NÓVIOA, Antônio. Professores, imagens do futuro presente.
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António NóvoaProfessores Imagens do futuro presente EDUCA Lisboa | 2009 EDUCA Instituto de Educação Universidade de Lisboa Alameda da Universidade 1649-013 Lisboa | Portugal Professores: Imagens do futuro presente © António Nóvoa 41 Capa de Mário Seixas, com colagem de Cruzeiro Seixas [colecção particular] Fora de colecção Julho de 2009 Tipografia: Relgráfica artes gráficas Lda., Benedita Depósito legal: ??????? ISBN: 978-989-8272-02-7 Sumário Nota de apresentação | pág. 7 Capítulo 1 Professores: O futuro ainda demora muito tempo? | pág. 9 Capítulo 2 Para uma formação de professores construída dentro da profissão | pág.25 Capítulo 3 A escola e a cidadania: Apontamentos incómodos | pág. 47 Capítulo 4 Educação 2021: Para uma história do futuro | pág. 69 Bibliografia | pág. 93 41 Capítulo Capítulo 1 1 Professores: Professores: O O futuro futuro ainda ainda demora demora muito muito tempo? tempo? 41 A ssistimos, nos últimos anos, a um regresso dos professores à ribalta educativa, depois de quase quarenta anos de relativa invisibilidade. A sua importância nunca esteve em causa, mas os olhares viraram-se para outros problemas: nos anos 70, foi o tempo da racionalização do ensino, da pedagogia por objectivos, do esforço para prever, planificar, controlar; depois, nos anos 80, vieram as grandes reformas educativas, centradas na estrutura dos sistemas escolares e, muito particularmente, na engenharia do currículo; nos anos 90, dedicou-se uma atenção especial às organizações escolares, ao seu funcionamento, administração e gestão. Já perto do final do século XX, importantes estudos internacionais, comparados, alertaram para o problema das aprendizagens. Learning matters. E quando se fala de aprendizagens, fala-se, inevitavelmente, de professores. Um relatório publicado pela OCDE em 2005 – Teachers matter – inscreve “as questões relacionadas com a profissão docente como uma das grandes prioridades das políticas nacionais”. Paralelamente a estes estudos comparados, de grande difusão mundial, duas outras realidades se impõem como temas obrigatórios de reflexão e de intervenção. Por um lado, as questões da diversidade, nas suas múltiplas facetas, que abrem caminho para uma redefinição das práticas de inclusão social e de integração escolar. A construção de novas pedagogias e métodos de trabalho põe definitivamente em causa a ideia de um modelo escolar único e unificado. Por outro lado, os desafios colocados pelas novas tecnologias que têm vindo a revolucionar o dia-a-dia das sociedades e das escolas. Mas, como bem escreve Manuel Castells, o essencial reside na aquisição de uma capacidade intelectual de aprendizagem e de desenvolvimento, o que coloca os professores no centro da “nova pedagogia” (2001, p. 278). Os professores reaparecem, neste início do século XXI, como elementos insubstituíveis não só na promoção das aprendizagens, mas também na construção de processos de inclusão que respondam aos desafios da diversidade e no desenvolvimento de métodos apropriados de utilização das novas tecnologias. É este o pano de fundo do meu ensaio: o regresso dos professores ao centro das nossas preocupações e das nossas políticas. Adoptarei um tom propositadamente polémico, e até talvez excessivo, com o propósito de tornar mais nítidas as minhas posições, suscitando um debate que me parece inadiável sobre a concretização, na prática, de um futuro há tanto tempo anunciado. 1. Um largo consenso sobre os professores e o seu desenvolvimento profissional 41 Para preparar este ensaio recolhi a mais variada documentação: relatórios internacionais, artigos científicos, discursos políticos, documentos sobre a formação de professores, livros e teses de doutoramento, etc. Ao reler este conjunto díspar de materiais, produzidos pelas mais diversas instâncias, percebe-se a utilização recorrente dos mesmos conceitos e linguagens, das mesmas maneiras de falar e de pensar os problemas da profissão docente. Parece que estamos todos de acordo quanto aos grandes princípios e até quanto às medidas que é necessário tomar para assegurar a aprendizagem docente e o desenvolvimento profissional dos professores: articulação da formação inicial, indução e formação em serviço numa perspectiva de aprendizagem ao longo da vida; atenção aos primeiros anos de exercício profissional e à inserção dos jovens professores nas escolas; valorização do professor reflexivo e de uma formação de professores baseada na investigação; importância das culturas colaborativas, do trabalho em equipa, do acompanhamento, da supervisão e da avaliação dos professores; etc. Este consenso discursivo, bastante redundante e palavroso, para o qual todos contribuímos, foi-se tornando dominante no decurso da última década. Não estamos apenas a falar de palavras, mas também das práticas e das políticas que elas transportam e sugerem. Dois grandes grupos contribuíram para produzir e vulgarizar este discurso. O primeiro grupo inclui investigadores da área da formação de professores, das ciências da educação e das didácticas, redes institucionais e grupos de trabalho diversos. Nos últimos quinze anos, esta comunidade produziu um conjunto impressionante de textos, que tem como marca o conceito de professor reflexivo e que fez uma viragem no pensamento sobre os professores e a sua formação. O segundo grupo é composto pelos especialistas que actuam como consultores ou que fazem parte das grandes organizações internacionais (OCDE, União Europeia, etc.). Apesar da sua heterogeneidade, eles criaram e difundiram, no plano mundial, práticas discursivas fortemente alicerçadas em argumentos comparados. A sua legitimidade funda-se sobretudo no conhecimento das redes internacionais e dos dados comparados e não tanto no domínio teórico de uma área científica ou profissional (Nóvoa & Lawn, 2002). Estes dois grupos, mais do que os professores, contribuíram para renovar os estudos sobre a profissão docente. Ao fazer esta afirmação, não posso, todavia, deixar de recordar o aviso premonitório de David Labaree: os discursos sobre a profissionalização dos professores tendem a melhorar o estatuto e o prestígio dos especialistas (formadores de professores, investigadores, etc.) mais do que a promover a condição e o estatuto dos próprios professores (Labaree, 1992). A inflação retórica sobre a missão dos professores implica dar-lhes uma maior visibilidade social, o que reforça o seu prestígio, mas provoca também controlos estatais e científicos mais apertados, conduzindo assim a uma desvalorização das suas competências próprias e da sua autonomia profissional. Se não atendermos a 41 este paradoxo dificilmente compreenderemos algumas das contradições que atravessam a história da profissão docente (Nóvoa. que valorizem as culturas docentes. forma os professores. mas raramente temos conseguido fazer aquilo que dizemos que é preciso fazer.) acompanhados agora de uma panóplia de tecnologias educativas. Como fazer aquilo que dizemos que é preciso fazer? O que será necesário fazer para dar coerência aos nossos propósitos. Temos um discurso coerente. os seus saberes e os seus campos de actuação. houve uma expansão sem precedentes da comunidade da formação de professores. 2. faz investigação educacional. Devemos ter consciência deste problema se queremos compreender as razões que têm dificultado a concretização. na prática. Em 1991. em particular dos departamentos universitários na área da Educação. num raciocínio ab absurdo. faz. em muitos aspectos consensual. pelos peritos ou pela “indústria do ensino”. materiais didácticos. Procurava. dos especialistas internacionais e também da “indústria do ensino”. materializando na prática o consenso que se vem elaborando em torno da aprendizagem docente e do desenvolvimento profissional? Talvez seja possível 41 . uma grande pobreza das práticas. argumentarei sobre a necessidade de construir políticas que reforcem os professores. frequentemente. Na segunda parte deste ensaio. reagi ao insulto de Bernard Shaw. viram o seu território profissional e simbólico ocupado por outros grupos. chamar a atenção para certas derivas que legitimavam como figuras de referência especialistas e universitários sem qualquer ligação à profissão docente e ao trabalho escolar ao mesmo tempo que deslegitimavam os professores de uma intervenção no seu próprio campo profissional reduzindo-os a um papel secundário na formação de professores e na investigação educacional. 1998). Quem não sabe ensinar. ensina. num certo sentido. etc. Quem não sabe. O excesso dos discursos esconde. de ideias e discursos que parecem tão óbvios e consensuais. e que não transformem os professores numa profissão dominada pelos universitários. Nestas três esferas de acção produziu-se uma inflação discursiva sobre os professores. Mas os professores não foram os autores destes discursos e. Deixem-me retomar uma provocação que fiz há quase vinte anos e que me causou alguns dissabores. com os seus produtos tradicionais (livros escolares. Nos últimos anos. Quem não sabe formar professores. acrescentando-lhe duas máximas: Quem sabe. Neste hospital. mais alargado. quero sublinhar a necessidade de os professores terem um lugar predominante na formação dos seus colegas. Primeira medida . Lee Shulman explica que um dia acompanhou a rotina diária de um grupo de estudantes e professores médicos num hospital escolar. sobretudo dos casos de insucesso escolar. mas que podem ajudar a superar muitos dos dilemas actuais. vontades e competências. De seguida. (iv) compromisso social e vontade de mudança. mobilizando conhecimentos. Advogo um sistema semelhante para a formação de professores: (i) estudo aprofundado de cada caso. que estão longe de esgotar as respostas possíveis. uma análise da situação.É preciso passar a formação de professores para dentro da profissão A frase que escolhi para subtítulo – É preciso passar a formação de professores para dentro da profissão – soa de modo estranho.assinalar três medidas. Há um envolvimento real na melhoria e na mudança das práticas hospitalares. um diagnóstico e uma terapia. Ao recorrer a esta expressão. O grupo observou sete doentes. (ii) análise colectiva das práticas pedagógicas. intitulado Uma proposta imodesta. merece referência um apontamento recente de Lee Shulman. uma reflexão conjunta. (iii) obstinação e persistência profissional para responder às necessidades e anseios dos alunos. O dia terminou com um debate. Lee Shulman escreve que viu uma instituição reflectir colectivamente sobre o seu trabalho. sobre a realidade do hospital e sobre as mudanças organizacionais a introduzir para garantir a qualidade dos cuidados de saúde. O exemplo dos médicos e dos hospitais escolares e o modo como a sua preparação está concebida nas fases de formação inicial. realizou-se um seminário didáctico sobre a função pulmonar. Não haverá nenhuma mudança significativa se a “comunidade dos formadores de professores” e a “comunidade dos professores” não se tornarem mais permeáveis e imbricadas. o médico responsável discutiu com os internos (alunos mais avançados) a forma como tinha decorrido a visita e os aspectos a corrigir. estudando cada caso como uma “lição”. No final. E afirma que este modelo constitui não só um importante processo pedagógico. A este propósito. a reflexão partilhada não é uma mera palavra. 41 . Ninguém se resigna com o insucesso. de indução e de formação em serviço talvez nos possa servir de inspiração. Havia um relatório sobre o paciente. mas também um exemplo de responsabilidade e de compromisso. É importante assegurar que a riqueza e a complexidade do ensino se tornem visíveis. serão bem pobres as mudanças que terão lugar no interior do campo profissional docente. escusado será dizer. Quanto mais se fala da autonomia dos professores mais a sua acção surge controlada.É preciso promover novos modos de organização da profissão A segunda medida que proponho aponta para a necessidade de promover novos modos de organização da profissão. se forem apropriadas a partir de uma reflexão dos professores sobre o seu próprio trabalho. como criaram processos de integração dos mais jovens. não é possível escrever textos atrás de textos sobre a praxis e o practicum. Enquanto forem apenas injunções do exterior. adquirindo um estatuto idêntico a outros campos de trabalho académico e criativo. mas antes como a emergência de novas formas de governo e de controlo da profissão. Segunda medida . os engenheiros ou os arquitectos. do ponto de vista profissional e científico. Mas o exemplo de outras profissões. como os médicos. Trata-se. sim. num tempo tão carregado de referências ao trabalho cooperativo dos professores. A forma como construíram parcerias entre o mundo profissional e o mundo universitário. ao mesmo tempo. A colegialidade. sobre a phronesis e a prudentia como referências do saber docente.Na verdade. por instâncias diversas. suficientemente rico e aberto. Não é possível preencher o fosso entre os discursos e as práticas se não houver um campo profissional autónomo. 