O Conde e o Passarinho - Rubem Braga

March 28, 2018 | Author: igor | Category: Sea, Dogs, City, Love, Hospital


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O CONDE E O PASSARINHO E MORRO DO ISOLAMENTO OBRAS D O A U T O R AI DE TI, C O P A C A B A N A A BORBOLETA AMARELA C A R T A A EL REY D O M M A N U E L (versão moderna) DUZENTAS CRÔNICAS ESCOLHIDAS UM PÉ DE MILHO O CONDE E O PASSARINHO A T R A I Ç Ã O DAS E L E G A N T E S RUBEM BRAGA O CONDE E O PASSARINHO E MORRO DO ISOLAMENTO 5ª Edição EDITORA RECORD . RJ Impresso no Brasil .93 CDU — 869. Rua Argentina 171 — 20921 Rio de Janeiro. Título II. Morro do Isolamento / Rubem Braga. 1.A.0(81)-94 Direitos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S. 1982. RJ.Copyright (c) by Rubem Braga Capa de Floriano Teixeira Retrato do autor. — Rio de Janeiro : Record. Título : Morro do Isolamento 82-0447 C D D — 869. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Crônicas brasileiras I. na 4ª capa: Maria Mynssen FICHA CATALOGRÁFICA CIP-Brasil. Rubem. 1913O Conde e o passarinho e. B795c Braga. — 5? ed. O Conde e o Passarinho. do Recife. o segundo impresso por uma editora natimorta que não chegou a distribuí-lo e vendeu a edição à Brasiliense.ESTE VOLUME Este volume reúne meus dois primeiros livros. A rigor não suprimi nenhuma crônica. .B.. Elas sofreram apenas uma revisão ortográfica indispensável. o primeiro publicado por José Olympio com u m a capa de Santa Rosa. Edições Pirata. mesmo porque não eram crônicas. Do Conde tirei apenas o prefácio e a última composição. O mesmo poderia dizer de quatro outras. de 1944. que o lançou com uma capa nova de Clovis Graciano. publicadas na Folha da Tarde de P o r t o Alegre. Resisti à tentação de alterar o texto das crônicas ora reeditadas. e Morro do Isolamento. que era mais um artigo. de 1936. que risquei do segundo livro. eram " c h r o n i c a s " ! R. Cortei também quatro poemas que passaram a lazer parte de meu Livro de Versos publicado em 1980 pelas. . Os sinais das esquinas — vermelhos. um menino com o coração fora do peito.... nasceu também uma criança assim.. O menino paulista viveu quatro horas. Cinco horas! Cinco horas! Um meu amigo. por nome Carlos.COMO SE FORA UM CORAÇÃO POSTIÇO N a s c e u . como se fora um coração postiço. Há uma esperança de bonde em todos os postes. Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo esforço para ser boêmio.. Em São Paulo.a hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam." Como se fora um coração postiço. na doce Budapeste. Madrugada paulista. Porém — diz um Dr. diria: — . 9 .. Vamos supor que tenha nascido às cinco horas. amarelos. "Tinha o coração fora do peito. Mereje — não foi o primeiro. há sete anos. verdes — verdes, amarelos, vermelhos — borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Olhos inquietos da madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Chá, contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém nunca jamais contemplou. Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas flores roxas e brancas. Humildes manacás, em fila, pequenos, tristes, artificiais. As esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento, tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz. Apitos lá longe. Passam homens de cara lavada, pobres, com embrulhos de jornais debaixo do braço. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas. Nasceu, em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um menino com o coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto fechado, abafado, com a lâmpada acesa, gente suada. Menino do coração fora do peito, você devia vir cá fora receber o beijo da madrugada. Seis horas. O coração fora do peito bate docemente. Sete horas — o coração bate... Oito horas — que sol claro, que barulho na rua! — o coração bate... Nove horas — morreu o menino do coração fora do peito. Fez bem em morrer, menino. O Dr. Mereje resmunga: "Filho de pais alcoólatras e sifilíticos..." Deixe falar o Dr. Mereje. Ele é um médico, você é o menino do coração fora do peito. Está morto. Os "pais alcoólatras e sifilíticos" fazem o enterro banal do anjinho suburbano. Mas que anjinho engraçado! — diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho está no céu. Está no limbo, com o coração fora do peito. Os outros anjinhos olham espantados. O que é isso, seu paulista? 10 Mas o menino do coração fora do peito está se rindo. Não responde nada. Podia contar a sua história: "o Dr. Mereje disse que..." — mas não conta. Está rindo, mas está triste. Os anjinhos todos querem saber. Então o menino diz: — Ora, pinhões! Eu nasci com o coração fora do peito. Queria que ele batesse ao ar livre, ao sol, à chuva. Queria que ele batesse livre, bem na vista de toda a gente, dos homens, das moças. Queria que ele vivesse à luz, ao vento, que batesse a descoberto, fora da prisão, da escuridão do peito. Que batesse como u m a rosa que o vento balança... Os anjinhos todos do limbo perguntaram: — Mas então, paulistinha do coração fora do peito, pra que é que você foi morrer? O anjinho respondeu: — Eu vi que não tinha jeito. Lá embaixo todo mundo carrega o coração dentro do peito. Bem escondido, no escuro, com paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne cobrindo. O coração trabalha sem ninguém ver. Se ele ficar fora do peito é logo ferido e morto, não tem defesa. Os anjinhos todos do limbo estavam com os olhos espantados. O paulistinha foi falando: — E às vezes, minha gente, tem paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne, e no fim disso tudo, lá no fundo do peito, no escuro, não tem nada, não tem coração nenhum... E quando eu nasci, o Dr. Mereje olhou meu coração livre, batendo, feito u m a rosa que balança ao vento, e disse, sem saber o que dizia: "pa11 rece um coração postiço". Os homens todos, minha gente, são assim como o Dr. Mereje. Os anjinhos estavam cada vez mais espantados. Pouco depois começaram a brincar de bandido e mocinho de cinema e aí, foi, acabou a história. Porém o menino estava aborrecido, foi dormir. Até agora, ele está dormindo. Deixa o anjinho dormir sono sossegado, Dr. Mereje! São Paulo, 12 novembro, 1933. as pensões familiares e vários produtos nacionais. Eu uso apenas três poetas. filho de abastado industrial de Chicago. que.FIFI E s t r e l a de cinema Fifi Dorsay contraiu núpcias com o Sr. para efeito de paradoxo. Fora deste detalhe. Maurício Hill. deu "resultados plenamente satisfatórios". segundo declações da prória atriz. depois de um "ensaio de lua-dem e l " de três semanas. e os outros dois são Saceo e Vanzetti. aprecio os bondes. em Hollywood. Um deles é Jesus Cristo. E Fifi me alegra. Gosto de filé com fritas e de chope. as gravatinhas-borboletas. todos de primeira água. naturalmente. A cerimônia realizou-se na Igreja de São Vítor. Wilde amava os poetas medíocres. mas. 13 . A minha posição diante de Hollywood é apenas a de um inconsolável basbaque. sou um apaixonado da mediocridade. na rua de qualquer madrugada. a preços módicos. como a cadeira onde me sento para escrever. ou no meio de u m a festinha familiar. Fifi. porque não sabes que eu só amo as vitrolas quando me encosto. Podias ter o capricho de uma pequena biblioteca elegante. por culpa minha e dos meus vencimentos. o garçom do restaurante que me alimenta. Veneração sem desejo nem arrependimento. a navalha que me faz a barba. dessa mediocridade que é a fortuna de Henry Ford. Seria inútil e ridículo. Jamais te acostumarias com a minha vida.Este é o meu mundo. Fifi é medíocre. Getúlio Vargas e outros artistas pan-americanos. Poderias querer um ensaio de lua-de-mel. Nossa liaison seria um filmezinho banal. à porta de uma casa de música. e. Eu te venero como o dinheiro que recebo no fim do mês. Se me encontrasse contigo não providenciaria um táxi nem beijaria a tua mão. se não posso amar-te. Fifi. porque não sabes que eu só amo o amor quando ele vem sem démarches e sem intenções. sem um gag a Chaplin e sem um hokum a Dietrich. Perdão. entre um sanduíche e um título de telegrama. se não o amasse. entre um tango mal dançado e uma frase sobre o calor. discreta e ornamental. Eu acabaria me enforcando com u m a 14 . Havias de querer uma vitrola no apartamento. Jamais me entenderias. porque não tenho forças para subir nem coragem para descer. Apenas te venero. já teria me suicidado. porque não sabes que só amo os livros quando os leio no bonde ou na mesa de t r a b a lho. a folhinha onde conto os dias e o bar onde os esqueço. sem cuidados e sem crises. para ouvir um samba. e tu irias ao enterro de mau humor. dezembro. dessas de 1$600.gravatinha-borboleta. e acharias lastimável. Fifi São Paulo. Perdão. . 1933. ruas álacres de Havana..RUMBA "Mani". charutos de Havana. cassinos de Havana. Ouvi novamente essa rumba já velha em um short magnífico. E é u m a rumba feita de sangue e de ideais desvairados. onde os sargentos viram generais. Os dólares rolam sobre as carreteras deslumbrantes. Mani... as revoluções rebentam. o povo grita e mata. como flores rubras e tropicais. A gente carece meditar bastante nessa música e em todas essas músicas que a pobre Cuba vai exportando com mais proveito que o açúcar de suas usinas. onde uma tresloucada e perfeita bailarina saltava diante de um jazz alucinado. Mani.. Oh.. a Pérola das Antilhas! Havana.. as greves estalam e de repen16 . palácios. os embaixadores são odiados. A rumba continua. desperdícios dos governos. porque os estudantes estão lá dentro atirando heroicamente. mas os estudantes estão nas trincheiras dos canaviais e os operários trucidam os mercenários. Ela dança. e de seus cabelos assanhados sai o perfume dos ungüentos violentos e seus lábios me parecem tão vermelhos que o sangue estala sob a mucosa fina. No entanto. as guarnições se desmantelam e há segredos terríveis que nunca serão revelados. proíbe. mas às duas horas da madrugada verifica que está reinando completa paz. Então se afirma que dois navios de guerra encostaram ao porto com mil fuzileiros navais. e o seu corpo moreno jamais deveria ficar imóvel. Mani. proclama. foge. declara. nas suas veias corre um sangue que jamais deveria ser derramado. enquanto um avião bombardeia não se sabe onde. Os cartazes trucidam os plutocratas. Combina-se um decreto no Grande Hotel Nacional m a n d a n d o fechar a Universidade. e talvez os rebeldes inesperados desembarquem no meio da noite. os seus braços são cobras sob as palmeiras que farfalham.se te não há água. se encontram.. O governo toma medidas enérgicas. os operários se revoltam. a Junta sc reúne. se matam. e as tropas vão e voltam. aquela bailarina baila. Ainda bem. Um padre apareceu assassinado. e as multidões morenas começam a marchar sob as fuzilarias sem explicação. está dançando demasiado viva e sensual.. que nesta rumba não temos sossego para 17 . as metralhadoras alvejam a emenda Platt. não há luz. mas não se pode. o terrorismo irrompe. Então se reabre a Universidade. meu irmão. envia tropas. os jornais empastelados ressurgem e os telefones são cortados. porque a própria rumba perderia o controle de seu corpo e de suas pernas indígenas e alucinantes e de seus pés que são asas de fogo bronzeado bailando sobre o chão heróico.olhar bem seus olhos que talvez nos dissessem a verdade sobre os abismos indizíveis da ternura e do sonho. Ainda bem que ainda temos t a m a n h a s esperanças de tomar parte em milhares de revoluções. . 18 1934. janeiro. E ainda bem que ela não veio toda nua. São Paulo. Theodoro Kempers tem uma função obscura e proeminente na família dos trabalhadores dos Diários Associados. olhos alcoólicos. por meio da magia violenta dos ácidos e dos metais. barbado como um bode. antes de tudo. Filosofar é. A culpa não é sua. Sabeis. pince-nez doutorai e cabeleira comunista. O destino fez de Theodoro Kempers chefe da seção de gravura dos Diários paulistas. Theodoro Kempers cospe. cuspir. Ele pode 19 . em geral. Cidadão holandês. Os filósofos.CUSPIR T h e o d o r o Kempers é filósofo por necessidade profissional. pode tornar vossa excelência orelhudo como um burro. gordo como um suíno. meu caro doutor Getúlio Vargas. trombudo como um elefante. negro como um urubu. o que é um chefe de seção de gravura? Ê um homem que. de cara vermelha. cospem. como o íbis e o elefante branco. assassinos. pedestres e populares. povoada de clichês ridículos. No dia 29 do mês corrente. O automóvel parou. A vida está cheia de clichês. Beijemos o rastro de seus pneumáticos como se nossos lábios osculassem a marca sagrada dos pés do Senhor. E tu cuspiste. e Theodoro Kempers é o Criador dos Clichês. com um só golpe. Cuspiu na terra maldita. a vida é uma coleção de clichês. o diretor das caras. Ele é. Nada menos que uma autoridade — tremei. Ouçamos a descarga de seus motores como se fora música do infinito. declamadoras. Nosso ideal supremo. poetas. todos os bichos da vaidosa fauna h u m a n a passam sob as lunetas de Theodoro Kempers. Theodoro Kempers! Disseste que foi no chão. Nós outros. nosso Nirvana. estadistas.destruir. O glorioso e sagrado asfalto bandeirante não reagiu. é morrer um dia sob suas rodas sacrossantas. ó mundos! — da Delegacia de Ordem Política. ele cuspiu. Mas — ai! — uma pequenina partícula da saliva do patrício da rainha Guilhermina pousou sobre o pára-lama de um automóvel que passava. almirantes. o sorriso cândido que constantemente visita os lábios de vossa excelência. Respiremos a fumaça que sai de seu escapamento como se fora um incenso divino. e dele saltou nada menos que uma autoridade policial. Padres. Eis por que Theodoro Kempers aprendeu a cuspir. Cuspir no animal 20 . meu companheiro Theodoro Kempers! Um automóvel da polícia é um animal sagrado. Horrível pecado cometeste. devemos venerá-lo. Theodoro Kempers foi preso e esbofeteado até perder os sentidos. em resumo. porque a cusparada volta e estala sobre nossa cabeça. aprende comigo a cuspir dedicadamente na cara dos homens. Theodoro Kempers. São Paulo. Salvo em alguns. o mais baixo e infamante dos crimes. 1934. Cuspir no chão é má ação. . janeiro. que são demasiado sujos para servir de escarradeira.sagrado é o mais horroroso e torpe dos pecados. Cuspir para o céu é mau. Se quiseres cuspir. . e outra vez. Que bela tarde para não se escrever! Esse calor que arrasa tudo. fala da falta de assunto. essa lembrança aborrecida do dia de ontem. não tendo nada a escrever. queiram ter a fineza de retirar os olhos desta coluna. meu distinto leitor. sem nada interessante. esse cigarro que fumo sem prazer. esse carnaval que está perto. Portanto. Não leiam mais. e sempre. que aí vem no fim da semana. que vocês todos 22 . portanto.. esse calor. Fiquem sabendo que eu secretamente os odeio a todos. esse calor.AO RESPEITÁVEL PÚBLICO Chegou meu dia. Todo cronista tem seu dia em que. minha encantadora leitora. esse calor. Chegou meu dia. esses jornais lidos e relidos na minha mesa. essas cartas na gaveta onde ninguém me conta nada que possa me fazer mal ou bem. essa perspectiva morna do dia de amanhã. sejam bem-educados e dêem o fora. eu nunca lhes direi nada. senhorita. Este jornal tem dezenas de milhares de leitores. uma vida toda atrapalhada. se a senhorita é bastante teimosa. que eu desejo sinceramente que todos tenham um péssimo carnaval. Se houvesse micróbios que eu pudesse lhes transmitir assim. Saibam que o desejo mais sagrado que tenho no peito é m a n d a r vocês todos simplesmente às favas. tem esporte. Eu faço votos para que vocês todos amanheçam amanhã atacados de febre amarela ou de tifo exantemático. um infelicíssimo ano em 1934. u m a morte estúpida! Aproveitem este meu momento de sinceridade e não se iludam com o que eu disser amanhã ou depois. E não direi porque não quero. através do jornal. tem crimes. Aqui nesta coluna. é imenso. porque não me interessa. e só vocês. Por que ousam gostar ou aborrecer o que escrevo? O que têm comigo? Acaso me conhecem. porque vocês não me agradam. Portanto. tem u m a infinidade de coisas. no meio de tanta gente. resolveram ler o que escrevo? O jornal é grande. tem cinema. uma horrível quaresma. cavalheiro. mas nada de nada.são pessoas aborrecidas e irritantes. pensem um pouco. desapareçam desta coluna. pelos olhos. que sirva para o que quer que seja. pelo amor de Deus. de minha vida? Então. sabem alguma coisa de meus problemas. por que é que. se o cavalheiro é bastante cabeçudo para me ter lido até aqui. tem política. com a minha habitual falta de vergonha. sem delicadeza nenhuma. vocês. fiquem 23 . porque eu os detesto. escrever duzentas crônicas engraçadinhas ou tristes. até da polícia. neste momento. Passem mal. por exemplo. Mas ainda insistem? Ah. Saibam desde já que eu farei isto porque sou cretino por profissão. Até amanhã. mas que com todas as forças da alma eu desejo que vocês todos morram de erisipela ou de peste bubônica. Eu tenho de estar aqui todo dia. vocês me aborrecem terrivelmente mais. Eu poderia. 24 1934. exposto à curiosidade estúpida ou à indiferença humilhante de dezenas de milhares de pessoas. Amanhã eu posso voltar bonzinho. Mas eu quero hoje precisamente falar claro a vocês todos. se quisesse. dizer o que sinto todo dia: dizer que se eu os aborreço. Fiquem sabendo que eu hoje tinha assunto e os recusei todos. Vocês podem virar a página. boas ou imbecis. são dessas que ofendem toda a família. Eu tenho de suportar vocês diariamente. Assunto não falta. São Paulo. interessantes ou cacetes. .sabendo que hoje eu lhes mandaria as piores doenças: tracoma. até do governo. jeitoso. pelo menos hoje. se eu pudesse escrever aqui alguns insultos e adjetivos que tenho no bico da pena! Eu lhes garanto que não são palavras nada amáveis. fevereiro. porque eu me acostumei a aproveitar qualquer assunto. Mas não posso e não devo. posso falar bem de todo o mundo. podem fugir de mim quando entenderem. Eu quero. úteis ou inúteis. manso. sem descanso e sem remédio. Eu não conseguia nunca saber se ela estava rindo ou sorrindo. Joana! Joana desumana. atiram. se era doce ou amargo. outros eletrocutam. Houve um concurso para carrasco em u m a capital européia. Joana. não. todo o dia.. então. As bonitas fazem sua matança livremente. E navalham. Há sorrisos que enforcam. e se apresentaram quatorze mulheres. Nas tardes velhas de Ouro Preto. O capeta se instalava no seu corpinho 25 . me enforcava livremente.. e a voz morria. Se um anjo do Aleijadinho visse aquele seu jeito. é que se desandava a sorrir de outro jeito.AS CARRASCAS D i z e m que a mulher é parte fraca. envenenam. esfolam. Sentia o enforcamento no pescoço. Eu sou um antigo assassinado. Joana de Ouro Preto. Bonitas? Com certeza. de mim ou para mim. coitado do anjo. Não é. outros guilhotinam. Eu as imagino pesadonas e ignóbeis. e ainda dizendo que era com muito prazer e muita honra. que toda mulher carece merecer. rudes e mesquinhas. um sorriso de mulher gentil para eu morrer em estado de graça. as piores da margem direita e da margem esquerda do Danúbio. irmãos. Morrer na forca. Ora. Ela me apunhala. e é triste. Que Deus me dê. Sei que ela tem muita e má danação. Não importa. Nunca merecerão o adjetivo gentil. perdoável. Joana era um pecado mortalíssimo. Elas são feias.gorducho e ele transferia sua residência do limbo para o inferno. e havia um nome e um número. São horríveis. E todos nós. É o adjetivo principal. Sua doçura me arruinou. somos assassinados muitas vezes assim. Fossem noventa. São as quatorze piores mulheres de Buda e de Peste. desde a nascente à foz. pois. São carrascas. e sejam de Budapeste. e eu morro. morrer olhando uma 26 . o único empregado por Casimiro nas estrofes de mais inspiração. na hora derradeira. Minha memória se pegou ao fato e largou o número e o nome. e fossem de Sofia. essa carrasca. ou querem ser carrascas. o que fazem as quatorze carrascas de Budapeste? Será Budapeste? Serão quatorze! Li o telegrama. Outras muitas me mataram. Se alguma chegar a ser carrasca. Não são gentis. e eis o que interessa. eu prometo nunca ser condenado à morte em Budapeste. mas é danação de purgatório. Já Pierina é venial. amplamente venial. Sejam quatorze. as piores das margens de todos os rios e das praias de todos os mares do mundo. Quando fordes para o inferno. que Deus lhe dará diploma de santo. fechará seu estabelecimento e fugirá. e se alguém cometer. Ninguém mais terá coragem de cometer um crime em Budapeste. Vós. e ficará de alma tão limpa. Morrereis de raiva quando o condenado le matar na prisão. ó pestes de Budapeste. o Diabo tremerá de vergonha e de medo diante de vós. Será esta a vossa vingança contra os homens que nunca soubestes fazer morrer com um sorriso gentil. O condenado que morrer em vossas mãos será perdoado de todos os pecados. Ele se sentirá desacatado. mulheres da morte. Quereis ser mulheres fatais por concurso. e sob a proteção da lei. é sentença que não cabe em nenhum crime. a mãe de Pierina me parece um anjo. Sois tão ignóbeis que. ao vosso lado. 1934. qual o de Joana de Ouro Preto. assassinas burocratas. Sois piores que monstros. Mas nem assim sereis mulheres fatais. 27 . Sereis bruxas funcionárias. uma carrasca pesadona e feia. maio. o mais lindo anjo das janelas do Brás. Carrascas de Budapeste ou de onde quer que sejais. Morrereis todas. amanuenses da repartição da morte. desmoralizais as mulheres e a morte.estúpida megera. Mas a vossa lembrança o tornará eternamente desgraçado. pesteadas pela própria pestilência! São Paulo. nenhum juiz será bastante miserável para entregar o réu às vossas garras. o meu colega recebeu uma carta que o deixou profundamente triste. no jornal em que trabalho. É um homem encarregado de explicar diariamente aos seus leitores qual o melhor meio de plantar batatas. dizendo que eu devo respondê-la.A CARTA Existe. eu sou um literato. remediar à distância a dor de barriga de um porco ou matar os insetos que atacam um pé de abacate situado a novecentos e cinqüenta quilômetros da redação do jornal. E opina. Na sua correspondência de hoje. Passou-a à minha mesa. pedacinhos de raízes e punha» dos de terra. um redator essencialmente agrícola. contendo lagartas. É um ofício heróico. e a carta é de 28 . como existe em muitos jornais. Recebe do interior misteriosos embrulhinhos registrados. para opinar sobre esses objetos. Na sua opinião. que é entendido em senhoritas. Fajardo da Silveira berrou: — Trata-se de uma senhorita pacata. É u m a senhorita que. e veio me consultar. Creio que mora em alguma fazenda. O redator social declarou-lhe: — Quando esta senhorita ficar noiva. das mágoas que a cidade lhe causou. e o esportivo. Chegou mesmo a redigir algumas frases. que ela atravessasse o canal da Mancha. E explica: — Responda você. estando profundamente sem ter o que fazer. Disse que ira "um assunto puramente h u m a n o " . no campo. Eu me neguei a atendê-lo e ele passou a outras mesas da redação. ou pelo menos arranque-lhe a orelha esquerda. ou tiver um filho. que jamais 29 . diverte-se escrevendo cartas anônimas a todos os jornalistas. Eu publicarei o seu retrato no jornal. onde se entrega à contemplação da natureza e à leitura de bons livros. Quem a assina já me dirigiu várias cartas que não respondi. casar. E pede conselhos minuciosos a respeito. O crítico musical exigiu que ela tocasse harpa ou trombone. o repórter político sugeriu que ela fizesse um discurso. literato. Enfim: uma senhorita sem caráter. Veio de Lençóis. Ela mandou dizer ao meu colega agrícola — Fajardo da Silveira — que está procurando se consolar. Fajardo da Silveira esteve quase respondendo. O repórter policial rugiu: — Mate esta moça.literata. Prometo ajudá-lo quando o consultarem a respeito de vacas ou cebolas. do qual não entendia. u m a senhorita patife. eu tratarei dela. desanimado e disposto a tudo. Também não posso fazer nada. São Paulo. Mas não se pode fazer nada razoável com uma senhorita que tem a mania de escrever aos jornais. Disse. porque não tenho outra solução. F . Eu as publico aqui.praticará violência semelhante. Fajardo da Silveira acaba de sair. Já estive ensaiando várias respostas. Passe b e m . Ei-las: " I . senhorita. " Também acho que isto não é delicado. porque ela não é uma abóbora nem uma euforbiácea. mas nenhuma serve absolutamente. aquele "passe b e m " final tem um tom visivelmente feroz. 