O Crime da Rua Cuba

March 29, 2018 | Author: percivaldesouza | Category: Time, Bed, Editorial, Police, Science


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Percival de Souza - O Crime da Rua Cuba "Vou regular a máquina. Data: 24 de dezembro de 1988.Horário: duas horas da madrugada. Local: um bairro elegante de São Paulo, uma rua de nome pequeno entre um punhado de outras ruas que só têm nome de país. O número, três algarismos... pronto. Rua Cuba, 109". Apelando para um recurso típico de textos de ficção — um narrador, uma máquina de tempo —, o jornalista Percival de Souza constrói, neste livro, uma narrativa vibrante, que organiza fatos e hipóteses, pistas e mistérios. Uma reportagem que enriquece as informações e a discussão de um dos mais controvertidos crimes dos dias de hoje. Índice O crime, no Natal ................................... Capítulo 1 Na casa, Sem Testemunhas ................................ Capítulo 2 Investigando com a Máquina do Tempo ................................... Capítulo 3 O Filho Mais Velho ................................. Capítulo 4 Conversas Sigilosas .................................. Capítulo 5 Você É o Juiz ................................... Capítulo 6 Aos sobrinhos Marcelo e Larissa, grato por tantos momentos de felicidade. Capítulo 1: O Crime no Natal Todo o mundo quer saber o que aconteceu de verdade ali dentro daquela casa, em plena véspera de Natal, quando os pais de uma família de três filhos foram encontrados mortos. Não é um caso fácil de resolver, e muito menos de investigar, porque nem todos estão a fim de que se descubra o que houve no quarto do casal... Eles se levantavam cedo, todo dia. Um hábito. Uma rotina. Na noite do dia 23, a mãe ficou em casa com a filha de 10 anos, embrulhando os presentes de Natal da família, caprichando nos pacotes envoltos em papel celofane e fitas coloridas. O pai, com o filho mais velho, de 18 anos, e o outro de 14, preferiu visitar um casal amigo. Lá, o filho mais velho recebeu cumprimentos por ter passado no vestibular para a Universidade. Ninguém pode dizer com precisão: "houve isto". Ou garantir: "houve aquilo". É um mistério. O que se sabe, com certeza, é que ao lado da cama do casal ficou um despertador regulado para tocar às sete e meia da manhã. Mas ninguém se levantou, nem às sete e meia nem às dez, nem ao meio-dia nem à uma da tarde. Tudo muito estranho. Quando se resolveu entrar no quarto (cuja porta estava trancada), preferiu-se que a Polícia fizesse isso, e não alguém da família. O casal estava imóvel na cama, coberto por um lençol. Tudo muito arrumado. Mas havia sinais de sangue em seus rostos. E também aquelas terríveis marcas de tiros, tiros de revólver, tiros na cabeça. Daí para a frente, o caso virou uma grande confusão. A Polícia, em suas investigações, tomou um caminho que a família não gostou, e em muita coisa se pensou para explicar o crime: ódio? vingança? um ladrão? um assassino misterioso? será que um não matou o outro e suicidou-se? Ou, quem sabe, o assassino não seria gente da própria família? É isso que nós precisamos descobrir. Você e eu. Você, eu sei quem é: jovem, inteligente, gosta de ler, usar a cabeça, de ser bem informado e não comer prato feito. Agora eu. Permita a apresentação: sou uma pessoa comum, absolutamente comum. Pelo menos, é o que pensam que eu sou. Mas o que gosto mesmo é de trabalhar em laboratório científico, fazendo pesquisa. Eu me dedico muito ao trabalho, e meu sonho é ser um grande cientista. Aliás, quero confessar uma coisa: gosto de trabalhar escondido, mas bem escondido. Tenho um grande segredo guardado numa sala. Só eu tenho a chave desse lugar. É a primeira vez que estou contando isso. Só para você — sabe como é, fica sempre difícil segurar uma barra dessas. Acho que poderei apresentar o meu invento numa feira de ciências na Europa, mas só daqui a alguns anos. A máquina — este é meu invento secreto — é cheia de painéis, luzes que se apagam e acendem. Um manual, no seu primeiro compartimento a esquerda, mostra como o engenho funciona. É simples e incrível, fantástico! Eu mesmo inventei tudo, sozinho. Bem no centro, coloquei uma espécie de digitador. Você pode marcar uma data e... Ah! Eu sei que você deve estar pensando: pô, esse cara diz que sou jovem e inteligente, bem informado, que não gosto de prato feito, e de repente me aparece com essa história de ficção, uma engenhoca nova. Qual é? Aí é que está o grande segredo que vou dividir com você agora. Mas deixa eu te explicar como é que a minha máquina funciona. Quando a acionei pela primeira vez, foi uma emoção muito grande. Veja só: eu regulo e programo uma data. Depois, acrescento um horário, ou um espaço entre horários Por exemplo: duas horas da madrugada. Ou o espaço entre duas e três, quatro e cinco horas. Com dia e hora programados, coloco um endereço, o endereço que eu quiser. Parece teclado de computador, Feito isso, aperto um botão e... pasme: numa tela, vão sendo registradas todas as cenas que aconteceram naquele dia, naquela hora e naquele lugar. Quer dizer: com essa máquina, a minha máquina, o meu invento, acabam-se os segredos, terminam os mistérios. Acho que acabo de criar o invento do século, mas continuo preocupado com algumas palavras que muita gente nem sabe o que querem dizer: ética, intimidade, direitos individuais — enfim, essas coisas que estão nos livros e que certo tipo de gente prefere chamar de blablablá. Por outro lado, não quero perder uma chance dessas. Sei muito bem o que gostaria de saber, e logo. Faz um tempão que o caso da rua Cuba aparece em todos os jornais, ocupa espaço nas revistas, entra no noticiário da televisão. Cada um diz uma coisa, e de repente começaram a desconfiar até do filho mais velho do casal, um rapaz de 18 anos. Você já pensou? Pelo que sei, ele nega até debaixo d’água, mas essa simples desconfiança transformou o caso num grande romance da vida real. Por isso, assim que minha máquina ficou pronta, a primeira coisa em que pensei foi nesse caso. O crime da rua Cuba. Agora preste atenção: este é um segredo, um grande segredo, que não vamos poder revelar para ninguém. Quero confessar que estou muito emocionado, porque nós vamos descobrir — juntos! — o que, afinal de contas, aconteceu dentro daquela casa. Não sei se vou gostar do que vamos descobrir. É por isso que estou pedindo a sua ajuda, a sua companhia. Vou programar a máquina. Nós vamos entrar na casa onde o casal foi morto. Vamos descobrir como foi que eles morreram. Recortei tudo o que saiu nos jornais, e pelo que li o inquérito foi sigiloso, mas esses repórteres são fogo! Alguns deles chutaram pra burro, mas a maioria fez cada matéria (é assim que eles chamam a reportagem, sabia?) de arrepiar. Dizem que tudo aconteceu entre duas e cinco horas da madrugada, e, pra falar a verdade, não sei se a gente programa a máquina para antes ou depois desse horário... Creio que é melhor ver logo a cena do crime. Depois a gente regula a máquina para a frente e para trás, para tirar as dúvidas. Vai ser barra. cara. Mas não podemos dar para trás. Não enfrentamos cada situação do peru pelas quebradas da vida? Esta é a parada mais difícil de todas, porque não sei se vou ficar muito perturbado com essa descoberta. E, principalmente, não sei se vou querer contar para quem tem obrigação de saber de tudo isso. É duro só a gente saber de alguma coisa tão grave assim. Mas depois a gente pensa junto e decide o que fazer. Vou regular a máquina. Data: 24 de dezembro de 1988. Horário: duas horas da madrugada. Local: um bairro elegante de São Paulo, uma rua de nome pequeno entre um punhado de outras ruas que só têm nome de país. O número, três algarismos... pronto! Rua Cuba, 109. Agora é só ficar, como dizem os tiras, os homens da Polícia, numa campana, acompanhando, vigiando... Olha lá, as primeiras imagens começam a aparecer na tela! É emocionante: voltamos no tempo. O casal já está deitado. São duas horas. Venha, vamos percorrer a casa — que, pelo que a gente pode observar, foi reformada e é bem bonita, ampla, espaçosa. Duas empregadas estão dormindo no quarto delas, nos fundos. A filha caçula também dorme. Claro, por que uma criança de 10 anos estaria acordada a essa hora? O irmão de 14 anos também já foi se deitar. Só o filho mais velho está de pé. A Diana, cachorra da família, dorme no seu canto. Engraçada, essa cachorra: tem o hábito de ficar dando umas bandas pela rua até depois da meia-noite; tanto que o portão de entrada (só o vigia da rua sabe disso) fica apenas encostado. E o vigia que põe a cachorra para dentro, depois do último pipi na rua. Veja, o horário vai mudando na máquina, correndo em minutos e segundos: duas, duas e quinze, duas e meia, duas e quarenta e cinco... E agora! Um vulto está subindo as escadas. Você está vendo? O quarto do casal fica no pavimento de cima, tem uma janela com sacada. É um quarto grande, bem mobiliado. Está tudo escuro lá dentro. Mas a essa hora, esse vulto, subindo, na ponta dos pés, só pode ser o assassino. É ele, só pode ser ele. O vulto se mexe vagarosamente, não dá para ver o seu rosto, distinguir sua fisionomia, mas dá para perceber que carrega uma arma na mão direita. Parece conhecer muito bem a casa por dentro, porque caminha sem hesitar. Seus passos são rápidos. A porta do quarto do casal está entreaberta. Isso confirma tudo o que disseram: a menina de 10 anos é doente, sofre do coração, e o pai sempre fez questão de deixar todas as portas abertas. Sabe como é, de repente a menina pode precisar de alguma coisa fora de hora e, se as portas não estiverem abertas, ninguém escuta ela chamar. O assassino empurra a porta. Já são quase três e meia da manhã. Ele parou. Parece que quer ter certeza de que ninguém percebeu que está escondido ali. Mas não vai dar para entrar no quarto com todo esse escuro. Não dá para enxergar nada. O vulto caminha na ponta dos pés. Veja! Acendeu a luz do banheiro do quarto, ficou uma fresta de luz. Ele prefere caminhar para o lado da cama em que o homem dorme. O homem é um advogado. Não dá para ver o rosto dele. Mas a gente percebe, está vendo?, que a pessoa que anda pelo quarto é alguém alto, decidido: está dentro do quarto sabendo muito bem o que vai fazer ali. O assassino só aparece de costas ou de lado na tela. Bem que poderia haver um outro tipo de regulagem nesta máquina. Será que a gente não vai ficar sabendo de tudo? Olhe, agora dá pra ver a arma, direitinho, na mão dele. É um revólver. Olha só! O cara está encostando o cano da arma quase no nariz do advogado! Ainda bem que esta máquina não transmite nenhum som, senão eu não iria agüentar assistir a tudo isso. É de arrepiar, a cabeça do homem se agita. Não há quem consiga escapar de um tiro dado assim, tão de perto. Acho que já está morto, morreu na hora. Mas... olhe agora! Que coisa terrível! A mulher acordou. Está tentando se levantar. Está atordoada, acordou com o barulho do tiro, percebeu que o marido acaba de ser assassinado. Ela está vendo o rosto do assassino! Droga, nós só o vemos de costas. Não dá para saber quem é, mas dá para antecipar perfeitamente o que vai acontecer daqui para a frente. A mulher está vendo o assassino. Ela sabe quem é. Ele está dando a volta, ela vai tentar levantar-se de uma vez. Veja só o que ele está fazendo. Deu uma coronhada na cabeça dela, bem em cima da cabeça. Abriu um rombo em forma de Y. Ela caiu sobre a cama. Não tem como defender-se. Sabe que o marido já está morto. Sabe quem é o assassino. Sabe que também vai morrer. Puxa, esse sujeito é muito frio, é cruel. Olhe, olhe! Está encostando a arma na cabeça da mulher, bem pertinho: aperta o gatilho, uma vez, duas vezes e fica olhando por alguns instantes. Pronto, missão cumprida, deve estar pensando esse maluco. Mas como pode um invento maravilhoso como este não mostrar a cara dele? O assassino vai para o banheiro apagar a luz. O cara pensou em tudo. Está se retirando do quarto a passos lentos, acho que pensando no que vai fazer daqui para a frente. Encostou a porta, está descendo a escada. O advogado e a mulher, uma professora, ficaram mortos lá em cima. O homem morreu dormindo. A mulher, coitada, percebeu tudo e teve a pior das mortes. Vamos ficar aqui assistindo mais um pouco. Pode ser que apareça mais alguma coisa importante. Mas que decepção, eu estava certo de que poderíamos ver a cara do assassino! Droga de máquina! Não, bobagem minha, a máquina não tem culpa nenhuma, mostra o que é possível mostrar, e está mostrando muito. Já descobrimos como foi a cena do crime, coisa que ninguém, antes de nós, sabia. Mas eu sei que o assassino vai voltar! Temos que continuar aqui, na campana. Agüente firme. Vamos descobrir ainda mais coisas que ninguém está sabendo. O programador do horário vai correndo — já são quase quatro horas da manhã — e mais algum lance quente vai pintar nessa tela mágica... Olhe! Não te falei? Veja uma empregada zanzando pela casa. Ué, cruza com alguém na sala, lá embaixo, parece que é um daqueles papos na base do "tudo bem". Mas como. tu do bem? A cachorra está quieta. Nem latiu. As crianças não despertaram. Não sei se os tiros fizeram muito barulho. Acho que sim. Li que o vizinho da direita tem um viveiro cheio de pássaros, que acordaram sobressaltados. Aliás, acho impossível que ninguém tenha ouvido o barulho desses tiros, ainda mais de um revólver calibre 32. Você não concorda comigo? Vamos continuar espiando. Incrível, o assassino não saiu da casa! Fica andando para lá e para cá. Por que não vai embora? Tudo continua escuro. Só dá para ver o vulto. Ué, está subindo as escadas de novo. Vai entrar no quarto do casal outra vez. Por que será? A mulher está mais desarranjada na cama. Veja, o assassino está arrumando o corpo. Passa a mão sobre o rosto dela. Que estranho, violência e carinho? Ajeita a cama com cuidado. Agora, parece que a mulher está dormindo normalmente. Vai fazer a mesma coisa com o homem, arrumar o seu corpo. É, este foi mais fácil, porque foi surpreendido dormindo, não se movimentou muito. Os corpos estão de novo deitados corretamente. Agora, ele está cobrindo os dois com o lençol, tomando o cuidado de prender todas as bordas sob o colchão. A gente vendo de longe nem percebe que os dois estão mortos. Se não soubéssemos de tudo o que aconteceu antes, poderíamos passar batido. Por que será que o assassino está fazendo isso? Estranho, ele continua andando pelo quarto. Por que não se vira um pouquinho só para que a gente possa ver a sua cara? Dá até a impressão de que ele sabe que está sendo observado... Olhe, olhe, ele está deixando uma cápsula de bala de pé, lá num canto do quarto. O que não dá pra ver é onde ele enfiou a arma do crime. Acho que quando alguém entrar no quarto vai pensar que os dois estão dormindo; e quando perceberem que não se mexem mais, vão até achar que morreram dormindo. Está tudo tão arrrumadinho! Não estou entendendo nada. E você, que está assistindo junto comigo, vê se me ajuda, caramba! Estamos recebendo essa tremenda colher de chá de saber coisas que ninguém sabe, e agora temos a obrigação de sacar todos os macetes deste lance. Vê se pensa comigo, pô. Se eu fosse esse cara, trataria de me mandar dali o mais depressa possível. Por que ele ficaria no local do crime, dando a maior sopa? Não faz sentido, não tem lógica nenhuma. Tá bom, tá bom. não vamos nos meter a Sherlock só porque sabemos o que esta geringonça que inventei está me mostrando. Passa das quatro da madrugada, olha lá o reloginho. Mas o cara continua no quarto! Ah, acho que este é o último lance aqui dentro. O malandro tem uma chave no bolso. Deu uma olhada cuidadosa dentro do quarto, parece que está conferindo alguma