que a mãe se alheie totalmente do filho e o abandone, desde logo e completamente, à sua (má) sorte, distanciando-se da situação de perigo, ficando o 393 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. filho à mercê do seu destino. Num caso destes, a tentativa inicia-se logo que a mãe se afasta, mesmo sabendo que a vida do filho não fica imediatamente ameaçada. Considere- se contudo o caso do empregado da padaria que aplica uma rasteira ao colega, não se importando de o ver morto. Este, com a rasteira, cai e fica preso de tal forma que, em dois minutos, o mais tardar, será alcançado por uma máquina que, inevitavelmente, lhe esmagará a cabeça. O causador de tudo isto não intervém, podendo fazê-lo, e olha para o outro, consciente de que a cada instante o perigo se incrementa, até que, no instante decisivo, vem o patrão e liberta o ameaçado. XII. Indicações de leitura • Acórdão do STJ de 12 de Fevereiro de 2004 no processo nº 03P3202 (Conselheiro Rodrigues da Costa): o indivíduo que comete um acto ilícito, maxime, um crime contra a integridade física grave de outra pessoa e, em seguida, não lhe presta o auxílio necessário, providenciando por si ou promovendo a ajuda de que carece, sendo que a situação é de molde, objectivamente, a criar perigo para a vida do ofendido, não comete o crime de omissão de auxílio, nem na sua forma qualificada, prevista no nº. 2 do artº. 200º do CP, nem, ao menos, por força do dever geral de auxílio, previsto no nº 1? • Acórdão do STJ de 9 de Julho de 2003, CJ 2003, tomo II, p. 240: pratica um crime de homicídio por omissão o arguido que vivendo com a vítima que é sua mãe, tem 80 anos de idade e está acamada, durante 12 dias não lhe deu qualquer tipo de alimento, nem providenciou para que alguém o fizesse; ausentou-se de casa, bem sabendo que a vítima não tinha possibilidade de se alimentar, desse modo aceitando e conformando-se com a ideia de que tal abstenção lhe poderia causar, como causou, a morte. A relação de proximidade existencial em que se encontrava o arguido (filho) com a vítima (mãe), colocando-a na sua própria e exclusiva dependência, criou no arguido o dever jurídico de protecção e asistência tornando-o pessoalmente responsável pela vida da vítima. Tem um voto de vencido. • Acórdão da Relação do Porto de 15 de Dezembro de 1999, BMJ-492-485: sentido da expressão “grave necessidade” referida ao crime de omissão de auxílio; condutor que embate num ciclomotor, provocando a queda do respectivo condutor, e continua a marcha, pondo-se em fuga, por recear as pessoas presentes, que imediatamente socorreram a vítima e chamaram uma ambulância. • Acórdão do STJ de 10 de Maio de 2000, BMJ-497-125: crime de omissão de auxílio; pressupostos necessários. Função subsidiária da incriminação pelo artigo 200º. • Acórdão da Relação de Coimbra de 1 de Junho de 1988, CJ, XIII, t. 3, p. 110: comete o crime de homicídio por omissão a ré que teve plena consciência de que a conduta do co-réu - dando a beber vinho em que misturara veneno - conduziria necessariamente à morte do filho, e podendo tê-la contrariado ou impedido, nada fez nesse sentido. O dever de agir para evitar o resultado necessário derivava, nesse caso, do disposto no artº 1878º do C. Civil. 394 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do STJ de 16 de Janeiro de 1990, CJ, 1990, tomo I, p. 33: pratica também o crime de omissão de auxílio o autor de crime de ofensas corporais qualificadas pelo resultado letal, que não removeu, nem procurou remover o perigo que criou através da sua anterior conduta criminosa. • Acórdão da Relação de Évora de 14 de Maio de 2002; CJ 2002, tomo III, p. 269: o bem protegido no crime de omissão de auxílio não é a integridade física, ou a vida da vítima, mas sim o direito natural de socorro que assiste a todas as pessoas. Assim, o facto de a morte da vítima ter ocorrido imediatamente após um acidente não obsta à verificação daquele crime. • Acórdão do STJ de 10 de Fevereiro de 1999, CJ, 1999, tomo I, p. 207: comete o crime de omissão de auxílio do artigo 200º, nºs 1 e 2, do Código Penal, o condutor que se afasta do local do acidente sem providenciar socorro à vítima, apesar de haver aí pessoas, uma delas haver mesmo chamado uma ambulância, e ter regresssado mais de dez minutos depois, já que ele, como causador do acidente, continua obrigado a comportamento positivo no sentido da prestação de auxílio. • Acórdão do STJ de 24 de Abril de 1997, BMJ-466: possibilidade de cometimento de burla por omissão. • Américo A. 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Um outro caso é o do banheiro que por descuido não tem à mão a boia que lhe permitiria salvar quem se afoga na praia que conta com a sua vigilância. I. Homicídio por omissão; imputação dolosa; imputação negligente CASO nº 28-C: A acabou de cumprir uma pena de prisão e encontra na casa do seu amigo B, um apartamento de 3 divisões onde este vive com a sua companheira L e o filho de ambos, F, com nove meses, ambiente familiar e um bom refúgio para quem, como A, se sente desamparado. Enquanto B e L dormem com a criança num quarto, A fica numa cama articulada, na sala, sendo os pais quem trata da criança. Às tantas, B é, por sua vez, preso e A, que continua no apartamento, escreve-lhe para a prisão, dizendo-lhe que tem vindo a olhar pelo pequeno e a mãe. Esta desconhece o conteúdo da carta. Até então, a criança fora sendo bem tratada e regularmente alimentada. Enquanto a mãe trabalhava, das 17 às 24 horas, deixava, sem nada dizer, que A se ocupasse do filho. Passadas semanas, L perdeu o emprego e passou a frequentar bares e a acompanhar com diferentes homens. A princípio, ainda L tratava da comida da criança antes de sair, pedindo a A que lha desse, o que ele fazia, mas com o correr dos dias a mãe foi- se esquecendo do filho. A, que lhe reprovava a falta de cuidado para com a criança, ameaçou denunciá-la à segurança social, mas ainda assim foi-se ocupando dela até que conseguiu um emprego. L não combinou nada de especial com A quanto aos cuidados do filho, não obstante as suas prolongadas ausências, e este ficou ao abandono, pois A só ao fim da tarde lhe podia valer. Mesmo assim, nunca mais foi limpo e as 397 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. bebidas eram-lhe deixadas na cama que continuava numa sujidade execrável. Em Outubro, A esteve ausente por uns dias, mas quando voltou não foi ver a criança. Durante esse tempo, em que a criança passou fome e sede, a mãe esteve em casa apenas durante umas horas. A apercebeu-se da situação em que se encontrava a criança, mas nada fez, por estar convencido de que L tomaria providências. Depois da morte da criança, A e L passaram a dormir juntos, até que ela iniciou o consumo de heroína, tornando-se toxicodependente. Também A consumia drogas duras de vez em quando. A cuidava de L quando esta frequentemente se sentia mal. Certo dia, quando se encontravam em casa e se tinham ambos injectado, A apercebeu-se de que L tinha perdido a consciência — massajou-lhe o coração e ministrou-lhe um medicamento, para a ajudar. A sabia que a vida de L estava ameaçada mas nada mais fez, deixando-a confiada ao seu destino. Algumas horas depois L morreu. Apurou-se que, sem dúvida, teria sido salva se na altura A tivesse chamado um médico. Cf. v. H.-Heinegg, Prüfungstraining, p. 55. Está em causa unicamente o comportamento de A para com a criança e a mãe. A matéria fáctica convoca a apreciação do eventual homicídio negligente da criança por omissão (artigos 10º e 137º) e, também por omissão, do homicídio voluntário da mãe (artigos 10º e 131º). Além disso, pode haver omissão de auxílio (artigo 200º). A principal dificuldade prende-se com a posição de garante de A. Como antes se viu, esta pode derivar de uma função de protecção relativamente a um bem jurídico concreto, como no caso de estreitas relações de vida. Os autores têm procurado delimitar estas situações, apontando casos como o de diversos locatários de um apartamento que vivem em conjunto, os homossexuais ou as pessoas casadas que vivem em família. Mas alguns exigem, numa perspectiva mais apertada, que entre os respectivos membros se desenvolvam deveres recíprocos de auxílio e de vigilância ou que se criem vínculos de confiança mútua, não reconhecendo a simples “comunidade de vida”, por si só, como uma instituição capaz de gerar deveres de garantia. No caso concreto, A, quando em Outubro regressou ao apartamento, nem sequer olhou para a criança, não obstante saber que o comportamento anterior da mãe era profundamente descuidado e reprovável. A tinha escrito ao pai da criança que “estava a olhar pelo pequeno”, mas é duvidoso que isso represente a assunção de uma obrigação e de qualquer forma sempre se referia a um tempo passado em que não havia ameaça para a vida. Por outro lado, da simples estada na casa não resultam para A os deveres de alimentar e cuidar do pequeno, pois os pais estavam ali presentes e era a estes em primeira linha que tais deveres competiam, ficando a cargo da mãe quando o 398 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. companheiro foi preso. É certo que A e o pequeno viviam debaixo do mesmo tecto, mas não existiam entre eles relações de parentesco nem foi assumida qualquer função de protecção, como no caso do dono de uma casa que olha pelos hóspedes. Será contudo de ponderar uma especial relação de confiança criada com o auxílio que A foi prestando à mãe — A foi parcialmente assumindo esses deveres, ainda que não houvesse um acordo expresso entre ambos para a divisão de tarefas. Mesmo assim, parece que a situação se terá alterado substancialmente a partir do momento que A arranjou trabalho e esteve durante alguns dias fora do apartamento, sendo essa a altura crítica para a criança. A morte de L passa sem dúvida pela situação de garantia que se gerou a partir do momento em que começaram as relações íntimas e A aceitou cuidar de L nos momentos em que esta se sentia mal, o que será suficiente para estabelecer uma especial relação de confiança. Não obstante L se ter injectado voluntariamente, realizou-se na morte desta o perigo resultante da omissão de A, que tinha o dever de a evitar. A, que conhecia a situação de perigo para a vida de L, conscientemente deixou que fosse o acaso a decidir, e nisso consiste o seu dolo. 399 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 6ª Secção. Autoria e comparticipação. § 22 Autoria e comparticipação. 400 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. I. Autoria singular. Pluralidade de agentes na prática do crime: comparticipação. Participação: acessoriedade da instigação e da cumplicidade. É para todos manifesto que um homicídio ou um furto podem ser cometidos por um único indivíduo ou com o concurso de vários, portanto, em autoria singular ou em comparticipação. O termo “comparticipação” emprega-o o Código, por ex., nas epígrafes dos artigos 25º (desistência em caso de comparticipação), 28º (ilicitude na comparticipação) e 29º (culpa na comparticipação). A seu tempo, tudo isto se esclarecerá. Por agora, é apenas de reter que ao mesmo indivíduo pode ser imputada a autoria material, imediata e singular, se executar o facto "por si mesmo" (artigo 26º, 1ª alternativa), sem a intervenção de outro ou outros. Se o faz por intermédio de outrem (artigo 26º, 2ª alternativa), é de autoria mediata que se trata. Por fim, tomando parte directa na execução do crime, por acordo ou juntamente com outro ou outros, compromete-se como co-autor. Na sistemática do Código (artigo 26º, última alternativa), o instigador é punível como autor, não obstante a forma acessória que a sua intervenção assume na realização do facto. Para além da autoria e da comparticipação, o outro conceito que vamos empregar, o de “participação”, tem significado mais restrito do que o termo comparticipação. A instigação (artigo 26º, última parte) e a cumplicidade (artigo 27º) são formas de participação: o instigador determina outra pessoa à prática do crime, sendo punível a correspondente actuação dolosa, desde que haja execução ou começo de execução; é punível como cúmplice quem, dolosamente, prestar auxílio à prática por outrem de um facto doloso. Como logo de vê, nem o instigador nem o cúmplice executam o facto, a sua intervenção nele é acessória, depende da existência de um outro personagem na execução do crime (a chamada acessoriedade da participação). II. A autoria como causação; a autoria como execução; a autoria como domínio do facto. CASO nº 30: A quer matar o filho que acaba de dar à luz, mas sente-se muito fraca por ter tido um parto difícil e pede a B, sua irmã, que faça desaparecer o recém-nascido. B não tem qualquer interesse na morte do sobrinho, mas afoga-o na banheira, dando execução aos desejos da irmã. ("Badewannenfall", RGSt. 74, p. 84 e ss.). No caso nº 30, B matou outra pessoa, agindo com dolo homicida. Tendo executado o facto "por si mesma" (artigo 26º, 1ª alternativa) é autora material de um crime do artigo 131º do Código Penal. A é instigadora, na medida em que, dolosamente, determinou outra 401 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pessoa à prática do facto. Todavia, quando o caso se colocou ao RG alemão, o tribunal considerou que a morte da criança só era importante para A e que B se limitara a ajudá-la, pondo nisso uma atitude puramente "altruística". Vistas as coisas assim, a figura central do acontecimento é a mãe da criança e B figura acessória, que só deverá ser punida como cúmplice e portanto com uma pena mais leve, como veio a decidir-se. Ao longo dos tempos foram sendo ensaiadas diversas soluções para distinguir a autoria da participação. Uma delas corresponde à posição do RG naquilo que se tornou conhecido como "Badewannenfall" e que — diz-se — evitou que os juízes alemães condenassem a tia homicida a prisão perpétua. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu em termos semelhantes o caso "Stachynski": um agente duma potência estrangeira, por ordem dos seus superiores, matou dois exilados políticos em Munique. Sustentou-se igualmente que a falta de vontade de autor e especialmente do interesse no facto, que era do mandante, podem fazer com que aquele que o executa por suas próprias mãos seja excepcionalmente tido por simples cúmplice (cf. J. Baumann, Beiträge, p. 236). Mas os fundamentos destes dois arestos foram muito contestados. 1. A autoria como causação; conceito extensivo de autoria; conceito unitário de autoria; autoria material e moral; significado da participação. Nos casos mais simples, o aplicador do Direito encontra-se perante um crime cometido por uma única pessoa, seu autor singular (imediato). Mas podem intervir diversos indivíduos e dar-se a possibilidade, nos autênticos crimes de resultado descritos na parte especial do código, de se atribuir esse resultado aos vários agentes envolvidos, desde que estes tenham um contributo causal para o facto. Identifica-se então a causação do facto com a autoria, de forma que é autor do crime todo aquele que lhe tenha dado causa, entendendo-se esta "causa", nos termos gerais, segundo os critérios da causalidade adequada (Eduardo Correia). A induz B a matar X. B concorda e consegue que C lhe empreste uma arma de fogo, com que mata X num dos dias seguintes. Neste exemplo, B cometeu directamente, por suas próprias mãos, o crime do artigo 131º, pois matou "outra pessoa". Todavia, A e C também "mataram" X e também são, por isso, autores de um homicídio, ainda que, um e outro, o tivessem cometido 402 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. indirectamente. Neste sentido, o conceito de autoria é extensivo (lato) e abrange a própria cumplicidade — como se viu, autor do homicídio será aquele que deu o tiro na vítima, mas também o que fornecera a arma. A haver diferença entre a autoria (autoria material e moral), como participação principal, e a cumplicidade, como participação secundária, seria só uma diferença dentro da própria causalidade. A qual se obteria recorrendo à velhíssima distinção de Farinacio entre "auxiliator causam dans" e "auxiliator causam non dans". O conceito de cumplicidade ficaria limitado ao chamado auxílio simples, causam non dans, ou seja, aquele auxílio sem o qual o crime não deixaria de se realizar igualmente (Eduardo Correia). Em face, todavia, das dificuldades a que tal ideia conduzia, procurou-se construir a cumplicidade à luz de outras ideias, por ex., recorrendo a um elemento subjectivo: na cumplicidade o sujeito actuava com animus socii — que supunha agir em interesse alheio — e não com animus auctoris — que seria um agir no próprio interesse. No caso "Badewanne" pode encontrar-se a aplicação destas ideias. Para a aplicação da sanção penal não é necessário partir dum regime diferenciado entre a autoria singular e as diversas formas de intervenção. Neste sentido, quem por qualquer forma contribuir para o facto é seu autor, bastando, para realizar a imputação ao agente, que se estabeleça a relação causal entre a conduta e o facto descrito na norma. Chega-se assim a um sistema unitário em que qualquer intervenção se caracteriza pela respectiva causação ilícita e culposa do facto (especialmente do resultado típico), independentemente da participação dos restantes, qualquer que seja a sua importância. Constituindo a causalidade o único critério relevante, não intervém a regra da acessoriedade: a punibilidade de um é independente da punibilidade dos outros participantes, daí que qualquer participação nunca será referida ao facto de outrem. A intensidade delitiva e a importância da colaboração de cada um para a totalidade do facto são relegadas para o momento da individualização da pena. O sistema unitário tem os seus inconvenientes, desde logo porque nivela todas as contribuições, chama "ladrão" ao que assalta um banco com uma metralhadora e ao que lhe forneceu a meia para tapar a cara. Alheando-se da acessoriedade, as teorias unitárias só tratam de contributos isolados, aos quais falta uma referência comum; além disso, 403 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. desconhecem as diferenças essenciais entre a realização de um crime e a influência dos outros intervenientes nessa mesma realização. Nesta perspectiva, aliás, amplia-se, sem justificação político-criminal, a punibilidade da tentativa: se A consegue uma arma para daqui a algum tempo matar B, seu inimigo, o acto é simplesmente preparatório e fica isolado, não carecendo de punição, se for A quem deve executar por si só tudo o que é necessário para o homicídio. Mas se houver divisão de trabalho, se a preparação cabe a A sendo outro o encarregado de descarregar a arma na pessoa da vítima, a acção preparatória, para as teorias unitárias, converte-se num contributo final (concluído) para o crime e deveria ser punida como tentativa mesmo que nada mais aconteça, justamente porque se prescinde da ideia de acessoriedade (cf. Jakobs, AT, p. 595). 2. A autoria como execução; critério restritivo; o autor como figura central do acontecimento típico; significado da participação como participação em facto alheio. Na doutrina domina o chamado critério restritivo. Autor é — não já, simplesmente, como no modelo anterior, quem causa o resultado típico, mas quem executa a acção que causalmente produz o resultado. A autoria é referida à realização típica, à execução de todas as características do tipo objectivo e subjectivo do ilícito (cf., no direito alemão, o § 25, I, 1ª alternativa, que se refere à "execução do facto — Begehung der Straftat —, e o artigo 26º do Código Penal, "é punível como autor quem executar o facto"). Se B, com dolo homicida, dispara o tiro que mata X, B é autor de um crime de homicídio, qualquer que seja a colaboração que lhe tenha sido prestada, mesmo que lhe falte a vontade de ser autor e independentemente do seu próprio interesse no facto. Qualquer outra pessoa que participa no facto desempenha um papel distinto do autor. Pode ser o instigador, que se limita a determinar (no âmbito duma relação causal ou de motivação) outra pessoa à sua prática, ainda que se exija começo de execução. Pode também ser o cúmplice. Mas nem o cúmplice nem o instigador chegam a executar a acção típica. Esta fica reservada para quem realmente age — como autor directo singular (imediato), como co-autor ou como autor mediato. Ainda assim, e como melhor se verá a seguir, o Código português incluiu a instigação entre as formas de autoria, pelo que o artigo 26º não é integralmente moldado na ideia de execução. Mas como os intervenientes 404 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que só determinaram o autor a realizar o facto ou o ajudaram na sua prática ficariam impunes se o artigo 26º não incluísse os instigadores, ou se não existisse o artigo 27º, a punição destas formas de participação é acessória: exige-se sempre que outra pessoa execute o facto ou que, pelo menos, lhe dê começo de execução. 3. A autoria como domínio do facto; autoria imediata e autoria mediata; intervenção a título principal: instigação; intervenção a título secundário: cumplicidade. Estamos agora em condições de compreender que a distinção entre autoria e participação não deve moldar-se unicamente pela ideia de execução ou partir simplesmente da constatação de que os tipos penais descrevem meros processos causais — a distinção deve, acima de tudo, assentar numa unidade de sentido final-causal (Gallas). O importante não é quem causa o facto ou quem executa a acção típica mas quem domina a execução desta. E domínio do facto significa "ter nas mãos o decurso do acontecimento típico abarcado pelo dolo" (Maurach; Wessels, p. 154). A teoria do domínio do facto limita o seu âmbito de aplicação aos crimes dolosos. Noutros casos, o elemento que define a autoria não é o domínio do facto, mas apenas a característica típica objectiva ou subjectiva que o correspondente tipo de ilícito descreve. Uma possibilidade de concretizar o conceito de domínio do facto consiste em entender que o sujeito tem o poder de deixar correr ou de interromper a realização da acção típica — a cumplicidade será em consequência relegada para os simples actos de ajuda, sem participação na decisão nem no domínio final do facto. Mas a teoria limita o seu âmbito de aplicação aos crimes dolosos, acompanhando o conceito restritivo de autor, o que se explica pelo sentido originariamente subjectivo da teoria, vinculado à ideia de finalidade. Nos crimes negligentes, que se caracterizam precisamente pela perda do domínio final do facto, não se pode distinguir a autoria da participação: é autor quem causa o facto por forma negligente — é um conceito unitário. Cf. Mir Puig, p. 396. Recordem-se, por outro lado, aqueles casos em que a lei define o possível círculo de autores, como nos delitos específicos próprios e nos delitos de dever. Impondo a lei um dever especial, agente será então aqui, não quem detenha o domínio do facto, mas só quem, para além disso, se encontre vinculado pelo dever contido no tipo (Figueiredo Dias, p. 54). Nestes casos, o elemento que define a autoria não é o domínio do facto, mas apenas a característica típica objectiva ou subjectiva que o correspondente tipo de ilícito descreve. 405 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Nos crimes omissivos, aquele que omite é sempre autor. Atenta a natureza dos crimes de omissão imprópria, que exigem a evitação de um resultado, qualquer colaborador, desde que portador das características típicas, é autor. Não intervindo no acontecimento, não se pode sustentar que ele exerceu o domínio do processo. Consequentemente, o critério do domínio do facto é aqui inidóneo para distinguir entre autor e cúmplice. Autor de um crime negligente pode ser não apenas o autor imediato, como o autor atrás do autor, desde logo, o mandante ou o incitador de um comportamento que, por ex., vem a terminar por um homicídio negligente: o patrão que manda o motorista circular a velocidade excessiva em virtude da qual ocorre a morte de um peão, ou aquele que dá droga a um dependente que com ela vem a morrer de overdose. Frequentes são na verdade os casos de autoria paralela, em que o resultado é produzido imediatamente por um, mas só porque outro anteriormente violou um dever objectivo de cuidado ou o risco permitido. Por ex., A mata B com uma manobra do seu automóvel absolutamente proibida e perigosa, porque obteve a carta de condução com os favores de C, que o aprovou no exame de condução, apesar de se ter apercebido da sua inaptidão. Prof. Figueiredo Dias, Conimbricense, p. 113. E se A vem a morrer por ter sido atropelado no momento em que B, com falta de cuidado, dirige a manobra do condutor dum camião que faz marcha atrás sem ter visibilidade? A negligência será unicamente de quem dirige a manobra, embora não conduzisse o camião. É a actuação de A que no caso se encontra vinculada ao risco como critério de referência da imputação — e que, consequentemente, é a conduta típica. O ponto de partida da teoria do domínio do facto é o conceito restritivo de autor e a respectiva vinculação ao tipo legal. Desta forma, a autoria não pode basear-se numa qualquer contribuição para a causação do resultado mas apenas, em princípio, na realização de uma acção típica. A acção típica deve ser entendida como unidade de sentido objectivo-subjectiva — e não, somente, como uma actuação revestida de uma determinada atitude pessoal ou como mero acontecer do mundo exterior. O facto aparece assim como a obra de uma vontade dirigida ao acontecimento (die Tat erscheint damit als das Werk eines das Geschehen steuernden Willens). Para a autoria, contudo, não só é decisiva a vontade de direcção mas também o peso objectivo da parcela assumida por cada um dos intervenientes no facto. Deste modo, só pode ser autor quem domina o curso do facto, compartilhando-o de acordo com o significado da sua contribuição objectiva. (Jescheck, p. 590). Enquanto critério restritivo, a teoria do domínio do facto — em que o autor aparece como figura central do acontecimento típico — permite distinguir as diversas formas de 406 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. autoria (imediata, mediata, co-autoria); e permite compreender a diferença entre autoria e participação. Tem domínio do facto, desde logo, o autor singular imediato que realiza o ilícito típico directamente, i. é, por si próprio, com domínio da acção. Autor é também aquele que executa o facto utilizando outrem como instrumento: é o autor mediato que tem o domínio da vontade. É co-autor quem, dividindo as tarefas, realiza uma parte necessária da execução do plano conjunto, com domínio funcional do facto. III. Separar a autoria da participação: diferença entre autoria e cumplicidade. A intervenção secundária do cúmplice. Como já se deixou entendido, não há unanimidade no estabelecimento dos critérios por que se rege a distinção entre (co)-autoria e participação. O Código português — dizendo com a Profª Teresa Beleza — pune "como autor" aquele que age (como autor directo singular, ou como autor mediato ou como co-autor). "Separando todos estes dos cúmplices, o Código parece adoptar um conceito restritivo de autor, moldado a uma luz orientadora baseada no domínio do facto ou, pelo menos, com ela consentâneo. Mas incluindo na "autoria" aquilo a que chamaríamos instigação, aproxima-se de uma concepção mais ampla, de raiz causalista, em que os instigadores são verdadeiros autores morais. Aproximação hesitante, no entanto, dado o carácter acessório reconhecido a essa "autoria" no final do artigo 26º, tornada dependente de uma execução por outro iniciada." (T. Beleza, A estrutura da autoria nos crimes de violação de dever - Titularidade versus domínio do facto?, RPCC, 2 (1992), p. 337; publicado também em Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, Bosch, 1995, p. 337). Os cúmplices, como intervenientes acessórios, são no Código figuras marginais, a quem falta o domínio do facto e que aí foram relegados para o artigo 27º, que os pune com a pena fixada para o autor especialmente atenuada, consequentemente, adequada à forma de participação não essencial ou secundária. Comparando os artigos 26º e 27º, vê-se que os cúmplices, que apenas favorecem ou prestam auxílio à execução (…à prática por outrem…), ficam fora do acto típico — se o agente ultrapassa o mero auxílio e executa uma parcela do plano criminoso, não poderá deixar de ser havido também como autor do facto ilícito e já não como cúmplice. Recordando o que se escreve no acórdão do STJ de 16 de Janeiro de 1990, BMJ-393-241, o cúmplice, ao contrário do autor, não executa o 407 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. facto, por si ou por intermédio de outrem, nem toma parte directa na sua execução, nem determina outra pessoa à prática do facto, pois somente favorece ou presta auxílio à execução, ficando fora do facto típico. A teoria dos bens escassos ajusta-se à eficácia dos meios e dá relevo às contribuições necessárias para o resultado. Mas nem sempre se distinguiu assim o cúmplice da figura do co-autor. Entre nós — para além de se empregar, como já se observou, a distinção de Farinacio, entre "auxiliator causam dans" e "auxiliator causam non dans", ou seja: quem não dá causa será simplesmente cúmplice —, a teoria dos bens escassos serviu frequentemente para afirmar que qualquer contribuição com um bem escasso para a produção do resultado se enquadrava na (co)-autoria e que a contribuição consistente num bem abundante — não escasso — seria caso de cumplicidade. A teoria foi desenvolvida por Gimbernat no seguimento da doutrina do domínio do facto, à qual se apontava a incapacidade para fornecer um critério de delimitação entre autoria e cumplicidade. Uma bomba de alguns quilos de trotil seria um bem escasso, porque é coisa que se não pode comprar como quem compra uma faca ou uma navalha. A contribuição de quem fez a bomba ou a conseguiu por qualquer forma seria uma intervenção essencial e o raciocínio serviria — com outros complementos que para aqui não vêm — para afirmar se alguém é autor ou se é cúmplice. Na Alemanha, para a distinção entre o co-autor e o cúmplice, a jurisprudência continua ainda hoje a orientar-se por critérios predominantemente subjectivos, pela vontade de colaboração (animus) (Stratenwerth, p. 229; Jakobs, 608 e ss.), mas faz também apelo a elementos objectivos, de forma que o domínio objectivo indicia, em regra, o animus auctoris, a vontade do sujeito, que passa a definir-se como "vontade de domínio do facto". CASO nº 30-A: A empresta o seu próprio carro a B e a C para que estes nele se desloquem até uma estação de serviço, com venda de combustíveis. A intenção é assaltar os escritórios no final da tarde e levar todo o apuro desse dia. A desloca-se noutro carro para o local do assalto e permanece aí, armado, pronto para o que der e vier, fingindo aguardar a sua vez de encher o depósito, enquanto os outros dois se dirigem às instalações, cada um deles munido de uma pistola de 9 mm. Uma hora depois, já a bom recato, A, B e C dividem o dinheiro subtraído em partes iguais. Serão A, B e C co-autores, ou a co-autoria envolverá apenas B e C, sendo A mero cúmplice? Entre os três houve uma decisão conjunta e todos participaram na execução, de acordo com o plano comum: A, B e C são co-autores. A contribuição de A para o facto tem certamente carácter relevante do ponto de vista causal. E foi, como as de B e C, consciente e querida (elemento subjectivo da co-autoria). 408 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Por outro lado, A empresta ao empreendimento criminoso uma actividade que tem uma natureza decisiva. É certo que B e C são os principais protagonistas do assalto, mas A assumiu o papel de guarda-costas dos outros dois, ficando de vigia, pronto para o que der e vier. Entre os três houve um pactum scelleris, um acordo prévio para a comissão do roubo com repartição de tarefas. E todos participaram na execução, agindo conforme o plano convencionado. Cada um deles actuou e deixou actuar os outros dois, de modo que o que cada um deles fez pode ser imputado aos outros, que actuaram de acordo com ele — todos realizaram simultaneamente os elementos do correspondente tipo penal. Pode bem falar-se de uma imputação recíproca das diversas contribuições causais, sendo que todos os intervenientes respondem pela totalidade do facto comum. Só não seria assim se um dos co-autores se tivesse excedido por sua conta, relativamente ao plano acordado, sem que os outros tivessem dado o seu consentimento a esse excesso — em tal caso, o excesso não poderia ser imputado aos restantes, porque para lá do que foi acordado não há imputação recíproca. IV. A comissão por intermédio de outrem: autoria mediata. Critério para separar a instigação da autoria mediata: o instigador não executa o facto, limita-se a "determinar" outrem à sua prática, ficando dependente de uma execução por este iniciada. 1. Nos crimes dolosos de comissão por acção, a circunstância de a autoria se deduzir directamente da realização do tipo conduz à definição do autor imediato como aquele que por si mesmo executa uma acção típica cominada com pena. A autoria directa, imediata, é como que o protótipo da autoria, na medida em que esta significa preenchimento do tipo de ilícito. Todavia, o próprio artigo 26º reconhece a possibilidade de o facto ser executado por intermédio de outrem, o que significa a presença de duas pessoas na prática do crime: o autor mediato, que realiza o ilícito como próprio, e o "outro", que o executa, actuando como intermediário. O Prof. Eduardo Correia, por ex., in Direito Criminal, II, de 1965 (cf., ainda, a acta da 12ª sessão, Actas, p. 194), aderindo a um conceito extensivo de autoria assente na teoria da adequação considerava supérflua a instigação, pois a mesma podia e devia ser compreendida no conceito de autoria mediata, moral ou intelectual, "desde que a este se 409 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. dê um sentido lato que abranja todas aquelas hipóteses em que alguém causa a realização de um crime utilizando ou fazendo actuar outrem por si." A causalidade devia continuar a considerar-se "o verdadeiro fulcro" (Mezger: "o ponto de arranque cientifico") à volta do qual gira a teoria da participação, de modo que, se alguém determina, e por conseguinte prevê ou deve prever, actividades dolosas ou negligentes de outrem por força do seu comportamento, o resultado considera-se consequência normal, típica, não obstante entre eles se interpor uma vontade humana. Perante as novas concepções do agente que "domina" o facto, o "homem por detrás" já não é em regra considerado autor mediato quando o executor actua livre de erro e de forma plenamente culposa, intervindo aqui o princípio da responsabilidade. O critério para distinguir a instigação da autoria mediata passa, portanto, pelo domínio do facto: a autoria mediata caracteriza-se, sobretudo, como domínio da vontade. O autor mediato — diz Wessels — utiliza para cometer um "facto próprio" "mãos alheias", assumindo deste modo o papel dominante. A posição subordinada é deixada para quem pratica o crime por suas próprias mãos, sujando-as. O autor mediato domina o acontecimento total, mas fica na sombra — deixa que o outro trabalhe por si e lava daí as suas mãos (Kühl, p. 630). Pergunta a Profª. Fernanda Palma: a autoria mediata será necessária? Resolve alguma categoria de problemas? “Na realidade, a figura da autoria mediata, contida no artigo 26º do Código Penal, é absolutamente justificável porque exprime uma ideia não “mecanicista” de execução, adequada aos processos sociais reais de domínio de processos causais”. RPCC 9 (1999), p. 409. Todavia, não existe unanimidade no tratamento das constelações de casos que neste âmbito se podem suscitar. O chamado autor mediato tem o domínio do facto porque domina um instrumento humano, o executor, aproveitando-se de uma deficiência deste. Esta deficiência do executor é o ensejo para o domínio da vontade ou do saber do homem por detrás nos casos em que o executor actua de forma atípica ou sem dolo. i) A, médico, entrega a uma enfermeira uma injecção letal, que esta ministra ao doente sem de nada suspeitar; ii) A caça na companhia de B, que só recentemente aprendeu a manejar a espingarda. Às tantas, A descobre a presença de C, seu inimigo mortal, a coberto de umas moitas, e faz sinal a B para que dispare nessa direcção, a pretexto de matar um javali. B, convencido de que se trata duma peça de caça faz fogo e atinge mortalmente C. A é o (único) autor doloso. B não "vê" os factos e portanto não pode opor resistência a quem maliciosamente os maneja por detrás (Roxin). 410 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Outra hipótese de autoria mediata tem a ver com o uso da força. Se A neutraliza a vontade de B com a ameaça de um perigo actual para a vida ou para a integridade física, assim o compelindo à realização de um tipo penal, B converte-se em executor da vontade de A, que por isso será o autor mediato do crime. O executor pode mesmo agir sem culpa, por ser inimputável (cf. o artigo 20º). A costuma vender droga num dos bairros da cidade mas sente-se acossado pela polícia, que o vigia, e paga 25 euros a B, de doze anos, para que este o faça por ele. A aproveita-se da inimputabilidade do menor para assumir o papel dominante. Nalguns destes casos, em que o autor imediato é inimputável ou lhe falta, por forma não censurável, a consciência da ilicitude ou actua em situação de inexigibilidade (possuindo em certo sentido o domínio da acção, embora faltando-lhe o domínio ético-social — Figueiredo Dias), justifica-se, segundo alguns autores, que se analise a situação igualmente à luz da instigação, enquanto, como facto periférico, esta faz jus à regra da acessoriedade ( 31 ). Podendo o domínio do facto pertencer aos que nele participam por forma escalonada — mesmo o inimputável pode actuar conscientemente —, deve verificar-se se o "domínio da vontade" do mandante se sobrepõe ao "domínio da acção" do agente imediato: será caso de se concluir pela autoria mediata se o mandante conhece a incapacidade de culpa do intermediário ou as circunstâncias que fazem desaparecer a censurabilidade. (Cf. Wessels, p. 160; Ebert, p. 179). Trata-se, porém, de uma solução discutível. De uma maneira geral, admitir a autoria mediata quando o intermediário age por forma dolosa e plenamente responsável equivaleria a deixar nas mãos deste a decisão sobre a realização do facto. Contudo, para alguns autores, não existem sensíveis limitações nas hipóteses de "autor por detrás do autor" (Täter hinter dem Täter), em que o próprio executante actua por si e com plena responsabilidade (volldeliktisch handelndes Werkzeug). Neste sentido, a jurisprudência alemã considerou haver autoria mediata do 28 Em larga medida, a teoria do autor mediato surgiu quando se exigia a acessoriedade extrema para a participação: o autor principal tinha que realizar um acto ilícito e culposo, de forma que um inimputável nunca podia ser autor e, consequentemente, o indutor nunca podia ser castigado como instigador. Cf. Bustos Ramírez, p. 330. Sobre as origens da instigação, cf. Joachim Hruschka, Regreßverbot, p. 591; leia-se também, com proveito, Prof. Eduardo Correia, Problemas fundamentais, p. 32 e ss. 411 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. "homem por detrás" (Hintermann) quando o executor desconhecia que o roubo que cometia com uma determinada espécie de arma, de acordo com a vontade do "homem por detrás", podia provocar a morte da vítima, como veio a acontecer (homicida por detrás do ladrão). Considerou-se, nomeadamente, que o erro não excluía o dolo, mas este não passava de um dolo "neutro", portanto, havia uma posição dominante do mandante. Muito discutido é o caso do chefe do bando, que algumas opiniões situam na co-autoria, mesmo quando a intervenção se dá na fase preparatória, no momento de organizar ou projectar um facto criminoso. É certamente uma solução incorrecta perante o artigo 26º do nosso Código, mesmo nos casos em que a actividade de planificação e de organização continua a produzir efeitos durante a execução do crime, pois se o chefe do bando não toma parte nesta falta-lhe o domínio funcional do facto. Se não se intervém na própria execução, faltará a referência jurídico-penal do domínio. Verificando-se os elementos da instigação e havendo pelo menos começo de execução por parte do(s) induzido(s) será este o papel que melhor lhe cabe. Hipótese diferente ocorre no domínio da chamada criminalidade organizada, onde os "aparelhos organizados de poder" revelam uma estrutura bem mais complexa e apurada do que a do simples bando. A introdução de uma nova sub-espécie do domínio da vontade, o chamado domínio da organização (Organisationsherrschaft), permitiu que alguns autores situassem na autoria mediata os casos de abuso de um aparelho organizado de poder. São casos limite de cometimento de crimes (especialmente homicídios) por pessoas que na esfera de um aparelho de poder organizado funcionam como "rodas de engrenagem", arbitrariamente permutáveis (fungíveis). Existem com efeito centros de poder rigidamente hierarquizados e dotados de forte disciplina interna que se aproveitam da disponibilidade sem condições do agente imediato para a realização do facto. O autor mediato é o membro da organização criminosa que, ocupando um posto dirigente e de mando, decide e ordena a prática de certos crimes sem chegar propriamente e tomar parte activa na respectiva execução. Como "detém o poder e dá as ordens, domina o processo pela simples fungibilidade do instrumento, no sentido em que o instrumento pode ser substituído por outro, por a condição de instrumento não depender das características individuais da pessoa que executa o facto" (Teresa Serra). Os dirigentes de tais aparelhos, sem se levantarem das secretárias e portanto sem 412 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. participarem na execução dos crimes, são os verdadeiros mandantes e senhores do facto: o Schreibtischtäter tem o domínio do facto, não obstante a completa responsabilidade do executor. Estas condições estruturais com percursos previsíveis podem existir designadamente em estruturas organizativas estatais, empresariais ou análogas e em hierarquias de (co)mando. Num tal caso, o "homem por detrás" é o autor na forma de autoria mediata — actua com conhecimento destas circunstâncias, aproveitando-se para a realização do facto também, em especial, da disponibilidade incondicional do agente imediato, e querendo o resultado como efeito da sua própria acção (Teresa Serra, A autoria mediata através do domínio de um aparelho organizado de poder, RPCC 5 (1995), p. 312). O caso Sirius. Existe uma constelação de exemplos que na literatura alemã se identificam com a quase ausência de dolo (quasi vorsatzlos). -i) A induz B, que nele confia cegamente, a procurar o suicídio, fazendo-lhe crer que após a morte passaria a viver num outro planeta ou na estrela Sirius. -ii) F convence falsamente o marido a matar-se com ela, ingerindo ambos uma dose letal de veneno. -iii) T desafia V a tocar num fio condutor de electricidade que se encontra a descoberto, fazendo-lhe crer que a corrente está desligada. V aceita o desafio e acaba por morrer, como era intenção de T. Para uma boa parte dos autores alemães, T é punível como autor mediato dum homicídio na pessoa de V com este por instrumento. A deficiência que transforma V em instrumento e possibilita o domínio do facto por T não é a atipicidade objectiva da conduta de V, mas a falta de dolo com que este actua e que é provocada e utilizada por T: ao contrário de T, V não sabe que se mata. Recorde-se que o código alemão não prevê o crime de incitamento ou ajuda ao suicídio. Sobre isto consulte M. M. Valadão e Silveira, Sobre o crime de incitamento ou ajuda ao suicídio, p. 156. Incitar ao suicídio (artigo 135º) significa induzir alguém a isso, dando-lhe a necessária força anímica. O instigador é assim um verdadeiro autor. O artigo 297º previne a instigação pública a um crime, diferente da apologia pública a um crime, que vem no artigo seguinte. 2. Participação é só cumplicidade? ou identifica-se também com a instigação? A proximidade entre o autor mediato (que executa o facto por intermédio de outrem) e o instigador (que determina outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução) articula-se numa constelação típica (Ebert, p. 171) que no StGB se explica pela diferença entre autoria e participação, onde a instigação se integra. Porém, como já vimos, o Código português junta a autoria mediata e a instigação, como eco do que acontecia no código antigo, onde ambas formavam a categoria mais alargada da autoria moral. Identificando-se a instigação com a forma de punição da autoria — sem 413 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que se pressuponha a prática pelo instigador de qualquer acto de execução, no sentido do artigo 22º (Valdágua, p. 115) — a ideia de participação, ao contrário do sistema alemão, coincide normativamente, no nosso direito, com a da cumplicidade (artigo 27º, nº 1). De qualquer forma, o instigador será certamente uma figura que actua no momento anterior ao facto: a conduta deste limita-se a "determinar" outrem à prática do crime, ficando dependente de uma execução por este iniciada. No Código português pune-se o instigador como se fosse autor, como que a sublinhar uma forma de participação essencial: o instigador é punido com a mesma pena do autor. Mas pune-se como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, se limita a prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso (artigo 27º, nº 1), cabendo-lhe a atenuação especial obrigatória, adequada à forma de participação não essencial — secundária ou acessória. 3. Os crimes de mão própria. Tradicionalmente, associados à autoria mediata, mas para a excluir, encontram-se os crimes de mão própria, nos quais a lei parece exigir que seja a pessoa descrita no preceito que leve a cabo a execução (E. Correia). Uma vez que autor de um crime de mão própria é apenas aquele que o pratica de forma imediata, por si próprio, fica excluída a autoria mediata. No direito alemão aponta-se o exemplo do juramento falso. Adoptando-se um conceito extensivo de autor, nada obsta a que, v. g., quem determine outrem a prestar um juramento falso se considere autor de tal delito (E. Correia). No nosso Código, atente-se no artigo 171º (actos exibicionistas) e no artigo 292º (condução de veículo em estado de embriaguez). A autoria mediata por omissão não é configurável, uma vez que o garante não domina a actuação do instrumento (Otto, p. 285). Mesmo quando o tutor não impede que o doente mental em delírio mate um terceiro, podendo fazê-lo, do que se trata é de autoria imediata: da situação deriva um dever de garantia que não foi cumprido. V. Autoria. Comparticipação. Oferecimento para delinquir. CASO nº 30-B: A e B são companheiros e amigos e ambos têm problemas, desde há algum tempo, com as respectivas mulheres. Sentem-se, um e outro, incompreendidos e alvo de suspeições permanentes. No bar que frequentam, A e B pedem mais um copo e aproveitam para digerir as suas raivas, até que se decidem — A matará a mulher de B, B matará a mulher de A. No dia seguinte, B, enquanto toma o 414 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pequeno almoço, sentado diante da mulher, faz por se esquecer do que, no dia anterior, tinha combinado com A. Ri-se à socapa das tolices que passaram pela cabeça dos dois. Por essa hora, A também tem à sua frente a respectiva mulher, mas, ao contrário do amigo, está bem consciente do que ambos combinaram e disposto a executar a sua parte no plano. Ao fim da tarde desce à cave e pega na espingarda. Já o sol se punha quando tomou posição diante da casa do amigo: do lado de lá da janela via a mulher deste, ali à distância do tiro, que tinha pronto a disparar. No momento crítico acontecem, porém, duas coisas inesperadas: a filha de B, de seis anos de idade, agarra-se à mãe, e A, sentindo vergonha do que se propunha fazer, incomodado, com a consciência a roê-lo, desiste do que projectara. De regresso a casa, telefona a B e diz-lhe que se desvincula do que tinham combinado, dispensando o amigo de cumprir a sua parte. Para sua grande surpresa, fica então a saber que este nunca levara a sério o plano de matarem as mulheres. Cf. Thomas Nuzinger e Dirk Sauer, Ein unmoralischer Kegelabend, JuS 1999, p. 980. Punibilidade de A e de B ? 1. Punibilidade de A. a ) Factos que afectam a mulher de B. i) Homicídio voluntário tentado (artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1, a) e b), e 131º), eventualmente qualificado. Uma vez que a mulher de B continua viva, não se pode falar no resultado morte. Todavia, houve a decisão de matar a mulher. A mais disso, os actos de A precedem imediatamente a acção típica, inserindo-se na execução, de acordo com o plano concreto que se propôs realizar. São pois actos de execução e como tal definidos no artigo 22º, nº 2, c). A pode, no entanto, ser beneficiado pela desistência da tentativa, já que não chegou a disparar sobre a mulher. A desistência do propósito criminoso, como circunstância que beneficia o agente, está prevista no artigo 24º, nº 1: a tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime. No caso, não parece de duvidar que o agente desistiu voluntariamente e portanto de forma relevante, pelo que o seu acto não será punível. ii) A obrigou-se perante B a matar a mulher deste, mas o chamado "oferecimento para delinquir" não está previsto no Código Penal português, embora conste do § 30 II, 1ª alternativa, correspondente ao antigo § 49 a), do StGB alemão, onde se punia quem, baldadamente, procurava determinar outrem ao crime, se oferecia para a sua prática, aceitava esse oferecimento ou com outros se concertava para a prática dele. Cf. a Acta da 13ª sessão, Actas, p. 206. 415 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. b) Factos que afectam a mulher de A. i) Como B nada fez, não chegou sequer a praticar actos de execução, como se dirá a seguir, também se não poderá afirmar que A determinou B, em termos de ser instigador, já que a instigação está dependente do começo de execução do crime (artigo 26º, última parte). A instigação não é autónoma. ii) A nada fez para impedir que B matasse a sua mulher. A tinha o dever jurídico de pessoalmente evitar o resultado morte da sua mulher (artigo 10º, nº 1). Não seria problema afirmar o dolo de A, mas não houve actos de execução por parte de B, pelo que não haverá lugar para considerar um crime de homicídio cometido por omissão, mesmo só tentado. 2. Punibilidade de B. a) Factos que afectam a mulher de B. i) A praticou actos de execução do crime que decidira cometer na pessoa da mulher de B, mas não se pode afirmar o dolo de instigador, dolo de consumação, pelo que B não é instigador da tentativa de homicídio. ii) B tinha, relativamente a sua mulher, que A decidira matar, praticando até actos de execução, o dever jurídico de pessoalmente evitar a morte (artigo 10º, nºs 1 e 2) e nada fez. À pessoa de B, todavia, não podemos referir qualquer dolo, pelo que se responde pela negativa à problemática da autoria do crime de homicídio (tentado) por omissão. b) Factos que afectam a mulher de A. i) B nem decidiu matar a mulher de A nem praticou qualquer acto de execução. VI. As diversas formas de autoria nos crimes dolosos de acção (continuação). Co- autoria; domínio funcional do facto. CASO nº 30-C: Crime autónomo cometido durante a execução do plano. Por volta das 5 da manhã, A e B dirigiram-se ao posto de abastecimento da Rua do Paraíso a fim de aí se abasteceram de gasolina. Cerca de uma hora mais tarde regressaram ao local. A saiu do carro e dirigiu-se ao escritório, onde se encontrava o empregado M. A tirou de um dos bolsos uma pistola de 9 milímetros, 416 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. carregada e pronta a disparar. Apontou-a ao peito de M e ordenou-lhe que se deitasse no chão e lhe desse todo o dinheiro que tivesse em seu poder e se encontrasse no escritório. O M, no chão, deu-lhe todo o dinheiro que tinha e indicou-lhe a gaveta onde se encontrava o restante. A de imediato rebentou a fechadura da gaveta, e, prevalecendo-se sempre da perturbação e insegurança, bem como do convencimento de M de que aquele não hesitaria em atingi-lo na sua integridade física, retirou dali a quantia de 85 contos que levou consigo. Antes de sair do escritório, A disse a M que permanecesse deitado, após o que A saiu e fechou a porta, retendo M no interior, contra a vontade deste. A voltou para o carro onde o aguardava B e dali se afastaram de imediato. A e B agiram de comum acordo quanto ao propósito de se apoderarem do dinheiro que o A encontrasse no interior do escritório, a fim de repartirem entre ambos o produto, apesar de saberem que tais valores lhes não pertenciam e que agiam contra a vontade do seu legítimo dono. Parte da quantia de que se apropriaram, dois contos, pertencia ao M, que veio mais tarde a ser indemnizado pela sua entidade patronal. O M esteve fechado no escritório durante cerca de 10 minutos, até um outro empregado se ter apercebido do que se passava. Não se provou que o B tenha participado por qualquer forma, dado o seu acordo ou tenha tido prévio conhecimento da resolução de fechar M dentro do escritório e da destruição da gaveta. Cf. o acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 1995, BMJ-444-209. O tribunal condenou A pela prática, em co-autoria, de um crime de roubo (artigo 210º), e, em concurso real, ainda pela prática de um crime de sequestro (artigo 158º) e de um crime de dano (artigo 212º). E condenou B, mas apenas como co-autor do roubo e do dano. 1. Conforme a definição legal (artigo 26º), várias pessoas podem ser co-autores, tomando parte directa na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros. Interessa-nos sublinhar que, na distinção entre a autoria singular imediata e a co-autoria, o autor singular executa o facto por si mesmo, enquanto o co-autor toma parte directa na sua execução — e fá-lo por acordo ou juntamente com outro ou outros. Se num determinado caso apenas A realiza os elementos objectivos e subjectivos do ilícito, e se o faz sem justificação e de forma culposa, então A é autor singular — imediato — desse crime: A executou o facto por si mesmo e executou-o integralmente. É indispensável uma decisão conjunta e uma execução conjunta da decisão. A nossa lei começa por fazer assentar a co-autoria num acordo, mas para alguns autores bastará — parece-nos —, a consciência e vontade da colaboração de várias pessoas na realização dum tipo legal de crime. Escreve, por exemplo, o Prof. Faria Costa, in Jornadas, p. 170: "Para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de 417 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. crime ("juntamente com outro ou outros"). É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio — podendo mesmo ser tácito — que tem igualmente que se traduzir numa contribuição objectiva conjunta para a realização típica. Do mesmo modo que, em princípio, cada co-autor é responsável como se fosse autor singular da respectiva realização típica. " Cf. também, sobre isto, Maia Gonçalves, Código Penal, em anotação ao artigo 26º. E as Actas, p. 199. O co-autor toma parte directa na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, de forma que o chefe de bando que não toma parte na execução do assalto não assume o papel de co-autor nos crimes assim praticados. Mas é necessário atentar que nenhum dos dois termos desta relação é compatível com uma visão atomística da co-autoria, observa Conceição Valdágua, p. 125, não só o "acordo" mas também o requisito "juntamente com outro ou outros" pressupõe algo que unifique (junte) os contributos do vários co-autores para além do resultado da soma desses contributos. Não será, pois, de co-autoria a história dos dois sobrinhos que aspiram à herança do tio e que, cada um por si e no desconhecimento recíproco do que faz o outro, lhe ministram o que, um e outro, erradamente supõe ser uma dose letal de veneno. Morrendo o tio, o caso é de autoria paralela em homicídio tentado, pois não houve acordo, nem os dois sobrinhos actuaram "juntamente" um com o outro. Diz a jurisprudência: (veja-se uma extensa referência em RPCC 6 1996, p. 632) Um dos requisitos é a participação directa na execução do facto, conjuntamente com outro ou outros, num exercício conjunto do domínio do facto, numa contribuição objectiva para a realização, que tem a ver com a causalidade, embora possa não fazer parte da execução, como por exemplo, a conduta do motorista do veículo onde se deslocam os assaltantes dum banco; para a verificação do acordo basta a existência da consciência e vontade de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime, basta provar a adesão de vontade de cada um à execução do crime (acórdão do STJ de 14 de Junho de 1995, CJ-1995, II, p. 230). Na definição da co-autoria material é necessário que se verifique uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado e uma execução igualmente conjunta. Para além disso, e quanto ao primeiro requisito, basta um acordo tácito, com a simples consciência bilateral ou plurilateral referida ao facto, com o conhecimento pelos agentes da recíproca colaboração [nota: há autores para quem é insuficiente a simples consciência de colaboração], sem que se exija que se conheçam entre si. No que respeita à execução conjunta, não é indispensável que o agente intervenha em todos os actos ou tarefas em ordem a ser alcançado o resultado final, antes relevando, que a actuação de cada agente, ainda que parcial, se integre no todo e conduza essencialmente à consumação do tipo de legal de crime que se tenha em vista. Acórdão do STJ de 15 de Outubro de 1998 Proc. n.º 731/98. Existe co-autoria material nos casos em que, sem que haja um acordo expresso, as circunstâncias de facto em que os arguidos actuaram são reveladoras, segundo as regras da experiência comum, de um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração. Acórdão do STJ de 7 de Outubro de 1998 Proc. n.