30 1934. Mas eu também não sei o que fazer com essa miserável senhorita literata e rural. maio. Não se deve falar em gado vacum quando se escreve a u m a senhorita. A tristeza de sua alma. não posso cuidar de literatura. pôs a carta novamente sobre a minha mesa e postou-se em minha frente raivoso. . Deixou comigo as frases que redigiu e que ele mesmo não julgou boas para serem publicadas em sua seção de "Vida Agrícola". Além disso. — Lençóis — Nesta seção. é preciso que ela seja atendida. me interessa menos que a tristeza do gado vacum. infelizmente. Todavia. segundo suponho. afirmou que.. mas havia tanto soldado de polícia que não se sabia se era uma reunião de operários ou de toldados de polícia. Mussolini falou para representantes de quarenta e sete países. e graças à energia incomparável do Sr. Mussolini. sob o regime fascista. indiscutivelmente.PEQUENAS NOTÍCIAS Dia do Trabalho. Um orador. todo o glorioso povo italiano. Na véspera. A ordem foi mantida. inaugurou-se um Congresso Mundial do Leite. em Roma. O Sr. as vacas produzem mais leite. Os operários não permitiram que a polícia praticasse nenhum distúrbio. Em seguida os representantes de quarenta e sete países beijaram a 31 . Houve u m a reunião de operários em São Paulo. que tem ao seu lado.. G a n h a r á 7. por um preço muito mais baratinho.500 francos por execução. trabalhariam inteiramente grátis. como diziam os gregos. Festejou o acontecimento com u m a pequena farra. Sabedores disso. e. aconselhando o mundo católico a beber leite. durante o ano passado.mão do Papa. inclusive o do carrasco Deibler. mais. uma estatística apontou. sentindo o sublime desejo da maternidade. fez a sua 300ª execução. Algumas dessas jovens mães nem sequer viram a cara dos pais das crianças. falando aos jornais. Em Nova York. porque nenhum bezerro teve a idéia de comparecer para protestar contra a usurpação. todavia. O Congresso correu em perfeita ordem. vários casos de nascimento por fecundação artificial. o carrasco francês. e mens sana in corpore sano. No mesmo dia. O Papa fez um discurso em francês. vários sem-trabalho se dirigiram às autoridades. segundo suponho. num total de 2 milhões e 250 mil francos por trezentos pescoços. declarando estarem dispostos a cortar pescoços. mas vai abandonar o ofício. que lhes sendo facultada a escolha dos pescoços. ter nenhum contato com homens. Disseram. não quiseram. Infelizmente o telegrama 32 . declarou que estava aperfeiçoando um novo tipo de guilhotina. sendo considerada um sinal do maravilhoso progresso da ciência na grande República do Norte. porque leite é saúde. Essa notícia despertou muitos comentários. O fenômeno ocorreu por correspondência. Trata-se de moças que. Deibler. a estatística das crianças que não nasceram. . 1934.não divulga o número de jovens que. isto é. São Paulo. durante o ano passado. maio. agiram em sentido exatamente contrário. Serão negros. Piquiri. Neste caso não existe amizade nenhuma a quem quer que seja. emoldurando suas faces de neve? Serão castanhos ou 34 . quem cortar. 5 de abril de 1934. peço ao público não cortar o cabelo de minha filha Alady. Rio Grande do Sul. Carlos Victor Kochenberger. sujeito a pagar 2:000$000 de réis e mais outras despesas que houver pelo mesmo motivo. abaixo assinado. de Cachoeira. publicou o seguinte aviso: "Eu. Cabelos de Alady. brilhantes. sem licença minha pessoalmente." O aviso é de 5 de abril e já estamos varando junho.. ficando. Nunca mais tive notícia nenhuma dos cabelos de Alady.ALADY "O c o m é r c i o " .. quer ir de baratinha a Cachoeira. e se divorciar em Hollywood. papai? — Fica aqui. Sim. Kochenberger se sentirá feliz vendo as tranças de sua filha. e o perfume e a fita dos cabelos de Alady? Falei em tranças. Pobre Sr.dourados? Alady será morena? E as tranças de Alady. Kochenberger. o Sr. A mão direita do Sr. em velhas tardes. Parece a sua mãe. voar para o Rio de Janeiro.. — O que é. se casar em Montevidéu. brilha na voluta azulada e nas tranças de Alady. minha filha. Mas os seus sonhos vivem em novas tardes. haverá tranças.. Kochenberger! Alady também sonha. quer passear em Porto Alegre. Desculpe. em dias que ainda não brilharam. Sr. Alady quer cortar os cabelos. A mão esquerda segura o cachimbo. naturalmente. 35 . Perdã3o. Lindas tranças. Alady chega perto do Sr. A luz do sol poente entra horizontal pela varanda... Kochenberger. — Vem cá. quando tinha dezesseis anos. Kochenberger. Kochenberger.. embarcar para Buenos Aires. fumando o seu cachimbo (o Sr. E o Sr. sentado em sua varanda. E o Sr. Alady. em manhãs que ainda não nasceram. Kochenberger acaricia os cabelos de Alady. Kochenberger pensa em outras tardes. pensa o Sr.. E o Sr. Kochenberger passa a mão nas trancas de Alady. mas é a pura verdade: Alady odeia essas tranças e odeia Piquiri. E do bojo escuro do cachimbo sai um fio de fumaça azulada. nas tardes mansas de Piquiri. Kochenberger não pode deixar de fumar cachimbo). lindas tranças. de minha parte o senhor pode ficar descansado. mataria Alady. de se desmaiar de tanta feiúra. Alady é uma pessoa viva.. pode ser a mais linda chinita de todos os pampas. Naturalmente. se mataria. Sr. Amanhã o senhor apregoará a ponta da orelha esquerda de Alady. eu seria capaz de arrematar a sua filha inteira. porque ela ainda não o deu a ninguém. o senhor me mataria. estão na cabeça de Alady. Kochenberger. descem em tranças pelas costas de Alady. inteirinha.. Talvez as trancas de Alady valham mais. Sr. mais bonita que a artista mais bonita do cinema. mas a sua filha é muito sapeca! Sei que ela tem jeito de santa e às vezes anda triste parecendo uma santa mesmo. o que tem importância é que ela não é objeto de leilão. Pode ser também feia de doer. Kochenberger. senhor. Kochenberger. inclusive a fita de suas trancas e o sinalzinho que ela tem no ombro. Sr. Não tem importância. Os cabelos de Alady pertencem a Alady. Sr. O senhor está pondo sua filha em leilão. Eu no momento não disponho de dois contos de réis. sobre os ombros de 36 . e eu teria de pagar todos os enterros e mais o preço da munição. Mas vamos devagar. Miss Universo.Sr. Kochenberger. pode ser mais bonita que dona Iolanda Pereira. depois o dedo mindinho. Dois contos de réis por umas tranças não é muito barato. Kochenberger. depois a covinha do queixo. Talvez um cacho dos cabelos de Alady valha mais de cem contos de réis.. depois.. E o senhor ainda fala em "outras despesas que houver pelo mesmo motivo". A sua filha. e o corpo de Alady pertence a Alady. São Paulo. Alady tem coração.. Alady coração e coração de moça de tranças anda voando no ar como um periquito..Alady. chamando outro coração. junho. cuidado. Sr. Alady tem corpo e alma. 1934. . Kochenberger.. Não adianta o senhor gravar de imposto de consumo os cabelos de Alady.. Mais para a frente o viaduto trepidava de homens e bondes ligando as duas praças rumorejantes.O VIOLINISTA O homem me carregou para diante dos mapas e dos gráficos. Contamos apenas com cem leitos em um hospital e mais cem em sanatórios particulares. E o homem disse: — Nesta cidade há. No meio da praça a feira das flores brilhava ao sol. Os bairros proletários fabricam anjinhos 38 . anunciando o maior violinista do mundo. Olhando pela ampla janela do quarto andar. O homem me carregou para diante dos mapas e dos gráficos. E disse mais: — Nesta cidade morre u m a criança de duas em duas horas. cinco mil tuberculosos pobres. seguramente. a gente poderia ver lá na praça o Teatro Municipal de São Paulo. E os arranha-céus se impunham no fundo azul do céu. O movimento do albergue noturno demonstra que.418 contos. distribui. para lá da janela azul. para o mesmo fim. Portugal é um país que tem a mesma população deste Estado. O homem ia falando. Não há leitos. todo ano. o câncer... O viaduto estava repleto ligando as duas praças.418 contos anuais para 235 instituições de caridade do Estado. Lá fora. e gasta atualmente mais 60 mil contos na construção de grandes hospitais. Isso quer dizer que. a fome crônica. Em cem mortos mais de trinta são crianças de zero a um ano.. Desde o começo da crise a natalidade diminuiu e a mortalidade infantil aumentou. O Teatro Municipal de São Paulo anunciava o maior violinista do mundo.. O governo dá 1.sem cessar. a feira das flores era uma alegria vermelha dentro da praça cinzenta.. 60 mil contos. 39 .. O governo de Portugal. Os arranha-céus se impunham no céu de anil. por dia.. em vez de 1. Não há lugares. 600 réis. para cada cama de hospital. ia falando. A sífilis. osseguiu: s hospitais e os asilos rejeitam diariamente a multidão dos doentes e das crianças sem amparo. o governo dá. E eu perguntei: — Qual é a causa de tantas mortes? E o homem respondeu: —Miséria. E o homem disse ainda: — No interior do Estado há municípios onde a percentagem de mortes sem assistência médica é de 100%.. Tenho oito filhos e cinco filhas. O cachorro está aí. Naturalmente o senhor não a vê. O amigo se foi. tem três anos e meio e morde como um funcionário público. somos dois. João Lourenço. tenho aqui esta mulher. não há dinheiro nenhum. Volte amanhã. E outro: — Hoje não é possível. Mas todos os parentes de minha mulher se instalaram aqui. É aquela jovem siri42 .E outro: — Amigo. Total: quinze pestes. à direita. só nós dois. Querendo levar todos é favor. chama-se Lord. Jesus Cristo João Lourenço. E outro: — Oh! sede bem-vindo. Hein? Ah. Aqui somos eu e ela.. A sua saudade jamais sairá de meu quarto e de meu peito! E outro: — Aqui moro eu. está. Meu nome? Ahn. Oh! E outro: — Dois. se quiser. Tome nota de seus nomes. esta sogra e algumas baratas. A minha idade? Oh! pergunte à minha filha. este papagaio. somos mil.. E outro: — Eu? Tinha um amigo e um cachorro. Mas ela está aqui. cidadão. pergunte. seu criado. O meu nome está escrito na palma de sua mão. o senhor é do recenseamento? Uff! Quantos somos? Somos vinte. Breve. levando minhas gravatas e deixando a conta da lavadeira. Mas nós dois somos apenas um. Quer saber o meu nome? Procure uma senhorita loura que mora na terceira casa da segunda esquina. seremos três. cavalheiro. Nome: João Lourenço. para a vida e para a morte! São Paulo. Creia que o aprecio muito. julho. Isso é uma grande qualidade. Ontem quis ir não sei onde com um patife que ela chama de "meu pequeno". não faça caretas. Ela disse que eu sou da idade da pedra lascada. o senhor é meu amigo íntimo desde já. está claro. O senhor pelo menos não é parente da mulher. profissão: idiota. cavalheiro. cavalheiro. 43 . 1934.gaita que está dando murros naquele piano. Está satisfeito? Não. Escreva isso. Não deixei. idade: da pedra lascada. escreva. cavalheiro! É a virtude que eu mais admiro! O senhor é divino. o maior problema municipal de Três Lagoas. e este cigarro que fumo foi aceso em São Paulo. 44 .MATO GROSSO T r ê s Lagoas. Estamos rente à fronteira. Mato Grosso tem 0.2 habitantes por quilômetro quadrado. e eram três paulistas. O problema de que o jornal trata com mais insistência. Conversei com três cidadãos de Três Lagoas. A fronteira é o rio Paraná. Visito a Gazeta do Comércio de Três Lagoas e sinto que estou em Mato Grosso. Falta de gente. de modo que para povoá-lo decentemente seria preciso que cada habitante tivesse um comprimento de cinco quilômetros e mil metros de largura. é o grande problema matogressense. será Mato Grosso? Saltamos do trem e a poeira de nossas roupas é poeira paulista. verificamos que em um grupo de dez cidadãos mato-grossenses faltam quarenta cidadãos. que o Sul deve deixar de ser Mato Grosso para ser Maracaju. à margem dos mesmos trilhos da Noroeste. etc. O contrário da Rua Direita ou da Rua do Ouvidor que. O homem se revolta contra a terra que é 45 . aproveita-o o melhor possível. já anda querendo se separar de Mato Grosso. a bela Campo Grande toda orgulhosa e rica que. Basta saltar na estação e andar pela rua que fica na frente para sentir a grandeza desses problemas. aborrecendo-o com seu brouhaha. demasiado larga e boceja desesperada em sua largura de terra arenosa esperando os transeuntes que não aparecem. ela torna lenta a sua passagem. tratam de maltratá-lo de todos os modos. Três Lagoas espia lá longe. quase exclusivamente de gado. Mato Grosso é um palco à procura de personagens. A rua é larga. Nada disso acontece. de tão rica e orgulhosa. Três Lagoas quer ser colonizada. É espantoso esse problema de separatismo em Mato Grosso. larga. aproveitada. a rua de Três Lagoas vive esperando transeuntes. agarra-o em suas areias. movimentada. E quando aparece um. mas vive. Se os dez fossem cinqüenta. dizendo que o Norte do Estado explora o Sul. Três Lagoas possui terras ótimas. ou vegeta.Examinando o problema sob outro aspecto. mal recebem um transeunte. Três Lagoas precisa de gente. até expeli-lo na praça. jogando-o sobre outros transeuntes. Mato Grosso teria u m a cabeça h u m a n a por quilômetro quadrado. grande demais. E crescerão dentro de vós. E as rodas do especial regressaram sobre os trilhos bamboleantes da Noroeste. homens de nossa raça e de outras raças levantarão casas em vossa terra e ruídos em vossos ares. E vosso nome e vossa fama e vosso espírito e vossa força atravessarão os mares. gigante das terras do centro. 46 1934. bichinho covarde da beira da praia. A vossa força dorme ao longo de vossas planuras. no fundo de vossas florestas. E pelos mares virão gentes para vos ver. Outros virão com arados. coca a cabeça. Sou um bicho covarde e voltarei daqui a quinze minutos para a beira da praia. julho. Em Três Lagoas ninguém me falou mal de Mato Grosso. e vós crescereis com eles. infinitamente longe. . Eu tenho apenas um lápis. nas barrancas de vossos rios sem fim. E assim vos vingareis dos mares que hoje ficam longe de vós e cujos clamores me chamam neste momento a mim. dentro do Palácio Alencastro. São Paulo. Eu apenas sacudi um pouco aquela poeira paulista de meu paletó e olhei para o Oeste com vontade de rezar: — Ó grande e santo M a t o Grosso! Eu sou um bichinho da beira da praia e aqui estou diante de vós. Mato Grosso. Outros mais peitudos virão para vos povoar. que só sabe escrever besteira. Assim rezei. máquinas e dinheiro. O interventor federal lá longe. e t c . enfermo ou fraco. abandonar animal doente. utilizar em serviço animal ferido. ter animais encerrados juntamente com outros que os aterrorizem ou molestem.ANIMAIS SEM PROTEÇÃO Mandaram-me para debulhar o decreto número 24. O artigo 3? diz que os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público. Getúlio Vargas. cujo artigo primeiro diz: "todos os animais existentes no país são tutelados do Estado". ferido ou extenuado ou deixar de ministrar-lhe medicamentos. etc. do Sr.645. conduzir animais de mãos ou pés atados. Fica passível de multa ou prisão quem mantiver animais em lugares anti-higiênicos ou privá-los de ar ou luz. etc. 47 . Até mesmo animais ainda de tenra idade se vêem obrigados a suportar rudes tarefas. Todos esses animais. Esses animais. e quase sempre sofrem espancamento e toda espécie de maus-tratos. como já disse. Vivem em cortiços e porões. Entretanto. Algumas vezes os animais vão com as mãos atadas por ferros especiais. eis aí u m a lei excelente. Já vi várias vezes esses estranhos animais. inúmeros desses animais a que me refiro 48 . se acaso se rebelam contra a sua sorte. Quando doentes ou extenuados. tuberculosas e exaustas. não podem contar com remédio e auxílio nenhum. São magros e tristes e se parecem extraordinariamente com os homens. quase privados de ar e de luz. O transporte é feito em carroças fechadas e incômodas. Machos de todas as idades. que diariamente são obrigadas a trabalhar. são muitas vezes utilizados em serviço quando fracos ou enfermos. atacados de todas as doenças. que fisicamente. são extremamente parecidos com os homens.Ora. são transportados imediatamente para jaulas apropriadas e mais infectas que quaisquer outras. em casebres infectos e em casarões imundos. Eu sei de animais que vivem em lugares anti-higiênicos. São inacreditáveis as barbaridades que sofrem os animais neste mundo. Levemos aos doutores promotores de justiça material para denúncias. são igualmente obrigados a prestar serviços rudes e esgotantes para viver. Há fêmeas de cinqüenta anos. se não quiserem morrer de fome. U m a das disposições da lei proíbe que se faça trabalhar animais desferrados em ruas de calçamento. agosto. de fato. Não gozam de saúde nem de conforto. São Paulo. mas não são homens. É interessante notar que. hoje em dia.645. Têm de trabalhar durante a vida toda. por isso vivem sujos e magros. Creio que não há. não têm a proteção de nenhum calçado. 1934. É engano. nenhuma espécie animal tão estupidamente explorada como essa. . esses animais enriquecem os homens e fazem prosperar os Estados que os exploram.acima andam desferrados. Eles. Creio mesmo que os animais citados não gozam de nenhuma das garantias do excelente decreto nº 24. devido a certas semelhanças. Os seus pés. que são muito parecidos com os pés humanos. São péssima e parcamente alimentados e não dispõem de nenhum cuidado higiênico. algumas pessoas pensam que esses animais são também homens. Desde o nascimento até a morte. têm alguma parecença com os homens. e destes só se obtém algum favor se continuarem dispostos a trabalhar toda a vida para eles. Com esse trabalho. são operários. eles sofrem toda espécie de misérias e tristezas. Hoje vai fazer sol quente. A água está fria. Está aqui a garrafa de cachaça. Os mosquitos do mangue estão dormindo. Remo 50 . Arranja um chapéu de palha. virada para mim. Uma espumarada de onda fria bate na minha cara. empurro a canoa e salto para dentro. com os pés rangindo na areia. Eu estou dentro d'água até os joelhos. O remo está úmido de sereno..SENTIMENTO DO MAR P a s s o pela padaria miserável e vejo se já tem pão fresco.. Ainda é quase noite. Vamos calados. Põe os pés em cima da poita. As jogadas e os camarões estão aqui. sujo de areia. Vem por aqui. Senta ali na proa. Você vai mesmo? Pensei que fosse brincadeira sua. aí tem espinhos. Vem. Olha a água suja no fundo da canoa. Arrasto a canoa para dentro da água. Andamos na madrugada escura. . Estamos quietos. ajuda. a proa bate n'água e avança. Olha lá a sua casa. como óleo. Estou remando em pé. O terral vem de longe. por causa da arrebentação. Esse ventinho que está vindo e passando em seus cabelos é o vento da terra. A praia pobre ficou lá longe. lá do meio da terra. não.. O remo está frio nas minhas mãos. Às vezes. mansa. mas tenho o remo. embebeu para sempre o lenho. Vem da terra escura para o m a r escuro. curvado para a direira. Quase! Outra onda dá um balanço forte e joga um pouco de água dentro do barco. Me dá essa cuia. O leme. Nós iremos com ele. a força do vento diminui um pouco. Firma aí. não? O pão está bom? Se você comer todo agora. Vamos um pouco beirando a praia para o norte. e passo o remo para a esquerda. amolece. pesada. A água está cinza. O m a r está muito calmo. Agora o ventinho nos pega. O meu leme está quebrado. escura. Vamos cortando a água maciamente. dos matos dormentes atrás dos morros. vai ficar com fome lá fora. Fica túmida feito mulher beijada. sento. assim como está. e ela bambeia. não tem medo.. com esforço. A vela treme feito mulher beijada. onde o cheiro forte e enjoado da maresia. A outra onda passa mansa.. e ela rói o pão olhando a água. esse cheiro que eu amo. Viro um pouco a vela. vou tirar a água da canoa. Levantei a vela encardida. com luzinhas piscando. Eu o mergulhei dentro d'água para limpar a areia. Não se mexa! Firme! Ooooi. Raspo o fundo do barco. feito mulher possuída. O balanceio nos leva. Fica sentada. A 51 .depressa. Não está vendo. Segura dos lados. A água que escorre molha as mangas de meu paletó. Tenho vontade de beijar a água... por exemplo. entre a voz da água na beira da canoa. sobe e desce no horizonte. O frio do fim da noite. Beijar de leve a flor salgada da água. apaga o meu sono. Eu olho a água. com um cheiro úmido.. Seu riso rasga a calma do mar escuro. me faz abrir as narinas. Ri. na proa. débil. que é apenas um vago debrum sujo além da água. com pureza. Seu corpo. Seu riso quebra. como se eu tivesse ficado triste muito tempo e de repente tivesse dito uma coisa engraçadíssima. Nós avançamos no bamboleio manso. um desejo que sabe que veio à toa e que vai à toa. o ar cheio de água. parte. depois beijar com lábios úmidos. E nós con52 . U m a claridade pastosa. Acendo um cigarro e pergunto: — Você quer fumar? A minha amiga não fuma. de manso. em uma tarde comum. A sua voz me vem.água fala alguma coisa ao batelão. e ri. É como se estivéssemos em terra e. Ri muito.. destrói o encanto molengo da madrugada. ou nós andássemos depressa pela rua. Na penumbra imensa seus cabelos parecem úmidos sobre a testa morena. fizesse sol. atravessando o vento fraco. aquela boca sob os olhos negros. numa ternura de velha amiga com velho amigo. como se o mar não estivesse soluçando sob a canoa. lambendo seu corpo. Mas isso é apenas um desejo à-toa sem força nenhuma. Contempla lá atrás a terra que vai morrendo no escuro. conversando com moleza. vem lá do fundo sobre o qual o seu corpo deitado se balança. Ela está quase deitada. sob a testa morena. Ela está virada para mim. Rio. a vertigem calma do mar. Tudo vai clareando no ar e na água. esta vela encardida e pequena. como se a água rompida pelo remo não tivesse músculos e alma. 53 . eu converso conversas da terra com essa filha da terra. fôssemos a um cinema. pescarei. Ela me interrompe para contar uma coisa — u m a coisa terrena. onde os homens se atormentam. Conversamos. acontecida na terra. Remo. Vou remando. A nossa vida não é apenas esta velha canoa. Pescarei. Remarei. voltarei para terra conversando. Ela achará cacete. Eu pescarei e assobiarei um samba. 1935. Se ela estiver cansada. Eu conto histórias do mar. até sentir bater na lama. remando tão bestamente como se os músculos de quem rema não tivessem alma. como se fosse um velho pescador. este remo úmido. com lâmpada elétrica. Eu remarei para a terra logo que ela estiver cansada do mar. não há mais encanto nenhum. me interesso. Somos gente da terra. Pedirei a ela que se levante para que eu possa descer a pedra pela proa. sem nenhuma evasão nem mistério. como se estivéssemos em um bonde. Meu sentimento é inútil. e não poderia lhe ensinar meu sentimento. Não estamos sozinhos no mundo. se ela achar cacete. E eu ouço. Ela é da terra. em uma canoa no meio do mar. nas minhas veias rolando ondas. dentro de u m a casa na terra.versamos animadamente. Desci a vela. está viciada pela terra. janeiro. como se eu jamais tivesse sentido pulsar. Se houver rádio. HEITOR E r a noitinha em Vila Isabel. Os que ainda não haviam jantado chegavam nos ônibus e nos bondes. As famílias jantavam.. Ele dará um beijinho mole na testa da mulher. os homens trazem os vespertinos. os filhos o receberão batendo palmas. Os homens que voltam do trabalho da cidade. Cada um entrará em sua casa.A EMPREGADA DO DR. o homem pensará na pres54 . Caras de bondes. Se o homem tiver filhos. e perguntará se ele quer tomar banho. O rádio tocará um fox. Chegavam com aquela cara típica de quem vem da cidade. As mulheres trazem as bolsas. Se o homem tiver um cachorro. caras de ônibus. o rádio será ligado.. batendo o rabo. o cachorro o receberá no portãozinho. Ouvindo o fox. A mulher m a n d a r á a empregada pôr a janta. As mulheres que voltam das compras na cidade. — Oito e quinze." A mulher ficará um pouco aborrecida e como nenhum dos dois terá ânimo para discutir ela dirá: " m a s . Todos os três gostam de conversar a respeito da repartição. O velho está aposentado. A empregada servirá a mesa. para concordar com alguma coisa.. ao cinema. .. Muito. porque não tinha reparado.tação do rádio. não assina mais o ponto. A mulher olhará outra vez. O homem perguntará que horas são. " Então o homem. No relógio da sala de jantar do vizinho serão quase oito e vinte. Depois irá para o portão. você nunca tem t e m p o . A moça saiu com o namorado que é quase noivo e que a levará ao Boulevard. A mulher olhará o relógio. . Talvez mesmo não gostem de conversar a esse respeito. O homem conversará com a mulher dizendo: "mas. Eles têm um amigo que é importante na Prefeitura. à Praça 7 de Março. Na véspera o filho dissera ao pai que o chefe da repartição estava doente. Em compensação a família é maior. minha filha. Mas conversam. Eles vão acom55 . a mulher pensará em outra besteira idêntica. O velho estará perguntando ao filho se o chefe da repartição já está bom. Depois lavará os pratos. A outra era muito malcriada. eu não tive tempo.. A filha está em outra repartição. O velho é aposentado. sem propósito nenhum.. Depois. concordará com o seguinte: a empregada atual é melhor que a outra. O homem dirá à empregada para dar comida às crianças. o homem dará um suspiro. Essa agora é boazinha. A mulher dirá que as crianças já comeram. meu bem. O filho está na mesma repartição onde ele esteve. A casa da família é uma repartição. Era demais. que já está velha e nunca vai ao portão porque não tem nada que fazer no portão. pela cozinheira da casa. As luzes estão acesas em todas as casas daquela rua quieta de Vila Isabel. Depois do primeiro filho ficará doente e morrerá. e se julga independente. por exemplo: matar dona Maria. o seu patrão arranjará para ela um leito na Santa Casa. mas só recebe 410 miliquinhentos.. O emprego é tão bom que ela às vezes até trabalha. A sua tia costuma dizer aos conhecidos: ela tem um bom emprego. Um dia ficará mais doente. quando mudar o prefeito e o amigo de seu pai for aposentado. Ela um dia se casará e será muito infeliz. É uma mulata desdentada e triste. onde ela falecerá. Seu corpo será aproveitado no Instituto Anatômico. Outro homem dobra a esquina: vai ao Boulevard. dona Maria. Algumas empregadas amam. tão moça. A moça na repartição ganha 450. A tia chorará muito e comentará: coitada." E há quinze anos vai fazer o que dona Maria manda. E que nunca teve uma idéia interessante. mais escuro e mais feio pelo formol. a vida é muito triste. 