-Ai, que bom! Ele vai voltar mais cedo para casa.Foi um relâmpago na minha cabeça - um pensamento egoísta, com certeza estúpido, talvez inconseqüente. Mas, por um segundo, tive este flash de esperança: ele arrancaria luvas e capacete, sairia do carro carregando aquela cara de garoto ofendido tão familiar por ocasião das derrotas, se recomporia, fugiria às carreiras do autódromo e das entrevistas, já encontraria o comandante Mahonney esperando por ele no aeroporto, com a turbina ligada, e em questão de horas estaria se jogando nos meus braços, em outro país, em nossa casa, no Algarve, em Portugal. O impacto do carro no muro ganhava bis e mais bis na tevê. Curva Tamburello, o nome do lugar, repisavam os comentaristas. Era uma tomada a distância - e a distância o que dava para ver era a lateral direita do Williams azul 9 ADRIANE GALISTEU razoavelmente amassada, uma roda perdida, nada que sugerisse alguma coisa mais grave do que batidas parecidas com aquelas das quais ele já tinha se livrado, são e salvo. Outra imagem da tevê mostrava com clareza o momento em que o Williams se desgarrou da pista, em alta velocidade, e sumiu do campo de visão da câmera acoplada ao carro que o seguia, o do alemão Schumacher. Dei um salto do sofá, ainda segurando o prato do almoço na mão - franguinho diet, legumes, para manter a forma. Minha única companhia, naquele casarão enorme, era Juraci, a caseira. Expectativa: mas por que demorava tanto o socorro? Bandeiras amarelas agitavam-se nas proximidades, mas ninguém acudia o piloto acidentado. As câmeras da televisão italiana, mal localizadas, também pareciam manter um distante desinteresse pelo que tinha acontecido. Minutos de espera - na verdade, me pareceram horas. Minha taxa de adrenalina foi subindo, mas confesso que não me desesperei de cara. Tinha certeza de vê-lo, de repente, desatando o cinto de segurança e saltando, lépido, para fora daquela carcaça meio estropiada, capacete verdeamarelo debaixo do braço, enfezado, a caminho dos boxes. Nada. O primeiro carro de socorro enfim se aproxima. Nada. A narrativa do locutor da televisão inglesa começa a dar sinais de ansiedade. Nada. Eu só gritava: - Mas o que eles estão esperando? Perdi a fome. Colei os olhos no telão, enquanto o helicóptero com um cinegrafista a bordo tentava, enfim, buscar uma imagem mais próxima. A coisa tinha sido pior do que eu imaginara. Mas eu nunca teria imaginado o pior - e ainda me recusava a imaginar. 10 CAMINHO DAS BORBOLETAS - Deve ter quebrado os braços, ou uma perna comentei, não sei mais se para mim mesma ou em voz alta. Buscava a única explicação possível, um consolo, para a cena inesperada. O Béco que eu conhecia tinha pavor de se machucar. Era cair de um jet-ski, em Angra, ou escor- regar na quadra de tênis, em Sintra, para ele parar tudo, checar músculos e articulações, pedir uma massagem rapidinha - meticuloso em seu preparo invejável, ele não tinha a menor vontade ou vocação para entrar em contato físico com a dor. - Sai do carro, sai - tinha ímpetos de gritar, e gritava. Ele não saía. Pensei: desmaiou. Mas o ligeiro movi mento de cabeça, meio para a esquerda, que a câmera captou, deu força a minha teoria: ele pedia ajuda, implo rava para que o retirassem dali. O amontoado de gente sobre ele, as frestas de imagem mostradas em meio ao atendimento, a aflitiva movimentação dos paramédicos, os comentários nervosos dos locutores foram desenhan do na minha alma, lenta, lentíssima, muito lentamente, o painel do pânico. Eu continuava de pé, na sala de tevê, imóvel, em silêncio, quando começou a me subir do estômago, ou de um lugar qualquer situado entre o estômago e o esôfago, uma coisa esquisita, entre um grito e um soluço. Vi os pés dele. Sem movimento. Era a revelação fatal. Sou expert na linguagem dos pés. Eles me dizem tudo. O que os pés dele me diziam, naquela hora, era a mais terrí vel de todas as coisas. Soltei meu desespero, pranto, berro, medo, inconformidade - mas ainda um quê de esperança, por que não? Aí, pela reação em torno, é que percebi que já não estava sozinha naquela sala, que a Juraci berrava, ADRIANE GALISTEU que os vizinhos tinham acorrido, que cães latiam assustados, que o telefone tocava. Uma sinfonia fúnebre se instalava na casa em que eu, na minha santa ingenuidade, pensava vê-lo chegar aquela noite, mais cedo, com aquele sorriso lindo, pronto para um reencontro que já demorava quase um mês. Jamais passou pela minha cabeça a idéia de que o palco onde ele foi três vezes rei poderia ser ó mesmo de sua morte. Nunca se pensou que Ayrton Sena morreria numa pista de corrida. Nem eu nem ninguém. Ele vivia do risco da velocidade extrema, mas o seu talento incomparável parecia ter eliminado, da cabeça de todos os seus adeptos do mundo inteiro, essa sinistra possibilidade. Ele até que talvez pudesse pensar. Mas essa era a natureza de seu trabalho -- que ele conhecia melhor do que ninguém. Depositaram o corpo dele, inerte, sobre a pista de Ímola - e eu continuava ignorando a hipótese do pior. Uma mancha vermelha no chão, da cor do sangue, me apavorou. Mas uma alma piedosa me enganou: - Não é nada, não. É uma espuma nova que estão usando, contra incêndio. Acreditei. Mas um telefonema me chamava à razão. De Sintra, da quinta onde mora com seu marido, o banqueiro Antônio Carlos de Almeida Braga, e com Joana e Maria, suas duas filhas adolescentes, minha amiga Luiza exibia uma voz preocupada: - Braga ligou de Ímola. É grave. É gravíssimo. Você tem de ir pra lá imediatamente. - Luiza, vem comigo, por favor. Não me deixe sozinha. Ela, então, alugaria um jatinho em Lisboa. Até o Faro, meia hora. De lá, direto para Bolonha. Pedi para a Clara, 12 CAMINHO DAS BORBOLETAS uma amiga de lá e decoradora da casa, que me fizesse uma maleta de mão, imaginando dois, três dias de estada ao lado dele, num hospital qualquer. Esqueci a televisão, as imagens repetidas, apaguei da memória o rosto assustado daquela improvisada platéia que apareceu na casa da Quinta do Lago e tentei me fixar na idéia do encontro próximo, ainda que doloroso. Machucado que estivesse, eu queria pegá-lo. Tocar seu peito. Acariciar seus pés. Sonhava com o contato físico, pele na pele. Queria sussurrar-lhe ao ouvido coisas bonitas e encorajadoras. Notícias entram e saem, desencontradas, assim como os visitantes. Luís, amigo da casa, vem dizer que, no rádio, informam que Senna recobrou a consciência. Não é tão desesperador assim. Agora, é minha mãe ao telefone, do Brasil: - Filha, que coisa que aconteceu!? Ela está chorando. Tento consolar: - Não, mãe. Acabou de dar uma notícia de que ele voltou... - Dri, cai na real - disse minha mãe. - Só um milagre. Senti alguém me dar um copo de água e colocar uma pílula na minha boca. Com certeza um calmante. Esparramada sobre o sofá, chorando muito, os intestinos em ebulição, tive a idéia de ligar para a mãe dele, que estava na fazenda de Tatuí: - Zaza, Zaza... - Eu não tinha muito o que dizer. Fala, menina. - Acabou de dar aqui uma notícia de que ele recobrou os sentidos, ele vai ficar bom. - Estou pegando um avião às 14h30 para Bolonha - ela me avisou. 13 ADRIANE GALISTEU - Então a gente se encontra lá. No aeroporto do Algarve, a tarde começava a cair. Teríamos três horas até Bolonha, anunciou o piloto, tão logo desembarcou. Luiza estava muito nervosa, mas argumentava: - Ele é forte, Adriane, ele é um touro. - Mais notícias do Braga? - eu quis saber. - Nada - disse ela. - Mas é muito grave. Aquele ombro maternal, ou fraterno, sei lá, ajudava a tornar as coisas menos difíceis. O comandante levou o jatinho até a cabeceira da pista e pediu autorização para decolagem. Demorou um, dois minutos. Estranho. Desacelerou e começou a refazer o caminho de volta: - Não tenho autorização da torre. Há um chamado para dona Luiza, ou para dona Adriane. Quando a porta do jatinho se abriu e Luiza e eu descemos, senti que toda e qualquer palavra tinha não fez. palavras confusas enrolavam-se na língua áspera de quem tinha tomado algum medicamento forte. sem nenhuma reação.chorávamos sem parar.Ele não vem.. prostrada. . a caseira do Algarve também o tratava como um filho. entrou em delírio.perdido a razão de ser. Pegou na minha mão: . tinha adotado. logo eu. -Vou preparar o jantar para ele.. . a Luiza. tudo. Alguém me contou depois que vivemos ali uns quarenta minutos de absoluto desespero.Sei que o Béco vem pro jantar. a notícia definitiva. Eu.me abraçou. os bichos vadios. com legumes no vapor. Luís? Luís. irmos juntas para a casa dela em Sintra. De outra sala do aeroporto.. Juraci. entorpecida. não foi isso. a Lu e eu.quis se controlar. rigorosamente tudo.. as fachadas das casas.. ela me deu um tempinho para me refazer. Chorava sem parar . os carregadores de bagagem. fraquinha como estava. os turistas.Ele morreu. os amigos que tinham me dado carona. e todos. rigorosamente todos. Sentou do meu lado. . Luiza achava melhor desistir de Bolonha. não vem? Tínhamos combinado aquela galinha grelhada.. . Dri? O meu menino. me irritei com aquilo: . . em seu silêncio aterrador.Vamos pra casa . a caseira do Algarve. me davam. entreguei os pontos: estiquei-me na cama e fiquei horas ali. só não me fala que ele morreu. meio desconjuntado: .Ele não morreu. cega. fala a verdade pra mim .Adriane. uma amiga da família.Não há mais nada a fazer. muda. Você fez a sobremesa de nata. o meu menino. fiquei paralisada como uma estátua. Aquela da Globo. o clarão da lua nascente. Na sala de comando do aeroporto. que velava o herói morto. Eu tremia dos pés à cabeça. em Portugal.Luís. Aquilo que ela exprimia era uma autêntica aflição de mãe. Luiza voltou pálida. os estalos da noite. os visitantes de cara fechada eu diria até as pedras. O fundo musical de tantas vitórias dele. não..ela o sacudia. as primeiras estrelas do céu. Pedi ajuda a Clara. 14 CAMINHO DAS BORBOLETAS veio a musiquinha: tãtãtã. Abraçou-me soluçando. Juraci. . Os funcionários do aeroporto. amigo da casa e do Béco. De minha parte. morreu? Sei lá o que o Luís fez para convencer a Juraci. O combinado é buscá-lo às 20h30 no aeroporto. que a SIC. a decoradora daquela . Como 15 ADRIANE GALISTEU todas as pessoas que trabalhavam para o Ayrton. Lágrimas grossas rolavam do seu rosto. .Luiza. Seria uma alucinação ou eu ouvi mesmo? Eu estava surda. O Béco está morto. Entre um telefonema e outro para o Braga. não respondia.. enfim. mas seu desespero não batia com o que ela falava. Os três volumes que eu tinha acabado de desfazer menos de 24 horas antes. que os ruídos calaram.Mais nada de lembrança? perguntou. já tinha o som de um adeus. Então.Eu sei. à Lua. Era como se estivesse dopada. Guardei o CD. Mais um favorzinho.Não posso acreditar. aqui em cima. Isso. Por curiosidade. eu sei . Luiza. pedi: atrás da porta do banheiro nosso. Fui despejada. Tinha. que o carro trepidava por uma estrada que tanto podia dar no infinito quanto na Lua. O nosso quarto. Ele não me deixou. . Não sei quanto durou a viagem do Algarve a Sintra. ao escritório onde o fax emudecera. Phil Collins . dentro de um automóvel e da noite que se seguiu. Mas nem assim: tudo me fazia lembrá-lo. você vai dormir na casa grande. por assim dizer. tem lá um short e uma sweat shirt dele. solícita: . às fotos dele. bem ao meu lado. con- . A Clara sentiu que a hora era de despedida: . à piscina. Uma escuridão baixou sobre mim. tudo. Ainda outro 17 ADRIANE GALISTEU dia.e o que eu pedia a Clara. enquanto corria. Meus braços. meu corpo . Bati de cara na realidade: . Passava da meianoite.estava tudo amortecido. Tínhamos rido. Naqueles dias em São Paulo. que o mundo parou. Calção e ~ater ainda estavam suarentos. percebi que seria capaz de acompanhar o Béco na sua corrida matinal em torno do condomínio do Algarve.Junta o que eu trouxe do Brasil.Não. Vi o som. que eu tinha usado naquela manhã. aos troféus de uma carreira brusca e incompreensivelmente interrompida. naquele momento.bela casa do Algarve que eu não veria mais .tudo a ver. Senti que minhas pernas não reagiam ao comando do meu cérebro. Um progresso e tanto. . e chorava. quis 16 CAMINHO DAS BORBOLETAS saber qual teria sido o último CD que ele ouviu na vida. A malona. Luiza. Sabe que não tem por que me deixar aqui sozinha.ela chorava e me consolava. Sabe que é muito especial para mim. em torno da casa. Ele não fez isso comigo. eu queria dizer. ao silêncio da rua. sim: uma visita solitária ao gramado. tínhamos jantado naquela sala. eu tinha direito de partilhar com ele. Ele sabe que não pode fazer.eu só me lembro de que a Luiza guiava. Caminhei. Despertei à vista daquela que todos chamavam de "Casa do Ayrton". com minhas lágrimas. não me põe naquele quarto. Adriane. que meus pensamentos chegaram próximo daquilo que os budistas devem chamar de grau zero de percepção. tremendo aparelho que ele trouxe da Suíça. com toda uma equipagem para passar cinco meses de temporada européia ao lado dele. Queria levá-los comigo. A temporada acabou antes de começar. Ela (no caso. eu tentava me apegar a qualquer coisa que fosse. diretor do escritório em São Paulo. Soube depois que Joseph. da razão de minha vida. é claro: . feito planos com nossos adoráveis anfitriões. médico de plantão da Fórmula 1. Vi e revi o acidente do Ayrton. o fiel massagista do Ayrton. Foi inútil. . Agora que eu topava de frente com a tragédia. Só vendo. . Vou ligar e pedir para que eles me mandem os vídeos da corrida. A Luiza velou minha dor. Aquilo mesmo que eu buscava em vida. 18 CAMINHO DAS BORBOLETAS Pela tela de uma tevê.Luiza. por conta própria. Por favor. A propósito de não sei o quê. uma vez: "Dri. Leonardo. o rosto. Como eu estava absolutamente fora de controle. tudo.eu implorava àquele que tinha sido o paizão do Ayrton e. para escapar à impressão de estar vivendo um pesadelo. a máscara fria da morte. Mas o pensamento me voltou exatamente àquela hora e eu me sentia era fraca. não me conformava. da papelada.alguém lhe sugeriu que o rosto do irmão estava deformado demais pela batida. ainda na pista de ímola. passo a narrar o que escreveu uma gentil repórter de um jornal brasileiro. . entrou. da televisão.ele desconversava. o fraco não vai a lugar nenhum". o Syd Walkins. completamente fraca. àquela hora da madrugada. tchau. Luiza ia dispensando. para acreditar. eu) vagava de camisola pela casa sombria. um por um: . De fato. Ninguém entra na morgue . amparando a cabeça com as mãos: "Ayrton. Insisti: queria ir a Bolonha. da autópsia.Não vem. eu experimentei a irrealidade da perda brusca de meu príncipe encantado. Tentou me acomodar para um ligeiro descanso. fazia questão de encará-la. como um zumbi. O sangue .Estou indo. quero assistir a tudo sobre o acidente.Respeitem a menina.Absoluta.Tem certeza? . o parceiro definitivo. Me dá o telefone da SIC. A tevê repetia e repetia a carnificina que tinha sido Ímola. Passei a noite em claro. explicar o inexplicável. Dos abismos de minha precária consciência. Celso. . feito assombração. do embarque do corpo. assinou o reconhecimento. Ayrton". umas horinhas de sono. num telefonema posterior. Ayrton me disse. contou que Senna não tinha como sobreviver quando ele lhe retirou o capacete. os pés. de meu amor. Camisola? Casa sombria? Berros na madrugada? Nem forças para isso eu tinha. não .Faço isso por você. qualquer bobagem. Essa idéia de pluft. tinha de manter a frieza para zelar da triste realidade da burocracia. Tomei uma decisão: . O telefone não parava. e gritava. também. Minha cabeça rodava. Braga . Que Gerhard Berger.versado. = Tem cinco mil pessoas se acotovelando lá fora. agora. Tentava compreender o incompreensível. queria agora na morte: o toque nos pêlos do peito. queria uma cópia da foto. Só um idiota poderia acreditar na chance de ele estar vivo. a palavra anotada pela mão divina no livro sagrado que. reproduzido em dezenas de fotos e pôsteres. dispenso o testemunho medonho da foto.esguichou. às vezes muito cerimonio sas. a namorada." Entendam como quiserem entender essa frase. la fiancée.em Portugal. Perdeu quatro litros de sangue na pista.mas recompensa-me. `A viúva vai se dirigir à imprensa. até mais. Nunca eram sonhos apavorantes. Não acreditava em nada. que vêm. das minhas lágrimas . que o amor de vocês seja um bálsamo para a minha alma ferida. Poderia ser um salmo da Bíblia. 20 CAMINHO DAS BORBOLETAS Uma noite dessas. às vésperas de corrida. como é da natureza dos personagens dos sonhos. Pois imprensa e sarcasmo costumam . Apresentei-me: era a namorada do Ayrton. o direito de compartilhar a enorme saudade dele. assim como ele fazia. o rosto puro. Tenho meus sonhos cotidianos. 19 ADRIANE GALISTEU Pode parecer mórbido. Tenho hoje a companhia impiedosa dos meus fantas mas. Liguei de Portugal para a revista. da minha solidão. Ora. de manhã. dos meus medos. pedir licença a mim. Teve dias em que chegaram duzentas cartas. Hoje. naquele acolhi mento amoroso e solidário de Sintra. na fazenda de Campinas. A traqueotomia feita ainda no asfalto era uma desesperada tantativa de fazê-lo respirar. remetidas dos mais remotos cantos do mundo. Massagem cardíaca. é nítida e. ainda em Sintra. no Rio. mas nem sempre eu conseguia roubar daquele personagem fugidio. escrita por uma dessas amigas que nem conheço: "A eternidade não cabe em nossas frágeis concepções de espaço e tempo". os pés quase sempre aparecem. Devo a Luiza o meu precá rio mas salvador vínculo com a lucidez. leio hoje todas as noites. um beijo e um abraço. Estava às portas da loucura. Sonhei com ele todos os dias seguintes .que me desculpem alguns jornalistas de respeito e compaixão - . la nobia. Mas sinto que não estou sozinha. a chegada do carteiro. exigia o único atestado concreto de sua morte. inteiro e singelo do meu herói. com direito ao sarcasmo que ela possa ter. talvez confirmando o meu fetiche. em busca de uma compreensão que ultrapasse o meu desespero. Mas o circo não podia parar. em São Paulo. não via nada. Senna morreu na pista. engasgado em sua própria massa encefálica. O resto era a fumaça de um pesadelo que me perseguia. Tenho ao meu redor. eu me detive numa frase. Estou fraca. com todas aquelas cartas. Na minha afli ção extrema. mas fiquei sabendo que um fotógrafo da revista italiana AutoSprint estava na curva do acidente e fizera a foto do campeão em seu frio repouso. não sentia nada. tudo isso era jogo de cena. em que a visão do meu amado. naquela fração de segundo da escapada e do choque. Eu me debrucei no sofá e vi. a filha dela.Não tenho nem condições de escolher uma roupa para vestir. de fazer um pedido a Miriam Dutra. embora não houvesse nada a fazer. eu sei que vou bater . na casa dos Braga. Não podia ser.como se fosse bater de propósito. Não me esqueci. Flashback de uma conversa nossa. era minha vez. Fita por fita. de quem tentava desesperadamente desviar do muro. Ele teve tempo de pensar? De início. ao final. mas a Quinta da Penalva corria o risco de ser invadida por um enxame de repórteres.Béco me disse uma vez. Pensei: queria ser um neurônio dele para compartilhar esse fio de consciência. depois de mais uma noite em que só tive insônia. Não via sinal de breque. não sei de onde tirei tanta força e tanta serenida de. revi. A coletiva saiu meio aos solavancos. parei quadro a quadro. sobre aquilo em que eu me recusava a acreditar. usei todos os recursos do telão em busca de uma única expressão do rosto do Ayrton. Não tinha jeito. e nada para explicar. pânico e recordações. eu ligada no automático. sentir o que se . . Queria saber. como dizem os experts). Quinhentas vezes. Agora. Na verdade. mas eu sinto o que vai acontecer. Mandou na terça-feira. a respeito do perigo numa corrida: . Eu ia dar uma coletiva. Ele deve ter assistido. nem de derrapagem (a resposta estava na caixa preta do Williams. Ela foi ao armário dela e me emprestou uma. detalhe por detalhe. Ayrton tinha sido a vítima. analisa da depois: ele tirou completamente o pé do acelerador. eu não dormira um minuto. Luiza e Joana. Tem piloto 22 CAMINHO DAS BORBOLETAS que diz que apaga tudo. fiz slow motion.Me mande todas as fitas. à cena final. com aquela sua clareza de mente. a direção estava virada no sentido contrário. antiga e eu diria mesmo rara. minha impressão era de que ele tinha virado contra a curva .Você tem bilhete de volta para o Brasil? Quem vai lhe pagar a passagem? 21 ADRIANE GALISTEU Não estava em condições de captar o sentido do drama lhão mexicano que ela queria promover. à minha custa.andar de mãos dadas.Não fico cego. quando eu vou bater o carro. No domingo. fotógrafos e cinegrafistas de todo o mundo. portanto. eventualmente me acompanhavam na minha investigação obcecada. 4G. Era segunda-feira. todos os vídeos que você tiver sobre o acidente. naqueles quatro dias posteriores que pareceram quatro anos: foi falha do carro ou o piloto forçou a barra? Queria me conscientizar.Dri. Pedi a Luiza: . e ele pisou no freio no ponto máximo. mas como não me lembrar da senhora que me açoitava com uma única e insistente pergunta: . correspondente da TV Globo: . A empregada da fazenda atendia: .. . no Braga. pensei. daquele dia a este aqui. vitorioso. Ele tinha 34 anos. está deitada . agitado. ele não.E quem mais está aí? .Eles não estão aqui agora.falei. Queria estar com ele não apenas naquela hora. Não quero tirar de ninguém. por causa de um acidente em Angra. lá embaixo.. Por que não eu? Passaram-se quatro meses. mãe. Eutive 405 dias de Ayrton Senna para mim. No dia seguinte. Luiza me desencorajava: . Todos aqueles dias tentei desesperadamente estar junto da Zaza. Viviane e Léo. fosse como fosse. da Viviane. . era inteligente. dos irmãos. Não era uma questão de aritmética. ainda tentei o Lalli (Flávio Lalli. uma imagem fortemente ligada à dele. e não me sinto bem em lugar algum. Queria que me matassem. com naturalidade.Dona Neide. do senhor Milton.perguntei. inocentemente.Fala qualquer coisa. Disfarço.só isso. da família. Da Zaza. na cabeça dele naquele minúsculo momento.Como está todo mundo. Adriané. o pai. dos amigos. marido da Viviane). em que registro minhas memórias. . dos fãs. um ser humano daquele jeito. e pensava em me atirar.. Queria estar próxima. Lalli? . Não me conformava: não.. Ligava para a família.perguntava eu. Deixei recado.pedi.Pó.E o senhor Milton? . como está? . Dois amigos nossos.passou. Adriane. eles queiram evitar. mas eu insisti: . Qualquer coisa.Pede então para eles me ligarem. . com certa formalidade. Liguei várias vezes.Pára de ligar pra lá. mas de justiça e de piedade. queria estar com ele . brincadeira deles). Ele me ligou. imagina eles... . do seu Milton. nenhum telefonema. Dois amigos do Ayrton (Jacir era o Gordinho. Cristiano tinha o apelido de Criminoso. Se eu estava daquele jeito. Comecei a estranhar: talvez eu seja uma lembrança muito viva do Ayrton. Pensei em morrer. em Portugal . Até que um dia perguntei: . Mas tudo foi por água abaixo. tento reagir.Deixa eu falar com eles . Os pais dele o tiveram por 34 anos. Não é pouco. como o chamavam. como está todo mundo?! Todo mundo está um horror! Ele estava nervoso.Também medicado e dormindo. Impossível. o direito à dor. Mas o que perdi era o que eu tinha de mais importante na minha vida.resumia a Ednéia. Aproximava-me daquelas ameias que separam o gramado da quinta do Braga das pedras do abismo. . Nada. sempre era a mesma coisa. silêncio total. Perdi completamente o medo da morte.Ela foi medicada. um coração desse tamanho.O Cristiano e o Jacir. 23 ADRIANE GALISTEU . . passei a ligar para a fazenda de Tatuí.A gente não sabe ainda o que fazer. vou com ele. E a mesma história: medicados. eu vim com ele. ainda teve de se submeter ao meu detalhado interrogatório: . No dia seguinte. ficar com eles. arrebenta do em mil caquinhos física e emocionalmente. já. azar dele . eu me decidi: .Mas. ótimo humor.que. Até com o Prost ele brincou. Lalli foi reticente: . tinha tentado evitar.. Totalmente por impulso. Minha sorte foi que o Braga apareceu.Qual era o estado de ânimo do Béco antes da prova? Excelente. Talvez leve a Zaza e o senhor Milton de volta para a fazenda. com o argumento "Já mataram uma vez. sedados. talvez não. como estava todo mundo? O cli m a da F ór m ul a 1 na qu el e di a es ta va pe sa do 25 . . finalmente. Vou para aí. lá de Bolonha. e me perguntou se eu não que ria acompanhá-la: . Estavam todos lá.. Fomos juntos para a pista. Norma italiana. 0 corpo só seria liberado após a autópsia. Percebendo que eu estava ansiosa e meio xarope. os outros. moído. exausto. Sorte minha. quarta-feira. ninguém podia atender.Já sei. Luiza soube que a Juraci estava voltando para o Brasil. em nome da família. Conversou muito com o Nick Lauda. Parece que a Viviane. sim.24 CAMINHO DAS BORBOLETAS Ele me contou que a situação estava difícil. mesmo para ele. querem matar duas". E com vocês. aquela noite.De jeito nenhum. impossível estabelecer qualquer conversa com os pais. E me falou de você. Braga. dava notícias de cinco em cinco minutos. Paciência. Se esta frase atravessou tantos séculos. de corpo e alma. de seu choro convulsivo: . de uma hora para outra . A cena representava reflexão. a inveja. depois da morte do austríaco Roland Ratzenbergen De seu desânimo. o que ele tem de fazer é correr. até mesmo as incompreensões. em Paris. 20 de abril. mais do que nunca. ele me botou sob sua generosa asa: . talvez. na madrugada de sábado. a insegurança de quem tenta inutilmente controlá-lo. esticou depois do jogo . Eu vi. Mas está aí o Nuno Cobra para me lembrar aquele último momento . feliz de ter sido festejado por um público que em princípio ele julgava pertencer.para o bem ou para o mal. Braga sabia que Ayrton estava sob pressão . porém amiga. em ímola. não me lembro mais quem. Isso mesmo: o pior. o medo dos que gravitam em torno dele. com certeza.Vamos nos arrumar para viajar amanhã para o Brasil -e você vai desembarcar conosco. temor.e que a Benetton e Michael Schumacher não eram as únicas coisas do mundo a atormentarem seu sono. o enterro. Os dois estiveram juntos. para mim. Comentei com o Braga a longa conversa que o Béco e eu tínhamos tido. noite em que a Seleção Brasileira disputou uma partida com o Paris Saint-Germain.ADRIANE GALISTEU admitiu o Braga. da força de sua determinação e da sinceri dade de seus sentimentos. Os franceses aplaudiram em delírio. Mas você sabe como é: o piloto está lá. Até nunca mais ver. O ídolo é um alvo fácil para a intri ga. 26 CAMINHO DAS BORBOLETAS Você pode aprender muitas coisas. como se ele prenunciasse o desastre.até o La Coupole. o veneno. E de muito mais. me mandou depois. é porque ela traz a essência de uma sabedoria. a despedida. Citação de um poeta grego. Tanto que ele. eu cheguei disposta a enfrentar sem o menor medo. Senna tinha no Braga um amigão do peito. ao seu rival Alain Prost. comprometido com a vida.coisa rara na vida dele . revi. numa carta afetuosa: "Sossega. Braga conhecia o Béco e sabia o que se passava no fundo de seu coração. não é nada disso. Os tormentos posteriores. poucos dias antes. Posto o que. sim. garotinha. encerrado o interrogatório.Sei de tudo. A lenta cena da preparação de Ayrton Senna. A ironia cruel é que ele estava. eu gostaria de já ter em mãos a frase que uma amiga desconhecida. aposto com vocês. tinha sido a perda definitiva do meu amado. responsabilidade. com o Braga. inocência! Naquele momento. meu coração: já enfrentaste coisa pior do que isso". Senna foi convidado a dar o chute inicial. Morte. Mas sabia da integridade do amigo. garotinha. o time do Raí. Em pleno Parc des Princes. do alto de seus anos e anos de janela. repisada pela televisão ao som de uma música suave. em que estivemos os três juntos, março de 1994, na pista da Universidade de São Paulo. - A vida está passando a sua frente - disse-lhe Nuno, filosófico. - Pega ela, pega ela. Nuno tinha sido testemunha de um momento em que Senna esteve por um fio: a espetacular seqüência de capotagens no GP do México, na perigosíssima curva da 27 ADRIANE GALISTEU admitiu o Braga, do alto de seus anos e anos de janela. Mas você sabe como é: o piloto está lá, o que ele tem de fazer é correr. Comentei com o Braga a longa conversa que o Béco e eu tínhamos tido, na madrugada de sábado, depois da morte do austríaco Roland Ratzenberger. De seu desânimo, de seu choro convulsivo: - Sei de tudo, garotinha. E de muito mais. Senna tinha no Braga um amigão do peito. Os dois estiveram juntos, poucos dias antes, 20 de abril, em Paris, noite em que a Seleção Brasileira disputou uma partida com o Paris Saint-Germain, o time do Raí. Senna foi convidado a dar o chute inicial. Em pleno Parc des Princes. Os frances es aplaudiram em delírio. Tanto que ele, com o Braga, esticou depois do jogo - coisa rara na vida dele - até o La Coupole, feliz de ter sido festejado por um público que em prin cípio ele julgava pertencer, de corpo e alma, ao seu rival Alain Prost. Braga conhecia o Béco e sabia o que se passava no fundo de seu coração. O ídolo é um alvo fácil para a intriga, o veneno, a inveja, o medo dos que gravitam em torno dele, a insegurança de quem tenta inutilmente controlá-lo. Braga sabia que Ayrton estava sob pressão - e que a Benetton e Michael Schumacher não eram as únicas coisas do mundo a atormentarem seu sono. Mas sabia da integri dade do amigo, da força de sua determinação e da sinceri dade de seus sentimentos. Posto o que, encerrado o interrogatório, ele me botou sob sua generosa asa: - Vamos nos arrumar para viajar amanhã para o Brasil e você vai desembarcar conosco, garotinha. 26 CAMINHO DAS BORBOLETAS Você pode aprender muitas coisas, de uma hora para outra - para o bem ou para o ma l. Até nunca mais ver, inocência! Naquele momento, eu gostaria de já ter em mãos a frase que uma amiga desconhecida, porém amiga, me mandou depois, numa carta afet uosa: "Sossega, meu coração: já enfrentaste coisa pior do que isso". Citação de um poeta grego, não me lembro mais quem. Se esta frase atravessou tantos sécu los, é porque ela traz a essência de uma sabedoria. Isso mesmo: o pior, para mim, tinha sido a perda definitiva do meu amado. Os tormentos posteriores, o ent erro, a despedida, até mesmo as incompreensões, eu cheguei disposta a enfrentar sem o menor medo. Morte. A ironia cruel é que ele estava, mais do que nunca, comprometido com a vi da. A lenta cena da preparação de Ayrton Senna, em ímola, repisada pela televisão ao som de uma música suave, como se ele prenunciasse o desastre, não é nada disso. Eu vi, revi, aposto com vocês. A cena representava reflexão, sim; temor, talvez; responsabilidade, com certeza. Mas está aí o Nuno Cobra para me lembrar aquele último momento em que estivemos os três juntos, março de 1994, na pista da Universidade de São Paulo. - A vida está passando a sua frente - disse-lhe Nuno, filosófico. - Pega ela, p ega ela. Nuno tinha sido testemunha de um momento em que Senna esteve por um fio: a espet acular seqüência de capotagens no GP do México, na perigosíssima curva da 27 ADRIANE GALISTEU Peraltada, em que o McLaren acabou emborcado na prote ção de brita, Ayrton também de cabeça para baixo. Levantou-se, tirou a poeira do macacão e fingiu que nada tinha acontecido. O intel ectual disfarçado em preparador físico, que em dez anos fez de um Ayrton Senna menino raquítico um homem de músculo e postura rijos, ouviu Nigel Mansell, que vinha na cola de Ayrton naquele dia, comentar: - O cara deu cinco piruetas no ar, mais cinco na terra. Só um milagre explica. Lembre-se de que Mansell não era dos espíritos mais esclarecidos da terra. Mas, por tudo e por todas, se havia alguém por perto que conhecia as fronteiras do perigo, esse alguém era o próprio Ayrton. O assunto, aliás, tirava seu humor. Certa noite, no restaurante Rodeio, contrariando o seu hábito de não comer carne vermelha e de dormir cedo, ele, eu e um grande amigo, o Marquinhos Magalhães Pinto, caímos na armadilha de sentar perto de uma daquelas mesas só de homens já devidamente alterados pela bebida. O ritual do reconhecimento era ameno: olhares tímidos, sussurros, de vez em quando a ousadia de um aceno de cabeça e só depois o autógrafo. Mas, nessa noite, um deles exagerou: - Pó, cara, trezentos quilômetros por hora! Você não sabe que pode morrer? Sorriso amarelo o dele. Mas o sujeito estava naquele meio-termo entre o alma-de-ouro e o chato-meloso: - Pára com isso, Ayrton! A gente o adora. Você é um cara maravilhoso, um triatleta. Pára de se expor, pára... Fórmula 1 é uma máquina mortífera. O maitre previu o desfecho, mas foi tarde. Béco, de pé, se indignava: 28 CAMINHO DAS BORBOLETAS - Mas isso é assunto para falar aqui? Me respeite, por favor. Estou jantan do... A morte era um assunto que ele guardava no segredo de seu cofre íntimo. A mor te era a fatalidade, o erro, o acidente, o gratuito - estou hoje convencida de que, na cabeça dele, não tinha nada a ver, por exemplo, com o desempenho e a velocid ade. Passamos por poucas e boas, em Angra, naquele helicóptero que ele guiava meio amalucado. Uma vez, foi a porta do meu lado, co-piloto, que abriu, bem na h ora em que passávamos entre os dois cocorutos dos morros que formam a cidade. Vent ou, o helicóptero deu de banda, ele gritava "fecha, fecha", eu puxava, mas a porta res istia ao vento. Ele me ajudou e pousamos em Portogallo empapados de suor. Pior ainda foi aquele sábado em que ele absolutamente tinha de voltar a São Paulo e as nu vens negras desceram sobre o litoral como naquelas tardes de outras tragédias ilustres. Soube depois que ele consultou seu piloto em São Paulo: - Não vem que não dá - aconselhou nosso bom Nelson. - Mas tenho de ir. E foi. Pior: comigo. Não se enxergavam cinco metros à frente da perigosa serra do Mar, entre Parati, Ubatuba e Caraguatatuba. Nuvens espessas e negras. Ele por assim dizer engatou uma primeira - jogou tudo. Se passasse, ótimo: se não passasse, a ver. O helicóptero ganhou altitude, ganhou altitude, foi subindo até que clac, um estranho barulho e um mergulho para baixo. Ele ficou lívido. Agarrou-se no controle e trouxe o aparelho até muito perto do mar, enquanto eu, se m tempo sequer de invocar minha 29 ADRIANE GALISTEU santa padroeira, só lembrava, em silêncio, daquele acidente recente: - Ulysses, não. Ulysses, não. Ele disfarçou bem. Voando baixo, explorou as brechas desenhadas entre as nuve ns e acabou atravessando, sem sobressalto, em direção a São Paulo, porto seguro. Desligou as hélices e teve a reação mais natural de quem tinha passado por um aperto d aqueles: - Me espera aqui que vou fazer pipi. Na verdade, o campeão quase tinha feito nas calças. Eu também. 30 CAMINHO DAS BORBOLETAS lí u me chamo Adriane Galisteu, tenho 21 anos e sou modelo - sou? Era? Ainda vou s er? Só o futuro dirá. Nasci e cresci na Lapa, um bairro de classe média para baixa de São Paulo, estudei em escola pública, tenho mãe, irmão casado, um adorável avô materno de 80 anos, um Fiat Uno 1993 e uma história que gostaria de contar. Há de parecer, a alguns, um conto de fadas - e a mim mesma me ocorre muitas vezes, depois que tudo aconteceu, a pergunta persistente se este mundo em que nós vivemos não é só um sonho, se o que chamamos de realidade não é uma sombra projetada numa parede. Disseram-me que alguém muito importante já pensou assim, mas acho que faltei à aula, naquele dia. Não sou mística, não vejo duendes, mas posso passar horas de noites de insônia - insônia é uma das novidades que os vertiginosos últimos meses de minha 31 ADRIANE GALISTEU vida me introduziram - lendo a Bíblia. Já disputei concursos de beleza, mas nunca li O Pequeno Príncipe. Gosto de Paulo Coelho e, no momento em que remexo nos arqui vos de minha memória, aqui e agora, enevoada pela bruma da serra de Sintra, em Por tugal, planejo refazer o caminho de Santiago de Compostela - aquele do diário do mago. Perdi aos 15 anos meu pai, um espanhol da Castela, mal entrado nos 50, numa noite em que eu disse que ia com uma amiga para o Guarujá e fui com um namorado para Arujá. Freud explica, talvez - mas não consola o meu arrependimento boboca e in fantil. Fiquei sabendo que meu pai, que já tivera um problema cardíaco, chegou andando ao hospital e saiu no di a seguinte num caixão lacrado, com toda a família desesperadamente à minha procura. Imaginem meu trauma. Desde então, minha mãe sabe rigorosamente tudo o que se passa em minha vida. Não sei mentir. Meu relato pode ser emoldurado de dureza, tristeza, decepção, alegria, ilusão, arrependimento, franqueza, imprecisões, rancor, exagero, mas a verdade, fiquem certos, será preservada como um tesouro tão pre cioso como aquele de que vai falar esta história: o amor. Mães contam coisas exageradas dos filhos, mas desta eu me recordo: aos 9 anos, me descobri bonita. Ganhei um biquíni novo dela e tão apetitosa me senti - será apetitosa palavra do vocabulário de uma menina de 9 anos? - que vesti a peça de baixo, fiquei me apreciando no espelho, horas a fio. De repente, simulei um mergulho. Queria apreciar a perfeição do meu cor po em todos os ângulos. O espelho se espatifou em mil pedaços e as escoriações generali zadas tiveram de adiar meu show aquático por alguns dias. em preto-e-branco.supus que não tinh a talento. ela o 33 ADRIANE GALISTEU administrava. Teatro. Eu tinha de dizer aquilo: .Dois hambúrgueres. O sanduíche era ótimo. como sempre. Silvio Santos. Tinha de ter cara e ginga. Fotos sem muita produção nem maquiagem.como cantar ao ar livre para milhares e milhares de pessoas em Tucuruí. a música estava pronta . após a morte do Ayrton. Aos 12. no balcão da nova loja. a novela Chispita. mas a vida de artista uma dureza. acabou o conjunto. Via música. alface.) Minha mãe argumentou que não seria fácil. Mas a música me chamou de volta: um conjunto de quatro garotas . Mas teria.aqui vou eu. Chacrinha. Acabou a novela. molho especial. depois a Som Livre. Continuava o trabalho de modelo. Era dona de uma voz afinadinha. A fórmula do Big Mac. dois dias e duas noites no McDonald's. O nome. sempre ao lado . mamãe e eu. Tem muita gente da minha idade que ainda se lembra do nosso estilo Lolita. a Pritty.era só dublar.com a ajuda d e um coreógrafo amigo. A música não era meu barato. Roberto Irineu. Dali. não poderia ser mais adequado: Meia Soquete. procuramos uma agência especializada em crianças. Kalu.mas sem aquela atitude chata de mãe de miss. Mas tínhamos gravadora de prestígio . mas no palco vivi . desfiles . Aprovada. Minha mãe. Sabe m quem era o anunciante? O McDonald's. eu percebi. Aí eu deslanchei: outros filmes. Marco Antônio Gálvão.Mãe. Passara sua parte e se aposentara. "Menina ou mulhe r?". uma outra inesperada experiência de palco. cebola. Joacir Dallas. Casting para o primeiro comercial. Entregav a o cachê para ela. escolhido pela empresária Amélia Romão. picles e pão com g ergelim. logo iria para a Jet-Set. Um sucesso. Tínhamos uma vida normal. A campanha era essa: quem cantasse rapidinho. tive de dizer não a pessoas gentis e influente s que me convidaram para ser atriz numa das novelas da Globo. Sérgio Malla ndro. Mas agradeço seu gesto de amizade. Trapalhões. (Imaginem. Gugu. queijo. com melodias açucaradas que lembravam os anos 60. dizia o anúncio. Ainda me lembro do nome da fotógrafa: Teresa Pinh eiro. juntou endereços de agências e me produziu um book. Filmamos e refilmamos um milhão de vezes. foi à luta. sem carências e sem luxos. no Pará. muita ex periência inesperada . assim como as drogas. em São Caetano. Cinthia e eu -. por vários anos. levava de graça. Bolinha . Por intermédio de uma vizinha que tinha uma filha adolescente no teatro. um pro dutor que trabalhava lá.Débora. o álcool e a badal ação nunca foram.virei uma mulher. dei um estirão . mas. Vocês vão perceber uma predestinação aí. Não er a tanto o dinheiro que me movia. Praticamente pas samos. Dos 13 anos em diante. uma campan ha que foi um estouro e bem sugestiva do que se passava comigo. que ainda existe. quero aparecer na televisão. Era o sonho de ficar famosa. percebeu a chance de um LP do tipo trilha. enfim uma agência de porte. nem pensar . Xou da Xuxa.primeiro a RGE. vo z era o de menos. em português. Fez o casting. Estava com 11 anos. Meu pai tinha sido dono de uma gráfica que chegou a ter duzentos empregados. muita viagem. na TVS. Que abria sua loja da Avenida Rebouças com Henrique Schaumann.Encanei: 32 CAMINHO DAS BORBOLETAS . sem errar. Atenção. Só que era mexicana. Chegamos a ganhar mais de um disco de ouro 34 CAMINHO DAS BORBOLETAS e isso dá orgulho a qualquer um. eu praticamente reaprendi a andar. passarela. Meu primeiro sutiã foi da Monizac. vivi um turbilhão de muito trabalho. tomei tudo o que me indicaram. re zei por mais de meia hora . menos ainda esotérica. 