Nocaute - Jack London

March 27, 2018 | Author: ViscusMech | Category: Jack London, Eye, Money, Youth, Sports


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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." . . fazendo uma careta por causa do esquecimento. era totalmente barbeado. no sono. O nariz. como que sobrecarregados pelo peso maciço de seus músculos. Era uma mulher magra e desgastada da classe trabalhadora. cortados muito curtos. Puro animal que era. artigo muito barato. Ele se sentou junto à janela numa cadeira raquítica que protestou ao receber seu peso. de movimentos lentos e pálpebras pesadas. nunca ferira ninguém. Sonolentos como os de um leão. Suas roupas ásperas eram velhas e tratadas com desleixo. quando ganhava muito dinheiro. Tom King raspou do prato a última partícula de molho e mastigou o bocado resultante numa pensativa lentidão. Tirando as trocas de socos. Mas Tom King não era um criminoso. sentando-se calada à mesa e fitando Tom com olhos solícitos. já lhe brotava da pele e criava uma sombra azul-escura em seu rosto. Os olhos. desenvolvendo e enfatizando assim todos os traços do animal lutador. e sua aparência não abundava em atrativos. era um homem lento. elas também. A mandíbula era agressiva. sem possibilidade de erro. Mas era o rosto de Tom King que indicava. Era um profissional. pudessem se esquecer de não terem jantado. não tinham expressão quase nenhuma debaixo das sobrancelhas bastas e quase unidas. pôs o cachimbo de lado. de alguém que tinha dedicado muitos anos de serviço à lona do ringue. O corpo de couro de seus sapatos estava fraco demais para arcar com o peso das pesadas solas a eles acrescentadas e que. comuns em seu modo de vida. Quando se levantou da mesa. sentia-se oprimido pela sensação de que estava claramente com fome. para que nenhum de seus traços deixe de ser descrito. completavam sua aparência. Seus movimentos eram lentos e desajeitados. As duas últimas moedas de meio penny ela tinha gasto na compra do pão. A falta de tabaco fez com que tomasse consciência de seu gesto e.Com o último pedaço de pão. exibia o colarinho puído e manchas irremovíveis de tinta. Os lábios eram informes e constituíam uma boca muito desagradável aos olhos. ainda que recém-raspada. era o rosto de um homem a ser temido. que. na juventude. brutal. o que ele fazia. Era o rosto típico de um lutador profissional. E nem jamais fora visto puxando briga. já vinham de longa data. só ele tinha comido. eram olhos de um animal que luta. Sua mulher não tinha tocado em nada. pôs mecanicamente o cachimbo na boca e mergulhou a mão no bolso externo do paletó. e toda a disposição brutal de que dava mostras se limitava às suas apresentações profissionais. excessiva. No final das contas. Era um homem de corpo sólido e ar obstinado. permanentemente deformadas e inchadas ao dobro do tamanho. e as orelhas de couve-flor. A camisa de algodão que usava. seus olhos representavam seu traço mais animalesco. deixavam ver todas as protuberâncias de um crânio de ar malévolo. A testa se inclinava rapidamente para trás ao encontro dos cabelos. As duas crianças do quarto ao lado tinham sido postas na cama cedo com a esperança de que. Tinha um rosto claramente achatado e. que mais parecia uma ferida em seu rosto. Não guardava rancor e tinha . Ainda assim. enquanto a barba. Fora do ringue. de natureza dócil e. embora não faltassem em seu rosto sinais de uma beleza anterior. num beco escuro ou num lugar deserto. A farinha para o molho ela tinha obtido de empréstimo com a vizinha do outro lado do corredor. duas vezes fraturado e deformado de várias maneiras por inúmeros socos. foi mais mão-aberta do que deveria. surradas e deformadas. não porque tivesse alguma diferença com Gouger. golpeando. o vigésimo. “Nem meio penny. Burke lhe dava crédito para até mil bifes — naquele tempo. também se acabara a resistência de Tom. com a plateia toda de pé e aos gritos. martelo e pinças. Tom King estava ficando velho.. perguntou ele. maltratadas. Plateias se reuniam e pagavam pelo espetáculo de dois homens derrubando-se a socos. revelavam o emprego que costumavam ter. respondeu sua mulher em tom de desculpas. Olhou para elas e para suas falanges maltratadas e. ficou sentado junto à janela. Não era mais capaz de lutar vinte rounds a toda velocidade. Burke me disse. E procurou acertar esse queixo. lutar. Seu coração tinha bombeado sangue demais para elas à máxima pressão. Quando Tom King enfrentou Woolloomoolloo Gouger. As veias saltavam nas costas delas. teve uma visão da excelência juvenil daquelas mãos antes de ter a primeira falange esmagada contra a cabeça de Benny Jones. lutar. “Conte! O que ele disse?” “Que ele achava que Sandel ia ganhar de você hoje à noite. “E eles. Hoje em dia ele se cansava depressa. resmungou em voz alta. lutar era um negócio. e que sua conta por lá já estava bem grande. sempre tinham murchado depois. Era sua proposta de negócio. sabia que o queixo de Gouger só estava curado havia quatro meses. Nunca ouvira dizer que a vida de um homem era a vida de suas artérias. despejando chuvas de socos e recebendo chuvas de socos em resposta. A sensação de fome voltou. inchadas naquele tempo. mas sem animosidade. que nunca fora de falar. As veias. golpeava para ferir. foram ficando um pouco maiores do que antes. também conhecido como o Terror de Gales. vinte anos antes. Tom King. “Diabo. mas não de todo — a cada vez.” Tom King grunhiu. Para ele. Era o jogo. o tempo todo o coração bombeando sem parar o sangue pelas veias certas. com essa maleabilidade. ela hesitou. E Gouger também não ficou com raiva dele. lutar. Mas as coisas tinham mudado. e as juntas dos dedos.poucos inimigos. nada?”