2008). pode inspirar os professores. como concederam uma grande centralidade aos profissionais mais prestigiados ou como se predispuseram a prestar contas públicas do seu trabalho são exemplos para os quais vale a pena olhar com atenção. designadamente burocráticas. é surpreendente a fragilidade dos movimentos pedagógicos que desempenharam ao longo das 41 . conduzindo a uma diminuição das suas margens de liberdade e de independência. sobre os professores reflexivos. é essencial reforçar dispositivos e práticas de formação de professores baseadas numa investigação que tenha como problemática a acção docente e o trabalho escolar. O aumento exponencial de dispositivos burocráticos no exercício da profissão não deve ser vista como uma mera questão técnica ou administrativa. a partilha e as culturas colaborativas não se impõem por via administrativa ou por decisão superior. de afirmar que as nossas propostas teóricas só fazem sentido se forem construídas dentro da profissão. E. de defender perspectivas de mitificação da prática ou modalidades de anti-intelectualismo na formação de professores (Ladwig. Grande parte dos discursos torna-se irrealizável se a profissão continuar marcada por fortes tradições individualistas ou por rígidas regulações externas. Hoje. que se têm acentuado nos últimos anos. Não se trata. se não concretizarmos uma maior presença da profissão na formação. por deslegitimação face aos universitários e aos peritos) do que muitos dos seus colegas que exerceram a docência num tempo em que ainda não se falava do “professor reflexivo”? Numa palavra. Mas. É inútil reivindicar uma formação mútua. Pat Hutchings e Mary Taylor Huber (2008) têm razão quando referem a importância de reforçar as comunidades de prática. As perguntas sucedem-se. isto é. Através dos movimentos pedagógicos ou das comunidades de prática. Terceira medida . profissional e cívica dos alunos. Será que. Ada Abraham escreveu esse belo livro. apesar dos enormes avanços neste domínio. reforça-se um sentimento de pertença e de identidade profissional que é essencial para que os professores se apropriem dos processos de mudança e os transformem em práticas concretas de intervenção. sociais e políticos. são espaços insubstituíveis na aprendizagem docente e no desenvolvimento profissional. por excesso de material didáctico pré-preparado. se a definição das carreiras docentes não for coerente com este propósito. colaborativa. mas também para que se construam percursos significativos de aprendizagem ao longo da vida. Tratase de construir um conhecimento pessoal (um auto-conhecimento) no interior do conhecimento profissional e de captar o sentido de uma profissão que não cabe apenas numa matriz técnica ou científica. Mas nada será conseguido se não se alterarem as condições existentes nas escolas e as políticas públicas em relação aos professores. não vale a pena repetir intenções que não tenham uma tradução concreta em compromissos profissionais. mas que está no cerne da identidade profissional docente. É inútil propor uma qualificação baseada na investigação e parcerias entre escolas e instituições universitárias se os normativos legais persistirem em dificultar esta aproximação.décadas um papel central na inovação educacional. Toca-se aqui em qualquer coisa de indefinível. Estes movimentos. inter-pares. que se tornou um símbolo de diversas correntes de investigação sobre os professores. tantas vezes baseados em redes informais e associativas. É esta reflexão colectiva que dá sentido ao seu desenvolvimento profissional.É preciso reforçar a dimensão pessoal e a presença pública dos professores Em 1984. hoje. L’enseignant est une personne . um espaço conceptual construído por grupos de educadores comprometidos com a pesquisa e a inovação. é preciso reconhecer que falta ainda elaborar aquilo que tenho designado por uma teoria da pessoalidade que se inscreve no interior de uma teoria da profissionalidade. em texto 41 . no qual se discutem ideias sobre o ensino e aprendizagem e se elaboram perspectivas comuns sobre os desafios da formação pessoal. É inútil apelar à reflexão se não houver uma organização das escolas que a facilite. por falta de condições. muitos professores não são bem menos reflexivos (por falta de tempo. Este esforço conceptual é decisivo para se compreender a especificidade da profissão docente. Recordo Bertrand Schwartz (1967). impõe-se uma abertura dos professores para o exterior. paradoxalmente. é necessário que as pessoas possuam o tempo e as condições 41 . neste início do século XXI. uma espécie de silêncio de uma profissão que perdeu visibilidade no espaço público. a profissão tornar-se-á mais vulnerável. Falta-nos talvez. transformou-se depois numa necessidade e agora é vista como uma obrigação. Comunicar com a sociedade é também responder perante a sociedade. p. os universitários. É necessário recusar o consumismo de cursos.escrito há mais de quarenta anos: a Educação Permanente começou por ser um direito pelo qual se bateram gerações de educadores. Os lugares da formação podem reforçar a presença pública dos professores. Mas. seminários e acções que caracteriza o actual “mercado da formação” sempre alimentado por um sentimento de “desactualização” dos professores. como diz Ann Lieberman (1999). ter a coragem de começar: “Apesar da urgência. sem rodeios. a minha opinião sobre a distância que separa o excesso dos discursos da pobreza das práticas. * * * * * Ao longo deste ensaio evitei ser redundante na afirmação de princípios que me parecem. Fala-se muito das escolas e dos professores. mas esta é a condição necessária para a afirmação do seu prestígio e do seu estatuto social. em grande parte. Não falam os professores. 161). Temse alargado o interesse público pela coisa educativa. os colunistas. Falam os jornalistas. bastante consensuais. servindo apenas para complicar um quotidiano docente já de si fortemente exigente. A aprendizagem ao longo da vida justifica-se como direito da pessoa e como necessidade da profissão. Hoje. também aqui se tem notado a falta dos professores. Procurei antes transmitir. a força de uma profissão define-se. Possivelmente. mas não como obrigação ou constrangimento. A consciência aguda deste “fosso” convida-nos a encontrar novos caminhos para uma profissão que. Há uma ausência dos professores. Nas sociedades contemporâneas. os especialistas. pela sua capacidade de comunicação com o público. hoje. de aquisição e reaquisição de competências. volta a adquirir uma grande relevância pública. de aumento das certificações e de preparação para uma vida de procura permanente de um emprego: a vida está a tornar-se uma capitalização contínua do self” (1999. A crítica de Nikolas Rose à emergência de um novo conjunto de obrigações educacionais merece ser recordada: “O novo cidadão é obrigado a envolver-se num trabalho incessante de formação e re-formação. A única saída possível é o investimento na construção de redes de trabalho colectivo que sejam o suporte de práticas de formação baseadas na partilha e no diálogo profissional. Muitos programas de formação contínua têm-se revelado inúteis. É isto que não temos feito”. Mas temos dificuldade em dar passos concretos nesse sentido. quis organizar este ensaio em torno da pergunta: Será que o futuro ainda demora muito tempo? 41 .humanas e materiais para ir mais longe. Parece que todos sabemos. e até concordamos. É preciso começar. com o que deve ser o futuro da profissão docente. Por isso. O trabalho de formação deve estar próximo da realidade escolar e dos problemas sentidos pelos professores. Capítulo Capítulo 2 2 Para Para uma uma formação formação de de professores professores construída construída dentro dentro da da profissão profissão 41 . como se as palavras ganhassem vida própria e se desligassem da realidade das coisas. Os textos. como todos sabemos. redundantes e repetitivos. a planificação. neste início do século XXI. que se traduz numa pobreza de práticas. Os anos 90 pela organização. sobretudo. administração e gestão dos estabelecimentos de ensino. E. Procurarei iluminar cinco facetas desta problemática. Os anos 80 pelas reformas educativas e pela atenção às questões do currículo. as recomendações. pessoa. Agora. as mesmas propostas.A educação vive um tempo de grandes incertezas e de muitas perplexidades. público. parece ter voltado o tempo dos professores. O meu ensaio constrói-se em torno de um argumento muito simples: a necessidade de uma formação de professores construída dentro da profissão. as mesmas ideias. Há um excesso de discursos. mas nem sempre conseguimos definir-lhe o rumo. Os anos 70 foram marcados pela racionalização do ensino. para construir propostas educativas que nos façam sair deste círculo vicioso e nos ajudem a definir o futuro da formação de professores. partilha. os artigos e as teses sucedem-se a um ritmo alucinante repetindo os mesmos conceitos. É difícil não sermos contaminados por este “discurso gasoso” que ocupa todo o espaço e que dificulta a emergência de modos alternativos de pensar e de agir (Nóvoa & DeJong-Lambert. 2003). que é também um efeito de moda. talvez valha a pena regressar a uma pergunta que deixámos de fazer há muitos anos: O que é um bom professor? O que é um bom professor? Sabemos todos que é impossível definir o “bom professor”. 41 . a pedagogia por objectivos. talvez. a não ser através dessas listas intermináveis de “competências”. profissão. E a moda é. Mas é preciso fazer um esforço para manter a lucidez e. a um regresso dos professores ao centro das preocupações educativas. sugerindo disposições que caracterizam o trabalho docente nas sociedades contemporâneas. a pior maneira de enfrentar os debates educativos. Mas é possível. As organizações internacionais e as redes que hoje nos mantêm permanentemente ligados contribuem para esta vulgata que tende a vendar mais do que a desvendar. Sentimos a necessidade da mudança. cuja simples enumeração se torna insuportável. esboçar alguns apontamentos simples. num tempo assim. O campo da formação de professores está particularmente exposto a este efeito discursivo. Há momentos em que parece que todos dizemos o mesmo. O ensaio tem como pano de fundo a convicção de que estamos a assistir. a partir de palavras que são também propostas de acção: práticas. a reflexão sobre o trabalho e o exercício da avaliação são elementos centrais para o aperfeiçoamento e a inovação. 2. procuraram-se os atributos ou as características que definiam o “bom professor”. Mas bem mais importante é. Todavia. a tónica numa (pre)disposição que não é natural mas construída. já na segunda metade do século XX. pretendo romper com um debate sobre as competências que me parece saturado. Ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar. que assumiu um papel importante na reflexão teórico e. Limito-me a assinalar. Coloco. Aligeiro as palavras do filósofo francês Alain: Dizem-me que. por isso. E ninguém pensa no vazio. assim. Esta abordagem conduziu. que se tenha adaptado tão bem às políticas da “qualificação dos recursos humanos”. brevemente. nunca conseguiu libertar-se das suas origens comportamentalistas e de leituras de cariz técnico e instrumental. em 1934. Talvez. Nos anos 90 foi-se impondo um outro conceito. 1993). apesar de inúmeras reelaborações. Durante muito tempo. São estas rotinas que fazem avançar a profissão. integrar-se numa profissão. numa profissionalidade docente que não pode deixar de se construir no interior de uma pessoalidade do professor. Quantos livros se gastaram para tentar apreender este conceito tão difícil de definir? Nele cabe essa capacidade de relação e de comunicação sem a qual não se cumpre o acto de educar. Ao sugerir um novo conceito. que pretende olhar preferencialmente para a ligação entre as dimensões pessoais e profissionais na produção identitária dos professores. é necessário conhecer aqueles que se instruem. à consolidação de uma trilogia que teve grande sucesso: saber (conhecimentos). competências. 3. p. O conhecimento. Gil. as razões por que a ele recorro em vez de competências. “é preciso substituir o aborrecimento de viver pela alegria de pensar” (cf. conhecer bem aquilo que se ensina (1986. A cultura profissional. para instruir. sem dúvida. E também essa 41 . mas antes na aquisição e na compreensão do conhecimento. nas reformas educativas. saber-fazer (capacidades). aprender com os colegas mais experientes. saber-ser (atitudes). adquirindo uma grande visibilidade nos textos das organizações internacionais. 1. É na escola e no diálogo com os outros professores que se aprende a profissão. Como escreveu Gaston Bachelard. em particular da União Europeia. na definição pública de uma posição com forte sentido cultural. sobretudo. O registo das práticas. Adopto um conceito mais “liquído” e menos “sólido”. Alain tinha razão. da “empregabilidade” e da “formação ao longo da vida”. 55). disposição. O tacto pedagógico. O trabalho do professor consiste na construção de práticas docentes que conduzam os alunos à aprendizagem.Reconheço que o conceito de disposição levanta algumas dificuldades. Não espanta. do trabalho em equipa. São propostas genéricas que. de percorrer três momentos de formação: 1. Elas servem-nos de pretexto para a elaboração das propostas seguintes sobre a formação de professores.º Um período probatório. Educar é conseguir que a criança ultrapasse as fronteiras que. em torno de “comunidades de prática”. O trabalho em equipa. se define o Mestrado como grau académico para a entrada na profissão docente. o conhecimento. conquistando os alunos para o trabalho escolar. Aqui ficam cinco disposições que são essenciais à definição dos professores nos dias de hoje. a realidade da escola obriga-nos a ir além da escola. 3. devidamente contextualizadas. na actual configuração das políticas europeias. Comunicar com o público. dos valores. com um forte referencial didáctico. as dimensões profissionais cruzam-se sempre. Sem esse conhecimento tudo o resto é irrisório. sobre o segundo e o terceiro momentos do percurso de formação como professor. de indução profissional. cada vez mais. da diversidade cultural. pela família ou pela sociedade. sobretudo no caso da formação de professores do ensino secundário. Hoje. O exercício profissional organiza-se. intervir no espaço público da educação. faz parte do ethos profissional docente. podem inspirar uma renovação dos programas e das práticas de formação. com as dimensões pessoais.º O mestrado em ensino. Saber conduzir alguém para a outra margem. 4. o domínio científico de uma determinada área do conhecimento é absolutamente imprescindível. Os novos modos de profissionalidade docente implicam um reforço das dimensões colectivas e colaborativas. 2. P1 – Práticas A formação de professores deve assumir uma forte componente práxica. pedagógico e profissional. assim. mas também no contexto de movimentos pedagógicos que nos ligam a dinâmicas que vão para além das fronteiras organizacionais. inevitavelmente. O compromisso social. no interior de cada escola.serenidade de quem é capaz de se dar ao respeito. centrada na aprendizagem dos alunos e no estudo de casos concretos. Parto do pressuposto que. como é evidente. da intervenção conjunta nos projectos educativos de escola. lhe foram traçadas como destino pelo nascimento. tantas vezes. As propostas seguintes incidem apenas. 