“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” - UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” - UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO “THE NAVES BROTHER’S CASE” - JOÃO ALAMY FILHOS’S MEMORY TRACES Eliene Rodrigues* Resumo: Com o intuito de contribuir para a melhor aplicação da Lei, João Alamy Filho, advogado defensor dos dois irmãos torturados até a confissão do emblemático “crime inexistente”, ocorrido no interior mineiro no período da ditadura militar, concebeu o livro “O Caso dos Irmãos Naves - o erro judiciário de Araguari” (1960) com um estilo de escrita que mescla um fluente literário e um rígido processual. O presente artigo, parte de uma pesquisa em andamento, pretende tecer breves apontamentos sobre a narrativa da verdade do autor-personagem, pela perspectiva da memória, valendo-se de Marina Maluf em seu texto “Ruídos da Memória”. Palavras-chave: caso dos irmãos naves; memória; literatura. Abstract: In order to contribute to the better implementation of the Law, João Alamy Filho, defense lawyer of the two brothers tortured to confess the flagship “noexistent crime”occurred in the interior of Minas Gerais durig the military dictatorship in Brazil, conceived the book “The Naves Brother’s Case – the Araguari’s Mistacarriage of Justice” (1960) with a writing style that combines a fluent literary and a rigidprocedure. This article, that comes from an ongoing research, aims to include brief notes on the true story of the author-character, by the memory perspective, drawing on Marina Maluf in her text “Memory’s Noises”. Keywords: Naves Brother’s case, memory, literature. *Mestranda em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia/MG. [email protected] Emblemas - Revista do Departamento de História e Ciências Sociais - UFG/CAC 73 é tentar. violência e privação de liberdade confessam um crime que nunca existiu.Emblemas. tecer alguns apontamentos sobre a 1 Teor constante na apresentação do livro escrito pelo próprio autor em maio de 1960. O clássico “Caso dos Irmãos Naves” ocorreu na cidade de Araguari-MG (1937). 2. quanto para serem 74 Emblemas . Nem o cadáver. ora o rígido processual das transcrições dos autos processuais. que desaparecera levando consigo grande quantia em dinheiro. sob o formato de livro. o que aqui se pretende. de forma simples. 2011 Na tentativa de esclarecer a verdade sobre o caso dos Irmãos Naves o causídico/escritor João Alamy Filho concebeu a obra literária intitulada de “O Caso dos Irmãos Naves – o erro judiciário de Araguari”. condenação considerada como o maior erro judiciário do Brasil. O advogado João Alamy Filho os defende e enfrenta o poder policial e juízes e amedrontados e coniventes com o Estado Novo. sem qualquer preocupação com estilo. quando os irmãos Sebastião Naves e Joaquim Naves foram acusados pelo Tenente Francisco Vieira dos Santos de terem sido os responsáveis pela morte de seu primo. Os irmãos sob tortura. tampouco o dinheiro foram encontrados. Todas as decisões favoráveis tanto para responderem em liberdade. v. Provas forjadas. a sua intenção era contribuir para a melhor aplicação da lei1. Esclarecimento este. Benedito Pereira Caetano. 73-88.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . n.UFG/CAC . em plena ditadura militar. jul-dez. 8. Durante a investigação nenhum vestígio do crime. referida obra pelo viés da memória. Longe de uma análise da referida obra. que serviu de registro para a transmissão da memória dos dois irmãos que foram condenados por um crime que nunca existiu. Ora usando um fluente literário. . descumpridas pela polícia. Joaquim Naves falece como indigente num asilo (1948) e Sebastião Naves reencontra o “morto-vivo” em Nova Ponte-MG (1952). a já radionovelista Odette Alamy.UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO soltos. Em 1967. ganhou importantes prêmios em Moscou e em Berlim. publicado inicialmente pela Editora Arthur Bernardes. (CHAVES. o livro. em 1960. e o filme O Caso dos Irmãos Naves. mas uma verdadeira metáfora política dos anos 60. O processo é anulado e. com um judiciário submetido às novas autoridades e. estrelado por John Herbert. p. Anselmo Duarte e Raúl Cortes. pela primeira vez no Brasil.. O autor da obra literária. e que teve diversas edições posteriores. naquele momento. quando das absolvições.UFG/CAC 75 . 