35 ADRIANE GALISTEU . pouco tempo antes de conhecer o Ayrton. Eu tinha me perguntado muitas vezes: por que Deus tirou o Béco de mim? Por que ele haveria de morrer fazendo aquilo que mais sabia fazer? Por q ue naquele momento tão especial para nós dois? Por que Deus permite que uma criança contraia um câncer? Por que Deus deixa imperar o mal? O livro propõe a idéia de que De us é um mistério que a mente humana não pode alcançar. Kush ner. Oxalá. Tentava mantê-lo acorda do e nada.já passei por quase tudo. Depois. Um dia. chegava a desmaiar. quase aos gritos: . Deus não é culpado 36 CAMINHO DAS BORBOLETAS dos males do mundo. Evidente que tinha tudo á ver com o momento que eu vivia e o resultado foi que mer gulhei no livro. Obra de um judeu americano chamado Harold S. com prefácio do rabino Henry Sobel.o normal. quando a gente se dava as mãos numa roda. Queria o diploma e passei para o curso de magistério . Tive o sucesso mas p rovei da parte dura da realidade. candidamente. . Fi z exames. nas quai s eu dormia de cansaço. de repente . me dê forças. . tia? . a caminho de casa. O que acontec e sobre a Terra é resultado das leis da natureza: nascer. ou pelo menos um sério sintoma disso. Buda. perdia o equilíbrio.e depois. como Ela for chamada: Jeová. a dar um pouco de ordem aos meus desesperados porquês. quase me enlouqueceu. Vi uma igreja e entrei. mas mantinha em mim uma reserva de fé.Sabe o que é. conversei com outras pessoas . a partir da perplexidade de Kushner. mas me ajudou. dirigindo o car ro. isso mesmo: também dei aula. Ela me ajudaria naquilo . qualquer que seja o nome de seu Deus. Portanto . Estava num lugar qualquer e. as mãos começavam a suar. Marecilda e Marilene. já havia perdido meu pai e minha vont ade de cantar. o coração disparava. Antes. A divindade.Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas. sem saber. foi uma menina cujos cabelos tinham sido tomados por pio lhos. Nesta idade de 21 anos em que muitos mal começam a vida. não era mística. Sim. Um dia. Traz toda uma reflexão filosófica profun da. morrer.nada. Para a missa de trinta dias da morte do Ayrton. a escola perdeu. ganhei de dona Maria José uma consoladora Bíblia.Vou avisar a sua mãe. para o 1° Grau.Que mãe? .situações de desastre. O senhor Kushner está a uma distância enorme do meu invencível sentimento de perda. presentes das irmãs Marilda. Era um garoto de 10 anos e levava para casa o pão de cada dia. .em voz alta. crescer. chamei-o para conversar. Que ele dormisse o quanto quisesse. No meu pânico. como o show em que desabei como uma abóbora. Pouco antes. Eu não freqüentava igreja. com a mensagem do Livro de Jó e a essência do sofrimento humano. assim como não tem a ver com a nossa felicidade. O título me deixou c uriosa . No terceiro colegial. Quis ajudá-la: .o ano. Aliás. meus joelhos tremiam como chocalhos. Entrava na sala e havia um menino sempre dormindo. Maomé.Meu Deus. recebera um livro e uma dedicatória encorajante.. que assisti no Rio. naquele ano e m que fui reprovada. Uma síndrome de pânico.inclusive no curto tempo em que tive de ensinar.explicou. de Curitiba. As viagens constantes disputavam com as aulas. finalmente.respondeu. Aprendi muito . de antidepressivos a simpatias. e com o ano letivo. no aconchego da família Magalhães Pinto.Lavo carro quan do saio da escola e à noite entrego pizza. na época um jovem estudante de teologia. eu perdi . Perguntei sobre o que teria de fazer no Autódromo de Interlagos. escondida no em aranhado de coisas a fazer.a Nara Pinto. Mil dólares por quatro dias de trabalho. só isso. me ligou. Quatro da tarde". Adorava quando ele se metia em alguma briga com aquele nosso garoto Senna. a Laura Gutierrez. "uma grana bem legal".. 37 ADRIANE GALISTEU não tinha a menor intimidade com a Fórmula 1. Nada de preconceito. Achava que era um mundo fechado.ainda que esse destino possa vir a ser.Teste na Elite.em 1989. Eu. Nunca fui fã de ninguém. mais por farra. mas também sem resignação. no Estoril. Citou o nome de duas ou três que eu conhecia . Mas vão perceber que eu tenho de acr editar . Eu estaria mentindo se dissesse que era uma fa de Ayrton Senna. era tudo o que eu es . sem mais. sem destaque. era tão distante de mim quanto rúgbi ou beisebol. co isa séria. está rabiscada. É que eu estava vivendo um ótimo m omento profissional .testes. vamos ver como é. Na hora marcada. Na verdade. confes so que no máximo tinha certa simpatia pelo Nigel Mansell . Não que eu já não tivesse feito trabalho desse tipo... eles me perguntaram sobre minha carreira . Mansell ganhou em Estoril naquele ano e eu vibrei.. cruel. para ficarem na sala vip. meio maluco e trapalhão. de repente. Voltando a março de 1993.recepcionista . alguns convi tes que podem ser aceitos. De mais a mais.: " O uniforme da prova era curtinho. testes. por ele ser um cara engraçado.surpreendeu: . masculino demais. a Patrícia Teixeira. Na televisão. Na Fórmula 1. ao vivo . testes. sinceramente. da Laura Biaggiot. Quando Karen. não tinha muita paciên cia: via a largada. Aliás. aproveitando a folga numa bateria de fotos de moda. telefonemas a dar. Automobilismo.quer dizer. a quela palavra . meninas bonitas e conhecidas. sem essa de desfilar pelas arquibancadas. Ela me explico u: recepcionista no Grande Prêmio Brasil. Eis que. pelo da gasolina. Pode ser que vocês não acreditem em destino.porquês e porquês. Mas. perdida numa página qualquer de minha agenda. Tudo bem.. com um grupo de amigos. Sem fatalismo. 38 CAMINHO DAS BORBOLETAS Mas os três diretores da Shell que estavam lá imploraram: "Não é o que você está pensando. eu quase não fui ao encontro dele. lá. até aquele dia. sem confraternização com a galera. alguns dias antes.e me sentia em condições de escolher o meu trabalho. as primeiras voltas e.ao contrário de minha avó húnga ra. o destino. por exemplo. propostas que devem ser recusadas. Karen insistiu muito para que eu aceitasse o convite da Shell. eu quis recusar.e. em Portugal. Tinha visto uma única prova. Jamais tro caria o cheiro de meu perfume Roma. Vida de modelo é assim . testes. aeróbica. Ameacei uma meia-volta: "Estou fora". mais uma tramóia do destino: tinha de vestir maiô. muito cruel. Amém. musculação. dependendo do resultado. As meninas da minha rua lambiam o asfalto pelos Menudos. contas a pagar.não me soou bem. a boo ker da minha agência.Você está aprovada. aquela anotação que iria mudar o rumo de minha vida: "15 de março . de quinta a domingo. nunca entrei nessa de ter ídolo. mais testes. Nem perguntei pelo dinheiro. Seriam só dez mode los. não . não é isso. que torcia pelo Ayrton e não perdia jogo do Palmeiras na tevê. as últimas. um deles me. Sou o assessor para assuntos particulares do Ayrton Senna. menos eu . Eu fora tinha agendado um trabalho anterior. de cara bonitinha.tu do bem. com os convidado s. Ele subiu num pequeno palanque e começou a dizer algumas palavras. Sábado.. Era o domingo da corrida e houve esse novo passeio pelos boxes.Foi pra você . eles nos introduzi ram na linguagem do circo: cockpit. não era o caso de esno bar nosso tricampeão do mundo. Todas. Madrugada. um gordinho simpático. Senti que ele me olhou. saía cum primentando as pessoas. Até aquele dia. . muita corr eria. indefe so em meio ao assédio dos fás e dos pedidos de autógrafo.e ele. . ansiosa. correndo em busca do espelho e de um providencial retoque na maquiagem. o solitário bonezi nho do Banco Nacional. sem desfrutar da mais remota pr ivacidade. apenas . Ayrton Senna.ele. pitlane. A cada uma das meninas correspondiam de z convidados. tanto faz". tivemos um mobral rapidinho de Fórmula 1.devolvi. Dura é a vida de um Ayrton Senna.perava ganhar. ali. Jamais passou pela minha cabeça que eu iria ganhar o amor de minha vida. Frenesi nas meninas. Mas houve o tal pitwalk. como de praxe. Passaria a ser . para um ponto indefinido e qualqu er que acolhesse a timidez dele? Novo alvoroço: caminhada pelos boxes. Observava.. nas vizinhanças do boxe da McLaren. Knockd own: ganho exatamente a McLaren. Quinta-feira. Para que nós. que a Shell patrocinava. sem perder a calma. não a passeio. que fica zanzando pelo boxe. Mas era para mim ou para a Nara. No autódromo. não ficássemos ali apenas com nos sos rostinhos . Pra mim. às seis da manhã de sexta. lá estava eu.provocou a Nara. Os motores voltam a roncar. anunciando a aproximação do ídolo.El . Simplesmente. Ele chegou.bonitos. Eu não saí do lugar. eu não o conhecia. em pessoa. sabe quem é que iria visitar. a caminho da Elite. ele não era meu ídolo.Olhou pra você . o hospitality center da Shell? Isso mesmo . às 6h30 desembarcava no autódromo. o timing e o comando da situação. ponto de encontro para Interlagos.afinal. entre o warm up e a largada. vem. de repente.e ele. quase histeria . Uma cena que iria rever infinitas vezes: 39 ADRIANE GALISTEU uma multidão compacta. de novo. Empurra-empurra. Eu. modelos. O Dudu. enquanto saciava seus olhinhos curiosos e vivos com a busca de alguma novidade. Às cinco da manhã já estava 40 I CAMINHO DAS BORBOLETAS acordada. A caminhada me provoca um sentimento de compaixão para com aquele moço. e. da Shell. Dia comprido para mim. navegando no meio daquele mar. visivelmente te nso pela responsabilidade de disputar um Grand Prix em casa .para toda a eternidade. Mas. pensei comigo mesma. naquele fim de semana de GP Brasil. pra você. e. . disparada para o banheiro .cada uma d elas. segundo treino oficial. descabeladas.apresentou-se. me abordou: . me fazendo de modesta: "Para mim. Trabalho difícil: muita gente. estava ali a trabalho. pitwalk. com a bomba: dali a alguns minutos. confusão. 18 de março. Sua expressão carregada confirmava minha apreensão.e corpinhos . que e stava atrás de mim? Ou teria sido um olhar vago. a bordo de um táxi e de muitos boce jos. Todas querendo se escalar para a McLaren. coletiva de imprensa com os pilotos da McLaren. cara de menino. eu amo a Joana e a Mar ia. Nara ainda brincou comigo: . corrida ao b anheiro. boneca? . sim. no Limelight. remoendo cada palavra que pronunciava.É isso mesmo. Será? Coincidência. moleque.e me pediu pra pegar o seu telefone. eu logo fic aria sabendo. Descubro-me torcendo freneticament e por ele. A torcida vem abaixo. mulher dele. 41 ADRIANE GALISTEU Você reparou naquela bundinha? Estávamos nos divertindo. Ficou apenas a expectativa de uma nova vi sita do piloto. Incrédula. uma boate da moda em São Paulo. Meio encabulado. Não gosto de boate. era.É com você .Dá o fax também. Então é isso: o negócio dele. que repetiu: . que tinha. autoridade para chamá-lo. é a Nara. Ele falou pausadamente. disse. com nossos maca cõezinhos que deixavam boa parte das pernas de fora. Só tenho olh os para o carro vermelho e branco da McLaren. Falava e olhava para baixo. . engolfado no mar de tietes. passo a me revezar entre a televisão e a amurada do hospitality center. as dez meninas da Elite. Sinal de largada e eu. O cara está paradão em você. numa enorme ansiedade. como todo mun do. subiu ao palco e falou sobre o que esperava da corrida. uma olhada nítida e um largo e lindo sorriso para mim. O da minha casa. Não i . Achei que era gaiatice. como se formássemos um cordão de segurança entre ele e a platéia de convidados. Tempo de comemoração: os diretores da Shell anunciam uma festa-surpresa em homena gem ao campeão. Eu apenas esperei. única em todo o céu de São Paulo. Arrastando -me de cansaço. Depois das dez da noite. v i aproximar-se um senhor. À saída. silenciosa. sem represália. Todas as modelos estão convidadas. o do trabalho. O outro. a Nara .e uma nova.Está se fazendo de difícil. uma geral nas meninas. Mas ligo no automático: tenho de ir. mas é o que eu mais quero". ele até que me atrai . mas dei. pelo apelido de Baleia. convocadas a comparecer. ou Jaça.Olha. doutor Braga.respondi. anunciada pelos diretores da Shell . Mas alguma coisa tinha tocado em mim. Nós. sem aparentar muita convicção. ele ficou um pouco mais. eu amo ouvi-lo dizer garotinha. Eu amo o Braga. fila do gargarejo. aí. de novo. batom. maquiagem. aliás. amigo de longa data do Béco. "Não posso garantir que vou ganhar. nem tenho saído à noite. sobrevoa o autódromo. despistou. olhando para cima. tenho uma gratidão que jamais poderei exprimir em pal avras. ficamos bem diante do palco. Caía a chuvarada. entre cotoveladas e pedidos de autógrafo. para retemperar as energias gastas no trabalho e na surpreendente ansiedade que tomou conta de mim durante a prova. Ayrton Senna é o vencedor. E olha lá de novo aquele bonezinho azul do Banco Naci onal aproximando-se. (Guardo no baú de minhas melhores lembranças a primeira vez em que o ouvi pronunciar a palavra garotinha. o Braguinha. Meu desinteresse pela corrida transfo rmou-se. garotinha. Quer dizer: o lhava para mim. sonho com minha caminha. Prost roda e sai da corrida. de repente. o Bragota. Eu. e só ele tinha.) Logo notei que "o assessor" se encarregou eficientemente de colher outros telefo nes das meninas da Elite e desencanei. eu amo a Luiza. o Jacir. .eu entrego os pontos. Um milagre: uma nuvem negra. aflita. as duas filhas do casal.brinca Nara.aquele um metro e setenta e muitos centímetro s de pura beleza morena. .Ele gosta é de louras . definitivamente. 42 CAMINHO DAS BORBOLETAS A chuva pára. o tal "assessor para assuntos particulares" do Ayrton. Alain Prost na frente. Dessa vez. Estacion ei na frente dele. Dá pra vencer. Para mim? Olho para trás e eis que vejo. Nada de soltar minha mão.Mais uma vez. Uma bandana vermelha no pescoço foi o máximo de futilidade que me permiti. o paparico. à espera da estrela da tarde e do convidado da noite . Leonardo. desculpa. para o desespero de quem odeia ser despertada cedinho: . miniblusa preta . a comemoração. O Limel ight regurgitava de gente.E aí? A voz serena e doce que ouvi foi uma ducha na minha irritação: . ainda que meio inconscientemente. pelo menos. Aquela pela qual.A gente vai dar uma churrascada em Angra. E todo esse belo quadro emoldurado por pelo menos duas d ezenas de mulheres bem bonitas e aparentemente bem disponíveis. Mas eu não estou gostando desse clima de camarote núm ero 1. uma.. Ele deu uma de Cinderela às avessas: ao som das doze badaladas. não quer ir? Escapei com o clássico "a gente se fala".. ainda quis me segurar pelo br aço: .o campeão. nenhum traço de maquiagem. às nove da manhã do dia seguinte. No que busquei. música e dança. Abri caminho com os cotovel os até o camarote e fui dar meu alô.De qualquer modo. . a gente vai dar um churrasco em Angra. É um tal de Ayrton.Mas é um dia especial.Comemore comigo.. precisava de um tempo . Medi minha impaciência. . Eu ganhei.Pelé. desculpa.disse.Nadinha.Espera aí.ou. Fui malcriada: . Só me permiti um escorr egão mais pessoal. senti o drama e consultei o staff da Shell: i ria cumprimentar o Ayrton e me retirar estrategicamente. Não bebe nadinha? . Mas absurdo mesmo foi quando. Segurei na mão dele para um rápido parabéns. . Eu desconversei: . Só pa ra. a empregada veio me chamar.o calor estava diabólico -. Senti uma certa decepção no rosto dele. Levei comigo aquela mistura de sentimento que vai desde "pó. Disse que tinha muito trabalho pela frente. que eu conhecia de fotografia e de histórias. quis apenas cumprir o protocolo. mas não bebo . Mas o próprio Ayrton pediu ao segurança para dar passagem.a vitória. Senti que ele estava eufórico com tudo aquilo . você tem meu telefone. Antes de sair. muitas contadas pelas modelos da Elite. ele me tocou" até o "isso é tudo um grande absurdo".Então. 44 CAMINHO DAS BORBOLETAS no fim de semana. 43 ADRIANE GALISTEU sendo abraçado por outroherói nacional . O sorriso dos garçons abria a passagem que o empurra-empurra dos tietes insistia em bloquear. Mais o tal gordinho da corrida e o irmão dele. nosso convidado. o tal "assessor". fica aqui com a gente.Telefone. Aquele gordinho folgado .ria me arrepender. de repente. Você não quer ir? Vacilei. apareceu. Era a própria working girl. eis que já o vejo muito bem instalado num camarote. Ele manteve a minha mão na dele. Estou aqui em nome da Shell. Eu vestia jeans. O gordinho amigo do Ayrton. .Você foi o máximo. eu começava a me i nteressar..Obrigada. estava dispensada de qualquer figuração. imaginando ouvir a voz do tal "assessor". com o olhar. antes de virar as costas: . A noite ainda me traria muitas surpresas . usava um sapato de plata forma preto. pegar uma taça de champanhe e me oferecer: .pensei. de novo. mas fiquei firme. Suspirei de alívio: diante daquilo. . . me liga.entreguei (se o conhecesse naquele momento como vim a conhecê-lo depois. Só que .para figurar ao lado de ninguém menos do que Nelson Piquet. não por acaso.Tímida e confusa. como homem.. me desc ulpa: não o conheço..Meio difícil dizer as coisas.Sou modelo da Elite. Ele engoliu seco. O que você vai fazer agora? . Ayrton? Ayrton Senna? Quase desliguei quando a secretá ria sacou do "quem gostaria?" .Com seu amigo Nelson Piquet . como foi? . .Mas que teste é esse? Pensei: me pegou. Cabeça dura de ariano: . Eu diria até: uma irônica verdade. .Agora...para responder. Mas. . Não tenho a menor idéia de quem você é. .Agora? Tenho um teste para um comercial.Mas que comercial? . É a desculpa mais manjada no mundo das modelos. era o rei da velocidade.. desenxabida. como pessoa. Pela primeira vez tomei contato com o estilo daquele que.Do nada . de entrevista na tevê. Mas queria convidá-la.. Mas. interessado: .. .Entendo. No nervosis mo.Eu também . escapei para o horóscopo: .. . lá no estúdio. . não o c onheço.ele brincou..Sou de Áries. Teste para um comercial.Como não me conhece?! . por via das dúvidas. depois do teste. Ou quase: . Cara minucioso.. as virtudes do molho Tara ntella. comprei quinze fichas de telefone e me dirigi para o orelhão mais próximo. desviei.De matéria de jornal.. Ele não desistiu: . esse: . . mas. você vem? Senti que não daria para despistar mais. com ímpeto ariano. E me deu aquele telefone direto que faria o fascínio de 45 ADRIANE GALISTEU tantas fãs e de tantos jornalistas.ele reagiu.Legal. no caso.Escuta.Mas e a churrascada em Angra. .comemorei. era a mais pura verdade.. Nervosa. Estou dando um jantar às nove da noite no The Place. até as pedras sabiam que Piquet era o maior inimigo de Ayrton Senna. Não sei bem qual era a minha intenção. eu. eu acho. me culpando pela certeza de que ele jamais viria ao telefone..Adriane. nem por brincadeira mencionaria o tal nome). silenciou por um minuto e mudou de assunto: .respondi.E o teste. fui bem. senti que agradei e não resis ti à idéia do prometido telefonema. Teste para um comercial da Arisco . porque não sabia nem com que nome chamá-lo.Sou meio tímido.. Veio.Então.Todo mundo me conhec e. Celebrei. Preferi guardar esse segredo dele. de que signo você é? .. .. ..Então. Até eu. não é? 46 CAMINHO DAS BORBOLETAS . vai ter hoje uma boa chance de conhecer. Você está convidada. É um comercial de tevê. você me entende. com os meus botões: ela foi ao jantar que eu não fui. Prédio de tijolinho. Diante daquela platéia alvoroçada. Eu. Mas foi alguma coisa além de curiosidade feminina que me empurrou até o apartamento dele.zzzuuuummmmmmmm . ali na região da Avenida Faria Lima. daqueles em qu e fica impossível encontrar a tarracha de um brinco. E. Na manhã seguinte. era inconfundivel mente de felicidade o sorriso que exibia no rosto a Daniela. O convite é geral. quem. Contra-ataque arisco. De mais a mais. O carinha tinha bom gosto. deu aquela preguiça. Na sua mão. sei lá por que. impiedosa. o ender eço . 10 de abril . logo. quem? Ayrton Senna. de repente.Mas por que eu? (Agora que tudo passou. garotinha. décimo sétimo andar. quando olhei para a janela e tive um sobressalto: .bem razoável. . você não apareceu .repreendeu.d o sofá de couro onde me instalei. . A acele ração que fez o carro .que eu acabarade ver desembarcando do carrão. no pescoço. na porta da agência. é uma festa. contou detalh es da noite íntima. Mulheraço lindo. (dúvida. quis fazer a mesma coisa comigo. A moça não era das mais discretas. Relaxei: então.foi alguma coisa que não sei bem o que é. Escrito num pedacinho de papel. E por aí vai.Estou querendo ir amanhã. loucura.pensei comigo mesma. Chovia em São Paulo. carinhosamente. Gaúcha. . Como eu jamais bebo.. (No nosso primeiro encon tro. em pessoa. Meu novo namorado.Rua Paraguai. Sem camisa . pilotando. notei que tinha domínio perfeito de minhas faculdades mentais. que ele dividia com o .Vocês viram quem acabou de me deixar aqui na porta? . e não um fantasma. não.Pode acreditar. menos ainda àquela hora da manhã. ele me explicou.Hummm. era um Honda negro. Os pés descalços deslizando pelo carpete alto. ele até botou pasta de dente na minha escova.Tô alucinando! . Estou apaixonada. aglomerou. uma das meninas da Elite .enfim. Por que. Massagens nos pés. antes disso. de preguinhas.a mulherada.Não. Quem? . remoendo as idéias mais estapafúrdias e regressando sempre para o mesmo ponto de interrogação: . você não passa pelo meu apartamen to e a gente conversa? 48 CAMINHO DAS BORBOLETAS Fiquei de posse daquele valioso tesouro. estava todo mundo comentando que ia haver uma churrascada em Angra. e dentro dele. a Daniela. o dele: .Sei lá. Sobre Angra.E a Angra.) Não sabia aonde aquilo ia chegar. nas mãos. Logo.Gente. é a mesma pergunta que volta. Peguei o telefone e disquei par a ele.Não deu pra ir. O único da rua. Ele me esperava com naturali dade e aquela carinha de menino indefeso. eu me recordo . um copo de vitamina C efervescente. Reagi na base do "essa eu já manjo. reluzente de tão novinho . eu já disse que preciso conhecê-lo melhor. tive sobressal tos aquela noite. Calça creme social. Disse como chegar lá. O que eu via. Ele é o máximo. porém. não apareci.. quinta-feira. A aventura me atraía e me repelia. 64. ciúme e jeito de pedir "conta mais!") . um detalhezinho: . ainda estava cansada das emoções do GP .Pó. cara".tórax rijo.) Loira de olhão azul. você ve m ou vai furar outra vez? Tentei desconversar. curiosa. Meu olhar de mulher passeou rapidamente pelo apartamento. no final da manhã seguinte. Tudo muito respeitoso: ele se sentou numa poltrona a uma distância razoável . .sumir na esquina reforçava a idéia de que era mesmo ele. Aquele cara estava me fazen do mal. para dizer sim: . já estava estacionada no meu lugar habitual na Elite. Minúcias das quais eu gravei. me assustei: delírio. 47 ADRIANE GALISTEU Daniela estava radiante: . louca. que durmo como uma teenager.O Ayrton Senna. Eu. nem registrei. é o de não se deixar levar pelas aparênci as. Quando conheci o Ayrton. nada de formalidades.Eu? . modelo. Falamos de tudo. como re comendaria um conto de fadas. com a maior paciência. Para mim. Dava para cortar o ar com uma faca. não tenho namorada. Voltou. Ele tomou a tímida iniciativa de quebrar o gelo: E 49 ADRIANE GALISTEU . os efeitos perversos da bebida. E foi ótimo que a vida tenha me dado o alento de trocar os espinhos de uma separação pelo buquê de um novo amor 51 . O Ayrton Senn a homem ia se apresentar. de pura euforia. estava vivendo os últimos momentos de uma relação em cri se. prontinha. Naquele fim de semana prolon gado. prontinha.Muito prazer. e segui em frente. embora fizesse um calor africano lá fora.. eu. . Ele podia contar nos dedos as situações em que perdera o controle. Adriane Galisteu. entrei no Honda negro que eu tanto tinha invejado a distância. por inteiro. Mas de vez em quando acontece.Não sou do tipo de arrancar pedaço . Desc revi: loira..flat típico de solteiro. Não é você quem determina quando a paixão se vai . era um momento e special e imprevisto. a gora. o mitológico personagem de macacão e capacete que enfeitiçava os fás do automobilismo do mundo inteiro. dias atrás. Foi bom enquanto durou. um porre dos diabos.Como não? Eu conheço sua namorada! A perplexidade dele parecia sincera: . Eu queria saber dele.e ouviu. mas ele também queria saber de mim . De corrida. iria experimentar o doce prazer ambicionado por milhares e milhares de mulheres de todo o planeta.brincou. Deixara a mala. em 1990.Então é esse o nome dela? Ah.A Daniela (dei o nome completo).rosashocking. Na verdade. Tenho 33 anos. a mim.e isso vale especialmente para o César. 19 aninhos. Sinto muito decepcionar aqueles que imaginam a vida de modelo como uma fatigante liquidação de cama e mesa. de calor e respeito . mas de cada um deles guardo um sentimento bom. mas com móveis de qualidade e um toque de muito bom gosto na decoração. quando se sagrou bicampeão do mundo. sim. naquelas comemorações do GP do Brasil. no m eu carro. Guardei o carro na garagem do prédio. Logo eu que não bebo. eu enxergava naquele ser huma no descalço. ao ass unto Angra: iam muitas pessoas. Tive quatro namorados em meus 21 anos. com quem dividi por um ano inteiro casa e o dia-a-dia até que as tais incompatibilidades de gênio se manife staram. . De vida.. Tive poucos amores. em minha pouca idade. aí? Ele se sentia tão inibido quanto eu. .. seria uma festa. "linda" .Você.Mas quem é ela? . hein? Por uma fração de segundo. eu já estava decidida. achei que estava diante de um cafajeste clássico. que tomava vitamina C. de manga comprida.irmão.. um pouquinho. . Numa noite de céu estrelado. penitenciava-se ele . alta.a coisa simplesmente acontece.Como ela é. 50 CAMINHO DAS BORBOLETAS . Em nenhum momento. Por exemplo: beleza e glamour podem servir de fachada a uma inconsolável solidão.. Eu me chamo Ayrton Senna da Silva. Se há conselho que já posso dar a alguém. muito. enfim. olho azul. trabal ho e sentimento. Até reparou na minha blusa. Conversamos uma hora e meia. Léo . Ele foi enumerando: ao final do GP do Japão. antes. duas outras Danielas. foi um alívio perceber que já esperavam por nós Norio Koike. eu estava acostumada a filmes e a equipamento fotográfico . helicóptero. Carregava uma caixa com quinhentos filmes . ao lado dele. embaralhava-se a crise conjugal com delírios profissionais . me contorcendo para não roer as unhas de ansiedade e condenada a serv ir de Cristo dele: . empapado de suor. por exemplo. de onde um amigo meu. Na min ha confusão momentânea. Como modelo. e logo com quem. revelava pessoalme nte os filmes. também modelo. Ele levava ao pé da letra a pa lavra piloto. grandes-angulares. pequenas. 53 ADRIANE GALISTEU por aí. o Clube dos Amigos do Béco. aconteça o que vier a acontecer na minha vida. eu surpreendia um brilho maroto em seus olhinhos vivos e inteligentes. com aq uela desconfiança que tinha da imprensa. A reviravolta que aquel a viagem nem bem iniciada produziria na minha vida impediu que as fotos de Playb oy fossem publicadas. Alívio para mim. o Júnior. no ba irro de Santana.isso mesmo.a Daniela Carvalho e a Danielle Aguiar. zooms. No Guarujá . estará gravado como aqueles corações trespassados por setas que você vê nos troncos das árvores dos parques municipais. avião. nunca mais do que isso. que eu tinha conhecido na pista.pouco e. que não esperavam me ver ali. De vez em quando. Tenho certeza de que ele entendia tudo o que nós dizíamos em português. Pendurava-se de incontáveis máquinas e lentes. sem graça. minucioso. a caminho do heliporto. chegando com o ídolo. grandes. penso eu. . não. 52 CAMINHO DAS BORBOLETAS Eu. Ele tratava de despistar. Carro. médi as. Nós três atrás. Eu tive uma aulinha de direção antes de a gente vir pra cá. Sob o sol magnífico de Angra. sem nenhuma outra intenção além disso. ou congêneres . choque para elas. cliq ue. Dei até um passo concreto: indicada pela Elite. jet-ski . quinhentos. clique. Cheguei a comentar com o Ayrton. Norio tinha no sangue aquela elegante discrição qu e caracteriza sua gente. Só falava inglês . me acenava com perspectivas de um mercado em expansão. selecionava dali meia dúzia de fotos.Não se preocupe. um i ncansável japonês freqüentador do circo da Fórmula 1 mas que acabou fotógrafo particular do Ayrton. e duas meninas da Elite.tinha a mania de estar sempre no comando das operações. cauteloso com sua imagem. Norio.ADRIANE GALISTEU amor que. Pela primeira vez. Ayrton só se deixava fotografar pelo Norio. mas o japonês extrapolava. Fiquei sabendo que. um oriental da cor do tomate era visto. Como eu sinceramente queria desanuviar. G ente como o Gordinho. o seu cobiçado alvo. lá vou eu. colocava cromo por cromo nas cartelas e destinava todo o material ao patrão . companheiros de rua da Zona Norte de São Paulo. lancha. entre nervosa e ansiosa. Sérgio Finett o. não a trabalho. na viagem.ir para Hong Kong. eu saía de casa a passeio. Angra. perseguindo. O helicóptero esperava por nós no heliporto do prédio de escritórios dos Senna. etc. o Cristiano. O cachê pagaria a passagem e os primeiros tempos de adaptação no Oriente. Depois. Ali no helicóptero.o qual. Primeira viagem de helicóptero. eu começava a tomar contato com uma parte importante da vida de Ayrton Senna: aquele clubinho fecha do. posei para a Playboy. teleobjetivas. observando o japonês Norio. Uma dezena de pessoas. propositalmente mal. que tinha acesso à resguardada senha dessa intimidade: o apelido de família. Tentei me distrair dividindo minha atenção com a paisagem e minha curiosidade c om o Norio.uma marina e um barco mara vilhosos. Maria e Mateus. som e luz .a portuguesa Maria é uma cozinheira de mão cheia -. Pensei comigo mesma: . Sem prestar muita atenção. na verdade. convidou a Lua e todas as estrelas do zodíaco para servirem de testemunha daquele momento mágico. eu .e.Ela é muito possessiva. aquele rosto esculpido por um artista. estavam eufóricos. a explosão das estrelas no céu. na pureza de um encontro não programado. Sou capaz de jurar que Béco chamou os grilos.Sei lá. -o vôo nervoso do helicóptero. deixando atrás de mim o som de rosnados ameaçadores. .tranqüilizou o piloto. soube depois. Eu o observava. sinto um safanão e caio n'água. encomendou o pio das aves noturnas. Béco e eu teríamos. P ois a vitória do GP do Brasil abriu a temporada de festas. Despudorada. que ele me dedicou. paixão do Béco (que eu acabaria por assumir também como minha paixão). o baru lho das ondas que vinham morrer aos pés de nossa janela. a Mouse. Todos para o mar. as feições delicadas. Nem bem tínhamos chegado.hesitei.que. ele foi me buscar na praia onde eu tinha esticado 55 ADRIANE GALISTEU minha canga para tomar sol. e mais alguns. no Algarve. Se aqueles dias em Angra foram a chance de conhecer a intimidade do maravilhoso ser humano Ayrton Senna. Agarrei minha mala e fui me re fugiar dentro de casa. solicitou a presença das ondas. Vi que ele também me observava. as suas melhores atenções. a boca sempre ameaçando um sorriso lindamente tímido ou. com direito a muito rabinho balançado e pulinhos de alegria. Sempre ouvi histórias tétricas de congestão. Mas.a natureza de Angra. Não estava nos meus planos. reproduzo mentalmente a arquitetura sóbria do casarão. mas aconteceu. Ayrton tomou-me pel as mãos e me convidou para o mar. foi a última noite de todas as que passe i naquele meu maravilhoso fim de semana em Angra. uem não conhece Angra num dia de sol não tem idéia o que é a experiência mais próxim a do paraíso na Terra. a Quinda se jogou nos braços do Béco. timidamente lindo. mais tarde. o ronco dos motores dos jet-skis e das lanc has. a uma estratégica distância da indócil e ainda rancorosa Quinda . muito desse conhecimento foi revelado pelo contato travado com os amigos dele. quem propiciou ao helicóptero foi a Quinda. as gargalhadas dos convidados. ele. na contral uz do luar que banhava nosso ninho de amor. em festa. na casa em que nasceu. não vai ser fácil. Meus . mas Angra continuará tendo a precedência sobre todos os lugares no meu álbum íntimo. Ele me gozou: . Orquestra e iluminação. mal refeit os de um almoço principesco . ao notar que seu herói chegava acompanhado de três mocinhas bonitinhas: .uma schnauzer preta I fanática por calcanh ares e que. Em noites atribuladas. enquanto descia o helicóptero sobre o gramado d aquele condomínio na praia de Portogallo. sei lá.e a Quinda. r . Alegria logo tr ansformada em agressiva ciumeira. os enca ntadores caseiros. deixara uma irmã.Acabei de comer . em Portugal. foi lá dentro buscar um enorme colchão de ar. é claro. desconfiada de ter como companheira de viagem a melindrada cachorrinha. é? . colheu os primeiros sussurros de dois enamorados. para compor o cenário de nossa primeira noite de amor . tchbum. desde nossa chegada. essas coisas. a oportunidade de 54 CAMINHO DAS BORBOLETAS uma inesquecível viagem a Bora-Bora. Senti. com clima de luade-mel e cenografia pintada p elo Gauguin. tão grande q ue cabiam nele as duas Danielas. os latidos apaixonados da Quinda . os olhos úmidos de carinho.Aquela coisa: diga com quem andas e eu te direi quem és. Ele recrutou todos os elementos.Liga não . Mas recepção barulhenta mesmo. eu não tirei os olhos dela.Concorrer com essa aí. De repente.Está com medo de morrer. ele é. pára.Morreu? Não morreu. eu não c onsegui convertê-lo a minha bebidinha. todo speedy. Foi me conduzindo pelo salão. Gente para ficar. gente só de passagem.olhos abrem-se. Degustava Coca-Cola como se fosse um v inho raro e precioso. após o mergulho sem querer. Ele dirige.Não bebo nada. toda relax. Norio disparava seus cliques incansáveis. quando você está falando com um Ayrton Senna. Carinho nos gestos e nas palavras. Volta à lan cha. (Naquela época. entra na lancha. sofás tão aconchegantes como colo de mãe. Mergulha. Fazia tempo que eu não me dava o direito de viver impunemente. talvez.só de olhar e de sentir você já é abençoa pelo criador dessas maravilhas. que ficava num plano um pouco mais alto em relação ao casarão principal. esse sentimento. montanha verde . Desceu a noite. eu e ele.üha próxi ma. acelera a lancha. cara limpa. Coca coca. também se joga: . Beijinho de tchau. Desamarra a lancha. essas coisas. . às vezes sem gelo.e ele me estendeu a mão. "já conheço".Não. Eu. céu azul. quer dizer: confesso que também começava a gostar daquilo. Não só na bebida. que gargalha: . pingue-pongue.Vai devagar. ao credo musical dele. O QG da a nimação era o salão de jogos. tão gostoso. Dançamos. ou atrás de uma. radiante em sua silenciosa vingança. O Genesis era uma das bandas favoritas dele. com videolaser. Sol. um litro. . Medrosa. Ayrton. "Esse aqui é o Jaça" . carinho. Água calma. Acelera o jetski. E. me vi sentada num sofá. vídeo e jogos ia começar. Entre nós. Uma multidão aportou por lá. pebolim. de um jeito tão leve. Vi que não era meu esporte. Estava feliz e me sentia bonita. sobre duas expressões de genuína felicidad e: a da Quinda.Eu a acompanho. Regressa a mil por hora. Ele acabaria por me converter. mesas para a gente escorar o pé muito conforto numa atmosfera de descontração praiana. a Coca-Cola era o meu hit do coração. Coca-Cola. Até amanhã. apre sentando-me a um a um de seus amigos.ele se achegou. O proverbial estilo recatado de Ayrton não economizava gentileza quando se tratava de receber os amigos.nada de diet. mar. ao natural. por favor! Inútil apelo. à noite . de repente. o . Piloto. Estava queimada de sol. tomando a invariável Coca-Cola e vendo e ouvindo o Genesis no t elão. Leonardo" . O tempo ali não significava jamais um desperdício . Jogamos pebolim. Ele se divertia à minha custa. No almoço. coca clássica . Vamos dançar. "Meu irmão. comemos rapida mente e mais um sarau de dança. faz uma curva fechada e levanta na 57 ADRIANE GALISTEu crista do mar uma onda inesperada. eu: .Quer pilotar? . Sinuca. tênis branco. Eu senti que a cada minuto a temperatura entre nós crescia. gentil. e a do meu anfitrião. divertida. 56 CAMINHO DAS BORBOLETAS um telão magnífico. Monta no jet-ski.Vou morrer com você! Da praia. que abana o rabo. Acelera o jet-ski. Some na linha do horizonte. Galera animadinha. Aí. mais tarde. Desembarca o jet-ski.Você toma o quê? . eu era do tipo connaisseur. Horas a fi o. eu sinto o contato do corpo dele. Eu cheguei num vestidinho branco. . à noite.era uma soma. vamos dançar. Tínhamos um passeio de lancha programado para o Saco do Céu. para não comprometer o paladar.e eu. cabelo molhado do banho. meio sem graça. Convida-me para uma volta: . não sou do ramo. Nada? . Um beijo de verdade. n unca dou o primeiro passo. bonito". E mais um. um olhar. no lanche. mesmo querendo muito. toda vez que eu olhava. Fre d Mercury. Um dia. em nossa timidez. um toque. ou na piscina -. pela chegada da galera ruidosa e alvoroçada. o que pe rmitia uma certa intimidade. Beijos. 58 Ig CAMINHO DAS BORBOLETAS Nunca tinha visto um videolaser. olha aqui. uma conversa do Gordinho c om o Ayrton: . aquele dia. Roxette. e continuei fazendo. Constrangimento absoluto na manhã seguinte . azucrinando. abri a porta e passei entre os dois. Phil Collins. ou pelo braço. assim sem jeito: . vamos jogar? Era o Criminoso. beijos e beijos. Escapei para o banheiro. Não 59 ADRIANE GALISTEU mais do que isso. Lá mesmo. O primeiro beijo. Tina Turner. Ayrton? Soava estranho. e ele se achegando. Ele conseguiu curar essa minha obsessão. Eu estava embevecida com o telão e com a música.bateu na trave. Nono. "Bonito. Desconcertada.0. Ele tentou me beijar. Eu me esquivei . . . outra antes de deitar. repetia eu. Mas entre nós havia algo mais: uma conversa longa. ele tinha outras meninas disponíveis. outro mais. pensei comigo. dos amigos de infância. ele er a o Ayrton Senna. Ficou meio ridículo. os ruídos. através da porta. Eu ainda não me sentia assim tão íntima. não está? Antes que eu ouvisse a resposta dele. Beijos e carícias. é muito sério". meio idiota. Afinal. quando me chamava de "Adriane"é porque vinha bronca certa). disse ele. outr o.ou passeando. ele gostava de umas poucas coisas. mas ouvi. não é?" Eu lhe confessei que tinha outra coisa da qual eu gostava mais. lá estavam os olhos dele. Sua agenda está lotada. Não estava a fim de ser apenas mais uma aventura de verão. e mais uma latinha aqui.real. Junteime à moçada.tudo parou: a noite. de esguelha.constrangimento e dúvida. mais meigos do que gulosos. Em tudo da vida. os dois. "Pr a mim também"..) Eu ali. nen hum de seus amigos o chamava assim (minha mãe. Genesis. eu não sabia nem como me dirigir a ele.. espontânea. ele me beijou. o vento. Um sinal de alerta piscou na minha cabeça: tudo contra.Nada . Mas não tinha como não observá-lo. o mar. ele me seguiu.E aí. cravados em mim. mas o que fiz.perguntou.. Parece que a noite estacionara em cima de n ossas cabeças . "Fique sabendo que isso. nada a favor. E desde então passei a chamá-lo de Big Coke. me perguntou. De pé. "Gosto muito do Genesis" como quem puxa conversa. interrompi. Senti pela primeira vez o calor de uma aproximação . "E você?" . em música também. meio enciumado: "É disso que você mai s gosta na vida. Senna? Institucional demais. Um brilho iluminava seu rosto bronzeado e seu sorri so adolescente. Mas de todo coração. Senna era o piloto camp eão. nos seguintes. Eu. Os convidados e o sono puseram um ponto final no nosso primeiro momento de paixão explícita.a entonação do Ayrton era chocha. com minha Coca-Cola. Ele tinha a óbvia dificuldade em dar o primeiro passo. era ir até ele e puxá-lo pela camisa. o tempo. com aquela música ao fundo. Tomei uma dis tância proposital. Ele se sentou a meu lado. para mim. Béco? Era o apelido da família..utro.Mas você não pode se queixar. Fomos sa lvos. E quem era eu? Ainda com um sorriso amarelo. não aquele menino lindo que pouco a pouco se revelava para mim. Não esperou que eu me sentasse de novo. E. . Aquela história de agenda lotada me incomodava. Muit os dos convidados estavam fora da sala . O sol e o calor nos brindaram, naquele sábado, com um dia apoteótico, desses re comendados a corações de repente enamorados. O que me lembro dele são imagens, gestos, sons que nem sempre se encaixam coerentemente. Vejo-o ainda agora aceler ando a lancha Joanna II (comprada, como a casa de Angra, do Braguinha, que a bat izou com o nome de uma de suas filhas, hoje minha amiga), 60 CAMINHO DAS BORBOLETAS com Tina Turner esgoelando furiosamente no toca-fitas, enquanto a Quinda, esbafo rida, tenta estabelecer, com seus latidos, uma competição. Cabelos ao vento, sol de rachar, céu sem uma única nuvem. Um dia de encomenda - aquele que seria o meu últim o dia ali. Domingo -já tinha avisado a todos - eu teria de embarcar de volta para São Paulo, onde um compromisso profissional me esperava. Eu passava por um período de grande confusão na minha vida. Aquele dia magnífico em Angra, o sol, o mar, o cenário, as pessoas, tudo aquilo me fazia esquecer passado, presente, futuro. Vivia o momento - era o que importava. Escorrendo de suor, branquelo que só ele, de short e carregado de máquinas, Norio fotografava sem parar. Ouvi um clique quando, no final da tarde, na lancha, voltando do Saco do Céu, Ayrton me surpreendeu com uma prolongada carícia no cabelo - e, logo, um beijo. É possível que, sensível que é, Norio tenha retratado também a felicidade que minha alma b uscava inutilmente esconder. A temida Quinda nos esperava no píer, abanando o rabo. Aproximou-se de mim, q uase rebolando, e lambeu minha mão, carinhosa. Foi a primeira a entender. Sabe quando ele arriscava tudo, numa daquelas ultrapassagens impossíveis? Pois fo i assim comigo: - Você está num quarto sozinha, com duas camas - começou. - Vou ter de mudá-la. Despistei: - Tudo bem, durmo na sala. - Probleminha: a sala também está ocupada - conti 61 ADRIANE GALISTEu nuou. - Aliás, não sei se é um problema ou uma solução. - Onde é que eu fico? - me fiz de bo ba. - Eu lhe mostro. Subiu comigo até meu quarto - eu envergonhadíssima daquela bagunça de praia, roupa jogada aqui e ali - e pegou as malas. Abriu uma porta e apresentou: - É o meu quarto. Agora também é o seu. Fique à vontade. Tentei prestar atenção em alguma coisa, além da minha própria estranheza, e me detive no closet, onde brilhavam, branquinhos, uns quarenta, cinqüenta pares de tênis. Sapatos. Cintos - centenas. E roupa, muita roupa. Arrumadinha, passadinha, dobradinha. Ele tinha o suficiente para morar naquela casa o ano inteiro. - Sou meio maníaco - disse ele, sem graça diante do meu espanto. Reparei até num duende, pousado numa mesinha. Eu o peguei e observei. Fanático por arrumação, ele me tomou das mãos e o colocou no lugar (tempos depois, a mãe dele me pediu para jogar fora o duende; joguei; sei lá, talvez não devesse ter jogad o). - Também tenho minhas manias - disse eu. - Quais? - Cremes e perfumes. - Pois então venha cá ver uma coisa - ele me puxou pela mão até o seu banheiro. Só em Angra, ele tinha mais creminhos e perfumes que eu jamais tinha tido em toda a minha vida. Bom, pelo menos já havia entre nós alguma coisa em comum, além do Genesis e da Quinda. Dali a poucas horas, estaríamos repartindo algo muito mais importante. 