41 . Podemos chamar-lhe diferentes nomes. Os candidatos ao professorado terão. não está ao alcance de todos. No ensino. É escusado dizer que. 5. da inclusão social. mas todos convergem no sentido dos princípios. tendo como referência o trabalho escolar.º A graduação numa determinada disciplina científica. 2008). Os quatro aspectos acima mencionados encerram quatro lições importantes. recentemente. Émile Durkheim avança mesmo o conceito de teoria prática. de entre todas as ciências práticas. É certo que. continua a revelar-se fértil. mas procurando mobilizar um conhecimento pertinente. pela capacidade de transmitir um determinado saber. de acompanhar um grupo de estudantes e professores de Medicina num hospital universitário. que colocariam os métodos de ensino acima de tudo o resto (adopta-se aqui a divisão entre “republicanos” e “pedagogos” habitual nas polémicas educativas em França – ver a tese de doutoramento de Alain Trouvé. Impõe-e instituir as práticas profissionais como lugar de Não se trata de adoptar uma qualquer deriva praticista e. Estamos perante um modelo que pode servir de inspiração para a formação de professores. uma vez que tem como objectivo a acção e não o saber (1887. E. 2238). etc. que vem desde a origem das primeiras escolas normais. Inspirado por um texto de Lee Shulman. internos. Henri Marion afirma que. de abandonar a ideia de que a profissão docente se define. e “pedagogos”. dando origem a à construção de um conhecimento profissional docente. logo no final do século XIX. iii) a existência de uma reflexão conjunta. Como escreve David Labaree (2000). ii) a identificação de aspectos a necessitarem de aprofundamentos teóricos. a ciência política é a mais próxima da pedagogia. para tentar escapar a uma inútil dicotomia (1993. 41 . 2006). uma reflexão que permitisse transformar a prática de professores continuou a ser dominada mais por referências internas ao trabalho docente. quero chamar a atenção para quatro aspectos: i) o modo como a formação se realiza a partir da observação. iv) a preocupação com questões relacionadas com o funcionamento dos serviços hospitalares e a necessidade de introduzir melhorias de diversa ordem. alimenta-se publicamente a ideia de que ensinar é muito simples. Do que pude observar. por vezes. um terceiro lugar. pela dicotomia teoria/prática. Não. alguns anos mais tarde. em 1902. de acolher as tendências anti-intelectuais na formação de professores (Nóvoa. no século XIX. A este propósito.). O que caracteriza a profissão docente é um lugar outro. durante muito tempo. Mas a verdade é que não houve em conhecimento. É esta concepção que tem levado às intermináveis discussões entre “republicanos”. no qual as práticas são investidas do ponto de vista teórico e metodológico. tive a oportunidade. An immodest proposal. designadamente quanto à possibilidade de distintas abordagens de uma mesma situação. p. as práticas docentes são extremamente difíceis e complexas. E a formação referências externas do que por inverter esta longa tradição. primordialmente. estagiários. contribuindo assim para um desprestígio da profissão. muito menos. p. mas. que apenas se interessariam pelos conteúdos científicos. sem confundir os papéis de cada um (chefe da equipa. médicos.O debate educativo esteve marcado. 80). do estudo e da análise de cada caso. sim. e reflexão e de formação. a comparação com a formação dos médicos. Trata-se. A formação de professores ganharia muito se se organizasse. pois supõe uma transformação dos saberes. Em terceiro lugar. mobiliza conhecimentos teóricos. para explicar a acção docente. Esta segunda proposta é a que melhor ilustra o conjunto dos argumentos que procuro desenvolver neste ensaio. concedendo aos professores mais experientes um papel central na formação dos mais jovens. pessoais. Estamos no âmago do trabalho do professor. mas só podem ser resolvidos através de uma análise que. isto é. sugerindo uma atenção constante à necessidade de mudanças nas rotinas de trabalho. a importância de um conhecimento que vai para além da “teoria” e da “prática” e que reflecte sobre o processo histórico da sua constituição. para ser professor não basta dominar um determinado conhecimento. as explicações que prevaleceram e as que foram abandonadas. é preciso compreendê-lo em todas as suas dimensões. mas que exige sempre um esforço de reelaboração. Em quarto lugar. de insucesso escolar. P2 – Profissão A formação de professores deve passar para “dentro” da profissão. prefiro falar em transformação deliberativa. Posteriormente.Em primeiro lugar. e o desejo de encontrar soluções que permitam resolvê-los. Pessoalmente. as hipóteses alternativas. Nos últimos vinte anos. isto é. Estes casos são “práticos”. Em segundo lugar. Philippe Perrenoud (1998) avançou o conceito de transposição pragmática para sublinhar a importância da mobilização prática dos saberes em situações inesperadas e imprevisíveis. e obriga a uma deliberação. em torno de situações concretas. a referência sistemática a casos concretos. preferentemente. que não é uma mera aplicação prática de uma qualquer teoria. a uma resposta a dilemas pessoais. o papel de certos indivíduos e de certos contextos. partindo deles. etc. trabalhado por Yves Chevallard (1985). Ela poderia estar escrita de outro modo: 41 . Como escreve Lee Shulman (1986) num texto seminal. de problemas escolares ou de programas de acção educativa. sociais e culturais. as dúvidas que persistem. deve basear-se na aquisição de uma cultura profissional. na medida em que o trabalho docente não se traduz numa mera transposição. A inovação é um elemento central do próprio processo de formação. a procura de um conhecimento pertinente. colectivas ou organizacionais. E se inspirasse junto dos futuros professores a mesma obstinação e persistência que os médicos revelam na procura das melhores soluções para cada caso. a importância de conceber a formação de professores num contexto de responsabilidade profissional. vulgarizou-se o conceito de transposição didáctica. Enquanto forem apenas injunções do exterior. 2004). claro está. mas a formação de um professor encerra uma complexidade que só se obtém a partir da integração numa cultura profissional. o modo de entrada na profissão. E. assim é. É inegável que a investigação científica em educação tem uma missão indispensável a cumprir. insisto na necessidade de devolver a formação de professores aos professores.devolver a formação de professores aos professores. etc. foram assumindo uma responsabilidade cada vez maior na formação dos professores. de uma série de especialistas e de entidades de acreditação e de avaliação que definem os currículos da formação de professores. verifica-se um desenvolvimento. Os médicos. houve vários grupos que. a expansão da “comunidade de formadores de professores” teve efeitos muito positivos. nada justifica o papel marginal que desempenham no segundo momento (mestrado) e até. a tendência para valorizar o papel dos “cientistas da educação” ou dos “especialistas pedagógicos” e do seu conhecimento teórico ou metodólógico em detrimento dos professores e do seu conhecimento prático. os engenheiros ou os arquitectos têm um papel dominante na formação dos seus futuros colegas. No segundo caso. relegando os próprios professores para um papel secundário. OCDE. as regras do período probatório e o juízo sobre os desempenhos profissionais. Na verdade. Se é natural que assim seja no que diz respeito ao primeiro momento da formação dos professores do ensino secundário (licenciatura). se não concretizarmos uma maior presença da profissão na formação (Birmingham. sobretudo no que diz respeito à proximidade com a investigação e ao rigor científico. sem precedentes. Mas não é possível escrever textos atrás de textos sobre a praxis e o practicum. sobre a phronesis e a prudentia como referências do saber docente. 41 . serão bem pobres as mudanças que terão lugar no interior do campo profissional docente. progressivamente. de facto. porque o reforço de processos de formação baseadas na investigação só faz sentido se eles forem construídos dentro da profissão. O mesmo não se passa com os professores. no terceiro (indução profissional). Estes especialistas são fortemente influenciados pelas organizações internacionais (União Europeia. por vezes. Estou a referir-me a um conjunto vasto e heterogéneo de especialistas que ocupam lugares de destaque nos departamentos universitários de Educação (ou Ciências da Educação) e nas entidades oficiais ou para-oficiais responsáveis pela política educativa. O contributo destes dois grupos é essencial para a formação de professores. No primeiro caso. sobre os professores reflexivos. Por isso.) e tendem a ocupar um espaço que deveria ser da responsabilidade dos professores mais experientes. A frase pressupõe que os professores terão sido afastados dos programas de formação. Mas acentuou. e na regulação da profissão docente. Grande parte da nossa vida profissional joga-se nestes anos iniciais e na forma como nos integramos na escola e no professorado. temos dito (e repetido) que o professor é a pessoa. que constrói uma teoria da pessoalidade no interior de uma teoria da profissionalidade. junto dos futuros professores e nos primeiros anos de exercício profissional. Que é impossível separar as dimensões pessoais e profissionais. momentos que permitam a construção de narrativas sobre as suas próprias histórias de vida pessoal e profissional. Ao longo dos últimos anos. 41 . Assim sendo. os primeiros anos de exercício docente. Que ensinamos aquilo que somos e que. Nestes anos em que transitamos de aluno para professor é fundamental consolidar as bases de uma formação que tenha como referência lógicas de acompanhamento. é importante estimular. naquilo que somos. trabalhando essa capacidade de relação e de comunicação que define o tacto pedagógico. para esse corpo-a-corpo diário a que os professores estão obrigados. Ora esta relação (a qualidade desta relação) exige que os professores sejam pessoas inteiras. As dificuldades levantadas pelos “novos alunos” (por aqueles que não querem aprender. Não se trata de regressar a uma visão romântica do professorado (a conceitos vocacionais ou missionários). e que a pessoa é o professor. isto é. de análise da prática e de integração na cultura profissional docente. se encontra muito daquilo que ensinamos. E que é fundamental reforçar a pessoa-professor e o professor-pessoa. Que importa. Refiro-me à necessidade de elaborar um conhecimento pessoal (um autoconhecimento) no interior do conhecimento profissional e de captar (de capturar) o sentido de uma profissão que não cabe apenas numa matriz técnica ou científica. práticas de autoformação. Estamos no limiar de uma proposta com enormes consequências para a formação de professores. este momento deve ser organizado como parte integrante do programa de formação em articulação com a licenciatura e o mestrado. P3 – Pessoa A formação de professores deve dedicar uma atenção especial às dimensões pessoais da profissão docente. para um trabalho de auto-reflexão e de auto-análise. por isso.Um momento particularmente sensível na formação de professores é a fase de indução profissional. sim. Trata-se. Temos caminhado no sentido de uma melhor compreensão do ensino como profissão do humano e do relacional. de formação-em-situação. Neste sentido. que os professores se preparem para um trabalho sobre si próprios. de reconhecer que a necessária tecnicidade e cientificidade do trabalho docente não esgotam todo o ser professor. por aqueles que trazem novas realidades sociais e culturais para dentro da escola) chamam a atenção para a dimensão humana e relacional do ensino. Retenho apenas dois aspectos. a ideia da escola como o lugar da formação dos professores. é tão importante assumir uma ética profissional que se constrói no diálogo com os outros colegas. reforçando a importância dos projectos educativos de escola. A emergência do professor colectivo (do professor como colectivo) é uma das principais realidades do início do século XXI. de supervisão e de reflexão sobre o trabalho docente. na engenharia ou na advocacia. Em segundo lugar. por exemplo na saúde. a partilha e as culturas colaborativas não se impõem por via administrativa ou por decisão superior. a ideia da docência como colectivo. não se tinha verificado ainda a consolidação de um verdadeiro “actor colectivo” no plano profissional.Toca-se aqui em qualquer coisa de indefinível. a complexidade do trabalho escolar reclama um aprofundamento das equipas pedagógicas. A formação de professores é essencial para 41 . A colegialidade. e que se define. Em primeiro lugar. mas no ensino. Não há respostas feitas para o conjunto de dilemas que os professores são chamados a resolver numa escola marcada pela diferença cultural e pelo conflito de valores. mas que está no cerne da identidade profissional docente. todas as implicações do que acabo de afirmar para a formação de professores. P4 – Partilha A formação de professores deve valorizar o trabalho em equipa e o exercício colectivo da profissão. A competência colectiva é mais do que o somatório das competências individuais. A formação deve contribuir para criar nos futuros professores hábitos de reflexão e de auto-reflexão que são essenciais numa profissão que não se esgota em matrizes científicas ou mesmo pedagógicas. é essencial para que cada um adquira uma maior consciência do seu trabalho e da sua identidade como professor. como o espaço da análise partilhada das práticas. Seria demasiado longo percorrer. Estamos a falar da necessidade de um tecido profissional enriquecido. apesar da existência de algumas práticas colaborativas. Já se tinha assistido a este fenómeno noutras profissões. O objectivo é transformar a experiência colectiva em conhecimento profissional e ligar a formação de professores ao desenvolvimento de projectos educativos nas escolas. da necessidade de integrar na cultura docente um conjunto de modos colectivos de produção e de regulação do trabalho. a partir de referências pessoais. Por isso. inevitavelmente. enquanto rotina sistemática de acompanhamento. O registo escrito. tanto das vivências pessoais como das práticas profissionais. não só no plano do conhecimento mas também no plano da ética. Hoje. agora. Sem isso. As escolas são lugares da relação e da comunicação. Mas as escolas comunicam mal com o exterior. sobretudo. ao longo do século XX. esta vulnerabilidade é condição essencial da sua evolução e da sua transformação. favorecendo a comunicação pública e a participação profissional no espaço público da educação. a ter uma voz pública. a conquistar a sociedade para o trabalho educativo comunicar para fora da escola. As escolas resistem à avaliação e à prestação de contas sobre o seu trabalho. é surpreendente a fragilidade dos movimentos pedagógicos que. É urgente reforçar as comunidades de prática. um espaço conceptual construído por grupos de educadores comprometidos com a pesquisa e a inovação.consolidar parcerias no interior e no exterior do mundo profissional. 