Nicolau Sevcenko - O Renascimento.pdf

April 2, 2018 | Author: Raphaela Rezzieri | Category: Renaissance, State (Polity), Feudalism, Europe, High Middle Ages


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D ados de C atalogação na Publicação (CIP) In tern acio n al(C âm ara B rasileira do Livro, SP, B rasil) Sevcenko, N icolau. S327r O renascim ento / N icolau Sevcenko. — 6. ed. — São Paulo : ■ 6. ed. A tual ; Cam pinas, SP : E d ito ra da U niversidade E sta d u a l de Cam­ pinas, 1988. (D iscutindo a história) Bibliografia. 1. A rte re n ascen tista 2. Renascença — H istó ria 3. R enascen — Itá lia I. Título. II. Série. CDD-940.21 -700.9024 88-0076 -945.05 Índices p a ra catálogo sistem ático: 1. A rtes ren ascen tistas : H istó ria 700.9024 2. R enascença : E u ro p a : Civilização 940.21 3. R enascença : Itá lia : Civilização 945.05 4. R enascim ento : A rtes : H istó ria 700.9024 5. R enascim ento : E u ro p a : H istória 940.21 Obra em co-edição com a EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP) Reitor: Paulo R enato C osta Souza C oordenador G eral d a Universidade: Carlos Vogt CONSELHO EDITORIAL Aécio P ereira Chagas, Alfredo Miguel Ozório de Almeida, A ttílio José Giarola Aryon D allTgna R odrigues (Presidente), E duardo R oberto Ju n q u e ira G uim arães, Hermógerles de F reitas Leitão Filho, M ichael M acDonald Hall, Jaym e A ntunes Maciel Jr., U biratan D'Ambrósio. D iretor Executivo: E d u ard o R oberto Ju n q u eira G uim arães Rua Cecílio Feltrin, 253 Cidade U niversitária — B arão Geraldo Fone: (0192) 39-1301 (ram al 2585) 13083 CAMPINAS — SP . discutindo a história o renascimento nicolau sevcenko 1 2 „s edição coord: jaime psnsky .-..íüíi^riS ciià fs a s í & v b Pa ■ Nicolau Scvcenko é formado em História pela USP, onde se douto­ rou, em 1981. Em 1983 publicou sua tese de doutoram ento sob o título de Literatura Como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Pri­ meira República. Se o livro lhe valeu, no mesmo ano, dois importantes prêmios (Prêmio Moinho Santista Juventude e Prêmio Literário de São Paulo), a tese lhe deu também uma grande alegria pessoal: a de ter tra­ vado o últim o debate público com o Prof. Sérgio Buarque de Holanda. Nicolau se qualifica como um ‘‘andarilho vacilante’ ’, buscando seu destino mais como “ um sonâmbulo que é guiado por sonhos fugazes, do que um navegante, que se orienta por um norte certo e por constela­ ções estáveis’’. Talvez venha daí sua afinidade com o tem a deste traba­ lho. “ N a vida, diz ele, tenho sido puxado por um punhado de esperan­ ças e empurrado por uma legião de fantasmas. Topei com muros impre­ vistos, tropecei nas próprias dúvidas e caí nas armadilhas do espelho, co­ mo todo m undo.’’ Atualmente professor da USP, realizando tam bém palestras, deba­ tes e numerosas incursões na Imprensa, Nicolau acredita que se o traba­ lho realmente dignifica o homem ele já poderia ir parando, por já ter acumulado dignidade suficiente para esbanjar o resto da vida. Mas como a dignidade não compra o pão, ele continua trabalhando, com a espe­ rança de algum dia saldar süa dívida com o B N H ... E foi com esse simpático e extrovertido autor que travamos a seguin­ te “ batalha’’: nasceu o desejo de entender as raízes ambivalentes de nossa cultu­ ra. me empenhei e acreditei profun­ damente nas possibilidades prodigiosas daquele fluxo inconformista e transformador que louvava o amor. esclarecendo mi­ nhas idéias. que extin- guirá a multiplicidade do real. Kléber Ferraz Monteiro. de agradecer a Antonio Hélio Cabral. Isso. a revolu­ ção cultural que fundou nosso mundo moderno. Ê enorme! Eu vivi um período de intensa mudança cultural. que é a instância supre­ ma de toda a cultura moderna.P. Eles me auxi­ liaram muito. por isso. Murilo Marx. o ridículo e a indiferença para com os visionários. Qual o seu envolvimento com. Outras razões mais circunstanciais também me auxiliaram muito nesse percurso. Será essa mesma razão abstrata que estará presente tanto na elaboração da imagem naturalista pela qual é repre­ sentado o real. o tema deste livro? R. Do resíduo de esperança e inquie­ tação e da enorme perplexidade que se seguiram a essa experiência dolo­ rosa. Gostaria. estimulando a elaboração deste texto. entidade ra- cionalizadora. certamente o mais belo legado do Renascimento à atualidade. A história da cultura renascentista nos ilustra com clareza todo o pro­ cesso de construção cultural do homem moderno e da sociedade con­ temporânea. Ela consagra a vitória da razão abstrata. versada no rigor das matemáticas que passarão a reger os sistemas de controle do tempo. compartilhou das minhas aflições e a quem dedico este trabalho. já muito dinâmicos e predominantes. Ela é a nova versão do po­ der dominante e será consubstanciada no Estado Moderno. Maria Cristina Costa Sales. do racionalismo e da ambição ilimitada. P. típicos de comportamentos mais imperativos e representativos do nosso tempo. contradit. Foi essa preocupação que me levou a sondar o Renascimento. 2 . que discutiu toda a es­ trutura do texto comigo. Mas um dia o sonho acabou e eu me dei conta de que a maior parte das pes­ soas manifestava um sentimento oscilante entre o desprezo. Nele se manifestam. quanto na formação das línguas modernas e na própria constituição da chamada identidade nacional. em tor­ no do final dos anos 60 e início dos 70. a liberdade e a fantasia.oriamente. De que forma o conhecimento da cultura renascentista pode auxiliar no entendimento do presente? R. a paz. foi o diapasão das avaliações estéticas. do traba­ lho e do domínio da natureza. colabo­ rou na escolha das ilustrações. os germes do individualismo. Ronei Bacelli. controladora e disciplinadora por excelência. monolítico e intransigente para o enquadramento de toda sociedade e cultura. sugerindo e me emprestando seus livros. vários são artistas ou professores de História da Arte. Elias Thomé Saliba e mui­ to especialmente a Maria Cristina Simi Carletti. impondo um padrão único. do espaço. Ocorre que dentre o círculo de meus amigos mais ínti­ mos. presa entre o anseio de um mundo melhor e o horror da mudança. fará brotar um anseio de liberdade e autonomia de espírito. no entanto. a opção era clara: tudo que os renascentistas pretendiam era assumir a condição hum ana até seus limites. atôni­ to.P. radicalmente hum ano. a cobiça e a potencialidade do homem. de técni­ ca e intelecto que jamais suspeitaram em si aproximava-os da figura do Pai Eterno. Certa vez ouvi você comparando a experiência do artista renascentista com a empresa das grand. até as últimas conseaüências. quem ousar fazer mais do que isso não o é ” . atacando os privilégios dos poderosos e pagando com o que tinham de mais caro: sua consciência. Tratava-se. e seus maiores com­ promissos serão para com ela. circulação e acumulação de recursos econômicos. apenas humano.es navegações. substituindo-se no papel do próprio Criador. O Renascimento assinala o florescimento de um longo processo ante­ rior de produção. de crítica. portanto. Como seria isso? R. A liberdade de escolha entre o bem e o mal parece ter sido um a das polêmicas introduzidas pelo Renascimento. à opressão e ao obscurantismo do