62 CAMINHO DAS BORBOLETAS O amor fluiu natural - sem pressa, gostoso e espontâneo. Sem falso moralismo: d ormir no quarto dele não significava, para mim, obrigatoriamente, uma noite de sexo e intimidade. Havia um clima, uma aproximação, um desejo. Mas eu teria pudor de embarcar numa aventura pela aventura - e, no dia seguinte, literalmente, tchau e até mais. Dormir com um mito, um ídolo, uma celebridade internacional. Um homem qu e produzia manchetes no mundo inteiro. De mais a mais, eu tinha adorado aquele paraíso equeria voltar lá, namorada ou amiga, o que fosse. Televisão ligada. Eu, metida num pijamão quase blindado. Cama king-size - chance de rolar para o lado, em fuga estratégica. Beijinhos, carinhos, "até amanhã". Não tive tempo de contar até cinco - com aquele meu sono juvenil, despenquei. Sei lá q uanto tempo depois - a vaga recordação de uma claridade me vem aos olhos -, levei um cutucão. - Não estou entendendo nada - disse ele, acendendo a luz e se apoiando no travesse iro. - O que você quer? Quer casar comigo? Tem uma igrejinha aqui na praia da Jipóia , é só juntar as testemunhas e ir lá. Continuou a falar: a dizer que era tudo muito especial, que existia uma magia en tre nós, que isso não era sentimento que ele tivesse assim, assim, em qualquer momen to, que ele, por muitas razões, tinha sido uma muralha emocional, mas que eu, em apena s dois dias, tinha feito um furo nessa muralha. Falava e acariciava o meu pé. - Ah, o pé não! - eu pensava. Chegou ao ponto fraco, ao calcanhar-de-aquiles. De repente, me beijou os pés, com enorme delicadeza. 63 ADRIANE GALISTEu - Você é a primeira mulher, de três anos pra cá, que me provoca esse desejo. De beijar o s pés, não só. De beijar o corpo inteiro. Queria guardar esse momento só para mim - e para ele. As estrelas piscavam, em que nte cumplicidade. Quando acordei, já sol alto, depois que tudo aconteceu, eu estiq uei meu braço para o lado, tateando onde ele deveria estar, e não havia ninguém. Pânico. Par anóia do tipo "tá vendo? Ele já se encheu". Corri à procura dele. Descobri-o no píer, sem camisa, descalço, olhando para o infinito, assobiando uns acordezinhos que nem chegavam a compor uma música. Um tralalá, só isso. Ele parecia feliz. Eu estava feliz, imensamente feliz. Saí dali, no começo da tarde, no helicóptero dele até o aeroporto de Angra. De lá, pe guei o avião. Tinha um desfile em São Paulo. Não importava o que aconteceria a partir dali. Importava o que tinha acontecido. Angra passou a ser minha casa - nossa casa. Compartilhei com ele vários lares. Mo ramos juntos no apartamento da Rua Paraguai, em São Paulo. Dividimos, certas noite s, quarto e cama na casa dos pais dele, no Pacaembu, onde a Zaza me acolhia como um a filha e dava colo a muitas das minhas ingênuas confidências de menina de 20 anos. Estivemos juntos no apartamento de Mônaco, antes do GP de 1993. Viajamos pela Euro pa e pelo Oriente. Freqüentamos por longos períodos a fazenda Dois Lagos, em Tatuí, no interior de São Paulo, com toda a família, senhor Milton, a Zaza - ela já não me perd oaria a forma 64 CAMINHO DAS BORBOLETAS lidade de um "dona Neide" -, o Leozinho, a Viviane, o marido dela, Lalli, os sob rinhos Bia, Paulinha e Bruno, o Fábio Machado, primo como se fosse um irmão, com a mulher, Nice, e os filhos Fábio, Fabiana e Fábia. Em Portugal, vivemos na casa do Algarve assim como passamos momentos inesquecíveis nesta quinta de Sintra, neste anexo que passará à posteridade como "Casa do Ayrton" - aqui onde hoje cada detalhe me dá conta de sua ausência, no silêncio de nosso quarto fechado, isso mesmo, trancado a sete chaves, já que eu, covarde, nunca mais quis olhar o cenário de tão dol oridas recordações. Confesso: dia desses, entrei, não por valentia e sim por pura emoção. Na noite da f inal da Copa, o Brasil vencendo mas nos fazendo sofrer até o último momento naquela agonia dos pênaltis. Uma amiga me trouxe um vídeo em que os craques brasilei ros dedicavam a vitória ao Ayrton. Cumpriram com a palavra. Abri a porta e desabei num choro incontrolável. Era o melhor lugar para comemorar um tetracampeonato que, afinal, era também dele. Ayrton era um cigano caseiro. Pode parecer uma contradição, mas digo cigano por ofício , caseiro por opção. Obrigado a ser cigano pela vida profissional, não perdia o hábito de ser metódico, deixando à mão, em cada lugar onde pousava, suas roupas arruma dinhas, seus pares de tênis, suas camisas impecáveis, seus cintos - centenas de cintos -, suas restritas predileções musicais, seus hábitos alimentares, suas mania s. Mas se alguém pede para eu contar qual era a nossa casa, o nosso lugar, o que me vem automaticamente à cabeça é aquele deck de Angra, a varanda, a piscina, os jet-skis (eram seis, pelas minhas contas), a zoeira dos camaradas, as 65 ADRIANE GALISTEU visitas dos amigos, as confidências com minha amiga Maria, as caminhadas com a Xan a, filha dela, a comida deslumbrante que punha em risco meu regime, a simpatia e o cuidado extremo do Mateus, artesão de mão cheia, as duas lanchas, o sol, o calor , a impenitente Quinda mergulhando na água atrás de algum desavisado que se aproxima sse, o pôr-do-sol de, aquarela, a Lua, as estrelas, a mais perfeita configuração do paraíso. Angra, sim - porque era ali que eu tinha um Béco só meu, a milhas e milhas de distânci a da instituição mitológica Ayrton Senna da Silva. Sem egoísmo: era ali também que ele se tinha só para si mesmo, homem, amigo, moleque, palhaço, inquieto, preguiços o, esperto, bobo, frágil, mas forte naquilo em que era verdadeiramente fundamental para um ser humano ser forte. Imaginem um tricampeão do mundo, reverenciado como u m semideus, descendo para o café da manhã com aquela cara amarfanhada de sono, só de calção e chinelo, sem camisa, barba por fazer, brigando com o amigo que lhe roub a a torrada com requeijão, ou, depois, no almoço, com o cotovelo esquerdo apoiado na mesa enquanto a mão direita, armada de um garfo e operando como se fosse uma pá, escavava um pratão de talharim com muito molho de tomate - al dente, exigia ele. Ele era, também na hora de comer, o rei da massa. - O Nuno manda comer pasta, para recuperar energia - tentava desculpar ele a sua voracidade, convocando o distante testemunho de seu histórico amigo e preparador físico. (Fiquei sabendo que, de fato, um piloto como ele perde de três a quatro quilo s numa prova. Tagliatelle nele!) Angra era isso: ele brincando, ele rindo, ele correndo, ele dançando, ele jog ando, ele ouvindo música, ele amando 66 CAMINHO DAS BORBOLETAS - ele, todo sentimento, afetuoso, relax, terno, brando, tão à vontade que conseguia até dormir um sono juvenil, com uma auréola de paz emoldurando seu rosto, coisa impensável nos dias em que vestia o macacão do Senna piloto ou nos ambientes em que botava, a contragosto, o figurino do Senna businessman. Um refúgio, um exílio - de repente, ele me catava em São Paulo, acionava as hélices do h elicóptero e lá íamos nós, a sós, para uma escapadela que podia durar apenas um dia, ou mesmo algumas horas. A magia do paraíso soprava para longe quando a pre ssão das provas, dos resultados e das decepções subia o termômetro de nossa ansiedade. Angra tinha um poder curativo sobre ele. Angra, grau zero de adrenalina. Numa dessas fugas estratégicas, a dois, fomos de jetski até a praia dos Macacos. Caminhamos de mãos dadas, acobertados pela natureza selvagem. Foi sempre assim o nosso amor: algumas palavras essenciais e muito silêncio. Os gestos, os toques, os olhares tinham a equivalência carinhosa de um dicionário de verbetes românticos. Ele continuou a caminhar, enquanto eu me esticava numa canga preta, com estampas Quando a última cena da minha vida passou diante de nós. Você me fez viajar. t odo o caminho.trazendo de volta aquele momento encantado de Angra. tu O Senhor me respondeu: "Meu precioso filho: eu te amo e jamais te deixaria nas horas de tua prova e do teu sofrimento! Quando viste na areia apenas um par de pegadas. ficou sentada na areia. Quando despertamos. ao Senhor. eu dor mi . Desceram. aquelas suas pegadas na praia eram uma migalha na amplidão do universo. profission al. Não tive coragem de esticá-la na areia. Enrolei-a como se fosse um travesseiro. Ele parou e veio deitar-se a meu lado. por acaso. Levantou vôo no helicóptero e ficou sobrevoando a trilha na areia. tu me deixaste ". Fo i correndo até o canto da praia e voltou. PEGADAS NA AREIA Uma noite eu tive um sonho. numa tarde de sol. Em vão. Infinitas são as maneiras de Deus se revelar aos 68 CAMINHO DAS BORBOLETAS homens. Tinha o título Pegadas na Areia. dobradi nho.. Chorei. o tricampeão de velocidad e . tu me disseste que. Espremidinhos naquele pedaço de pano. Ele dormiu.. Vênus já brilhava e a noite começava a dominar o céu. bastaram umas marcas de areia. deveras. emocional. Ele se sentiu vivo. Ela lhe doía no peito. na vasta solidão de Angra dos Reis. adormecemos. e notei que. a canga indonésia. Sonhei que estava na praia com o Senhor e. três horas. apenas um par de pegadas. Perguntei. Estava em Angra e saiu sozinho para correr numa praia deserta. percebi que eram deixados dois pares de pegadas na areia...pessoal. através do céu.nada mais do que aquilo indicava a presença de algum tipo de vida naquela imensi dão. O silêncio era absoluto . lhe parecia enorme. Mas. havia apenas um par de pegadas na areia. Isso aborreceu-me. que isso aconteceu nos momentos mais di fíceis e angustiantes da minha vida. a esperança de que a realidade fosse o pesadelo e que o sonho virasse verdade. pensou. também. Pode haver imagem mais bonita para guardar na memória? Dias atrás. diante do mistério da criação. para as pega das na areia. muitas vezes. Minha mãe chorou comigo. Viu as marcas de seus pés na areia .um homem sobressaltado pela obrigação do desempenho e da vitória. uma vez que eu resolvi te andarias sempre comigo.duas. para que o sono viesse .de revelação. ele calçou o tênis e foi c orrer. Notei. Houve outra vez em que ele me mostrou um poema em forma de oração. e minúsculo. Ele refletiu sobre sua solidão. nas horas em que eu mais precisava de ti. Quinda. guardado. com minha mãe. discretíssima. mas notei que.ele só ouvia os seus próprios passos no piso duro da praia. havia. num dia de sol. . recostei mi nha cabeça e torci. "Senhor. sem trocar palavras.Viajei. seguir. então. Levei comigo. Foi um momento mágico . fui à praia no E storil. passavam cenas da minha v ida! Para cada cena que passava. Não compreendo por que. olhei para trás. na sua carteira.a Quinda o acompanhava. durante as maiores tribulações do meu viver. Ele abriu o olho: 67 ADRIANE GALISTEU .de Bali. E tinha uma história. no caminho da minha vida. Contou que passava por um momento difícil da vida . não . Sozinho. na areia dos caminhos da minha vida. com seu peso-pena em cima de mim. Se alguém passasse por perto não haveria de acreditar que um sono plácido embalava. foi exatamente aí que eu te carreg uei nos braços". Para o Béco. de olhos fechados. pilotando o helicóptero. observando o mar. rec eosa de desmoronar o encanto. Liguei para minha mãe . um avião azul e branc o que ficava permanentemente estacionado no aeroporto de Angra. Mas. Olhava da janela.Será que verei isso de novo? Numa tradução mais verdadeira: . naquele domingo de verão e do primeiro encontro. . eu remoía.eu me absolvia no tribunal de minha consciência. aí. avançou: . A outra. minha mãe. como despedida. Duas da tarde. sócia de todas as agruras e felicidades de 71 ADRIANE GALISTEU minha vida. dos convidados.Vai. desfile da griffe Australian Downsound. pranchas que sonhavam com os tubos do Hawaii (pronunciava-se. A cabeça era uma massaroca. Por pudor. eu me contive. ia voltar a minha praia. da lan cha. morar em Portugal) .69 ADRIANE GALISTEU Ao deixar Angra. Mas nem preciso dizer como São Paulo e o trabalho me encontraram. "Foi lindo. Mas outros pensamentos vinham em meu socorro.Você me acendeu. meninas de penu gens douradas nas pernas.. até que a gente aportou numa praia deserta e ele. "A gente se vê". cobrir seu rosto de beijos e dizer. Depois daqueles quatro dias de idílio. Não rolou naquele dia.. na tribo. tenho uma p essoa de absoluta confiança. desde sempre. ser dono de uma escu deria. a minha tribo. "Se eu pudesse volt ar atras. Rauai). todos eles. esperançosos. minha alma era um grão de areia. a outra . e eu me apegava a eles: a insistência dele para que eu ficasse até quarta-feira. desde criancinha.Ele vai me ligar? . moçada parafinada. Uma delas é fazer amor na praia. depois de me roubar um beijo. As certezas brigavam.isso mesmo. por que me culpar?". minha filha. Arrependo-me de coisas que não fiz. com as dúvidas e eu me debatia com aquele burocrático "a gente se vê" que ele me disse.que eu tinha de coordenar. Você é o homem da minha vida.. tomada pelo pânico de ter vivido apenas o sonho de uma noite de verão. Os quarenta e pouco minutos de viagem no King Air dele. Mas. Como não ter me jogado ao pescoço dele. com todas as letras. por medo do ridículo. de certo modo. nós as realizamos juntos. Agora que eu voa va de volta. se eram as duas coisas que queria mesmo fazer na vida. depois da primeira madrugada de amor.Tem duas coisas que eu ainda quero na vida. a quem nunca tive vergonha de consultar sobre meus segredos.continuou ele . Trampo duro. Perguntei: . Até o dia em que voei para Angra. 70 CAMINHO DAS BORBOLETAS me lembrava daquela tarde em que ele me seqüestrou para um passeio de jet-ski e foi se distanciando de todos. porém.é fazer amor na praia com você. sentia que não pertencia mais a ela. "Ele não teria uma frase menos óbvia para dizer?" O avião rompia a serra do Mar e eu já não olhava para nada.. o que se passava no meu coração: . aflita: . não faria de novo" . os momentos de carinho vividos intensamente. ele me levando de helicóptero até o aeroporto e se despedindo com um prolongado beijo. no AeroAnta . calções rasgadinhos de lado. me pareceram mil hares de horas. Ela quase teve um chilique.Será que verei ele de no vo? A tal história da agenda lotada me atormentava. Estilo som reggae. Não me arrependo de nada que fiz. camisetas estampadas. essa era.era a culpa que chegava. Felizmente. (pensei assim: correr na Ferrari. Vai. para poder m e devolver o que eu tinha esque cido. meio masculino. em plena Elite. uma p romoção pré-Páscoa da Amor aos Pedaços.Ele quer entregar pessoalmente .A voz dela. sei lá quais eram as intenções dele. Encontrei-as. como um jogad or de futebol após o gol.. Meio tímido: . Não escondi dele um detalhe da minha vida pessoal . heresia suprema para uma modelo. de forma a não produzir feridas e mágoas.gradual mente. cara! Eu também. ainda que surpresa. quando o Gordinho sacaneou: . Fast food. Achei que era de algum amigo meu provocou. Corri para pedir colo a minha mãe. Voltei para casa. distribuir ovinhos de Páscoa na Avenida Paulista. Mas meus olhos devem ter me denunciado quando elas contaram a reação dele. As minhas eram claras: só pensava em estar ao lado dele. um beirute daqueles gigantes do Frevinho. Lembro-me de ter devorado.ela e meu tio me acolheram com enorme carinho. não falou de outra coisa a não ser de você. . travadona. Nada. hein? Pesadão. Telefonou. na quarta-feira. uma jornalista mais atilada dá o alarme: . Fomos nós. Papo vai. com um convite: jantar com ele.E olha. .faço questão de ser leal em tudo. Corri para o colo da mamãe . aquela noite. Fotógrafos e repórteres nos cercam..Perdeu um festão.eu. Saí para comprar roupa . Mas uma urgência me pressionava. era hora de pôr um ponto final nos dramas e vaivéns do meu passado amoroso. Sugeri que ele entregasse p ara a dupla Daniela-Danielle. falando da "amiga secreta de Ayrton Senna" e ilustradas com fotos de Angra.disseram as duas. Ayrton fechou a cara: . Ela insistiu: "Vai tele fonar". Estiquei um col chão na casa de minha madrinha . a cada momento que se seguia a uma daquelas típicas discussões que não levam a nada. Era a voz do conheci mento e da razão. meninas da Elite. Ele relutou. Levou-me logo para sua casa. . dando socos no ar. Pa ra agravar.Mas você não é a namorada do Ayrton? . irreq uieta . mas com convicção.Não brinca com isso.e o telefone tocou. Com ou sem Ayrton Senna (essa mística ainda me apavorava). Terça-feira . De repente.espera. Mas eu gostava.Tem mais: você esqueceu seu relógio. Passei a segunda-feira em plantão telefônico. Não fiquei.Ah. papo vem.queria ficar bonitinha para ele. . Fiz minha trouxa e comecei a me mudar . mas nada de relógio. Pensei comigo: Freud explica.Aqui pra nós. em termos de relacionamento.Você ficou amarradão na loura. não. os imprevistos externos: notinhas da imprensa. mas compreendeu. Modelito surfista: relógião de mergulho. com quem eu acabaria me encontrando na agência. Meu entusiasmo me fez jogar para o alto todos os com 72 CAMINHO DAS BORBOLETAS promissos do dia.para saborear com ela as novidades. relógio horrível. queria porque que ria que eu passasse a noite lá. não era de quem consolava uma filha ansiosa e conf usa. . Tive que me conter para não sair. é? . Ayrton coçou a cabeça. antes do beijo de despedida. Ayrton falava um italiano perfei to e a conversa fluiu.Mas você só sabe "I am". chefe da escuderia McLaren. Italiano você adivinha. capítulo novo na história de minh a vida.Você prefere que a gente fale inglês ou italiano? . abraçando aquele que eu descobri semanas depois ser o Jô Ramirez. Mas eu não deixei cair: . e arrisquei: .Estou morrendo de sau dade. d epois. nova ligação: . . n o domingo de Páscoa. Mas era uma conversa técnica e eu desencanei. Às vésperas do GP da Austrália. 18 de abril. fomos jantar .Quem sabe eu não tenho a ver também com um 74 CAMINHO DAS BORBOLETAS pouco da felicidade dele? Giorgio Ascanelli era o irmão de Senna no mundo da graxa e dos parafusos. Não tinha a menor idéia de onde andaria. como você está bonita! . disse eu.Maravilha . "Domenica". O domingo seguinte ao do encontro em Angra.Tá vendo? Se fosse em inglês. no pódio. naquela dia.respondi. 20 anos. ainda tinha olhos para meu vestido branco. não tinha me ligado até aquele dia. Não tin ha a menor idéia do que vinha a ser diferencial e achava que suspensão era quando o diretor da escola proibia um aluno mais atrevidinho de assistir às aulas por alg uns dias. os meus sonhos. com o Brasil inteiro.No dia seguinte. mas não quis adiantar nenhuma pergunta : . Restaurant e italiano.perdão. depois de arriscadíssimas ultrapassagens na chuva.Gostou? . Eu não me ligava no ás das pistas . o homem que preenchia os meus pensamentos. não deu para ir. Mas. eu era a nova "loira misteriosa" na vida de Ayrton Senna. dando um banho de champanhe no Giorgio Asca nelli. para a viagem até Donington.Inglês. que seria rival no ano seguinte mas não deixou de se r amigo até os últimos dias. Com ele cometi uma gafe enorme.Desculpa. ele e eu. surpresa. Giorgio? Giorgio gargalhou. unindo minha torcida à da minha avó fanzoca. Pois. o GP da Inglaterra. ao me ver levá-la até a escada do avião. eis-me colada na telinha. data redonda. final da tarde. chutando a mesinha de centro . o último da temporada 1993. os meus minutos. Béco foi gentil: . uma voz triunfante me encontrava na ca sa de minha mãe: .Volto amanhã pra vê-la. Senti que era o Béco. Percebi a repetição da palavra "Domenica". enquanto eu saía na captura de uns raros sons que me botassem dentro da conversa. festejando aos berros. esta coelhinha que vos fala estava na 73 ADRIANE GALisTEu primeira página de todos os jornais. agora não podia duvidar.Nossa. no meu aniversário. Mas me importava saber daquela adorável criança de 33 anos que.e. com egoísmo: . Cheguei a pensar.Domenica é a sua mulher. Também estou com muita saudade. roendo as unhas. clima mediterrâneo. naquela mesma noite do GP da Inglaterra. . . Pra os jornais.Estou ligando para desejar boa Páscoa. Só pensava no domingo. bri ncalhão como nunca.ele me cortejou. Tinha m uma enorme confiança recíproca. engenheiro-projetista. seria meu aniversári o.Béco. a se r disputado no domingo seguinte. a vitória do meu Ayrton. Fato consumado. Eu me soltei: . Se até aquele momento eu não sabia se a vitória dele 75 ADRIANE GALISTEU tinha a ver comigo. eu saberia que sunday é domingo e não sorvete. Dia seguinte da corrida. de flores pretas: . 11 de abril. Angra. Estou aqui no escritório. Discreto que era. bom dinheiro. para reaparecer. mas vou com você.Pena. além do bolo com velas da Maria. Os ami gos foram. profissional da beleza. uma meninona de 1. Mas eu não sabia mais se era uma. elegantíssimo s. já sem nenhum subterfúgio. ficava na cama dele . por mais que pensasse. Odeio aeroporto. litros e litros de Coca-Cola e o afeto do dono da 76 CAMINHO DAS BORBOLETAS casa. dig a-se.representando tanto minhas dúvidas quan to coisas que. Sabe como faz um namorado típico? Ele pergunta: como é o filme? Quem vai com você? Onde vão ficar todos? Pois é: o Béco perguntou. Trabalhando. A festa e nluarada em Angra atropelou minha cautela. um dia . Estava tão eufórica que pensava: nada.passaporte oficial de meu ingresso na turma -.Levo você no aeroporto. em cima do meu travesseiro . notei um pacotinh o quadrado. 20 de abril. naquela noite. embarque já naquela terça-feira. Mas com uma enorme vontade de vê-la. naquele dia. Vi brei ao saber que o tal comercial da Arisco. iria interromper nossa felicidade. andava meio avoada. O com ercial do Halls tinha saído: 77 ADRIANE GALISTEU cinco dias no Caribe. Ele acertou. como nos gibis . Nós dois tínhamos futuro. esqueci a os compromissos. E imaginem vocês a cena de um atleta consagrado mundialmente. Tomava grandes broncas da Ina. com Nelson Piquet. três mil dólares. foi a certeza de um amo r que desabrochava. Mas eu não deixava de ter meus lampejos de responsabilidade. além do banho de piscina de roupa e tudo. locação no Caribe. mas nada mesmo.Sua boba. sou da época em que se dizia assim: meu namorado. um a um.. eu deveria calar. dois dias depois do meu aniversário.um perfume Samsara. Tinha um homem maravilhoso me convid ando para um mergulho no paraíso. E decretou: . Béco me apresentou. apareceu o Leonardo com sua nova namorada. Vamos para Angra amanhã? Meu primeiro contato com o clássico conflito entre prazer e dever. diretora da Elit e e grande amiga. Dirigiu-se ao balcão da companhia e fez o check in. As páginas de minha agenda estão cobertas de balõezinhos vazios.a agência queria uma morena. a cabeça no ar. ele preparou uma linda festa de aniversário para mim. na nossa cama. Pedi um tempo até quarta. os ilhéus de Angra aportaram seus barcos. pensamentos sem palavras. para acertar minha agenda. reconhecido e saudado por uma a uma das pessoas ali no saguão de Cumbica. com uma picada de ironia. pensei. tinha dançado . Não queria deixar dúvida. E uma gargalhada: . o tipo da esbórnia que faria a cobiça de uma modelo. O melhor presente que recebi.. as guloseimas da Maria.agora.80 metro também da Elite. Tinha uma vida profissional a zelar e contas a pagar. O pacotinho sumiu. provocado pelos amigos . igualzinho. Embora tenha hoje 21 anos. além do relógio Tag Heuer que ele me deu. Ayrton vibrou do seu jeito. A única certeza se chamava amor. Mas h avia um teste para um anúncio do drope Halls.do outro lado da linha. a Quinda. Silêncio. carregando pessoalme nte a mala da mocinha ao lado. sem medo e sem limite.. diante do olhar embevecido dos funcionários. Não tinha mais o menor receio em se expor numa situação daq uelas. além do perfume francês . O travesseiro. No banco traseiro do carro que nos levou ao helicoptero. Era meu namorado. AAdriane Galisteu modelo. embrulhado para presente. O prazer triunfou. . De surp resa. a Sonaly. de sábado para domingo. senhor da situação. Subíamos num veleiro e saímos sacudindo pelo mar . O pasmo do motor ista não era nada diante da reação do dono do restaurante e da mulher dele. o puro encanto que envolvia aquele encontro romântico num cantinho obscuro de Guarulhos. Demos um bei jão amoroso e ele foi 79 ADRIANE GALISTEU tragado pelo mundaréu que já se formava. A equipe de filmagens. na base do "deu. perguntou se ele conhecia um restaurante simpático ali por perto. Novo check in. típica daqueles dias de emoções nada branda s. em velocidade de Fórmula l.e trab alho que exigia a mais infinita paciência. Nova trombada: Bahamas com escala em Miami.) Esta é a última chamada. Quem disse que era Aruba? Era: Bahamas. Ayrton Senna me pôs no vôo e recomendou à produtora. Ele adora essas situações. juro que foi dos melhores que eu comi na vida. Mas. escolada. a caminho de Aruba? . para pasmo do motorista. Mas estávamos ali a trabalho. sem aviso e sem fanfarras. seu treinador.Esquece a mala. Por essas e por outras é que ele é um ser humano tão especial. Mas a chegada me impressionou. Fizemos nosso pedido: filé com batata frita . a essa hora. só sei que não era a Transbrasil. É como se se visse de novo. menino da Vila Maria. que. hotéis deslumbrante s. Não teve um gesto de impaciência diante daquela namorada trapalhona. mas sou seu fã. na escala em Miami. que eu me viro . pegava no seu pé. Voltamos sem pressa. uma palavrinha de atenção em troca da invariável introdução "desculpa. Mas cadê a mala? Estará. mas o alto-falante do aeroporto estava ligeiramente histér ico: . prevendo o inevitável enjôo. indócil. (Não me lembro bem. nervosa. ainda me esperara: .. Fiquei de castigo no avião. Pura distração minha. não a passeio . justiça se faça: eu jamais o vi economizar simpatia e gentileza com se us nem sempre recatados fãs." Ayrton Senna é um rapaz reservado. um homem e uma mulher saíram em disparada até a outra ala. pessoas charmosíssimas.. Falta o visto de entrada nos Estados Unidos. que virou nosso point.Aruba? O vôo só sai daqui à uma da manhã.. em torno . essa sim. O diretor do comercial se descabelou: meteu-se no tubo do avião. Bah amas é um lugar lindo. A booker da Elite tinha me falado dez horas.Cuida dela. arquitetava as mais maliciosas inte rpretações para nosso ingênuo atraso. O balcão da Transbrasil desconhecia qualquer vôo para Aruba. deu. numa insossa terça-feira. como o Cristal Palace. Mesmo descontando a circunstância. não deu.Atenção. sonh ando com o magnânimo filé 78 CAMINHO DAS BORBOLETAS com batata frita do boteco da esquina. Mas. sabia do truque de pregar um esparadrap o . enroladas: despachou a mala e propôs um jantar de despedida. Chamou um táxi e. em que nos hospedamos. Eu. às vezes até "ma cambúzio" . tinham me informado. àquela hora da noite. e restaurantes divinos. Outra coisa não combinava: era u m vôo da Transbrasil..acalmou-me Ayrton. alojasse ali numa de suas mesinhas de madeira e toalhas quadric uladas -o legendário campeão.era essa a expressão com que Nuno Cobra. Béco era descoladíssimo em situações. de águas cristalinas. tá? Por mim. c omo aqueles reis que curavam tudo.implorando um toque no br aço. senhorita Adriane Galisteu. Não era possível acreditar que. Como naqueles filmes de aeroporto. como o Pic cadilly. não deu".Mas um deles estranhou: . um autógrafo para o filhinho. A senhora está sendo aguardada no balcão da co mpanhia. E. não podemos? Enquanto ele argumentava. para isso. Segureilhe na mão. em São Paulo. desculpa. liguei para a secretá ria dele. Filme: Herói por Acidente. Disse mil palavras s obre saudade. ele lascou um tapa na orelha que até hoje deve lhe soar como um telefone ocupado. em ímola (ah. Ele esco lheu: Dustin Hoffman.que ficavam me atazanando: . Pela p rimeira vez. planos de me encontrar.Mas que diabo de Alfredo é esse? . Imaginem : eu estava num paraíso mas só pensava no meu amor.) 80 CAMINHO DAS BORBOLETAS Ele não terminou a prova. dispostos a recuperar o tempo perdido naquela semana de separa ção. de fato.Alfredo? É o caseiro da Piera. pressa de voltar. novo flash.GP de San Marino. e avisei que queria falar com ele. esperava por nós o infer no. as nossas conversas sobre automo bilismo eram igual a zero. Vontade de voltar rápido. A Piera. a segunda da temporada européia . Ela está esperando uma chamada. como não terminaria a do ano seguinte. eu vim aqui em busca de tranqüilidade. da Paraguai.Alfredo? É você.. É você.e ele segurou com força minha mão. Disposta a lhe dar um consolo. que dormia comigo no quarto.Tãtãtã..Essa história da gravidez da Marcella Prado. Estávamos em clima total de namorados e. instalei-me diante de uma parabólica. já levou um safanão que o derrubou. a vontade de riscá-lo do meu mapa). E.. Ayrton? E me passou o telefone: . Ayrton é dono de uma paciência oriental para com os fãs mais ansiosos.Pergunte ao seu pai. no Cal Center . Mas faltava vento e passávamos horas à deriva. de b loco e Bic na mão. paixão total do meu moço. atendeu: . Meia dúzia de espectadores. Podemos ir todos embora agora. A saída. antes que o repórter puxasse o argumento "é meu trabalho ". Alfredo? Pela resposta. ela deu um pulo da cama: . Era uma hora da manhã quando o telefone tocou.. E a perigosa aproximação de um rapazinho. Ele quis dialogar: . só se quer saber de Fórmula Indy. de repente. Mas eu podia sentir o que ele sentia.maravilha para um filme a dois. com a Piera e a Juliana Soares . (O fundo musical da Globo.Olha. Mas ele estava transtornado. Juntou gente e eu não sabia o que fazer. nada melhor do que o escurinho de um cinema. me queixar do resultado . Não disse uma palavra sobre a prova. com aquele tom brincalhão de quem esconde um ciumezinho. Afinal. Não posso. rápido. a filha é sua ou não é? Tipo da pergunta elegante para um sujeito que tinha uma namorada ao lado. Até então. gelada. Ao fotógrafo. descobrir uma televisão nas Bahamas que pegasse a corrida d e Fórmula 1. que tremia. e tentei arrastálo.ele queria saber. . Ouvimos o primeiro cli que . Nas Bahamas. sitiados. Fomos. Depois de muito peregrinar. a dor que esse nome me traz hoje. porém. .o filme saiu deslumbrante. trazendo na ponta da língua aquele veneno que só as cascavéis e alguns jornalistas conseguem destilar: . pressenti que ele ia dar vazão ao seu pedaço Incrível Hulk: . Mas não toler a o jeitão trêfego e inso 81 ADRIANE GALISTEU lente de uma certa imprensa. Outro flash. no domingo. Voltou . Arrancou-lhe a máquina e a arre messou contra o vidro do cinema. Difícil foi. dois dias depois nos encontramos no apartamento d ele.especial atrás da orelha. Falamos uma hora e meia.Ah. Passaram-lhe um rolo. chorava pela impossibi lidade de ser um mero mortal como os outros. Onde ele era. os diamantes. num mundo de má-fé.ele ficou perplexo. chorava por ser indefeso.compatível com minha idade. até seu apartamento . . muito amor. Um jornal carioca que já foi sério reproduziu. Ele se metia nas brigas e. Um principado. sinto-me dona do direito de me vestir como quiser. E. depois. Zoomp. chorava com a indelicadeza daqueles que fa zem de uma profissão bonita um ofício de abutres.obrigad a. é que respeitem a minha dor. aqui pertinho de onde me hospedei. Tinha dado um reforço no figurino.chorava de raiva. que ele puxou e expôs à clar idade. . chorava pelo controle perdido. aos 20 anos.Não é moralismo. e el e chorava. chorava. Pode parecer engraçado que eu. Mais de uma vez eu o vi chorar. Um homem capaz de percorrer uma pista tortuosa a 82 CAMINHO DAS BORBOLETAS 350 quilômetros por hora caminhou até o carro com o rosto respingado de lágrimas. Viva a Vida. Se tem coisa que exijo. Era tarde da noite e o verão de Sintra tem seus momentos de Alasca. Mas meu estil o era Forum. pela ajuda -. mãe. A abaixo-assinada "viúva alegre" usava jeans e casaco de moletom.Cachorro! Tenho certeza de que o filme é outro. as tiaras. Nunca de medo. Eu festejei . em Cascais. Num vídeo gravado pela Globo. ali. Ninguém tanto como eu torceu e se contorceu pela vitória. Percebi. arrependido de entrar no jogo dos a chacadores de novidades. que já vivia plenamente a vida dele. Hoje entendo mais do que nunca. aos 21 anos. Deixa que eu conto. razoavelmente ansiosa com a perspectiva de competir com as pérolas. uma segunda-feira. hoje. Relaxei: vou ser o . mais uma lição de bom jornalismo e de integridade de caráter. Chorei com ele. 17 de maio. se envergonhava. glamour e amor. Viagem inesquecível: regada a sangue.É que sempre conto tudo a ela. dizia a reporta gem que eu usava um short cavado e mostrava uma felicidade excessiva. os vestidos assi nados com que eu haveria de cruzar. Bicho da Seda . Sempre d e raiva. nos périplos de Mônaco e Monte Carlo. Fotógrafo e repórter gaguejavam. sei que é melhor não. não . E confio no seu sexto sentido: quando diz não. surpresa com aquela homenagem carrega da do mais nobre simbolismo. Arremessou contra uma cesta de lixo. Era outro.atrás sobre seus passos: . às vezes. o verdadeiro príncipe. por uma semana.Me dá o filme.tive de explicar. No dia seguinte ao tetra do Brasil. Uma jornalista rancorosa. Caminhamos para a porta e ele ameaçou voltar: . Enfim. os futuros tetracampeões dedicavam a Copa a Senna. para a ocasião. sem me ouvir. chorava por me expor. com quem eu já tinha tido um bate-boca. tenha pedido um tempo para "consultar a mamãe". sua princesa. me chamou de "viúv a alegre". Às tantas.Pedir licença a sua mãe? . identificado com meu gosto. no aeroporto. a lei dos punhos acaba tendo de se impor. Mas. As aparências nem sempre exprimem o que se passa nas profundezas do espírito. malas prontas . fui feste jar com um grupo de amigos na Praça Luís de Camões. 83 ADRIANE GALISTEU Ele escolheu a dedo o lugar para me introduzir nos bastidores da Fórmula 1. Convidava-me para ser. fazia tempo. . lá estava eu. Você sabe do que eu mais gosto em você? É desse seu jeitão garoto de quem está sempre curtindo a novidade. a cozinheira-arrumadeira-faz-tudo portuguesa. de Sintra e do Algarve. e reclamei: . me veio à cabeça quando. Ele odiava a rotina das viagens aéreas. Mas a minha companhia. percebi que se tratav a de um gueto . muito bem decorado.pequeno. Cumpria um ritual automático. acesso fechado. clarinho. trocava-se no toalete. a Maria (de Angra). Aos 5 anos de idade. a Maria (de Sintra). conduzindo seus poodles para um último pipi. o ponto culminante da minha cidade de São Paulo. dia após dia. A tensão de vez em quando se transformava em insônia. eu me dei de cara com aquela cidadezinha acanhada cuj-ã lenda e cujo fascí nio não transpareciam à primeira vista. na medida par a quem passava ali apenas uma semana por ano. depois de uma subida longa e atribulada. Cheguei no alto. o acalmava. bom gosto. praticamente se u QG europeu até o dia em que se converteu às delícias de Portugal. vou compensar nos creminhos. em Mônaco. todas mobilizadas em sua missão de Santo Antônio: uma mulher faria muito bem ao campeão. uma t-shirt branca. já voltava com os ouvidos protegidos por um ear-plug. Por via das dúvidas. daquele dia em diante. De uma coisa. pensei: já que me faltam jóias. eu tanto infernizei minha mãe que ela conseguiu que minha tia me levasse para conhecer aquilo que eu cobrava. Pois foi sentar no avião e pedir à aeromoça uma CocaCola para o Béco me adular com aquel e empurrão de segurança que poderia me faltar: . depois do longo vôo até Nice. Tem sua graça.a viagem de avião ele queria que fosse a distância mais rápida e im perceptível entre dois pontos. preços astronômicos. Naquele momento.de privilé gio. como quem se dirigisse para uma ceia com o sultão de Brunei. E. Ela me conquistou de cara: . Pico do Jaraguá pra cá. Até que um dia eu fui. 85 ADRIANE GALISTEU Ele tinha um apartamento em Mônaco . Ao longo dos dias. mais o trajeto de helicóptero até o principado.que eu sou. a perfe ição tinha um nome: Isabel. pico do Jaraguá pra lá. muito menos pela bebi da ou pelo filme . meio blasé: retirava da pasta um mole CAMINHO DAS BORBOLETAS tom azul-bebê. contada com afeto especial por minha madrinh a. a Juraci (do Algarve). porém. passou-o nos dólares e partiu em direção ao sol. via Paris. fosse o lugar grande ou pequeno. Queria porque queria subir até o pico do Jaraguá. A casa tinha de estar funcionando. ele fa zia questão. Não se interessava pela comida. Sobretudo se a pessoa que você ama vai ser a estrela principal daquela festa.Bem que a Maria (caseira de Angra) me disse que você é linda. Percebi que as alegres alcoviteiras começava m . quando via senhoras vestidas de Dior e com sap atos Gucci pelas elegantes alamedas. recostava a cadeira e tentava pegar no sono. a semana do GR Diferente de outros tempos. em que chegou a ser proprietário de um apartamento enorme. a Isabel.Que pocaria de pito! Não sei porque essa história de infância. narizes empinados. freqüentasse-o ele muito ou pouco tempo. à sua chegada. E embalei todos. e especialmente das noites. tomei contato com o circuito casamenteiro que operava aos sussuros entre as várias casas do Ayrton. por onde voam as máquinas da Fórmula 1.menos o que eu lhe ofere 86 CAMINHO DAS BORBOLETAS cer. até suas rezas .. Sent i seu desejo de me ter a seu lado. não. Agora. Nessa reta. Uma aula.. com suas noites límpidas e o vento aconchegante que o Medi terrâneo traz da África. Senti seu orgulho em dividir comigo os valiosos segredos de sua mestria. Liguei a torneira. a pé. marinheira de primeira viagem. Enrolei-me numa toalha e corri para nosso quarto. Se não estivesse deitada. Desabei do alto do meu 1.. Não posso ver san gue que. todos eles. os azulejos. agarradinhos. desconfio. ao tentar fazer um furo extra num cinto novo . Quantas vezes mais eu não ouviria essa mesma frase. ele tinha me colocado na cama e enrolava um carinhoso Band-Aid no meu dedinho.Achei lindo . Desligou. espatifando-se no chão.É que tenho um probleminha.e em todas as outras.não me envergonho de confessar . vocês já repara ram. o boxe desabou .Você faz bem ao garoto . dita até por ele mesmo? Bom que tenha sido assim. Senti que tratou de escon der de mim.. cada um dos ziguezagues daquela pista onde ele era o professor.diria. tac. _ Paredes com cheiro de tinta nova e o carpete imaculado sugeriam o capricho para a recepção anual ao príncipe Ayrton. branquinho. já então fechado. Tac. ca ntarolava alegremente quando ouvi um insistente tac.. O sangue descrevia uma trilha no carpete branquinho.a botar suas fichas .leiga no assunto: .e. minuciosamente. até um portão onde guardas velavam para que nenhum veículo trafegasse naquele circuito de rua. Retirei-me para uma ducha quente.o boxe.. pena que não seja mais. cortando meus pés com seus caquinhos. Quando despertei.Pois é.Aqui. um após outro. eu freio (e deitava-se no asfalto.. na despedida. lambuzei-me de sabão. riscando na queda as minhas costas. dita pelas pessoas mais diferentes. Foi assim naquela 87 ADRIANE GALISTEU noite de chegada . De repen te. repara bem no tr açado: você entraria nessa curva de que lado?. tac. eu entro do outro lado.me acalmou. Menos mal: nos braços dele. em busca de alguma marca de pneu). piso embaixo. Naquele mesmo dia. tac . assustado. para u ma . Para mim.sempre às voltas com cintos. Ele me pegou pela mão e disse: .74 metro. era minha primeira viagem i nternacional com ele e logo aquele vexame! . . tac.como se um pedreiro martelasse do outro lado da pa rede. . Caminhamos até a entrada da pista . a Isabel.Nunca mulher nenhuma desmaiou nos meus braços.na verdade. né? -. em pânico. naquele mundo que era sua vocação e seu business. Ayrton es tava ao telefone.. é para ser passada a dois. ele espetou o dedo. As portas se abriram para nós e ele foi me mostrando. Só tive tempo de balbuciar: ..em mim. É mais seguro e ga nho tempo.Quero mostrar-lhe uma coisa. calmamente.. Ayrton Senna .apresentou-se ele. tudo significav a uma descoberta . A primavera na Riviera. e correu para me acudir. brincava comigo diante dos mais che gados: "Sua pamonha!" Estávamos no principado de Mônaco. Nos dias seguintes. eu desmaiaria outra vez. . A velocidade vai para 80. descobri depois. Eu me dava conta de outras pessoas que emprestavam brilho ao lado oculto da f esta. . vinte. achei melhor me preparar para a segunda eventualidade. recepcionista s. figurino um tanto ousado se você vai se sentar ao la do do príncipe Rainier.Quero mostrar-lhe o cassino. Talvez dois . veio se juntar a nós. cem vezes que o Ayrton me disse isso. curtíssimo .reuniões com os mecânicos. aquele senhor que. troquei o primeiro alô com aquele que.amigão. da Forum. tomei meu primeiro contato co m o nervoso burburinho dos boxes e dos motor homes . passagem como se ele fosse o mais ilustre membro da casa dos Grimaldi. era. ele. Era véspera do primei ro treino oficial e ele tinha todo um dia de trabalho pela frente . 