º 802/98. Havendo acordo prévio dos agentes das infracções cometidas, e a aceitação prévia, por cada um deles, de todos os actos que se seguissem para o executar, desde que cometidos por um deles, não importando 418 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. quem, está integrado o conceito de co-autoria — artigo 26º do Código Penal. Acórdão do STJ de 14 de Abril de 1999, BMJ-486-110. Na co-autoria não precisa cada um dos agentes de realizar totalmente o facto correspondente à norma penal violada, podendo executá-lo só parcialmente. Por ex., o assalto a um banco é levado a cabo por dois indivíduos. Conforme tinham combinado, A faz mão baixa do dinheiro enquanto B ameaça os clientes e o caixa. Os diferentes actos que integram o roubo (artigo 210º, nº 1) — um dos ladrões coloca as pessoas presentes na impossibilidade de resistir enquanto o outro subtrai o dinheiro — são contributos para o plano criminoso comum do assalto ao banco, realizado em co-autoria. O co-autor, ao contrário dos cúmplices, tem um domínio sobre o sucesso total do facto: recusada a sua colaboração, o mesmo fracassa. Este poder, decorrente da essencialidade da função que desempenha no plano, incide sobre a totalidade do facto, o que permite que o mesmo lhe seja integralmente imputado, apesar da sua execução por esse interveniente ser apenas parcial. No nosso exemplo, cada um dos dois ladrões executa uma função que é essencial para o bom êxito do plano comum. É o chamado domínio funcional do facto. Acontece o mesmo se o assalto ao banco for assim executado: um dos ladrões fica no carro com o motor a trabalhar e pronto a arrancar, outro trata de desligar o alarme do edifício bancário, um terceiro vigia a aproximação de carros suspeitos, o quarto mantém em respeito o caixa do banco apontando-lhe uma pistola, enquanto o quinto recolhe o dinheiro. Também aqui todos serão co-autores, ainda que só o comportamento dos dois últimos realize os elementos típicos do crime de roubo (violência, subtracção: artigo 210º, nº 1). Mesmo a conduta do que fica ao volante se integra na co-autoria, mas já seria, provavelmente, cumplicidade o contributo do taxista que pelo dobro do preço normal da corrida, conscientemente, acede a levar os ladrões ao local do crime. Se, fora de qualquer combinação, A entrasse no banco de pistola empunhada simplesmente para fazer ver ao caixa que se lhe continuasse a perseguir a mulher o mataria, e se B, que aguardava a sua vez de ser atendido, dando-se conta do que estava a acontecer, aproveitasse para deitar a mão a um maço de notas — então teremos dum lado um crime de ameaças (artigo 153º) e do outro um crime de furto (artigo 203º), mas exclui-se a co-autoria. Os co-autores levam a cabo um facto próprio (comum), de maneira que se não poderá falar aqui do princípio da acessoriedade, que é típico da participação. Os partícipes 419 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. (por ex., um cúmplice) colaboram num facto alheio: não se lhes aplica o princípio da imputação recíproca de esforços e contribuições, que é exclusivo da co-autoria. 2. Quem impede a vítima de se defender para que outro a esmurre comete com este o crime de ofensa à integridade física (artigo 143º), não é simplesmente seu cúmplice. Pondere-se agora o seguinte caso, que se integra na chamada co-autoria alternativa: X segue para sua casa em Matosinhos, umas vezes pela Avenida da Boavista outras pela Circunvalação. A e B, seus inimigos, querem a todo o custo matar X. Para que a acção não falhe, executam assim o plano combinado: A espera-o armado no primeiro trajecto e B, ao mesmo tempo, no segundo. É B quem mata X, que nesse dia escolheu a Circunvalação para seguir para casa. Será A co-autor do crime de homicídio? Ou A não terá passado da fase dos actos preparatórios? Haverá, simplesmente, cumplicidade da sua parte? Na chamada co-autoria aditiva, vários indivíduos, previamente acordados, realizam cada um uma acção que por si só se dirige à realização completa do tipo, tendo a actuação conjunta o sentido de garantir que as falhas de actuação de uns sejam compensadas com os acertos de outros e que assim seja praticamente certa a produção do resultado. O exemplo normal, também citado por García Conlledo, que seguimos de perto, é o de um número elevado de terroristas que, para não falharem a morte dum político, se colocam cada um numa janela próximo do local em que há-de passar o político e, quando este passa, disparam todos ao mesmo tempo, como fazem os pelotões de fuzilamento, não se sabendo que bala ou balas lhe produzem a morte, mas sabendo-se que umas o atingem e outras não. Se os intervenientes actuam independentemente um do outro, não será caso de co-autoria nem de participação. Se por ex., A, que quer envenenar B, seu marido, para casar com o amante C, e lhe mistura na bebida uma dose de veneno, ainda assim insuficiente para provocar a morte de uma pessoa, e se, desconhecendo a iniciativa de A, C, o amigo, mistura idêntica dose não letal de veneno na mesma bebida, de forma que as duas juntas chegam para provocar a morte do odiado marido, a hipótese é de causalidade cumulativa, também situada no âmbito das chamadas autorias paralelas — ou autoria acessória (Luzón Peña, p. 363, Stratenwerth, p. 252). 420 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 3. Mas, como já se acentuou, cada co-autor responde apenas até onde vai o acordo recíproco. Consequentemente, nenhum deles será responsável pelos excessos do outro. Vamos agora supor que A e B pretendem apoderar-se dum valioso quadro a óleo que X tem em casa. Fica entendido entre ambos que A entrará na moradia e que B ficará a vigiar, mas como lhes repugna ter que enfrentar os moradores, aguardam uma ocasião em que, tudo o indica, a casa ficará vazia, para passarem à acção. B faz até passar a sua colaboração pelo facto de não terem que enfrentar qualquer dos moradores. A entra na vivenda mas logo vê que está alguém em casa. Para assegurar o êxito da operação, em vez de discretamente se retirar, como ainda podia fazer, A apanha um sabre que pende da parede e surpreende o único morador, a quem, sob a ameaça da arma, obriga a acompanhá-lo até junto do quadro, com que foge. Poderemos sustentar que há co-autoria entre A, como agente dum roubo, e B, como agente de um furto? Repare-se que o uso da violência contra uma pessoa — elemento do roubo — corre unicamente por conta de A, pois B não a aprovara, pôs até como condição da sua colaboração que nenhum deles a usaria. No caso nº 30-C pode perguntar-se se é acertada a condenação de B também por um crime de dano. Repare-se que o A teve necessidade de rebentar a gaveta para retirar o dinheiro do seu interior; é evidente que se trata de um acto que acompanha frequentemente a execução de um crime de roubo, devendo ter sido considerado por ambos, pelo menos tacitamente, quando tomaram a decisão de realizarem o assalto. No que respeita ao sequestro, é bem possível que o B, se fosse posto perante a hipótese de ter que encerrar o M no escritório concordasse com isso, mas é claro que não se pode afirmar, sem mais, um acordo tácito, pois a situação não será muito frequente. Podemos partir da seguinte ideia: se um dos agentes, na execução da tarefa que lhe foi confiada, usar um meio não previsto aquando da elaboração do plano criminoso, que porventura preencha os elementos de um outro tipo legal de crime, será de responsabilizar todos os compartes também como co-autores desse novo crime se tal meio for normalmente previsível e estiver frequentemente interligado à execução do crime planeado. Nesse caso, não se torna necessário que tenha havido expressa anuência de todos. (Cf. ainda o acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 1995, cit.). 4. Os casos práticos colocam por vezes problemas que nem sempre recebem respostas uniformes. Por ex., o de saber se a execução conjunta poderá dar-se quando os 421 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. intervenientes estão longe um do outro ou se a contribuição executiva para o facto comum pode ocorrer em momentos distintos. Já demos o exemplo dos dois interessados na morte do seu inimigo comum, que escolhe caminhos diferentes para chegar a casa. Um dos matadores embosca-o num ponto, o outro espera-o no caminho alternativo. Do ponto de vista temporal, as contribuições podem ocorrer durante toda a fase de execução, i. e, no intervalo compreendido entre o começo da tentativa e a consumação do facto: a empregada doméstica que, entendendo-se com o namorado, lhe fornece a chave do móvel onde este, no dia seguinte, vai buscar uns maços de notas que lhes não pertencem, enquanto ela distrai a dona da casa no jardim anexo. Mas a questão principal tem a ver com o comportamento do vigilante, aquele que, por ex., durante um furto, fica na rua, de atalaia, vigiando, enquanto outro ou outros transpõem o muro da moradia que todos querem assaltar. Repare-se que dum modo geral o vigilante não levanta suspeitas, quem está de fora raramente o associa aos que actuam na cena do crime propriamente dita. "Se "ficar à porta" vigiando for uma forma suficientemente decisiva para permitir o desenlace típico no caso concreto, a imputação penal justificar-se-á como acontece no caso em que alguém fica a guardar o dono da loja para que não intervenha, ou a distrair a vítima para que não impeça o assalto. Mas se "ficar à porta" apenas aumenta a segurança do outro agente, não sendo determinante o aumento de risco para o resultado típico, ficaremos no patamar menos grave da cumplicidade. A expressão do artigo 26º do Código Penal não é impeditiva desta doutrina, como, por vezes, a jurisprudência tem parecido entender, pois "tomar parte directa na execução" apenas significa realizar uma conduta a que o resultado típico pode ser imputado no contexto do acordo criminoso e não, necessariamente, praticar actos de execução como se de uma autoria singular se tratasse". Prof. Fernanda Palma, A teoria do crime como teoria da decisão penal, RPCC 9 (1999), p. 592. "O vigilante é co-autor se isso for necessário para a realização do facto, se portanto dessa actuação se puder dizer que tem as características de uma função independente nas tarefas de cada um. Se, por ex., um bando de criminosos leva consigo, pela primeira vez, um "aprendiz", para o ir iniciando no exercício da "profissão", e o põe a vigiar num lugar sem importância, o caso será de cumplicidade. A realização do plano não fica dependente da contribuição do aprendiz. Os outros poderiam actuar, fazendo-o sem ele, ainda que para tanto tivessem que providenciar por um "sentinela" para um lugar importante. Se o 422 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ficar de atalaia representa ou não o papel dum co-autor dependerá das circunstâncias de cada caso." (Roxin). Ficando o arguido na rua a vigiar enquanto os restantes co-arguidos penetravam na residência do ofendido para aí subtraírem diversos bens é co-autor do crime de furto, pois sem a ajuda do vigia, o assalto não se faria jamais nas condições de segurança e viabilidade (ac. do STJ de 4 de Novembro de 1993, in Jurisp. Penal, p. 74). As circunstâncias em que os arguidos actuaram nos momentos que antecederam o crime podem ser indício suficiente, segundo as regras da experiência comum, desse acordo tácito; já no que diz respeito à execução, não é indispensável que cada um deles intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes ao resultado final, basta que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do resultado. (Acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 1995, BMJ-444-209; CJ, ano III (1995), p. 221; acórdão do STJ de 18 de Março de 1993, CJ, ano I (1993), p. 195). 5. O acordo dá-se em regra antes de começar a execução (realidade que às vezes aparece associada à palavra Komplott), mas a co-autoria, na forma de co-autoria sucessiva, pode ainda ocorrer se a colaboração se dá durante o crime, i. e, até que o mesmo esteja exaurido — portanto, até ao momento da sua consumação material. Ex.: A sabe que X tem umas dezenas de televisores num armazém e resolve furtar-lhos. Sozinho, arromba o portão, e traz os aparelhos para o quintal anexo ao armazém, mas não tem forças para carregá-los e conclui que sem o auxílio dum terceiro tudo irá por água abaixo. Por isso, telefona a B, que aceita e vai ao local ajudar no carregamento dos aparelhos que A leva para casa. Quando da intervenção de B, o furto já estava formalmente consumado, mas a consumação material ocorreu com a contribuição de B, que foi essencial. A principal questão que aqui se coloca é como responsabilizar o co-autor sucessivo, pois dificilmente se aceitará que a decisão comum tenha efeitos retroactivos. Estes casos de co-autoria sucessiva não devem ser confundidos com a prática de certas modalidades de furto qualificado, por ex., se A vai à frente e sozinho arromba a porta de entrada duma loja, onde a seguir se introduz com B, como tinham combinado, e donde levam o que encontram — o caso integra-se no crime de furto qualificado com introdução por arrombamento do artigo 204, nº 2, alínea e), que ambos praticam em co-autoria. CASO nº 30-D: Tratando-se de co-autoria sucessiva, só a partir do ingresso do agente se pode equacionar a sua responsabilidade criminal na comparticipação. A, agindo conscientemente, em conjugação de esforços e identidade de fins, com o propósito de conseguir lucros, conhecendo as características estupefacientes da heroína e da cocaína transaccionadas e sabendo que 423 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. a sua detenção, guarda, aquisição e venda eram proibidas por lei — passou, a certa altura, a colaborar na actividade que B, C e D vinham desenvolvendo já há vários meses de venda dessas substâncias. Tendo havido persistência da actuação conjunta e sendo A uma das principais contempladas pelos benefícios da acção é de co-autoria que se trata e não se simples cumplicidade. A tinha o domínio do facto. Mas só só a partir do ingresso do agente se pode equacionar a sua responsabilidade criminal na comparticipação. Acórdão do STJ de 22 de Março de 2001, CJ 2001, tomo I, p. 260. VII. Cumplicidade; conceito diferencial entre cúmplice e autor. Onde se fala de acessoriedade limitada, acessoriedade rigorosa e acessoriedade mínima. CASO nº 30-F: C e J planearam de comum acordo assaltar uma dependência bancária em dia que também escolheram. Como carro de apoio, utilizaram um automóvel pertencente a D, que emprestara a viatura ao C para melhor concretizarem o assalto. Na execução do plano traçado, C e J fizeram-se transportar nesse carro. De seguida arrancaram em alta velocidade até um sítio a uns 5 quilómetros do banco assaltado, deixaram o carro e passaram para outro, distanciando-se, sempre em grande velocidade. D agiu livre e conscientemente, com o propósito de ajudar C e J a concretizar o referido assalto. Acórdão do STJ de 3 de Novembro de 1994, CJ 1994. 1. O legislador português parece ter renunciado a estabelecer um regime unitário, destacando a cumplicidade da autoria, como se pode ver dos artigos 26º e 27º do Código. Certo é que, muitas vezes precisaremos de qualificar um determinado comportamento ou como autoria ou como cumplicidade, o que não é tarefa de somenos importância, sabendo-se que a pena do cúmplice é a aplicada para o autor, mas especialmente atenuada (artigo 27º, nº 2). Para a teoria do domínio do facto o autor aparece como figura central do acontecimento típico. Ao cúmplice cabe, mais modestamente, o papel de figura periférica, não essencial. Ao cúmplice não se exige que realize os pressupostos da autoria, ou seja, os elementos típicos correspondentes: o domínio que o cúmplice tem sobre o facto esgota-se com a prestação do auxílio. No momento seguinte reduz-se à posição expectante de quem aguarda os acontecimentos. Isso o distingue do contributo do co-autor que, de algum modo, é condição dos demais actos e do sucesso do empreendimento (Costa Pinto, p. 278). Também já vimos que para os seguidores das teorias subjectivas o decisivo estava na vontade, sem que se considerasse a forma ou o peso da colaboração no facto. Para essas teorias, ainda hoje aceites como idóneas para estabelecer a distinção entre autor e cúmplice — especialmente por aqueles que trabalham com a teoria da equivalência das 424 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. condições, no plano da causalidade —, autor é quem quer o facto como próprio, quem o leva até à consumação, actuando com ânimo de autor (animus auctoris); cúmplice é quem quer o facto como alheio, quem actua com animus socii, por a sua vontade estar dependente da do autor. A situação histórico-dogmática em que as as teorias subjectivas lograram impor-se, explica Stratenwerth, tem a ver com a influência de v. Buri, que era juiz do Tribunal do Reich, onde se adoptou a teoria da equivalência das condições. Em razão do idêntico valor das condições, incluindo as postas pelo partícipe, relativamente ao resultado, parecia não existir outra hipótese de separar o autor e o partícipe, a não ser a direcção da vontade de cada um. A posição do nosso Supremo Tribunal em matéria de qualificação entre cumplicidade e co-autoria partia, pelo menos até há poucos anos, da distinção entre causa dans e causa non dans, devendo ser considerado cúmplice o indivíduo cuja intervenção, a não ter tido lugar, não evitaria o crime, antes faria com que, eventualmente, fosse cometido em condições de tempo e modo diferentes. Cúmplice é apenas aquele que presta um "auxilium causam non dans", isto é, aquele cuja intervenção no crime não é essencial. Acórdão do STJ de 15 de Outubro de 1998, no proc. n.º 764/98. 2. Para a punição do cúmplice é necessária a prática por outrem de um facto doloso (que pode ser simplesmente tentado). É o que se dispõe no artigo 27º, nº 1. A cumplicidade é, portanto, uma forma de participação em facto alheio, é participação de um não-autor no facto de um autor, exigindo-se que o facto tenha atingido um certo estádio de realização para que a participação se torne punível. É a regra da acessoriedade: para a punição da instigação ou da cumplicidade supõe-se que outrem (outra pessoa) realize uma actividade executiva. Se A, B e C combinam minuciosamente um assalto mas porque são indolentes não fazem nada para cumprir o plano comum, não se pode sequer falar de tentativa, não chega a haver actos de execução do crime planeado, pelo que não é possível a participação. Se D, para ajudar os assaltantes preguiçosos, conscientemente lhes tivesse emprestado um pé de cabra para o assalto, não se chegava a uma situação de cumplicidade punível. No direito português, o princípio da acessoriedade vale tanto para a cumplicidade (artigo 27º) como para a instigação (artigo 26º, última parte). Mais precisamente: pressuposto da participação é a existência de um facto (doloso) típico e ilícito de outrem (regra da acessoriedade limitada), que pode ser 425 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. simplesmente tentado: exige-se que o facto tenha atingido um certo estádio de realização e que assim se torne punível. 3. A culpa é uma questão pessoal de cada interveniente. Instigador e cúmplice (com)participam em facto alheio, participam no crime do autor imediato (autor principal). Este é a figura central dos acontecimentos, os outros são figuras periféricas. A participação não dá lugar a um tipo de crime autónomo, mas tem carácter acessório, supondo a prática de um crime alheio e, de acordo com os artigos 26º e 27º, um facto ilícito, cometido dolosamente, o qual, pelo menos, deverá alcançar o estádio da tentativa. Não se exige, porém, a culpa do "autor principal" (artigo 29º). A culpa é uma questão pessoal de cada interveniente. 4. Houve tempo em que a teoria da participação se construía a partir do robustecimento da vontade criminosa do agente. O cúmplice, mas sobretudo o indutor (isto é: o instigador), conduziria outrem a peccare, de forma que o alargamento da punição aos participantes, e em especial à instigação, passou a encontrar o seu fundamento na corrupção que eles levam a cabo na pessoa do autor material: o participante conduziria outrem à delinquência e à culpa. É um raciocínio dentro da chamada acessoriedade rigorosa, supondo a punição do cúmplice ou do instigador que outrem pratique um facto culposo e não simplesmente ilícito. Se o autor material do facto fosse um inimputável, a participação ficava excluída. Mas o Código não permite que a punição do cúmplice fique dependente da culpa de outrem, como, por último, se retira do artigo 29º, onde se dispõe que cada participante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros participantes. A punição de um nunca pode ficar dependente da culpa do outro, com o que, actualmente, se rejeitam os pressupostos da acessoriedade rigorosa. Hoje em dia, o fundamento da punibilidade da participação (instigação / cumplicidade) faz-se assentar num facto principal com determinadas características: no primeiro caso, supõe-se a relevância de se "determinar" outra pessoa (artigo 26º, última parte), na cumplicidade a de se "prestar auxílio" a outrem (artigo 27º, nº 1). A participação é sempre num facto doloso e ilícito, como decorre das normas mencionadas, mas que não tem, necessariamente, que ser culposo (artigo 29º). A participação constrói-se no âmbito 426 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. da acessoriedade limitada, em contraste com as exigências da acessoriedade rigorosa, cujos contornos passavam por um facto típico e doloso, ilícito, mas sempre culposo. Se M, um indivíduo masoquista, induz outrem a bater-lhe, fazendo-o sangrar, o primeiro não é partícipe mas é vítima do crime — o bem jurídico violado não é alheio. Falta a "não identidade" do "instigador" com a da "vítima" do crime (Kühl, p. 671). Como o suicídio não é ilícito, o incitamento ou a ajuda ao suicídio não seriam puníveis se não houvesse o artigo 135º, nºs 1 e 2. É outra consequência da regra da acessoriedade. No artigo 349º diz-se que quem instigar, promover ou, por qualquer forma, auxiliar a evasão de pessoa legalmente privada da liberdade é punido com pena de prisão até 5 anos. Aqui, quem instiga ou presta auxílio é autor do crime de tirada de presos. 5. Dispõe o artigo 27º, nº 1, que é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso. Por conseguinte, tem que haver duas pessoas envolvidas: a que pratica o facto principal (facto doloso e ilícito) e a que, dolosamente, lhe presta auxílio à sua prática. O dolo é sempre referido à "realização de um facto que preenche um tipo de crime" (cf. a redacção dos diversos números do artigo 14º), consequentemente a um facto ilícito, que tanto pode corresponder a um crime comum, como a um qualquer delito especial, próprio, por ex., o crime de atestado falso do artigo 260º, nº 1. Não pode, por isso, abranger-se no conceito de participação o facto justificado, por ex., por legítima defesa, ou o facto negligente. Rejeita-se assim a teoria da acessoriedade mínima, segundo a qual bastaria que o autor realizasse o tipo de um crime, mesmo que o fizesse ao abrigo de uma causa de justificação. 6. Não se pune a cumplicidade tentada, mas pune-se a cumplicidade na tentativa. A lei não prevê a cumplicidade tentada, mas pune-se a cumplicidade na tentativa, i. e, o auxílio à prática do crime que não chega a consumar-se por circunstâncias alheias à vontade do seu autor. Ex.: A põe à disposição de B a pistola de que este necessita para matar X. Se o tiro falhar, o auxílio é à prática, por B, de um crime de homicídio doloso na forma tentada (artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nºs 1 e 2, 27º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1, a) e b), e 131º). Pode, no entanto, acontecer que, de posse da pistola, B não chegue a utilizá-la — 427 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. não obstante o auxílio de A se fazer acompanhar da decisão de ajudar na prática de um crime de homicídio, A — que fez tudo o que tinha a fazer — não será punido por cumplicidade, pois B não chegou à fase dos actos de execução. 7. Objectivamente, a cumplicidade consiste em, por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso. Este auxílio não pode ser entendido como todo e qualquer contributo em favor do crime ou de quem o comete. Cúmplice é só aquele que presta um contributo real à actuação do autor, não basta a simples colocação de certos meios para que a exigência legal de "prestar auxílio" fique preenchida: não basta que alguém forneça uma manta para o ladrão se resguardar do frio enquanto aguarda o momento azado de agir. Por outro lado, a conduta do cúmplice não se identifica com a do autor, já que este está comprometido, em maior ou menor medida, com a realização típica, sendo punível como autor quem executar o facto: é assim que se inicia o artigo 26º. De nada interessa que a actividade ou prestação do cúmplice seja essencial ao facto do autor: o que releva é que essa actividade ajude o autor a praticar o facto, mas sem intervir na sua perpetração. No caso nº 30-E, D, com o empréstimo do seu automóvel, auxiliou um projecto criminoso que previamente conhecia, embora tal projecto se pudesse realizar por outro meio. Isso, porém, não interessa para o estabelecimento da figura da cumplicidade, mas sim que o empréstimo do automóvel integrou um auxílio ao facto doloso de que o agente tinha pleno conhecimento. VIII. Ainda a cumplicidade (desenvolvimentos) CASO nº 30-G: A vai cometer um assalto e B, conscientemente, transporta-lhe a escada que lhe permitirá aceder ao primeiro andar do prédio onde pretende entrar para aí deitar a mão a uma avultada quantia. 1. A está decidido a realizar um determinado assalto e C fornece-lhe a chave para abrir a porta da casa. No local, A mete a chave na fechadura, mas não consegue fazê-la rodar. Por fim, parte o vidro duma janela e, por aí, entra na moradia, donde subtrai duas valiosas (mais de sete mil contos) peças de ourivesaria. Haverá cumplicidade de C (artigos 27º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1, a) e b), e 204º, nº 2, a) e e), do Código Penal)? 428 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Suponha-se agora que as chaves serviam perfeitamente mas revelaram-se supérfluas porque a porta estava aberta. Saber se o comportamento do cúmplice deverá ser causa do resultado criminoso, i. é, se se deve exigir da parte deste um contributo causal para o crime, ou se basta que o favoreça — eis uma das questões que enxameiam esta área do direito penal. Do ponto de vista causal, poderemos concluir como segue: i) Quem auxilia o ladrão levando-lhe a escada até ao local do crime (se não for caso de co- autoria) é punido como cúmplice do furto praticado, mesmo que o próprio agente a pudesse ter levado para a usar com êxito, dispensando a ajuda alheia. A causalidade existe, já que não são de acolher quaisquer considerações hipotéticas. ii) No caso das chaves que para nada servem não há qualquer contribuição causal para o resultado criminoso — a correspondente cumplicidade tentada não é punível. iii) O facto de as chaves, no último exemplo, se mostrarem supérfluas, porque a porta estava aberta, não afasta a causalidade. Do mesmo modo, pode afirmar-se a cumplicidade do vigilante (cuja actuação não deva qualificar-se como co-autoria), mesmo que nenhum perigo se detecte durante o assalto. Para os adeptos da teoria do favorecimento, basta que o resultado criminoso seja facilitado ou favorecido, por qualquer forma, pelo comportamento do cúmplice. De facto, no artigo 27º, nº 1, a punibilidade do cúmplice não depende da comprovação de uma qualquer relação causal. A prestação de auxílio é dirigida "à prática" do crime alheio. Consumando-se o ilícito, só se pune o auxílio prestado à actividade criminosa, sem dependência da sua repercussão no resultado. Faltando o resultado, a cumplicidade é ainda punível, embora só como cumplicidade no crime tentado. Em suma, o resultado criminoso, não sendo "obra" do cúmplice, não pode, enquanto tal, ser-lhe imputado — a punibilidade do cúmplice não está dependente das relações causais que se suscitem no âmbito da autoria. Comentemos agora a seguinte frase da Profª. Fernanda Palma: "A conduta do cúmplice aumenta o risco de produção do resultado típico, embora não esteja numa verdadeira conexão de risco com o resultado típico". 429 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Em geral, poderá sustentar-se que o auxílio relevante para a cumplicidade é só aquele que, comprovadamente, aumentou o risco para a vítima e, consequentemente, as possibilidades de sucesso do criminoso (cf. Klaus Geppert, Die Beihilfe). Só quem dolosamente melhora as condições de êxito do criminoso e aumenta o risco da vítima é que participa numa agressão ao bem jurídico. Consequentemente, só será cúmplice quem com o seu auxílio possibilitar ou intensificar a lesão do bem jurídico ou facilitar ou assegurar a prática do crime, desde que esse papel se não integre na (co-)autoria ou na instigação (cf. Lackner, p. 219). E esse auxílio pode acontecer "por qualquer forma", dando conselhos ou actuando, tanto faz — a lei não especifica os meios que podem constituir um auxílio material (arranjar uma ferramenta, proporcionar uma ocasião favorável ou o transporte para o local do crime, ou ficar a vigiar, enquanto esta actuação não signifique uma parcela da execução do crime) ou moral (o remover dos últimos escrúpulos do ladrão relativamente à planeada actuação, o dar conselhos sobre a forma de agir no local, a promessa dum álibi, o cimentar da decisão criminosa, a garantia de ajuda por ocasião da fuga proporcionando alimentação ou abrigo). Diz um partidário da teoria do aumento do risco: Se com o seu comportamento o cúmplice aumentou o risco, que se realizou na correspondente lesão do bem jurídico, consumou-se então a cumplicidade (artigo 27º, nº 1). Se não se puder comprovar esse aumento de risco, o que poderá existir é uma cumplicidade tentada, que todavia não é punível (cf. Otto, p. 305). O fundamento da punição da cumplicidade não está na causação do resultado criminoso mas na intensificação das chances de ele ocorrer, com o consequente aumento do risco para o bem jurídico atingido. CASO nº 30-H: Em noite de Agosto, A esforça-se durante horas por abrir uma caixa multibanco e alcançar as notas que estão ali tão perto. Quando, já sem forças, recolhia as ferramentas para se ir embora de mãos a abanar, aparece-lhe B, que de tudo se tinha apercebido, e que lhe fornece uma saborosa bebida fresca. A, com as forças retemperadas, retoma o trabalho e consegue apropriar-se do dinheiro. Quem sustentar que a cumplicidade existe desde que o resultado criminoso seja facilitado ou favorecido, por qualquer forma, pelo comportamento do cúmplice, tem aqui um bom exemplo: o êxito criminoso não depende completamente da ajuda do cúmplice, mas foi por este facilitado. Mas a solução já seria diferente se o ladrão não estivesse "esgotado". 430 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2. Serão cúmplices os dois clientes dum bar que, ao entrarem, deparam com uma cena de violação prestes a acontecer e que logo começam a bater palmas, em apoio do violador? É o mesmo que perguntar se as atitudes de solidariedade e de apoio são autênticas ajudas, capazes de fortalecer a decisão de cometer o crime como forma de auxílio moral. De qualquer modo, o auxílio, para ser cumplicidade, não poderá implicar da parte do participante a prática de qualquer acto de execução (Stratenwerth, p. 250; Figueiredo Dias, p. 85). Se o agente vai além do auxílio simples e, tomando uma decisão conjunta com os restantes comparticipantes, pratica um acto necessário de execução do plano criminoso, então, torna-se ele próprio co-autor do facto. (Acórdão do STJ de 5 de Abril de 1995, BMJ-446-7). O cúmplice, ao contrário do autor, não executa o facto, por si ou por intermédio de outrem, nem toma parte directa na sua execução, nem determina outra pessoa à prática do facto, pois somente favorece ou presta auxílio à execução, ficando fora do facto típico. (Acórdão do STJ de 16 de Janeiro de 1990, BMJ-393-241). Autoria e cumplicidade constituem formas de participação criminosa que se distinguem entre si pelo modo da sua realização e pelo grau da sua gravidade objectiva. Nesta última, como se alcança do cotejo entre os artigos 26º e 27º do Código Penal, o agente fica fora do acto típico, apenas favorecendo ou prestando auxílio à execução. Porém, se aquele ultrapassar o mero auxílio e praticar uma parte típica da execução do plano criminoso, ou se participar mesmo em determinada parcela dessa execução, não poderá deixar de ser havido também como autor do facto ilícito. À luz destes pressupostos, em crimes do tipo dos de tráfico de estupefacientes, é difícil a qualquer dos comparticipantes escapar ao rótulo de autor ou permanecer fora do conceito de autoria, dada a dimensão e amplitude da previsão das respectivas normas incriminadoras. Cf. o acórdão do STJ de 4 de Junho de 1998, BMJ-478-7. 3. Outra questão controversa: a de saber se um comportamento corrente, idêntico a tantos outros do dia-a-dia — por ex., a venda dum veneno ou duma faca numa loja comercial, sabendo o vendedor que o objecto vai ser utilizado num homicídio —, pode constituir uma cumplicidade punível. Noutros sectores da vida, pense-se ainda em acções de conteúdo aparentemente neutro, como a abertura duma conta bancária para facilitar o branqueamento de capitais. Ou quando alguém, conscientemente, fornece gasolina aos assaltantes dum banco que procuram a fuga de carro. Um dos casos mais 431 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. antigos deste género foi julgado pelo Tribunal do Reich em 1906, pondo-se a questão de saber se o fornecimento de pão ou de vinho a um bordel favoreceria os comportamentos imorais que ali tinham lugar (Schünemann GA 1999, p. 224). Decidiu-se que o fornecimento do vinho era uma cumplicidade, mas não o do pão, porque só o vinho tem as qualidades afrodisíacas capazes de fomentar as actividades próprias duma casa como aquela. Um caso destes apareceu nas provas de admissão ao CEJ de 15 de Abril de 1993. Atormentado pelo ciúme, Ângelo vem alimentando em silêncio o propósito de matar Boavida. Procurou já abatê-lo a tiro (...). Dias depois, passou pela drogaria do seu amigo Diamantino e pediu uma embalagem de certo veneno para ratos, que sabia ser um composto de arsénio, cujas propriedades mortíferas, também para o homem, bem conhecia, e acrescentou entre dentes, naquele jeito próprio dos tímidos, que era para “uma ratazana" que aparecia lá pela sala de mesa. Diamantino, que já se havia apercebido da ciumeira que afligia o amigo e logo admitiu a possibilidade de Ângelo pretender matar com aquele veneno (cujas aludidas propriedades sobejamente conhecia) o referido Boavida, satisfez o pedido: nem lhe desagradava que a sua suspeita se concretizasse (Boavida já lhe tinha frustrado uma conquista). Boavida veio a morrer num acidente, quando a ambulância em que era transportado ao hospital, na sequência de intoxicação provocada por Ângelo, se despistou. Mas a autópsia revelou que, se assim não fora, Boavida morreria inevitavelmente em consequência da intoxicação. Alguns autores transportam para aqui os pressupostos da adequação social ou da adequação profissional, para limitarem a aplicação da fórmula legal "prestar auxílio". Outros colocam a solução predominantemente no dolo: ao lado do saber (momento intelectual do dolo) será necessário, para que haja dolo de cúmplice, que este queira, também ele, o resultado criminoso (elemento volitivo), não bastando uma consciência segura da ocorrência desse resultado. Outros autores exigem a criação dum risco desaprovado pela ordem jurídica, deslocando o problema para as questões de imputação. Por ex., a venda do veneno para os ratos tem que, comprovadamente, aumentar o risco do resultado criminoso e este deverá ser desaprovado pela ordem jurídica. A nós parece- nos que se o vendedor do veneno sabe, de certeza certa, que o veneno vai servir para matar outra pessoa, então a venda não estará justificada. Se pelo contrário o vendedor encarar esse resultado apenas como possível, o interesse posto na venda, de âmbito profissional, sobrepassa o interesse geral de não facilitar ou tornar possível a prática de um crime. 432 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 4. Uma outra questão, também controvertida, é a da cumplicidade nos crimes cometidos por omissão (artigo 10º). Neste tipo de crimes diz-se correntemente que autor é o omitente que tem a posição de garante. No exemplo de escola, se o guarda do museu (garante da não produção do furto!) observa, sem intervir, que o ladrão leva consigo um quadro valioso, bem se pode perguntar se o guarda não é apenas cúmplice do ladrão de museus — devendo ser punido com a pena correspondente. Até porque actuou com esse animus, dirão os partidários das teorias subjectivas, i. é, apenas com animus socii, já que não quis o facto como próprio, deixando que as coisas se desenrolassem como um crime alheio. Outras opiniões apoiam-se no domínio do facto da pessoa que o garante deve vigiar. Se o ladrão é quem tem o domínio do facto, a circunstância de o guarda não impedir o furto do quadro não passa da cumplicidade. Mas há também quem diga (Stratenwerth, p. 318), que neste caso o guarda não é autor do furto por omissão, simplesmente porque ... não terá tido intenção de apropriação (artigo 203º, nº 1). Note-se porém que pela lei portuguesa — e agora, claramente, também pela lei alemã — haverá furto quando o ladrão actua com intenção de apropriação para si ou para outrem, pelo que a observação deverá ser entendida neste contexto. 5. Outra é a questão de saber se cúmplice e autor do facto têm que, forçosamente, comunicar um com o outro (cumplicidade encoberta). Parece que não. Se a fidelíssima mulher de A sabe, por mero acaso, que B, seu idolatrado marido, vai dar um golpe em determinada moradia, e sozinha, temendo pela liberdade e o bem estar do esposo, toma o encargo de se pôr a vigiar as imediações enquanto ele, sem nada saber da presença da mulher, se introduz para furtar, é manifesta a cumplicidade. 6. Auxilium post delictum. Já não é possível a cumplicidade se o crime está não só formalmente consumado — como por vezes é possível e acontece no furto, por ex. —, mas também terminado, i. e, exaurido. Qualquer "auxílio" será então elemento típico de uma disposição autónoma, ou do crime do artigo 232º (auxílio material), ou do artigo 231º (receptação) ou do artigo 367º (favorecimento pessoal), que é uma forma de encobrimento. Pense-se no caso em que A, para ser simpático com B, que já lhe prestou favores semelhantes, guarda consigo o ouro que este acabara de furtar. Ou quando A, sabendo que B é autor dum furto em determinado local, onde, na atrapalhação da fuga, 433 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. deixou vestígios que imediatamente o comprometem, trata de eliminar esses vestígios, subtraindo-os à investigação policial. Auxilium in delicto. É porém possível a cumplicidade sucessiva, que ocorre quando o crime, já formalmente consumado, ainda não se encontra exaurido, terminado. Se para ajudar o ladrão que foge com o produto do furto A se lança ao proprietário das coisas, impedindo-o, como este pretendia, de perseguir o criminoso, A será cúmplice do crime cometido. É de roubo impróprio (artigo 211º) a hipótese, de algum modo inversa a esta, de alguém se atirar ao ladrão para, em flagrante delito de furto, o obrigar a restituir as coisas subtraídas, reagindo este com violência. Auxilium ante delictum. É possível haver cumplicidade na fase preparatória do facto principal, a qual porém só será punível se o crime se consumar, ou se, ao menos, tiver começo de execução punível (artigo 23º, nº 1). 7. É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso (artigo 27º, nº 1). Fala-se aqui de um duplo dolo — com dois pontos de referência: o dolo do cúmplice a respeito do seu próprio auxílio e da correspondente aptidão para favorecer o crime do autor; e o dolo do cúmplice a respeito do facto principal. O dolo do cúmplice é dolo de consumação dum crime doloso. Mas não é necessário que o cúmplice tenha do crime que favorece um conhecimento perfeito, basta que conheça os seus elementos essenciais. Há-de notar-se, para melhor compreensão destes fenómenos, que o instigador induz outrem a praticar um determinado crime — por vezes, está-se mesmo perante um determinado resultado criminoso. O cúmplice, pelo contrário, contribui de modo difuso para o crime, não ambiciona, de modo necessário, a sua realização, mas sabe e aceita que o seu comportamento se pode manifestar num crime, mesmo que nada mais faça. 434 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. IX. Instigação. Instigador e autor do facto principal têm que comunicar entre si? Ou basta qualquer meio de influenciar outrem psiquicamente? Como tratar aquelas situações em que um proporciona a outro uma oportunidade favorável para este cometer um crime? CASO nº 30-I: A acaba de assaltar um banco e é perseguido por B, que o segue, a correr, uns 20 metros atrás. Adivinha-se que, não tarda, B acabará por agarrar o ladrão do banco. Para evitar o pior, A pega num maço de notas trazidas do banco e atira-o para o chão, certo de que B não vai desprezar a oportunidade de encher os bolsos, deixando-o em paz, até porque mais ninguém viu a cena. 1. Determinar outra pessoa à prática do facto (artigo 26º, última parte) significa criar nela a decisão de o cometer (Hervorrufen des Tatenschlusses). Mas quando se pode dizer que se determina outra pessoa à prática de um crime? A figura da instigação é fruto da dogmática alemã que, no que toca à causalidade do comportamento do indutor, se encontra dividida. Nas acções humanas apresentam-se muitas vezes causalidades de natureza psicológica, ou seja, não de acontecimento para acontecimento, mas de pensamento para acontecimento (Cesare Segre, Introdução à análise do texto literário, p. 145). Na definição do que seja "determinar", alguns autores colocam bem poucas exigências, bastando-lhes, para o preenchimento do tipo objectivo da instigação, qualquer meio de influenciar outrem psiquicamente, não havendo necessidade de comunicação directa do instigador com o instigado. Em princípio, qualquer meio é idóneo para a indução, desde que envolva uma influência psíquica, escreve Jescheck, AT, p. 622. Atende-se à contribuição do instigador para a decisão de cometer o crime recorrendo à causalidade ("condicio sine qua"). Será, por isso, suficiente um simples conselho, uma mera indicação ou sugestão, um desafio, um palpite ou um qualquer estímulo quanto à oportunidade de cometer o delito, a promessa de uma recompensa, um pedido, ou a expressão dum desejo. Como se vê, incluem-se aqui comportamentos concludentes, como são as ofertas e as promessas. Também se indicam outras formas de determinação concludentes, como pode acontecer em casos de dissuasão apenas aparente, ou fazendo gestos cujo significado não deixa dúvidas a ninguém. Nesta perspectiva, em que os meios são 435 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. indiferentes, não se colocarão obstáculos de monta à aceitação da instigação indirecta, na forma de indução à indução do facto principal. ( 32 ) Mas será mesmo suficiente qualquer comportamento que leve a ideia do crime ao seu autor? Ou será necessário, no mínimo, que a influência anímica, o influxo psíquico do instigador sobre o instigado seja acompanhado por um contacto recíproco — por uma qualquer forma de comunicação, por ex., verbal, ou até por uma espécie de pacto entre ambos? Adoptando-se uma fórmula restritiva, então, no exemplo do ladrão que atira o maço de notas para serem apanhadas por quem o persegue não haverá instigação a um crime, ainda que a situação criada seja suficientemente estimulante para levar o perseguidor a abandonar os seus propósitos iniciais. Mas, se aceitarmos que os meios indutivos são indiferentes, como fazem os partidários da teoria da causação, o ladrão será instigador do crime contra a propriedade cometido pelo perseguidor que cai na tentação de deitar a mão às notas com intenção de se apropriar delas, sabendo-as alheias. Alguns seguidores das teses restritivas consideram, por ex., que só se justifica aplicar ao instigador a pena do autor do crime principal se a sua falta de domínio da situação — na medida em que o instigador se mantém distanciado do crime — for compensada por uma influência especialmente intensa sobre o criminoso: o instigador teria que acender o rastilho para a execução do crime, só então é que o impulso dado com uma determinada finalidade chegaria para o desencadear. Ainda assim, mesmo quando instigador e autor do crime comunicam entre si, nem todos os meios de "determinar" outra pessoa deverão ser aceites como idóneos. Se por ocasião do atropelamento dum peão A diz para o condutor que se "raspe" senão a chuva intensa dá-lhe cabo do fato novo — não é possível falar sequer de uma influência sobre a vontade, as palavras empregues têm uma natureza indutora bem mais fraca do que a situação criada na perseguição do ladrão de bancos. Questão pertinente, a este nível, é a de quem dá conselhos na área do direito, por ex., os advogados. E se um indivíduo, F, 29 Da exclusão da punibilidade da instigação à instigação, na perspectiva do Autor do Projecto, cf. a acta da 12ª sessão, Actas, p. 196: "quando, no nº 3, se fala em "directamente", pretende-se excluir a punibilidade de uma instigação à instigação". Cf., mais adiante, o caso da boite Meia Culpa. 436 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que acaba de cometer um crime de violação se vira para outro, C, que está ao lado e lhe diz: "também queres?", proporcionando-lhe uma oportunidade favorável, que o pode fazer cair em tentação? Parece que não haverá instigação na medida em que o primeiro não quis influenciar a vontade do C. E se o criminoso está necessitado de dinheiro para fugir para o estrangeiro e alguém lhe diz: "então tens que assaltar um banco!" São casos (casos-limite) em que é legítimo pôr a questão duma "instigação" relevante. 2. Quem não poderá ser instigado é o que já estiver determinado a cometer o facto concreto, o omnimodo facturus: não se abrem portas que já estão escancaradas (F. Haft, p. 206). A procura convencer B a matar C, indivíduo odiado por meio mundo, mas B já tinha tomado a decisão de o eliminar. A instigação tentada não é punível. Não longe deste tema estão aquelas situações em que o comportamento de alguém corresponderá à "última gota que faz transbordar o copo", se por ex., A estava "quase" decidido a cometer o crime, mas só o faz quando B, com a sua insistência, lhe remove os últimos escrúpulos — a mostrar que as questões de causalidade serão então cada vez mais ténues. Também é razoável afirmar que quem ainda hesita ou faz depender a prática do facto de uma condição, por exemplo, uma recompensa, pode ser instigado, já que na instigação se trata de criar uma vontade de praticar o facto até aí não existente (Stratenwerth, p. 246). Mesmo o indivíduo cuja inclinação para o crime é conhecida poderá sofrer uma influência decisiva por parte de outrem, que então será instigador do crime cometido. Suponha-se agora que A está decidido a cometer um roubo, mas B convence-o a ir armado. A estava decidido (omnimodo facturus) a cometer um crime de roubo simples (artigo 210º, nº 1), antes da intervenção de B. Aconselhado por este, acabou por cometer um roubo agravado ao levar consigo uma pistola proibida, municiada e pronta a disparar, que exibiu à vítima (artigo 210º, nºs 1 e 2, b ), e 204º, nº 2, f ). Como castigar B? Pela instigação dum crime de roubo agravado, foi a resposta dos tribunais alemães: o homem por detrás foi além da decisão do ladrão e induziu-o a um crime mais perigoso na sua forma de execução e cujo conteúdo de ilícito é bem mais elevado. Mas a conclusão foi muito criticada: o facto de simplesmente se exceder a decisão criminosa não significa 437 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. determinar outra pessoa a cometer o crime, por isso se não justifica a condenação pelo roubo agravado. Como a lei sanciona autonomamente o emprego de arma proibida, a instigação será ao crime de ameaça (artigo 153º, nº 1) e ao crime do artigo 275º, nºs 1 e 3 (armas). Objecto de reflexão será, a mais disso, a possibilidade de castigar B por cumplicidade (psíquica) no roubo (simples). Na hipótese inversa, a do ladrão que estava decidido a cometer um roubo com arma, que o B convence a não levar, parece haver uma diminuição do risco, não se justificando a punição de B. O que se justifica é a aplicação da teoria da imputação objectiva à participação, como se vê (cf. Kühl, p. 688). Os autores alinham ainda soluções para outras hipóteses de "mudança" induzida: troca de agentes do crime, alteração do objecto ou dos motivos do crime, câmbio de modalidade criminosa, etc. 3. A questão da concretização do crime principal e do seu autor. Elementos subjectivos da instigação; duplo dolo. A instigação relaciona-se com um facto concreto e com uma pessoa determinada, quanto muito com um círculo de pessoas determinado. O instigador determina outra pessoa, uma certa pessoa, a praticar um crime concreto. Não sendo este o caso, pode ainda configurar-se, em certos termos, a instigação pública a um crime, como se prevê e pune no artigo 297º, nº 1. Mas também se não pune a tentativa desta forma autónoma de instigação. No que toca à concretização (individualização) do facto principal, bastará a simples indução ao cometimento do crime e as indicações abstractas do tipo de ilícito a executar, do género: "tens que deitar a mão a umas centenas de contos". Entende-se, por outro lado, que não tem que ser concretizado nem o lugar e o tempo do crime, nem a pessoa da vítima. O dolo do instigador deverá abranger todas as circunstâncias que tornam o facto punível. Incluem-se aqui certos elementos subjectivos específicos — o instigador tem que saber, por ex., que o executor de uma burla por si induzido actua com intenção de obter enriquecimento ilegítimo, ainda que esta intenção não seja exigida ao instigador. O dolo do instigador determina a medida da correspondente responsabilidade pelo desvalor do 438 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. crime cometido. Indo o criminoso com o seu crime além daquilo a que o instigador o tinha querido determinar não se poderá responsabilizar o instigador por esse excesso. Se a instigação foi a um furto e o instigado usa de violência sobre a vítima para lhe arrancar a carteira, circunstância que aquele não representou nem quis, a punição do instigador não pode passar do furto. Se o instigado comete um crime diferente, não se pode responsabilizar o indutor como instigador dele, por não o ter querido. Se a coisa não chega a ser subtraída, como queria o indutor, mas o induzido vai comprá-la ao ladrão, tornando-se autor duma receptação, não pode condenar-se o primeiro pela correspondente instigação — falta-lhe o dolo relativamente ao crime cometido e a tentativa de instigação ao furto não é punida, como já se observou. A questão do dolo do instigador está ligada aos casos de error in persona, que aparecem frequentemente nos testes escritos e que apreciamos noutro lugar. Recorde-se o caso Rose-Rosahl e o outro, mais recente, conhecido por Hoferben-Fall ou Rose- Rosahl II. 4. Agente provocador; agente infiltrado; agente encoberto. O dolo do instigador deverá, por um lado, abranger o seu próprio comportamento indutor, a determinação de outra pessoa ao crime; por outro, deverá dirigir-se à consumação dum facto doloso: "quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto" (artigo 26º). Mas isso não obsta a que se puna a instigação dum crime que não passou da tentativa. Dizem alguns sectores que quem não será punível é o agente provocador ("agent provocateur"; "Lockspitzel") que determina outra pessoa à prática do facto para a incriminar, com vontade de que o facto não passe da tentativa. A conhece um grupo de criminosos que hesita em lançar-se na aventura de assaltar uma ourivesaria da "Baixa". Como quer ver alguns deles presos, entra em contacto com a polícia e convence os assaltantes a actuar a uma certa hora, propondo-se, eventualmente, acompanhá-los. Os assaltantes são presos no interior do estabelecimento, onde a polícia os aguarda, sem que algum deles chegasse a meter ao bolso alguma das inúmeras peças de ouro ali existentes. No direito francês o agente provocador só é punível como cúmplice, e portanto com uma pena menos severa da que caberia à instigação, mas isso só acontece se o instigador / 439 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. cúmplice se serviu de certos meios de pressão ou de corrupção e se a actuação do outro chegou ao estádio da tentativa. No sistema anglo-americano do common law a instigação é punível em larga medida como solicitation; se a pessoa instigada chegar à prática da acção sugerida ou se houver começo de execução, o instigador responde por conspiracy. No direito suíço, informa Martin Killias, p. 86, se um tráfico de droga for inteiramente provocado pela polícia (que por ex. infiltrou um agente), com o fito de exercer em seguida a correspondente repressão penal, impõe-se a absolvição dos visados. Se o agente infiltrado não ficou inteiramente passivo, mas teve um papel determinante na culpabilização do arguido, o juiz deverá ter isso em conta e atenuar a pena, desde que se comprove que este último já estava disposto a agir em certa medida. No sistema americano a punibilidade do agente provocador fica ao critério do Ministério Público. Para limitar os perigos de abuso que poderiam derivar desta quase impunidade dos agentes provocadores, a Supreme Court americana desenvolveu a teoria do entrapment, que confere a impunidade à pessoa provocada. A Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, que revoga os artigos 59º e 59º-A do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e o artigo 6º da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, ocupa-se das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal. Consideram-se acções encobertas aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados no mesmo diploma, com ocultação da sua qualidade e identidade. Visa-se com elas a descoberta de material probatório. A identidade fictícia com que os agentes da polícia criminal podem actuar é atribuída por despacho do ministro da Justiça, mediante proposta do director nacional da PJ. O artigo 6º desta Lei trata de isentar de responsabilidade o agente encoberto que, no âmbito de uma acção encoberta, consubstancie a prática de actos preparatórios ou de execução de uma infracção em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação e da autoria mediata, sempre que guarde a devida proporcionalidade com a finalidade da mesma. 5. Age ilicitamente quem instiga o instigador? A instigação indirecta. Na prática há muitos casos de instigação em cadeia (instigation en cascade). Em certas condições será instigador quem induz outrem a instigar um terceiro à prática do facto e este tem, pelo menos, começo de execução. Na "instigação em cadeia", o instigador nela integrado 440 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. não necessita saber nem o número, nem o nome dos escalões intermédios, nem o nome do autor principal, bastando-lhe uma representação concreta do facto principal (Jescheck, AT, p. 622). O § 30, I e II, do StGB, que trata da tentativa de participação, prevê também a figura da "participação em cadeia" (cf. Stratenwerth, p. 364; Jakobs, p. 670). Cf., entre nós, o acórdão da Relação de Lisboa de 10 de Julho de 1985, CJ, ano X, tomo 4, p. 158). O caso mais conhecido de "instigação à instigação" parece ser o da boite "Meia Culpa", de Amarante. O dono do "Diamante Negro" pretendeu, em recurso, que por nunca ter contactado directamente com os autores materiais a sua intervenção só poderia configurar instigação a uma instigação, o que é geralmente rejeitado como modalidade de comparticipação criminosa (vd. Eduardo Correia, Direito Criminal — Tentativa e Frustração — Comparticipação Criminosa, p. 154). O Tribunal de Círculo de Penafiel entendeu que o facto de a determinação ser directa não exige, nem pressupõe, que haja um contacto directo entre o instigador e os executores materiais, nada obstando a que esses contactos sejam estabelecidos por um terceiro que actua como mero intermediário. Do que se tratava, nessa óptica, era de uma instigação ao facto principal realizada através de um intermediário. O acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 1999 ( 33 ) entendeu que a intervenção desse recorrente "não foi a de mero instigador que se limita a incentivar ou a aconselhar alguém a decidir-se pela prática de uma acção ilícita. Aqui, toda a concepção e idealização da acção lhe pertencem. Ele é a inteligência e a vontade da acção e dos resultados. Ele detém desde o início até final o completo domínio da acção criminosa". No entendimento vertido pelo Supremo, não tendo havido contacto directo entre o mandante inicial e os executores materiais do crime, do que se trata é de autoria mediata. No contributo de Ana Catarina Sá Gomes para Casos e Materiais de Direito Penal, p. 331, pode ler-se um resumo da matéria de facto saída do julgamento e um comentário breve dessa solução jurisprudencial. Aí de diz, acertadamente, que contrariamente ao que foi defendido pelo STJ, "o facto de o mandante inicial ter planeado com algum pormenor a execução do crime não o transforma, por esse motivo, em autor mediato do mesmo. Autor mediato não é aquele que planeia, mas aquele que, de alguma forma, domina a vontade do autor material. Ora, no caso em análise, a vontade de praticar o crime, embora 33 Que aqui citamos pela consulta de uma fotocópia do processo nº 1146/98. 