55-56) Segundo Bernardet (2004).“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” . Decisão histórica. por incentivo de sua esposa. [. a justiça tinha deixado de existir e se instalara um regime de violência e arbitrariedade. aos injustiçados é reconhecido o direito à uma indenização a ser paga pelo Estado (1960). escreveu. a obra foi adaptada para o cinema sob a direção de Luiz Sérgio Person. 2007.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais .]que vai se tornar um clássico do Direito Penal brasileiro: O Caso dos Irmãos Naves: um erro judiciário. personagem da história real. Juca de Oliveira. Emblemas . Cumprida parte da pena e postos em liberdade condicional (1946). o filme não seria um instrumento apenas para relatar o erro judiciário. Os irmãos permanecem presos até o cumprimento da pena (25 anos e seis meses de detenção). pois o Julgamento dos Naves se deu no início do Estado Novo. As relações com o nosso presente social e político eram evidentes: a polícia tinha inventado uma falsa realidade pela tortura. quando apenas lemos os títulos. um rigor técnico-jurídico da prática processual. pode nos parecer que trata-se de uma mera transcrição dos autos processuais. n. [. (BERNARDET. A própria intitulação 76 dada pelo autor aos capítulos constantes nesta subdivisão. v.. percebemos que os títulos são “frios”. 2011 e a tortura vinha sendo praticada no Brasil pelo regime militar. recheado de memória emotiva do próprio autor. um dos principais personagens do fato. sendo ele. Durante toda a elaboração do filme. representa uma ordem técnica de autos processuais. p.Emblemas. A Hora dos Ruminantes. mas se tornava uma metáfora política do nosso presente. 73-88. que chamávamos de ‘filme Costa e Silva’. numa ordem linear do tempo. A breve leitura do sumário. 8-9). O próprio sumário é uma espécie de narrativa seqüencial de fatos. Parte IV – A anulação do processo. em oposição ao roteiro que escreveríamos em seguida. Emblemas . a surpresa. Denunciaríamos a tortura e arbitrariedade.UFG/CAC . A obra revela um autor-narrador que acionou sua memória para a construção textual. 2. No sumário. a tal ponto que passamos a qualificar os Naves de ‘filme Castelo Branco’. 8. nunca se perdeu de vista essa perspectiva. mas o teor dos capítulos. A obra é uma narrativa apresentada numa ordem cronológica dos fatos. mesmo para quem não conhece o caso real. Parte III – Os julgamentos. mas quando da leitura.] O filme seria absolutamente fiel aos fatos dos anos 30. subdividida em quatro partes: Parte I – O inquérito policial.. 2004. já nos possibilita visualizar a narrativa dos fatos e conjecturar uma sinopse da obra.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . Parte II – A instrução criminal. jul-dez. fica preocupado. a sentença. mas da transcrição de e 6 meses. Na primeira parte do livro. Joaquim.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . O Tribunal do Júri que confirma a pronúncia. as novas declarações na polícia. seu hospedeiro. O autor ainda não é personagem. Não saber por quê. embalado aos equívocos da horizontal Floriza. Incomoda-se. a confissão de Joaquim e a concessão do primeiro habeas-corpus. Distante dos fatos é ele apenas mais um indivíduo da sociedade araguarina que toma conhecimento do ocorrido Benedito costumava passar a noite fora. a condenação de 25 anos 2 Não se trata de uma cópia fiel. a quarta vez no tribunal e o livramento condicional. a confissão de Sebastião. o segundo tribunal do júri. o início do inquérito. Não tem razão. ele conta sobre a preparação ao judiciário. Emblemas . o primeiro habeas-corpus. consta o relato da sentença de pronúncia. o tribunal do júri pela terceira vez. as razões do recurso. a denúncia. a prisão de Dona Ana Rosa. Na “parte I”2 ele narra o desaparecimento de Benedito. o defensor visto pelos seus colegas.UFG/CAC 77 . a defesa e a sentença. o primeiro Júri. o interrogatório dos denunciados. a sustentação da pronúncia.