89 ADRIANE GALISTEU fechado por um zíper na frente. Compromisso obrigatório. enfim. que fique sabendo por mim. convidados inclinavam-se à nossa. desde que.felizmente. ou que chore . nós teríamos um . logo. naufraguei.quatro se contasse outro. não só era uma prova do calendário automobilístico. Fracasso total. Gerhard Berger. Não bastasse nada. T rocou 300 dólares em fichas. de verdade. modelos. é claro. nada menos do que isso). na sua faz enda Dois-Lagos_no interior de São Paulo). O amigo mandou vir um presente: uma caixa de trufas suíças. verde-amarelo.aquele aflito mundo que as câmeras de tevê não captam. encontros de negócio com patrocinadores.Tanto que. conheci. Na carona de sua Ducati 900 (ele tinha uma igual. Depois. no GP do Brasil. A felicidade estava estampada no rosto do Béco. com a de vida roupa de baixo. Perdeu tudo. eu não jogo. agora. durante os treinos ou nas provas da Fórmula 1. De volta ao apartamento. raro freqüentador da noite. entre todos os malucos do volante. com todas as letras. Vocês vão se surpreender quando. checagem do motor. eu estava ganhando uma fortuna. Acho que esse não é mesmo seu esporte. só hoje. não restava uma única trufa para contar a história. Mas se permitiam a intimidade plebéia da saudação alegre "Senná. Era t ambém um tremendo acontecimento social. Atrizes. Vim pra perto 88 CAMINHO DAS BORBOLETAS de vocês. o nome Nacional em destaque. as mesm as cores. em Monte Carlo. Tinha à mão três vestidos de noite . vermelho e preto. o Bragota .Mas como? Você não joga. só para brincar. e o dinheiro foi escorrendo rapidament e pelo ralo. viria eu a descobrir depois. croupiers.o banqueiro Antônio Carlos de Almeida Braga. se animou: . Garçons. com o capacete de reserva dele.Só hoje. arrivistas acorriam para ganhar uma foto ao lado das cabeças coroadas do principado e dos ídolo s da velocidade. Como Senna e o circuito de Mônaco mantinham desde 1987 uma tórrida relação de amor (pent acampeão. eu contar quem é que apareceu numa dessas badalações . Brincou com Ayrton: . Se esse austríaco molecão e de alma de manteiga ainda tinha até hoje dúvida sobre esse sentimento muito especial do Ayrton. colunáveis. Fiquei nas moedinhas e no jackpot. Era uma delícia: . logo. Senná".a festa da vitória. aquele de quem Ayrton se podia d izer amigo . e aqui eu já dou uma pista. me dera o toque mei o brincalhão sobre o Ayrton. incondicional. Ele propôs um sete e meio. Mas qu is me deixar à vontade: conduziu-me pela mão até o motor home da Tag Heuer e me apresentou a um por um. As mais deliciosas trufas que jamais saboreei na vida. Um amigo dele. terminada a caminhada. fosse ele o vencedor.mas posso dar o testemunho de dez. que comemore. do mais graduado técnico da McLaren ao mecânico que troca os pneus. OGP de Mônaco. que jogava na mesa ao lado.jantar de gala para os pilotos da Marlbo ro.Lá. . Seu ex-parceiro de escuderia. Na vida civil. O que eu tinha em mãos e sob os olhos até então era o namorado de Angra. É sempre gratificante para uma mulher ser admirada. o risonho Braga. Aí apareceu a Betise Assumpção. assim como para os outros triunfos canarinhos no futebol.lenta. Ayrton apertava ainda mais minha mão.eu também estava louca para vê-lo a cada segundo. Perseguição implacável dos paparaz zi. quando ele se defrontava com o d ilema do vamos-ver e do tudo-ounada. descansando. assessora de imprensa do Ayrton. Galvão Bueno. Os protagonistas da Fórmula 1 iam se revelando. Em especial se. Era desfilar de mãos dadas com o Ayrton diante das arquibancadas e a galera ia literalmente à loucura. Pulei fora.Tá bem. Curiosamente. eu preferi m sinal de respeito. . Uma pergunta dessas na Elite teria o efeito de um maremoto. Em Mônaco. capaz de sair de uma final de Wimbledon no sábado para assistir a um torneio de golfe no Havaí no domingo. era melhor que eu ficasse em casa. .Tudo bem? . o apressadinho do jet-ski. fui ser apresentada ao Rubinho Barrichello. Ao lado ele. Agora apaga.brincou aquele gozador e esportista full time. no vôlei. etc. garotinha? . Penso em Marcello Mastroianni e me convenço de que o italiano talvez seja a língua da sedução. Queria me ver: . o tempo pa rava. tá bem.de quem guardo tanta saudade. pápum. Vivi aquela eterna dúvida das mulheres sobre que roupa usar. ele quis me poupar: treino oficial.Tá boa a roupa? Ia acender a luz. Fiquei ali quatro horas. De cinco em ci nco minutos. Percebi a metamorfose . Acendi. muito divertida. Alguém se encarregaria de me levar ao circuito. no tênis. levantar às sete da man hã.Só não acende a luz. Simpatia à primeira vista: ele me convidou para assistir à prova da cabine da emissora. cortando a conversa: . em . mas ele: . estreei também o lado speed das pistas. o provoc ador da Quinda. via Banco Nacional. o elogio traz o nome Giorgio Armani e uma pergunta meio exploratória s obre se uma moça tão bonita não estaria interessada em desfilar tal coleção. me pareceram quatro minutos. Conheci. Sensacional. Mas era como se o circuito de rua atravessasse a minha cama. de repente. 91 ADRIANE GALISTEU otimista. em Mônaco. À medida 92 CAMINHO DAS BORBOLETAS que a hora do desafio nas pistas se aproximava. Incorporara-se à trupe o Papagaio . Chegaram Oscar Guerra e Marquinhos Magalhães Pinto. assim como os figurantes. o amigo de todas as horas e de todas as brincadeiras. como ele. um preocupado Ayrton botava a cara para fora do motor home.Não lhe falei. no basquete.tio Pa pagaio. inconsciente talvez. desesperado. depois ami císsima . para mim em italiano. o maluquinho do helicóptero. Com o Braguinha.Disse que ia rolar namoro. Encontrei o Béco animado. um outro mundo. em Mônaco.90 CAMINHO DAS BORBOLETAS . o companhe iro das noites de São Paulo. sua personalidade ia se reconstituindo. Agora digo que vai pi ntar casamento. No dia seguinte. Fui acompanhar os treinos. Ele. o amante carinhoso. etc. Fui ao quarto d o Marquinhos consultá-lo. Era o enésimo atestado de amor. Gritava elogios para nós. Locutor da Globo para a temporada de Fórmula l. E. um outro Ayrton.Tudo bem . Descobri. amigos de velha data e patrocinadores. gradual. Assim.convicto. escandaloso. véspera de GP. Tive o ímpeto de rezar. Mas. foi a expressão que eu usei. minha mãe tinha sido batizada numa igreja protestante húngara. um desejo especial: . Surgiu o Senna de uniforme e rosto dur o. Pedi muito para que ele ganhasse. SENNA. ia a uma igreja batista da Lapa. 23 de maio de 1993. cabisbaixo: . Orava em silêncio.dormia de pijama. para dar um tempo. Ele concordava. Era uma surpresa para mim .e novo acesso explodiu. o astro . fechou os olhos. E. um milhão de cheese-cakes como os da Bebel. letra a letra.Não tem outro jeito. que me refugiei na sala. Quando me refiz. . botou a mão sobre um determinado capítulo. Mas quem é capaz de se derreter de doçura às vésperas de entrar no asfalto esfolando uma máquina a 350 quilômetros por hora e tendo na sua cola um f rancês rabugento e um chatíssimo alemão? Tensão. curto ou 93 longo. Ayrton ia botando o capacete e vestindo o macacão de Senna.ler a Bíblia era outro de seus hábitos pré-corrida -.Preciso ganhar. dependendo da estação -. já que meu pai não ligava.. meti uma roupa. não tirem esse homem da minha vida. concentração..OAyrton teve um acidente. de Portugal. Do meu jeito. peguei carona com o Marquinhos Magalhães Pinto e cheguei descabelada. sintomaticamente.mas nunca.nome do dever e da performance: S-E-N-N-A. Eu tinha CAMINHO DAS BORBOLETAS sido despertada pelo vrum-vrum das máquinas. Sumiu o Béco de pés descalços e riso franco. Seria sempre assim: sexta. no máximo. 94 ADRIANE GALISTEU . abriu a Bíblia que carregava na past a de mão . incontrolável. naque la noite. parecia uma eternidade. Não troco seus toques afetivos nem por uma vit rine inteira do Amor Aos Pedaços. ele vestiu o pijama . recolheu-se cedo. e eu passo declaração em cartório. "Fechar o zíper". mas esse tempo foi. para mim. nunca senti naqueles momentos o mais remoto sinal de estrelismo. pronto para extrapolar todos os l imites. Naquele sábado que antecedeu o GP de Mônaco.Por favor. meia hora. Ele era uma usina de carinhos. para as farra s da escola dominical. o warm up já rolando. Tinha medo de perdê-lo para a vida. mais de uma vez. eu me apeguei a todos os santos e expressei um desejo. Tive um tal acesso de tosse. Tenho de ganhar. um milhão de toicinhos do céu.. Seus beijos deixam na boca o sabor de mil queija dinhas de Sintra. no ritmo lento de um soletrar infantil. Freud de novo me denunciou. e quando voltei ele me esperava. do fundo do coração. com as falas de meu próprio catecismo . sei lá. jamais! Nem ali nem nunca eu cogitei que a morte pudesse buscá-lo.mas eu tinha um coração transbordante de ternura para entender o que se passava. carinhoso..eu que nunca fui de freqüentar muito igreja. querendo saber como eu estava . A notícia me recebeu na porta do autódromo. r apidinha. minha avó paterna era católica e eu. sábado. Olhou-me com uma expressão estranha: . com firma reconhecida. ele me deu um terno "boa-noite" e apagou a luz. reflexão . estivesse ele com o carro na ponta dos cascos ou vivesse ele um enorme pessimismo. Eu também estava tensa. .nesse. Ele.brincou ele.Mas. . Como se fosse um ato proibido de dois menin os. sofri a típica doença feminina: achei que não tinha roupa. que explodia de entusiasmo.Pro boxe? .Mais descabelada ainda fiquei ao saber dele. Ficamos bem no centro da mesa principal. Com o polegar direito do tamanho de uma bola de tênis. a multidão compacta que caminha e empurra. . ele abriu passagem com os cotovelos e me confidenciou ao ouvido coisas muito mais doces do que aquelas trufas suíças: . corri da cabine da Globo para o pódio. o impávido boné azul. E decidiu-se por aquele tal vestido bem pouco protocolar. elegante com seu smoking. lá no meio. Claro que. nada . não há quem não tenha ímpetos de comer as unhas ou arrancar os cabelos. pegou-me pela mão e me convidou a ir para o boxe da McLaren com ele.Ainda bem que você não estava aqui. lágrimas rolavam pelo meu rosto enquanto eu continuava tentando me aproximar do pódio. não sabe? Diante do Club Sporting. Joseph.. mostrou como uma vitória produz homens pacientes e tolerantes. além de servir como uma espécie de escudeiro dos pilotos.Foi muito bom.. mas eu gostaria de reivindicar o meu modesto mérito.. O boxe da McLaren era um ovo. O auditório estava apinhado. pra desmaiar . Eu e o Oscar Guerra rezamos mais do que o papa.Nada. ajudou. Você sabe que foi pra você. E aque .eu não conseguia encontrar nada senão o óbvio para empurrá-lo para a vitória. Virava para o outro. um austríaco que trabalha va na infra da McLaren e que.estranhei. E o acidente? . Ayrton entrou na pista para vencer.É hoje! . Corri para o boxe da McLaren. Entre os preparativos e a largada. é um expert em massagens curativas e em poções mágicas.. Um mecânico me socorreu: machucou a mão. pronto para voltar à pista. também. Eu olhava para o lado e via o príncipe Albert. ao final.É hoje! . Na minha estréia na Fórmula 1 como namorada dele. minha melhor terapia era quem mais devia estar ans ioso: Béco surgiu sei lá de onde. Tentei o motor home. mordeu a língua. Curiosamente. nada. Ouvi ainda ao longe os acordes do Hino Nacional Brasileiro. Olha lá ele.Está linda.despistou. disparada mesmo. o público igual ao do Oscar e as câmeras fotográficas esperavam pelos príncipes de Mônaco. Pois ele se encarregou: . Os que dão expediente o ano todo. "a misteriosa loira brasi 96 CAMINHO DAS BORBOLETAS leira". com salto alto e me ia preta grossa.ainda tentei argumentar. onde mal cabi am meia dúzia de mecânicos e os pilotos. ele ficou entregue a outro de seus anjos da g uarda. E o que pontifica no dia do GP .Eu decido. ele me fez esconder com ele atrás de um tapume de papelão e me sapecou um beijo: . dei sorte. o carro. a passadeira vermelha. bem ao lado. . na reprodução daquela cena típica da vida dele. acompanhado da sua princesa. Alívio. Mas. mas devidamente enfaix ado. o massagista. uniformizado dos pés à cabeça. que eu vim a conhecer também naquele dia: o Joseph. o verdadeiro sentido da pala vra nervosismo. Michael Douglas. na correria do banho e da escolha da roupa. Nem respondeu. Posso dizer que conheci. Os sessenta minutos que precedem a largada são aquele corre-corre entre os boxes e os motor homes. mas só pude vê-lo depois. mostrando que esta va com o astral lá em cima. Ao me ver. s em fôlego. aí. . saiu um pouco de sangue da b oca. naqueles minutos. faltando vinte minutos para a bandeirada. Saiu me arrastando diante da arqui 95 ADRIANE GALISTEU bancada. já dentro do carro reserva. começou a se remexer. subitamente. inteiro. como a Sylvia Piquet. a esticada foi no Jimmy's. Afrouxou a gravata.Merci. Outro homem teria me dado um beliscão por baixo da mesa. naquele ano. Ayrton se preocupou. com suas próprias pern as. Galvão Bueno. O garçom veio nos servir: . Muitos dos pilotos .e uma platéia bem mais informal e eclética. lá do outro lado. A noitada foi ficando para os que tinham bebido demais e para os que tinham s e vestido de menos.até um banqueiro é capaz de baquear. estava de volta. Alguns milhares de dólares por uma noite . o night club da moda. Não era o 98 CAMINHO DAS BORBOLETAS nosso caso. quem está olhando para mim. . o GP de Mônaco coincidiu com o Festival de Cinema de Cannes e todo mundo acor reu para a boca-livre. . figurões do big busine ss do automobilismo. na reta oposta.Estamos indo. De repente. Jackie Stewart. mas combinar com o garçom um sus to no Marquinhos Magalhães Pinto. como o Mansour Ojjeh.Estou fingindo que não vejo . Eu não hei de me esque cer especialmente de uma mulher lindíssima. que tinha corpo e ritmo de bailarina mas c ujo vestido de noite consistia numa pecinha menor do que uma blusa. Depois da entrega de prêmios. e algumas roadies do circuito. filho de mineiro e outro que não por acaso carregava a mesma reputação. mademoiselle? . e a afrouxar o laço da gravata-borbole ta à medida que um elenco de mulheres muito desinibidas veio exibir suas. que não fazia exatamente o tipo rei da noite. digamos ass im. Tchau. Jurou vingança. Detalhezinho: a moça estava exatamente como Lílian Ramos no Carnaval carioca de 1994. apareceu lívido. Assim foi feito: quarenta minutos depois. assim como nós. inquieto. Mais do que isso: multiplica ria por cinco as despesas. O garçom fingiria que a conta não tinha sido paga. a Cindy Crawford. Chamou uma ambulância e obrigou o constrangido Galvão a entrar. Béco se permitiu uma molecagem. ex-mulher do Nelson. Os amigos diziam que ele era um irremediável pão-duro. acertar a conta. Coca-Colá. Por isso mesmo. Marquinhos. Berger. Béco e eu ainda resolvemos pregar uma última p eça. . Novas homenagens . Sem falar das estrelas do próprio circo: Nick Lauda. rindo.Então. Tínhamos uma mesa de pista e senti que o Ayrton. Naquela boate onde a dose do scotch custava quase 100 dólares e onde litros e litros de champanhe tin ham enchido os copos na nossa mesa. Felizes como duas crianças. bem diante dele. quase em frente? A princesa Carolina. Patrese -. sem o menor constrangimento.Prost. Galvão e Oscar eram nossos cúmplices na cilada: . Menos de uma hora depois.me cutucou ele.Champagne. morta de inibição. Faço um aceno protocolar com a cabeça e abaixo os olhos. na boate onde a festa se estendeu. Nu nca se viu tanta concentração per capita de beleza e fama. da turma dos brasileiros. com uma expressão de puro deses pero. botou a mão no coração. que era nosso hóspede no apartamento. banqueiro. mas o meu Béco foi solidár io com a minha criancice: . É que. com seu namoradão grisalho e charmosérrimo. virtudes. sócio majoritário da McLaren. Ela olhava para o Ayrton e lançava vigorosamente as pernas até a altura da cabeça. duas Coca-Colás.Acho que vou ter de trabalhar o resto da vida. saiu para 97 ADRIANE GALISTEU tomar ar fresco. Ron Dennis. Ma s logo se percebeu que ia passar. na barulhenta ambulância.la menina bonita? Ah. o suposto mão fechada Ayrton tomou a iniciativ a de ir sorrateiramente até o caixa. ameaçou um piripaque. Ric hard Gere. Dizia. A fé de A yrton era uma crença íntima. invadiu o quarto de Berger e de Ana. Os quatro tinham combinado de jantar . entornou xampu. Em Mônaco. Quando tudo aconteceu. Os dois deixavam. Mas conheço bem. um relax espiritu al para facilitar um sono que. uma mininécessaire. era um coroinha diante de outros pilotos. Gostava um bocado dele. O sentimento era recíproco. depois de tudo. Sistemático que só ele. não uma exibição pública. encheu de água até em cima. o Hotel Villa d'Este. antes das corridas. Companheiro de escuderia na McLaren. Berger pode ser louco mas não é idiota. .É um sonho? É verdade? Já não me importava fazer essa distinção. que adorava atazanar os amigos. Aparentemente. em que esfera se pas sasse. Ayrton guardou a vingança na geladeira. numa certa época. Ayrton não larg ava uma pasta tipo 00^ em que guardava suas pequenas preciosidades. não veio. naquele dia de luto e de dor. um suéter e um exemplar da Bíblia. quase sempre custava a chegar . quase no lago. derrubou na banheira as roupas dos dois. enfeitou o ventilador de pás com peças íntimas do casal e sumiu. a outra vítima do massacre de Ímola. Naquela noite. Ayrton. abriu a porta do helicóptero já em movimento e arremessou o precioso o bjeto para as águas do lago. E Ayrton e Fábio não duvidavam de que vinha troc o a caminho. caneta. Sou dona de um sono adolescente: é entrar nos lençóis. acompanhou o hexa campeão de Mônaco até a cama. mais do que os outros pilotos. a enésima daquele dia de vitórias e alegrias. 99 ADRIANE GALISTEU aqueles homens de fibra e de aço chorarem como criancinhas. fechar os olhos e apagar. comecei a travar contato com esses moços e com suas histórias arriscadas e atrapalhadas. além da ânsia da velocidade. acabou esquecendo a mala no hotel. Estão. eu tinha o corpo moída mas a cabeça ligada: . À melhor história com Berger. tipo agen 100 ADRIANE GALisTEU da. Alguns deles recostavam seu rosto no meu ombro . antes que Ana e Berger reaparecessem. Béco tinha pânico das brincadeiras de Berger. O Ayrton com sua indefectível pastinha. Nessa. ao contrário. quando uma ou outra coisa aquece o coração. eu não assisti. a simpática po rtuguesinha que é namorada dele há muito tempo. desembarcou em São Paulo para o velório e o enterro. às margens do deslumbrante lago de Como. de h elicóptero. em maio de 1993.é o que com certeza passava pela cabeça de cada um. Senna o conhecia bem. Pois bem. sim. Queria viver aquilo. Ele. voltou na mesma noite para a Europa porque não queria perder o velório e o enterro de seu compatriot a Roland Ratzenberger. Esperou até o GP da Austrália.O nome dele é Gerhard Berger. Têm outros sentimentos.Eu tenho um amigo louco (pronunciava a palavra louco como a pronunciaria um médi co psiquiatra). Eles vi bram. antes de um GP em Monza. q uem dividia o quarto com ele era seu primo Fábio Machado. Berger tomou um av ião na Europa. com cara de quem não está nem aí para o perigo. Poderia ter acontecido comigo . Nesse dia. amam. passaporte.pediam socorro logo a quem? A morte do compa nheiro de pista expunha a fragilidade deles. é do tipo que custa a p egar no sono. abraçado a mim. o grandalhão austríaco conviveu com Senna. mas a leitura dos salmos e dos versículos sagrados era um hábito de todas as noites. A dupla surrupiou da camareira uma chave mestra. ficou provado que circula vida nas veias dos super-heróisda quilometragem. Errou por pouco: a pasta 007 esborrachou no gramado. o austríaco lhe arrancou a pasta da mão. por exemplo. Realidade e ilusão valem a pena. com toda a serieda de: . Ayrton se distraiu. o Berger simuland o um certo interesse pela paisagem.Uma gargalhada. choram. passada a prova. . Até onde eu saiba.previa. Fiquei lhe devendo essa. De bicicleta. Constrangimento. imaginou Ayrton. com outros oficiais. me assessorava. um policial não o reconhe cesse e não lhe manifestasse seu entusiasmo .. todos os dias. Passou-lhe o documen to. banheira. da jovem guarda brasi leira do volante. pede licença e tranca-se numa sala. que por ironia viria substituí-lo na Willia ms.além do tradicional pedido de autógrafo. Michael Andretti . vai longe . vestiam as mesmas roupas da tarde. pelo . Eles lhe davam uma espécie de flashback de sua própria iniciação. Demorada con ferência. colorida e. irritado. Marido e mulher tinham um preparo excepcion al. Volta um senhor severo. Christian Fittipaldi. Desfazendo-se em desculpas.fora m hóspedes nossos em Angra e no Algarve. sem um só trapinho a vesti-la e. Surpresa: o guarda da imigração argentina fech a a cara. Ayrton e Fábio trocaram um olhar cúmplice quando viram que tanto Berg er quanto Ana. ele se sentia padrinho dos nossos calouros. Sem esquecer o Kevin. Uma hora e meia. no Ibirapue ra. Nuno Cobra. o Senna tinha de ter. duas horas . o próprio Rubinho. a ponto de acompanharem o Ayrton naquela sua corrida diária em volta do condomín io da Quinta do Lago. quarto . às sete da manhã. Thierry e Patricia Boutsen também eram do time dos nossos amigos do peito.aí.Com um carro melhor. Na verdade.. visivelmente mais gra duado: . preparador do Ayrton. Eu. Nssa convivência com Berger era íntima e social. Berger. sorr idente. se havia alguma coisa que Ayrton sabia separar era a relação gostosa que rolava num jantar.Pero hay un problemita. Damon Hill. No lugar em que deveria estar aquela foto 5 x 7. que deve ter hoje uns 5 anos. Do Rubinho Barrichello.naquela noite. sim. com um ou outro parceiro de pista. Treinei como uma louca. Ayrton desembarca a negócios em Buenos Aires. não por acaso. 102 ADRIANE GALISTEu Trabalho e prazer . Aliás.espumou Senna.Berger.os dois pilotos e ela.. . mas também do português Pedro Lamy e do escocês David Coulthard. um motorista. entre março e abril de 1993. por exemplo. em Portugal. numa viagem ou num passeio e uma conversa embebida em gasolina e cheia de palavrões técnicos que o Senna . E a eles dedicava a torcida de um agora experiente veterano. prometi ao Béco que ainda iria cumprir com ele todo aquele longo e cans ativo percurso. Não havi a lugar no mundo em que um porteiro. . se possível. Dias depois. nada. Ficaram fir CAMINHO DAS BORBOLETAS mes. ele dizia coisas ótimas: . Uns encantos . filho deles. estava uma donzela nua.que durou pouco na Fórmula 1. O passaporte. em posição ginecológica. o piloto brasileiro expli çou às autoridades argentinas que aquela grosseira cola gem era vingança de "um austríaco maluco". no dia em que ele voltasse de Ímola para a casa do Alga rve.nada. um pio sobre roupa. sob vaias gerais.. pior. os acompanhava.nada a ver. Um dia. às vezes. é claro. Eu ia lhe fazer uma surpresa. Para eles também Ayrton tinha palavras de amizade. Ficaram elas por elas.Temos todo o respeito pelo senor Ayrton Senna começou o oficial. O jantar transcorreu sem uma queixa. Com a mão no meu braço. o mesmo team. Falou-me. a tenist a Monica Selles e a mãe. de repente Prost em pessoa veio a nossa mesa. nem assim Ayrton falava dele. Ayrton gelou. Galvão Bueno. o Braga. Até os garçons tremiam. Fiona. quando um via o outro. mas o pior já tinha passado. sim. disse um comovido "conte comigo". Alain Prost. uma certa cerimonia se impunha. o tio Papagaio. a não ser quando Ayrton queria gozar a incompatibilidade dele com as chuvas e pist as molhadas. incrível. junto com Ayrton Senna. e foi essa estimulant e competição. na Austrália. A crônica de seus duel os com Ayrton nas pistas vai permanecer na história do automobilismo. fomos num grupo grande experimentar aquela maravilha da cozinha portuguesa que é o restauran 105 CAMINHO DAS BORBOLETAS te Porto Santa Maria. eu. Mas o tempo foi curando as feridas. Às vésperas do Grande Prêmio no Estoril. antes do GP de Monza. não sem algumas farpas. Num show da Tina Turner . Senna foi além: . Mesas distantes em restaurantes. mais à vontade: afinal. o ponto mais ocidental da Europa. N um magnífico restaurante em que jantávamos em Milão. Houve um adversário de verdade na vida e na carreira de Ayrton Senna. Meu sexto sentido indica. que prod uziu aquele diálogo entre os dois. e esposa. só indiferença. um linguado ao forno. estivemos lado a lado. de início. Quem assistiu ao abraço. Ayrton. não o seu ete rno rival. e ponto final. Trocamos uma apresentação rápida e meia dúzia de palavras. acusações de jogo sujo . teve de amargar o tetracampeonato do rival logo naquela temporada em que vivi intensamente ao seu lado. em 1993. recordo-me. numa conversa entre amigos. Com Prost. ficaram ressentimentos. diante daquelas escarpas do cabo da R oca.quando "o f rancês" vinha à baila. Não havia intimidade possível com um sujeito que passou um show trepidante como quem estivesse assistindo a um concerto de câmera e m Salzburgo. nos anos negros da hostilidade. Senna desafiava Prost. "o sapateiro". secamente. isso sim. interrompida na temporada de 1994 com a aposentadoria do francês. Pros t 104 ADRIANE GALISTEU estava. Jamais se importou com aquele que chamava. na praia do Guincho.e Senna. Haviam dividido. como o Braguinha. Prost desafiava Senna. que ele também tinha morrido um pouco. o mesmo boxe. porém. mas acontecem situações de saia-justa que dizem tudo. cozido dentro de uma casca de . Por uma 103 CAMINHO DAS BORBOLETAS única vez. que odia va perder. o mesmo staff da McLaren por dois anos. uma alemã loira e bonita. Encomendado com antecedên cia pelo nosso anfitrião. Parecia meio desloc ado naquele ambiente soturno e distante do Cemitério do Morumbi. ao pé da letra.Estou sentindo a sua falta .alemão Michael Schu macher ele mantinha. ou na sapatilha. de "o alemão" ou. em inglês. que a rivalidade dos dois tinha o tempero de u m enorme respeito. Alain Prost era alguém . aliás. chegou a ser uma relação de tipo mu dar de calçada. custou a acreditar. Na temporada de 1994. era uma pedra no sapato. logo depois do GP de Adelaide. quando o Benetton de Schumacher começou a dar um suor no Williams de Senna. Preocupava-o apenas o desempenho de sua própria máquina.disse ele a Prost. Schumacher e a mulher de le. setembro de 1993. Não se po de esperar palavras de rancor e ódio de quem lia a Bíblia como ele. Coisa dos deuses. às vésperas do desastre de Imola. De parte a parte. o Julian Jakobi e sua adorável mulher. diante do esquife do ex-rival. A parte francesa dessa linda reconciliação entre as duas feras se traduziu no cho ro sincero de Alain Prost. após o funeral . naquele ano o campeão foi ele. com o Braga.outra paixão do Béco -. queixas. séculos atrás. um garotinho lindo. por sinal bela figura. a Fórmula 1 me ensinou essa lição. mulheres permanecem nos boxes. Ficamos no Berkeley. bem longe. atenção. pude descobrir depois. Nelson Piquet Júnior. Estava esgotado. que tratem bem de seus companheiros . Vamos para outra mesa. Já na minha primeira viagem aos bastidores do circuito. cronometram o tempo. por exemplo . Era só uma primeira e enganosa impressão. quem sabe. ele e eu. O garoto se chama Nelsinho. namoradas. recolhem-se ao decorati vo dever de coadjuvantes. Nem um piloto da McLaren cons . ainda demos. A palavra. o combustível fede e as estrelas fazem xixi em pé.sal grosso. E. O jogo é viril. depois. alguns pilotos de GP trocam de mulheres como trocam de pneus. camiseta e tênis. Conheci. no dia do enterro. Mônaco é um principado.pelo menos da Fórmula Indy como se vê na TV -. que conhece tudo. Elas se metem nos motor homes. vibram e pulam no pescoço de seus heróis vitoriosos. Mas que é diferente da Fórmula Indy. não foi propriamente indivíduo. Eu disse: alguns. Ron Dennis. Circulava pelos boxes.e a amizade era recíproca. Fincou pé. como aqueles grã-finos falsos das novelas do Gilberto Br aga. Nada combina melhor com um conto de fadas. perto de Kni ghtsbridge. me jurara : . foram descobrir novos mundos. Esgotadíssimo. Mas me sussurrou ao ouvido: . para compras e business.era o som ambiente de todos os vôos. Éramos o casal in love por excelência. Achei os ingleses com uma cara amarga. Na Indy. Acostumada aos hábitos da Indy. é um dos 107 CAMINHO DAS BORBOLETAS lugares de maior densidade erótica do planeta . a bordo de casquinhas tão frágeis quanto os carros de Fórmula 1. Sem meias palavras. os outros convidados pe rplexos. Aí a coisa ficava de fato feia. Imaginei que era o Prost . U m dia. somem nos camarotes dos patrocinadores.Você vai amar. acredito. depois do que se passou. chapelões e cabelos de mechas. eu me convença disso. Na Fórmula l. torcem. Chegamos e o maitre nos levou a uma mesa voltada para aquele mar e para aquel e horizonte de onde. amantes enfe itam o cenário com seus rostinhos bonitinhos e corpinhos apetitosos. Tentamos assistir ao Fantasma da ópera . em Mônaco. não. carinho. acesso a setores proibidos. Vi o chefão da McLaren. parou: . bem no centro. não há a menor dúvida. para assistirem pelos monitores. foi significativo . uma holandesa habituée dos pitlanes. Nada disso: o indivíduo atendia pelo nome de Nelson Piquet. antes das pr ovas. Hoje.Aqui.em casa: Digo sem ressentimento. Não p or acaso. no circuito da Fórmula 1. a Sandy. sempre ligadíssimo. Se quiserem um papel menos subalterno. Tenho. Sylvia. quand o as máquinas se calam. uns malucos portugueses. Em compensação. Só que pegamos Londres naqueles seus dias mais característicos: frio e chuvinh a miúda. levado pelas mãos de sua mãe. É inútil voltar a esse assunto. De repente. É. o figurino é jeans. a propósito. beijos roubados atrás dos boxes. uma bela lembrança gravada na memória. Mulheres. E os primeiros roncos dos motores espaventam as companheiras. no nosso avião. cortar um dia as asinhas da mulher de Micha el Andretti. Mas o silêncio de Piquet. a Fórmula 1. cansadas de fazer a bonequinha de luxo. não.paqueras e tietagens explícitas. naquele estilo faroeste: botas. nem comparecem aos autódromos. ela achou que poderia extravasar sua emoção perto da pista. É uma cidade adorável. Vão vestidas para a festa. uma rápida esticada em Londres.por mais que amigos seus tentem me convencer de que a melhor manifestação de dignidade dele seria a ausência. Braga. para não perde r a atmosfera de sonho e nobreza. porque do meu namorado eu tinha o que queria: amor. 106 ADRIANE GALISTEU Mulheres são figurantes. de uns 5 anos. o Ayrton. aqui entre nós. Algumas. mãos dadas. que tinha uma especial veneração pelo Ayrton .O indivíduo está aí. . entendo que houve uma conjunção favorável: meu prim eiro giro no exterior com ele seria o mais gostoso de todos.me deu uma dica e uma lustrada na vaidade: . Só não precisa tomar tanta Coca-Cola. Sabia o que comer e onde comer. como aconteceu l ogo depois. "me ajuda a separar minha vida profissional da minha vida pessoal". verão e comecinho de outono.que. o convite para acompanhá-lo no circuito intern acional. Mas uma transformação tinha acontecido na minha vida. não mude jamais. o que Angra era no Brasil. No Bruno Magli. quantas vezes eu não emprestei meu ombro. one more". o Algarve era na Europa.Quero você sempre assim como você é. e eu corri para festejar com a minha melhor e mais incondicional confidente. Sabia o que comprar e onde comprar.. era uma maravilha. De mais a mais.e. Senna. nada melhor para definir uma genuína amizade. um refo rcinho aqui e ali no orçamento 109 CAMINHO DAS BORBOLETAS doméstico da mamãe. com Adriane Galisteu. Nem um Ayrton Senna. Contas a pagar. mudei de turma. para ele chorar suas dúvidas. com a patota de Angra. no GP do Canadá. uma morenona imponente. com ele eu me esquecia de meus problemas.. Para nós. Nossa primeira viagem internacional incluiu uma vitó 108 ADRIANE GALisTEu ria. as vitórias esca ssearam.Foi um s onho! Olhando com os olhos de hoje. Léo e eu éramos confidentes . seria ser exatamente o que você é. Se eu tivesse que lhe pedir alguma coisa. não tinha a menor certeza de que realidade seria essa. coincidia com o período mais agradável de final de primavera.) Sentia-o completamente diferente do irmão. Ayrton falava e comia. Aos 21 anos.vacilei. E da Sonaly. era com o Leozinho Senna que eu ia jantar. da vel ha camaradagem de Santana e da Vila Maria. Da mesma forma. por mais que eu tivesse certeza de meu amor. Cintos e sapatos. Rápido e rasteiro. a negócio ou para correr. Resultado é que acabamos arrastando a re signada Betise até o McDonald's. um metro e oitenta de mulher que passou a acompanhá-lo em nossas jornadas de Angra. muita alegria e muito amor. Rápido e rasteiro. Definitivamente. Era hora de voltar à realidade . Programa gastronômico. Mas gostava dele. você sabe que nem sempre isso é possível. ali. por exemplo. dia 13 de junho. Era eu que fazia o supermercado. eu me esqueço dos problemas . para que ela pudesse escrever uma matéria com ele. com meu namorado. Senti que estava implícito. O gerente o reconheceu: "Mr.eu já podia chamá-lo assim.O que você quer dizer com isso? . falando sério. sob a estrita vigilância dos amigos dele. minha mãe: . Gosto ou não gosto da Luciana? (Luciana Sargologos. Mas o próprio Béco . era uma maravi lha.Por favor.recostava-se ele em mim. Mesmo quando o Béco viajava sozinho.Quando estou com você. Ofert a da casa. surgiram problemas na McLaren. tinha sido namorada dele por muitos anos. Ele agradeceu e esticou rapidinho para mim. agora. Minha carreira de modelo eu não tinha como abandonar. Reapresentei-me na Elite e voltei à ciranda dos testes. acho que você deveria estudar inglês. . sem medo de parecer abusadamente ín tima . o utra modelo da Elite. . dia 26 de maio. com uma ou outra alteração de calendário. Ja aprendi da vida que amizade é um produto muito mais raro do que parece ser. as férias escolares CAMINHO DAS BORBOLETAS . Para mim. a tensão cresceu e por mais que ele me pedisse. Porque depois as coisas se complicaram na pista. Comprar. Foi o avião tocar o chão em Cumbica. freqüentar tanto McDonald's e. Ao Léo.eguiria ingresso. Há dois anos e meio Ayrton fazia daquele cantinho ensolarado do sul de Portugal o seu mix de refúgio e escritório ao longo de toda a temporada européia . que ia ao r Santa Luzia fazer as compras do apartamento da Paraguai. me implorasse. feriado nacional. Lembro-me de que ele reclamava apenas de uma coisa: de tão próximo do Béco. Eu só sabia repartir com eles.Vocês estão malucas? Teve a pachorra de contar: 38 malas. a vontade súbita de fazer umas comprinhas em outras cidades da Europa . Conseguimos descobrir duas lojinhas antipatriótic as: uma de perfumes. Fui até a porta.como aconteceu em 1993. Desembarcamos no hotel e saímos em disparada. Bia e eu.brasileiras. o filho vitorioso. Send que. o que o Béco signi ficava para eles: o xodó. lambendo as vitrines. E só tínhamos mais um dia. o Béco e a família. gritando para mim "fujjal. Posou. ela simplesmente evaporou. aliviada. Namoradinha. mas não me dei ao trabalho de aprender aquela língua arrevezada. para uma foto que mostrass e toda aquela bagagem. emigrados para o Brasil durante a guerra .Mesdames. a sós. descabelada. Pude curtir meus primeiros momentos de verdad eira intimidade com a Zaza. minhas tias. Bia e Paulinha. Por exemplo. vocês sabem que dia é hoje? 14 de julho. Abriu nossos qua rtos e quase desmaiou: . o arrimo. a irmã mais velha de Ayrton. Béco foi nos encontrar lá. que até hoje tenho de compensar com quatro horas diárias de ginástica e não me . dentro da Harrods. Alexander e Agnes. quase a motivação de cada uma daquelas vidas. Tradução: "sopra. que às vésperas do acidente fatal em ímola a foto foi feita. a caseira. seria sempre uma am eaça à ordem natural da rotina familiar.Biiiiaaaaaa! CAMINHO DAS BORBOLETAS Dei um berro que toda a gigantesca loja de departamentos ouviu. O porteiro nos deteve: . extraí de meu avô dois ou três pala vrões horríveis. Mas o convívio em Mônaco. Devo com certeza a essas domingueiras húngaras na Lapa minha paixão por doces. piloto e piloto. todas. eu tinha um sonho pessoal: Hungria. Eu. Minha mãe. nunca ninguém se lembrara de fotografá-los juntos. uma namorada. naquelas semana s. sair às compras com ela e a Juraci. em julho. Nada. ou parte dela. Simpaticíssimo personagem. tão diferente de qualquer outra falada na Europa. sempre davam chance para que a família. apareceu com as meninas. Saímos as sim mesmo. apenas os dois. Viver essas coisas banais do cotidiano. outra de cristais. Nada. sopra". Meu desespero me obrigo u a uma última saída: . Pude sentir. fuió). um perigo. se a chegasse .a quem eu ainda tratava pelo cerimonioso "dona N eide". a mãe. Dentro da temporada de Fórmula 1. antes. saindo só nós duas. Nada. atrapalhada ao me ver queimar a língua numa daquelas sopas típicas e escaldantes. Bruno ficou com o avô na fazenda de Tatuí. já a caminho dos testes do GP da Alemanha. O jato do Béco estava quase sempre disponível. Tudo fechado. Isso eu vejo agora. Próxima escala: Paris. Pátria dos meus avós ADRIANE GALISTEU maternos. Perguntei por ela. O paciente Mahon ney conseguiu acomodá-las. Só de molecagem.mas que não passasse daí. Lembro-me também de minha avó. o Mahonney . coisas boas. todas falavam húngaro à mesa . desesperada. nas palavras trocadas à mesa ou à beira da piscina. Soube. Não pela cabeça naqueles dias.uma terr a de referências reais e mitológicas cujas histórias e cuja língua freqüentavam os almoços domingueiros em nossa casa. nos intervalos entre as provas e lá fomos nós. Viviane. para quatro mulheres. o eixo. à procura de um táxi. ainda bem. Calmamente. no avião. procurando. que fosse . Uma mulher a mais. mãe dele . treinando no seu kart. Estava tudo estranhamente calmo. no meu inglês estropiado. experimentava roupa num daqueles provadore s. a irmã e as crianças para uma temporada de aquisições em Londres. do qual sentirei falta. tinha feito tão bem que não nos cansávamos de planejar nov as viagens. Intimidade é isso: café da manhã juntas. fujja l" (soava como fuió. uma tarde. Inclusive ela. preparar na cozinha uma comidinha especial para o filho. nu ma sinistra quinta-feira de maio de 1994. sou um homem caseiro. Birgit e eu conseguimos achar um McDonald's ADRIANE GALISTEU em Budapeste. Birgit. batata frita e torta de maçã.implorava Ayrton. Quem estava em Budapeste era o Senna. uma panqueca de cereja. No entanto. . a trabalho. eu desabasse por terra. Conhecia pouco de Londres. deixou-me entregue aos cuidados de dois amigos extraordi nários. para o caso de ter de usá-las? . os dois. E a melhor testemunha é aquela foto nossa.aliás. se o Senna era o tipo do cara que odiava perder. embevecidos. o marido de Birgit. Christian e Birgit me mostraram Budapeste. Juntas. Depois. certa vez. lindíssima. as sementes de papoula . ele com seu sorriso lindo. Desdobrou-se. Compensei o McDonald's. que não conhecia nada do mundo: . amarela. véspera do GP: fomos todos jantar num restaurante típico. para seus confeitos. menos de um ano depois. por muitas.. juntinhos. Wolfgang Sauer. Mas. um palacinta (pronuncia-se pólotchintó). na noite de sábado.Mas nem muito obrigado você fala? .No fundo. Não é que ele passou CAMINHO DAS BORBOLETAS horas treinando.Por favor. no aeroporto de Budapeste.brincou. bem pequenininhos. ouvindo. Christian Schues e a mulher dele. As tais palavras. muitas vezes. Sua mão forte. Com Chicken McNuggets no cardápio.Não tenho a menor idéia. que seria uma decepção para minha mãe. evitou que. Budapeste foi uma temporada de alegria. deu ao meu paladar um sabor de saudade. ainda assim. Mas sabia de cada curva de Silverstone e Brands . o doce Béco.que minha mãe havia encomendado. diante de uma cova rasa do Cemitério do Morumbi. Christi an. chegou a me dizer. uma concepção tão generosa de hospitalidade que aceitou revirar a cidade dos pés à cabeça até que eu enc ontrasse. especialmente por minha mãe é que acabei desembarc ando em 12 de agosto de 1993. ao nosso amor. um dia isso passa". às margens do Danúbio.Nada. confesseilhe meu verdadeiro conhecimento de húngaro. Os dois levavam com eles os filhos Patrick e Oliver. tendo a meu lado um homem a quem todos se dirigiam com um afetuoso sorriso e pal avras incompreensíveis. agarrada à minha. às voltas com as dificuldades de seu carro e a força de seus rivais. numa pequena feira livre de rua.para passear a meu lado. .Se o Prost me aprontar uma. nadinha. À sobre mesa. eu tive o ensejo de extravasar meu l imitado vocabulário húngaro. . uma quinta-feira. no domingo. Foto de dois namorados. o Béco até que estava bem descontraído no jantar solene oferecido p elas autoridades do GP após a prova. conhecida do Béco. No Hotel Kempinski. comportando-se de forma a deixar claro que aquela viagem era uma home nagem a mim . na verdade. eu tasco o palavrão nele . em voz alta. filha do ex-presidente da Volkswagen b rasileira. mas. enquanto Senna sujava suas mãos de graxa em Hungaroring. uma magnífica construção ainda com cheiro de novo. o violino c igano à entrada de um restaurante. Éramos dois namorados. O casal tinha. em vários moment os. Ele era um viajante capaz de ganhar em milhagem do executivo de uma grande mult inacional. uma casinha simpática. cuja dona era uma velhinha. mãos dadas como dois namorados. me olhava com aquela paciência que sugere "meu Deus. que separa o pedaço Buda da parte Pe ste da capital. A McLaren do Ayrton quebrou.deixam tirar o olho da balança. e arredores. finalmente. Mas também quem haveria de resistir àquelas panquecas folheadas de maçã que aterrissavam à mesa após o gulash? Pelas minhas melhores lembranças familiares.mak . tive comigo. o que eles estão dizendo? . com alguma amargura. aquele. por minha avó. mas foi essa mesma Birgit quem me acudir ia no pior momento de minha infelicidade. Tive uma certa vergonha de confessar: . usado portanto. Sua rotina era chegar sempre quatro ou cinco dias antes da prova. Mas não pude deixar de rir da imagem de um tricampeão do mundo de automobilismo caindo nos braços da Minnie e do Pateta. nos testes. . aí. no inventário dos bens me ADRIANE GALISTEU deixado por ele. Esperava por mim um Uno Mille Electronic zero. Ayrton me convida para passar no escritório. Com binamos de ir. vendo que h avia um Ayrton Senna nas proximidades. Seu universo era circunscrito dentro das milhas onde máquinas voavam desafian do os limites da velocidade. .Levanta a cabeça. Mas. inteirinho. menina. que ganhei muito mais. Eu chorei . mesmo se o deixassem ali perto do Duomo. o Alfredo não estava. este ano de 1994. Ele despistou: . de volta da Hungria. Ele. a Bebel.Bela proposta . e buscar. Vi um Uno Mille prata. um elenco de nomes de concessionárias. bem banal: comprar um carro. .Desculpa. publicamente. em detalhes. planos para o futuro imediato. . Ayrton Senna. dá um tempi nho. Aproveite este mês para baixar a cabeça de vez em quando. igualzinho ao que eu queria comprar. Mas. amiga nova dessa fase pós-trauma. em suas cartas e bilhetes. Adriane.V que você ganhou dele ninguém mais vai ganhar: seu amor. ele me dava dois dias de prazo. mas bonitinho. prazo vencido. Voltei da Hungria para a casa de minha tia. você sabe que eu também? Que uma meninona de 20 anos que se amarrava em Coca-Cola e Big Mac tivesse uma fantasia juvenil. Um plano. sua própria superação.Puxa. Hockenheim. não veio ao mundo a passeio. Subi direto para a CAMINHO DAS BORBOLETAS sala dele.Que lugar você gostaria de conhecer agora? . 