41 . paradoxalmente. Os professores explicam mal o seu trabalho. é apenas um pólo – sem dúvida muito importante – num conjunto de redes e de instituições que devem responsabilizar-se pela educação das crianças e pela formação dos jovens. O diálogo profissional tem regras e procedimentos que devem ser adquiridos e exercitados nas escolas de formação e nos primeiros anos de exercício docente. Mas. P5 – Público A formação de professores deve estar marcada por um princípio de responsabilidade social. A escola cresceu como “palácio iluminado”. Será que a exposição pública vai contribuir para tornar os professores e as escolas mais vulneráveis? Talvez. continuaremos a repetir intenções que dificilmente terão uma tradução concreta na vida dos professores e das escolas. É esta reflexão colectiva que dá sentido ao desenvolvimento profissional dos professores. Hoje. E. Através dos movimentos pedagógicos ou das comunidades de prática. isto é. há uma ausência da voz dos professores nos debates públicos. num tempo tão carregado de referências ao trabalho cooperativo dos professores. são espaços insubstituíveis no desenvolvimento profissional dos professores. Para conseguir esta transformação de fundo na organização da profissão docente é fundamental construir programas de formação coerentes. é este estatuto mais modesto que lhe permitirá readquirir uma credibilidade que foi perdendo. tantas vezes baseados em redes informais e associativas. É necessário aprender a comunicar com o público. profissional e cívica dos alunos. Hoje. desempenharam um papel central na inovação educacional. Estes movimentos. reforça-se um sentimento de pertença e de identidade profissional que é essencial para que os professores se apropriem dos processos de mudança e os transformem em práticas concretas de intervenção. Curiosamente. no qual se discutem ideias sobre o ensino e aprendizagem e se elaboram perspectivas comuns sobre os desafios da formação pessoal. Concluindo… De forma simples. São princípios que já inspiram muitos programas de formação de professores. valorizando aquilo que é especificamente escolar. cultura profissional. os dois últimos momentos. mas que tem como âncora os próprios professores. mas também da sua capacidade de intervenção no espaço público da educação. procurei identificar cinco facetas que definem o “bom professor”: conhecimento. isto é. tacto pedagógico. que elas tenham capacidade de decisão sobre os assuntos educativos. Infelizmente. pela sua visibilidade social. Importa retomar uma tradição histórica das escolas de formação do início do século XX. pedagógicos e ténicos. é necessário reintroduzir esta dimensão nos programas de formação de professores. ainda que numa perspectiva diferente. trabalho em equipa e compromisso social. no qual se poderá celebar um novo contrato entre os professores e a sociedade. a cultura profissional. sobretudo.A contemporaneidade exige que tenhamos a capacidade de recontextualizar a escola no seu lugar próprio. Se os programas de formação não compreenderem esta nova realidade da profissão docente passarão ao lado de um dos principais desafios deste princípio do século XXI. Faltaria ainda referir a importância de uma articuação com as dinâmicas de formação contínua. Nas sociedades contemporâneas. baseada numa combinação complexa de contributos científicos. Não basta atribuir responsabilidades às diversas entidades. deixando para outras instâncias actividades e responsabilidades que hoje lhe estão confiadas. marcadas com a letra P. pois a sobrevivência da profissão depende da qualidade do trabalho interno nas escolas. as dimensões pessoais. que procuravam acentuar o papel social dos professores. No essencial. é necessário que elas tenham uma palavra a dizer. nem sempre há uma 41 . indução profissional – estas propostas destinam-se a inspirar. o prestígio de uma profissão mede-se. É este o sentido daquilo que tenho designado por novo espaço público da educação. mas esse não era o tema deste artigo. nos encaminhamos para uma formação em três momentos – graduação. advogo uma formação de professores construída dentro da profissão. procuram valorizar a componente práxica. mestrado. No caso dos professores estamos mesmo perante uma questão decisiva. Elas sugerem uma organização integrada e coerente do mestrado (2 anos) e da indução profissional (2 a 3 anos). As cinco propostas que avancei. em grande parte. Hoje. sobretudo os professores mais experientes e reconhecidos. pelo menos na Europa. as lógicas colectivas e a presença pública dos professores. Admitindo que. A concretização desta mudança exige uma grande capacidade de comunicação dos professores e um reforço da sua presença pública. 41 . Reconheço que nos faz falta dedicar mais tempo à comunicação e discussão de experiências concretas de formação de professores existentes em várias universidades de referência.divulgação destes programas. nem os meios que permitam difundi-los junto dos círculos educacionais e profissionais (Darling-Hammond. 2002). Chung & Felow. Capítulo Capítulo 3 3 A A escola escola e ea a cidadania: cidadania: Apontamentos Apontamentos incómodos incómodos 41 . os cenários de futuro da educação e. As minhas palavras têm como pano de fundo a convicção de que estamos a viver uma fase de transição.. pondo no “saco curricular” cada vez mais coisas e nada dele retirando. mas foi integrando todos os conteúdos possíveis e imaginários. mas foi juntando a educação. aos sentimentos. mas prolongou a sua acção ao corpo. Mas parece-me que chegou o momento de nos despirmos das carapaças. intencionalmente. uma atitude de interrogação que não se limite a repetir o que já sabemos. em Portugal e no mundo.... num registo polémico e. para a prevenção rodoviária… Começou por um “currículo mínimo”. 2005). Começou pelo cérebro. Esta “evolução” – que estou obviamente a caricaturar – deu-se no quadro de uma imagem da Escola como instituição de regeneração. na segunda parte. para a prevenção do tabagismo e da toxicodependência. mais comunicação. O transbordamento da modernidade escolar Resumindo de maneira excessivamente simples a história do último século. O texto está escrito. a formação.. durante o qual se consolidou uma determinada concepção do sistema de ensino. mas foi abrangendo a educação para a saúde e para a sexualidade. exige de nós um pensamento crítico. talvez seja possível referir a 41 . à alma.. mais sociedade. Na primeira parte. avançarei três sugestões: mais aprendizagem. contra alguns dos princípios que organizaram a educação desde finais do século XIX. discutirei o transbordamento da modernidade escolar. Se quisermos isolar um momento histórico. de salvação e de reparação da sociedade. na qual se assiste ao fechar de um ciclo histórico. incómodas. para a defesa do ambiente e do património. até. abrindonos com frontalidade a um debate necessário sobre o papel da escola nas sociedades do século XXI. podemos dizer que a Escola se foi desenvolvendo por acumulação de missões e de conteúdos. Começou pelas disciplinas. o desenvolvimento pessoal e moral. mas que procure antecipar os caminhos do futuro presente. 1. finalmente. A situação actual da Escola. melhor dizendo. e todas as competências. provocador. às emoções. numa espécie de constante transbordamento (Nóvoa. do estatuto dos professores e das maneiras de pensar a pedagogia e a educação. dos modos de organização das escolas e das estruturas curriculares. no sentido em que são polémicas e que vão contra algumas das crenças dominantes ou. tecnológicas e outras. que a levou a assumir uma infinidade de tarefas. aos comportamentos.É um prazer deixar-vos algumas ideias incómodas sobre a Escola e a cidadania. a educação para a cidadania e para os valores. na terceira parte. Começou pela instrução. as bases fundamentais da imagem (nacional) de si” (1993. é a missão que vos é confiada de assegurar a educação moral e a instrução cívica dos vossos alunos”. na esteira de Jules Ferry. esta ideia inscreve-se numa dinâmica de escolarização de todas as crianças (a chamada “escola de massas”). os segundos defendendo uma escola que. tema mais recorrente. alargando a sua influência à totalidade do ser em formação. define-se toda a modernidade escolar. É desnecessário dizer que não estamos perante uma realidade nova. aquela que necessita de um maior cuidado e trabalho da vossa parte. p. A legislação de referência sobre a “obrigatoriedade escolar” elabora-se ao longo do século XIX. o sistema escolar inculca os fundamentos de uma verdadeira religião cívica e. com a generalização da educação elementar no decurso do século XIX. e até antagónicas. Nesta afirmação. atribuindo maiores responsabilidades aos sistemas de ensino. complete a sua acção no plano da “instrução moral religiosa”. constituída por esta via em cultura nacional legítima. Uns e outros. que parece banal. sublinhando a importância da “instrução moral” na escola e remetendo para as famílias e a Igreja a “instrução religiosa”. Seja por via de um discurso da “educação cívica”. na qual se declara que. A educação desempenha um papel fundamental neste processo. a frase suscita uma adesão unânime. de 17 de Novembro de 1883. glosado até à exaustão. Quando se afirma que é necessário ir além do acto de instruir e promover uma autêntica educação do carácter e do espírito. de todas as obrigações impostas pela lei. O apelo à cidadania é indissociável da construção das identidades nacionais. Elas traduzem.famosa Carta de Jules Ferry aos professores primários . muito presente nos círculos republicanos. O debate instrução versus educação torna-se cada vez mais intenso. o debate entre laicos e religiosos: os primeiros. mais precisamente. sem nunca pôr em causa os direitos dos pais. 115). bem patente nos meios nacionalistas. O ministro francês da Instrução Pública termina a carta esperando que ela contribua para que os professores multipliquem “os seus esforços para darem ao nosso país uma geração de bons cidadãos”. As políticas escolares de Jules Ferry tiveram um grande impacto em Portugal e em vários países europeus. mas. na história da educação. doravante. 54). Veja-se. ainda que nem todos a interpretem da mesma maneira. a educação tende a estender-se ao 41 . O discurso da cidadania é adoptado mesmo por grupos com concepções de educação distintas. uma ideia abrangente de educação que se impõe como a matriz da modernidade escolar. Não há. É na ligação entre a cidadania e a construção do Estado-nação que se define a importância da escola na transição do século XIX para o século XX: “É através da escola que. p. por exemplo. seja por via de um ideário religioso. elemento fundamental da construção do Estado-nação” (1994. explicarão que a escola deve instruir e educar. se exerce a acção unificadora do Estado no domínio da cultura. simbolicamente. “aquela que certamente mais vos diz. como explica Pierre Bourdieu: “Ao impor universalmente uma cultura dominante. “racional”. por isso. assim imaginada. explicando que a escola “é 41 . sintetiza crenças que. uma formação pré-militar. com espingardas (de madeira) ao ombro. A sua Educação cívica. Em Portugal. Mas outros exemplos se poderiam colher. o autor que melhor traduz esta amálgama de discursos. ou uma aprendizagem de piano em que os dedos se não mexessem: é um absurdo” (1984. Em 1984. “a partir da escola-cidade e da cidade educativa”. Ao marcar o desejo de alargar o esforço educativo ao “conjunto das actividades do indivíduo em formação”. que junta as ambições reformadoras do século XIX com o programa do Movimento da Educação Nova. não um ser mutilado. ele revela a desmedida da ambição pedagógica. do lado da “moral”. 1914).conjunto da vida dos alunos. Apenas um exemplo. o sucesso do conceito de educação integral. de uma ou de outra maneira. ao bem-estar material e ao equilíbrio afectivo dos alunos. intelectual e moral. A pedagogia. pp. por diferentes regimes políticos. não pode deixar de se revestir de uma carga doutrinária. conhecedor de todos os seus direitos. colectânea de artigos vários escritos em 1914. a referência à educação integral consagra a necessidade de articular a educação física. prelecções. perfiladas. a dactilografia ou a guitarra. para ilustrar esse desejo de uma “educação totalizante”. Vitorino Magalhães Godinho ilustra bem a permanência destas concepções ao definir a cidadania como meta. em Genève. uma arte prática. capaz de preparar as crianças e os jovens para cumprirem como “cidadãos de corpo inteiro” a missão de defesa da pátria. a educação cívica meramente teórica parece um ensino de esgrima em que se não empunhasse uma arma. sem dúvida aquele que melhor traduz o projecto da modernidade escolar. insiste-se cada vez mais na atenção à vida física e à vida psíquica. Estamos perante uma terceira acepção do princípio da educação integral. marcam o século XX: “[O civismo] não é uma ciência teórica. ao prefaciar uma nova edição da Educação cívica. O Estado Novo inventou a Mocidade Portuguesa e as suas paradas fazem parte do imaginário do regime. A República trouxe-nos essa novidade curricular que dava pelo nome de “instrução militar preparatória”. mas uma arte de acção. 