“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” . a suposta “fuga” de Sebastião.UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO alguns títulos constantes no sumário do livro. anulação do processo. Na “parte IV”. Nesse dia. Mas chegava em casa ao amanhecer. mas não entende. o autor faz um relato sobre o desaparecimento de Benedito em data de 29 de novembro de 1937. Na “parte III”. a ausência de corpo de delito. Na “parte II”. não. Procura orientar-se. Sempre assim. Benedito não volta. o encontro do “mortovivo”. espera-o. o segundo hábeas-corpus e a defesa prévia dos irmãos Naves. Teria de levá-lo a Nova Ponte. o decreto de prisão preventiva. compreender o sentido desse retardo. o processo de indenização. Espera. até a retomada de coragem e força para enfrentar a batalha de defender os irmãos. jul-dez. num momento de repressão e arbitrariedade que até os juízes. (ALAMY FILHO: 1960. talvez tenha sido o ápice da sua ousadia. Rala-se também. procura Joaquim. Há neste capítulo não só a descrição do Tribunal do Júri. Por que essa demora? Já passou da hora. 8. 2. amedrontados com a polícia truculenta.Emblemas. do seu enfrentamento ás Instituições Estatais. no dia 24 de julho de 1952. Sebastião Naves ciente de que Benedito Pereira Emblemas . Na quarta parte. Eles não aparecem. a que mais o causídico se expôs e relutou contra o próprio corpo e as reações negativas das emoções temerosas em prol da defesa dos inocentes. quando os irmãos saem em liberdade condicional. Benedito não tinha voltado. 73-88.. 2011 Matutando. Naquele momento. seu conflito interno ao raciocinar sobre e durante o próprio discurso.UFG/CAC . num universo “pesado” da época da ditadura militar. a 78 influência da emoção e o reflexo no corpo. 19) Na terceira parte. eram coniventes aos mandos e desmandos da polícia militar.. mas a descrição emotiva do próprio João Alamy. revela importantes registros da memória individual do personagemnarrador. n.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . É nessa “cena” talvez. Ele descreve desde suas primeiras falas. lembra-se repentinamente de que Benedito portava o dinheiro [. pensa. v.] Sebastião espera em sua casa Joaquim e Benedito para outro dia de trabalho. espera. o capitulo intitulado de “Defesa”. “Os Julgamentos”. é marcante o que o autor denomina de “encontro com o morto-vivo”. Os dois sentem um aperto no coração. Após a prisão que perdurou desde 1937 até 12 de agosto de 1946. Impaciente. pronunciou à plateia que seu pai sempre dizia “olhe para frente porque o mal que passou não pode mais ser desfeito”.UFG/CAC . 1960. grita-lhe: “Pelo amor de Deus. E Benedito. abraça-o dizendo-lhe: “Graças a Deus te encontrei para provar minha inocência. entrou pela casa adentro. Sebastião. no auditório do Centro Universitário Newton Paiva (Belo Horizonte-MG) durante uma sessão de exibição do filme “O Caso dos Irmãos Naves”.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . acordando-o. e aberta a porta pelo genro de João Pereira. Ninguém te quer matar. vindo sob guarda da polícia. Benedito dormia placidamente. de lágrimas nos olhos. p. (ALAMY FILHO. cunhado do mesmo Benedito. colocandose as mãos sobre os ombros. Pensando na metáfora da “serpente” presente em Zaratustra. angustiado e incontrolável no momento.“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” . Benedito. 