. golpeava para incapacitar. grandes e inchadas. se esquivando. No ringue.. O vencedor ficava com a maior parte da bolsa. e os . por um instante. o jogo que os dois conheciam e disputavam. mas porque era a maneira mais segura de derrubar o adversário e ficar com a parte maior do dinheiro. mas sabia bem o que queriam dizer aquelas veias enormes em relevo. um ataque feroz atrás do outro. golpeava para destruir. que tornou a fraturar no nono round. ser empurrado para as cordas e por sua vez também empurrar o adversário para elas. “Tentei nos dois açougues da área”. cerrando os punhos e cuspindo uma maldição abafada. mas não respondeu. Elas agora não serviam mais para aquele trabalho. num silêncio sombrio. se pelo menos eu pudesse comer um bife!”.”. combater com mais velocidade e fúria no último round. contemplando as próprias mãos. Ele forçara a elasticidade delas até o máximo e. Estava ocupado pensando no bull terrier que tinha quando jovem e que alimentava com bifes e mais bifes. ele próprio atacando. quase imperceptivelmente no início. de gongo a gongo. depois de ter sido quebrado numa luta em Newcastle. desta vez com um sinal de desespero na voz. tempos difíceis. Parecia muito miúda ao lado daquela montanha de homem. “A verdade. mas naquela noite ela se adiantou e lhe deu um beijo. De tempos em tempos. e ainda sobra um bom dinheiro. eu preciso ganhar dele”.. minha velha. Trabalhava em escavações sempre que conseguia e corria em torno do parque Domain. “Boa sorte. Mas era difícil treinar sem parceiro e com uma mulher e dois filhinhos para sustentar. Ele acordara de manhã louco por um bife. “Se eu ganhar. que até emprestariam mais se o ano não fosse de seca e eles próprios não estivessem também em dificuldades. Não — e não havia como disfarçar —. respondeu ela quando ele já se afastava pelo corredor. Ele devia ter comido melhor e se preocupado menos. Eu só entro daqui a pelo menos uma hora. disse Tom. perguntou ele. Sua mulher foi perguntar do outro lado do corredor e voltou.” “E eu vou estar esperando”. Só preciso ganhar. não ganho nada — nem mesmo um penny para pagar o bonde de volta pra casa. em Sidney. ele se levantou. que lutavam em clubes de segunda. O crédito com os comerciantes da área sofrera uma expansão muito limitada quando seu combate com Sandel foi anunciado. tem mais dificuldade para entrar em forma do que aos vinte. “E pronto. ela e as crianças. primitiva. Não treinara direito para aquela luta. para manter as pernas em forma. quando o homem chega aos quarenta anos. ele conseguia o empréstimo de alguns xelins com velhos amigos. O secretário do Clube Gayety lhe adiantara três libras — a parte da bolsa para o perdedor — e.” “É. Lizzie. Eu volto direto para casa se vencer. Lizzie?”. “Preciso ganhar dele”. E ele estava saindo para a noite em busca de carne para seus filhotes e a mãe deles — não como um homem moderno que se dirige ao moinho mecânico de cada dia. e quase impossível achar trabalho. Tom”.” Estendeu a mão para o chapéu e pôs-se a caminho da porta. é que eu não me preparei direito. “É só um ensaio. Não fez menção de beijar a mulher — ele nunca a beijava quando saía de casa —. “Que horas são..” Ao final de mais dez minutos de silêncio. Se eu perder. Até logo. se recusara a lhe dar qualquer coisa. . não podiam esperar que os comerciantes da área lhes vendessem fiado. tentando se mostrar animado. animal e nobre. Por cima dos ombros dela. posso pagar tudo que estou devendo.velhos. seu treinamento não fora satisfatório. são trinta libras. mas da maneira antiga. disse ela. Depois são quatro rounds entre Dealer Wells e Gridley e uma luta de dez rounds entre Starlight e algum marinheiro idiota. e o desejo não diminuíra. lançando os braços em torno do pescoço dele e obrigando-o a se abaixar. “Você precisa ganhar. “Quinze para as oito. Era um ano de seca na Austrália. mesmo irregular. O secretário já me pagou todo o dinheiro do perdedor. Era tudo que ele tinha no mundo. lutando por ela. ele contemplou a sala despojada.” “A primeira luta vai começar daqui a pouco”. Além disso. enquanto ela o abraçava com mais força. Não tinha sparring para treinar e sua alimentação não fora das melhores e nem sempre suficiente. repetiu Tom. repetiu Tom.” Riu. com o aluguel atrasado. além disso. de manhã cedo. só vinte. como qualquer um sabia. no décimo oitavo round. Era a regra férrea do jogo. aguentando um castigo incrível. e seu nome nas colunas de esporte do dia seguinte. Agora era ele . quando chegava à última delas. ia de táxi para a luta e que. Ele não prestava para nada além de trabalho braçal. o fim da luta com uma chuva de socos. que só lutava pela glória e o dinheiro fácil. que desgastavam os nervos e a energia. E lembrou-se da luta em que apagou Stowsher Bill. ele fora mais longe que todos eles. Um homem podia ser capaz de disputar cem lutas difíceis. Bem. Não admira que tenha sido tão fácil — eles com as veias inchadas. Surpreendeu-se desejando ter aprendido algum ofício. bem no fundo. Dinheiro farto — lutas rápidas e gloriosas — períodos de descanso e ócio entre elas — um séquito de puxasacos. Cada um dos dois. Não admira que. o público aos berros. É. e eles. que deixavam o cérebro e os ossos esgotados pelo excesso de esforço e o abuso da resistência. a seu modo lento e ruminante. “vitória de King!”. os sujeitos que ficavam felizes de lhe pagar uma bebida em troca do privilégio de cinco minutos de conversa — e a glória de tudo aquilo. Nenhum de seus parceiros de luta ainda estava na ativa. Vira o fim de todos eles e participara do encerramento de várias carreiras. Stowsher Bill tenha chorado no vestiário. Tommy Burns e o preto americano. caminhar depressa três quilômetros não era a melhor forma de se aquecer para uma luta. e ele os derrubava um depois do outro — rindo quando eles choravam no vestiário. o grito do juiz. nos arredores da cidade. Os bons tempos! Mas agora ele percebia. tinha um número certo de lutas que podia disputar e. sabia que não teria dado atenção se alguém o fizesse. Bill lutara limpo. a Velhice em declínio. e o mundo não tratava bem dos velhos. E talvez Bill. Ele era a Juventude em ascensão. era o fim da linha. e ele. do tipo que acabava com a elasticidade das artérias e transformava