o Homem Como Ser Corporal
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SÍNTESE NOVA FASE V. 19 N. 56 (1992):93-112.O HOMEM COMO SER CORPORAL Inácio .f Strieder UFPE Resumo: O h o m e m c o m o ser corporal. A partir d o conceito "corpo", o presente artigo pretende contribuir para a r e c o n c i l i a r ã o do h o m e m consigo mesmo. D e s d e a A n t i g ü i d a d e existe u m a p r o b l e m á t i c a f i l o s ó f i c o - t e o l ó g i c a e m rela<;ão ao c o r p o . E s t a p r o b l e m á t i c a l e v o u , m u i t a s v e z e s , a d u a l i s m o s a n t r o p o l ó g i c o s , contrapondo corpo/aIma/espiríto. O A . propõe u m monismo antropológico, baseado na idéia semítico-bíblica do h o m e m como totalidade, s e m d u a l i s m o s e n t r e c o r p o e a l m a . O c o r p o é o p r ó p r i o h o m e m . P o r isto n a " m o r t e " n o s descarnamos, m a s n ã o nos descorporificamos. O corpo n ã o se identifica s i m plesmente c o m a nossa d i m e n s ã o física. » S u m m a r y : M a n a s corporal being. B y u s i n g concept " b o d y " , the present article p r e t e n d s to g i v e a h e l p to t h e r e c o n c i l i a t i o n o f l h e m a n w i l h h i m s e l f . S i n c e the A n t i q u i t y t h e r e i s a p h í l o s o p h i c - t h e o l o g í c a l p r o b l e m a t i c i n r e l a t i o n to l h e b o d y . T h i s p r o b l e m a t i c carries, m a n y l i m e s , to a n t h r o p o l o g i c a l d u a l i s m , p l a c i n g i n o p p o s i t i o n b o d y / s o u 1/spirit. T h e A . p r e s e n t s a n a n t h r o p o l o g i c a l monism, based on the s e m i t h í c - b i b l i c a l idea of the m a n as tolality, w i t h o u t d u a l i s m between b o d y and s o u l . T h i s body is the m a n himself. Therefore i n the " d e a l h " w e take o f f l h e flesh, b u t d o not lose l h e b o d y . T h e b o d y doesn't h a v e a simple idenlification with our physical dimension. Introdução ão existe ser humano sem ser corpori ficado. Por isso qualquer tentativa de definir o homem deverá tomar em consideração a sua existência corporal. E a nossa corporalidade que nos individualiza, que nos insere na realida93 ^ y J^u de terrestre e nos permite a comunicação com o meio ambiente e os outros homens. Os direitos e os deveres do homem apenas a d q u i r e m v a l i d a d e q u a n d o expressos em referência à corporalidade. Depende, inclusive, da atitude para com o corpo o sentido e o valor que damos à vida. No decorrer da história da humanidade, os homens valoraram de formas diversas o corpo. As atitudes em relação ao corpo foram geralmente determinadas por religiões e sistemas filosóficos. A apreciação do corpo de alguém nos permite tirar conclusões sobre sua pessoa: sobre sua situação na sociedade, sobre o relacionamento com seus semelhantes. As roupas que cobrem o corpo falam de riqueza, de pobreza e de cultura. Revelam-nos funções sociais e religiosas, disposições interiores. Sacerdotes, juizes, militares e reis, muitas vezes, podem ser identificados pelas vestes que recobrem o seu corpo. Além disso, o corpo revela raça, idade, saúde, doença, sexo. Muitas vezes é possível identificar dotes pessoais pela forma como alguém usa a palavra, que é uma expressão corporal. Pela habilidade de suas mãos, o homem produz arte e instrumentos que ampliam a capacidade de seus órgãos. Concretamente, nós nos tomamos manifestos aos outros p>ela expressão corporal. E para o homem não existe outra maneira de ter participação na realidade humana nesta terra a não ser corporalmente. Por isso mesmo, qualquer ação em favor do homem sempre será uma ação corporal; o que nos leva a afirmar: o homem é u m ser essencialmente corporal. Mas quando alguém afirma radicalmente que o homem é ser corp>oral arrisca-se a ser tachado de materialista. Por quê? N o meu entender, porque a tradição filosófica ocidental está totalmente impregnada pelo dualismo antropológico. É a partir deste dualismo que se confrontam as questões: somos corpo ou temos corpo? Se nos decidirmos pela primeira questão, "nós somos corpo", parece que optamos pelo materialismo; se nos decidirmos pela segunda, "nós temos corpo", parece que assumimos o dualismo, separando corpo e alma. De forma simplória, é comum identificar-se nosso corpo simplesmente com a matéria que constitui a nossa figura. Penso que o grande culpado de muitas atitudes antropológicas inadequadas à vida humana é a visão dualista do homem. Nesta visão se entende o ser humano como u m composto por duas substâncias distintas, uma hierarquicamente superior à outra; a substância material e a substância espiritual. Para chegar a uma possam-se superar aspectos importantes do dualismo antropológico que impregna nossa cultura. mas há também nele processos só observáveis por ele mesmo. são interpretados como não-físicos. e. Ao que parece. Dei a esta exposição o título: " O homem como ser corpwral". Talvez identificando a equivocidade do conceito "corpo". material. pois pretendo mostrar como o dualismo antropológico da dis- . concluindo-se que sua origem é uma entidade não-física. pois na história do pensamento ocidental este conceito de forma alguma é unívoco. verifica que nele existem dois aspectos. não ligados estritamente a nenhum órgão físico. Como estes processos não são publicamente observáveis. os animais. temores. é preciso encará-lo em sua totalidade. memórias e expectativas. ambigüidade do conceito *^corpo** A problemática filosófica ocidental a respeito do corpo tem sua origem na cultura grega. O sujeito dos atos não-físicos é então denominado alma {psyché) ou mente {mus). e não facilmente localizáveis. O Estado é descrito como sendo u m corpo. N o dualismo. assim como o corpo é o sujeito da atividade física. Parece-me que o maior problema se resume numa questão semântica. espiritual. E é em sua corporalidade que o homem se expressa como u m ser total. O homem. n u m sentido óbvio. Mas