441 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. induzida, é dos autores materiais do facto criminoso. Quem detém a vontade de acção são os autores materiais, e não quem planeou tal acção. O mandante apenas criou a vontade de praticar o crime aos autores materiais, embora de acordo com um plano que arquitectou. É assim de verdadeira instigação a actuação do mandante inicial." Como, no caso, o mandante instigou outra pessoa a praticar o crime, "tendo este último, em cumprimento do combinado, concluído o contacto com os autores materiais do crime, que o executaram", tratar-se-á de uma verdadeira "instigação indirecta ou, dito por outras palavras, de uma co-instigação", ainda admitida pela parte final do art. 26º do Cód. Penal e, como tal, punível. No fundo, o que importa "é que se consiga estabelecer o nexo causal entre a acção do instigador inicial (determinação) e a do autor material (prática do facto)". Para João António Raposo, A punibilidade nas situações de instigação de “instigação em cadeia”, que igualmente se ocupa do caso da boite Meia Culpa, a palavra “determinar” (parte final do artigo 26º), no contexto em que aparece inserida, está indissoluvelmente ligada na língua portuguesa ao sentido de motivar decisivamente uma resolução criminal ali onde ela antes não existia. No caso “Meia Culpa” só o primeiro elemento da cadeia, o dono do "Diamante Negro", deveria ser qualificado como instigador. O intermediário deveria ter sido punido como cúmplice. Nas situações em que o agente do meio da cadeia funciona como mero veículo de transmissão da vontade do agente detrás, fazendo chegar essa vontade ao autor, só o elo mais recuado deve ser punido como instigador. O intermediário, nestas hipóteses, não instiga verdadeiramente, mas limita-se a comunicar a instigação de outrem, devendo, nessa medida, ser apenas punido como cúmplice. 6. Instigador. Instigado. No exemplo em que A faz tudo para que B, sozinho, vá assaltar um banco que lhe indica, mas B rejeita a proposta e mantém-se tranquilo em casa, o caso configura uma tentativa de instigação, não punível. A instigação não é autónoma — não se pune a tentativa de instigação, prevista no § 30, I, do StGB, mas que não foi adoptada no direito português — e só é ilícita e punível quando do lado do instigado houver pelo menos "começo de execução". O artigo 26º, in fine, torna-a dependente de uma execução por outro iniciada. Mas o instigador não executa o facto, limita-se a "determinar" outra pessoa. O chamado "oferecimento para delinquir" não está previsto no Código Penal português, mas consta do § 30, correspondente ao antigo § 49 a) do StGB alemão, onde se punia quem, baldadamente, procurava determinar outrem ao crime, se oferecia para a sua prática, aceitava esse oferecimento ou com outros se concertava para a prática dele. A disposição inspirou-se na oferta para matar Bismarck, 442 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. feita ao arcebispo de Paris por um caldeireiro belga e tomou o nome deste, ficando a ser conhecida como "parágrafo Duchesne". Cf. a Acta da 13ª sessão, Actas, p. 206. Por outro lado, não existe uma instigação negligente! O dolo do instigador deve ser dirigido à consumação do facto pelo autor material, mas pode acontecer que o crime fique no estádio da tentativa. Haverá então instigação de um crime tentado: A pede a B que mate C. B cumpre o prometido, mas falha a pontaria. X. Outros casos de excesso e erro CASO nº 30-J: A convence T a subtrair uma pulseira de ouro que B tinha deixado à vista, com outras coisas, na mesa do café, quando momentaneamente dali se ausentou. Como B entretanto regressou e colocou a pulseira no braço, T resolveu usar a violência para dela se apropriar, o que conseguiu. Punibilidade de A? Havendo excesso, porque, por ex., o autor imediato foi além do que o instigador queria, este só responde na medida do seu dolo, ao menos eventual —, ressalvada a responsabilidade por negligência nos termos gerais. Ex.: a intenção era matar A, mas o executor rouba também a vítima (Figueiredo Dias, p. 71). Para um caso de alteração do plano criminoso o ac. da Relação do Porto de 24 de Maio de 1989, BMJ-387-648. Quanto ao error in objecto vel in persona do autor imediato (irrelevante para este), há quem o trate na Alemanha como aberratio ictus na esfera do instigador, cujo dolo não cobria o objecto atingido pelo autor do facto (consequência: tentativa de instigação, § 30 I), e quem o declare irrelevante para ambos. Na estrutura do Código Penal português, a instigação parece ser uma forma de participação que no artigo 26º, última parte, se equipara às diversas formas de autoria (imediata, co-autoria, mediata) apenas para efeitos de punição. Aliás, o Código não diz quem é autor, mas sim, tão-só, quem é punível como autor (Valdágua, p. 22). XI. A chamada participação necessária Certos crimes contam com diversos personagens, em diferentes papéis, mas só um é punido. Na usura (artigo 226º), autor é quem explora situação de necessidade do devedor, com a particularidade de ser o comportamento deste que, em princípio, faz desencadear 443 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. o crime. Outro caso a ter em consideração é, por ex., o abuso sexual de crianças ou de menores dependentes (artigos 172º e 173º). Ou a tirada de presos (artigo 349º). A lei, todavia, pune apenas a actividade de um desses intervenientes: o burlado nunca será punido, nem mesmo em situações de extrema ingenuidade perante a lábia do burlão (artigo 217º, nº 1). Suponha-se, porém, que o educador (cf. o artigo 173º) só pratica um acto sexual de relevo com menor de 17 anos que lhe havia sido confiado para educação porque este o instigou. Diz Welzel (Das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., p. 123) que o menor, não obstante tratar-se de um sujeito imputável (artigo 19º), não podendo ser autor também não há razões para o apontar como instigador, já que o tipo de ilícito lhe outorga um privilégio que tem a ver com a sua situação pessoal de dependência. As coisas passam-se de modo diferente no favorecimento de credores (artigo 229º, nº 1). Como este preceito visa proteger o conjunto de credores, qualquer um deles pode ser instigador do favorecimento. Outro caso de instigação necessária pode ver-se no artigo 134º, nº 1 (homicídio a pedido da vítima). No artigo 349º, alínea b), pune-se quem instigar, promover ou, por qualquer forma, auxiliar a evasão de pessoa legalmente privada da liberdade. É a chamada tirada de presos. Quem instiga a evasão é autor do crime do artigo 349º e é punido com pena de prisão até 5 anos, mas o evadido, mesmo que tenha promovido a evasão (mesmo que a tenha instigado), é punido com a pena do artigo 352º (pena de prisão até 2 anos). XII. Começo da tentativa na co-autoria; teoria do domínio, pelo co-autor, do facto global. CASO nº 30-K: Três assaltantes combinam que qualquer perseguidor deve ser abatido. Quando um deles ouve, atrás de si, um perseguidor, dispara sobre ele, enquanto os outros continuam a fuga (Roxin, p. 334). A questão tem a ver com os limites temporais da co-autoria. No caso de co-autoria, a tentativa começa, para todos os comparticipantes, a partir do momento em que um deles entre no estádio da execução. Há um domínio do facto conjunto: como o acontecimento global da co-autoria pode ser imputado a cada um dos autores, cada acção de execução que um deles realiza, segundo o plano, é, simultaneamente, uma acção de execução de todos. A solução global baseia-se assim na imputação recíproca de actos: a actividade de 444 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. cada co-autor, na medida em que estiver de acordo com o plano comum, deve ser imputada a cada um deles como se se tratasse da sua própria. É como se as contribuições para o facto fossem as de uma pessoa com muitas mãos, muitos pés, muitas línguas... (Kühl). A crítica que se faz à solução global, perante o princípio da legalidade e o artigo 26º do Código Penal português (Valdágua), é que neste se exige que o co-autor tome "parte directa na ... execução (do facto)". A solução passará então pela conjugação do artigo 26º com as diversas alíneas do artigo 22º e a análise do plano de execução do facto acordado entre o agente e os outros comparticipantes, justamente porque a intervenção do co-autor na fase executiva é um requisito essencial da co-autoria (cf. Valdágua, p. 182). Considere-se o exemplo clássico (referido tb. por Valdágua, p. 59 e 183): um casal planeou um furto em casa alheia, empregando chave falsa, ficando combinado que ambos entrariam para subtraírem diversos objectos. O plano passava por uma primeira fase, em que o marido entraria sozinho. Quando este já tinha a chave metida na fechadura da porta e procurava abri-la, estando a mulher inactiva, a aguardar a sua vez de intervir, de acordo com o combinado, apareceu o dono da casa. A mulher é co-autora da tentativa de furto: com a sua presença no local do crime "praticou já um acto de auxílio moral (...) e a esse acto deveria, segundo o plano comum, seguir-se, muito em breve, a intervenção dela na subtracção, que é elemento constitutivo do respectivo tipo legal de crime (artº 22º, nº 2, alínea c)". Cf. Valdágua, p. 183, que adverte que ao mesmo resultado chegaria a solução global, mas através da imputação, à mulher, do comportamento do marido, como se de uma conduta própria se tratasse, ou pela via do domínio ou condomínio do facto global pela mulher, dado o carácter essencial da sua tarefa (cooperar na subtracção). "Da conjugação dos artºs 26º (3ª proposição) e 22º resulta que ninguém é punível como co-autor de um delito tentado se não houver, pelo menos, um co-autor que pratique algum acto de execução nos termos do artº 22º. (...) Mas bastará que seja praticado um acto de execução por qualquer um dos co-autores, para que sejam puníveis, como co- autores do delito tentado, também todos os outros comparticipantes que, segundo o plano comum, deviam levar a cabo tarefas próprias de co-autores? Ou será necessário que cada co-autor do delito tentado pratique, ele mesmo, um acto de execução." (Valdágua, p. 108). 445 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. XIII. Participação em crime agravado pelo resultado CASO nº 30-L: A pretende dar uma sova na pessoa de B e para isso utiliza uma matraca, atingindo-o, porém, na cabeça e produzindo-lhe aí lesões que foram a causa directa da morte de B. A não tinha sequer previsto o evento mortal como consequência da sua actuação. Acontece que o A tinha sido induzido por C a dar a sova no B, mas o C, quando convenceu o outro, nem sequer tinha pensado em que o B podia morrer. Punibilidade de A e C ? A ofendeu B, voluntária e corporalmente (artigo 14º, nº 1), ficando desde logo comprometido com o disposto no artigo 143º, nº 1, sem que se verifique qualquer causa de justificação ou de desculpação. Como A ofendeu o corpo de B, e este veio a morrer, põe-se a questão de saber se este resultado, que não estava abrangido pelo dolo inicial de A, deve ser imputado à actuação deste, agravando o crime, nos termos do artigo 145º. A agravação exige a imputação do evento ao agente sob os dois aspectos da imputação objectiva e da imputação subjectiva: artigo 18º. Ao desvalor do resultado (no exemplo, a morte) acresce o desvalor da acção que se traduz na previsibilidade subjectiva e na consequente violação de um dever objectivo de cuidado (negligência). As dificuldades relacionam-se mais exactamente com a instigação nos crimes agravados pelo resultado e portanto com a responsabilidade de C, que convenceu o autor principal a dar a sova no B, embora sem ter, também ele, pensado nas consequências mortais. Como se sabe, a instigação deverá dirigir-se à consumação dum facto doloso: "quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto" (artigo 26º). No caso concreto, só o ilícito base, de ofensa à integridade física, é que foi praticado dolosamente, a morte só poderá ser imputada a título de negligência. Pondere-se a solução do concurso (cf. J. Damião da Cunha, RPCC 2 (1992), p. 579): C será instigador do crime fundamental doloso e autor do crime negligente, se, relativamente a este, estiverem reunidos os correspondentes pressupostos (previsibilidade subjectiva e violação do dever de cuidado). E pense-se — 2ª hipótese de trabalho — em que, no artigo 18º, a expressão "agente" pode entender-se como remetendo para qualquer das formas de "comparticipação" admissíveis (artigos 26º e 27º). "No fundo, pois, a questão é a de saber qual a interpretação a dar à palavra "agente" 446 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. (autor ou comparticipante) ... em função do papel que desempenha nos quadros do CP... aceitando a possibilidade de comparticipação no âmbito do artigo 18º" (ainda J. Damião da Cunha, e JA 1989, p. 166). XIV. Comparticipação; “mais duas pessoas”; bando; associação criminosa. A figura do bando visa abarcar aquelas situações de pluralidade de agentes actuando "de forma voluntária e concertada, em colaboração mútua, com uma incipiente estruturação de funções", que embora mais graves - e portanto mais censuráveis - do que a mera co- autoria ou comparticipação criminosa, não são de considerar verdadeiras associações criminosas, por nelas inexistir "uma organização perfeitamente caracterizada, com níveis e hierarquias de comando e com uma certa divisão e especialização de funções de cada um dos seus componentes ou aderentes". Acórdão do STJ de 18-12-1997 Processo nº 918/97 - 3ª Secção. O "bando" é um agrupamento de pessoas conexionadas, mais emotiva que racionalmente, à volta da realização mais ou menos persistente e ronceira da actividade criminosa, com vista a determinado objectivo, aproveitando fundamentalmente em cada momento, a experiência e a capacidade de cada elemento individual e colectivamente considerados. Não se exige na sua constituição ou existência, a organização típica da associação criminosa, que a pressupõe bem definida, nem se contenta, como a co-autoria, com a mera comparticipação. Como também não se exige que o grupo que o integre se dedique apenas á actividade criminosa. Outra actividade do grupo, e até lícita, pode servir para a realização da actividade criminosa, ou para a camuflar. A qualidade de membro de uma família não afasta a estrutura criminal do bando, já que desviada aquela das suas finalidades próprias, pode até servir para melhor e mais facilmente, se agregar e constituir tal figura penal. 27-02-1997 Processo nº 908/96 - 3ª Secção. Para que se verifique o crime de associação criminosa exige o artigo 299º, nºs 1 e 2, do Código Penal, que estejam reunidos os seguintes elementos típicos: a) Fundar, promover, fazer parte, apoiar, chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação; b) Que o grupo, organização ou associação tenha a sua actividade dirigida à prática de crimes; c) Que o agente tenha querido fundar ou promover, fazer parte, apoiar, chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação para a prática de crimes e que saiba que a sua conduta é proibida por lei. Sendo um crime doloso, o dolo há-de ser dirigido precisamente àquele acordo de vontades colimado à finalidade comum de cometer crimes de determinada natureza. O STJ tem vindo a exigir que o acordo de vontades tenha um certo carácter de permanência e de autonomia relativamente à personalidade de cada um dos seus 447 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. aderentes. Enquanto na co-autoria ou comparticipação existirá um acordo conjuntural para a comissão de determinado crime concreto, na verdadeira associação criminosa haverá um projecto estável para a realização da finalidade de praticar crimes de certa natureza em número ainda não determinado. Cf. a anotação ao acórdão do STJ de 4 de Junho de 1998, BMJ-478-7. No artigo 132º, nº 2, alínea g), a especial censurabilidade ou perversidade pode ser indiciada pela prática do facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas. XV. Para recordar A acessoriedade. Pressuposto da participação é a existência de um facto (doloso) típico e ilícito de outrem, que pode ser simplesmente tentado: exige-se que o facto tenha atingido um certo estádio de realização e que assim se torne punível. Se A, B e C combinam minuciosamente um assalto mas porque são indolentes não fazem nada para cumprir o plano comum, não se pode sequer falar de tentativa. Não havendo um ilícito típico não é possível a participação. Se no ex. anterior D para ajudar os assaltantes preguiçosos conscientemente lhes tivesse emprestado um pé de cabra para o assalto, a cumplicidade não seria possível: para poder falar-se de cumplicidade é necessário que o facto do autor seja ao menos típico e ilícito. É a regra da acessoriedade limitada. No direito português, o princípio da acessoriedade vale tanto para a cumplicidade (artigo 27º) como para a instigação (artigo 26º, última parte). A acessoriedade e o encobrimento. No início da década de 1980, quando apareceu um novo código penal, já o "encobrimento" ("favorecimento pessoal") deixara de ser entendido como uma forma de participação no crime. E a razão era simples: não se podia tomar parte em algo que já estava consumado. As formas de encobrimento têm sem dúvida o seu próprio conteúdo de ilícito, na medida em que, ajudar o autor de um crime a alcançar o esgotamento material dos seus propósitos ou a conseguir defraudar a acção da justiça, faz com o que o ilícito cristalize e até se amplie materialmente, ao mesmo tempo que se frustra a reacção punitiva (Quintero Olivares). Só que, note-se, o encobrimento não contribui para o ilícito anteriormente realizado. Qualquer forma de encobrimento fica assim submetida ao princípio da acessoriedade. E isso reflecte-se na sanção própria do encobrimento que nada terá a ver com a do delito precedente (acto prévio). Repare-se que nos artigos 231º e 232º se incrimina a receptação — e o auxílio ao criminoso, para que este tire benefício da coisa ilicitamente obtida. O favorecimento pessoal como crime contra a realização da justiça foi autonomizado nos artigos 367º e 368º. O dolo. Os artigos 26º e 27º exigem expressamente a comissão dolosa. Por ex., é punível como cúmplice quem dolosamente prestar auxílio à prática por outrem de um facto doloso (duplo dolo). A co- autoria supõe a comparticipação dolosa no facto comum (nota: não poderá contudo sustentar-se a co- autoria em certas situações de falta de cuidado? Serão mais precisamente autorias paralelas?). O facto terminado. (1) A dá vários murros na pessoa de B. O crime fica consumado com o primeiro murro, mas se P acorre e ambos continuam a socar B, em conjugação de esforços e de intenções, haverá 448 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. comparticipação, ambos são co-autores. Cf., porém, a questão da responsabilidade na co-autoria sucessiva; fala-se de co-autoria sucessiva (ou adesiva) quando uma pessoa toma parte num facto cuja execução fora iniciada em regime de autoria singular por outro sujeito, a fim de, em conjunto, conseguirem a consumação. (2) A deu vários murros em B e desapareceu, mas logo P aproveita a oportunidade para se vingar de B que está por terra. Dá-lhe por sua vez diversos pontapés. Não há comparticipação. Cada um deles comete o "seu" crime. (3) Considere agora o caso de um furto que ainda não atingiu a fase de exaurimento mas já está formalmente consumado quando intervém um terceiro que "colabora" com o ladrão. O vizinho artigo 28º. Em situações de comparticipação em factos cuja ilicitude dependa de qualidades ou relações especiais do agente (por ex., o artigo 360º), basta que um deles as detenha para que a pena aplicável se estenda a todos os outros. Para a Profª Teresa Beleza (Ilicitamente comparticipando), no artigo 28º podem ser abrangidas as seguintes situações típicas: 1-Situações de co-autoria em que só um (só alguns) dos co-autores tenha(m) as qualidades ou relações especiais exigidas no tipo específico (próprio ou impróprio). 2-Situações de comparticipação em que só um (ou alguns) dos participantes (cúmplices ou instigadores) detenha(m) essas qualidades, não as tendo o autor. 3-Situações de comparticipação em que algum ou alguns dos participantes detenham qualidades especiais, mas não as tendo o autor nem outros participantes. 4-Possivelmente, situações de autoria mediata em que as qualidades exigidas não se verificam no autor mediato mas tão só no executor do facto ou no autor imediato não responsável. O artigo 28º vem permitir que a punibilidade de qualquer comparticipante portador de qualidades ou relações especiais se comunique aos restantes agentes da comparticipação. Mesmo que seja o partícipe (instigador ou cúmplice) a exibir a circunstância especial, a punição pode transmitir-se ao autor “leigo”. Ou seja, a ligação centrípeta entre a gravidade do facto central (de autoria imediata, mediata ou de co-autoria material) e a do facto periférico de participação (instigação ou cumplicidade) é aqui eliminada (cf. Maria Margarida Silva Pereira, Da autonomia do facto de participação, O Direito, 126º (1994), p. 575). Não será necessário recorrer ao artigo 28º quando um extraneus convence (instiga) um intraneus (por ex., um funcionário) a praticar um facto típico doloso (por ex., um crime de funcionário): no artigo 26º, última parte, a instigação já acolhe a punibilidade da situação. No caso do acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 2000. BMJ-493-272, o arguido I, escrivão de direito, praticou o crime de falsificação (artigo 256º, nº 4), inventando totalmente um acto judicial que não existiu e fabricando o documento em que se narra tal acto. O H praticou-o igualmente (ainda que como simples cúmplice) visto que, apesar de não ser funcionário público e a falsificação dizer respeito a um acto judicial inserido em processo desta natureza, torna-se-lhe extensível a incriminação por força do nº 1 do artigo 28º. É inegável que o H sabia que o seu co-arguido tinha aquela qualidade de escrivão do processo. XVI. Outras indicações de leitura • Lei nº 101/2002, de 25 de Agosto (Regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal): O respectivo artigo 6º trata de isentar de responsabilidade o agente encoberto que, no âmbito de uma acção encoberta, consubstancie a prática de actos preparatórios ou de execução 449 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de uma infracção em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação e da autoria mediata, sempre que guarde a devida proporcionalidade com a finalidade da mesma. • Sistema comparticipativo do Direito de Mera Ordenação Social: vd. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade, RPCC 7 (1997), p. 18. • Acórdão da Relação de Coimbra de 13 de Março de 1996, CJ, XXXI, II, 50: artigo 28º; comunicabilidade da ilicitude na comparticipação; crimes cometidos por titulares de cargos públicos no exercício das suas funções. • Acórdão da Relação do Porto de 6 de Março de 1991, CJ: é co-autora do crime de violação a mãe que, sistematicamente, procura convencer a filha, através de espancamentos, a dedicar-se à prostituição, acenando-lhe, além disso, com chorudos proventos. • Acórdão do STJ de 3 de Novembro de 1994, CJ 1994, tomo III: a rixa pressupõe que não há acordo ou pacto prévio entre os intervenientes e que, se houver esse acordo, entramos no campo da comparticipação nos crimes de ofensas corporais ou de homicídio. • Acórdão do STJ de 11 de Fevereiro de 1998, Processo n.º 1191/97 - 3.ª Secção: o crime de administração danosa em unidade económica do sector público ou cooperativo é um crime específico próprio, que só pode ser praticado por quem detiver certas qualidades pessoais, nomeadamente o estar incumbido da respectiva gestão; no caso de comparticipação criminosa, basta que aquelas qualidades pessoais se verifiquem relativamente a um dos comparticipantes para que a pena correspondente se torne aplicável aos demais (art.º 28, n.º 1, do CP). • Acórdão do STJ de 22 de Março de 2001, CJ 2001, tomo I, p. 260: co-autoria sucessiva. • Acórdão do STJ de 12 de Novembro de 1997, BMJ-471-48: cada co-autor é responsável pela totalidade do evento, pois sem acção de cada um o evento não teria sobrevindo. Muitas vezes a simples presença de um agente no local do crime é suficiente para convencer outrem a praticá-lo. • Acórdão do STJ de 13 de Dezembro de 1995, BMJ-452-230: o arguido detinha quase 1 quilo de heroína e vários produtos e instrumentos para a sua transformação, pelo que é autor do crime correspondente, não obstante não ter vendido ou cedido essas preparações a alguém em concreto. • Acórdão do STJ de 14 de Junho de 1995, CJ-1995, II, p. 230: sublinha-se que a arguida E, por acordo com os seus dois co-arguidos, o C e a P, aderiu sem quaisquer reservas ao plano de roubarem a vítima Félix, que lhe foi dado a conhecer por esses dois, sendo decisivo o seu envolvimento sexual calculado com o F para fazer entrar o C de surpresa em casa deste, como entrou. A E realizou a parte do plano que lhe competia no plano que traçaram todos os três arguidos, e mesmo na altura em que a vítima foi agredida e manietada ela deu a sua consensual presença, ficando junto da vítima e do C e da P. Sem sombra de dúvida que ela cumpriu a sua intervenção periférica, colocando decisivamente uma condição sem a qual se não produzia o evento, intervenção essa que se pode contrapor à parte nuclear do crime de homicídio (agressão e imobilização do Félix). Só que mesmo nesta ela tomou parte activa: depois de a vítima estar imobilizada a P e o C, também ajudados pela E, iniciaram então as buscas à casa, procurando dinheiro e valores, enquanto, simultaneamente, a E e a P se 450 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. revezavam, guardando e observando a vítima a fim de se poderem aperceber se, porventura, ela se libertava. • Acórdão do STJ de 15 de Outubro de 1997, CJ, 1997-V, p. 196: cumplicidade e favorecimento pessoal; "para haver cumplicidade deve haver uma relação de causalidade entre o facto do cúmplice e o crime, através da conduta do executor". • Acórdão do STJ de 17 de Março de 2004, CJ 2004, tomo I, p. 229: situação que determina uma sucessão de penas; situação de concurso de penas); o limite, determinante e intransponível, da consideração da pluralidade de crimes para efeito de aplicação de uma pena única, é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes praticados anteriormente; no caso de conhecimento superveniente aplicam-se as mesmas regras, devendo a última decisão, que condene por um crime anterior, ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse tido conhecimento da prática do facto. • Acórdão do STJ de 31 de Março de 2004, CJ 2004, tomo I, p. 239: a passividade não constitui auxílio, ou mesmo auxílio minimamente causal; sem elementos reveladores da causalidade não se pode responder à questão de saber se há auxílio ou se houve favorecimento do facto principal. • Acórdão do STJ de 17 de Abril de 1997, BMJ-466-228: distinção entre a comparticipação e a associação criminosa. • Acórdão do STJ de 2 de Dezembro de 1993, in Simas Santos - Leal Henriques, Jurisprudência Penal, p. 577: Provado que ambos os arguidos desencadearam o processo violento contra o ofendido por forma a imobilizá-lo para subtraírem determinados objectos, é evidente que ambos tomaram parte directa na execução do crime e são seus co-autores, mesmo que os actos de maior violência tenham sido a seguir exercidos por um deles. Tendo os arguidos actuado em conjugação de esforços, por forma deliberada e com vista ao mesmo fim, o acordo entre eles é, pelo menos, tácito, e não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos para a obtenção do resultado desejado, bastando que a actuação de cada um seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado. • Acórdão do STJ de 22 de Março de 2001, processo nº 473/01, 5ª secção: quer o co-autor, quer o cúmplice, são auxiliatores. Cada um, a seu jeito, ajuda ou concorre para a produção do feito. Porém, enquanto o primeiro assume um papel de primeiro plano, dominando a acção (já que esta é concebida e executada com o seu acordo - inicial ou subsequente, expresso ou tácito - e contribuição efectiva), o segundo é, digamos, um interveniente secundário ou acidental: só intervém se o crime for executado ou tiver início de execução e, além disso, mesmo que não interviesse, aquele sempre teria lugar, porventura em circunstâncias algo distintas. A sua intervenção, sendo embora concausa do concreto crime levado a cabo, não é causal da existência da acção, no sentido de que, sem ela, apesar de tudo, o facto sempre teria lugar, porventura em circunstâncias algo diversas. É, neste sentido, um auxiliator simplex ou causam non dans. Quer isto dizer, que sem autor não pode haver cúmplice mas já pode conceber-se autoria sem cumplicidade, o que mostra o carácter acessório desta figura. • Acórdão do STJ de 23 de Junho de 1994, BMJ-438-261: crime de incêndio; cumplicidade: o cúmplice fica fora do acto típico, somente favorece ou presta auxílio à execução. 451 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do STJ de 24 de Março de 1999, BMJ-485-267: A acordou com B arranjar alguém que incendiasse uns armazéns, mas nunca foi intenção deste fazê-lo, já que apenas pretendia receber do A e fazer seu o preço combinado pelo serviço e com isso ludibriá-lo. Ora, o comportamento do autor mediato será punido se ele determinou outro ou outros à prática do facto e desde que haja execução ou começo de execução do facto criminoso induzido ou praticado por determinação do autor mediato. • Acórdão do STJ de 26 de Fevereiro de 1992, BMJ-414-244: distinção entre autoria e cumplicidade: A fornecia em sua casa a troco de dinheiro uma certa quantidade de heroína ao co-arguido B, sem que se tenha provado que isso se tivesse enquadrado no desenvolvimento de um qualquer plano acordado entre eles. • Acórdão do STJ de 28 de Julho de 1987, BMJ-369-392: não é possível a condenação de co-autor moral na falta de identificação do co-autor material. • Acórdão do STJ de 3 de Março de 1971, BMJ-205-123: assalto à agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz; co-autoria, cumplicidade. • Acórdão do STJ de 3 de Outubro de 1990, BMJ-400-284: crime de roubo, co-autoria, cumplicidade. • Acórdão do STJ de 4 de Junho de 1998, BMJ-478-7: sobre a comunicabilidade das circunstâncias qualificativas dos furtos, resultante do artigo 28º, que contempla tanto a autoria mediata como a imediata. • Acórdão do STJ de 4 de Novembro de 1993, BMJ-431-169 (cf. a anotação de p. 178 do Boletim): este acórdão reitera a posição [na altura] tradicional do Supremo em matéria de distinção entre cumplicidade e co-autoria, e que parte da distinção entre causa dans e causa non dans, devendo ser considerado cúmplice o indivíduo cuja intervenção, a não ter tido lugar, não evitaria o crime, antes faria com que, eventualmente, fosse cometido em condições de tempo e modo diferentes. • Acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1988, BMJ-382-276: são co-autores do crime de homicídio os que, embora não tenham estado presentes quando o ofendido foi apanhado, colaboraram no seu transporte para o largo de uma povoação e ao chegarem ali previram a possibilidade de ele ser morto pela populaça e, não obstante isso, não se retiraram, e descarregaram-no, entregando-o à populaça. • Acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1994, BMJ-442-93: para que possa afirmar-se que o arguido agiu em comparticipação criminosa, basta ter-se provado que ele contou com a colaboração de outrem para levar a efeito ou concretizar os seus desígnios criminosos, mesmo que esse outro não tenha sido identificado, já tenha falecido ou ainda não tenha sido julgado pelos mesmos factos. • Acórdão do STJ de 7 de Maio de 1997, BMJ-467-419: o arguido assumiu a responsabilidade do evento e de todas as circunstâncias objectivas em que este teve lugar - Actas, 12ª sessão; cada um dos executores, ainda que algum tenha praticado apenas parte dos actos materiais de execução, torna-se co-autor desde que tenha havido acordo prévio e consciência da colaboração dos demais para a consumação. • Acórdão do STJ de 9 de Maio de 2001, CJ, ano IX (2001), tomo II, p. 187: agravação pelo resultado; co-autoria, cumplicidade. • Acórdão do STJ, BMJ-390-147: A e B deram boleia a C e ao companheiro desta, D. Em certa altura do percurso, A e B declararam à C que queriam manter com ela relações de cópula completas, o que a 452 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. C recusou. D aproveitou uma paragem do carro e correu a pedir socorro, mas o condutor arrancou, levando nele a C. Mais adiante pararam e a C tentou fugir, mas foi agarrada por A e B, que a impediram, pela força, de se defender, até que ela se estatelou no chão. O A manteve então relações de cópula completa com a C, ao mesmo tempo que o B a imobilizava. Depois, o B manteve relações da mesma natureza com a C, em idênticas circunstâncias. O Tribunal condenou A e B como co- autores de dois crimes de violação. O Supremo recordou que a violação não tem o carácter de mão própria: o facto ilícito "em si" não é a cópula, mas o forçar uma mulher a ter cópula (hoje em dia qualquer pessoa a sofrer um dos actos típicos do artigo 164º, nº 1). Trata-se de co-autoria e não de autorias paralelas: cada um dos dois arguidos praticou em concurso real dois crimes de violação. • Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 1991, CJ-Acórdãos do STJ: co- autoria do crime de rapto — e não cumplicidade — de quem, depois de prévio acordo, conduz a carrinha onde a ofendida é transportada e telefona para a mãe dela a fazer exigências. • Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Julho de 1992, CJ-Acórdão do STJ: co-autoria do ladrão que fica de vigia enquanto o outro entra na casa de habitação do ofendido contra a sua vontade, donde retirou valores que distribuíram entre eles. • Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 1993, CJ-Acórdãos do STJ, ano I, tomo 1, p. 197. • Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 1993, CJ-Acórdãos do STJ: cumplicidade dos que, intervindo no acordo, ajudaram a cimentar as vontades dos que executaram uma das inúmeras burlas cometidas. • Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Fevereiro de 1994, CJ-Acórdãos do STJ, ano II, tomo 1, p. 223. • Sentença da Corte d’Assise d’Appelo di Perugia (caso Andreotti), Il Foro Italiano 2003, p. 335 e ss.: relevância do consenso tácito como forma de participação moral num crime (morte do jornalista Pecorelli) cometido por outros. • Actas das sessões da comissão revisora do Código Penal, Parte geral, vol. 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Unidade e pluralidade de infracções; concorrência, no mesmo sujeito, de várias práticas delituosas. Concurso efectivo; crime continuado; artigo 30º, nºs 1 e 2, do Código Penal. 1. Pode acontecer — e acontece frequentemente — que a conduta dum único agente preencha os elementos típicos de vários crimes, os quais são apreciados num mesmo processo. Caso nº 46: (a) A faz deflagrar uma bomba no quarto de hotel onde sabe que pernoitam B e C, que quer matar, o que vem a acontecer — 2 crimes de homicídio (artigo 131º), eventualmente qualificados. (b) A mata a vítima, B, vibrando-lhe diversas facadas, que também inutilizam o casaco de couro que B vestia e lhe tinha custado umas centenas de contos — um crime do artigo 131º e um crime de dano do artigo 212º. (c) A comete um roubo no metropolitano e dias depois conduz uma viatura até Cascais, em estado de embriaguez — artigos 210º e 292º. (d) A atinge mortalmente B, que quer matar, e no dia seguinte atinge C de raspão, querendo apenas provocar-lhe um arranhão numa perna, o que vem a acontecer — um crime do artigo 131º e um crime do artigo 143º. Nos casos indicados, A pode vir a ser absolvido de algum ou de todos os crimes pelos quais vinha acusado. Sendo inteiramente absolvido, a sentença absolutória (artigo 376º do Código de Processo Penal) declara a extinção de qualquer medida de coacção e a imediata libertação do arguido que estiver preso preventivamente. Se, pelo contrário, a decisão for condenatória (artigos 374º e 375º do Código de Processo Penal), deverá especificar os fundamentos da sanção aplicada. Quando for condenado, o arguido é igualmente condenado em taxa de justiça e paga os encargos a que a sua actividade houver dado lugar (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal). A escolha e a determinação da medida da pena fazem-se de acordo com os critérios estabelecidos nos artigos 70º e 71º do Código Penal. A cada crime cometido caberá uma pena, havendo concurso sempre que o agente pratica vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles. Para que se verifique o concurso, exige o nº 1 do artigo 30º a efectiva violação de várias normas incriminadoras. Nos casos de concurso efectivo, o juiz determina na sentença a pena que cabe a cada crime — pena parcelar — e em seguida submete a punição do concurso às regras dos artigos 77º e 78º do Código 457 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Penal, estabelecendo uma pena única, a qual se alcança considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A moldura penal do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar os 25 anos, tratando-se de pena de prisão, como se diz no nº 2 do artigo 77º; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Se no caso em que A está acusado da morte, a tiro de espingarda, de dois dos seus inimigos a prova saída do julgamento for de molde a demonstrar a culpabilidade de A, que quis matar as duas vítimas, o tribunal estabelece uma pena para cada um dos dois crimes, determinando-a como manda o artigo 71º, a partir da moldura penal do homicídio: pena de prisão de 8 a 16 anos (artigo 131º). A será então condenado como autor material, por cada um de dois crimes de homicídio voluntário do artigo 131º do Código Penal, praticados em concurso efectivo, na pena (vamos supor...) de 10 anos de prisão. A moldura penal do concurso destas duas penas será, então, no máximo de 20 anos de prisão (10+10) e no mínimo de 10 anos de prisão (regra do nº 2 do artigo 77º). A pena única, em cuja medida serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (regra do nº 1 do artigo 77º), poderá fixar-se (vamos supor...) nos 14 anos de prisão. Concluirá então o acórdão ( 34 ): A é autor material, em concurso efectivo, de dois crimes do artigo 131º do Código Penal, pelo que, por cada um deles, os Juizes que compõem o Tribunal Colectivo o condenam na pena de 10 anos de prisão; procedendo ao cúmulo jurídico destas duas penas, nos termos do artigo 77º do Código Penal, vistos os factos e a personalidade do arguido, como antes pormenorizadamente se referiu, condenam A na pena única de 13 anos de prisão. 30 Tomam a forma de acórdão os actos decisórios dos juizes de um tribunal colegial, por ex., um tribunal colectivo, a quem compete julgar, entre outros, os processos que respeitarem a crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa, ou cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja superior a cinco anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime (artigos 14º, nº 2, a) e b), e 97º, c), do Código de Processo Penal. 458 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2. Acabámos de apresentar nos seus traços mais gerais o concurso de crimes, que tem expressão no artigo 30º, nº 1, e o concurso de penas, que os artigos 77º e 78º regulam. Como se viu, o concurso de crimes corresponde a uma pluralidade de crimes, não necessariamente a uma pluralidade de actos: o critério do concurso efectivo de crimes assenta na pluralidade de tipos violados pela conduta do agente, equiparando-se na lei os casos de concurso real, em que a conduta se desdobra numa pluralidade de actos, aos de concurso ideal, em que a conduta se analisa num único acto. Nas palavras do Professor Cavaleiro de Ferreira, "os crimes em concurso, na fórmula legislativa, consistem na realização de vários tipos legais, fórmula que, mais claramente, corresponde à violação plúrima por um só ou por vários factos de diferentes normas incriminadoras ou da mesma norma incriminadora". É no tipo que se focaliza o núcleo do juízo de ilicitude que tem como seu suporte material o bem jurídico. Daí que não possa deixar de ser visto como uma referência essencial para a determinação do número de crimes praticados. Prof. Faria Costa, Jornadas, p. 181. Na definição de concurso efectivo de crimes não basta o elemento da pluralidade de bens jurídicos violados — exige-se a pluralidade de juízos de censura. Os tribunais portugueses seguem o critério proposto pelo Prof. Eduardo Correia da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas (de resoluções de cometimento dos crimes, em caso de dolo; de resoluções donde derivaram as violações do dever de cuidado, em caso de negligência). Com um só acto, o agente pode ofender vários interesses jurídicos ou repetidamente o mesmo interesse jurídico. Se a tais ofensas corresponderem outros tantos juízos de censura, verifica-se o concurso efectivo de crimes — real ou ideal. Portanto, o número de juízos de censura determina-se pelo número de decisões de vontade do agente: uma só resolução, um só acto de vontade, é insusceptível de provocar vários juízos de censura sem desrespeito do princípio ne bis in idem. Por isso, no concurso ideal, sendo a acção exterior uma só, a manifestação da vontade do agente, quer sob a forma de intenção quer de negligência, tem de ser plúrima: tantas manifestações de vontade, tantos juízos de censura, tantos crimes que correspondem a outros tantos bens jurídicos violados. A queria matar B e para isso, a uns dez metros de distância deste, disparou um tiro de arma caçadeira que lhe acertou na zona torácica, dando-lhe morte quase instantânea. Alguns projécteis foram igualmente 459 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. atingir C, que estava logo ali. A não tinha previsto que, com a dispersão do tiro, também a integridade física de C podia ser atingida, como aconteceu, pois C ficou ferido. Neste exemplo, A disparou um único tiro e com ele atingiu duas pessoas. A tomara a resolução de matar B, o que veio a acontecer, preenchendo a sua conduta, desde logo, o crime de homicídio doloso (artigo 131º), pelo qual pode ser censurado. A não previu que C poderia ser atingido; não actuou quanto a ele com dolo homicida nem com dolo de ofensa à sua integridade física. Ainda assim, A pode ser censurado pela sua falta de cuidado: não previu, mas devia e podia ter previsto que C iria ser atingido, tornando-se responsável por um crime de ofensa à integridade física por negligência (artigo 148º, nº 1) — em concurso efectivo com o anterior: um único disparo produziu os dois eventos, a morte de um e as lesões corporais no outro, ofendendo interesses jurídicos de B e de C. A essa actuação corresponde um juízo de censura na forma de dolo, outro na forma de negligência inconsciente —por isso se verifica o concurso efectivo de crimes (concurso ideal). 3. Para a teoria naturalista, o número de crimes cometidos determina-se pelo número de acções em sentido físico. Mas nem sempre é fácil, a partir de critérios naturalísticos, saber quando se está perante uma só ou várias condutas, pelo que geralmente se não opera com tais critérios. Assim é que, no artigo 30º, nº 1, se adopta o chamado critério teleológico para a determinação do número de crimes, não se parte simplesmente de bases naturalísticas. No plano doutrinal, a norma coincide com a posição do Prof. Eduardo Correia, que escrevia em 1965 (Eduardo Correia, Direito Criminal II, 1965, p. 200): "o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. Pelo que, se diversos valores ou bens jurídicos são negados, outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só actividade, isto é, de estarmos perante um concurso ideal. Inversamente, se um só valor é negado, só um crime existirá, já que a específica negação de valor que no crime se surpreende reúne em uma só actividade todos os elementos que o constituem" Todavia, e uma vez que a conduta, o comportamento do agente, não deixa de consistir num só facto ou em vários factos naturais, a anterior referência a "um só acto", a "uma só acção exterior", à "unidade do facto", à "unidade de acção", a "vários actos" ou a 460 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. expressões semelhantes, merece, ainda assim, alguns desenvolvimentos, por lhes estarem ligadas certas qualificações ou determinadas consequências penais. Aliada à sua projecção temporal e envolvida no correspondente elemento subjectivo do ilícito, a conduta naturalística funciona, desde logo, como índice de uma unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Quando A mata B com um só tiro de pistola comete um único crime: a uma decisão de vontade de A corresponde a unidade natural da conduta, um único movimento corpóreo, o de disparar a pistola na direcção de B —à unidade de acção dolosa segue-se a da norma jurídica violada. Mas quando A mata B e C com a explosão de uma granada serão dois os homicídios da responsabilidade de A se este, não obstante a unidade natural da conduta (um único movimento corpóreo, o de arremessar a granada para o local onde estavam as duas vítimas), quis matar um e outro: à unidade de acção segue-se a subsunção da conduta, por duas vezes, ao mesmo preceito incriminador —hipótese de concurso ideal homogéneo—, e em ambos os casos a título de dolo. Se porém a morte de uma das vítimas nem chegou a ser prevista —e vimos isso em exemplo anterior—, a imputação, nessa parte, só poderá ocorrer na base dum juízo negligente, supondo que no caso convergem os correspondentes elementos. Num outro exemplo, se A mata B com um tiro e na semana seguinte dá uma violenta bofetada em C, serão dois os crimes a cargo de A: a uma pluralidade de manifestações de vontade com uma pluralidade de movimentos corpóreos correspondem duas normas incriminadoras violadas — hipótese de concurso real —, sendo também plúrimo o juízo de censura a título de dolo. A chamada unidade natural de acção revela-se pela realização reiterada do mesmo tipo penal, em sucessão ininterrupta, acompanhada por uma decisão unitária de vontade. As várias actividades homogéneas aumentam o quantum de ilicitude do facto (Wessels), como no caso em que A, conscientemente e com intenção de apropriação, subtrai um relógio a B cometendo um furto, mas que continua a ser um só furto se em vez de um subtrair cinco ou dez ou cinquenta relógios na mesma ocasião. Ou então: se A ofende B, voluntária e corporalmente, com um murro, comete um crime do artigo 143º, nº 1, mas se lhe propinar meia dúzia de murros seguidos, o crime contra a integridade física continua a ser único. Haverá, por outro lado, unidade de conduta típica se o crime tiver a estrutura da violação (artigo 164º, nº 1) —ou a do roubo (artigo 210º), que atende à 461 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. designação de crime complexo, em que a unidade de infracções é estabelecida pela própria lei. O roubo é um crime especial em que se juntam, numa unidade jurídica, o furto (crime-fim) e o atentado contra a liberdade ou a integridade física das pessoas (crime-meio). Outro exemplo de unidade de conduta típica será o das falsificações documentais (artigo 256º). As falsificações são crime mutilado de dois actos ou de resultado cortado ou imperfeito (unvollkommen oder verkümmert Erfolgsdelikten). São crime de dois actos atrofiados, em expressão brasileira, com ressonâncias em Binding: "o legislador, impaciente, temendo que o agente alcance seu desideratum, ou finalidade, não espera que o consiga" (Magalhães Noronha, Crimes contra o património, BMJ-138-51) — pune-se o agente logo que este pratica o primeiro acto, que é o meio de levar a cabo um acto posterior, o do uso do documento falso. A principal consequência é que aquele que se envolve nos dois actos só virá a ser punido por um deles. Por isso, alguns autores vêm neste desenho típico uma unidade delitiva. Do mesmo modo, o crime permanente é constituído por uma única conduta. Esta incide sobre um bem jurídico susceptível de "compressão", como serão todos os atentados à honra e à liberdade — não de "destruição", como será o caso da lesão da vida. Por ex., no sequestro (artigo 158º) o ilícito é de duração, uma vez que o facto se prolonga no tempo, perdurando do mesmo modo a conduta ofensiva (privação da liberdade). Com o seu comportamento, o agente não só cria a situação típica antijurídica como a deixa voluntariamente subsistir. Deste modo, os crimes permanentes consumam-se com a realização típica, mas só ficam exauridos quando o agente, por sua vontade ou por intervenção de terceiro (pense-se no caso da violação de domicílio), põe termo à situação antijurídica. Numa perspectiva bifásica, existe neles uma acção e a subsequente omissão do dever de fazer cessar o estado antijurídico provocado, que faz protrair a consumação do delito. Além do sequestro e da violação de domicílio podem também alinhar-se nos crimes permanentes a condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292º) e a associação criminosa (artigo 299º). Há outros casos porém em que o agente cria uma situação antijurídica, mas a sua manutenção já não tem qualquer significado típico. Nestes crimes de efeitos permanentes, como a bigamia (artigo 247º) ou a ofensa à integridade física grave (artigo 144º), o agente, uma vez criada a situação, que a seguir lhe foge das mãos, fica sem qualquer capacidade para lhe pôr termo. 462 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. O acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Março de 1999, BMJ-485-477, qualifica o crime de bigamia como um "delito instantâneo": a celebração de segundo casamento antes da dissolução do primeiro consuma o crime de bigamia (artigo 247º do Código Penal) e o seu dia marca o ponto de partida do prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal (artigo 119º, nº 1). Os manuais alemães fazem ainda referência ao chamado delito colectivo (Sammelstraftat: facto penal conjunto), por ex., Welzel: os delitos de habitualidade, profissionalidade e comercialidade constituem uma unidade de condução da vida punível. Castiga-se o "empreender" determinados delitos por forma comercial, profissional, habitual (geschäfts-, gewerbs- und gewohnheitsmäßigen Verbrechen). O empreendimento criminoso pode ser fundamento do crime ou motivo de agravação. O facto de se colocar o acento tónico destas infracções no tipo de agente torna-as, porém, de duvidosa legitimidade à luz de um direito penal do facto (Cf., a propósito, Pedro Caeiro, Conimbricense, PE, tomo II, p. 500). No nosso direito, o artigo 170º, nº 1 (lenocínio) exige que o agente do crime faça do seu comportamento profissão [ou que tenha intenção lucrativa]: tem-se em vista uma actividade permanente, ainda que não exclusiva — o agente faz dessa actividade o seu principal modo de vida. Na alínea h) do artigo 204º prevê-se a qualificação do furto fazendo o agente da prática de furtos "modo de vida" (cf. o § 243. 1. 3 do StGB: Gewerbsmäßiger Diebstahl, e o artigo 218º, nº 2, alínea b). Pratica furtos como modo de vida quem tem a intenção de conseguir uma fonte contínua de rendimentos com a repetição mais ou menos regular de factos dessa natureza. Não tem aplicação no caso do ladrão ocasional, ainda que determinado à prática repetida de furtos, mas a lei não contém elementos para avaliar o tempo necessário à definição do que seja o modo de vida. O rendimento do crime não tem que ser a única fonte nem a maior fatia dos proventos do ladrão que, com sorte, pode até viver do produto dum só furto durante uma larga temporada sem que isso constitua caso de agravação. Também aqui o modo de vida criminoso acarreta o perigo da especialização e do domínio de certas "artes" e inculca a ideia de vadiagem e de marginalidade, aproximando-se duma característica pessoal de pendor subjectivo. Está mais perto da noção de "profissionalidade" do que da "habitualidade" ou da simples "dedicação". A habitualidade é diferente, assenta numa inclinação para a prática do correspondente delito adquirida com a repetição (Jescheck, AT, 4ª ed., p. 651). O acórdão do STJ de 9 463 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de Janeiro de 1992, BMJ-413-182, oferece pertinentes informações sobre os conceitos de "habitualidade", "profissionalidade", "modo de vida", "plurirreincidência", "delinquência por tendência", etc. A habitualidade nos crimes essencialmente patrimoniais, incluindo o de burla, verifica-se não só quando o agente faz da sua prática um modo de vida habitual ou principal, mas também quando as circunstâncias do caso convencem de que aquele se habituou a praticar determinado género de condutas em que de certa forma se especializou e passou a adoptar em termos de repetição e multiplicidade demonstrativa de que a sua prática é por ele olhada como normal, expressão de uma segunda natureza, e assumida sem a contenção psicológica resultante das proibições legais, por isso reveladora de maior perigosidade da sua parte (acórdão do STJ de 7 de Outubro de 1991, BMJ-410-305). Se não se descortina na reiteração o hábito de delinquir, uma propensão para o crime radicada na personalidade do delinquente, está-se perante um delinquente pluriocasional (acórdão do STJ de 17 de Junho de 1992, BMJ-418-513). 4. Há quem sustente ser o crime continuado uma forma especial de manifestação da unidade jurídica de acção — por ex., Wessels. No artigo 30º, nº 2, diz-se que "constitui um só crime continuado a realização do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente." Numa visão material das coisas, o crime continuado é uma unidade jurídica construída sobre uma pluralidade efectiva de crimes (Prof. Figueiredo Dias; Jung, JuS 1989, p. 291). Exemplo: A furta a B um berbequim e um pé de cabra e no dia seguinte serve-se deles para entrar por arrombamento na moradia de C. Terá A praticado 2 crimes de furto (artigo 203º, nº 1) ou apenas um crime de furto (artigo 203º, nº 1) ou só um crime de furto continuado (artigos 30º, nº 2, e 203º, nº 1)? Se tiver havido um só desígnio criminoso, o crime há-de ser necessariamente único, já que subsumível a um mesmo tipo criminal, ou seja, ofensivo de idêntico bem jurídico. Se o comportamento do agente revelar uma pluralidade de resoluções poder-se-ão pôr — e só então — as hipóteses de pluralidade de infracções ou de crime continuado. Tendo havido mais do que uma resolução, a regra será o concurso real de crimes, constituindo a continuação criminosa uma excepção a aceitar quando a culpa se mostre “consideravelmente diminuída, mercê de factores exógenos que facilitaram a recaída ou recaídas”. A ideia do crime continuado, recordam autores alemães, desenvolveu-se como forma de evitar os rigores do princípio da acumulação e na base da humanização do sistema penal. Segundo o sistema de acumulação material o juiz deveria aplicar ao culpado tantas penas quantas as que correspondem aos crimes cometidos —quot crimina tot poena. As dificuldades surgem quando se trata de executar um tal sistema e isso foi intuído já nos começos do século 19: havia ladrões que tinham às costas dezenas de furtos, de forma que, 464 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. adicionando-se materialmente as penas de cada crime, chegava-se ao resultado risível de ter que executar para cima de duzentos anos de prisão, numa estranha progressão que conduzia a níveis de desmedida severidade que nada tinham em comum com as ideias generosas da ressocialização. A conversão da soma das diversas penas concorrentes numa pena conjunta, com limites que não podiam ser excedidos, foi um dos caminhos propostos para fugir aos rigores do concurso real. A especial acuidade do concurso real da mesma espécie e particularmente de furtos é sublinhada no âmbito do direito estatutário ( 35 ) "que mandava enforcar o autor de três desses crimes" (Prof. Eduardo Correia, A teoria do Concurso, p. 164), de forma que —diz-se— o crime continuado foi elaborado com base no favor rei, para permitir àqueles que tivessem recaído no terceiro furto escapassem à pena de morte (Paulo José da Costa Jr., p. 134). A economia de trabalho está igualmente na origem do crime continuado: se numa sucessão de crimes idênticos o réu é julgado e só depois se descobre que a série era ainda mais longa, o caso julgado impede que se conheça dessas outras condutas não incluídas na acusação, o que significa que processualmente se poupa aos operadores judiciários uma quantidade de tarefas árduas, inúteis e fastidiosas. Outra saída, que correspondia certamente às "necessidades da vida", foi a de tratar unitariamente as séries delituosas, sem violar as regras legais então vigentes. Mas como explicar aquela unidade "construída sobre uma pluralidade efectiva de crimes"? Como explicar a perda da autonomia de acções que no crime continuado significam, naturalmente, uma pluralidade? Para resolver o problema — escreve o Prof. Eduardo Correia (Direito Criminal II, p. 208) — "duas vias fundamentais de solução podem ser trilhadas: ou, a partir dos princípios gerais da teoria do crime, procurar deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado — e teremos então uma construção lógico-jurídica do conceito; ou atender antes à gravidade diminuída que uma tal situação revela em face do concurso real de infracções e procurar, assim, encontrar no menor grau 35 Os statuta foram “inventados” (cf. Martin Killias, Précis de droit pénal, 2ª ed., 2001, p. 4) pelas cidades italianas. Puniam os atentados à paz pública, incluindo certas infracções sexuais. 465 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de culpa do agente a chave do problema — intentando, desta forma, uma construção teleológica do conceito." O exemplo clássico em que a execução das diversas actividades aparece "facilitada" era o do adultério, com o que ele significava de tentações e de cedências. O exemplo do adultério da mulher cujo marido vai à guerra é oferecido por Welzel, para ilustrar uma situação de crime continuado. Também von Liszt se refere ao adultério como exemplo do delito continuado, "es decir, la realización interrumpida, y en veces reiterada, del mismo hecho delictivo; una pluralidad de actos hasta entonces no punibles, jurídicamente reunidos por su homogeneidad, que no sólo debe fundarse en el contenido del dolo que existe cada vez y en la tendencia contra el mismo bien jurídico, sino, ante todo, en la similitud del modo de comisión". O adultério ocorre "bajo el aprovechamiento de la misma ocasión o de la misma circunstancia permanente". Nesta visão das coisas, o segredo da conexão das actividades que formam o chamado crime continuado vai ancorar na considerável diminuição da culpa do agente que lhe anda ligada — e o fundamento desse menor grau de culpa deve ser encontrado no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. "Pelo que o pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito" (Prof. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso, p. 205 e ss.; Direito Criminal II, p. 209). O Código Penal português consagrou no artigo 30º, nº 2, a figura do crime continuado, na sequência dos ensinamentos do Prof. Eduardo Correia, expostos pela primeira vez num dos dois estudos — Unidade e Pluralidade de Infracções — que agora fazem parte do volume com o título A Teoria do Concurso em Direito Criminal. ( 36 ) Colocado 36 Em 1945 apareceu A teoria do Concurso em Direito Penal —Unidade e pluralidade de infracções; em 1948 foi publicada a Teoria do concurso em Direito Criminal — Caso julgado e poderes de cognição do juiz. Vd. notícia no BMJ-9-287. 466 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. sistematicamente no preceito cujo nº 1 trata do concurso de crimes, o crime continuado não fica envolvido, enquanto tal, nos problemas do concurso. O juiz, ao elaborar a sentença, não tem que fixar a pena de cada uma das condutas. Com o crime continuado só uma norma se mostra, por fim, violada: consequentemente, só se aplicará uma pena, seguindo-se a regra do artigo 79º, que manda punir o crime continuado com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação. Concluirá então a sentença: A é autor material de um crime continuado de furto previsto e punido nos artigos 30º, nº 2, 79º e 203º, nº 1, do Código Penal, pelo que o condeno na pena de sete meses de prisão. Trata-se, como repetidamente se acentuou, de "um só crime", não obstante a plúrima violação do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime (que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico), a que presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções). Esse repetido ataque deverá dirigir-se contra o mesmo bem jurídico, mas o nexo de continuação pode ainda afirmar-se quando o agente viola bens jurídicos fundamentalmente idênticos. Ao acentuar que se trata do "mesmo" bem jurídico, o preceito revela em primeira linha o seu carácter excludente, negando a continuação quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima. Se estiverem em causa bens de outra natureza —sem os elementos de pessoalidade que existem, por ex., no roubo— tanto faz uma vítima como várias, o número destas é indiferente: o crime continuado não será excluído pelo facto de as vítimas do furto ou da burla serem várias. A razão está em que os bens das pessoas não são equiparáveis a esses outros interesses — na verdade, não lhes são funcionalmente equivalentes: por ex., nos crimes patrimoniais, a quantidade do ilícito vai-se dissolvendo à medida que o agente renova o seu ataque e isso acontece mesmo quando o titular do direito afectado é diferente de qualquer outro anteriormente atingido, mas a lesão de bens jurídicos eminentemente pessoais de que são titulares várias pessoas não pode ser adicionada a um dano que já é total, como se fosse um simples alargamento quantitativo 467 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. da primeira infracção. Essa violação será sempre qualitativamente autónoma. Por isso mesmo, a linha divisória tem que passar pelas formas de ilícito que contêm elementos pessoais com esse peso — sendo o roubo, como já se disse, um desses crimes, o ladrão que subtrai algo usando da violência contra o detentor da coisa pratica dois crimes em concurso efectivo se logo a seguir, ou até na mesma altura, se apropria, pela mesma forma violenta, de coisa pertencente a outra pessoa. Com efeito, tem-se vindo a entender que a violência será causa do cometimento do roubo quando serviu de meio para a apropriação e que o número de crimes de roubo depende do número de pessoas que foram directamente alvo da violência usada como meio de conseguir a apropriação, de forma que, se assim não suceder, a violência caracterizará outra infracção que não o roubo (acórdãos do STJ de 14 de Abril de 1983, BMJ-326-422, e de 14 de Abril de 1999, BMJ-486-123). O crime continuado só poderá então existir se existir identidade da vítima. Sirva para ilustrar, no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, o acórdão do STJ de 12 de Março de 1998, no processo nº 1429/97, onde se decidiu que comete o crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, dos artigos 172º, nº 1 e 30º, nº 2, do Código Penal, o arguido que ao se aperceber da presença de uma menor de 10 anos de idade, a segue, a agarra, a deita no chão, começando a beijá-la na cara e na boca, tirando- lhe de seguida as calças e as cuecas, deitando-se em cima dela, encostando-lhe o pénis erecto às coxas e aí o esfregou até ejacular sobre a menor, sendo certo que nos quinze dias seguintes, o arguido voltou a encontrar a menor naquele local e, por duas vezes, reiterou os actos supra descrito. No caso do acórdão do STJ de 15 de Junho de 1955, BMJ-49-225, levantara-se a questão da prescrição de algumas condutas do padrasto que atentara de forma repetida contra o pudor da enteada. O Supremo entendeu que se tratava de crime continuado dessa natureza que é constituído pela pluralidade de acções praticadas, e embora revelem o mesmo desejo ou propósito, realizadas seguidamente, com violação do mesmo preceito legal, umas não absorvem as outras, e somente se atende à sua unidade para a punição, pelo que a prescrição de umas não envolve necessariamente a das restantes. A realização plúrima, atentos os indicados pressupostos, deverá ainda ser "executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente". Entre as várias actividades 468 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. não se pode deixar de fora um certo nexo de identidade, uma certa homogeneidade, pelo menos no que respeita aos aspectos temporais e espaciais, mas não é necessária a identidade do objecto do crime, por ex., do produto dos furtos. As repetidas actividades são aglutinadas numa única infracção na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente — circunstancialismo exógeno, de menor exigibilidade, a cujos termos já antes fizemos referência. Outra é a questão de saber se a exigência da execução "por forma essencialmente homogénea" representa um simples indicador da unidade do dolo. No aspecto subjectivo, bastará uma "linha psicológica continuada", a apontar para um dolo de continuação, que ocorre quando a nova resolução renova a anterior. Mas se assim se parte do princípio de que há "uma cadeia de resoluções", como a interpretação do artigo 30º parece inculcar, fica de fora do crime continuado o caso do médico que, por inadvertência, por falta de cuidado, em dias seguidos, vai injectando o seu doente com um medicamento deteriorado, afectando continuadamente a saúde deste. Com efeito, não se pode falar de "resolução criminosa" nos crimes negligentes (sobretudo em caso de negligência inconsciente) — "a punição nos quadros do crime continuado só tem sentido, por força do seu próprio fundamento, quando existam várias resoluções criminosas cuja censurabilidade é cada vez menor por força de um particular condicionalismo exterior ao agente" (nestes termos, Pedro Caeiro/Cláudia Santos, in RPCC 6 (1996), p. 141). O Prof. Eduardo Correia põe em evidência algumas das hipóteses mais prováveis de crime continuado (por ex., em Direito Criminal II, p. 210; também em A Teoria do Concurso, p. 246 e ss.). Será o caso de, através da primeira actividade criminosa, se ter criado uma certa relação ou um certo acordo entre os sujeitos, dando-se o ex. do adultério, que na época se punia em determinadas circunstâncias. Ou o facto de se voltar a verificar uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa (como na descoberta de uma porta falsa que se aproveita várias vezes para furtar objectos do espaço a que por ela se acede). Ou a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa (o gatuno conseguiu a chave 469 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. do cofre e a fechadura não foi mudada depois do primeiro furto). Por último, o agente, depois de executar a resolução criminosa, verifica que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito de actividade (o ladrão que só queria a pasta que se encontrava na gaveta leva também o relógio de ouro que o dono ali guardara). Bem interessante nos parece o caso a seguir. CASO nº 46-A. Artigo 30º, nº 2; nexo de continuação; aspecto subjectivo do nexo de continuação. A e B entram por arrombamento numa moradia cujos donos estão ausentes, de férias, no estrangeiro. Tanto procuram que acabam por descobrir o sítio do cofre, implantado numa das paredes da sala, mas não conseguem abri-lo com as ferramentas que transportam. Antes de abandonarem a moradia pela porta das traseiras, aproveitam e enchem uma mala de viagem com roupas e jóias. Logo ali, porém, A e B decidem voltar na manhã seguinte e entrar pela mesma porta, para então abrirem o cofre. E acautelam-se, levando com eles a chave da porta, que se encontra ali à mão. No dia seguinte, conforme tinham planeado, regressam à moradia. Mas também não foi desta vez que conseguiram abrir o cofre. A e B contentam-se com mais umas roupas com que enchem outra mala. Para a afirmação do crime continuado: 1º Deve ser plúrima a realização do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico. Se tiver havido um só desígnio criminoso, o crime há-de ser necessariamente único, já que subsumível a um mesmo tipo criminal, ou seja, ofensivo de idêntico bem jurídico. Ao invés, se o comportamento do réu revelar uma pluralidade de resoluções poder-se-ão pôr — e só então — as hipóteses de pluralidade de infracções ou de crime continuado. Tendo havido mais do que uma resolução, a regra será o concurso real de crimes, constituindo a continuação criminosa uma excepção a aceitar quando a culpa se mostre “consideravelmente diminuída, mercê de factores exógenos que facilitaram a recaída ou recaídas”. Não se trata de uma resolução mas de várias. Pode existir relação de continuação, por ex., quando as actividades se realizam em parte como tentativa e em parte na forma consumada ou entre o furto simples e o furto agravado, mas não entre o furto e a burla. Tratando-se de bens eminentemente pessoais (vida, integridade física, liberdade, honra), exclui-se igualmente a forma continuada sempre que sejam afectados diferentes titulares: 470 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ex., a morte de várias pessoas (afirmação que, por desnecessária e resultar da doutrina, não vem expressa na lei). Deste modo, os casos mais frequentes de continuação criminosa acontecem nos crimes contra a propriedade e contra o património, que não têm características pessoais e por isso podem incluir a ofensa, por ex., ao património de mais do que uma pessoa. 2º A realização criminosa deve ser executada por forma essencialmente homogénea. Entende-se normalmente que, para este efeito, não há identidade entre a autoria e a participação, i. é, se num caso o agente actua no papel principal e no outro como simples auxiliar ou cúmplice. A homogeneidade das diversas formas de comissão só acontece em regra quando se preenche o mesmo tipo de ilícito, incluindo-se porém as correspondentes formas qualificadas. Por outro lado, deve poder reconhecer-se uma certa conexão temporal e espacial entre as diversas actividades criminosas. Por ex., o gatuno aproveitou duas ou três noites seguidas para se abastecer num mesmo armazém. 3º A realização criminosa deve ser executada no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente e culpa do agente. Na Alemanha ainda não terminou a controvérsia em torno dos elementos subjectivos da continuação criminosa. Subjectivamente, exige-se também a homogeneidade do dolo do agente. Discute-se no entanto se se trata de um dolo de conjunto, abrangendo o dolo, ab initio, a totalidade dos actos individuais que integram o crime continuado e abarcando-a nas suas manifestações essenciais de tempo, lugar, pessoa lesada e forma de comissão; ou se se trata de um dolo de continuação, aquele que existe quando a nova resolução renova a anterior, como que numa "linha de continuidade psíquica" (Stree, in S/S, Strafgesetzbuch, 25ª ed., p. 683). No caso nº 46-A, no momento em que o facto se inicia o dolo dos agentes não se manifesta como dolo conjunto (ou dolo global) — só depois, quando A e B abandonam a moradia e decidem voltar, portanto, já na fase da sua realização, é que a resolução se renova; e como a nova resolução está para a anterior como que numa linha ininterrupta, nenhuma razão se mostra válida para negar o crime continuado. A maioria dos autores contenta-se com este dolo de continuação, bastando para a homogeneidade do dolo que qualquer resolução posterior de cometer o facto se apresente na continuação da anterior. Mas já não seria assim se o gatuno se bastasse com a decisão genérica de aproveitar as 471 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. oportunidades que lhe fossem aparecendo. A jurisprudência alemã tem vindo a entender, já desde o Tribunal do Reich, que quem toma a resolução genérica de cometer quantas burlas de uma determinada classe lhe forem possíveis não actua na forma continuada — não é suficiente a mera "decisão genérica" de realizar crimes de determinada natureza na oportunidade conveniente, não bastando o plano de efectuar furtos "cuja execução seja ainda incerta quanto ao modo, tempo e lugar". Uma grande separação temporal entre os diversos crimes e a falta de diminuição da culpa apreciada no “dolo global”, são factores que podem afastar a continuação criminosa. Acórdão do STJ de 24 de Maio de 2000, CJ 2000, tomo II, p. 202. A nossa jurisprudência, para a afirmação do crime continuado, exige uma proximidade temporal entre as sucessivas condutas, bem como a manutenção da mesma situação externa, apta a proporcionar as subsequentes repetições e a sugerir a menor censurabilidade do agente (cf. o acórdão do STJ de 8 de Fevereiro de 1995, BMJ-444- 178). De forma que não constitui crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime se não forem as circunstâncias exteriores que levaram o agente a um repetido sucumbir, mas sim o desígnio inicialmente formado de, através de actos sucessivos, defraudar o ofendido. Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 4 de Maio de 1983, BMJ- 327-447. "É justamente em homenagem a uma ideia de menor exigibilidade que o crime continuado ganha solidez dogmática, mesmo que só se admita, no plano subjectivo, uma "linha psicológica continuada" (Faria Costa). O acórdão do STJ de 8 de Fevereiro, antes citado, rejeita o crime continuado naquela situação em que A, B e C combinaram apoderar-se, em conjunto, de quantias entregues à guarda de F, de que o primeiro era empregado há cerca de 10 anos. Perante a matéria provada, aceitou-se que podia ter havido unidade de resolução, mas o mesmo não aconteceu com a exigível proximidade temporal entre as concretas condutas em que se traduziu a execução daquele propósito e ainda com o requisito legal da mesma situação exterior, a constituir solicitação para a prática continuada dos crimes, em termos de poder concluir-se, razoavelmente, que diminuira consideravelmente a sua culpa (palavras do acórdão, cuja leitura integral se recomenda, e onde se observa que o advérbio consideravelmente tem uma carga normativa que não pode ignorar-se). A ideia de que a execução se operou num quadro de solicitação que dispensaria uma revisão ou reformulação do projecto inicialmente gizado por A, B e C foi contrariada pela evidente diferenciação 472 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. dos locais dos crimes, e das pessoas que ali se encontravam e a quem os executores materiais tinham de dirigir-se para obter a entrega dos valores pretendidos. No crime continuado, às diversas condutas correspondem diversas resoluções. "Simplesmente, estas resoluções não são entre si autónomas, mas, pelo contrário, estão numa dependência tal que nunca se pode considerar uma delas sem necessariamente ter de se tomar em conta a anterior" (Eduardo Correia, p. 277; ainda, Beleza dos Santos, p. 17 e ss.). Ou, como escreve o Prof. Figueiredo Dias (Ónus de alegar e de provar em processo penal?, RLJ, ano 105º, p. 125 e ss.): "Quando de autêntico crime continuado se trate, costuma apontar-se com boa razão, entre as notas constitutivas do conceito teleologicamente construído, a da pluralidade de resoluções: só aí surge o verdadeiro problema da continuação, que outro não é senão o de obstar à pluralidade de infracções que aquela pluralidade de resoluções indiciaria, lançando a hipótese, apesar disto, para o âmbito da unidade de infracção. Por outro lado — e isto é o mais importante — a aglutinação das diversas actividades em uma só infracção terá o seu irrenunciável fundamento em uma considerável diminuição da culpa do agente e de nenhum modo em uma intensificação do seu dolo." O crime continuado caracteriza-se por duas ideias: a primeira é a de que no crime continuado há pluralidade de desígnios, de tal forma que cada crime que o integra caracteriza-se por ter todos os elementos inerentes do facto típico e que são essenciais para a sua definição como crime autónomo e a segunda é a de que a punição do crime continuado, por se verificar uma diminuição da culpa, envolve em si uma atenuação correspondente, pelo menos relativamente à situação derivada do concurso real (ac. do STJ referido na anotação, in BMJ-478-95). Como já se disse, os actos que fazem parte da continuação constituem um único crime, ficando o tribunal dispensado de encontrar a pena parcelar de cada um deles. De qualquer forma, a sentença tem que enumerar esses diversos actos. O limite temporal da actividade do agente tem importância para a prescrição (artigo 119º, nºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal) e para a aplicação da amnistia. No âmbito processual, os efeitos traduzem-se em que "o crime continuado constituirá um único "objecto processual". Daqui resultará a consequência de que o caso julgado se forma sobre toda a relação de continuação, mesmo sobre aqueles factos que não tenham sido levados à cognição do tribunal ou que este não tenha efectivamente conhecido" (G. Stratenwerth, Derecho Penal, Parte general, I, p. 356; Prof. Figueiredo Dias, Sumários, p. 130). 473 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. II. Unidade e pluralidade de infracções; concorrência, no mesmo sujeito, de várias práticas delituosas. Concurso aparente; concurso efectivo; artigo 30º, nº 1, do Código Penal. CASO nº 46: A encontra-se desempregado há mais de um ano e sem dinheiro. A última esperança de A é um tio, de quem é o único herdeiro, mas que continua de boa saúde e a gerir os seus negócios com sucesso crescente. O tio acha que já fez tudo por A. Diz aos amigos que o sobrinho não tem emenda e recusa-se a dar-lhe mais dinheiro. A deambula pelas ruas da cidade, furioso com o mundo. Tem em mente até livrar-se do tio, para lhe ficar com a herança. Entretanto, para "descontrair", apanha uma pedra e dum lugar elevado, visando um autocarro de passageiros que por ali circulava, atira-a com ganas de fazer estragos, sejam eles quais forem. Com fragor, a pedra vai estilhaçar um dos vidros do autocarro e atinge um dos passageiros na cara, que começa a sangrar abundantemente. Transportado de imediato ao hospital mais próximo, o ferido veio a ficar irremediavelmente cego do olho esquerdo, circunstância que A representou como possível quando largou a pedra. Ainda que perseguido, A consegue fugir. No dia seguinte, em desespero, entra numa ourivesaria de pistola na mão e a cara tapada com uma meia de senhora. Grita, como viu fazer nos filmes: "isto é um assalto, venha para cá todo o dinheiro!". O proprietário da ourivesaria, persuadido com o inesperado da situação e a exibição da pistola, dá-lhe todo o dinheiro de que dispõe: 50 contos em notas; o empregado, também aterrorizado e a ver as coisas mal paradas, a um gesto enérgico e significativo do assaltante, entrega-lhe um valioso relógio de pulso, que transporta consigo e lhe foi dado em dia de aniversário. Duas horas mais tarde, com medo de vir a ser reconhecido, por ser portador do relógio, A rebenta-o a golpes de martelo e lança o que dele sobra para o rio que ali passa perto. Na semana seguinte toma a grande decisão da sua vida: levando uma granada de mão comprada a um antigo soldado, entra no escritório do tio, quando tudo está sossegado por ser hora de almoço, e lança-a, depois de se ter certificado de que pairava no ar o cheiro dos charutos preferidos do tio. Na explosão vem a morrer o tio e a secretária deste, que ficara para analisar com o patrão a correspondência recebida, como aliás costumava acontecer e era do conhecimento de A. 1. Como já anteriormente se disse, os problemas de que agora tratamos podem analisar- se fundamentalmente nas seguintes combinações, postas a cargo dum único sujeito: i) Uma única conduta preenche um único tipo de crime: A dá um (ou vários) murro(s) ou vários murros e pontapés em B — um crime do artigo 143º. ii) Várias condutas preenchem um único tipo de crime: A subtrai a carteira de B apontando-lhe para tanto uma pistola, com que o ameaça — um crime do artigo 210º, nº 1, ficando afastada a aplicação das normas dos artigos 203º, nº 1, e 153º, nº 1. 474 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. iii) Uma única conduta preenche várias vezes o mesmo tipo de crime: A faz deflagrar uma bomba no quarto de hotel onde sabe que pernoitam B e C, que quer matar — 2 crimes do artigo 131º. iv) Várias condutas preenchem vários tipos de crime: A atinge mortalmente B, que quer matar, e no dia seguinte atinge C de raspão, querendo apenas provocar-lhe um arranhão numa perna — um crime do artigo 131º, um crime do artigo 143º, nº 1. v) Várias condutas preenchem vários tipos de crime, mas só uma das normas violadas se aplica: A penetra por arrombamento na habitação de B e leva todas as jóias do cofre: um crime de furto qualificado do artigo 204º, nº 2, e), ficando afastada a aplicação das normas dos artigos 204º, nº 1, f), 190º e 212º. Recapitulando. O número de crimes determina-se, segundo os critérios do artigo 30º, nº 1: pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos [pela conduta do agente], ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Os problemas do concurso têm a ver com a pluralidade de crimes, que não existe nas duas primeiras hipóteses antes apresentadas. O artigo 30º, nº 1, contempla o concurso efectivo (real ou ideal), que é um concurso verdadeiro. O chamado concurso de normas intervém quando das diversas normas aparentemente aplicáveis só uma delas acaba por ser aplicada na situação concreta, ficando excluída a aplicação das restantes, como pode ser, de algum modo, a segunda hipótese acima apresentada, e é seguramente a última. 2. Findo um processo, pode na verdade acontecer que o comportamento do arguido se analise numa única conduta —numa unidade de facto— e preencha um único tipo penal, por ex., o agente, com intenção de apropriação, deitou a mão a um livro que sabia alheio, o que integra um crime de furto (artigo 203º, nº 1, do Código Penal). Mas pode acontecer também que uma mesma unidade de facto realize vários tipos penais, dois, por exemplo. E então haverá que distinguir: a) Uma das disposições abstractamente aplicáveis faz recuar a outra, por aplicação das regras da especialidade, da subsidiaridade ou da consunção (concurso aparente de crimes, impróprio ou concurso de normas). Neste caso, em que a uma unidade de facto são aplicáveis várias normas, só uma delas virá a ser aplicada, em razão dos indicados 475 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. critérios. O arguido será punido unicamente pela norma que não for afastada. Nesta hipótese, em que só uma das normas se aplica, esta abrange "o âmbito e o sentido de protecção da outra norma" (Pedrosa Machado). Exemplo: A, para se divertir e divertir os amigos, lança várias pedras na direcção de um autocarro que naquele momento passa na auto-estrada, divertindo-o até a ideia de atingir e mandar para o hospital qualquer dos passageiros que possa atingir, o que vem a acontecer — as normas aplicáveis são a do artigo 293º (lançamento de projéctil contra veículo) e a do artigo 143º (ofensa à integridade física), mas só esta última acaba por ser aplicada. b) Não sendo caso de concurso aparente, à situação concreta aplicam-se as duas normas, por ambas se encontrarem em relação de concurso efectivo (verdadeiro ou genuíno, como também se lhe chama), na forma de concurso ideal, homogéneo ou heterogéneo. Exemplo de concurso efectivo ideal homogéneo: A faz deflagrar uma bomba que vai matar os dois inimigos que A quer ver mortos com a explosão do engenho. Exemplo de concurso efectivo ideal heterogéneo: A lança as pedras contra o autocarro que passa na auto-estrada sabendo que vai produzir estragos na viatura e ferimentos no motorista, como vem a acontecer, e querendo isso mesmo. E é de concurso efectivo que então se trata, pois só há concurso de crimes quando ele for efectivo (veja-se no artigo 30º, nº 1, o advérbio "efectivamente"). Cairemos nesta hipótese — de concurso ideal efectivo, em que de um mesmo agente, cuja conduta se analisa numa unidade de facto, se pode dizer que cometeu vários crimes — sempre que os interesses jurídicos protegidos pelas diferentes normas "sejam de tal modo distintos entre si que a aplicação de uma dessas normas não conseguiria garantir a totalidade da censura objectiva que a esse facto deve ser dirigida pela ordem jurídica" (Pedrosa Machado). 3. Se à pluralidade de actos corresponder uma pluralidade de tipos penais violados, dois, por ex., então: a) Um dos crimes é de mera garantia ou aproveitamento (aqueles que são dominados por uma vontade de garantir ou aproveitar a impunidade de outros crimes) e deve recuar perante o respectivo crime de fim lucrativo ou de apropriação que constitui o verdadeiro cerne da conduta criminosa. Não se aplicará então a norma secundária, que é um facto posterior não punível ou um acto posterior co-punido. 476 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Exemplo: A deita ao rio a bicicleta que furtara uns dias antes, por se ver assediado pela polícia que dele desconfia: ao crime de furto segue-se a destruição da coisa apropriada (dano). b) O agente será punido em concurso efectivo pelos dois crimes realizados, na forma de concurso real. Pode suceder que os crimes cometidos sejam iguais entre si (por ex., dois roubos), ou diferentes (por ex., um roubo e uma violação). No primeiro caso haverá concurso real homogéneo, no segundo o concurso real será heterogéneo. Mas é outra vez o concurso efectivo, porque o mesmo agente cometeu vários crimes e vai ser punido por esses crimes. Exemplo: A, voluntariamente, mata B de manhã e à tarde atinge C a tiro, sem lhe provocar a morte. No caso nº 46, tendo presente o que dispõe o artigo 30º, nº 1, do Código Penal (o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos [pela conduta do agente], ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente), poderemos começar por enquadrar a conduta de A pela seguinte forma: i) O que aconteceu com o autocarro: artigos 293º (lançamento de projéctil contra veículo), 212º, nº 1 (dano), 213º, nº 1, c) (dano qualificado pela destinação da coisa), 143º (ofensa à integridade física simples), 144º (ofensa à integridade física grave), 18º e 145º (agravação pelo resultado); ii) O que aconteceu na ourivesaria: artigos 153º, nº 1 (ameaça), 154º, nº 1 (coacção), 203º, nº 1 (furto), 210º, nºs 1 e 2, b), e 204º, nº 2, f) (roubo agravado), 212º, nº 1 (dano); iii) O que aconteceu no escritório: artigos 275º, nºs 1 e 3 (armas), 144º (ofensa à integridade física grave), 131º (homicídio), 132º, nºs 1 e 2, c) (homicídio qualificado). Quais os crimes por que A deverá ser sancionado? A unidade ou pluralidade de tipos violados pela conduta é o critério acolhido na lei para distinguir entre a unidade e a pluralidade de crimes. Mas não basta o elemento da pluralidade de bens jurídicos violados — exige-se a pluralidade de juízos de censura, como anteriormente se viu: pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas. O número de juízos de censura determina-se pelo número de decisões de vontade do agente: tantas manifestações de vontade, tantos juízos de censura, tantos crimes que correspondem a outros tantos bens jurídicos violados. 477 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Questão de método: Nos casos práticos, a apreciação do concurso aparente precede sempre a do concurso efectivo. No caso de se mostrar violado mais do que um tipo de crime, importa começar por perguntar se porventura nos encontramos perante um concurso de normas ou concurso aparente de crimes, o qual se alcança pela negativa, na medida em que o artigo 30º, nº 1, como já se viu, exige a "efectiva" violação de várias normas incriminadoras para que de verifique o verdadeiro concurso de crimes. Só quando se concluir que uma das disposições abstractamente aplicáveis não faz recuar a outra ou outras é que surge a questão da aplicação de todas ao caso concreto, por todas se encontrarem em relação de concurso "efectivo". Trata-se, no fundo, de distinguir entre as normas aplicáveis (várias) e a norma ou normas aplicadas à situação concreta. Os tribunais portugueses, já o dissemos, seguem normalmente o critério proposto pelo Prof. Eduardo Correia da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas (de resoluções de cometimento dos crimes, em caso de dolo; de resoluções donde derivaram as violações do dever de cuidado, em caso de negligência). Com um só acto, o agente pode ofender vários interesses jurídicos ou repetidamente o mesmo interesse jurídico. Se a tais ofensas corresponderem outros tantos juízos de censura, verifica-se o concurso efectivo de crimes - real ou ideal. Portanto, na definição de concurso efectivo de crimes, não basta o elemento da pluralidade de bens jurídicos violados; exige-se a pluralidade de juízos de censura. Ora, o número de juízos de censura determina-se pelo número de decisões de vontade do agente: uma só resolução, um só acto de vontade, é insusceptível de provocar vários juízos de censura sem desrespeito do princípio ne bis in idem. Por isso, no concurso ideal, sendo a acção exterior uma só, a manifestação da vontade do agente, quer sob a forma de intenção quer de negligência, tem de ser plúrima: tantas manifestações de vontade, tantos juízos de censura, tantos crimes. No caso do autocarro, o atirar a pedra corresponde à unidade factual, corresponde a uma só conduta, mas o artigo 293º só se aplica ao arremesso de projéctil contra veículo "se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal". Se o projéctil, ao atingir o veículo, causar danos ou ofensa à integridade física, este artigo 293º recua, deixa de se aplicar por força da própria lei (subsidiaridade expressa): o concurso —concurso 478 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. de normas— é meramente aparente. As normas aplicadas são as que punem as ofensas corporais e o dano: concurso efectivo, na forma de concurso ideal heterogéneo — a acção é só uma, mas é plúrima a manifestação de vontade de A, ao atirar a pedra "com ganas de fazer estragos, quaisquer que eles fossem", e representando, inclusivamente, o resultado irremediável que acabou por se verificar — é a vontade de provocar danos no autocarro e a de atingir qualquer passageiro, ainda que do texto não decorra a intenção homicida. Em resumo: uma acção, duas manifestações de vontade, dois juízos de censura, dois crimes: um de dano, outro de ofensa à integridade física. Veja-se, ademais, o artigo 291º, nº 1, alínea d), se se concluir não só que se tratou de acto do qual pôde resultar desastre mas que igualmente que se criou perigo para a vida ou para a integridade física, por exemplo, de qualquer outro passageiro. No caso da ourivesaria: há vários actos de execução (o de ameaçar duas pessoas com a arma, o de subtrair o dinheiro a um e o relógio ao outro...), mas o critério continua a ser o da unidade ou pluralidade de tipos violados. A subtraiu tanto o dinheiro como o relógio, utilizando um dos meios de coacção previstos na norma incriminadora do roubo (artigo 210, nº 1), assim neutralizando qualquer reacção eficaz do proprietário e do empregado. Ora, o roubo é um crime complexo, na medida em que o seu autor viola não só um bem jurídico de carácter patrimonial, mas também um bem jurídico eminentemente pessoal, na parte em que se põe em causa a liberdade, integridade física ou até a própria vida da pessoa do ofendido. O roubo, embora se apresente juridicamente uno, integra na sua estrutura vários factos que podem constituir, em si mesmos, outros crimes, conjugando a norma, intimamente, a defesa da propriedade e a liberdade da pessoa. Essa estrutura complexa faz recuar (novamente a fórmula do concurso de normas) a aplicação dessas outras normas. O agente será punido pelo crime de roubo —que decidiu cometer—, e que é mais grave do que os crimes que lhe serviram de meio. Todavia, ao agente são imputáveis tantos crimes dessa espécie quantas as pessoas ofendidas, pelo que será sempre necessário, para a determinação do número de crimes de roubo efectivamente praticados, determinar-se previamente se, e em que medida, o crime contra as pessoas foi meio para atingir o crime-fim (furto). A violência exercida por A, mediante ameaça com a pistola sobre a pessoa do dono da ourivesaria e sobre a pessoa do empregado foi crime- meio em relação ao crime-fim (furto), podendo concluir-se que A praticou, em concurso 479 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. efectivo, dois crimes de roubo, não sendo subsumível à figura do crime continuado a comissão de diversos crimes de roubo em que são violados não só bens patrimoniais como bens eminentemente pessoais e em que são ofendidas pessoas distintas. Recapitulando. O crime continuado. Medida da pena. Natureza do bem jurídico. A figura do crime continuado nasce de uma pluralidade de resoluções criminosas que individualmente contempladas podem ser catalogadas como infracções autónomas mas que o artigo 30º, nº 2, encara como um único crime. A continuação criminosa é aí tratada como uma unidade de infracções e tem o regime sancionatório (mais favorável do que a situação do concurso real que doutro modo lhe corresponderia) do artigo 79º. O crime continuado exclui-se quando se trata de bens eminentemente pessoais, estando em causa mais do que uma vítima. Esta é outra regra que o intérprete deverá ter sempre presente. A figura do crime continuado representa uma excepção ao princípio segundo o qual a pluralidade de tipos violados determina a pluralidade de crimes. Relativamente a bens eminentemente pessoais, a situação de continuação só se verifica em casos excepcionais. A mais disso, A inutilizou o relógio, estragando-o e fazendo-o desaparecer nas águas do rio. Alguns autores vêem nisso uma das expressões da consunção: o dano do proprietário já foi ocasionado com a apropriação bem sucedida e não se viola um novo bem jurídico com o facto posterior. Assim sendo, trata-se de outra manifestação de concurso aparente. A será punido por dois crimes de roubo, em concurso efectivo. Quanto ao que aconteceu no escritório, a detonação da granada bastou para matar duas pessoas. Estamos novamente perante a unidade do facto. As vítimas ficaram certamente feridas com a detonação da granada, mas a ofensa à integridade física representa, relativamente ao homicídio, um estádio intermédio: de novo o concurso aparente. A norma que pune a ofensa corporal é afastada pelo desenvolvimento posterior da lesão da vida, submetendo-se a situação à categoria da subsidiaridade. Mas se para além disso se puder concluir que o dolo homicida de A abarcou também a pessoa da secretária, ao menos como dolo eventual, então será caso de se afirmar outra vez o concurso efectivo (concurso efectivo ideal), pois são dois os homicídios, na forma de concurso ideal homogéneo. Em resumo. Se o comportamento do agente viola vários tipos de crime, podem distinguir-se duas hipóteses: Na primeira, só se aplica um dos tipos violados, ficando excluída a aplicação dos restantes. A concorrência é então apenas aparente, imprópria ou 480 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. impura: ao caso concreto aplica-se a norma primária e a correspondente sanção, ficando excluída a outra ou outras disposições violadas. Ainda assim, chama-se-lhe correntemente concurso legal ou concurso de normas. O artigo 30º, nº 1, não abrange esta forma de "concurso", na medida em que ali se avalia "o número de crimes" pelo número de tipos efectivamente cometidos, e "com esta noção de efectividade, torna-se claro que fica ressalvado o caso do concurso aparente" (Faria Costa). Na segunda hipótese, as várias disposições que no caso se mostram violadas devem ser aplicadas de forma paralela ou concorrente. É a situação de concurso próprio ou puro, a que correntemente se chama concurso efectivo, genuíno ou verdadeiro, previsto no artigo 30º, nº 1. Equiparam-se aí os casos de concurso ideal aos de concurso real. Por último, deve ter-se sempre presente a principal questão de método: mostrando-se violado mais do que um tipo de crime, importa começar por perguntar se nos encontramos perante um concurso de normas. Só quando se concluir que uma das disposições abstractamente aplicáveis não faz recuar a outra ou outras é que surge a questão da aplicação de todas ao caso concreto, por todas se encontrarem em relação de concurso efectivo. Outros exemplos de concurso efectivo: i) Haverá concurso efectivo entre o homicídio negligente (artigo 137º) e a omissão de auxílio (artigo 200º): ii) Haverá concurso efectivo quando a duração da privação de movimentos (artigo 158º: sequestro) ultrapassar o objectivo da subtracção com violência sobre a pessoa (artigo 210º: roubo); iii) Haverá concurso efectivo quando a duração da privação de movimentos (artigo 158º: sequestro/rapto) for desproporcionada ao objectivo da violação (artigo 164º: violação). Por exemplo, comete um crime de sequestro o arguido que aprisionou a ofendida na sua própria casa, durante cerca de uma hora, fechando-a à chave e impedindo-a, contra a sua vontade, de sair (ac. do STJ de 21 de Junho de 1995, BMJ-448-152). E comete um crime de rapto o arguido que, sem conhecer a ofendida, de 11 anos, a leva no seu automóvel, com a promessa de a levar ao local que ela desejava, e, no percurso para uma praia, não obstante os protestos e choros da ofendida, a retém dentro do veículo durante hora e meia, e, para satisfazer as suas paixões lascivas (...) (acórdão do STJ de 30 de Abril de 1997, CJ, V (1997), p. 189; iv) O artigo 143º (ofensa à integridade física simples) é norma subsidiária relativamente à norma do artigo 164º (violação) mas apenas na medida em que o uso da violência física não seja desproporcionado ao objectivo da violação. Se a valoração da ofensa corporal como meio utilizado de execução do crime de violação esgotar a sua apreciação jurídica, haverá somente o crime de violação, ac. do STJ de 8 de Maio de 1997, BMJ-467-275. Se ultrapassar a medida já considerada na punição da violação, haverá concurso efectivo entre os dois crimes; 481 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. v) Haverá pluralidade de infracções se, a par da violação de domicílio, subsistirem outras circunstâncias qualificativas do furto. Assim, verifica-se um concurso real de crimes entre o crime de furto qualificado do artigo 297º, nº 2, h), do Código Penal de 1982, e o crime de introdução em casa alheia do artigo 176º, nº 2, do mesmo Código, pois que violam interesses ou valores distintos, protegidos pelas citadas normas incriminadoras — o património e a reserva da vida privada (artigo 30º, nº 1, do Código Penal). E não se dá a consunção da introdução em casa alheia pelo furto, em virtude daquela constituir um facto que, no caso concreto, não faz parte integrante do crime de furto, que já é qualificado por outra circunstância (duas pessoas): acórdão do STJ de 1 de Abril de 1987, BMJ-366-256. Cf., no mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 11 de Maio de 1983, BMJ-327-427; de 10 de Outubro de 1984, BMJ-340-230; e de 25 de Junho de 1986, BMJ-358-292. No Código Penal de 1982 era punido com prisão de 1 a 10 anos quem cometesse o furto com o concurso de 2 ou mais pessoas (alínea h) do nº 2 do artigo 297º. Na vigência do Código Penal de 1886, pronunciando-se pelo concurso de infracções, cf. Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal II, p. 366. vi) A ratio do art. 200º é a preservação dos bens jurídicos vida, integridade física e liberdade substanciais, mediante a imposição da prática da acção adequada a neutralizar a respectiva situação de perigo. Daqui impor-se a conclusão de que haverá um concurso efectivo de crimes de omissão de auxílio, quando estiverem várias pessoas em situação de perigo para um dos bens jurídicos tutelados pelo art. 200º ( 37 ) vii) O acórdão do STJ de 19 de Fevereiro de 1992, BMJ-414-73, fixou jurisprudência no sentido de resolver segundo as regras do concurso efectivo os casos em que o comportamento realiza as previsões da falsificação e da da burla — “são diversos e autónomos, entre si, o bem jurídico violado pela burla e o bem jurídico protegido pela falsificação (...), ou sejam, respectivamente, o património do burlado e a fé pública dos documentos necessária à normalização das relações sociais” ( 38 ). 37 Assim, Prof. Taipa de Carvalho, Conimbricense, parte especial, I, p. 862. Cf., também, por ex., Molina Fernández, in Bajo Fernández e outros, Compendio de Derecho Penal (Parte Especial), vol. II, p. 176: "sendo várias as pessoas deixadas ao desamparo estaremos perante um concurso de crimes, o qual será ideal se o socorro contemplar uma única actuação do omitente e real se cada pessoa requer uma actuação própria. Do mesmo modo, parte da jurisprudência entende que se verificam dois crimes, em concurso real, quando o arguido abandona criminosamente duas pessoas sinistradas, uma vez que a vida humana e a integridade física das pessoas aí protegidas são bens eminentemente pessoais (acórdão do STJ de 28 de Abril de 1994, cit. por Simas Santos — Leal Henriques, Jurisprudência Penal, p. 113). Mas a justificação está longe de poder convencer. 38 Cf., a propósito, Miguel Pedrosa Machado, Nótula sobre a relação de concurso ideal entre burla e falsificação, Direito e Justiça, vol. IX (1995), t. 1, p. 251. Valle Muñiz, in El delito de estafa, p. 110, cita as palavras de Pacheco, El Código Penal concordado y comentado, Madrid, 1881, tomo III, p. 350: "é muito comum que para preparar a burla se cometam outros delitos — especialmente falsificações — mas neste caso estas deverão ser castigadas com as penas correspondentes. Helena Moniz, Conimbricense, 482 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. viii) No crime preterintencional do artº 145º, nº 1, do Código Penal, o crime base, só por si já punível, é doloso, e o resultado é imputado a título de negligência, do que resulta uma punição substancialmente mais grave, em atenção à especial perigosidade inerente à acção praticada que conduziu àquele resultado. Esta punição mais grave não obsta, porém, a que o agente do respectivo crime cometa também em concurso real o crime de omissão do dever de auxílio (acórdão do STJ de 7 de Março de 1990); ix) No que respeita à questão do concurso entre o crime de incêndio (artigo 272º) e o de dano (artigo 212º), já se defendeu, no Supremo, a tese da unidade criminosa (concurso aparente): cf. o acórdão de 9 de Fevereiro de 1983, BMJ-324-432, onde se concluiu que visando ambos (incêndio e dano) a protecção do mesmo interesse jurídico, aquele, mais fortemente sancionador, exclui este. Do mesmo modo, * comete um só crime, o do artº 253º, nº 1, o réu que lança voluntariamente fogo ao compartimento de um prédio urbano, habitado por outros inquilinos, e não também o crime de dano, por ser aquele preceito o que melhor protecção confere ao interesse jurídico violado (acórdão do STJ de 10 de Julho de 1984, BMJ- 339-251). Porém, no ac. do STJ de 19 de Maio de 1993, BMJ-427-256, parte-se da natureza de crime de perigo concreto para vários bens jurídicos do crime de incêndio (na altura o do artigo 253º) para se concluir pelo concurso efectivo, se os bens danificados não foram os únicos bens postos em perigo; parte especial II, p. 690, distingue conforme haja ou não unidade de resolução criminosa: se o agente falsifica para burlar será caso de concurso aparente; se as resoluções forem autónomas (uma de falsificar e uma posterior de burlar, por acaso utilizando o anterior documento falsificado) será caso de concurso real. A jurisprudência portuguesa anterior ao "assento" de 1992 aparece dividida; aplicando apenas a norma que incrimina a burla, sustentando a existência de concurso aparente, o acórdão do STJ de 24 de Fevereiro de 1988, BMJ-387-222; no domínio do Código Penal de 1886, veja-se, entre outros, o acórdão do STJ de 8 de Junho de 1955, BMJ-49-200, com o entendimento de que a falsidade não tem punição autónoma (concurso aparente), pois o falso documento, no seu todo, foi o meio fraudulento de que o réu se serviu para convencer o assistente da existência de um projecto real, o que constituiu um crime de burla. Posição semelhante foi retomada nos acórdãos do STJ de 3 de Dezembro de 1998, processo nº 728/98, e de 13 de Maio de 1999, BMJ-487-216, posteriores, portanto, à revisão de 1995 (Relator, Cons. Sá Nogueira, com votos de vencido): porque o uso de artifício ou meio fraudulento exigido pela figura criminal da burla, compreende a prática de uma falsificação — que em si mesma traduz o recurso a um meio fraudulento — pese embora a redacção do art.º 217, n.º 1, do Código actual, ser idêntica à do correspondente artigo do Código de 1982, deve regressar-se ao entendimento de que o crime de burla consome o crime de falsificação, quando cometido através desta. Finalmente, o “Assento” nº 8/2000, de 4 de Maio de 2000, publicado no DR., I-A de 23 de Maio de 2000, veio confirmar o entendimento de que no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes. Cf., mais recentemente, o acórdão do STJ de 27 de Junho de 2002, CJ 2002, tomo II, p. 231. 483 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. x) O crime de uso de arma proibida (artigo 260º do Código Penal de 1982) concorre, em concurso efectivo, com o de homicídio voluntário, uma vez que os interesses protegidos são diversos, não se verificando consunção (acórdão do STJ de 5 de Dezembro de 1990, Simas Santos - Leal Henriques, Jurisprudência Penal, p. 106). O crime de uso e porte de arma proibida consuma-se logo que o agente detém a arma; em consequência, o crime de detenção de arma proibida não é consumido pela punição do crime de ofensas corporais cometido com essa arma (acórdão do STJ de 13 de Abril de 1994, CJ, ano II (1994), tomo 1, p. 255). Mas, entre a detenção ou uso de armas proibidas "fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente" (art. 275, nº 2) e o homicídio qualificado (art. 132, nº 2, al, f ), não nos parece adequado falar em concurso efectivo, pois a perigosidade geral do meio já é tida em conta na contabilidade punitiva da última incriminação". Augusto Silva Dias, Entre "Comes e bebes", RPCC 8 (1998), p. 545. Em idêntido sentido, aponta-se Pinto de Albuquerque, Crimes de perigo comum, p. 280; xi) Artigo 299º (associação criminosa): em princípio, representará pluralidade de infracções (concurso efectivo) a concorrência entre o crime de organização (de associação criminosa) e os crimes da organização (Prof. Figueiredo Dias, As "Associações criminosas" no Código Penal Português de 1982 (arts. 287º e 288º), p. 73). Não viola o princípio ne bis in idem, constante do nº 5 do artigo 29º da Constituição, a interpretação das normas dos artigos 21º, 24º e 28º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, em termos de concluir que os crimes de tráfico ilícito de estupefacientes e de associação criminosa se encontram numa relação de concurso real, por serem diferentes os bens jurídicos tutelados por cada um desses normativos (acórdão do Trib. Const. nº 102/99, de 10 de Fevereiro de 1999, publicado no DR-II série de 1 de Abril de 1999, e BMJ-484-119); xii) No processo da hemodiálise de Évora, o acórdão do STJ de 7 de Outubro de 1998, na linha do que "tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça", condenou o arguido por um único crime de homicídio negligente. Na 1ª instância, perante uma pluralidade de eventos mortais — oito —, o Colectivo decidira- se pelo concurso efectivo de crimes. Transcreve-se a seguir o sumário do acórdão do Supremo ( 39 ). Sendo oito as mortes verificadas (por negligência), está-se perante um concurso de crimes, já que por oito vezes se encontra violado o mesmo dispositivo legal: art.º 136, nº 1, do CP de 1982 ou artº 137, nº 1, do CP de 1995. Tendo as oito mortes resultado como consequência necessária, directa e única da conduta negligente — omissão dos deveres de fiscalização da qualidade da água tratada para diálise — do arguido, que se prolongou de meados de 1992 a 22 de Março de 1993, verifica-se uma situação de concurso ideal. Estando-se perante uma negligência inconsciente — o arguido não chegou a representar a possibilidade de morte dos insuficientes renais crónicos por não proceder com o cuidado a que estava obrigado —, não havendo manifestação de vontade de praticar actos ou omissões de que saísse tal resultado, não pode falar- 39 O texto integral pode ser encontrado na Revista do Ministério Público, ano 19 (1998), nº 76 e ss., com anotação de Paulo Dá Mesquita. Cf., ainda, o texto parcial do mesmo acórdão em CJ, ano VI (1998), tomo III, p. 183 e ss. Sobre os problemas do concurso no âmbito dos delitos negligentes, Pedro Caeiro/Cláudia Santos, in RPCC 6 (1996). 484 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. se de falta de consciência de ilicitude ou em erro sobre a ilicitude. Na negligência inconsciente a ilicitude está intimamente ligada tão só ao não proceder o agente com o cuidado a que está obrigado; xiii) Há acumulação de crimes — ensina o Prof. Dr. Cavaleiro de Ferreira, Lições, p. 625 — se o gatuno consegue burlar terceira pessoa com o objecto do furto. Acórdão do STJ de 15 de Junho de 1955, BMJ- 49-217; xiv) A realização plúrima do mesmo tipo de crime constitui um concurso de infracções, e não um crime continuado, quando os vários crimes foram praticados na execução de planos distintos em que o arguido interveio, e não por pressão das circunstâncias exteriores que o levassem a um repetido sucumbir e a reiterar a sua acção delituosa. Ac do STJ de 1 de Outubro de 1991, BMJ-410-268. xv) Os crimes de peculato e de falsificação de documento encontram-se numa relação de concurso real. Acórdão do STJ de 18 de Janeiro de 2001, CJ 2001, tomo I, p. 218. xvi) O bem jurídico protegido com a punição do crime de condução perigosa de veículo rodoviário do artigo 291º do CP é a segurança do tráfico rodoviário; verifica-se concurso real dos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de homicídio por negligência, quando o arguido conduz com violação grosseira das regras de circulação automóvel, resultando um perigo para a vida de outrem e, com essa conduta, provoca a morte de outra pessoa. Ac. do STJ de 18 de Outubro de 2000, CJ 2000, tomo III, p. 207. xvii) Ainda que consumados através da mesma acção, existe uma situação de concurso real entre os crimes de passagem de moeda falsa e de burla. Acórdão do STJ de 14 de Março de 2002, CJ 2002, tomo I, p. 229. xviii) O autor de um crime de tráfico de estupefacientes pode cometer, em concurso efectivo com esse crime base também um crime de branqueamento de capitais, obtidos em consequência daquela actividade. Acórdão do STJ de 29 de Junho de 2002, CJ 2002, tomo II, p. 225. xix) Os crimes de difamação agravada e de denúncia caluniosa não se encontram entre si numa relação de especialidade, mas de concurso efectivo. xx) Configura uma situação de pluralidade de infracções e não de consunção a prática reiterada em 1993, 1997 e 2002 de factos passíveis de integrar o crime de maus tratos e a conduta distinta do mesmo sujeito, ocorrida em 2003, integradora do crime de ofensa à integridade física. IV. O concurso legal, aparente ou impuro (desenvolvimentos). Nalguns casos, parecerá, à primeira vista, que a subsunção de um facto terá que ser feita em vários tipos de crime, mas uma valoração posterior obrigará a aplicar somente uma das várias normas em presença, excluindo as restantes. Em tais hipóteses entende-se que a aplicação de um preceito criminal abarca o comportamento ilícito na sua totalidade: a infracção mais gravosa esgota o desvalor contido na infracção mais leve. Se no caso nº 30 fizéssemos convergir os efeitos de todas as normas da parte especial do Código aplicáveis resultaria uma múltipla e repetida valoração da mesma situação concreta. Os 485 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. penalistas socorrem-se do instituto a que se deu o nome de concurso aparente —legal ou concurso de normas— para em último termo evitar a repetição insustentável da sanção. O fundamento do concurso aparente reside assim no princípio ne bis in idem: "os tipos em conflito cobrem, todos eles, total ou parcialmente, um mesmo segmento da realidade desvalorada" (Gimbernat, Ensayos penales, 1999, p. 382). A jurisprudência portuguesa faz passar a distinção entre o concurso efectivo e o concurso aparente pelo critério da identidade ou diferença dos bens jurídicos — observa Augusto Silva Dias, Entre "comes e bebes", RPCC 9 (1999), p. 84, referindo como paradigma desta orientação o assento de 19 de Fevereiro de 1992, onde se faz apelo, para se apurar a distinção entre unidade e pluralidade de crimes, à protecção do mesmo interesse ou de interesses diversos. Já se viu que o concurso legal foge às autênticas malhas do concurso de crimes. Há quem por isso o situe em sede de interpretação, negando-lhe inclusão sistemática na unidade e pluralidade de infracções (cf., por ex., Rodriguez Devesa, p. 194; e Juan Bustos Ramírez, p. 92). Também quanto à sistematização, ao número e à designação das formas aparentes não há unanimidade entre os autores, e nem todos estão sequer de acordo quando se trata de integrar os casos concretos num dos diversos grupos que vamos descrever a seguir, a especialidade, a subsidiaridade e a consunção. Pretendendo ressalvar o caso do concurso aparente já no Projecto se continha o termo "efectivamente", que veio a ser transposto para o artigo 30º, nº 1, do Código, mas não se julgou oportuno explicitar na lei regras como a consunção e a especialidade, por serem simples regras doutrinais ou de interpretação do tipo legal de crime (Acta da 13ª sessão). Na mesma linha, o projecto alemão de 1962 renunciava a dar directrizes precisas para o tratamento do concurso de normas, deixando-as para a praxis jurídica, consciente da riqueza e da multiplicidade das relações que a vida nos pode oferecer. As várias categorias do concurso de normas têm mais valor classificatório do que prático. Falta aqui uma regra geral, pelo que são especialmente numerosas as questões duvidosas e discutíveis (Stratenwerth). Recentemente, o Código Penal espanhol (de 1995) passou a dispor, no artigo 8º, que "los hechos susceptibles de ser calificados con arreglo a dos o más preceptos de este Código, 486 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. y no comprendidos en los artículos 73º a 77º, se castigarán observando las siguientes reglas: 1.ª El precepto especial se aplicará con preferencia al general. 2.ª El precepto subsidiario se aplicará sólo en defecto del principal, ya se declare expresamente dicha subsidiariedad, ya sea ésta tácitamente deducible. 3.ª El precepto penal más amplio o complejo absorberá a los que castiguen las infracciones consumidas en aquél. 4.ª En defecto de los criterios anteriores, el precepto penal más grave excluirá los que castiguen el hecho con pena menor." Vejamos então, com mais pormenor, as diversas formas do concurso legal. 