período m edieval? R. Essa postura reve­ la com extraordinária clareza toda a audácia da experiência renascentis­ ta. sufocado pelo peso da própria liberdade. de relativismo e. Nessas condições podemos 3 . Como é que o hom em re­ nascentista se posiciona com relação ao exercício da liberdade plen a ? R. sua vaidade afetada e a cobiça sem freios que desencadea­ vam arrastava-os para ás legiões do Príncipe das Trevas. Surge assim a sociedade dos mercadores. Se o orgulho pela descoberta de sua prodigiosa capacidade criativa e pela revelação de virtudes. manter e estimular uma ativação econômica. P. O Renascimento. de­ sencadeado desde a Baixa Idade Média. E. compreendido como senhor todo poderoso da natureza. Nós temos no Renascimento um desses momentos particularm ente interessantes da História. em que o homem aparece transtornado. de um a prática cujos gestos mais ousados lan­ çaram seus participantes para além de si mesmos. Nem Deus e nem o demônio. surgindo em continuida­ de ã miséria. é a emanação da riqueza e da abundância. muito pior. sua liberdade. o personagem Lord Macbeth declara: “ Ouso tudo que c próprio de um homem. todo o desafio consistia em ser absolutam ente. organizada por princípios como a liberdade de iniciati­ vas. seu corpo e sua própria vida. P. colocando-os no li­ miar entre o demônio e o próprio Deus. A certa altura de uma das mais importantes peças de Shakespeare. com efeito. de ironia? Alguns ficaram aquém. outros ultrapassaram os limites do permitido. Mas até que ponto os poderes dominantes poderíam tolerar as con- seqüências dessa liberdade? Sobretudo se eia retornava para a sociedade em forma de dúvida. São os excedentes dessa ativida­ de crescente em progressão maciça que serão utilizados para financiar. destinado a dominá-la e subm etê-la à sua vontade. Como explicar a pujança do Renascimento. no entanto. por isso. acabaram na solidão. de seus desejos e de seus pavores. como Colom­ bo. Para se atreverem a essas perigosas viagens maríti­ mas. um a das mais fascinantes aventuras intelectuais da humanidade. esses homens. ainda modestamente equipados. porém único. esses homens viveram uma experiência soberana de criação e puderam provar o gosto amargo. 4 . de serem livres. foram igualmente encorajados pelas comunidades burguesas e cortesãs. no sofrimento e na miséria. O mesmo aconteceu com inúme­ ros criadores do Renascimento. receberam privilé­ gios. tiveram que acreditar em si mesmos e em seus confrades mais do que em entidades sobrenaturais. desprezados pelos que se abeberavam de suas conquistas. mas tiveram que enfrentar monstros míticos e reais. a atração e o medo do desconhecido. honrarias e regalias. O Renascimento constitui. tiveram que suportar.tentar fazer uma avaliação desse homem preso na solidão de ser livre e temos um a situação estratégica para verificar a dimensão de sua cora­ gem. E. ao mesmo tempo. Ele guarda um a semelhança mais do que notável com a empresa das grandes navegações. tiveram que enfrentar todos os riscos de desbravar novos mundos e tiveram que suportar o choque de valores completamente diversos dos seus. E muitos deles. 5 . e a Europa Ocidental passou a ser cortada por cara­ vanas de mercadores em todas as direções. em que a participação era intensa e os negócios vultosos. a burguesia. caracterizado como a Baixa Idade Média. as primeiras casas bancárias. A economia de subsistência e de trocas naturais tendia a ser suplantada pela economia m onetária. Surgiram.I. a dissolver o sistema feudal que prevalecera até então. as grandes cidades (burgos). voltadas para a atividade cambial e para os empréstimos a juros. o Ocidente europeu assistiu a um processo de ressurgi­ mento do comércio e das cidades. pelo desenvolvimento da tecno­ logia agrícola e pelo aumento da produção nos campos europeus. a influência das cidades passou a prevalecer sobre os campos. O estabelecimento de contatos cons­ tantes e cada vez mais intensos com o Oriente. re­ forçada pelo crescimento demográfico. garantiu um fluxo contínuo de produtos. assim. dava origem a novas condições que tendiam progressivamente. A criação desse eixo comercial. A nova camada dos mercadores enriquecidos. procurava de todas as formas conquistar um poder político e um prestí­ gio social correspondentes a sua opulência material. condições históricas gerais No período entre os séculos XI e XIV. inicialmente através das Cruzadas e em seguida pela fixação ali de feitorias comerciais perm anen­ tes. tornadas centros de produção artesanal e entrepostos comerciais. especiarias e sobretudo um estilo de vida novo para a Europa. a dinâmica do comércio a forçar a mudança e a ruptura das corporações de ofícios medievais. em conjunto com outros fatores estruturais internos. as feiras internacionais de comércio. lã. sal. entre outras. es­ sências. As novas rotas comerciais Atlântico-Mediterrâneas (. Ambas polarizaram o comércio europeu.séculos X IV e XV). vinho. cereais. corantes. As regiões da Inglaterra e França participavam das trocas. ambas as regiões eram centros produtores de tecidos de alta qualidade. m arfim. a Champagne. veludos. peles. Além disso. desde cedo se bene­ ficiaram com essas mudanças. onde eram transacionadas as mercadorias do Norte e do Sul e re­ distribuídas para todo o continente. pescados. ferro. 6 . tapetes. sedas.) e o flamengo pelo controle estratégico do tráfico do Mar Báltico e Mar do Norte (madeira. ocorriam as mais concorridas feiras interna­ cionais. exportados para toda a Europa. N a região da França Meridional. o italiano através do domínio do comércio do Mar Mediterrâneo ao sul (especiarias. etc. porcelanas. As regiões da Itália e da Fíandres. estanho. mel). sobretudo como grandes fornecedoras de matérias-primas: gado. as atividades agrocomerciais. Os fatores que têm sido apontados pelos his­ toriadores como os principais responsáveis por esse refluxo do desenvol­ vimento econômico são: a Peste Negra. Paralelamente. a fim dè não diminuir seus rendimentos. Como vemos. Essa crise do século XIV tem sido denom inada tam ­ bém Crise doPeudalismo. pois acarretou transformações tão drásticas na sociedade. entretanto. e os novos empresários passaram a exigir a propriedade exclusiva e privada das terras em que investiam. Passaram a predominar. economia e vida política da Europa. a ausência de qualquer sistema de esgoto ou saneamento. outras razões paia as revoltas populares. que praticam ente diluiu as últimas estruturas feudais ainda predominantes e reforçou. preferencialmente. os senhores feudais passaram a aum entar a carga de trabalho e impostos aos camponeses re­ manescentes. Com o de­ clínio demográfico causado pela guerra e pela peste. decorrente da peste e da guer­ ra. de onde as pessoas fugiam apressadas para ir transmitir a moléstia para as outras e assim por diante. Por isso. porém. a atividade comercial e os investimentos de capital se intensi­ ficassem ainda mais. As grandes despesas de um a guerra de longa duração 7 . Píavia. Tudo isso concorreu pa­ ra a dissolução do sistema feudal de produção. o arrendamento. a nobreza feudal via aumentadas suas dificuldades. A grande mortalidade. os servos foram liberados para vender seus excedentes