este conceito não está reservado ao corpo humano. esperanças. e. Algumas de suas qualidades e atividades pertencem-lhe como corpo físico e são observáveis aos outros. que se resolve redefinindo o que se deve entender por "corpo".atitude adequada em relação ao homem. aplicado ao homem. desejos e sentimentos. Tanto os escritores como os filósofos da Antigüidade usam o conceito sõma (corpo) em circunstâncias muito diversificadas. E assim acontece a cisão do ser humano em uma realidade física. que seria seu sujeito. A língua grega usa o conceito soma para designar o corpo do homem. Pois quando o homem reflete sobre a sua natureza. e outra mental. estas duas realidades se encontram n u m antagonismo irreconciliável no mesmo homem. e o cadáver ainda é corpo. ao que parece. A minha idéia de "corpo" é uma tentativa de reconciliar o homem consigo mesmo. são espacialmente localizáveis. os elementos todos têm corpo. Por exemplo: pensamentos não expressos verbalmente. o cosmos. o dualismo antropológico tem a sua raiz numa realidade que o homem observa empiricamente em si mesmo. o cidadão é o corpo da cidade. o corpo é visto como algo natural ao homem. a mulher existe sempre latente. ESCRIVÁ . 1957. escrevendo que na visão maniqueísta do homem. logo existo. Neste dualismo. Dentre os escritores cristãos dos primeiros séculos. N o aristotelismo tomista. Trata o teu corpo com caridade. A união dos dois no casamento é. Já o dualismo órfico/platônico se manifestara francamente hostil ao corpo. menospreza-se a vertente antropológica que vem de Aristóteles e foi mais elaborada por Tomás de Aquino. O corpo é visto como uma máquina. Nesta visão cartesiana. revelando-se periodicamente no curso da história: os cátaros na Idade Média. Inclusive. I . contudo já pjermite u m grande progresso na compreensão da corporalidade. na Espanha. Interessante é que a hostilidade para com o corpo. à consciência: penso. 833 j. mas não com mais caridade do que a que se tem com u m inimigo traidor"^ Em todas essas manifestações dualísticas radicais. o sexo. de acordo com a linha 1 96 2. na qual a alma é a forma do corpo. pelos anos 20. OimmAo. portanto. acima da cintura ele é criatura de Deus. que se torna objeto problemático. Aster. o homem o é só pela metade. uma obra do demônio ao quadrado"'. o maniqueísmo e até uma espécie de esquizofrenia antropológica. e não algo estranho como no dualismo órfico-platônico. o casamento. i. o fundador do movimento religioso Opus Dei. Por exemplo. M.. prisão e peso para a a l m a i m o r t a l . quando o caracterizava como sepulcro. matéria e espírito são percebidos como dois inimigos metafísicos inconciliáveis. Nessa vertente. a autocompreensão cartesiana do homem foi desastrosa. Para uma compreensão adequada do homem é preciso superar estes dualismos. o que implicava também uma hostilidade contra o sexo e a mulher. a TFP no Brasil hoje em dia.tinção entre corpo e alma não explica suficientemente quem é o homem e que o conceito de corpo. o composto humano é concebido em termos do hilemorfismo (matéria e forma) com uma profunda unidade. Migne. Usboa. E o homem se parece a u m anjo pilotando uma máquina indócil. o corpo não conta. os jansenistas no séc. aconselhava: " D i z ao teu corpo: prefiro ter u m escravo a sè-lo teu. PG 4i. 0 maniqueísmo manifestava u m profundo desprezo pelo corpo. Baseado neste d u a l i s m o . é usado de forma confusa em relação ao homem. geralmente. p. Interessante é que também no nosso século o dualismo é afirmado de muitas formas. X V I I I . Santo Epifânio caracterizou o maniqueísmo. O ego está alienado de seu corpo. o resto é produto do demônio. pois reduziu o homem à subjetividade. portanto. motivando o dualismo.. "a mulher é toda uma criatura do demônio. Embora esta vertente ainda se baseie n u m dualismo. 56. Pois afirma que o filho de Deus assumiu u m corpo humano. muitas vezes deturpada na história. para designar de forma global a parte física do homem. a meu ver. na Ceia. Por detrás de cada uma dessas realidades. Anthropoloj^ie des Alteti Testamenls. A originalidade da contribuição cristã em relação ao corpo está geralmente envolta por uma dessas quatros vertentes anteriores. existe ainda a vertente antropológica bíblico-semita. em sua morte. pés. Paris. alimentaram-se. Existimos no m u n d o e o m u n d o existe em nós através do corpo-*. Segundo o existencialismo. M E R L E A U . Além disso. Uma vertente que. conseqüentemente à sua origem judaica. embora não o explicitassem. W . pratica-se na antiga Grécia uma espécie de culto ao corpo. Fala-se aí em coração. N o que se refere ao corpo. é interessante reparar que na língua hebraica do Antigo Testamento não existia o conceito "corpo". como na cultura greco-latina e no maniqueísmo-zoroastrismo de origem persa. Phénoménoiogie de ia Perception. ossos. Cf. Paralelamente às tradições filosóficas em relação à compreensão do corpo. o dualismo órfico-platônico. 4. Cristo não voltou ao estado de puro espírito. Na vertente semita do pensamento. olhos. Kaiser Verlag. tanto Marx como Freud. E a linguagem verdadeira. não há dúvida de que. C f . Callimard. O corpo participa da subjetividade. Todo corpo se torna linguagem. deixa o testamento de sua presença 3. expressa no Antigo Testamento*. não se deve esquecer quando se pretende compreender o homem. poucas vezes. Inclusive.arístotélica. amorosa e respeitosa conduzirá à plenitude humana. resumido no dito latino: "Mens sana i n corpore sano". está presente o homem todo. 1945. mas somos nosso corpo. tomando-se assim o Salvador dos homens. A visão cristã é fundamentalmente positiva em relação ao corpo. o unitarismo aristotélico-tomista e o monismo antropológico dos antigos hebreu-semitas. München. verificaremos que ela compreende a unidade do homem n u m plano mais profundo do que a maioria das afirmações antropológicas do passado. mas ressuscitado é assumido na glória com a dimensão corporal. de modo que na história. sangue. rins. mas não no corpo como u m todo. Praticamente tudo o que se discute em relação ao "corpo" tem as suas raízes nas quatro vertentes assinaladas: o maniqueísmo. W O L F F . Para m i m . A originalidade da compreensão cristã. " . expresso na arte clássica e nos esportes. não temos nosso corpo (como se fosse uma coisa). 