a leveza ágil da Juventude em nós endurecidos de músculos. os apertos de mão. Enquanto ele ia a pé! E. Pode ser que tivesse em casa mulher e dois filhos pequenos. naquela noite de vinte anos antes. e como depois vira o velho Bill no vestiário. tivesse sentido uma vontade terrível de comer um bife. chorando como uma criança. que eram os velhos que ele derrotava naquela época. os dedos maltratados e o cansaço acumulado nos ossos pelas demoradas batalhas que já haviam disputado. E agora ele via.Eram mais de três quilômetros até o Gayety. naquele dia mesmo da luta. no fim das contas. do que o jovem Tom King. Mas ninguém dissera isso a ele. nos seus dias de triunfo — havia sido campeão dos pesos-pesados de Nova Gales do Sul —. e seu nariz quebrado e suas orelhas inchadas nem nisso o ajudavam. o sujeito só podia disputar um certo número de lutas. e enquanto caminhava ele se lembrava que. Ele era o último da velha guarda. Ele estava velho. depois que ele próprio tinha passado pelo moinho. de acordo com sua constituição e a qualidade de sua fibra. Jack Johnson — esses dois tinham carro. Era tudo tão fácil. muito provavelmente. na baía de Rush-Cutter. Teria sido melhor. Sim. como no caso do velho Stowsher Bill. outro. os tapas nas costas. Talvez estivesse com o aluguel mais que atrasado. algum apostador mais generoso pagaria o táxi para ir com ele. mais tarde. ele fora capaz de mais lutas que a maioria dos outros e participara de uma boa série de lutas difíceis e encarniçadas — do tipo que exigia que o coração e os pulmões quase estourassem. Organizavam lutas suas contra os mais velhos. que Stowsher Bill lutara por um prêmio maior. destruía a si mesma. e Tom ouviu um deles dizer aos outros: “É ele! É Tom King!”. era certo que ele iria lutar com a maior ferocidade. moía os ossos dos dedos. Porque a Juventude era sempre jovem. a socos. coroado por encaracolados cabelos louros. com bolsas maiores em disputa. King gostou de tê-lo como juiz. Tom?”.o velho. perguntou ele. Mas ninguém na Austrália sabia quem era. um jovem de olhos penetrantes e rosto esperto. tentar deixar o outro inconsciente. eram rostos de meninos que nem tinham nascido quando já conquistava suas primeiras vitórias no ringue. Destruía os velhos e nem percebia que. e Tom King era o velho saco de pancada atravessado em seu caminho para a fama e a fortuna. um depois do outro. Sim. conseguiria combates contra lutadores melhores. glória e carreira. cada um usando toda a sua força para. como ele próprio. Respondeu a cumprimentos à direita e à esquerda. Jovens aspirantes a peso-pesado. Sandel. Mas não conseguiu ver muita coisa. Viera da Nova Zelândia com um belo cartel. de músculos elásticos e pele sedosa. Lá dentro. anunciou Ball. Inchava suas artérias. Na maioria. estava de calças e suéter por cima de seu traje de combate. respondeu King. desafia o vencedor a uma aposta particular de cinquenta libras. “Como está se sentindo. com os segundos atrás dele. a Juventude era a Nêmesis. Tinha tudo a ganhar — dinheiro. ele virou à esquerda. o juiz. se tivesse uma libra. pois dali a poucos minutos estariam enlaçados num combate inclemente. encontrou o secretário. sabia que podia contar com a tolerância de Ball. e que riam das limitações ao esforço. onde sentou num banquinho dobrável. enquanto seu . Se Sandel se saísse bem. que também anunciava seus desafios. “do norte de Sydney. Era só a Velhice que envelhecia. e desceu o corredor até o ringue quadrado no centro do salão. teria dado tudo ali mesmo em troca de um bom bife. enquanto ruminava assim. que lhe deu um aperto de mão. triunfante e invencível. por isso. subiam ao ringue e eram apresentados à plateia pelo juiz. aproximou-se e lhe deu um aperto de mão. e organizavam lutas de jovens contra ele. “Perfeitamente em forma”. Quando emergiu de seu vestiário. com um coração e pulmões que nunca se cansavam nem rompiam. Tom King olhou curioso para ele do outro lado do ringue. ouviu-se uma explosão de aplausos e saudações da plateia que o esperava. Seu rosto era de uma beleza forte. a gloriosa Juventude. Jack Ball. Deu um salto ágil para a plataforma e se abaixou para passar por sob as cordas e se dirigir ao seu corner. e tornou a aplaudir quando o próprio Sandel passou entre as cordas e se instalou no seu corner. Como aquele sujeito. Na rua Castleragh. embora só reconhecesse poucos rostos. pois Sandel. Os dois eram velhos. e era por sua vez destruída pela Juventude. Tom King teve uma visão desalentada das formas da Juventude. embora soubesse que estava mentindo e que. “O jovem Pronto”. a caminho do vestiário. e três quarteirões depois chegou ao Gayety. E. então o punham para lutar contra o velho Tom King.” O público aplaudiu. Um bando de jovens desocupados em frente à porta abriu caminho respeitosamente para ele. E não tinha nada a ganhar além das trinta libras da bolsa para pagar o senhorio e os comerciantes do bairro. ao fazê-lo. Ball era um pugilista acabado que não subia ao ringue para lutar havia mais de dez anos. Se ele exorbitasse um pouco das regras com Sandel. Ascendiam ao sucesso escalando os corpos dos velhos. Os desafios se sucediam. e Tom King sabia que era uma vida que nunca deixava de emanar seu frescor pelos poros doloridos durante as longas lutas nas quais a Juventude paga seus tributos. Mas King não se deslumbrava. como um mecanismo de aço e molas acionado por um gatilho muito sensível. e sempre havia os velhos que eles derrubavam. Era assim que lutava a Juventude. Alguns anos antes. desbaratando sua energia e sua excelência numa insurgência louca e em ataques furiosos. No mesmo instante. Tom King acharia graça e se entediaria com todas essas preliminares. trocaram um aperto de mão e imediatamente assumiram a postura de luta. do Referee. enquanto Sid Sullivan e Charley Bates. e. Já era de se esperar. quando se levantou. incapaz de afastar dos olhos aquela visão da Juventude. carregando os banquinhos dobráveis. . insaciável e irresistível — e