no mercado das cidades. sem dúvida. A Peste Negra foi. a crise do século XIV contribuiu para que a economia monetária. todo esse processo de cresci­ mento entrou em colapso. quanto a Itália e a Flandres nesse mesmo período. algumas cidades se torna­ ram focos epidêmicos.Colapso Por volta do século XIV. As aglomera­ ções desordenadas de casas no espaço estreito das muralhas. portanto. Adotou-se então. atingindo a tota­ lidade do continente e exterminando cerca de um terço até metade da população européia. a Guerra dos 100 Anos e as re­ voltas populares. os trabalhadores e ar­ rendatários incrementam as técnicas e aumentam a produção. Era contra essa superexploração que os trabalhadores se revoltavam. através da qual poucos ho­ mens pudessem produzir mais. ou seja. A mortalidade foi ainda ampliada pela disputa se­ cular (1346-1450) entre os soberanos da França e da Inglaterra. a inobservância de quais­ quer hábitos de higiene e limpeza eram decorrências de um crescimento urbano muito rápido e tumultuoso. Assim. procedeu â desorganização da produção e disseminou a fome pelos campos e cidades — razão das grandes revoltas populares que abalaram tanto a Inglaterra e a França. A solução foi ado­ tar um a forma de trabalho mais rentável. o trabalho assalariado. de forma irreversível. na Guer­ ra dos 100 Anos. o desenvolvimento do comércio e da burguesia. um efeito das precárias condições de vida e higiene existentes nos burgos da Baixa Idade Média. estimula­ dos pela perspectiva de um rendimento próprio. como a produção de cereais e de lã. principalmente. das leis e normas. A escassez de metal precioso. Seu papel foi decisivo tanto para con­ duzir a guerra quanto. Fortalecimento da Monarquia Outro agente que saiu fortalecido da crise do século XIV foi a Mo­ narquia. os elevados preços do mono­ pólio italiano das especiarias e a morosidade da oferta de produtos orientais. Antuérpia na Flandres e Augsburg na Ale­ manha. Com a grande expansão do comér­ cio. A burguesia via neles um recurso legítimo contra as arbitrariedades da nobreza e um defensor de seus mercados contra a penetração de con­ correntes estrangeiros. O vácuo de poder aberto pelo enfraquecimento da nobreza é imediatamente recoberto pela expansão das atribuições. para aplacar as revoltas popula­ res. sobretudo aquela ligada à produção bélica. à construção naval e à produção de roupas e tecidos. Lisboa e Londres. a aum entar as regalias das cidades e dos mercadores. pesos e medidas. propiciou o desenvolvimento de novos centros comerciais como Sevilha. a emancipar seus servos. O desenvolvimento da navegação entre a Itália e a Flandres. ameaçavam paralisar o impulso extraordinário do comércio. nas quais tanto a Itá- lia quanto a Flandres se colocaram à frente das demais. como Lion na França. Mas como instituir um Estado onde só havia o poder pulverizado dos feudos? Criar e manter um poder amplo e permanente. começa a se res­ sentir da falta de um maior volume de moedas e mercadorias no merca­ do europeu. Somente as navegações ibéricas e a descoberta de novas rotas para a Ásia e a África. O co­ mércio sai da crise do século XIV fortalecido. significava antes de mais nada contar com um grande e temível exército de mercenários. bem como do novo continente americano no limiar do século XVI viriam aliviar esse estrangulamento das energias do capitalismo co­ mercial. O estreitamento da rede de comércio marítimo com a terrestre estimula a opulência de novas capitais econô­ micas. poderes e in­ fluências dos monarcas modernos. contudo. a Monarquia nacional criaria a condição política indispensável à de­ finição dos mercados nacionais e à regularização da economia interna­ cional. O mesmo ocorre com a ati­ vidade manufatureira. Vão sen­ do assim obrigados a desfazer-se de parte de suas terras. através do Atlântico. Signiflcava a pacificação das guerras feudais e a eli­ minação do banditismo das estradas. Essa ampliação vultosa do comércio. fronteiras e aduanas. neste mo­ mento. Por tudo isso muitos historiadores costumam tratar o século XTV como um período de Revolução Comercial.e as dificuldades enfrentadas pela escassez de mão-de-obra a obrigaram a um endividamento crescente junto aos capitalistas burgueses. um vasto corpo de funcionários burocráticos de 8 .As minas de me­ tais nobres e comuns da Europa Central tam bém são enormemente ati­ vadas. A unificação política significava a unificação tam ­ bém das moedas e dos impostos. um círculo de juristas que instituísse. dos Peruzzi. É evidente que homens com tais qualidades e disposições seriam mais provavelmente encontrados nos escalões da burguesia. legitimasse e zelasse por uma nova ordem sócio-político-econômica e um quadro fiel de diplomatas e espiões. cultos e eficientes. Era o caso dos Álberti. dos Médici. dos Acciaiuoli e 9 .corte e de província. Esse era aliás um conjunto de serviços que po- deria em parte ser encomendado a grandes casas de financistas e a gran­ des traficantes. dos Erescobaldi. de certo modo já habituados com todos eles. que financiaram as campanhas de Maximíliano na Itália (1508-17). dessa forma. fiscais. dos Go- dard na França e assim por diante. Em­ presas que recrutavam mão-de-obra diretamente dentre os camponeses expulsos dos campos pela adoção sistemática das lavouras comerciais e que apresentavam a dupla vantagem de empregar por baixos salários e não serem ligadas a qualquer corporação. Normalmente o acordo incluía a concessão dos direitos de ex­ ploração de minas de metais preciosos e ordinários. Mas o contrário também era verdadeiro. comerciais. dos Rehlin- ger. dos salários. feitorias e entrepostos. 10 . O tempo agora era propício para empresas de um novo tipo. e a formação do mercado nacional implicava a equiparação dos preços. Não relutavam. de sal e alume. Os lucros e o poder que tais privilégios propiciavam a seus detentores eram extraordinários e faziam com que eles se tornassem ver­ dadeiros patronos dos Estados aos quais se associavam. dos Bardi nas cidades italianas. Tem-se. o monopólio sobre certos artigos comerciais e o arrendamento da cobrança de impostos. E o que era o Estado Moderno senão a ampliação de um a empresa comer­ cial. que os monarcas buscassem o apoio. graças às suas inúmeras agências. por exemplo. dos Welser. que negocia­ vam diretamente com as sociedades de jornaleiros o valor dos salários e definiam os preços e padrões dos produtos de acordo com as condições da concorrência internacional. portanto. dos Inhoff no Império Alemão. para combater revoltas populares ou paia simples ameaça. E era quase isso. sendo que este se aconselhava com os assessores financeiros. paulatinamente. do ritmo da produção e das características dos pro­ dutos. possibilitaram a formação da liga ca­ tólica que combateu os protestantes e sustentaram ainda paralelamente o tesouro pontificai e os tronos dos monarcas da Europa Oriental (com exceção da Rússia). Companhias essas modeladas pelo espírito de iniciativa e ganância de seus empresários. em contratar com companhias especializadas os serviços de corpos de mercenários pa­ ra a guerra. garantiram a eleição de Carlos V como Imperador (1519) esúa guerra contra a França. A unificação política