1991. ele foi o melhor. eu tinha. Você pode perder uma batalha mas pode ganhar a guerra". trabalho. de repente. ele me surpreendeu com um presente. Eu batia pé: está tudo em cima. tudo meio embar alhado. Dia 19.O Alfredo. a Minnie e o Pateta não terão a chance de conhecer o homem mais adorável do mundo. Às seis e m eia da tarde. na pista. Um dia. recortado de uma dessas revistas: "A vontade de independência será tão grande que vai se irritar com as pessoas que têm maior poder de decisão sobre sua vida.ironizei. Era capaz de se perder em Milão. ele era capaz de surpreender: . Coisa de macho: Ayrton achava que eu não tinha competência para saber se o carro estava mesmo no ponto. como se fosse um mecân ico iniciante e não uma estrela. Um montão d e coisas subjetivas. mesmo que seja para fazer valer sua vontade. enfim. desde pequenininho. Tinha ânsia de sair dali já no meu carro. mas gar anto que está bom de motor. Não podia dar tempo algum.Hatch. Só que. impalpáveis e adoráveis. Só então a gente fechava defi nitivamente o negócio.A Disneyworld. As coisas na minha vida ainda andava m desorganizadas: casa. que trabalha aqui comigo. mas como se fosse amiga desde criancinha. Infelizmente. Com um buquê de rosas no capô e o detalhe da chapa: DRI 7770 . era compreensível. dec epcionado: . só de passagem. mais velhinho.de felicidade. Descemos. aparece. Tinha dinheiro para pagar. Alfredo. Tenho anotado na minha agenda. Por isso. Tem gente que vai rir. prata. É o que me bastaria. Frankfurt. eu declaro aqui. Assim me tenta dar coragem. mas não deu certo. Olhe só o que dizia o meu horóscopo do mês de agosto. dia 17 de agosto de 1993. meter-se debaixo do carro. "calma.me perguntou ele. mer gulhar numa saraivada de reuniões. também andou vendo um carro. calma". Mas de CAMINHO DAS BORBOLETAS Monza tinha um mapa completíssimo em sua cabeça. Trouxe um outro. Fui à luta. o dono do Uno fez a gentileza: eu dava uma parte do preço. e Galvão Bueno e mul her. Uma dessas repórteres ainda quis persegui-lo na Marginal.. De uma das fotos. a Lúcia. eu a chamava . quatro fotos diferentes. . Enquanto isso. Surgiu uma campanha da Iódice. sabia que a Luiza só podia ser o amor que é.Luiza está louca pra conhecê-la.depois. Entrei como louca no carro e corri pa ra mostrar a minha mãe. .Vem cá que eu quero dar uma volta. uma griffe de jeans. do tipo de ficar conversando enquanto se faz em as unhas.Isso é um presente de agosto. Meu tchans com a Luiza foi imediato. depois de levar o Beco ao aeroporto. só para me provocar. e pisar como se estivesse na sua McLaren. vazia. esperava pelo casal Ayrton Senna Adriane Galisteu. . Éramos confidentes de copa e cozinha. na cama dele. no Mercedes dele. Na "Casa do Ayrton". Só que a escala em Portugal ia CAMINHO DAS BORBOLETAS me preencher uma saudável curiosidade. duas da manhã. . o de Monza. em desalentados DDI. fiz o que achei mais natural: ADRIANE GALIsTEu fui dormir na casa dos pais dele. Ele. Liguei também para a mãe dele: . dizendo: "Homens. a sobrinha mais velha. pergun tou meio brusco: .Bix. o vôo 702 da Varig.E a chave da lata de sardinha. no meu Fiat. Só de vez em quando tinha a tentação de entrar por aquela pista exclusi va para ônibus. Ayrton voltou do circuito de Spa-Francorchamps bufando com o seu quarto lugar. um dia. Mas até que. Era apenas uma pausa para o comercial. de lá. Dia 3 de setembro de 1993.Ele me contou . para Frankfurt e. deu certo. Mas. como a apelidara o Braga. Na verdade. eu me lembro: a mulher. nas curvas e retas dos curcuitos. Bia.disse a Zaza.Mas por que agosto? . acompanhei a Zaza ao shopping. reforçada pelas caronas que eu costumava pega r nos longos telefonemas trocados pelo Béco com seu paizão de adoção. A Bia . ficamos ele e eu. Só outdoors. ele não era Ayrton Senna no trânsito. com cara de tédio. eu vivia vendo. Era vrrummmmmmmm . naquela noite de terça-feira. até parei o carro: eu estava irreconhecível. Tanto que.respondi. sentindo o campeonato escorrer-lhe por entre os dedos. jantamos todos no apa rtamento do Pacaembu. Meu carro padecia nas mãos dele. É um presente de agosto. Ao primeiro outdoor que vi. não é nada. Zaza.Ganhei um carro novinho. na volta.era como uma irmã mais novinha. no sen tido de que respeitava os sinais e sabia onde dava para correr e onde definitiva mente não dava.. o Braguinha. No aeroporto. com a garantia do padrão Cláudio Elizabetsky. Passamos aqu ele fim de semana na fazenda de Tatuí e. mas alguém se esqueceu de que o nome dele era Ayrton Senna. Desembarcamos em Lisboa e seguimos para esse meu esperado encontro na Quinta da Penalva. Nosso convívio na Europa me dava a idéia de fazer parte da família.. 24 de agosto.Por isso mesmo: não tem data nenhuma. conhecendo-o como o conhecia. onde está? . a booker da Elite ainda saía à minha captura. Ele literalmente fugiu da imprensa. . escala estratégica e afetiva antes de mais um GP. garotinha . e eu. no caso eu. . Enchi o Béco de beijos. Acelerava fundo.sumia. Só faltava laçarote e papel celofane. para o GP da Bélg ica. me.estranhei. os homens discut . na Avenida 9 de Julho. uma sexta-feira. Ele tomou gosto em pilotá-lo na cidade. Fiquei sem palavras. De vez em quando.Lata de sardinha é a vó . eu não tenho saco". outra vez.dizia o Braga. onde mais uma vez nos instalamos. lá fomos nós . rota São Paulo-Lisboa.Não é Dia dos Namorados. . eu o encontraria. ainda traumatizada com a violência que tinha sofrido na quadra.Bom-dia! Sorria! Desenhei uma boca sorridente. Senna ". sem minha presença. sempre puxadas pelo tio Papagaio. ele se superou. Ayrton Senna. Convencê-lo de que. Mas o hotel estava em festa e. disse. que batia um bolão no tênis. sim .Loucos por você.assim como não nos acompan hara antes e assim como não tinha a menor intenção de nos acompanhar em qualquer outra corrida. hein?! Mas naquele dia. Involuntariamente. Olhem que eu conhecia o mau h umor do moço.encontro de fã com fã. CAMINHO DAS BORBOLETAS Ele se derreteu como um sorvete fora da geladeira: . num relaxante mergulho e numa hilariante sucessão de piadas. meio êxtase. pastor evangélico. fui ao banheiro e escrevi no espelho. à prova. Uma história posterior. com batom: . Ela e a mãe foram dar uma força ao Ayrton no motor home . Uma coisa de culto. a Zaza e a Viviane aderiram também totalmente à telinha. sei lá. Sabia o que ela estava fa lando. ele ficava mais bonito. a que a irmã submetia o Béco. Requisitou o roo m service. não se sentou um minuto sequer.de novo. embora evitasse participar das cerimônias de bênçãos. estava numa encruzilhada profissional. A mãe do Béco assistiu a toda a prova de pé 120 ADRIANE GALISTEU no auge de sua tensão. De que de quando em quando valia a pena comprar uma roupa diferente daquelas que ele recebia no automático. uma gracinha.iam coisas seriíssimas. Parecido com o que o pai do Lall i. pre sentes da Hugo Boss. Como ainda era verão e mesmo ali no alto da aldeia de São Pedro de Sintra o sol costuma dar o ar de sua graça. dia 26 de setembro. ele me dava uma bela idéia para um presente: um elefante d e pelúcia. Pela televisão é mais tranqüilo. Foi aquele GP da Alemanha de 1993. rindo. a seis quilômetros de sua quinta. como o desejo de Ayrton Senna. A torcida inesperada da Monica Selles. Um dia. já que o Ayrton. já noite. Não me perguntou nada . Do GP em Monza ficaram coisas para não se esquecer.ele finalmente quebrou o gelo. De que cabelo um pouco mais com pridinho lhe caía bem. lá de baixo gritavam: "Senna. Vi viane se segurou numa cadeira.simplesmente escolheu um jantar para nós dois. apesar de tudo. uma punhalada pela s costas. já declarado entre quatro paredes . as conversações podiam prossegu ir. meio oração. Lembro-me também da nuvem negra que o Ayrton saiu carregando sobre a cabeça. . .Mas eu perdi! Como são loucos esses italianos. ministrou na manhã do velório . isso aí. Frustração e nervosismo tão grandes para a família que. leva ntei-me pé ante pé quando ele já dormia. em agosto. eu também tinha meus palanques. de Ferrari. às vésperas de algumas provas. As duas semanas de intervalo entre o GP da Itália e o G P de Portugal. ao final de uma prova que abandonou. admirava o estilo desabu sado dela. nem ao Estoril. pode ter se consolidado n aquele momento contraditório de raiva e paixão. que podiam demorar vint e. Subiu direto para o quarto. cheia de dentes. .Fico nervosa demais. tão perto que dá para ouvir de lá os roncos dos motores. mas a Milão. Murmurava rezas sem parar. a tenista. a partir daí.Prometo que assim que sairmos da Itália eu deixo a tromba aqui no quarto. Luiza não nos acompanhou a Monza. Fechava os olhos e também orava. de repente. diga-se. por mais bonitas que fossem. O magnífico hotel às margens do la go Como. de deixar a McLaren. Respeitava a fé de ambas. Eu tinha assistido ao que se pode chamar de stress de corrida em Hockenhe im. que o Ayrton perdeu porque calculou mal o abastecimento de combustível. aliás. Ele adorou a brincadeira. o piloto. trinta minutos. aposentadoria. sua patrocinadora. Naquela noite. O que eu não suspeitava é de que havia mais coisas entre o céu e a terra do que poderi a ser solucionado com uma carinha risonha.Tá difícil de me agüentar? . Explicava: . significavam dias de agradável convivência com . Foi do autódromo ao hotel sem dizer uma única palavra. Assim como ele fazia campanh a junto a mim contra a Coca-Cola e o McDonald's. Canadá.os amigos de Sintra. ao chegar ao autódromo do Estoril. embora tivesse recebido um convit e de Roger Penske e pilotado. Estoril. o contrato já acertado do pilot o brasileiro com a Williams.que saía das pistas com as honras de um tetracampeonato. Ficar na McLaren. habitué das pistas e amigo de longa data do Ayrton. Seu timing lá estava esgotado.Ayrton fora. que saboreava no início a ilusão de que estaria no páreo. Primeiro. Parar por um ano. um protótipo em Phoenix. Percorria vários verbetes daque 123 CAMINHO DAS BORBOLETAS le que poderia ser um dicionário do mau humor: ranzinza. E o futuro? Benetton? Ferrari? (No início da temporada de 1994. Hockenheim. Ayrton. me recordou que.uma rotina religiosa que ele. foi quem me consolou. San Marino. e quase como conseqüência.Já foi muito pior. Acho que você está fazendo bem a ele. Arizona. mas sempre fiéis. Monz a. em seu silêncio enigmático.. pelos braços. parecia pratic ar por dever e não por prazer -. naquele 26 de setembro. que eu brincava com o Nuno: . didático: . às . sabiam que não dava mais. Aquela maleta escondia o resultado de duas negociações que iriam abalar a Fórmula 1. Marquinhos Magalhães Pinto. A temporada e uropéia chegava ao final. ansioso porque decisões importantes estavam sendo ruminadas na sua cabeça.Ataca de lá que eu ataco de cá. que fosse. Braga prometia também o tenista Cássio Motta. Spa-Francorchamps. Hungaroring. decepção tota l. Nuno Cobra apareceria.) Fór mula Indy? Ele odiava aqueles circuitos ovais. Mas. cara amarrada. Ele. Olho para trás e entendo que não podia ser diferente: ele tinha um problemaço pela frente. a mãe dele. Nuno Cobra. Lembro-me bem: foram seis dias e cinco noites dificílimas. que cuidava do patro cínio do Banco Nacional. Batata: o rosto dele desanuviava e não era raro a gente encerrar a brincadeira rolando pelo gramado ou jogando-se na piscina (até a Zaza. Ayrton entregava-se a exercícios como o de ficar pendurado três minutos seguidos. Confessou ao Braga que era uma besteira. iria aparecer. 124 ADRIANE GAL1sTEu Imaginem: tricampeão do mundo encostado no INPS da Fórmula 1. num dia glorioso de verão). do Algarve e os camaradas brasileiros 122 ADRIANE GALISTEU desgarrados por lá. ele não podia. ele chegava a ficar horas sem dizer a alguém que estivesse por perto nada que não fosse um implicante sim ou não. com aquele sexto sentido de quem sentiu a tempestade e queria ajudar. dar um temp o? Na verdade. Mas a s idéias estavam distantes. aquela fortaleza. no galho de uma árvore na casa do Algarve. o Ayrton teve coragem de empurrar para dentro d'água. Ron Dennis. gemia e tremia. Aí era a tal história. Apertava o passo nas suas corridas. Imaginem o clima em casa depois da prova em Portugal . já que ele se acostumara a andar sempre na frente. para dar um suporte de corpo e alma. A temporada 1993 foi uma frustração para mim e para meu namorado. rabugento. Se era assim. às vezes mais . que conviveu com ele dez anos e apar eceu no Algarve em setembro de 1993. com a devida licença de Dennis. Senna trazia a tiracolo sua 007. de tensões quase permanen tes que concediam. naquele momento. ele me disse que as duas escuderias lhe dariam trabalho e a história confirmou suas previsões. Segundo. objetivo do desemprego. correu o risco concreto. Tanto ele quanto o patrão. foi vendo o campeonato escapar-lhe das mãos. Magny-Cours. E era vê-lo voltar de sua corrida diária de uma hora e m eia. a despedida de Alain Prost . O jornalista português Francisco Santos.. Cinco horas e quarenta minutos. fora um pequeno incidente gástrico do noivo.Espera por mim. Ele vestia o pijama e. aliás. Marquei no relógio um desses telefonemas DDI. vocês me entendem. Ele estava tão entretido em suas próprias encucações que não perce 125 CAMINHO DAS BORBOLETAS bia. pressentia eu. só os dois. e com o Fábio Machado. foi daquelas coisas para não se esquecer nunca mais. Aquele sorriso me bastava. . com fúria inexplicável: .pedia eu. Eu tin ha a paciência do mundo para esperar que o Béco triunfasse sobre o Senna. o durante. tesão. me serve de travesseiro.desculpem o súbito e indiscreto entusiasmo dessa revelação.vezes.. sem dizer nada. Agora. . Nem perguntava nada .. coisas que só a maturidade conhece. não entendem? 126 ADRIANE GAL1sTEu Então. iria varar a madrugada.. diante daquele paraís o que era a casa do Algarve..sozinha ali com ele. Frank. merecíamos uma lua-de-mel..esta.. que. . nem pensar.. Quando a família estava no Algarve. e o tempo . Nóssos adversários principais eram o fax. que sempre cobrava conversas de uma hora. Mas. mas quase sempre com o Julian Jakobi. Frank.Então me dá um único sorriso . perguntam: "Ben hê.foi que eu pude lhe emprestar muito da minha jovialidade molecona e ele me ensinou virtudes como o respeito à privacidade. como gentil penitência. tudo isso aí é uma teoria. não que ria botar lenha na fogueira. . comigo. que eu preciso de você. em que que você tá pensando?" O amor que prevalece é aquele em que há uma troca desinteressada e espontânea.ele em seus doces momentos de Béco. mas éramo s um casal de qualidade e de quantidade.Deve ser o francês. sem mais delongas. a sobrinha mais velha. por estranho que pareça. toques.a dúvida. o telefone. a espera. o senhor Milton. um único e solitário aliado. não merecíamos? Não conheço caso de mulher nenhuma que te nha dormido tanto. começava a distri buir as cartas para um jogo de tranca que. O francês. de passagem. fica po r perto. literalmente inesquecível. ele e eu em dupla. Íamos dormir com o canto dos primeiros galos. Dormir. era ele mesmo . eu tentava desanuviar o clima . às vezes com seu pai. Nunca fui daquelas mulheres impertinentes que.Mas. que não parava de vomitar uma papelada que ele lia e relia com a expressão carregada. costumávamos jogar.. convidativa. a indefinição o exas peravam mais até do que as derrotas que lhe surrupiavam o tetracampeonáto. Ele ria da criançona que eu não conseguia disfarçar. Adorávamos trapa cear. contra a Zaza e a Bia. antes de uma lua-de-mel. no escritório de São Paulo. então. ao ver o marido amuado. Ele estava tenso e o que eu ouvia. acordado subitamente do ronco dos motores para os sons da vida que desfilava. Se houve. ele casmurro.roubava pra valer. a dedicação incondicional e o silêncio providencial. também. era: . Veja bem.eu não estou brincando com isso . à sua frente. mas não passaria de uma linda explicação se também não r lasse entre nós roçar de pele. Do lugar à conta do hotel . músculos rijos. Mas tínhamos um aliado nessa briga contra o profissional que não tirava o uniforme. um ou outro intervalo de relax. Tentava beliscar uma saladinha. Ele não comia. segredo numa relação que durou catorze mes es e duraria a eternidade . amor e sexo . Bom. que cuidava dos interesses profissionais dele na Inglaterra.Não liga. pêlos. mas batia com o garfo na mesa. não . beijos. duas horas.pedia-me ele. Tipo mudança mesmo. a maré virou? Lua-de-mel em dose dupla. Min ha mãe foi decidida: "Muito menina. ele me poupava de formalíssimos jantar es de negócio. tiramos nossas férias só de amor entre o GP do Japão. trilhávamos caminhos arborizados quase selvagens. na McLaren. vice-campeão do mundo. no embalo da lua-de-mel. Ficaria mais alguns dias. em Tóquio. um convite. horário local. e ponto final".Para culminar. porque. E. os motores Honda foram seus parceiros nas inúmeras veze s em que subiu ao pódio . Eu o recebi com um brinquedo-papagaio. quando nos aventurávamos por ilhas desconhecidas da baía de Angra. Não vai. em 1988. a última corrida da temporada de 1993. aquela história da Disneyworld. Sem se esquecer de que a admiração semp re foi recíproca. desses que repetem o que você diz. 24. no sábado. uma coisa lembrava a outra. era pouco. Ainda assim.Ayrton me contou que foi um dos que choraram. quem sabe. de propósito. 73 pontos. último GP em que Ayrton vestiu as cores vermelha e branca da McLaren. gostava de marcar presença nos eventos sociais da Fórmula 1. ele já parecia estar de novo de bem com a vida. a 1992. Ao se antecipar a mim. Soichiro Honda. amigos no país. via Los Angeles. antes e d epois. Próxima parada. porém. Presente do Dia das Crianças. Ele não comparava cenários. em outubro. com qualquer paisagem do Japão. De 1987. 22 de ou tubro. Ainda em Cumbica. a palavra sozinha porque o Japão já tinha 127 CAMINHO DAS BORBOLETAS ameaçado entrar na minha vida aos 14 anos. Ayrton gostava de comparar. Estávamos tão próximos que fui levando gradativamente minhas coisas. Béco gostava de dizer: . Só um exemplo: a Honda. amigos. Osamu Goto.Bonito. fazenda. É que beleza chama beleza. agora nas asas da Varig. Saí de São Paulo sozinha. absolutamente nada. Quando Akimasa Yasuoka anunciou ao final da temporada de 1992 que a Honda não queria mais gastar milhões de dólares na Fórmula 1 . talvez apenas um ou outro lugar bem ao sul do arquipélago japonês. ele voava dentro de seu McLaren. ou quase tudo.. Depois de minha viagem. Japão.tinha uma enorm e legião de adeptos.sem falar de seus três campeonatos mundiais. ganhara do d ifícil Senna um total respeito por sua competência. por compromissos de negócios e para saborear a repercussão da vitória. Botei aí. mal tinha embarcado. Angra é um dos poucos santuários da mata atlântica. festas. né? Pois é. inspirador do vitorioso projeto Honda F 1. Sua carreira no automobilismo sempre fora salpicada de griffes japones as e pontuada por profissionais japoneses. até então. apesar de um probleminha com um iniciante que logo vou contar. Em outubro. dera errado para o Ayrton. consegui entend er por quê. um dia. me lembra o Japão. Enquanto eu voava. para ele. Cinco vitórias. e o GP da Austrália. Muitas vezes. Assim era o Japão para ele. ele foi de novo o pr imeiro do pódio. 1990 e 1991. Continuou em 1993 recebendo toneladas de cartas de fãs japoneses . da casa de minha tia para o apartament o da Rua Paraguai. 128 ADRIANE GALISTEU Um botânico diria que não tem nada a ver. aquelas coisas. Para meu namorado. em Suzuka. Escrevia uma coluna no Tokyo Chunic hi Sports. junto com ta ntos mecânicos japoneses. São Paulo. torcedores. Pois não é que. em Adelaide. na Lotus.. Fim de temporada. a aeromoça me ofereceu uma taça de champanhe . atravessávamos ine sperados riachos. o boss da compan hia. Tudo. Desembarquei em Tóquio na manhã de segunda. o jornal esportivo de maior tiragem. Modelo. Vitória em Suzuka. Propôs até que eu tirasse meu visto para os Estados Unidos. Levei-o e o busquei de uma rápida viagem de negóc ios a Miami. mas eu ainda cheguei a tempo de recolher o calor humano que o Japão lhe dedicava. A definitiva salvaguarda estava assegurada por um sorriso familiar e u m cabelinho espetado que me aguardava do lado de fora. Senna. Falou em japonês . Williams. a rigor. 130 ADRIANE GALISTEU Abri a porta e meu coração veio à garganta. só bateu no meu rosto quando. "tive compromissos. Quando saíram. fechei os olhos e despertei com o anúnc io de que. estava sendo despertad a por ele: .Besteira? . A realidade.tão profundamente que uma comissária veio me despertar. Ele correu para mim. devo ter aberto os olhos e trocado o travesseiro de lado uma meia dúzia de vezes. Agora.. O manager do hotel chamou dois valeis para me conduzirem à suíte. Essa coisa de adolescente. o guarda queria ver tudo. Bem diante da Disneylândia de Tóquio. nov o desmaio. o fotógrafo particul ar do Ayrton. não po de.eu. por aí. esperei apenas que a aeronave se estabilizasse na sua altura de cruzeiro. um guarda da alfândega resolveu pegar no meu pé. pedi uma comidinha pra nós dois. Senna. nada. Era maravilhoso. encontraria no máximo um bilhetinho carinhoso dele. Animado.. Percebi que todos estavam sorridentes. o guarda tinha o pretexto: uma caixa de bombons de cereja. inclinei a poltrona para trás. Novo embarque. impregn ado de imagens. A bem da verdade. quando percebi. comecei a ouvir. com várias perguntas em espanhol: . Ou talvez eu apenas estivesse muit o bem com a vida. Acreditem: eu tinha apagado de novo. Eu já estava nervosa. Era manhã de segunda-feira quando o Norio me deixou no hotel Hilton Tokyo Bay. enorme. fiz uma besteira. Cumprimentei o Norio co m um abraço e com a meia dúzia de palavras em inglês que ele e eu podíamos trocar. no. o que me levou a crer que. com a vitória. Criada a confusão: pode. um entorpecimento de drogado. que eu vira no vôo. Em qualquer lugar do mundo. em 28 horas de viagem. ele me surpreendeu: . em vez de encontrar o Ayrton. dava para ver o castelo . me apertou num abraço e me deu um beijo escandaloso. Um brasileiro veio me ajudar da forma mais objetiva possível.. Mas deu para sacar que Ayrton tinha vencido. já na confusão do aeroporto d e Narita. recordo-me apenas de umas pessoas que subiram à suíte para levar uns presentes para o Ayrton. Já não sabia se era dia ou se era noite. aqueles avisos de afivelar os cintos. gigantesca e convidativa. cheias de creminhos. Ah. "Spe ak English?" "No. será sempre uma besteira discutir com um irlandês l ouco. que o Ayrton me deu e que depois foi roubada em Lisboa.É. enorme. em poucas horas. estaríamos pousando em nossa escala em Los Angeles. senti o acalanto daquela pista sem trepidações e dormi mais uma horinha. Williams. já entorpecida. das quais eu entendia apenas "Senna" ou "Brasil". Entrei no táxi. da Kopenhagen." Abriu um livro. mas foi um sono só. O implicante me devolveu logo a caixa de bombons e saiu correndo para comenta r com os outros coisas incompreensíveis. ele especialmente. Ficamos conversando na cama. discuti com um irlandês louco.Ei.Você tem drogas? Tem roupas para vender? Pediu para abrir minha bolsa .Namorada do Ayrton Senna. Desci a contragosto. que Béco adorava. . sem perder de vista aquele chapeuzinho do cantor Fagner. Norio. em português mesmo: .Pó.escolhi um copo d'água -.aquela Louis Vuitton. Dri. até que. custa 129 CAMINHO DAS BORBOLETAS ram a aparecer. me espere". fora me esperar. Minhas ma las. sacudia uns jornais japoneses que para mim eram grego. . Encostei numa daquelas cadeiras de aeroporto e voltei a ferrar no sono . Mas foi a refeição mais deliciosa de que me lembro em toda a minha vida . mas pensei. alg uma outra dimensão. entre eles. A bem da verdade. comprado no Brasil. Era apenas um dockside. fiquei horrorizada. um moleque. Estavam todos muito formais. preparando-nos para um jantar formal e important e que teríamos aquela noite. ao telefone. Todo s. comer com pauzinhos. a Fórmula 1 tem a esperteza de deixar para o final da tempora da dois grandes prêmios no Oriente e. inclusive o Ayrton. Dormimos.Nunca vi. enorme. Inútil. Até lá. vai ficar furioso em se ver nesses trajes. naqu ele momento.capturado vivo. que me venham agora só as boas imagens de uma inesquecível lua-de-me l.Um novato. do próprio hotel.respondi. Ayrton ainda tinha um encontro de negócios. curvando-se e recurvando-se em gentilezas. vai ser mais fácil para você".alguns mistérios do universo. Rosa. outra esfera. mas me deliciei com um camarão feito na chapa . trouxeram de presente uma câmera fotográfica. t odos homens. Mas vá lá: achei um absurdo.Não. a única pessoa que mexe nos meus cabelos. é um milagre. Comentou d o meu sono: .como foi 133 . de voltar. tenha durado ap enas um dia. quem é? . é nissei e várias vezes tentou me doutrinar em favor do sushi e do sashimi e me ensinar a comer com pauzinhos. com ternura. comigo mes ma: .quando acordei.Esse. meu fuso horário é você . duas semanas que acabam virando uma espécie de deliciosas férias antecipadas para aqueles pobres-diabos que passam o. linda. Ele definitivamen te não estava a fim de voltar a falar da corrida. Acabei me saindo razoavelmente com os hashi. Nossos quatro anfitriões. perfumado pelos aromas de jardim japonês. posso confessar. dormimos . Quem sou eu para conhecer . vi a paisagem. Abri as janelas. Não tive coragem de exp erimentar peixe cru. naquele restaurante maravilhoso.ou seja.ano inteiro se ralando no asfalto das pistas. Você não tem fuso horário? 131 ADRIANE GALISTEU .Tenho ódio de terno e gravata . Eu me preocupei porque sabia que teria de enfrentar o desafio dos hashi . na Side Walk. com força: . Pedi. Eu pensava: "Coitadinhos dos bichinhos". Houve uma época em que cheguei a pensar em trabalhar profissionalmente em Tóquio. Pena que o meu Japão. Por favor. o campeonato costuma já estar mais ou menos decidido . Sem cabeça. a primeira coisa que Béco fez foi arrancar a gravata. com certeza.Me conta. ele já estava de pé. ela teve a gentileza de me dar uma agenda cheia de endereços. mas ao ar livre. inclusive de u m irmão dela: "Fica hospedada lá. fora aquelas intermináveis horas de sono. excitada: . em meio a um cenário de sutilezas japonesas e lembranças b onitas. Quando nos despedimos e subimos para nossa última noite japonesa. o melhor momento para protestar contra um pequeno detalhe do triste dia do enterro de meu Béco. Redobrei minha promessa de voltar ali. de terno escuro e gravata.e mesmo para acreditar . minha cabeleireira de São Paulo.Se daqui do esquife ele tiver que se apresentar em algum outro lugar.. vai! Ele desconversou: . ali mesmo num aquário. um dia.Lindo esse seu sapato. com acess o entre pontezinhas charmosas e tortuosos caminhos de pedra. imaginei as cenas típicas de cidades que eu só tinha visto em cartões-postais e me fiz a promessa solene. do qual ele voltou com uma lata de biscoitos de morango. Foi ótimo porque pudemos nos entre gar aos assuntos do amor. Passamos o resto do dia juntos. não sabe o que faz. com estampa do Mickey e a inscrição "Di sneyworld de Tóquio". Não é esse.disse.disparada 132 ADRIANE GALISTEU na frente até dos meus maníacos Big Macs. quando so ube que o vestiram com terno e gravata. na Indonésia . mudou de r ota. Ayrton preferia Bali. é para valer. num aviãozinho até Bora-Bora. Iríamos com o Christian Fittipaldi e a Mariana. móveis de vime. do outro lado do mundo. e achou que não precisava de visto -.a fúria. jornalistas esperavam por ele para falar do assunto. misturando raiva e arrependimento. Irritado porque o Eddie Irvine. chão de madeira. o fato é que deu uma cris e de espirros nele. vermelho. contrariando o acordo de cavalheiros de que quem está muito atrás deve deixar passar os primeiros. Aquele "discuti com um irlandês louco" ao qual ele tinha se referido. mas à última hora eles seguiram a trilha mais próxima para Bali. Mas estávamos felizes: . Dali. Béco odeia esse entra-e-sai de aroportos e era o que esperava por nós. na verdade uma palafita fincada no mar. Um sonho. À chegada. depois da ultrapassag em de Senna..mas não há burocracia que não se resolva imediatamente à simples menção do nome Serena.enquanto éramos festivamente recepcionados com aqueles típicos colares de flores. Quando acordamos no dia seguinte. um enorme quadrado de vidro mostrando que você dormia sobre a água do mar. Tóquio-Wellington. um barco até o hotel que tínhamos reservado e que ficava numa ilhota isolada. Bota sacrifício nisso.. Pediu desculpas para retirar o colar. a surpresa de encontrar. na Nova Zelândia. muito depois. É uma loucura.. de pura alergia. com a arriscada manobra que o próprio Irvine fez. depois de engolir algumas provocações de péssimo gosto do próprio idiota. "Você não é um piloto. mais música. A conselho de Luiza e Braga e em homenagem a mim. Não sei se por causa dos jornalistas. O Senna .ele mostrou o do principado de Mônaco.ADRIANE GALISTEU o caso do de 1993. um recanto delicioso no Taiti. e uma orquestra de cítaras e atabaques -. por alguns dias. e o 135 CAMINHO DAS BORBOLETAS deslumbramento de um quarto tipo bangalô falsamente rústico. relaxar e desfrutar. só para nos recepcionar e levar ao hotel. lindíssi ma. um gerente brasileiro. como se o soco fosse um valioso troféu para ele. Antes. na verdade foi bem além daquilo. mulheres a caráter. bem no meio do quarto. que eventualmente usava. Enfim. o direto de direita e as lágrimas posteriores. rapidamente. calminho. à nossa chegada . o Bernard. é escolher no mapa um daqueles pe dacinhos do paraíso sobre a terra. Entramos no clima. varanda e.repetia o pateta da Jor dan. Quando digo homenagem a mim. lhe fechava a porta para ultrapassagem. Wellin gton-Papetee. com a vitória do Alain Prost. Eu conseguia imaginar a cena direitinho. da J ordan. de retomar a dianteira. do colar de flores ou do problem inha com o passaporte dele . só que desta vez de conchas. . Mais do que isso.Nós dois sozinhos. Sarongues. o nosso conhecido esquentadinho só esperou o fin al da prova para ir ao boxe da Jordan e encher a cara do irlandês de pancada. Sei até que houve vezes em que não foi desacompanhado.. ele acrescentou uma única novidade. Aí.Ele bateu em mim. homens e mulheres descalços e uma delas. a que mostrava como era verdadeiro o que ele dizia de Irvine. disse Senna. O problema é que a FIA resolveu punir "o agressor" e até no Taiti.point escolhido pelos pilotos e p or alguns descolados do jet set internacional. namorada dele. Milhas e milhas de vôo. O Senna me agrediu. no Taiti. de um problema. em Suzuka. é um 134 ADRIANE GALIsTEu idiota". Mais um colar. A saída dele de Tóquio indicava também que se refugiaria. com seus vestidos estampados e ibiscos nos cabelos. Quando Ayrton me contou em detalhes. Bingo: Luiza e Braga acertaram de novo. Bora-Bora. ele já tinha virado e revirado a programação do h . tão familiar ela era para mim . pediu desculpas por desconhecer o tema Irvine-FIA e foi se explicar sobre o passaporte . A pedido dele. que será? Conseguimos parar numa pedra. mas novas emoções teriam de haver. seria o máximo.otel. Encomendamos uma montanha de vídeos. Ele me tranqüilizou: era uma 136 ADRIANE GALISTEU arraia gigante.. azul-turquesa. a água já não era tão crist alina. quadra de tênis.Meu Deus. Vocês têm idéia do tamanho do oceano Pacífico? Bom. um forte chamariz a mais: Ayrton Senna. um barulho esquisito. Resumindo: estávamos em alto-mar. engancha-ali da barreira de coral. Talvez estivéssemos até hoje. de repente. que. é claro. .o hotel tinha muitas atrações para os hóspedes. e. estávamos em casa. butiques de roupas carésimas .Vamos? . e alguma mão invisível e m isteriosa nos fez voltar direitinho para nosso hotel. com uma garoinha chata. estranha. Só falar em dar de comer a tubarões já era uma descarga de adrenalina t otal. Praia. Com o jet-ski. piscina. botei Thelma & Louise. restaurante típico com deliciosos pratos de frutos do mar e outro. da máquina fotográfica ganha no Japão. e nos metemos num barco. Foi eu acordar e ele já estava preparado: . A mesma mão invisível e mis teriosa nos poupou de outro probleminha: a cinco metros do píer. mas. como aquela mancha negra. de impacto . escutamos.Adorando. em andrajos. mas senti que o Ayrton estava num outro clima. agarrados na corda. explorando minuciosamente as brechas. de tom avermelhado. Era o hit d o hotel.queixou-se ele. Rodamos. dava rabadas na água. Aquela mania dele de acelerar. Bécõ. fui eu: . Vamos? Sumimos naquela imensidão dos mares do sul. náufragos. excitadíssima. cabeludos. A Volta do Capitão G ancho).Não estou muito bem . mas com a cabeça mergulhada na água. vimos Hook (no Brasil.Se a gente passar. amarraram o barco numa pedra. . Digo capricho porque já tinha visto e agora queria ver a reação dele. com uma corda que ficava boiando na superfície da água. Como estava ali a passeio e não a negócios. era do tamanho do meu pân ico. começou a perseguir a arraia. Cada um de nós ganhou um snorkel e máscara e a idéia era que ficássemos ali. Fomos indo devagar. fãzoca do Dustin Hoffman. Volta e meia. como jamais eu podia imaginar existir. Que mulher. Simplesmente a gente estava no meio de uma barr eira de coral. . a gente volta. com aqueles calções da linha fio-dental. enorme.me perguntou. Senti-o revirar demais na cama: . Três nativos. Não tinha como tirar o jet-ski dali. turmalina.e ele parou . que queima legal. O programa do dia seguinte era imperdível: dar comida aos tubarões. rodamos.Você está gostando? . arisco. naqueles dias. Peixinhos e estrelas-do-mar. Estacionamos numa ilha de areia bra nquíssima..o que. ele deixava escapar: . não tínhamos cruzado com vival ma.Mulherzinha safada. abaixo de nós.. elegeu de cara uma. acabou a gasolina do jet-ski. me puxou pelo braço e nos exilamos no nosso delicioso quarto. Dava para ver o fundo do mar. Felizmente. nervosa. o céu começava a fechar. Ele achou melhor ir em frente: .Vamos tentar passar a barreira de coral. Em alto-mar.. De volta a o jet-ski. rodamos. A emoção ia começar.azul-claro.Tem aí um jet-ski pra nós. para mim. Por capricho -meu. que de repente escureceu todo o mar. mas bichinho inofensivo. b ronze mesmo. Armei-me de um óleo de coco especial. sem antes a repetição daquela experiência raspa-aqui. com a água que mudava de tom . vivendo em alguma ilhota da Polinésia .Mas e depois? Pra voltar? . 137 CAMINHO DAS BORBOLETAS E eu me fazendo de desentendida. a julgar pela quan tidade de flashes e pelos pedidos de autógrafo. vôlei. Quem acordou primeiro. de fast food. com outros hóspedes. assustado: . quase todos japoneses. O jet-ski seguia em alguma direção. . Vômitos. antes de sair. E comprou o quê? Chegou perto de mim com um cinto de couro. em que seu pescoço fica sempre inclinado para o mesmo lado.de cores. além dos remédios. ele qu e já tinha aquela cor de polinésio do Gauguin. Enquanto esperávamos pela conexão. . de mais de um metro de diâmetro. mas senti que ele fraque java.Cadê o bichão? Cadê o bichão? Logo. "Go stou?" "Gostei.Aperta mais! Até tive algumas aulas com o Joseph. Uma hora e meia daquilo que parecia ser uma pura tortura. corridas de dois em dois min utos ao banheiro. onde o circo da Fórmul a 1 ia fazer as despedidas da temporada de 1993. e tome uma Coca-Cola. Crise mesmo foi a que teve. preocupada . Ele tev e uma recaída: . Mas perguntava a toda hora: . mas o nativo nos confessou se u truque: agarrando só uma das barbatanas laterais. Chamei o Bernard. O fato é que. colocouo de vez no prumo. ontem. Chegavam a afagar aquelas feras.Deve ter sido o sol e mais alguma coisa que comi. Mas era um craque. Percebi que tinha voltado a ser ele na escala na Nova Zelândia.Se soubesse que elas são assim. Monstros enormes. tipos e tamanhos diferentes. O Ayrton tinha comprado uma máquina para fotos submarinas e se esbaldava. especialment e de torcicolo . nos dão um pouco de carne e o que acontece é que os peixes vêm comer. mas senti que jamais chegaria lá. Mansinhas. mas pés descalços. e argumento definitivo para jamais se imaginar naqueles circuitos ovais da Indy. Ele veio no figurino loca l: roupa branca. Uma bela massagem do Joseph.Coca-Cola? 139 CAb11NHO DAS BORBOLETAS Bem. na nossa mão. Ele ainda muito fraco. nos dois dias seguintes. elas ficavam quase na vertical. Foram os nativos acenarem com uns nacões de carne crua . que chamou o médico. como se curtissem aquele carinho. ele f ica seguro e você consegue até dirigi-lo para onde quiser. ao chegar. dizia ele. entrou numa loja do free shop. inofensivas. Eu bem que." Mandou embrulhar uma dúzia. montou nele e saiu navegando. que alguns espectros enormes . visivelmente. tentei aliviar o Ayrton de uma ou outra dor. Junta um m onte de peixes . certas vezes. Mais à frente. segurando na Gordinha? Subiu todo mundo às pressas no barco. O Ayrton riu. o médico ministrou. paramos para dar de comer às arraias. Os nativos não demonstravam medo. Mas ele pedia: . eu não teria assustado aquela.. mas.Os nativos mergulham e jogam um determinado tipo de líquido na água.eu. um conselho: -. prendendo-o tanto pela barbatana do lado como pela de cima. Ele me contrariou na hora: . Ayrton tentou amenizar: . em Adelaide. um dos nativos surrupiou meu precioso óleo e se lambuzou. O tubarão não estava feliz. despontaram na água. Um d eles pegou um bichão pela barbatana. E onde Ayrton ia dar adeus a seus proveitosos e emocionantes seis anos de McLaren. o bichão apareceu. Aí. escuros. tomamos o caminho para a Austrália. O Ayrton passava a mão no peito delas.seqüela de tantos anos de tensão e corrida. como aquelas picanhas malpassadas de restaurante. Coisa do tipo festa do peão de boiadeiro num mar de tubarões. Mas dava para ver os tubarões arrancando das mãos dos nativos os nacos de carne pingan 138 ADRIANE GALISTEU do sangue. cuidadosa. como se fosse um golfinho. Intuição feminina: disse a ele para tomar CocaCola. tomamos um chá de cama . Só de palhaçada.o tempo todo cuidand o dele. ele tem como virar a boca e morder. Quem é que disse que os hóspedes ficaram lá. o Joseph. no duplo papel d e enfermeira e de mulher carinhosa. com o macacão. em segred o. primeiro no camp eonato.Como não vai? Está maluco? . chefe d a equipe. Homenagem de craque para craque. tranqüilo. Nunca tinha visto uma cena de pódio de p erto. mas. Ele bem que ia atacar os copinhos. Por exemplo. o carro? 140 ADRIANE GALISTEU . ajeita aqui. O Jô Ramirez.brinquei.Não vou.. me levantou nos braços. a McLaren con seguiu chegar em primeiro. Voltei para dar um beijo de boa sorte no Béco e me vi. quan do o Joseph me flagrou: . mas você vai me ajudar. Acordei cedo. Ao passarmos diante do boxe da Williams.Eu não vou. do regimental pipi dos pilotos. as fotos. Béco viu aquele rio de repórteres de uma janelinha do motor home. Arranquei-os da mão dele. Deu a mão ao Prost. quantos você encontrar. esta corrida era muito importante para mim e para minha equipe foi a primeira coisa que ele disse ao Ayrton. ele encheu três copinhos. Ele era o pole-position. Abraçou-o e levantou a mão do tetracampeão do mundo. de repente.Vamos? Eu estava no boxe da McLaren quando ele recebeu a bandeirada de chegada. na frente. Duas horas de prisão no cockpit. fazendo a linha daqueles adesivos de carro. Ele. Chamei a Daniela e me armei de coragem: . . Prost era o campeão do mundo. Ficamos na fila do gargarejo. Saí sorrateira. . o champan he . meio ridícula. Por ansiedade mas também por cautela. tipo "não corra. Desceu.Obrigado. papai". pois ele nos reconheceu. de volta ao boxe. nem sempre se sabe das coisas mais banais. lindo. ainda passei para pegar as fotos reveladas de nossa viagem ao Taiti. Mas. é que todos aqueles dias tinham s ido tão magníficos que não queria vê-lo correr muitos riscos. desistiu: . Depois. Sei lá o que foi. ficava a dúvida: seria aquela a última corrida de Ayrton Senna? Nos bastidores da F 1. na quinta-feira. para a imprensa. ao lado da Daniela. chorava. Eu mesma me senti mais nervosa do que nunca. ensopado de Moët & Chandon. como Ayrton o chamava. "o Espanhol". saem todos correndo para se aliviar. é melhor se preve nir.com um barbecue oferecido pela McLaren. Ele chegou ao pódio cansado mas feliz. Ayrton pediu para parar o carro. cerveja . Já todo vestido.Beer? . Foi a primeira e a última vez que pude sentir isso de tão perto. lá embaixo. Um enxame. Mas. cumprimentou o Frank Willi . quando faltam ali uns dez minutos para a largada. ajeita ali. aliás.E aí. para dar o destino conveniente. segundo na corrida. ali mesmo perto da pista. excepcionalme nte. As despedidas haviam começado três dias antes . As sisti da cabine da TV Globo. Faltavam ainda algumas CAMINHO DAS BORBOLETAS voltas. entre as escuderias. sobrou para nós.. na soma dos pontos do campeonato. saí eu gritando. mas cheguei a tempo de romper a barreira dos repórteres e entrar no boxe. . Copinhos de plástico.que. Jô Ramirez.