coisa, sei lá o quê; saiu, encostou a porta de uma vez, trancou... Deve ser a primeira vez que essa porta fica trancada assim... Coitada da menininha, se precisar de alguma coisa nem o pai nem a mãe vão ouvir os seus pedidos, os seus gritos... Mas por que é que ele trancou a porta? É isso mesmo, trancou a porta por fora, deu duas voltas na fechadura, retirou a chave, guardou-a no bolso e saiu... O casal está morto e a porta está trancada por fora. Ninguém vai poder entrar aí... Ah, já estou com tanta pena dessa família, dos filhos desse casal. Morrer tão estupidamente assim na véspera de Natal, justo hoje, quando todo mundo se abraça, troca presentes, se deseja felicidade... Por quê? Por quê? Quem vai descobrir tudo isso? Quem poderá explicar o que aconteceu aqui dentro? Agora preciso desligar a minha máquina, ela já mostrou um montão de coisas e não pode ficar ligada direto tanto tempo assim. Já faz mais de três horas que nós estamos pregados aqui, diante da tela. Também, quero te confessar: não agüento mais ver isso por hoje. Quanto a você, não sei como está o seu fôlego... Bom, agora nós dois já sabemos como foi aquela coisa. Mas não sabemos quem foi. Acho que vamos ficar escravos dessa máquina. Se bem que não sei nem se eu, que a inventei, estava mesmo a fim de ver tudo o que vimos.,. Agora é tarde. Vamos segurar as pontas juntos e ver depois como é que se toca esse barco. Barra pesada. Mas tem mais coisas que precisamos saber. E pelo menos alguma coisa poderemos descobrir sozinhos, sem ajuda da máquina... Capítulo 2: Na Casa, Sem Testemunhas Manhã do dia 24 de dezembro de 1988. Jorginho, o filho mais velho do casal saiu de casa antes das sete horas da manhã. Às sete, já estava na casa de Flávia Soares, a namorada de 16 anos. Antes de sair, deixou um bilhete informando que voltaria no final da tarde. Mas antes do meio-dia deu vários telefonemas para casa, falando com as empregadas, querendo saber se tudo estava bem, se havia alguma novidade, fazendo algumas recomendações que não vinham bem ao caso. Até aqui, pelo jeito, ninguém, absolutamente ninguém dentro da casa sabia que o advogado Jorge Toufic Bouchabki, 45 anos, e sua mulher, Maria Cecília Delmanto Bouchabki, professora, 40 anos, estavam mortos com tiros na cabeça. As empregadas Maria Lima Bezerra e Olinda Oliveira da Silva cuidaram normalmente dos irmãos de Jorginho, como era chamado em casa Jorge Delmanto Bouchabki, o filho mais velho. Flávia Soares estranhou quando o namorado chegou à sua casa, logo cedo, às sete horas. Está certo que eles se gostavam bastante, pensavam num relacionamento mais sério, mas era estranho Jorginho aparecer assim de repente, com uma cara de sonado, fazendo convites para passear no zoológico ou vagar por lojas de compras... Ele estava tão inquieto e tão visivelmente exausto que a garota propôs: "deite-se, durma um pouco para descansar". Jorginho respondeu que tinha medo de sonhar e ter pesadelos, e Flávia não deu maior importância a isso — embora essa frase, dita assim, mais tarde viesse a provocar inquietação. O fato é que Jorginho acabou não indo a lugar nenhum, e sim voltando para casa. Já passava do meio-dia quando as empregadas e seu irmão Marcelo Bouchabki, de 14 anos, contaram a ele que os pais Jorge e Maria Cecília ainda não haviam saído do quarto, o que nunca havia acontecido antes. Marcelo até sugeriu que forçassem a porta, mas Jorginho o desaconselhou, dizendo que poderia haver um ladrão escondido lá dentro do quarto, o que seria perigoso. Já passava das duas horas da tarde quando Jorginho pediu para Olinda, uma das empregadas, dar uma espiada pela janela da sacada do quarto de seus pais, Ela encostou uma escada, apanhou um cabo de vassoura para forçar um pouco a janela de correr (de madeira, como veneziana) e viu os dois — Jorge Toufic e Maria Cecília — deitados normalmente, cobertos por um lençol. Parecia que dormiam. Foi o que Olinda disse. A partir daí, o jovem Jorge Delmanto Bouchabki tomou uma atitude surpreendente: em vez de entrar ele mesmo pela janela, ou derrubar a porta, preferiu sair às ruas. A duas quadras de casa, encontrou um carro da Polícia, que fora até à esquina atender a uma ocorrência de trânsito, fato comum numa cidade grande — tão comum que batidas entre automóveis acontecem mais de setecentas vezes todos os dias só em São Paulo. Os policiais dessa viatura ouviram o pedido de Jorginho: ir verificar o que estava acontecendo em sua casa. Chamaram uma outra viatura, pelo rádio do carro, e dali a minutos encostava uma perua da Polícia Militar na casa elegante do bairro dos Jardins, Os policiais repetiram o ritual da empregada: foram até a sacada, entraram no quarto, puxaram levemente o lençol e verificaram que o casal estava imóvel na cama. Mortos. Os policiais afrouxaram as dobradiças da porta, e mais gente entrou: familiares, parentes, amigos. Da casa, onde agora já se sabia terem acontecido duas mortes misteriosas, partiram telefonemas. Um dos telefonemas colocou a par dos fatos o secretário da Segurança Pública, Luiz Fleury Filho, que tomou as providências: o caso deveria ser atendido com maior empenho, rapidez e dedicação. Afinal de contas, a família era importante e merecia prioridade. A bem da verdade, prioridade não propriamente para os Bouchabki, mas para a família da mulher, Maria Cecília, filha do grande advogado Dante Delmanto, um dos maiores juristas do país. Quando chegou o delegado especializado em homicídios que estava de plantão, já havia mais de quarenta pessoas reunidas dentro da casa. Era final de tarde. O delegado José Augusto Veloso Sampaio chegou e foi entrando, com passos decididos. Um homem apresentou-se: "Eu também sou delegado, colega. Maria Cecília é minha sobrinha". Ao longo de 1988, o delegado Sampaio havia sido campeão de produção na sua delegacia, a equipe A de Homicídios, esclarecendo um grande número de crimes. Assim que entrou na casa da rua Cuba. foi logo dar uma olhada no quarto para fazer uma rápida avaliação do que havia acontecido, como era seu costume. A posição dos corpos dava a impressão de que o marido havia atirado na mulher e se matado a seguir Ou, quem sabe, o contrário, pois a posição dos corpos na cama do casal também dava essa impressão. Mas quando o delegado virou os corpos, certo de que encontraria a arma utilizada, teve uma grande surpresa: não havia revólver algum sobre a cama. E se não havia revolver algum, ficava difícil afirmar que houve um homicídio seguido de suicídio. O delegado Veloso Sampaio pensou nisso, mas não disse nada. O perito Dilson. que o acompanhava, começou a trabalhar. Fotografias daqui e dali, raspagem no couro cabeludo do homem e da mulher para verificar e descrever a trajetória dos tiros. É assim que a Poli cia trabalha num local de crime: parte do nada e usa os próprios cadáveres para descobrir pistas. E fazem isso com tanta familiaridade que parece que esses corpos inertes conversam, falam com eles. Aliás, o delegado Sampaio é um desses policiais que se convenceram, por força da profissão, de que a melhor testemunha de um crime é o próprio cadáver. É o que vive repetindo. E aqui entra a nossa cumplicidade. No bom sentido, lógico. Por causa da admirável máquina do tempo, você e eu sabemos de tudo em detalhes, e logo poderemos saber também se a Polícia está no caminho certo. Vai chegar a hora, quem sabe?, em que teremos uma bomba nas mãos. Mas depois a gente vê isso. Por enquanto, vamos definir nossos próximos passos, sem precisar — por enquanto — da ajuda da máquina que reconstitui cenas. O delegado Sampaio fica um bom tempo dentro da casa. Sua equipe circula por todas as dependências, buscando sinais, indícios, vestígios, marcas, uma pista, por menor que seja. Nada se encontra, pelo menos nada mais visível, e por isso muita coisa vai depender da perícia isto é, o exame dos corpos, que se chama necroscópico, do quarto, de todas as portas e dos outros quartos. Enfim, como diria o criador de Sherlock Holmes, não existe crime perfeito, apenas investigações imperfeitas. Aonde Sampaio vai, o advogado José Carlos Dias vai atrás. O advogado faz parte do imenso rol de amigos e familiares que veio para a casa, fazendo sugestões ao delegado Sampaio, que a tudo e todos ouve, mas que não emite palpites. É prudente, Coisas do ofício. O delegado vai ouvindo: '"um ladrão entrou na casa e esteve aqui neste mesmo quarto no ano passado"; "esse ladrão foi preso quando tentava fugir, e bem que pode ter voltado para matar Jorge e Cecília só por vingança". Alguém completava: "é mesmo, só pode ter sido esse ladrão, é incrível a falia de segurança nesta cidade, nem mesmo dentro de casa a gente escapa dos bandidos". Mais coisas foram assopradas ao ouvido do delegado: "Jorge e Maria Cecília estavam sendo ameaçados": "Maria Cecília confidenciou para uma amiga, sem citar nomes, que eles estavam correndo risco de vida"; "Jorge comprou um apartamento no litoral, teve discussões com a construtora por causa dos reajustes de preço e acabou sendo ameaçado de morte". Nos primeiros momentos dentro da casa, o delegado não parecia estar preocupado nem com o ladrão do ano passado, nem com o ameaçador vendedor de apartamentos do litoral de São Paulo. Examinou cuidadosamente o quarto e concluiu: a menos que os peritos demonstrassem mais tarde o contrário, com indiscutíveis exames de laboratório, pela janela do quarto ninguém havia entrado. Mesmo porque, para abrir essa janela só um pouquinho, a empregada precisara usar um cabo de vassoura. A porta estava trancada por dentro, observava o delegado. Ou, talvez, por fora. Havia chovido, e muito, durante a madrugada, mas o muro lateral não apresentava nenhum sinal de que alguém tivesse se apoiado em qualquer parte dele para saltar. O muro tem plantas, e nenhuma delas estava quebrada. O delegado Sampaio percorreu atentamente toda a extensão do muro, sob chuva (continuou chovendo naquela triste véspera de Natal). Muitos passos. O advogado José Carlos Dias sempre atrás. Os peritos continuavam trabalhando, A porta foi recolocada no lugar O delegado Sampaio estava um pouco distraído quando viu um jovem na multidão de parentes e amigos tirar seu chaveiro do bolso e usar uma das chaves para tentar abrir a porta do quarto do casal. Coisa curiosa: a porta se abriu! Imediatamente! O delegado mandou apreender a chave, mas não reparou muito no rosto desse jovem. Esse detalhe iria causar uma grande polêmica no futuro, mas de qualquer forma é importante notar que não teria sido necessário todo aquele trabalho da Polícia: entrar pela janela, afrouxar as dobradiças por dentro do quarto para que todos pudessem entrar. Portanto, de agora em diante fique mais atento O delegado já está pensando: quem quer que seja, o assassino é alguém inteligente. Entrou na casa sem arrombar portas ou janelas, não deixando marca de espécie nenhuma. Deu tiros dentro da casa, e ninguém escutou. A cachorra nem latiu. Mexeu nos corpos, para dar a impressão de uma coisa completamente diferente do que de fato aconteceu. Sem dúvida, estamos diante de um superassassino, alguém que sabe andar nas sombras, abrir e trancar portas misteriosamente, entrar e sair sem ser visto. Mas... O delegado Sampaio começa a refletir a partir de todos esses detalhes. Seria um ladrão? Mas nada foi roubado, nenhum objeto de valor, embora qualquer ladrão pudesse escolher, ali dentro, objetos que lhe rendessem um bom dinheiro e ainda fossem fáceis de carregar. Nenhum ladrão entra numa casa só para matar e ir embora. Seria uma vingança? Mostra a experiência em casos policiais que as execuções por vingança nunca acontecem no interior das casas. Na melhor das hipóteses, isso é feito quando a vítima está chegando ou saindo, simplesmente porque é mais fácil e, ao mesmo tempo, muito menos arriscado. Nesse caso, não faria nenhum sentido o vingador entrar na casa, eliminar o casal a tiros, continuar dentro do quarto um tempão para mudar a posição dos corpos. Nem seria preciso preocupar-se tanto em não deixar vestígios. Essas reflexões confirmam que estamos diante de um mistério, um enigma, algo que precisa ser paciente, cuidadosa e inteligentemente decifrado, É um caso fora do comum, "atípico", como diria o delegado Sampaio, que de agora em diante não dará mais um único passo sem questionar: por quê? por quê? por quê? A família dos Delmanto, muito mais que a dos Bouchabki, é influente e desfruta prestígio social, Um clã jurídico, capaz muitas vezes de encontrar pêlo em ovo e, com habilidade e talento, criar instrumentos para direcionar decisões, ora para a acusação, ora para a defesa. Como naquele famoso crime em que alguém apareceu morto numa casa: poderia haver (como havia) testemunhas na casa ao lado, mas quando a perícia chegou, dias depois, havia um intransponível muro no lugar. Adeus testemunhas. Provar também que alguém com vários tiros no ouvido suicidou-se e não foi assassinado não é igualmente tarefa fácil. Mas conseguiram,., Tudo bem. O tribunal do júri é uma caixinha de surpresas, depende muito da habilidade de quem fala para sensibilizar (ou irritar) os jurados; e, como diria um velho prisioneiro — conta meu tio advogado — recolhido no inumano fundão da Casa de Detenção, a parte do presídio reservada aos párias considerados mais perigosos, "para dizer só a verdade ninguém precisa de advogado". Enfim, essas “histórias paralelas" estão sendo registradas aqui porque o local da morte dos Bouchabki foi, e isso é óbvio, maquiado. O que houve ali, exatamente, é algo que se tentou deliberadamente encobrir, e se não fosse a ajuda da nossa máquina do tempo secreta, nem a cena do crime seria possível reconstituir. Por quê, nós vamos ver agora, antes que a gente ponha essa máquina para funcionar outra vez. A noite de 24 de dezembro é dura para se tirar plantão. Em qualquer lugar. É o dia em que as famílias se reúnem, brindam, trocam presentes, abraços, cartões, desejam-se felicidades. Foi nessa data e nesse clima, horário de festa e tragédia, momentos de alegria e de dor, que os corpos dos Bouchabki foram levados, como é de praxe, para as frias mesas de mármore do Instituto Médico Legal. Ali está esculpida a realidade da vida. E ali aconteceu o que não deveria, normalmente, ter acontecido: houve uma negligência no trabalho dos legistas. Como vimos, noite de Natal não é data para plantão dos mais eficientes. Também é verdade que o caso da rua Cuba havia sido recomendado pelas autoridades superiores. Nem assim: quando os corpos dos Bouchabki chegaram ao IML, lá estavam outros corpos, esperando a vez de outras necrópsias. Eram mais de vinte corpos (é incrível como se mata e se morre em pleno período de festas). Uma necrópsia não é fácil de assistir, mas é rotina para quem trabalha com isso. Com os instrumentos cortantes necessários, os legistas abrem os corpos na região dos ferimentos, constatam a dimensão das perfurações e dos ferimentos, fazem uma descrição da trajetória de tiros — enfim, contam em minúcias o que os corpos sofreram. Tal descrição é o que chamam de laudo. Em qualquer lugar do mundo, a Polícia depende muito desse levantamento, dos laudos, para definir o rumo das investigações. Um grande caso, um grande laudo. Era, evidentemente, o que todos esperavam do crime da rua Cuba. Só que uma semana depois o que chegou não foi o grande laudo esperado. Nem em tamanho — os legistas exercitavam seu poder de síntese — nem em conteúdo, porque pouco informava. Afirmava que Maria Cecília Delmanto Bouchabki havia recebido dois tiros na cabeça e seu marido, Jorge Toufic Bouchabki, um. A repercussão do caso atingia grandes proporções quando esse laudo chegou à Delegacia de Homicídios. Junto vinha um gráfico