1. Existe relação de especialidade quando uma norma penal se nos apresenta com todos os elementos de uma outra, distinguindo-se desta unicamente por conter pelo menos um elemento adicional que abarca a situação concreta a partir duma perspectiva especial (Jescheck AT, p. 666). Dito doutra maneira: é o caso duma lei (a lex specialis) que contém todos os pressupostos típicos duma outra (a lex generalis) e, para além destes, pelo menos mais uma característica específica que a especializa. Ambos os tipos são abstractamente aplicáveis, mas como na sua aplicação a norma especial derroga a norma geral (é a velha regra de direito: lex specialis derogat legi generali) só um deles, o que contém elementos especializadores, se aplica à situação concreta. Rodriguez Devesa explica que, sendo a+b os elementos da lei geral e a+b+e os da lei especial, resulta ser e o elemento especializador. Assim se compreende que, neste contexto, o intérprete não tenha que olhar aos comportamentos que se lhe apresentam, mas somente aos preceitos abstractamente aplicáveis, sendo indiferente a natureza — privilegiante ou, conforme os casos, qualificante — do elemento típico especializador: há sempre especialidade — diz Jescheck — na relação entre o tipo fundamental (Grundtatbestand) e as suas variantes (Abwandlungen) qualificadas ou privilegiadas. Exemplo da praxis jurisprudencial: O arguido destruiu a fechadura da porta de entrada de uma residência e do interior desta retirou diversos bens, ficando preenchida a previsão do artigo 204º, nº 1, alínea f), do Código Penal, e igualmente a da alínea e) do nº 2 do mesmo artigo. Para o Supremo, na situação descrita as normas concorrentes apresentam-se numa relação de especialidade — a punição de uma engloba a da outra e a matéria de facto é 487 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. subsumível a ambas as normas — prevalecendo a qualificação do crime punido com a pena mais grave sobre o da punição mais leve. Cf. o acórdão do STJ de 15 de Dezembro de 1998, proc. nº 1005/98. Outros exemplos: i) O artigo 134º (homicídio a pedido da vítima) é norma especial relativamente à norma do artigo 131º (homicídio); ii) O artigo 144º (ofensa à integridade física grave) é norma especial relativamente à norma do artigo 143º (ofensa à integridade física simples); iii) O artigo 152º, nº 1, a) (maus tratos físicos ou psíquicos ou tratamento cruel) é norma especial relativamente à norma do artigo 143º (ofensa à integridade física simples); iv) O artigo 160º (rapto) é norma especial relativamente à norma do artigo 158º (sequestro); v) O artigo 163º, nº 1 (coacção sexual) é norma especial relativamente à norma do artigo 154º (coacção); vi) O artigo 163º, nº 2 (coacção sexual) é norma especial relativamente à norma do artigo 153º (ameaça); vii) O artigo 164º (violação) é norma especial relativamente à norma do artigo 163º (coacção sexual); viii) O artigo 223º (extorsão) é norma especial relativamente à norma do artigo 153º (ameaça) e do artigo 154º (coacção); ix) O artigo 225º (abuso de cartão de garantia ou de crédito) é norma especial relativamente à norma do artigo 217º (burla); x) O artigo 242º (destruição de monumentos) é norma especial relativamente à norma do artigo 212º (dano); xi) O artigo 259º (danificação ou subtracção de documentos) é norma especial relativamente à norma do artigo 203º (furto) e do artigo 212º (dano); xii) O artigo 278º (danos contra a natureza) é norma especial relativamente à norma do artigo 212º (dano). Alguns autores apresentam a ideia da exclusão como o contraponto da especialidade (assim, Jescheck AT, p. 667). Será o caso do furto e do abuso de confiança, entre os quais intercedem relações de heterogeneidade: a mesma conduta não pode preencher ao mesmo tempo os dois indicados tipos de ilícito. Os tipos dos artigos 210º (roubo) e 223º (extorsão) e os dos artigos 203º (furto) e 205º (abuso de confiança) têm formas de execução diferentes, são tipos heterogéneos, excluindo-se reciprocamente — não poderá haver furto se a coisa (alheia) foi entregue ao agente, não poderá haver abuso de confiança quando a coisa (alheia) tiver sido subtraída pelo agente. Havendo concurso, será sempre concurso real. 488 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 2. A subsidiaridade expressa ou formal é fácil de reconhecer quando se atende às relações que entre certos preceitos se estabelecem pelo facto de uns condicionarem expressamente a sua eficácia à não aplicação de outro ou outros. Já vimos que o lançamento de projéctil contra veículo é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. O preceito do artigo 293º é subsidiário se o projéctil atingir o veículo e dolosamente aí causar danos ou lesões corporais num passageiro: as disposições aplicáveis passam a ser as que previnem o dano ou sancionam os atentados à integridade física, com exclusão daquela outra infracção. Outros exemplos: i) Artigo 150º, nº 2 (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos); ii) Artigo 208º. nº 1 (furto de uso de veículo); iii) Artigo 215º, nº 1 (usurpação de coisa imóvel); iv) Artigo 292º (condução de veículo em estado de embriaguez); v) Artigo 297º, nº 1 (instigação pública a um crime); vi) Artigo 298º, nº 1 (apologia pública de um crime); vii) Artigo 302º, nº 1 (participação em motim); viii) Artigo 355º (descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público); ix) Artigo 375º, nºs 1 e 3 (peculato); x) Artigo 379º, nºs 1 e 2 (concussão); xi) Artigo 382º (abuso de poder). Em casos destes, as diversas normas têm uma direcção de protecção idêntica ou semelhante, a qual preside também às constelações de casos conhecidos como de subsidiaridade tácita ou material, derivada exclusivamente da sistematização legal. Atende-se então a uma certa relação lógica entre os preceitos criminais, aos fins que os determinam ou aos elos que os suportam, podendo falar-se de subsidiaridade quando as normas descrevem diferentes estádios ofensivos de um mesmo bem jurídico. Assim, se uma norma descreve a colocação em perigo e a outra inclui nos seus pressupostos típicos a lesão de um determinado bem jurídico, de tal forma que um concreto comportamento caia no âmbito de aplicação de ambas, será caso de subsidiaridade — são diferentes as formas de ataque do bem jurídico, num caso menos intenso, no outro mais intenso. (K. Kühl AT, p. 732; Samson SK, nº de margem 68 antes do § 52) 489 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Os actos preparatórios puníveis representam, relativamente à correspondente tentativa punível (e esta em relação à correspondente infracção consumada), uma forma de desenvolvimento desigual do mesmo ataque delitivo, sendo a primeira a forma menos grave. Havendo identidade de dolo, a forma preparatória exclui-se e aplica-se a forma tentada ou a consumada, conforme os casos. A cumplicidade é a forma mais leve de comparticipação, portanto subsidiária quando concorre com a forma de protecção mais intensa que é a instigação. Quando, noutro exemplo, duas normas se dirigem à protecção do mesmo bem jurídico, a forma mais enérgica de protecção (por ex., a dolosa) faz recuar a menos enérgica (por ex., a negligente). Quem por inadvertência incendeia a habitação onde mora será punido unicamente por crime de incêndio doloso se, depois de ter descoberto as chamas, não trata de as extinguir a tempo de evitar pôr em perigo a vida de outrem. A jantou com os amigos e aproveitou para beber do seu vinho tinto preferido. Sabe que no estado em que se encontra lhe é absolutamente vedado conduzir, mas mesmo assim arrisca-se a seguir para casa ao volante do seu automóvel porque já são duas da manhã e a mulher não lhe costuma perdoar tais atrasos. Numa passagem para peões A não consegue travar e atropela B, na altura em que este se encontrava a um metro de completar a travessia. A apercebe-se que B sofreu lesões graves e que perde muito sangue, mas, como não quer ficar sem a carta, como inevitavelmente acontecerá se a polícia o mandar soprar no balão, ausenta-se do local com a consciência de que o homem vai morrer se não for conduzido ao hospital de imediato. B acaba por morrer nessa mesma noite. Nestes dois exemplos, as formas dolosa e negligente envolvem-se no mesmo objecto de protecção (outra pessoa, uma pessoa), de maneira que não surgem particulares dificuldades na afirmação da subsidiaridade. As coisas serão menos nítidas quando se trata de bens jurídicos que não coincidem inteiramente. Em geral, o crime de perigo é afastado pelo correspondente crime de dano ou de lesão efectiva, como no caso da exposição ou abandono (artigo 138º) face ao homicídio do artigo 131º. Adverte, porém, o Prof. Figueiredo Dias, que só assim será na medida em que o perigo não ultrapasse o concreto dano verificado, como muitas vezes sucederá com os chamados "crimes de perigo comum". Pôr fogo a uma coisa pode integrar, concomitantemente, o crime de dano [artigo 309º, nº 1, do CP-82] e o de perigo comum [artigo 253º, nº 1, do CP-82]. Neste caso, as regras 490 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. deste excluem as daquele, por mais fortemente sancionadoras da violação do mesmo bem jurídico. Acórdão do STJ de 9 de Fevereiro de 1983, BMJ-324-432. Do mesmo modo, quase todos estão de acordo em que a norma do artigo 200º cede relativamente à do homicídio cometido por omissão (artigos 10º, nºs 1 a 3, e 131º). Fala- se até da sua função de reserva (Seier, Jura 1983, p. 223). A omissão de auxílio só entra em questão onde não exista um dever de garante do agente pela não verificação de um resultado típico. A interpretação do artigo 10º do Código Penal deve fazer-se em si mesma e por si mesma, independentemente da interpretação que se faça do artigo 200º. E se deste modo os âmbitos dos dois preceitos em alguma área se cobrirem, deve aí dar-se decidida prevalência ao artigo 10º sobre o artigo 200º (cf. Figueiredo Dias; e Wessels; também Haft AT, p. 266, aludindo à circunstância de se tratar de bens jurídicos que não são inteiramente idênticos). Certos estádios intermédios, por ex., as ofensas corporais (consumadas) relativamente ao estádio de desenvolvimento posterior da lesão da vida, que é o homicídio (consumado), cabem também na categoria da subsidiaridade. A ofensa à integridade física significa um prejuízo menos intenso do que a perda da vida. Outros exemplos: i) O artigo 148º (ofensa à integridade física por negligência) é norma subsidiária relativamente à norma do artigo 143º (ofensa à integridade física simples); ii) O artigo 158º (sequestro) é norma subsidiária relativamente à norma do artigo 210º (roubo) quando a duração da privação de movimentos não ultrapassar o objectivo da subtracção com violência sobre a pessoa; iii) O artigo 158º (sequestro) é norma subsidiária relativamente à norma do artigo 164º (violação) sempre que a duração da privação de movimentos não seja desproporcionada ao objectivo da violação; iv) O artigo 143º (ofensa à integridade física simples) é norma subsidiária relativamente à norma do artigo 164º (violação) mas apenas na medida em que o uso da violência física não seja desproporcionado ao objectivo da violação. Fará sentido falar de relação de subsidiaridade entre tentativa de um crime e a sua consumação? Os arguidos ainda estavam a fazer o carregamento dos materiais quando chegou a polícia. A situação é seguramente de furto consumado em relação aos objectos já carregados. No mais, o plano criminoso dos arguidos, que não foi completado, não passou da tentativa. No final, com todos os objectos que subtraíram, os arguidos cometeram um crime de furto consumado, independentemente do fim subjectivo que tinham de levar mais objectos. Portanto, consumado um crime de furto, com a subtracção de materiais nos termos expostos, não mais se pode falar de tentativa desse mesmo crime. De tentativa só 491 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pode falar-se se justamente a consumação do crime não chegou a ter lugar. Acórdão do STJ de 14 de Abril de 1993, BMJ-426-180. Cf. também Faria Costa, Conimbricense II, p. 52. 3. Como modalidade da consunção, alguns autores alinham em primeiro lugar as constelações de factos acompanhantes (facto típico acompanhante de outros delitos). Nestes casos, não chega a suceder, como na especialidade, que o acto realiza necessariamente a descrição típica de vários preceitos: o que acontece é que normalmente a realização de um facto típico arrasta consigo a de outro, de tal forma que o legislador, ao estabelecer uma norma penal qualificada, já terá levado em conta a circunstância de que o facto costuma aparecer associado a outro com um conteúdo de ilícito essencialmente menor, como acontecerá quando um gatuno entra numa moradia por arrombamento. (Cf. Santiago Mir Puig, p. 740; e Jescheck AT, p. 669). A realização do furto qualificado em habitação vai normalmente acompanhada da penetração por arrombamento (facto típico acompanhante). Para encontrar a moldura penal do furto assim sobrequalificado (artigo 204ª, nº 2, alínea e): pena de prisão de 2 a 8 anos) o legislador atendeu ao conjunto delitivo que supõe a subtracção, a violação de domicílio e o dano, de forma que a aplicação concreta da norma que prevê o crime menos grave deve considerar-se excluída, de acordo com o princípio "lex consumens derogat legi consuntae". Mas já assim não será se, por força do nº 4 do artigo 204º, não houver lugar à qualificação do furto. Em casos destes, a infracção pelo dano ganhará autonomia: hipótese de concurso efectivo, proposta pelo Prof. Costa Andrade, referindo opinião coincidente dos autores alemães que cita. A utilização de um automóvel sem autorização (artigo 208º, nº 1) vai geralmente acompanhada da apropriação da gasolina do depósito, facto que, por direitas contas, se dissolve no desvalor do furto do uso da viatura. Outro exemplo sugestivo (cf. Geppert, p. 426) é o da violação de correspondência: para abrir uma carta fechada, ou uma encomenda, que lhe não seja dirigida, o agente, por via de regra, produz estragos em coisa alheia (artigos 194º, nº 1, e 212º, nº 1), mas se o fizer para tomar conhecimento do conteúdo da carta o sujeito indiscreto será unicamente sancionado pelo atentado à 492 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. privacidade (artigo 194º, nº 1: facto principal), que só pode ser realizado produzindo danos no envelope, i. é, mediante a realização do facto acompanhante. Caso paralelo: o da falsificação material por rasura ou por um processo semelhante que implique um dano no suporte documental. O artigo 256º, nº 1, alínea a), consome a norma do artigo 212º, nº 1. Uma boa parte dos casos práticos envolve o dano produzido, por ex., quando da violação de domicílio. Se o crime for cometido por meio de arrombamento, a previsão é a qualificada do nº 3 do artigo 190º, mas pode acontecer que o intruso produza apenas uns riscos nas portas ou paredes (exemplo do Prof. Costa Andrade, Conimbricense II, p. 234), sem que se possa falar em arrombamento, o dano será então facto típico acompanhante do crime contra a reserva da vida privada. Jescheck adverte, porém, que não se deve ter como consumido o dano quando o ladrão aniquila algo particularmente valioso, por ex., uma janela da igreja, para aí poder cometer um furto. Com efeito, a infracção acessória distancia-se do que é corrente e apresenta-se com um conteúdo de ilícito próprio. Como os autores frequentemente advertem, lançamos mão do princípio da consunção quando não existe uma modalidade mais específica para solucionar o concurso de leis, de forma que, nos trabalhos práticos, o método que se recomenda é o seguinte: primeiro analisamos a questão sob o ponto de vista da especilidade; se esta não for aplicável, procuramos fazê-lo dentro da subsidiaridade; por último, abordamos o assunto na perspectiva da consunção. Cf., por ex., Geppert, p. 425, e Mir Puig, p. 740. Tem razão Rodriguez Devesa quando escreve (p. 209): Nunca vi nenhuma sentença que condenasse por homicídio e ao mesmo tempo pelos danos causados na roupa pelo disparo que provocou a morte ou pela facada que provocou feridas mortais na vítima. A pena do homicídio já engloba o desvalor da utilização dos meios escolhidos para dar a morte. Repare-se, por outro lado, que na relação de consunção estamos perante condutas heterogéneas: são diferentes os bens jurídicos protegidos no homicídio e no dano, num é a vida, no outro a propriedade. Nas relações de especialidade e de subsidiaridade trata-se em todos os casos dos mesmos bens jurídicos. São relações que se estabelecem em abstracto. A relação de consunção, pelo contrário, depende de características concretas. 493 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. No que toca ao âmbito e aos pressupostos do facto posterior não punível (facto posterior co-punido): como escreve Jescheck (AT, p. 669; cf., também, Geppert, p. 428; E. Correia, Unidade e Pluralidade, p. 142), a acção típica que se segue ao crime e que tem unicamente em vista assegurar, aproveitar ou garantir a vantagem conseguida com o primeiro acto, é consumida: i) quando se não viola qualquer outro bem jurídico e ii) o dano não se amplia quantitativamente para lá do já ocasionado. Neste caso, a relação típica entre a infracção primária e o acto posterior que com ela concorre consiste em que, regra geral, o agente tem que realizar também a acção posterior caso pretenda que o facto principal tenha para si algum sentido. Por isso, a apropriação da coisa furtada por parte do ladrão não constitui uma apropriação indevida (abuso de confiança) que deva ser vista autonomamente. Com esta solução pretende-se evitar que o mesmo ilícito seja sancionado duas vezes. Aceite geralmente como acto posterior não punido é o caso do ladrão que queima a coisa que furtara, quando chega à conclusão que afinal não lhe serve para o que pretendia. Do mesmo modo, se alguém furta uma bicicleta e mais tarde, para afastar de si as suspeitas de furto, a deita ao rio, fazendo com que aí desapareça, não se poderá falar de um concurso efectivo de crime de furto e de dano: o prejuízo objectivamente causado não aumenta para além do já ocasionado pelo furto e o conteúdo criminal do dano acha-se já consumido pela punição do furto. É claro que nestas situações também há quem defenda o concurso real entre furto e dano. Se o ladrão atira a bicicleta para o rio, amplia com isso o dano do proprietário, acentuam alguns autores. O Prof. Eduardo Correia, p. 143, admite o concurso aparente pelo menos quando a intenção de apropriação que presidiu à subtracção do objecto corresponde à vontade de alcançar sobre ele todos os poderes, como se proprietário fosse, e, portanto, também o poder de o destruir, danificar. etc. No sentido do concurso aparente (furto seguido da destruição da coisa), pode ver-se o acórdão do STJ de 14 de Abril de 1999, BMJ-486-126, que se ocupou do dano do rádio dum táxi furtado e faz considerações sobre a redacção da norma do artigo 212º, nº 1, onde se aditou a expressão "no todo ou em parte", e o acórdão do STJ de 1 de Março de 1995: há que relacionar a destruição da viatura com o anterior furto dela, pois os dois crimes respeitam ao mesmo interesse jurídico nuclear, como delitos contra a propriedade alheia, nessa medida havendo consunção entre ambos. A intenção do agente de se apropriar da coisa que é objecto de 494 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. furto já abrange a sua posterior destruição, pois esta cabe nos poderes do proprietário. E a regra "ne bis in idem" obsta que se trate a destruição de coisa anteriormente subtraída como crime distinto e independente do furto dela. Impõe-se, sim, a aplicação da pena relativa ao mais grave e abrangente dos dois crimes. Do que não há dúvida é que se alguém furta um quadro valioso, não comete depois um crime de apropriação indevida (i. é, de abuso de confiança: artigo 205º, nº 1) quando o vende a terceiro de boa fé, ainda que esta venda possa integrar, em concurso real, um crime de burla (artigo 217º, nº 1), por resultar afectado o património deste outro portador do bem jurídico que é simultaneamente enganado pela actuação de quem se lhe apresenta como proprietário do quadro. É a orientação de há muito dominante. Cf., no domínio do Código Penal de 1886, o acórdão do STJ de 15 de Junho de 1955, BMJ-49-213: "o ladrão que, fingindo-se senhor da coisa furtada, a vende a outrem comete, além do furto, o crime de burla". Por vezes é a própria previsão legal que se antecipa ao juízo de consunção, como na alínea c) do nº 1 do artigo 256º que se restringe ao uso de documento falsificado ou fabricado por outra pessoa. Quem usar documento que ele próprio falsificou é punido apenas pela falsificação, já não pelo uso. A lei limita-se a consagrar o que resultaria da aplicação das regras gerais. Sendo a falsificação um crime de perigo abstracto, ela antecipa a punição relativamente ao uso que o próprio agente, concretizando o perigo, venha a fazer do objecto da primeira acção. Noutro exemplo, se ao furto se segue a venda da coisa furtada pelo próprio autor da subtracção dela, não será o ladrão instigador de uma posterior receptação dolosa (artigo 231º, nº 1) do produto do furto: para que o crime de receptação exista é necessário que o agente do facto prévio seja pessoa diversa do receptador — na expressão legal, objecto da receptação é a coisa que foi obtida "por outrem" mediante facto ilícito típico contra o património. Exemplo dum acto anterior não punido: A, a quem foram confiadas as chaves de uma viatura, apropria-se delas por forma ilegítima. Mais tarde, serve-se das chaves para furtar o carro quando este se encontrava na garagem do seu proprietário. Os actos anteriores não puníveis têm um significado prático pouco acentuado. Assim, por ex., Blei, Strafrecht I AT, 1983, p. 361, que refere os actos preparatórios e a tentativa nas suas relações com o crime consumado que na maior parte das vezes são tratados como casos de subsidiaridade. No nosso exemplo, a apropriação ilegítima das chaves aparece, 495 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. no conjunto dos factos, com as características de um acto preparatório e num estádio primário do ilícito; na medida em que se dirige ao mesmo objecto da acção não deve ser punido autonomamente, já que o peso decisivo radica no furto da viatura. Entre nós fez carreira a noção de consunção impura. O Prof. Eduardo Correia aponta o exemplo de Binding em que a lei descreve um tipo de crime que só se distingue de outro por uma circunstância tal que apenas se pode admitir tê-la querido o legislador como circunstância qualificativa agravante — verificando-se todavia que a pena para ele cominada é inferior à do tipo fundamental. A noção de consunção impura aplica-a o Prof. Eduardo Correia a casos de interferência, que na nossa exposição caem no conceito de subsidiaridade (cf., supra, as relações que medeiam entre o furto e o roubo). E justifica-a como a válvula de segurança de todo o sistema de concurso aparente, atenta a necessidade de atender a casos-limite "que a construção naturalística do concurso só arbitrariamente considera" (Direito Criminal II, p. 207) Ainda hoje, nas relações entre a violação e a coacção sexual (crime fundamental), podem verificar-se casos em que a punição por um dos crimes exclui a punição pelo outro, restando saber qual deles prevalece. Se A decidiu violar B, mantendo com ela relações sexuais de cópula, e tudo faz nesse sentido, empregando inclusivamente a força, sem que, contudo, chegue a haver penetração peniana por circunstâncias alheias à vontade de A, o comportamento proibido preenche ao mesmo tempo o ilícito do artigo 163º, nº 1 (crime de coacção sexual consumada) e o dos artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1, alíneas a) e b), e 264º, nº 1 (tentativa de violação). A aplicação de ambas as normas equivaleria a sancionar duplamente a mesma situação concreta. Qual das duas deverá então ceder, excluindo-se a sua aplicação ao caso? A coacção sexual é punida com pena de prisão de 1 a 8 anos; para a tentativa de violação, a lei oferece a moldura penal de prisão de 7 meses e 6 dias a 6 anos e 8 meses. A moldura do crime tentado é inferior à do tipo fundamental que é a coacção sexual, de forma que o agente deverá ser punido "pela coacção sexual consumada" (assim, a opinião do Prof. Figueiredo Dias, Conimbricense, PE, tomo I, p. 474). Outros casos de concurso aparente: i) O homicídio doloso (artigo 131º) afasta a punição por homicídio por negligência (artigo 137º); 496 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ii) O homicídio doloso (artigo 131º) afasta a exposição ou abandono (artigo 138º); iii) O infanticídio (artigo 136º) afasta a exposição ou abandono (artigo 138º); iv) A ofensa corporal agravada pelo resultado morte (artigos 18º e 145º) afasta a punição do homicídio por negligência (artigo 137º); v) O homicídio tentado (artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nºs 1 e 2, e 131º) afasta a punição das ofensas à integridade física provocadas pelo agente que actua com intenção de matar (artigo 143º); vi) A punição do homicídio doloso (artigo 131º) abrange a omissão de auxílio (artigo 200º) imputável a quem actuou com intenção de matar; vii) O ilícito do artigo 143º (ofensa à integridade física simples) é tipo de recolha ou de intercepção, actuando por via residual, relativamente aos demais tipos dolosos de ofensa à integridade física (artigos 144º, 146º, 147º); viii) As ofensas corporais graves (artigo 144º) afastam a punição pelo crime de maus tratos do artigo 152º; ix) A punição do agente pelo crime de violação de domicílio qualificado nos termos do artigo 190º, nº 3, consome o crime de dano. Cf. a anotação do Prof. Costa Andrade, Conimbricense, parte especial, I, p. 713, que refere, no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 21 de Julho de 1987, BMJ-369-317. x) O autor de um crime de ofensas corporais voluntárias não comete o crime de omissão de auxílio (artigo 219º do Código Penal de 1982) se, em seguida, deixar de prestar ao ofendido o auxílio que se mostre necessário para afastar o perigo em que se encontrem a sua vida, saúde ou integridade física (acórdão do STJ de 8 de Julho de 1987, BMJ-369-614); xi) Existe uma relação de consunção entre os crimes de burla e de apropriação ilegítima de bens do sector cooperativo, já que este último contém a protecção do mesmo interesse jurídico que o crime de burla, mas mais valorado e daí que se lhe sobreponha, consumindo-o. Ac. do STJ de 11-02-1998 Processo n.º 1191/97 - 3.ª Secção; xii) É punido unicamente como homicida (artigo 131º) quem, para ocultar o seu crime, oculta o cadáver da sua vítima, não concorrendo no caso a sanção pelo crime de profanação de cadáver do artigo 254º, nº 1, a) ( 40 ) 40 São relativamente frequentes os casos de homicídio acompanhado da ocultação ou destruição do cadáver. No acórdão do STJ de 8 de Junho de 1955, BMJ-49-208, um tal Rafael dos Anjos Cristão, ao ver passar José Pimentel "Pé de Cão", na suposição de que ele andava a requestar a sua mulher, descarregou-lhe repetidas e violentíssimas pancadas, matando-o, como era sua intenção. O Cristão comunicou depois o facto a um seu cunhado e ambos levaram o cadáver do "Pé de Cão" para o meio de uma seara de centeio, onde o deixaram ficar. Discutiu-se no processo se havia, por banda do cunhado, encobrimento (cf., agora, o artigo 367º) ou ocultação de cadáver. 497 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. V. Efeitos do concurso efectivo; regras da punição; artigo 77º, nºs 1 e 2; concurso de penas; conhecimento superveniente do concurso: artigo 78º; sucessão de crimes e sucessão de penas; reincidência. A sentença condenatória indica a pena correspondente a cada crime. A pena do concurso é uma pena única, a que o juiz chega pela consideração da "moldura penal do concurso" que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Na determinação concreta da pena correspondente ao concurso de infracções são considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente. Com efeito, a determinação da pena do concurso, segundo o que se dispõe nos artigos 77º e 78º do Código Penal, comporta duas fases distintas, servidas por critérios diferentes. Na primeira, o tribunal determina cada uma das penas parcelares concretamente correspondentes a cada crime, utilizando relativamente a cada um deles os critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal. Na segunda fase cabe então fixar a pena única, na medida da qual a lei estabelece que se considerem, em conjunto, os factos e a personalidade do agente — artigo 77º, n.º 1, cit., — tendo igualmente em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção — artigo 71º, n.º 1, do mesmo Código — bem como os factores mencionados no nº 2 do mesmo artigo, referidos agora à globalidade dos crimes. Frequentemente, os não iniciados sentem dificuldades na aplicação dos artigos 77º e 78º (conhecimento superveniente do concurso). Os casos de concurso de penas aparecem quase exclusivamente ligados à pequena e média criminalidade, configurando-se numa série de delitos que se estendem por curtos períodos de tempo. Como os processos são demorados, pode acontecer que o Ministério Público acabe por dirigir uma única acusação contra o mesmo sujeito pelos factos que integram essa série de crimes — o juiz irá depois apreciá-los na sentença e, sendo caso disso, aplicará uma pena a cada crime; por fim, a sentença encontrará a pena única, em obediência às regras do concurso. O mesmo pode vir a dar-se por força das regras da conexão (artigos 24º e ss. do Código de Processo Penal): juntam-se os diversos processos 498 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. contra o mesmo sujeito, cada um com a sua acusação, e todos são julgados como se fosse um único processo. Num caso como no outro só terá havido um julgamento. Por exemplo: A cometeu sucessivamente o crime 1, o crime 2, e o crime 3. Organizaram-se outros tantos inquéritos, mas por aplicação das regras da conexão acaba por haver um só julgamento. A sentença condena A pelo crime 1, pelo crime 2 e pelo crime 3, vamos supor, respectivamente, nas penas de 7 meses de prisão, 9 meses de prisão e 12 meses de prisão (artigo 71º). Na sentença será fixada a pena única (nº 1 do artigo 77º) dentro da moldura penal do concurso, que terá como limite máximo a soma das indicadas penas concretas (7+9+12=28 meses de prisão), e como limite mínimo a mais elevada das penas concretas, 12 meses de prisão (nº 2 do artigo 77º). A pena única poderá andar pelos 17 meses de prisão, considerando-se nesta, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (nº 1 do artigo 77º). Neste exemplo, o agente praticou mais do que um crime antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles. Pode no entanto acontecer que estando o arguido condenado definitivamente por um (ou mais) crimes —sem que a pena esteja totalmente expiada— se descubram infracções anteriores que formam uma acumulação com a já julgada. Pode até acontecer que o arguido foi julgado e definitivamente condenado por todos os seus crimes e que não se lhe fixou uma pena única, sendo caso de concurso. Intervém então o artigo 78º, nºs 1 e 2. O que se disse não deixa ver claramente onde estão as situações de acumulação de infracções. Se A praticou sucessivamente o crime 1 e o crime 2 e em seguida é condenado pelo crime 1 e depois pelo crime 2, há manifestamente concurso e o juiz do segundo julgamento deve aplicar a A uma pena única que engloba as duas penas parcelares. Mas se A pratica o crime 1 pelo qual é definitivamente condenado, e só depois (estando definitivamente condenado) comete o crime 2, não há concurso de penas: o segundo crime não foi praticado antes da primeira condenação (nº 1 do artigo 78º). Como regra prática, convém alinhar por ordem cronológica os crimes (cr.) e as condenações definitivas, transitadas em julgado (cond.). Assim, i) cr.1, cr. 2, cond. 1, cond. 2; ii) cr. 1, cond. 1, cr. 2, cond. 2; iii) cr. 1, cr. 2, cr. 3, cond. 1, cr. 4, cr. 5, cond. 2; 499 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. iv) cr. 1, cr, 2, cond. 1, cond. 2, cr. 3, cr. 4, cond. 3, cond. 4. A hipótese i) é de concurso, mas não a hipótese ii), que é de sucessão de penas, podendo haver reincidência (artigos 75º e 76º). Na hipótese iii) devem ser aplicadas ao arguido duas penas conjuntas, a primeira engloba as penas parcelares aplicadas aos cr. 1 e cr. 2, a outra engloba as dos cr. 3 e cr. 4. Também na hipótese iv) se devem aplicar duas penas conjuntas, uma relativamente aos cr. 1 e cr. 2, que o arguido cometeu antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles; outra relativamente aos cr. 3 e cr. 4, que foram cometidos depois do trânsito em julgado da cond. 2. Entre estes dois grupos de crimes interpôs-se a cond. 2, verificando-se assim o desrespeito pela solene advertência nela contida. Por essa razão, e porque o contrário é abertamente rejeitado pelo disposto nos artigos 77º e 78º, é que o Supremo, por acórdão de 4 de Dezembro de 1997, CJ, 1997-III, p. 246, negou o cúmulo jurídico "por arrastamento", e portanto a formação de uma pena conjunta dos cr. 1 a 4., devendo antes aplicar-se duas penas únicas (conjuntas), como se disse. No acórdão alude-se, incidentalmente, à sucessão de crimes e à reincidência específica. O cúmulo dito "por arrastamento" contraria os pressupostos substantivos previstos no artigo 77º, n.º 1, do Código Penal de 1995, e artigo 78º, n.º 1, do Código Penal de 1982, designadamente por nele se ignorar a relevância de uma condenação transitada em julgado como solene advertência ao arguido, quando, relativamente aos crimes que se pretende abranger nesse cúmulo, uns são anteriores e outros posteriores a essa condenação. 21-05-1998 Processo n.º 1548/97 - 3.ª Secção. Cf. também o acórdão do STJ de 7 de Fevereiro de 2002, CJ 2002, tomo I, p. 202, igualmente publicado na RPCC 13 (2003), com um comentário de Vera Lúcia Raposo. Neste comentário pode ler-se que uma construção popular na jurisprudência insiste em empurrar para o cúmulo jurídico: a) as penas dos crimes cometidos posteriormente ao trânsito em julgado de uma condenação ainda não cumprida; b) as penas dos crimes que, não obstante constituírem objecto de uma decisão definitiva, são posteriores a outros crimes que ainda o não foram, mas em relação aos quais não se verifica um concurso. O concurso de crimes, intervindo uma pena relativamente indeterminada e outra determinada (cf. CJ 1995, I, p. 168, e BMJ-446-46), suscita problemas específicos, que se podem pôr igualmente com a aplicação de disposições de clemência (leis de amnistia), quando algumas penas parcelares são abrangidas pelo perdão e outras não. Tem-se vindo, por outro lado, a entender que o tribunal que proceder ao cúmulo pode revogar a suspensão da execução de uma ou mais penas parcelares em concurso ou da 500 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. anterior pena única, ainda que aplicada em decisão transitada em julgado, se chegar à conclusão que é injustificada a manutenção da suspensão face à reapreciação global dos factos e à personalidade do agente (acórdão do STJ de 24de Março de 1999, BMJ-485- 143). Por outro lado, quando, por cessar a responsabilidade criminal relativamente a um ou mais crimes cujas penas estavam englobadas na pena única sancionatória de um concurso de crimes em que aquele ou aqueles estavam abarcados, só as restantes penas devem ser tidas em consideração. E se restou, no fim, uma só pena, esta readquiriu toda a sua autonomia, o que, além de outros efeitos, se repercute na aplicação do artigo 470º, nº 1, e não do nº 2 do artigo 471º do Código de Processo Penal (cf. acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 1999, processo nº 1263, e a anotação no BMJ-485-123). Em geral, tem-se vindo a reconhecer que, no momento da realização do cúmulo, o tribunal deve ter em conta a personalidade do arguido e a sua conduta posterior aos factos, devendo, para o efeito, efectuar as diligências que entender necessárias (acórdão do STJ de 17 de Março de 1999, BMJ-485-121). Neste processo, o condenado alegara factos posteriores a uma série de crimes que em seu entender o favoreceriam, de forma a poder ser-lhe suspensa a pena única. O tribunal, todavia, procedeu a cúmulo de penas sem atender à matéria alegada, suscitando-se no recurso a questão da omissão de pronúncia. Tudo deverá passar-se "como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade — unitária — do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma "carreira") criminosa, ou tão só a uma ocasionalidade que não radica na personalidade" (Prof. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 27). Como se viu, em caso de conhecimento superveniente de concurso, a unificação das respectivas penas pressupõe que o crime de que só agora se teve conhecimento tenha sido praticado antes da condenação anteriormente proferida; o momento decisivo a atender para se saber se o crime agora conhecido foi ou não anterior a tal condenação é a 501 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. data em que esta foi proferida e não a data do seu trânsito. Acórdão do STJ de 17 de Janeiro de 2002, CJ 2002, tomo I, p. 180. Na reincidência — matéria conexa, que justifica estas observações — deve atender-se ao que dispõem os artigos 75º e 76º: só as condenações em prisão efectiva (e não suspensa ...) e superiores a 6 meses são de ter em conta, mas não é necessário que a pena de prisão tenha sido cumprida, total ou parcialmente (nº 1 do artigo 75º). Na reincidência, o fundamento da agravação “radica no desrespeito pela advertência ínsita na condenação anterior” (Figueiredo Dias). “Mas a influência da prevenção que havia de ter sido proporcionada pela condenação ou condenações anteriores só relevará para os efeitos a que se alude se por ela dever ser censurado o agente. A exigência que assim se coloca desdobra-se, afinal, em duas: há que apurar, primeiro, se a recidiva se deveu a insuficiência daquela prevenção; segundo, no caso afirmativo, se é de censurar o agente “por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime” (Cons. G. da Costa). A pena da reincidência alcança-se obtendo uma moldura penal, só depois passando o juiz à determinação da pena concreta (artigo 76º). O mecanismo é o seguinte (Actas, 9, 83): — num primeiro momento o juiz determinou a medida concreta da pena como se não houvesse reincidência; — num segundo momento, verificada a reincidência, o juiz retoma a moldura abstracta, construindo uma nova moldura penal agravada de um terço no mínimo; — em terceiro lugar, ele fixa uma pena dentro da moldura encontrada; — por último, ele procede à comparação das duas penas concretas, indo ver se a agravação é superior à pena concreta mais grave anteriormente fixada. Para a verificação dos pressupostos da reincidência é essencial que se indague o modo de ser do arguido, a sua personalidade e o seu posicionamento quanto aos ilícitos cometidos, de modo a decidir-se se a condenação ou condenações anteriores lhe serviram de suficiente advertência contra o crime. Importará saber-se ainda, no entanto, sob pena de a decisão poder vir a padecer do vício de insuficiência da matéria de facto provada, a data ou datas do cometimento dos respectivos factos, e bem assim, para os efeitos do n.º 2, do artº 75, do CP, o tempo em que o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativa da liberdade. Ac. do STJ 12-03-1998 Processo n.º 1404/97 - 3.ª Secção 502 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. VI. Concurso de infracções; concorrência, no mesmo sujeito, de várias práticas delituosas; unidade e pluralidade; roubo; homicídio. CASO nº 46-B: J saiu de casa, dizendo que ia trabalhar, mas munido da espingarda de caça, calibre 9 mm, devidamente municiada. Com intenção de assaltar alguém, a fim de obter dinheiro, dirigiu-se para uma mata, perto da localidade onde habitava, aguardando que alguém passasse. Cerca de meia hora mais tarde viu passar E, rapariga que conhecia, mas deixou-a seguir, por acreditar que ela voltaria a passar por ali mais tarde, de regresso a casa, altura em que certamente traria dinheiro de vendas que ia realizar. Cerca de 3 horas mais tarde, J apercebeu-se da chegada de E ao local, e interceptou-a. Acercando-se dela, apontou-lhe a espingarda e disse-lhe para lhe dar a carteira. E, incrédula, procurou minimizar a ameaça da arma, retorquiu-lhe que ele estava a brincar e que inclusive tinha vindo da feira com o pai dele. Porém, J persistiu na ameaça, com a arma, dizendo-lhe que lhe desse a carteira, pois estava a falar a sério. E ficou assustada e começou a gritar, enquanto J se aproximava dela, até cerca de um metro. Nesse momento disparou a arma, atingindo E na cabeça, derrubando-a instantaneamente. De seguida, J, julgando-a morta, até porque se notava já perda de massa encefálica, arrastou a vítima, pegando-lhe pelos braços, e deslocou- a para fora da estrada, até bem dentro da mata. Aí, tirou-lhe a carteira, que somente tinha 600 escudos em dinheiro, que guardou para si, um fio de ouro, avaliado em 50 contos, e um relógio de pulso, avaliado em 7500$00. Da mesma forma, saíu de casa dois dias depois, com a arma, com intenção de assaltar alguém para obter dinheiro. Aproximou-se do automóvel onde estava F e, quando este o avistou, logo disparou. Estando o F ferido, ordenou-lhe que lançasse para o chão o dinheiro que trazia, para se apoderar dele. Mais tarde voltou a disparar, por se convencer que viria a ser descoberto quando a vítima fosse receber tratamento. (Acórdão do STJ de 29 de Maio de 1991, BMJ-407-205). J cometeu por duas vezes o crime de roubo do artigo 210º. Para se apropriar do dinheiro, como pretendia, utilizou violência, ameaçando com o emprego da arma de fogo que levava consigo para o efeito. Mas a punição do roubo não consome o homicídio: o artigo 210º, nº 1, basta-se com a simples violência. Repare-se que se qualquer dos agentes produzir perigo para a vida da vítima ou lhe infligir, pelo menos por negligência, ofensa à integridade física grave, a pena é substancialmente agravada nos termos do respectivo nº 2, alínea a). Por outro lado, no nº 3 prevê-se a morte de “outra pessoa” (e o crime pune- se então na moldura penal do homicídio: artigo 131º), mas nem neste número nem no anterior se prevê a morte da vítima do roubo. Ao provocar a morte daquelas duas pessoas com dolo homicida, J cometeu, com o emprego de arma de fogo, dois crimes de homicídio qualificado: é patente a especial perversidade e censurabilidade, reveladas pela forma como ambos os crimes foram preparados e executados, com avidez, e para preparar, facilitar e executar o roubo (alíneas c) e e) do nº 2 do artigo 132º). 503 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. No Código actual não se reeditou a figura do roubo concorrendo com o crime de homicídio, o chamado "latrocínio", que era um crime complexo, resultante da fusão dos dois crimes, previsto no artigo 433º do Código Penal de 1886 e aí punido com prisão maior de 20 a 24 anos. Como se sabe, existe um crime complexo quando o legislador une ou funde numa só figura criminosa dois ou mais tipos de crimes diversos, criando uma disposição complexa de normas penais mais simples (Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 16). “Desapareceu do Código actual a figura criminal complexa do latrocínio, pelo que as situações em que o roubo é acompanhado de homicídio voluntário da vítima passaram a constituir a comissão, em concurso real, de 2 crimes autónomos, o de roubo e o de homicídio” (acórdão STJ de 16 de Março de 1994, CJ do STJ, ano II, 1º tomo, p. 247). Neste acórdão, acentuou-se que o roubo é um crime complexo, na medida em que o seu autor viola não só um bem jurídico de carácter patrimonial, mas também um bem jurídico eminentemente pessoal. Por isso se entendeu que, cometido tal crime por um determinado agente relativamente a várias pessoas, são-lhe imputáveis tantos crimes dessa espécie quantas as pessoas ofendidas. Na verdade, no crime de roubo, o elemento pessoal assume um relevo particular, na medida em que ficam postas em causa a liberdade, a integridade física e até a vida do visado. Por outro lado, ainda que se verifiquem na conduta do agente os requisitos do crime continuado não se poderá falar em tal instituição jurídica quando houver diversidade de sujeitos ofendidos. (Acórdãos do STJ de 14 de Abril de 1983, BMJ-326-422; de 30 de Novembro de 1983, BMJ-331- 345; de 30 de Julho de 1986, BMJ-359-411; e de 15 de Novembro de 1989, BMJ-391- 239). "A consideração da defesa da liberdade, da integridade física ou da própria vida das pessoas - bens jurídicos eminentemente pessoais - aparece como elemento essencial do respectivo tipo legal de crime", não se podendo falar por isso de um "crime continuado de roubo cometido com violência ou ameaça contra várias pessoas". (Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 356). Vejamos agora o CASO nº 46-C: A entra na agência do Banco Primavera e empunhando uma pistola simulada, que foi tomada como verdadeira, intimou os dois empregados a entregarem-lhe todo o dinheiro em caixa, o que conseguiu, retirando-se em seguida. Não se pode considerar terem sido cometidos tantos crimes de roubo quantas as pessoas ameaçadas ou coagidas. No caso, quem foi desapossado do dinheiro foi o banco e não cada um dos empregados. Nenhum destes foi despojado de bens ou valores que lhes 504 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pertencessem. O crime de roubo é um só, sob pena de duplicação da punibilidade, tendo em conta o aspecto patrimonial do roubo. Conclusão donde derivará uma outra: a de que a importância do elemento pessoal no tipo legal do roubo é susceptível de implicar a autonomização de um dos crimes (crimes - meio) contra a liberdade pessoal, entrando a concorrer efectivamente com o crime de roubo. IX. Unidade e pluralidade de infracções; homicídio; furto. CASO nº 46-C: Por volta das 2 horas, A quis que lhe vendessem cigarros no bar da estação do caminho de ferro. Bateu à porta e apareceu L, que, apesar da insistência, se recusou a atendê-lo, por já estar fechado o bar, e que tratou logo de telefonar para a polícia com o intuito de a alertar. A, não levando a bem a atitude do outro, pegou então num banco com que desferiu duas violentas pancadas na cabeça de L. Este sofreu fractura da coluna cervical e a secção da carótida direita, que foram causa directa e necessária da sua morte. A seguir, A partiu a porta do bar e retirou do interior 10 maços de cigarros, com o valor de 3 contos. A agiu livre e voluntariamente, representando a morte de L como consequência necessária das descritas agressões. E com intenção de se apropriar dos maços de cigarros, sabendo que lhe não pertenciam e que agia contra a vontade do dono. O acórdão do STJ de 20 de Março de 1991, BMJ-405-220, entendeu que A cometeu o crime de homicídio do artigo 131º — e não do artigo 132º, nºs 1 e 2, e) — e o crime de furto, em concurso real. Considerou-se que a matéria factual não permitia concluir que o homicídio fora realizado com intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir o crime de furto. Quanto a este, entendeu-se que o valor diminuto da coisa furtada impedia a agravação. Se o homicídio é perpetrado antes da apropriação, visando executá-la, não deve a violência qualificar a última como roubo, pois está consumida no primeiro, havendo assim concurso de homicídio e furto (Acórdão da Relação de Coimbra de 11 de Fevereiro de 1987, CJ, ano XII, t. 1, p. 71). No ac. do STJ de 6 de Junho de 1990, CJ, 1990, tomo III, p. 17, o arguido furtou a pistola de B e depois disparou contra B com a mesma pistola, produzindo-lhe lesões graves: furto e ofensas corporais. X. Unidade e pluralidade de infracções; furto. CASO nº 46-D: A é empregado num banco e está à frente de duas caixas. Um dia subtrai de uma delas determinada importância, com a intenção de a repor alguns dias depois. Porque não consegue, todavia, haver o dinheiro a tempo, encontra como único expediente de se salvar o de subtrair da outra caixa a mesma importância, pois sabe que esta última só mais tarde será verificada. Chegado o momento desta ser conferida, como não conseguiu ainda juntar o dinheiro, faz o inverso, voltando de novo a desfalcar a primeira caixa. Embora sempre com intenção de repor o dinheiro e procurando de cada vez só 505 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ganhar tempo, certo é que repete o estratagema inúmeras vezes (ex. do Prof. Eduardo Correia, Unidade e pluralidade de infracções, p. 188). Nos crimes contra a propriedade (furto, abuso de confiança, etc.) a actuação do agente pode constituir: a) Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial. b) Um só crime, na forma continuada, se o dolo estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas. c) Um concurso de infracções — em que o número de crimes se determina nos termos do artigo 30º, nº 1. No Código Penal de 1886, o § único do artigo 421º considerava como um só furto o total das diferentes parcelas subtraídas pelo mesmo indivíduo à mesma pessoa, embora em épocas distintas. Podia entender-se, e assim aconteceu, que a solução era a oposta da continuação criminosa. Era um critério de determinação do valor do furto, que não se aplicava sendo vários os ofendidos. No Código actual não existe semelhante disposição, mas o crime continuado está previsto, como se viu, na parte geral, no nº 2 do artigo 30º. Resenha jurisprudencial: Se o comportamento do autor do furto revelar uma pluralidade de resoluções, poder-se-ão pôr as hipóteses de pluralidade de infracções ou de crime continuado" (Acórdão do STJ de 30 de Janeiro de 1986, BMJ-353-24; Acórdão do STJ de 10 de Julho de 1991, BMJ-409-387). Por ter desaparecido do Código Penal de 1982 disposição equivalente à do § único do artigo 421º do Código anterior, as diversas subtracções de que seja vítima o mesmo ofendido constituirão, conforme os casos, ou uma acumulação de crimes, ou um crime continuado (Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Dezembro de 19873, CJ, ano XII, t. 5, p. 164). Existe unidade de resolução criminosa, quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinadas por nova motivação (Acórdão do STJ de 11 de Maio de 1988, Boletim 377-431). A realização plúrima do mesmo tipo de crime constitui um concurso de infracções e não um crime continuado quando os vários crimes foram praticados na execução de planos distintos em que o arguido interveio, e não por pressão de circunstâncias exteriores que o levassem a um repetido sucumbir e a reiterar a sua acção delituosa (Acórdão do STJ de 1 de Outubro de 1991, BMJ-410-268). 506 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Integram o crime continuado de furto qualificado, previsto nos artigos 30º, nº 2, e 297º, nº 1, a), do CP- 82, os seguintes factos: a) a reiterada apropriação de diversas quantias em dinheiro que totalizavam dois mil contos; b) praticada sempre no mesmo lugar e do mesmo modo (introdução em farmácia alheia, à mesma hora e pela mesma porta, seguida de subtracção, da caixa registadora aberta, de parte da receita diária); c) dentro de um curto espaço de tempo (cerca de quatro meses); d) mediante a utilização do mesmo meio (chave falsa, mandada fabricar pelo arguido, a partir da chave verdadeira, à qual teve acesso por virtude das funções que exercia) (Acórdão do STJ de 13 de Março de 1991, BMJ-405-194). A unidade ou pluralidade de infracções dependerá de a actividade do agente ser passível de um juízo de censura uno ou plúrimo; o juízo de censura será plúrimo sempre que possa constatar-se uma pluralidade de resoluções, no sentido de determinações de vontade, de realização do projecto criminoso; então o juízo de censura será plúrimo. Tendo o agente assaltado várias arrecadações e subtraído os objectos nelas existentes, em execução do mesmo desígnio ou projecto criminoso, cometeu um só crime de furto, embora aqueles objectos pertencessem a ofendidos diferentes, já que neste tipo legal de crime é irrelevante a pessoa do ofendido (Acórdão da Relação do Porto de 26 de Novembro de 1986, BMJ-361-605). Comete um só furto - e não três - o réu que, no âmbito da mesma resolução criminosa e nas mesmas circunstâncias espaço-temporais, subtrai 3 bicicletas pertencentes a donos diferentes (Acórdão da Relação do Porto de 7 de Outubro de 1987, BMJ-370-615). Se a conduta do agente nos revela que em cada actuação houve um renovar da sua resolução criminosa, estamos perante a prática de vários crimes, excepto se esse renovar do propósito criminoso for devida a uma situação exterior ao agente que facilite a renovação da resolução dentro de uma certa conexão temporal, tudo a revelar diminuição da culpa, caso em que se perfila a figura do crime continuado (Acórdão do STJ de 12 de Janeiro de 1994, CJ, ano II, p. 190). Estando provado que os arguidos subtraíram, no mesmo dia, sucessivamente, de três estabelecimentos comerciais, existentes em outras tantas localidades, diversas peças de vestuário que se encontravam expostas no interior dos mesmos, nenhum dos factos permite que se considere consideravelmente diminuída a culpa daqueles, uma vez que os objectos estavam normalmente expostos e não ofereciam qualquer espécie de facilidade para serem furtados, e, assim, impõe-se a qualificação jurídica dos factos praticados como concurso real de crimes de furto e não como continuação criminosa. 24-06-1998 Processo n.º 1528/97. Provando-se que o arguido entrou num parque de estacionamento, com o propósito de furtar objectos deixados ou colocados em qualquer dos veículos nele estacionados, terá, assim, formado um único propósito de furto e não diversas resoluções criminosas, pelo que se verificará apenas um crime, ainda que com pluralidade de vítimas, no caso de apropriação de bens deixados em mais do que um veículo. Acórdão do STJ de 29 de Outubro de 1998 Proc. n.º 852/98. No domínio do Código anterior ao de 1982, depois de alguma controvérsia e decisões judiciais divergentes, “fixou-se a jurisprudência (que tem vindo a dominar) de que quem furta e, em seguida, vende ou empenha a coisa furtada, fingindo-se senhor dela, comete não só o crime de furto, mas também o de burla” (Carlos Alegre, p. 36; ainda, Eduardo 507 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Correia, Responderá o ladrão que vende a coisa furtada simultaneamente pelos crimes de furto e burla?, RDES, ano I (1945-1946), p. 375). XI. Unidade e pluralidade de infracções; furto; concurso de circunstâncias agravativas do furto; o caso específico do artigo 204º, nº 3. CASO nº 46-E: A dirigiu-se, na noite de 13, ao estabelecimento X, onde partiu o vidro da montra e penetrou, aí se apoderando de vários objectos. No dia 16, A dirigiu-se ao estabelecimento X1, partiu o vidro, e aí apoderou-se de dinheiro e cassetes. Nessa mesma noite, partiu o vidro do estabelecimento X2 e do seu interior retirou notas do Banco de Portugal, que fez suas. Na noite de 26, A dirigiu-se ao estabelecimento X3, onde partiu o vidro da montra e penetrou, apoderando-se de vários maços de tabaco. A agiu livre e conscientemente, com intenção de tornar seus os objectos e dinheiro de que se apoderou, sabia que os mesmos lhe não pertenciam e que as suas condutas lhe eram legalmente vedadas. O Supremo, por acórdão de 9 de Maio de 1991, BMJ-407-135, entendeu que não se verifica no caso o crime continuado de furto — muito embora possa considerar-se a existência de execução por forma essencialmente homogénea da realização plúrima do mesmo tipo de crime, já o mesmo se não pode concluir, por falta de prova, quanto ao quadro da solicitação de uma mesma situação, exterior, a despeito da proximidade havida entre as datas e locais da prática dos factos cometidos por A. No caso 46-E, o agente entrou no interior das lojas por arrombamento, circunstância que agrava o crime. De acordo com o artigo 204º, nº 3, se na mesma conduta concorrerem mais do que um dos requisitos referidos nos números anteriores, só é considerado para efeito de determinação da pena aplicável o que tiver efeito agravante mais forte, sendo o outro ou outros valorados na medida da pena (cf. o lugar paralelo do artigo 177º, nº 5). "Consagrou-se para o furto qualificado o sistema de absorção agravada quando concorrem várias qualificativas, afastando-se, neste caso particular, o regime geral que se nos afigura ter sido perfilhado no artº 71º: Assim, concorrendo no mesmo crime qualquer das qualificativas do nº 2 com qualquer das do nº 1 funcionará com o efeito qualificativo somente a do nº 2, valorando-se a do nº 1 só para efeito de fixação da pena dentro da medida legal de 1 a 10 anos de prisão. Estando as várias qualificativas em concurso previstas só no nº 1 ou só no nº 2 operará qualquer delas, indiferentemente, com o efeito qualificativo, sendo as restantes valoradas na medida da pena" (Maia Gonçalves). 