1973. nesta vertente para a formulação de seus sistemas. mãos. H . I 971 . M . não existe o dualismo e o conseqüente antagonismo entre o corpo e a alma. . entranhas.P O N T Y . enquanto manifesta uma atitude específica. Se examinarmos a filosofia existencialista. também se fundamenta nesta vertente. ela foi afirmada com suficiente lucidez. quando aparece na literatura o conceito sõma (corpo). O corpo do guerreiro está destinado à morte.corporal. quando afirma do atleta que ele se apoia em quatro . a excelente pesquisa sobre o " c o r p o " de . permitindo legitimar inúmeras atitudes anti-humanitárias. O u então. p. este corpo não se identifica simplesmente com os l i m i tes da figura material do Cristo. Além disso. permaneceu profundamente marcada p>elo duaHsmo antrof)ológico. o corpo é visto como objeto de desejos eróticos. Ainda no séc. Isto mostra a força da linguagem maniqueísta e órfico-platônica sobre a nossa civilização. Na tragédia grega aparecem também referências ao corpo.. já pode ocupar o lugar do pronome reflexivo.. Contudo. quando Sófocles afirma que os sátiros nada mais são do que corpos. é a sua vida cheia de antagonismos. enquanto o homem se descobre como ser vivo. que se expressa por seus membros. Mas o termo continua designando a pura corporalidade. no mesmo Eurípedes. Estranhamente. inclusive. Portanto. aplica-se o conceito "corpo" (sÕma) ao todo da pessoa humana. aqui existe uma compreensão cristã original de "corpo".. E sendo o Cristo proposto como o modelo a ser imitado pelos homens. in: Theohgisches WõTterbuch zum Neuen Teslament. as primeiras referências de uma reflexão sobre o corpo encontramos nos tempos homéricos. como veremos. Na cultura greco-latina. afwnas encontramos em Hesíodo. acentua-se fortemente o aspecto d o corpo como objeto. encontramos em Heródoto o uso de sõma para o tronco do corpo distinto da cabeça. Este conceito. como expressão para o corpo vivo do homem. Na fórmula da consagração eucarística "isto é o meu corpo. V a.C. o deus da guerra manipula corpos humanos. a civilização ocidental. Vol. Cf.". Os primeiros usos deste conceito dão conta de que com ele se designa o cadáver do homem ou do animal. v i l . O conceito sõma. Mas antes vejamos algumas referências ao corpo na literatura e na filosofia greco-latina da Antigüidade. E. 1024-1091. mas sempre no sentido do corpo como objeto. S C H W E I Z E R . 1964. ele como que tropeça em seu corpo. Stutigart. pois o interpreta como objeto do m u n d o exterior. fala-se da venda de corpos para tomá-los escravos sexuais. a dimensão corporal adquire u m valor novo e fundamental para os cristãos. Em Píndaro. mas a única forma de ser. - O s primórdios da problemática sobre o corpo na cultura greco-latina^ 5. Em Eurípides. embora assumisse o cristianismo. O corpo é o próprio homem. "Soma". Kohlhammeer. " C o r p o " também pode designar o homem distinto de seu nome e de suas obras. enquanto vivo. E do poeta Epimênides conta-se que entrou em êxtase e a sua alma se distanciou do corpo. Mas esta idéia prepara a concepção posterior da corporalidade da alma. N o Direito Ático. A explicação de Demócrito. a alma-sopro. Em Tucídides.corpos. naturalmente.é. considera-se a vida corporal como u m peso. Tal compreensão leva. o corpo é pior que lixo. já afirma que o corpo. que apresenta a idéia da transmigração das almas. Hermes conduz os corpos ao Hades. a visão do homem recebe u m reforço religioso. entendendo que o corpo é u m objeto. corpo/sepulcro). como elemento úmido. Agora o corpo é o complemento mortal da alma imortal. Na arte escultural. Já em Euripedes. do corpo como imagem. corpo e propriedade. Constata-se. de que ao último sopro a alma-átomos abandona o corpo. Interessante também é que nos pré-socráticos já apareça a alma mencionada ao lado do corpo. Paralela a esta preocupação com a morte d o homem. na opinião {gnõmé). A desvalorização do corjK) ainda se torna mais f o r t e em X e n ó f a n e s . Já antes de Platão se fala na razão {nous). algo estranho ao homem. O corpo é o elemento mortal da alma imortal. distinguem-se os maus-tratos do corpo e da vida de todos os outros prejuízos. Assim se identifica o corpo com a existência corporal que termina com a morte. assim. relaciona-se corpo e produto. Nos cultos órficos. o que se designa com a expressão sõmaiséma (i. Em Píndaro a "imagem" sobrevive ao corpo mortal. Tal posicionamento é reforçado quando se contrapõe ao corpo uma outra realidade que lhe sobrevive. à qual se contrapõe a alma. adquire importância a pergunta pela relação entre o corpo e a alma no homem. Isto permite relacionar a razão livre e o corpo escravo. sem vida. como a outra parte. que ao menos meio século antes de Platão o corpo já era avaliado como parte do homem.é. Sem alma. no entanto. Heráciito. à desvalorização do corpo. abandona o homem e ele vira corpo morto. 