com desenhos e setas indicativas. Pelo desenho, parecia evidente o que havia acontecido com o casal: o marido deu dois tiros na mulher e matou-se em seguida. A essa altura da situação, quando os responsáveis pelas investigações conferiam laudos e fatos, os jornais saíram com uma entrevista-bomba, concedida pelo chefe de toda a Polícia de São Paulo, o delegado Amândio Malheiros Lopes. Na entrevista, o delegado dava sua opinião sobre o caso: "tudo tem as características de homicídio seguido de suicídio". Sua declaração foi uma verdadeira ducha de água fria: em meio a inúmeras hipóteses, conjecturas, especulações, aparece o homem número 1 da Polícia afirmando uma coisa dessas... (Naturalmente, ele o fazia com base no laudo que acabara de examinar. ) Dias depois, outra grande surpresa: o doutor José Carlos Dias também concede uma entrevista, durante a qual se apresenta como advogado de Jorge Delmanto Bouchabki, o Jorginho. Mas advogado por quê? Para quê? De quê Jorginho estava sendo acusado? O caso dos Jardins ganhava mais um explosivo componente, o noticiário — e daí para frente o crime dos Bouchabki passou a ser assunto diário nas rádios, tevês e em todos os jornais da cidade e do país. Todos queriam saber quem matou os Bouchabki E por quê. A Procuradoria Geral da Justiça indicou um promotor só para acompanhar as investigações, do começo ao fim. Com uma pasta preta, sob o braço um inseparável guarda-chuva, o promotor chegou para a primeira reunião. Fecharam-se numa sala o delegado Sampaio, o chefe da Polícia Amândio Lopes, o promotor e o perito que fez o levantamento do local do crime. Quando o perito começou a falar, houve uma perplexidade geral. É que o perito, com naturalidade, informou que o advogado Jorge Toufic havia recebido dois tiros na cabeça, e não um, e que sua mulher Maria Cecília Bouchabki fora atingida por um tiro, e não dois. Era exatamente o contrário do que descrevia o laudo do Instituto Médico Legal, segundo o qual Jorge recebera um tiro e a mulher, dois. O delegado Veloso Sampaio coçou a cabeça. O chefe da Polícia Amândio Lopes berrou um "não é possível!" seguido de três palavrões. E determinou: os corpos dos Bouchabki teriam que ser exumados imediatamente. No dia seguinte. Sem nenhuma perda de tempo. Só mesmo examinando outra vez os corpos seria possível chegar à verdade. Assim se fez. O cemitério foi interditado durante duas horas, o túmulo de mármore dos Bouchabki aberto, e os legistas deram início ao seu trabalho. Examinam de novo, fotografam outra vez, de quebra lembrando a todos nós, peritos e leigos, a que se reduz o ser humano, que, como ensina o Gênesis, é pó e ao pó voltará. A essa altura, a Polícia já sabia que teria de desvendar coisas intrigantes dentro da casa dos Bouchabki. Havia dúvidas (e como!) sobre detalhes do caso. Seria preciso afirmar com segurança técnica o que se investigava: um duplo assassinato? ou um homicídio seguido de suicídio? E nessas horas não basta dar palpites, achar isso ou aquilo. É preciso dizer somente aquilo que se pode provar. Qualquer um pode construir hipóteses. O perito, não: só pode discorrer sobre aquilo que tem condições de provar, É uma situação bem diferente. Foi por isso que a Polícia voltou à casa da rua Cuba. Mas foi tarde: na segunda manhã após a morte dos Bouchabki, uma segunda-feira, tinha sido removido o grande carpete do quarto do casal, com muitas manchas de sangue. As roupas que eles vestiam — Jorge, um pijama escuro: Maria Cecília, uma camisola rosa — haviam sido lavadas. Mais nada seria possível descobrir que dependesse de examinar de novo roupas e carpete. Os policiais trataram de conversar mais detalhadamente com as empregadas Maria Lima Bezerra e Olinda Oliveira da Silva. Ambas confirmaram: não tinham ouvido nenhum barulho naquela noite. Isso não parece muito verdadeiro, principalmente depois que a Polícia voltou à casa, certa noite, e fez um teste para saber se o barulho de tiros no quarto dos Bouchabki poderia ser ouvido no interior da própria casa e também na rua. Em vários pontos da rua e em todas as dependências da casa ouviu-se o eco dos disparos de revólver. Na rua teve gente que saiu à janela para espiar o que estava havendo na casa dos Bouchabki. Nos dias seguintes, o ladrão João Carlos Gonçalves foi localizado. A família insistia em dizer que o crime fora vingança desse ladrão, surpreendido por Maria Cecília Bouchabki, dentro de seu próprio quarto, exatamente no dia 1° de abril de 1987. O delegado Sampaio nunca acreditou nessa versão. Nem poderia. Primeiro, porque João Gonçalves era um ladrão que praticava apenas furtos, nunca roubos: ele entrava nas casas, geralmente na ausência dos moradores, sem usar violência física contra ninguém. Segundo, porque nesse desastroso 1° de abril ele estava furtando, com uma perua Kombi encostada perto da casa dos Bouchabki, quando foi surpreendido por Maria Cecília, que começou a gritar. João Gonçalves pulou pela janela, torceu um pé e — suprema humilhação para um ladrão — foi capturado por um vigia particular da própria rua. Enfim, João estava mais para ladrão de galinhas do que para um superassassino. Curioso é que não foi a Polícia quem apanhou João, e sim dois expoliciais (por sinal, de passado comprometedor) que fizeram, nesse caso, uma espécie de free-lancer para um tio de Maria Cecília. Preso João, os ex-tiras o levaram para uma delegacia da zona leste, a 31ª, onde um policial amigo deles poderia fazer uma grande média, apresentando-se como o grande detetive que havia chegado ao ladrão que poderia ser o superassassino do famoso caso dos Jardins. Foi uma decepção. João, inofensivo, tinha álibis perfeitos. Não poderia ter sido ele, de jeito nenhum, pois estava fora da cidade desde os dias que antecederam o crime. Capítulo 3: Investigando com a Máquina do Tempo Antes de acionar novamente a máquina, vamos recapitular, juntos, essa história: — até aqui, a Polícia só sabe o que não aconteceu, e nada do que aconteceu: — só você e eu sabemos como foi a cena do crime, porque temos o privilégio de ter visto o que essa máquina do tempo, que ninguém no mundo ainda conhece, nos revelou em detalhes. Agora estamos juntos, pensando, outra vez, E acho que pensamos igual: se nada mais se descobriu, vamos recorrer à máquina. Quem sabe ela nos forneça mais alguma dica importante. Se a gente juntar os fatos conhecidos com as descobertas da máquina, que reconstitui cenas passadas em local, dia e hora determinados, poderemos decifrar o mistério da morte dos Bouchabki. Enquanto não chega a hora de jogar todos os dados nesse invento, vamos ver o que mais a gente sabe sobre o caso, para tentar sacar o que ninguém ainda sacou: • As empregadas insistem em di2er que não ouviram nenhum barulho diferente; • A cachorra não latiu nenhuma vez, embora até os passarinhos do vizinho tivessem feito um barulhão. (Ah! Custou, mas o delegado Sampaio se tocou: vai mandar a cachorra ser submetida a alguns exames para que se descubra se ela foi dopada, se lhe aplicaram alguma injeção, enfim, se fizeram alguma coisa com Diana para não haver reação nenhuma); • Jorginho telefonou para a casa de Flávia Soares, dizendo que não iria dormir na casa dela, conforme pretendia, porque seu pai havia recebido uma visita meio fora de hora (o rapaz telefonou para a namorada lá pela meia-noite); • O mesmo Jorginho conta que sua mãe foi dormir antes que todo o mundo. O pai, diz ele, ficou assistindo televisão na sala, até adormeceu na poltrona. Jorginho diz que acordou Jorge, que então subiu para seus aposentos; • Jorginho diz que ficou jogando vídeo-game com seu irmão Marcelo, que se cansou e foi dormir, depois das duas horas da madrugada. Sozinho, Jorge Delmanto Bouchabki diz que ficou assistindo a um filme do Gordo e Magro, pela tevê e depois foi para a cama. Quando passou pelo quarto dos pais, deu boa-noite. Lá dentro, ouviu a resposta: ""boa noite". Mas não se lembra se a voz era do pai ou da mãe. Ele deitou-se tarde, era umas quatro horas, levantou-se cedo, às sete estava na casa de Flávia Soares e... bem. o resto já sabemos. Agora chegou a hora. Vamos consultar a máquina de novo. Que coisa maravilhosa, a gente saber o que ninguém sabe! Mas, ao mesmo tempo, é angustiante. Não dá vontade de sair gritando por aí? Bem, vamos nos controlar. Meu tio que é advogado, ouviu dizer que houve uma reunião importante no dia 10 de janeiro de 1989. no escritório do advogado José Carlos Dias, bem no centro da cidade, reunindo gente que está interessada diretamente no caso dos Bouchabki. A reunião foi à tarde, não sei a que horas: vou chutar na programação, mas deve dar certo, tenho certeza de que vai dar certo. Pronto, assinalei a data, o horário — um pouco depois das 14 horas — e o lugar — aquele prédio enorme, na avenida Ipiranga, que tem um restaurante lá em cima, com vista panorâmica da cidade. Não pode dar furo. Veja, a cena está começando a aparecer na tela. Não te disse? Também, sabendo o nome da avenida, o número do andar e ainda o número do conjunto onde fica o escritório! A máquina do tempo é fantástica, tá certo, mas a gente também precisa ajudar... Olha lá! Estão em torno de uma mesa o advogado José Carlos Dias. um de seus assistentes e... quem é aquele cara?... Ainda não o tinha visto antes... Ah, já sei, é o tio de Jorginho, o advogado Roberto Delmanto. É evidente que eles estão esperando mais alguém, e que essa reunião é muito importante. Espere, a porta da recepção está se abrindo e..., chegou quem estava faltando. Ué, é o delegado Veloso Sampaio! Estão todos sentados. Tomam um cafezinho... José Carlos Dias começa a conversa, dá para perceber que é uma espécie de apresentação formal. Essa máquina só falta falar, quer dizer, permitir que a gente ouça os diálogos. Que coisa, é tão importante o que eles estão conversando, claro que é assunto superimportante, mas não podemos saber do que se trata. Droga! Bem, José Carlos Dias fala, Roberto Delmanto também e todos ficam olhando para o delegado Sampaio, Que também começa a falar. Gesticula um pouco. Balança negativamente a cabeça. Puxa, se a gente pudesse saber do que eles estão falando... O tio de Jorginho parece que não gostou do que Sampaio acaba de dizer. É isso mesmo, o advogado Roberto Delmanto parece irritado. Sampaio permanece impassível e o advogado José Carlos Dias procura acalmar Delmanto. O delegado Sampaio se levanta. Vai embora. Cumprimenta José Carlos Dias, hesita com relação a Delmanto e sai. Dias e Delmanto ficam sussurrando. Alguma coisa importante aconteceu aqui. É óbvio que essa reunião aconteceu na moita. Tomaram todos os cuidados, Mas teve uma outra reunião na moita, quatro dias depois, desta vez num prédio no bairro da Liberdade, onde os promotores costumam se encontrar. Vamos programar a máquina de novo: 14 de janeiro de 1980. Mesmo horário, começo da tarde... Ué, quem está ali? É o promotor destacado para investigar o caso. Então, o delegado Sampaio deve aparecer também.,. é, mas não aparece... E chega aquele senhor, já vi esse homem em algum lugar... é isso mesmo, um especialista em antiguidades. Mas bem mais importante do que isso é o fato dele ser... dele ser... É claro que o vi antes! Esse homem é o pai de Flávia Soares, a namorada de Jorginho... não há dúvida nenhuma... Ele vai falar escondido alguma coisa... tem alguma coisa que ele só quer contar aqui, longe da Polícia, veja só... Esse promotor não é nada bobo. hein? Faz aquela cara de trouxa, com seu guarda-chuva (por que ele não larga o guarda-chuva? Será que pensa que todo dia vai chover?)... Mais dois promotores estão ali dentro... O homem fala... e fala... está nervoso... Faz não com a cabeça, agita as mãos como se estivesse querendo negar alguma coisa, começa a falar, deve ser depoimento, porque tem alguém datilografando... A pessoa bate à máquina... bate e bate... mas não é muita coisa... O pai de Flávia sai de fininho, como se também não quisesse ser visto por ninguém... Bolas, descobrimos um monte de coisas novas e ao mesmo tempo não descobrimos nada, porque sabemos quem se reuniu e onde, mas não sabemos o que conversaram. E agora? Agora é hora de trocar figurinhas. Eu conheço um repórter que é superbem-informado, desses caras que sabem tirar leite de pedra. Acho que posso contar o que descobri para ele, que se encarrega de acrescentar o resto: tenho certeza de que conseguiremos completar essa história. Não há tempo a perder. Meu tio costuma dizer que um desses caras que andam pelos corredores do Fórum vive repetindo que o tempo que passa é a verdade que foge. Esse negócio está enrolado demais. Não sei o que vou dizer para o repórter quando ele me perguntar como é que fiquei sabendo das duas reuniões. Se eu falar que inventei essa máquina do tempo, o repórter vai achar que fiquei completamente pirado. Aliás, esse caso já está pirando muita gente. Ah, já sei — o repórter vai sair de férias, sei até que só não saiu, ainda, justamente por causa da morte dos Bouchabki. Ele não quer largar o caso no meio, já trabalhou Natal e Ano-Novo direto. Com essa informação nas mãos, ele pode chegar longe, bem longe... Não vai ser fácil falar com esse cara... não pára em lugar nenhum. Mas ele deve andar sempre de bip. Vou deixar recado pra ele na central de bip: "Tenho informações exclusivas sobre o caso dos Bouchabki". Ele vai ligar, tenho certeza de que vai ligar. Enquanto isso, vamos recapitular o que os jornais tem publicado sobre a morte dos Bouchabki: Diário Paulista — três repórteres em cima do caso Dizem que Jorginho tinha uma dívida em casa de fliperama nos Jardins. Ridículo, convenhamos. Contam que Jorginho foi visto tomando banho de sol num clube elegante logo após a morte dos pais. Estranho, admitamos. Revelam que uma prima da família, Maria da Penha Zgaib passou vários dias com a família Bouchabki e, na antevéspera do crime, viajou para sua terra natal, outro Estado, sem nada informar sobre sua chegada ao seu destino. Os Bouchabki foram levá-la de carro até a rodoviária. Irrelevante, tenhamos bom senso. Descobrem que Jorginho não passou no exame vestibular, e que havia mentido para a família. Isto o jornal não conta. Jorginho alardeou ter tirado nota 67, recebeu cumprimentos pelo fato, mas, na manhã do dia 24 de dezembro, quando seus pais já estavam mortos, saiu publicada a lista dos aprovados no vestibular e seu nome não fazia parte dessa relação. Intrigante, sem dúvida. Correio Vespertino — Esse jornal, com sede na alameda Barão de Limeira, tem uma linha editorial irônica e provocativa. Gosta de abordar certos assuntos em tom de deboche, e, num país onde muita coisa é tratada exatamente com esse espírito, faz sucesso numa boa fatia do mercado editorial. O jornal aproveitou o clima de uma novela de mistério na tevê, que tem um assassinato como cena final, e fez uma matéria convidando o leitor a escolher o seu suspeito. Tudo irreverente, engraçado, mas o repórter Simas preocupava-se mais em criticar — incrível, escreveu isso numa reportagem! — um colega seu, do Diário da Tarde, que conseguia informações em primeira mão. Aliás, esse repórter do Diário é o mesmo com quem vou trocar figurinhas sobre aquelas duas reuniões secretas que vimos na máquina do tempo. Os Meios de Comunicação — É o nome de uma revista especializada. Só fala da própria imprensa. E cai de pau em cima de quem colocou Jorginho como suspeito, argumentando que ninguém pode fazer isso antes que a Justiça se pronuncie sobre o caso. A discussão ética agita jornais, rádios e tevês, e por algum tempo até parece que Jorginho foi fabricado como suspeito. É claro que a defesa de Jorginho vai juntar essa revista ao processo. Se houver julgamento... Finalmente! O repórter