56 . e por ser um homem de bom coração. Algumas famílias vão ao cinema. Com muito trabalho. E continuará vivendo.panhados da menorzinha. que há quinze anos responde à mesma dona-de-casa: "eu já vou. Essa opinião é defendida. Está tão cansada de viver que nem sequer mais quebra os pratos. A criança também morrerá. tão boa. viver sem mãe não vale a pena.. Um homem dobra a esquina: vem do Boulevard. coitadinha. Aliás. incendiar a casa. Também. entre outras pessoas. Perderá o emprego por causa de uma injustiça e negócios de política. Todos andam e cantam um samba. São quinze. A empregada do Dr. e que estava na hora de dormir. filhos do samba. olhando aqueles meninos sujos que cantavam e iam livres e juntos pela rua. Ide. garotos de Vila Isabel. De alguma coisa que será um molequinho vivo que cantará samba na rua. e uma voz de criança canta dois versos que outra voz completa. talvez engraxates. que vos separará e vos humilhará um a um pelas esquinas do mundo. 1935. uns rindo. Ide. ficou com inveja. Heitor é de cor parda e namora um garboso militar que u m a noite não virá ao portão e depois nunca mais aparecerá. marchando. Devem ser jornaleiros. Rio. Vem chegando. todos se divertindo extraordinariamente. Eles vão andando depressa como se marchassem para a guerra. vinte moleques. . outros muito sérios. cantando alto. O menino. Ide batendo as mãos. marchando. cantando. batendo palmas para a cadência. deixando a empregada do Dr. Toda gente quer ver. O batido das palmas dobra a esquina. Heitor à sua espera e à espera de alguma coisa. desentoando com ardor. batendo palmas. filho do Dr. talvez moleques simples. ide cantando para a vida.De longe vem um rumor. O coro termina. Passam assim. É uma garotada suja. Heitor disse que aqueles eram os moleques. E o coro recomeça. A empregada do Dr. Nenhum tem mais de quinze anos. um canto. Heitor. fevereiro. — ai! — seus olhos não constam do telegrama. Isso não quer dizer que Alice não os possua. e devem ser perfeitos e lindos. A sua mãe se chama Rosa.. ou seja caolha. Tudo isso veio em um telegrama que tem exatamente cinco linhas.MISTURA N a d a sei. de neve. um corpo que tem a cor da espuma puríssima. de que verdes hão de ser? Estudei longamente olhos verdes. Eram estriados de não sei que traços de ouro. que o vento da tarde espalha sobre as ondas do alto-mar. felinos. Devem também ser verdes. fulvos. levíssima. Alice tem um corpo muito branco. nada sei desse caso. esse verde que vemos nas 58 . e principalmente dois dentre eles. ruins. Seus cabelos são louros e seus olhos.. Os olhos estão subentendidos no telegrama. Apenas sei que Alice é muito branca e muito loura. Há verdes límpidos. E sendo verdes. como aquele que vemos em certos recantos esquecidos do céu. Alice fugira com José Cândido. Eu por mim. verdes escuros que são castanhos sob a luz elétrica. E por que não seriam azuis os olhos de Alice? Há por aí um azul claríssimo e suavíssimo. afirmo em face da lamentável omissão do telegrama que eles são verdes. José Cândido é um brasileiro de cor negra. Que os olhos de Alice fiquem sendo para vós. resumidos em uma só pessoa: a sua mãe. Há verdes marinhos. Disse isso debulhada em lágrimas. Há tantos olhos de cores tantas olhando esta vida! Até vermelhos há muitos. porque tem idéias muito esquisitas. verdes. com meiguice. Alice. É um azul singelo e antigo. mãe de Alice. bem rasgados. porque é uma excelente senhora. Dona Rosa. e dona Rosa berra como só as verdadeiras mães sabem berrar: 59 . que os amo verdes.folhas molhadas das árvores adolescentes. verdes minerais. negros dentro de u m a sala. Alice tinha um defeito e uma virtude. à tardinha. tão verdes como o selo de imposto de consumo nacional. vermelhos de chorar. límpidos. da cor de vossa preferência. cor de roupa de brim azul muitas vezes lavada. verdíssimos quando a luz natural os beija de lado. tão alva e loura que era". Isso desgostou dona Rosa. quando a chuva passa e o sol fraco da tarde brilha muito louro. e pode ser considerada um defeito de Alice. leitor. belos. a ebúrnea Alice (ebúrnea quer dizer: branquinha). pode ser considerada u m a virtude de Alice. A sua idéia mais esquisita coube na quarta linha do telegrama: ela disse ao delegado que "Alice merecia um bacharel. que importa a cor do cicerone? Neste país. aqui estão as minhas. e as mocinhas não são raptadas facilmente como um deputado paraense. A senhora. Chora de amargura ao pensar que um corpo rude e preto de homem se junta ao corpo alvo e fino de Alice. Se a senhora não acredita. não há.— E l a merecia u m bacharel! Calma. As mocinhas. muitos brancos amaram muitas pretas. eu lhe mos- 60 . São fracas e mofinas. Calma. Há dois problemas a considerar: o problema da cor e o problema do título. e não há remédio. é gostoso e bom. As mocinhas partem assim. não creio que valha a pena. dona Rosa. José Cândido não tinha nem a cor nem o título convenientes à sua filha. e em seu desespero a senhora diz que as carnes alvas de Alice mereciam carnes de bacharel. Alice está passeando no País das Maravilhas. Alice foi porque quis. Uniu seu braço alvo ao braço preto de José e partiu. esperneiam e fazem um berreiro medonho. E se aquele país. Eu as ofereço. dona Rosa. mas brancas e jurídicas. dona Rosa. dona Rosa. treme de vergonha ao pensar que u m a dura carapinha espeta o mesmo travesseiro em que repousam os cabelos de seda loura de sua filha. falando francamente. pelo qual todas as mocinhas suspiram. Mas ele raptou Alice. Se a senhora quer carnes de bacharel para sua filha. quando não querem ser raptadas. Porém. dona Rosa. Essa confusão de carnes brancas e pretas faz a senhora desesperar. Alice fugiu com um José que não é bacharel e que é preto. Calma. na linguagem corrente. . calma. Alice está no País das Maravilhas. fevereiro. 1935. dona Rosa. as mulatinhas de olhos verdes? Rio. trazendo pelo braço uma criancinha mulata de olhos verdes? E a senhora não acha lindas. As provas andam aí por toda parte. são dengosas e excelentes e se chamam. Calma. mulatas. E quem sabe se ela não voltará de lá um dia para a sua casa.trarei as provas. dona Rosa. dona Rosa. suas alpercatas rudes pisam algum terreno sagrado. Aprovo de coração aberto o veto que ele deu a uma lei que mandava abrir um crédito de mil e duzentos contos para a campanha contra o cangaceirismo. O presidente vetou porque não há recursos. Bárbaro. Lampião. Há algum pensamento certo atrás dos óculos de Lampião. Não creio que o povo o ame só porque ele é mau e bravo. Eu vetaria por amor ao cangaço. O povo não ama à toa. é um herói popular do Nordeste. que exprime o cangaço. ele é. por falta de dinheiro. O que ele faz corresponde a algum instinto do povo. isto é. Dizem que conseguiu ser tão bárbaro e covarde como a polícia — a polícia que o 62 . covarde. Getúlio Vargas.CANGAÇO E r g u e r e i hoje minha débil voz para louvar o Sr. a ação dos cangaceiros não pode ser muito antipática. vive e morre gente dentro dessa profissão. Filhos de cangaceiros são cangaceiros. As atrocidades dos cangaceiros não foram inventadas por eles. a vida do cangaço não pode ser muito suave. Quando centenas de homens vivem essa vida. Se alguns desses senhores se aliam aos cangaceiros. Ora. através dos dias. nem constituem monopólio deles. Mas é preciso lembrar que ele está sempre em guerra. e na guerra como na guerra. Nasce. das semanas. para as massas pobres e miseráveis da população do Nordeste. Eles não estão organizados em sindicatos nem em associações recreativas: estão organizados em bandos. O cangaceiro é um homem que luta contra a propriedade. Eles aprenderam ali mesmo. é preciso desconfiar que não o fazem por esporte nem por excesso de " m a u s instintos". serão pais de cangaceiros. para poderem lutar contra outros senhores. De resto. E é até interessante. a acreditar no que José 63 . é u m a força que faz tremer os grandes senhores feudais do sertão. O cangaço não é um acidente. O tempo corre. Ele se tornará também bárbaro e covarde.persegue em todas as fronteiras. dos anos. de morte. dura. colocai-o à frente de um bando. para garantirem a própria situação. É uma profissão. Ora. aprenderam à própria custa. é apenas por medo. mandai-o lutar u m a luta rude. dos meses. Retirai de seu aconchego doce qualquer de nossos ilustres e luxuosos generais. e em muitos casos. É uma vida cansativa e dura de roer. Todos os homens pobres do Brasil são lampiõezinhos recalcados. Vi um velho engraxate mulato. Mas é uma literatura que nasce de uma raiz pura. que o endeusa. A literatura popular. Tristão de Ataíde. de sua crueldade. Eu percebi aquele gozo obscuro e senti que ele tinha alguma razão. Os métodos de Lampião são pouco elegantes e nada católicos. 64 1935. um rapaz jornalista. que se babava de gozo lendo façanhas de Antônio Silvino. se assim o preferis. que tem a sua legítima razão social e que só por isso emociona e vale. ele é um herói — o único herói de verdade.Jobim. é cretiníssima. Mas dou àqueles bravos patrícios o meu inteiro apoio moral — ou imoral. Dentro de sua miséria moral. É estúpido. Rio. amam mal. Mas se o povo o admira é que ele se move na direção de um instinto popular. comem mal. Dar mil e duzentos contos para combater o herói seria uma tristeza. nem as poesias do Sr. todos os que vivem mal. Que fazer? Ele não tem tempo de ler os artigos do Sr. minha ilustre senhora. escreveu em Hitler e Seus Comediantes. os cangaceiros são anjinhos ao lado dos nazistas. Antônio Carlos. . agora em segunda edição. Murilo Mendes. fevereiro. de sua inconsciência. Eu por mim (quem está falando e suspirando aqui é o rapazinho mais pacato do perímetro urbano) confesso que as surtidas de Lampião me interessam mais que as surtidas do Sr. ignorante. sempre firme. Não sou cangaceiro por motivos geográficos e mesmo por causa de meu reumatismo. pretas.. As amplas mas- 65 .. caboclas. engraxates. Mas a m a n h ã outra vez as amplas massas amarão." É um profundo samba orfeônico para as amplas massas. As amplas massas imploram. empregados em padarias... As implorações não serão atendidas. cozinheiras. massa torpe e enorme. mulatas. lavadeiras. operários em construção civil. Eu amei. como vos apertais! E como a vossa marcação é dura e triste! E sobre essa marcação dura a voz do samba se alastra rasgada: "Implorar Só a Deus Mesmo assim às vezes não sou atendido.BATALHA NO LARGO DO MACHADO C o m o vos apertais. As amplas massas hoje estão arrependidas. jornaleiros. As amplas massas amaram. nos puxões da mão negra. à base de cuícas. ritmadas. muito para cima dos fios elétricos. Tudo contribui para a riqueza interior e intensa do batuque.. Uma jovem mulata gorducha pintou-se bigodes com rolha queimada. Tudo avança batucando. Mas cada rancho é um íntegro. a boca berrando. se formam em torno do surdo de barril. e moças mulatas e mulatas maduras. berrando. As negras estão absolutas com seus corpos no batuque. Vede que vasto crioulo que tem um paletó que já foi dólmã de soldado do Exército Nacional. Os ranchos se chocam.. botinas sem meia. Porém dentro dele há variações bruscas. se partem dentro das gargantas vermelhas. desesperadas! Como essas estragadas vozes mulatas estalam e se arrastam no ar. e um guarda-chuva preto rasgado. tem gorro vermelho. e mulatinhas impúberes e púberes. sapateios duros. apenas os cordões se dissolvem e se reformam sem cessar. absoluta. se misturam. o suor suando. e rebentam. Como as vozes se abrem espremidas e desiguais. Meninas mulatas. O batuque é uniforme.sas agora batucam. e maduronas. Morram as raças 66 . e os blocos se bloqueiam. E no fundo a cuíca geme e ronca. e aquela negra de papelotes azuis canta como se fosse morrer. rachadas. Os tambores surdos fazem o mundo tremer em uma cadência negra. machos e fêmeas. Como são desgraçados e puros. e estragadas mulatas gordas. chorando. tamborins e pandeiros que batem e tremem eternamente. se rebentam. altas. reviramentos tortos de corpos no apertado. calça de casimira arregaçada para cima do joelho. perante os bondes paralisados. de capa de gabardine apenas. louro. apenas se iluminando. cantai.puras. e pernas escuras. caras com vermelhão. o bodum pesando. As caboclas de cabelos pesados na testa suada. chapéus de palha. mas sem deturpar nem iluminar a noite. o homem fantasiado de cavalo dá um coice no soldado. e ele canta também com u m a voz que ninguém pode ouvir. tais corpos de bronze que é brasa. Batucam! Vai se formar uma briga feia. marcando o batuque. o chocalho de lata. o apito comandando. Pudesse um grande sol se abrir no céu da noite. cuspindo fogo. e testas. pobre. e braços. de macacão. tais bocas de largos beiços puros. implorai. O apito comanda. e tudo roda dentro do samba. morríssimam elas! Vede tais olhos ingênuos. e o cordão empurra e ensurdece os briguentos. o tambor marcando. Os negros e mulatos inumeráveis. que mil escalas de mulatas! Vozes de mulatas. o violão que ficou surdo e mudo. mulatas. e ardendo. condenadas. . que leva no colo u m a criança que berra. nem a Deus. o cavaquinho oprimido. caboclos. o pau batendo no pau. com os corpos de seios grandes e duros. como u m a grande estrela do tamanho de três luas pegando fogo. implorai. no meio da noite! Pudesse esse astro terrível chispar. mas o cordão berrando o samba corta a briga. só a Deus. sobre vossas cabeças que batucam no batuque. à noite escura arrependidas. Olha a clarineta quebrada. e que acabou rebentando as cordas sem se fazer ouvir pelo povo e se mudando em caixa. cartolas. e no meio do cordão vai um senhor magro. os estandartes dançando. de camisetas de seda de mulher. barretes brancos. Pequenos cordões que cantam marchinhas esgoeladas correm empurrando. Com que forças e suores e palavrões de barqueiros do Volga esses homens imundos esticam a corda defendendo o território sagrado e móvel do povo glorioso da escola de samba da Praia Funda! No espaço conquistado as mulatas vestidas de papel verde e amarelo. Que massa de meninos no rabo do cortejo. concebidos e gerados e crescidos no batuque. batendo no asfalto as pernas de pau. nesses sons pesados e negros. o suor negro e o soluço preto inundam o mundo. os braços dos que batucam espremem vossos braços. nas mãos de um moleque que possui um olho furado. nove. que jamais perdem a cadência. e no coreto os clarins da banda militar estalam. e vedes o chão molhado. as gargantas que cantam exigem de vossa garganta o canto da igualdade. dez. Juro que iam dois aleijados de pernas de pau no meio do bloco. meninos de oito anos.Mas que coisa alegre de repente. e tendes vontade de chorar de desespero. varando a massa densa e ardente. berram prazenteiras e graves. Mas outra vez. não pára nunca. e ficais tristes. De repente em redor o asfalto se esvazia e os sambas se afastam em torno. as caras passam na vossa cara. liberdade. segurando arcos triunfais individuais de flores vermelhas. que batucarão até morrer! De repente o lugar em que estais enche demais. uma sanfoninha cujos sons tremem vivos. 68 . a massa envolve tudo. fraternidade. O asfalto porventura não é vosso eito. lá também ouviu. o povo e as autoridades. constituiu um verdadeiro pavor para a população carioca. Como se esparrama pelas massas da cidade esparramada essa improvisação de um dia? As patas inumeráveis batem no asfalto com desespero. 10 de fevereiro. onde se achava recolhido.. veio trazer a tranqüilidade ao espírito de todos. Neste dia de domingo." Que repórter alarmado! Injuriou. o Diário de Notícias publica na primeira página da segunda seção: "A sensacional fuga de Febrônio. e eu também soluço e canto. que preferiu ir batucar em Dona Zulmira. Foi preso no dia 9 à tarde. inclusive ao das autoridades que o procuravam.Febrônio fugiu do Manicômio no chuvoso dia de sexta-feira. escravos urbanos e suburbanos? A cuíca ronca. naquele canto glorioso de Andaraí. população! Mas eis que na noite do dia chuvoso de domingo. 10 de fevereiro pela manhã. e eis que o nosso amigo Miguel.. A sua prisão. ronca. desde 1927. meus senhores. é um ronco que é um soluço. horrível.. Encostai-vos nas paredes.". ouvimos: "Bicho Papão Bicho Papão Cuidado com o Febrônio Que fugiu da Detenção. A cuíca ronca no fundo da massa es69 . e vós também fortemente cantais bem desentoados com este mundo. do Manicômio Judiciário.. a mesma coisa. 8 de fevereiro de 1935. ocorrida na tarde de ontem. Isso ouvimos no Largo do Machado. ronca. estomacal. . também ronca e soluça e sua de amargura? Nesta mormacenta segunda-feira. Ameaça chuva. dos agarramentos suados. exceto gargantas. O povo não gastou nada. um jornal diz que "a batalha de confete do Largo do Machado esteve brilhantíssima". Rio. O asfalto está molhado nesta noite de chuvoso domingo. e ali se prepararam batalhões para o carnaval — nunca jamais "a grande festa do Rei M o m o " — porém a grande insurreição armada de soluços. uma batalha de roncos e soluços. um trovão troveja. Eis que ali houve. Repórter cretiníssimo. O céu também sente fome. que não custam dinheiro.cura. do bodum. e eu vi. e dores e almas. • m>. sabei que não houve lá nem um só miserável confete. A cuíca de São Pedro também está roncando. «70 1935. 11 de fevereiro. do batuque pesadão. fevereiro. um passarinho canta e voa. O conde Matarazzo é um conde muito velho. aconteceu também um passarinho. E esses dois personagens — o conde e o passarinho — foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo. entre um conde e um passarinho. Torço pelo passarinho.O CONDE E O PASSARINHO A c o n t e c e que o conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O 71 . Devo confessar preliminarmente que. Era uma condecoração. Ora. O conde não sabe gorjear nem voar. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. prefiro um passarinho. Tem também muitas honras. que tem muitas fábricas. No parque havia um passarinho. amarrada a uma fitinha. Afinal de contas. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o conde exibia à lapela. Em geral. de fábricas espalhadas pelo Brasil. aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. um passarinho. Se o motorneiro se fizer de surdo. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde. barulheiras enormes. sabe voar. e o conde é conde porque é industrial. o conde é um industrial. Marcamos no relógio quanto nos deu 72 . nessas circunstâncias. o motorneiro dá um coice. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa. o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. vozes dos operários. Foi um assalto imortal. dos teares.conde gorjeia com apitos de usinas. Então o povo deve agarrar o motorneiro. ser um passarinho. Também não amo os industriais. e amanhã mais se confundirão na morte. Pierina e a vida. sabe cantar. duas coisas que se confundem hoje. Quando eu era calouro de Direito. O povo deve falar ao motorneiro. Eu quisera ser um passarinho. Não. das máquinas de aço e de carne que trabalham para o conde. Não amo os condes. é apenas um passarinho e isso é gentil. Eu quisera ser um urubu. apoderar-se da manivela. Tem um ninho. O essencial é falar ao motorneiro. U m a ave maior. não é conde. Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. não. O passarinho não é industrial. colocar o bonde a nove pontos. Entretanto. não tem fábricas. eu não quisera ser conde. mais triste. Que amo eu? Pierina e pouco mais. O conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres. não era. puxou. e declaramos que a passagem era grátis. achou muita graça. saiu voando com a fitinha e com a medalha. Mas não eram mãos de criança nem de santo. meu velho Rubem? Mas voltemos ao conde e ao passarinho. o exercício de suas funções. Molecagem podre. a esta hora assim. era apenas um passarinho. para conversar com o passarinho. com a medalhinha no bico. Quando poderás ser um urubu. O passarinho. O conde ficou muito aborrecido. Bicou a fitinha.na cabeça. O conde desejou ser que nem o seu patrício. Paciência. voai. era apenas o conde Francisco Matarazzo. Os bonés eram os símbolos do poder. feito um santo. Mas não era o Santo Francisco de Assis. O conde ergueu as mãos. feito u m a criança. um urubu. eram mãos de conde industrial. o conde estava passeando e veio o passarinho. Ia bicar seu coração? Não. o outro Francisco. O motorneiro e o condutor perderam. A vida também é uma imensa molecagem. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do conde. Em que peito a colocareis. Ora essa! Que passarinho mais esquisito! Isso foi o que o Diário de São Paulo contou. o Francisco da Umbria. está voando. ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. ele não era um bicho grande de bico forte. Ora. rápida e violentamente. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Perderam também os bonés. Porém. voai por entre as chaminés do . por exemplo. Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. irmão passarinho? Voai. sobre as máquinas de carne que trabalham para o conde. voai. voai. voai. voai. fevereiro.conde. Rio. 74 1935. varando as fábricas do conde. voai. . passarinho. Poderiam ter cortado a haste de uma palma. Elas durante duas noites ainda agitaram suas palmas no ar. Ficavam atrás das canoas. As palmeiras nada sofreriam. As balas do capitão poderiam ter ferido aqueles troncos. Quando a lua é cheia. Atirou nas palmeiras. a maré baixa vai mais baixo do que nunca. Em noites de lua cheia as suas folhas de prata verde dançavam na areia branca. Nós possuíamos antigamente dois coqueiros. Mas a seiva do peito escorria pelos troncos longos.A LUA E O MAR A lua domina o mar. Mas o capitão em férias gostava de fazer exercícios de tiro ao alvo. e isso faz uma falta muito triste. A praia não tem palmeiras. U m a palma despencaria dançando ao vento e o vento ainda a arrastaria sobre a areia branca 75 . ainda reagiram contra o vento. Atirou no peito das duas palmeiras irmãs. Armando me fala da lua do Ceará. Ali podereis ver ainda dois pequenos tocos. Agora ali os pescadores vão estender suas redes. Rua de bairro sossegado do Rio de Janeiro. A namorada mora em u m a rua sossegada. Porém. em noite de lua. A palmeira mais alta. Armando jamais voou sobre as ondas em jangada. É atrás do pouso das canoas velhas.e solta. ele fala com mágoa da lua do Ceará. pouco a pouco enfraqueceram e murcharam. que também ela tinha o coração ferido. a palmeira mais alta teve o coração malferido. A seiva veio escorrendo do fundo do peito. As palmas altivas que lutavam contra o nordeste mais bravo. em noite de lua. conversou com a namorada na rua dormente. Quem nunca estudou botânica sabe que palmeira da beira da praia tem um coração verde. E elas dançavam para a lua. O capim cheio de espinhos agoniza na areia salgada. Armando. A bala penetrou ali como em carne túmida. aquela que mais de perto sabia dançar para a lua. e onde o terral que ia à noite para o meio do mar dava o último beijo na vida da terra. A seiva branca invade aquele coração e o coração verde palpita. que mais longe fazia dançar na areia alva a sua sombra. Mas o capitão atirou no peito da palmeira mais alta. A palmeira menor acompanhou sua irmã. A lua é cheia. até que as folhas fossem enterradas na areia morena e molhada. O tronco alto e fino não teve mais vida para continuar erguido. Ali tínhamos duas palmeiras. As 76 . Ele tem u m a namorada muito loura e fina. e o sudoeste o derrubou n u m a tarde de chuva. criaturas. estavam platinados sob o luar. tão funcionárias. muito raro. e eles beijados pelo luar se cercavam de um doce nimbo. pois sua namorada estava vestida de azul. A conversa foi longa e tímida. Armando idem. eram de leite. Não há nenhuma água no céu. as estrelas se multiplicam por mil e se dividem por um e assim formam u m a espécie de luar suplementar. Mas n ã o o acuseis. a cor do luar. Armando pretendia que na lua nova o brilho das estrelas fazia sombra nítida na praia. Muito. habitualmente tão prosaicas. era muito alva. Seria. de seda? Cintilavam. A sua pele tinha a cor da seiva das palmeiras. Mas a sua pele não tinha a cor trigueira do corpo de Iracema. criaturas. As velas pandas voavam nas espumas para o mar alto. Os cabelos eram de prata. Parecia uma garça que voasse no alto-mar 77 . a lua brilha no ar seco. E é preciso perdoar Armando. o luar escorria neles. talvez. eram de ouro. A r m a n do suspirou dizendo que a lua do Ceará brilhava tanto e tanto — ai! — que em chegando a lua nova ainda havia no ar um resto do luar da lua cheia. Eu indaguei se eram assim tão claras as estrelas cearenses. delírio de A r m a n d o . Os cabelos louros da namorada de Armando. voando pelo céu. A jangada tanto deslizou que começou a se erguer das águas e foi voando no ar. de Sulamita e das palmeiras da Bíblia e do Brasil. Armando disse tanta coisa sobre a lua do Ceará.pequenas árvores urbanas. estavam líricas. passava um passante. A sua namorada ao seu lado na rua dormente era loura e tinha o talhe da palmeira como Iracema e Sulamita. O Ceará tem u m a lua especial. Assim em delírio ele disse que a jangada voava sobre as ondas. que talvez fossem apenas de um louro vêneto. Armando sabe coisas a respeito de sua magia. Como está claríssima de luar a praia! Que mar humilde e distante! A lua domina o mar. É doloroso constatar. Mas a lua é sempre lua. Se erguerem piedosamente ao luar. espuma de leite. A maré começou a descer já noite. Armando. preciso escrever outro artigo. Você agora tem de ir dar o plantão no hospital e eu. quanto a nós. me empresta esses olhos líricos. que eu preciso de magia.entre o mar e a lua. 78 1935. onde os pescadores estendem suas redes e o capim cheio de espinhos agoniza na areia salgada. no pouso das canoas velhas. Mas — ai! — as garças voam de preferência sobre os brejos. prata. para ganhar tem-tem. A praia cresceu tanto que parece infinita. Rio. no fundo dessas olheiras. já não possuímos nen h u m a palmeira. Eu quero essa visão das palmeiras irmãs ressuscitando no céu da noite enluarada. Armando está na r u a dormente namorando. Ela domina tudo. que isso é impossível no momento. . A maré tão baixinha soluça longe entre pedras cobertas de algas. e seus cabelos são de ouro desmaiado. Apenas lá vereis dois pobres tocos. e a conversa é longa e tímida. Armando. até que as palmas de prata verde bem altas possam dançar para a lua. A jangada de velas brancas está voando. Eu quero ver ao luar as palmeiras mortas se erguerem na minha praia. e a namorada se vestiu de azul. depois deste. março. seda? O fato é que. Em vista disso logo se disse.CONTO HISTÓRICO E l e acabou se hospedando em uma pensão do Catete. em Bento Lisboa. o roupão novinho. em um pardieiro sujo e escuro da Rua do Catete. Freqüentava a Faculdade de Direito. era muito animado o banho no Flamengo. A 79 . debaixo do morro. em 1935. A janela dava para um muro. filho de algum fazendeiro rico. Morava sozinho naquele quarto. Fazia calor. que ele devia ser estudante. na pensão. Ele vestia a roupa de banho comprada na véspera. O quarto tinha água corrente e era muito quente pela tarde. e não era rico. Era estudante. A rua começava na praia e ia findar para lá da Rua do Catete. Naquele tempo. não tinha pai nem mãe. era remediado. 