99 . Empédocles apenas constata que o corpo é o invólucro da alma. Para Górgias e Esquilo o corpx) é a origem dos desejos eróticos. e este corpo o aprisiona. é apenas uma interpretação naturalística da antiga idéia da alma-sopro. O corpo é então a imagem do homem assim como ele se manifesta à nossa visão. O corpo se toma sepulcro da alma. fala-se nesta época. i. apaga o fogo da alma. ^ Homero é de opinião que na morte a força vital. U m corpo suave se cobre com flores. na consciência {phrénes). A o homem coube o destino do corpo. e deveria ser atirado fora sem solenidades fúnebres. o corpo não é simplesmente objeto sobre o qual se tropeça. o ar e a terra são corpos visíveis das substâncias elementares. objeto de contemplação e pode ser distinguido da alma que o transforma em ser vivente. . Platão assume claramente este dualismo no Fedro. embora esta idéia já estivesse implícita no pensamento anterior. N o Fédon. das relações existenciais e da alma do amado. que se começa a falar nos elementos como sendo 5 corpos. largura e profundidade. O fogo. Não se sabe exatamente até que ponto os pitagóricos quiseram representar por números e formas fundamentais a distinção entre corpos matemáticos. Melisso afirma que o ser propriamente dito não possui corpo. distintas do caráter. Nos primeiros escritos. físicos e racionais. sempre se encontrará em alguma parte do espaço. o corpo pode ser objeto de paixões eróticas.. Assim o corpo é descrito como uma realidade espacial com partes extra partes. V. . portanto. por exem- I 100 I . considera-se o ar como sendo u m corpo eterno e imortal. Anaxágoras é considerado o primeiro pensador do Ocidente que explicitou filosoficamente o dualismo entre o corpo e a alma. a água. que se contrapõem à alma invisível. \ . . juntamente com o corpo. Demócrito. De Platão a Aristóteles As referências ao corpo até agora feitas adquirem em Platão novos desdobramentos. por isso. V a. o corpo é valorado por Platão de forma essencialmente negativa. forma o homem como ser vivente. Platão ainda considera que a alma. Na mesma época.C. Microcorpos são responsáveis pelos macrocorpos. embora de vez em quando seja usado para designar corpos inorgânicos e esculturas. Mas nos escritos do p>eríodo médio. o uso do conceito "corpo" aparece principalmente referente ao corpo humano. Górgias define o corpo como sendo a realidade que se caracteriza por comprimento. N o pwnsamento eclético. A alma deve ser a d o m i n a d o r a e a orientadora do corpo e se contrapõe a ele. V a. dos quais 4 se encontrariam dentro da esfera. chama o cheio de corpo e o distingue do vazio. O corpo toma-se. . N o Fedro. Nesse sentido. mas u m todo unitário que em si constitui uma totalidade e pode ser analisado.A primeira compreensão realmente filosófica do corpo a encontramos no séc. É no séc. assim. Em Platão.C. e. Nesse mesmo sentido. Platão ainda usa "corpo" para designar a pessoa. O corpo ainda é o aspecto visível do homem e sua figura corporal essencial. na segunda metade do séc. Ele é apenas habitação para a alma preexistente. Demócrito define o homem como microcosmos. e a partir de suas características sensíveis. A alma é invisível. enquanto a alma é a sua parte verdadeira e imortal. Por isso o corpo deve ser desprezado. que se separa do corpo e assim se toma pura. Já muito antes de Platão. porém. a relação entre o corpo e a alma recebe novo enfoque: o corjK) é animado pela alma. de que com a morte a alma e o corpo morreriam. mas pelos filhos de Deus. . vista como objeto do qual se pode dispor. o ouvido. Neste entretempo também se aplica o conceito de corpo ao Estado. A beleza do mundo percebida pelos sentidos pode servir de estímulo para a alma alçar-se ao m u n d o das idéias. Platão caracteriza o corpo a partir de seus desejos e sofrimentos. O corpo é apenas imagem ilusória do homem. puxam a alma para baixo. Entendia-se o cosmos. de modo que todo o corpo permanece ereto pela força que lhe comunica a cabeça (cf. Chega mesmo a falar do corpo cósmico. o cosmos é visto antropomorficamente. O corpo é a imagem de Deus. O corpo não teria sido criado por Deus. divina e imortal. Constata u m paralelismo entre a saúde do corpo e a tranqüilidade da alma. fome. Para ele a morte é a libertação da alma. porém. O corpo — o olho. . E a alma fica presa ao corpo como a ostra à sua concha. o conceito "corpo" se identifica com o conceito "pessoa". Pouco antes de Platão. Platão assume tais idéias e considera o cosmos animado e imbuído de razão. . entre a doença do corpo e a má disposição da alma. esférico e perfeito. Nos escritos tardios de Platão. Timeu). a f i m de elevar-se ao céu. também é relacionado com o cosmos. rr. falava-se do parentesco entre o corpo humano e o cosmos. enquanto a filosofia interpreta o homem a partir do cosmos. humano e mortal. deve-se recorrer ao médico e praticar esportes. amplamente difundida em sua época. Na formulação popular.pio. muitas vezes. O corpo. As preocupações com o corpo. Por isso a alma tem a sua sede na cabeça do homem e puxa todo o homem para afastar-se da terra. O cosmos é u m corpo animado regido pela alma d i v i na. muitas vezes. N o Timeu. Nesse contexto.' / Esta mesma imagem encontramos também nos escritos de Xenofonte e seus contemporâneos. Platão luta contra a idéia. e devemos fugir dele. como sede. enquanto o corpo é visível. > fnt. Nele Deus se toma visível.^ mi . como ser vivo. Esta. Para conservar o corpK) saudável e bonito. formado pelos 4 elementos. ou qualquer outro sentido — desvia a alma para as coisas terrenas e transitórias. A alma deve dirigir o corpo e participa da vida divina. no seu escrito Sobre a alma. o corpo. posteriormente assumida por Tomás de Aquino. D. em Aristóteles o corpo ocupa o lugar primordial. quando usa o conceito corpo. O homem é visto como uma composição entre corpo e alma.Na linguagem erótica. I445 I 102 I . compara-se o corpo bom. Em Menandro. Segundo Descartes. está consciente do dualismo platônico e de suas conseqüências. até de substância. De modo que continua a idéia do corpx) como objeto. mencionados lado a lado. a u m navio dirigido por u m mau piloto. assim o universo é dirigido pela razão divina. Diante do problema da estreita conexão entre operações mentais e funções puramente corporais. mas nesta linguagem contrapõem-se os "corpos livres" aos "corpos escravos". excluem-se as relações físicas. talvez. contrariamente a Platão. para ele conserva uma independência em relação ao corpo. De acordo com esta teoria. Em relação ao Estado. Aristóteles parece ter feito uma exceção em relação à mente {nous) que. como discípulo de Platão. geralmente o faz em função do corpo humano. enquanto a ahna é res cogitans. é identificado