que chamei pelo bip atendeu ao meu chamado... Ouve atenciosamente o meu relato. Diz que vai se pôr a campo imediatamente e dará um retorno amanhã mesmo. O tempo passa velozmente. Não é que o repórter tem boas fontes, mesmo? Ele diz que ainda vai demorar alguns dias a publicar essa informação, mas não deixará de fazêlo, e que precisa de tempo e de cautela, porque não é foca (novato, principiante, como dizem os jornalistas na sua gíria particular) e esses assuntos precisam ser administrados com discrição... Concordo com ele, é isso mesmo. Vamos ver o que o meu amigo repórter descobriu (sei lã através de quem, mas fonte é fonte, e em certas coisas é bom a gente não meter muito o nariz... ): A reunião do prédio de muitos andares: o tio de Jorginho, o advogado Roberto Delmanto, fala para o delegado Veloso Sampaio que a morte do casal Bouchabki está obviamente relacionada a uma vingança. Se não foi o ladrão João Gonçalves, tem que ser. só pode ser, os irmãos que possuem a Construtora Sahade, que ergue apartamentos de luxo num ponto dos mais bonitos do litoral paulista. Delmanto fala como se fosse um professor, mas é evidente que Sampaio não está disposto a ouvir suas palavras como um aplicado discípulo. Pelo contrário: diz que as investigações até aqui realizadas não apontam nem para ladrão nem para dono de construtora nenhuma. É certo que João Gonçalves entrou na casa em abril de 1987, explica, mas é comprovadamente um ladrão do tipo pé-de-chinelo, sem astúcia para praticar um crime desses. Se foi preso da outra vez pelo vigia da rua, que desastrado!, não teria inteligência para voltar ao cenário do crime sem deixar vestígios. Além disso, ladrão entra numa casa para roubar, e não para matar. Até pode matar, se houver uma reação, se for surpreendido — mas além de tudo os peritos já haviam detalhado que os tiros de revólver calibre 32 desferidos contra os Bouchabki haviam sido disparados a uma distância muito curta Do nariz de Jorge Bouchabki ao cano da arma, havia no máximo oito centímetros. A cabeça de Maria Cecília também foi alvejada à queima-roupa. Não há como encaixar João nas duas mortes. Quanto aos irmãos donos da Construtora Sahade, é verdade, sim, que houve uma discussão entre eles e Jorge Bouchabki por causa da compra de um apartamento. Sabe como é, um financiamento, o congelamento fracassado do plano econômico chamado cruzado, os reajustes que pretendiam ficar fora da tabela, alguns diálogos ásperos e nada mais do que isso. A Polícia investigou no litoral e concluiu; houve atritos entre Jorge Bouchabki e eles. Mas ninguém que discute por causa de preço de apartamento vai entrar pela madrugada na casa do desafeto para resolver a tiros a pendência que se transformou naquilo que os advogados chamam de demanda judicial. A briga foi parar na Justiça. Quem ganhar, leva. O delegado Sampaio disse tudo isso, e mais: "para mim, o criminoso está dentro da própria casa". E acrescentou: "as investigações feitas até aqui conduzem exclusivamente para este caminho". O advogado Roberto Delmanto não gostou nem um pouco do que ouviu. E disse: "não vou permitir uma tragédia dentro de outra tragédia". A reunião acabou assim. Asperamente. A reunião dos promotores com o pai de Flávia Soares: o homem chegou agitado, de fato. Não queria ser surpreendido por repórter nenhum ("esses abelhudos não dão sossego para a gente") e se convenceu de que um encontro longe da Polícia facilitaria a exposição de suas convicções pessoais. Também não estava a fim de assinar depoimento com conteúdo bombástico, mas fazia questão de dar a sua opinião. Como ficaria o dito pelo não dito, sua opinião — acreditava ele — serviria para orientar, ou quem sabe ajudar, o promotor que acompanhava as investigações, passo a passo. O pai de Flávia Soares tinha duas coisas a dizer. Uma sobre a discussão entre sua filha e Jorginho, após a morte dos Bouchabki. Durante a discussão, o rapaz teria dito, agitado, simplesmente: "vê se não me enche o saco". E numa alusão aparentemente clara aos próprios pais, teria acrescentado: "os dois que mais me enchiam o saco não estão mais aqui". A moça comentou o fato com a mãe, a mãe com o marido, e agora ele estava ali revelando o diálogo em reunião secreta. Por fim. o pai da moça deu sua opinião, que pode ser considerada subjetiva, e que se resume na convicção de que Jorginho, realmente, poderia ter matado os pais. Assinar o que disse? Nem pensar. Fiquemos na superfície, mesmo em se tratando de um duplo assassinato. Não me comprometam. A essa altura, estava declarada uma guerra pouco sutil entre a família de Jorginho e o delegado Veloso Sampaio, sucessivamente premiado com uma coleção de adjetivos pouco lisonjeiros: incompetente, preconceituoso, construtor de farsa, inquisidor sensacionalista e assim por diante. Enquanto isso, o inquérito policial para apurar a morte dos Bouchabki engordava em número de páginas, e através delas o delegado Sampaio, sempre acompanhado pelo promotor, entendia que um sem-número de contradições de Jorginho o transformava no suspeito número 1 do caso. Mais de cem depoimentos — 137, redondos — firmavam sua convicção nesse sentido. A briga chegou ao auge quando o delegado Sampaio se lembrou do detalhe do jovem que tinha visto, no mesmo 24 de dezembro, com a chave do quarto dos Bouchabki, chave apreendida na mesma hora. O delegado não lembrava quem era o jovem, para poder acusá-lo formalmente, mas tinha quase certeza de que se tratava de Jorginho. Além disso, o delegado afirmava que o advogado José Carlos Dias estava ao seu lado (não desgrudava!) naquele momento, e poderia confirmar o fato. Dias foi intimado a prestar depoimento, como testemunha, mas logo pulou fora, furioso. Invocando o sigilo profissional, direito de qualquer advogado, recorreu judicialmente contra a pretensão de Sampaio, que queria pôr no papel a informação de que ele, Dias, teria presenciado a cena. Para investigar tudo isso, um crime envolvendo gente importante e família influente, o delegado Sampaio dispunha de uma delegacia de modestas instalações: duas salas, uma delas com cortinas amarelecidas por poeira, móveis velhos, lâmpadas queimadas no teto — enfim, um ambiente de precariedade que não condizia em momento algum com a importância social do caso Bouchabki. Mas era nessa sala que Sampaio tomava depoimentos, reunia-se com o promotor, fazia as suas anotações, avançava, recuava, estudava e ensaiava movimentos. Foi nesse clima que Sampaio desconfiou: nem as revelações dos legistas, feitas após a exumação dos corpos dos Bouchabki, seriam suficientes para dirimir dúvidas. Era preciso avançar muito mais. E, fato raro, partiu-se para uma segunda exumação, desta vez com a participação de legistas de uma outra cidade, Campinas, de um outro Instituto Médico Legal, homens que haviam ficado famosos depois que se descobriu a ossada de Joseph Mengele, o carrasco nazista conhecido como Anjo da Morte por causa de suas experiências macabras em campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Mengele foi oficialmente identificado por esses homens. Os legistas do Instituto Médico Legal de São Paulo ficaram furiosos. O diretor até pediu demissão, achando que pedir ajuda de outros médicos significava uma desmoralização para os de seu instituto. Aliás, o segundo laudo necroscópico, feito após a primeira exumação, acrescentou inúmeras informações novas, numa grande riqueza de detalhes que não constavam do 1° laudo. Uma das grandes revelações desse segundo laudo foi, por exemplo, que Jorge Bouchabki levou dois tiros, e Maria Cecília um: o contrário do que constava no laudo anterior. Por isso, os médicos de São Paulo estavam irritados com a divulgação das gritantes falhas cometidas. Com um inacreditável espírito de corpo, procuravam defender o indefensável, investiam contra a imprensa e evidenciavam que se sentiam irreversivelmente ofendidos. Enquanto isso, após a segunda exumação, os novos legistas tiveram o cuidado de deixar claro que tudo o que estava ainda envolto em mistério se encontrava nas cabeças de Maria Cecília e seu marido Jorge. Só nessa região dos corpos é que havia tiros. Não se encontraram ferimentos em qualquer outra parte dos corpos. As caixas cranianas do casal foram cuidadosamente seccionadas, colocadas em sacos plásticos e levadas de automóvel para exames complementares em laboratórios sofisticados, testes com informações computadorizadas — enfim, tudo se faria para dar ao caso da morte dos Bouchabki uma investigação científica em padrões inéditos. Como deveria ter sido desde o começo. O delegado Sampaio, enquanto isso, ia ficando isolado, cada vez mais isolado. Familiares de Jorginho furiosos, legistas do IML extremamente irritados, colegas da Delegacia de Homicídios intrigados com o comportamento da nova estrela da Polícia. Sampaio sabia estar vivendo dias de glória, porque tinha nas mãos o caso mais importante dos últimos anos. Mas sabia também que, se não conseguisse caminhar no rumo certo, sua estrela despencaria. E tão rapidamente quanto subiu. Foi então que desabafou: "se este caso não tivesse acontecido nos Jardins, mas num bairro da zona leste, já estaria esclarecido há muito tempo". Em outras palavras: se os personagens do caso Bouchabki fossem pobres, o assassino já teria sido descoberto. Com gente humilde não existe esse negócio de advogado para cá, advogado para lá, contradições ou incoerências. Os pobres precisam abrir a boca rapidamente. E abrem. Mas não adiantava mais filosofar. O tempo corria, sempre implacável. E a verdade escapava, aos poucos. O delegado Veloso Sampaio pensou; “acho que estão querendo me fazer de bobo". E determinou algumas investigações com alvos definidos. A primeira foi uma busca, daquelas bem minuciosas, da arma do crime. Primeiro, dentro da própria casa dos Bouchabki. Bouchabki possuía uma arma em casa, um revólver calibre 32, justamente o tipo de arma usada para matá-lo. Se essa arma estivesse escondida em algum lugar, seria ótimo para o delegado Sampaio, porque ele poderia mandar fazer imediatamente um confronto balístico. Esse exame — raias da arma de fogo comparadas com projéteis extraídos dos corpos — serviria para determinar se a arma do crime havia sido aquela. E como se procurou essa arma! A casa dos Bouchabki foi revirada, de alto a baixo. Forros, armários, gavetas, quintal, tudo foi vasculhado. Para isso foram convocados alguns policiais cuja especialidade é exatamente esta: achar agulha em palheiro. Acabaram se convencendo de que dentro da casa, seguramente, a arma não estava. Alguém pensou na possibilidade de o assassino, ao retirar-se, ter jogado o revólver do crime num bueiro. Bem pensado! E lá se foi uma investigadora da Delegacia de Homicídios, a Ana Maria, acompanhada por uma guarnição de bombeiros, tapando e destapando bueiros num imenso quadrado de ruas em torno daquela em que os Bouchabki foram mortos. Um desses bueiros fica bem em frente à casa de Flávia Soares, a namorada de Jorginho, que mais uma vez se irritou com aquela busca. Estão pensando o quê? Mas bombeiros e policiais da equipe A da Delegacia de Homicídios pouco se importaram com os telefonemas defensivos, seguidos de telefonemas para o delegado Sampaio, todos querendo saber o que estava acontecendo e o que se estava procurando. A original busca possibilitou o encontro de muitas baratas, minhocas, dois ratos e um monte de sujeira típica de bueiros. Mas quanto à arma, nada. Por fim, descobriu-se que um primo de Jorginho esteve internado, com nome trocado, numa clínica do interior, para tratamento de drogados, e ali teria feito comentários sobre uma tentativa de negociar a incômoda arma, Investigações foram feitas, sem resultados. Capítulo 4: O Filho Mais Velho É lógico que a esta altura você deve estar com muita vontade de saber quem é Jorginho, por que estão desconfiados dele, o que o rapaz disse quando prestou o seu primeiro depoimento e, afinal de contas, o que havia entre o filho mais velho e seus pais. É a vez e a hora de pisar em terreno delicado, quase movediço. É preciso saber que passos serão dados, quais são os seus limites, porque este assunto é como pólvora, e por causa dele muita gente já se queimou. 0 primeiro chamuscado foi o perito Dilson, acusado de falar o que não devia, levado a depor pelo próprio delegado Sampaio, tendo que responder a uma sindicância e, ainda por cima, sendo alijado, com desdém, das investigações. O segundo foi um jornalista de um vespertino da cidade que resolveu fazer uma novela, estilo folhetim, em cima da morte dos Bouchabki. O jornal acabou anunciando o fim do mistério, como se fosse o maior furo do ano — e seria, mesmo —, mas entre o prometido e o conteúdo de uma página sobrava apenas um vigoroso e duvidoso exercício de ficção. Foi tamanha a confusão, que o escriba, constrangido, demitiu-se do jornal. O terceiro chamuscado acabou sendo o delegado Sampaio. Um dos principais jornais do país publicou uma reportagem sobre o crime, atribuindo ao policial uma grave denúncia: seu superior hierárquico, nada mais nada menos do que o diretor da Delegacia de Homicídios, teria sido procurado por um advogado da família de Jorginho, e recebido uma generosa oferta em dinheiro para que Sampaio fosse afastado do inquérito e, conseqüentemente, Jorginho não fosse indiciado — isto é, apontado e acusado formalmente como autor da morte dos próprios pais. A denúncia repercutiu. Sampaio afirmou não ter dito nada daquilo, e o mal-estar invadiu a Delegacia de Homicídios, onde o delegado passou a ficar mais é mais isolado. Seus colegas chegaram a fazer uma declaração de apoio ao diretor da Delegacia, deixando implícito, com isso, que não concordavam com o jeito de Sampaio trabalhar. Os jornalistas corriam, competiam e assistiam a tudo isso, pressionados pelos editores e pelo público, todos ávidos de saber cada vez mais sobre o caso dos Bouchabki. Jorginho foi depor, dias após o crime, com ares de quem não estava muito preocupado. Cabelo curto na altura das orelhas, e cheio em cima, ele contou a sua história, que já registramos atrás, sempre evitando olhar o delegado Sampaio de frente. Nada de olho no olho. Cabisbaixo, mexia sem parar um anel entre os dedos das mãos. Ainda não havia como justificar seu comportamento um pouco estranho, mas a Polícia costuma enumerar contradições e eventuais mentiras para, aí então, fazer um interrogatório para valer. O delegado Sampaio preparou-se como nunca para esse grande momento. Começou a armazenar depoimentos como quem coleciona pepitas de ouro. Foram informações juntadas aos poucos. Os policiais militares que atenderam ao chamado de Jorginho na tarde do dia 24 de dezembro, naquele lugar do acidente de trânsito, informaram que o filho mais velho dos Bouchabki os procurou dizendo que havia acabado de chegar de viagem, que seus pais eram bastante idosos e que não saíam do quarto, e ele considerava isso estranho. Daí estar pedindo ajuda da Polícia. Um dos motoristas envolvidos na batida de carro, um engenheiro, perguntou por que Jorginho não forçava a porta para ver o que havia acontecido com os pais. Não seria exatamente o que qualquer filho faria nessa situação? O irmão menor de Jorginho ia tomar essa iniciativa, como já vimos, mas foi desaconselhado e atemorizado com a hipótese de um ladrão ainda encontrar-se no interior do quarto. Alguns dias antes da morte dos Bouchabki, uma cliente de Jorge Toufic foi ao seu escritório, numa rua bem no centro velho da cidade, e lá permaneceu cerca de meia hora. Nesse espaço de tempo, Maria Cecília telefonou quatro vezes para o marido, reclamando do comportamento de Jorginho. A tal ponto que. da última vez, Jorge Toufic