80 . entretanto. denominada maiô. Essa vestimenta deixava-lhes as pernas livres. havia dificuldade para se deixar o roupão em um lugar seguro. As pessoas mais pobres. podiam. Um sujeito passou sacudindo o roupão sujo de areia e jogou areia em seus olhos. um óleo preto e pesado que pegava na pele. Um dos quatro rapazes que jogavam u m a pequena bola de borracha acertou com a bola o seu nariz. Esses incidentes fizeram com que Pedro tivesse a impressão de ser um intruso indesejável naquela praia. os olhos apertados. As mulheres vinham para o banho vestidas com a vestimenta então em voga. Pedro não conhecia ninguém e estava sentado na areia com um ar aborrecido. mas vedava o corpo até acima dos seios. cheia de gente. Sempre a água suja de óleo. A areia era suja e aos domingos era tão difícil andar pela praia sem pisar em algum banhista. quando acontecia haver grande concorrência e a maré estar relativamente alta. Aliás para o trânsito das casas para a praia era exigido pela polícia de então o uso de grossos roupões. usar paletós de pijamas. Uma prainha péssima. Os homens usavam simples calções de lã. A praia era de tal modo acanhada que. Devido à posição do lugar na baía ventava pouco: quem tomava banho de sol ficava suado. Um menino que tinha saído d'água respingou nele. pois o mormaço o obrigava a apresentar a cara em estado de careta permanente.prainha entre o muro e o mar ficava espremida. As " m o ç a s " assim se conservavam até os vinte e mesmo vinte e cinco anos. Naquele tempo existiam as chamadas "moças". assim permaneciam toda a vida. que procura retratar com fidelidade o atraso daqueles recuados tempos. por superstição religiosa ou motivos econômicos.Olhava as mulheres. É preciso não esquecer ainda que o chamado casamento era perpétuo. se conservavam em recato durante muitos anos. um dos mais curiosos e bárbaros costumes da época. que para isso usavam de variados e engraçados artifícios. A história de então registra casos de mulheres que. conversavam encostadas ao muro. embora fossem sãs e bem proporcionadas. Eram mulheres que. das casas e das máquinas. Duas moças de maio preto. Os homens ricos (é preciso recordar que naquele tempo havia homens ricos e pobres. Quem quiser estudar mais detidamente essa questão pode ler as obras de nosso jovem historiador Wells. uma de chapéu de palha. Os primeiros eram donos das terras. embora já fossem aptas para a vida normal. Entre os homens já não havia semelhante hábito. As mulheres eram muito procuradas pelos homens. e os segundos vi81 . Disso decorria que o número de homens úteis era sempre muito superior ao número de mulheres úteis. Isso era devido ao hábito do casamento. o que agravava ainda mais as ridículas condições da vida h u m a n a naqueles tempos. embora eles fossem vítimas de muitas restrições morais. Pedro sentiu u m a pequena moleza pelo corpo e é por isso que esticou o corpo e se deitou. Ele olhou para o céu. muito alvo. Assim sendo. absolutamente familiares e suspeitas. os cabelos sujos de areia. a garganta e o colo tostados pelo sol. os primeiros tinham grande interesse em manter o estado de coisas. como as máquinas. Todas as pensões. levantou-se. e para isso faziam e executavam leis como a chamada "Lei R a o " de 1935. Meio tonto. denominadas automóveis. deixava entrever. Pedro olhava as mulheres. Em sua frente u m a adolescente. no Brasil) — os homens ricos podiam dispor com facilidade das mulheres. em contraste com as coxas. pelo decote do maiô. pensões e rendez82 . com a vista escura. ainda rudimentares. pois para isso tinham não apenas o chamado "dinheiro". sentada na areia com os braços para trás. Pedro amava o seu Catete. Sem saber. muito do agrado das mulheres. No Catete florescia e se agitava u m a pequena burguesia instável e inquieta.viam em condições miseráveis. o rosto. Um autor da época assim descreve o ambiente: "O Catete é o nosso bairro mais nitidamente pequeno-burguês. O sol aparecera entre as nuvens leitosas e pesadas. o corpo suado. grande parte do seu pequeno seio esquerdo. Nele temos famílias. mulheres dúbias. as mulheres saem para as ruas. cadeiras de vime nos pequenos parques dos hotéis remediados. Os telefones do Catete estão sempre ocupados. e todas as histórias do Catete têm um sabor especial. Há açougues com anúncios em gás néon vermelho. Nas vilas discretas as famílias vivem sob o patrocínio dos algarismos romanos: I. recebem 35$ e pagarão 42$ quando chegar a mesada. A vida é medíocre. e ficam assanhadas para cá e para lá. Aí os bondes estrondam com mais força pela rua coalhada de cafés pelas esquinas. Porteiros e garçons de hotéis. Há mulheres de trinta e quatro anos que são tristes e semvergonhas e que vivem sempre em dificuldades. um sabor próprio do clima do Catete. pequenos comerciantes. galinhas fedendo em capoeiras. rádios nas salas de jantar das pensões. garagens. lojas apertadas e quitandas cheias de frutas. Há uma falta e principalmente u m a insuficiência de dinheiro crônica em todas as ruas. à noite. Funcionários. Seus habitantes sen83 . verduras. IV e assim por diante. estudantes. Há maridos enganados. ovos e moscas. engraxates. moças que têm um namorado na vizinhança e outro em Botafogo e telefonam noite e dia. vendas de móveis. Há mulheres sérias que esperam o bonde sem olhar para os lados. Há histórias tristes e cômicas. professores. II. O Catete é um bairro intermediário. mas tem vida. Os estudantes põem no prego os seus smokings. toda essa gente vive com u m a certa tristeza.vous. como baratas. A comparação é própria porque há muitas baratas nas pensões do Catete. Quando faz muito calor no Catete. casas sujas. III. os estudantes vindos dos bailes saltam dos bondes no Largo do Machado.30 o Catete janta e janta mal. Às 7 horas chegarão famílias de judeus com cara de sono. Os que beberam cerveja barata sentem um lirismo fermentando diante da rua escura. O smoking que está com um sempre é do outro. O mar parece um boi acordando e espelha os primeiros 84 . bebendo cerveja. para ver o sol nascer. se faz calor. pratinhos com um ar importante e de fraco poder alimentício. Às 7 ou às 7. e vão comer no Lamas ou em botequins sujos. São ridículos e boêmios assim vestidos na madrugada que agoniza com as lâmpadas elétricas. os que trabalham desde às 7 horas. Na praia já estão alguns banhistas. Na esquina há um poste com o sinal vermelho. Na madrugada dos domingos e segundas-feiras. As águas das ondas fracativas e doces mugem debaixo das pedras do Flamengo. Mas os estudantes que foram ver o sol nascer voltam enjoados. Os estudantes esforçam-se para conseguir convites para os bailes nos clubes. cansados. o Catete fermenta com u m a grande e mesquinha fermentação h u m a n a . Às vezes. Já não se pode arranjar mulata nenhuma em nenhuma esquina. os que querem ser atletas. Quase todos trazem os colarinhos duros desbotados e os laços das gravatinhas pretas desfeitos.tem-se satisfeitos porque estão perto da cidade e perto do mar. vestidos de smoking. pratinhos bestas das pensões familiares. antes do sol nascer. sangue na penumbra grossa. Falta água nos chuveiros. os que acreditam que o b a n h o de mar cedinho faz muito bem à saúde. Alguns estudantes caminham até a praia. comendo filés. Longe vem um bonde iluminado e barulhento. 2035. vindas também dos bairros elegantes de fora da baía. Águas Férreas e Gávea passavam em bondes. Sobre a questão de transportes convém assinalar. Não era "fim de linha". março. Outras passavam para a cidade em ônibus e automóveis. Rio. 85 ." Essa interessante narrativa da época ajudará o leitor a compreender o ambiente em que Pedro vivia. edição do Centro de Estudos Históricos. As pessoas menos remediadas de Laranjeiras.vermelhôes do céu do outro lado da baía. dos lados de Jurujuba. tão exatas quanto possível. Essas informações. É que o Catete ficava entre a cidade e outros bairros. que publicaremos breve. o trecho que diz — "o Catete é um bairro intermediário". Elas servirão aos leitores para verificarem o interesse que deve ter a história sobre A Vida de um Homem em 1935. Botafogo. colhemos em jornais e livros da época. das montanhas e morros baixos do litoral. que duas vezes por semana atropelavam um habitante do Catete ou do Flamengo. na transcrição acima. Sei que estava com Miguel em um reboque do bonde Praia Vermelha. Talvez no dia 12 de março. quando acontece alguma coisa eles suspiram e tocam o bonde. Nunca viajou naquele bonde um empregado da 86 . Também os loucos mansos viajam ali. Fatigaram-se naturalmente de advertir soldados e estudantes.CHEGOU O OUTONO N ã o consigo me lembrar exatamente o dia em que o outono começou no Rio de Janeiro neste 1935. mas sempre fui simpatizante. É o bonde dos soldados do Exército e dos estudantes de Medicina. Os condutores são amenos. Antes de começar na folhinha ele começou na Rua Marquês de Abrantes. liberdade de colocar os pés e mesmo esticar as pernas sobre o banco da frente. Nunca precisei usar sistematicamente o bonde Praia Vermelha. rumo do hospício. Raras mulatas no reboque. outra é sua. Muitos passageiros do bonde suavam. e era o vento do outono. e também a melhor ventilação. Os soldados do Exército não podem olhar as estrelas: lembram-se dos generais. outras no firmamento viram estrelinhas. 87 . e isso tanto pode ser doce vantagem como triste desvantagem. da estrela disponível? Que ela fique sendo propriedade das almas errantes. outras preferem a harpa dé Santa Cecília. segundo consta. a City! Assim mesmo se vive na Praia Vermelha. Atrás dessa folha veio um vento. Desvantagem é o encosto reduzido. O cantor tem pena da que vai ficar sozinha. A maioria vai para o Purgatório. e quando entramos na Rua Marquês de Abrantes. Vantagem é poder saltar ou subir de qualquer lado. Eu havia tomado o bonde na Praça José de Alencar. Essenciais são os esgotos da alma. rumo de Botafogo. o outono invadiu o reboque. ela. Lá no céu tem três estrelas. Nossa pobre alma inesgotável! Mesmo depois do corpo dar com o rabo na cerca e parar no buraco do chão para ficar podre. outras à meia-noite puxam o vosso pé. Invadiu e bateu no lado esquerdo de minha cara sob a forma de u m a folha seca. ó meu grande e velho amor. Umas vão ouvir Francesca da Rimini declamar versos de Dante. Além disso os vossos joelhos podem tocar o corpo da pessoa que vai no banco da frente. Outras perambulam pelas sessões espíritas. Oh. pra lá.City Improvements Company: Praia Vermelha não tem esgotos. todas três em carreirinha. U m a é minha. fica esvoaçando pra cá. Nossas pobres almas erradas! Eu ia no reboque. e o reboque tem vantagens e desvantagens. Que faremos. No Rio de Janeiro faz tanto calor que depois que acaba o calor a população continua a suar gratuitamente e por força do hábito durante quatro ou cinco semanas ainda. penso que 88 . Passamos diante de um edifício de apartamentos cuja construção está paralisada no mínimo desde 1930. Era um homem simples e tudo o que esperava era que o bonde chegasse a um determinado poste. e o bonde roncava. vinha com tosse. na quaresma da cidade gripada. Percebi com uma rapidez espantosa que o outono havia chegado. passando pelo nosso reboque. embora sem nenhum ar gentil. Mas eu não tinha relógio. e o vento era quase frio. me deu as horas: 13. Ele deve ter ouvido essa frase tão lapidar. Ao lado estava um homem decentemente vestido. Chegara o outono.48. Ele não vinha soluçando les sanglots longs des violons de Verlaine. ainda ocupado pelo verão. As folhas secas davam pulinhos ao longo da sarjeta. dirigia-se apressadamente ao centro da cidade. nem Miguel. mas aparentemente não ficou comovido. com cara de possuidor de relógio. — O senhor pode ter a gentileza de me dar as horas? Ele espantou-se um pouco e. Tentei espiar as horas no interior de um botequim. quase morno. Agradeci e murmurei: chegou o outono. Vinha talvez do mar e. na Rua Marquês de Abrantes. nada conseguindo. e meu coração soluçava. E as folhas eram amarelas. Olhei para o lado. Era iminente a entrada em Botafogo. 89 . Chegou às 13. na Rua Marquês de Abrantes.o resto da viagem não interessa ao grosso público. março. ponhamo-nos melancólicos. O necessário é que todos saibam que chegou o outono. 1935. Em vista do que. Que bem me importa. O próprio começo da viagem creio que também não interessou. e continua em vigor. Rio.48 horas. Vão de regresso para a Alemanha. Vão para a guerra? Onde vão? Na terceira classe funciona uma sanfona. para a Áustria. usada. visivelmente. 90 . Dança-se. cara de velho doente. Tem os bigodes brancos e ruivos enormes. Gorda. Mas o homem e a mulher são apenas imigrantes que emigram. A dança é bávara. Riem-se de si mesmos. Rubem. Eis os imigrantes que emigram. que amas o mar sobre todas as coisas. Quem dança? Ê um homem de quarenta e três anos. magra e parada. rosada. uma mulher de trinta e oito. Um velho alemão faz gemer a sanfona. Recordam tempos mortos em uma aldeia da Baviera.NOTURNO DE BORDO N ã o . tu. A cara é triste. tu não serás jamais um homem de navio. É fidalga e alegre. Passageiro de terceira ou passageiro de primeira. tu nunca terás alma de passageiro. que não enjoas. Dançam. Rubem. Um velho alemão faz gemer a sanfona. 90 . A cara é triste. Eis os imigrantes que emigram. Vão de regresso para a Alemanha. cara de velho doente. Gorda. visivelmente. Tem os bigodes brancos e ruivos enormes. magra e parada. rosada. tu não serás jamais um homem de navio. Dança-se. Dançam. É fidalga e alegre. Vão para a guerra? Onde vão? Na terceira classe funciona uma sanfona.IN^ão. Quem dança? É um homem de quarenta e três anos. tu nunca terás alma de passageiro. uma mulher de trinta e oito. Recordam tempos mortos em uma aldeia da Baviera. Mas o homem e a mulher são apenas imigrantes que emigram. tu. para a Áustria. Passageiro de terceira ou passageiro de primeira. A dança é bávara. que amas o mar sobre todas as coisas. usada. que não enjoas. Riem-se de si mesmos. de porão. As luzes do navio vão iluminando as águas. nem dormes nem vomitas. Há homem demais nos beliches. serás sempre um canoeiro. sem lâmpadas elétricas. aparece feia e triste sob a luz elétrica de bordo. a coisa mais linda. Uns vomitam. Ficam no beliche exíguo olhando a fraca lâmpada elétrica acesa perto de sua cara. um sudoeste raivoso que fizesse a noite escura gemer. Não há estrelas. sujo. Mas não consegue penetrar neste ar de dentro. outros dormem. outros completamente nus. No salão da primeira ouvimos piano. Uns fedem. pesado. de mercadorias. rapaz. Outra mulher velhota canta. T a m b é m é gorda. sem remédio. A noite é suja. Dança-se. outros não dormem. Na terceira do Lloyd Brasileiro os homens dormem no porão. Uns dormem completamente vestidos. nem um belo vento forte noturno. Os beliches estreitos são alinhados em dois andares e enchem demais o porão. O ar tenta entrar por cima e pelas vigias. outros dormindo dizem palavras feias em dialetos que ninguém entende. Mas as luzes de bordo chegam fracas dentro d'água. mas sua voz é fina. sobre homens. Tocam fox e marchas. outros rezam antes de dormir. a água mal iluminada pela luz elétrica é feia. com um cheiro sufocante de sarro. entre homens. Tu. Há quem toque e quem dance — e tu não danças nem tocas. quente. um canoeiro. Tu apenas reparas que a água do mar. úmido. O navio é lento.Dançam a dança leve pesadamente. vendo os corpos 91 . violino e bateria. Vieram tubarões. Muitos se julgam pessimamente instalados em suas camas em um porão tão cheio. O mar estava belo. Em sua opinião o leite das vacas suíças é excelente e a vida não presta. Bahia. És um canoeiro. Deixemos abertas as vigias do camarote. havia um nordeste embora fraco. Fecha o livro.. fecha.dos outros homens se mexendo nos outros beliches. ilusão deles. e pouco a respeito de vida. junto da proa. Quatro frades fumam cachimbos. Amanhã cedo será Vitória. abril. O baile da primeira classe acabou. a luz. pois és apenas sangue de luz. os passageiros vão para os camarotes. não assanhas os tubarões. Tu. Tubarões. 1935. certas mulheres já bem maduras da classe intermediária. Ah. Ele viu alguma coisa. O sol se espalhou em sangue no mar. Conta mistérios a respeito de certas mulheres que vão a bordo. Permitamos que o companheiro ronque. as vigias. sangue do sol. os olhos. atrás do rochedo tão alto. Hoje o sol morreu em Cabo Frio. É necessário não esquecer que sobrou gente lá para cima. Rubem. Gasto meia hora conversando com um tuberculoso suíço. nada além de um canoeiro. Fechemos o livro. conversam em alemão e gargalham em alemão. onde o navio joga demais e o vento é irritantíssimo quando chove. a luz. acaso o sangue do sol moribumdo vos assanhou? De todos os sangues só tu. É engano deles. os olhos. nada entendes a respeito de vacas. As mulheres estão em outros compartimentos do porão. 92 .. João." 93 . e clamavas na cadeia. E t u a cabeça veio num prato para as mãos da bailarina. é da terra. Eras a voz que clama no deserto. eu falarei da terra. E a filha de Herodias bailou. Ora. e uma cinta de couro em volta de teus rins. e que falam uns para os outros e dizem: nós temos cantado ao som da gaita. para vos divertir. E quando disse o que queria neste mundo. JOÃO NO RECIFE O que é da terra. e vós não chorastes. João.VÉSPERA DE S. João. tu tinhas um vestido de peles de camelo. e a tua comida era gafanhotos e mel silvestre. o rei entristeceu. e vós não bailastes. temos cantando em ar de lamentação. e era linda. esta geração de homens continua a mesma da qual disse o Senhor: "São semelhantes aos meninos que estão assentados no terreiro. e fala da terra. E estive. sem luz e sem chuva. com folhas de cana. As casinhas. beijando a flor das ruas. Areias. Mas na terra humilde. E estive em Campo Grande e Beberibe. para perto da lama. estava colado nelas. Afogados. As estrelas do céu. Elas haviam brotado nos oitões. as fogueiras ardiam. de espaço a espaço. E em toda a parte o povo te festejava. E os fogos pipocavam. Nas janelas e nas portas se penduravam as estrelas. E às vezes o céu ficava parado e fechado. nos pomares. bananeiras-meninas enterradas em volta. por exemplo. colorido. por que não dizer?. ao longo das ruas. Tigipió. Estive em Boa Vista. à margem das ruas esburacadas. nos mangues. para as casinhas baixas. e as pontes quase se 94 . junto das pontes. com uma luz fraca por dentro. na zona noturna da ilha do Recife. Não bailei nem chorei. Às vezes chovia furiosamente.J o ã o . a noite era sempre a mesma. Esses balões estrelados. na Estrada de Jaboatão. de u m a luz pobre. O Recife. Pelos quintais enlameados. É um enfeite triste. E teu retrato. Firmadas por quatro estacas. ontem foi a noite de véspera de teu dia. como flores de fogo na noite preta. A água é quase irmã da terra. Estrelas gordas de papel de cor. haviam descido para a terra. estavam alumiadas por lanternas. O povo bailava ao som de gaitas. às vezes a lua brilhava. segurando o menino Jesus. João. cativos da parede. pelos fundos dos matos. as fogueiras enfeitadas. todos já sabem que é um prato raso. forneciam imagens nas ruas tão escuras. ensangüentavam a noite preta. Nas primeiras noites. pelas montanhas enormes. é preciso andar toda a cidade. fazia três abaixo de zero. Eu apenas temia morrer não tendo nome nenhum de mulher para dizer as palavras do fim. Eu bebera cachaça. estava deitado na terra fria da trincheira e. assobiavam apenas os fuzis Mauser dos caçadores de trincheiras. as balas passavam com uns silvos finos e iam morrer no fundo do mato. pelos buracos dos vales fundos. Aquela do oeste era Hotchkiss pesada. u m a cacarejando em nossa frente era Zebê. intermitentes. e. sobre mim. outros crepitavam. eu não podia dormir. do outro lado da noite. Uns tinham estalos secos. crepitavam. acossados pela metralha nas estradas. roncou um Schneider. esparsos. do outro lado da linha. penosamente.apóiam na massa líquida. outros rebentavam roucos. sobre o meu crânio. Estava deitado na trincheira. nas 95 . Agora. eu as conhecia pelo sotaque.. Os fogos pipocavam pela noite adentro. e centenas de máquinas cuspiam fogo. Eu voava nos caminhões de munição. a que estava embaixo era Colt. as metralhadoras crepitavam. para ver a cidade. rebentavam dentro de meu peito. e longe. e eu as reconhecia.. e as granadas. sobre o abismo. e o metralhar imenso me dava sono. João. João. Agora eu desistira de ter qualquer medo. eu estava no centro de muitas noites. quando rebentavam a cinqüenta metros. Eu não estava no meio da noite. Os fuzis inimigos amorosamente derrubavam folhas sobre mim. E muitas noites antigas avançavam. eram todas estrangeiras. negras. outros chiavam. outros eram urros de pólvora. eu já não escrevia nada. Eu não queria matar ninguém. Havia esse mesmo crepitar de fogos pela vasta noite. meu lápis de repórter quebrou a ponta. Eu era espião. só contando munição gasta. eu. João. quando somei os contos de réis que custava a morte de um soldado e disse que tal morte era muitas vezes mais cara que um naufrágio de primeira classe no Principessa Malfalda. 96 . João. apenas via o Brasil se matando com armas estrangeiras. Eu ainda não tinha vinte anos. sacolejando e roncando terrivelmente. não me importava se alguém me matasse. João. eu berrei contra os comerciantes da paz que haviam sido os comerciantes da guerra. estava sujo e magro. no meio da morte. de faróis apagados na noite escura. e me chamaram de cínico. e dois sargentos me olhavam com ódio. sem casa nem dono. pelo menos. eu sempre tive o direito de ter o cinismo puro dos vira-latas. eu era um espião da vida. murmurando que eu era um espião. jamais fui cínico do cinismo dos cães de luxo.curvas onde as balas furavam as carrocerias. a toda a velocidade. não tomava banho há um mês. junto dos acantonamentos. e. João. entretanto. apenas via homens pobres se matando para bem dos homens ricos. eu não conhecia o mecanismo das carnificinas. e. eu não reconhecia aliados nem inimigos. Meu papel de repórter estava sujo da terra das trincheiras. No fim. A guerra era demasiado estúpida para não me fazer sorrir. Eu não era cínico. não tinha mais nenhum deus para me entender depois da morte. Mas para mim não era mais u m a noite perigosa: era apenas u m a grande noite triste. as fogueiras se acendiam para os soldados gelados. festeja a ti. mesquinhas as noites de trabalho insincero. e outras noites me cercam. João? Amanhã. as crianças continuarão a crescer. Por que o distrais assim com teus fogos. Eu tinha treze anos e naquela noite ela subitamente me amou. são muitas noites antigas que me prendem no meio desta noite. e aquela chita estava sempre em volta de sua garganta ou a m a r r a d a em seus cabelos. tristes noites sem ternura noturna. Amanhã. João. João.João. amanhã outra vez a miséria dos donos da vida continuará deturpando a beleza da vida. Me amou talvez apenas um minuto. flores. João. olhares. abraços. João. o povo. de flores encarnadas e azuis. Há fogueiras e amores e bebedeiras. eu não tenho mais dezenove anos. alguém canta. e aquele cheiro me entontecia e nunca em noite nenhuma eu amei nem amarei mais a m a d a com amor assim. mas esses estampidos na noite transformam a noite. amores. entre canjiquinhas. milho verde. Eu dormi na praia e o lenço tinha um cheiro terno e quente de cabelos castanhos. estou na rua e não na trincheira. Era um lenço grande. João. e muitos homens irão clamar nas cadeias. como tu clamavas. fogueiras. na noite imensa. naquela noite também havia cantos. João. sentiu u m a ternura e me deu aquele lenço de seus cabelos. folhas. Pobres as noites sob as lâmpadas da redação. moças cantam nos bailes dos palanques. mas eu não irei a festa nenhuma. esse povo continuará na vida. as moças suburbanas irão perder a beleza no trabalho escravo. 