508 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. CASO nº 46-F. CASO nº 18-B. A, que é especialista na entrada de moradias por escalamento, numa noite de vendaval consegue trepar ao telhado da casa de S e aceder ao interior. Confirmada a ausência dos moradores, A logo suspeitou que os valores facilmente transportáveis se encontravam dentro da gaveta de uma sólida cómoda antiga, fechados a sete chaves. Ao fim de duas horas esforçadas, conseguiu o A aceder à gaveta, mas só depois de produzir estragos assinaláveis naquela peça de mobiliário (mais de 200 euros para a restaurar). Valeu a pena o esforço, tendo-se o A retirado calmamente com diversas peças de ouro e jóias valendo bem mais de 25 mil euros. Atentando no valor consideravelmente elevado do produto do furto (artigo 202º, alínea b)), o crime é o do artigo 203º, nº 1, e 204º, nº 2, alínea a). Na ausência dessa qualificativa, outras circunstância poderiam concorrer para a aplicação da pena de prisão de 2 a 8 anos. Tenha-se nomeadamente em conta que a penetração se deu por escalamento (alínea e) do nº 2). Por outro lado, o ouro e as jóias estavam fechadas em gaveta, em termos de fazer funcionar a agravação ditada pela alínea e) do nº 1 do mesmo artigo 204º, mas a norma a que fazemos referência (nº 3 do artigo 204º) manda valorá-la na medida da pena (veja-se o artigo 71º), considerando para efeito de determinação da pena a que tiver efeito agravante mais forte. "Consagrou-se para o furto qualificado o sistema de absorção agravada quando concorrem várias qualificativas, afastando-se, neste caso particular, o regime geral que se nos afigura ter sido perfilhado no artº 71º: Assim, concorrendo no mesmo crime qualquer das qualificativas do nº 2 com qualquer das do nº 1 funcionará com o efeito qualificativo somente a do nº 2, valorando-se a do nº 1 só para efeito de fixação da pena dentro da medida legal (…). Estando as várias qualificativas em concurso previstas só no nº 1 ou só no nº 2 operará qualquer delas, indiferentemente, com o efeito qualificativo, sendo as restantes valoradas na medida da pena" (Maia Gonçalves). Cf. o lugar paralelo do artigo 177º, nº 6. XII. Unidade e pluralidade de infracções; crimes "sexuais"; violação; sequestro; rapto; roubo; ofensas corporais. CASO nº 46-F: A continuação criminosa não se verifica quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima (ac. da Relação do Porto de 9 de Abril de 1986, BMJ-356-446). Tendo A, em período de tempo relativamente curto, e aproveitando um quadro de circunstâncias exteriores que lhe facilitavam a reiteração das suas condutas, mantido relações de cópula, por três vezes, 509 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. com a ofendida, então menor de treze anos de idade, bem sabendo a idade da mesma e que a sua conduta era proibida por lei, praticou um crime de violação, na forma continuada (artigo 202º, nº 1, do CP-82). (Acórdão do STJ de 6 de Março de 1991, BMJ-405-178). Havendo o arguido actuado, ab initio, com o propósito de manter relações sexuais de cópula com a vítima, menor de sete anos de idade, a qual violou por duas vezes, criando ele próprio o condicionalismo favorável à concretização desse propósito, é de concluir por um concurso real de crimes; na verdade, as circunstâncias "exógenas ou exteriores" não surgiram por acaso em termos de facilitarem o objectivo tido em vista, de modo a "arrastarem" o arguido para a reiteração das suas condutas, antes foram conscientemente procuradas para concretizar tal intenção (ac. do STJ de 10 de Janeirode 1996, BMJ-553- 157). O mesmo Supremo Tribunal, por acórdão de 12 de Janeiro de 1994, BMJ-433-225, entendeu que constituem dois crimes de violação o facto de o agente esfregar o pénis erecto na vulva e coxas da vítima, então com seis anos de idade, e ejacular, voltando a fazê-lo nas mesmas circunstâncias após tal acto. Neste caso, o crime continuado só seria possível se a segunda resolução tivesse sido determinada por uma situação exterior ao agente que facilitasse a execução e diminuísse consideravelmente a culpa, e isso não terá ocorrido, segundo o acórdão. São co-autores de cinco crimes de violação os três arguidos que, ao aperceberem-se da presença de duas menores, formularam o propósito de as obrigarem a entrar numa viatura contra a vontade delas, as transportarem e de com elas manterem relações sexuais, o que vieram a fazer, sucessivamente, e por cinco vezes (Acórdão do STJ de 22 de Março de 1994, BMJ-435-530). O crime de violação consome o crime de ofensas corporais voluntárias cometido pelo agente na pessoa da ofendida, mas apenas na medida em que o uso dessa violência física não seja desproporcionado ao objectivo da violação. Sendo desproporcionado o uso dessa violência, o crime de ofensas corporais voluntárias autonomiza-se e existe concurso real de infracções (ac. da Relação de Coimbra de 18 de Outubro de 1989, BMJ-390-474). * Se a valoração da ofensa corporal como meio utilizado de execução do crime de violação esgotar a sua apreciação jurídica, haverá somente o crime de violação, ac. do STJ de 8 de Maio de 1997, BMJ-467-275. Comete os crimes de sequestro e de tentativa de violação o agente que fecha a ofendida num compartimento e, usando de força, tenta com ela manter relações sexuais (ac. do STJ, de 13 de Dezembro de 1991, CJ, 1991, t. 1, p. 21. Os actos de prática de acto sexual de relevo ou de cópula e de actos de carácter exibicionista perante uma criança integram um concurso real de crimes (ac. do STJ de 1 de Abril de 1998, CJ, ano IV (1998), tomo II, p. 175). Com a publicação do Código Penal de 1982, verifica-se o abandono do tipo complexo de roubo com violação, pelo que agora cada um dos componentes receberá autonomia (ac. do STJ de 25 de Maio de 1983, Simas Santos-Leal Henriques, Jurisprudência Penal, p. 439). Se o rapto for seguido de violação, haverá concurso de crimes. No caso de ter havido desistência de queixa pela violação, tal concurso não se verifica, mas nem por isso deixará de haver perseguição criminal pelo rapto (ac. do STJ de 16 de Maio de 1996, CJ, ano IV (1996), t. II, p. 182). Cf., ainda, o acórdão do STJ de 10 de Janeiro de 1996, BMJ-453-157 (rapto e violação de menor). 510 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Sobre situações de concurso real entre os crimes de violação, de atentado ao pudor e de sequestro, cf., ainda, os acórdãos do STJ de 21 de Junho de 1995, BMJ-448-148, e de 20 de Fevereiro de 1997, BMJ- 464-190, onde se distinguem os actos ofensivos do pudor sexual que são meros preliminares da cópula ou meios de excitação sexual que a preparam de outros, que são autonomamente levados em conta, não se verificando a consumação. Comete o crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, p. e p. pelos art.ºs 172, n.º 1 e 30, n.º 2, do CP, o arguido que ao se aperceber da presença de uma menor de 10 anos de idade, a segue, a agarra, a deita no chão, começando a beijá-la na cara e na boca, tirando-lhe de seguida as calças e as cuecas, deitando-se em cima dela, encostando-lhe o pénis erecto às coxas e aí o esfregou até ejacular sobre a menor, sendo certo que nos quinze dias seguintes, o arguido voltou a encontrar a menor naquele local e, por duas vezes, reiterou os actos supra descritos. 12-03-1998 Processo n.º 1429/97- 3.ª Secção Cada um dos três arguidos que conduziram a ofendida, por meio do uso da força física, para um determinado local, onde cada um deles teve duas vezes relações sexuais com aquela, contra a vontade da mesma, agindo em comunhão de esforços e identidade de fins, concretizando um plano previamente traçado, a que todos aderiram, cometeu três crimes de violação na forma continuada, p. p. pelo art. 164, n.º 1, do CP - um que executou materialmente e os outros dois em que tomou parte directa, em co- autoria - e não seis crimes de violação, porquanto se verificou a realização plúrima do mesmo tipo de crime, de forma homogénea, com conexão temporal e no quadro de uma solicitação exterior (o ambiente em que os crimes se deram) que diminuiu consideravelmente a sua culpa. 18-03-1998 Processo n.º 1544/97 - 3.ª Secção XIII. Negligência; resultado; unidade de conduta e pluralidade de eventos. CASO nº 46-G: A segue conduzindo o seu veículo automóvel, levando B e C como passageiros. Em certa altura do percurso distrai-se, invade a meia faixa contrária da via e o carro vai colidir violentamente com outro que vinha em sentido contrário pela sua mão de trânsito. B morre e C fica gravemente ferido. A definição de culpa inconsciente tem estado ligada à corrente jurisprudencial que entende que, em regra, só é possível formular um juízo de censura por cada comportamento negligente - a pluralidade de eventos delituosos (por ex., no mesmo acidente verificou-se a morte de uma pessoa e ferimentos em mais duas) não pode ter a virtualidade para desdobrar as infracções (cf. o Acórdão anotado por Pedro Caeiro/Cláudia Santos, in RPCC 6 (1996); Acórdão do STJ, BMJ-374-214; 387-320; 395-258; 403-150; CJ 1990, II, 11). Oa anotadores discordam: o resultado não é irrelevante para o preenchimento do ilícito nos crimes negligentes; a punição do concurso ideal no quadro da unidade criminosa não poderia fundamentar a decisão do tribunal (artigo 30º, nº 1); ainda que a decisão se baseie - como parece - na unicidade do juízo de 511 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. censura, em razões impostas pelo princípio da culpa, não é curial distinguir entre negligência consciente e inconsciente: a maior falta de respeito pelo outro reside precisamente na negligência inconsciente (Stratenwerth, p. 326). E havendo uma pluralidade de tipos preenchidos, imprescindível seria mostrar que a falta de representação dos factos só permite a formulação de um juízo de censura. Por outro lado, está excluída a continuação criminosa, visto tratar-se de bens eminentemente pessoais. A punição do crime continuado só tem sentido quando existem várias resoluções criminosas cuja censurabilidade é cada vez menor por força de um particular condicionalismo exterior ao agente. Não é possível estabelecer uma analogia com a diminuição da culpa que fundamenta as regras da punição do crime continuado. O caso enquadra-se na figura do concurso ideal heterogéneo (30º, nº 1, e 77º). Cumpriria então encontrar a pena única aplicável, de acordo com o princípio do cúmulo jurídico, começando por determinar a pena concreta cabida a cada um dos três crimes cometidos, nos termos do artigo 71º do CP; seguidamente, construir-se-ia a moldura do concurso (artigo 77º. nº 2, do CP) que teria como limite máximo a soma das três penas parcelares e como limite mínimo a pena concreta mais grave; finalmente, considerando conjuntamente os factos e a personalidade do agente, encontrar-se-ia a pena única a aplicar. O Acórdão da Relação de Évora de 7 de Dezembro de 1993, BMJ-432-446, entendeu que num acidente de viação que tem como consequência a morte de duas pessoas o agente causador do acidente comete, em concurso, dois crimes de homicídio involuntário. O acórdão do STJ de 17-12-1997, no Processo nº 1195/97, entendeu, porém, que "O concurso de crimes corresponde a uma pluralidade de crimes, não necessariamente a uma pluralidade de factos. Um só facto pode bastar para desenhar a figura do concurso ideal, que o código equipara ao concurso real, perfilhando o critério teleológico. Um só facto pode ofender vários interesses jurídicos ou repetidamente o mesmo interesse jurídico. Se a tais ofensas corresponderem outros tantos juízos de censura, verifica-se o concurso efectivo de crimes - real ou ideal. Portanto, na definição de concurso efectivo de crimes, não basta o elemento da pluralidade de bens jurídicos violados; exige-se a pluralidade de juízos de censura. Ora, o número de juízos de censura é igual ao número de decisões de vontade do agente dos crimes. Uma só resolução, um só acto de vontade, é insusceptível de provocar vários juízos de censura sem desrespeito do princípio ne bis in idem. Por isso, no concurso ideal, sendo a acção exterior uma só, a manifestação da vontade do 512 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. agente, quer sob a forma de intenção quer de negligência, tem de ser plúrima: tantas manifestações de vontade, tantos juízos de censura, tantos crimes. Nos termos do art. 15º do CP, o autor material de um crime culposo viola um dever de cuidado ou diligência, objectiva e subjectivamente. A manifestação de vontade do agente do crime culposo consiste, pois, na omissão voluntária de um dever; não tem por conteúdo o facto e as suas consequências. Num acidente de viação culposo, a acção voluntária do agente traduz-se no exercício de condução incorrecta, de consequências não previstas mas que se deviam prever. Sendo uma só a manifestação da vontade e um só o facto ilícito, ainda que de evento plúrimo, o número de juízos de censura não pode ultrapassar a unidade. A acção negligente do arguido, que com culpa grave deu causa ao acidente de que resultou a morte de uma pessoa e ofensas corporais noutras quatro, dirigiu-se exclusivamente à forma de condução. Sobre ele recai, portanto, um só juízo de censura como autor de um crime de homicídio por negligência grosseira. As ofensas à integridade física, porque não fazem parte do tipo de crime, são consideradas para efeitos do disposto na alínea a), do n. 2, do art. 71, do CP, aumentando o grau de ilicitude do facto." O acórdão do STJ de 8 de Janeiro de 1998, CJ 1998, tomo I, p. 173, considera que se não verifica concurso de infracções quando, do mesmo acidente e do mesmo comportamento negligente, resultar a morte de uma pessoa e ofensas corporais em outras - trata-se de crime de resultado múltiplo, em que se pune o mais grave, funcionando os outros como agravantes a ter em conta na fixação concreta da pena. Mas no acórdão do STJ de 8 de Julho de 1998, CJ 1998, ano VI, tomo II, p. 237, o Supremo considerou que a conduta era subsumível à previsão do crime culposo de violação de regras de construção (artigo 277º, nº 2) e subsumível, por duas vezes (eram duas as vítimas), ao tipo do homicídio por negligência grosseira do artigo 137º, nº 2, concluindo que em matéria de crimes involuntários praticados com negligência consciente o agente comete tantos crimes quantos os resultados que previu. Optando pelo concurso ideal de crimes, num caso de pluralidade de eventos — morte de uma pessoa e ferimentos noutra — resultantes directa e necessariamente da mesma conduta negligente, cf. o acórdão do STJ de 7 de Janeiro de 1959, BMJ-83-309, com a curiosidade de se referir a um acidente com um tractor numa mina sita em Malém, no "Estado Português da Índia". Quarenta anos depois, no processo da hemodiálise de Évora, o acórdão do STJ de 7 de Outubro de 1998, no processo nº 131/98, da 3ª secção, na linha do que "tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça", condenou o arguido por um único crime de homicídio negligente. Na 1ª instância, perante uma pluralidade de eventos mortais — oito —, o Colectivo decidira-se pelo concurso efectivo de crimes. Transcreve-se a seguir o sumário do acórdão do Supremo, cujo texto integral se pode ler na Revista do Ministério Público, ano 19 (1998), nº 76, com anotação de Paulo Dá Mesquita. Cf., ainda, o texto parcial do mesmo acórdão em CJ, acórdãos do STJ, ano VI (1998), tomo III, p. 183 e ss. * Sendo oito as mortes verificadas (por negligência), está-se perante 513 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. um concurso de crimes, já que por oito vezes se encontra violado o mesmo dispositivo legal: art.º 136, n.º 1, do CP de 1982 ou art.º 137, n.º 1, do CP de 1995. Tendo as oito mortes resultado como consequência necessária, directa e única da conduta negligente - omissão dos deveres de fiscalização da qualidade da água tratada para diálise - do arguido, que se prolongou de meados de 1992 a 22 de Março de 1993, verifica-se uma situação de concurso ideal. Estando-se perante uma negligência inconsciente - o arguido não chegou a representar a possibilidade de morte dos insuficientes renais crónicos por não proceder com o cuidado a que estava obrigado -, não havendo manifestação de vontade de praticar actos ou omissões de que saísse tal resultado, não pode falar-se de falta de consciência de ilicitude ou em erro sobre a ilicitude. Na negligência inconsciente a ilicitude está intimamente ligada tão só ao não proceder o agente com o cuidado a que está obrigado. Recorde-se aqui que o Prof. Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade, p. 114 e ss., apela para o criterio da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas: de resoluções de cometimento dos crimes, em caso de dolo; de resoluções donde derivaram as violações do dever de cuidado, em caso de negligência. Mas, como se viu, pode antes falar-se de uma pluralidade de resoluções no sentido de nexos finais; de uma pluralidade de violações do próprio dever de cuidado conexionado com um resultado típico concreto - o que teria a vantagem de desta forma não fazer ainda apelo aos juízos de censura (culpa) mas manter o critério dentro de parâmetros de relevância do ilícito-típico. Leia-se, com proveito: Pedro Soares de Albergaria / Pedro Mendes Lima, Condução em estado de embriaguez. Aspectos processuais e substantivos do regime vigente, in sub judice / ideias —17 (2000). XIV. Tráfico de estupefacientes; trato sucessivo; crime exaurido; continuação criminosa. CASO nº 46-H: O crime de tráfico de estupefacientes é um crime de actividade ou de trato sucessivo, pelo que se tem por unificada a prática repetida de actos do tipo dos indicados no art.º 21 do DL 15/93, de 22 de Janeiro. Comete o crime de tráfico de estupefacientes do art.º 21, n.º 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, o arguido que vinha exercendo, há largos anos, até à sua detenção, uma vastíssima actividade de compra e venda de heroína, sem que se provasse que ele tivesse por finalidade exclusiva conseguir droga para o seu consumo, se bem que fosse consumidor de heroína, ainda que a única droga que lhe fosse apreendida tivesse um peso bruto de 1,115 gr, e se destinasse exclusivamente à obtenção de meios para aquisição de droga, dado que esta quantidade excede a necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias. De acordo com o disposto no art.º 9 da Portaria 94/96, de 26-03 e respectivo mapa anexo, o limite máximo para cada dose média individual diária, para a heroína é de 0,1 gr. Ac. do STJ de 15 de Maio de 1997. Processo nº 9/97. 514 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Cf., ainda, o acórdão do STJ de 18 de Abril de 1996, CJ, ano IV (1996), p. 170; sumariado no BMJ-469-207 (tráfico de estupefacientes; crime exaurido; unidade e pluralidade de crimes; crime continuado). Escreve-se no acórdão: “O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é ou pode ser imputada a uma realização única, e desta forma aquele em que o resultado típico se obtem logo pela realização da conduta ilícita, de modo que a continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, se não traduz necessariamente na comissão de novas violações do respectivo tipo legal. Tem voto de vencido, a incidir sobre a noção de crime continuado e a situação de concurso real. XV. Unidade de resolução; unidade de infracções; caso julgado; preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial de qualquer das infracções. CASO nº 46-I: Quando o cheque, mesmo emitido pré-datado, podia constituir ilícito penal se não obtivesse provisão (antes, portanto, da publicação do Decreto-Lei nº 316/97, de 11 de Novembro), A procedeu ao preenchimento e entrega de vários cheques, ao mesmo tomador - B -, no mesmo dia e local, para pagamento de um único débito. B, que apresentou os cheques a pagamento, mas sem êxito, fez queixas sucessivas contra A. Por sentença transitada em julgado, decidiu-se que A agiu sem dolo na emissão de quatro desses cheques, que não foram pagos por falta de provisão, e foi absolvido. Num outro processo, julgado posteriormente, onde estava em causa o preenchimento, assinatura e entrega de mais quatro daqueles cheques, concluiu-se que a questão estava definitivamente prejudicada pela existência daquele caso julgado: "o caso julgado constitui excepção que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância - artigos 288º, nº 1, e), 493º, nº 2, e 494º, i), do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal" (acórdão do STJ de 17 de Setembro de 1997, BMJ-469-189). O tribunal entendeu que, de acordo com o critério de normalidade, tendo em conta a estreita conexão temporal em que se verificou o preenchimento e entrega dos cheques, todos ao mesmo tomador e para pagamento de um único débito, impõe-se concluir que à conduta de A, fraccionada nos vários actos de emissão, correspondeu um único processo de determinação ou uma só resolução. Consequentemente, a verificarem-se todos os elementos típicos do crime em questão, A teria cometido, não tantos quantos os cheques, mas apenas um único crime de emissão de cheque sem provisão. Em virtude 515 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. da existência de uma única resolução e do carácter essencialmente doloso do crime, A só é passível de um único juízo de censura, a título de dolo. Isso significa que, sendo aquele juízo de censura (tal como a resolução) incindível, não é lícito excluir o dolo de A em relação à emissão de algum ou alguns dos cheques e, simultaneamente, afirmá-lo quanto aos demais. Os factos apontados já não integrarão um ilícito penal, como se disse, mas pode bem acontecer que, noutro qualquer domínio, uma conduta se tenha naturalisticamente desdobrado em sucessivos actos que encontram a sua unidade no plano normativo pelas razões apontadas. A preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial de qualquer das infracções pode também acudir nos casos em que todas elas se encontram em relação de continuação. Cf. a anotação no BMJ-478-95. Julgado o arguido por factos integrados numa continuação criminosa, por sentença transitada em julgado, ficou consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outros factos integrados nesse crime, mesmo que por eles o arguido não tenha efectivamente sido julgado. E o mesmo acontece quanto aos factos naturalisticamente subsumíveis a uma mesma e única resolução criminosa que já foi objecto de conhecimento e decisão. Acórdão da Relação do Porto de 28 de Abril de 1999, CJ, 1999, tomo II, p. 235. XVI. O concurso de crimes pela negativa (outra vez o sistema 2 em 1 aplicado ao Direito Penal) No artigo 145º consta um dos vários crimes preterintencionais ou qualificados pelo resultado previstos no Código. Quem voluntariamente mas sem dolo homicida ofende outrem corporalmente e lhe produz a morte comete um só crime, um crime qualificado pelo evento, embora o facto seja subsumível a duas normas incriminadoras. Não funcionando as regras do concurso de crimes, o crime preterintencional revela então a "íntima fusão" de um facto doloso, que é já um crime, e um resultado negligente, que determina a agravação da responsabilidade. 516 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. XVII. Outras indicações de leitura • Código da Estrada (Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, na redacção do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro): artigo 136º, nº 2 — "As sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente". O regime do concurso material está igualmente consagrado no artigo 25º do RGIT (Regime geral das infracções tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho) para as sanções aplicadas às contra-ordenações. • Assento de 19 de Fevereiro de 1992, BMJ-414-73, com o Parecer do MP (falsificação, burla, concurso real). • Assento do STJ de 19 de Fevereiro de 1992, BMJ-414-73: fixa jurisprudência no sentido de resolver segundo as regras do concurso efectivo os casos em que o comportamento realiza as previsões da falsificação e da da burla — “são diversos e autónomos, entre si, o bem jurídico violado pela burla e o bem jurídico protegido pela falsificação (...), ou sejam, respectivamente, o património do burlado e a fé pública dos documentos necessária à normalização das relações sociais”. • Assento nº 8/2000, de 4 de Maio de 2000, publicado no DR I - A de 23 de Maio de 2000: No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes. • Acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2003, de 7 de Maio de 2003, publicado no DR I-A. de 10 de Julho. Na vigência do RGIFNA, aprovado pelo DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção original que lhe foi dada pelo DL nº 394/93, de 24 de Novembro, não se verifica concurso real entre o crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 23º daquele RGIFNA, e os crimes de falsificação e de burla, previstos no Código Penal, sempre que estejam em causa apenas interesses fiscais do Estado, mas somente concurso aparente de normas, com prevalência das que prevêem o crime de natureza fiscal. • Acórdão nº 212/2002 do Tribunal Constitucional de 22 de Maio de 2002, publicado no DR-II série de 27 de Setembro de 2001: artigo 77º, nº 1, do Código Penal; entendimento quanto a ser o momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico e da consequente unificação das penas o trânsito em julgado da decisão condenatória — com a consequência de que a prática de novos crimes, posteriormente ao trânsito de uma determinada condenação, dará origem à aplicação de penas autonomizadas. • Acórdão do STJ de 17 de Março de 2004, CJ 2004, tomo I, p. 229: situação que determina uma sucessão de penas; situação de concurso de penas); o limite, determinante e intransponível, da consideração da pluralidade de crimes para efeito de aplicação de uma pena única, é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes praticados anteriormente; no caso de conhecimento superveniente aplicam-se as mesmas regras, devendo a última decisão, que condene por um crime anterior, ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse tido conhecimento da prática do facto. 517 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do STJ de 24 de Maio de 2000, BMJ-497-310: reformulação de cúmulo anterior e princípio ne bis in idem. • Acórdão do STJ de 1 de Março de 2000, BMJ-495-59: contém uma operação de cúmulo sucessivo dos efeitos de diversas atenuantes especiais aplicáveis ao agente, num caso de menoridade imputável. • Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Novembro de 1992, CJ, ano XVII (1992), tomo V, p. 167: concurso aparente de infracções; facto posterior não punível. • Acórdão do STJ de 24 de Maio de 2000, CJ ano VIII (2000), tomo 2, p. 204: no caso de conhecimento superveniente de concurso de crimes, o cúmulo final a efectuar deve abranger também as penas que foram consideradas em cúmulo anterior, mesmo que extintas, total ou parcialmente, por perdão, já que o trânsito em julgado das condenações parcelares, anteriormente proferidas, não representa obstáculo à realização do cúmulo a que o conhecimento superveniente do concurso obriga. • Acórdão do STJ de 24 de Junho de 1999, BMJ-488-194: concurso de crimes; pena única e penas parcelares; critérios legais de fixação. • Acórdão do STJ de 6 de Março de 2002, CJ 2002, tomo I, p. 220: a pena de prisão, resultante da conversão da pena de multa, pode ser cumulada com pena de prisão, mas mantém a sua autonomia como pena parcelar e, por isso, nada obsta a que o condenado efectue o respectivo pagamento, em qualquer momento, reformando-se depois o cúmulo, se for caso disso. • Acórdão do STJ de 10 de Outubro de 2001, CJ, 2001, ano IX, tomo III, p. 189: apesar de ter transitado em julgado o despacho que revogou a suspensão da execução de uma pena, é admissível suspender-se a execução da pena única resultante da reformulação de cúmulo jurídico em que aquela se integre. • Acórdão do STJ de 17 de Dezembro de 1999, BMJ-492-183: na determinação da pena resultante do concurso de crimes é afastada desde logo a possibilidade de aplicação das penas de substituição às penas parcelares e tem como limite máximo as somas destas e no limite mínimo a mais elevada das penas parcelares. Uma vez encontrada esta moldura penal, então a pena única tem de ser determinada com base nos factos e na personalidade do agente, tendo em conta também as exigências gerais de culpa e de prevenção, podendo, com estes fundamentos, ser revogada a suspensão de uma ou mais penas parcelares em concurso, ainda que aplicada em decisão transitada em julgado. Configurando a actividade desenvolvida pelo arguido uma “carreira criminosa”, pode ser atribuído à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal. • Acórdão do STJ de 17 de Março de 1999, BMJ-485-121: na operação do cúmulo jurídico não deve ser considerada a pena declarada extinta pelo decurso do prazo da suspensão. No momento da sua realização, o tribunal deve ter em conta a personalidade do arguido e a sua conduta posterior aos factos, devendo, para o efeito, efectuar as diligências que entender necessárias. • Acórdão do STJ de 29-03-2001 proc. nº 128/01 - 5.ª Secção: Nada obsta a que num cúmulo jurídico realizado sob a égide do art. 78.º do CP, se não aplique (ou se suprima) uma medida de suspensão de execução da pena que haja sido determinada em decisão anterior. Mesmo que razões legítimas de economia processual conduzam a não obstacular que na própria sentença que culmine a audiência de 518 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. julgamento destinada a conhecer de determinado crime, o tribunal julgador realize, para efeito do n.º 2 do art.º 78 do CP, uma operação de cúmulo jurídico, ainda assim e no concernente a esta particular incidência, terá de proceder de forma a que a dita incidência seja encarada de maneira autónoma e, em termos de homenagem a um contraditório autónomo, propiciar nesse individualizado aspecto, uma defesa autónoma. Se não se proceder assim, ficará padecendo de nulidade a decisão consubstanciadora da operação de cúmulo jurídico, de algum modo pela mesma ratio em que se radica a nulidade contemplada na al. b) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP (também ela ligada à garantia de uma defesa integral), e sob outro prisma, pela circunstância de ajuizar de questão de que o tribunal não poderia tomar conhecimento sem observância prévia do formalismo normativamente exigido (cfr. artigos 472º e 379º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal. • Acórdão do STJ de 14 de Abril de 1999, CJ, acórdãos do STJ, ano VII, tomo 2, p. 174: verifica-se concurso real de um crime de homicídio e de dois de roubo quando os arguidos, para se apoderarem do dinheiro que levava, matam o motorista do taxi e depois o conduzem para local ermo, onde lhe retiram o dinheiro. • Acórdão do STJ de 16 de Junho de 1994, CJ de Acórdão do STJ, ano II, tomo 2, p. 253: é sempre necessário, para a determinação do número de crimes de roubo efectivamente praticados, determinar previamente se e em que medida o crime contra as pessoas foi meio para atingir o crime-fim. • Acórdão do STJ de 17 de Novembro de 1993, BMJ-431-240: cometido o crime de roubo por determinado indivíduo relativamente a várias pessoas, são-lhe imputáveis tantos crimes dessa espécie quantas as pessoas ofendidas. • Acórdão do STJ de 19 de Outubro de 1994, BMJ-440-142: concurso de infracções, furto e burla; resumo das teses do Prof. Eduardo Correia. • Acórdão do STJ de 2 de Junho de 1999, BMJ-488-181: burla e falsificação de documento; concurso de infracções. • Acórdão do STJ de 2 de Março de 1995, BMJ-445-80: sobre o princípio ne bis in idem; falsificação e burla. • Acórdão do STJ de 8 de Janeiro de 1998, CJ 1998, tomo I, p. 185: conduta que preenche os elementos integrantes dos crimes de uso de documento de identificação alheia e de burla: concurso real e efectivo de crimes. • Acórdão do STJ de 5 de Julho de 2000, CJ 2000, tomo II, p. 234: deve continuar a seguir-se o entendimento contido no acórdão para fixação de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992, segundo o qual “no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228º, nº 1, alínea a) e do artigo 313º, nº 1, do CP, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes”. • Acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 1992, BMJ-413-217: invoca o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela actuação do agente ou ao número de vezes que essa conduta desenhou o mesmo tipo legal de crime; falsificação e burla. • Acórdão do STJ de 3 de Dezembro de 1998, processo nº 728/98: porque o uso de artifício ou meio fraudulento exigido pela figura criminal da burla compreende a prática de uma falsificação - que em 519 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. si mesma traduz o recurso a um meio fraudulento - pese embora a redacção do art.º 217, n.º 1, do Código actual, ser idêntica à do correspondente artigo do Código de 1982, deve regressar-se ao entendimento de que o crime de burla consome o crime de falsificação, quando cometido através desta. Relator: Cons. Sá Nogueira. Tem voto de vencido). • Acórdão da Relação de Coimbra de 10 de Janeiro de 2001, CJ, ano XXVI (2001), tomo I, p. 47: concurso de crimes: burla informática e furto, artigos 203º e 221º — A apropriou-se ilicitamente de um cartão multibanco e do respectivo código; depois, sem autorização do titular, durante uns 20 dias foi retirando dinheiro das caixas bancárias respectivas. • Acórdão do STJ de 4 de Junho de 1998, BMJ-478-183: crime de falsificação de cartões de crédito e crime de burla informática; há concurso real, verdadeiro ou puro, quando os tipos penais preenchidos pela conduta do agente, não estando em relação de hierarquia, surgem como concorrentes na aplicação concreta da punição e verificando-se independência entre si dos bens, valores e interesses jurídicos protegidos e autonomia perante cada ilícito praticado. • Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Janeiro de 2001, CJ, ano XXVI 2001, tomo I, p. 142: A preenche e assina 10 cheques de que se apropriara, com o propósito de receber os respectivos montantes: unidade de desígnio criminoso — um único crime de falsificação do artigo 256º, nºs 1, a), e 3. • Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Fevereiro de 1997, BMJ-464-607: no crime de omissão de auxílio cometem-se tantos ilícitos quantas as vítimas deixadas sem socorro. • Acórdão da Relação do Porto de 11 de Dezembro de 1996, CJ, ano XXI (1996), tomo V, p. 242: comete um só crime e não dois o arguido encontrado com duas navalhas no bolso das calças. Havendo uma só resolução criminosa e estando em causa o mesmo tipo legal de crime, este há-de ser necessariamente único, qualquer que seja a configuração naturalística da acção. • Acórdão da Relação do Porto de 15 de Dezembro de 1999, CJ ano XXIV (1999), tomo V, p. 239: o crime de fraude fiscal - artigo 23º, nº 3, e), do RJIFNA, na redacção do DL nº 394/93, de 24 de Novembro -, consome o crime de falsificação. • Acórdão do STJ de 28 de Abril de 1999, Revista do Ministério Público, ano 20 (1999), nº 79, p. 153: fraude fiscal, burla: relação de especialidade. • Acórdão do STJ de 10 de Novembro de 1999, BMJ-491-71: vigora uma relação de especialidade e consunção entre o direito tributário e o direito penal, consagrando o artigo 13º do RJIF não Aduaneiras o princípio de não verificação de concurso real com incriminações e penas do Código Penal, quando as condutas põem em causa apenas os interesses do Fisco. • Acórdão da Relação de Coimbra de 21 de Novembro de 1996, CJ, ano XXI (1996), tomo V, p. 52: pratica dois crimes de difamação, por ofender a honra e consideração de dois ofendidos, aquele que, dirigindo-se a outras pessoas, afirmou que "o A e o B andam a sair todos os dias logo pela manhã, se calhar andam-se a papar um ao outro". • Acórdão da Relação de Coimbra de 8 de Novembro de 1995, CJ, ano XX (1995), tomo V, p. 65: pratica dois crimes de omissão de assistência material à família (197º CP-82) e não apenas um, o 520 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. arguido que tendo sido condenado a pagar alimentos a duas filhas menores, intencionalmente não cumpre tal obrigação. • Acórdão da Relação do Porto de 29 de Março de 2000, CJ ano XXV (2000), tomo II, p. 238: crime continuado. Factos ainda não julgados. • Acórdão do STJ de 12 de Outubro de 1995, BMJ-450-314: à verificação do crime continuado é inerente a existência de uma pluralidade de resoluções ou desígnios criminosos a presidir aos sucessivos actos ilícitos praticados. Se em lugar de uma pluralidade de resoluções há uma única resolução que se mantém e preside à prática de todos esses actos, o crime é necessariamente único. O Acórdão aborda ainda a questão dos poderes de cognição do juiz em sede de crime único e não - como é normal - em sede de crime continuado. • Acórdão do STJ de 2 de Março de 2000, BMJ-495-93: crime continuado, pressupostos, caso julgado, novos factos. • Acórdão do STJ de 14 de Fevereiro de 1951, BMJ-23-161: a doutrina, mesmo antes do Decreto nº 20.146, sempre admitiu tal categoria de infracções (crime contínuo ou continuado), sem a restringir ao furto (por exemplo, Navarro de Paiva, Estudos de Direito Penal, pág. 59; Caeiro da Mata, Direito Criminal Português, vol. 2º, pág. 208; sem qualquer reserva, jà Pereira e Sousa dividia os crimes, quanto ao objecto, em simples e continuados, repetidos e concorrentes (Classe de Crimes, ed. de 1803, pág. 8, nota 12). • Acórdão do STJ de 13 de Fevereiro de 1997, BMJ-464-359: ulterior conhecimento judicial de qualquer das infracções pertinentes à relação de continuação; princípio ne bis in idem. Acórdão do STJ de 17 de Abril de 1997, BMJ-466-228: a questão do crime continuado, com desenvolvimentos. • Acórdão do STJ de 24 de Novembro de 1993, BMJ-431-255: ocupa-se dos pressupostos do crime continuado, transcrevendo as quatro situações exteriores referidas pelo Prof. Eduardo Correia, in Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1967, p. 246. • Acórdão do STJ de 11 de Dezembro de 1997, BMJ-472-361: crime continuado: pressupostos; descoberta da comissão de outros factos - que, eventualmente poderiam estar na continuação - depois de julgado o agente por factos constitutivos de um crime continuado; caso julgado. • Acórdão do STJ de 24 de Setembro de 1992, BMJ-419-469: parcelas da continuação criminosa não apreciadas em anterior julgamento. • Acórdão do STJ de 4 de Novembro de 1992, CJ, ano XVII (1992), tomo V, p. 5: descoberta da prática de actos ilícitos idênticos a outros pelos quais o agente já tenha sido julgado; hipóteses diversas tratadas no voto do vencido. • Acórdão do STJ de 4 de Junho de 1997, BMJ-468-79: bens jurídicos essencialmente pessoais; ameaças. • Acórdão do STJ de 10 de Maio de 2000, CJ ano VIII (2000), tomo 2, p. 184: havendo perdões previstos em várias leis, aplicáveis apenas a algum ou alguns dos crimes, na determinação da pena única há que proceder a cúmulos parciais sobre os quais se aplicará o perdão, entrando os remanescentes, a final, com as penas dos crimes a que se não aplicou o perdão. Tem voto de vencido 521 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do STJ de 24 de Novembro de 1999, CJ ano VII (1999), tomo 3, p. 206: cúmulos parciais por existência de perdões previstos em várias leis, aplicáveis apenas a algum ou alguns dos crimes; concurso dos remanescentes com as penas dos crimes a que se não aplicou o perdão. • Acórdão do STJ de 23 de Novembro de 2000, CJ-STJ, ano VIII (2000), tomo III, p. 217: quando o arguido tenha sido condenado em pena de prisão por crime que não beneficia de perdão, nos termos da Lei nº 29/99, e doutro que dela beneficia, o cúmulo jurídico só se faz depois de aplicado o perdão à pena do crime que dela beneficia; tendo o arguido sido condenado por um crime de roubo de 18 meses de prisão, a que é aplicável perdão, e em 16 meses por um crime de tráfico, que dele não beneficia, há que perdoar um ano ao crime de roubo e fazer o cúmulo do remanescente (6 meses) com a pena de 16 meses do tráfico. Tem um voto de vencido). Para o entendimento da divergência de opiniões quanto ao modo de elaborar o cúmulo parcelar: acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 2000. BMJ-493-299 e a correspondente anotação. • Acórdão do STJ de 18 de Outubro de 2000, CJ-STJ, ano VIII (2000), tomo III, p. 205: cúmulo jurídico com penas que não beneficiam de perdão. Concorrendo no mesmo cúmulo jurídico penas beneficiárias de perdão com penas não beneficiárias de perdão, deve proceder-se previamente e com o único objectivo da determinação da extensão do perdão a sub-cúmulo jurídico das penas beneficiárias de perdão, o qual - perdão - só será aplicado, depois e a final, à pena única que resultar do cúmulo da totalidade das penas parcelares; não se procederá assim, porém, quando o perdão exceder a pena única resultante do sub-cúmulo das penas parcelares abrangidas pelo perdão; em tal hipótese, o perdão deve ser aplicado de imediato, uma vez que extingue tal pena, restando então a pena ou penas que não beneficiam do perdão. • Acórdão do STJ de 3 de Maio de 2000, BMJ-497-118: O sequestro pode concorrer com o crime complexo de roubo. O concurso será aparente, por uma relação de subsidiariedade, sempre que a duração da privação da liberdade de locomoção não ultrapasse a medida naturalmente associada à prática do crime de roubo, como crime-fim. Constitui, pelo contrário, concurso efectivo quando essa privação da liberdade se prolongue ou se desenvolva para além daquela medida, apresentando-se a violação desse bem jurídico em extensão ou grau tais que a sua protecção não pode considerar-se abrangida pela incriminação pelo crime de roubo. • Acórdão do STJ de 3 de Julho de 1996, CJ, ano IV (1996), tomo II, p. 210: A e B ataram as mãos de C atrás das costas, obrigaram-no a sentar-se no carro e apoderaram-se de diversos valores que fizeram seus, abandonando depois o local e ficando C amarrado no interior da viatura - roubo e sequestro). Cf. também o acórdão da Relação de Coimbra de 14 de Novembro de 2001, CJ, ano XXVI (2001), tomo V, p. 132 (automobilista que dá boleia aos ladrões que se apropriam de valores e do veículo, forçando a vítima a nele permanecer enquanto a conduziam para outro local, contra a sua vontade. Acórdão do STJ de 6 de Março de 2002, CJ 2002, tomo I, p. 222: com o entendimento de que o sequestro necessário à execução do roubo no ATM não se manteve para além do necessário à consumação do roubo e, como tal, não concorreu efectivamente para ele (tem voto de vencido). Acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Dezembro de 2003, CJ 2003, tomo V, p. 154: quando a 522 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. privação da liberdade da vítima permaneça após a consumação do crime de roubo, verifica-se a prática em acumulação real dos crimes de roubo e sequestro. • Acórdão do STJ de 18 de Abril de 2002, CJ 2002, tomo II, p. 178: podem coexistir, em concurso real, os crimes de roubo e de sequestro, quando o agente, para subtrair bens ao lesado, antes ou depois de a subtracção ser consumada, para além da agressão física, se socorre de violenta privação da sua liberdade. • Acórdão do STJ, de 13 de Dezembro de 1991, CJ, 1991, t. 1, p. 21 comete os crimes de sequestro e de tentativa de violação o agente que fecha a ofendida num compartimento e, usando de força, tenta com ela manter relações sexuais • Anotação ao acórdão do STJ de 17 de Setembro de 1997, BMJ-469-189: numerosas referências sobre a unidade de resolução criminosa e a unidade de infracções. • Harald Greib, Verblüffend einfach: Die nachträgliche Bildung der Gesamtstrafe nach §§ 55 StGB, 460 StPO, JuS 1994, p. 690. • Adelino Robalo Cordeiro, A determinação da pena, Jornadas de Direito Criminal, Vol. II, CEJ, 1998. • Beleza dos Santos, Crime Continuado, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 75 (1943), p. 337. • Cuello Calón, Derecho Penal, tomo I (Parte General), vol. 2º, 16ª ed., p. 648 e ss. • Edmund Mezger, Derecho Penal, Parte General, Libro de estudio, 1958, • Eduardo Correia, Direito Criminal, II, p. 208 e ss. • Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, 1963. • Faria Costa, Formas do crime, Jornadas de direito criminal, CEJ, p. 177. • Furtado dos Santos, O Crime continuado - Elementos, BMJ-42-407. • Furtado dos Santos, O Crime continuado - Origem, evolução, conceito, natureza, fundamento e delimitação, BMJ-39-359. • Furtado dos Santos, O Crime continuado, BMJ-47-497. • Gerhard Timpe, Fortsetzungszusammenhang und Gesamtvorsatz, JA 1991, p. 12. • Germano Marques da Silva, Notas sobre o regime geral das infracções tributárias, Direito e Justiça, 2001, tomo 2. • Gimbernat Ordeig, La responsabilidad por el resultado, in Delitos cualificados por el resultado y causalidad, 1990, p. 165. • Gomes da Silva, Direito Penal, 2º vol. Teoria da infracção criminal. Segundo os apontamentos das Lições, coligidos pelo aluno Vítor Hugo Fortes Rocha, AAFD, Lisboa, 1952. • H.-H. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts, Allg. Teil, 4ª ed., 1988. • Hans Welzel, Das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., 1969, parcialmente traduzido para espanhol por Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez com o título Derecho Penal Aleman, Editorial Jurídica de Chile, 4ª ed., 1997. • Helena Moniz, Burla e falsificação de documentos: concurso real ou aparente? Assento nº 8/2000 do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 2000. RPCC 10 (2000), p. 457. 523 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Hermann Blei, Strafrecht I, Allg. Teil, 18ª ed., 1983. • Johannes Wessels, Derecho Penal. 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Nesta perspectiva retributiva, a pena serve para castigar uma pessoa por aquilo que ela fez, não tem por isso a finalidade de evitar crimes futuros, antes punir crimes já realizados (quia peccatum est). É uma conclusão de acordo com as teorias absolutas, segundo as quais “poena est absoluta ab effectu” (a pena é independente das suas consequências). ( 41 ) Se a pena se destina a punir o crime e assim realizar a justiça, e se simultaneamente deve ser justa, a retribuição deverá ser o veículo através do qual actua o princípio de que ela será sempre proporcional à “maldade interior do delinquente” ( 42 ). 41 As teorias são chamadas “absolutas” por terem o entendimento comum de que a pena se desvincula, se desliga (latim: ab-soluta), de quaisquer efeitos e que é “justa”, por si só, enquanto se revelar como adequada reacção do Estado ao facto violador da norma. Para as teorias retributivas não se trata de aplacar o sentimento jurídico de uma sociedade satisfazendo um desejo natural de reparação, nem se justifica a vingança da vítima ou de um seu parente chegado sobre a pessoa do agente. Não é este o lugar para dissertar sobre a “Lei de talião”, que determina a medida da sanção pela gravidade do prejuízo sofrido: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé (Deuteronomio). As teorias absolutas entraram em crise com a Ilustração, mas foram relançadas no século 19 graças a duas ilustres versões laicas: a tese de origem kantiana segundo a qual a pena é uma retribuição ética, justificada pelo valor moral da lei penal infringida pelo culpado e do castigo que em consequência se lhe aplica; e a de ascendência hegeliana, para a qual se trata de uma retribuição jurídica justificada pela necessidade de reparar o direito com uma violência de sinal contrºário que restabeleça a ordem legal violada.Cf. Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 254. 42 Kant afirma, na Metafísica dos Costumes, que a lei penal é um imperativo categórico e que a pena se dirige contra a “maldade interior” dos criminosos. 525 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Por conseguinte, aos incapazes de compreender o significado do mal praticado não cabe qualquer pena, tanto mais que não é justo punir quem não tem culpa. Para outros ideários a pena não pode visar fins como o castigo ou a expiação. É uma conclusão de acordo com as teorias relativas, segundo as quais “poena est relativa ad effectum” (a pena está relacionada com as suas consequências). Em termos de política criminal, a pena, enquanto pena “razoável”, orienta-se, no que toca aos seus efeitos, para o próprio delinquente (prevenção especial), mas também para a comunidade (prevenção geral). Pertence ao Estado a realização do bem comum, por isso deve a pena cumprir uma função social, ser-lhe assinado um fim utilitarista, isto é, fins preventivos. Historicamente, o objectivo da punição é o de, através da ameaça da pena, dissuadir a prática de crimes, mas também o de evitar novas violações da norma, induzindo o sujeito ao seu cumprimento pelo medo de enfrentar, também ele, a reacção penal. Bentham dizia assim: A prevenção dos delitos divide-se em duas classes que são: prevenção particular que se aplica ao delinquente, e a prevenção geral que se aplica a todos os indivíduos da sociedade sem excepção. No plano individual, a prevenção (prevenção especial) intenta dissuadir o próprio delinquente potencial. A prevenção geral negativa (de intimidação) visa impedir ou reduzir o cometimento de crimes pelos outros membros da comunidade. Mas se considerarmos que o efeito preventivo “se obtém, precisamente, através de um objecto, o delinquente a quem é imposta a pena para servir de exemplo, nada obsta a que possa desprezar-se a culpa e se prossiga o mesmo fim ainda que através de um inimputável (Carlota Pizarro de Almeida) ( 43 ). À prevenção geral positiva ou de integração atribui-se o reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; “em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida” (Figueiredo Dias, Direito penal português, p. 72). Trata-se tanto da 43 “Nada impede, em sede de prevenção geral negativa, que aos inimputáveis sejam aplicadas penas. Se reconhecermos, no entanto, que a esta teoria terá de opor-se os limites constituídos pelo respeito da dignidade humana e pelo princípio da culpa, devemos excluir sem hesitações a punição dos inimputáveis — por via desses limites” (Carlota Pizarro de Almeida, ob. cit., p. 27). 526 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pacificação da sociedade depois da comoção provocada por um crime, como da restauração da ordem e do direito ofendido, e portanto da tutela da confiança comunitária na validade das normas. Ora, os actos praticados por alguém sob influência de uma patologia psíquica não põem em causa essas expectativas, daí que, deste ponto de vista, se entenda não ser útil nem necessário aplicar penas ao doente mental. A primitiva redacção do Código Penal desconhecia um preceito, como o actual artigo 40º, sobre as finalidades da punição, introduzido em 1995. ( 44 ) No direito vigente, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, e a reintegração social do agente (artigo 40º, nº 1). A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa (artigo 40º, nº 2), ou seja, não há pena sem culpa e a culpa decide da medida da pena. Esta ideia de que o direito penal visa apenas (ou, para alguns autores: em primeira linha) a protecção de bens jurídicos é hoje praticamente indiscutível. Acolhendo-se, como faz o Código, a protecção de bens jurídicos como uma das finalidades da decisão de punir, segue-se daí a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes por outros elementos da comunidade. Com a chamada prevenção geral pretende-se impedir que as pessoas cometam crimes ou mesmo só reduzir a criminalidade. Mas a protecção de bens jurídicos significa também prevenção especial, no sentido de impedir que o próprio delinquente volte a cair no crime. A reintegração do agente exige por seu turno que tanto no momento da aplicação da pena como no da sua execução se atenda a uma finalidade de prevenção especial ou individual. A função retributiva da pena foi recebida ao longo dos tempos com altos e baixos, mas hoje entende-se que a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens 44 A necessidade do artigo 40º tem sido explicada, ou explicada também, pelas dificuldades sentidas pelos tribunais na aplicação das disposições dos artigos 71º e 72º do Código Penal de 1982 no tocante aos critérios de determinação da medida da pena. 527 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. jurídicos. ( 45 ) Está por isso excluída a retribuição. Finalmente —já o vimos noutro lugar— a pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser, para alguns autores, desnecessária, “segundo critérios preventivos especiais”, ou ineficaz “para a realização da prevenção geral” (cf. Fernanda Palma, p. 27). Nos artigos 40º, nº 2, e 70º (a contrario), é expressamente atribuída à culpa uma função restritriva, “o que significa que a culpa como censura da pessoa do agente (da sua vontade ou da sua orientação de conduta) não justifica a pena nem a sua medida judicial, mas apenas impede que razões preventivas justifiquem uma pena não proporcionada (superior) à culpa do agente” (Fernanda Palma, p. 27). São fundamentalmente as necessidades preventivas que determinam a pena judicial, concreta, funcionando a culpa do infractor apenas como seu limite máximo. CASO nº 24: A foi julgado em processo sumário e condenado na pena de 45 dias de multa à taxa diária de 10 euros por conduzir automóvel na via pública com uma tas (taxa álcool no sangue) de 1,8 g/l, podendo saber, por ser médico, que as bebidas que ingeriu excediam tanto a margem mínima permitida por lei como o limite de 1,2 g/l estabelecido na lei penal. Além da pena de multa, a sentença aplicou a A, nos termos do artigo 69º, nº 1, alínea a), a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de cinco meses. O Código Penal fornece-nos um conjunto de penas: a pena de prisão —que priva da liberdade pessoal—, a de multa —pena pecuniária que priva de valores patrimoniais—, a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, a pena de suspensão da execução da pena de prisão e a admoestação. São todas elas verdadeiras penas — “dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medida à luz dos critérios gerais de determinação da pena” (artigo 71º). As penas curtas de prisão por dias livres ou a prisão em regime de semidetenção são modos de cumprimento das penas breves de prisão. Em 45 Para o Conselheiro José de Sousa Brito a pena visa retribuir a culpa, mas a culpa só é retribuída na medida necessária à protecção dos bens jurídicos. Trata-se de uma teoria retributiva que entronca directamente em Platão, como uma teoria material e relativa, como reparação da culpa pela reintegração do criminoso. É uma reparação jurídica e proporcional à culpa que pressupõe uma prévia determinação das espécies e da gravidade das penas segundo critérios da necessidade de protecção subsidiária de bens jurídicos, a qual, em nome da própria economia de meios implicada pela prevenção geral, de per si implica a máxima eficácia preventiva possível. Cf. RPCC 10 (2000), p. 493. 528 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. certas circunstâncias, o tribunal pode declarar o réu culpado, mas não aplicar qualquer pena: a dispensa de pena vem regulada no capítulo da escolha e medida da pena. Noutro capítulo, a partir do artigo 65º, o Código dispõe sobre penas acessórias, como a proibição do exercício de funções e a proibição de conduzir veículos com motor, e os efeitos das penas, como a perda dos direitos e regalias atribuídos ao titular, funcionário ou agente, proibido do exercício de função público, ou dele suspenso. As penas acessórias pressupõem que o juiz na sentença fixe uma pena principal, esta sim, imposta com independência de qualquer outra. São penas principais as penas de prisão, que são penas privativas da liberdade, e as penas de multa, que são penas pecuniárias. A pena de morte, que priva da vida, foi abolida há mais de cem anos. Em caso algum haverá pena de morte, diz o artigo 24º, nº 2, da Constituição da República. Também não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, prescreve, por seu turno, o artigo 30º, nº 1, da Lei Fundamental. A norma legal que preveja uma pena fixa pode violar o princípio da proporcionalidade. Na previsão das penas deve o legislador procurar uma justa medida, uma adequada proporção, entre as penas e os factos a que elas se aplicam: a gravidade das penas deve ser proporcional à gravidade das infracções, de modo que a ideia da necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcionalidade. Só prevendo o legislador penas variáveis pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de prevenção e às demais circunstâncias que ele deve considerar. Quanto à pena de prisão, diz-se de muitos lados que ela deverá ser o último recurso da política criminal e portanto do sistema penal sancionatório, o que está em consonância com a circunstância de o direito penal, enquanto direito de protecção (só pode intervir para a protecção de bens jurídicos, mas de bens jurídicos com dignidade penal, com ressonância ética) cumprir uma função de ultima ratio. Em geral, o direito penal só se justifica que intervenha se a protecção de bens jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o recurso a outras medidas de política social menos violentas e gravosas do que as sanções criminais. Por isso, é preocupação do legislador que o tribunal dê preferência à pena não detentiva da liberdade (artigo 70º). Assim aconteceria no caso nº 24: o comportamento de A viola o disposto no artigo 292º, nº 1, punível com 529 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, mas o tribunal, em obediência ao critério formulado no artigo 70º, optou por aplicar a segunda alternativa sancionatória, castigando o infractor com multa, por considerar que esta realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Além disso, condenou o A na proibição de conduzir veículos com motor por 5 meses, fazendo com que à pena de multa acresça a pena acessória que o artigo 69º, nº 1, manda fixar entre três meses e três anos. Por outro lado, reconhece-se que a eficácia do sistema penal não depende necessariamente da severidade ou do agravamento das penas (antes, provavelmente, da resposta em tempo útil à criminalidade, actuando o sistema com rapidez e eficácia), pelo que se tende a estabelecer um limite máximo para a pena de prisão que não comprometa irremediavelmente o regresso do condenado à vida em sociedade. O artigo 41º estabelece em 20 anos o limite máximo da pena de prisão e tem como inultrapassável o limite de 25 anos, nos casos previstos na lei: o homicídio qualificado (artigo 132º, nº 1), e o genocídio (artigo 239º, nº 1), não podendo a punição do concurso ultrapassar 25 anos de prisão (artigo 77º, nº 1). No Código, os crimes mais graves são punidos unicamente com pena de prisão, como o homicídio do artigo 131º, mas o homicídio por negligência, previsto no artigo 137º, nº 1, é punido em alternativa com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (a fixar, de acordo com a regra do artigo 47º, nº 1, na moldura penal cujo limite mínimo é de 10 dias e máximo de 360). Há por outro lado tipos penais que são punidos unicamente com multa (cf. artigos 49º, nº 1, 265º, nº 2, a) e b), 268º, nº 3, e 366º, nº 2). ( 46 ) Vejamos a este propósito o CASO nº : A, condoído com o estado de B, que sofre dores horríveis e a quem os médicos já não dão a mínima esperança, acede ao pedido sério, instante e expresso que B lhe faz para que o mate, acabando 46) O que poderá relevar, por ex., para a detenção em flagrante delito, que só está autorizada sendo o crime punível com pena de prisão (artigo 255º, nº 1, do Código de Processo Penal). Já agora, atente-se no respectivo nº 4: tratando-se de crime cujo procedimento dependa de acusação particular (cf., por ex., os artigo 180º, 181º e 188º, nº 1, e o artigo 207º, a), do Código Penal), não há lugar a detenção em flagrante delito, mas apenas à identificação do infractor. 