É. namorada do Rubinho Bar richello. os ol hares todos se convergiam para a McLaren. E o puxou para o lado dele.Está bom. O seu futuro na Williams já estava acertado. É emocion ante perceber no rosto daquela equipe cansada o sinal de um trabalho recompensad o. na Austrália.É chover no molhado dizer que. naquele último dia de temporada. Pega uns copi nhos. os hinos. . derrap agens. Aquela coisa competitiva dele. Pediu que o Ayrton subisse ao palco. emocionado. todos nós chorávamos. uma fera especial: Alain Prost. Na verdade. Choradeira geral e irrestrita. em prol de uma fundação de crianças carentes. a pé.É difícil para mim. encontrou Prost e o cumprimentou. bandeiras do Brasil. Uma prova de kart. o Ramirez fez um discurso comovido. para um passeio de lancha no lago e uma bateria de fotos que eu guardo com amor.Estou de mudança. enregelada pelo frio do inverno inglês. A caminho do Brasil.ams.e a musiquinha-tema da Glob o no fundo. ultrapassagens. eu o sentia dividido ao meio: . Ayrton agradeceu. Jô Ramirez. decididamente. 144 . . vou ter um enfarte . para não ficar parecendo um comercial. uma colagem de fotos pequenas com os melhores mom entos 142 ADRIANE GALISTBU dele na McLaren. vitórias. ele me avisou que ainda tinha um compromisso beneficen te a cumprir. sustos. Entregou-lhe um quadro enorme.Depois da corrida. Assim como eu continuava com minha mania de McDonald's . Sentada displicentemente sobre um pneu esquecido por ali. Béco se queixou de dores nas costas: . Mas aquele era.. sempre o Es panhol. Ayrton avisou: . mas tive de pedir emprestado um protetor de ouvidos especial. Para todos os que estão aqu i.. Presente do Waltinho. Demos a nós dois dias de descanso e m Sydney.Acho que tô ficando velho. deixando o mecânico enlo uquecido. Enquanto seguíamos para o hotel. em Bercy. pódio. teríamos uma grata surpresa em Angra: um protetor de costas par a kartistas.Minha vida é de aventuras e lutas .) Claro que as duas baterias da corrida viraram um duelo Senna versus Prost. o jantar será por minha conta. Muito difícil. Domingo. É um barato a barulheira do kart. Mexeu e remexeu em tudo. (Dias depois. Para mudar o humor. E já aquela aflição de encher as malas com presentes para o Natal. deu-lhe um último presente: um volante da McLaren. Adivinha que tipo de restaurante ele procurou. Quando parecia terminado. Talvez sirva de relativo consolo: 1993 foi o ano em que ele me ganhou. do cineasta e nosso amigão Waltinho Moreira Salles .ex-corredor e um dos raros torcedores canarinhos ali presente. em que todos comeram e beberam até de madrugada. para me levar? Um italiano.. O GP da Austrália foi no dia 7 de novembro. é claro. bandeiradas. tudo .Chega. De novo. Sabem contra quem? Além das feras da Fórmula 1 e de outras modalidades profissionais ou semiprofissionais.ele implorava. Ayrton comportou-se como quando tinha 14 anos e se m elecava com a graxa de seu kart. num canto. um videolaser com cenas da carreira dele. nem preciso falar. No final da brincadeira. um dia.e em Adelaide cons egui arrastá-lo até um -. até cansar. na França início de dezembro. flagrantes. a intimidade dos boxes. ele segurando aquele volante como se fos se um fetiche de criança.. o ano do francês. . no restaurante italian o La Trattorìa. Íamos juntos. Na festa. Mas meu co ração fica na McLaren. na hora do almoço? 143 CAMINHO DAS BORBOLETAS Bem.disse ele. ele era do mundo da massa. conversaram por dois minutos. Adivinha para onde eu escapei. Ayrton estava nas mãos do "francês". para umas boas-vindas calorosas. aí sim. De mais a mais. pronto para cumprir o primeiro e mais elementar dos ritos de iniciação de um novo piloto numa nova escuderia. recepcionava.se bem que de alto significado psicológico. sapatilha . parecia certo. os laboratórios onde engenheiro s simulavam exercícios de aerodinâmica e desempenho em seus mapas de computação gráfica. ou em outras palavras. no papel. capacete.ressentia ele . A vítima da perfídia vocês sabem quem é. sem nada que pudesse botar em moviment o o Williams por meio metro. o Ayrton meio o bcecado pôde se dar ao direito de uma piadinha típica de Béco. aparentemente . lindíssima. sempre em silênc io. Estava lá uma filha dele. os aerofólios. no início de dezembro de 1993. o cockpit estava todo riscado. Por ironia do destino. até o próprio Ayrton chegou a acredit ar na versão venenosa. ia mudar de camisa. ainda que extra-oficiais. supostamente. fomos até o escritório do chefão. por assim dizer. Cockpit. puxando-me pe la mão. com exceção de seu arquirrival brasileiro. em sua cadeira de rodas.e mais uma marca de giz. Meticuloso que só ele. Eu tremia de frio. em pe ssoa. por uma cláusula contratual qualquer ou então por sua influência junto aos compatriotas da Renault. sabia se r cordial como ninguém. só aquela parte externa. . só confirmava com a cabeça. sussurrando em português ao meu ouvido: . porém. Quando a sessão acabou. Ferr ari. os engenheiro s tratariam de construir o motor. e vinha um projetista assinalar com g izo lugar onde a carcaça tinha de ser modificada. o fato é que o francês aceitaria a i déia de entregar sua máquina voadora a não importa que piloto. tchau Williams.Está me apertando aqui . Mas Alain Prost estava de saída da Williams e das pistas . a algumas centenas de milhas de Londres. a suspensão. Depois de seis anos de McLaren. do mais bem guardado segre do da Fórmula 1. vestiu macacão. na fábrica da 145 CAMINHO DAS BORBOLETAS Williams. No seu jeitão observador e reservado. ergométrico . os convites que recebera (Benetton.brincou. Era só um teste. O cenário era um galpão enorme que servia de oficina para a escuderia Williams/Renault.Isso aqui não está confortável . Williams. Por um momento. é que. Tive a melhor impressão do novo patrão. as más-línguas faziam esparramar o veneno de que a transferência perigava.reclamava ele. com o banco mas sem motor. Ayrton Senna ia trocar de veículo. Ao final. aquele que ele jamais escondera ser o seu filho dileto nas pistas. Um silencio so mas atento Frank Williams. Frank. a carcaça. não sabem? 146 ADRIANE GALISTEU Fizemos um tour pela nova casa: o galpão gigantesco.ADRIANE GALISTEU eu fui a única testemunha.embora a imprensa já pressentisse a espetacular notícia e farejasse a novidade. Irrecusável a vontade de compará-lo com Ron Dennis. A partir do protótipo. que fosse. por quarenta minutos siberianos. Saber se Senna se sentia à vontade lá dentro. luva. a própria McLaren) e comentava por alto o drama que vivia com a escolha provável .de trocar o certo da McLaren pelo desconhecido da Williams. Nada assinado. todos os componentes da aerodinâmica. mas em doses de contagotas.Acho que estão acostumados com um cara mais baixinho . o dono da casa. A realidade. Ele me con fidenciava. ao lado de não mais do que três ou quatro projetistas e engenheiros do mais alto escalão e da mais absoluta confiança. . Se ele decidisse continuar a correr. em tocaia permanente. cercado de todo o sigilo possível. a quem me apresentaram. os pré-requi sitos com a paciência de um profissional do detalhe. e ele cumpriu.e se meteu dentro do cockpit do seu futuro carro como se já fosse acelerar para a largada. o chefe da McLaren. dizendo sim ao que poderia parecer mero capricho de um menino mimado. enquanto Frank Williams. com aquela s . lá estava Ayrton. Um genfeman à inglesa. Meu conhecimento sobre automobilismo ia pouco além da minha capacidade de tro car as marchas de meu carro. o projetista da McLaren a quem ele admira va profundamente e costumava chamar de gênio. podia acontecer de Ayrton querer pegar Giorgio a tapas. em 1994.como ninguém. Ayrton insistiu e. A McLaren deu três títulos mundiais a Ayrton Senna. estrela jamais. quase nunca errava. Ayrton reconhecia que a vitória era uma estrada de mão dupla. três vezes. ressaltava o estilo Senna. a duas voltas do final. ou vice-versa. Nas poucas pravas de que participou em 1994. era um homem chamado Ayrton Senna. Era demais para minha cabeça. certa vez.Vou mandar flores para a Adriane.ua ciclotimia. porém. Senna teimou que iria entrar na pista com menos gasolina do que sugeria Ascanell i. Ayrton tinha chorado com a co movida despedida que o staff da McLaren preparou para ele. engenheiros e seu piloto número 1. Ayrton qu ase pulando no pescoço do Giorgio Ascanelli. Reco nheceu. saíam ambos dali aos beijos e abraços. Quem fazia a diferença. ao seu craque de parceria. Isso eu pude senti r de perto . sem quê nem por quê. uma vez ter 148 ADRIANE GALISTEU minado o circuito. Ayrton e Ron tiveram muito tempo juntos para descobrirem uma forma de convivência entre eles. Campeão. até 1993. que a admiração e o respeito eram recíprocos: . certo dia. Poucas semanas antes da welcome visit à Williams. certa vez. não conseguia entender. Campeão do mundo. No calor da prova.disse-me ele. correndo na frente. Lamentou muito que não fosse possível . coisa de pneus. ele impunha o conhecimento de anos e anos de mãos metidas na gr axa e de dedos calejados pelas trepidações dos volantes. porém. ao me contar isso. E o talento tinha uma conseqüência: respeito. A Betise ria. mas. ou com o plácido Frank 147 CAMINHO DAS BORBOLETAS Williams. Não vai. dando toda ênfase à palavra chefe e suas implicações sobre toda a equipe. Vou. por aí: . Posso testemunhar. assisti a muitas cenas como esta. com humildade: ponto para o engenheiro. e o outro dizendo "não. que Ron c ontinuasse a sorrir em ocasiões em que o carro do Béco abandonava uma ou outra prova. Testemunhei mais um daqueles episódios de comédia napolitana. Ayrton Senna deu três títulos mun diais à McLaren. Um documentário exibido pela televisão italiana. o combustível acabou.e não havia Cristo que fizesse Ayrton mudar de idéia. Depois que ela apareceu na vida dele. seu temperamento irritadiço alternando-se. no boxe "inimigo". sim. a propósito do que poderia parecer uma besteirin ha qualquer. às vésperas da tragédia de Ímola. duas. No GP da Alemanha. Devia tanto a Ascanelli que queria porque queria levar para a Williams o homem que construiu com ele o carro vencedor da McLaren. que o vi meia dúzia de vezes. sua postura imprevisível.Frank é um verdadeiro chefe de equipe . por pouco mais de um ano. em meio a palavrões em italiano que faziam corar até a Cicciolina. Impossível desvincular uma coisa da outra. Com o temperamental Ron Dennis. Preciso contar a vocês uma f ofoca de bastidores: minha amiga Betise.Façam como ele quer . Ele batia pé firme. assim como me surpreendi com o teor da adrenalina que circulava pelas artérias de protagonistas e coadjuvantes do grande show. A diferença tinha um nome: talento. Quantas vezes ele não implicou com a textura dos pneus? Como um gênio. ouviu dele: . logo após o GP da Austrál . Ia à loucura com os designers em debates do tipo "isso aqui tem de ser r eto". Pois bem. a conv ersa com nosso gênio está bem mais fácil. sempre foi levar seu abraço. ou dos testes. nos bastidores dos GPs. Vi. uma. conversando com Giorgio. mostrando uma reunião de Frank. ele se metia debaix o do carro para discutir com o menos graduado mecânico a posição correta da porca. com súbitas gargalhadas.decretou o velho Frank. em Hock enheim. Eu. por exemplo. ondulado" . a expectativa da criançada. no inverno horroroso da Inglaterra. para mim. sobravam intimidade s do tipo dormir na mesma cama na casa da mãe e do pai dele. enfim.ia . no íntimo. mamãe. Agora. que morava ao lado. como eu já contei. noras e de inaugurar o casarão novo. tipo da mulher determinada. Mas a gente não cultivava o ritual da ceia.o último da temporada de 1993. adeus à fria Londres. O avião embicou para o sul. todo restaurado. as nossas pescarias. que ele até gostava de me mostrar um pouquinho. recorrendo a velhas receit as de rabanadas e pães húngaros rabiscadas em cadernos antiquíssimos . era diferente. do Becão. ainda tentava levantar nosso astral. vivíamos sob o mesmo teto n o apartamento da Rua Paraguai. para lhe fazer uns afagos nos pés e mergulhar nas marés do amor do Big Coke.Sei lá. Do primeiro encontro secreto AyrtonWilliams. saía mos para jantar invariavelmente juntos. o Natal se aproximava e Angra estava à espera. Desde que meu pai morreu. solta ao vento. para uma longa temporada em que eu tinha planos de arrombar o zíper do macacão do piloto Senna.e nada de árvore enfeitada. O carro está virando o fio. sobrinhos. de almoços deli ciosos e cheios de falatório e de tardes iluminadas como aquela em que um fotógrafo italiano. porém. compartilhávamos os mesmos amigos. era como se a festa não existisse. Natal. Agnes. ele se ligava i nteiramente no novo desafio. um certo recolhimento para cicatrizar a nossa gran de ferida na alma que era a ausência prematura de papai. Arvore de Natal. numa situação inesperada. é um convite à tristeza. uma fortaleza. num ano do qual não me lembro.naquela preguiça dos compridos cafés da manhã. Quatro ou cinco dias antes. Achei esse carro meio esquisito: mais fino e mais baixo. Minha avó mater na. os presentes ficando esparramados por aqui e por ali . seria com ele. toda a família se deslocaria para a fazenda de Tatuí.e nossa casa nunca mais foi a mesma. Agora. arrancar-lhe a carranca do cenho franzido e testa enrugad a. Béco e eu voltamos da Europa. presentes que se acumulavam ao pe do pinheiro. sua última vitória nas pistas. de repente . Cada um de nós buscava. reiterou o convite. no Natal. Sentia. pes soalmente. os passeios a cava lo por aquele paraíso. Meu Natal. foi uma frase meio banal. Era um jantar comum. aí já em 1994. genros.Sinto que cheguei aqui com dois anos de atraso. conhecido do Ayrton. Ele faleceu em outubro. 149 CAMINHO DAS BORBOLETAS No primeiro teste público.com a devida licença da ciumenta Quinda. Tradução: aquela história do superpiloto com a supermáquina não seria bem assim como es tavam falando. bem que pre parou um peru recheado com farofa e ameixas. Mas. o sol matinal do Rio veio nos receber. ele repetiria um sentimento ruim: . e a festa teria o duplo sentido de celebrar a ceia com filhos. portanto.e. do meu garotão de praia . naquele dia de má memória. . a torcida pelo sobrinho Bruno. de lá. Zaza. no Pacaembu. éramos dois namo rados na plena acepção da palavra .se não havia aliança de noivado. em 1989. que sempre foi mais desanimada que vovó. quem quisesse se servir que se servisse 150 CAMINHO DAS BORBOLETAS . que ele me disse tão logo tomamos o caminho de Londres e. po rém. as competições de kart na pista particular construída segundo o traçado de quem começara sua carreira ali. a mais nítida impressão que ficou na minha cabeça. filho da Viviane e promessa de campeão . para a temporada tropical de férias e fim de ano no B rasil: . tenho de admitir. Dri. conseguiu derr ubar um bicho. Me empresta um pouquinho de seu sono. mas a impressão que me ficou. Corri para a j anela e assisti a uma cena que faria a delícia daquelas câmeras indiscretas de programas como o do Faustão .fez nosso ensaio amoroso que correu o mundo. Sei lá: dá de presen te. o piloto mais carismático e mais circunspecto do mundo perseguia um bando de pavões alvoroçados que.Vou matar esses desgraçados! . resgatei um pouco da alegria da data do nascimento de Cristo. Eu me sentia absolutamente em família. q ue eu faria de verdade a troca. no café da manhã do dia seguinte.elas. Ele tinha o sono leve. sim. voltan do para a cama.Me conta sua fórmula. o que eles . seria mais corre to dizer . pressentindo a arremetida. O casarão tinha cheiro de novo. o surpreendeu naquela inútil e frustrante batalha. cada vez mais nervoso. mas os bichos espaventados só produziam ainda maior berreiro. Ninguém é idiota de imaginar.que. com a prima zia do lugar de honra ao lado do príncipe da casa. fechar os olhos e em dois segundos já estar embalado pelos anjinhos. perse 152 CAMINHO DAS BORBOLETAS guindo-as. às gargalhadas. mas que não . O senhor Milton me dava a impressão de um homem seco. tinham transferido seu footing e seus papos noturnos pa ra debaixo de nossa janela. Nosso quarto tinha espaço suficiente para resguardar a intimidade recíproca tanto quanto para atulhar os armários' de creminhos. especialmente a mais famosa delas. ele implorou ao seu Milton. dá um jeito nesses pavões. porém. vendo tudo da janela. e olha que a instabilidade das noites mal dormidas dele me preocupava tanto. Agora. Em seguida. armou-se de uma vassoura. manda embora.Se pudesse. era também. que um homem cujo trabalho é um risco pior do que o de um trapezista e que trafega pela vida a mais de 300 quilômetros por hora seria do tipo de recostar na cama. em relação a antigas namorada s de Ayrton. Ligou o motor e partiu para cima delas. é de que o QI das citadas aves não é dos mais privilegiados. que se refugiara numa árvore. muito discreto.Pai. Ele. precisava de descanso. . levíssimo. às vezes impenetrável. Foi tê-lo. mas fui despertada de madrugada por uma algazarra monumental e pela ausência dele. arrem essandolhes seus chinelos. Resumo rápido: de pijama. se a zoologia me confirma is so. Como s empre. todo domingo. Não sei. véspera de Natal: . Nem ADRIANE GALISTEU mesmo àquelas eventuais alfinetadas que cheguei a ouvir. eu trocava com você . Elas ficavam rodeando a piscina e Ayrton. em outro lugar por mim desconhecido.dizia eu. loções e lavandas. e muitas vezes me olhava com o olhar suplicante como o daqueles penitentes que vão a Fátima ou a Aparecida do Norte: . entulho das últimas obras e um quarto feito sob m edida para nós. Ayrton os atacava. quem sabe. De um golpe. Iludia-me coma idéia de que. u m bem-vindo hóspede nosso. trataram de bater em retirada. de fato. Os outros.queriam era me agradar. Podre de sono. . eu quis atribuir alguma intenção malévola. na cama. no fundo. Botando fogo pelas narinas. não estranhei cama ou ambiente. aparentemente (meu sono profundo não me deixou ouvir nada).prometeu. sinceramente. de uma certa maneira. Quando o dia clareou. a meu lado. de moto. divertia-se. brasileira que sou. uma Quantum. Tudo quer dizer: estava com o Ayrton em Angra. Mas. Zaza animadíssima com o jantar.se deixava convencer com muita facilidade. você não prefere passar a meia-noite com sua mãe? Meu coração balançava entre estar ali. que sobrou para contar a históri a. diga-se. as pistas ou competind o nas quadras. A tristeza que me invade no Natal explode em pura euforia n a virada do ano e. e estar em São Paulo. No dia 26 de janeiro. vovó descansou para sempre. O que reforça minha tristeza de Nat al. um mês e dois dias depois. Vizinha de parede. mas apta a expressar grandes sentimentos com os olhos. jogador de squash. Pediu para eu ligar tão logo chegasse. Pedi um tempo para pensar. se não fosse por sua beleza. Fiquei com peninha dos pavões. De repente. Vou passar o próximo com a cabeça enfiada num travesseiro. ainda man 154 CAMINHO DAS BORBOLETAS dou umas lembrancinhas para minha família. 153 ADRIANE GALISTEU Bruno corria de kart e já tinha alguns títulos no seu currículo. não fiz despacho em encruzilh ada e jamais sobrecarreguei Iemanjá. o Lalli (Flávio é o primeiro nome do marido dela) e os filhos foram. foram todos despachados para outra freguesia. Hoje eu sou capaz de imaginar que. que. eu não teria dúvidas em apostar que daqui a alguns anos Bruno Senna estará percorrendo.e me confidenciou. eu tinha tudo o que comemorar . mas o Béco teve a sutil percepção de que a nuvem negra voltava a se formar em cima da minha cabeça: . Ayrton me acompanhou. Acho que devo ir. a mãe das águas. faço um desejo de coração e adoro aquela hora dos beijos. Nunca fui a terreiro de babalaô. mas. 250 cilindradas. Sentia-me. os pavões teriam ficado do lado de fora da arca do bom Noé. salvo um casal. Corri para o quarto de minha avó. oscilando entre a chuva e o céu 155 ADRIANE GALISTEU estrelado.Vou sim. por causa das crianças. não me importava. Viviane. mas. de tão assustad os. . "Quero ver tudo preto no b ranco". O resto era acessório. digamos. mais do que em qualquer outro lugar. sempre soube muito de minha vida e de me us amores . Foi assim meu Natal de 1993. em ca sa. era ele agora quem tentava manter a tradição dinástica da família.Dri. com seu nome poderoso. de 1993 para 1994. Encontrei-a inerte. seria mais cedo. Ficava num galpão uma motinha normal. viamse refletidos no reservatório de gasolina e. ao lado do meu amado. nos seus 80 anos de idade. Vivia me cobrando casamento. Eu a amava intensamente. gosto de usar branco no réveillon. Aquele agito todo na casa. dia 24. incapaz de diz er palavras com os lábios. Assim como tinha também . e. em especial. Troquei de roupa. depo sitando todas as esperanças no neto Bruno. a meia voz. com muitos pedidos de fim de ano. até o c arro. não conheço meus orixás. especialmente depois que o Ayrt on descobriu mais uma deles. de uma genti leza que só vendo. junto ao leito de minha avó. Até o senhor Milton se deixou convencer. Assim como foi ele quem fez de Ayrton um automobilista. Aos 12 anos. na cabeceira de minha vó. me deu um estalo: . naqueles dias por lá . no leito. se for o avô a decidir que ele vai ser piloto ou. Zaza me emprestou seu carro. abraços e espoucar de fogos. Até mesmo o tempo. passavam a atacar. preocupado. deposit o uma rosa no mar. Perdi em 1994 duas pessoas que amo muito.que foram poucos. Resultado: as bicadas furaram o reservatório. Não me arrependo.certas dúvidas se sua vocação era de fato aquela. O s bichos entravam lá. Quem sou eu para dizer que o pedido não se cumpriu? 156 CAMINHO DAS BORBOLETAS Ainda não consigo acreditar no que aconteceu. que me perseguem ao redor. Ayrton sempre foi delicado. famoso. Como o doutor Roberto repetisse pelo menos mais umas cinco vezes a mesma pergunt a ao Béco. ele continuará perpetuamente a meu lado. já não é mais. Júnior. a solidão aperta e algumas páginas da Bíblia atenuam minha am argura. iates. 6 anos no máximo. Esportista. muitos outros. com uma filhinha que devia ter seus 5. eu carreguei no branco : minissaia.Tanto beijo que eu casava com ela.Nunca tentei de verdade. Tive um problema no ouvido. muito saudável aos seus 89 anos de idade. uma espécie de open house para os que tinham condução própria .É um desperdício deixá-la em casa assim. das duas. uma: ou era de fato um desafio. tão sem nexo. Lembrei-me de um casal amigo dele que nos visitou em casa.. blusa tipo rede de pescador. estava repetindo a mesma pergunta. àquelas dez e tanto da noite. Pedia que meu amor por ele não morresse. e tudo perde o sentido. os convites se entrecruzavam. depois que me viu arrumada. mil. Gordinho e a mulher. as lanchas circulavam entre aquelas ilhas como as pessoas circulam entre as mesas dos bares da moda. o amor por ele não morrerá. por distração mesmo. milhares de beijos no pescoço. Queimada do sol dos dias anteriores. mil. O doutor Roberto em questão tem o sobrenome Marinho. me deixou bonita. Por via das dúvidas. com boas histórias para contar. em que a Lua quase dispensa os candelabros e os vagalumes competem em agilidade com a rapidez dos garçons. uma festa permanente sobre as águas e à beira dos píers. . Talvez uma curi osidade saudável de quem. e a beijoqu eira agora era uma meninona de 20 anos. Agarrei-me no pescoço dele.. O Ayrton sugeri u que fôssemos à festa do Alexandre (a gente o chamava de Xande Campineiro). Seja como for. no ato. agora. Meia-noite. uma adorável mulher ch amada Lily e um inegável prestígio dentro e além da baía de Angra. não me sint o bem muito tempo debaixo d'água.Você sabe mergulhar? Bem. ela cobriu-lhe o pescoço de beijos. O verão de 157 ADRIANE GALISTEU Angra era assim. O Clube dos Anugos do Béco: Criminoso. muitos meses atrás. que ele continuasse sempre a meu lado. meia. eu e ele. Ainda desconcertado. Olho as fotos dele. Béco comentou tão logo eles partiram: . quase uma inco nformidade dele ao ver um jovem tão rijo de músculo e tão esbelto de postura não se maravilhar com um esporte que o põe em contato com os grandes mistérios e maravilhas do mar. tendo cometido o erro. O contraste. quando a noite cai. declinando suas outras prefe rências esportivas. Na hora de se despedir do seu ídolo. sem pretensão. Béco foi generoso: . Gisela. com sua namorada. Luiza e o Brag a. Magali. Tudo tão repentino. doutor Roberto. Angra era um social só: muita gente se conhecia.leia-se . . lanchas. barcos -. e naquela noite mais uma vez fomos. naquela noite. Mas. Alfredo.a menininha." Uma rosa branca ao mar e um pedido em segre do. Ayrton era um convidado f reqüente.. tênis. sem me do de repetir "eu te amo. milhares . Seja como for. naquele horári o da Cinderela.O Leonardo. Ele era o anfitrião de um daqueles jantares tardios da alta temporada. Eu me curvo ao destino da rosa branca arremessada ao mar de Angra. . Os amigos da velha-guarda e de sempre: Israel Klabin. ou então era o doutor Roberto que. eu te amo. convite é que não poderia ser. tão horroroso.. não se arriscava a pilotar um veículo a 300 quilômetros por hora mas era conhecido nas redo ndezas por se meter no mar até 15 pés de profundidade. Segredo. mas foi a presença de Sylvia e Paulo Maluf que nos fez trocar um olhar de cúmplice interrogação. enquanto ele dava vazão a sua inesgotável energi a. irresistível. eu me esquecia da vida. junto ao Ayrton. trocamos de roupa em velocidade recorde e embarcamos em disparada. Da praia. mas a fisionomia dos convivas sugeria um néctar dos deuses. é um amigo adorável. A Qu inda. Quando chegamos em casa. um suco. duas pessoas que nos tratam como se fôssemos filhos delas. fazendo manobras radicais. Eu corri para ele. incontrolável . um susto. O jantar foi superior. o 159 ADRIANE GALISTEU que fosse. De repente. Não provei os 158 CAMINHO DAS BORBOLETAS vinhos. um rodopio forçado e várias piruetas no ar. nau sem rumo. porém. Mais ou menos. enquanto se recostava na areia. do dia em que os beijos ardentes que nós tínhamos só ensaiado sobre a areia prosseguiriam no sacolejo das ondas. nós dois sozinhos. tenho a impressão de ter ouvido alguém fuçando alguma coisa na geladeira. porém Ayrton era heavy metal em matéria de comida. Perdemos. braços entrelaça dos. porém. unhas cravadas. quando ainda ouvi o doutor Roberto tocar.gritava. den tro da lancha. Havia um pequeno grupo de notáveis. cansados mas homenageados. ai . no assunto do mergulho submarino. Chegamos varados de fome. Lancha. ski. no entanto. a presença do prefeit o de São Paulo era a quase garantia de que a conversa ia escorrer por horas e horas. Brotou um amor selvagem. Despedimo-nos às pressas. Mandou buscar de helicóptero. saudosos e enlevados. uma curva mais fechada. era o seguinte: do utor Paulo. Recordo-me. ao mesmo tempo. O mundo de Ayrton Senna era a casa de Ayrton Senna. com exposições náuticas e a ilha de Caras. o que eu dizia a ele. E como ia ficar nosso condoído estômago? A bisque de homard demorou. Cauteloso. Era um daqueles seus dias de speedy Béco . deu o alarme. naquele mês de janeiro de 1994. sem botar um único sanduichinho na boca. por uma derradeira vez. em São Paulo . voltou para o píer com o tórax encurvado e uma expressão de muita dor no rosto: . em direção à casa de dona Lily do doutor Roberto. Corre-c orre para lhe trazer água. enquanto era puxado pelo je t-ski.taí. Lembro-me também daquela urgência de peças de roupas arrancadas. no Joanna II. ele se divertia no slalom. sempre em busca de emoção e velocidade. Dos beijos e dos sacolejos nasceu a ânsia do amor. estava uma delícia. sei lá. em êxtase. o almoço da Maria. saltando sobre as ondas. mas o que ele queria era sol e água fresca. para nós. leme abandonado. no aconchego daquele verão a mil. eu digo com todo o orgulho de mulher amada. Não é exagero meu: foi uma semana inteira de ais e quase total inatividade.de nos atrasarmos numa cena de amor numa praia quase deserta.Ai. propositalmente ex agerada quando percebemos que um par de senhores idosos nos olhavam. um Ayrton que ninguém experimentou. ao meu lado. Socorrido. qual é que não era? Sempre no mar. cochilando sobre minha canga. Explorávamos ilhas distantes e enros cávamos em praias desertas.pensando bem. e o que ele dizia a mim. O impacto na água fora tão forte que lhe faltava ar. assim como dona Sylvia. desse modo. Angra andava a mil. Um dia. com um colete salva-vidas. Havia mariscos em prof usão. uma única v ez antes de Angra.com tudo de bom que isso poderia trazer para o astro Senna. Nuno brincava comigo. Eu tentava animá-lo: . A rigor. mesmo os mais fortões. para que o passado ficasse definitivamente arquivado com o passado e o presente pudesse ser plenamente vivido como presente. Béco. O que aconteceu foi que. e o desfecho muito rápido. ginásticas específicas para as costas e os ombros. conseguia acompanhá-lo. Não contamos vantagem nem fizemos tabu do passado. mesmo sabendo do seu con hecido medo de se machucar. . uma notícia que os jornais divulgavam (senti que ele pretendia me tranqüilizar): aqu ela história de uma suposta filha dele com a modelo Marcella Prado. uma história de amor que não me pertence. jamais quis perfurar aquela carcaça de silêncio e não perguntava nada. naquele seu vocabulário de sim ou não. no píer da Petrobrás . choques frios e quentes. aqui. Nunca mais se viram . Naquelas noites aconchegantes de Angra. . Eu. a Elaine. já se impregnara na su a cabeça. Ele também me perguntara de meus namorados e eu tinha visto fotos de outras n amoradas dele na casa da Luiza e do Braga.me confirmou. diminuiu o ritmo. exceto com as corridas matinais.tudo o que soube do garoto Ayrton me foi contado por sua mãe.E aí. da sensação de que o mesmo teria acontecido com ela. Mas Béco me falou dela com carinho. menina a quem a mãe botou o ADRIANE GALISTEU expressivo nome de Vitória. Sorte dele é que ninguém. exercícios abdominais. em Sintra . . de mãos dadas com a Viviane.comentou Maria.Já estou achando um pouco demais .. Aquilo que eu poderia chamar de nosso réveillon se estendeu gloriosamente até 17 de janeiro. está melhor? 160 CAMINHO DAS BORBOLETAS Senti que o susto tinha tido uma função terapêutica. Por feliz coincidência. ele corria 20 quilômetros naquela pista improvisada.Mas não há hipótese de a filha ser minha.tipo do prérequisito. ele comentou comigo. A temporada de Fórmula 1. que ainda estava de férias.daí a surpresa quando ela passou. Instalou-a no Clube Med.me disse. .algumas duradouras. meio frustrante. pessoa físic a. imaginei eu. Se for uma inconfidência indevida. ali pertinho.Esse aí é um grande mulherengo. diante do túmulo do Sena. Parou com tudo.Tem um carrão aí a minha frente. eu me desculpo. em que o mar vinha praticamente bei jar os nossos pés e os murmúrios dos bichos se calavam. outra s quase sempre passageiras. ele me falou da Xuxa. Nos bons tempos. Mas. espera ndo por mim. três anos atrás. num tal clima de paixão e confidências mútuas que meu reservado namorado se permitiu a liberdade de comentar alguns de seus antigos romances . .Preciso estar preparado . ainda assim. marcadas no relógio. pleno janeiro. sua fisioterapeuta. naq uele paraíso tropical em que a gente se esbaldava. do tchans que ela chegou a provocar nele. a abertura seria no Brasil . . que só se abriria no final de março. com a desvantagem posterior de que a notíc ia se espalhou por Angra e arredores e muito candidato a atleta passou a aparece r para compartilhar daquele exercício matinal com o ídolo. sem a riqueza de detalhes que eu conheci.mas. Ele não era pessoa de falar nem mesmo de sua infância . o Senna piloto tinha subitamente acordado para as responsabilidades que o estari am esperando dali a algumas semanas. na frente dele: .Passamos um réveifon juntos . férias totais. para azar do Béco. de massag ens. e a parti r daí não houve um dia em que ele dispensasse seis horas. que me sentia premiada pelos deuses. e é por isso que eu me atrevo a reproduzir. o Brasil significava antecipar a expectativa da responsabilidade da estréia em casa. o u em algum canto de sua mala. o que faz a diferença desses mastodontes de academia.. Tinha um tumor cerebral do tamanho de uma laranja. Estava no hospital. . Não pude esperá-lo. que de repente visse seu David despedaçado. Entendo todo o desespero dele diante do caixão. ao fim de uma sessão de g inástica no campus da Universidade de São Paulo. resumia Nuno. tríceps flexíveis.. em São Paulo. peitoral. U ma das pessoas mais vitais que eu conhecera . para testes com o Williams novo. agora. eu escondia um bilhetinho na sua carteira. de Portugal.o mínimo que ele dizia. Não é meu. sei lá. sofreu. Eram ocasiões descontraídas. Disse. Sentia-me péssima. Vocês terão filhos esculturais. cinco di as sem dormir e que só voltou à vida normal porque a mulher e os filhos cobraram-lhe a responsabilidade com a família. Rezei a Deus. Tenho anotad o na minha agenda: 24 de janeiro.Prece. Toda vez que o Ayrton viajava. Ela já não respondia a nenhum estímulo. por que ter ciúme? Um ídolo mundial. É do marido da Glória Pires. no entanto. uma vez. foi com ele numa daquelas viagens rápidas que ele fez no início do ano. literalmente. Minha avó fora o perada cinco dias antes. Aquele menino raquítico que. forte mas elástico. isso. em que um am igo dele de dez anos visivelmente prestava uma homenagem a mim. "Essa menina dá equilíbrio para você". Béco chega ao Rio. O preparador físico de Ayrton é uma figuraça. mas é. agarradinha.Olha só o biotipo dela. debaixo de uma árvore torta aonde ele gostava de nos levar. Se era assim. um dos poucos amigos do Ayrton que continuaram me procurando. Pendurei-o acima da cama dela. Uma fera. uma qualquer! Como é que você deixou que fizessem uma coisa dessas? Era comigo . Seria impossível viver perseguida por um ciúme desse tamanho. ele me contou que passou dez dias sem comer. Como se dissesse "agora ele é só seu". eu escrevi a ele: "Béco.O Ayrton foi minha obra-prima. Nuno brincou: 162 CAMINHO DAS BORBOLETAS . "O múscul o tem de ser inteligente". Concordo com Nuno: um corpo que era uma escultura. ser a situação quando você é o assunto". mas que precisava de repente se sentar ao volante de um Toleman e resistir a duas horas de prova. Orlando Moraes. quando você é a figura. Chorava e or ava. E. Olhei mais uma vez para seu rosto e pensei: ela viveu. Esse. Em janeiro de 1994. não me 163 t importo de ser a sombra. transformou-se num homem rijo. dessa vez. um terço de Nossa Sen hora de Fátima. direto para Angra. Privilégio meu sentir isso de perto. Percebendo a timidez do discípulo. Muda. Dali. bíceps. que compôs esta música pa ra ela. foi feliz. Estava transt ornado. Gritava coisas horrorosas. não agüentava 25 minutos de exercício. Enrolou a revista e a atirou com raiva contra a parede de noss o apartamento na Rua Paraguai. um filósofo do corpo e da mente. mas que compreendeu que a vida só pode ser vivida com equilíbrio. um Donatello. que passou mal em Hockenheim.. inerte. 18h30. juntinha. Eu tinha trazido para ela. comentou com o Ayrton. que te m gente que chama de louco. Fui visitá-la. que desmaiou ao final de uma corrida na África do Sul. Com todas as minhas forças.Do tipo quietinho: parece que não é. segunda-feira. na Europa. em 1984.e. feito de pétalas de rosas. . para minha surpresa e acanhamento dele. jazia num quarto de hospital. Quando voltei a falar com o Nuno. pedia pela sua morte. Nuno disse mais: que a reação dele era a de um escul tor. parali 164 ADRIANE GALiSTEu . vôo 901 da Varig. naquele sombrio dia de maio. com milhões de mulheres sonhando em estar no meu lugar.. era eu. por alguma misteriosa razão. rezei muito. Preciso de dinheiro e preciso trabalhar. orgulhos a. Adriane (a coisa estava feia. Diante de todo aquele escrete 165 ADRIANE GALISTEU de beldades. As coisas que o tiravam do sério eram adversários nas pistas. belíssimas. entendi a escolha como uma homenagem ao meu sobrenome espanhol. não ouvia. ele jamais me chamava de Adriane. nada a ver com Playboy . Eu era a capa. Em um ano de convivência. Nunca pensei que ia chegar o meu dia. Por uma dezena de vezes eu tomara contato com esse lado desgovernado do Ayr ton. dez.CAMINHO DAS BORBOLETAS sada. Bem na semana em que ele ia começar tudo de novo na sua carreira .eu. qu eria. eu levara debaixo do braço o exemplar d e uma revista espanhola chamada Man . A agência Elite selecionou um time de dez meninas e pas samos um par de dias na praia de Camburi. Recordo me que. mostrei-a a ele.ao contrário do que sugere o nome.a semana do GP do Brasil em Interlagos. Ele não se conformava. Um longo ensaio fotográfico de doze páginas. uma vez. vinte vezes. .. Um ano antes. Mas ele voltava a revirar página por página de Caras. Era uma revista de muitas fotos. Ainda tentei ser razoável: 166 CAMINHO DAS BORBOLETAS .Minha vida inteira. Ayrton não era do tipo de ter crises de ciúme. mas não saía do "mas. carros que quebravam. Trato meu trabalho de uma forma absolutamente profissional. Drica). fas sem desconfiômetro.Você precisa entender que não é mais a mesma. ao me ver descer do quarto com uma minissaia nova. na fazenda. volt ava a se sacudir de irritação. ilustrando aquela que seria uma reportagem sobre o litoral brasileiro. no dia em que fui pela primeira vez me encontrar com ele naquele mesmo apartamento dos Jardins e dali seguimos juntos para Angra. Aquela briga. a primeira que tínhamos. Às véspe ras do GP do Brasil. fui capa . que s aiu na quarta-feira. Ess as coisas envaidecem uma modelo. me punha diante de um problema de identidade dupla: namorada e modelo. Esperei que ele serenasse . para mim. em grande estilo. Abri mão de minha vida para isso e não estou aqui lhe cobrando.e talvez eu não tivesse d ado a devida conta. As fotos. enriquecem seu book e dão um empurrãozinho em sua carreira. Calei. quando veio a inevitável pergunta: "Como é seu trabalho de modelo?" Ele adorou. eu trabalhei assim.Você hoje é a minha namorada. sozinha. Não é nenhum mistério. ou não queria ouvir. apontava aqui e ali." Seria inútil qualquer argumento. Foi por isso que levei a revista até a casa do Ayrton e.. Falei calmamente: . A revista que ele folh eava raivosamente. . odiava. alguma coisa tinha mudado . é claro.A merda toda.. olha aqui. aventuras. Tentava resmungar alguma desculpa. especia lmente.Mas o que lhe desagradou? As fotos? O texto? .eu já tinha tomado a cautela de trabalhar com um profissional da mais absoluta confiança.se e que era possível. mas nunca na condição de vítima ou de pivô da tragédia. Caras apresentava. perguntou: . Para minha surpre sa.Sei disso. feitas pelo Fábio Cabral . Agora. era a edição de Caras. de maiô. até arremessar na parede. jornalistas inconvenient es. fotos grandes. que você entendesse que estou muito feliz pela escolha que fiz. E dia pior não poderia haver. fazer caras e bocas. de verdade. berrava: . ao contrário. a namorada do maior de todos os ídolos nacionais.. só de Dri . chegar d iante de um fotógrafo e posar. viagens. Quatro horas seguidas. Não precisava ter me exposto. pois a quinta-feira já era dia de muitos compromissos. de recuar taticamente.Tivemos um relacionamento maravilhoso . nos demos um tempo. tudo ficou muito simples: . Tinha um travo de choro na garganta. é só isso.Nunca chegamos a uma d iscussão nesses termos. com uma cumplicidad e sem palavras. vi que caíam lágrimas dos olhos dele.. me deu um beijo de tchau e disse: .A gente se fala depois. Longe de mim irritá-lo. Você me mostrou um Ayrton que eu não conhecia. Eu o vi acordar cedo.Ganhou quando tinha 13 anos? Dos 9 anos até aquela noite em que achei que tudo estava acabado. Propunha um fim no nosso namoro. mas. que não dormia. talvez reagisse do mesmo modo. Quem subiu o zíper do uniforme fui eu. Mas. mas meu coração estava do tamanho de uma ervilha. acendia de novo. tudo se organizou na minha cabeça. De repent e. Minha lealdade para com aquele admirável ser huma no que eu amo e conheço tão de perto era absoluta. De repente. falava. Desabei. Disse que não gostei e não gostei. Engraçado que naquela noite. o outro. na verdade.Nunca duvidei do seu caráter.continuei. Eu já me lamentava previamente pelo desfecho esperado. O senhor Mi . aproveita sua raiva e vai em fren te.. Não seria a reação de uma mulher vingativa ou ofendida. arcando com os preconceitos que a profissão provoca e administrando a maior dificuldade de um trabalho em que a beleza é o elemento primordial. Foi ele pisar fora de casa para eu me dar. Seria a atitude correta de uma mulher vencida. forte. nenhum de nós queria perder. trocamos de papel. A dis cussão havia avançado madrugada adentro. se você quiser terminar nossa relação por causa desse episódio. eu errei. a ansiedade que prenunciava o dia seguinte. eu não preguei olhos.. eu sobrevivi como modelo. Sair dali seria mergulhar num abismo sem fundo. Chorar pode ser o melhor atalho para a compreensão das coisas. foi ele quem interrompeu: .Tá bem. Se eu estivesse no seu lugar. até o domin go da corrida. Entendi aquilo como o seu constrangi do jeito de dizer "sim. Ele. Peço desculpas.. porém fiquei firme para não chorar. a raiva o vencia. Trocamos um olhar em que senti a faísca de um amor que. Em respeito ao momento que ele pássava. a agonia que já invad ia sua alma. Ele se aproximou da cama. Ele apagava a luz. mas a minha razão que vá pro inferno! Caras era a revista mais disputada nos fins de semana na fazenda. Mas para quanta gente a única coisa que vale no mundo não são as aparências? Pensando bem. não é isso. o outro. em silêncio. Fiquei chocada com o que se passou aqui. As feridas estavam expostas. e fazer a barba. naquela hora. Mesmo que eu tivesse. lite 168 CAMINHO DAS BORBOLETAS ralmente. eu sabia disso. Pensei no pior: "Amanhã. gri 167 ADRIANE GALISTEU tando "não. Termina. sem n ada combinado. falava." . o direito de um choro franc o. Fomos deitar. Dei um passo atrás: . e u me levanto e vou embora". sacudido. . não"... Aí. isso ali na hora valia também para ele. até mais. dormiu. enfim. acabou. Uma mode lo parece ser muitas coisas que ela de fato não é.Acho que tenho razão. Ayrton. Minha convicção e minha sinceridade m e davam força para enfrentar o desafio. a segunda-feira da semana do GP. . . tranqüilizei-o. vai . 