97 . e o vento do sudoeste no ar escuro tinha o mesmo cheiro. os pobres estarão mais pobres e os ricos os esmagarão. o suor dos homens será explorado. inútil João. o povo está gemendo. João. Ninguém dividiu as túnicas. Recife. nem os pães. as metralhadoras se viram para os peitos populares.magras e ignorantes. junho. João. tf8 . João. como tu mandaste. inútil João. 1935. Nós pertencemos. leio o nome do sujeito: João da Silva. Nós somos os populares joões da silva. Não é u m a família ilustre. Morava na Rua da Alegria. O cadáver foi removido para o necrotério. vimos lhe prestar esta homenagem. Moramos principalmente na rua. O homem estava morto. seus amigos e seus irmãos.LUTO DA FAMÍLIA SILVA A assistência foi chamada. Um homem estava deitado na calçada. Morreu de hemoptise. à família Silva. Nós somos os joões da silva. A Assistência voltou vazia. U m a poça de sangue. Moramos em várias casas e em várias cidades. Na seção dos "Fatos Diversos" do Diário de Pernambuco. Muitos de nós usamos 99 . Veio tinindo. nós. como você. João da Silva — Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum. nós não temos avós na história. a família Rocha Miranda. E. todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa família. u m a família que não pode ser considerada boa família. nos balcões. Não temos a mínima importância. no mato. O sangue que saía de sua boca era vermelho — vermelhinho da silva. na França. A família Silva e a família "de T a l " são a mesma família. Nossa família. em todo lugar onde se trabalha. Somos os Silva. Depois fomos os negros. É por engano. a família Guinle. não usamos nosso nome de família. mestiços. A família Crespi. por modéstia. nos pastos. nas minas. entretanto. João da Silva — Nunca nenhum de nós esquecerá seu nome. Nós auxiliamos várias famílias importantes na América do Norte. Quando o Brasil foi colonizado. Depois fomos imigrantes. Você não possuía sangue azul. No fundo. nós éramos os degredados. nas usinas. na Inglarerra. para falar a verdade. Depois fomos os índios. andamos pelas ruas e morremos. Algumas pessoas importantes usaram e usam nosso nome. é que trabalha para os homens importantes. Às vezes. vai mal em política. Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Sempre por baixo.outros nomes. a família Matarazzo. somos os Silva. Usamos o sobrenome "de T a l " . no Japão. nas praias. João. nas fábricas. nas cozinhas. Nossa família quebra pedra. para disfarce. A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate. a família Pereira Carneiro. Trabalhamos. Até as mulheres que não são de família pertencem à família Silva. faz telhas de 100 . Nossa família. Sangue de nossa família. nas fazendas. Os Silva somos nós. levanta os prédios. Apesar disso. João da Silva. Na vala comum da glória. João da Silva. conta o dinheiro dos Bancos. enche os porões dos navios.. nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum.barro. junho. enrola o tapete do circo. Recife. . conduz os bondes. Porque nossa família um dia há de subir na política. 1935. Na vala comum da miséria. serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz t u d o . faz os jornais.. laça os bois. A água barrenta do 102 . A porcaria é absoluta. Milhares de caboclos passam a vida naquela lama. As criancinhas barrigudas e amarelas choram sentadas na lama. de latas. de barro.RECIFE. Os filhos da lama voltam para a lama. Os mocambos estão afundados na lama. plantadas na lama. A miséria é absoluta. o trabalho acabou na cidade. a água afoga os mocambos. cada mocambo é uma ilhota de lama. e o chão das casinhas é lama. noites e noites — a chuva entra nos mocambos". o vento escangalha os mocambos. Os porcos entram pelos mocambos. Quando chove — e chove dias e dias. São casinhas de palha. e são tão sujas que parecem feitas de lixo. de tábuas. Estão cercadas de lama. TOME CUIDADO É tardinha e o bonde atravessa a Gameleira. Todos são doentes. Quando a maré enche. É tardinha. rio beija a lama. quase avermelhado. As silhuetas dos coqueiros. Os mocambos adormecem no escuro. amarela. O bondinho vem. As criancinhas morrem. frio. os jardinzinhos de praia rebentam junto à rua. O bonde atravessa a ponte. e por isso fornece uma luz fraca. Nem a luz fraca da Pernambuco Tramways. U m a linha escura do recife corre junto à praia. parece um sol passeando pela praia e morrendo no ar azul. O bonde vai correndo na tardinha fresca. Está na hora de dormir. As jangadas descansam na areia da praia. Saltamos. sobe na lama. são retirantes que não encontraram trabalho e que apodrecem na lama. Um vento vem do mar. de madeiras leves. na lama. ao longo da praia. Agora estão escuros. muito pequena. O farol do bonde é tão amarelo. os homens estão doentes. os recortes finos de milhares de coqueiros dançam no céu que vai ficando escuro. São operários e operárias. As luzes se acendem nos postes brancos. Vinde para terra. Velas retardatárias andam no horizonte. jangadas. vira lama. as mulheres crescem sujas. Casas ricas. A terra tem algum húmus. está na hora do vento do mar morrer. O bonde está na Boa Viagem. A Pernambuco Tramways Power Company Limited é credora do governo. O bonde passa no meio de casas limpas. é o vento do mar que está morrendo. O sol morreu atrás dos coqueiros. se mistura na lama. amarelas. muito dourada e brilhante sobre o azul que escurece. Sobre o mar se acende uma estrelinha velha. As ondas morrem na areia com espumas humildes. Há fome. Outra vez os mocambos. 103 a . Recife. 1935. que você se estrepa. O homem do mocambo não pode dormir porque a mulher está doente. da linda praia. dos coqueiros lindos. das lindas fontes. linda Recife.lama. miséria. 250 mil pessoas vivem morrendo em seus mocambos. linda Recife. junho. doença. tome cuidado. . Recife. Recife. a chuva está caindo dentro da lama do mocambo. linda Recife. dentro de cada mocambo. tome cuidado. o menino está com febre. Recife. A cortina é colante no corpo de Bidu. o Teatro Santa Isabel! Alguns smokings aparecem entre as roupas comuns de casimira e de brim. lindas.REFLEXÕES EM TORNO DE BIDU Extraordinariamente feio. Adjetivo que serve para mulheres que não são lin105 . e elas se dão adeusinhos de longe. Há senhoras de vestido de baile e senhoras de chapéu. como passarinhos. Uma loura com um chapéu verde. Entra Bidu. flores de cores misturadas feito uma cortina. Há senhoritas de boina. como se tocassem piano no espaço. vibrando os dedos finos no ar. As senhoritas de boina se empoleiram pelas torrinhas. Bidu! Vem com um vestido excelente no corpo excelente. Aplico a Bidu um adjetivo que aprendi na minha terra. São leves. a morena com uma boina marrom sobre cabelos castanhos. portáteis. Diria que ela é intensamente brasileira. Bidu é simplástica. mas que exprime u m a simpatia poderosa da carne e da alma. Vinde e ouvi como Bidu faz feminino o tom marcial da Marcha Turca. sua voz é sempre a voz da fêmea. Mas o que me emociona demais nos cantos de Bidu é sua voz sempre humana. Essa ternura. 106 . esse gosto de voz de mulata eu sinto nos cantos de Bidu. Aquele troço tristíssimo de Mozart que ela enxertou na primeira parte: havia ali uma tristeza de tal jeito que só acho comparação na tristeza da voz de lavadeira cantando na beira do rio. quando o som se desumaniza para ser um som puro. a mulher desaparece. uma voz saída de uma garganta de carne. u m a lavadeira bem pobre. Podeis entender em sentido figurado. Parece que a voz delas em certo ponto perde a graça natural. e com certeza vou dizer bobagem.. Há uma ternura nas vozes das mulatas que não encontro nas outras.díssimas. Um dengue poderoso. sois sempre mulher. como se houvesse no palco um instrumento magnífico. Haveria outro meio de dizer isso.. sem sexo nem humanidade. Tenho ouvido grandes cantoras que me desgostam. fica só a voz. Essa palavra singular foi um negro que me ensinou. de tarde. mulata. Bidu não perde seu grande acento humano. É sempre uma voz de mulher. Não entendo nada de canto. Bidu. Mesmo quando é um agudo. essa voz de mestiçagem. longe. uma graça de terra que se ama porque se ama desde os primeiros amores. Bidu é incondicionalmente mulher. Perdoe. Ela canta. É um milagre de feminilidade. desinfeliz. perdoai se isso não vos agrada. disse que estava mui-muito emocio. 107 . Na platéia houve murmúrios e emoções. num fracasso completo. um pouco alto demais. Ernâni Braga ficou meio atrapalhado. E na hora da glória encabulou.. se chama Billoro e veio do Rio de avião só para tocar naquele minutinho ali. a flauta soprava outra. outros querendo rebentar na gargalhada. Ele esperou cinqüenta anos para tocar flauta nos cantos de Bidu. O velhinho.. O velhinho começou sem acertar com o piano. Uma grande desgraça no gênero humano. pensei. tremia demais. Que pena! O velhinho se foi. outros com pena.Aqueles clarins que avançam e passam são clarins tocados em bocas rubras de mulheres moças. O pianista Ernâni Braga (que não é meu tio) olhou para ele. soprando com medo de soprar. outros quase chorando. quase que engolia a flauta. Pra quê! O velhinho olhou Bidu e não teve nem coragem de olhar o povo. Que pena sentimos do velhinho! Vai ver. teve de tocar flauta no piano. Mas que desgraça! Todo mundo atrapalhado. Depois soube que ele até que é um velhinho especial na flauta. O velhinho apitou outra vez na flauta e encabulou irresistivelmente. E quando ele queria soprar uma nota. Aconteceu que o flautista era um velhinho de óculos. A Ária da Loucura foi u m a coisa enorme. nado e não po-podia tocar não podia não podia. A flauta fazia greve e tremia nas suas mãos. era sua glória número um. uns sentindo raiva. que isso era o grande minuto da vida dele. e então Bidu pôs olhos lindos ferozes nele. martirizado. e como é absolutamente necessário que todo mundo ouça artistas como Bidu! No Teatro Santa Isabel há uma placa de bronze com uma frase de Nabuco: "Aqui vencemos a Abolição.. meia-noite. tão básicas.. tanta vibração de beleza. qualquer coisa de uma Araci Cortes. No fim a Canção da Felicidade. a infalível tempestade de aplausos. Foi uma noite de delícias fartíssimas. Que não será a arte quando ela não for mais um odioso privilégio de classe? Que riqueza musical espantosa não se estraga para sempre no seio da massa.Gounod abriu a terceira parte. tão angustiosas. de se curvar agradecendo. Bidu fez gentileza extrema de cantar mais três vezes. esta quase melosa de tão doce. a imensa população trabalhadora dormia extenuada para acordar hoje cedo e trabalhar faminta. Risadas matinalíssimas de uma frescura de delícia. de sorrir. acabou com a Rosamonde e saiu do palco com aquele seu jeito altamente gostoso e bonito de andar. A Serenata de Alberto Costa não me agrada." Mas não vi nenhum negro no recital. bastaria esse fato por demais triste de nem todo mundo ter direito de ouvir u m a artista como Bidu para justificar u m a revolução. que fosse finíssima. Àquela hora. Os negros e os brancos pobres — o enor- 108 . Ê horrivelmente vergonhoso pensar que dos 450 mil habitantes do Recife só um punhadinho possa gozar tanta riqueza de sentimento. teve de repetir. Depois a graça de El Piropo e Mi Nina. Mesmo se não houvesse tantas misérias tão graves. aquilo que já se sabe. Ninguém mais cantará aquilo melhor que Bidu. Depois veio l'Éclat de Rire. há muitas abolições a fazer ainda. Recife. Velho Nabuco. 1935. Para ele estão fechadas as portas de todos os altos bens da vida humana. setembro.me povo — não entram ali. 109 . . MORRO D O ISOLAMENTO . . As cinco seguintes — A Senhora Virtuosa. O Número 12. na Revista Acadêmica. 113 . sob outro título. A Lira Contra o M u r o apareceu em 1937. e Mar no primeiro número da revista Mar. do Rio. Morro do Isolamento. na revista paulistana Problemas. Reportagens saiu na Folha do Povo. Dia da Raça. em 1938. em 1935. do Rio. de Santos. do Recife. Almoço Mineiro. Muito Calor e Cafezinho — apareceram em 1938 e 1939 em O Imparcial.NOTA As cinco primeiras crônicas deste livro — Carnaval. em 1937. O H o m e m do Quarto Andar — foram publicadas nos Diários Associados em 1934 e 1935. Palmiskaski. Em Memória do Bonde Tamandaré. Paulo. Nazinha. na Rotogravura apareceu um pouco alterada sob o título Intermezzo. Crime de Casar e A Casa do Alemão saíram em 1939 na Folha da Tarde.Não tinham esses títulos. onde o autor assinava uma crônica diária. nos anos de 1939. . <""i /' . A primeira foi escrita originariamente para a Revista do Clube de Regatas Flamengo.«vi "• ''"„. do Rio. sob o pseudônimo de "Chico". uma nota diária intitulada "Grifo 7". As quatro crônicas restantes — Coração de Mãe. Os Mortos de Manaus e Temporal de Tarde — foram publicadas no Suplemento em Rotogravura de O Estado de S. '• a\s * v< . de Porto Alegre. »cí '>í.' o *n>iío' VÂ'. 1940 e 1941. O autor fazia naquele jornal.v. Foi andando. caminha na voz das cantigas... vão com os cabelos alvoroçados pelo vento. Meu amigo foi andando. E na boca da noite vieram cordões. Apertou-se entre homens excitados e mulheres que cantavam e riam. em fantasias de cores vivas e leves. Andou pelas ruas que se animavam. Encheu os bolsos de confetes. A multidão encheu as ruas que a noite engoliu. blocos. Alguém 115 .CARNAVAL Incipiente alegria na tarde carnavalesca. bandos. ranchos. Um vento beija a avenida larga. tremula nas serpentinas. Mas as luzes rebentaram de todos os lados e a garganta da massa se abriu em delírio. rodopia nos confetes. Meu amigo comprou 200 gramas metálicas. Entrou na confusão das raças irmanadas pelo prazer comum da carne. Os sambas passam nos automóveis abertos. As moças lindas. lhe jogou confetes na boca. arrastada. No meio de uma confusão. por u m a risada. sem programa. Passavam os foliões cansados. cantando. Um reco-reco gritou em seu ouvido. uma frase de samba. Meu amigo arranjou uma mulher: a mulher que sempre aparece. Um automóvel do corso quase o esmagou. meu amigo saiu pela rua vazia. Meu amigo entrou no baile. Repetiu três vezes com o mesmo par a marchinha do momento. por um corpo. lança-perfume nos olhos. Teve mil pequenas aventuras inconseqüentes e rápidas. Tinha um cravo na lapela. Depois desapareceu. A mulher que 116 . Automaticamente cantou sambas e marchas. Apaixonou-se de repente por u m a fantasia. Um homem grisalho carregava pelo braço u m a adolescente que se queixava de dor nos pés. recebeu e distribuiu socos e empurrões sem saber de quem. Jogou um pouco de confetes no cabelo da mulher. Agarrou-se ao ombro de uma mulher e foi no cordão. Foi andando. com força inelutável de uma corrente marinha. De madrugada. Bebeu. Uma serpentina bateu em seu nariz. Foi andando. para ele. Foi andando. Jogou-lhe éter no corpo. dançando. suando. Um bloco o arrastou pelo meio da massa. Meu amigo foi andando. Um homem bêbado quis arrebatar o lança-perfume de sua mão. Ela defendeu-se e riu. para quem. nem para quê. U m a mulher qualquer cantou à toa. as mulheres mais belas pela fadiga e pelo suor. Meu amigo foi a outro baile. U m a moça pediu a flor. um cravo que tirara da mesa do restaurante. Ele a encharcou de éter e fez presente. por que. Pararam.. um menino sujo e esfarrapado dormia.. Esguichou seu último lança-perfume nos braços e nos seios da mulher.não vimos na rua nem no baile e que aparece na mesa do bar ou do restaurante. Meu amigo olhou em silêncio o menino que dormia. Ela repetiu um samba mil vezes repetido. Meu amigo jogou a bisnaga no asfalto. Sentiase bêbado. Sentiu pena. Jogou os últimos confetes em seu cabelo. resmungou um xingamento e tornou a dormir. antes de deitar-se. Foram. No canto da calçada. Evoé! São Paulo. A criança ficou olhando estremunhada. que acordou assustada. No apartamento. Ainda havia um resto de éter. no último instante. A mulher disse: coitadinho. 1934.. 117 . fevereiro. Olhou a mulher.. Balançou a bisnaga. Apertou a mulher contra seu corpo e mandou parar um automóvel que passava. Beijou a mulher na boca como se beija uma noiva. Exausto. No caminho. Fantasiado. olhou-se no espelho do guarda-roupa. E pensou desanimado: eu sou um folião. Jogou na perna da criança. meu amigo parou. Dormia sobre um saco de estopa cheio de serpentinas que juntara para vender. A mulher disse: você é ruim! coitadinho. outros ao futebol.PALMISKASKI T a r d e de domingo em São Paulo é tão longa. 118 . havia um guarda-civil que não tinha nada que fazer. Um guarda-civil não pode fazer. n u m a tarde de domingo. e o resto banzando dentro de casa. Que vida mais triste de guarda-civil! Ficar no meio da rua. tão larga e tão cacete como em qualquer lugar. unia coisa sem importância. Fica um pouco de gente banzando pelas ruas. Assim. domingo à tarde. nem u m a coisa nem outra. Os automóveis passavam honestamente. sem atropelar ninguém. Nada. estando de serviço. em u m a rua de São Paulo. Aconteceu um mendigo. Uns vão à matinê de cinema. Nenhuma briguinha. à toa quando não acontece nada. Finalmente aconteceu alguma coisa. Oitocentos e trinta e quatro mil e quatrocentos réis.. Quis saber o nome do pobre-diabo. seu vagabundo? — Tenho fome. Vou prender aquele sujeito.. quando não tem nada o que fazer. — Revistem esse homem. muito recurvo. Os guardas-civis devem prender todo dia pelo menos um sujeito. As moedas pesavam oito 119 . Um guarda-civil. — Por que é que você tira esmola. e quase tudo em pratas e níqueis. prende um mendigo. Miguel Palmiskaski foi respondendo na calma. A polícia não teve pena daquele pobre-diabo tão curvado. É um sujeito magro vestido de molambos. e t c . tão sujo. Se ele é um funcionário honesto. A polícia quis saber onde é que o mendigo morava. coitado. etc. sua idade e nome de seus pais. A função de um guarda-civil é prender. O mendigo não protestou. Foi andando para a polícia.O guarda-civil pensou: — Lá está um homem doente pedindo esmola. Prendeu. é preciso prender alguém. — Miguel Palmiskaski.. Revistaram Miguel Palmiskaski. A polícia é uma gente horrível. Prendeu. todo recurvo. não deve passar o dia todo sem prender ninguém. estado civil. quer saber de tudo. sendo u m a pequena parte em notinhas de cinco mil-réis. tão amarelo. Afinal de contas. Os escoteiros devem praticar todo dia pelo menos uma boa ação. Emagreceu oito quilos e duzentos gramas. Miguel Palmiskaski vai ser processado. Miguel Palmiskaski se verá forçado a estender a mão à caridade pública. Miguel Palmiskaski ficou leve.quilos e duzentos gramas e estavam escondidas no paletó. abril. 1934. Na casa dele não se achou níquel. Miguel Palmiskaski andava tão curvado mendigando por causa do peso daquela dinheirama. recurvo e fatigado. leve. A polícia calcula que se ele tomar um banho e tirar o pó da roupa emagrecerá mais uns dois quilos. Quando sair da cadeia. prisioneiro de suas moedas. Ele carregava tudo nos bolsos. A polícia recolheu o dinheiro à tesouraria do Gabinete de Investigações. São Paulo. sem poder tirar o paletó. . sem o dinheiro que juntou em longos anos de triste e penoso trabalho. Há vários anos Miguel Palmiskaski vivia assim. para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política. uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. incluindo quatro automóveis. Falamos de vários assuntos inconfessáveis. um 121 . que estava um dia muito bonito. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do separatismo.ALMOÇO MINEIRO É r a m o s dezesseis. A palestra foi decaindo. um capitãotenente da Marinha. três diplomatas. dois oficiais de gabinete. Também se deliberou. u m a charrete. um tenente-coronel da Força Pública. depois de ouvidos vários oradores. u m a senhora loura e três morenas. um prefeito. então. um empresário do cassino. dois jornalistas. couve e pão. poderoso.cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. em vista de estarmos situados na extremidade da mesa. Mas nós todos sentíamos. os proletários armênios e as pessoas presentes. Havia arroz sem colorau. que. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido. com dois ou três fios. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil. infelizmente. com bastante sentimento. as tardes de outuno. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de água mineral. nem a Força Pública. sorrisos. E no fim de tudo houve fotografias. Uns estavam molinhos. outros mulatos. forte. as flores dos vergéis. no fundo do coração. Outros eram duros e enroscados. manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. nem mesmo as águas sulfurosas. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido u m a encantadora lingüiça de porco e talvez 122 . Logo se levantaram outros. Eram torresmos trigueiros como a doce a m a d a de Salomão. saudável. não nos foi possível anotar. O certo é que um preto fazia funcionar a sua harmônica. quase simples gordura. que nada tinha importância. É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. ou talvez a sua concertina. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário municipal. O tutu era um tutu honesto. alguns louros. expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. nem o violão de seu Nhonhô. que fumegava suavemente. salgalos e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter. com tons de ouro. Era o encanto de Minas. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem p u r a entra no céu. para u m a criança que fosse gourmet de todas as terras. . a terra virgem recolhida muito longe do solo. e a sua essência era sublime. onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve — do prato inteiro. como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro. São Paulo. subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas.um pouco de farofa. na primavera. 1934. Os torresmos davam uma nota marítima. E do prato inteiro. sob um prado cheio de flores. muito branquinha. Era um gosto indefinível e puríssimo. terra com um perfume vegetal diluído mas uniforme. levemente enfibrada. Por fora era escuro. O gosto era de um salgado distante e de u m a ternura quase musical. Que importa? O lombo era o essencial. desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde. A polpa se abria. Quando as mulheres dos homens ficam desesperadas elas despejam querosene na roupa e se m a t a m com fogo. Às vezes são partidos quando a mulher está nervosa com o homem.MORRO DO ISOLAMENTO O profeta mora em uma gruta do Morro do Isolamento. Os homens bebem porque precisam ficar tontos. Às vezes a culpa é de u m a criança. e por isso bebem. Às vezes é de u m a empregada. Ele passa a mão suja pela 124 . Ele sabe que muitas famílias usam pratos no almoço e no jantar. De qualquer modo eles se quebram. e às vezes toda a família se quebra em redor dos pratos quebrados. O profeta sabe de tudo. Compram remédios e querosene. Os homens bebem cachaça. vinho nacional e cerveja. precisam ficar bêbados. O profeta sabe. às vezes. Cedo ou tarde eles se quebram. Os pratos não são eternos. Todos. a humilde cobra sem veneno. Possui uma pequena criação: u m a cobra pequena e sem veneno. A cobra. O tatu. pela barba suja. pratos quebrados. O profeta faz uma festinha para o tatu. Apenas existe u m a luzinha tremelicando. suspira tristemente. Achou-a no lixo. e não pensa nunca em tomar banho. entre cacos de vidro. as garrafas sujas e vazias. uns e outros descem o morro. Espalha tudo pelo chão e medita. A gruta está escura. onde há luz elétrica. o profeta não vai roubar galinhas. Os três vivem em boa paz na gruta do Morro do Isolamento. O Morro do Isolamento se povoa de crentes e descrentes. entre outras coisas. E tudo fica sujo como a b a r b a do profeta. Muitos não acreditam. O profeta às vezes sente fome. Vai andando devagar. Ele acredita. Leva para a sua gruta os cacos. Desce o Morro do Isolamento e passeia pelos quintais miseráveis dos subúrbios de Niterói. Lá na cidade. Muitos acreditam nele. À noite. u m a corrente de chuveiro.barba suja. Já possui. O profeta não tem chuveiro. Ele passa a mão pela cara suja. A vida se quebra e se esvazia. Mas achou aquela corrente e medita. Sai da gruta. muito enfermo. Não. Na escuridão do Morro do Isolamento o profeta está se rindo devagarinho. os homens doentes e as mulheres feias vão ouvir o profeta. e um tatu enfermo. Ele recolhe frascos vazios. Na 125 . a corrente de chuveiro e meditações. as garrafas se esvaziam e os pratos se quebram. Ele sabe de tudo. homens e mulheres. dá um bocejo e vai dormir. A noite lá fora está escura. Às vezes as crianças muito pobres. pratos quebrados. É no cérebro do profeta. só respeitando as crianças e os pobres. cobra. Se o tatu não fosse doente e fosse enorme e terrível. e morde e mata os homens ruins. Rio. e cavouca a terra vil. abala Niterói e o mundo. tatu. ele diria: — Vai. deita na terra e começa a roncar. O profeta passa a mão pela barba suja. ele diria: — Vai. Mas na gruta escura do Morro do Isolamento a cobrinha sem veneno está dormindo. Se a cobra fosse grande e feroz. . O ronco do profeta estremece o Morro do Isolamento. e derruba as casas e só respeita as miúdas e miseráveis. e tivesse veneno mortal. o profeta está chorando devagarinho. 