com a pessoa. Ainda no séc. Assim como a alma dirige o corpo humano. Mas. É nessa ocasião que surge a idéia de uma comunidade matrimonial espiritual que se possa sobrepor às paixões do corpo (é o célebre amor platônico). De certa forma já está aqui presente no conceito "corpo" a idéia de totahdade e. É aqui que se encontra a raiz da idéia cartesiana do corpo como substância diferente da substância da alma: a célebre distinção de Descartes em realidade extensa ires extensa) e realidade pensante (res cogitans). Em tal união matrimonial. IV a. mensurável mecânica e nxatematicamente. animado por uma alma má. 902. a constituição ocupa nele o lugar da alma pensante no corpo humano. pois possibilitava conciliar a compreensão da natureza com as exigências religiosas da época. também Aristóteles. o corpo é a origem da concupiscência e meio para a vida comunitária.Z. Aristóteles. ele formula a teoria da alma como forma do corpo. o que no entanto não significa uma 6 cf. a alma é praticamente inseparável do corpo. por vezes. o corpo participa plenamente da res extensa. Mesmo assim o corpo se situa ao lado da alma. posição geralmente assumida durante a Idade Média. a ponto de a Igreja Católica declarar como dogma de fé no Concilio de Viena (1312) e reafirmar no Concilio de Florença (1516) que a alma é a forma do corpo^ Assim como Platão.C. ao que tudo indica. e considera o cosmos como u m corpo. Até em Epicuro a alma é tida como mais importante do que o corpo. animado pela alma divina. Por isso dois corpos nunca podem ocupar o mesmo lugar no espaço. N o mesmo contexto. portanto. . há algumas tentativas de substituir o conceito "corpo" (sõma) pelo de "carne" (sárx). as aspirações da alma têm importância especial. embora bons. IV a. Mas. Possuem partes fora de suas partes (partes extra partes) e se distendem pelo espaço. a inseparável entelequeia do corpo. a sua forma. a alma deve ser a finalidade do corpo. Embora de preferência fale do corpo humano. como formulara Demócrito. Estes desejos. como u m todo. Como o corpo é determinado por matéria e forma. Epicuro. Tanto o corpo animado como o inanimado podem ser tocados.superioridade sobre a alma. Aristóteles também aplica o conceito "corj>o" aos elementos. da mesma forma que o corpo humano. Todos os corpos são limitados e tridimensionais. atribuindo u m corpo de átomos sutis à alma. 103 . Ocasionalmente. Isto lhe permite afirmar que o Estado é uma comunidade de membros. Interessante é que também ele aplique o conceito "corpo" ao Estado. não representam o supremo bem do homem. interpreta todos os movimentos da alma como mecânicos e distingue a alma da carne. é mais importante do que cada membro em si. mesmo ante tais considerações. corpo no estoicismo Para o estoicismo é importante a afirmação aristotélica de que a alma não é formada por partículas. O que suscitou acaloradas polêmicas. o escritor Licaônio afirma que falar do corpo de u m homem é descrever a sua pessoa. e por isso ele é mais importante que o indivíduo. considera todos os estímulos do corpo como "santos". É aconselhável a contenção dos desejos do corpo. na literatura da época. Para Aristóteles o corpo físico do homem é uma substância. O corpo é a presença da pessoa. mas não do corpo. encontra-se a idéia da separação do corpo e da alma. e ele propõe mesmo "cuspir nos desejos do corpo". Pelo contrário. A alma é. destaca-se fortemente o asfjecto do corpx) como objeto. : Ainda no séc.C. Inclusive. quando assume o materialismo de Demócrito. que faz com que o corpo seja tal qual é. I I I a. surge o problema de dois corpos da alma. mas sim a morte da alma. o corpo é feito de excrementos. como 104 . os estóicos também descrevem a alma como ar quente. O naturalista Hero Alexandrino. nessa época. Mas no estoicismo tardio volta a predominar a visão órfico-platônica do corpo como sepulcro da alma. no estoicismo tardio o corpo é avaliado como peso para a alma. A partir dessas concepções. castigo. o eclético Bion declara que o Ego deveria ser totalmente separado do corpo. eles se expandiriam em corpos mais amplos. Assumindo isto.Contrariamente a Epicuro. Por isso os filhos não se parecem com os pais af>enas corporalmente. A f i r m a m que já Aristóteles entendera o espírito como substância corporal. já que somente dois corpos podem separar-se entre si. no cérebro. Por isto nossos corpos estariam momentaneamente concentrados. o corpo é visto como o órgão de manifestação do Logos. N o estoicismo posterior. pois com a morte nós nos retiraríamos do corpo como nos retiramos de uma casa. Mas livres da atual pressão congregadora. Por isso não devemos temer a morte do corpo. no séc. mostra que é possível d i v i d i r o corpo ilimitadamente e que. somente o que é corporal pKxle agir e sofrer. prisão. triste e tenebrosa prisão. Entre os estóicos mais antigos discute-se especialmente a relação entre o corpo e a alma. Zenão a localiza no coração e Cleanto. Para Sêneca e Epicteto. sob pressão. Outros dentre os estóicos tentam mostrar que a alma é corporal. O homem seria assim u m ser em que dois corpos se misturam. São-Ihes semelhantes nas paixões. embora. Conseqüentemente às suas idéias também deveriam atribuir u m corpo a Deus. A alma é semelhante a u m burro carregando o peso do corpo. deve-se cuidar do corpo lavando-o. entendendo-a corporalmente. Durante a vida estamos presos ao corfx). Carregamos p>or aí u m cadáver. mas também animicamente. surge o problema de dois corpos que ocupam o mesmo lugar. admitindo a realidade corporal da alma. nos costumes e no pensamento. nossa libertação. se na morte a alma se separa do corpo. Segundo eles. Como acima já foi dito. Mas. Mesmo assim. isto somente pode ocorrer porque é corporal.C. ele propriamente nos é estranho. às vezes. da qual a alma se servia para conservar e dirigir o corpo. A alma é vista por estes estóicos como o princípio diretor d o homem. Mas. argumentando que. a morte não é nada mais do que a nossa