nunca paravam de afastar os velhos. deixaram o ringue. trocando apertos de mão com os lutadores. e depois avançou de novo. no apogeu de sua própria invencibilidade. Os dois homens avançaram um contra o outro e. E Tom King. observados de perto por um dos segundos de Sandel. com o peito largo e os tendões reforçados. uma direita nas costelas. Sandel queria apressar as coisas. Já tinha disputado lutas demais e enfrentado muitos jovens. mais e mais jovens — a Juventude.. seus segundos. O jovem Pronto foi a um dos cantos e depois ao outro. eles próprios se transformando em velhos e percorrendo o mesmo caminho ladeira abaixo.pescoço grosso e musculoso indicava o esplendor de sua forma física. calçavam-lhe as luvas e as atavam com firmeza. Sandel avançou e recuou. Sempre havia jovens como aqueles entrando no boxe. Todo aquele corpo fervilhava de vida. dançando leve para longe e dançando ameaçadoramente de novo para perto. soltando uma esquerda nos olhos. quando o gongo soou e os segundos. sempre empurrando para abrir caminho. com força e talento. enquanto atrás deles. derrotando o adversário com seu ilimitado esplendor de força e desejo. vinha a Juventude eterna — os novos bebês. As calças de Sandel foram tiradas. Em seguida estendeu as mãos. dispunha-se a enfrentar quem vencesse hoje. Era evidente que. e o público gritou de aprovação. saindo delas menos jovem do que entrava. Sabia exatamente como eram aqueles golpes — rápidos e elegantes demais para trazer algum perigo. Sua apresentação foi deslumbrante. viu a Juventude encarnada. que se tornavam ambiciosos e atropelavam os mais velhos. e depois desceu do ringue. Um dos segundos dele tinha ido até o corner de Sandel. desincumbindo-se de função semelhante. com mais bebês atrás deles. que precisa fazer valer sua vontade e nunca há de morrer. desconhecida mas insaciável — clamando para a humanidade que. Era rápido e inteligente. A Juventude atravessava as cordas — sempre a Juventude. a Juventude. e assim até o fim dos tempos —. pulando por entre as cordas e emitindo seus brados de desafio. ao olhar para ele. do Sportsman. seu suéter foi puxado por cima da sua cabeça. e Corbett. se esquivando de uma resposta. King olhou para o camarote da imprensa e trocou acenos de cabeça com Morgan. com os músculos que escorriam e se deslocavam como criaturas vivas por baixo da pele de um branco acetinado. desde o início. que antes examinou em detalhe as ataduras que protegiam os nós dos dedos de King. Mas agora se sentia fascinado. Nunca paravam de chegar. Mas. E o que se viu foi uma repetição do primeiro round. Não respondeu nem uma vez. limitando-se a fechar a guarda. No entanto. O primeiro round foi todo de Sandel. “Por que você não luta. quando as longas batalhas no ringue começassem a produzir seu efeito. com os pés ligeiros e o coração faminto. de uma libra para cima. Era uma coisa maldosa.” O gongo soou e os dois homens avançaram na direção do corner oposto. mas King se contentou em percorrer a distância mais curta. e. sacudia a cabeça quando recebia o peso de um soco e se deslocava vagarosamente pelo ringue. e seus olhos de pálpebras pesadas e movimentos lentos davam a impressão de que estava meio adormecido ou mesmo tonto. que ousava se interpor entre ele e a fortuna. mas lembrou-se de suas próprias primeiras lutas e de como tinha fraturado a primeira falange de um dedo contra a cabeça do Terror de Gales. se o outro insistia em golpear o adversário no topo da cabeça. de modo a evitar um castigo maior. ele se lamentaria por aquela falange e se lembraria de como a tinha fraturado socando o topo da cabeça de Tom King. “Não consegue se mexer mais depressa. Não havia nada a fazer até o outro extravasar boa parte de seu vapor. Iria continuar. Ele deixava King sem ação com avalanches de socos. mas enxergavam friamente e calculavam distâncias. ansioso por recomeçar. Era a linha que adotara em sua política de economia. Sabia o que estava fazendo e conhecia a Juventude. que tinham sido treinados para enxergar tudo ao longo de vinte e tantos anos no ringue. aqui. era por sua própria conta e risco. esquivar-se e apelar para o clinch. ouviu um homem comentar na primeira fila. todos destinados a destruir Tom King. batendo forte como sempre até o fim da luta. agora que não a possuía mais. pensava ele. paciente. Não estava bemtreinado nem tinha comido o suficiente. enquanto engolia o ar empurrado pelas toalhas de seus segundos. Aquela cabeça abaixada devia ter dado conta de uma das falanges de Sandel. Não que agora este fosse lhe dar importância. e cada passo contava. Cada um cuidava dos seus dedos. Estava só jogando o jogo. num ritmo soberbo apesar da contusão. os braços apoiados no canto das cordas. Tom?”. mais tarde. inclinouse para trás com as pernas estendidas. já tinha andado três quilômetros para chegar até ali. “Não está com medo dele. Sentado em seu corner para o descanso de um minuto ao final do primeiro round. Fazia alguma finta ocasional. um esplendor vivo de carne branca e força muscular que tecia uma teia esplêndida de ataques. Além disso.Sandel se aproximava e se afastava. de gesto em gesto por mil gestos. Sandel percorreu quase três quartos da distância. bloquear os socos. eram olhos que enxergavam tudo. Eram olhos que não piscavam nem se desviavam antes de um golpe iminente. mas totalmente de acordo com as regras do esporte. e sorriu para si mesmo ao curvar-se deliberadamente para receber um golpe fortíssimo no topo da cabeça. e King não fazia nada. e o público aclamava a rapidez de suas séries de golpes ofensivos. E Tom King. gritavam muitas delas. nunca pulando nem dando botes ou desperdiçando um grama de força. fintas e saltos como dardos em pleno voo. Dois contra um em Sandel. ali e acolá. com Sandel atacando como um moinho de vento e o público perguntando indignado por que King . Todos os movimentos de King eram lentos e metódicos. ou está?” “Está com a musculatura presa”. King podia ter se abaixado mais e