343-344). aonde foi metido na cadeia. acompanhado da polícia. Consta em matéria divulgada em mídia eletrônica. a 25 de julho de 1952. dirige-se até ao local escoltado por forças militares Chegados à casa em que se escondera Benedito. dominado pelas circunstâncias. no dia 09 de novembro de 2009. após prestar declarações. E Sebastião. não relutou. intensamente comovido. é possível refletir sobre o Sebastião Naves nesta passagem e fazer um paralelo com esse pensamento nietzscheniano. filho de Sebastião Naves. sacudiu-o. 79 Emblemas . Sebastião. em que Nietzsche a mostra como alternativa para jogar longe o peso da eterna repetição (a libertação). que Ivaldo Vicente Naves.UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO Caetano encontrava-se na fazenda de seus pais em Nova Ponte-MG. Sebastião. vem pra cidade. não me mate”. pro povo ver que você está vivo e que eu sou inocente”. tomado de surpresa e apavorado ante a presença de Sebastião. para Araguari. 73-88. Lembrar é. acionar a memória para recapturar o passado e os eventos vividos. Truncada. 80 A recordação é por natureza construtiva e o “cenário” onde o indivíduo viveu. enquanto num esforço sobre-humano tentávamos o autodomínio.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . As imagens reconstituídas pela memória são pontos de vista socialmente situados sobre o passado. É o lugar social de onde parte o olhar.UFG/CAC . sons. A memória guarda espaços que viveu e que são afetivamente ordenados na singular arquitetura das lembranças. não cultuou a memória do ocorrido para fazer a lei “olho por olho. Um novo olhar para o passado desgarrado da repetição de tudo aquilo que pode nos matar. odores).Emblemas. Ao contrário. n. 2011 Essas duas falas de Sebastião Naves. Vagarosamente. Lentamente. não agiu com vingança e tortura. 8. No texto “A Reconstrução do Passado”. Procuramos dominar o nosso descontrole nervoso. para viabilizar uma existência criativa que não fique presa ao passado. No caso. vem de encontro ao esquecimento preconizado por Nietzsche que oferece uma outra ótica e abre novas possibilidades para pensar a memória. Sebastião Naves não repetiu a violência que recebera. Fizemos a saudação de praxe. Melhoramos a nossa dicção. Quase em pânico. dente por dente”. Íamos conseguindo. penso. o próprio tempo é um círculo”. ao mesmo tempo. 2. Articulamos melhor as frases. Palavra insegura. Marina Maluf(1995) revela que memória é a um só tempo lembrar e esquecer. Arrancamos palavra por palavra. demonstrou que “toda verdade é torta. E o “relato poético” de João Alamy Filho bem revela isso: Recebemos a palavra. objetos. As Emblemas . jul-dez. funciona como verdadeiro arrimo da memória (casa. v. Volvemos os olhos naquela direção. Era o teste da sua 81 Emblemas . Olha-nos. a própria descrição do silêncio e olhares do corpo de jurados. Ameaça presente pelo próprio corpo. interrompemos a defesa. Também outras pistas são as angústias. Mas era preciso. Quase reintegrado em nós mesmo. sobre a “ameaça silenciosa” nas palavras. em ângulo extremo direito da sala. Sê prudente! Não tomes conhecimento dele! Já te arriscaste muito! Sofre a humilhação! A vergonha! A covardia! Mas salva a pele! Ela é tua! Não adianta mais nada. depois ângulo reto. Provocante. Temos nossa alma dilacerada pela angústia. Não pudemos falar. Estávamos calado. o autor deixa muitas pistas sobre a violência. junto à tribuna. Frente a frente. E tudo estava nas suas mãos. Cruel. p. no momento exato em que o Tenente Vieira abre a cancela que separa a assistência do júri.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . Descontrolado. Bem passado. Corta-nos como fio de navalha. Formavam sentido. Só o coração ainda não se aquietara de seu descontrole inicial. dirigindo-se para a parte fronteira a nós.UFG/CAC . De pé. Ficamos calado. Fardado. Tínhamos de dominá-lo. Braços cruzados ao peito. No momento de sua entrada. 