separação do corpo. não seria mais fácil sustentar que o homem se divide em matéria e forma. ele se conserva concentrado. acusaram-se os estóicos de materialistas. A d mite-se. O que no homem é a alma. que através dele permite diferenciar o homem da mulher. a idéia de que a alma pode abandonar o corpo durante o sono. pois com ela abandonamos o corpo que não se pode elevar aos céus. Sócrates poucas vezes o fizesse para demonstrar que o corpo era secundário. para Deus é a matéria.afirmam os estóicos. a ética ensina que a alma também participa da união dos corpos. estamos I 1051 . no cosmos é Deus. na morte aparente ou nas fantasias provocadas por doenças. mesmo à margem do estoicismo. Mas. a tônica também é o problema da relação entre o corpo e a alma. para alguns estóicos. pois nele se manifesta a divina providência.. dever-se-ia amar as almas e não os corpos. crescer no rosto do homem uma barba. embora discipHne as suas paixões. Durante a vida terrena. A alma racional habita a parte superior da cabeça. então. por exceção. j i -A: (J1Í>) ()b Ane-ih Na morte aparente. A força pensante se eleva ao firmamento. Nas referências à morte. O corpo seria como que o moinho da alma. a força pensante abandona o corpo semelhante a u m piloto que cai do navio. triste e escura habitação para a alma. Por isso o corpo é peso desprezível. os ecléticos e os estóicos deste período ensinam que não deveria ser difícil aceitá-la. E a alma naturalmente cuida do corpo. assim como o corpo humano é conservado vivo pelo sangue e pela respiração. castigo. no êxtase. e esta é como a Acrópole. o corpo merece cuidados. Neste contexto. enquanto ainda fica ancorada ao "navio". fazendo. o corpo do m u n d o é conservado v i v o pela água e pelo vento. a 100 d . inclusive. mas como a alma deve dominar o seu corpo. ' r . C .C.. Na concepção predominante nos inícios de nossa era. em contraposição à liberdade da alma. o que para o homem é o corpo. quando se fala do casamento. N o casamento o homem não deveria dominar a mulher como u m senhor domina seu escravo. Por outro lado. quando geralmente apenas se mencionam os desejos perversos do corpo. o homem é u m composto de corpo e alma. Para Sêneca. corpo no início da nossa era » -n i N o pensamento filosófico do período de 100 a. De acordo com isso. Pela morte a alma se separa do corpo e se toma livre. Plutarco fala dos desejos perversos da alma. em que os escravos executam trabalhos forçados. cadeias. para Descartes. entregues à prostituição e às feras. Resumindo. espacial. nem hoje a visão dualista se escandaliza com a miséria e a exploração extremas. Sendo o corpo valorado como objeto. De acordo com esta compreensão se busca u m corpo perfeito: "Mens sana i n corpore sano". é a matéria que nos envolve. Sua filosofia não influenciou somente de forma profunda o progresso das ciências naturais nos tempos modernos. estuprados. é inquestionável: este m u n d o é matéria e a 1 106 . Mais acentuada na Antigüidade é a desvalorização do corpo em relação à alma. Este é estranho a nós. naturalmente. Visão cartesiana do corpo Descartes é considerado o pai da antropologia moderna. continua livre. A i n d a hoje seu sistema mecanicista está à base do progresso das ciências naturais e do estudo mecanicista do corpo humano. é a pessoa. Alias. isto somente comptete à alma e à razão. A o lado das idéias de desprezo do corpo existe na Antigüidade u m verdadeiro culto ao corpo: na arte e nos esportes. é u m objeto do m u n d o exterior. Entre eles destacam-se: o corpo é idêntico à carne organizada. esptoliados. a alma também possui corpo. o corpo é a manifestação objetiva da alma. também o cadáver é corpo. e seus corpos poderem ser explorados. enquanto a alma. é uma substância extensa. nada impede que se escravize o corpo. podendo passear pelos astros que queira. nem mesmo os filósofos se escandalizam diante do fato de na Grécia e no Império Romano a maioria dos habitantes estarem reduzidos à escravidão. Com tal visão do homem. pois apenas escraviza o corpo. Isto. vendidos. O homem propriamente dito é u m ser psíquico que carrega por aí u m peso morto. Por isso. distinto da alma. A escravidão não é vista como essencialmente desumana. na Antigüidade o corpo possuía uma multiplicidade de sentidos. é o objeto de desejos eróticos.presos ao corjx). O sistema cartesiano baseia-se n u m princípio de distinção clara entre duas realidades: a realidade quantitativo-material (res extensa) e a realidade anímico-espiritual (res cogitans). o cosmos é o corpo de Deus.. se reflete na vida concreta com profundas conseqüências éticas e políticas. o corpo é o Ego da pessoa. mas caracterizou também as análises d o h o m e m .. a parte verdadeiramente humana do homem. os corpos físicos nunca podem ter forma esférica. O nosso corpo pertence plenamente à realidade material. sendo pura extensão. o próprio Deus os conserva "grudados". Ela é expansão espacial e não admite vazio. na morte. A alma deve ser entendida como espírito cognoscível. que se identifica com a consciência e pensamento. O Criador ordenou entre si corpo e alma. E. distanciando-se da experiência e da natureza. A alma simplesmente usa o corpo-máquina para manifestar o Ego. o corpo é uma máquina. corpo e alma são absolutamente distintos. o homem é livre. o nosso corpo é objeto das ciências naturais e a alma é objeto da filosofia. O corpo é u m autômato que. nõ7i . A matéria deve ser entendida claramente de forma unívoca. considera o homem morto quando não pensa mais. entre a existência e a natureza. por isso deve ser analisado more geométrico. Podemos dizer que Descartes "des-animou" a matéria e "desmaterializou" a alma. poderia ter uma vida biológica. A posição de Descartes diferencia radicalmente a realidade quantitativo-espácio-temporal da realidade anímico-espiritual. Deve-se notar que a medicina atual. p o r exemplo. Isto provoca uma grande alienação entre as ciências naturais e as ciências