530 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. por lhe administrar uma dose elevada de heroína, que se revelou suficiente para acabar com a vida do doente terminal. O ilícito atribuível a A é o do artigo 134º, nº 1, punido com pena de prisão até 3 anos, isto é, numa moldura penal cujo mínimo é de um mês de prisão e máximo de 3 anos (artigo 41º, nº 1). Não prevê a norma a sanção pecuniária, que por isso não fica à disposição do juiz como pena alternativa. Atendendo aos critérios de determinação da pena judicial, concreta, previstos no artigo 71º, o juiz castigará a conduta de A, vamos supor, com a pena de um ano de prisão. Ainda assim, não pode o juiz limitar-se a esta operação, pois é seu dever averiguar se, atendendo à personalidade de A, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, lhe deverá suspender a execução da pena, concluindo, em prognose favorável a A, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tudo de acordo com o artigo 50º, nº 1. A suspensão não se verifica se a prognose criminal, reportada ao tempo da decisão, for desfavorável ao arguido. Prevê-se, como regime regra (artigos 44º e 45º), a substituição da pena curta de prisão (pena aplicada em medida não superior a 6 meses) por penas não detentivas: multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da pena de prisão. A pena curta de prisão (pena aplicada em medida não superior a 3 meses) que, por razões preventivas, não deva ser substituída por outra pena (por pena não detentiva, multa ou outra) poderá ser cumprida por dias livres (correspondentes a fins de semana, incluindo os feriados que os antecederem ou se lhes seguirem imediatamente) ou em regime de semidetenção. Trata-se então de dar ao condenado a possibilidade de prosseguir a sua actividade profissional normal, os seus estudos, etc. Há no Código diversas incriminações que apenas prevêem pena de prisão — se esta for aplicada em medida não superior a 6 meses, poderá ser substituída por multa (excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes: 44º, nº 1). Cf. os artigos 134º, 135º, nº 1, 245º, 311º, nº 2, 316º, nº 4, 318º, nº 2, 321º, 333º, nºs 531 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. 3 e 4, b) e c), 334º e 344º. ( 47 ) A substituição não será, pois, automática, ainda assim, ela só não acontecerá se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. São razões preventivas que portanto comandam a imposição efectiva, ou não, da pena de prisão aplicada nessa medida. A tendência é portanto para a substituição das penas curtas de prisão por penas não detentivas: multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da pena de prisão. Mesmo a pena de média duração (não superior a 3 anos) pode ser suspensa na sua execução. O artigo 30º da Lei nº 16/2003, de 11 de Maio (que aprova medidas preventivas e punitivas a adoptar em casos de manifestações de violência associadas ao desporto) prevê que o tribunal substitua a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano por prestação de trabalho a favor da comunidade, salvo oposição do condenado ou se se concluir que por este meio não se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, nos demais termos previstos no Código Penal e no Código de Processo Penal. Se por exemplo, a sentença reconhece que A cometeu um crime de participação em rixa na deslocação para espectáculo desportivo (que o artigo 23º da Lei nº 16/2004 pune com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa) e o juiz opta pela primeira alternativa sancionatória, acabando por fixar s pena concreta em, vamos supor, 10 meses de prisão, a substituição por trabalho a favor da comunidade passa a ser tarefa que o juiz não pode deixar de se ocupar, mesmo que seja só para justificar o motivo por que a não decreta. Vejamos agora o CASO nº . Durante uma discussão por motivos de trânsito, A dolosamente ofende corporalmente B, a murro. 47 No Código já não há nenhum crime punível com prisão e multa, mas continuamos a encontrá-los previstos em leis extravagantes. Ora, enquanto vigorarem normas que prevejam penas cumulativas de prisão e multa, manda o artigo 6º do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março (que pôs em vigor o Código Penal revisto) que sempre que a pena de prisão for substituída por multa será aplicada uma só pena equivalente à soma da multa directamente imposta e da que resultar da substituição da prisão. 532 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A pena de multa configura-se, num elevado número de disposições penais, como pena principal alternativa à pena de prisão. É o que se passa neste caso de pequena criminalidade: o juiz passa a ter à sua disposição uma moldura penal de prisão até 3 anos ou multa (até 360 dias) mas só excepcionalmente se decidirá por aplicar a A a primeira alternativa sancionatória, em vista do disposto no artigo 70º. O limite mínimo da multa será então de 10 dias, o máximo de 360 dias (artigo 47º, nº 1). E como de sanção pecuniária se trata, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre ! 1 e ! 498,80, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais (artigo 47º, nº 2). Como se observou acima, a pena de multa deixou de ser complementar da pena de prisão. Abandonou-se a prescrição de pena de prisão e multa, como acontecia anteriormente à revisão de 1995. Passou-se para um sistema de alternatividade (pena de prisão ou multa), “sempre que, relativamente ao mesmo tipo de crime, a pena de multa haja de articular-se com a pena privativa de liberdade”. Pretendeu-se valorizar a pena de multa e outras reacções não detentivas na punição da pequena e média baixa criminalidade, de modo a optimizar vias de reinserção social do delinquente. A pena de multa não pode deixar de ter uma natureza de pena a que se deu uma amplitude capaz de proporcionar uma certa proporção entre a quantia fixada para cada dia e a situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, tendo em vista cumprir o princípio da igualdade material ou relativa. O limite mínimo é de 10 dias, o máximo de 360 dias (artigo 47º, nº 1). Mas há excepções, como no primeiro grau de agravação do furto (artigo 204º, nº 1), em que a pena de multa alternativa à de prisão é até 600 dias. Em caso de concurso (artigo 77, nº 2), o máximo da multa é de 900 dias. Cf. agora, por outro lado, os limites das penas de multa previstos para os crimes tributários e fiscais. Em geral, no Código, a relação entre a pena de prisão e a de multa fixada em alternativa no tipo penal é de 3 / 1 — a equivalência entre as duas penas é de 1 ano de prisão / 120 dias de multa: o furto pune-se com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias (artigo 203º, nº 1). Mas, por ex., nos crimes contra a honra segue-se um modelo 533 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. diferente — a injúria é punida com prisão até 3 meses ou multa até 120 dias (artigo 181º). Os critérios da determinação concreta da pena de multa fixada em dias são os mesmos que se usam para a pena de prisão. A conversão da multa não paga em prisão subsidiária é feita à razão de 2/3, fazendo corresponder a 3 dias de multa 2 de prisão (artigo 49º). O não cumprimento da multa, de forma voluntária ou coerciva, importa, com efeito, o cumprimento de prisão subsidiária reduzida a 2/3. A conversão da multa em prisão verifica-se mesmo que ao tipo de crime não caiba pena de prisão. O sistema é o seguinte (Actas, p. 25): 1º Condenação em multa; 2º Execução dos bens no caso de não pagamento. 3ª Prestação de dias de trabalho, a requerimento do condenado. 4º Cumprimento da prisão (prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços), evitável, pagando a multa em dívida; se o condenado provar — ónus do condenado — que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa. A prisão subsidiária deve ser fixada pelo juiz na sentença, ou posteriormente, quando for caso disso, o que significa que não basta a própria lei (artigo 49º, nº 1) indicar o tempo de prisão subsidiária por referência ao tempo da multa não paga. A substituição da multa por prestação de trabalho depende de requerimento do condenado logo no momento da condenação. Quando se aplicar uma pena de multa não há lugar à aplicação de uma pena de substituição, como acontece com a pena de prisão de curta duração. Por outro lado, não se permite, em geral, a suspensão da execução de uma pena de multa no momento da condenação. Todavia, havendo incumprimento não imputável ao condenado, pode a execução da pena subsidiária ser suspensa por um período de 1 a 3 anos, sendo a suspensão subordinada ao cumprimento de deveres de conteúdo não económico ou financeiro. Por outro lado, sempre que a situação económica e financeira do arguido o justificar, pode ocorrer o pagamento diferido da multa, ou permitir-se o pagamento em prestações, com limite temporal prescrito. Sobre o prazo para o pagamento da multa, após o trânsito da decisão condenatória, veja-se o artigo 489º do Código de Processo Penal. No artigo 80º, nº 2, quando for aplicada pena de multa, prevê-se o desconto à razão de um dia de privação da liberdade que o condenado tenha sofrido (por ter sido detido, por ter sofrido prisão preventiva, etc.) por, pelo menos, um dia de multa. 534 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A pena de admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal. Só pode aplicar-se a quem for condenado em multa não superior a 120 dias e só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por esse meio, se realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição (artigo 60º). A admoestação não se aplica à pena de multa que substituir a pena de prisão. O juiz pode, no entanto, aplicar, nesse caso, a dispensa de pena, atentos os pressupostos deste instituto (artigo 74º, nº 1): “quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena”. Ponto é que à dispensa de pena se não oponham razões de prevenção, o dano tenha sido reparado e a ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas. Tenha-se em conta, na aplicação da admoestação, o que se diz no artigo 497º do Código de Processo Penal, nomeadamente, a possibilidade de a proferir de imediato (antes do trânsito em julgado da decisão) se o Ministério Público, o arguido e o assistente declararem para a acta que renunciam à interposição de recurso. Sobre o princípio unilateral da culpa e a dispensa de pena, vd. Faria Costa, O perigo, p. 373. "Louvando- nos no ensino de Figueiredo Dias [Direito Penal 2, 1988, p. 413] , podemos dizer que na dispensa de pena o que existe "verdadeiramente é uma pena de declaração de culpa ou, se se preferir, uma espécie de admoestação em que esta resulta sem mais da declaração de culpa", se bem que depois se afirme que é "preferível a colocação e o estudo sistemáticos do instituto entre os casos especiais de determinação da pena". Faria Costa, O perigo, p. 380. "A admoestação, que é vista como a concessão mais importante que foi feita à prevenção especial, à custa do princípio da culpabilidade, é, depois da dispensa de pena (art. 74º) a sanção mais leve do direito penal actual, expressando-se o seu carácter sancionatório na declaração de culpabilidade, na determinação de uma pena adequada e na admoestação em si. Trata-se, pois, de uma sanção "quase-penal": declarando-se a culpabilidade, determina-se a pena e desaprova-se publicamente o crime cometido, mas não se impõe a pena". Manuel Simas Santos / Leal Henriques, Noções elementares, p. 143. A prestação de trabalho a favor da comunidade deixou de ser considerada como pena de substituição da multa (nº 1 do artigo 58º). A pena de multa continua a poder ser substituída por prestação de trabalho, mas como meio de cumprimento e a requerimento do condenado (artigos 48º e 49º, nº 4). A tramitação da prestação de trabalho vem no 535 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. artigo 496º do Código de Processo Penal, onde se prevê a intervenção dos serviços de reinserção social. Há um limite da pena concreta até ao qual é permitida a suspensão da execução da pena de prisão — o tribunal suspende a execução da pena aplicada em medida não superior a 3 anos. Mas já não se diz que a suficiência da censura do facto e da ameaça da pena se referem ao afastamento do delinquente da criminalidade e à satisfação das necessidades de reprovação e prevenção do crime: a conclusão agora é que elas realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, que são as indicadas no artigo 40º. Uma vez verificados os pressupostos da suspensão da execução da pena, o juiz tem o poder- dever de a decretar”; na verdade, ao contrário da formulação anterior, a lei diz agora que “o tribunal suspende. O instituto da suspensão da execução da pena de prisão passou a ter três espécies diferentes: 1ª Suspensão simples. 2ª Suspensão com imposição de deveres e regras de condutas ou só estas (os deveres destinam-se agora apenas a reparar “o mal do crime”; as regras de conduta são “destinadas a facilitar a reintegração na sociedade”. Obtido o consentimento prévio do condenado, o tribunal pode ainda determinar a sua sujeição a tratamento médico ou a cura em instituição adequada. 3ª Suspensão com regime de prova: artigo 53º. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente (nº 3 do artigo 50º). Da revogação da suspensão trata o artigo 56º: já não se exige a prática de crime doloso. A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado. Se não houver motivos que possam conduzir à revogação a pena é declarada extinta (artigo 57º, nº 1). “Que pena é declarada extinta? O texto da norma parece inculcar que a pena que se extingue é a “fixada na sentença” (cf. o nº 2 do artigo 56º), isto é, a pena de prisão.” Mas já no CP-82, “e assim também no projecto, a própria suspensão é classificada e tratada como pena (substitutiva da prisão). Como tal a considera, assim a denominando no título desse estudo, Figueiredo Dias, em “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão de execução da prisão” RLJ, 124. p. 65 e ss. (cf. Cons. G. da Costa). Mas só o incumprimento culposo pode dar lugar à revogação, tendo-se abandonado o sistema em que o incumprimento gerava sem mais, de forma automática, a revogação. Agora determina-se que o cometimento de outro crime, ainda 536 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que doloso, durante o período de suspensão, não basta, só por si, para conduzir à revogação da suspensão. Penas acessórias estão no Código, como já vimos, acompanhadas dos efeitos das penas (artigos 66º e ss.), discriminando-se a proibição do exercício de função, a suspensão do exercício de função e a proibição de conduzir veículos motorizados que poderão decretar-se na sentença conjuntamente com uma pena principal, de acordo com os critérios do artigo 71º. A sua aplicação só se justifica quando a pena principal aplicada for de prisão e de duração relativamente longa, excepto no caso da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. A pena acessória do artigo 69º aplica-se a quem for punido por crime previsto nos artigos 291º ou 292º; por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de foram relevante; ou por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para a detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, etc. As penas acessórias distinguem-se portanto dos chamados efeitos das penas, onde se trata de consequências, necessárias, ou pendentes de apreciação judicial, determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória, que não assumem a natureza de verdadeiras penas, não obstante o seu carácter penal. Tanto as penas acessórias como os efeitos das penas encontram-se historicamente adstritos à “infâmia” da legislação medieval e às suas penas de honra; ligando-se, deste modo, a incapacidades, inabilitações ou restrições de outra e diversa natureza (cf. Prof. Figueiredo Dias, p. 94). Actualmente, os artigos 67º e 68º referem-se a efeitos das penas; os artigos 66º e 69º prevêem penas acessórias, estabelecendo-se uma clara distinção entre uns e outras. No artigo 179º a inibição do poder paternal é efeito de um crime e não uma pena acessória (Actas, nº 24, p. 268). Na redacção do artigo 152º, nº 6, do Código Penal, introduzida pela Lei nº 7/2000, de 27 de Maio, prevê-se a possibilidade de imposição da pena acessória de proibição de contacto com a vítima. O artigo 28º da Lei nº 16/2004, de 11 de 537 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Maio, prevê a aplicação da pena acessória de privação de direito de entrar em recintos desportivos. ( 1 ) Resta alinhar alguns tópicos sobre as medidas de segurança. Foi Carl Stoos ( 48 ) quem, em 1894, propôs na Suíça um sistema de consequências jurídicas do crime de dupla natureza por ficarem umas condicionadas pela culpa do agente e as outras por não pressuporem a mesma culpa. Explica Bacigalupo, Princípios, p. 25, que a existência de um sistema dualista, de penas e medidas de segurança, só é compreensível numa perspectiva histórica que pressuponha uma ampliação do direito penal moderno face ao que podemos chamar de clássico. O direito penal clássico só admitia a legitimação da pena na medida em que o autor tivesse actuado culposamente, quer dizer, que tivesse actuado de tal maneira que o exercício impróprio da liberdade por parte do autor do delito fundamentava a censura expressa na pena. A extensão do poder penal do Estado a outras situações que se caracterizavam precisamente por não serem censuráveis e que procuravam simplesmente “ou a adaptação do indivíduo à sociedade ou que se excluíssem da mesma os que não eram susceptíveis de tal adaptação” — não podia ter o mesmo fundamento que a pena. Enquanto a pena encontrava o seu fundamento na culpa, as medidas fundamentavam-se na perigosidade do autor. Dizendo por outras palavras: para um direito penal fundado na ideia das “teorias” absolutas da pena, a “outra via” só era possível se se reconhecesse que, a acompanhar o princípio legitimador da justiça, era possível admitir outras intervenções do Estado baseadas na ideia de utilidade. Uma separação estrita entre penas e medidas só é possível se entendermos a pena do ponto de vista das teorias absolutas, mas os fundamentos tornam-se discutíveis quando nos 1. No domínio do Código de processo penal de 1929, a reparação arbitrada em processo penal era entendida como um efeito penal da condenação (cf. J. Figueiredo Dias, Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em Processo Penal, Coimbra, 1966, p. 14 e s.). Sobre o assunto dispõe agora o artigo 129º do Código Penal, segundo o qual a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. O princípio de adesão foi acolhido no artigo 71º do actual código de processo, onde se preceitua que “o pedido de indemnização fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”. 48 Carl Stoos (1849-1934), nascido na Suiça, era em 1916 professor na Universidade de Viena, onde viveu as perturbações políticas que acompanharam a ruína do império austro-húngaro. 538 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. afastamos dessas teorias e nos propomos enveredar pelo entendimento que actualmente predomina. Com efeito, ensina ainda Bacigalupo, as “teorias” relativas da prevenção especial a partir de v. Liszt careciam da possibilidade conceptual de distinção, porque pena e medida tinham o mesmo fim: incidir sobre o autor para evitar a reincidência. Vendo as coisas assim, compreende-se que v. Liszt afirmasse que “se a medida de segurança se liga à comissão de uma acção punível, é possível que assuma a essência da pena (um mal vinculado a um juízo de desvalor), e isto mesmo do ponto de vista da teoria da retribuição. Uma vez que esta teoria admite, ainda que só em medida secundária, que as reacções se dirijam à correcção e à segurança, é justo afirmar que a pena penetra no terreno da medida de segurança”. Esta mesma passagem de v. Liszt explica o motivo porque as teorias actuais encontram dificuldades conceptuais em fundamentar uma distinção entre penas e medidas. Na teoria moderna, só se podem estabelecer diferenças entre ambos os conceitos mediante o critério limitador: “chamamos pena à sanção que reprime comportamentos socialmente insuportáveis, limitando-a através do princípio da culpa; chamamos medida à reacção limitada pelo princípio da proporcionalidade” (Roxin). Considera o Prof. Figueiredo Dias que em matéria de finalidades das reacções criminais não existem diferenças fundamentais entre penas e medidas de segurança. Diferente é apenas a forma de relacionamento entre as finalidades de prevenção geral e especial: nas penas, a finalidade de prevenção geral de integração assume o primeiro e indisputável lugar, enquanto finalidades de prevenção especial de qualquer espécie actuam só no interior da moldura construída dentro do limite da culpa, mas na base exclusiva daquelas finalidades de prevenção de integração; nas medidas de segurança, diferentemente, as finalidades de prevenção especial (de socialização e de segurança) assumem lugar absolutamente predominante, não ficando todavia excluídas considerações de prevenção geral de integração. As medidas são necessárias porque a pena imposta em razão da culpa pessoal não é suficiente, em todos os casos, para satisfazer as necessidades de protecção da comunidade. Deste modo, as medidas têm, ao contrário das penas, um único e exclusivo fim de prevenção especial. Devem actuar apenas sobre a pessoa individual, para evitar que cometa novos delitos. A sua finalidade consiste, em parte, na segurança do próprio 539 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. autor (interdição da concessão da licença de condução de veículo motorizado), em parte, sobretudo, na cura pelo tratamento (internamento de inimputáveis). Roxin, Introducción, p. 68). CASO nº 44: A dirigiu-se a um departamento da Faculdade de Letras, com o intuito de assaltar as respectivas instalações, de forma a fazer seus quaisquer objectos ou valores que aí encontrasse. No piso inferior do edifício escondeu-se debaixo de um móvel e deixou-se ficar até ao encerramento do serviço. A dado momento, A abandonou o seu esconderijo e lançou mão de uma máquina de filmar vídeo, com o valor de quinhentos euros, e um computador no valor de mil euros, assim como o respectivo cabo de ligação à impressora, no valor de 35 euros, objectos estes que fez seus, como pretendia, após o que saiu com eles. A actuou voluntária e conscientemente, com intenção de se apropriar das referidas coisas, a que deu sumiço. A foi já condenado em diversas penas de prisão, que cumpriu, pela prática de outros ilícitos criminais, designadamente crimes dirigidos contra o património e a propriedade alheios. A foi submetido a exame às faculdades mentais. Ouvido em audiência, o perito concluiu que na data dos factos A era inimputável por força de atraso mental e de distúrbio da personalidade, sendo então incapaz de avaliar a ilicitude da conduta e de se determinar de acordo com tal avaliação. Noutro processo, ao A, que é de condição social modesta, fora aplicada a medida de segurança de internamento em anexo psiquiátrico, para segurança e tratamento, pelo período mínimo de dezoito meses, encontrando-se o mesmo ainda internado. Não resultou provado que o A sabia que com a conduta descrita praticava actos proibidos e punidos por lei. Produzida a prova e discutida a causa, com a alegação final do arguido, o juiz profere a decisão. Se a matéria de facto provada não implicar, desde logo, a absolvição, o julgador fica com a tarefa de decidir qual a sanção a aplicar ao agente de um facto praticado ilícita e culposamente (agente imputável). Normalmente, aplicar-lhe-á uma pena, (muito) excepcionalmente, uma medida de segurança. Encontrando-se perante um inimputável, autor de um facto típico e ilícito, cabe ao julgador decidir se é caso de lhe aplicar, com base na sua perigosidade, uma medida de segurança (artigo 91º do Código Penal), ou se, simplesmente, deverá decretar a absolvição (artigo 376º, nº 3, do Código de Processo Penal). Se com o teor actual do artigo 91º, nº 1, "se esclareceu o conteúdo mínimo do facto do inimputável para aplicação de uma medida de segurança de internamento, à doutrina e à jurisprudência são deixadas ainda, por um lado, a questão de saber se este facto ilícito típico tem o mesmo conteúdo dogmático do facto do imputável — que o facto preencha um tipo objectivo de ilícito e o tipo subjectivo respectivo e não haja a intervenção de qualquer causa de justificação; e, por outro, a questão de saber se ao pressuposto da prática de um ilícito-típico acrescem ou não exigências adicionais — se 540 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. relevam ou não, para efeito de aplicação de uma medida de segurança de internamento, as causas de inexigibilidade (artigos 32º, nº 2, 35º, nº 1, e 37º, do Código Penal), a falta de consciência do ilícito não censurável (artigo 17º, nº 1, do Código Penal) e as situações de falta de pressupostos de punibilidade (v. g. arts. 24º e 135º do Código de Processo Penal)". Cf. Maria João Antunes, p. 122 e s. Veja-se a seguir a solução proposta para o caso nº 44-A. No caso nº 44, as declarações periciais prestadas em complemento do relatório médico legal não deixam dúvidas de que no momento da prática dos factos A era inimputável por força de atraso mental e de distúrbio da personalidade, que o perito caracterizou, sendo então incapaz de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar em consonância com isso. A actuação do A, acima descrita, preenche os elementos objectivos do ilícito previsto nos artigos 296º e 297º, nºs 1, a), e 2, d), do Código Penal de 1982, e 202º, a), 203º, nº 1, e 204º, nº 1, a), e f). O A sabia o que fazia, nomeadamente, sabia que retirava coisas alheias do interior do edifício assaltado, onde voluntariamente entrou pela descrita forma, para se apropriar delas. Com o que também ficam preenchidos os momentos subjectivos do ilícito. Não se descortina qualquer causa de justificação. Como o facto se consumou e foi cometido de forma dolosa é ilícito. Todavia, o A procedeu em situação de anomalia psíquica, a qual o tornava incapaz de avaliar a correspondente ilicitude. Mostram-se assim preenchidos os pressupostos do artigo 20º, nº 1, pois "é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação." O tribunal terá sem dúvida que decretar a absolvição relativamente à acusação formulada (artigo 376º, nº 3, do Código de Processo Penal), extinguindo-se a medida coactiva entretanto decretada (artigo 214º, nº 1, d), do mesmo código). O sistema vigente de reacções criminais assenta nas penas e nas medidas de segurança. Enquanto a pena tem o seu fundamento irrenunciável na culpa, as medidas de segurança, por um lado, incidem sobre os inimputáveis, incapazes de culpa — e que por isso nunca poderiam ser sancionados com uma pena —, que cometem um facto ilícito típico (cf. o artigo 91º, nº 1); as medidas de segurança dirigem-se à especial perigosidade do agente, a qual pode resultar das particulares circunstâncias do facto e (ou) da sua personalidade. 541 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Tenha-se ainda em atenção os artigos 83º, 84º e 86º, relativos aos pressupostos de aplicação da pena relativamente indeterminada. Para o Prof. Cavaleiro de Ferreira, a prorrogação da pena concreta imposta aos delinquentes por tendência [cf. os outros casos previstos nos artigos 84º e 86º] tem o seu directo fundamento na perigosidade, pelo que tal prorrogação é uma medida de segurança. A tendência, após a reforma de 1995, é a de distinguir o regime do instituto da pena relativamente indeterminada por referência à pena de prisão que concretamente caberia ao crime cometido, caso não fosse aplicada a pena relativamente indeterminada: até ser atingido esse momento, trata-se, verdadeiramente, da execução de uma pena, remetendo o artigo 90º, nº 1, para o regime da liberdade condicional; a partir dele trata-se, claramente, da execução de uma medida de segurança, remetendo o nº 2 do mesmo artigo para o regime dessa medida. Cf. Maria João Antunes, p. 134; e José de Sousa Brito, p. 571. Veja o artigo 509º do Código de Processo Penal. II. A noção de crime identifica-se com a de ilícito típico? Pedido de indemnização civil (artigos 71º e ss. do CPP). Suponha-se que no caso nº 44, foi deduzido pedido de indemnização civil contra o A (artigo 71º e ss. do Código de Processo Penal). Ora, o demandado, ainda que absolvido em razão de anomalia psíquica, preencheu com a sua conduta o ilícito típico do furto na medida em que se apoderou ilegitimamente das coisas que subtraíra e que, desse modo e adequadamente, provocou danos na esfera patrimonial da entidade demandante, que nunca mais recuperou o que lhe fora furtado. De acordo com o disposto no artigo 489º do Código Civil os não imputáveis podem ser responsabilizados pelos danos, desde que a reparação não possa ser exigida às pessoas a quem incumbe a sua vigilância. Neste quadro legal, o A, sendo inimputável, responde nos termos em que responderia na ausência de anomalia psíquica, caso praticasse o mesmo facto. No entanto, a fixação da indemnização faz-se somente por critérios de equidade, sem o recurso a elementos de estrita responsabilidade. A expressão "facto ilícito típico" (e não simplesmente “crime”) surge no artigo 91º como pressuposto das medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis. No Código de Processo Penal o elemento valorativo continua porém a coincidir com "o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais", i. e, com a noção de crime dada pela alínea a) do 542 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. correspondente artigo 1º. Acolhendo-se na lei adjectiva um conceito assim alargado que tanto se aplica às situações de imputabilidade como às de não imputabilidade, não pode deixar de se identificar a regra do artigo 74º, nº 1, do mesmo Código — enquanto remete para a prática de um crime — com os casos de ilícito (penal) tipificado, aplicando-a também aos não imputáveis que, actuando sem culpa, preenchem, ainda assim, um conjunto preciso de elementos normativos, como é a hipótese do caso nº 44 relativamente ao furto. Como, por último, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil (artigo 129º do Código Penal), nada obstará à aplicação do disposto no artigo 489º do Código Civil. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, confiando-se no prudente arbitrium boni viri encarnado pelo juiz, que terá em conta a gravidade da ofensa e demais circunstâncias susceptíveis de personalizar o dano e, assim, realizar a justiça do caso concreto, a equidade. III. Ainda fará sentido distinguir entre pena e medida de segurança? O sistema de vicariato na execução (artigo 99º). A base do sistema dualista (ou dupla via), assente na distinção entre penas e medidas de segurança, tende a perder sustentáculo legal nas legislações modernas, onde está cada vez mais difundido o sistema vicarial. A questão é a de saber se o sistema de reacções face ao delito cometido deverá ser um sistema monista de sanção única (pena ou medida de segurança) ou um sistema dualista diferenciado de penas e medidas de segurança. A distinção clássica entre pena e medida de segurança, entre retribuição e prevenção, entre culpa e perigosidade serviu de base ao sistema dualista vigente em muitos ordenamentos jurídicos. Hoje em dia, na prática, ao serem executadas, ambas têm a mesma finalidade, de forma que a distinção entre pena e medida carece de sentido — tanto a pena como a medida de segurança tendem à reinserção e readaptação social do delinquente. “O nosso sistema é decerto monista no sentido de não permitir a aplicação ao mesmo agente, pelo mesmo facto, de uma pena e de uma medida de segurança complementar privativa de liberdade. Ele é, todavia, dualista não só no sentido de conhecer a existência de penas e de medidas de segurança não detentivas a imputáveis (art. 100º ss.), como ainda no de aplicar cumulativamente no mesmo processo, ao mesmo agente embora por factos diversos, penas e medidas de segurança” (Jorge de Figueiredo Dias /Costa Andrade, p. 135). 543 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Um sistema dualista em que, ao lado da pena limitada pela culpa, exista outro tipo de sanções não limitadas ou limitadas por princípios e ideias diferentes, constitui um perigo para as garantias e a liberdade do indivíduo face ao poder sancionatório do Estado. Da "Introdução" de Francisco Muñoz Conde ao livro de Claus Roxin, Culpabilidad y prevención en derecho penal. "A crise actual do dualismo manifesta-se numa série de aspectos fundamentais, como os seguintes: a) Questiona-se não só a legitimidade das medidas de segurança, mas também a sua justificação; b) A progressiva aproximação e crescente assimilação entre a pena e a medida de segurança, como sucede, por exemplo, com o fim ressocializador que informa a execução de ambas as sanções e com a similitude no seu regime de execução, que se torna evidente em certos casos de penas e medidas privativas da liberdade. A aproximação e a falta de uma distinção clara entre as penas e as medidas manifesta-se também no reconhecimento e consagração no direito comparado do sistema de vicariato ou de substituição da pena pela medida de segurança; c) A crise do modelo de tratamento e da própria ideia de ressocialização, que eram característicos das medidas de segurança; d) Põe-se em questão a legitimidade do sistema dualista, sobretudo a partir da perspectiva e exigências do Estado de Direito, e chega a falar-se na crise do chamado "Direito de medidas". Sob esta perspectiva, constitucional e do Estado de Direito, questionam-se especialmente os limites de duração das medidas de segurança e o seu pressuposto fundamental que é a perigosidade criminal, relacionada com o problema da prognose criminal e as dificuldades inerentes à sua concretização. No fundo está em causa a questão dos limites do poder punitivo do Estado e da defesa dos direitos fundamentais do cidadão, que no âmbito da pena se garantem, de certa forma, através do princípio da culpa, e na moderna regulamentação das medidas de segurança por intermédio do princípio da proporcionalidade; e e) uma outra prova da crise do dualismo verifica-se na tendência actual de propiciar uma terceira via, que é a de reparação do dano a favor da vítima". Agustín Jorge Barreiro, A crise actual, p. 536. Fala-se no princípio de vicariato fundamentalmente quando a medida de segurança de internamento é executada antes da pena de prisão a que o agente tiver sido condenado, descontando-se a duração da medida privativa da liberdade na da pena, ficando a execução do eventual resto da pena sujeita a um regime especial (nº 2 do artigo 99º). Neste artigo 99º acolhe-se o regime da execução da pena e da medida de segurança privativas da liberdade. Lembrando, com Maria João Antunes, as palavras do Prof. Eduardo Correia, não se pense que o (actual) carácter monista do sistema afasta a necessidade de disposições como o artigo 99º. “O artigo 20º, nº 1, do Código Penal, ao exigir um juízo de inimputabilidade em concreto, ou seja, em relação ao facto concreto praticado pelo delinquente autoriza que ao indivíduo que, num momento dado, comete um furto e um crime sexual possa ser aplicada uma pena e uma medida de segurança, por em relação ao primeiro crime ele ser declarado imputável e inimputável perigoso quanto 544 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. ao segundo” (Direito Criminal, I, p. 346). Este sistema de imbrincação de medida de segurança e pena, na fase da sua execução, pode ter nuances diferentes da actual lei portuguesa, mas no essencial é nisto que consiste o chamado princípio de vicariato, “onde a distinção entre pena e medida de segurança no momento da execução é praticamente inexistente”. Para melhor compreensão, resta explicar que no sistema do nosso Código ao agente da prática de um mesmo facto não se poderá aplicar, cumulativamente, uma pena e uma medida de segurança privativa da liberdade — é a visão correspondente ao sistema monista de reacções criminais (M. J. Antunes). Pressuposto mínimo de aplicação da medida de segurança é, segundo o Prof. Figueiredo Dias, “a conjugação” da prática de um ilícito típico com outros elementos do crime que não tenham a ver com a culpa do agente. Consequentemente, não é legítimo partir para a aplicação de uma medida de segurança de internamento, afirmando a perigosidade, no caso do inimputável que agiu em legítima defesa, ou em situações semelhantes — casos e que, realmente, estaremos perante verdadeiros problemas de culpa. Cf., a propósito, Cortes Rosa, p. 260. Para a aplicação da medida de segurança é também necessário que haja fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos da mesma espécie, o que legitima aqui uma ideia de perigosidade específica, diz M. J. Antunes. Repare-se, por outro lado, que as medidas de segurança não podem ser aplicadas em medida desproporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente. É a regra do artigo 40º, nº 3. Quer dizer, no nosso actual sistema, as medidas de segurança não poderão, na sua duração, exceder, por razões exclusivamente preventivas (ou ultrapassar desproporcionadamente), as penas de culpa correspondentes a ilícitos de idêntica gravidade. Cf. ainda o artigo 92º, nº 2. Dando expressão, segundo a Profª. Fernanda Palma, “a um princípio geral de orientação da prevenção especial e da prevenção geral pela gravidade do ilícito, também relevante em matéria de exclusão da responsabilidade. Assim, se um inimputável não fosse susceptível de uma responsabilidade por culpa, devido à existência de certas circunstâncias condicionantes da acção, como o medo de certas ameaças, não poderia o inimputável, vítima das mesmas circunstâncias, ser sujeito a uma medida de segurança”. 545 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. A acompanhar estas ideias veja-se a consagração do carácter subsidiário do internamento dos inimputáveis perigosos. O agente a quem for suspensa a execução do internamento fica sujeito às regras de conduta necessárias à prevenção da perigosidade, sujeito ao dever de se submeter a tratamentos e outros. A suspensão finda quando findar a perigosidade criminal que é a sua razão de ser. Veja-se, por outro lado, o limite máximo de duração do internamento, no artigo 92º, nº 2, a par de casos de uma duração mínima decorrente do artigo anterior. No que respeita à pena relativamente indeterminada, pondere-se o regime dos artigos 83º e ss. E cf. o acórdão do STJ de 19 de Abril de 1995, BMJ-446-46: Ao arguido só pode ser aplicada uma pena relativamente indeterminada, nos termos do artigo 83º do Código Penal, se da acusação constar que os factos e a sua personalidade revelam acentuada inclinação para o crime—cfr. o acórdão da Relação do Porto de 13 de Março de 1985, Colectânea de Jurisprudência ano X, tomo 11, pág. 241, e Boletim do Ministério da Justiça nº 345, pág. 451. Com efeito, a aplicação da pena relativamente indeterminada não deriva automaticamente da verificação de determinadas condenações anteriores, mas assenta em juízos de valor que têm de ser feitos com base em factos provados, que já têm de constar da acusação—cfr., neste sentido, verbi gratia o acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Outubro de 1985 (processo n." 11 911), sumariado no Boletim nº 350, pág. 397. Relativamente à temática do "delinquente por tendência" e da "pena relativamente indeterminada", podem ver-se, entre as decisões, em número de certo modo reduzido, do Supremo Tribunal de Justiça, os acórdãos de 21 de Novembro de 1984, de 13 de Novembro de 1985, de 12 de Novembro de 1986 e de 22 de Maio de 1991, Boletim nº 341, pág. 247, nº 351, pág. 211, nº 361, pág. 259, e nº 407, pág. 198. Quanto a medidas de segurança não privativas da liberdade, veja-se o que se dispõe nos artigos 100º e ss. Com especial incidência sobre a cassação da licença e interdição da concessão da licença de condução de veículo motorizado. Nalguns casos de crimes contra a segurança das comunicações, especialmente dos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário (artigo 291º) e de condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292º) ocorre, com frequência, uma aplicação conjunta da pena e da medida de segurança. Se alguém conduz um veículo em estado de embriaguez 546 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. (sem ser caso de aplicar o disposto no artigo 20º, nº 1) é sancionado de acordo com o artigo 292º com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias e com a pena acessória de proibição prevista no artigo 69º, nº 1, mas pode-lhe ser cassada a licença se estiverem reunidos os pressupostos previstos no artigo 101º. A pena fica então vinculada à culpa do agente, mas a cassação que a acompanha é orientada para a perigosidade do sujeito. IV. Revogação da suspensão. CASO nº 56-A. A foi condenado no Porto por acórdão de 19 de Maio de 1998 pela prática de um crime de roubo do artigo 210º, nº 1, na pena de 20 meses de prisão. Nos termos do artigo 50º, o Tribunal, considerando os motivos que ditaram a prática dos factos pelo arguido, a personalidade deste, não manifestamente criminosa, sendo ele delinquente primário, suspendeu-lhe a execução da pena por 2 anos. A conduta do condenado foi motivada por a sua companheira B ter trabalhado no estabelecimento onde se deu o roubo até data recente e reivindicar quantias monetárias da entidade patronal cujo pagamento não tinha sido efectuado. Acontece que por decisão de 31 de Maio de 2000 do Círculo de Matosinhos, A voltou a ser condenado como autor de 2 crimes de burla do artigo 217º, nº 1, em 3 meses de prisão por cada um deles; e como autor de 2 crimes de falsificação documental do artigo 256º, nºs 1, a ), e 3, em 7 meses de prisão, também por cada um deles. E por isso na pena única de um ano de prisão, que o Tribunal declarou suspensa pelo período de 18 meses. Para a condenação foi determinante que o arguido, por volta de 20 de Setembro de 1998 obteve alguns cheques da conta de outrem e vários documentos de identificação, entre os quais um bilhete de identidade, igualmente de terceira pessoa. Em 18 e 20 de Setembro de 1998, o condenado, usando alguns desses cheques e identificando-se com o bilhete de identidade alheio, fez compras em supermercados que acabaram por não ser pagas, no valor de 17.446$00 e 19.802$00, sublinhando o acórdão que o arguido era toxicodependente, de modesta condição sócio-económica, tem o 9º ano de escolaridade, está desempregado e vive com os pais, tendo confessado os factos, de que se mostrou arrependido. Foi na sequência deste acórdão que o Ministério Público pediu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão decretada em 19 de Maio de 1998 por entender que com a sua conduta mais recente, no decurso da suspensão, o condenado em burla e falsificação documental demonstrou que os fins que se visavam com a suspensão não foram atingidos (artigo 56º, nº 1, b ). Na versão actual do Código, se no decurso da suspensão da execução da pena de prisão o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado a suspensão é revogada sempre que, cumulativamente, revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas (artigo 56º, nº 1, b)). Com efeito, e de acordo com o artigo 50º, seria de esperar que a simples censura do facto e a ameaça da 547 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. prisão realizassem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, seria, em suma, de esperar que o agente não voltasse a delinquir. O não cometimento de crime no decurso da suspensão e a consequente extinção da pena (artigo 57º) mostram que o programa de ressocialização teve êxito — o incumprimento desse programa e a consequente revogação da pena de suspensão (artigo 56º) mostram, pelo contrário, o fracasso da prognose que justificara a suspensão. De qualquer forma, os pressupostos da revogação da pena de suspensão da execução da pena de prisão terão que ser apurados pela positiva. Se o condenado cometer um crime no decurso da suspensão, vindo por ele a ser condenado, a revogação só poderá ser decretada se se comprovar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. In casu, a revogação só poderá decretar-se com base na alínea b) do nº 1 do artigo 56º. O condenado cometeu novos crimes (factos ilícitos, típicos e culposos), de burla e falsificação, pelos quais veio a ser condenado em pena de prisão, tendo as correspondentes condutas ocorrido no decurso da suspensão. Todavia, esta só será revogada se o condenado revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio delas, ser alcançadas — que, portanto, a prognose anterior se revelou falsa. Os pressupostos da revogação, já acima o dissemos, terão que ser apurados pela positiva. No domínio da versão primitiva do Código, a revogação só seria automática se o condenado viesse a ser punido com pena de prisão efectiva. No Código Penal revisto também só um incumprimento culposo pode acarretar a revogação da pena de substituição. O cometimento de outro crime, ainda que doloso, durante o período de suspensão, não é suficiente, só por si, para conduzir à revogação da pena de substituição — a revogação não é automática. De forma que o acento tónico passa a estar colocado não no cometimento do crime doloso durante o período de duração da suspensão e correspondente condenação em pena de prisão, mas no facto de o cometimento de um crime e respectiva condenação revelarem a inadequação da suspensão para através dela serem ainda alcançadas as finalidades da punição. A prática do novo crime deverá portanto mostrar que a advertência contida na decisão de suspensão foi desatendida. Ora, isso dificilmente se poderá sustentar quando o conteúdo de ilícito do novo crime e a 548 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. censura correspondentes são de pequena monta (princípio de bagatelas) ou mesmo quando a pena que lhe corresponda ficou, também ela, suspensa na sua execução. No caso presente, os novos factos são de Setembro de 1998, ocorreram, portanto, cerca de cinco meses após a publicação do acórdão que inicialmente decretou a suspensão, sendo o período desta fixado em dois anos, os quais, entretanto, já decorreram, sem que ao condenado seja de apontar outro ou outros comportamentos ilícitos. O acórdão que julgou os novos factos, ponderando — ainda que na forma tabelar — a personalidade do arguido, as suas condutas anteriores aos factos e, sobretudo, as condições de vida actual, suspendeu, também ele, a correspondente pena pelo período de 3 anos. De forma que, analisando estes elementos, e não havendo outros, de sinal contrário, que os contrariem, crê-se que o comportamento global do condenado, inserido no tempo entretanto decorrido desde que foi decretada a suspensão da pena agora em causa, ainda permite formular um juízo que lhe é favorável, sem pôr em causa a eficácia da ameaça da pena. É esta a solução justa e ainda eficaz. Não se justificando uma exigência ético-jurídica de retribuição, mas preocupações de reeducação e de reinserção social, e não sendo caso de impor a pena para demonstrar a seriedade da ameaça face à colectividade (prevenção geral), esta posição é, com efeito, a única que responde à necessidade de a comprovação dos pressupostos da suspensão se fazer pela positiva, sendo também a única adequada às finalidades contidas no artigo 56º, desde que interpretadas na sua articulação com o futuro e não só como resposta ao passado. § 25º A determinação da pena I. Indicação da pena abstracta. Escolha da pena. Individualização da pena concreta. CASO nº 45: A, B e C decidiram entre si começar a fabricar notas de 100 euros, em casa do primeiro, imitando as que se encontravam em circulação. Para a produção das notas usaram o computador do próprio A, um scanner, uma impressora "Hewlett Packard" 690 C e a uma resma de papel de 80 grs. Os três, entreajudando-se e utilizando o scanner e o computador, digitalizaram uma nota de 100 euros, 549 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. apondo-lhe um número de série, procederam à afinação da cor e acabaram por imprimir diversos exemplares. Dias depois, o B entregou ao D cinco dessas notas de 100 euros, sabendo ambos que eram falsas. O D recebeu essas notas do B com intenção de as pôr em circulação. Tempos depois, apareceram em circulação reproduções de notas de 100 euros, das que tinham sido fabricadas pelos três amigos. A, B e C tinham conhecimento de que as notas que confeccionaram eram produzidas fora dos circuitos legalmente autorizados para produção e lançamento em circulação de moeda. Estavam cientes de que não lhes era permitido usar as ditas notas como meio de pagamento, nem pô-las em circulação e sabiam que as notas que fabricavam eram idóneas a serem tomadas como boas pela generalidade das pessoas e foi por isso que decidiram utilizá-las. D estava ciente de que, devido às semelhanças com as notas autênticas, não lhe era permitido pôr em circulação as notas que recebera. D tem 19 anos de idade. É o quarto de oito filhos nascidos de agregado familiar estável. Frequentou o 6º ano de escolaridade. A partir dos 15 anos passou por actividades variadas, nomeadamente empregado de balcão, ajudante de serralheiro e numa firma de ar condicionado. No estabelecimento prisional frequenta o 3º ciclo e tem tido visitas regulares. A família dispõe-se a ajudá-lo, inclusivamente, no domínio laboral. A tem 20 anos de idade. Ficou cedo entregue aos cuidados de uma avó, quando a mãe faleceu e o pai seguiu outros rumos. Completou o 9º ano de escolaridade e encontrava-se a frequentar um curso de contabilidade e gestão. B tem 22 anos de idade. É oriundo de família de condição equilibrada, sendo os pais operários fabris. Em criança foi acompanhado por psicólogos, mas fez o 6º ano aos 14 anos, tendo começado a trabalhar aos 16, como empregado de balcão e tarefeiro, até que foi preso. Na prisão tem revelado conduta adequada às normas e está ocupado com trabalho. C tem 20 anos de idade. Um de 11 irmãos, o pai faleceu há cerca de 6 anos, sendo a mãe vendedora ambulante. Abandonou a escola com 16 anos e com a 4ª classe concluída. Começou a trabalhar como padeiro, actividade que desempenhou durante vários anos, tendo trabalhado como tarefeiro num Banco. Cumpre agora o serviço militar. É descrito como tendo forte ligação à família, reservado e algo introvertido, alheio a conflitos, não havendo referências negativas quanto ao grupo de amigos que frequentava. Na casa de reclusão vem mantendo comportamento adequado às normas, embora revelando dificuldades de adaptação. Tem o apoio afectivo e material da mãe, com quem tem vivido. São todos solteiros e nenhum tem antecedentes criminais. As declarações em audiência de A e B coincidiram, no essencial, com o que fica relatado quanto à imitação das notas e a intencionada destinação das mesmas. Ambos disseram do seu arrependimento. B esclareceu ainda como entregou as cinco notas ao D. Qual a pena a aplicar a cada um dos intervenientes? 1. Indicação do crime cometido e da respectiva moldura penal abstracta. A, B e C, de comum acordo, praticaram contrafacção de moeda, com intenção de a pôr em circulação. O crime é o do artigo 262º, nº 1, cuja moldura penal aponta prisão de 3 a 12 anos. 550 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. D recebeu notas do B com intenção de as pôr em circulação, sabendo-as falsas. Encontrando-se presentes os restantes elementos do ilícito do artigo 266º, alínea a), D mostra-se comprometido com o respectivo crime, cuja moldura penal aponta para pena de prisão até 3 anos ou multa (=360 dias: artigo 47º, nº 1). Isto posto, passemos à determinação concreta das penas. 2. Linhas gerais da problemática que envolve a determinação concreta das penas. O modelo preventivo limitado pela culpa. No direito vigente, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, e a reintegração social do agente (artigo 40º, nº 1, do Código Penal). A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa (artigo 40º, cit., nº 2), ou seja, não há pena sem culpa e a culpa decide da medida da pena. O nosso Supremo Tribunal resume assim a sua interpretação dos fins das penas (cf. o acórdão do STJ de 12 de Março de 1997, no processo nº 1057/96; cf. ainda Figueiredo Dias, Os novos rumos da política criminal, separata da Revista da Ordem dos Advogados, 1983, p. 27): a) A prevenção geral positiva ou de integração é a finalidade primordial a prosseguir. b) Deste modo, a prevenção especial positiva nunca pode pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada. c) Por sua vez, porém, a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva, também nunca pode pôr em causa a própria dignidade humana do agente, que o princípio da culpa justamente salvaguarda. d) Por isso, a pena jamais pode ultrapassar a medida da culpa ou o máximo que a culpa do agente consente, independentemente de, assim, se conseguir ou não atingir o grau óptimo da protecção dos bens jurídicos. e) Desta forma, o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração social do agente é o que se define entre aquele mínimo imprescindível à prevenção geral positiva e o máximo consentido pela sua culpa. Domina a ideia de que a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não a "prevenção geral negativa ou de intimidação, mas a prevenção geral positiva, de integração ou reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de 551 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. confiança no direito" (Figueiredo Dias, O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma, RPCC 3 (1993), p. 169; Luís Miranda Pereira, O primado da prevenção como objectivo de uma nova política criminal, RPCC 5 (1995), p. 91). Mas do Estado, titular do jus puniendi, reclama-se "a obrigação de ajuda e de solidariedade para com o condenado, proporcionando-lhe o máximo de condições para prevenir a reincidência e prosseguir a vida no futuro sem cometer crimes" (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 174). O critério legal que servirá de guia da medida da pena é o do artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele. Considerando que a ilicitude e a culpa pelo facto "são conceitos graduáveis" (Mezger, Derecho Penal, PG, Libro de estudio, 1958, p. 384), ter-se-á em atenção o catálogo aberto das circunstâncias (nº 2 do artigo 71º) que entram em consideração como elementos fácticos da individualização da pena e que, desde logo, revelam o "peso" do desvalor da acção e do desvalor do resultado e a intensidade da realização típica. E entre essas circunstâncias, "no que toca à ilicitude, o grau de violação ou o perigo de violação do interesse ofendido, o número dos interesses ofendidos e suas consequências, a eficácia dos meios de agressão utilizados; no que toca à culpa, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, o grau de intensidade da vontade criminosa, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, os fins ou motivos determinantes, a conduta anterior e posterior, a personalidade do agente; no que toca à influência da pena sobre o agente, as suas condições pessoais e a sua situação económica" (Manuel Simas Santos / Manuel Leal-Henriques, Noções elementares de Direito Penal). A chamada teoria do espaço de liberdade é seguida pela jurisprudência alemã por forma a conferir à culpa o primeiro lugar na decisão da medida da pena. Os fundamentos da individualização da pena são, por um lado, a gravidade do facto e o seu significado para o ordenamento jurídico e, por outro, o grau da culpa do autor. Tendo em conta estes dois pontos de vista heterogéneos, e ponderando-os, o juiz deverá encontrar a pena justa, ou seja, a pena adequada à culpa. Esta Spielraumtheorie baseia-se na ideia de que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa. Na prática, porém, em razão da complexidade da avaliação da culpa e da insuficiência do conhecimento humano, não se poderá alcançar uma grandeza exacta para a culpa, a partir da qual se possa chegar a uma grandeza exacta para a pena. As dificuldades superam-se com 552 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. uma "moldura da culpa" construída num espaço nuclear, dentro do qual não se colocam dúvidas quanto à adequação da pena à culpa. Consequentemente, forma-se uma zona de fronteira que delimita aquele espaço da moldura penal abstracta onde já não haverá lugar para a consideração da culpa pelo facto. Esse quantum concreto da pena medido pela culpa, não sendo inteiramente fixo, como se observou, contém uma margem maior ou menor de variação. É no interior deste espaço de variação que as diversas finalidades preventivas logram encontrar a sua validade, participando dessa forma na graduação concreta da pena. No interior desta moldura da culpa — oscilando entre um máximo e um mínimo — avaliando o juiz a medida da culpa e ponderando os diversos fins das penas, se encontrará a pena para o facto concreto. Cf. Otto Triffterer, Öst. StrafR, AT, 2ª ed., 1994, p. 509; K. Lackner, StGB, 20ª ed., 1993, p. 317. Por outras palavras: "Não se pode determinar com precisão a pena que corresponde à culpa. Existe aqui uma margem de liberdade (Spielraum) limitada, no máximo, pela pena ainda adequada à culpa. O juiz não pode ultrapassar o limite máximo. Não pode, portanto, impor uma pena que na sua medida ou natureza seja tão grave que já não seja, por isso, sentida como adequada à culpa. Mas o juiz poderá decidir até onde pode chegar dentro desta margem de liberdade". Claus Roxin, La determinacion de la pena a la luz de la teoria de los fines de la pena, in Culpabilidad y prevención en derecho penal, p. 96. No presente caso de moeda falsa, e no que toca à prevenção geral positiva, as exigências são particularmente intensas e medidas pelo alarme social que acompanha a prática destes crimes. Dum modo geral, as pessoas confiam na moeda, mesmo quando se trata de simples pedaços de papel, embora isso não passe de um milagre psicológico, ainda assim tão importante que, sem ele, a nota de banco “would be an impossibility” (Gunnar Andersen, Banknotes, Principles and Aesthetics in Security Graphics, Copenhagen, 1975, p. 7). A perda da confiança no valor do dinheiro gera, no entanto, uma desconfiança profunda e generalizada na capacidade do Estado cumprir as garantias assumidas. Há-de reparar-se que aqueles que são enganados com a moeda falsa não se vêem apenas como vítimas do embuste dum terceiro, i. e., como se fossem burlados, mas ao mesmo tempo como vítimas da incapacidade do próprio Estado solver as suas obrigações. A, B e C, para alcançarem os seus desígnios, lançaram mão de processos informáticos modernos, os quais, por se terem tornado acessíveis e o seu uso se encontrar vulgarizado, consentem uma rápida e expedita actuação, com a vantagem de se ficar a coberto de olhares indiscretos e se poder operar em espaços minguados e com economia de meios. O grau da ilicitude ligada à actuação destes arguidos é assim elevado e tem a ver, também, com a quantidade de notas falsas conseguidas e com a respectiva qualidade, a reflectir imitações meticulosas, a partir do emprego das cores, semelhanças que só com muita atenção se detectam. Mas não se descortina aqui uma significativa 553 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. indústria de moeda falsa, com especialistas a dividir tarefas, com os tentáculos do crime organizado, como tantas vezes tem acontecido, a fazer lembrar malfeitores com actividades complementares ou paralelas à da moeda falsa, que quase sempre passam pelo tráfico de drogas, a exploração da prostituição e o branqueamento de capitais. Os três amigos, todos eles jovens e sem cadastro, lançaram-se num empreendimento clandestino, de estrutura incipiente, mas cuja dinâmica se adivinha capaz de gerar maiores perigos — ainda que se não tivesse apurado o real alcance da difusão das notas por passadores. O dolo, em todos os casos, é directo — e plena a consciência da ilicitude. Mas não parece haver elementos que apontem para um potencial energético particularmente intenso na preparação e no cometimento do delito. O D, ao receber as notas que sabia serem falsas, agiu com dolo directo e intenso e com plena consciência da ilicitude da sua conduta. Trata-se — no caso a ganhar relevo para aferir da quantidade do ilícito — de cinco notas para pôr em circulação. Os dados pessoais de A, B, C e D — todos sob detenção preventiva — são-lhes sem dúvida favoráveis. Por fim, notar-se-á que as declarações em audiência do A e do B ganham algum relevo para o esclarecimento dos factos. O B contou ainda como entregou as notas ao D. 3. Espécie da pena a aplicar: prisão ou multa? Medida judicial da pena (pena concreta). Atenuação especial para jovens? Desconto. No que respeita ao D, o que se disse anteriormente aponta para a pena, que se julga adequada, de 120 dias de multa. E isso, não obstante estar à disposição igualmente a pena de prisão. Na verdade, manda o artigo 70º do Código Penal que, em princípio, se opte pela pena não privativa da liberdade. O D não tem antecedentes criminais — não há necessidade de especiais necessidades de prevenção geral ou especial. Face aos restantes parâmetros legais, estando o D desempregado, e detido já há algum tempo, fixa-se o montante diário da multa em dois euros. Atender-se-á oportunamente ao tempo de detenção preventiva sofrido pelo D e ao que se dispõe, quanto ao desconto, no artigo 80º, nºs 1 e 2. 