251) Nesta passagem da obra. Seu olhar é um desafio. A população inteira é contra! As autoridades estão convictas do crime! O júri é contra! Serão condenados de qualquer modo! Não adianta! Em tela panorâmica o juramente desfila como um relâmpago em nosso cérebro. 1960. Nosso instinto de conservação nos grita covardemente: Silêncio! Não fales! Não defendas! Não te arrisques.UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO palavras já eram inteligíveis. pela própria presença do Tenente ao adentrar o Salão do Júri conforme está descrito. Ingressa no recinto. Duro. Está a cinco metro de nós. Falávamos já durante alguns minutos.“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” . Bem limpo. Caminha em nossa direção. Quando percebemos um movimento diferente em meio à multidão expectante. Satisfeito e sorridente. (ALAMY FILHO. ainda nesse capítulo da “Defesa” bem revelam isso. E ele entrega sua própria vida em jogo. n.UFG/CAC . Emblemas . leitor. o representante de uma possibilidade de mudança. não dos dois irmãos. da privação de liberdade e mais do que isso. são recortes da memória coletiva. naquele momento. 8. Tínhamos de tomar uma resolução dura. estavam a única “esperança” para que justiça fosse feita. o único defensor. porque ao sair dali. seu instrumento de trabalho. Para nós? Para eles? Contra nós? Contra eles? Sim e não.Emblemas. 2011 coragem ou covardia. da falta de provas que imputassem a eles autoria do crime. mas daquela sociedade. ele pensou. Era ele. o lugar tem grande influência para a escrita. contido de humores e de assuntos selecionados no qual o autor é. são as pistas da denúncia que ele fizera. Era ele. 73-88. A memória individual 82 é uma perspectiva. mas que ele mesmo se questiona internamente. São descrições do momento do primeiro Julgamento. 2. Medo? Angústia? Dor? Coragem? Covardia? Quem poderá dizer o que sentimos? Preferimos esperar a recuperação do controle nervoso e vocal. “Os Naves dependiam de nós”. No seu corpo e fala. Da violência a que os irmãos estavam submetidos. O texto memorialístico é um registro temperamental. v. Não podíamos nos precipitar.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . o que o esperava e sua família? Segundo Maluf(1995). Enquanto isso. jul-dez. Suas conseqüências poderiam ser as mais graves. ao revelar “jogando a vida contra a morte”. A reconstituição individual não é um ato isolado. O trecho “falamos e falamos”. ao mesmo tempo. Irretratável. ele caminha. tem evidente relevância para a produção do relato. Os registros deixados por João Alamy Filho. Pensávamos celeremente. Não e sim. Definitiva. Não era. Era tudo ou nada. Esta reconstrói criticamente os acontecimentos e recoloca-os em quadros para confrontá-los analiticamente. Nada se ouve. Vivido. Ebulir-se. Prevendo o resultado. Deixamos o processo. Calculando as conseqüências daquilo. à sua entrada. Tínhamos resolvido.. (ALAMY FILHO. Ali. Pedíamos a Deus que nos desse coragem. Na sala.UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO Duro Cadenciado.. p. Diziam-nos que a coisa podia ser diferente. o passado é a matériaprima da memória (interior – indivíduo) e da Emblemas . Não havia mais remédio.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . Silentes. Fustigado pelo pensamento. Certo. Pobre advogado novo. O nosso corpo acovardado. Erecto. Recomeçamos a defesa. Inexistente. Os olhares se concentram em nós. Ele. Para Maluf. o silêncio acua os presentes.] Retomamos os olhos aos jurados. Morte ou vida. Quanta garganta seca! [. Mudamos-lhe o rumo. Sob nossas mãos. começa a esquentar-se.UFG/CAC 83 . Indiferente. paradoxalmente. tinha nos trazido a solução. alerta a autora. 252) história (exterior – sociedade). Duramente Causticamente. Inexorável.“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” . solene e fria. Pesadas. Insensíveis. na projeção do tempo. Era falar. o jato. Tem certeza de que nos aniquilara. Estático agora nos observa. Era. Morte. Tudo sentido. Não sabíamos. ali. Violenta. Falamos. Passado. que se esfriara quase até ao desmaio. Seus olhos falam. 