espirituais. O nosso corpo tornou-se assim matéria cognoscível. " . não é a alma que abandona o corpo. a alma está incapacitada de se manifestar. O sujeito é pensamento puro e pode superar os sentidos. A matéria está estruturada por leis rígidas e próprias.matéria é algo autônomo. O sistema circulatório e nervoso é objeto da mecânica. quantitativas. é objeto das ciências físico-matemáticas e técnico-naturais. Pelo espírito (a alma) o homem é pensamento que se pode distanciar de tudo. como substância extensa. inclusive sem alma. e por isso cognoscíveis e mensuráveis matematicamente. Ela não deve ser misturada com o u tras forças ímateriais e obscuras como. Portanto. A matéria é totalmente diferente da consciência e do pensamento. Desta forma cria-se uma ruptura entre o autoconhecimento e o conhecimento do mundo. Para Descartes. Por isso. entre o que pertence à alma e o que pertence ao corpo. mas é o corpo que abandona a alma. no hilemorfismo aristotélico-tomista. Desta forma a união entre corpo e alma permanece u m mistério. A vida nada mais é do que movimento espacial. que consiste em extensão. A biologia é mecânica. O corpo. ou nos panteísmos. matematicamente determinável. é u m espaço cheio. Se esta máquina falha. com a técnica dos transplantes. conseqüentemente. ''' Em Descartes o homem se toma uma espécie de anjo pilotando a máquina de seu corpo. para Descartes. a relação entre estas duas substâncias durante a vida do homem. O mesmo dualismo fundamenta a atitude de todos aqueles que aos domingos querem cuidar de sua alma. Já São Paulo se confrontou com tais idéias na primeira comunidade cristã que fundou na cidade de Corinto. Na prostituição apenas se compraria e se venderia o corpo. A o lado dos valores da alma o corpo é objeto e hierarquicamente inferior a ela. na avaliação e na dignificação do homem? Penso que isto se deve principalmente ao dualismo antropológico. . afirmava-se que ela era apenas a escravidão do corpo.r\ O mecanismo cartesiano possibilitou u m enorme avanço no conhecimento das ciências naturais e. novamente. in. pois a alma continuava livre e podia passear pelas estrelas que quisesse. mas na solução dos problemas tipicamente humanos não ajudou muito. do organismo humano. 1975. pois diziam que isto atingia aj^enas o seu corpo. sem que o médico seja qualificado como homicida. Cf S C H A F F E R . Valoriza-se mais o trabalho intelectual do que o braçal. Até hoje os trabalhos de gabinete. Die Beuvriung der Leibitchiceit in den baupibriefcn des Aposteh Pauius und in ^iner Kutlum>ell. 5. enquanto durante a semana enganam 108 7. " A consideração dualista do homem. The Encifclopedia of Philosophy. geralmente com desvantagens para o corpo e para tudo o que a ele se refere. Havia ali alguns recém-convertidos que continuavam a freqüentar a prostituição sagrada. 1967. p 336346. geralmente são melhor pagos do que aqueles que exigem muito desgaste de energia. Vol... conseqüentemente. O fracasso do dualismo antropológico e uma nova proposta^ •.500 anos de reflexão sobre o homem não se chegou a melhores resultados no conhecimento. enquanto a alma já estava salva pelo batismo. mesmo que a "máquina" do coração ainda esteja palpitando. Inácio. A visão cartesiana do corf>o está profundamente enraizada no platonismo e neoplatonismo. Em relação à escravidão. tem os seus motivos ideológicos. Isto justamente legitima o transplante do coração. certamente. Münster. Pergunto-me por que em mais de 2. New York. que não sujam as mãos. A sua preocupação fundamental é. Jerome. "Mind-body Problem". que introduz no homem uma cisão entre o seu corpo e a sua alma.com a morte cerebral. S T R I E D E R . Macmillan. pois permite legitimar grande parte das mazelas da humanidade. propondo u m dualismo radical entre o corpo e a alma. A sua ação soteriológica se dirige ao homem todo e não a uma suposta alma presa em nosso corpo. no meu entender. portanto. na morte biológica não morre o nosso corpo. . na "morte" não sobrevive a nossa alma. mas apenas somos despojados da dimensão comunicativa carnal. metafísica. ou os líderes espirituais. pois ele se identifica com o nosso Ego. uma realidade metaempírica o u . O nosso corpo. mas sobrevive a nossa pessoa. que possui dois atributos ou dimensões comunicativas: a dimensão material e a dimensão anímica. que é o nosso corpo. têm raízes e legitimação no dualismo antropológico. que somos nós. comunica-se material e animicamente. A p a r t i r da visão monística do homem. dividem a vida em realidades puramente mundanas e realidades espirituais. Assim se toma legítimo dizer que na morte nos descamamos. as torturas. Pode-se afirmar com bastante certeza que todo espiritualismo desencarnado é dualista e alienante.. Estou convencido de que somente a partir do momento em que sufíerarmos o dualismo e tomarmos consciência de que o homem é u m ser unitário e partirmos para o monismo antropológico superaremos os desvios em relação a uma autêntica análise do homem. . O nosso corpo continua. . mas não que nos descorporificamos. O homem não é u m composto de duas substâncias antagônicas: o corpo e a alma. Neste dualismo simplesmente se identifica nosso corpo com a matéria que constitui nosso organismo. estão aí para salvar almas. o nosso Ego. Hoje se sabe que tais crí109] . os racismos. . a opressão. O nosso corpo é.e exploram os seus semelhantes corporalmente. Em críticas do passado. e tudo que fere a dignidade humana. se quisermos. Pela estmtura orgânica o nosso corpo se comunica. N o meu entender. Muitos ignoram as verdades religiosas quando tratam de seus negócios. Ele simplesmente é u m ser corporal. Esta estrutura é apenas o sinal pelo qual marcamos a nossa presença no mundo espácio-temporal e este mundo está em nós. muitas vezes.. na perspectiva cristã. pois o ser humano somente existe como ser corporificado. Portanto.. A exploração. é u m grande equívoco identificá-lo com a figura de nossa constituição físico-orgânica. Seria