1934.gruta escura do Morro do Isolamento. e o tatu está enfermo. dezembro. Toda cidade tem suas ruas onde a vida nunca se eleva da besteira trivial. tudo vivendo n u m a pequena febre crônica de trabalho mesquinho e inútil.HOMEM DO QUARTO ANDAR Chegava sempre em casa às duas e meia da manhã. onde parece que faz sempre mormaço e os homens sempre fizeram a barba ontem. gente medíocre passando. as calçadas estreitas. sujas: o comércio. os caminhões. já muito velha. Era uma rua quase no centro e nunca passava por ali ou saíra dali nada emocionante. Era uma casa de apartamento. nunca houve uma vibração. os bondes que demoram. O asfalto sujo. as mulheres são banais. os automóveis sempre são do modelo do ano atrasado. u m a festa enorme 127 . Aquela rua quase no centro tinha o ar triste das ruas estreitas do centro com aquele grande armazém de anúncios mal desenhados. Era uma rua sem interesse. vivia com seus horários estritos. Mas era um sujeito bastante velho. Tinha trinta e cinco anos e vivia remediadamente. não conhecia ninguém. o hábito diário. eterno passageiro de bonde. saía às onze horas do quarto que havia alugado. como qualquer outro veículo. de casamento. dormia. como se o elevador fosse bonde. Um ano e meio atrás suicidara-se um sujeito. Nem mesmo um grande crime. onde os mosquitos não se animavam a nascer. tudo isso deprava um indivíduo. não era caminho de enterro. e seu escritório também era como um bonde e a vida era um bonde. Morava no quarto andar e descia no elevador sempre às onze ou onze e cinco. fizesse barulho. ronca 128 .como o carnaval que enchesse a rua. velho passageiro de bonde. O bonde. Ele chegava pela madrugada. Era um bonde o elevador. a obrigação que o esperava. em cujas sarjetas às vezes se formavam pequenas poças de água preta. o uso constante do bonde. o veículo regula a marcha de sua vida. era um bonde. que não tinha família nem nenhuma outra circunstância que pudesse comover alguém. por ali nunca rolou uma onda de ódio ou de volúpia e ela tinha sempre a mesma cara mesquinha. com tuberculose pulmonar e vida encalacrada. e obrigasse a temer qualquer coisa. Na verdade era um bonde. tudo para ele. que ninguém conhecia direito. ali aconteceu. inexpressivo como um bonde. um suplemento interno de seu bonde. tinha seus pobres ruídos mecânicos e humanos. rebentasse uma vidraça. Não era sossegada. um crime de manchete. Vede a Rua Correia Dutra. correr triunfalmente. espremido. Agora ia mudar para um bairro afastado. pela cidade rica. pelo menos. Lembrou-se de que não levava daquela rua nenhuma lembrança particular. há uma grande placa de ímã. ruas onde acontecem muitas coisas. no Catete. lerdo. Descia no elevador com a mala. onde as coisas acontecem muito. Se no Rio de Janeiro um trem de subúrbio carregado de operários magros. sonha em levar um dia seu povo até a Avenida Rio Branco. imundo. O elevador era um bonde no sentido vertical e ele era eternamente um passageiro de bonde. sob a camada do asfalto. Ela. superlotado. Haverá ruas calçadas de ímã? Há. porque a luta dos homens é absorvida pela luta dos veículos. dentro dele. Parece então que. todavia. terrível. É raro encontrar no país alguém que nunca morou na Rua Correia Dutra e que não carregue dentro de si fragmentos da Rua Correia Dutra. sujos. Não conhecia ninguém naquela rua. e hoje mesmo qualquer pessoa pode ir morar na Rua Correia Dutra. Essas se deslocam juntamente com o indivíduo. Há ruas que entram pela vida dos homens e mulheres que residem no segundo quarteirão da transversal. os operários ficariam alegres mesmo se no automóvel não morresse ninguém. T o d o trem de subúrbio. Estava ali apenas há dois meses. Esse alguém não sentirá logo que está 129 . arrebentado.dentro dele. nada tem de especial. quebrasse um automóvel de alto luxo. pela cidade proibida. carrega-o sem remédio até a morte. imenso. fazer penetrar sua fumaça ignóbil pelas janelas das residências de luxo de Copacabana. nem um só cão latira a noite inteira. outro homem que fumava um cigarro esperando o bonde. nem naquele momento acontecia nada. e para todos o seu endereço era o do escritório. pois não lhe acontece nada de extraordinário. reduzida no espaço e imensa no tempo. 1935. a rua estava ali na sua cara e na rua não acontecera nada. pois nenhum amigo o procurara ali. Ele pagara pontualmente o quarto. não acontecera nada. Rio. onde havia uma padaria e confeitaria. Só mais tarde meditará que lhe aconteceram excessivas coisas do gênero ordinário. virou à esquerda. e foi-se. nem uma só mulher viera ou fora. Jogou a mala dentro do carro.residindo em um estranho país. Ele olhava sem atenção para a direita. 130 . abril. O táxi chegou à esquina. Viu um homem na porta. Naquela rua. uma pobre mulher que passava. o táxi viera. nem ninguém lhe propusera um negócio suspeito. Nem mesmo teria de avisar aos amigos sua mudança. Não esquecera nada no quarto. Nem mesmo o elevador encrencara nunca. O táxi estava esperando. O táxi começou a rodar. que ele deixava. ninguém tomara conhecimento efetivo e afetivo de sua vida. que ele foi membro da família da Rua Correia Dutra. Ali mesmo não se despedira de ninguém. Durante dois anos pode não se aperceber disso. família flutuante. Deu ao chofer o endereço novo. instável. entretanto. pai-de-santo. às vezes. Ogum e outros nomes que servem para cor local. Eu ia pela rua. um homem de roupa esquisita bebendo e rezando. O repórter tirou uma fotografia e voltou para a redação com u m a reportagem atrapalhada. u m a língua estranha. O pessoal falava. quando estava no Rio. Quero apenas resumir aqui u m a outra reportagem que fiz há tempos. e fazia gestos especiais. por acaso.REPORTAGENS O repórter de um vespertino carioca visitou u m a casa em que viu muitos homens e mulheres cantando. A reportagem acabava com a seguinte pergunta: "Que dirá a isso o senhor Chefe de Polícia?" Não tenho nenhum comentário a fazer a respeito. Ela 131 . Exu. certa pessoa me interessou e eu a segui. gongá. falando de macumba. mas em vez disso recolhia níqueis e pratinhas. Pelas paredes. e vi ainda muitas outras coisas mais. . 132 1935. haviam sido espalhadas estatuetas malfeitas. Depois apareceu um menino com uma camisola vermelha trazendo uma caçamba de onde saía fumaça cheirosa. no fundo de uma ampla sala. Como não tinha jeito de casa de família. Uma campainha fininha começou a tocar. Depois umas senhoritas que estavam em u m a espécie de camarote começaram a cantar. Em certo momento o menino de camisola saiu com u m a bandeja. mulheres e homens se ajoelharam murmurando coisas imperceptíveis. Dentro dessa casa vi tantas coisas extraordinárias que acabei esquecendo a tal pessoa. Havia. Todo mundo ajoelhado abaixava a cabeça e batia no peito. A um gesto seu. Vi mulheres com véus na cabeça e fitinhas azuis no pescoço fazendo sinais estranhos. coloridas e iluminadas por pequenas lâmpadas elétricas e por algumas velas. também entrei. em u m a língua incompreensível. O homem de camisolão preto bebeu um pouco de vinho e começou a meter na boca de cada velha que se ajoelhava em sua frente uma rodela branca. Um homem com uma espécie de camisola preta e com um pano bordado de ouro nas costas dizia palavras estranhas.entrou em uma casa grande. Pensei que ele fosse distribuir vinho. Que dirá a isso o senhor Chefe de Polícia? Recife. em buracos apropriados. armações de madeira. Mas o certo é que vivemos em um m u n d o assim. É aflitivo pensar que a vida está correndo e que nós estamos aqui conversando. Dizem que não adianta bater com a cabeça contra o muro. Ê espantoso como este m u n d o em que vivemos não presta. Garanto que é um belo assunto. na rua. Confesso que às vezes acho qualquer coisa de humilhante na literatura. sob a luz artificial. Bato freqüentemente. É um verdadeiro crime um homem ficar dentro de u m a sala escrevendo.. lá fora. pois então vamos falar sobre mulheres. quando se 6 moço. quando lá fora a tarde ainda está clara e há mulheres andando. Basta pensar isto: enquanto estou escrevendo. Minha obrigação era descer a escada e ir vê-las. É possível que 133 . De um certo modo reconheço que isso é um pouco humilhante. passam mulheres..A LIRA CONTRA O MURO Meu poeta. Na verdade. se o muro caísse. acabasse a força da gravidade. As pétalas poderiam. eu seria como aquele homem. estamos todos presos. as mulheres. os sentimentos delicados. a beleza em geral. mas é preciso não esquecer de que lá fora não existe. poeta.. Seriam assim umas onze horas da noite. Bem. já sabíamos há muito t e m p o . Sinto que. há pouco tempo. A brisa terral vindo lá de dentro. Você. que há mulheres que são como flores empoeiradas? Se você encontrasse uma pequena flor coberta de poeira. Cuspiria no chão a horas certas.qualquer dia a minha cabeça arrebente. Todos os homens farão um sinal com a cabeça: "Sim. e precisamos ter uma aguda consciência disso. jogaria gotas de água sobre aquela flor. Você sabe. indo para o mar lá longe. Isso é um segredo tão terrível que você pode contar a todo mundo. Lá fora. " Mas no fundo do coração ninguém acreditará. então. Conheci. do meio do grande país. a poesia. da brisa terral. Morreríamos afogados no ar. o 134 1 . essas coisas — e detesta a política. para ter a gloriosa certeza de que não é proibido cuspir no chão. deve chegar um som qualquer de minha cabeça. Mas lá fora. Ninguém acreditará. sentir a carícia fresca do vento — suponhamos —. Tem coragem de dizer que ama tudo o que é lindo e humano. não tem consciência de classe. Seria como se nos tirassem da cabeça o peso da atmosfera ou como se. Mas não quero falar daquele homem.. Certamente nem eu nem você saberíamos viver lá fora. de repente. do outro lado. um homem que passou vinte e cinco anos na cadeia. poeta. E a brisa terral beijaria aquela flor. Você ficaria comovido e se sentiria bom. ali estão as mulheres empoeiradas. mas seguramente não é das 135 . murchando depressa. Há mocinhas. Há mãos de lírios limpando panelas engorduradas. metodicamente feias. murchando. surpreendentes mocinhas que ficarão doentes antes de florescer. Pois. e precisam de educação e higiene. ficando feias.mar aberto. há moças em massa ficando feias. Mãos que poderiam ser de lírios e estão grossas e vermelhas. Mas estamos falando de mulheres. Aquela outra não sorriu para você porque só pode pagar a um péssimo dentista. morrem devido a moléstias intestinais. Naquela noite aquela pequena não foi se encontrar com você porque a meia esquerda desfiou e o outro par estava molhado. Há crianças que jamais serão mocinhas. Não sei de quem é a culpa. É extraordinário saber que elas vivem. Há mulheres em massa. É extraordinário notar que elas não são simplesmente mulheres. ou suspiram. o grande mar. belas mulheres murchando. Acontece que um litro de leite custa mil e duzentos. e na maioria não morrem de propósito para virar anjinho. Não pense que a filha daquele funcionário dos Correios ficou tuberculosa para imitar a Greta Garbo da Dama das Camélias. Há moças em massa. meu poeta. Aquela outra está com a pele ruim porque alguma coisa dentro dela não está funcionando direito. e ela não pôde procurar um especialista. e não existem apenas quando passam por nós ou são beijadas. e aquela flor seria mais linda. Morrem muitas crianças. duas coisas caríssimas. Em grande número são subalimentadas. No fundo 136 . Não quero magoar você. amar sem doenças e dar à luz filhos fortes e livres. de lirismo. Elas não perderão a poesia: perderão apenas a poeira. eletricidade e água. Há flores cobertas de poeira. As flores empoeiradas. que vivem para trabalhar e parir. Não. ou se não soubessem apenas ler. florescer em beleza. a grande vida cheia de sentimento e de mistério dos humanos. Que a vida. eu não levarei o meu m a u gosto a ponto de falar das operárias — dessas estranhas mulheres que não têm o direito de ser bonitas nem saudáveis — ou das mulheres da roça. Perante este povo imenso de tantas mulheres sujas eu pergunto: por que não há mais chuveiros quentes? Ou simplesmente: chuveiros? Temos enormes quedas d'água para despejar eletricidade sobre o país. possam respirar bem. água. Muitas mulheres amariam os seus versos se elas soubessem ler. nem de Margueritte Gauthier. Apenas quero que você pense nesse formidável capital de beleza e. flores que murcham sufocadas pela poeira...vacas. poeta.. portanto. com facilidade. Você vai me chamar de materialista e reclamar o "primado do espiritual": mas eu quero que nos lugares onde faz frio haja um chuveiro quente em cada casa para que as mulheres que não podem tomar banho frio possam tomar banho todo dia. Que as mulheres trabalhem. poeta. poeta. Mas que elas vivam. Mas. muita água. possa ser vivida um pouco por todos. não quero convidar você a lutar contra o imperialismo e contra toda a exploração. que este m u n d o que aí está massacra sistematicamente.. poeta. crescer debaixo do sol. Se ela quebrar. você está convidado a bater com a cabeça no muro. enobrece as almas. que a poesia é eterna e infinita no peito humano. Soltará um belo som. você sabe que o lirismo não é o lixo da vida. Sofrer é belo. Já nascem murchas. não faz mal. 1937. poeta. Meu poeta. Você acha que uma vida mais limpa e mais livre poderia matar a poesia? N ã o . São Paulo. .este nosso povo pobre é tão espiritual. e esse som será u m a profunda poesia. Pode bater com a lira t a m b é m . e que a poesia não morre. Mas as flores estão cobertas de poeira. Elas estão murchando. não puderam dormir. Aconteceram muitas coisas estranhas. porque o último bonde não passou. através de intermináveis anos. A Praça Ramos de Azevedo teve rasgado o seu ventre betuminoso.EM MEMÓRIA DO BONDE TAMANDARÊ F o i na madrugada de u m a segunda-feira — 6 de dezembro de 1937 — que a cidade de São Paulo surgiu arrebentada e descomposta. Com outras famílias aconteceu pior. a só dormir depois de passar o último bonde. Habituadas. altas horas. famílias acostumadas a dormir no meio do maior silêncio se ergueram aflitas. Nos bairros. com a rua invadida pelo estrondo de um bonde. jamais. nem o primeiro. barricadas e trincheiras. nem mais nenhum. 138 . e houve trilhos arrancados. A Avenida São João apresentava um sistema de fossas. montanhas. Nem o último. nem o caminho do bonde. . Era analfabeto e não funcionava bem da cabeça. Suspeito que ele se entregava a libações alcoólicas na Aclimação e tinha uma paixão encravada no Ipiranga. em cujo terceiro banco.Mas quem morreu.. E alguém murmurava: mas onde estás. a Light havia cortado várias linhas de bondes. De acordo com a Prefeitura. Mas ele nunca soube disso. mesmo porque — a verdade seja sempre dita — o grande bonde Tamandaré era analfabeto. Vila Clementino. confusão. nem o nome do bonde. Jardim da Aclimação dos meus domingos de sol? E o infinito bonde Jabaquara? E o gentil Campos Elísios? Higienópolis também morreu. e isso me custa dizer. e tu.. onde estás. ó tu. sobretudo. porque eles também não sabiam. pai e mãe de todos os bondes. esse bonde tinha um itinerário e um horário. Vila Maria. E tu. Morreu o grande bonde Tamandaré. bonde Brigadeiro Galvão? E o eco respondia: não sei n ã o .A urbs escalavrada acordou. certa mulher ruiva me sorriu? E tu. Os guardascivis (seja dita a verdade) informavam com a maior gentileza. De acordo com a tabela da Light e as indicações dos guias da cidade.. em um dia chuvoso de 1933. quem morreu. nem se havia o bonde. Ninguém sabia onde tomar o bonde.. e houve. e a gente pobre daqueles subúrbios ficou mais pobre. O homem que esperava seu " c a m a r ã o " foi informado de que seu " c a m a rão" não existia mais. Os subúrbios distantes ficaram mais distantes. e tu. Um dia eu o 139 . Informavam e depois tomavam bondes errados. Santa Cecília. foi o grande bonde Tamandaré. Houve p r o testos. esse bonde parou. sendo três pretinhos (dos quais dois no Piques). o grande bonde T a m a n d a r é pegou 140 . armou um escarcéu e fez um comício monstro. e não pude deixar de sorrir. numa noite de grande tempestade. Levava as rodas sujas de sangue. Ele certamente percebeu. crianças pobres demais. e o outro corria atrás para pegá-lo. U m a vez. dois filhos gêmeos de uma lavadeira e dois não especificados.encontrei ao meio-dia. É necessário notar que só respeitava essa condição da existência de trilhos quando não estava enfurecido. exatamente na Praça do Correio. Mas tinha um grande coração. quis me m a t a r no Largo da Sé. u m a meninazinha loura. desde que houvesse trilhos. na Praça do Correio. porque. um italianinho jornaleiro. protestou. berrando por todos os balaústres. Eram todos. Só matava mulheres muito feias e homens muito chatos. dizendo que aquela estátua era um absurdo. mas sentia o coração limpo. e murmurava para si mesmo que tinha razão: " E r a m pobres demais!" A morte daqueles dois filhos gêmeos da lavadeira foi a sua mais bela proeza. unanimemente. Ele entrava a qualquer hora em qualquer rua. em estado lamentável. e freqüentemente estava. e em toda a sua vida esmagou apenas nove crianças. às duas horas da tarde. ao passar junto ao monumento de Verdi. As mães (quando havia mães) gritavam com desespero e lançavam agudas maldições entre soluços. Quando um pegou o outro. no mesmo dia. sob um sol de rachar. Um deles atravessava a rua correndo. Ele disparava para não ouvir aqueles gritos. na Praça do Patriarca. contra o bonde Tamandaré. motorneiros. e calçadas e asfaltos. Corria ladeira acima. O administrador secamente respondeu que não. que tem uma perna só. me jurou por essa perna que jamais viu o bonde Tamandaré se recolher ao barracão na hora em que todos os bondes honestos habitualmente se recolhem. e trilhos. balançando suavemente no colo a sua mulata — e quem ouvisse bem o ronco de seu motor notaria obscuras palavras de amor. Esperou o dia seguinte. Quando soube. desconsolado e inquieto. foi à Praça Ramos de Azevedo e exigiu do administrador da Light a sua transferência para a capital do país. Todas as tardes." Um velho empregado do barracão da Light. pelas 6 horas. sem entretanto fazer muito barulho. Nada de mulata. que ela partira para o Rio de Janeiro. por um Ford de praça. indagou. O bonde subiu a ladeira rangendo. Tamandaré saiu alucinado e subiu pela Rua da Consolação com tanto barulho que acordou todos os defuntos de dois cemitérios. em lindo estilo. E quando ela subia para um banco.os dois. Uma tarde a mulata não estava junto ao poste de toda tarde. Esse perneta não quis confirmar (nem tampouco desmentir) aquela história sobre a mulata do Piques. a todos os postes. e fios. o bonde Tamandaré se encontrava com essa mulata no Piques. e os massacrou a ambos. "Eram pobres demais. condutores e guarda-chaves deram o alarma: sumira o bonde Tamandaré! Um ex-empregado que se esforçava para ser readmitido comunicou que o havia visto pelas onze e 141 . Pela meianoite dezenas de fiscais. o grande bonde corria mais. ã todos os passageiros. Indagou. a caminho de sua casa. Quando perguntei se podia desmenti-la. mas eu não sei dizer se era medo ou uma verdadeira amizade. São Paulo. Foi a pista. Tive a impressão de que ia me confirmar tudo.. 142 dezembro. ainda ao amanhecer.. Mas cuspiu u m a saliva suja e disse apenas: — Tamandaré. Muito bom.. No dia seguinte. 1937. . Tamandaré foi preso em Barra do Piraí. recambiado para São Paulo. O perneta do barracão não quis confirmar essa história. em atitude suspeita.. junto à porteira do Brás.meia. em segredo. Estava completamente bêbado e havia invadido os trilhos da Central do Brasil.. Um belo bonde! Muito bom mesmo.. Voava em direção ao Rio. Depois olhou para um lado e outro. Talvez estivesse com medo. ele fez um gesto indefinível com a cabeça e tirou fumaça de seu pobre cachimbo. azul. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha visto. A marola vinha e voltava. Isso perturbava ainda mais a imagem. com ventos. tudo isso muito salgado. que é menor que o mar. Nós tínhamos viajado para ver o mar. A maré enchia e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. às vezes uma porção de espumas. Mas o menino explicava que não. esvaziando e enchendo. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo. Três lagoas mexendo. Logo a gente fazia idéia de um lago enorme e duas Lagoas. 143 . Estava no meio de um bando enorme de meninos. com uns rios no meio.MAR A primeira vez que vi o mar eu não estava sozinho. que é menor que a maré. e a marola. a maré. O m a r entrava pela maré e a maré entrava pela marola. . fazia sol. Um rapaz de quatorze ou quinze anos que nas noites de lua cheia. e voltava sem estudar nada. longe da terra. chapéu de palha. e mais longe estava azul. Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda. e saímos correndo para o lado do mar. entrar n u m a roda. Um menino de calças curtas. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa. Era de manhã. alguém que passava pelo areai branco e dava boa-noite. os seus ventos. Estava bem verde perto da terra. queimou a sua mão. Um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro. vendo o mar. seus peixes. sua grande e espantosa beleza. quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa. atrás de uma bobagem qualquer — como aquela caravela de franjas azuis que boiava e afundava e que. cabelos cheios de sal.. de inesperado. amar perdidamente.. pernas queimadas pelo sol. seu barulho. Ondas grandes. ia na praia sentar numa canoa. 144 . De repente houve um grito: o mar! Era qualquer coisa de largo.Fomos ver o mar. com vontade de dizer u m a porção de coisas que não sabia dizer — que ainda não sabe dizer. eternamente.. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. suas chuvas. Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Ficamos ali parados. que explodiam com barulho. cheias.. com seu cheiro bom.. afinal. com a respiração apressada. Nós todos gritamos. n u m a gritaria infernal. senti força e perigo. é um dos teus. Este homem tem andado por aí. quando a água batia na minha cara e a corrente do "arrieiro" me puxava para fora. lambendo o batelão. mar das festas. grande mar. mas ele é teu filho. ocupando toda a vida. no seu peito. não gritei nem fiz gestos de socorro. de perigo sem sentido. fraco. Mas dos peixes estranhos. este homem pode ser um mau filho. senti orgulho de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. mar de pedra e mar do mangue. mar das tempestades de repente. que ficou. e 145 . Este homem esqueceu. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu. de sacrifício sem finalidade. de paciência.. incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa. de energia. A primeira vez que saí sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom.. Mar suave e oleoso.. u m a vida de bamboleio de canoa. de força. m a r do primeiro amor. mar terrível daquela morte que nos assustou. Mar diário e enorme. Mar. grande e perigoso m a r fabricando um homem. obscura e forte. mar tias cantigas do catambá. dentro dele. mais corajoso que audacioso. de lirismo. ora aflito. m a r das pescarias noturnas de camarão para isca. cresci dentro de mim mesmo. muita coisa que aprendeu contigo. dispersivo. mar virando a canoa.. gastando-se como se gasta um cigarro. ora chateado.Mar maior que a terra. A primeira vez que estive quase morrendo afogado. lutei sozinho. sem paciência. mar do alto e mar da praia. mar dos pobres pescadores maratimbas. .. como naquela m a n h ã em que ficamos parados. mas sem remorso. sem glória. julho. respirando depressa. perante as grandes ondas que arrebentavam — um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar. 4 146 1938.ainda pode comparecer diante de ti gritando. . Santos. francamente. a lavadeira. naturalmente. movidas pelos melhores sentimentos. neste país. Maria. numerosas mães pobres dão à luz. São. Mas. Nasceu um menino doente e magro. senhoras cristãs. senhoras distintas e virtuosas. Ninguém passa telegrama. deu à luz três filhos gêmeos. e que várias senhoras da sociedade local resolveram amparar a família. é preciso parar com essa história de gêmeos. deu à luz. A notícia diz que o prefeito mandou internar a parturiente na maternidade. em Campo Belo. Diariamente. Em geral nasce apenas um menino — e diante desse fato banal ninguém se comove.A SENHORA VIRTUOSA Uma pobre mulher. não aparece nenhuma comissão de senhoras caridosas — não se fala no assunto. porque Maria não pôde ter conforto durante os 147 . O que interessa à senhora virtuosa é a mulher que procura bater recordes. dos milhões de gêmeos. Mas o que comove a senhora virtuosa na mãe de três ou cinco filhos não é propriamente a maternidade: é o recorde. diz: — Coitada! E mais não diz. a senhora virtuosa fará u m a grande descoberta: — Mas essa gente pobre é d a n a d a para ter filho. Que é que a senhora virtuosa tem com isso? Se insistirem em dizer alguma coisa depois que ela disse — "coitada!" —. que nascem em toda parte do Brasil. é a mágica. de algumas semanas. é o fenômeno. Se alguma senhora virtuosa toma conhecimento desse fato. O filhote de Maria pode morrer — e morre com u m a terrível freqüência — dentro de alguns dias. a mulher sensacional que oferece ao mundo uma ninhada de meninos. filhos gêmeos da Mãe Miséria. os gêmeos que aparecem nos jornais. Que gente! O que preocupa a senhora virtuosa são os oito gêmeos de Paracatu. A senhora virtuosa se esquece dos outros: dos milhares de gêmeos. de alguns meses.últimos meses. Maria precisa de repouso. de dinheiro. O menino precisa de u m a porção de coisas. imperfeitos e tristes. os vinte gêmeos de Corumbá. de remédio. A senhora virtuosa diz que ama e respeita a maternidade. Maria Lavadeira não interessa à senhora virtuosa. uma mulher que deu à luz. Esses nascem. os cinqüenta e três gêmeos de Manaus. os gêmeos que dão na vista. e morrem ou crescem. O 148 . Maria Lavadeira é u m a mulher vulgar. 149 . que. se um dia a senhora virtuosa lhe fosse perguntar: — O senhor está precisando de alguma coisa? Ele responderia encabulado: — Não. Rio. muito obrigado. tão sem importância e (ao humilde. tão silencioso e tão pobre. senhora. 