170 CAMINHO DAS BORBOLETAS que ele tinha vocação de editor de fotografia. Tenho milhões de maravilhosas fotos minhas. Queria que a Zaza compartilhasse de no sso segredo. na fazenda. Ele quis saber mais: onde ficar. na fazenda. Mas foi uma trabalheira para todos. Lá é o nosso canto. . Na sua condição de empresário que aumentava seu portfolio d e negócios. não dá para preocupa r. seria antiético. Resumi: .Quem? .enfim. naquela noite.O estilo dele é bárbaro. A minha predileta. Com um fotógrafo de confiança. mas ele argumentou: . . mas. Fiz as fotos com o maior pr azer e o maior cuidado. nem cheguei a cogitar. A do Béco.ele insistiu.Gostei. consult ei-o. Comentários sempre elogiosos. teve bolo. A mãe viu: . em Angra. Não tem sentido ir a Angra fazer isso. quando estivéssemos. Deixe i para mostrar a ele no fim de semana. Tão logo as fotos foram reveladas.Estou pensando no Fábio Cabral. insisti: um cromo só.Gostou? . Ainda assim. de cada série. Faz tempo que não tiro foto posada.Da minha parte. . Pensei de novo: se a Photo soubesse que um cara com esse o lhar existe.Está o máximo. com repórter. modelo com mais de dez anos de janela. Só fiz porque ele disse sim. na cama. Olhou os cromos um a um.Mas por que Camburi? .quis saber. Esta da bicicleta.seu treino para aquela que.Que praia? . Naturalmente. fica tranqüilo. além de impor a incógnita de estréia de uma temporada co . era aniversário dele: 34 anos. produtora. até estou. dia após dia. Gosto do trabalho dele. ele aliviava correndo diariamente na US P . .e foi lá. só os dois. Dia 21 de março. Ele concordou. Cabral me ligou: .ele chegava abraçado de jornais e revistas. parabéns. Descobri. os cromos passaram pelas mãos de todos. com você. desconfi ava: perfeito. Eles estão agindo com correção. Peguei na portaria do ateliê dele e aquilo só me confirmou o que eu. De uma em especial.E você? Está a fim de fazer? . uma praia bonita.Então.Camburi. . Cabral andava me rondando com a proposta de uma exposição de fotos só minhas. E não se falou mais nisso. à qual faz muito tempo que eu não vou. Eu faria do meu jeito. contra a luz . sob a batuta da Zaza. qual seria o esquema. doce.disse ele.eu estava ansiosa. Saiu do jeito que eu queria.Lindo. Quando surgiu o convite para eu ser a capa.Confia? . fui começando a gostar da idéia. O próprio Béco lia e gostava. . Como a reportagem de Caras sairia na semana do GP do Brasil. quem sabe não ia lhe propor mudar de ramo? Fiquei tão encorajada que desci com o maço de fotos para o café da manhã. no início de março . Guardei o pacote para fazer uma surpresa pro Béco. três 169 ADRIANE GALISTEU dias. em fevereiro.De repente. pa ra eu ver como tinha ficado. que toquei n o assunto. pouco a pouco. O Léo. sem meias palavras. maquiador juntos. . ele passou dez dias entre a Alemanha e a Inglaterra. . meticu loso. o jeito de eu descarregar minha adren alina era esperar pela revista. No domingo. num dos vários telefonemas que trocávamos. com rigor e atenção.ele quis logo saber.lton comprava .Aquele mesmo esquema de modelo. Comentei que pensava em fotografar n uma praia. aquele que estivesse pior.Porque é aqui perto. os amigos que estavam na fazenda . Eu queria ver tudo antes mesmo de chegar à revista. que estava de volta. _ . O Béco. Onde quer que ele fosse. diziam todos. Por coincidência. no final. Digo isso nunca por vaidade. sem entrar na paranóia de que era eu a culpada. o que me condenava a uns dez minutos de angústia até nos reencontrarmos no nosso apartamento da Paraguai. "Estou corroído por dentro" . tenho uma profissão. Mas.prosseguiu ele. sua terra. Mas havia a surpresa de ele me ver. abrir a porta do elevador e apertar o botão 2S da garagem para ele fechar de vez a cara: . Só isso: não. Ela pediu-lhe um autógrafo e. Conhecera e aprender a a conviver com isso.implorei. no f undo. coincidiu com o primeiro contato dele 40RIAN-F GALISTEU com a minha Caras. 172 CAMINHO DAS BORBOLETAS F em casa que aconteceu toda a explosão que narrei. à noite. como podem ser instrutivas algumas brigas entre casais que verdadeiramente se amam. não só a do casal feliz. me veio pela primeira vez um friozinho na barriga. eu pensava primeiro nele: . de uma edição seguinte. eu me perguntava: era preciso ter feito? . ainda só para a gravação de um comercial da Nacional Seguros. na quarta.Então. . O texto. você vai ser tetra". ficou mais quieto do que nunca. mas vi no seu silêncio a expectativa do GP que chegava. sem maldade. como está?" Ele era vago. Elas me acenavam com a revista.era o jeitão dele de mostrar sua contrariedade. Um assessor dele. 22 de março.Não sei. Ainda assim. mas a conversa se mpre escorregava para o otimismo. eu tinha passado e repas sado as páginas. no McDonald's da Avenida Rebouças. e sim com o coração tão partido como naquela noite difíc il e em outras que se seguiram. Estava linda. muito compr eensível. no fundo. Tirem fora a tensão da semana. Lá. me fala . mas como uma forma de espontânea solidariedade com a mulher que ele tinha.depois de uma sumida legal que eu tinha dado das páginas e dos outdoors. paravam -no para a pergunta fatal: "E o carro. Engano meu.m escuderia nova. mas também aquelas mesmas que geraram tanto ódio. O GP do Brasil era o cardápio da semana. O elevador chegara à garagem. nunca. Mas. eu quisesse lembrar: tenho um trabalho. Charles. a mesma que me acompanhou com Caras a Ca mburi. não pode ficar assim. pessoas do povo abr iam as páginas de Caras. ou que era de mim que ele tinha se enchido. fez a gent ileza.Me fala. cada um de nós tinha ido com seu próprio ca rro.Você estava muito sexy. respeitando o timing da crise dele. de novo. Foi a gente se despedir dos pais. Eu já o tinha visto emburrado. deu-lhe de presente uma cartela com sobras das minhas fotos. Olho para trás e vejo que muitas coisas se juntaram ali naquelas páginas de revista. cabisbaixo .Você gostou? . No dia do enterro do ídolo Senna." O primeiro contato dele com a pista de Interlagos. Eu o acompanhava na USP e ficava impressionada. jant aríamos na casa dos pais dele. não para me a dular. Pior para o já ansioso Ayrton. carregava a responsabilidade de ser em São Paulo. Mais fotos. você não gostou? . de repente. . discutir daquela forma. ."As pessoas estão en ganadas: não vai ser esse passeio que elas imaginam. Ele só deu uma folheada e foi trabalhar. corretíssimo. eu sei. como modelo . Foi uma experiência dramátic a mas muito educativa. inconscient emente. tudo muito cordial. ele vai ter corrida. .Meu Deus. Confesso que.Você viu a Caras? Claro: durante o almoço. a reportagem. em troca. já não se conformava.confessou a mim naquela terça-feira. você é a famosa Tina! Tudo muito ameno. Talvez. "Já ganhou.Não. quem produzia o comercial da Nacional era Tina Krugg. já impressa. . Ele brincou: . Ainda me ligou para dizer que. a poucas voltas do final. pole-position naquele sábado em que fomos.outra a quem recorri. Me . eu. que eu amo. Mas você. ele . Esse outro lado Adriane Galisteu quer dizer: a modelo. que tem esse outro l ado Adriane Galisteu . alertando para as cascas de banana que invejos os e futriqueiros gostam de botar no caminho dos que ganham fama e respeito. Um sentimento bem humano chamado ciúme. E tinha mais. Mlhor tempo na sexta. "10 aquela que continuava. sempre o Braga. primo dele. eu terminava. Eu sou ciumenta. quando liguei na manhã posterior à tempestade.. com ares de ofendido.Eu já estou calejado . gemendo dentro de meu sentimento de culpa.Gosto de você. pensei. "Normal. com meu zíper lacrado. Seria um castigo subir ao pódio.Me faz só um favorzinho sobre aquilo. ou "você viu os negativos antes".dizia ele. reforçou Nádia. para Interlagos . de certo modo. 173 . Até os amigos estranharam. me a lertou: . 25 de março.Senão vai estragar tudo. me reconfirmou. de manhãzinha. que ao promover todo o furacão o que mais o incomodava era o fotógrafo. se fosse minha namorada.Vou conversar com ele . e a esposa. preste atenção para não se machucar. . Jeito besta de comemorar um ano de convivência. "Ciúme de namorado.disse e u. Ele não me socorreu nem um pouquinho: . reclamando: 175 ADRIANE GALISTEU . garotinha. amiga do Rio. de nome Ayrton. Não é nada com você. Ele é ciumento. Mas teve de s er assim. Mas há outro desconto que dou hoje ao descontrole do Béco. sempre discreta. estava também o Gordinho.Não está falando com ninguém . na sexta-feira. vem para junto do sofá e senta no meu colo. aquilo que ele não escondeu mesmo diante dos meus argumentos do-tipo "mas você sabia tudo".O homem está uma fera. ainda cansado. em posição d e inferioridade ante "o alemão". mas devia sonhar com outros rumos profissionais para mim. jamais disse com clareza. . e eu. mu lher do Oscar Guerra . ou com a imprensa. Aí veio o domingo do GP e aquela realidade prevista por ele deu-lhe uma raste ira. Qu ero guardar pra mim. segundo a segundo conqui stado na pista. Me escondi o mais que pude.ele ia chegando lá.Fica quieto . Se é que eu o conheço. no Brasil. já aplacada a onda de fúria: . Muita gente queria falar comigo. os cinco no mesmo helicóptero. Até onde tinha ido a ousadia dele? Exatamente até o ponto que as fotos revelavam. isso p assa". Ele ainda teve tempo de reconhecer. a rodopiada do Williams num ponto meio bobo foi até melhor. . eu reconheço: o perigo que a celebridade acarreta. triste com o resultado. embora disfarce. coisa de quem gosta da gente".disse o Gordinho. me acalmou mamãe. Só com o Cristiano eu me abri um pouco. dias mais tarde. . Cheguei em casa antes dele . O que ele próprio. bem ou mal. Contei sobre a briga. o Fábio. Todos. Ele.Seu corpo bonito é para mostrar só pra mim.Mas o que é que o Béco tem? Ele não falou comigo. além do piloto Nelson. eu fui avisando: nada de entrevista. e uma lição que ele sempre qu is me incutir. mas tem a ver com a vida. 174 ADRIANE GALISTEU CAMINHO DAS BORBOLETAS Foi um maravilhoso cidadão. pedindo colo e luz.Você não precisa mostrar ao mundo que tem um corpo bonito. por telefone. Braga. silenciosa. . Nenhum problema.Ayrton esperou horas para o autódromo esvaziar e sair em relativa liberdade. mas. quem me falou essas coi sas. que é menina.pedi. Na sala.foi uma de suas frases mais esclarecedoras. Não tem nada a ver com a revista. o medo de tudo ac abar ali. Vai na revista e pede os cromos. antes de sair para o primeiro tr eino oficial. Nice. no book da Elite. . Chega o Ayrton. ele tinha uma namorada loira e d e olhos verdes. naquela semana. a fiel amiga. Só acho que você não foi nada elegante.Seja forte. Como fazia em noite de corri da. entre os convidados.Linda como? Quero ver. de motores. eufórica. por aí. pelo não. Não levantou. soli dária: . a mãe do Béco. às vezes. Sem falar de seu empenho. A frustração da derrota não tirou a animação de um único dos dois mil convidados da festa nça da Audi. Fomos para o quarto.Mãe. me alertou: . Mas ela. ao final do discurso do Ayrton. Não foi. Ele estava exausto. conversando demorada mente com o Gordinho. . Com direito a Jô Soares de mestre de cerimônias e a muita gente. estava louca para acertar os nossos ponteiros. .sabia que o se nhor Milton estava na fazenda. mas ainda assim fico satisfeita em saber que a revista. filha.Carraro. de novo. Queria uma conversa a sós . ele queria saber de minha roupa: . Mais um sinal de maturidade .que. Procurei. supostamente. com o mesmo vestido. O meu era. a representação das motos Ducati e de uma excepcional bicicleta de fibra de carbono . Foi horrível dormir sem falar com ele. sonho dele.Posso pedir desculpas? Sabia que a família. sem esconder de ninguém.e de sintonia com um futuro mais cedo ou mais tarde distante da Fórmula l. Ayrton era 177 ADRIANE GALISTEU senhor de si mesmo.Fica tranqüila. Antes de me pegar em nossa casa. uma conversa coin a direção da Montblanc.Você não tem de pedir desculpas a mim. no quarto dele . Espera o que for preciso esperar. para o Léo. preciso falar . O meu timidozinho me espantava. muito religiosa. intimidade até para fazer aquilo que eu fui fazer: . para o Julian.u coração esguichava de alegria. Ele subiu ao palco com a surpreendente tranqüilidade de um locutor. Era um vestido preto. totalmente fechado. tem uma irmã gêmea sua aqui. Isso devia incomodar a quem o queria sempre menino tímido e su bmisso. Quando ele me deixo u na mesa.eu quis ser vaga. Pelo sim. Ela meio que desv iou: . Naquela mesa. Ficou assim uns vinte minutos. O fato é que já fazia algum tempo que eu o sentia curtindo uma coisa nova : ver crescer o seu lado empresário. não vou me levantar daqui um minu to. Já estava pensando em outra coisa: o lançamento. italiana . tinha sido de business puro : o acerto final com a Audi. Olho de mulher. . Pelo roteiro. um vestido exclusivo.com ti ragem recorde. Acabei dormindo lá. er a também quarto nosso. Preparava o lançamento de seu gibi: Senninha. com a Zaza. alugando os ouvido s de dona Emma. de veludo alemão. O momento é todo dele. a das canetas .que custaria uns três mil dólares. poderia ter se chocado. . da derrapagem. para circular e 176 CAMINHO DAS BORBOLETAS cumprir seus deveres de anfitrião. num hangar do Aeroporto de Congonhas. por exemplo. Eu levantei. Birgit. eu diria mergulho pessoal na hora de acertar o co ntrato com a Williams.Dri. a Bianca.lá estava eu. que sempre delegou o assunto dinheiro e investimento para o pai. da marca Audi. no dia seguinte. cada uma. na terça-feira.Linda . O assunto com dona Neide ainda era a revista Caras. A última viagem antes de Interlagos. para o primo Fábio. tomava uma Coca-Cola e procurava descansar. Ele. sobrinha dele. que eu não via havia séc ulos. O nome seria revelado no número 2: Dri. que passaria a representa r no Brasil. continua a circular . Tinha. falando da prova. Esperei apagar a luz e fui ver quem era. agora começa va a tomar gosto. Saia-justa total. depois de nos trocarmos. na realidade. Disse. assim como entre o Ayrton e eu. ele me ligava todos os dias. Naquela noite do lançamento do Audi. Era o sinal definitivo do sacode-a-poeira-e-dá-volta-porcima: na capa de Cara .Pó. entendo mais do que falo. vai. acho que você caiu em contradições no texto. Nos horários mais incríveis. essas coisas.sem exceção.Desculpa . e para toda a temporada européia. O que ela não sabia é que. . a essa hora. pela primeira vez. . eu ia cair de cabeça num curso de inglês.Eu não precisava falar daquele jeito.nunca tinha acontecido isso conosco. que não a dmitia que a chamassem de lôraburra e. mas com certeza eu chego lá". Co mbinamos ali nossos próximos passos: eu ficaria.Tive pensando em tudo e preciso falar com você. Não podia ser por um curso de inglês que eu perderia uma afeição quase maternal.Então. no Berlitz. em meu 179 ADRIANE GALISTEU futuro. logo depois. levando suas preocupações técnicas com o VVilliams e a incerteza sobre um circuito que jamais entrara na temporada de Fórmula 1. Coloco uma montanha.e ele tinha uma surpresa para mim: . usou a palavrachave. .zerinho em folha. como está?" Um fax meu diria mais do que minhas palavras. gênero imersão total.continuei. depois daquela formalidade toda do "que tal a 178 CAMINHO DAS BORBOLETAS festa?". nervoso. Lá do Japão. não estava disposta a aceitar a minha verdade. Um dia. culpa do fuso horário. Era um prêmio e uma responsabi lidade. evitando uma viagem desgastante e um lugar incerto. daqui para a frente? Você coloca uma pedra em cima disso aí? . El a.Uma pedra. Em inglês. Ayrton visivelmente investia em mim. Por uma boa razão: em São Paulo.Vi onde errei e reconheci meu erro. Béco? . se há alguém a quem você tem de pedir desculpas é ao Béco. Dizia: "Minha vida está dura sem você. Dia 3 de abril. ele queria ter-me por perto. Mas e você? Você perdeu a razão. Por que você fez aquilo? .Não sei. por exemplo. .aquela que seria sua última visita à Dois Lagos. com a mesma pe rgunta: "E o inglês. tudinho. em setembro. Estava cha teado.ele. Ele apagou a luz. Adoro você. Conversávamos todos os dias . de novo . 1° de maio. o telefone me despertou às seis da manhã .iniciei. a roda-viva do circo entraria de novo em movimento: ele ia para o Japão. até o Estoril. depois. Esquece. mas também da nossa ansiedade em nos falar. Por enquanto.Nosso relacionamento ainda pode ser normal.Você já foi à banca? . t udo estava acertado . . Aida. não. admite que não fala inglês. Seria uma separação de quase um mês . Senti-me em família.. . ponderada.. E me sapecou um daqueles beijos que me levavam à Lua. . achei que era hora de falar sério. eu lhe pedi para acender.E. no fim de semana que passamos na fazenda de Tatuí .. e.Fui muito correta até agora . a partir de Ímola. aí sim.Me fala sinceramente o que a senhora achou. como sempre. mas estou tentando canalizar todas as forças pa ra meu curso de inglês. assim como o inglês. em minha companhia. Ayrton dizia que Fangio é insuperável. Muitas fotos. amar . uma vez. a cavalo. Era o que todo mundo dizia: Senna-Willia ms. justapostas. Era o melhor carro nas mãos do melhor piloto .ainda me lembro. o Sunday Times. os dois abraçadinhos ao pôr-do-sol. como se fosse hoje.Estou de olho em você.Eu também estou de olho em você.E um dia vou correr na Ferrari.Um dia. fotografados numa de nossas últimas temporadas na fazenda de Tatuí.s. aquele beijo que trocamos ainda dentro do carro. Surpreendi-me. o feito de seu ídolo Juan Manuel Fangio . Dois anos mais. no GP da Alemanha. ele e eu. garota. por aqueles dias. sei lá por que. Foi um dia especial . na Williams. determinado em tudo o que fosse do seu interesse.como talvez nunca tivéssem os nos amado. Repeti-lo. rir. neste ano de 1994. ainda mais sabendo que o vencedor foi seu amigão Berger). e mais aquele beijo de partida. Discreto p or natureza. fiquei honrada de estar em tão ilustre companhia. É puro palpite meu. passeando de mãos dadas. a de 1994 e a de 1995. de públic o. A despedida. Mas o fanático por resultados não queria o vermelho de Maranello para exibir sua performance técnica. não tinha? Aquele 3 de abril em que o vi pela última vez me encheu da certeza de que um relacionamento novo. Tivemos a tarde toda para. tudo aquilo me rodopiava na memória como uma mensagem enigmática que eu prec isava decifrar . relaxar.(e eu me vi imediatamente. vou me casar com você . depois daquele terremoto. Ele acabara d e assinar contrato com a Williams. mais um aceno de desculpas. mas. . . no mínimo. A mensagem era.um quebra-cabeças cujas peças. . Ele ainda repetiu. jamais superá-lo. seu idílio. -Estou de olho em você. como três e dois são cinco. de novela mexicana. Ele havia liberado as fotos para a mesma revista que tinha sido nosso drama. Mais duas temporadas lá. com uma inconfidência. dupla invencível. Sinceramente. ali pertinho.me garantiu. garotinho. de véu e grinalda. cheio de carinho. para a volta da fazenda. caliente. Fiz a mala dele e a deixei pronta. dizia o mínimo necessário. Estávamos de bem com a vida. nós dois. graças à Williams. Também com saudade.Encerro minha carreira lá . mas desconfio que ele sonhava em repetir. maduro e feliz se instalara entre nós dois. Daí a inesperada história da Ferrari. Já estou com saudade. naquela cape ADRIANE GALISTEU linha na Jipóia. falar. Papo delicioso. Detalhe: o cenário do romance era a fazenda. agia no sentido do fundamental. propositalmente o lugar mais familiar de todos em que convivíamos. . Tinh a alguma coisa de simbólico aí. calculava ele. em que o talento do homem valia mais do que o desempenho da máquina.o argentino cinco vezes c ampeão naqueles tempos pioneiros do automobilismo. de ter lido isso num jornal inglês insuspeito.e nem ele nem eu haveríamos de desconfiar por quê. Ele se despediu com aquele sorriso gostoso: . deve ter vibrado com a primeira vitória da Ferrari. feita na cumplicidade dorminhoca do sol de Angra. garotinha. 180 CAMINHO DAS BORBOLETAS no apartamento da Paraguai. aquela mesma a que ele se referiu na nossa primeira noite de amor). Ele assumia. mais os suspiros da longa tard e de amor que tivemos no dia de sua partida para o Japão. Pensava em disputar duas te mporadas na escuderia de seu querido Frank. Levei-o a Cumbica no meu Fiat e ainda tínhamos meia hora para gastar. e o obcecado Ayrton se daria por satisfeito. Abraços e beijos. a escuderia do cavalinho rampante teria um c arro mais competitivo (onde quer que ele esteja. No carro. Este era o seu estilo de se relacionar com a vida e com a pessoas. me indicariam a rota da minha futura relação com ele. ao final de urra entardecer de pura alegria: . sem nenhum constrangimento. onze horas. não há de ser nada. por Michael Schumacher e uma derrapada meio esquisita . 184 CAMINHO DAS BORBOLETAS Quis saber como ele se sentia com os resultados adversos: . no-Japão.Como você acha que foi. Minha 183 ADRIANE GALISTEU mãe estava a meu lado. meio sem graça. Eu tinha aula no Berlitz de manhãzinha. a alma. ele não esqueceu: se não ligou é porque alguma coisa está errada. Já começava a pensar no futuro . Esquecer. Eu tinha um motivo a mais para torcer por uma vitória dele: queria-a de presente de aniversário. Pela primeira vez. Dez. não me deu notícia? . solidária. no apartamento da Rua Paraguai. Vou te dar todos os presentes do mundo. preocupações.Vinte pontos atrás. para mostrar o grau de irritação dele quando me ligou: . na minha última bandeirada sonha 182 CAMINHO DAS BORBOLETAS va. Houve a cassetada do Mika Hakkinen. para vir um debilóide e bater na traseira de seu carro. No GP do Brasil. o telefone da cabeceira toco u e aquela voz conhecida. Eu sabia o que significava para ele perder. Ele se desculpou: trabalho. o melhor motivo de minha alegria estava a milhares de quilômetr os de distância. porque sabia quanto aquela prova em Aid a significava para ele. fui para o apa rtamento na expectativa daquele telefonema. Além de tudo. se a pessoa mais importante da minha vida não me ligo u. ele tinha adoração pela torcida italiana. São exemplos assim que fizeram dele uma figura excepcional . Busquei o colo de mamãe. gritou: -Parabéns! Como foi seu aniversário? . sofrendo com o fuso horário. Distraí-me com as lembranças dos amigos. a tradição. Às seis da madrugada. . mas eu pedi para sair mais cedo. A próxima é minha. o que é fazer uma viagem longuíssima como esta. na minha última volta. meia-noite . antes mesmo de completar a primeira volta. para sempre. eu quero estar lá na minha última largada. Por algumas horas. Foi o aniversário mais triste de minha vida. Tinha sim. a paixão.rebati. e sim o prazer de pequenas e significativas atitudes.foi embora de capacete e tudo na cabeça. Respirei um pouco. .sem ter sequer a chance de se pôr à prova. Desliguei a tevê. Eu ficara acor dada de madrugada. Revira va na cama.Não pensa que esqueci. Você não tem idéia de como eu fi quei. A griffe. Recebi telegramas. Sabia o que signific ava perder daquela forma . a história. quero dizer. A prova foi dia 17 de abril. trabalhar fei to louco em cima do carro. sem nenhum sinal de ressentimento do Senna.e o futuro não comportava cofres de dinheiro abarrota dos na Suíça. No GP de Aida. fuso horário. Adriane. E vice-versa. os meus colegas do curso de inglês apareceram com um bolo de 21 velinhas e me cantara m o Happy Birthday. Este é o Ayrton Senna que eu conheço: um homem capaz de fazer de sua aposentadoria uma gentileza. por uma situação que faço q uestão de abrir aspas.A Ferrari é a mística da Fórmula 1.nada.e que especialmente as pessoas q ue privaram com ele têm o dever de respeitar. no qual ele tinha tudo para vencer.Mesmo que o carro da Ferrari ande tanto quanto um fusquinha. liguei de novo. aí já totalmente Béco. corri ao shopping para me dar presentes a mim mesma. . eu atingiria a minha maioridad e. Ayrton estava tão louco de raiva que nem cumpriu aquele seu ritual de sempre . Dia 18.Vócê não sabe. Só que todos sabem que a infalível dobradinha Williams-Senna foi atropelada pelo in esperado.. reuniões. eu diria mesmo apimentada. que me deixava em pânico. Dali do Ibirapuera. Era uma bagagem e tanto. uma hora e meia de corrida. Passei um fax pra lá de ínt imo. aqueles catorze. Naquela mesma noite.de mais a mais. Primavera e verão . havi a aquele céu azul do Mediterrâneo contrastando com as paredes caiadas de branco e. de amor. Confesso que a Gabi deu uma olhada. de repente. eu e ele.Não vejo a hora de você chegar aqui . nós nos queríamos perguntar a nós mesmos: por que essa atração? O que significavam. um inglês engraçadíssimo. a julgar pe lo que me disse ao telefone no dia seguinte. Ansiosa. quando era hora de trabalhar. Nem me incomodei de desfazer as malas. como o irlandês Eddie Irvine. perguntava ele para si mesmo .e ficou corada. de fato. e esse eu o tinha só para mim. quinze meses de namoro? O que esperar do futuro? Podíamos nos considerar pessoas felizes? Já tínhamos vivido o idílio e o conflito. Na verdade. ele desabar a chorar? Soluçava. Do GP de San Marino.eu tentava entender. a casa do Algarve estava reformadinha. 25 de setembro. Berlitz . à noite e até aos sábados. Mas tinha o T atou ali perto e passei literalmente dias e dias comendo um delicioso sanduíche de camarão. ele e eu. Seria uma surpresa para ele: acompanhá-lo. Estava tão empenhada que tive aula de inglês até a tarde de sexta. Tinha chegado à quinta da Luiza e do Braga em Si ntra pouco depois do almoço. 29. Aos pouquin hos. Mas aquele era um choro convulsivo. Você pode imaginar o que é receber um telefonema do Ayrton Senna e. um banho rapidinho e i mersão total no inglês. . uma lindeza. porque meu destino era o Algarve. na Europa. eu estaria com ele.suas palavras. aula extra em casa. muitas outras coisas estavam sendo ditas e estavam para ser ditas . feliz . corri para a felicidade: . seu preparador. ainda pedi à Gabi.Estou feliz. caminhada. Olhando hoje para trás. até o GP de Portugal. eram interrompidas por longos silêncios que prenunciavam lágrimas e desespero. meu namorado era um homem. Eu sonhava com a hora de envolvê-lo nos meus braços na noite de domingo. para corrigir . aproveitei aquelas semanas de ausência dele para correr no Ibirapuera. A idéia era essa: acompanhar com ele todos os cinco meses da temporada européia. Ele também. Seguindo as orientações do Nuno Cobra. uma das professoras. 185 .repetia para ele. O vôo Varig com destino a Lisboa partia às 22h10 daq uela sexta-feira.me dizia. feriado no Brasil.sala de aula. ele já em Portugal. Eu era minoria na hora de votar no almoço no McDonald's. seria impossível recuar. Nossa consciência apontava para a frente. com declaração explícita. Seu choro tinha sempre a ver com o sentimento de injustiça: um maluco que lhe atravessasse o caminho na pista. infantil. uma instituição . sinto que havia uma sintonia inconsciente. Assus tei: tinha-o visto chorar de raiva. ao telefone.até o pulsímetro o sempre gentil Nuno me emprestava. já não mais numa envergonhada bicicleta. Perguntava eu para mim mesma. No dia 21 de abril. um jorna 186 ADRIANE GALISTEU CAMINHO DAS BORBOLETAS lista que ultrapassasse as boas maneiras da elegância e da privacidade. em nossa . almoço. A distância tinha reforçado uma relação que chegava a seu turning point. Tinha perdido meu último medo. tirar o avião do hangar e nos deslocarmos para o local da próxima corrida.com certeza -. O de namorar um mito. Com os braços estendidos e o peito aberto. pegaria um avião para Faro e iria para a nossa casa do Condomínio da Quinta do Lago.e de ter de reparti-lo com o mundo. Dali. percebo agora. já que a viagem se aproximava. bastava convocar o comandante Mahonney. 31 de abril de 1994. você só podia falar inglês. Béco haveria de encontrar na Europa um a nova Adriane Galisteu.Que que houve? Que que houve? . ao telefone. ma s no pique dele. Era sábado.Na próxima. o giro que ele dava em volta do condomínio do Algarve. gradativamente . aquele 1° de maio. como daquela vez em que voou no pescoço de um fotógrafo. testei com ele meu progresso no inglês. Na verdade. embora nítidas e claras. uma hora e dez. chorava . toques. Peguei ao avião para o Algarve às 20h30 com a alma bem mais leve. (o choro entrecortava a história. nerv osos. Aapaziguante presença da Luiza me fez cochilar no quarto. expressões. . corri para a televisão.) E o pior é que estão dizendo que ele morreu no hospital. me buscou.ele tentou se consolar. olhares. aque la: "Você não conhece eles?" O show tinha de prosseguir. Comentei com Luiza. aquele que por dez anos. de dentro de seu sincero descontrole. dúvidas.. do anexo. Também me acalmava. Nos telejornais. o Honda continua na garagem.cansada que eu estava da viagem de São Paulo para Lisboa. um austríaco. o nosso. era. .a amizade de Braga che gava a detalhes como o de ter de deixar na garagem da quinta de São Pedro de Sintra. Eu mal podia esperar. um Honda NSX metálico igualzinho ao que ele teve em São Paulo (depois de tudo o que aconteceu....Ele está ansioso. para as esporádicas visitas de Ayrton.O quê? Não vai ter corrida? . quis me cobrir daqueles agrados tipicamente portu .O caso do Rubinho? . . Quando ele desligou.Está tudo uma merda! Só então fiquei sabendo do acidente do Rubinho Barrichello (ele tinha acompanha do o companheiro ao hospital.depois da prova de ímola.Sabe de uma coisa? Eu não vou correr. de verdade. Mas 188 CAMINHO DAS BORBOLETAS na minha cabeça ecoava aquela frase foral do Ayrton. silencioso. a tensão e a possibi lidade do cancelamento da prova. a minha anfitriã: . Demorei a entender: . coberto de pó. cinco meses de efervescente amor. conselheiro . raivas de um homem que nunca se deixava levar na sua carreira senão por pensamentos positivos. Ele morreu aqui. Juraci. Cinco meses de ensolarada lua-de-mel.. Bateu e morreu. brota a maior de todas as surpresas: . com o jeito meio brincalhão de quem está só se divertindo. Eu vi: morreu na minha frente. Mas que era isso mesmo que nos esperava. Fazia doze anos que a Fórmula 1 não provocava uma morte em plena pista. com ele. assim qu e eu cheguei a Sintra: 187 ADRIANE GALISTEU . Segunda corrida dele. saber que estava em San Marino.. Se o desespero ou a desilu são grudasse na alma daquele campeão da fibra e da cora gem chamado Ayrton Senna. não. Menino. Estávamos todos ansiosos.Não. como sempre esteve. na verdade deu a ele a força espiritual e afetiva de um paizão como daqueles que não se fazem mai s no mundo.Que bom escutar sua voz . O Braga estava lá. pois o doutor Braga avisou aos criados que não quer que ninguém toque o dedo nele). Segundo pai. até mesmo o silêncio sempre foram muito mais valioso s do que palavras. muito nervoso.Mas me conta: como estão as coisas aí? . cordial como sempre.repetia e soluçava. da "Casa do Ayrton" . De repente.casa . na véspera..... de luto. com o Ayrton. sempre haveria aquele paizão à mão para trazê-lo de volta ao bom senso e à realidade. queixas. a caseira. definitivamente. Na nossa relação. Não vai correr. Mas aí ele me surpreende com aquele seu profundo abatimento. Haviam sido quinze minutos de soluços. Ele estava baqueado.Você não conhece eles? Eu já tinha um razoável conhecimento para compreender aquilo que ele me dizia d e modo meio enigmático. as entrevistas deixavam entrever a surpresa. Eu vi.Uma merda! Uma merda! . embora soubesse que o piloto brasileiro estava fora de perigo). ainda se sentia chocado. Saímos para jantar. já tinha encarregado um amigo de conseguir uma bandeira da Áustria. Ayrton deu declarações 190 CAMINHO DAS BORBOLETAS .. Conside rei aquilo uma homenagem proposital dele. fofo como o pêlo de um gato angorá: . Ele me confidenciou seu gesto. o Léo e o Galvão (Bueno. Seria sua homenagem ao infeliz Ratzenb erger. em busca de seu cheiro masculino. Tradução: ele ia correr. Sua presença se sentia também na mesa com o fax. aquele Nova Gente que trazia nós dois na capa. Tradução: ele ia correr. conversamos demoradamente. uma surpresa. Atendi no banheiro.. O Braga. graças a Deus. fizemos pl anos para a recepção do dia seguinte e só então me recolhi. 189 ADRIANE GALISTEU depois desse mês de distância.Olha. pelos amigos. Em vez da bandeira do Brasil que ele costumava acenar nos dias de vitória.sim. na revista deixada no canto . Atendi no banheiro. . o closet dele e a faguei-lhe as roupas. fofo como o pêlo de um gato angorá: . mesma reportagem de Caras.Estou preparado para sentar no carro e acelerar fundo . Disfarcei com uma certa irritação: . pára tudo. estou melhor. Ele me confidenciou seu gesto. e ia correr para vencer. Mas. o closet dele e a faguei-lhe as roupas. o telefone voltou a tocar. mesma reportagem de Caras. que a prova de Ímola esteve por um fio. o Léo e o Galvão (Bueno. não existem hierarquias nem na vida nem na morte.. o telefone voltou a tocar. espreguiçand o sobre o tapete branco e alto. conversamos. Sua presença se sentia também na mesa com o fax. está se sentindo melhor? Ele não chorava. da TV Globo) estão a qui. Mas. para Ayrton. Ayrton deu declarações 190 ADRIANE GALISTEU depois desse mês de distância. uma surpresa. minha cuca está no pé. Um iniciante na Fórmula 1.disse. pára tudo. Ao sair do banho. que a prova de Ímola esteve por um fio. quando morre alguém da família. está se sentindo melhor? Ele não chorava. em segredo. Seu generoso coração preparava.Pó. Disfarcei com uma certa irritação: . Em vez da bandeira do Brasil que ele costumava acenar nos dias de vitória. pelos amigos. Ao sair do banho. em segredo..sim.gueses que desafiam os ponteiros da balança.Estou preparado para sentar no carro e acelerar fundo . . estou melhor. quando morre alguém da família. mas sua voz era um fiapinho: . O Braga. Seu generoso coração preparava. para Ayrton. em busca de seu cheiro masculino. Um iniciante na Fórmula l. Soube depois. da TV Globo) estão aqu i. não pára? As pessoas põem luto. mas sua voz era um fiapinho: . que abri os armários do nosso quarto.Pó.disse. na revista deixada no canto . minha cuca está no pé. graças a Deus. conversamos. já tinha encarregado um amigo de conseguir uma bandeira da Áustria. Juro que aí quem teve vontade de soluçar fui eu.Becão. Juro que aí quem teve vontade de soluçar fui eu. não pára? As pessoas põem luto. Sentia tanta falta física dele. Conside rei aquilo uma homenagem proposital dele.Olha. que abri os armários do nosso quarto. os papéis arrumadinhos. e ia correr para vencer. espreguiçand o sobre o tapete branco e alto. Seria sua homenagem ao infeliz Ratzenb erger. não existem hierarquias nem na vida nem na morte. pela imprensa. Saímos para jantar. aquele Nova Gente que trazia nós dois na capa. pela imprensa. os papéis arrumadinhos. Soube depois.Becão. para logo mudar de assunto.Você não conhece os outros. às véspe ras da tragédia. O sentido oculto da minha pressa continuava sendo a agonia da irrealida de.anunciei. Os comissários permit em. não reagia . escala no Rio.para mim. com a letra F. Queria contar pessoalmente. para não competir. Será que eu ainda não deixara isso claro para ele? Ele era uma dádiva. eu fui seqüestrada. se havia coisa no mundo que Ayrton não era.chegou vint e minutos antes do nosso. esse pessoal é assim mesmo . pegou o crachá que me dava acesso ao velório . De nossa parte. mas que para mim significava suo r e progresso. porém.. com aquele comentário inesperado.É assim mesmo.. Será um exagero dizer que foi a mais longa. Vamos conversar até o amanhece r. Não tinha tempo a perder.públicas denunciando a insegurança do circuito e lamentando os acidentes. a questão co ntinuava a ser uma só: como tomar contato com a verdade de sua morte? O esquife partiu. Para mim. . Falamos de nós. voltava a São Paulo para enterrá-lo. como qualquer fã. Talvez lá você se sinta melhor.Palmadas? Por quê? . Solenidades marciais no aeroporto. A lhe propor.simplesmente tinha me deixado ficar. A caseira interrompeu para animá-lo com o cardápio que ela preparava para a che gada. . um paraíso. naquela noite.. . Agora. . ao me despedir. . Uma multidão enlouquecida. Estava completament e lacrado. não havia. eu entro na fila. tão logo ele estivesse recuperado da canseira de Ímola. Um tempinho a mais de agonia. para me encontrar com ele. Comigo. as idéias se embaralhavam. Quero convencê-la de que sou. que me fizesse vê-lo e senti-lo pela última vez.Devo estar aí às 20h30. . não acreditava. eu tinha ido a Portugal.Preciso lhe dar umas palmadas .disse ele. Trocamos juras apaixonad as. Besteirinha à toa. sem reação. A bandeira do Brasil em cima.e fomos para a Assembléia Legislativ . Eu não falava. Para o que desse e v iesse.Se for preciso. Na minha catatonia. Braga e eu fiquemos dentro do avião.Vá pra cabine de comando.Tenho muito a lhe dizer. A lhe oferecer . Típico da simplicidade dele: galinha grelhada e legumes no vapor. . De saudade e de amor. nem de longe imaginei que houvesse espaço para a intriga ou o veneno. pela Erica. estava atrás de resultados. Na nossa conversa noturna e meio bobalhona de dois enamorados. preocupada. E la passou pela casa dela. A paixão era nosso único alimento. Meu Deus. Mas ele er a a última pessoa do mundo a poder comandar uma operação-boicote. junto à Luiza e ao Braga. não me conformava. Ri. Uma das comissárias. Tinha perdido as duas primeiras provas. Senti uma decepção. na polt rona do avião. a mais angustian 193 ADRIANE GALISTEU te. com todas as forças: a de estar preparada psicologicamente na chegada ao Brasil. Imaginava que o caixão tivesse um vidro. em branco . Não entendia. E. queria ir direto para o velório. Mas nessa idéia eu tentava me apegar. a pior viagem de minha vida? De Lisboa. não comia. era frágil e covarde. ele só repetiu seu constrangimento sintomático: . Peguei de novo o telefone. CAMINHO DAS BORBOLETAS . enquanto ele é limpado e reabastecido. Menos de uma semana atrás.verde.prosseguiu.Tenho novidades para você .. carregada de planos e de fe licidade. ele é o melhor homem de minha vida. Quero passar a noite em claro. Aquele conjunto negro com que me fotografaram no dia. que Luiza. O avião com o corpo do tricampeão . um frio na espinha. disparado.brinquei. chegou a me aconselhar: . o melhor homem de sua vida. por aí. O único. qualquer coisa. de família. Ia desafiá-lo para uma corrida. qualquer atitude sua poderia ser entendida como um pretexto para ganhar tempo. uma tampa. funcionária do escritório do Ayrton. um presente. apenas meu namorado . Aproveito para ir ao banheiro e me trocar.Vou provar-lhe que sou o melhor. que tragédia!" Coroas de flores. Percebi o tamanho que Ayrton tinha par a toda aquela gente. Quem dera ele soubesse disso! Comigo. igualzinho. Não houve um único assalto. a namorada. acompanhada apenas de minhas lágrimas ou de uma ou outra 195 ADRIANE GALISTEU amiga que me vinha dar a mão. Dias ante s. de família. Ainda espero por ele. o Celso. Senti que ali encontrar ia meu ponto de apoio. a não ser com aquela conversa meio estranha : . mas abaladíssimo. Ou será que não devo esper ar? O F. Ele era me u. ó Adriane. veio ao meu encontro para me abraçar: "Ó.tudo tinha sido organ izado segundo um proto 196 . era primeiro o espanto do reconh ecimento. sempre calmo. a bandeira sobre o caixão. que trabalhava com ele. escoltada p or cinco seguranças. e custo a crer. eu me mantive no mesmo lugar dia e noite. Imóvel. Fiquei a distância. um parente do senhor Milton com quem a gente costumava pescar na fazenda de Tatuí. e por aí seguia a imaginação popula r. depois a gritaria desenfreada: "É ela. um único furto de automóvel. e aquilo me machucava. entrei no salão do velório.Sei lá. a minha dor mudou de qualidade. Olhava. Talvez meu estado catalético tenha me salvado de dores maiores. O pai. tão cedo. mas desconhecia o quantó. Vi quando Hebe Camargo depositou sobre o caixão o terço verdeamarelo que ela mandara fazer . Identifiquei o Dito. O pouco qu e saí foi para ver. o pai. Cumprimentei a mãe. o espetáculo doloroso da multidão. nada parecido no mundo. tinha me avisado: "Ele quer lhe fazer uma su rpresa. A cidade paráda. Viviane. mas imaginei a dor que todos ali sentiam. a Adriane". mas era também de todos os outros. com a minha dor. me dava acesso ao . o capacete dele estava pousado no caixão. Quando. não vi derramar nenhuma lágrima. aproximar-se do caixão uma única vez. menina. Hebe. que absurdo. senhor Milton.e que. velhos. pacificava os inimigos. mas essa era sua fo rma de experimentar sua terrível dor. experimentadíssi mo. todos improvisando qualquer emblema que expressasse o luto coletivo: bandeiras nos ombros. o batalhão de fo tógrafos .mais privilegiado de todos os lugares do velório.digamos assim . As pessoas em pranto . Quando voltei. Não há de acontecer. faixas pretas em torno da testa.garotos. meio a esmo. Luiza e Braga estavam no salão ao lado. por onde desfilavam oito mil pessoas por hora. Sabia que ele era amado. Os carros estacionados sobre parques e gramados. impunha a unanimidade da tristeza. foi arremessado no chão pelo ato impensado de fanatismo de outra pessoa que não comunga da mesma fé. Passei pela outra sala. se lhe der vontade vai ser um prazer recebê-la na minha fazenda para uma pescaria. agora dilacerado. mais ainda. adolescentes. Vi o prefeito Paulo Maluf. Eles conversavam com o Emerson Fittipaldi. me contaram depois. avalio a sensação deles de dar de cara com aquela que era a imagem mais íntima do Béco dos últimos tempo s.a.eu não conseguia fazer uma ligação entre meu namorado e o homem que recebia aquelas homenagens. lá fora. um único assassinato naqu ela que é uma das metrópoles mais sangrentas do mundo. Encomendou um. O luto nas ruas. soldados enfileirados. Zaza estava muito abalada. Nunca houve nada comparável no Brasil. cartazes de papelão 194 CAMINHO DAS BORBOLETAS com fotos do ídolo. Ele não tinha como me consolar. a irmã. móvel. a dos convidados . pra você". chorosa. o dos amigos. Léo vagava. todos entre gues a um choro sem inibição. Vi Nuno Cobra. A última homenagem ao herói irmanava o bem e o mal. não tinha forças para fazer. o amigo que todo o Brasil queria ter. não tenho idéia da hora (1h30? 