significava padronização local e jurí­ dica. Desenvolviam igualmente um sistema completo de contabilidade e de administração empresarial e financeira. dos Thurzo na Hungria. a seu controle. mesmo quando necessário. A casa dos Habs- burgo. teve seu destino indissociavelmente ligado ao dos banqueiros Fugger. a inspi­ ração e encontrassem parte de seu pessoal junto a essas grandes casas co­ merciais. ao me­ nos para os produtores organizados segundo o modelo das corporações tradicionais: o Estado acaba por submetê-los. militares. com os diplomatas e espiões antes de qualquer gesto? Era natural. Todas essas casas comerciais possuíam úma enorme burocracia que abrangia dimensões tanto nacionais como internacionais. ou dos Fugger. a imagem de um Estado transformado numa vasta empresa e ele próprio dominado por uma ou algumas casas finan­ ceiras. cujo controle decisório estava nas mãos do rei. todos. a educação seria o fator decisivo. os progressos caminhavam rápido. engenho. desde a assimilação e difusão dos algarismos arábicos e das técni­ cas algébricas. ou seja. Esse conjunto de circunstâncias instituiu a prática da observação atenta e metódica da natureza. os cálculos cambiais e os diversos siste­ mas de juros. Criam-se no­ vas técnicas de exploração agrícola e mineral. a fim de entrar para seu serviço. O instrum ental m atem áti­ co era indispensável para efetuar a contabilidade complexa das empresas mercantis e financeiras. se­ nhor de Milão. investimentos e bonificações. É o m o­ mento da invenção da Imprensa e de novos tipos de papel e de tintas. através do qual se poderia con­ densar sua vastidão e variedade num a linguagem abstrata. Sem a mediação das corporações. Seus padrões de ajusta­ mento à realidade passam a ser as condições do mercado. assim.Nova Ordem Social Nos termos desse quadro. a fim de explorar-lhe os mínimos recur­ sos em proveito dos lucros de mercado. O instrumento-chave para o do­ mínio da natureza e de seus mananciais. o Mouro. Pode-se. a criação de novas armas colocava os Estados em vantagem sobre os seus rivais. 11 . Se a introdução de um a nova técnica poderia colocar um a empresa à frente de suas concorrentes. Nem Maquiavel nem os humanistas estavam longe da verdade. Foi com esse objetivo que Gaíileu foi con­ tratado pela oligarquia mercantil da República de Veneza e foi esse tipo de préstimos que Leonardo da Vinci ofereceu a Ludovico. Para os pensadores re­ nascentistas. a ordem jurídi­ ca imposta e defendida pelo Estado e a livre associação com seus compa­ nheiros de interesse. O momento histórico colocava em foco sobretudo a capacidade criativa da personalidade humana. a liberação do indi­ víduo e o empurram para a luta da concorrência com outros indivíduos. E ambas ganharam novas fu n ­ ções com a invenção da luneta astronômica por Gaíileu. O período é de grande inventividade técnica es­ timulada e estimuladora do desenvolvimento econômico. de fundição e metalurgia. As pesquisas sobre a tradição da geometria euclidiana acompanha­ vam de perto os avanços na matemática. empresários e empregados si­ tuam-se como indivíduos isolados na sociedade. Â ruptura dos antigos laços sociais de dependência social e das regras corporativas promovem. os humanistas. conforme as condições postas pelo Estado e pelo capitalismo. deparamo-nos com um a nova ordem so­ cial. de construção naval e navegação. de armamentos e de guerra. O sucesso ou o fracasso nessa nova luta dependería — segundo Maquiavel. era a matemática. o intro- dutor da ciência política precisamente nesse momento — de quatro fa­ tores básicos: acaso. tomadas à civilização islâmica. portanto. astúcia e riqueza. acompanhada pela intervenção do obser­ vador por meio de experimentos. configurando um a atitude que seria mais tarde denominada científica. empréstimos. rigorosa e ho­ mogênea. O objetivo era o de obter o máximo domínio sobre o meio natural. Nesse campo. Os séculos XV e XVÍ assistiram a uma ampla difusão de relógios públicos mecânicos ou hidráulicos. baseados em Ptolomeu) e a rotundidade do nosso planeta. até atingir toda a ex­ tensão do globo terrestre. perdendo a tutela tradicional do senhorio e da corporação. nu­ ma liberdade individual que pouco mais significava que trabalho insano para garantir a sobrevivência nos limites mínimos. Mas e os pensadores. Graças a essas descobertas. O desenvolvimento do saber e do comércio se reforçavam mutuamente. As pessoas não se movem mais pelo ritmo do sol. 12 . estava eufórica. mas prescreverão o número exato das horas a serem cumpridas em troca do pagamento. na maior pane das vezes contra a vontade.confirmar a teoria radical do heliocentrismo (o Sol ocupando o centro do sistema planetário e não a Terra como acreditavam os homens da Igreja. O ano de 1500 marca significativamente tan­ to o descobrimento do Brasil quanto a invenção do primeiro relógio de bolso. que Colombo descobriu a América (1492) e Fernao de Magalhães fez a primeira viagem de volta ao mundo (1519-1521). destina­ da a garantir a segurança e a exatidão das viagens marítimas e o sucesso dos negócios dos mercadores europeus. A duração do dia não é mais conside­ rada pela posição do sol ou pelas condições atmosféricas. numa palavra: os humanistas. sua grande beneficiária. mas pela preci­ são das horas e dos minutos. o sistema comercial pôde ampliar-se. o que pensavam eles disso tudo? Que partido tomavam? Pensavam por si mesmos ou eram instrumentos pensantes da burguesia que os finan­ ciava? A resposta a essas questões é bem mais complexa do que se pode imaginar. os artistas. Em breve os contratos não falarão mais de jornada de trabalho. Mas foi acre­ ditando nessa cosmografia ousada. são atirados. os cientistas. A matematização do espaço pela cartografia é acompanhada pela matematização do tempo. O próprio tempo tornou-se um dos principais artigos do mercado. A nobreza e o cle­ ro. procuram conquistar um novo lugar de destaque junto às cortes monárquicas recém-criadas. esses homens nascidos com as novas condições e destinados a incrementá-las. regular e exato dos relógios. os quais são instalados nas praças centrais das cidades que desejavam exibir sua opulência e sua dedicação metódica ao trabalho. Camponeses e artesãos. pelo canto do gaio ou pelo repicar dos sinos. os filósofos. Globo que passou a ser rigorosamente mapea­ do e esquadrinhado por uma rede de coordenadas geométricas. mas pelo tique-taque contí­ nuo. Mas o que pensavam os homens do período sobre essas mudanças? A burguesia. perdendo o espaço tradicional dos feudos. muito antes ainda de sua confirma­ ção. da natu­ reza e das coisas sagradas. a filosofia. Iniciou-se assim um movimento. que incluíam a poesia. os homens empenhados nessa reform a educacio­ nal. Esses centros de formação intelectual e profissional eram dominados pela cultura da Igreja e voltados para as três carreiras tradicionais: direito.K E E S S S v íW 2. a história. a ponto de servirem para reformar o predom ínio cul­ tural inquestionável da Igreja e reforçar toda um a nova visão do m undo? 13 . Assim. de forma a preservar a ordem feudal. Mas o que tinham esses estudos de tão excepcional. os humanis uma nova visão do mundo Para começar: a quem é