1938. de fome. Ela admira o prestidigitador que tira vinte coelhos de uma cartola.mundo para a senhora virtuosa é um circo. Ela não conhece o pobre homem que está no fundo da platéia. E morreria quieto. Há por aí numerosos cavalheiros que eu teria vontade de chamar ao meu escritório para dizer a cada um: — Cavalheiro. O senhor está dispensado. eu tenho notado que o senhor está vivendo. sempre desconfiei que existe gente demais no mundo. afinal de contas. e parece disposto a continuar assim por muito tempo. 150 . Trata-se. de aumentar a população.O NÚMERO 12 E s t ã o dizendo por aí que o governo vai lançar imposto sobre os solteiros de 25 a 64 anos. devo confessar que pessoalmente essa lei não me alegra. Não faça isso. Ora. As famílias numerosas serão auxiliadas com a renda desse imposto. Embora eu pertença à vasta classe dos que acham que tudo o que o governo faz está certo. há falta de espaço. o número de homens é inferior ao de mulheres. Retire-se! Na verdade. Desculpe se sou obrigado a lhe dizer isso. O imposto sobre as solteiras é que me parece pouco justo.Desculpe. Em primeiro lugar porque no Brasil. creio que o melhor seria adotar o divórcio. Um se atravessa no caminho. e não considero ninguém melhor do que eu. outro nos abalroa. mas o senhor está dispensado de viver. Querem que eu me case? Arranjem um marido! Se o que se procura é incrementar o casamento. outro nos atropela. Querem 151 . Precisamos arejar o ambiente. Tenha a fineza de se retirar deste mundo. Que culpa pode ter uma mercadoria de não encontrar comprador? A solteirona poderá dizer aos homens de governo: — Não me taxem. Concordo com o imposto sobre os solteiros. no Brasil faz muito calor. no Brasil. senhores. O casamento é hoje. muitas moças pagarão impostos por motivos puramente estatísticos. por eu estar solteira. um beco sem saída. Posso lhes garantir em segredo que a culpa não é minha. Além do mais as moças não se casam quando querem. mas creio que incrementar o nascimento de mais gente é ruindade. mas se eu tomo essa providência é por falta de espaço. Além do mais. mas quando são queridas. Em muitas cidades do interior há centenas de moças bonitas que não ouvem propostas. Não chego a propor um prêmio às famílias dos suicidas. segundo dizem. A gente vive se acotovelando. Afinal de contas eu me casei. Assim. aumentar o movimento do beco? Abram u m a saída, pelo menos uma saída de emergência. Todos, assim, terão menos medo de entrar. Dizem que as famílias de doze filhos não pagarão impostos. Em vista da pobreza da população é fácil supor que muitos casais de onze, dez ou oito filhos farão mais alguns " p a r a inteirar". Esses filhos serão, amanhã, homens mais ou menos humilhados. A cada um deles se poderá dizer mais tarde: — O senhor não é filho do amor. O senhor é filho do sistema tributário. O senhor nasceu " p a r a inteirar". O senhor não é um homem: é um número, um número para inteirar uma dúzia! Rio, 152 1938. DIA DA RAÇA Um telegrama de São Paulo diz que ontem, 12 de outubro, não houve aula nas escolas públicas, porque era o "Dia da Raça". No dia 4 de setembro foi festejado no Rio esse mesmo "Dia da Raça". De onde se conclui que não há apenas um dia; há, pelo menos, dois dias. E pode ser que sejam três, pois também em 7 de setembro vários jornais disseram que era o "Dia da Raça". Um, dois, três dias, não importa. O que realmente importa é que não há raça. Não há raça — porque há raças. Festejar uma raça no Brasil ou é uma coisa sem sentido ou é falta de educação. Será sem sentido quando pretender festejar a raça brasileira, que não existe. Será falta de educação quando pretender dirigir os festejos a um dos componentes de nossa mistura 153 racial, esquecendo os outros. O que poderíamos ter, com um pouco de bom senso, era o "Dia da Mistura da Raça". Na verdade o nosso problema não é afirmar e defender as qualidades específicas de uma determinada raça. É promover a mistura mais íntima de todas elas. Essa mistura h u m a n a é o nosso ideal. Ainda outro dia li um artigo de Hearst, o famoso diretor de jornais norte-americano. Embora habitualmente faça política mais ou menos favorável aos países onde há racismo, Hearst parece ter ficado impressionado com as misérias e as desumanidades praticadas, por este mundo afora, em nome da Raça. Escreveu, então, um apelo aos países racistas. Pediu a eles que mandassem para os Estados Unidos as raças imprestáveis. E também os insubmissos, os não-conformistas, os chamados "maus elementos", os professores "dissolventes", os sábios de "sangue sujo", os indesejáveis de sangue e de política. Disse a eles que os Estados Unidos são " u m a raça misturada, u m a raça forte, uma raça vigorosa". E acrescentou que essa " m i s t u r a " é exatamente o motivo do vigor da nova raça que se vai formando nos Estados Unidos. Em síntese, Hearst gritou: mandem os seus homens "inferiores"; nós formaremos com eles o povo mais forte do mundo! Festejemos, portanto, qualquer dia, o "Dia da Mistura da Raça". Instituamos prêmios para os casamentos de alemão com japonesa, de japonês com preta, de preto com índia, de índio com italiana, de italiano com polonesa, de polonês com síria, de sírio 154 Rio. Misturemos alegremente as raças. 155 . 1938. E se não der certo será.com espanhola. de espanhol com judia e t c . divertido. No fim dá certo. etc. pelo menos. MUITO CALOR O n t e m , com aquele calor todo, apareceu um homem disposto a discutir comigo. Eu discuto muito mal, principalmente no verão. O homem defendia os agiotas. Isto é, não defendia. O que ele dizia era que, afinal de contas, os agiotas não sei o que têm, porque é preciso não esquecer que, de um certo ponto de vista, é preciso encarar a questão, aliás, não sei o quê... Era mais ou menos isso o que o homem dizia. Ele citou vários exemplos e de vez em quando me perguntava: — Você não acha que eu tenho razão? Eu não achava nem deixava de achar, de maneira que não dizia nada. Aí o homem insistia: — Vamos, diga, isso é ou não é um fato? — É... — Pois bem. Agora você precisa ver outra coisa. Aqui no Rio de Janeiro há não sei quantas casas de penhor. Muito bem. Pois então vamos fazer um cálculo... Aí o homem fazia um cálculo. Depois perguntava se eu não concordava com o cálculo, se não achava justo, se achava exagerado — aí teve uma hora que não sei o que foi que eu disse que o homem gritou: — Mas então é você que defende os usurários! Esse argumento seu... E ele me provou por a mais b que o meu argumento era uma grande arma na mão dos usurários. Aliás, reparando bem, uma arma de dois gumes. Eu, a bem dizer, não me lembrava mais qual era o meu argumento, nem mesmo sabia que tinha dado um argumento. O homem falou sobre taxas de juros, avaliação, leilão e monte-de-socorro, fiscalização, prazo e outras coisas desse gênero. Confesso que fiquei um pouco desorientado. O homem então se exaltou não sei por que e perguntou se eu queria que os usurários me emprestassem dinheiro a um por cento ao mês. — É isso que você quer, não é? — Eu, não... — Então o que é que você quer? Respondi que eu não queria nada. Ele disse que "não quero n a d a " era um modo de dizer. E perguntou outra vez, ameaçador: — Mas então o que é que você acha? Eu não compreendo você! Ora você diz u m a coisa, ora outra. Vamos, me explique, o que é que você acha? Respondi com a máxima sinceridade: — Eu acho que está fazendo muito calor. 157 r O homem ficou um pouco zangado e disse que comigo não se podia discutir. Não valia a pena discutir. Para que ele não ficasse mais zangado, concordei: — Pois é isso o que eu sempre digo. O leitor me desculpe, mas não sei o que falamos mais nessa palestra tão interessante e instrutiva. O que sei é que estava fazendo muito calor, e que no momento em que escrevo continua fazendo muito calor. Rio, novembro, 1938. I íi Oi A vida é triste e complicada. Diariamente é preciso falar com um número excessivo de pessoas. e chegou à conclusão de que o funcionário passou o dia inteiro tomando café. Para quem espera ner159 . O remédio é ir tomar um "cafezinho". Ele esperou longamente.CAFEZINHO L e i o a reclamação de um repórter irritado que precisava falar com um delegado e lhe disseram que o homem havia ido tomar um cafezinho. Tinha razão o rapaz de ficar zangado. Mas com um pouco de imaginação e bom humor podemos pensar que u m a das delícias do gênio carioca é exatamente esta frase: — Ele foi tomar café. Ah! fujamos assim. Depois de esperar duas ou três horas dá vontade de dizer: — Bem. o recado será o mesmo: — Ele disse que ia tomar um cafezinho. deixemos em todos os lugares este recado simples e vago: — Ele saiu para tomar um café e disse que volta já. muito sentimento. sem tristeza.. fujamos assim. Vamos. Podemos.. e quando vier a tristeza. Sim. Gastamos muito pensamento. mergulhemos de corpo e alma no cafezinho.. O chapéu dele está aí. Quando a Bem-Amada vier com seus olhos tristes e perguntar: — Ele está? — alguém dará o nosso recado sem endereço. sem drama.. 1939. A vida é complicada demais. e quando vier o parente.vosamente. . deixar o chapéu. Quando vier o amigo e quando vier o credor. Assim dirão: — Ele foi tomar um café. vamos tomar um cafezinho. Naturalmente o Sr. e quando a morte vier. eu me retiro. cavalheiro. O melhor é não estar. Com certeza volta logo. Bonifácio morreu afogado no cafezinho. ainda. Devemos até comprar um chapéu especialmente para deixá-lo. esse "cafezinho" é qualquer coisa infinita e torturante. Quando vier a grande hora de nosso destino nós teremos saído há uns cinco minutos para tomar um café. sim. muita palavra. Rio. Ah. daqui a três anos e meio o criminoso corrigido Demóstenes será solto. que não li. condenou um homem a três anos e meio e uma mulher a dois anos. Por causa disso o juiz os condenou. Ele. E a sociedade ficará tranqüila. Demóstenes. Ambos voltarão p a r a a sociedade dispostos a não se casarem nunca mais. está no Reformatório das Mulheres Criminosas. 161 . Daqui a dois anos a criminosa reformada Maria sairá da cadeia. Que fizeram esses dois? Que feio crime cometeram? Casaram-se. ela. Maria. está na Correção. e como eles se amam. em longa sentença. e o juiz não os condenará mais. E como o casamento deles ficou anulado. naturalmente irão viver amigados.CRIME DE CASAR Um juiz desta capital. a história. O juiz os condenou. A vida h u m a n a não é possível sem uma certa pressão. Eu não digo isso por mim. Mas os dois desde a infância ouviram dizer que casamento é uma coisa muito direita. no caso. Mas talvez seja possível concluir que eles estão na cadeia porque são pobres soberbos. 162 . como diria Alencar. para Demóstenes. Aliás. faz frio demais. e amigação é coisa feia. Casaramse. Eu não quero concluir daí. esta moral elevadíssima. Há um detalhe e esse detalhe foi que atrapalhou: Demóstenes já era casado. Há. era casar com um homem solteiro. e fez muito bem.Esta é. era viver com sua esposa antiga. e falta pressão: falta pressão sentimental. na região puríssima da moral absoluta. A obrigação do juiz é cumprir a lei. em resumo. é amigar. além. porque cumpriu a lei. não foi propriamente esse detalhe que atrapalhou. que Demóstenes e Maria estão na cadeia porque são pobres. eu sei disso. quando amigos incautos quiseram me nomear juiz. muito além da estratosfera. Não quero tirar dessa historieta triste esta moralidade imoral: que o melhor é não casar. que sofro de muita pressão (eis que sou um abafado). Demóstenes não é rico. que certamente inspirou a lei e moveu o juiz: o melhor. O que atrapalhou mesmo foi outro detalhe. em absoluto. Se fossem pobres humildes fariam esta coisa simples: viveriam juntos. Lá em cima. e Maria sabia disso. e não teve dinheiro para ir ao Uruguai dar um jeitinho. mas por Demóstenes. para Maria. e. eu fiquei encabulado e não aceitei. O único defeito desta moral elevadíssima é ser elevada demais: a vida h u m a n a nem sempre é possível nessas altitudes. e foi talvez por isso mesmo que há tempos. só porque ela se casou com um homem casado é dureza muita. Encontrando-o. Como simples cidadão. no meio de ladras e assassinas. mesmo já sendo casado. eu a desrespeitaria. Há tantos homens por aí presos e condenados porque não querem casar. eu me casaria todo mês! Não cheguemos a tanto: neste caso há o que chamarei excesso de pressão. E a lei está aí. 1939. ele não enganou ninguém: Maria já sabia que ele era casado. Dura lei. felicíssimo. exclamou: — Francamente. Porto Alegre. estou entusiasmado. mas lei. mesmo ainda sendo solteiros. Q u a n t o a Demóstenes. Se pudesse. E antes ser um bom sujeito que um m a u juiz. Na verdade. penso eu. mas em compensação não presta.Um amigo tenho eu que se casou há coisa de um mês. 163 . Disse que o casamento é uma grande coisa. Ele me respondeu que estava gostando muito. mas muito mesmo. e demais. apenas acho que jogar uma mulher por dois anos na cadeia. que todo homem decente deve casar. num caso desses. tive a falta de educação de pedir suas impressões. Não creiam que eu seja favorável à moleza geral dos costumes. A vida em si mesma já é tão d u r a que eu acho um exagero de mau gosto fazê-la ainda mais d u r a com a dureza da lei. julho. sou respeitador das leis: se fosse juiz. sinto que fiz muito bem em não querer ser juiz. E feliz. que eu lamento a perseguição feita a esse homem que fez questão de casar. Este brocardo é curto. Estava estragada toda a literatura de Nilo Ruschel. E vimos então sua grande cara barbuda. que me contou. Mas no mesmo instante o operário virou a cabeça para nos olhar. Quando chegamos lá ele mandou parar o carro: — É ali. Agora ele contratou um operário. — Você disse que ele fazia tudo sozinho.A CASA DO ALEMÃO F o i meu prezado amigo e vizinho nesta página. Olhamos a pequena e estranha construção de cimento. Lá dentro havia um operário colocando tijolos. inquieto. de uma grande barba ruiva: 164 . Nilo Ruschel. — É ele mesmo! Nesta hora em que escrevo, o alemão barbudo está lá, construindo, sozinho, a sua casa de cimento armado, em Petrópolis. Está sozinho, com sua barba imensa, fazendo a sua própria casa. Mora no pequeno porão. Até a cumeeira é de cimento armado. Sua história eu não sei. Dizem que foi ferido na Grande Guerra, ferido no corpo e no espírito. Depois emigrou. Deixou crescer a barba, talvez para esconder as cicatrizes do rosto. E para esconder as cicatrizes da alma se fez solitário. Trabalha em alguma parte — para viver. Mas a grande obra de sua vida é aquilo: a sua casa de cimento armado, sólida, pequena, invulnerável. Dizem que ele tenciona captar a eletricidade da atmosfera. Eu duvido. Duvido que o sólido alemão barbudo queira captar alguma coisa, seja na atmosfera, seja na terra, seja no mar. Em um de seus livros, Oswald de Andrade escreveu, caracterizando a confusão de São Paulo durante u m a revolução: "Sou o único homem livre desta formosa cidade porque tenho um canhão no meu quintal." Durante os conflitos entre fascistas e socialistas, na Itália, foi preso Hercole Bambucci, futuro discípulo do mestre Júlio Jurenito, porque, armado de uma carabina, dava tiros para os dois lados. No fim da guerra da Espanha dizem que foi preso na fronteira da França um anarquista espanhol. Perguntaram-lhe se estava ao lado dos republicanos. Disse que não. Estava ao lado dos nacionalistas? T a m b é m não. Concluíram que o homem não tinha tomado parte na luta. Mas ele explicou, orgulhoso, com um profundo desprezo por nacionalistas e republicanos: 165 — Eu tinha um fuzil-metralhadora e lutava por conta própria... O alemão barbudo de Petrópolis é um desses. Apenas ele não luta. Ele se defende por conta própria. O mundo está confuso. Povos invadem povos. Cidades são arrasadas. Canhões dão berros de morte, aviões despejam bombas, metralhadoras cortam carne. E ele sabe o que é u m a guerra. Sua velha barba ruiva treme de espanto: — "Eles" começam outra vez? Onde irá parar o mundo? Que farão os homens que continuam se matando? Que vai acontecer? Então o velho barbudo exclama: — Eu faço com minhas próprias mãos, sozinho, a minha casa onde vou morar sozinho. Eu mesmo faço os alicerces e ponho o cimento nas fôrmas, e coloco tijolo sobre tijolo. Não pedi a ninguém para desenhar a minha casa nem peço a ninguém que me ajude. A casa é minha e para mim. Sou apenas um homem. Faço-a com cimento, estranha como um túmulo, forte como um block haus. Os povos constróem linhas de cimento armado para se defenderem. Eu não sou um povo, eu sou um homem. Homens morrem aos milhares, aos milhões. Já vi homens morrendo, já matei homens. Não quero morrer. Nada espero da vida. Não preciso nem que o vento mexa em minhas barbas — e minha casa será tão dura, tão áspera que nenhum passarinho virá perto dela cantar. Não plantarei árvore nenhuma, nem levarei para dentro de minha casa nenhuma mulher. Com uma mulher eu poderia ter um filho, que mais tarde seria um homem. Evidentemente seria uma 166 estupidez: há homens demais, e tantos que eles se matam. Eu sou um homem e na certa morrerei. Mas se a morte quiser me pegar, ela tem de vir me buscar dentro de meu forte de cimento armado. Quero viver. Quero viver cercado de cimento, eu comigo mesmo, dentro da minha toca de cimento que faço com minhas mãos, com meu suor, com minha força. Guerreie-se, arrebente-se, dane-se, estripe-se quem quiser. A humanidade continue se matando e gerando mais filhos que se matarão. Eu sou um homem, irredutivelmente um homem, um homem apenas — nada tenho a ver com a humanidade. Não quero saber de homens, nem de mulheres, nem de borboletas, nem de coisa alguma. Faço a minha casa de cimento e moro dentro dela. Assim falaria o alemão barbudo. Mas na verdade não fala coisa alguma. Está calado, só, debaixo do sol, sujo, feroz, formidável, construindo com suas próprias mãos a sua casa de cimento! Porto Alegre, * • 0 » outubro, 1939. i, .... 167 As moças eram duas. pululante de funcionários. U m a senhora que é dona de pensão no Catete pode aceitar depois indiferentemente um cargo de ministro da guerra da Turquia. A mãe exercia as laboriosas funções de dona de pensão. e irmãs. E não devo 168 . casais. responderei que não.CORAÇÃO DE MÃE O nome da rua eu não digo. estudantes. senhoras bastante desquitadas. e o das moças muito menos. restauradora das finanças do Reich ou poeta português. A pensão da mãe das moças era uma grande pensão. com meu cinismo habitual. Se me perguntarem se isso não aconteceu na Rua Correia Dutra com certas jovens que mais tarde vieram a brilhar no rádio eu darei uma desculpa qualquer e. tristonho. A tendência das moças detentoras de olhos azuis é para ver a vida azul-celeste. Não. as duas meninas louras viviam cantarolando. Creio ser inevitável dizer que eram como dois excitantes e leves canários belgas a saltitar em feio e escuro viveiro — e a m ã e era muito ocupada. como és formosa". e o sol acontece ser louro. Juntarei apenas que essa mãe era muito ocupada e que as moças possuíam. filho do fogo. Outros afirmam que o sol louro é da circunscrição de Santa Teresa e da paróquia de Copacabana. suspirou um poeta do século passado. também o usufruiríamos indebitamente. aliás mimosos. declarando que Niterói não tem lua própria.dizer mais nada: quando menos se falar da mãe dos outros. A mesma injúria assacaram contra Niterói ("Niterói. No pardieiro pardarrão. melhor. onde residi na Rua Lopes Trovão. e sim ao Flamengo: a população do Catete apenas o poderia olhar de empréstimo. e a que ali é visível é de propriedade do Rio. e a dos canários é voar. Em minhas andanças e paranças já andei e parei em Niterói. Caramuru. olhos azuis. mãe da Rua Lopes Trovão!" Já não me lembro quem me ensinou esses versinhos. Niterói. medíocres e amargos homens do Catete. Mesmo sobre os casarões do Catete o céu às vezes é azul. nós. que foi o dos suspiros). ambas. Uns dizem que na verdade esse céu azul não pertence ao Catete. Ainda hoje costumo repeti-los 169 . em nada disso creio. Não creio em nada disso. e recitava habitualmente com muito desgosto de u m a senhorita vizinha: "Caramuru. nós hoje vamos ao dentista às 5 horas.. Explicarei que Marina e Dorinha haviam chegado em casa um pouco tontas. assim articulada: 170 . jogando miolo de pão misto às pobres gaivotas. A "velha" vociferava que aquilo era u m a vergonha e preferia matar aquelas duas pestes a continuar aquele absurdo.. No dia seguinte pela m a n h ã aconteceu que Marina estava falando ao telefone com voz muito doce e dona Rosalina (a mãe) chegou devagarinho por detrás e ouviu tropos que tais: — Pois é. a velha é muito cacete." Assim estavam as coisas quando Dorinha apareceu no corredor — e foi colhida ou colidida em cheio pela tormenta. A conversa telefônica foi interrompida da maneira pela qual um elefante interromperia a palestra amorosa de dois colibris na relva. É cretinice da velha. mas a gente tapeia. Houve ligeira reação partida de Marina. Certamente nada acontecera de excessivamente grave — mas o coração das mães é aflito e severo.quando de minhas pequenas viagens de cabotagem. É. Aquela noite nenhum hóspede dormiu: houve um relativo escândalo e muitas imprecações.. ou.. Cá estou prevendo o leitor a perguntar que "aquilo" é esse." Essa expressão mal-azada foi o início da tormenta. Não. que era demais. a mãe das moças de olhos azuis achou que aquilo era demais. Ora. Verdades muito duras foram proferidas em voz muito alta. "Maldita h o r a " — exclamou — "em que teu pai foi-se embora. não liga a isso não.. aconteceu que uma noite. em alegre e promíscua baratinha. "A velha. mais propriamente.. Olha. uma madrugada. Depois do verbo "ser" veio u m a palavra que elevou dona Rosalina ao êxtase da fúria.) Outras palavras foram gritadas em tão puro e rude vernáculo que tentarei traduzi-las assim: — Passem já! Vão fazer isso assim assim. conforme algum tempo depois observou um leitor da Gramática Expositiva Superior de Eduardo Carlos Pereira. todas duas! ("Todas d u a s " é um galicismo. mesmo contando os discursos do Sr.) As moças desceram até o quarto sob intensa fuzilaria de raiva maternal. Maurício de Lacerda na Primeira República e os piores artigos dos falecidos senhores Mário Rodrigues e Antônio Torres produzidos sob o mesmo regime.— E a senhora também! Pensa que estou disposta a viver ouvindo desaforos? A senhora precisa deixar de ser. suas isso assim assim! Não ponham mais os pés em minha casa! (O leitor inteligente substituirá as expressões "isso assim assim" pelos termos convenientes. a leitora inteligente não deve substituir coisa alguma para não ficar com vergonha. foi das coisas mais violentas que já se disseram em público neste país. residente naquela pensão. O 171 .. Nessa porta dona Rosalina fez um comício que. arrumaram chorando e tremendo u m a valise e se viram empurradas até a porta da rua. As moças foram empolgadas em um redemoinho de tapas e pontapés escada abaixo.. em palestra com alguns amigos. vão para o diabo que as carregue. ao mesmo tempo que dona Rosalina berrava: — Fora! Para fora daqui. caminhões e um grande carro da Limpeza Pública estacionaram na estreita rua. O cavalheirismo do bairro se manifestou naquele instante de maneira esplendente quando a senhora dona Rosalina deu por encerrado. automóveis.café da esquina se esvaziou. choravam humildemente. onde ela descansaria. As duas mocinhas. jornalistas. É assim que os habitantes dos bairros menos precários e instáveis costumam falar mal de nosso Catete. Mas uma coisa ninguém pode negar: nós. etc. com um ríspido palavrão. baixando as louras cabeças. seminaristas e atletas — fazendo os mais tocantes oferecimentos. Gente muito misturada. Em face daquelas mocinhas expulsas do lar e que soluçavam com amargura houve um belo movimento de solidariedade. bacharéis. havia dois quartos vagos. na Rua Buarque de Macedo. comerciários. propondo chamar um táxi e levá-la para seu apartamento. A idéia do táxi revoltou alguns presentes. estudantes. que ofereceram bons carros particulares. e que elas não teriam de pensar no pagamento da quinzena. Um cavalheiro — o precursor — aproximou-se de Marina e sugeriu que em sua pensão. engenheiros sanitários. somos verdadeiros gentlemen. Um segundo a esse tempo sitiava Dorinha. do Catete. o seu comício. 