deixado o soco passar sibilando por cima da cabeça. Ouvia com os olhos fechados as vozes da plateia. resistia. seu peito e seu abdômen exibindo francamente seu esforço profundo para respirar. A King cabia o domínio do ringue. prontos para pular para o ringue por entre as cordas. mas era a soma de pequenas coisas como aquela que contava. À contagem de nove. atingido do lado do maxilar. por excesso de confiança. Era como se um leão aparentemente adormecido de repente soltasse uma patada relâmpago. de frente para ele. Sandel era a Juventude. a luta era conduzida por King para perto de seu próprio corner. o que forçava seu adversário a percorrer a distância maior. deixou uma abertura. desabou como um touro abatido. pronto para se levantar. lamentou que o soco não tivesse pegado mais três centímetros na direção da ponta do queixo. contava os segundos em voz alta no seu ouvido. Sandel foi obrigado a percorrer mais aqueles passos. a sensatez adquirida em demoradas e dolorosas batalhas. e aguardou enquanto o juiz. Passaram-se mais dois rounds em que King poupava seus esforços e Sandel se mostrava . Rolou e tentou levantar-se. Os olhos de King e seu braço direito reagiram no mesmo instante. de um lado só. enquanto King. ele se limitava a bloquear. bem perto dele. sentou-se imediatamente no banquinho que o esperava. King. Quando o round se aproximava do fim. uns poucos que conheciam King dos velhos tempos e que aceitaram o que lhes parecia dinheiro fácil. Sandel ficou abalado. conduziu a luta para seu próprio corner. com o arco do braço torcido para dar-lhe rigidez. King avançava muito devagar a partir de seu corner. Mas havia alguns que sabiam. recomendando que aproveitasse toda a contagem. O round continuou até o fim de seus três minutos. Sandel. ele se levantou com sua postura de boxeador. Sorria com alguma tristeza em seu semblante maltratado pelo ringue e continuava a poupar energia com o zelo de que só a idade é capaz. No final de cada round. no final das contas. deslocando-se devagar e esperando que a espuma de Sandel começasse a se desmanchar. enquanto Sandel precisou percorrer toda a diagonal do quadrado até seu canto. e era capaz de soltar socos que tinham a força de um bate-estacas. a gastar mais aquele tanto de energia e a perder parte do precioso minuto de descanso. Nesse caso teria sido nocaute. parecia que King estava irreversivelmente dominado. e essa opinião era externada em apostas de até três contra um a favor de Sandel. O homem não estava com a musculatura presa. que fizera meio giro. Apoiou-se num dos joelhos. Para a maioria dos observadores. Foi seu primeiro soco de verdade — um gancho. O terceiro round começou como os outros. e tendo por trás dele todo o peso do corpo. percebendo que a hora estava para chegar ao ver os segundos que se acocoravam do lado de fora. por experiência. para assim sentar-se sem demora. e ele podia ter voltado para casa levando as trinta libras para a mulher e as crianças. Quando o gongo soou.não reagia. com Sandel tomando toda a iniciativa e desferindo todos os golpes. recusava-se a aceitar. Era uma coisa à toa. No começo de cada round. e esbanjava energia com o perdulário abandono da Juventude. Meio minuto tinha passado quando Sandel. o fizeram esperar. Além de algumas fintas e de vários golpes desferidos com lentidão e sem eficiência. mas os gritos altos de seus segundos. Sandel queria acelerar o ritmo. ganhar tempo e apelar para o clinch. com Sandel pela primeira vez respeitando o adversário e King sempre se deslocando com lentidão e com seus olhos sonolentos. Observava com a cabeça e os olhos frios. e Tom King. a direita de King aplicou um gancho com seu arco retorcido no queixo de Sandel e. seu ombro rígido quase sempre atingia com força as costelas do adversário. Tinha perdido boa parte de sua velocidade . Isto acarretava a interferência do juiz. Sandel nunca chegaria a ser um campeão mundial. portanto. Quando estava sentado em seu corner. Era um bom golpe. que ainda não aprendera a descansar: toda vez que King entrava em clinch e atingia as costelas do adversário com o ombro. Faltava-lhe a experiência. Sandel começou a aplicar uma direita poderosa no corpo do adversário. quando o fazia. que o mandavam começar a lutar logo. quase invariavelmente. toda a Juventude teria sido gasta no processo. Tom King era velho. sempre ajudado por Sandel. e mais uma vez Sandel esperou a contagem chegar a nove. Mas Sandel era incansável e não tinha consciência de suas limitações. puxava a direita bem para trás das costas e golpeava o rosto projetado para cima. Nunca perdia uma oportunidade de entrar em clinch e. mas ainda forte. ele esperou a contagem dos nove segundos de que dispunha e tornou a se pôr de pé. mas não levava perigo e. de frente para o adversário. A tentativa que este fazia de forçar um ritmo mais acelerado incomodava King. pois uma boa porcentagem da miríade de golpes que choviam sobre ele acabava por atingi-lo. e mais uma vez a temível direita de Tom King foi disparada contra seu maxilar. Sandel se descuidou. no sexto round. o corpo de Sandel caiu com todo seu peso estendido na lona. Mais uma vez. quando conquistasse a experiência. Nunca se esquecia de suas falanges maltratadas. não passava de um desperdício de energia. obstinado. É verdade. mas só os velhos frequentadores dos ringues percebiam o toque habilidoso de sua luva esquerda no bíceps do outro. um golpe de ombro valia tanto quanto um soco em matéria de produzir estragos e era bem melhor do ponto de vista do dispêndio de energia. em cada uma dessas vezes. Além disso. muito admirado pela plateia. Mas era este o problema. enquanto King sorria e. pouco antes do impacto do golpe. continuava a resistir. ocorreu-lhe que a soma de sua experiência com a juventude de Sandel poderia produzir um campeão mundial dos pesos-pesados. por outro lado. Das três vezes. contrariando os gritos dos jovens esquentados da plateia. Ainda assim. No nono round. nos clinches. mas