41-42). que tem por fim “criar em cada criança. tão disparatado se me antolha o querer incuti-lo só com livros. apotegmas. Apesar de distintas. Nesta mesma época. Na viragem do século XIX para o século XX. durante a sua estadia no Instituto Jean-Jacques Rousseau. de um exército de “especialistas da alma” (higienistas. Não espanta. psicólogos). Num primeiro momento. que legitima a intervenção. Na fase final da Monarquia criam-se os batalhões escolares: as fotografias da época mostram as crianças. nos recreios das escolas. este movimento adquire uma segunda dimensão. estas perspectivas fazem parte de uma mesma atitude pedagógica que procura assegurar a socialização plena e o desenvolvimento total dos alunos. é o pedagogista António Sérgio. médicos. entre tantos outros: a maneira como é concebida. laica ou religiosa. tendo uma consciência social integral” (Lima. como ensinar por esse modo o jogo do pau. no espaço educativo. mas um indivíduo socialmente completo. de grande circulação internacional. que. Vitorino Magalhães Godinho apropria-se do conceito de educação permanente para reconduzir a cidadania ao tempo largo de uma vida. sem o crescimento pessoal de uma verdadeira estrutura autónoma vertebrada por valores e convicções. da escola. Aqui se faz a defesa de uma “sociedade educativa”. Se a educação permanente contribui para esse transbordamento de que tenho vindo a falar. o aprender a viver juntos . numa posição provocatória. os projectos e as comunidades educativas têm de contemplar o aprender a conhecer. repositório das ideias dominantes no sector educativo em Portugal. talvez mesmo impossível. o aprender a fazer. encontra-a ele no ideário sergiano. Sem esta consciência personalista. essa. 194). defender o contrário. o século XX não terminará sem a elaboração de um documento. coordenada por Jacques Delors (1996). curiosamente. Porquê citar autores e correntes tão distintas? Porquê juntar ideologias e propostas tão divergentes? Para sublinhar que o discurso do transbordamento – que tem no discurso da cidadania uma das suas principais referências – constitui um elemento estruturante da modernidade escolar. em português. Aqui se defende uma educação integral que inclui a educação religiosa e que “é o corolário legítimo da dignidade humana”.um espaço de viver e não apenas de aprender”. um tesouro a descobrir . criadora da pessoa. em construção do porvir. Na verdade. mas também o aprender a ser. propositadamente. não suscitou grande debate público: a carta pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa. o título: Educação. É por isso que se torna tão difícil. e de formação para a sociedade e cultura em mudança. com o título Educação: Direito e dever – Missão nobre ao serviço de todos. sublinhando-se a importância de um “itinerário que respeita e privilegia o educando como protagonista principal em todo o processo educativo”: “Para cumprir a sua missão de educar para a cidadania. Refiro-me ao relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Com diferentes propósitos e intenções todos falamos esta linguagem e nela reconhecemos as nossas convicções e expectativas. A não ser que nos coloquemos. a fazer e a ser – um quarto elemento: aprender a viver juntos. interconexas. publicada em 2002. procurando assim iluminar um outro lado do problema 41 . que acrescenta à trilogia clássica – aprender a conhecer. os cidadãos não ultrapassarão o limiar de indivíduos enquadrados nas estruturas cívicas como consumidores passivos dos esquemas sociais apresentados”. à cidade educativa. Por isso. num permanente re-fazer-se e repensar-se. O relatório Jacques Delors foi retomado num importante documento de orientação. p. a sua organização deve “fazer-se em função dos educandos”: “E voltamos sempre ao processo de auto-formação. p. quer informais. Mas a justificação para uma educação cívica. que recebeu. quer institucionalizados (educação permanente)” (1984. baseada na solidariedade e num novo comunitarismo que “podem ressurgir naturalmente como princípio orgânico e organizador de vida” (1996. É o que farei neste texto. 13). O que alarga a educação. agrupados em torno de três grandes eixos (ver Luisoni. provocada pela incapacidade de tornar a profissão atraente e prestigiada. De seguida. igualmente inútil. mas apropriar-me-ei dele para desenvolver a minha própria argumentação. Grande parte dos discursos sobre a cidadania – ou. de regressar a um passado que. 41 . Êxodo dos professores – “Desintegração” Este cenário é marcado por uma crise de recrutamento de professores. Julgo que os autores foram capazes de situar bem certas tendências actuais dos sistemas educativos.A.escolar. 2º EIXO – RE-ESCOLARIZAÇÃO Cenário 2. assinalando opções inadiáveis (CERI/OCDE. de modo talvez excessivamente impreciso. As escolas no centro da colectividade Este cenário é caracterizado por um reforço da escola enquanto elemento central do espaço social e comunitário. nunca existiu. 2004): 1º EIXO – MANUTENÇÃO DO STATU QUO Cenário 1. a continuação da situação actual.B. irei concentrar-me numa reflexão conduzida no quadro da OCDE sobre os cenários de futuro da educação.B. melhor dizendo. assumindo um conjunto alargado de missões. com a manutenção de sistemas burocratizados. no essencial.A. Manutenção de sistemas escolares burocráticos Este cenário representa. identifica seis cenários de evolução da Escola (e dos sistemas de ensino). algumas interrogações sobre a educação integral e o transbordamento da Escola. Cenário 2. Instance & Hutmacher. nomeadamente na luta contra as fracturas sociais e no apoio à integração das crianças. Cenários de futuro da educação O ponto anterior coloca. sobre a educação cívica – sustentam-se nesta alargada e abrangente concepção de formação escolar. O documento apresentado em 2003. na verdade. nomeadamente para certas disciplinas de referência. Cenário 1. 2003). que revelam tendências fortes no sentido da uniformização e grandes resistências a qualquer dinâmica de mudança e de inovação. bem como por um acréscimo das dificuldades inerentes ao exercício docente. 2. Não cuidarei de fazer uma apresentação detalhada do estudo. evitando a repetição inútil do mesmo “credo pedagógico” ou a tentativa. há um relativo equilíbrio entre os diferentes cenários. é útil do ponto de vista analítico. caminhando no sentido de uma multiplicidade de redes de aprendizagem. acentuando assim os processos de privatização do ensino através da oferta de um conjunto diversificado de oportunidades e de possibilidades de formação. pais. fortemente baseadas em ferramentas tecnológicas. Bem pelo contrário. Trata-se. as lógicas de privatização e de mercado.A. etc. Extensão do modelo de mercado Este cenário reflecte as tendências no sentido de considerar a Escola como um “bem privado”. muitas destas tendências estão misturadas. Nenhum destes seis cenários existe. por outro lado. mas antes provocar um debate e uma reflexão que não fiquem encerradas nas fronteiras do presente. desenvolvendo um programa solidamente baseado no “saber” no quadro de uma cultura de qualidade. Mas a aposta num eixo de re-escolarização não faz esquecer que as opiniões se dividem. a manutenção das actuais estruturas rígidas e burocráticas e. por igual. Nos diversos inquéritos promovidos pelos autores do estudo junto de “actores educativos” (responsáveis políticos. Redes de aprendizagem e sociedade-em-rede Este cenário traduz o desejo de abandonar as escolas. no estado puro. professores. de recusar. Não é este o lugar apropriado para discutir estes seis cenários e as suas implicações para o futuro da educação. O objectivo não é definir “modelos ideais”. e não como um “bem público”. A reflexão que vos proponho insere-se neste debate. No que diz respeito à “desejabilidade”.B. 41 . pois permite-nos visualizar melhor o sentido de certas opções e escolhas. Os inquiridos consideram que todos eles têm uma razoável possibilidade de se concretizarem num futuro próximo. Cenário 3. revelando uma clivagem muito interessante entre duas vocações da escola: “o social” e “a aprendizagem”. a situação é totalmente distinta. pois a esmagadora maioria dos inquiridos (mais de 80%) apenas encara positivamente uma evolução no sentido dos dois cenários do 2º eixo – Re-escolarização: A escola no centro da colectividade e A escola como organização centrada na aprendizagem . e na construção de uma sociedadeem-rede que substituiria os actuais sistemas de ensino. ainda que artificial. combinadas de modos vários em todos os sistemas de ensino. 3º EIXO – DES-ESCOLARIZAÇÃO Cenário 3. No que diz respeito à “probabilidade”. Mas a sua separação. adoptando um ponto de vista particular que me conduzirá à resposta que venho procurando sobre a cidadania e a escola. por um lado. entre o terceiro e o quarto cenário.A escola como organização centrada na aprendizagem Este cenário traduz uma vontade de recentrar a escola nas tarefas da aprendizagem. no fundo. ou existirá.) desenhou-se um consenso em torno das evoluções prováveis e desejáveis destes seis cenários. de experimentação e de inovação. as suas necessidades e o seu desenvolvimento. é deixá-las sair da escola sem uma verdadeira aprendizagem. até. chamando a si todas as missões possíveis e imagináveis. Na transição do século XIX para o século XX. todos nos reconheceremos nesta escola. Muitos educadores e professores. Não é possível fazer tudo e a tudo dedicar a mesma atenção. a capacidade de resolver problemas. para além dos conhecimentos. incluem a criatividade. Esta perspectiva sustenta-se em três argumentos principais: primeiro . implicam o método. conscientes dos seus direitos e dos direitos dos outros? E assim por diante… Mas. depois. percebe-se o crescimento de uma “escola a duas velocidades”. o pior que podemos fazer às crianças. É fácil alinhar evidências em prol deste cenário: Alguém acredita que é possível ensinar uma criança com fome ou sujeita a maus tratos? Alguém imagina que as questões da saúde e do bem-estar. terceiro – hoje. não interferem no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças? Alguém se atreveria a pôr em causa o papel da escola na prevenção da toxicodependência ou na promoção de comportamentos saudáveis? Alguém ousaria negar a importância da escola na educação sexual de adolescentes. sobretudo às crianças dos meios mais pobres. remete para uma escola de acolhimento dos alunos e. de apoio comunitário às famílias e aos grupos mais desfavorecidos. ao produzir estas justificações. da ciência e da cultura. que vivem por vezes dramas de enorme intensidade? Alguém seria capaz de escrever que a escola não tem qualquer responsabilidade na formação de cidadãos activos. enquanto elementos centrais de uma “sociedade do conhecimento”. remete para uma escola transbordante. uma escola utópica que procura compensar as “deficiências da sociedade”. os sentimentos e a consciência. quando a concepção de uma escola transbordante se impôs. Estou a desenhar uma caricatura. estávamos. reconhecem-se mais facilmente no terceiro cenário – A escola no centro da colectividade – que se adapta melhor à história da modernidade escolar. os novos conceitos de aprendizagem envolvem. físico e psicológico.A escola no centro da colectividade remete para uma instituição fortemente empenhada em causas sociais. que consagra muitas das nossas crenças e convicções. A escola como organização centrada na aprendizagem sugere uma valorização da arte. as emoções. o estudo e a organização do trabalho. assumindo um papel de “reparadora” da sociedade. sem negarem a importância das aprendizagens.ao olhar para muitos países. segundo . estamos permanentemente a remeter para dentro da escola um conjunto de tarefas e de missões que são da responsabilidade primeira de outras instâncias e instituições. de uma escola centrada na aprendizagem para os ricos e no acolhimento social para os pobres. para deixar mais nítido o meu argumento. vem o trabalho escolar propriamente dito. a inteligência e a intuição. esta escola acaba por conceder uma menor atenção às aprendizagens. Concentrando-se nas dimensões sociais. isto é. extremando intencionalmente posições. 41 . Primeiro estão os alunos.nas sociedades do conhecimento. mais ainda do que nas sociedades industriais. Num certo sentido. Mas – como é evidente – esta opção estabelece prioridades. taxas altíssimas de mortalidade e de morbilidade infantil. um espaço de redes e de instituições no qual se concretiza a “educação integral” das crianças e dos jovens. instrução ou educação. Claro que ninguém me verá reproduzir as dicotomias habituais. perante uma sociedade muito frágil: níveis de analfabetismo que atingiam os 80%. etc. É isto que a Escola sabe fazer. estes termos funcionam sempre simultaneamente. um espaço mais amplo do que o espaço escolar.sobretudo no caso português. Hoje. da comunicação. ou à aquisição de um conjunto de “competências sociais”. pois a aprendizagem não é separável da vida das crianças. a imagem da escola como “templo de saber” irradiando a sua influência sobre uma “sociedade inculta” já não tem sentido. dos seus dilemas. que vão contra a esmagadora maioria das crenças dominantes. um século mais tarde. da arte. etc. Não ignoro o risco destas afirmações. A minha proposta de retraimento exige o reforço de um “novo” espaço público da educação. O trabalho escolar tem duas grandes finalidades: por um lado. não só as famílias possuem níveis culturais e educacionais mais elevados. do desporto. a contemporaneidade escolar se definirá por retraimento. dos seus processos de desenvolvimento. na aquisição dos instrumentos de conhecimento e de cultura que nos permitam exercê-la. mas estou convencido de que esta é a única saída possível para a crise da escola. E esta opção conduz-me. e devem. daquilo que lhes acontece na vida para além da escola. É nisto que ela deve concentrar as suas prioridades. situações de pobreza acentuada. inexistência de redes culturais e científicas. esforço ou interesse. Hoje. assumir as suas responsabilidade próprias na área da cultura. sabendo que a cidadania se conquista. Em educação. Por isso. a valorizar o quarto cenário. da saúde. 