554 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Quanto ao A, B e C as razões preventivas (prevenção especial) não parecem instantes. Por tudo isso se julga ajustada a pena de 3 anos de prisão para cada um deles. Todavia, a benefício destes não parece que seja caso de introduzir aqui, para a resolver pela afirmativa, a questão da atenuação especial prevista no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro. Trata-se de diploma que tem como preocupação a instituição de um direito mais reeducador que sancionador, com a adopção preferencial de medidas correctivas desprovidas de efeitos estigmatizantes e cujo artigo 4º prevê a atenuação especial da pena de prisão nos termos dos actuais artigos 72º e 73º do Código Penal ao jovem condenado. Mas a atenuação especial não é automática — e só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, escreve-se, por ex., no acórdão do STJ de 1 de Outubro de 1997, BMJ-470-145, e isso não acontece num caso como o presente ( 49 ). 4. Suspensão da execução da pena. Em geral, quando, como neste caso acontece com A, B e C, se aplicar pena de prisão não superior a três anos, deve o tribunal suspender a sua execução sempre que, reportando- se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro (artigo 50º do Código Penal), juízo este não necessariamente assente numa certeza, bastando uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização. No caso de A, B e C, entende-se que a pena deve ser suspensa, por estarem reunidos os referidos pressupostos. Como já se disse, as declarações em audiência de A e B tiveram algum relevo para a reconstituição do que aconteceu — ainda que o juiz tivesse ficado a saber uma porção do acontecido, não o todo. Ambos disseram do seu arrependimento e da pretensão — simpática — de reinaugurar a vida. Todos os três são primários e jovens, sem nada de negativo que se lhes possa apontar antes e depois dos factos. Têm 49 ) A conclusão não é forçosa e serve apenas fins didácticos, para fomentar a discussão, como tudo o mais que agora está em apreciação. Como mais adiante se dirá, a atenuação especial deve ser entendida como um regime penal normal para os jovens de idade compreendida entre os 16 e os 21 anos. De carácter excepcional é a atenuação especial prevista no artigo 72º do Código Penal. 555 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. todos perspectivas de ficar inseridos socialmente: fazem parte de famílias que cultivam os afectos, mesmo tendo apertos de dinheiro. As condutas parecem aliás condizer com circunstâncias episódicas da vida destes três jovens e não com personalidades deformadas e avessas ao Direito. Estão detidos, dois deles há mais de um ano, o outro há já alguns meses — e em qualquer dos casos a pena merece a redução oferecida por recente lei de clemência. O prognóstico feito quanto à ressocialização não tem que ficar acertado de pedra e cal. Mas confia-se em que essa recuperação se irá processar de forma harmoniosa e sem rupturas — sem que voltem a andar de candeias às avessas com a lei e a sociedade. Por isso suspende-se por quatro anos a pena em que cada um dos indicados A, B e C aqui foi condenado, sem prejuízo da oportuna aplicação do que decorre da falada lei de amnistia, se a suspensão vier a ser, em qualquer caso, revogada. Tem-se entendido que o pressuposto material da suspensão da execução da pena é limitado por duas coordenadas: a salvaguarda das exigências mínimas essenciais de defesa do ordenamento jurídico (prevenção geral) e o afastamento do agente da criminalidade (prevenção especial), sendo indispensável que o tribunal possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, assente numa expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição. II. Indicação da pena abstracta. Escolha da pena. Individualização da pena concreta. CASO nº 45-A: Em 2 de Outubro de 1998, A assinou e entregou a M os dois cheques junto aos autos com a queixa, sobre o Banco X, preenchidos mecanicamente, mediante o seu acordo, com a mesma data, para pagamento de produtos que então lhe foram fornecidos. A sabia que não tinha provisão na conta sacada suficiente para pagar o valor dos cheques, um de 82590$00 e outro de 66454$00 e, inclusivamente, que a mesma conta tinha sido bloqueada. Sabia igualmente que causava um prejuízo M, que se viu privada daquelas quantias, que contava logo receber. Com efeito, ambos os cheques foram apresentados a pagamento, mas foram devolvidos em 7 de Outubro de 1998, com a indicação, aposta no verso de cada um deles pelo Banco sacado, de que a conta se encontrava bloqueada. A, que actuou na execução de uma única resolução criminosa, fê-lo consciente e voluntariamente, sabendo que isso era contra a lei. Não tem antecedentes criminais. É casada, doméstica, de 46 anos de idade; o marido ganha 104 contos e pagam renda de casa. Tem dois filhos e alegou dificuldades económicas que motivaram a sua actuação. A.confessou os apontados factos, integralmente e sem reservas. 556 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Qual a pena a aplicar ? 1. Indicação do crime cometido e da respectiva moldura penal abstracta. Mostram-se preenchidos todos os elementos constitutivos do tipo de crime de emissão de cheque sem provisão no enquadramento do ilícito do artigo 11º, nº 1, a ), do Decreto- Lei nº 454/91. Os cheques foram emitidos para pagar o preço de mercadorias fornecidas no acto da sua entrega ao beneficiário e o seu não pagamento, devido à conta estar bloqueada, gerou um prejuízo patrimonial, correspondente, pelo menos, ao somatório dos valores titulados. À resolução criminosa única corresponde um único crime a cargo de A. Na moldura penal abstracta a pena cominada é a de prisão até 3 anos ou multa (até 360 dias). 2. Linhas gerais da problemática que envolve a determinação concreta das penas. Espécie da pena a aplicar: prisão ou multa? Medida judicial da pena (pena concreta). Retoma-se o modelo preventivo limitado pela culpa, no fundo, a ideia de que a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Elege-se assim, como comando da medida da pena, a ideia de prevenção geral positiva ou de integração, com a qual hão-de então interrelacionar-se objectivos de prevenção especial de ressocialização e considerações de culpa. Esta, desde logo enquanto "limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas", aqueles enquanto caminho para a concretização da própria teleologia do citado artigo 40º, quando aponta também para a "reintegração do agente na sociedade". A agiu com dolo cujo grau não excede a média, mas com plena consciência da ilicitude da sua conduta. Os cheques são dois, um de 82590$00, o outro de 66454$00 e foram dados em pagamento de artigos fornecidos. Os dados pessoais da A são de molde a favorecê-la, nomeadamente, não tem antecedentes criminais. Tudo ponderado, fazendo apelo aos critérios do artigo 71º do Código Penal, e sendo certo que se ao crime forem aplicáveis, como é o caso, pena privativa e pena não privativa da liberdade o tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 70º), o que quer dizer que a pena de prisão é encarada 557 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. como ultima ratio, julga-se adequada a pena de 120 dias de multa à taxa diária de quinhentos escudos. Nos procedimentos para a determinação concreta da pena segundo o sistema dos dias de multa, o primeiro acto do juiz visa fixar, dentro dos limites legais, o número de dias de multa, em função dos critérios gerais de determinação concreta (medida) da pena. Significa isto que a fixação concreta do número de dias de multa ocorre em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, concretizados no nº 2 do mesmo preceito. O segundo acto do juiz na determinação da pena segundo o sistema dos dias de multa visa fixar, dentro dos limites legais, o quantitativo de cada dia de multa em função da situação económica do condenado e dos seus encargos pessoais. No caso, considerando que a arguida aufere por mês cerca de 60 contos, com os quais tem de fazer face às despesas do seu agregado familiar composto por quatro pessoas, o que dá um rendimento per capita de cerca de 500$ diários e os actuais níveis do custo de vida, não se afigura benevolente a quantia de 600$ fixada para cada dia de multa. Acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Dezembro de 1999, BMJ-492- 481. III. Como é que se legitima a aplicação duma pena? Finalidades da punição (desenvolvimentos). Para as teorias absolutas, a pena será legítima se for a retribuição duma lesão praticada de modo censurável. Escrevia Maurach (apud Beleza dos Santos, p. 7) que “a pena, pela sua própria natureza, apenas pode ser retribuição (Vergeltung) e nada mais. Não importa se esta retribuição é eficaz como prevenção. Pelo contrário, o fim de prevenção implica uma utilização ilegítima do delinquente no interesse dos outros.” Mas só se legitima a pena se esta for justa. A pena necessária será a que produza um mal ao autor do crime, compensando o mal que livremente causou. Não se recorre, portanto, à ideia de utilidade da pena: só será legítima a pena justa, mesmo que não seja útil. Para as teorias relativas, o critério de legitimação assenta na utilidade da pena. As teorias relativas procuram legitimar a pena pela obtenção de um determinado fim. 558 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. “Abandonada, quase por toda a parte, uma justificação factual-retributiva ou objectivo- expiatória da pena, a doutrina surgia-nos, até há não muito tempo, claramente bipolarizada. De um lado, deparava-se com o pensamento — subsidiário da escola neoclássica e largamente dominante, por exemplo, na doutrina alemã-ocidental — que reconduzia a justificação da pena à fórmula “prevenção especial através de justa retribuição”, enquanto a prevenção especial constituiria uma exigência de segunda ordem e teria o seu campo de eleição no domínio das medidas de segurança. Do outro lado encontrava-se a ideia — tão cara aos corifeus da défense sociale, em qualquer das suas manifestações — de que a finalidade de ressocialização do delinquente, ligada ao pensamento da prevenção especial, constitui o primeiro e decisivo fundamento da pena, sem prejuízo de esta dever continuar a distinguir-se da medida de segurança por outras vias, nomeadamente através da co-actuação do fim retributivo em relação àquela e não a esta. Mas a situação evoluiu sensivelmente nos últimos anos, tornando-se extremamente complexa”. (…) É hoje geralmente reconhecido, na verdade, que a pena só pode ter por fundamento não a retribuição do mal do crime ou a sua expiação pelo agente, mas considerações de pura prevenção. (…) Assinalar à pena uma qualquer função retributiva significaria desligá-la por completo da função do direito penal como ordem de protecção de bens jurídicos. Pode ainda, neste contexto, continuar a defender-se a exigência de culpa como conditio sine qua non da aplicação da pena e limite inultrapassável da sua medida: aquela será então pressuposto da pena, radicando a sua indispensabilidade em razões de limitação do poder punitivo do Estado, ligadas à necessidade de garantia dos direitos e liberdades do cidadão e impostas pela vertente liberal e democrática do Estado de Direito. A função da culpa não mais residirá todavia em fundamentar a aplicação da pena, mas unicamente em evitar — até por razões ligadas à desejável eficácia da prevenção — que uma tal aplicação possa ter lugar onde não exista culpa ou numa medida superior à suposta por esta. Aceite este ponto de vista fica sópara discutir se a primazia na fundamentação da pena deve ser conferida à ideia da prevenção geral ou antes à da prevenção especial”. Jorge de Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 26. Restabelecimento, através da punição, da paz jurídica comunitária. A ideia da prevenção geral positiva ou de integração é hoje entendida como finalidade básica da aplicação da pena. A pena é sempre reacção à infracção de uma norma. Com a reacção, 559 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. torna-se óbvio que a norma é para ser observada —e a reacção demonstrativa tem sempre lugar à custa do responsável pela infracção da norma. A finalidade da pena coincide com a reafirmação das normas e do ordenamento (prevenção geral positiva), o que se inscreve no exercício da confiança, da fidelidade ao direito e da aceitação das consequências jurídicas do delito. A aplicação de penas e de medidas de segurança é comandada exclusivaemnte por finalidades de prevenção, nomeadamente de prevenção geral positiva ou de integração e de prevenção especial positiva ou de socialização, como de resto expressamente dispõe o artigo 40º do Código Penal. A culpa, segundo a função que lhe é político-criminalmente determinada, constitui condição necessária de aplicação da pena e limite inultrapassável da sua medida. Dentro do limite máximo permitido pela culpa, a pena deve ser determinada no interior de uma “moldura de prevenção geral positiva”, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral positiva a medida da pena será encontrada em função de exigências de prevenção especial, maxime, de socialização. (Figueiredo Dias). 1. Na escolha da pena (e na decisão de punir) tem-se em vista as finalidades da punição. Está excluída a retribuição. As finalidades da punição estão apontadas no artigo 40º do Código Penal: protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade. A protecção de bens jurídicos implica tanto prevenção geral como prevenção especial, esta para dissuadir o próprio delinquente potencial. A reintegração do agente requer que se adoptem critérios próprios da prevenção especial no momento da escolha da pena e posteriormente, na sua execução. Tem-se como adquirido que a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. “A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral” (Prof. Fernanda Palma). Ao contrário da nossa tradição penal, a pena assume-se agora, decididamente, utilitarista e anti-kantiana: visa (apenas) a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente (Américo Marcelino, Código Penal revisto, Expresso, 3.6.95). Com efeito, escreveu Kant 560 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. (apud Beleza dos Santos): “A pena judiciária (“poena forensis”) nunca pode empregar- se apenas como um meio para o bem do delinquente ou da sociedade. Ela deve ser aplicada apenas porque o condenado cometeu um crime. É que o homem nunca pode ser utilizado como simples meio para servir fins alheios”. Hoje em dia tem-se como certo que só finalidades relativas de prevenção, geral e especial — e não finalidades absolutas de retribuição e expiação —, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas “A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida” (Prof. Figueiredo Dias, Direito penal português, II, p. 72; RPCC I 1991, p. 22 e ss.). De qualquer forma, em caso algum pode haver pena sem culpa — a medida da pena, aliás, não pode ultrapassar a medida da culpa. Os artigos 40º, nº 2, e 70º (a contrario) apontam para a função (meramente restritiva) da culpa. A culpa como censura da pessoa (da sua vontade ou da sua orientação de conduta) não justifica a pena nem a sua medida judicial, mas apenas impede que razões preventivas justifiquem uma pena não proporcionada (superior) à da culpa do agente (Prof. F. Palma, As alterações reformadoras). IV. Sentido unilateral de relacionamento da culpa com a pena. A pena supõe culpa e também é limitada no seu quantum por ela; mas não se aceita já que um comportamento culposo exija sempre uma pena. Pelo contrário, considera-se que o comportamento culposo só deverá punir-se quando razões preventivas tornem indispensável o castigo. “A distinção entre ilicitude e culpa é o legado mais importante da ciência alemã do Direito Penal na primeira metade do nosso século. Actua ilicitamente quem, sem estar 561 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. autorizado, realiza um tipo jurídico-penal e, desse modo, uma acção socialmente danosa. Mas esse comportamento só é culposo quando for possível censurá-lo ao seu autor por ter podido actuar de maneira diferente, isto é, de acordo o com o direito. É igualmente doutrina absolutamente dominante na ciência alemã do Direito Penal — e considera-se isso como uma quase evidência — que, a par da distinção entre ilicitude e culpa, se devem também distinguir as causas de justificação das causas de exclusão da culpa. O Código Penal alemão de 1871 não continha esta distinção entre ilicitude e culpa; noutros países há muitos ordenamentos jurídicos que ainda não a conhecem. Contudo, a nova parte geral do Código penal da República Federal Alemã, entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1975, acolhe agora esta terminologia científica distinguindo claramente nos §§ 34 e 35 entre estado de necessidade justificante e desculpante. Também se diz no § 32 que "não é ilícito" o facto realizado em legítima defesa; por outro lado, qualifica-se expressamente no § 20 o delito realizado por alguém afectado de doença mental como cometido "sem culpa". Pouco a pouco foi-se impondo na legislação alemã o conceito de culpabilidade. Também o preceito relativo à determinação da pena (§ 46) faz do grau de culpa o factor decisivo na determinação do quanto da pena. Mas ao mesmo tendo que se dava esta vitória do conceito de culpa ia-se modificando também de um modo decisivo na ciência alemã do último decénio o conteúdo do que se entendia por "culpa". Ponto de partida desta transformação foi a mudança operada nas teorias da pena. Já entrados os anos sessenta dominava ainda na Alemanha a teoria da retribuição, segundo a qual a pena supõe, por um lado, a culpa, mas, por outro lado, esta, por sua vez, também deverá ser compensada (retribuída) pela pena. Assim, por ex., diz o meu colega de Munique Arthur Kaufmann na sua fundamental monografia "Das Schuldprinzip" (1961, 2ª ed., 1976): "o carácter absoluto da pena deriva unicamente desta concepção bilateral do princípio da culpa, isto é: a pena tem que corresponder à culpa mas esta também torna necessária a pena. Não pode proclamar o princípio da culpa como absoluto quem negar que, em princípio, à culpa se deve seguir a pena. Quem afirmar o princípio da culpa deve, consequentemente, afirmar também a necessidade da pena pela culpa, isto é, não pode, com fundamento em qualquer tipo de considerações utilitárias, negar a necessidade da pena, não-obstante a existência da culpa" (p. 202). Kaufmann chega até a reclamar uma vigência absoluta, fundada no Direito natural, para a 562 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. tese segundo a qual "a pena tem que corresponder à culpa, mas também a culpa exige em princípio pena" (p. 208). Esta concepção "bilateral" do princípio da culpa, que corresponde à tradição dominante na Alemanha desde Kant e Hegel, foi abandonada nos últimos anos tanto pela doutrina como pela jurisprudência. Existe agora unanimidade: o princípio da culpa não é bilateral, mas sim unilateral. Quer dizer: a doutrina dominante na Alemanha afirma que a pena supõe culpa e que também é limitada no seu quantum por ela; mas não aceita já que um comportamento culposo exija sempre uma pena. Pelo contrário, considera que o comportamento culposo só deve ser castigado quando as razões preventivas — ou seja, a missão do Estado ao garantir a convivência em paz e liberdade — tornam indispensável o castigo. Também Arthur Kauffman diz agora ("Das Schuldprinzip», 2ª ed., 1976, p. 276) "que a pena não só se justifica pela culpa", mas também deve ser exigida "pela protecção de bens jurídicos necessária à comunidade". Parece-me indiscutível a exactidão da mais moderna concepção "unilateral" do princípio da culpa. Talvez possa afirmar-se que razões religiosas ou filosóficas exigem uma compensação da culpa; esta é uma questão que tem o seu lugar nas disciplinas que se ocupam destes problemas. Mas o que é certo é que esta anulação da culpa não tem que se produzir através da pena pública, pois esta não é uma instituição divina ou uma ideia filosófica. Numa democracia pluralista não é missão do Estado decidir de forma vinculante sobre questões religiosas ou filosóficas. A pena estatal é exclusivamente uma instituição humana criada com o fim de proteger a sociedade; não pode, por conseguinte, ser imposta se não for necessária com base em razões preventivas. Na política criminal esta ideia impôs-se de forma ampla. Constitui, desde o Projecto Alternativo (1966), uma exigência fundamental do movimento de reforma a ideia que uma conduta só pode ser castigada, não já — como se escrevia no Projecto oficial de 1962 — pela sua imoralidade culposa, mas só quando isso for necessário para a "protecção de bens jurídicos", isto é, quando represente uma lesão insuportável da ordem social pacífica. Após muitos anos de discussão, a legislação alemã aderiu a esta concepção e, ao contrário do que sucedia no direito anteriormente vigente, e do que se propunha no Projecto de 1962, foram despenalizados comportamentos como a homossexualidade, a 563 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. bestialidade, a sodomia, a venda de objectos pornográficos, etc., na medida em que esses comportamentos não lesam a comunidade na sua liberdade nem a prejudicam. Essas acções são certamente consideradas ainda por grandes sectores da população alemã como imorais e culposas; mas na medida em que sejam realizadas voluntariamente e em privado não prejudicam a paz social e devem permanecer impunes. Mas os problemas da culpa e da protecção da sociedade desempenham também um papel importante na dogmática da teoria geral do crime e no direito da determinação da pena. Por isso, a passagem de uma concepção bilateral a uma concepção unilateral do princípio da culpa deve também incidir nestes sectores". Claus Roxin, Concepción bilateral y unilateral del princípio de culpabilidad, in Culpabilidad y prevencción en derecho penal. Cf., ainda, Sentido e limites da pena estatal, em Problemas fundamentais do Direito Penal, 1986, p. 15 e ss.); e Faria Costa, O perigo, p. 373 e s. V. Ainda o sistema de determinação da pena (desenvolvimentos). Voltamos agora, em linhas muito gerais, ao procedimento através do qual o aplicador do direito fixa a espécie e a medida da pena no caso concreto. Deverá o juiz, olhando ao quadro legal, determinar: Primeiro, a moldura penal abstracta cabida aos factos dados como provados no processo. Em seguida, encontrar, dentro desta moldura penal, o quantum concreto de pena em que o arguido deve ser condenado. Ao lado destas operações — ou em seguida a elas —, escolher a espécie ou o tipo de pena a aplicar concretamente, sempre que o legislador tenha posto mais do que uma à disposição do juiz. (Cf., especialmente, Prof. Figueiredo Dias, Direito penal português, II, p. 185 e ss.) 1. A pena aplicável. Tanto no caso nº 45 como no caso nº 45-A, o ponto de partida é o tipo legal de crime cometido. A, B e C praticaram em co-autoria o crime do artigo 262º, nº 1, cuja moldura penal aponta prisão de 2 a 12 anos. Esta moldura penal entra imediatamente em aplicação. Todavia, o acórdão identificou a possibilidade de aplicar a qualquer um dos arguidos, atenta a sua idade, uma circunstância atenuante, susceptível de alterar a medida penal 564 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. indicada de 2 a 12 anos de prisão, baixando-a, nos seus limites máximo e mínimo. Com efeito, para o crime em causa, a menoridade de imputáveis, por aplicação dos artigos 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, e 73º, do Código Penal, pode (não é de aplicação automática) conduzir à moldura penal em que o limite máximo de prisão é reduzido de um terço (12 anos — 1/3 = 8 anos) e o limite mínimo é reduzido ao mínimo legal (2 anos passa para 30 dias de prisão: artigo 73º, nº 1, b), in fine, e 41º, nº 1). A moldura penal aplicável seria então a de 30 dias de prisão a 8 anos de prisão. O caso de sinal inverso poderia ser, por ex., o de tratar como reincidente qualquer dos arguido A, B ou C. Supondo que o tribunal declarava A reincidente, para o que teria de atender aos pressupostos do artigo 75º, e sabendo-se que, em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço (ainda que a agravação não possa exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores) e o limite máximo permanece inalterado, teríamos a moldura penal abstracta, aplicável ao reincidente de (2 anos + 1/3 = 2 anos e 8 meses) 2 anos e 8 meses de prisão a 12 anos de prisão. Como, porém, no caso nº 45, nem o Tribunal aplicou a reincidência nem encontrou motivos para conceder a atenuação especial da pena a qualquer dos arguidos, a moldura penal aplicável é afinal aquela de 2 anos de prisão a 12 anos de prisão. 2. A pena aplicada. O juiz passa agora à tarefa de encontrar a pena concretamente cabida ao caso, o quantum da pena que vai constar da condenação. O juiz vale-se do critério legal do artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele. A determinação da medida da pena será feita pelo juiz em função da culpa e da prevenção. São estas categorias que determinarão se, por ex., dentro da moldura penal aplicável de 2 a 12 anos de prisão, cada um dos arguidos A, B e C deverá ser condenado a 2, a 3, a 4 anos e 6 meses, a 8 anos e 5 meses, ou a 12 anos de prisão. 565 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Mas “como se entendem ou conceitualizam a culpa e a prevenção para efeitos de medida da pena? Como se relacionam uma e outra entre si? E, dentro do campo da prevenção, como se relaciona a prevenção individual ou especial, por um lado, com a prevenção geral, por outro? Eis as questões fulcrais sobre as quais não é possível emitir respostas unívocas; sendo certo que tais questões não assumem apenas — longe disso — o mais decidido interesse teórico e doutrinal, mas antes das respostas que se lhes der depende, em último termo, a medida da pena que concretamente irá ser aplicada ao agente”. Cf. especialmente Prof. Figueiredo Dias, p. 214 e ss., Dr. Robalo Cordeiro, Escolha e medida da pena, 1983, p. 269 e ss., Profª Fernanda Palma, As alterações reformadoras, p. 25 e ss. De acordo com o artigo 71º, nº 2, não devem ser tomadas em consideração, na medida da pena, as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime (proibição de dupla valoração), na medida em que já terão sido levadas em conta pelo legislador na determinação da moldura legal. Circunstâncias que não fazem parte do tipo de crime são, desde logo, as que o legislador não considerou ao tipificar a infracção. Hão-de, naturalmente, estar de algum modo relacionadas com ela, directamente ou através do seu agente. Lembra o Dr. Robalo Cordeiro a indicação do autor do projecto de que a infidelidade ou os maus tratos do ladrão para com a sua mulher, se bem que integrando a sua conduta anterior ao facto são em princípio irrelevantes para a medida da punição do furto. Mas não está proibido “que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso”. Quanto aos factores concretos de medida da pena, são eles os relativos à execução do facto, os relativos à personalidade do agente e os relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. Fora ficam, entre muitos outros, factores relativos à vítima (personalidade, concorrência de culpa, consentimento não relevante, etc.) — e que podem relevar tanto pela via da culpa como da prevenção — bem como factores especificamente relacionados com a necessidade da pena (v. g., ter decorrido, em certas condições, já bastante tempo sobre a prática do facto). 3. A escolha da pena. 566 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. Se no tipo legal a pena for cominada em alternativa, como é o caso do furto ou do crime de emissão de cheque sem provisão (veja o caso nº 45-A: pena de prisão até 3 anos ou pena de multa), o juiz fica vinculado ao critério do artigo 70º, que manda dar preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da prevenção. Também pode acontecer que, sendo o crime punido unicamente com pena de prisão, o juiz se decida, por exemplo, pela pena de 6 meses de prisão, a que chegou pela consideração dos factores do artigo 71º, nºs 1 e 2. Neste caso, manda a lei (artigo 44º) substituí-la por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pele necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. Havendo lugar à substituição, o juiz, depois de justificar a medida da pena, dirá na sentença: Como autor material de um crime de homicídio a pedido da vítima do artigo 134º, nº 1, do Código Penal, condena-se A na pena de 6 meses de prisão que todavia se substitui por idêntico tempo de multa à taxa diária de 5000 escudos. A pena pode aliás ser substituída por admoestação (artigo 60º), se for de multa, ou por prestação de trabalho a favor da comunidade (artigos 58º e 59º), se for de prisão. Tenha- se ainda em atenção o que se dispõe sobre a suspensão da execução da pena de prisão, o regime de cumprimento por dias livres e o regime de semidetenção. O critério geral é o de que a pena escolhida há-de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição — exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial. “São puras razões ou exigências de prevenção que dominam a operação de escolha da pena, portanto a aplicação das penas de substituição; a culpa esgotou as suas virtualidades na determinação da pena principal” (Dr. Robalo Cordeiro). Cf. o que se diz nos artigos 40º, nº 1, 70º e nos diversos artigos que permitem a aplicação das penas de substituição: 44º, nº 1, 45º, nº 1, 48º, nº 1, 50º, nº 1, 58º, nº 1, 59º, nº 6, 60º, nº 2. "Considerações de culpa não devem ser levadas em conta no momento de escolha da pena. Na verdade, o juízo de culpa já foi feito: antes de se colocar a questão da escolha da pena importou já decidir, é sabido, sobre a aplicação da pena de prisão e sobre a sua 567 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. medida concreta, para o que foi decisivo um juízo (concreto) sobre a culpa do agente. Ora, esse juízo não importa agora referí-lo, sendo completamente irrelevante para decidir da escolha da pena" (Anabela Rodrigues). O tribunal pode não aplicar a pena quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses ou só com pena de multa não superior a 120 dias (artigo 74º, nº 1). A dispensa de pena só terá porém lugar se se mostrarem preenchidos os requisitos do artigo 74º, nº 1. Da dispensa de pena ocupam-se os artigos 35º, nº 2, 186º, 286º, 294º, 364º, 372º, nº 3, 373º, nº 2, 374º, nº 3. No caso nº 45, o tribunal, que fixou a pena de cada um dos arguidos A, B e C em 3 anos de prisão, declarou-a suspensa na sua execução (artigo 50º), ainda que sem subordinação ao cumprimento de certos deveres ou sem a fazer acompanhar da observância de certas regras de conduta. A pena de 120 dias de multa foi aplicada ao arguido D, mas logo se preveniu a aplicação das regras do desconto, no artigo 80º do Código Penal. Anote-se que não há permissão para suspender a pena quando esta for de multa (artigo 50º, nº 1). Veja-se, porém, o que se dispõe no artigo 49º, nº 3: se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa nos termos ali referidos. "Louvando-nos no ensino de Figueiredo Dias [Direito Penal 2, 1988, p. 413] , podemos dizer que na dispensa de pena o que existe "verdadeiramente é uma pena de declaração de culpa ou, se se preferir, uma espécie de admoestação em que esta resulta sem mais da declaração de culpa", se bem que depois se afirme que é "preferível a colocação e o estudo sistemáticos do instituto entre os casos especiais de determinação da pena. Ora, se em verdadeiro rigor há uma pena, então a toda a culpa corresponde uma pena e o art. 75 do CP expressa verdadeiramente o princípio da bilateralidade da culpa. O que só vem demonstrar a enorme fluidez dogmática — em nossa opinião não indesejável, desde que correctamente entendida — que envolve a problemática da dispensa de pena". Faria Costa, O perigo, p. 380. 568 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. VI. A jurisprudência, os acidentes de viação e outros crimes involuntários No domínio do artigo 59º do anterior Código da Estrada e da versão de 1982 do Código Penal, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça foi, predominantemente, no sentido de impor pena de prisão efectiva no caso de crime de homicídio involuntário com culpa grave e exclusiva. Considerava-se desaconselhável tanto a suspensão da pena como a sua substituição por multa: entre os mais significativos, podem consultar-se os acórdãos de 2 de Março de 1983, BMJ-325-365; de 24 de Março de 1983, BMJ-325- 413; de 8 de Maio de 1985, BMJ-347-214; de 9 de Julho de 1986, BMJ-359-358; de 9 de Julho de 1986, BMJ-359-367; de 12 de Junho de 1987, BMJ-368-322 e de 23 de Março de 1988, BMJ-375-223. Todavia, parece ter-se notado uma inflexão já nos anos seguintes, como se põe em evidência na anotação do Boletim (nº 395, p. 292) ao acórdão de 21 de Março de 1990, ali publicado, "na esteira, aliás, dos acórdãos de 12 de Julho de 1989 (Processo nº 40.144) e de 6 de Dezembro de 1989 (Processo nº 40.523) (...) já que em todos eles se optou pela substituição da pena de prisão". Passou assim a acentuar-se que o recurso às penas privativas da liberdade só será legítimo quando, face às circunstâncias do caso, se não mostrarem adequadas as reacções penais não detentivas. Ver agora o acórdão do STJ de 5 de Fevereiro de 1997, BMJ-464-176, que apela às finalidades de prevenção geral para negar a suspensão da pena em casos de culpa grave e exclusiva do delinquente. Veja-se, a este propósito, Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade e a escolha da pena — Acórdão do STJ de 21 de Março de 1990 (BMJ-395-286), anotação, RPCC, ano I (1991), p. 243; e o apontamento de Fernanda Palma, As alterações reformadoras, p. 42. Já do ano de 2000, pode ler-se um detalhado estudo do Juiz Mário Mendes Serrano sobre a jurisprudência dos tribunais superiores quanto à medida das penas aplicadas nos homicídios negligentes estradais, publicado in sub judice / ideias - 17 (2000). Cf. o acórdão do STJ de 8 de Julho de 1998, CJ 1998, ano VI, tomo II, p. 237. O Supremo considerou que a conduta era subsumível à previsão do crime culposo de violação de regras de construção (artigo 277º, nº 2) e subsumível, por duas vezes (eram duas as vítimas), ao tipo do homicídio por negligência grosseira do artigo 137º, nº 2, afirmando que é de há décadas jurisprudência firme, ditada manifestamente por razões de 569 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. prevenção geral, não se justificar a suspensão da execução da pena nos homicídios resultantes de acidentes produzidos com culpa grave do agente. Cf. o acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Junho de 1999, BMJ-488-402: condutor com emprego certo que com culpa grave e exclusiva colhe mortalmente um peão na passadeira. As exigências de ressocialização são muito escassas; as de prevenção geral da sinistralidade rodoviária impõem fortissima censura — é adequado punir o arguido com prisão por dias livres. Cf. ainda o acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Fevereiro de 2001, CJ, ano XXVI 2001, tomo I, p. 59: mesmo no âmbito do direito estradal, só em situações muito excepcionais é de aplicar uma pena curta de prisão efectiva, devendo dissuadir-se o infractor através de outros meios, menos agressivos, mas altamente punitivos, como sejam a aplicação da pena acessória de inibição de conduzir e das medidas de cassação de licença ou de interdição da sua concessão. VII. A atenuação especial prevista nos artigos 9º do Código Penal e 4º do Decreto- Lei nº 401/82, de 23 de Setembro. Pode surgir como pertinente a questão da juventude imputável do arguido com idade entre os 16 e os 21 anos, para quem a atenuação especial está expressamente prevista nos artigos 9º do Código Penal e 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro. As medidas decretadas neste diploma não afastam a aplicação — como ultima ratio — da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a dois anos: nº 7 do preâmbulo. Mas se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado (artigo 4º). Sem que isso, naturalmente, aponte para a aplicação automática da atenuação especial e das demais medidas consagradas como especiais para os jovens (cf., como expressão de uma jurisprudência uniforme, o acórdão do STJ de 3 de Março de 1999, no processo nº 198/99). São medidas que têm como limite a firme defesa da sociedade e a prevenção da criminalidade. Por conseguinte, poderemos também concluir 570 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. que a medida concreta da pena não deve baixar para além do que for indispensável para que se não ponha irremediavelmente em causa a afirmação da validade do direito (defesa da ordem jurídica). A medida mínima da chamada moldura de prevenção "em nada pode ser influenciada por considerações seja de culpa seja de prevenção especial" (Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências jurídicas do crime, p. 242 e ss.). Reivindicando um bom sentido para o artigo 4º do diploma especial para jovens, já vimos defender, mesmo em processo de tráfico de drogas, ( 50 ) que "a interpretação que melhor corresponde ao espírito do legislador do Decreto-Lei nº 401/82 vai no sentido de, reconhecendo embora o carácter não automático da aplicação do regime especial para jovens, admitir que só um juízo de prognose negativo poderá afastar a aplicação da atenuação especial, pois só então as exigências preventivas podem fazer valer os seus direitos sobre as preocupações ressocializadoras do legislador". Não será assim difícil chamar ao compromisso, rompendo com certa rigidez anterior, de se entender a atenuação especial como um regime penal normal para os jovens de idade compreendida entre os 16 e os 21 anos — e não revestida de carácter excepcional, como a atenuação especial prevista no artigo 72º do Código Penal. É nesta perspectiva que se move, por ex., o acórdão do STJ de 29 de Março de 2001, acentuando por um lado a flexibilidade do julgador ( 51 ), que é mesmo preconizada e incentivada no preâmbulo do Decreto-Lei nº 401/82, e por outro a inconveniência dos efeitos estigmatizantes das penas. Cf. ainda o acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Fevereiro de 2001, CJ, ano XXVI 2001, tomo I, p. 150. 50 ) É a posição do Procurador-Geral Adjunto, transcrita no acórdão do STJ de 29 de Março de 2001, processo 261/01. 51 ) A flexibilidade do julgador é expressamente chamada à colação no caso, tratado pelo acórdão do STJ de 7 de Outubro de 1999, BMJ-490-48, do homem de 86 anos, delinquente ocasional, que se envolveu em discussão com a mulher com quem estava casado há mais de 40 anos por suspeitar que ela lhe seria infiel e que o andaria a envenenar — e que a matou a tiro. O Supremo atenuou especialmente a pena da 1ª instância de 8 anos de prisão pelo crime de homicídio do artigo 131º e fixou-a em 4 anos de prisão. 571 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. VIII. Outras indicações de leitura • Artigo 47º, nº 2, do Código Penal: cada dia de multa corresponde a uma quantia entre ! 1 e ! 498,80, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. • Assento nº 1/2002, de 14 de Março de 2002, publicado no DR I-A de 21 de Maio de 2002: sobre recurso ordinário da decisão final da Relação relativa à indemnização civil. • Acórdão de fixação de jurisprudência de 2 de Junho de 2004 (causas de extinção do procedimento e da pena no caso de extinção de pessoas colectivas): a extinção, por fusão, de uma sociedade comercial, com os efeitos do artigo 112º, alíneas a) e b), do Código das Sociedades Comerciais, não extingue o procedimento por contra-ordenação praticada anteriormente à fusão, nem a coima que lhe tenha sido aplicada. • Decreto-Lei nº 375/97, de 24 de Dezembro: aplicação e execução da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade. • Despacho Normativo nº 12/2002, de 7 de Março: estabelece as acções de formação em casos de suspensão de execução da sanção de inibição de conduzir. • n° 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n° 48/95, de 15 de Março, estabelece que "enquanto vigorarem normas que prevejam pena cumulativas de prisão e multa, sempre que a pena de prisão for substituída por multa será aplicada uma só pena equivalente à soma da multa directamente imposta e da que resultar da substituição da prisão”. • Princípio da humanidade das penas; a recusa da prisão perpétua; preservação do legado humanista do sistema sancionatório português: Pedro Caeiro, RPCC 11 (2001), p. 40. • Acórdão da Relação de Coimbra de 17 de Janeiro de 2001, CJ, ano XXVI (2001), tomo I, p. 50: determinação da medida da pena acessória de inibição de conduzir: a sanção em causa tem em vista tão só prevenir a perigosidade do agente, muito embora se lhe assinale um efeito de prevenção geral. Impossibilidade de substituição. • Acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Janeiro de 2002, CJ 2002, tomo I, p. 43: pena acessória de proibição de conduzir, âmbito de aplicação após a entrada em vigor da Lei nº 77/2001, de 13 de Julho. • Acórdão da Relação de Coimbra de 29 de Novembro de 2000, CJ ano XXV, tomo V, 2000, p. 50: A pena acessória de inibição de conduzir não pode ser substituída por caução de boa conduta, hipótese apenas prevista para o domínio contra-ordenacional do Código da Estrada, ou suspensa na sua execução condicionada a pagamento da prestação de caução se a pena principal é de multa. • Acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Novembro de 2002, CJ 2002, tomo V, p. 41: desconto da prisão preventiva e da detenção. Tendo o arguido estado detido das 18 horas de um dia às 12 horas do dia seguinte, e uma vez que face ao artigo 479º, nº 1, c), do CPP o dia é equivalente a um período de 24 horas, mostra-se correcto contabilizar tão só como um dia daquele tempo de detenção. • Acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Fevereiro de 2001, CJ, ano XXVI 2001, tomo I, p. 59: crime cometido durante a suspensão da execução da pena. 572 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Novembro de 2001, CJ, ano XXVI (2001), tomo V, p. 47: dispensa de pena; pressupostos do artigo 143º, nº 3. • Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de Dezembro de 2001, CJ, ano XXVI (2001), tomo V, p. 149: é admissível oficiosamente condicionar a suspensão da pena ao pagamento de uma quantia compensatória ao ofendido. • Acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Dezembro de 2002, CJ 2002, tomo V, p. 134: conversão em multa do remanescente da pena de prisão não perdoada na sequência de lei de clemência. • Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Dezembro de 1999, BMJ-492-476: condução em estado de embriaguez, suspensão da pena de prisão: arguido que já fora condenado por idêntico crime de condução em estado de embriaguez, em pena de multa relativamente elevada, considerando a sua situação económica, pena que se mostrou ineficaz para o afastar do cometimento de novo crime. Cf., igualmente, o acórdão da mesma Relação de 2 de Dezembro de 1999, BMJ-492-478. • Acórdão da Relação do Porto de 16 de Janeiro de 2002, CJ 2002 tomo I, p. 232: medida de segurança não penal, internamento compulsivo de doente pulmonar. • Acórdão da Relação do Porto de 4 de Junho de 2003, CJ 2003, tomo III, p. 210: internamento em estabelecimento psiquiátrico; desconto da medida de coacção da privação da liberdade. • Acórdão do STJ de 1 de Março de 2000, BMJ-495-59: contém uma operação de cúmulo sucessivo dos efeitos de diversas atenuantes especiais aplicáveis ao agente, num caso de jovem imputável. • Acórdão do STJ de 1 de Março de 2000, CJ, ano VIII (2000), tomo I, p. 216: arguido que beneficia de atenuante especial nos termos do artigo 4º do Decreto-Lei nº 401/82, por haver razões sérias para crer que dessa atenuação resultarão vantagens para a reinserção social do jovem condenado derivadas da consideração de uma moldura penal abstracta permitindo pena concreta que, ajustada ao limite da culpa e às concretas exigências razoáveis da prevenção geral positiva ou de integração, permitirá uma mais provável e adequada reinserção social. • Acórdão do STJ de 10 de Outubro de 2001, CJ, 2001, ano IX, tomo III, p. 189: apesar de ter transitado em julgado o despacho que revogou a suspensão da execução de uma pena, é admissível suspender-se a execução da pena única resultante da reformulação de cúmulo jurídico em que aquela se integre. • Acórdão do STJ de 12 de Abril de 2000, CJ ano VIII (2000), tomo 2, p. 172: medidas de segurança; pressupostos da duração mínima do internamento; crime de homicídio voluntário qualificado), com uma anotação na RPCC 10 (2000). Considerou-se incorrecta a decisão do tribunal a quo em integrar os factos na previsão do artigo 132º do Código Penal, para o qual relevam somente questões atinentes à culpa — o ilícito típico em questão para efeitos de aplicação da medida de segurança era o do artigo 131º. • Acórdão do STJ de 12 de Abril de 2000, CJ ano VIII (2000), tomo 2, p. 172: medidas de segurança; pressupostos da duração mínima do internamento — artigo 91º, nº 2, do Código Penal; crime de homicídio voluntário qualificado, com uma anotação na RPCC 10 (2000). Considerou-se incorrecta a decisão do tribunal a quo em integrar os factos na previsão do artigo 132º do Código Penal, para o qual relevam somente questões atinentes à culpa — o ilícito típico em questão para 573 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. efeitos de aplicação da medida de segurança era o do artigo 131º. Cf. também o acórdão do STJ de 30 de Maio de 2001, CJ 2001, tomo II, p. 215. • Acórdão do STJ de 12 de Julho de 2000, BMJ-499-199: a atenuação especial do artigo 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, justifica-se quando, no juízo global sobre os factos, se puder concluir que é vantajosa para o menor, sem constituir desvantagem para a defesa do ordenamento jurídico. • Acórdão do STJ de 14 de Dezembro de 2000, CJ 2000, ano VIII, tomo III, p. 256: a admoestação prevista como medida de correcção no artigo 6º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 401/82, coexiste com a pena de admoestação do artigo 60º do Código Penal, não estando por isso a sua aplicação sujeita aos requisitos impostos neste último normativo, mas apenas dependente da verificação dos pressupostos legais expressos naquele outro preceito. • Acórdão do STJ de 14 de Fevereiro de 2002, CJ 2002, tomo I, p. 213: apesar da aplicação da atenuação especial constante do DL nº 401/82, de 23 de Novembro não ser obrigatória, o tribunal, quando se trate de arguidos menores de 21 anos, tem sempre de considerar, na sentença, a pertinência, ou inconveniência, da aplicação de tal regime, e justificar a sua opção, ainda que o considere inaplicável. • Acórdão do STJ de 17 de Maio de 2000, BMJ-497-150: arguido, que empunhando um pau de 3, 45 metros desferiu uma pancada na cabeça da vítima, provocando-lhe uma lesão grave também no seu resultado (provocação de perigo concreto para a vida da vítima). O peso específico das exigências de prevenção geral da integração de valores (com especial significado no caso para a tranquilidade que se deseja no ambiente de estabelecimento de educação) é o limite irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico, prevalecendo sobre a prevenção especial, dentro da medida da pena, e assim impedindo de decretar a suspensão da execução da pena de prisão. • Acórdão do STJ de 18 de Maio de 2000, processo n.º 140/2000 - 5.ª Secção: O instituto da suspensão da execução da pena tem, hoje, de entender-se como uma autêntica medida penal, susceptível de servir tão bem (ou tão eficazmente) quanto a efectividade das sanções aos desideratos da prevenção geral positiva, com a acrescida vantagem de, do mesmo passo, satisfazer aos da prevenção especial. • Acórdão do STJ de 2 de Março de 2000, CJ 2000, ano VIII, tomo I, p. 223: Pena de multa, prisão subsidiária da multa. O Código Penal de 1995 deixou de impor que na sentença se fixe a prisão subsidiária que corresponderá à multa não paga. • Acórdão do STJ de 21 de Março de 2001, CJ 2001, p. 251: cassação da licença de condução (artigo 101º). • Acórdão do STJ de 23 de Abril de 1987, processo 38853, 3ª Secção: a suspensão da pena representa a aplicação de uma nova pena de carácter psicológico, que, além de preencher o fim de reprovação do crime, se mostra atinente a evitar a repetição de crimes. • Acórdão do STJ de 29 de Setembro de 1999, BMJ-489-109: no crime de tráfico de estupefacientes são acentuadamente relevantes as exigências de prevenção geral e especial, tendo em conta as consequências extraordinariamente danosas do consumo de drogas, quer a nível pessoal e familiar 574 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. quer a nível social, não existindo discrepâncias relevante nas diversas manifestações da comunidade, formais e informais, quanto à necessidade de reprimir a difusão do tráfico de drogas, pelo que acarreta de perigos sanitários, económicos e sociais. • Acórdão do STJ de 3 de Abril de 2003, CJ 2003, tomo II, p. 157: regime dos jovens delinquentes; não sendo o regime especial para jovens delinquentes, consagrado pelo DL nº 401/82, de 23 de Fevereiro, de aplicação automática, constitui todavia obrigação do tribunal equacionar a possibilidade da sua aplicação ao caso concreto, apreciando a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a natureza e o modo de execução do crime e os seus motivos determinantes; mas não é de fazer uso da atenuação especial prevista no artigo 4º daquele diploma quando for grande o grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido e for grave a sua culpa. • Acórdão do STJ de 31 de Maio de 2000, CJ ano VIII (2000), tomo 2, p. 208: suspensão da pena; obrigação de indemnizar mesmo que não tenha sido deduzido pedido cível. Tem voto de vencido. • Acórdão do STJ de 5 de Abril de 2001, CJ, ano IX (2001), tomo II, p. 178: atenuação especial; arrependimento; crime de abuso sexual de menores. Não deve esquecer-se que a solução de consagrar legislativamente uma “cláusula geral de atenuação especial” como “válvula de segurança”, dificilmente se pode ter como apropriada para um código como o nosso, “moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas”. Ou seja, é uma solução antiquada. Daí o bem fundado da nossa jurisprudência, quando pressupõe que “tal sistema só se torna político-criminalmente suportável se a atenuação especial, decorrente da cláusula geral apontada, entrar em consideração apenas em casos relativamente extraordinários ou mesmo excepcionais”. • Acórdão do STJ, de 1 de Março de 2000, BMJ-495-87: arguido toxicodependente que, com intenção de matar, atinge o próprio pai com um tijolo e com um banco na cabeça, em situação de conflito familiar. Na fixação da pena, ponderam-se as exigências de prevenção geral da protecção da vida humana, merecedora ainda de respeito especial, por ser a vítima o próprio progenitor, em tensão com a expectativa de protecção da própria vida do arguido, concedendo-lhe uma oportunidade para se libertar da droga e passar a uma vida digna. O acórdão valorou ainda (“sobremaneira”) o “crédito de complacência” adiantado pelos pais ao arguido, reconhecendo que é de manter a carga de confiança que o colectivo depositara na sua restituição a uma vida sem dependência de drogas. Resultado: 3 anos de prisão, como autor de um crime de homicídio qualificado na forma tentada (artigos 131º, 132º, nº s 1 e 2, a), 22º e 23º), cuja execução se suspendeu por 5 anos acompanhada do regime de prova (artigos 53º e 54º). • Acórdão do STJ de 17 de Fevereiro de 2000, BMJ-494-236: regime de prova como sistema que melhor pode garantir, num justo e eficaz equilíbrio, a sintonía entre as prevenções geral e especial; esquema de liberdade controlada relativamente a condenado reincidente; juízo de prognose como juízo de risco. • Acórdão do STJ de 17 de Maio de 2000, BMJ-497-150: agressão à paulada, às portas de estabelecimento de educação, pondo em perigo a vida da vítima. Peso das exigências de prevenção geral. Suspensão da execução da pena de prisão. 575 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Acórdão do Tribunal Constitucional de 10 de Janeiro de 2001, DR II-série, de 8 de Fevereiro de 2001: Fins das penas; pena fixa; pena de prisão perpétua. • Acórdão do Tribunal Constitucional nº 42/2002, de 31 de Janeiro de 2002, DR II, de 18 de Julho de 2002: às medidas de segurança deverão ser aplicados os perdões concedidos por sucessivas leis de amnistia? • Acórdão do Tribunal Constitucional nº 521/2000, de 29 de Novembro de 2000, DR II-série, de 31 de Janeiro de 2001: pena acessória da publicação da decisão condenatória de um crime contra a saúde pública. Aplicação automática ou por mero efeito ope legis. • Acórdão do Tribunal Constitucional nº 95/2001 de 13 de Março de 2001, publicado no DR-I-A de 24 de Abril de 2002: pena fixa, penas tendencialmente fixas; pesca em época de defeso; direito penal da culpa; necessidade da pena. • Acórdão para fixação de jurisprudência nº 5/99, de 17 de Junho de 1999, publicado no DR I série-A de 20 de Julho de 1999: o agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º do Código Penal, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal. [Veja-se agora a nova redacção do artigo 69º]. • Sentença de 1998, 11.15, caso Silva Rocha vs. Portugal, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Sub judice / causas — 18 (2000), p. 37. • Castanheira Neves, Entre o "legislador", a "sociedade" e o "juiz" ou entre "sistema", "função" e "problema" — os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito, RLJ, 130º, nº 3883 e ss. • Adelino Robalo Cordeiro, A Determinação da Pena, in Jornadas de Direito Criminal — Revisão do Código Penal. Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial. Vol. II, CEJ, 1998. • Adelino Robalo Cordeiro, Escolha e Medida da Pena, in Jornadas de Direito Criminal. O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar. Fase I. CEJ, 1983. • Adelino Robalo Cordeiro, Moldura penal abstracta, pena concreta, escolha da pena, Textos do CEJ, 1 (1990-91), p. 161. • Agustín Jorge Barreiro, A crise actual do dualismo no Estado Social e Democrático de Direito, RPCC 11 (2001). • Albert-Peter Rethmann, Der Umstrittene Nutzen der Strafe, in Rechtstheorie, 2000, Heft 1, p. 114. • Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, As consequências jurídicas do crime nos delitos anti- económicos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, vol. XIII, 1999, tomo 2 (separata). • Américo A. Taipa de Carvalho, Condicionalidade sócio-cultural do Direito Penal, Estudos em homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga da Cruz, II, BFD, 1982. • Américo A. Taipa de Carvalho, Direito Penal. Parte Geral. Questões fundamentais, Porto, 2003. • Américo Taipa de Carvalho, As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995, in Jornadas de Direito Criminal — Revisão do Código Penal. Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial. Vol. II, CEJ, 1998. 576 M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004. • Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade e a escolha da pena — Acórdão do STJ de 21 de Março de 1990 (BMJ-395-286), anotação, RPCC, ano I (1991), p. 243. • Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa da liberdade (os critérios da culpa e da prevenção), dissertação de doutoramento, Coimbra, 1995. • Anabela Miranda Rodrigues, A pena relativamente indeterminada na perspectiva da reinserção social do recluso, in Jornadas de Direito Criminal. O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar. Fase I. 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Report "O Risco de Comer Uma Sopa e Outros Casos de Direito Penal - Miguez Garcia"