o melhor velho que ele já tinha enfrentado — um velho que nunca perdia a cabeça. cujos socos tinham o impacto de um porrete e que seria capaz de nocauteá-lo com qualquer das duas mãos. que tinha uma defesa incrível. que precisava separar os dois.pródigo. o auge da condição física de Sandel passara e ele aceitou que aquela era a luta mais difícil de toda a sua experiência. deixando a própria cabeça descansar apoiada no braço esquerdo de Sandel. em três ocasiões em menos de um minuto. King jogava o peso de seu corpo em cima do adversário e sempre relutava em soltá-lo. abalado e estremecido. e sabia que cada soco que desse precisava ter efeito. King se aproveitava de todas as vantagens que conhecia. que só podia adquirir ao preço da Juventude. Ainda assim. ele persistia em sua obstinada lentidão. em todas elas. A impressão era de que King recebia um castigo tremendo. para que suas mãos pudessem aguentar até o fim da luta. este não conseguia deixar de usar aqueles gloriosos braços voadores com seus músculos flexíveis e. No sétimo round. mas. Tom King não se atrevia a golpear o tempo todo. Na filosofia do ringue. parte de sua força se perdia devido àquele toque no bíceps. o golpe de Sandel o acertava toda vez. Ao contrário de Sandel.e agora desperdiçava menos energia. King experimentou a velha e conhecida sensação de um véu negro de inconsciência cobrindo sua mente. e Sandel. King repetiu o contragolpe duas vezes. viu seu adversário recuando para fora do seu campo de visão e o fundo de rostos brancos e expectantes. que lhe pagara uma bebida depois da luta. e despejava golpe atrás de golpe até toda a plateia ficar de pé e o ar ficar tomado por uma onda ininterrupta de aplauso. com a experiência adquirida em lutas demoradas e promovendo a gestão cuidadosa de suas forças. Num momento. e um capitão de polícia. que já estava em pleno movimento de se abaixar: Sandel ergueu-se no ar e curvou-se para trás. dando- . na noite em que derrubara Stowsher Bill. até este encontrar uma defesa que também era um contragolpe. Era a estratégia da Velhice. com as fintas das mãos e do corpo. impressionado com o castigo terrível. Se a luta tivesse sido interrompida. mas nunca deixava Sandel descansar. King substituiu os dois pela astúcia. Eram palavras que um janota. deu dois pulos no ar. que era a Juventude —. cada vez mais desgastado. mas pelas trinta libras. reagia encolhendo a esquerda. Era como se tivesse adormecido só até tornar a abrir os olhos. Um nocaute parecia certo. repetia sem parar. continuava estimulando Sandel a pular para trás. O gongo marcou o fim do round e Sandel cambaleou de volta para seu corner. mas então o viu recobrar-se e retrair mais o queixo. afirmando ao capitão que estava bem e forte. inclinado para trás em seu corner e respirando com esforço. King começou a deter os ataques do oponente com diretos de esquerda no rosto. e este se lembrou da primeira vez que as tinha ouvido. e este continuava de pé. esquivar-se ou lançar um contragolpe. mantendo King um tanto atordoado. Vezes sem conta. Várias vezes Sandel repetiu o golpe. King descansava. Pegava alto demais para acabar com o adversário mas. tornou a ver seu adversário e o fundo formado pelos rostos. King deu meio passo para trás e desferiu um uppercut com toda a força de sua direita. pronto para interromper a luta. No começo do décimo round. e como perdera parte de seu vigor. e. enquanto soltava um cruzado de direita do lado da cabeça de King. que depois abaixava. estava desapontado. ele parou. e ele ganharia o dinheiro da bolsa. mas continuava a lançar mão de seu recurso principal. no momento seguinte. E agora Sandel teria aquele minuto de descanso para se recuperar.enquanto o de King era a experiência. o juiz deveria decidir a seu favor. da primeira vez que recebeu o golpe. Não dava a Sandel a oportunidade de descansar ou de se recompor. E seu cálculo de tempo foi tão preciso que o soco atingiu em cheio o rosto de Sandel. Mas a força e a resistência de Sandel eram soberbas.em seguida soltou-se e encostou o adversário nas cordas como que a marteladas. Para provar o que dizia. mas também a induzir o adversário a esbanjar suas energias. ou pelo menos numa fração ínfima de um instante. e o capitão de polícia sossegou. Naquele instante. Tom King. Como sua vitalidade tinha diminuído. mas o intervalo de inconsciência foi tão microscopicamente curto que nem teve o tempo de cair. levantou-se ao lado do ringue. procurando protegê-lo com o ombro esquerdo. Ao mesmo tempo em que fintava com a esquerda. O público viu King oscilar e a seus joelhos cederem. Chegou a vez da Juventude — palavras que voltaram de relance à mente de King. não lutava pela glória ou pela carreira. atingindo a lona com a cabeça e os ombros. Ele Não só tinha aprendido a nunca fazer um movimento supérfluo. Lutava com determinação. e era para ver isso que o público comprava bons lugares. lançava imediatamente o oponente contra as cordas. Suas pernas estavam pesadas. desferindo-lhe cruzados. Possuía uma resistência e uma energia extremas: a resistência e a energia da Juventude. muito tempo atrás. sem dúvida. desferiu seu uppercut em cheio na cara do outro e derrubou Sandel na lona. todas as vezes que Sandel teria caído. Era o que King queria. não teria durado quinze minutos. Mas a questão é que não conseguia mais se recuperar. e sua esperança era de que. soltando-se. conseguisse derrubar o adversário. E já não tinha começado a luta com força suficiente. para ele o valor era de trinta libras.lhe tapinhas no ombro. Depois disso. já lutava havia meia hora e estava velho. Tom!”