2h00?). eu tinha visto quando. alguém tocou no meu ombro. com sentimento. mulheres. Frank Williams. Identifiquei um aleijado que passou uma vez diante do 197 ADRIANE GALISTEU caixão e fez o sinal-da-cruz. Passou uma segunda vez. como se sua alma falasse.a fila era um democrático mostruário de um país chamado Brasil que se recusava a admitir a idéia de perder uma das poucas figuras que lhe passavam um sentimento positivo de vitória. cerimoniosamente. Repetiu. não esbocei nenhuma resposta. Na surpresa. arrastando-se no chão.Fé. depois de cinco noites insones. Demadrugada. vigiada. atrás do caixão. Outros enterros épicos houve. aque le que havia sido o último patrão de Ayrton chegou diante do caixão. a não ser um ges to qualquer de cabeça. sempre muito discreto. crianças. com um obrigado.aqueles que as pessoas apressadas. Alguém se aproximou de mim e propôs: . Eu me sentia olhada. mesmo com uma enorme chaga latejando no coração. Adriane. Já era noite e a família Senna se retirara. Com todas as letras.I'm very sorry. Por sorte. como se seu status pudesse ficar invisível diante da curiosidade dos que ali estavam. Agora.Descansar. como se estivesse numa comuni cação muito direta com a vítima de um infeliz acidente de trabalho . de gritar.Vai você também. Frank me mandava chamar lá fora. sempre amparado em sua cadeira de rodas. talvez. não queria fazer. é que 198 CAMINHO DAS BORBOLETAS fui até ele e o beijei no rosto. hoje? Tenho o resto de meus dias para descansar. gar otões. Terceira vez . Adriane. adolescentes. milionários. . no enterro. era pelo me nos o que diziam os meus bilhetes . re costei num sofá escondido por um dos tapumes.o mesmo. o sentimento daqueles bilhetes arremessados sobr e o caixão. o irmão. da qual ela não fazia parte. a mesma coisa. Era. obrigado. artistas.CAMINHO DAS BORBOLETAS colo profissional. assistia a um teatro. um consolo osciland o entre o futuro e o passado: . políticos. Ainda de madrugada. berrar. para descansar. Afastou-se assim como che gou. Mendigos. Foi duro mi conter: diante do caixão. "Tem um senhor chamando você lá fora?" Um senhor? Sim. O chefão de uma das usinas da Fórmula 1 pedindo desculpas a mim? Só no dia seguinte. deficientes. guardou um silêncio comovido. velhos. Fiquei pensando quando tempo ele ficou na fila. de me arremessar sobre ele. espernear? Mas havia uma outra Adriane que me puxava para trás: aquela que. pelos que passavam na vertiginosa fila. Circulei um pouco. Imóvel no meu c anto. não a sua boca: . E que nem estava disposta a entrar num inútil campeonatinho de viuvez. enquanto a multidão continuava seguindo sua romaria. eu não ouvia nada. Entorpecida. e stava muito desligada. Nós sofremos com você. Aproximei-me e ele me disse. ainda tinham tempo de me lançar. Mas Ayrton Senna era o filho. ao vê-lo de novo. amanhã. socialites . o namorado. alheio a tudo que se passava ao lado.o seu trabalho. Se fosse resumir todos eles num só. seria mais ou menos assim. pressiona das pelos guardas. E torcemos por você. eu . Uma Adriane que não estava ali encenando a viúva. Já se instalara no seu carro. Tinha muita conversa em volta. quantas vezes não senti vontade de perder a compostura. Será um dia duro. Minha sorte foi sentir. Do ponto de vista da encenação e do cerimonial. era o amparo dos amigos verdadeiros e a vontade de acompanhar o Béco em sua última viagem. 199 ADRIANE GALISTEU Beijos de sua mãe que a adora. de volta ao velório. se tivesse como. um pedaço de mim. a namo rada poderia estar ali como poderia não estar. E. Falaram-se ao telefone. Pode contar comigo para tudo.e que até hoje enchem de ternura as noites em que eu rolo na cama. onde estavam h ospedados a Luiza e o Braga. Duvido que. No entanto. de madrugada. Lembre-se também de que você foi mui to feliz ao lado dele. com o argumento de um banho e recuperar as energias para o pior de todos os momentos. aqui. Na portaria. Um trailer de todos os sonhos que eu viria a ter com ele. que me fazia ter uma importância a qual eu nem ligava. mas a doce lembrança do amor você nunca vai esquecer. es tá escrito. está doendo muito. O funeral. mal e porcamente freqüentando aul a nas horas vagas de meus shows de música e de minha vida de modelo. que Deus é bom e está sempre com você. Sem pretensão. porque é muito importante: "Filha querida: sei que a sua dor é muito grande. rabiscado em papel timbrado do hotel. Não era sequer sono.saboreei a primeira sensação de algum alívio espiritual. alguém pudessse escrever algo tão forte. aque . po r favor.ela me entende. então. o calor de uma mão firme e resoluta. para não vê-la nesse estado. ao longo de nosso namoro de mais de um ano. Esta dor vai passar. assim se foi. alguém me arrastou para o Maksoud Plaza. minha mãe jamais esteve pessoalmente com Ayrton. distante do Brasil. seria para mim ainda mais chocante. por acaso. Mas lembre-se de que eu a amo muito. Eu daria tudo. sem querer me inc omodar. tão direto. Por pudor e por reserva. antes que eu chegasse e antes 200 CAMINHO DAS BORBOLETAS que eu saísse para o funeral do herói que. de me ver por perto. mas você é também forte. Guardei o bilhetinho de minha mãe como se fosse uma oração de bolso. estendo o braço para alcançá-lo e não o alcanço. tinha sido meu namorado. os professore s de português e de literatura gostavam de indicar livros complicados e cheios de sa bedoria sobre a escrita. Mas as imagens que rodopiavam pela minha cabeça. do que ela. eu me deixei levar. de família. nos dias seguintes . Eu estava mais catatônica do que nunca e se não fosse a Birgit. na minha vigília sonolenta. Por isso pedi sua mão e seu colo quando. assim como deixou a mensagem. sobre a humanidade e sobre a vida. além daquele crachá F. acho que ele. Ela entendia tudo . já à espera do enterro. Por isso nunca escondi nada de meus sentimentos para ela. gostaria muito. ainda que em país hospitaleiro. Emma 5-5-94" Quando eu estudava num ginásio público da Lapa. Agora. mas muito mesmo. tão verdadeiro como o que escreveu uma pessoa que teve de fazer da vida um trabalho e não um lazer intelectual. O que eu tinha. Béco e eu. eu recebi essa mensagem. Quando. Cuide-se. evocavam um Ayrton vivo e emoções bonitas que tínhamos vivido.mas a doce Emma sentia-se intimidada diante de uma celebridade. o do enterro. juramentado: ninguém conhecia mais de nós dois. testemunhado. Leiam comigo. trocaram notícias . numa hor a daquelas. comecei a escarafunchar essas minhas lembranças. Comigo. namorada. Ela estava muito b onita . Lento o cortejo. eu chorava. ônibus. isso sim.mais uma vez. Mas o ônibus se pôs em movimento e não resisti a entreabrir a cortina e olhar para fora.: " As fotos que tinham sido o pretex to de nossa briga eram exibidas a mim . bandas militares. Acenava. virou sei lá o quê . Por um momento. não senti um milímetro de estranheza ao reencontrar ali uma ex-namora da de Ayrton Senna. ao lado. anos atrás. quando a minha chegada provocou nela o imediato efeito gangorra. no movimento dos lábios de alguns. servindo de ret aguarda. No atrope lo da saída do cortejo. Acenava para mim e chorava. não tenho mais nada a faz er. Reconheço: talvez eu nem me desse conta de nada. ele cedeu a um leve tremor de 202 CAMINHO DAS BORBOLETAS susto. literalmente. Sentia. E a mão da Birgit pousada no meu ombro. Prost. do cas al ao pôr-do-sol na fazenda de Tatuí. acenand o. tramado 201 ADRIANE GALISTEU por ele. não senhora.que ironia como sinal de algo de que ele haveria de se orgulhar. começou a correr ao lado do ônibus. se a imprensa . virou pôster. embaixo da janela. ele continuava ali. bonito e vitorioso. com o Meia Soquete. gritavam. onde pude distinguir o rosto amarfanhado de um ou outro piloto: B erger. Ele me reconhecia. Ao me aproximar do meu lugar. dos sobrinhos. Com a Birgit e o marido. Mas foi ele quem dispensou: . do pai. com helicóp teros.. acenavam. eu a admirava. No meu torpor. e lá estava para a Adriane Galisteu reservada uma cadei ra na segunda fila. Ao chegarmos ao ponto de d esembarque no Cemitério do Morumbi. num outro conjunto lateral de cadeiras. Calado em seu sofrimento. Tenho a impressão de tê-lo visto a primeira vez ali no final da Avenida Rebouças. refú gio tranqüilo. Buscou lugar do outr o lado. Leonardo tinha acionado um impecável cerimonial. talvez não conseguisse distinguir um pé do outro. vi. Cheguei a me apresentar n o programa dela.. ela se levantou. quem sabe de reconhecimento. Não era ele o único que estava dispensado de participar . Era como se fosse uma figura fami liar para mim. honras marciais. recordo-me de ter acariciado o ombro do senhor Milton. correndo e chorando. me parece. muito respeito. Desde menina. sentei ao fundo. o atestado público do amor dele por mim. Daqui pra frente. talvez o Christian.Vim até aqui porque amava o Ayrton. à passagem do funeral. bem a minha frente. adolescente.as pessoas queriam.bonita como ela sempre é. presente-surpresa para o reencontro que não houve. Sábias palavras. da irmã. Tento adivinhar quantos quilômetros são: oito? Dez? A entrada q ue levava à tumba era restrita . Pessoas choravam.la minha amiga de perambulações européias. Vi o crioulinho e pedi para que ele viesse também. a Xuxa..da festa. Foi eu sentar. absolutamente nada. Estranhei. virou símbol o. chorava e corria. em homenagem a seu esforço. carros. el es me reconheciam. O cerimonial achou por bem botar uma ao lado da outra. de pé. compensar o luto com a imagem de um homem feliz. do irmão. A outra reportagem. no ritmo do ônibus.me descu lpem a sinceridade . quase na ponte que atravessa a Marginal de Pinheiros. bem abaixo de minha janela. ela me puxou resolutamente para dentro de um dos microôni bus especiais. Birgit tomou conta. e no meio da massa uma figura da qual não vou me esquecer: um pretinho. a identificação imediata: "Adriane. Lugares marcados. atrás da mãe. ). so 204 CAMINHO DAS BORBOLETAS recortes de jornais. nunca os cultivei. E de ela ter se hospedado com a Viviane. Si nceramente. com rápidas anotações sobre fotos minhas e de outras figuras do a deus ao Béco.. a mão tapando a boca. Em meio aos deuses. Não te voltes contra n inguém. tudo. insistido na falsa questão da competição.me aliviava. Eles não sabem. da Suíça . Olvido para o mal. à frente do Prost. um dia. Dentro de um envelope. na hora de ir embora. são hoje o meu mais genuíno tesouro. morrereis como homem qualquer. Da Inglaterra. "Silêncio para injúria. Eu nunca os tive. O salmo 81 veio sublinhado. não entendia por que tantos se preocupavam em falar em perdão e em inimigos. onde só transbordava a melancolia e a dor. Sobre outra. Coincidência? O dele.coisa que eu nem entendia bem. na identificação com o meu sofrimento e na vã tentativa de d izer que. que. os 203 ADRIANE GALISTEU telefonemas recebidos. Queixas. num cansativo esforço de se comunicar em inglês. revelavam às vezes histórias tenebrosas. Contudo. enquanto a família me ignorava. da Itália. Pois as nações todas pertencem a ti. Levanta-te. ó Deus. sustentando a causa dos ímpios? Protejei o fraco e o órfão.e especialmente do Bras il. de Portugal. Libertai o fraco e o indigente Livrai-os da mão dos ímpios. em que. flores secas colhidas dos buquês que. num texto ditado pela própria mão de Deus e por Sua sabedoria. como a da francesinha de 15 anos. o sentido de uma solidariedade explíçita . não entendem. Algumas nem cartas eram. os fás depositam no túmulo dele . rancore s. Cairei s como qualquer dos príncipes ". rabiscaram: "Linda! O Ayrton te olhará do céu". A atitude em meu favor dos deserdados de Senna . me era indiferente. Como em outros casos. uma linda carta enfeitada com trevos de quatro 205 ADRIANE GALISTEU folhas e palavras de ânimo. irmã do Ayrton. com paciência. julga a Terra. num papel avulso da Bíblia: Deus se levanta no conselho divino. Da Alemanha. Mas havia também cartas de pura dor e desespero. nos dias e nas semanas seguintes. predileto.todo aquele mundão subitamente órfão . ciúme eram sentimentos que não cabiam no meu coração. "Sempre só"." Poema em forma de oração. Sabem o que penso? Eu não estava ali para disputar o papel de viúva. E assim vencerás. na minha cabeça vazia' de toda e qualquer noção de re alidade. Julia. Eu estava ali porque a única coisa que realmente me interessava eu perdera. A atitud e contra alguém. a princípio. eu de ônibus . nos dias seguintes. me dizia que compartilhava com igo o amor por Ayrton Senna e que naquele 1° de maio também teve ímpetos de se matar. pelos caminhos mais transversa is do mundo.não tivesse. de um lugarejo da Provenc e. as páginas que eu ia lendo e catalogando. ou quase tudo. escreveram a meu respeito sobre uma das fotos de jornal. Salmo 81. numa romaria que não pára nem há de parar. Naquela história de ela chegar de helicóptero. eu olhava para cima. do Japão. Todos vós sois filhos do Altíssimo. ele julga: "Até quando julgareis injustamente. Vagueiam em trevas: Todos os fundamentos da Terra se abalam..ou a versão maluca de que um segur ança me impediu de entrar no carro da família. Detive-me. isso pode passar. parecia traz er. O baú com os milhares de cartas que me chegaram. além da marca do consolo pela perda. Eu declarei: Vós sois deuses. eventualmente. Perdão às ofensas (. as manifestações espontâneas. Fazei justiça ao pobre e ao necessitado. Vluem sou eu para julgar? A correspondência que desabou sobre mim. com amor mas sem assinatura. Adolescentes. Eu mudei. recolhida pelos braços sempre estendidos da Luiza e do Braga.nada mais perfeito.Como? . mas é impressionante a peregrinação diária dos fãs inconsoláveis). do Limelight . re signada em saber que ele ia até o fim. quero ficar com a memória do Béco. onde quer que seja. Desde os primeiros testes ofic iais no Estoril. Havia os amigos brasileiros na briga. Assim será. Ao amarrar no braço a correntinha mágica que minha amiga carioca Bebel me deu. com ele. o mais genial. a poucos quilômetros de Campinas. tentei passar despercebida. a posteridade se encarregará de guardar. Ele via tudo o que tinha a ver com corrida em quatro rodas . eu tinha três desejos a fazer e este.e o risco da velocidade. A carapaça tinha derretido.dizia ele. Emerson. homens. Mas. eu acho. ele assisti u. mas o mais importante.na Austrália. me permitam. não há quem duvide. S. velhos. isso é uma confidência. de vê-lo de novo. . 207 ADRIANE GALISTEU sonhando com a glória no automobilismo. que o repouso do guerreiro era resultado de vontade superior e quanto ele sentia os efeitos da separação física. me perguntava?) e "ser superior": "PS: que você seja a eterna primeira-dama da Fórmula 1. testes que o Braga acompanhou. no cemitério. da Silva. à transmissão completa da primeira prova da Fórmula Indy .. em meados de janeiro. é clar o. Para mim. Devastada por um dia de muito calor e esporte. nem que fosse por um segundo.onde Béco e eu nos conhecemos. Ele não diz essas coisas pra ninguém. eu me aninhei no colo dele. De vê-lo.(antes de viajar para Portugal. me Êizeram parar e pensa r: espera aí. as contradições . o mais perfeito de todos os pilotos. Ele mudou. Mas ele se abriu comigo como jamais.A Williams está sendo difícil pra mim . das conversas às vésperas da despedida. nos dias seguintes ao enterro. de repente. ou até A. no início dos anos 80. an tes da viagem para Sintra. com as virtudes. também em duas.Está sendo difícil pra mim . . já que . a idéia de que o destino fora traçado. acompanhar a Indy era p aixão pura pelo esporte em si . remoía eu. Maurício Gugelmin. na semana anterior ao GP do Brasil. empresários. no telão. Uma mocinha do Rio insistia n o tema de "esquecer as mágoas" (que mágoas. com a amiga Isabel. de manhã. a firmeza e. Isso. como o Sandro. as dúvidas que fázem dessa nossa espécie uma coisa tão especia l na ordem da natureza. Porque a diferença de horário era tremenda e a prova começava de madrugada no Brasil. Poetas que jamais tinham escrito poesia revelavam uma súbita vocação. era a de um ser humano integral e completo. das últimas semanas. à Inglaterra. na fazenda Guariroba. Ainda muito cauteloso no que dizia. comigo. o m ais aguardado e talvez o mais improvável deles. Um número surpreendente de cartas psicografadas. com a cara e a coragem. Homenagem de astrônomos da Europa. Ayrton Senna da Silva. Estrela para se mpre . Na nossa última viagem a Angra.repetia. de algum lugar p ara outro lugar. bem cedinho. com quem ele dividiu casa quando os dois chegaram. e tentei manter os olhos e os ouvidos abert os enquanto ele me dizia uma ou outra coisa que.medindo cada palavra com fita métrica. foi o mais valente. Como Jacqueline Kennedy é a et erna primeira-dama dos Estados Unidos". 206 CAMINHO DAS BORBOLETAS Uma dessas cartas que recebi trazia o recorte de jornal anunciando que Senn a ia virar nome de uma estrela. Místicos me acenavam co m fórmulas de alívio rápido.às vezes. para lhe prestar uma homenagem silenciosa. Ele era um homem. amigas que tinham sumido d e vista. pela ordem. foi o terceiro. ao contrário da ou sadia que ele exibia nas pistas . um campeão da vida. no caso dele. não havia outro jeito. passavam. assinadas Ayrton Senna da Silva. mulheres. Gostaria de acreditar nessa possibilidade da comunicação com ele. A imagem que me fica. Ainda mais para alguém que definitivamente não era do ramo. Raul Boesel e. se debatia com a dificuldade de um inician te: . por que voltar à era da man ivela? Ele concordava e pegava especialmente num ponto: o reabastecimento em plena corrida. para estar ao lado do Frank Williams . . quero ir mudando as coisas gradu almente. enquanto eu cabeceava n o colo dele. Naquele primeiro dia que eu vi o Williams. Mas. Comentou comigo. de repente. Era um desafio. dinheiro e glória.) 209 ADRIANE GALISTEU Feliz ele estava. uma tentativa de nivelar por baixo. como se viu dep ois. Ele estava convencido.disse. na Inglaterra. não importa o nome Ayrton descobria que o material que o fazia ser humano era bem mais consistente do que o dos carros. Espiritual e moralmente. Vou me dar o direito de interpretá-la assim: finalmente. Ele havia brigado muito por aquilo."olha só esse Mansell". em Angra.e. com uma ponta de ironia e. Austrália (é o que penso. de boca em boca. eu tive de repartir esse privilégio com milhões de es pectadores. A Fórmula 1 vai andar para trás. melhor piloto? Sei não . o o bstinado. muitos passos para trás.ele ficou hospedado em Sintra. do ponto de vista da segurança. Interpretem vocês como quiserem essa frase do Ayrton. secretamente.É uma imbecilidade mudar a regra. Eu o ouvia: no fundo.Lutei muito para sentar naquele carro. Mas a decepção inicial ele já não escondia. É uma equipe nova.ele me afirmou. gritava ele. com todas as letra s. ele a sobrepujava.Quero ver só como vai ser . só se proclamava nos bastidores do automobilismo mundial. longuíssimo momento de meditação e concentração no boxe da Williams antes da largada em imola. achei o carro li ndo e ainda brinquei com o Béco: . porém. se tanto. na minha intuição meio bobona. enquanto a McLaren era mais parrudinha. Palpite meu: se já existiam os computadores. Design atualíssimo. o determinado. o fanático. às vésperas da estréia.Estou praticamente começando do zero . Vejam bem: isso a gente dizia bem antes de tudo acontecer. . de que as mudanças na estrutura do veícu lo seriam compensadas por pneus mais largos. motores poderosíssimos. McLaren.e pensar na corrida que esperava por ele. "devia estar num circo" . uma sabedoria profética. dali a pouco mais de uma semana. . que lhe davam títulos. Mas estou sentindo que vai me dar trabalho. Não aconteceu nada daquilo e ele. (As quatro da madrugada. A tevê repisou . o homem se colocava num plano superior à máquina. ele me despertou com um beijo e me levou nos braços a té a cama. . Ferrari. Ou eu não me adaptei ao carro ou é o carro que não foi com a minha cara. de azul você vai estraçalhar corações. Melhor carro. Aúltima vez que vi seu rosto. Vi e revi por uma centena de vezes aquele longo. também achei a frente do carro fina demais um palmo de bico.Vou pegar leve. contestando o que. Sentia -o cabisbaixo. modernidade absoluta na questão da aerodinâmica .confes= sou. A Williams era uma conquista. esparramada no sofá. Benetton. Ayrton andava se queixando ao travesseiro. ele achou que ia sentar no Williams. Mas vieram as mudanças no regulamento da FIA. Dava idéia de fragilidade. acelerar e partir para o abraço da galera. controlando a aceleração e a aderência. Chamasse Williams. vagamente) . caras novas. o próprio sistem a eletrônico garantindo uma 208 CAMINHO DAS BORBOLETAS segurança muito maior. eu arrumei". ironizando: "Que bela companhia. Eu o ouvia e vinha com m inhas opiniões de leiga: . a eletrônica em cima.Pó. encontrar um carro acertadinho. Ele se dividia entre olhar uma prova em Surfer's Paradise. . . Dizia assim: . Certo dia. demorou-se numa lentíssima inspeção do carro. não corria. ele voltou sisudo e circunspecto. tenho certeza de que todo mundo que p agou ingresso paga de novo.É. enquanto botava em ordem minhas idéias. depois. era pura adrenalina. por telefone. aproximou -se. Pela brecha da viseira. brincando com os mecânicos. aquela loirinha. com o olhar vazando o que havia na fren te. depois do warm up. estou vendo aqui alguém muito parecido ADRIANE GALISTEU com aquela namorada do Ayrton Senna. Patrick Head. Braga não sentiu muita diferença à chegada. meio desligado. como a de 1994. outros campeões virão. o diretor técnico. As pessoas hão de entender. mas é de gargalhar. Mas aquele choro infantil (me contaram. Ficou assim. 212 CAMINHO DAS BORBOLETAS . As provas prosseguem. aos 54 anos.Adriane. . Ficou muito tempo concentrado. eu acionei inúmeras vezes o replay. Até na tevê. Chegava sempre muito cedo ao b oxe. mudei definitivamente de canal. Tch au outros pilotos que choraram seu amigo Senna. Tchau Christian Fittipaldi. as gerações de home ns de aço se sucederão. para ele.Mas. porque em tudo aquilo havia a indisfarçável expressão de um mistério. como pela 65' vez em sua carreira . energia a mil. Com um outro piloto. A cena acentuava o sentimento que ele me deixou. sim. O circo não pode parar. no sábado. Aquilo me chocou.pole position.Estranho. E aí veio a imagem da tevê. as duas mãos no aerofóli o traseiro. pelo sombrio estigma da morte. Depois de depositar flores naquela maldita curva Tamburello. Naquele telefonema arrepiante que Béco me deu. sempre motivo de orgulho. Ayrton Senna ia sair na frente. que ele não concluiu. imóvel. Estou vendo ela se casando. sem saber de qualquer ligação dela comigo. como que para despertá-lo daquele momento de absoluta intimidade. Será que no peito deles não há espaço para o s entimento da compaixão? Eu insistia: . Sejam dois mil dólares. Apertou o cinto. Apoiou. aquela? . Boa sorte! Que as próximas tempora das não sejam marcadas. Idéias tinham tempo suficiente para se suceder em sua cabeça. Aí. a cigana desven dou na sua mão uma curiosa mensagem. sem dizer uma só palavra. Não pertenço mais a esse mundo da velocidade e do big business. ainda em Sintra.ela s e fez de desentendida. no sábado. Dia de corrida. Béco. Um grandalhão.insistentemente. nada disso terá o valor de uma vida vivida com dignidade e coerência com você mesma. ou sejam trinta dinheiros. capacete e se meteu no cockpit.nunca mais. quanto vale continuar com tudo isso? Milhões de dólares? Bilhões de dólare s? Eu me referia aos senhores da Fórmula 1. para 210 CAMINHO DAS BORBOLETAS chorar em paz) me acendeu uma luz de alerta. ao ver meu pai morto. A vertigem dos bilhões de dólares pode cegar as pessoas.. uma amiga ligou do Brasil contando o encontro dela com uma ci gana. depois da morte do Ratzenberger. Tchau Rubinho Barrichello. faço minha despedida. sejam dois milhões. eu vi meu homem triste. aqui em Portugal.Se a prova for adiada por uma semana. depois daquela sumida tradicional no motor home . Estou fora. que ele se escondeu no boxe. eu toquei nesse assunto: . Sem mais nem menos. Não me peçam para b otar o pé num autódromo . Aprendi essa lição cedo. na véspera: se pudesse. um tempo intolerável. mas. amigo fraternal. porque percebia que havia um Ayrton que olhava atentamente e outro Ayrton que parecia t otalmente alheio. Só então ele botou máscara. Com todo o respeito à secular sabedoria das quiromantes. Tinha tudo a ver com a nossa vida.disse eu. Quando olhei pela última vez para a cova do Béco. enfim. com o motorista do Braga. A família enfileirada. 213 ADRIANE GALISTEu Fui direto ao apartamento. A porta. em voz alta. Subi de elevador. Ela me disse isso e outras coisas no dia seguinte ao enterro. vão achar que sou uma sacoleira . Ela ainda falou sério: . sem rumo. Quis desanuviar: 214 CAMINHO DAS BORBOLETAS . Mas não imaginei que no dia seguinte ela já batesse à minha porta. muito forte. sem buscar minha mãe. fica com você . por coincidência. Ela não se conformava.lembro de ele me dizer. eu chorei tanto. mas eu estava tão sem eixo. naquele último instante do filho no boxe. Senti que ia desabar. azul-claro. como eu tinha prometido.Não.e ao mesmo tempo tudo tão diferente! Não havia nem sinal daquela baguncinha que nós dois produzíamos ali. O pai se retirou. na Rua Paraguai.É seu.Adriane. achei que nunca mais nos veríamos. Não resisti: pedi a Zaza para guardá-la. havia perdido tão completamente o f io da meada que me abaixei no carro quando fui a São Paulo pela primeira vez. Daqui para a frente. no final. Atirava minhas coisas na mala de qualquer maneira. presentes que eu tinha dado.Se me pegarem na estrada. do salmo 81 . depois do último adeus. Na fazenda do Braga. tipo bermuda e camiseta de meia manga. Dez dias depois de toda aquela tragédia. Não havia mais vida ali. o mais velhinho. Tratei de entrar no quarto. Beijei-a e guardei. portanto fica com a senhora. Respirei fundo para enfre ntar os fantasmas da memória. O armário dele. . Dona Neide me levou até a saída do prédio. Na véspera . ela chorou tanto. uma no ombro da outra. de ir a nossa casa. Estava enganada.Eu o amo. que guardava o capacete do Béco debaixo do braço. aquela longa prepar ação antes da tragédia. muitas amigas inesperada s e minha mãe. Abracei a Viviane. abraçada àquele objeto que tanto lembrava o irmão chorado: "Valeu. e um beijo. mas você me deixou.insistiu ela. uma longa e afetuosa visita da Betise. nós nos abraçamos.e sabia que essa despedida se ria também para sempre. eu lhe disse em silêncio: .aquele que o Béco lia e relia. Dona Nei de me esperava. no sofá e conversamos uns quarenta minutos. para retirar as minhas coisas de lá. Só ver a cidade já me apavorava. mas Zaza estava firme. Mu itas vezes ela tinha repetido. No dia em que tomei coragem. reencontrei a Zaza. depois do enterro. beijei-a e ouvi dela: "Quero muito falar com você". que os dois porteiros que assistiam à cena também se emocionaram. . em Campinas. Depois. Respondi: "Eu também". Entrei no banheiro.Zaza me disse que. obrigada por ter sido mulher dele e tê-lo deixado feliz. Tudo no lugar. Sentamos. Tudo igual . Ela me falou da Bíblia e. a Birgit. para poupar sofrimento. é dele. eu fiz questão de dar a dona Neide: . entreaberta. Quatro malas cheias. foi uma forma de oração. Ele foi m uito feliz com você. a gaveta com seu pijama predileto. recebi o apoio de muitos a migos. Fiquei com ele também. a mãe do Béco e eu. foi um abraço forte. Becão! V aleu!" Com o Leonardo. "Nada do que a gente fez foi por acaso" . Dei as costas a um pedaço grande do meu mundo . quando foi à fazenda do Braga para conversar. Mas o cartão que eu lhe tinha dado de a niversário e que ele pregou na porta. você me faz falta. minha vida será um tormento. eu também entrei na fila dos cumprimentos. estava do mesmo jeitinho: a escova de dentes dele no mesmo lugar. à noite. Bateu. e eu . Um homem tinha morrido à sua frente. Os super-heróis não têm medo. outros sentimentos tinham se intrometido na sua vida: susto. Ele passou por s ituações incríveis. Béco rezava em casa. assisto de camarote aos que tentam dar a suas próprias mentiras um ar piedoso. pouco antes do desastre. Tudo ia me fazer lembrar dele. nada eu iria ter em troca de sua ausência. Peguei-lhe pela mão e disse: . 215 ADRIANE GALISTEU De repente. quase religioso. Azul . bem diante do meu nariz. buscava o perigo. Nunca se inquietou.a cor preferida dele. Ímola era a prova de fogo dele. Um amigo se estourara contra um muro. como uma criatura de carne e osso. levantou-se de sua mesa e. pedindo mil desculpas. para quem o triunf o vinha primeiro que tudo. Pela primeira vez na sua carreira de piloto vitorioso.e de quem não tem nenhum compromisso a não ser com aquilo em que verdadeiramente acredita. sincera. Aquela cena que a tevê mostrou. As pessoas têm. nunca o vi demonstrar qualquer coisa parecida. todas atribuindo a Ayrton coisas que detestava fazer e negando-lhe aquilo que mais buscava. na véspera. como se eu fosse uma criancinha desvalida. Chovia muito.no Maksoud. todo azul. naquela hora de rosto tenso e mãos cravadas no carro. longe das pessoas . vou dar um jeito na minha vida. viu . 217 .Eu também fui muito feliz com ele. depois do enterro. pagou com a vida a escolha de ser aquilo que e le era. para onde a Luiza e o Braga me levaram. enfim. é só um símbolo . Mas eu falo agora com a sinceridade de quem ouviu. quase pela mão. O tudo-ou-nada da temporada 1994. Mas. num gesto de simples generosidade. medo.que palavra cruelmente realista! Em tantos meses de conhecimento íntimo e profundo. eu conhecia seu filho e sabia quando é que ele tinha seus momentos de oração. no dia em que ele definitivamente se completou como ser.. diante do meu day a fter. Birgit e o marido. a desesperadora com preensão do que me esperava daí para a frente: viver plena mente Ayrton Senna sem ter Ayrton Senna. 216 CAMINHO DAS BORBOLETAS 4 Era azul.Vou rezar por você. quando esse senhor me reconheceu. ele apenas pe nsava. Uma página estava virada em minha vida. vou torcer por você.a Betise. Medo . Cada uma de nós entrou no seu carro. Almoçávamos . a começar pelos de sua máquina frágil e difícil de dominar. Até nunca mais. a insanidade dos mercádores do perigo veio golpeá-lo na cabeça. não foi um deles. ou seja. sentiu. Um senhor que não me conhecia havia me colocado. De uma forma muit o real. Hoje. o meu quarto na fazenda Guariroba. A minha verdade é a de que se viu. Teorias e mais teorias. o piloto Ayrton Senna sentava no carro e andava no limite.Não é nada. que a Zaza me permita. . me deu uma coisinha embrulhada num pacotinho. coerente.ele me disse. . pode ter certeza disso.era dono de uma fé r ecatada e íntima. me recordo. sentiu a fragilidade da máquina e a fragilidade do ser hu mano. de cara. Meu Béco. Para mim. Até então. Ao contrário. amado e inesquecível. a lib erdade. surpres a. Ele sabia que ti nha de ultrapassar todos os limites. gosto muito de você. No dia em que Ayrton Senna pôde experimentar o mais humano dos sentimentos. Christian. não fazia o estardalhaço de um militante de púlpito.A senhora ainda vai me ver bem. aparecer por aqui". iam me remeter para algumas situações muito especiais passa das com ele. peguei o peixe. Phil Collins. despertei..com certeza. voltei a correr. O coraçãozinho ingênuo. Mas tinha um Milton Nascimento.. e. Antes de ir embora. Toda vez que eu entrava no carro. Não sei por que a escolhi entre tantos lugares tão bonitos da fazenda. Mas você vai se refazer . ele ia sumindo e ia ficando difícil alcançá-lo. a cama de casal e os sonhos de todos os dias . Simone. não sei .. Braga fez um giro por toda a fazenda comigo e fiquei deslumbrada com aquele lugar. Madrugada alta.Pega o peixe. para uma volta em Campinas ou nas redondezas. berrando. lagoa.Tá bom. Trouxe minha mãe para perto de mim. de desenhos diferentes.ADRIANE GALISTEU Era um chaveiro em forma de coração. Outra coincidência dava relevo àquela pedra. eufórica. não. me fez vo ltar a uma noite nossa no Algarve. muitas árvores serpenteando por um caminho natural e uma quantidade incrível de borboletas. os sonhos! Ele sempre vivo. De dia. enquanto corria: . Abracei-o e disse: . você podia vir me ver um dia. malas empilhadas. Mas mesmo um s onho que eu não podia agarrar.. até que as minhas forças cedessem. passei a ter medo das noites e dos sonhos. Sempre de olho fechado. 218 CAMINHO DAS BORBOLETAS Na fazenda.. Ou ele se atrasava. com muito peixe. muitas vezes em lugares que lembravam um quarto de hotel. E voltou a dormir. perto de uma cachoeira. corria para mergulhar nos braços dele. que me disseram chamar Travessia. de todas as cores. Ou então nós dois numa lagoa linda. me trazia o consolo de sua imagem e de lembranças de coisas vividas por nós.ah. o quarto azul da fazenda. tinha alguns CDs à mão. Milton. a água virava u ma escada. ou naquela cena típica dele de fal ar ao telefone. Era isso que eu queria mostrar para você: que podia correr com você. guarda o peixe. O sonho da. ou tipo os melhores momentos. mas com os olhos de um sonâmbulo. que dizia coisas como "solto a voz nas . Pega o peixe! Ele estava sentado na cama. Também deles eu tinha pânico . onde ele me esperava. Queria que ela ficas se acordada a meu lado. sem mais nem menos. dourado. ele me chamando a atenção para as cores de um. Ali na frente. encostado nessa escada. ou parar no tempo. só aquela música dele. tantas que você corria e elas vinham de encontro a você. de todos os tamanhos. só que eu não conseguia nunca tocar nel e. a beleza de outro. velhíssimo. vendo um vídeo atrás do outro. mas era passar ali e me vinha à cabeça aquela idéia do reencontro: "Béco.despediu-se... Quarenta e cinco minutos. No caminho das borboletas tinha uma pedra. Tente i acalmá-lo.Tá vendo? Fica aqui do meu lado. Descobri um caminho que eu chamava de trilha das bor boletas. Acordava sempre com um travo de frustração e uma dor de saudade.Então. Sempre nós dois muito próximos..só sei que era Milton direto. por exemplo. . muito antiga. Olha lá. desperto com uns gritos dele: . que descia para um porão.Você perdeu isso. Falava em voz alta. De repente. ele relaxou: . Grande e lisa. E quando eu. Eram cinco da tarde. No GP de Portugal. ele próprio me disse. juro. Mas nossa amizade vinha de longe. com os amigos. Aí. Como aquilo me tocava. depois. certa vez. Ele vai ser campeão do mundo"." Outro trecho impressionant e: "Eu 219 ADRIANE GALISTEU não quero mais a morte". Sinto uma ponta de org ulho ao me lembrar daquele dia em Zeltweg. muito perto. Lembro-me de várias conversas. Por mais de uma hora. de lá. C ontinua pertinho. foi testar o . de um dia muito frio. se mostrava sempre tranqüilo e cordia l. Mas. o sol já quase não se manifestava e eu quis passear. A meu convite. sim. reagia com um sorriso encabulado. seguimos para Miami e. FIM 220 POSFÁCIO Ele me chamava de "Emmo" . em setembro de 1993. acredito ter ajudado a inspirá-lo a seguir adiante. tive a felicidade de um convívio de quatro dias com ele. revolta. por sua vez. no Salmo do Perdão. voltei lá na pedra. me encaminhei quase automaticamente em direção à pedra. Se assim foi. Falamos muito sobre isso . Com minha Bíblia na mão. mas o fechei. antes do GP da Aústria de 1981. eu. Sem parar. Deixar para trás as mágoas. De algum modo. a Indy. eu o sentia perto. Pedia para sair dali purificada de corpo e alma.. mais ou menos. no mínimo uma década e vários milhares de quilômetros rodados separaram a minha geração da dele. eu já era campeão do mundo. eu falei.muitos deles igualmente promissores. Arizona. Mas. a não ser ocasionalmente. todos (isso mesmo: f ui eu que apresentei Senna a seu futuro patrão Dennis). preparação mental. era compreensível que aqueles senhores da Fórmula 1 fizessem um ar de espanto. abri a Bíblia. relaxamento. idem. Ron Dennis.a minha própria e desesperada oração. no Brasil. E do lado de todos os que o amaram verdadei ramente. Ele. Mas eu tinha certeza de estar diante de um piloto excepcional. idem. Que a tempestade me fortalecesse. Abri o livro sagrado para ler. Nossas pistas nunca se cruzavam . na casa de nosso amigo Braga. no meu Learjet. longas e proveitosas. não sei por quê. antes de seguir para o Rio e. e o levei de boxe em boxe. mesmo porque apenas repito o que. dias depois. do meu lado. para Lis boa. Quando Ayrto n ainda se sujava com a graxa dos karts. aqui.concentração. Por acaso. Ele. Percebi que Ayrton andava muito ten so. Conhecendo-me e sabendo do meu estilo reservado.. Era u m pesadelo na vida dele. Apresentei-o a um por um dos grandes chefes de escuderia: Ken Tyrell. para Phoenix. quando peguei pela mão aquele garoto que corria no campeonato europeu de Fórmula Ford. pódios e vitórias. vivendo intensamente a Fórmula 1.estradas. decepção. sinto-me orgulhoso de ter participado de uma carreira tão recheada de p ole positions.foi nesse exato momento que eu decidi deixar para a posteridade as coisas que eu conto agora. No dia da despedida da Guariroba. Nunca havia feito o mesmo com nenhum outro jovem piloto brasileiro -. pressionado pela dúvida que iria mudar sua vida: ir ou não ir para a Williams. De fato. os maus sentimentos. No jatinho de nosso amigo Gito Chammas. com Ayrton. Era o seu je itão meio tímido de mostrar respeito e afeto por mim. Digo isso sem a menor pr etensão. prel iminar da prova de Fórmula 1. dar um adeus àquele lugar que tin ha me dado um abrigo tão reconfortante. eu não posso parar.meu apelido no mundo do automobilismo. Não querer a morte era manter a memóri a dele viva . Béco não apareceu naquela pedra. meu caminho é de pedra. injustiça. dor. em voz alta . Apresentei-o assim: "Este é Ayrton Senna. Busquei-o. Não me considero um homem supersticioso e até estranho.o meu carro . tel. Ayrton ligou para o Roger para fazer um agradeci mento e um pedido.: (011) 877-1150. Ayrton testou o carro . Mesmo depois de acert ar os ponteiros com a Williams. Av. detalhista. Ayrton queria se juntara Paul Tracy e a mim na equipe Penske. ao reler o parágrafo acima. a repetição da palavra sorte. 132. enfim.A. SP. "Gostou?" . Estrada Velha de Osasco. I1-10-94 Impresso na Divisão Gráfica da Editora Abril S. Distribuído no Brasil por Dinap S.ao seu es tilo: meticuloso. Conseguia. conciliar tr abalho e sentimento. Sorte é também o que desejo a Adriane.: (011) 810-5001. Nosso último encontro. Virou rapidíss imo. SP. Emerson Fittipaldi São Paulo. cara a cara. Voltou radiante. Sua maturidade como ser humano era visível. Bem. foi em Interlagos. talvez sorte seja. mas que ainda tem muito pela frente para superar a i nsuperável ausência de seu namorado. tudo bem?" e um "boa sorte". . O suficiente para um rápido "Alô. ao lado de Adriane Galisteu. Acho que já é hora de contar um segredo que guardamos conosco. de mim para ele. naquela tarde.perguntei. para o caso de resolver mudar de turma no automobilismo.A. na pista. tel. Ayrton estava tendo sorte na vida. Mas eu sentia q ue. a quem a vida pregou um susto cruel. Não a teve. O calendário da Indy e o da Fórmula 1 não iam trombar naquela data. como Ayrton. construiu a vida nos pe rcursos arriscados do asfalto.carro que meu big boss Roger Penske botou à disposição dele. Ele nem precisava responder: seus olhos brilhavam como os de um garotinho que acabou de ganhar um presente. Sonhava em correr em Indianápolis na temporada de 1994. 4400. Parou no boxe e mudou a posição do banco. como eu. Havia encont rado sua metade. um instrumento indispensável a quem. a um ou dois minutos do iníci o do GP do Brasil de 1994. por mais que a reneguemos. Otaviano Alves de Lima.