explodiu, emocionalmente; gritou: "esse moleque, só matando, não tem jeito". Depois, pediu desculpas à sua cliente, que prestou depoimento contando mais essa história, onde ficava claro que algo não ia bem — pelo contrário — entre Jorginho e os pais. Houve também a reunião de família, num apartamento do litoral, quando Jorginho não só insultou o pai, com palavrões, como ainda arremessou contra ele uma prancha de surf. Uma empregada contou essa agressão, que o advogado Jorge Toufic revelou, mas que o deixou emocionalmente machucado. Na madrugada em que os Bouchabki foram mortos, Jorginho disse ter ficado assistindo ao filme do Gordo e Magro pelo canal 13. Por ofício, a emissora de tevê informou que não passou esse filme naquela madrugada, mesmo porque o horário de projeção do Gordo e Magro era matinal. Quando soube disso, o delegado Sampaio convenceu-se de que, além de Jorginho, pelo menos uma das empregadas mentia. E mentia, segundo deixou escapar numa inconfidência, diria o delegado Sampaio, orientada pelo patrãozinho Jorginho. O delegado Sampaio arrependeu-se amargamente de não ter tomado um depoimento de Jorginho dias após o crime, quando foi à casa investigar mais alguns detalhes, ao perceber — pouco a pouco — que uma grande farsa havia sido montada no quarto dos Bouchabki. É que Jorginho, perguntado a respeito da chave que abria o quarto dos pais (o delegado diz saber disso, embora tal informação não conste como depoimento dentro do inquérito), viu-se em situação difícil diante do policial. Afinal, se ele tinha a chave, por que sair à rua chamando a Polícia para abrir a porta? Pressionado pelo delegado, Jorginho disse que a chave havia sido entregue a ele por uma das empregadas, a Olinda Oliveira da Silva. Sampaio mandou chamar Olinda na hora e, diante de Jorginho, ela desmentiu. "Eu me enganei", procurou consertar o rapaz, atribuindo agora a entrega da chave à segunda empregada, Maria Lima Bezerra. O delegado Sampaio mandou buscar Maria, que igualmente desmentiu tal fato, frente a frente com Jorginho. A entrega da chave, na terceira versão consecutiva, foi atribuída à sua tia Imaculada Conceição Delmanto, a Peggy. A mulher também desmentiu o sobrinho. Certo de que tudo isso era muita conversa para boi dormir, o delegado disse que iria ouvir Jorginho em novo depoimento, na Polícia. Mas seu tio, o advogado Roberto Delmanto, não permitiu: disse que Jorginho ainda estava muito abalado: que o delegado não havia feito a intimação com antecedência; que essas coisas não podem ser feitas assim de repente... Sem poder investir de imediato contra Jorginho, o delegado quis apanhar a empregada Maria Lima Bezerra, submetendo-a a um depoimento no detetor de mentiras. Este é uma máquina usada pela Polícia que não aponta propriamente quem está mentindo, mas mede as suas pulsações, registradas num gráfico, principalmente quando se está reagindo diante de determinadas perguntas. Tais oscilações permitem que o interrogador saiba quando o interrogado está nervoso ou agitado diante de determinada questão. Em suma, a máquina aponta embaraços e hesitações em momentos certos, o que leva o interrogador. se for hábil, a complementar perguntas em busca da verdade. Por lei, uma pessoa só é submetida ao detetor, que tem o nome técnico de "polígrafo", se quiser. Quando Maria estava para enfrentar o detetor, surgiu seu advogado, impedindo que se fizesse isso. (Esclareça-se que na época a empregada, que cozinhava para os Bouchabki, ganhava 40 cruzados novos por mês. Seu advogado era nada mais nada menos do que o diretor de uma entidade que congrega advogados, quer dizer, alguém de caros honorários, acima, muito acima dos padrões de Maria.) Aos poucos, como se vê, foi construído um muro de proteção em torno de Jorginho. Quando esse tipo de coisa acontece durante a investigação de um assassinato, é normal que fatos aparentemente banais, sem importância, venham à tona. Além do depoimento da cliente de Jorge Toufic Bouchabki (a mãe dizendo para o pai, ao telefone, que Jorginho estava insuportável) e da empregada contando como o filho mais velho jogou uma prancha de surf sobre o pai, outros detalhes surgiram. Entre eles. um fato de certo modo constrangedor, que foi Maria Cecília ter surpreendido, dentro de sua própria casa, o filho Jorginho fazendo amor com a namorada de 16 anos. Maria Cecília não gostou de vê-los na cama, recriminou os dois, fez o maior sermão e ainda passou alguns dias cobrando da família Soares uma orientação mais severa para a filha de 16 anos e seus hábitos, segundo Maria Cecília, excessivamente liberais. Conflitos de gerações. A partir daí, aconteceu uma inevitável comparação. Para os padrões machistas latino-americanos, havia diferenças com as quais Jorginho não se conformava: afinal, ele, homem, 18 anos, tinha uma mesada que considerava "miserável": precisava voltar para casa todo dia às onze da noite, no máximo; não tinha carro próprio; era obrigado a estudar com afinco, e muito de sua vida futura dependia do resultado do vestibular daquele ano, ainda mais ao se considerar que ele não havia conseguido passar no ano anterior, e já ficara o ano de 1988 inteiro estudando num curso preparatório para a faculdade. Flávia, a namorada, tinha um perfil exatamente inverso: mesmo sendo menor de idade. 16 anos, dirigia e tinha carro; ninguém da família ficava na marcação por causa dos seus estudos; dinheiro havia suficiente para suas despesas pessoais, grana em limites bem acima dos de Jorginho; flagrada em intimidades com o namorado, a cena não chocou a seus pais tanto como parece ter abalado a mãe de Jorginho. Por tudo isso, como o rapaz havia dito ter passado no vestibular, e até recebera cumprimento por isso, a manhã daquele dia 24 de dezembro ia ser muito difícil para ele: os pais, familiares e amigos saberiam que ele não havia passado no vestibular coisa nenhuma; que mais uma vez levara bomba e, sem dúvida, a sua barra pessoal para o ano de 1989 iria complicar-se razoavelmente. Claro, não é por causa disso que se vai provar que alguém matou alguém, ainda mais os próprios pais; mas sem dúvida Jorginho atravessava uma fase muito difícil. O quebra-cabeças do delegado Veloso Sampaio já tinha algumas das peças principais: nenhum estranho havia entrado na casa: o local do crime fora adulterado; ninguém de fora entrou no quarto dos Bouchabki para mexer nos corpos; Jorginho saiu de casa, naquela manhã, já sabendo que os pais estavam mortos: Jorginho tinha a chave que abria a porta do quarto dos pais; Jorginho deitou-se às três da madrugada, como diz, e levantou-se às seis e meia. sem despertador, o que nunca acontecera antes; Flávia Soares, a namorada, estranhou a sua atitude quando ele chegou à sua casa, logo às sete horas; Jorginho deu sucessivos telefonemas para casa, repetindo recomendações para as empregadas com relação a assuntos sobre uma rotina que elas conheciam perfeitamente: Jorginho chegou à casa de Flávia Soares notoriamente aflito; aconselhado a dormir um pouco para acalmar-se, disse ter medo de pesadelos: antes de sair de casa, Jorginho deixou um bilhete aos pais, dizendo que voltaria no final da tarde, mas voltou ao meio-dia e sumiu com o bilhete, que as empregadas já haviam visto; Jorginho mentiu para os policiais que encontrou na rua e para o próprio irmão menor, para quem a Polícia é que o havia proibido de entrar no quarto; a arma do crime foi um revólver calibre 32, tipo de arma que Jorge Toufic Bouchabki tinha em casa e que sumiu; em data que não soube precisar, mas que seria dois meses antes do crime, o vigia Fidelcino Albino da Silva, que trabalhava na rua onde moravam os Bouchabki, teve um revólver calibre 32 furtado de sua casinha de vigia, justamente durante o espaço de tempo em que. a pedido de Jorginho, entrou na casa dos Bouchabki para ajudar a fazer um pequeno conserto. E esse o rol de fatos envoltos em dúvidas, incertezas, incoerências, contradições, mentiras — enfim, o nome que se queira dar para o comportamento de Jorginho, que no mês de janeiro de 1989 já era o principal suspeito do crime, entrava em fevereiro como seu único provável autor, em março pontificava como futuro indiciado no inquérito, em abril era ostensivamente apontado como assassino e em maio seria mesmo indiciado e denunciado à Justiça como autor do crime. A denúncia foi efetuada e, como determina a praxe processual, Jorginho se transformou em réu. Acusação: assassinato dos pais. o casal Jorge e Maria Cecília Bouchabki. Mas não adiantou o delegado Sampaio preparar o bote final, que seria o interrogatório de Jorginho e seu indiciamento. Para o delegado, este ato finai do inquérito, exigindo a presença do acusado, seria uma verdadeira apoteose, ainda mais que no andar onde fica a Delegacia de Homicídios haveria mais fotógrafos e cinegrafistas do que policiais. Um show de luzes e flashes, tudo à espera do grande final. Mas aí aconteceu a grande decepção. Para Sampaio, uma frustração sem limites. Percebendo que ia apanhar, a defesa de Jorginho começou a bater. E a bater firme. Na sala onde deveria ser feito o interrogatório de Jorginho, aguardavam um psiquiatra e um psicólogo, atentos para captar todos os movimentos do indiciado e ajudar o delegado Sampaio a traçar com mais exatidão um perfil do acusado. Mas tudo isso, segundo o advogado José Carlos Dias, não passava de uma farsa, porque o delegado era o culpado, único e grande culpado, de passar para a imprensa informações cuidadosamente escolhidas para apresentar seu cliente como um personagem vulnerável por suas "mentiras", sérios "indícios", graves "contradições". Sampaio fazia isso, segundo Dias, para desestabilizar emocionalmente o seu cliente; comprometendo irreversivelmente a imagem de Jorginho. Um jogo de cartas marcadas atacava José Carlos Dias, no qual o delegado Sampaio, na verdade incapaz de descobrir a autoria do crime, elegeu Jorginho como suspeito, promovendo um verdadeiro estado de terror contra o rapaz e seus familiares. Com esses argumentos, Dias orientou Jorginho a ficar simplesmente mudo no grande final. Só falaria na Justiça. E assim se fez. Culpado? Inocente? Inocente? Culpado? Os penalistas chamam a teia que envolve Jorginho de "circunstâncias indiciárias", o que quer dizer "indícios de autoria de crime", Não existem provas incisivas, diretas — testemunhas, arma do crime, uma prova material obtida e diante da qual Jorginho não pudesse safar-se. A tônica é uma só: o autor do crime só pode ser Jorginho. Os peritos da Unicamp, encarregados do laudo complementar, terminaram o seu trabalho no início de maio de 89. Convocados 50 dias após a morte dos Bouchabki entregaram suas conclusões no mesmo dia em que Jorginho, constrangido, enfrentava um batalhão de fotógrafos e cinegrafistas que disputavam ângulos e posições no prédio da Polícia onde fica a Delegacia de Homicídios. Esse laudo é o que de melhor se poderia fazer em termos periciais. Seu conteúdo terá um peso decisivo para o futuro de Jorginho. As conclusões registradas no laudo destacam alguns pontos principais. O primeiro deles é sobre o interior da casa onde os Bouchabki foram mortos. Os testes de acústica, feitos com um revólver calibre 32, mostraram que durante a reconstituição a cadela Diana não se perturbou. O revólver de teste foi acionado doze vezes, e mesmo com todo esse ruído Diana não latiu. Também foi negativo o resultado do exame toxicológico. Diana não foi dopada. Na vistoria de todas as vias de acesso para o interior da casa, não foram encontrados sinais de violência. Isso quer dizer, admitem os peritos: uma das portas poderia não estar trancada; foi usada uma chave falsa, ou as próprias chaves da casa; as vias de acesso poderiam ter sido abertas por alguém da residência, ou ainda por um objeto similar às chaves. Como se vê, os peritos não podem dizer exatamente como foi: levantam várias hipóteses e excluem algumas possibilidades. Mas rejeitam por completo qualquer idéia de latrocínio. É indispensável que você e eu acompanhemos o que mais os peritos informaram, porque tudo isso será muito importante no momento de Jorginho ser julgado, uma vez que da correta avaliação desse levantamento pericial dependerá o seu futuro: 1) Seria impossível andar no escuro dentro do quarto dos Bouchabki sem esbarrar nos móveis. Isso se a porta estivesse fechada, e ainda que fosse durante o dia. Exceção feita para alguém que conhecesse bem o local ou levasse consigo um instrumento que facilitasse a movimentação. Uma lanterna, talvez? Para andar no quarto, precisaria haver luz ambiente — daí os peritos darem a seguinte garantia: quando foram dados os tiros, havia luz suficiente — direta ou indireta — dentro do quarto. Se não fosse assim, Jorge Toufic e Maria Cecília não teriam sido atingidos sem o desperdício de um único tiro. (Você lembra? O vulto que vimos na tela da máquina do tempo abriu a porta do banheiro do quarto, deixando escoar luz suficiente pela fresta... ) 2) Não existe nenhuma explicação para aquela bala encontrada de pé, no chão do quarto, quase junto à entrada. “Plantaram”, acusa o delegado Veloso Sampaio. (Você lembra que vimos isso acontecer?) Os peritos preferem dizer apenas: "Não encontramos explicações para a presença do projétil". 3) Dentro do quarto dos Bouchabki foram efetuados quatro tiros de revólver, um dos quais na cabeceira da cama. 4) No teste de acústica, dentro da casa, os peritos informam que a intensidade de ruídos, provocada pelos tiros de revólver durante o teste, seria audível no quarto das empregadas, mas isso em condições meteorológicas normais. Quer dizer: chovia muito naquela madrugada, e o barulho da chuva foi forte: portanto, as condições meteorológicas não eram normais, embora seja igualmente impossível precisar o grau de intempérie no exato momento da morte dos Bouchabki. 5) O exame dos projéteis que tiraram a vida dos Bouchabki: — laudo de balística, dizem os peritos — permite afirmar que Jorge e Maria Cecília foram mortos com uma única arma. Os projéteis são todos do mesmo calibre (diâmetro médio de 7,8 mm), com mesmo número de raias (seis, de 1,8 mm de largura). 6) Com base na forma como foram achados os corpos, seus ferimentos, a posição dos móveis e objetos, as manchas de sangue espalhadas, os peritos dizem que tanto Jorge como Maria Cecília foram mortos na cama onde foram encontrados. Não houve transporte ou remoção dos corpos. 7) No entanto, os corpos sofreram mudança de posição. Os peritos dizem que, atingidos pelos tiros, eles ficaram de um jeito, na cama; mas essa posição original não é a mesma na qual foram encontrados horas depois. 8) Os peritos fizeram um exame de sangue, chamado hipóstase, e informaram que os corpos de Jorge e Maria Cecília foram mexidos na cama num intervalo "de duas a três horas" após a morte do casal, sugerindo que o assassino, após o crime, continuou bastante tempo dentro da casa, talvez pensando no que iria fazer e em seguida alterando a posição dos corpos. 