totalmente equivocado afirmar que Cristo. e que é preciso salvar para fazê-la retornar a Deus. responsabilizou-se o apóstolo Paulo pelos ensinamentos e práticas dualistas no seio do cristianismo ao longo de sua história. muitas vezes. Isto demonstra que muitos cristãos. com as nossas relações e ações ampliamos o corpo. situando tais formulações em seus resp>ectivos contextos. Precisamente este "compromisso" levou freqüentes vezes a antropologia cristã a u m grande equívoco. Para Paulo. de vez em quando.ticas são infundadas. A interpretação equivocada de Paulo. os antigos Padres da Igreja procuraram costurar u m compromisso entre Paulo e o platonismo. afirmar que "corpo" é a palavra-chave para a compreensão de toda a teologia paulina e. Mas. Os conteúdos dualistas na Igreja se devem a origens extrabíblicas. Não conhece "almas". Concedemos que algumas de suas referências ao corpo não foram formuladas com toda clareza e simplicidade. Desde Agostinho até a escolástica incipiente se define o homem como u m ser composto de duas partes estranhas entre si e se propõe o desprezo do corpo como condição para a salvação de valores espirituais. ou com a forma e figura visível do "homem exterior". A tarefa do cristão é justamente construir e ampliar o seu corpo na imitação de Cristo. Pode-se. tendo como fundo o monismo antropológico do Antigo Testamento. Desta tarefa resulta a vida cristã. de 110 . movimentos na Igreja que procuram dirigir-se exlusivamente ao "espírito" dos fiéis. com o seu ambiente e com Deus. Neste contexto. se deve ao fato de os intérpretes identificarem o conceito paulino de "corpo" com corporalidade. manifestam sempre a valorização positiva do corpo. Influenciados pelo platonismo e a versão dualista de u m "corpo mortal" e de uma "alma imortal". este conceito engloba a totalidade do ser humano. mas homens. Para ele. completado pela revelação cristã. nunca ao próprio apóstolo. Surgem. Paulo é o único escritor neotestamentário que faz uma "teologia do corpo". Paulo não propõe nenhum dualismo antropológico em detrimento do corpo. o "corpo" é o "lugar" ou o "âmbito" no qual se realiza a comunicação e a solidariedade do homem com o seu próximo. mas resulta de conjeturas humanas. A vida do homem se realiza corporalmente e este corpo está constantemente em construção. manifestam-se os diversos aspectos do pensamento do Apóstolo. em vez de buscarem construir seu corpo. O dualismo antropológico não faz parte da doutrina revelada. o sõma (corpo) sempre é mais do que apenas aquilo que vulgarmente se entende por "corpo". os sacerdotes são caracterizados como "curas de almas". Somente ele atribui valor doutrinário a este conceito. admoestando-os a salvarem a sua alma. em conexão com o corpo. inclusive. que é u m ser aberto e com inúmeras possibilidades e disposições. Para Paulo. ou a intérpretes de Paulo. pelo qual pudesse comunicar-se e interferir na nossa realidade camal. Da mesma forma. Quem se orienta pela consciência antropológica monística sabe que as dimensões material e psíquica são realidades do ser humano. a m p l i a seu c o r p o intercomunicando-se. escravizando. seja no nível material ou no nível espiritual. Para que nosso corpo não fique truncado é necessário que esta intercomunicação se realize na dimensão empírica e anímica. etc. cujo corpo não se identifica com sua dimensão física. a psicologia e a sociologia. O homem é u m ser corporal. o estaremos fazendo à totalidade de sua pessoa. aproximam-se mais da rejeição do corpo. O h o m e m . d u r a n t e a sua v i d a terrena. portanto. mas está essencialmente aberto à comunicação e ao enriquecimento existencial.acordo com a teologia paulina. Na "morte". Assim se rejeita absolutamente a versão reencamacionista e da possessão por espíritos de mortos. A nossa carência de ser revela que nosso corpo comunga com os corpos de outros e assim cresce em conteúdos humanos. u m espírito. o que fizermos de bem a u m ser humano. torturando. são i l u sões da mente. cm . Para que isto aconteça é preciso que ele esteja em comunicação comunitária com seus semelhantes. muitas vezes se afirma que o homem não nasce ser humano. O homem não sobrevive como espíríto. Conseqüências e conclusão A título de conclusão gostaria de apontar algumas conseqüências desta minha visão d o homem como ser corporal. não é uma mônada isolada. mas como ser corporal. Mas u m corpo não mais camal. torturando. de modo que fantasmas. mas não se descorporifica. Em qualquer nível em que afetarmos a pessoa. O nosso corpo. característica da filosofia órfico-platônica. destratando. A humanização se toma assim uma ação comunitária. mas é preciso que receba o apoio de seus semelhantes para humanizar-se. o nosso corpo deixa de se comunicar na dimensão física. que existe como u m todo. Plenamente de acordo. Tais doutrinas supõem o dualismo antropológico radical. De acordo com a antropologia. oprimindo ou explorando. o homem se descarna. É verdade. escravizando. destratando. estaremos afetando. oprimindo ou explorando o ser humano em sua totahdade. Na morte não se separa dele uma alma. ti'' 112 . Endereço do autor: • • Rua Barão de Souza Leio." I • .r. não a considero encerrada. A partir desta visão. . t: • I. v j t •'• .rti . Da minha parte. . e até maniqueísta.•• i i . .Esta visão monística do homem como ser corporal enraíza-se no pensamento semítico-cristão e parece-me a única capaz de superar os maniqueísmos e dualismos de qualquer origem. Pretende apenas contribuir na busca de uma dignificação mais plena do ser humano. Por isto a minha reflexão talvez não seja facilmente aceita.i. certamente poder-se-iam modificar muitos princípios da ética tradicional. e da conseqüente avaliação do homem em nossa cultura. 75/703 51021— Recife — PE f'^'o • •f..' • ' ' 1. A nossa cultura continua sendo profundamente dualista. complementada com as reflexões filosófico-humanistas. 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