41 . não ignorando que ela só é possível se atendermos a um conjunto de circunstâncias da vida pessoal e social das crianças. seja no que diz respeito à formação religiosa ou cívica. da cidadania. a transmissão e apropriação dos conhecimentos e da cultura. se a modernidade escolar se definiu por transbordamento. ensino ou aprendizagem. é isto que a Escola faz melhor. dos seus contextos sociais. da ciência. da escrita. desde logo. a escola como organização centrada na aprendizagem . é dizer que a escola deve assumir como responsabilidade sua essa vastidão de tarefas que lhe fomos atribuindo. Uma coisa é dizer que a escola deve recentrar-se na aprendizagem. bem diferente. da comunicação e da vida em conjunto. por outro lado. sabendo que não há diálogo nem compreensão do outro sem o treino da leitura. sabendo que nada nos torna mais livres do que dominar a ciência e a cultura. ou ainda à preparação do momento de transição entre a escola e o trabalho. naturalmente. E outra. a compreensão da arte do encontro. gastas e inúteis: liberdade ou autoridade. tenho vindo a defender que. como há um conjunto diversificado de instituições que podem. Uma escola que não fornece aos seus alunos. na medida do possível. mais comunicação A defesa do retraimento da escola só é possível se. uma escola concebida essencialmente como um centro de acolhimento social. Mais aprendizagem Um dos grandes perigos dos tempos actuais é uma “escola a duas velocidades”: por um lado. os instrumentos básicos do conhecimento e da cultura. O desafio que temos pela frente é romper com uma excessiva uniformização escolar. isso significa. cada um à sua medida. ou estamos dispostos a chamar toda a sociedade ao trabalho de educação e formação? A proposta que vos faço. houver uma consolidação do espaço público da educação. e devem. mais sociedade. a tudo lançar para dentro das escolas? Percebemos a importância de libertar a Escola. de tarefas assistenciais. por muito que se enfeite com chavões de emancipação. Julgo que é útil acrescentar que este “sucesso” não é necessariamente igual para todos os alunos. a título individual e colectivo. só tem sentido se se multiplicarem compromissos e responsabilidades que libertem o dia-a-dia escolar de um sem-número de tarefas e actividades. isto é. Mas que é da nossa responsabilidade concebermos modos e percursos que assegurem o sucesso de todos os alunos. a igualdade prevista na lei. Este é. não é uma “escola cidadã”. religiosas e associativas e definir as suas responsabilidades próprias no processo educativo ou continuamos a escolher a via mais fácil. de uma escola retraída. faire vraiment réussir tous les élèves (fazer com que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso) (Thélot. uma escola claramente centrada na aprendizagem. culturais. para os pobres. É preciso inscrever. com uma forte retórica da cidadania e da participação. terminarei a minha intervenção com uma tripla sugestão: mais aprendizagem. Utilizando simbolicamente a palavra mais. mas sim do que se passa hoje em muitos países e até do que se passa em muitos grupos dentro do nosso país! Por isso vos digo que a primeira condição da cidadania é a aprendizagem. Mais aprendizagem. ao mesmo tempo. arriscando-se a nada fazer bem. o desafio central das sociedades contemporâneas. mais sociedade. a meu ver. talvez mais do 41 . de libertação ou de cidadania. destinada a formar os filhos dos ricos. Não vos falo de uma situação puramente imaginária. 2004). na realidade. Hoje. ser realizadas noutros lugares da sociedade? Queremos uma escola que faça tudo. que não consegue dar respostas úteis aos alunos e às distintas necessidades e projectos de vida de que eles são portadores. Que compromissos estamos dispostos a assumir.3. por outro lado. Na escola. na educação das crianças e dos jovens? Queremos reforçar as redes familiares. mais comunicação. de práticas de tempos livres e de outras actividades que podem. como se escreve numa recente proposta de reforma apresentada em França. a todos os seus alunos. e nas tecnologias. assim. os laços. da integração de todos numa cultura comum. como espaço de segurança. as tradições. impõe-se reabilitar os modelos da “diversificação pedagógica” como referência para uma escola centrada na aprendizagem. há sempre laços afectivos. Hoje. também. Célestin Freinet e muitos educadores sempre estiveram tão atentos aos rituais e às regras. pratica-se. os debates da diversidade cultural. conduzindo a enormes equívocos. na escola. à minha terceira condição da cidadania. dá-se mal com um discurso gongórico ou doutrinário. de terem de trabalhar em conjunto. muitas vezes. são as forças centrípetas que a reforçam e lhe dão sentido. Claro que. com o objectivo de trabalharem juntas durante um período de tempo das suas vidas. Esta é a melhor tradição pedagógica e. mais comunicação. e não uma comunidade. etc. Uma escola é uma sociedade. de se respeitarem e de se enriquecerem mutuamente. E que é preciso instaurar a escola como sociedade.que nunca. Mais sociedade A segunda condição da cidadania. As escolas resistem à avaliação e à prestação de 41 . É esta. é mais sociedade. Mas o cimento de uma sociedade não é o afecto entre as pessoas ou a semelhança dos gostos. como lugar do trabalho conjunto. Desde logo. mas o facto de estarem juntas. da multiculturalidade. porque as pessoas não se escolhem entre si. Na escola. num contexto escolar. de forma mais ou menos arbitrária. como uma sociedade na qual as crianças prefiguram e praticam uma vida futura. Acrescenta Philippe Meirieu que uma escola não deve ser encarada como uma comunidade. É certo que as escolas são lugares da relação e da comunicação. Mais comunicação Chego. a tradição da Educação Cívica de António Sérgio. por isso. e partilhada. como lugar do diálogo e da comunicação. passam por aqui. Que o essencial são as ligações afectivas entre os membros e o seu chefe. a cidadania faz-se no dia-a-dia. Os professores explicam mal o seu trabalho. O que é que isto quer dizer? Permitam-me que recorra a uma distinção feliz proposta por Philippe Meirieu (1997) entre “comunidade” e “sociedade”. Que há uma escolha na adesão a uma determinada comunidade (de jovens. Diz Philippe Meirieu que certos grupos adolescentes têm. exerce-se. Mas as escolas comunicam mal com o exterior. estando reunidas naquele lugar. “comunidade a mais” e “sociedade a menos”. de terem ou não os mesmos interesses. independentemente de gostarem ou não das mesmas coisas. de bairro. Diz ele que o que caracteriza uma comunidade são os afectos.). às rotinas e aos processos formais de decisão. de músicos. esta vulnerabilidade é condição essencial da sua evolução e da sua transformação (Hargreaves. há uma ausência da voz dos professores nos debates públicos. num texto desconhecido em Portugal. se não formos capazes de integrar todos numa escola com regras claras e democráticas de funcionamento. paradoxalmente. pois se não realizarmos este treino diário perdemos a forma. A escola cresceu como “palácio iluminado”. mais retraído. sem sermos cidadãos. Impõese uma abordagem pragmática (e não retórica). mais sociedade. O “novo” espaço público da educação chama os professores a uma intervenção política. que lhe permitirá adquirir uma credibilidade que foi perdendo. se a escola não comunicar com o exterior e não prestar contas do seu trabalho à sociedade. é apenas um pólo – sem dúvida muito importante – num conjunto de redes e de instituições que devem responsabilizar-se pela educação das crianças e pela formação dos jovens. sobretudo. a liberdade e a cidadania devem ser alimentadas todos os dias. a uma participação nos debates sociais e culturais. É necessário comunicar para fora da escola. 41 . 2).contas sobre o seu trabalho. Como dizia António Sérgio. é compreender que nada será conseguido se a sociedade não apoiar o trabalho escolar. mais comunicação. Falar de escola e cidadania é prestar contas do que foi (e do que não foi) realizado na escola. Por tudo isto. é este estatuto mais modesto. 2000). Será que a exposição pública vai contribuir para tornar os professores e as escolas mais vulneráveis? Talvez. Hoje. a um trabalho continuado junto das comunidades locais. p. E. Curiosamente. e não conseguiremos construir o futuro que ambicionamos (1929. perdemos a pujança. deixando para outras instâncias actividades e responsabilidades que hoje lhe estão confiadas. insisto que não há cidadania se os alunos não aprenderem. pacientemente recriadas. Mas. Em síntese: mais aprendizagem. sempre reconquistadas. Já não o é. Dito de outro modo: não podemos pregar cidadania. valorizando aquilo que é especificamente escolar. A contemporaneidade exige que tenhamos a capacidade de recontextualizar a escola no seu lugar próprio. Capítulo Capítulo 4 4 Educação Educação 2021: 2021: Para Para uma uma história história do do futuro futuro 41 . um pouco por todo o lado. mas para nos permitir medir toda a distância que temos a percorrer. definindo as minhas próprias opções quanto ao cenário mais desejável para a EDUCAÇÃO 2021. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo. um tempo futuro. de uma forma de conceber e de organizar a educação que. 1718). Assinalo. 1920 e 1970. outro inferior e invisível. apesar dos avisos. que é o futuro. Não vale a pena explicar um “objecto” que é conhecido de todos. três datas que definem momentos de transição: 1870.“O tempo. O texto está organizado numa lógica passado-futuro. interessa-me compreender de que modo o passado está inscrito na nossa experiência actual e de que modo o futuro se insinua já na história presente. agarrar um destino que tantas vezes nos escapa. David Tyack inventou uma expressão bem esclarecedora: The one best system. no essencial. procurando. que é o passado. isto é. de um pensamento que não se feche nem nas fronteiras do imediato. assim. 1966. assiste-se à consolidação do modelo escolar. PRIMEIRO TEMPO HISTÓRICO 1870 – CONSOLIDAÇÃO E DIFUSÃO DO MODELO ESCOLAR Tomemos a data de 1870 como marco simbólico. 26). Neste período. como a única forma concebível e imaginável de assegurar a educação das crianças. pois é caminhando que ele se encontra e descobre o sentido da sua acção (Furter. buscarei uma síntese destas evoluções. O homo viator constrói uma casa apenas para o tempo necessário. Procurarei contextualizar historicamente cada um destes momentos e explicar de que modo as questões que eles suscitam abrem. História do Futuro. O modelo escolar impôs-se como “o único melhor sistema”. Precisamos de vistas largas. hoje. isto é. Mas é importante assinalar a sua permanência no tempo e o modo como resistiu às mudanças que tiveram lugar no decurso do século XX. não resistimos à tentação de imaginar o que nos irá acontecer. muitas vezes. que são estes instantes do presente que imos vivendo. Mas. Na última parte. nem na ilusão de um futuro mais-que-perfeito. simbolicamente. tem dois hemisférios: um superior e visível. P ensar o futuro é um exercício arriscado e. Como escreve Pierre Furter – o Professor que me iniciou nos debates sobre a utopia – o horizonte não existe para nos trazer de volta à origem. para evoluções contraditórias dos sistemas educativos. como o mundo. À maneira de Reinhart Koselleck (1990). 41 . fútil. onde o passado se termina e o futuro começa” (Padre António Vieira. chegou até aos dias de hoje. p. a criar e divulgar indicadores de qualidade das escolas. médicos e professores. público e homogéneo. Eles serão formados em escolas normais. contribui para formatar um modelo que deve assegurar a consolidação da identidade nacional e a preparação para a nova sociedade industrial em espaços que preservem a saúde das crianças e lhes permitam progredir de forma sistemática nas aprendizagens escolares. As críticas têm as mais diversas origens e alimentam-se de um sentimento de “crise”. No limite. através da escola obrigatória. está hoje a ser posto em causa por correntes e tendências que o consideram obsoleto e incapaz de se renovar. permitindo 41 . o Estado deveria abster-se de intervir no mercado dos serviços educacionais. situa-se nos antípodas do projecto de uma escola pública que assegura a presença de todos e a construção de uma identidade partilhada.No final do século XIX. são portadores de visões semelhantes da educação. em casa. A acção realizada por estadistas e educadores. num certo sentido. Não são hipóteses futuristas. O segundo cenário baseia-se também na definição da educação como “bem privado”. arquitectos e pedagogos. É possível identificar. entre tantos outros. É impossível pensar o século XX sem pensar a escola do século XX. reservada aos seus e protegida dos outros. O primeiro cenário aponta para o regresso a formas de educação familiar. A difusão mundial deste modelo e. pelo menos. a sua universalização confirmam a centralidade que ele adquire nas sociedades contemporâneas. a escola define novas formas de organização da vida familiar e social. designação que revela bem a lógica de homogeneização que prevalece na edificação dos grandes sistemas públicos de ensino. Uma das formas mais evidentes deste cenário é a expansão do ensino doméstico. na medida em que estão. limitando-se apenas: por um lado. A partir de argumentos que vão desde a responsabilidade educativa primordial dos pais até à necessidade de preservar os valores de uma determinada comunidade local constroem-se propostas que põem em causa a dimensão pública da educação. bem presentes na nossa realidade quotidiana. que se constitui como uma instituição central na afirmação dos Estados-nação. Do passado ao futuro O sistema de ensino. apesar de distintos. culturais e religiosas. já hoje. este modelo generaliza-se ao conjunto da infância. A aquisição pelos professores de um estatuto profissional é um elemento central deste processo. que se vem desenvolvendo através de redes familiares. mas insiste sobretudo nas vantagens do mercado da educação e na promoção de lógicas de competição entre as escolas. A expansão da “escola de massa” (mass schooling) é um dos grandes acontecimentos que vai transformar as sociedades ao longo do século XX. três cenários de evolução dos sistemas de ensino que. Ao ganhar a luta secular contra o trabalho das crianças e dos jovens. com recurso às novas tecnologias. A ideia de que cada família ou comunidade deve ter a sua própria escola. tal como as conhecemos deixarão de existir. na última parte do texto. as desigualdades escolares e sociais. por exemplo através do vale-educação (vale escolar ou cheque-ensino). métodos activos e diferenciação pedagógica – e se lhes juntarmos a referência de Edouard Claparède à revolução copernicana 41 . autonomia dos educandos. Mas não andaremos muito longe de uma definição se mencionarmos quatro princípios – educação integral. a financiar supletivamente os mais desfavorecidos. O terceiro cenário alicerça-se na importância das novas tecnologias. É difícil resumir. curriculares e pedagógicas. acolhendo. argumentarei em favor de um cenário que valorize a dimensão pública da educação. Estes três cenários são viáveis e há sinais claros da sua emergência nos últimos anos. Imaginam-se formas totalmente distintas de ensino. médicos. receio que contribuam para acentuar. etc. É um marco simbólico da modernidade escolar e pedagógica. sociológicos. que mobilizam os mais variados conhecimentos (psicológicos. 