9) Segundo os peritos, os corpos dos Bouchabki não estavam cobertos por lençol quando foram atingidos pelos tiros. A cobertura dos corpos foi feita após terem sido colocados na posição final. A cena do crime, que pudemos ver com a ajuda da máquina do tempo, foi confirmada pelos laudos definitivos, quando os peritos informaram que "no couro cabeludo de Maria Cecília foi encontrado um ferimento contuso, de bordas retas, regulares, em forma de Y". Segundo os peritos, "no crânio de Maria Cecília encontrou-se uma fratura extensa em Y, com características de ter sido produzida em vida". Os peritos não conseguiram revelar como foi causado esse ferimento em forma de Y. Mas fica claro que a mulher recebeu um golpe violento, desferido com muita força. Ferimento contuso, no caso, poderia significar a ação de um objeto contra a cabeça de Maria Cecília. Não se pode afirmar com segurança que tenha sido uma coronhada com o próprio revólver, mas essa hipótese é admissível, já que tanto Jorge quanto Maria Cecília foram mortos com as balas de uma mesma arma, e tudo indica que a mulher tenha despertado após a execução do marido. E agora? Veja, você que investiga comigo, como é difícil e intrigante este caso. É isso que o delegado Sampaio quer dizer com "atípico". Perceba: agora que sabemos de tudo isso, não dá mais para a gente tentar descobrir tudo o que aconteceu na base do eu acho, parece que, mas não poderia ser que..., quem sabe. Nós temos as informações — todas! — sobre o que foi possível descobrir durante as investigações; temos a incrível ajuda dessa máquina do tempo, capaz de reconstituir cenas em datas e horários que a gente quiser. No entanto, é frustrante: tanta ciência, tanta tecnologia, e a gente não tem o som dos diálogos, das conversas; a gente vê personagens, percebe que estão conversando, mas só sabemos o que fazem, e nunca o que dizem. É uma falha da máquina. Sempre falta alguma coisa... Nem sei se vale a pena ligar ainda a máquina do tempo, ter essa trabalheira e sofrer essa angústia. Além disso, precisamos das datas e horários para essa programação e... É isso aí! Acabo de ter uma idéia! Está certo, não dá para ouvir o que as pessoas dizem, mas da para a gente saber quem conversou com quem. Ainda não estou habituado a usar a máquina, embora a tenha inventado... E só regular: o código da máquina para reconstituir melhor os encontros é DHPP-A. As letras MP também ajudam bastante. E VDP-5, também. As imagens ficam bem mais nítidas. Vamos reunir o máximo de dados que a gente conseguir; eu vou falar de novo com aquele repórter com quem troquei umas figurinhas; pra ver se há novidades. Antes disso, vamos enumerar alguns fatos que sabemos que aconteceram, mas não sabemos no que deram. 1°) o delegado Sampaio mandou dois tiras andarem dia e noite na rua onde mora o advogado Roberto Delmanto, tio de Jorginho; 2°) o delegado Sampaio foi conversar pessoalmente com um padre, o padre da igreja que Maria Cecília Bouchabki costumava freqüentar; 3°) o delegado Sampaio conversou com um psiquiatra que conhecia todos os Bouchabki; 4°) o promotor do guarda-chuva, Luiz Guimarães Marrey mandou verificar algumas coisas relacionadas com contas bancárias, contas de telefone e até mesmo um inventário, intrigante. O que será? 5°) o advogado José Carlos Dias pediu à Justiça que o delegado Sampaio parasse de fornecer à imprensa, segundo ele de propósito, informações que podem comprometer ã imagem de Jorginho. Também é bom lembrar quais são, até agora, os personagens principais dessa trágica história de Natal: Jorge Bouchabki e Maria Cecília Delmanto Bouchabki, o casal morto; dentro da casa, naquela noite, estavam seus três filhos — Jorge Delmanto Bouchabki, o Jorginho, de 18 anos; Marcelo de 14, e Graziella, de 10, uma menina que tem problemas cardíacos e sempre mereceu carinho e atenção especial dos pais; as empregadas Olinda Oliveira da Silva e Maria Lima Bezerra; a cachorra dálmata, Diana; o tio dos filhos do casal assassinado, advogado Roberto Delmanto, uma espécie de porta-voz da família; Flávia Soares, a namorada de Jorginho; o advogado José Carlos Dias, defensor de Jorginho; e os suspeitos da família, o ladrão João Carlos Gonçalves e os irmãos donos da Construtora Sahade que vende apartamentos no Guarujá — por sinal, indignados com as suspeitas levantadas pelo advogado Dias e pensando em processá-lo. Agora vamos tentar avançar na nossa investigação. Ligo a máquina do tempo, uso os códigos DHPP-A, MP e VDP-5 e vamos ver o que mais dá para saber. O repórter, que já está se tornando meu amigo, me forneceu algumas datas importantes. Vamos programar a máquina para antes e depois dessas datas. Pronto: lá vamos nós, novamente! Primeira programação: março de 1989, começo do mês, dia 8. Vamos anotar as próximas datas a serem programadas: — mês de fevereiro, mês de abril, últimos lances no mês de maio, alguns dias e horários, seguindo sempre aquela mesma ordem de fatos misteriosos... E que essa máquina possa nos ajudar! 1°) A rua onde mora o advogado Roberto Delmanto. Puxa, os tiras conversam com todos os vigias da rua! Quem vê esses caras, assim, na telinha da máquina — que invento, hein? — nem pode imaginar que são tiras. Olha só aquele barbudão. A cara dele parece um ninho de vespas, de tão escura que ê. Ele usa um carro comum... é. tem gente que pensa que Polícia é só carro branco e preto, sirene ligada... Esses caras aí trabalham que nem nos filmes. O próprio vigia da casa do Delmanto também entra na conversa. Os dois falam baixinho e. olha só, o tira barbudo entrega um pedaço de papel para ele, entra no carro e vai embora. Olha só o vigia parado, olhando o pedaço de papel. Que será? 2°) Ao que parece, o padre quer uma conversa discreta. O delegado Sampaio encosta seu carro perto da igreja, entra numa casa ao lado e ficam falando, falando..., mas falando o quê? Sobre quê? 3°) Do mesmo jeito discreto, Sampaio vai bater o seu papo com o psiquiatra. Como gosta de conversar, esse delegado! Como bate pernas! O psiquiatra gesticula, abre os braços, balança negativamente a cabeça, mas de vez em quando também faz um sim. 4°) Engraçado, esse promotor Marrey. Instala-se o maior rebu durante as investigações, acusação daqui, defesa dali, e nesse caminho de farpas e bordoadas ele vai se mexendo discretamente. O homem requisita papéis e vai fazendo a sua coleção particular de documentos. Parece que são importantes: veja só como ele sorri, aparentemente feliz (ele só ri porque pensa que ninguém o está vendo...) com o teor dos documentos obtidos. Discreto, esse Marrey... 5°) Nossa, como ficou bravo o advogado José Carlos Dias! Está até de pescoço duro! Olha só como entra no Fórum a passos rápidos. Pede licença para entrar numa sala, fala com uma mulher bonita... Veja a plaquinha em cima da mesa! A mulher é o juiz, quer dizer, é a juíza que vai começar a cuidar do caso. Eu li nos jornais que ia ser ela. A máquina do tempo não revela som nenhum, mas a gente nem precisa do som para deduzir, pela cara do advogado José Carlos Dias, que ele está ralando, e muito mal, do delegado José Veloso Sampaio. E cá estamos nós de novo com o nosso drama. A máquina serve e não serve. Temos imagens, mas não temos palavras. O repórter meu amigo vai nos ajudar outra vez. Creio que a gente sabe uma parte, ele outra, e assim dá para preencher essa espécie de álbum de figurinhas, um mosaico, um quebra-cabeças, sei lá que nome dar para este caso em que a gente roda, roda, fuça, fuça e não avança muito. Já percebeu que situação? Desconfiar, bem que temos motivo de sobra para desconfiar. Mas ter certeza... Bom, vamos para a última programação desta máquina. O delegado Veloso Sampaio não pode ficar enrolando a vida toda com esse caso, terá que destrinchá-lo para não ficar empacado, sem ir nem para a frente, nem para trás. Deixa eu apertar o teclado de novo: DHPP-A. Vê? Lá está o delegado Sampaio sozinho; já à noite, parece que está acabando o expediente da delegacia... as mesmas luminárias com duas lâmpadas queimadas... as mesmas cortinas rotas e sujas... caramba, um caso desses e uma sala tão ridícula... Espere! Tem uma pessoa com o delegado... Veja! É o repórter nosso amigo... Os dois conversam do mesmo jeito que o delegado estava conversando com o padre, parece que em voz baixa, segredosa... Agora o delegado apaga as luzes, tranca a porta e os dois saem caminhando lentamente pelos longos corredores da Delegacia de Homicídios até chegar ao elevador, onde se despedem. Nosso amigo continua andando... Preste atenção: parece evidente que foi profundo o efeito das palavras do delegado Sampaio sobre ele... Precisamos saber o que é isso! Capítulo 5: Conversas Sigilosas Consegui! Vou conversar pessoalmente com o repórter e saber o que querem dizer aquelas imagens que vimos na máquina do tempo. Curioso, esse repórter. Só anda de terno e gravata. Anda por todos os lugares da Polícia e da Justiça, parece que conhece tudo e todos. Ouve muito, com atenção, e anota pouco. Fala com Sampaio, com Amândio Lopes, com Luiz Guimarães Marrey, troca idéias com todos eles, parece conhecer o caso como o próprio Sampaio. Também anda sempre com uma pasta e — que coisa incrível! — retira da pasta uma cópia xerox com todas as páginas do inquérito! Como será que ele conseguiu isso? "Fontes são fontes, e precisam ser preservadas", di2 ele, deixando claro que posso tirar o cavalinho da chuva porque jamais saberei quais são os seus informantes. Vamos então cruzar o que ele sabe (e parece ser tanta coisa!) com o que a gente assistiu na máquina do tempo: 1°) O delegado Sampaio mandou dois tiras andarem dia e noite na rua onde mora o advogado Roberto Delmanto, tio de Jorginho, porque está seriamente desconfiado de que alguém ajudou o filho mais velho dos Bouchabki a arrumar os corpos sobre a cama. E os tiras falaram com meio mundo da rua onde mora Delmanto, fazendo sempre uma pergunta bem dirigida: na madrugada em que os Bouchabki foram mortos, o advogado Delmanto saiu de casa em algum momento? Por quanto tempo? Em que horário? Mas as respostas obtidas pelos tiras decepcionaram o delegado Sampaio: ninguém, inclusive o próprio vigia da casa do advogado Roberto Delmanto, viu ninguém sair de casa. Em resumo: Delmanto não saiu de casa naquela noite. 2°) O padre da igreja que Maria Cecília freqüentava disse ao delegado Sampaio que não podia prestar depoimento, porque sabia de alguma coisa que na verdade considerava irrelevante e porque a ética do confessionário não permitiria normalmente revelar. Para o padre, Maria Cecília nunca mencionou a existência de fatos graves na família e sempre demonstrou maior preocupação com sua filha menor, Graziella, tão pequena, tão novinha, e já com problemas de coração. Para resolver o problema da filha, Maria Cecília tentava de tudo, inclusive o espiritismo. A conversa foi nesse tom, e nada trouxe que ajudasse o delegado Sampaio, que procurava pensar em tudo que pudesse significar uma boa informação. 3°) O delegado Sampaio conversou com um psiquiatra que conhecia todos os Bouchabki. A mesma coisa: ética médica, sigilo. Mas, pelo que o delegado conseguiu arrancar, não havia nenhum fato evidente que pudesse representar uma previsão da morte dos Bouchabki. Aliás, o psiquiatra contou que o casal levava uma vida normal e usou uma frase para sintetizar isto: "eles eram médios em tudo, até nos sentimentos". E isto: médios em tudo, sem arroubos, metódicos, hábitos regulares, relação conjugal estável. Bobagens todas essas fofocas que acabem surgindo em casos misteriosos: aventuras, traições, amante, encontros clandestinos, a prima que morou uns tempos com a família Bouchabki para estudar em São Paulo.. enfim, fofocas, nada mais que fofocas. 4°) O promotor Guimarães Marrey, com seu eterno guarda-chuva, de fato pediu e recebeu contas de banco, de telefone e informações a respeito de um inventário, Ele descobriu que o advogado morto não era muito bem visto no clã jurídico dos Delmanto. Alguns faziam até uma imagem depreciativa do casamento de Jorge com Maria Cecília: a princesa e o plebeu. De fato, Jorge — um advogado simples, sem nenhuma fama. e mais voltado para causas cíveis — desfrutou por anos o fato de sua mulher ser a filha querida do patriarca da família. Isso lhe valeu até um lugar no escritório do pai de Maria Cecília, onde gravitavam outras pessoas da família. Até a casa onde moravam, e onde acabaram sendo mortos, foi presente do pai da moça. Jorge investiu numa reforma, fazia de conta que não percebia que torciam o nariz à sua volta e foi tocando... Tanto isso é verdade que, logo após a morte do patriarca, Jorge teve que retirar-se do escritório, e abrir o seu — aliás, simples e humilde. Outra descoberta do astuto Marrey é que havia gente entre os Delmanto que sentia até raiva de Jorge, considerando-o um aproveitador, um intruso na família. Não foi por outra razão que mesmo depois de morto Jorge recebeu críticas pesadas de um irmão de Maria Cecília — por sinal, um irmão condenado à morte por sofrer de uma doença incurável. Assuntos e revelações desagradáveis, bastante incômodas, coisas que a família faz de tudo para ocultar, mas coisas que Marrey descobriu, convencido de que. em casos misteriosos, algo aparentemente sem sentido pode ser o fio condutor para decifrar segredos impenetráveis. Antes de esclarecer a tal conversa intrigante entre o delegado e o nosso amigo repórter, uma curiosidade: hoje à tarde, alunos do primeiro ano de uma faculdade que dá curso para tradutores e intérpretes receberam uma prova — traduzir para o português um texto em inglês. Mas em vez de pegar um texto de livro qualquer, a professora, também ligada na morte dos Bouchabki, usou o crime do casal para formular a questão: "After a long time of investigation, police couldn't prove anything, but they suspect of Jorginho Bouchabki, the oldest son, because he told a lot of lies and he said things that didn't make sense. For the police, he's the person who killed Jorge Bouchabki and Maria Cecília Bouchabki, his own parents, on the Christmas' eve". (Vamos aproveitar para verificar se você tem condições de tirar um tremendo dez nessa prova: Depois de muito tempo de investigação, a polícia não pôde provar nada. mas suspeita de Jorginho Bouchabki, o filho mais velho, porque ele contou um monte de mentiras e disse coisas que não fizeram sentido. Para a polícia, ele é a pessoa que matou Jorge Bouchabki e Maria Cecília Bouchabki, seus próprios pais, na véspera de Natal.) Está vendo só? Todo o mundo ligado no caso dos Bouchabki — pais, filhos, professores, alunos, gente rica, gente pobre, pessoas de todos os tipos e níveis sociais... Não somos apenas você e eu... Mas e a conversa, a sós, do delegado Sampaio com o repórter? Incrível, incrível: como se estivesse fazendo o papel de padre no diálogo com o delegado, o repórter inverteu bruscamente a situação. Colocou o delegado dentro de um confessionário imaginário. Quis saber se o delegado tem condições de incriminar Jorginho dentro da lei. E o delegado surpreendeu o nosso amigo com uma confissão: "Se eu estivesse diante de Deus, e Ele me perguntasse: 'você pode incriminar Jorginho?', eu... eu, diante de Deus, teria que responder não". O repórter tomou um susto. Quantas vezes ele tinha ficado ali, naquela sala e fora dela, de vez em quando com os ouvidos grudados à porta, procurando captar — o que. diga-se de passagem, era possível — frases de testemunhas prestando depoimento sigiloso, trancadas dentro da sala do delegado Sampaio? E, de repente, nessa noite em que se entra num tipo de contagem regressiva; em que o final do inquérito é uma questão de tempo; em que o delegado Sampaio gasta todos os seus cartuchos com intenção de apontar Jorginho como o assassino, eis que o mesmo delegado confessa: se mergulhasse fundo na sua consciência, não poderia acusar o filho mais velho desse crime horrível. Afinal, pondera, se o rapaz for inocente, quem vai retirar o estigma que já está invadindo a sua vida? Basta só Jorginho ser visto em algum lugar, e pronto. Começam logo os cochichos: "olha lã, olha lá o monstrinho que matou os próprios pais! E ainda anda por aí com a maior cara de pau". Se ele for culpado, que pague pelo que fez, não há como perdoar um crime assim hediondo. Mas se for inocente, quem vai reparar os estragos provocados em sua vida? Ao que parece, essas questões assaltaram o delegado Veloso Sampaio nos