que se costuma chamar de humanistas e o que significa esse título? Embora só se tenha difundido no século XV. os humanistas eram. à socieda­ de. empenhados em transmitir aos seus alunos um a concepção estática. E as novas circunstâncias impuseram igualm ente aos ho­ mens que alterassem suas atitudes com relação a seu destino. à natureza e ao próprio campo do sagrado. conforme já vimos. hierárquica e dogmática da sociedade. Estavam. medicina e teologia. dina­ mizar e revitalizar os estudos tradicionais. disciplina esta resultante da fusão entre a retórica e a filosofia. a matemática e a eloqüência. Mas. baseado no program a dos stu- dia humanitatis (estudos humanos). num sentido estrito. esse termo indicava um conjunto de indivíduos que desde o século ante­ rior vinha se esforçando para modificar e renovar o padrão de estudos ministrado tradicionalmente nas Universidades medievais. cujo objetivo era atualizar. portanto. tão drásticas nesse período. baseada nos estudos humanísticos. as transformações históricas foram. por definição. que praticamente dissolveram as condições de existência do feudalismo. um de seus mais notáveis representantes. A crença de que o homem é a fonte de energias criativas ilimitadas. poderia e deveria ser recuperada. de resto impossível. sua liberdade de atua­ ção e de participação na vida das cidades. ou que desejassem retornar ao paganismo. devia ser abandonado em favor da restauração do la­ tim clássico dos grandes autores do período pagão.Ocorre que esses studia humanitatis eram indissociáveis da aprendiza­ gem e do perfeito domínio das línguas clássicas (latim e grego). A coincidência desses ideais com os propósitos da camada burguesa é mais do que evidente. em que o próprio latim degenerado. antes do advento de Cristo. na crítica filológica: o estudo minucioso e acura­ do dos textos e da linguagem. inclusive. deveríam ser condu­ zidos. suas crenças. Petrarca insistia. proposto como o objetivo maior e mais sublime dos humanistas por Petrarca. não podería ver com bons olhos essa atitude. definindo um a atitude que se tornou conhecida como antropocentrismo. a virtude e a glória. com a completa exclusão dos manuais de textos medievais. Por isso. uti­ lizado pela Igreja. hebraico e aramaico. Valores esses que exaltavam o indivíduo. Um comportamento cal­ cado na determinação da vontade. a especulação em torno do ho­ mem e de suas capacidades físicas e espirituais se tornou a preocupação fundamental desses pensadores. É preciso. num gesto ousado. A crítica cultural se desdobra. do modo de vida e das circunstâncias históricas dos gregos e romanos. Não quer isso dizer que os humanistas fossem ateus. mas graças à energia e à vontade de seus contemporâneos. e mais tarde do árabe. centrados exclusivamente sobre os textos dos autores da Antigui­ dade clássica. A Igreja. o ceticismo toma corpo na Europa somente a partir dos séculos XVII e XVIII. a vontade e a capacidade de ação do homem. os feitos históri­ cos. Muito longe disso.. submer­ sa sob o “ barbarismo” medieval. Significava. Assim sendo. de forma a sugerir um novo comportamento do homem europeu. suas realizações. para quem a história humana só atingira a culminância na Era Cristã. A imitação não seria a mera repetição. portanto. um desafio para a cultura dom inante e uma tentativa de abolir a tradição intelectual medieval e de buscar novas raízes para a elaboração de um a nova cultura. contudo. mas a busca de inspiração em seus atos. tendiam a considerar como mais perfeita e mais expressiva a cultura que havia surgido e se desenvolvido no seio do paganismo. Petrarca considerava que a idade de ouro dos antigos. com vistas a estabelecer a mais perfeita 14 . interpretar com prudência o ideal de imitação (imitatio) dos antigos. possuindo um a disposição inata para a ação. no desejo de conquistas e no anseio do novo. Eram todos cristãos e apenas desejavam rein- terpretar a mensagem do Evangelho à luz da experiência e dos valores da Antiguidade. Inspiração na Cultura Antiga Os humanistas. desse modo. pois. Dessa forma. a criar e a produzir. pois. tinham toda a preocupação voltada para as almas e para Deus. ao estudo histórico das novas socie­ dades urbanas e dos novos Estados monárquicos. ou seja. nenhum a mudança contava que não fossem as mudanças no interior da alma: a escolha feita por cada um entre o caminho do bem . para a transformação dos costumes. em crítica his­ tórica. da mansidão e da disciplina. O que levou esses autores. O choque entre esse ponto de vista e o dos teólogos tradicionais. para o m undo concreto dos seres humanos em luta entre si e com a natureza. Uma atividade crítica voltada para a percepção da mudança. E o único movi­ mento histórico que contava era aquele que levava da vinda de Cristo ao Juízo Final. e o do mal. portanto. quer fossem professores ou cientistas. Para esses. induzindo- o a expandir suas forças. Por outro lado. à orientação do clero. crítica filológica. foi um a das características mais notáveis do movi­ mento humanista. à consideração das circunstâncias e dos períodos em que foram escritos os textos e ao estudo das características das sociedades e civiliza­ ções antigas. A crítica filológica se transforma. agindo sobre o m undo para transformá-lo de acordo com sua vontade e seu interesse. Crítica da Cultura Tradicional Crítica cultural. sobretudo. por conse- qüência. Eles davam assim sua contribuição para a consolidação dos Estados-Nação modernos. à tutela da no­ breza. em seguida. como se pode ver. valorizava o que de divino havia em cada hom em . A postura dos humanistas era com pletam ente diferente. aconselhado pelas forças satânicas. Os humanistas. indicado pe­ lo clero. à onipotência divina. exaltando no ser humano. em pouco tempo ele se aplicava a todos aqueles que se dedicavam à crítica da cultura tradicional e à elaboração de um novo código de valo­ res e de comportamentos. mais atenta aos aspectos de modificação e va­ riação do que aos de permanência e continuidade. centrados no indivíduo e em sua capacidade realizadora. não poderia ser mais completo. em primeiro lugar. os valores da piedade. que os humanistas não demorariam em transfe­ rir todo esse saber para suas próprias condições concretas de existência. por sua vez. a pregação do clero tradicional re­ forçava a submissão total do homem. Estabeleceram em primeiro lugar as bases das línguas nacionais da Euro­ pa moderna e passaram. clérigos ou estudan­ 15 . crítica histórica: a atividade críti­ ca. o m undo dos fenômenos espirituais e imateriais. e em terceiro. U m a visão. que defendiam os valores da Igreja e da cultura medieval. volta- vam-se para o aqui e o agora. portanto. em segundo. para o m undo transcendente. das línguas e das civiliza­ ções. Os teólogos. portanto. permitindo aos homens o retorno ao Paraíso Perdido. a fim de terem um controle maior so­ bre o próprio destino. É evidente. se esse título de humanistas identificava inicialmente um grupo de eruditos voltados para a renovação dos estudos universitá­ rios.versão e a leitura mais cristalina. esses homens originais procuravam garantir sua sobrevivência e a continuidade de sua atuação. eram em grande par­ te motivadas pelas