. então deu meio passo para trás. percebeu como Sandel era um homem difícil de nocautear. custava só alguns pence. todos estavam a favor dele e quase todas as vozes gritavam: “Vai. E um bife era tão pouco. era ele a Juventude. Seus golpes acertavam o alvo. Ameaçou com a esquerda. Um ódio terrível brotava nele contra os açougueiros que lhe recusavam crédito. Sua força se esgotava. e ele tinha uma dificuldade visível de movê-las. Chegou a vez da Juventude! O janota tinha razão. As artérias dilatadas e o coração cansado não lhe permitiam recobrar as forças nos intervalos entre os rounds. E Tom King. . desprendendo-se dos seus clinches ou ao atingi-lo com socos quando ele tentava o clinch e. mas causou muito mais estragos ao prensar Sandel contra as cordas. agora a empregava prodigamente. no máximo. mas Tom King sentia cãibras nas pernas e seus dedos das mãos doíam. onde não tinha como desabar. calculando friamente o peso de cada golpe e os danos que causava. e começava a sentir cãibras. ganchos e todo tipo de socos. Enquanto continuava a golpear e empurrar. no fim das contas. Mas hoje a Juventude estava no corner oposto do ringue. enfraquecia tão depressa quanto o adversário. Entrou em clinch para escapar e depois. Era só com aquela fibra resistente que se faziam os grandes lutadores. pronto. E naquela noite. no grande esforço de que ainda se sentia capaz. no que ele próprio recebeu algum castigo. Sem falar no bife que queria comer desde cedo. A essa altura o público tinha enlouquecido. Quando o gongo deu início ao décimo primeiro round. mas já não traziam mais o mesmo peso. antes que usasse suas últimas gotas. Sandel estava. com a outra. Não devia ter caminhado aqueles três quilômetros até lá. Suas pernas pareciam chumbo. Era sua única chance — era agora ou nunca. Tom!”. que por meia hora poupara energia. Embora praticamente não fosse mais atacado. mas. não deixou mais o adversário respirar. cada um deles era um sofrimento para suas mãos torturadas. exibindo um frescor que na verdade não tinha mais. aparava o corpo do outro com uma das mãos e. Sandel se lançou ao ataque. E King percebeu do que se tratava — um blefe tão velho quanto o próprio boxe. permitiu que Sandel se preparasse. Tudo indicava um fim de luta relâmpago. provocou em resposta a esquiva e mais o gancho de baixo para cima que esperava. e cada um era resultado de um arranco poderoso de sua força de vontade. Quanto a ele. “Acaba com ele! Acaba com ele!”. Tinha as qualidades certas. Sandel oscilava e hesitava. “Agora você pegou ele de jeito. Se tivesse lutado da mesma forma que Sandel. Por mais que procurasse se preparar para soltar os golpes mais fortes. Era difícil para um velho entrar numa luta sem ter comido bem. Sentia uma tontura mortífera e. rolou de bruços e estendeu cegamente os braços para as cordas. na esperança de conseguir um clinch e ganhar mais tempo. mas os dois golpes que soltou foram abafados pelos braços da guarda fechada. King colaborou para se soltar. e Sandel se ergueu. diante dos seus olhos. Agora era a vez da Juventude. aquele mar de rostos balançava e se desfocava. King ainda teve uma explosão de esforço. como de muito longe. sentiu com o corpo que Sandel se fortalecia. na luta. por absoluta fraqueza. lembrou-se do bife e desejou tê-lo comido para dar sustento ao soco que precisava desferir. a luta estava perdida. que. No instante em que Sandel se levantou. King cambaleou atrás dele e. ele desabou de encontro a Sandel e entrou em clinch. Não foram golpes violentos. que pretendia acertar o queixo. não chegou mais alto que o ombro do outro. Sabia com que rapidez a Juventude se recobrava. Sandel estava em clinch e se agarrava a ele em desespero. no entanto. ali mesmo. diante de seus olhos. equilibrado na linha muito tênue que separa a derrota da sobrevivência. Quando o juiz separou os dois. ainda resistindo. não saiu com a força nem a rapidez suficientes. Estava acabado. Soltou dois golpes em rápida sucessão — uma esquerda.enquanto os torcedores de Sandel. fracos e fúteis no início. Sandel balançou. com o impacto do golpe. No quarto segundo. ficaram mais rijos e . num clarão amargo. E tentou mais uma vez. Ele queria um soco mais alto. Preparou-se para soltar o golpe. King se apoiava em pernas bambas. estava em silêncio. O juiz se aproximou dele. E. Sandel se desvencilhou do clinch oscilante. o braço esquerdo dobrado protegendo o rosto. mas não caiu. Ele tinha superado o outro na estratégia. Só a Juventude ainda poderia se erguer. sem a menor dúvida. mas Sandel estava tão fraco e atordoado que caiu e se estendeu trêmulo na lona. um pouco alta demais. Mas seu corpo não respondia mais. Um soco forte bastaria. King não tentou soltar-se. animados por esse sintoma. mas os músculos cansados não conseguiram obedecer. Um bom golpe faria Sandel cair e apagar. Ainda durante o clinch. Ainda assim. já conseguira se ajoelhar e descansou assim. enquanto ele partia na direção de King. chegava a contagem do juiz. agarrando-se ao adversário para não desabar ele próprio na lona. Seus golpes. no plexo solar. de pé. com a cabeça grogue se virando para um e outro lado sobre seus ombros. enquanto o juiz se esforçava para afastar os dois lutadores. o direito envolvendo o estômago. gritando a contagem dos segundos fatais em seu ouvido. ele viu a Juventude recuperar-se. Dessa vez o soco passou longe e. A casa. Sandel se pôs de pé. nos pontos. enquanto a seus ouvidos. No sétimo segundo. No momento seguinte. e sabia que só poderia derrotar Sandel se pudesse impedir essa recuperação. e um cruzado de direita no queixo. Sandel estava derrotado. já atenuada e enevoada pela exaustão. desferiu mais um soco. Seus pontos vitais estavam guardados. Tudo que lhe restava era sua inteligência de lutador. o próprio Tom King oscilou para trás e quase caiu. sentindo um espasmo que lembrava a dissolução. A cada instante Sandel ficava mais forte. considerava a luta ganha. na posição correta para recomeçar. Era impossível que um homem tão castigado pudesse se levantar. E Tom King. King já o atacava. O golpe. cambaleando para trás até se apoiar nas cordas. Quando o juiz gritou “Nove!”. Tinha lançado o seu raio. Se ele não se levantasse antes que a contagem chegasse a dez. começaram a gritar palavras de estímulo para o seu lutador. “Ora.precisos. apertava a sua mão. vá pro inferno!”