dias que antecederam o momento de dar o bote final. Se disser que foi Jorginho, tem que provar, é lógico. Tem de ter certeza inclusive de que o promotor Marrey concorda com isso, porque se o promotor não topar fazer a acusação... babau! Adeus, carreira! O delegado foi muito sincero nas suas palavras. Sabe que nessas questões pessoais pode confiar no repórter, que já demonstrou, inúmeras vezes, ser extremamente ético. Mas para quem está a fim de esclarecer o caso de uma vez por todas, a confissão de Sampaio foi uma grande ducha de água fria. Bem, vamos em frente, porque já armazenamos um monte de informações, sacamos ótimos lances, mas ainda estamos correndo o risco de, mesmo tendo tudo isso nas mãos, morrermos afogados na praia. Mas espere: está faltando uma explicação do repórter! É isso mesmo: está faltando saber qual foi o papo entre o advogado entrando de pescoço duro no Fórum e a juíza que vai apreciar o caso. 5°) José Carlos Dias abre a sua pasta, faz um pouco de charme, pede licença, acende o cachimbo e apresenta algumas folhas de papel. É o que os advogados chamam de petição, endereçada ã Meritíssima juíza. E que pretende Dias, por escrito? Em primeiro lugar, ele senta a pua na Polícia e na sua forma de investigar a morte do casal Bouchabki. Em segundo lugar, concentra sua fúria no delegado Veloso Sampaio, que além de ser incompetente etc., estaria fazendo a maior armação contra Jorginho, seu jovem cliente. Não é que, além de tudo, o delegado — acusa o advogado — fica fornecendo cópias de inquérito para a imprensa, que chegou ao cúmulo de publicar uma foto sigilosa do casal morto sobre a cama? É um absurdo, uma desfaçatez, e Sua Excelência, a Meritíssima, precisava dar um jeito nisso. Em resumo: chumbo em cima de Veloso Sampaio. A Meritíssima, que não nasceu ontem, despachou para o delegado Sampaio defender-se. E, por escrito, ele explicou: nada tem a ver com o que a imprensa publica. E quanto ao fato específico daquela foto do casal morto, publicada em jornal, ele abriu uma sindicância — daquelas rigorosas, é verdade, mas é bem verdade, também, que tais sindicâncias são sempre inúteis — para apurar quem foi que passou às mãos de um repórter tão precioso documento. E nada mais se poderia fazer. A juíza deu-se por satisfeita com tais explicações, mesmo porque Sampaio é delegado, e não redator-chefe. O incidente morreu por aí. A esta altura, não posso resistir à tentação de consultara máquina do tempo, agora pela última vez — mas última vez mesmo. É que acabei de ficar sabendo de uma jogada incrível. Claro que vou precisar da ajuda daquele repórter nosso amigo, já que sabemos muito bem que a máquina mágica mostra mas não fala, joga a imagem mas não transmite som. Lá vamos nós, mais uma vez. E vai ser hoje à noite. DHPP-A. MP. Começo de janeiro, uma manhã... Alguns promotores, entre eles Guimarães Marrey, estão esperando numa sala no centro da cidade, aquela sala onde os promotores se reúnem habitualmente, algumas vezes na moita. É evidente que eles estão esperando chegar alguém muito importante. Há uma certa ansiedade no ar. Alguma coisa relevante vai acontecer. Enquanto isso, em outro ponto da cidade, Jorginho, o tio, a tia e mais alguns parentes estão prontos para sair. Parece que foi um encontro marcado, daqueles com hora certa. Todo mundo prontinho para sair em caravana em direção a algum lugar. Uma coincidência, acontecer isso no mesmo dia e hora em que os promotores estão reunidos, lá na cidade. Epa! Será que... Não é possível! Vamos prestar atenção na máquina, muita atenção. Essas imagens podem representar o grande pulo do gato! Os promotores olham com freqüência para o relógio, É evidente que está chegando a hora. Na casa onde Jorginho se reuniu com familiares, alguém chega de repente, com um jornal já aberto nas mãos. É um homem. Exibe o jornal, gesticula, aponta para uma notícia, todo o mundo cochicha, alguém vai para o telefone, disca os números, fala alguma coisa balançando negativamente a cabeça e... Depressa, DHPP-A, MP, de novo DHPP-A, MP, vamos para a sala dos promotores. Não dá para ver a mesma cena simultaneamente, mas um promotor ainda está com a mão direita sobre o telefone. Acabou de desligar. Marrey está lá também! É lógico que existe uma conexão entre essas duas cenas, e precisamos descobrir qual é, não agüento de curiosidade. Este caso vai fazer a gente arrebentar de emoção. Vou ligar para o repórter, urgente, ele deve saber o que isso quer dizer, Não sei se ele já sabe o que aconteceu entre Jorginho e seus familiares, de um lado, e um grupo de promotores, entre eles Marrey, de outro. O repórter, dessa vez, diz que esse tipo de assunto, só conversando pessoalmente. Diz que está farto de indiscrições e inconfidências, ressalta que eu não tenho nada a ver com isso, mas parece evidente que está superaborrecido com alguma coisa relacionada ao caso. Eu até que vou gostar desse encontro, será uma oportunidade de conhecê-lo melhor. Ele escolhe como ponto de encontro um bar perto da Delegacia de Homicídios, um lugar onde — isso eu saberia mais tarde — o delegado Veloso Sampaio gostava de tomar cerveja, à noite, no final do expediente, para aliviar as tensões do dia. Súbita estrela que sobe, Sampaio ia ao balcão, enchia de vez em quando o copo, e caminhava em direção à calçada, num vaivém contínuo, tudo observado com admiração pelos freqüentadores do bar, que contemplavam Sampaio com profunda reverência, como se estivessem vendo o famoso detetive Hercule Poirot materializado ali, na frente de todos eles. Naquele boteco mais para espelunca do que para pub. Percebo que o repórter quer desabafar primeiro, e trocar as figurinhas depois. Tudo bem, mesmo porque quem traz os ases de ouro na manga é ele, não eu. Meu amigo começa a contar: esse caso se transformou numa espécie de maldição, causando uma série de vítimas na imprensa, na Polícia, na família dos Bouchabki, que por sinal reuniu um grupo de amigos para divulgar um manifesto da solidariedade a Jorginho e protestar contra o rumo das investigações. Peritos e legistas se engalfinham, Instituto Médico Legal versus Instituto de Criminalística... Quer dizer, ê preciso ainda mais cuidado ao caminhar por essa briga de foice no escuro. E, pior (aí entra o desabafo tio repórter), esse tipo de clima chegou também ã imprensa. Ele analisa: veja o Diário Paulista. Põe três repórteres no caso, eles entram com ares de mistério todo dia no prédio da Polícia, como se fossem três macaquinhos e..., — Três macaquinhos? — interrompo. — Por que três macaquinhos? — Você nunca viu aqueles três macaquinhos numa estatura, um com as mãos na boca, outro nos ouvidos e o terceiro com as mãos nos olhos? Significando "nada falo", "nada ouço", "nada vejo"? É a esses macaquinhos que me refiro — diz ele, sorrindo pela primeira vez desde que nos encontramos. Meu amigo prossegue: os três chegam à Polícia, ficam sussurrando entre si o tempo todo, escrevem um monte de bobagens e ainda acham que estão dando furos, informações exclusivas, todo dia! É ridículo! Continuo ouvindo: não sei como esse Diário põe gente tão inexperiente nesse caso, mas enfim... — Mas a minha mágoa maior não é essa — diz o repórter. — A minha decepção é que... E em curtas, secas e amargas palavras, conta que foi traído por um companheiro de seu próprio jornal, que sabendo ter ele uma informação da maior importância para o caso dos Bouchabki — o depoimento de uma testemunha revelando fatos importantes relacionados a Jorginho — passou a informação para que seu concorrente, o Diário Paulista, a publicasse em primeira mão, é verdade que sem maiores detalhes, mas antes do meu amigo. Percebendo que ele estava deprimido com esse fato, ainda ponderei que ele poderia estar enganado, que poderia não ter acontecido essa "versão contemporânea de Judas", como ele resumia o episódio. Mas o repórter foi taxativo: "também sei investigar. Armei uma jogada para cima do cara do Diário que publicou a matéria e ele, após uma alisada no ego, caiu que nem um patinho. Depois, esse mesmo personagem, durante minhas férias em meio ao caso, publicou uma frase inverídica sobre a participação de um policial numa assembléia de classe, que teria feito ácidas críticas ao secretário de Segurança — e por isso o policial, por sinal da Delegacia de Homicídios, havia sido transferido para uma delegacia bem distante". "E daí?", perguntei, ingênuo. "E daí?", explicou o repórter, "é que esse jornalista tinha feito uma ficção e não uma notícia, em seu jornal, só para vingar-se do delegado! Isso é imoral e antiético", vociferou. "E sabe por quê? Porque anos atrás, muitos anos atrás, os dois haviam tido uma paixão simultânea." "E daí?", quis ainda saber. "E daí que não tem nada a ver, passado é passado, passado não é presente, não tem sentido nenhum mentir — e o jornal nem sabe disso — para descarregar um ridículo ciúme retardado." Mais tarde, eu saberia que essa história foi esclarecida para o próprio indignado secretário, que, percebendo o ataque inexplicável, determinou que o delegado injustamente punido voltasse para as suas funções na Delegacia de Homicídios. O repórter prefere sair do bar e caminhar. Que fazer? Vou andando junto. É curioso: a cada lugar que passa, ele faz uma referência a casos de repercussão: "Naquele prédio ali, onde fica o escritório de uma fábrica de tecidos, um velho funcionário matou dois sócios para vingar-se por sua demissão; ali, um chefe de escritório e sua secretária foram encontrados mortos e amordaçados". Caminhando pela avenida Ipiranga, aponta um prédio e diz: "aqui trabalha Dermi, apelido de uma bicha que montou um escritório bem aqui para agendar contatos entre contrabandistas e traficantes". Finalmente, paramos num outro bar que ele diz ser apropriado para a nossa conversa. Até aqui, tinha falado sozinho. Feito o desabafo, ataca incisivo: "Sei que você está a fim de alguma coisa. Desembucha!". Nunca pensei que fosse intimado algum dia a desembuchar. O pior é que ele contou todas essas coisas, um desabafo tão pessoal, que eu nem sei como começar. Timidamente, resolvo confessar: inventei uma máquina do tempo e... — Deixa de babaquice! Está me achando com cara de trouxa? — dispara o repórter. — É verdade, eu juro — tento argumentar. — É incrível — diz o repórter, com ares de querer matar esse assunto por aqui. — Um tremendo dum caso desses, eu falando sério, e me aparece esse papagaio de pirata para dar uma de Professor Pardal na hora mais inconveniente! O que será que ele quer dizer com "papagaio de pirata"? E a coleção de adjetivos não pára aí, paspanata de galocha, loque, 171, um monte de coisas que eu nunca ouvi na minha vida, mas cujo significado posso perceber pelo tom que ele imprime ao pronunciá-las: acha que sou um trouxa pensando que vou engrupi-lo, isto é, enganá-lo. Está na cara que ele nunca vai acreditar que a máquina do tempo existe mesmo. Acho que sou trouxa, mesmo! Eu deveria ter desconfiado desde o princípio. "Deixa de grupo e põe as cartas na mesa!", ordena o repórter, já com cara de indignado. Acho que estou pagando o pato pela sua decepção com esse tal Judas contemporâneo. E aí, sem mencionar nem de leve a tal máquina (acho que só você e eu vamos saber da sua existência...), falei de ter recebido uma informação sobre duas reuniões, uma com promotores e outra entre Jorginho e familiares e... — É quente! — interrompeu o repórter. — Por que você não abriu logo o bico, sem essa de Professor Pardal? Fiquei quieto. Diante de um cara bravo assim, é melhor ficar quieto. E, como uma metralhadora soltando palavras rápidas e fumegantes, ele começa a contar: — Chegou uma hora, depois daquele encontro entre Roberto Delmanto e Veloso Sampaio, no escritório de José Carlos Dias, que a própria família de Jorginho começou a desconfiar do moleque com o cabelo cortado tipo requinho ("Requinho?", interrompo, para ouvir um novo "Babaca! Requinho é um corte curto perto das orelhas, que lembra os recos, os recrutas..."). É, dá de ser ele mesmo, e a turma dormindo de touca. então seria melhor pôr tudo em pratos limpos. Atendendo a uma sutil sugestão de Guimarães Marrey, toparam levar Jorginho para conversar com o promotor, que estaria acompanhado de colegas, para um papo definitivo sobre esse assunto, colocando as cartas na mesa, dissecando mentiras, contradições, incongruências e estranhezas. A idéia era interessante: Jorginho teria que dar uma resposta convincente, diante da própria família, para cada ponto da enrascada que ele mesmo construíra. Eram mais de vinte pontos duvidosos. O suficiente, segundo Marrey. para mandar muito pé-de-chinelo para a cadeia. A família topou, marcou dia e hora, estava tudo certo. A sua informação é quente — garante o repórter. — Jorginho estava numa casa com esses parentes e o promotor lá na cidade, num prédio da Procuradoria da Justiça. Em suma, o plano se resumia em dar uma prensa no rapaz: ou Jorginho se sairia bem, ou ficaria absolutamente encurralado! — Mas por que não houve a reunião? Por que todos ficaram agitados quando alguém chegou, acho que já no momento em que estavam prestes a sair, com um jornal na mão e... —... e aí — interrompe o repórter —, exatamente aí, alguém da família chega com o jornal da manhã, por sinal o Diário Paulista, no qual se lê uma declaração do chefe de toda a Polícia, o delegado Amândio Malheiros Lopes, dando sua opinião sobre o caso: o advogado Jorge Bouchabki matou sua mulher, a professora Maria Cecília Delmanto Bouchabki, com dois tiros na cabeça: e a seguir, encostando o mesmo revólver bem rente ao nariz, suicidou-se. O familiar de Jorginho, agitado, nas mãos o jornal que trazia essa informação (a imprensa, até aqui maldita, transformou-se abruptamente em imprensa bendita), colocou uma questão evidente: por que levar Jorginho para se submeter a uma congesta, uma prensa, uma dura, se o próprio chefe da Polícia, o homem que manda em todo o mundo na Polícia, inclusive no delegado Veloso Sampaio, acha que foi homicídio seguido de suicídio? Pura perda de tempo esse encontro, um desgaste inútil, a gente errou em desconfiar do nosso querido Jorginho... "Claro, claro, concordaram todos — instante em que foi dado o telefonema para o doutor Marrey e seus companheiros promotores, comunicando que a reunião acabava de gorar. "'Maldição!', bufou um promotor. 'Esse Amândio é uma besta, estragou completamente o nosso plano', xingou outro. Marrey permaneceu num canto, sem dizer uma palavra. Recolheu uns papéis sobre a mesa, guardou-os na sua pasta preta, apanhou o inseparável guarda-chuva e retirou-se." O repórter acreditava — e contava, agora mais calmo — que este teria sido uma espécie de dia D para o caso. Se não incriminasse Jorginho, serviria para inocentá-lo e lançar luzes mais esclarecedoras sobre o mistério. Preparo-me para a despedida. "Ainda não", interrompe o meu amigo. "Já que você está aqui. vou aproveitar para colocá-lo a par das últimas." 