1960. Os registros memorialísticos devem ser lidos como pistas. Falavam. que era disso que precisávamos. Pálido. Aniquilado. Rumo ao lugar de sua preferência. Dependia de nossa atitude. a luz. Inertes. Vibrava o corpo apenas. Militarmente. Vida. eSquecemolo. Afrontosamente. Sentimos que ela nos faltava. Quem sabe? Quem sabia? Quem saberá? O cérebro ultrapassa o som. Frias. Frio. A reação vem. Compreendemos num átimo. Tudo rápido. Intensamente vivido. Tínhamos recuperado a nossa capacidade de falar. como se suas fossem tais memórias. E foi.UFG/CAC . jul-dez. Peter Burke diz que as memórias são maleáveis e. Agora não era mais o júri indiferente. Dependiam do que disséssemos. Sofríamo-lo. Mas era. No texto “História como Memória Social”.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . Em toda a intensidade de nossa veemência. Durante os depoimentos. v. onde esconderam o dinheiro). Como se suas fossem tais histórias. Acionaram uma “memória individual”. 73-88. Os Naves dependiam de nós. Em toda a coragem de um alucinado. n. São influenciadas pela organização social de transmissão e os diferentes meios de comunicação empregados: a) tradições orais (mudanças ocorridas na disciplina de história – declínio dos fatos objetivos x surgimento do interesse por aspectos simbólicos da narrativa). e é necessário compreender como são concretizadas. em que confessaram 84 o crime de latrocínio. relataram detalhes de um crime que não cometeram. p. Falamos e falamos. 252-253) Ora. Em toda a veemência de nossa coragem. por quais lugares percorreram. os dois irmãos acionaram lembranças que não viveram. tamanha era a violência que os irmãos Sebastião e Joaquim Naves. a partir de fatos forjados pelo Tenente que os obrigaram a “memorizar” e relatar minúcias de um local (onde mataram Benedito. uma matéria-prima. 2. 8. 1960. (ALAMY FILHO. Emblemas . os “fios da memória” para exporem seus pontos de vista. Jogando a vida contra a morte. assim como os limites da maleabilidade. mas “relatos” que alguém contou e os obrigou a dizerem. Tínhamos muito o que dizer. a “arquitetura”. 2011 Impiedosamente. e por quem. Era a nossa vez. Não havia para Sebastião e Joaquim Naves. Não havia recordação de um crime. Sentíamo-lo. Tinha que ser assim.Emblemas. coagidos. cujas lembranças contidas e narradas pelo autor. os motivos pelos quais algumas culturas parecem mais preocupadas que outras em lembrar seu passado e por que o contraste de atitudes para com o passado em diferentes culturas. Para ele. d) ações do mestre para o aprendiz (rituais) – encenações do passado. mas também tentativas de impor interpretações do passado. c) imagens (pictóricas ou fotográficas. e) espaço (o valor de por imagens que desejamos lembrar em locais imaginários impressionantes). Halbwachs relaciona lugar e memória. são insuficientes em si mesmos. sente necessidade de procurá-las. enquanto definidor de identidade. afirma o autor. atos de memória. paradas ou em movimento). não esquece). as histórias de livre flutuação são vinculadas ao novo herói. oralmente a princípio. Quem não tem raízes culturais. A história é escrita por vencedores (perdedor não aceita.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais .UFG/CAC . questiona quais as funções da memória social. é possível refletir sobre a obra literária enquanto um meio de transmissão desta memória social. É necessário levar em conta as funções ou usos da memória social. são lembranças que pertencem ao corpo social e estão impregnadas 85 Emblemas . formar a memória e construir a identidade social.UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO b)ação do historiador (relatos para formar a memória de outrem). Peter Burke. No que se refere aos usos da memória social. Por esse viés. As explicações do processo de feitura de herói em termos da mídia.