24 horas por dia. no entanto. Por isso. por outro lado. tendo como referência professores reais ou virtuais. Eles procuram combater a excessiva intervenção do Estado na educação e ultrapassar os constrangimentos do modelo escolar e de uma organização homogénea dos sistemas de ensino. uma diversidade cada vez maior de iniciativas organizacionais. sem precedentes. Os estudantes terão acesso aos seus professores. mas a distância. as teses da Educação Nova. É um futuro que os enormes avanços na produção de “ferramentas” interactivas de aprendizagem tornam cada vez mais possível. haverá centros de aprendizagem que funcionarão sete dias por semana. Transformemos a escola. As salas de aula passarão a estar dentro dos seus computadores”. da autoria de Adolphe Ferrière. no desenvolvimento de ideias pedagógicas. a fim de assegurar uma certa equidade no acesso à educação. Autores diversos assinalam a tecnologia como a chave para a educação do futuro: “As escolas. Pessoalmente.) no estudo da criança e na produção de uma “ciência da educação”. rompendo assim com um sistema excessivamente burocratizado. ainda mais. SEGUNDO TEMPO HISTÓRICO 1920 – EDUCAÇÃO NOVA E PEDAGOGIA MODERNA Em 1920 publica-se o livro-manifesto da Educação Nova. No seu lugar. Entre 1870 e 1920 assiste-se a um avanço. num parágrafo. Frases deste tipo ouvem-se todos os dias. promovendo formas de “tribalização” da escola. que tornam dispensáveis as escolas tradicionais e que promovem a individualização do ensino. A educação pode acontecer em qualquer lugar e a qualquer hora.assim a cada família fazer uma escolha informada da melhor escola para os seus filhos. filosóficos. L’école sur mesure). A realidade das últimas décadas não tem cessado de confirmar os perigos de uma “escola transbordante”.fr). 229). A escola deveria encarregar-se da formação da criança em todas as dimensões da sua vida. O conceito de educação integral é aquele que melhor simboliza este movimento e as suas desmesuradas ambições. desta vez de forma mais simplificada: Statu quo Manutenção de sistemas de ensino burocráticos Reescolarização A escola no centro da colectividade A escola como organização centrada na aprendizagem 41 .education. Há quem vá ainda mais longe e defina a seguinte prioridade para a escola actual: “Fazer com que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso”. procurando assegurar uma educação à sua medida (é este o título de uma obra emblemática deste psicólogo suíço. Todos. A frase consta das conclusões do debate sobre o futuro da escola. A pedagogia moderna elabora e difunde socialmente modos de conceber a educação que se tornarão dominantes na sociedade do século XX. dentro e fora das escolas. p. É certo que houve ganhos importantes. Em rigor. as quais contribuíram para revolucionar de alto a baixo o sistema de ensino sob a bandeira do progresso da educação” (Arendt. talvez. Ao longo do século XX. foi alargando as suas missões. com a escola a compensar ausências da sociedade e das famílias.que coloca a criança no centro. Para que serve a escola nas sociedades contemporâneas? As respostas do passado já não nos servem e temos dificuldade em encontrar respostas novas. Do passado ao futuro A crítica principal que hoje se dirige à escola diz respeito à sua incapacidade para promover as aprendizagens. que teve lugar em França em 2003-2004 (consultar em www. A escola assumiu este programa impossível e acreditou que o podia cumprir.debatnational. demasiado severo. o que se nos coloca é um problema de sentido. contribuindo para uma melhor integração das crianças e dos jovens. somos herdeiros destas “teorias modernas da educação que vêm do centro da Europa e que consistem numa salgalhada surpreendente de coisas sensatas e de disparates. Regresso aos cenários da OCDE que analisei no Capítulo 3. 1972. O comentário de Hanna Arendt é. mas nem por isso deixa de retratar bem a amálgama que dá pelo nome de Educação Nova. Mas quando tudo é essencial. respondendo assim aos desafios da sociedade do conhecimento. torna-se impossível concretizar uma acção racional e inteligente. sobretudo no plano social. A escola desviou-se muitas vezes das tarefas do ensino e da aprendizagem para se dedicar às missões sociais. ficando de tal maneira atravancada que perdeu a noção das prioridades. Em muitos países verifica-se um dualismo cada vez mais acentuado: as elites investem numa educação (privada) que tem como elemento estruturante a aprendizagem. constituindo um lugar de referência para as comunidades locias. identificando os aspectos centrais. este cenário concede à escola um relevante papel assistencial e de compensação face à incapacidade das famílias para assegurarem as condições necessárias ao desenvolvimento das crianças. Trata-se de recusar a ideia de que a escola pode tudo. sobretudo no caso dos meios menos favorecidos. Daniel Hameline referia-se à necessidade de regressar. O primeiro destes cenários – A escola no centro da colectividade – prolonga as tendências de transbordamento da escola que assinalámos anteriormente. tese que avançarei no ponto seguinte. Por isso. procurando assim inverter as tendências de transbordamento da escola. Há mais de vinte anos.Desescolarização Expansão do modelo de mercado Redes de aprendentes e sociedade em rede Crise Êxodo dos professores e desintegração do sistema Neste momento. A escola orientar-se-ia primordialmente para missões sociais. um reforço do espaço público da educação. 80). enquanto as crianças dos meios mais pobres são encaminhadas para escolas (públicas) cada vez mais vocacionadas para dimensões sociais e assistenciais. Inserindo-se numa tradição longa de ligação escola-sociedade. interessa-me analisar os dois cenários que são portadores de uma lógica de reescolarização. O segundo cenário – A escola como organização centrada na aprendizagem – chama a atenção para a importância do saber e da aprendizagem nas sociedades do século XXI. argumentarei em favor de uma escola centrada na aprendizagem. p. simultaneamente. específicos e prioritários do trabalho escolar. de apoio às crianças e às suas famílias. com inteligência. Sem negligenciar a transmissão do saber. 41 . na última parte do texto. O debate não é novo. a escola ocupar-se-ia de um conjunto de outras competências sociais e culturais. Mas sei que a defesa deste cenário só faz sentido se houver. “ao que constitui a especificidade da escola no meio das instâncias múltiplas através das quais uma sociedade educa os seus membros” (1984/1985. É uma tendência indesejável para o futuro. por outro lado. no sentido contrário. Apprendre à être.TERCEIRO TEMPO HISTÓRICO 1970 – DESESCOLARIZAÇÃO DA SOCIEDADE 1870 | 1920 | 1970: cem anos depois. num certo sentido. os jovens e os adultos. evoluíram. continua esta reflexão procurando abrir a educação a todos os tempos e a todas as dimensões da vida. isto é. que se elabora ao longo dos anos sessenta. 136). Sociedade sem escolas ). aos aspectos da formação profissional e que abranja as questões da sociedade. Deschooling society. Do passado ao futuro E agora? Podemos imaginar três cenários que. nem «prolongada». o modelo escolar é seriamente posto em causa por uma série de movimentos e correntes que pugnam pela “desescolarização da sociedade” (a obra mais conhecida é publicada por Ivan Illich. que leva os educadores a redefinir toda e qualquer educação” (1966. Cedo se percebeu quão ilusórias eram estas utopias. da cultura e do “aprender a ser”. Os discursos e as práticas da Educação Permanente. ao longo das décadas de setenta e oitenta. Não é um novo sector. Em vez da desescolarização. conceito marcado pelo princípio da empregabilidade. assistiu-se à redefinição da Educação Permanente como “Educação e formação ao longo da vida”. A educação permanente é um dos conceitos-chave deste pensamento radical. É uma nova pespectiva. Pierre Furter antecipa os escritos de Ivan Illich e de uma geração que vai produzir uma crítica forte à instituição escolar. Há duas utopias que atravessam o pensamento deste autores: por um lado. primordialmente. concluindo com a seguinte definição: “Em resumo. nem tão pouco «de adultos». justamente. nem «fundamental». Em vez de uma educação aberta sobre as dimensões da vida. nem «complementar». de uma sociedade que generalizou uma relação pedagógica com as crianças. Logo em 1966. O famoso relatório da UNESCO coordenado por Edgar Faure. A Educação Permanente não é algo que se acrescenta a um sistema dado. a possibilidade de uma “educação desescolarizada”. de uma educação liberta das estruturas institucionais e baseada em redes informais de aprendizagem ou “teias de oportunidades”. se inserem na procura de alternativas para o modelo escolar e para a forma como ele se desenvolveu desde finais do século XIX. 41 . publicado em 1972. Pierre Furter dedica um capítulo do seu livro Educação e Vida a esta problemática. porque todas estas interpretações só vêem uma parte do problema. a defesa de uma educação que não se limite. obra que será traduzida para português com um título equívoco. p. constatamos que a Educação Permanente não pode ser reduzida nem a uma educação «extraescolar». um novo campo. assistiu-se ao triunfo de uma “sociedade pedagógica”. em 1971. nas políticas educativas em todo o mundo. UM TEMPO FUTURO 41 . depois transformou-se numa necessidade ditada pelas mudanças no mundo do trabalho. Não é uma possibilidade. Do ponto de vista social. celebrado com toda a sociedade. O cenário das redes tem vindo a tornar-se. O conjunto dos sistemas escolares. O termo empregabilidade. de maneira mais modesta. Nesse sentido. O conceito de lifelong learning (aprendizagem ao longo da vida) é considerado central para a definição das estratégias educativas. quaisquer desenvolvimentos futuros. aprendendo de modo informal e convivial. hoje. pensar de outro modo o espaço público da educação. adoptada pela União Europeia em 2000. que ocupa um lugar central na famosa Estratégia de Lisboa. no quadro das políticas do emprego e da requalificação profissional. A Educação Permanente começou por ser um direito pelo qual se bateram sucessivas gerações de trabalhadores. com particular relevo para a União Europeia. de dia para dia. enfim. mais plausível. e agora impõe-se como uma obrigação para conseguir um emprego digno. está a ser redefinido à luz destas perspectivas. define os esforços educativos ao longo da vida essencialmente como uma obrigação de cada trabalhador para que se mantenha apto a desempenhar novas tarefas profissionais. de um dispositivo que permita. desde a escola obrigatória até à universidade (veja-se o Processo de Bolonha). através de um aproveitamento das potencialidades culturais e educativas que existem na sociedade e de uma responsabilização do conjunto das entidades públicas e privadas. e não apenas com a escola. a sua operacionalização tem-se feito. assumindo que é apenas uma entre as muitas instituições da sociedade que promovem a educação. é sim uma realidade concreta. Do ponto de vista tecnológico. a ideia de um novo contrato educativo. os espantosos desenvolvimentos da internet (interrede) convidam-nos a não excluir. mas mais orientada do ponto de vista das aprendizagens. colocar a aprendizagem e o saber ao alcance de todos. está no centro do cenário que defenderei na última parte do texto. O terceiro cenário aponta para a necessidade de redefinir a missão da escola. no qual as pessoas se educavam ao ritmo da vida das sociedades. Por isso. fundamentalmente. as sucessivas baixas de natalidade a par da melhoria dos níveis educativos da população adulta e do aumento significativo da esperança de vida libertam um conjunto importante de energias pessoais para missões de educação e de cultura. à partida. A “fuga para trás” revela-se no mito de um passado em que não havia escolas. que tenha como base o reforço do espaço público da educação. A escola deve libertar-se de uma visão regeneradora ou reparadora da sociedade. O segundo cenário está bem presente.O primeiro cenário baseia-se na substituição das estruturas escolares pela valorização educativa de um conjunto de espaços e de instituições sociais. A ideia das redes de aprendizagem surge com naturalidade. reelaborada a partir de fugas para trás e para a frente. A “fuga para a frente” alimenta-se sempre de uma utopia tecnológica. Contrariamente às intenções dos autores da Educação Permanente. avancei uma série de cenários. uma das instituições onde esta partilha pode ter lugar. a acção pedagógica tornar-se-á mais coerente e harmoniosa.ª Espaço Público de Educação: Um novo contrato educativo 1. algumas particularmente sedutoras. 2021 é um tempo futuro.