perseguições que lhes moviam seus inimigos podero­ sos. esse ardor de independência significou a morte na mais completa miséria. Esse foi o caso de Camões e de Michelangelo. Sua situação nunca foi realmente segura e mesmo a dependência em que se encontravam de alguma instituição.tes. como vimos. por exemplo. onde atuavam como mestres e preceptores dos jovens. acabou sua vida miserável. causava-lhes por vezes constrangimentos humilhantes. para só mencionarmos o destino trágico de alguns dos mais famosos represen­ tantes do humanismo. na Capela Sistina do palácio do Vaticano. A vida sempre lhes foi cheia de perseguições e riscos iminentes: Dante e Maquiavel conheceram o exílio. próximo ao trono pontificai. Perseguições O respeito à individualidade deles e à originalidade de pensamento nunca foi uma conquista assegurada. Eram ciosos de sua independência e liberdade de pensamen­ to. Miguel de Servet foi igualmente queimado vivo pelos calvinistas de Genebra. Mas esse mesmo clima de insegurança vivido por todos esses inova­ dores serviu para que se estabelecesse entre eles um laço de solidariedade 16 . príncipe ou família podero­ sa. recusando-se porém a aceitar a encomenda de Paulo IV para que pintasse véus sobre os corpos nus que havia criado para o “Juízo Final’ ’. principalmente na Itália. pretendendo dirigir a Igreja como um Estado Moderno. -Mesmo as constantes viagens e mudanças de Erasmo de Rotterdam e de Paracelso. Nem porque trabalhavam para os pode­ rosos. às vezes com sucesso e na maior parte das vezes com custos elevadíssi­ mos. esses homens se sujeitavam a ser meramente seus instrumentos pensantes. poetas ou artistas plásticos. mas isso não impe­ diu que alguns atuassem no seio da própria Igreja. Campanella e Galileu foram submetidos a prisão e tortura. ligando-se a príncipes e monarcas. onde os papas em geral se comporta­ vam como verdadeiros estadistas. Thomas Mo- rus foi decapitado por ordem de Henrique VIII. Para muitos. ou às grandes famílias burguesas. abandonados por todas as forças sociais. doente e solitário. às municipalidades ricas. De resto. por isso também que Maquiavel dizia orgulhoso do humanista: “ a ninguém ele estima. que morreram à míngua. F. Esse grupo de inovadores e de inconfor- mistas não era certamente visto com bons olhos pelos homens e entida­ des encarregadas de preservar a cultura tradicional. ainda que o vejais fazer-se de servo a quem traja um manto melhor que o dele ” . o pintor e escultor italiano. senão pagando com a própria vida. Essa a razão por que Erasmo nunca aceitou submeter-se à tutela de nenhum podero­ so. às uni­ versidades. cercando-se de um grupo de intelectuais progressistas. por exemplo. Giordano Bruno e Etie- ne Dolet foram condenados à fogueira pela Inquisição. Era tam bém um campo fértil de estí­ mulos. hospitalidade. que se tornou ainda mais eficaz com os progressos das técnicas de imprensa. Assim. o humanismo que se ini­ ciou como um movimento típico das cidades italianas no século XV já ganhava as principais cidades e capitais da Europa do Norte. a circulação dos principiantes e dos discípulos. viagens. adquirindo uma amplitude que seus promotores pretendiam que fosse universal. através de toda a Europa.internacional. que tentava defender e socorrer os confrades em apu­ ros sempre que isso fosse possível. reforçado por trocas de corres­ pondências. envolvendo eruditos de diferentes origens nas principais uni­ versidades. trocas de informações. Humanistas estudando em meio 'a diversidade de objetos de estudo. a formação de ce- náculos. livros e idéias. de estudos e de divulgação. 17 . Essa rede de relações lhes dava um a nova dimensão de apoio e de identificação. onde a força da Igreja fora há muito minimizada. cada qual pretendendo interpretar a mensagem dos antigos e o estudo da realidade atual a partir do ponto de vista que lhe parecesse mais adequado. o aristotelismo dos paduanos não se ligava ao racionalismo de fondo teológico de São Tomás de Aquino. houve inúmeras correntes diferentes den­ tro do humanismo. onde se destacavam como seus grandes divulgadores Marsilio Ficino. o cultivo e a criação do belo consistem no mais elevado exercí­ cio de virtude e no gesto mais profundo de adoração a Deus. o platonismo ganharia força e um efeito decisivo sobre a produção cultural desse período graças à atuação da Academia de Florença. aristotelismo). como todos esses pensadores partiam do pressuposto do respeito à individualidade de cada um. Policiano e Luigi Pulei. Introduzido por Nicolau de Cusa. o que. co­ mum nas Universidades européias. Pico Delia Mirandola. estudo da personalidade humana. A produ­ ção do belo através da arte é o ato mais sublime de que é capaz o ho­ mem. Estando sob a influência da república independente de Veneza. mas ao racionalismo naturalista de Averróis. O aspecto mais característico e notável do platonismo flo- rentino consistia no seu espiritualismo difuso. parecia ser a postura mais comum. Mas a arte não é a mera imitação da natureza e sim sua superação no sentido da perfeição absoluta. que permitisse transpô-la com a máxima harmonia nas obras de arte através da elaboração matemática precisa. aliás. Todo o belo é uma manifestação do Divino. Assim sendo. Os rivais mais próximos dos florentinos eram os intelectuais da Es­ cola de Pádua. o grande comentador árabe da obra de Aristóteles. a exaltação. pesquisa científica. desligado de preo­ cupações teológicas. condensado na filosofia da beleza. Pádua tornou-se um centro de estudos voltado prin- cipalmente para a medicina e os fenômenos naturais. quer pela temá­ tica que abordavam de preferência (estudo da natureza. arte. O que não quer dizer que vários pensadores não tenham explorado mais de uma dessas tendências simultaneamente. que se distinguiam entre si quer pela tradição filosófica da An­ tiguidade a que se ligavam (platonismo. ligados à tradição aristotéiica. O palco mais prodigioso da efervescência renascentista foi sem dúvi­ da a riquíssima cidade italiana de Florença. quer pela prática a que se dedicavam (política. Ali se definiu desde cedo uma das mais significativas correntes do pensamento humanista: o pla­ tonismo. Nessa li­ 18 . Por essa razão. estudo da m atéria religiosa). cheio de conseqüências para toda a história das idéias e da arte do período. estudo da histó­ ria.Diversidade A essa universalidade do humanismo correspondería entretanto um a unidade de pontos de vista dentre seus representantes? Na verda­ de. Uma tal superação da natureza só seria possível por um conhecimento mais rigoroso de suas leis e propriedades. poe­ sia). Isso deu origem a diversas tendências do mo­ vimento. O desenvolvimento de um a atitude que hoje se podería chamar de científica deve ser compreendido. fundando assim um procedimento que poderia­ mos já denominar de científico e cujos desdobramentos nos trazem até a época contemporânea. e levaram os livros de Pomponazzi a serem queimados em praça pública e Gaiileu a escapar por pouco da mesma fogueira. acreditando. A mesma y. Seus maiores representantes foram Giacomo Za- barella e Pietro Pomponazzi. elas já eram objeto de observações sistemá­ ticas e apoiadas por instrumentos e experimentos arrojados. na supremacia natural da razão. junto com Averróis. William Harvey e Gaiileu tiveram tam bém seu perío­ do de trabalho junto à Universidade de Pádua. Se com Copérnico a astronomia e a cosmologia eram ainda um campo teórico. acompanhado de experimentos e de pesquisa empírica. mais explora­ do pela matemática e pela reflexão dedutiva. eles desenvolveram um pensamento e um a atividade voltados para o estudo e a observação da natureza.nha. como um aspecto indisso­ ciável de todo o conjunto da cultura renascentista. Os paduanos levaram seu naturalismo a ponto de romper com alguns dos dogmas fundam en­ tais da Igreja. mas não podemos esquecer que estudiosos como Copérnico. Essas atitudes eram extremamente ousadas para a época. portanto. negando a criação. com Gaiileu e Kepler. 