1) Estava no inquérito que Jorginho, bico fechado na Polícia, abria o jogo em conversas no cabeleireiro, onde com freqüência dava um ajuste no seu corte à reco. Disse, por exemplo, que gostava muito de medicina, mas havia abandonado a idéia de ser discípulo de Hipócrates (gostou dessa?) desde o dia em que viu os corpos ensangüentados sobre a cama, que isto foi demasiadamente traumático. (Curioso: Jorginho dificilmente fala uma palavra de gíria; seu vocabulário é dos bons, e nisso surpreende, para um rapaz de sua idade.) Essa conversa de cabeleireiro seria fútil, como todas as conversas desse tipo, se, segundo seus depoimentos oficiais, Jorginho, para todos os efeitos, jamais tivesse entrado no quarto para ver os pais. Preferiu chamar a Polícia (lembra-se?), não deixou o irmão entrar, mandou a empregada entreabrir a janela do quarto, ficou o tempo todo do lado de fora. Então... que trauma foi esse de ver corpos e sangue, se em momento algum ele teria visto Jorge e Maria Cecília com tiros na cabeça sobre a cama? 2) Jorginho, além dos banhos de sol logo após o crime, e da frieza aparente na concorrida missa de Sétimo Dia da morte dos pais (todos abalados, inclusive Roberto Delmanto, que dava a impressão de ser um homem destroçado), também aproveitou e pulou normalmente o carnaval. Estranho ou não? A família arranjou um esquema de proteção, com receio de que, mesmo com as novas garantias constitucionais já em vigor, mais de dois meses antes da morte dos Bouchabki, a Polícia pudesse seqüestrálo para arrancar uma confissão! Aliás, não faltou quem sugerisse isto ao delegado Sampaio e ao promotor Marrey; "esse moleque não resiste a uma prensa de cinco minutos". Talvez. E as garantias individuais? E os direitos humanos? E a princípio in dubio pro reo ("em caso de dúvida, a favor do réu")? Sampaio e Marrey preferiram as balizas rigorosas da lei. Houve quem se martirizasse a respeito dos tiros que ninguém admitiu ter ouvido. Pode ser uma tremenda cascata essa surdez da madrugada, mas... não se poderia considerar que o assassino tivesse usado uma arma com silenciador? Eis uma consideração a ser levada em conta. E quem está acompanhando passo a passo o caso dos Bouchabki, como você, precisa saber distinguir entre o mito e o real, entre isto e lenda. Os peritos que fizeram o laudo complementar pularam por cima desse detalhe, que talvez possa ser mais importante, muito mais importante, do que parece. Qual a certeza? A arma do crime foi um revólver calibre 32. Essa arma poderia — veja bem, poderia — ter sido equipada com um silenciador? A resposta — técnica — é afirmativa. Há uma única exceção para armas que não podem receber um silenciador: aquelas que disparam cargas de cartucho (uma escopeta, por exemplo). Todas as demais operam normalmente, ou com pequeno prejuízo quando acopladas a um redutor de ruído. Tanto isso é verdade que os grupos de combate ao terrorismo, como se vê em vários países, empregam silenciador inclusive em fuzis de combate M-16A, de calibre 5.56 milímetros, padrão das Forças Armadas dos Estados Unidos. Sem contar que, no caso do silenciador, também é possível o jeitinho brasileiro: dá para improvisar um silenciador em casa empregando material simples. Os malacos (forma como os policiais gostam de se referir aos bandidos) têm a receita disso tudo pronta há muito tempo: apanham um cano plástico, de fibra, capaz de conter o cano do revólver, e nele são feitas seqüências de furos, em forma de anel, a intervalos regulares. Essa peça é colocada em uma lata vazia de leite em pó, excedendo meio centímetro de cada lado — tampa e fundo perfurados. Ao redor desse recheio é colocada grande quantidade de esponja de aço comprimida. A tampa é colada com adesivo industrial e então, asseguram os mercadores de armas, o ruído do disparo diminui em 70 por cento. Além de diminuir bastante o barulho, não há perda de precisão até a uma distância de seis a oito metros. Mais do que suficiente, perceba, no caso dos Bouchabki. Um dos peritos que elaborou o laudo complementar do caso foi perguntado sobre isso quando entregou seu trabalho à Polícia. "Na eliminação dos Bouchabki, a arma do crime estaria sem silenciador?" Ele se limitou a responder: "eu não diria isso". Capítulo 6: Você é o Juíz E agora? Tudo o que foi possível descobrir, você já sabe. Tivemos a ajuda de uma máquina do tempo, na qual talvez ninguém acredite, mas que você sabe que existe. Tivemos a importante ajuda de um repórter beminformado. Estamos por dentro de tudo o que foi apurado. O fato é que neste instante, depois de toda essa investigação, a mesma pergunta se coloca para nós, quem matou os Bouchabki? Já vimos que não basta dar palpites, formular hipóteses, ter idéias. A acusação é muito grave. Você acha que Jorginho é inocente ou culpado? Teria sido mesmo ele quem matou o pai e a mãe? Ou alguém entrou na casa armado com revólver acoplado a um silenciador, matou, deu um tempo para arrumar os corpos na cama (e este é um fato!) e depois se mandou, deixando todos enfiados numa teia de aranha da qual não há quem consiga se desembaraçar? O promotor Luiz Guimarães Marrey convenceu-se de que Jorginho matou Jorge e Maria Cecília. E sem muita conversa, em apenas 40 linhas, denunciou Jorginho à Justiça como autor do crime. Estilo seco, contundente, o promotor Marrey escreveu que... "... segundo se apurou, o indiciado vinha mantendo relacionamento conflituoso com seus pais, especialmente porque aqueles exigiam que ele estudasse para o vestibular, passando menos tempo com sua namorada. O namoro de Jorginho era objeto de restrições por parte das vítimas, seja porque impedia que o indiciado estudasse como devia, seja porque estava se tornando muito sério, fato que os ofendidos não aceitavam, em face da pouca idade de ambos os namorados." Ainda segundo o promotor Marrey. Jorginho "ingressou no quarto de seus pais e, aproveitando-se da circunstância dos mesmos estarem deitados na cama, efetuou os disparos de revólver que causaram a morte de Jorge Bouchabki e Maria Cecília Delmanto Bouchabki". Arremate de Marrey na denúncia, que seria recebida pela Justiça, o que significou o início de um processo, o início da ação penal: "O indiciado agiu por motivo torpe, pois matou seus pais para se ver livre do controle que ambos exerciam sobre ele, exigindo estudo regular que possibilitasse o ingresso na faculdade, bem como procurando cercear seu namoro, O indiciado agiu de surpresa, de forma a tornar impossível ou difícil a defesa dos ofendidos, pois iniciou a sua conduta criminosa quando os mesmos se encontravam deitados na cama. Pelo exposto, denuncio a Vossa Excelência Jorge Delmanto Bouchabki como incurso no artigo 121, § 2o. I e IV do Código Penal (duas vezes), combinado com o artigo 68 caput do mesmo diploma legal, requerendo que, recebida esta, seja o mesmo citado para se ver processar, nos termos dos artigos 294 e 406 e seguintes do Código do Processo Penal, a fim de que seja o mesmo pronunciado e submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, quando deverá ser condenado pelos crimes que praticou...”. Como se vê. o promotor ficou inteiramente convencido de que o criminoso é mesmo Jorge Delmanto Bouchabki, o Jorginho. Endossou por inteiro as investigações de Veloso Sampaio e apresentou essa denúncia, da qual distribuiu cópias para toda a imprensa, além de dar sucessivas entrevistas nas quais tentava demonstrar, com segurança, que Jorginho é um assassino perigoso. Tudo isso na sala do procurador-geral da Justiça em São Paulo. Não é preciso dizer mais. A carga contra Jorginho é muito pesada. Mas nós não estamos aqui, ponderei comigo, para julgar ou condenar ninguém. Caminhamos até este ponto usando a lógica e a razão, de modo a podermos tirar uma conclusão sem paixões ou precipitações. Por isso, mesmo sem usar mais nossa máquina do tempo, e sem ter à nossa frente uma bola de cristal, poderemos prever o que vai acontecer. Tudo, mas tudo mesmo, ainda vai dar muito samba, A defesa de Jorginho cai de pau em cima de Marrey e Sampaio, dizendo que é um absurdo acusar o filho mais velho do casal Bouchabki à base do "só pode ser ele", considerandose que além de Jorginho havia outras pessoas dentro da casa. Também argumentaram que Jorginho ficou transtornado com a morte dos pais (e quem não ficaria?) e por isso, apenas por isso, ele começou a não fazer e dizer coisa com coisa, o que seria absolutamente natural no caso de qualquer pessoa que perdesse os pais de maneira tão violenta. E que não se pode, com base em algumas discrepâncias, acusar o rapaz sem haver prova direta — ou "concreta", como alguns gostam de dizer — contra ele. Aliás, certamente Marrey preparou-se para ouvir isso e dar uma aula de Direito romano, dizendo que nos velhos tempos era a família que, havendo um crime em seu próprio seio, decidia se um acusado (ou mesmo um autor) deveria ser processado ou não. "Os tempos mudaram", dirá, provavelmente. Em suma, com certeza ocorrerá uma troca de chumbo grosso entre acusação e defesa, e nesse fogo cruzado cada um poderá fazer a sua escolha: Culpado? Inocente? Anjo? Demônio? Implacável? Cândido? Assassino ou vítima duas vezes? Matador dos pais ou inocente eternamente marcado por um crime jamais cometido? A experiência do júri mostra que casos que provocam grandes emoções exigem muita atenção, já que a retórica é sempre caprichada, entram em cena personagens, tão famosos que às vezes o réu se transforma numa figura secundária. Os jurados experientes ou o magistrado encarregado de decidir se o acusado deve ir ou não a júri fazem questão de um mínimo de tranqüilidade e isenção para esse tipo de julgamento. A bem da verdade, tecnicamente — não emocionalmente — falando, com rigor processual e sem desconfianças, deve-se esclarecer, aqui e agora, que a faca tem dois gumes: • O júri é uma das faces mais democráticas da Justiça, porque é o único lugar do Judiciário onde cidadãos comuns, os jurados, assumem a posição de juízes de fato, tendo o direito de até julgar com o coração, cabendo ao juiz de Direito dosar a pena de acordo com a vontade expressa por eles. • O júri é também uma caixinha de surpresas, mas o coração dos jurados balança exatamente entre a argumentação apresentada pelo promotor e a apresentada pelo advogado da defesa (no caso, o duelo que com certeza se estabelecerá entre Marrey e Dias. E os dois têm muitos pontos dessa complicada história para explorar à vontade). Mas uma coisa é certa: só podemos falar sobre o que está dentro do processo. Nem um centímetro a mais, nem um centímetro a menos. Portanto, sempre se dirá sobre o caso o que você e eu estamos sabendo (evidentemente, sem a ajuda da máquina do tempo, uma vantagem exclusivamente nossa...). E nós, que caminhamos juntos por essa estrada cheia de desvios e atalhos, conseguimos nos aproximar de pontos que nos ajudam a entender a verdade, e poderemos tirar as nossas conclusões, já que não dependemos nem de Marrey nem de Dias para saber o que de fato aconteceu. E para saber, entre todas essas informações, das quais temos obrigação de desconfiar. Está nos autos, isto é, está no processo, e basta examinar os depoimentos, os laudos e as perícias com muita, mas muita atenção mesmo, para constatar: 1) Dos tiros. As controvérsias dos laudos estão no processo: laudo 1, laudo 2, laudo complementar. Você pode defender, se quiser, a tese de dois tiros nele e um nela, dois nela e um nele, e pode até, nesse caso, não descartar a hipótese de que um matou o outro e se suicidou. Pouco importa que Marrey concorde ou discorde, que Dias discorde ou concorde. Escolha o seu laudo. Está escrito, e o que está escrito, ao contrário das palavras, não voa, como diz o provérbio latino verba volant, scriptamanent. 2) Das versões. A partir daí, será preciso interpretar o conteúdo dos laudos — que não são, no caso da morte dos Bouchabki, a prova principal — e então teremos uma emocionante parte do duelo entre acusação e defesa. Porque, convenhamos, a partir deles podemos estabelecer uma escala de possibilidades para entender o que aconteceu dentro daquele maldito quarto onde os Bouchabki foram encontrados mortos. Com esse duplo alicerce, que precisará sustentar uma construção bastante sólida, podemos levantar, levando em conta tudo o que consta do processo, as seguintes hipóteses: • Jorginho teria acordado com os tiros, entrado no quarto e compreendido a extensão da tragédia. Os pais estavam mortos. A mãe estava de camisola e ele, como qualquer outro filho, não gostaria que Maria Cecília fosse encontrada e vista naquela posição. Uma questão de pudor, reverência pela mãe. Teria então ajeitado os corpos em sinal de respeito. Uma atitude compreensível, que não seria a primeira, e que justificaria plenamente a colocação do lençol cobrindo os corpos. Depois, sozinho ou após consultar alguém, teria feito a arma desaparecer. O suicídio após o homicídio seria um segundo trauma para a família. O rapaz teria feito tudo isso sozinho ou com ajuda? Não sabemos. • Houve quem quisesse explicar tudo com a tese de que o rapaz teria surpreendido o pai. que havia acabado de atirar na mãe. Com essa versão acreditou-se — no curso das investigações — que Jorginho pudesse ter ganho uma espécie de solidariedade. Acontece que essa versão, pela lógica, é impossível: os tiros à queima-roupa não permitiriam aceitar que um dos membros do casal tenha ficado, passivamente, sem nenhum gesto de defesa, à espera do tiro que lhe tiraria a vida. De qualquer modo. se isso fosse verdadeiro, teria sido impossível recuar ou ir adiante, ou seja, seria tarde demais para mudar versões. Mas, a bem da verdade, não foram essas as únicas hipóteses que circularam sobre o caso, pois centenas de pessoas, empenhadas em decifrar o enigma, buscavam a sua explicação pessoal para o crime da rua Cuba. De qualquer modo, as especulações nasciam e se multiplicavam exatamente porque ninguém consegue entender o que realmente aconteceu dentro do quarto dos Bouchabki. A mudança dos corpos na cama realmente dificultou tudo, e, na guerra entre família e Polícia, esse ponto acabou sendo deixado de lado, embora o Código Penal considere infração penal a alteração de local de crime. Pelo visto, ninguém se lembrou disso. • Um terceiro personagem teria tido a entrada na casa facilitada: a ausência de qualquer vestígio de violência nas fechaduras, portas e janelas permite que se faça essa dedução, mesmo que delegado e promotor considerem isso impossível e absolutamente sem sentido. Pouco provável, é. Mas não impossível. Todas as cabeças vão ser invadidas pela dúvida. Quando Marrey falar, não haverá como considerar assassina outra pessoa que não seja Jorginho. Quando José Carlos Dias falar, não haverá como ficar sem remorso por tão grave acusação a alguém que só pode ser inocente. Existe ainda a possibilidade de que o próprio Jorginho e pessoas de sua família tenham provocado, mesmo sem querer, talvez no afã de protegê-lo, a terrível situação. A defesa tem razão ao dizer que o ônus da prova cabe a quem acusa, ou seja, se alguém diz que você é culpado, cabe a esse alguém provar o que está afirmando, e não a você colher provas para atestar sua inocência. Seria um absurdo. Que o assassino seja punido, todos querem. Resta à Justiça — este, o seu papel — harmonizar todas as informações para chegar à verdade. Até lá, o caso dos Bouchabki e a notoriedade indesejável de Jorginho já fizeram pais refletirem melhor sobre os filhos adolescentes, e filhos adolescentes pararem para pensar nesta coisa chamada família, que passa por transformações rápidas e fantásticas, velocidade de porta de um século novo. É preciso conversar mais, entender-se melhor. Marrey, estafado, emagreceu alguns quilos. Sampaio, que sentiu mais a pressão, engordou e tratou de fazer regime. Marrey segue no caso até o fim, Veloso Sampaio foi transferido para uma delegacia de periferia. A Polícia quer que sua estrela apague e desça. Você, entretanto, não precisa de um nem de outro para decidir. É seu dever de consciência condenar — se não houver nenhuma, mas nenhuma dúvida mesmo. Ou absolver, se pela sua cabeça passar qualquer dúvida, a menor que seja, sobre a autoria do crime. Não existe opção. Que Jorge e Maria Cecília, corpos mutilados, descansem em paz. Que se faça justiça. Que não haja impunidade. É o que nos resta esperar. São Paulo, junho de 1989.
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