ª Escola centrada na aprendizagem 3. procurando introduzir. seguirei os conselhos de Pierre Furter (1966). as nossas preocupações. Claro que. vivem com enormes afastamentos e divisões no plano social. contribuem inevitavelmente para a tribalização da sociedade. fortemente globalizadas. Ao fazê-lo. perder-se-á uma das principais qualidades da escola pública. uns mais prováveis do que outros. a educação deve definir-se como um “bem público”. tentarei projectar cenários de futuro. de forma prudente e selectiva. de modo a que não nos sintamos obrigados “a partilhar toda a nossa humanidade em todas as ocasiões” (2006. Numa reflexão notável. p. Vou agora retomá-las e defendê-las. no dia em que cada grupo social ou religioso tiver a sua própria escola. ainda sem nome. As ideologias da educação como “bem privado”. assinalei as evoluções desejáveis. Nas páginas anteriores. sob todos os pontos de vista: 41 . como programas para pensar e agir na campo educativo: 1. Arwin Appadurai alerta para os riscos do diálogo. paradoxalmente. mas explica que não temos alternativa. estou a traçar caminhos e a definir orientações para a acção presente. em itálico. A escola é. em conjunto. fundada em crenças e valores próprios. talvez mais ainda do que em tempos passados. a fechamentos nas formas de convivialidade. um futuro esboçado de maneira a dar a este presente uma forma que permita a eclosão do futuro. sugerindo uma estratégia de selectividade. Em vez da homogeneização que caracterizou a história do século XX.ª Educação Pública.2021 – AINDA SEM NOME Nesta última parte. hoje. Como se a facilidade de comunicação planetária tivesse conduzido. No final de cada uma das três partes. desde já. cultural e religioso. impõe-se agora uma abertura à diferença. construindo assim uma base sólida e evolutiva para a construção de práticas de vida em comum. mas suficientemente perto para que nele possamos inscrever. de uma mudança dos sistemas de ensino de modo a possibilitar o desenvolvimento de escolas diferentes. a possibilidade de instaurar narrativas partilhadas e culturas de diálogo. Mais do que uma antecipação. Escolas Diferentes 2.ª Proposta Educação Pública. Escolas Diferentes Nos tempos actuais. Mas. no presente. pelo caminho. justamente. 37). Mas a defesa de uma educação pública depende. As sociedades contemporâneas. aqueles em que me revejo de entre os muitos possíveis. deverão instituir-se como processos naturais. muito menos. no centro das nossas preocupações. por exemplo com base em acordos com sociedades científicas ou universidades. bem pelo contrário. escrever e contar” ou as tendências do “back to basics”. Estes movimentos. introduzindo factores de discriminação e de desigualdade no acesso ao serviço público de educação. por exemplo com base em contratos com entidades ou associações locais. Trata-se. Mas sempre no contexto de uma dimensão pública.a) liberdade de organização de escolas diferentes. uma capacidade de contratualização e de regulação do sistema público de ensino. 41 . traduzir-se numa maior liberdade de escolha dos estabelecimentos de ensino. A abertura à diferença permitirá. de abrir novas perspectivas que coloquem a aprendizagem. modelos diversos de direcção e gestão das escolas. o ensino do “ler. bem como uma maior responsabilização e prestação de contas por parte das diversas entidades. A proposta que aqui se elabora retoma a aspiração de Claparède. também. devidamente avaliadas. as escolas não devem usar esta liberdade para seleccionar socialmente os seus alunos. que ganharam grande importância face à crise da escola e à incapacidade de resposta perante a massificação do ensino. Quer isto dizer que os alunos podem escolher a sua escola. progressivamente. As entidades públicas devem manter. por exemplo com base em iniciativas de grupos de professores ou de associações pedagógicas. c) liberdade na definição de percursos escolares e de currículos diferenciados. b) liberdade na construção de diferentes projectos educativos. As famílias e os alunos devem poder escolher a sua escola e. mas define-a para além dos aspectos meramente pedagógicos (a aplicação de uma pedagogia diferenciada em função das necessidades de cada aluno) e projecta-a no plano da organização de escolas diferentes. Não se trata de advogar o regresso a um qualquer passado mítico e. de defender programas mínimos. baseiam-se na defesa do ensino tradicional e têm-se revelado de uma enorme pobreza teórica e prática. “uma escola à medida de cada aluno”. participar na definição do seu projecto educativo. Dito de outro modo. mas as escolas não podem escolher os seus alunos. em toda a sua riqueza. simultaneamente.ª Proposta Escola centrada na aprendizagem A defesa de uma escola centrada na aprendizagem procura inverter a deriva transbordante de uma escola a quem a sociedade vai. evidentemente. A inovação e a experimentação. 2. atribuindo todas as missões. A abertura à diferença deve. também. sobretudo aqueles que vêm de meios desfavorecidos. por imperativo ético. Em segundo lugar. etc. percursos adaptados às inclinações e aos projectos de cada um. A aprendizagem não é um processo linear e deve ser equacionada numa perspectiva multifacetada. as consequências para a aprendizagem das novas tecnologias. Uma nova perspectiva de aprendizagem deve ser enriquecida com uma série de estudos e contributos que têm a vindo a ser formuladas em diversos campos científicos e culturais. Nessa época. dos sentimentos e da consciência na aprendizagem. Simultaneamente – e este não é um aspecto menor – é necessário que as escolas se libertem das estruturas físicas em que têm vivido desde o final do século XIX. e este tem sido o erro maior da escola transbordante. pois só assim conseguiremos que “todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso”. da fome. às práticas escolares: os trabalhos recentes das neurociências sobre a importância das emoções. dos maus tratos. Promover a aprendizagem é compreender a importância da relação ao saber. Em primeiro lugar. das distintas formas de navegação e de processamento da informação. promover diferentes vias de escolaridade. muito menos. da gravidez precoce ou do consumo de drogas. qualquer política educativa deve assumir este objectivo. por exemplo. as teorias da imprevisibilidade sobre o carácter inesperado e até “desorganizado” de muitas aprendizagens e a importância de lhes atribuir sentido e significado. reencontrem um sentido para a escola. assegurar que todas as crianças adquirem uma base comum de conhecimentos. designadamente sobre as diferentes formas de inteligência. não considerando o insucesso e o fracasso como fatalidades impossíveis de combater. Subjacente a muitas destas teorias está um princípio de complexidade. algumas missões sociais e assistenciais. as pesquisas que têm posto em destaque o papel da memória e da criatividade. Os dramas da miséria. não é a mesma coisa do que defini-las como missões primordiais da escola. provisoriamente. é instaurar formas novas de pensar e de trabalhar na escola. é construir um conhecimento que se inscreve numa trajectória pessoal. que rompe com grande parte das convicções do ensino tradicional. há quase 150 anos. mas é dizer que o conhecimento escolar tem de estar mais próximo do conhecimento científico e da complexidade que ele tem vindo a adquirir nas últimas décadas. entre tantos outros. os desenvolvimentos da psicologia cognitiva. Falar de um olhar complexo e transdisciplinar não é recusar o papel das disciplinas tradicionais. A reflexão anterior levar-me-ia muito longe e obrigar-me-ia a iniciar um novo texto. não chegaram ainda às teorias educativas e. é preciso que as crianças e os jovens.Há duas questões fundamentais a resolver. bem distante dos simplismos que caracterizam tanto a escola tradicional como a pedagogia moderna. mas que. escusado será dizer. os edifícios escolares foram pensados com 41 . Para que a aprendizagem possa tenha lugar a escola terá de cumprir. impossibiitam um projecto educativo coerente. em grande parte. Mas assumir estas tarefas. o princípio de que se aprende do mais simples para o mais complexo ou do mais concreto para o mais abstracto. as associações culturais. com o mesmo vigor. até agora. é necessário mobilizar. Hoje. a preservação do património cultural. os museus.ª Proposta Espaço Público de Educação: Um novo contrato educativo A frase À escola o que é da escola. as igrejas. É fácil enunciar. algumas destas missões: a protecção do ambiente. a educação alimentar. a prevenção da delinquência juvenil. a educação para a saúde e a educação sexual. as entidades laborais. mas antes de promover a construção de um espaço público de educação. é necessário que elas tenham uma palavra a dizer. o combate aos maus tratos e à violência doméstica. Não basta atribuir responsabilidades às diversas entidades. as organizações científicas. cuja responsabilidade é partilhada 41 . têm sido assumidas pela escola. etc. É nesta perspectiva que a proposta adquire todo seu sentido. por um conjunto de missões que. no qual a escola tem o seu lugar. novas energias na criação de ambientes educativos inovadores. higienistas. para o exercício destas missões. mas também as comunidades locais. a educação para o consumo. abrindo para a possibilidade de um novo contrato educativo. o combate à droga e à toxicodependência. a educação para a cidadania. que elas tenham capacidade de decisão sobre os assuntos educativos. À sociedade o que é da sociedade sintetiza bem as ideias que temos vindo a apresentar. médicos. arquitectos. na educação das crianças e dos jovens. A proposta anterior – Escola centrada na aprendizagem – só tem sentido se a sociedade se responsabilizar. propositadamente sem qualquer ordem. 3. mobilizando projectos e saberes de professores. de espaços de aprendizagem que estejam à altura dos desafios da contemporaneidade. os centros de saúde e os espaços artísticos e desportivos pelo cumprimento de boa parte destas missões? Não se trata de regressar ao debate sobre a relação escola-sociedade.grande ousadia e criatividade. a promoção de comportamentos saudáveis. mas que não é um lugar hegemónico. A defesa de um espaço público da educação só faz sentido se ele for “deliberativo”. A operacionalização desta ideia obrigará a equacionar formas de organização dos cidadãos. a preparação para lidar com situações de emergência. progressivamente. será que elas não devem ser assumidas primordialmente por outras instâncias sociais? Será que não devemos responsabilizar as famílias. pedagogos e tantos outros especialistas. na acepção que Jürgen Habermas (1989) deu a deste conceito. único. Sem ignorar o papel da escola em muitas destas missões. designadamente através dos órgãos locais de governo. A proposta que vos faço rompe com a tradição de ir atribuindo à escola todas as missões e inspira-se nas formas de convivialidade sugeridas por Ivan Illich. não ficando apenas nas mãos dos educadores profissionais. nem em casos específicos. possibilitando-lhes assim uma intervenção educativa mais consistente. há gerações adultas que têm habilitações académicas idênticas às das gerações mais novas. não é menos verdade que hoje se torna essencial evoluir no sentido de uma maior responsabilidade da sociedade. pela primeira vez. E isso depende da nossa capacidade de pensar e de agir. a “sociedade civil” revela sinais de uma grande fragilidade. Todas estas evoluções tornam viável um cenário que. um importantísimo trabalho social. a diferença e a mudança. e dos nossos próprios países. económica e cultural. verificou-se uma enorme evolução nas qualificações escolares dos adultos. Mas este argumento apenas reforça a necessidade de reconstruir solidariedades. Estas propostas genéricas não se baseiam em situações concretas. de um modo geral. seria ilusório. de vida social e cultural. São ideias que só poderão ser úteis se forem devidamente contextualizadas e adaptadas à realidade de cada região e de cada país. com preconceitos (1972. O pensamento contemporâneo tem de ir além do já conhecido e alimentar- 41 .por um conjunto de actores e de instâncias sociais. * * * * * São muitos os futuros possíveis. Em vez do alheamento da sociedade. apesar destas evoluções. Em vez da homogeneidade e da rigidez. Mas. de ciência. Procuram. Em sentido contrário. vivem ainda em situações de miséria e de pobreza. Se é verdade que a escola cumpriu. Muitas zonas do mundo. de desporto ou de arte como nunca existiram no passado. ainda há pouco tempo. designadamente pela corrosão de alguns laços e estruturas tradicionais. poder-se-á argumentar que. espaços de convivialidade. p. em torno de três propostas que poderão orientar programas de trabalho e políticas educativas. Em vez do transbordamento. E as sociedades têm-se dotado de instituições de cultura. ao longo do século XX. provocar um debate. Deixo-vos alguns contributos modestos. É preciso abrir os sistemas de ensino a novas ideias. 225). Tinha razão. que vai para além das fronteiras nacionais. sim. uma nova concepção da aprendizagem. Durante muitas décadas houve um fosso geracional: os mais novos tinham habilitações académicas muito superiores aos mais velhos. Hannah Arendt escreveu que uma crise apenas se torna catastrófica se lhe respondermos com ideias feitas. bem como a sua disponibilidade para tarefas sociais e culturais. Paralelamente. tem aumentado a esperança e a qualidade de vida das pessoas idosas. que tenham como um dos pontos centrais a educação das crianças e dos jovens. Agora. isto é. Mas só um terá lugar. abrindo novos horizontes para a educação. o reforço do espaço público da educação. 1970.se de um pensamento utópico. que se exprime “pela capacidade não só de pensar o futuro no presente. 7). p. 41 . mas também de organizar o presente de maneira que permita actuar sobre esse futuro” (Furter. 51 (3). n. Transformons l’école. (2004). Ferrière. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Gil.ª edição 1932. Paris: PUF. Pat & Huber. pp. Appadurai. Educação e reflexão. David (2000). Hargreaves. 286-302. Paris: Unesco. Paris: Quadrige/PUF. Daniel (1984/85). Raisons pratiques . Harvard Educational Review. Manuel (2001). Pierre (1970). um tesouro a descobrir. Le Futur passé . (2003). 1957. Koselleck. Andy (2000). 62 (2). Delors. 3. 14 (2). 88-105. “Phronesis: A model for pedagogical reflection”. 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