19 . a imortalidade da alma e os milagres. pouco mais de 50 anos após. Mecanismo de =■ relógio movido a peso projetado por Da Vinci (faltam algumas partes). Essa especulação se confi­ gurou com maior nitidez sobretudo nas cidades italianas. desenvolveu-se principalmente no Norte da Europa. A palavra de ordem dentre esses es­ tudiosos era o abandono das velhas autoridades e preconceitos e a aceita­ ção somente daquilo que fosse possível comprovar pela observação dire­ ta. como Lutero. Religião Renovada e Ordem Política Estável No campo da fé. William Harvey demonstra o mecanismo da circulação sanguínea através da ob­ servação direta e da comprovação empírica. Os exemplos são intermináveis. na simplicidade da fé e na reflexão inte­ rior. o pa­ lavrório obscuro dos teólogos. o maior experimentalista do período. completamente aversa aos dogmas medievais e voltada toda ela pa­ ra o homem e para os problemas práticos que seu momento lhe coloca­ va. Paracelso. vivendo isolado junto à na­ tureza num a investigação incansável de todos os fenômenos que lhe cha­ mavam a atenção. no exemplo da vida de Cristo. Era já o anseio da reforma da religião. Segundo essa corrente. o mesmo faz Brunelleschi com a arquitetura e as técnicas de construção. do culto e da sensibilidade religiosa que se anunciava e que seria desfechada de forma radical. Tratava-se da fundação de um a nova concepção do sa­ ber. apurada pela crítica filológica). Um outro tipo de preocupação comum aos renascentistas dizia res­ peito às leis que regiam o destino histórico dos povos e o processo de for­ mação de sistemas estáveis de ordem política. O chamado humanismo cristão. ele ataca a imoralidade e a ganância que se haviam apossado do clero e da Igreja. Calvino e Melanchton. Leonardo da Vinci elabora pesquisas teóricas e projetos práticos nos campos da hidráulica e da hidrostática. A avidez de conhecimentos se torna tão intensa como a avidez do poder e do lucro. o formalismo vazio a que esta­ vam reduzidos os cultos. no amor desprendido. centralizado na figura de Erasmo de Rotterdam e de seus companheiros mais próximos. A obra de Erasmo. e na verdade as três passam a estar indissociavelmente ligadas na nossa sociedade. onde os perío­ 20 . ou filo­ sofia de Cristo. renegou completa­ mente o saber dos livros e das universidades. Agrícola desenvolve pesqui­ sas mineralógicas diretamente aplicáveis às técnicas de prospecção e mi­ neração.evolução ocorre nos demais domínios do saber: Vesãlio funda as bases da moderna anatomia através de suas dissecações de cadáveres. o Cristianismo deveria centrar-se na leitura do Evangelho (Erasmo publicou em 1516 um a edição do Novo Testamento. constitui o texto mais expressivo desse movimento. Todo repassado de fina ironia. frac- cionando a cristandade. que luta­ vam por uma religião renovada. a interiorização e individualização da experiência religiosa eram também exigências peculiares aos humanistas. por outros humanistas. a ignorância dos padres e a venda das in­ dulgências. como Thomas Morus e John Colet. a exploração das imagens e das relíquias. o Elogio da Loucura. Na geração seguinte. Coluccio Salutati e Leonardo Bru- ni. Os Utopistas A reflexão histórica e social e a ciência política. a Ci­ dade do S o l(1623) de Campaneila e a Nova Atlântida de Francis Bacon. destinado a instruir um estadista sobre como conquistar o poder e como mantê-lo indiferente às normas da ética cristã tradicional. Foi esse o mesmo medo que levou Maquiavel a escrever o seu O Príncipe. Desse mesmo cruzamento de interesses nascería urna outra corren­ te de pensamento tão original quanto ousada: os utopistas. O fim de Florença seria o fim da cultura humanista e o fim do homem livre. Surge. da França e da Espanha. onde os homens vivem e trabalham felizes. Todas essas comunidades contam com um poder altamente centralizado. repousava todo o poder político. pois. seria a unifi­ cação nacional sob a égide de um líder poderoso. Conclamavam assim seus concidadãos a lutarem pela preservação dessa tradição. porém justo. com fartura. já por volta do início do século XIV. o que o torna plenamente legítimo e incontestável para os 21 . em cujas mãos. nem era ele o fundam ento de toda autoridade. Marcílio ia ainda mais longe e insistia em que a comunidade civil se constituía com vistas à realização e à defesa dos interesses de seus membros. um a espécie de manual de política prática. prosperar e expandir-se. Assim sen­ do. num encontro que não foi m eram ente ca­ sual. nem os homens existiam e se reuniam para adorar a Deus. puramente imaginária. racional e inspirado. As três obras tratam do mesmo tema: concebem um a com unidade ideal. em últim a instância. nasce­ ram juntas no Renascimento. de meados do século XIV ao início do XV. a única forma de garantir a paz e a prospe­ ridade da Itália. vi­ nham sendo ameaçadas pela força de oligarcas e ditadores militares. paz e m antendo relações fraternais. revivem a lenda de que a cidade era a ‘‘filha de Rom a” e a herdeira natural de sua tradição de liberdade.dos de ascensão e declínio da hegemonia das várias repúblicas oscilavam constantemente e onde as formas republicanas. um a concepção so­ cial e um a teoria política completamente materialistas e utilitárias. Os paduanos Albertino Musato e Marcílio de Pádua. consideravam que eram os homens e não a Providência Divina os responsáveis pelo sucesso ou o fracasso de uma comunidade civil em organizar-se. o segredo da civilização superior de Florença. como se vê. seu respeito às liberdades e iniciativas individuais e a seleção dos melhores talentos seriam corrompidos pelos “ bárbaros” . Lutando contra os avanços de Milão ao Norte e com conflitos sociais internam ente. As obras mais notáveis nesse gênero são a Utopia (1516) de Thomas Morus. se­ riam os florentinos que fariam avanços nessas posições. os condottien. Para Maquiavel. ameaçada pelas lutas internas e pela cobiça simultânea dos monarcas do Império Alemão. justiça e ardor cívico. pois se a autoridade política desmoronasse e a cidade per­ desse a independência. os chanceleres humanistas de Florença. desde o século XIV. são múltiplos os caminhos do pensamento renascentista e certamente a variedade. o pecado ou a virtude. E se cada indivíduo é um ser contraditório entre as pressões de sua vontade. as polêmicas. É inútil querer procurar uma diretriz única no humanismo ou mesmo em todo o movimento