172 . médicos. De todos os lados apareceram os mais bondosos homens — funcionários. estava muito nervosa. precisava descansar. militares. quatro tias muito religiosas. e um tenente culminou com um gesto largo ofertando-lhes a proteção de sua própria mãe. Ouvindo isso. Seria difícil averiguar por que ele escolheu o Uruguai. A luta chegou a tal ponto que um bancário. vinte e três irmãs solteiras. Em certo momento um caixeirinho do armazém disse que as moças poderiam ir morar com sua prima. dele. para levar os dois canários até São Paulo. O mais comovente era ver como todos aqueles bons homens procuravam passar a mão pelas cabeças das mocinhas. Essa idéia brilhante de oferecer u m a proteção feminina venceu em toda a linha. com o inevitável complexo de inferioridade: ao pensar em estrangeiro não tinha coragem de pensar em país maior ou mais distante. naturalmente era um rapaz pobre. não obstante. Ma173 . Em alguns minutos as infelizes mocinhas tinham a sua disposição cerca de quinze primas. Trêmulas e nervosas. que morava na própria pensão de dona Rosalina e que havia três meses não podia pagar o quarto. e lhes dirigiam as palavras mais cheias de ternura e bondade cristã. Um doutorando indicou a residência de sua irmã casada. à escolha. intrépido. ofereceu-se.Um bacharel pela Faculdade de Niterói (então denominada "a Teixeirinha"). em Botafogo. quarenta e u m a irmãs casadas e oitenta e três mães. ofereceu três mães. Um jovem oficial de gabinete do Ministro da Agricultura sugeriu que elas fossem para casa de sua irmã. um estudante de Medicina que se sustentava a médias no Lamas tomou coragem e propôs conduzi-las para o Uruguai. onde pretendia possuir um palacete. como o coração de mãe. 174 1939. Foi então que. abriu caminho na massa compacta e agarrou as filhas pelos braços. suas desavergonhadas! Eis o motivo pelo qual eu sempre digo: não há nada. O cavalheiro que tinha conseguido parar o carro em local mais estratégico começou a empurrar docemente as moças para dentro dele. desceu feito uma fúria. . subitamente. entre alguns protestos da assistência. dona Rosalina irrompeu de novo escada abaixo. neste mundo. gritando: — Passem já para dentro! Já para dentro. Rio. De qualquer modo a situação havia de ser resolvida. Vários outros choferes pretenderam inutilmente fazer valer seus direitos — e até o motorista da Limpeza Pública quis à viva força conduzi-las para a boléia do grande caminhão coletor de lixo.rina e Dorinha hesitavam. Mocinha de quinze anos fica toda contente quando o jornal chama de senhorita. 175 . na rua vazia. É um falecimento. Ele ficou meio em dúvida e eu argumentei: — Põe senhorita. não vai ficar contente. E pôs "senhorita"..NAZINHA N o meio d a noite comum d o jornal u m colega d e redação perguntou-me: — Quinze anos — é menina ou senhorita? Estava redigindo u m a nota social e me propunha esse problema simples. Nem sei explicar por que pensei nisso no meu caminho de sempre.. coitada... depois do trabalho. — Senhorita. Mas ele explicou: — Essa. E continuou a noite comum de jornal. . muito séria. uma garota de seis ou sete anos. se julgarem conveniente! Pensei vagamente assim. na janela da casa.. E que talvez um dia. Senti simpatia pelo meu companheiro de trabalho por causa de sua expressão: — Essa. com a irmãzinha ao colo. os olhos parados. mas a lembrança daquele diálogo perdido na rotina do serviço de redação insistia em me comover. moreno. Ela seria uma senhora de quarenta e um anos. E viriam dois retratos: um aos treze anos. os olhos claros. o Viana. para ser delicado. Nem me dera ao trabalho de perguntar seu nome. Ele seria um senhor de uns quarenta e cinco anos.. de luto. coitada. E eles chamariam a outra irmã. muito religiosa. por acaso. a cara triste. Bom sujeito.de madrugada. o Diabo carregue as meninas e senhoritas. e que elas morram aos quinze anos. inventando u m a conversa mais comovida. talvez um pouco gorda. e contaria a conversa da redação — mentindo talvez um pouco. a cara magra. meio espírita depois da morte da filha. Menina ou senhorita? Senti de repente uma pena gratuita daquela mocinha que morrera. outro aos nove anos. o nome da filha morta. E então eu lhes contaria que me lembrava bem dessa morte. eu conhecesse esses pais.. E então a mãe diria 176 . ou talvez apenas trinta e oito anos. E fiquei imaginando que no dia seguinte poderia ler no jornal o nome da mocinha e de seus pais. os cabelos grisalhos. Senhor. rindo. Entretanto ali estava comovido. Ó. bigodes malcuidados. vagamente loura. talvez com o apelido de Nazinha. e lhe diriam que fosse lá dentro buscar os retratos de Iná — poderia ser Iná. . depois de tantos dias. e eu estarei tentando consolar um Sr. sem saber o que dizer. Alfredo concordaria mudamente e eu me sentiria ali inútil. m o r r a m . Alfredo. Mas pensei em tudo isso andando na rua deserta e subindo as escadas para o meu quarto. e que sua morte foi. Alfredo. no dizer de sua própria mãe. nem com esse nome. nem com nenhum outro. E nada disso acontecerá. talvez na vaga esperança de que o Sr.. O senhor e sua senhora.. para ela e para os outros". m o r r a m . Alfredo? Está mais com o jeitinho dela. coitada. e não me amolem. O Sr. talvez aleijada de nascença. m o r r a m . morram às dúzias. não vale a pena escrever aqui um bilhete ao Sr.. aos milhões! Morram todas as pálidas Nazinhas. Alfredo que nem existe. e iria embora. não sei por que. Oh.. Alfredo — leia o que estou escrevendo. Vai ver que a mocinha era órfã de pai.que só tinham aqueles dois retratos — que pena! e que gostava mais daquele dos nove anos: — Não é. " u m descanso. a mulher dissesse ao marido: — Parece ser boa pessoa. Vai ver a mocinha era doente. às grosas. nem me faria ficar melhor nem pior do que sou. eu penso que se chama Sr. "Sr. o Diabo carregue as meninas e senhoritas. senti vontade de escrever isso. E isso não teria importância nenhuma." Não. E talvez. Alfredo — esse homem qualquer que perdeu u m a filha e que. depois que eu saísse.. e que elas m o r r a m . E hoje. pelo amor de Deus! 177 . pobre Nazinha. magrinha. São Paulo..Nazinha. Reparo em seus sapatos pretos de salto alto (sapatos de moça. os cabelos castanho-claros. e depois foi na loja trocar. a imagino uns vinte e três dias antes de morrer. Por que inventei para a moça esse nome de Nazinha? Agora eu a vejo nitidamente e. e os dentes de cima um pouco salientes deixam a boca semi-aberta. e imagino que eles foram comprados pela mãe.. 1942. os olhos claros. 178 . e ela tem um ar tímido. E tudo isso me comove. vestida de preto como se estivesse de luto antecipado por si mesma.. com meias de seda preta. desses sapatos com que ela foi enterrada. não de menina).. Pobres sapatos. Pensemos em outra coisa. agosto. dentro de seu vestido preto. essa simples história dos sapatos de Nazinha. não sei por que. que primeiro levou outro par que não servia porque estava apertando um pouco. sapatos pretos. um ar tímido de quem estivesse pedindo uma esmola. de senhorita. a esmola de viver. Seus lábios são pálidos. Nazinha. numa determinada pessoa. 6. sarampo. lia automaticamente um folheto jogado sobre a mesa da redação. coqueluche. Febre tifóide. fazendo de seus instrumentos de trabalho instrumentos de música. Os assuntos passavam pela cabeça e iam-se embora sem querer ficar no papel.. 6. coqueluche. São uns quatro ou cinco pretos que cantam assim pela madrugada. 2.. Febre tifói179 . num livro. difteria. 2. 2.OS MORTOS DE MANAUS F e b r e tifóide. 2. 1. fazendo a marcação com as escovas e as latas de graxa.. Mas que poderia escrever sobre eles? Pensei também numa fita de cinema.. Pensei num pequeno grupo de engraxates que quase toda noite se reúne na esquina da Avenida São João e Anhangabaú e canta sambas. difteria. isso me lembrou a necessidade de comprar um chapéu. Com certeza na maior parte crianças. Larguei o folheto e continuei a procurar assunto. difteria. os mortos de Manaus voltavam a mim. Mário de Andrade me fez pensar em uma outra pessoa que também vi várias vezes no bar da Glória e essa outra pessoa me fez pensar em u m a tarde de chuva. Morrem muitas crianças dessas coisas de intestinos no Brasil. transformados apenas em números e nomes de doenças. U m a nota de estatística demógrafo-sanitária. difteria.. 2. eu voltava aos mortos de Manaus. 6. o chapéu me fez pensar no lugar onde o deixei e. pobreza ou ignorância 180 . 6. diarréia e enterite. . São os mortos de Manaus. Que doença matou mais gente? Senti curiosidade de saber isso. mas logo rejeitei essa idéia. " Nessa altura a preocupação de encontrar um assunto fez voltar meu pensamento para os engraxates da Avenida São João. logo depois. O número mais alto que encontrei foi 73. . contados pela estatística. Sim. as pessoas que faleceram em Manaus durante o primeiro trimestre do corrente ano. E na minha frente continuava o folheto sobre a mesa: Febre tifóide.de. 2. 2. rígidos. 1. coqueluche. Ao todo 428 pessoas mortas em Manaus durante o primeiro trimestre do ano de 1940. numa canção negra cantada por Marian Anderson: "Eu tenho sapatos. Aquela notícia dos mortos de Manaus me fez lembrar um poema de Mário de Andrade sobre o seringueiro. sarampo. tu tens sapat o s .. Apanhei o folheto e vi que era o Boletim Estatístico do Amazonas. coqueluche. 2. Dizem os médicos que é por causa da alimentação pouca ou errada. Ou melhor. Mas já nem sei exatamente o que os médicos diziam. Mas afinal seriam mesmo crianças. O que me irrita é o trabalho penoso das mulheres. Agora me lembro de um trecho da tal crônica: eu dizia que a indústria nacional que nunca foi protegida é a indústria humana. É impaludismo: 60. 19 crianças imobilizando seus corpinhos ma181 . de fazer gente. chuvas. aquelas 73 pessoas? Nem disso tenho certeza. E 19 mortos por "debilidade congênita". na maior parte. Preferimos importar o produto em vez de melhorar a fabricação dele aqui. 51. Fabricação de anjinhos em grande escala! Que morram aos montes as crianças: mas que nasçam aos montões! É brutal. fevereiro e março de 1940 em Manaus. Lembro-me que certa vez juntei uma porção de artigos médicos sobre o assunto e escrevi uma crônica a respeito. É a tal fabricação a grosso de gente. Fico pensando nesses débeis congênitos de Manaus. Passo os olhos pela lista. A lei só cuida de que ele não deixe de ser fabricado. Depois nefrite. Eis u m a coisa que n ã o chega a me dar pena porque me irrita: o número de crianças que morre no Brasil. 32.das mães. Tenho o desejo cruel de assistir a um filme em que os visse morrer: um filme feito em janeiro. Vamos ver qual é a outra doença que mata mais gente. o sacrifício inútil de dar vida a tantas crianças que morrem logo. Muito calor. tuberculose. Depois. Noto que houve dois suicidas e dois assassinados. Não se toma providência para aproveitar o produto nem para que ele seja lançado em boas condições no mercado. 5. Então por que esses mortos de Manaus vêm se instalar 182 . 24. 24. apendicite.. sendo levados para o cemitério em dias de chuva. 19 enterros: " d e bilidade congênita". 5. doenças do parto. o povo que à noite vai aos cinemas se divertir ficaria horrorizado e amargurado. cruelmente. amarelados. A lista é grande. para viver: vejo esses pequeninos olhos que ficam parados. De um modo geral não há nisso nada demais: está visto que as pessoas têm mesmo de morrer. Esse negócio de medicina tem lá os seus humorismos: que estranhos tumores são esses não malignos porém assassinos! Broncopneumonia. míseros corpos de tuberculosos. 10. Vejo esses corpinhos que não possuem força para crescer. Das 428 pessoas falecidas 235 eram do sexo masculino e 193 do sexo feminino. Que pensamento de m a u gosto! Penso nesses 60 mortos de impaludismo. frios. gripe. sífilis. Se nos cinemas aparecessem uns complementos nacionais feitos assim. doenças do fígado e das vias biliares. enfim cansados de tossir. 18.. Ainda bem que os homens morrem mais: 235 homens mortos. passa a vida não pensando em mais nada. 6. de impaludados. um após o outro. 3. enfim cansados de tremer. Se a gente começa a pensar muito nessas coisas. brancos. Sem febre mais: frios.gros nos bairros pobres. câncer e outros tumores malignos. nesses 51 mortos de tuberculose e tenho uma visão de seus corpos magros. disenteria bacilar. 1. 2. 193 mulheres mortas no primeiro trimestre de 1940 em Manaus. Que morram. Lepra. tumores não malignos. eles não estão apenas jogados sobre a minha mesa. esses mortos de Manaus me espreitavam certamente. inflexíveis. frios. numerados de acordo com suas doenças. com suas doenças expostas. Há dois que morreram por causas " n ã o especificadas". esses 428 mortos absurdos de uma distante Manaus. devidamente registrados. Os mortos de Manaus! Eles estão jogados sobre a mesa. mortos. e pensava em comprar um chapéu. é eles se postaram ali. certamente.na minha mesa. impressos em boletim. Eu não tenho nada a ver com os mortos de Manaus! Tu n a d a tens a ver com os mortos de Manaus! Não importa: os mortos de Manaus estão mortos e existem mortos. anônimos. mas dentro de mim. que morreram em março do ano de 1940. esses impiedosos desconhecidos mortos me olhavam e expunham no boletim suas mazelas fatais e sabiam que eu não lhes poderia fugir. Viajaram longamente no seio desse boletim. na última página de um boletim de estatística? Enquanto eu procurava assunto e ouvia o samba dos engraxates e via o bar da Glória. esperaram meses até que eu os visse. esses mortos de Manaus sem nomes. cada um com o nome de sua doença — o nome de s u a morte — pregado na testa. sub-repticiamente. Eles existem. mas nem por isso estão menos mortos que os outros. o acaso os trouxe para cima da minha mesa. em número de 428. reclamando atenção. contados e catalogados! Os mortos de Manaus existem: são 428 mortos que morreram em janeiro. peremptórios. e a mesa é 183 . que morreram em fevereiro. mas impressionantes e duros. ou de aborrecimento. E m u r m u r a : — P o b r e indivíduo. transfor184 . e eu me debruço. acima de algumas palavras que me disserem. Sim. Mas esse silêncio de 428 mortos de verão em Manaus é tão pesado e tenso que eu percebo que acima desses intranqüilos ruídos do tráfego das ruas da cidade por onde daqui a pouco andarei. acima de tudo estará esse silêncio pesado. opressora. Talvez a nossa lembrança te atormente um pouco. e eles projetam sobre minha alma suas 428 sombras acusativas. acima dos diurnos ou noturnos sons da vida. Estará sobre tudo como pesada nuvem pardo-escura tapando o céu de horizonte a horizonte. Um deles — talvez um daqueles amargos e cínicos assassinados ou. eu percebo que estão me acusando de qualquer coisa. um deles não está tão grave como os outros e ri para mim de m o d o tranqüilo mas terrível. nós aqui te estamos a servir de assunto. e das músicas dos rádios do café onde entrarei. espantosamente. e nós o sabemos. mas sem muita amargura. e do telefone e de minha própria voz.vasta e fria como a tristeza do mundo. perdidas nas esquinas. À nossa custa escreves u m a coisa qualquer e ganhas em troca u m a cédula. E o rumor dessa vida. e com ela te comprarás cigarros ou chopes. e o mofino prazer que à nossa custa podes comprar te ajudará a esquecer a nossa ridícula morte! Assim fala um deles. e do samba dos engraxates. mas sairás para a rua com esta cédula. São 428. e das palavras de estranhos. e agora todos guardam silêncio. grossa. na tua mesquinha vida de todo dia. ou de ternura. apenas uma criança congenitamente débil —. com ela te movimentarás na tua cidade. eu não tenho culpa nenhuma! São Paulo. 1940. obstinados. Eu me sentia em vossa frente inquieto e piedoso. a força da vida mais mesquinha é um milagre de todo dia. Arredai. mas sinto que não quereis minha piedade: os vossos olhos. pois essa nuvem é morta e está sobre todas as coisas. acusadores. ó m o r t o s ! —. arredai. pesada nuvem de mortos! Sereis varridos como por encanto para longe de minha vida e de minha absurda aflição. setembro. Eu não tenho culpa de nada. mortos de Manaus! Seja o que for que tiverdes a dizer. mas inútil. Pois bem! A mais débil de todas as brisas do mundo. A força da vida — sabei.mando o sol em um pesado mormaço. c c 185 . tudo o que me disserdes será tremendo. Os sons e as vozes da vida adquirem um eco sob essa t a m p a de nuvem grossa. e nada tenho a ver convosco. a mais tímida aragem da vida dentro em pouco vos afastará. os vossos 428 pares de olhos foscos me olham imóveis. Arredai. Eu não tenho culpa nenhuma. As chaminés do Brás expulsam penosamente sua fumaceira pesada no ar encharcado e ruim. Estou no limite: alguns metros além o Mercado ergue sua 186 . em lojas e escritórios. crianças sujas. Depois começa a roncar de tal jeito que tenho medo de que ele arrebente. e fábricas. mas é trabalho relativamente limpo. O céu está pesado. De minha janela dos fundos para leste a cidade é chata e desagradável: casas baixas de pobres. Olho os telhados sujos e lamentáveis sob a chuva. ruas onde passam caminhões. gente suja. baixo. carroças. sobre a cidade sórdida.TEMPORAL DE TARDE O rádio de experiência me dá a hora certa: exatamente 17 horas e 56 minutos. usinas. De minha janela da frente p a r a oeste ainda se trabalha. a cidade que trabalha. e desligo. cruel. amolecido e irritado pela eterna 187 . num fuzilamento furioso. e quando o cavalo desembocou na estrada larga galopando na terra fofa e perigosa eu dava gritos de gozo e de raiva. e a tempestade rebentou de repente. me lançar no chão. carregadores suados. Não sou inimigo da chuva. num estrondo. em canoa. o esforço de pequenos lavradores. Eu sou o último desses patifes — e um dos perdoáveis. pequenos comerciantes vorazes. sou como um funcionário público e estou metodizado. ameaçavam me agarrar pela cabeça. A cidade dos que trabalham recebe quieta porém carrancuda a agressão covarde das nuvens: a chuva furiosa. Quando tinha dez anos. ia a cavalo por um caminho aberto no mato bruto. os legumes. Também no mar já enfrentei. me furar os olhos. e os galhos e garranchos me batiam na cara. dois temporais vomitados com raiva pelo sudoeste — na p r o a . Um raio caiu perto do caminho: o cavalo alucinado empinou e desembestou. louco. Tudo escureceu e as grandes árvores uiyavam no vento.cúpula sobre as mercadorias. Então o caminho era pouco mais que u m a picada. Lembro-me que senti uma raiva selvagem. os bichos. levam uma vida macia e amam ouvir sonatas. E a fúria da água e do vento me exaltavam o ódio para a ação. os peixes mortos. porém. as carnes. Caminhando para o ocidente encontrareis muitas pessoas que possuem bom gosto artístico. Lá embaixo há lama. a chuva que essas nuvens parecem cuspir com força e desprezo sobre casas feias e a humanidade feia. talvez o menos inocente e o mais melancólico. Agora. A h ! muito se enganam. ter bons dentes. e enquanto umas correm molhadas pelos viadutos e ruas desabrigadas. portanto. Eu conheço essas chuvas. nenhuma dessas comerciárias que moram longe podia honestamente prever que chovesse hoje. a novecentas comerciárias 188 . Sinto nessa chuva deliberada maldade. Seis e tanto. pela sua miséria. Há outras menos exigentes. outras esperam interminavelmente sob algum toldo repleto e incômodo. desprevenidas. mas pelo seu trabalho. pela fealdade de sua vida crivada de aborrecimentos. A chuva não faz a menor diferença. Se eu pudesse subir até a cidade e declarar isso pessoalmente a oitocentas. Estão. A esta hora as comerciárias estão dispersas pela cidade. Essa chuva que não chega a ser violenta me dá uma sensação de impotência e muda meu tédio em um desespero medíocre. paralisadas longe de seus bondes. Como não chove há três dias. acossadas pela chuva forte e irritante. Nessas lojas as moças devem estar bem pintadas. bem penteadas. até onze horas da noite. O que faz diferença é que umas estão com os sapatos furados e encharcam os pés — os pés cansados das que trabalham em certas lojas em que é proibido sentar. uma intenção ruim de castigar a cidade não pelos seus vícios. trazer as unhas limpas e sorrir.vida urbana. e hoje o tempo estava bom. e eu digo com u m a certeza feroz que choverá e choverá até dez horas da noite. Em geral são feias ou pelo menos neutras — mas existem algumas que são mulheres de peregrina beleza. na esperança de que a chuva passe logo. que se postam sob toldos e marquises ou em portas de cafés e farmácias — elas me achariam desagradável e não me acreditariam. e molha completamente. e sentem-se esfaldadas e completamente molhadas. que afasta os 189 . Um homem chega-se demais para junto de uma comerciária. Assim ela evita cuidadosamente ser dramática. que alimentam com os pobres recursos de seus sentimentos contrariados. As moças se arriscam à rua. Várias moças deixam a proteção dos toldos. encosta a perna na sua perna. Algumas comerciárias tossem. com mulheres gordas em pé lá dentro agarrando crianças. chove para molhar. E sobretudo — ó comerciárias! ó patetas e iludidas! — não pensem que aquele bonde seja o de vocês. Chegarão já superlotados — ah! não se iludam! —. e muitos toldos se recolhem canalhamente. Ela apenas chove. o de vocês ainda vai demorar muito. sabem esperar. Olha nos olhos a comerciária. e a chuva aumenta em rajadas para ensopar os seus vestidos. outras tossirão mais tarde. incômodos. Declaro cinicamente que várias ficarão tuberculosas. mas de algum modo agradecidas ao destino que lhes deu um lugar naquele bonde. os bancos molhados. o joelho no seu joelho. são técnicas em esperança. chegarão cheios. não se torna um espetáculo. Umas conquistam lugar num bonde apertadíssimo. Os bondes que elas esperam ainda estão roncando em ruas distantes. Essas moças. principalmente as magras. A chuva enfraquece um pouco — e nisto há pior crueldade. chove com firmeza. e homens encharcados nos estribos. principalmente as feias. para castigá-las. sendo que doze estão com dor de dente insuportável e oito terão sinusite. o açougue com a conta atrasada.. as mesmas imagens todo o dia no caminho de casa e em casa. Cerca de dezoito em diferentes pontos da cidade estão com dor de dentes... esperam. outras que são feias e há dois anos e meio não são mais virgens. atrás de outros bondes também cheios. Sempre aqueles mesmos dois quarteirões e meio..olhos aborrecida pela intrusão brutal. ela pára de tossir. outras já ganharam 160 mil-réis e agora nesse emprego novo estão ganhando 110. E o bonde se arrasta e pára. outras que não precisam dar nenhum dinheiro em casa e gastam tudo o que recebem em vestidos e bobagens. outras andam na rua sob a chuva. começa outra vez. a garagem suja. na necessidade de ir amanhã na casa do tio buscar o guarda-chuva que esqueceu lá no domingo. outras que estão em bondes e ônibus. outras que 190 . o botequim cheio de negros e moscas. Há comerciárias que chegaram em casa. outras esperam enérvadas. 6 e 23. irritado. Enquanto o bonde se arrasta ela está pensando nos 14$500 que não tem para comprar aquele remédio. também molhados e lerdos. outras que foram noivas e não são mais. está mortificada pensando nos dois quarteirões e meio que terá de andar a pé do ponto do bonde até em casa. outras que moram em casa de uma família oriunda da mesma cidade do interior (Agudos). U m a comerciária começa a tossir uma tosse tão incômoda e nervosa que alguns passageiros e passageiras olham. na amiguinha que ficou de ir no sábado e não foi. Há algumas que são doentes. a minha velha canoa. a chuva aperta. embora sejam agora relativamente bonitas. e todas as comerciárias morrerão afogadas. e remarei com força. eu me revolto contra o pensamento de que alguma possa ser feliz. e. as águas subirão pelas paredes. os cães hidrófobos. outras que estão engordando demais. outrat que tinham marcado encontro com namorados e não foram. Eu remarei suando contra os ventos hidrófobos do quadrante sul. As comerciárias. são irritantemente felizes — mas n ã o . os corretores de imóveis. que chova eternamente sobre esses telhados miseráveis. a chuva aumenta. lamberão e engolirão os telhados pobres e subirão. sobre as ruas sujas. todos os urbanos. as cozinheiras de forno e fogão. eu remarei entre os corpos já irreconhecíveis dos capitalistas italianos e 191 . velhas. outras que sonham com aprender inglês e taquigrafia e jamais aprenderão nem isso nem qualquer outra coisa. em um futuro cinzento e frio. P a r a maior desespero há cinco ou oito ou mesmo treze que são felizes. tristes e cruas doenças que as torturarão. sobre essa cidade de cimento. Que chova. os cirurgiões-dentistas civis e militares. morrerão feias e desagrada veis. Chovendo quarenta dias e quarenta noites negras. mesmo as que estão com seus amados. mesmo as felizes terão doenças. as pobres patetas! 7 e 20.roubam dos patrões. nenhuma neste instante é feliz. que é revisor de um jornal e que ficara de arranjar convite para o baile. Eu tomarei a minha canoa. não arranjou coisa alguma aquele chato. todos os suburbanos. outras que estão aborrecidas porque o rapaz. Os peixes já terão morrido de infecção e eu não poderei pescar. São Paulo. eu remarei ferozmente. . eu remarei. eu remarei.dos trabalhadores rurais de Sergipe que estavam na Hospedaria dos Imigrantes. eu remarei sob o céu que vomitará água em borbotões sobre os corpos das inspetoras sanitárias e dos fiéis de bancos estrangeiros. 192 dezembro. 1941. ÍNDICE Este Volume O CONDE E O PASSARINHO Como se Fora um Coração Postiço Fifi Rumba Cuspir Ao Respeitável Público As Carrascas A Carta Pequenas Notícias Alady O Violinista Recenseamento Mato Grosso Animais Sem Proteção Sentimento do Mar A Empregada do Dr. Heitor Mistura Cangaço Batalha no Largo do Machado O Conde e o Passarinho A Lua e o Mar 5 9 13 16 19 22 25 28 31 34 38 41 44 47 50 54 58 62 65 71 75 . .......161 A Casa do Alemão ....... Chegou o Outono Noturno de Bordo Véspera de S........153 Muito Calor 156 Cafezinho ........... 179 Temporal de Tarde 186 192 ........168 Nazinha......175 Os Mortos de Manaus........164 Coração de Mãe ............... João no Recife Luto da Família Silva Recife.. Mar 143 A Senhora Virtuosa 147 O Número 12 150 Dia da Raça ............Conto Histórico... Tome Cuidado Reflexões em Torno de Bidu 79 86 90 93 99 102 105 M O R R O D O ISOLAMENTO Nota 113 Carnaval 115 Palmiskaski 118 Almoço Mineiro 121 Morro do Isolamento 124 O H o m e m do Quarto Andar 127 Reportagens 131 A Lira Contra o Muro 133 Em Memória do Bonde Tamandaré 138...159 Crime de Casar ............. . Livro digitalizado por Coyoty.com.br/ 63 . http://www. Sugestões ou erros informar pelo forum PDL.portaldetonando.
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