. Cobriu o rosto com as mãos e. e devolveu o aperto com uma sinceridade que arrancou um protesto de seus dedos avariados. esperando para saber o resultado da luta. mas o braço estava pesado demais. Os olhos baços de King viram o punho enluvado rumando para o seu maxilar. e então desceu os degraus até a calçada. Lembrou-se do momento da luta em que conseguira deixar Sandel oscilando e tropeçando no fio da navalha. e ouvia os gritos da plateia como se fosse o ronco das ondas da Bondi Beach. Aquilo era mais difícil que qualquer nocaute. Ao cruzar o Domain. Estava mesmo envelhecendo. Uma esponja molhada banhava a base de seu crânio. Então Sandel se dirigiu ao centro do ringue e a plateia calou seu pandemônio para ouvi-lo aceitar o desafio do jovem Pronto. concebeu a reação. Quando saiu do vestiário para a rua. Teimou em não se erguer. Pobre Stowsher Bill! Agora ele . Desprendeu-se deles. perguntou o rapaz. Estava com fome. e a caminhada de três quilômetros até em casa pareceu-lhe muito longa. e ele achava quase impossível de enfrentar. Percebeu o perigo. depois recusou e foi embora. e Sid Sullivan soprava um esguicho refrescante de água fria em seu rosto e no peito. só dali a uma semana poderia aguentar o cabo de uma picareta ou manejar uma pá. e Tom King tentou levantá-lo com a própria alma. propondo aumentar para cem libras a aposta à parte entre os dois. Suas luvas já tinham sido tiradas. As portas do bar da esquina se abriam. secavam seu rosto e o preparavam para deixar o ringue. Seus segundos o sustentavam enquanto o ajudavam a atravessar as cordas. seguindo os calcanhares dos segundos enquanto estes lhe abriam uma passagem pelo corredor central superlotado. sentou-se de repente num banco. Sentiu um estalo seco. Sentia-se fraco e dolorido. preocupado com a ideia da mulher sentada em casa. e a dor em seus dedos avariados avisava que. mesmo que ele conseguisse algum trabalho braçal. um bife teria dado conta dele! Só faltara aquele golpe decisivo. Foi tomado de assalto pela miséria de sua situação. mas uma fraqueza. enquanto chorava. e ele pensou em se proteger interpondo o braço. na entrada do clube. e ele viu as luzes e as atendentes com seus sorrisos. “Por que você não acabou com ele quando podia?”. Não era a fome habitual. do tipo que aperta. Tudo por causa de um bife. abaixou-se sem ajuda para passar entre as cordas e pulou pesadamente no chão. A palpitação de fome que sentia na boca do estômago o deixava enjoado. Não tinha um vintém nos bolsos. e ele perdeu a luta. Ele hesitou perceptivelmente. Alguém o convidou para uma bebida. Quando abriu de novo os olhos estava no seu canto do ringue. lembrou-se de Stowsher Bill e como o derrotara naquela noite de um passado distante. e Sandel. E então foi atingido pelo punho enluvado. e ao mesmo tempo foi envolvido pelo véu de negrume. Ah. curvando-se sobre ele. uma palpitação na boca do estômago que se transmitia ao corpo todo. enquanto seus segundos enxugavam a água que escorria de seu corpo. ouviu as muitas vozes que discutiam a luta e o próspero tilintar das moedas no balcão. King continuava olhando. Ele não sentia o menor rancor contra o homem que o tinha nocauteado. um jovem se dirigiu a ele. Parecia carregar um peso adicional de cinquenta quilos de chumbo. apático. e uma umidade inesperada veio a seus olhos. respondeu Tom King. que lembrava uma centelha elétrica. à beira da derrota. entendia por que o velho chorava no vestiário. . Leia mais na edição integral (disponível nas versões impressa e digital) www.benvira.com.br O Jogo O Mexicano O Bife O Benefício da Dúvida A Fera do Abismo . além do próprio Jack London. principalmente na norte-americana. mas que enche os cofres da Junta Revolucionária Mexicana com os prêmios que ganha. Vladimir Nabokov e Norman Mailer. de todos os esportes. supera alguns. Autores como Ernest Hemingway. subiram ao ringue algumas vezes — e não raro usaram seus punhos fora dele. Seja o bom-moço apaixonado que mal consegue pedir um milk-shake na sorveteria em que trabalha sua amada. E talvez por isso mesmo o boxe ofereça tantas metáforas para o drama humano. assim como qualquer luta com público pagante. que ao primor e requinte da primeira se oporiam a fúria e a brutalidade do segundo. Ainda assim. mas que perde todas suas inibições ao vestir as luvas. seja o pesopena sobre quem ninguém sabe nada. é abatido por outros. todos eles têm a mesma habilidade: atingir-nos com suas histórias como um soco no estômago. Lutadores tendem a render personagens extraordinários. O fato é que o boxe. a estratégia e o jogo de poder entre as quatro cordas.Sinopse Há quem pense que a literatura e o boxe jamais poderiam andar juntos. fascina sua audiência ao expor a dimensão mais primordial de nossa existência: a do combate direto em que o melhor se sobrepõe. o boxe parece ser o que mais tem marcado presença na literatura. o que se encontra é uma narrativa heroica cujo protagonista sofre diversos golpes. Um prato cheio para um escritor habilidoso como London. Ao explorar a inteligência. E é isso o que encontramos neste volume. e ao fim se vê transformado por suas próprias experiências. . . como o Klondike e o Japão. ensaios e reportagens sobre os mais variados temas. Faleceu em 1916.Sobre o Autor Jack London nasceu em San Francisco. Amante inveterado do boxe. na Califórnia. como as que publicaram pela primeira vez os escritos desta coletânea. em 1876. começou a trabalhar em uma fábrica de conservas aos catorze anos e. antes de se tornar escritor. além de contos. Foi um dos primeiros escritores a viver da venda de contos para as então nascentes revistas literárias norte-americanas. Teve uma infância pobre. e deixou 22 romances publicados. aventurou-se por terras longínquas. após complicações de uma infecção renal. Jack praticou o esporte durante a universidade e sempre foi fascinado pelas histórias que circulavam ao redor dos ringues.
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