“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” . na qual. a cristalização mítica. Ocorre o processo psicológico que ajuda a assimilação e assim. Do “enquadramento” à imaginação das pessoas e a circulação de histórias sobre determinando indivíduo. 8. 2. cujo processo de construção textual. na Fundação Araguarina de Educação e Cultura (FAEC). Na região de Araguari e entorno. jul-dez. porque ouviram a história através dos seus pais. Existe ainda. É o filme. registros históricos constam no acervo do Arquivo Público do Município de Araguari-MG. o primeiro no Brasil a denunciar a tortura do país na época da ditadura 86 militar. tios.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . recortes de jornais da época dos fatos. Ora. Exibido em dezembro de 2004. 73-88. constam na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo-SP. foi calcado no acervo do arquivo público municipal de Araguari. sob direção de Thiago Scalia. o presídio é batizado de “Presídio Irmãos Naves”.UFG/CAC . um clássico do cinema brasileiro. 2011 no imaginário coletivo. além de netos e outros familiares). Em Araguari. n. há o filme “O Caso dos Irmãos Naves” dirigido por Luis Person e roteirizado por Jean Claude Bernardet. Ivaldo Naves. esses são Emblemas . É possível pensar outros meios também transmitiram essa memória.filho de Sebastião Naves e a Sr. muitas pessoas conhecem e falam sobre os irmãos Sebastião e Joaquim Naves. o episódio “O Caso dos Irmãos Naves” dentro da programação do Linha Direta. no livro "O caso dos irmãos Naves” de João Alamy e em entrevistas com araguarinos que se lembram dos fatos e familiares (Sr. Beatriz Alamy . um instrumento pedagógico utilizado nas faculdades de Direito e Instituições Militares para formação de profissionais. Tal qual a obra literária. avós.filha do Dr. Como dito alhures.Emblemas. trabalho que consta registrado em audiovisual. v. a montagem teatral pelo Grupo Teatral EnCena de Araguari. pela emissora da Rede Globo. João Alamy. Peter. Tal “caso”. 1960. Referências: ALAMY FILHO.In: As Dobras de Memória. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta. 67-77.. História como memória social.“O CASO DOS IRMÃOS NAVES” .9. O Caso dos Irmãos Naves:O erro judiciário de Araguari .br/ dspacbitstream/1843/ECAP-6ZGFWX/1/ dissertacaodette depositodefinitivoentregue. BERNARDET. Auterives. 2000. A Memória Cósmica e a Emoção Criadora.ufmg. Disponível em < http://www. 2008. Sebastião Naves e Joaquim Naves.67-89. É comum. Rio de Janeiro: 7 Letras. In: As Dobras de Memória. PERSON. Glenda Rose Gonçalves. In: Variedades da História Cultural. p. quando se fala em erro judiciário no Brasil. pdf>. Acesso em 30 mai. Jean-Claude. Luis Sérgio. de 2011 BURKE. O Caso dos Irmãos Naves: chifre em cabeça de cavalo.Revista do Departamento de História e Ciências Sociais . São Paulo: Círculo do Livro. uma possibilidade de estudar uma face da memória do lugar. as figuras históricas.. do país. A RADIONOVELA NO BRASIL: Um Estudo De ODETTE MACHADO ALAMY 87 Emblemas . p. de um passado lembrado através da memória coletiva. 51-63. Rio de Janeiro: 7 Letras.UM REGISTRO DE MEMÓRIA POR JOÃO ALAMY FILHO exemplos de meios de comunicação empregados para a transmissão do mito que se fez. 2008. p. Jean-Claude. bibliotecadigital. BARRENECHEA.A. p. Nietzsche: o eterno retorno e a memória do futor. CHAVES.UFG/CAC . João. BERNADET. se recorrer aos Irmãos Naves. no interior de Minas Gerais: João Alamy Filho. Roteiro Original comentado por Jean Claude Bernardet. M. 2004. & MACIEL Jr. São Paulo: Civilização Brasileira. 73-88.com/direito/pagina/ detalhe/25368/o-caso-dos-irmaos-naves-e-ocaso-de-tantos-irmaos>. A reconstrução do passado. Acesso em: 29 mai.bibliotecadigital.domtotal.UFG/CAC . pdf>. Disponível em < http:// www. Marina. Disponível em: < http://www. 2. n. 2011 (1913-1999). 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