renascentista: a diversidade é o que conta. En­ fim. Um sonho muito caro para a camada que se arrogava agora o monopólio da razão. o hom em é a medida de si mesmo e não pode ser tolhido por re­ gras. nós as percorremos até hoje. Por trás desses projetos utópicos. cabe a cada um encontrar sua resposta para a estranha equação do homem. A concep­ ção de que tudo já está realizado no m undo e que aos homens só cabem duas opções. que limitem suas capacidades. não faz mais sentido. o respeito à individualidade. deste ou do outro mundo. foi um dos fatores mais notáveis da sua fertilidade. as críti­ cas entre esses criadores são intensas e acaloradas. de resto. Fato que. seu desejo de mudança. era plenamente coerente com sua insistência sobre a postura crítica.membros da sociedade. a harmonia socia! deve ser um a derivação da perfeição geométrica do es­ paço público. Como se pode perceber. na paixão de seus sentimentos e na lucidez de sua razão. E banos. Essas utopias refletem modelos basicamente ur. de seus sentimentos e de sua razão. dispostos numa arquitetura geométrica em que cada detalhe obedece a um rigor matemático absoluto. Grande parte das trilhas que foram abertas aí. Seus autores revelam um nítido desejo de planificação total das relações sociais e produtivas e a perpetuação da ordem política racional. 22 . Nessas comunidades-modelo. mas confiar na energia da pura vontade. a pluralidade de pontos de vista e opiniões. o que se percebe é um desejo de abolição da imprevisibilidade da História e da violência dos conflitos sociais. As disputas. mas todos acatam cio­ sos a lição de Pico Delia Mirandola: a dignidade do homem repousa no mais fundo da sua liberdade. O mundo é um vórtice infinito de possibilidades e o que impulsiona o homem não é representar um jogo de cartas marcadas. a nova camada burguesa. Conforme verificamos. assim como as inúmeras e suaves 1‘Madonas” de Rafael que permanecem ainda como o modelo mais freqüente de representação da mãe de Cristo. precisava combater a cultura medieval. na entrada das quais co­ locavam seus brasões e em cujo interior enterravam seus mortos. as grandes famílias que prosperavam com os negócios bancários e comerciais e os novos príncipes e monarcas come­ çam a utilizar um a parte da sua riqueza para a construção de palácios no centro das cidades. E mais do que isso. através de seu intenso desenvolvimento nesse período. pretendendo im- por-se socialmente. Isso nos colo­ ca a questão: por que razão o Renascimento implica esse destaque tão grande dado às artes visuais? Como veremos. pois. Assim sendo.renascentista. a burguesia. amplamente reproduzidas e difundidas até nossos dias. igrejas. 3. no interior da qual ela aparecia somente como uma porção inferior e sem importân­ cia da população. ocupasse o centro e não as margens do corpo social. as artes plásticas acabaram se convertendo num centro de convergência de todas as princi­ pais tendências da cultura. a “ Pietà” e o “ Moisés” de Michelangelo. de fato. necessário construir um a nova imagem da sociedade na qual ela. a nova concepção nas aríes plásticas Sempre que se evoca o tema do Renascimento. catedrais e capelas. os impulsos mais marcantes do processo de evolução das relações sociais e mercantis. como a “ Monalisa” e a “ Ültima Ceia” de Leonardo da Vinci. a imagem que ime­ diatamente nos vem à mente é a dos grandes artistas plásticos e de suas obras mais famosas. acabaram espelhando. o “Juízo Final” . estátuas 23 . Era. Seu objetivo não era somente a autopromoção. Uma visão na qual o modo de vida e os valo­ res da burguesia e do poder centralizado aparecessem como única forma de vida e conjunto de crenças mais satisfatório para todas as pessoas.. Stí. mas tam bém a propaganda e difusão de novos hábitos. príncipes e monarcas — eram chamados mecenas. ou mesmo retratados em primeiro plano..... Essa .. isto é.... 24 . Esses financiadores de uma nova cultura — burguesia. valores e comportamentos. e de resto quadros. que adornavam os recintos particulares e alguns prédios públi­ cos.gigantescas colocadas nas praças e locais públicos com as quais homena­ geavam seus fundadores e seus heróis.. o que elas deveríam vei­ cular era um a visão racionai.. gravuras.. que podia ou não aparecer nas obras. Mais do que sua imagem.. predominando sobre uma cidade ou um a vasta região que aparecia em ponto menor ao fundo. em que costumavam aparecer em grande destaque em meio aos san­ tos ou às cenas do Evangelho... progressista. protetores das artes. afrescos. dinâmica.jB Monalisa — Leonardo da Vinci. otimista e opulenta do m undo e da sociedade. A Arte Medieval Mas. a religião. 25 . através da pesquisa científica e da invenção tecnológica. da anatomia. Ela acompanha paralelamente as conquistas da física. de invenções. Basta lem ­ brar a invenção da perspectiva matemática por Brunelieschi. inovações e aperfeiçoamentos técni­ cos. o espaço. conviría antes que se apresentasse um a indicação breve e ele­ mentar das características da arte medieval. quase que suprim indo a idéia de espaço. como que constituindo p e ­ quenos pilaretes perdidos no conjunto da constmção arquitetônica. de volumes e di­ mensões uniformes. da m atem áti­ ca. da geometria. com a qual ela iria formar um vivo contraste. com suas catedrais em forma de fortalezas militares — o que de fato eram -— os artistas do ro­ mânico representavam as imagens de um ponto de vista simbólico. A produção artística. As figuras eram chapadas contra o fundo. forma. ou as pesquisas anatômicas de Michelangelo. Acompanhando a intenção da burguesia de ampliar seu dom í­ nio sobre a natureza e sobre o espaço geográfico. tentando conquistar a forma. exclusivamente religio­ sas. proporções. ou os estudos geométricos de Albrecht Dürer. os cientistas tam bém iriam se atirar nessa aventura. inalterável e sagrada. ou seus ins­ trumentos mecânicos de construção civil. rústica. ou os instrumentos de enge­ nharia civil ou militar inventados por Leonardo da Vinci. tomando-a como um padrão de exclusão. abs­ trato. ou o aperfeiçoamento das tintas a óleo p e ­ los irmãos Van Eyck. As atividades e os campos de reflexão que mais preocupavam os pensadores renascentistas aparecem condensados nas artes plásticas: a filosofia. o movimento. A arte mais típica da cultura m edieval do Ocidente europeu foi o estilo românico. como a socieda­ de que ela representava. para que se possam destacar as peculiaridades da arte renas­ centista. de formas e expressões invariáveis. en­ tre tantos outros. a luz. Suas figuras. como uma das dimen-. volume. Denso. a história. portanto. a técnica e a ciência. tais como tam anho. pesado. A arte renascentista é uma arte de pesquisa. a cor e mesmo a expressão e o sentimento.luta cultural deve ser compreendida. sem qualquer consideração para com as características reais das coisas e dos seres representados. acaba se tornando um dos focos principais desse confronto. cor. Uma arte estática. da engenharia e da filosofia. ou seja. eram estáticas. daí seu aspecto sólido e maciço. apareciam sobretudo nas esculturas e relevos que faziam parte da própria arquitetura das catedrais e dos m onum entos mortuários. estéticos e filosófi­ cos a serem negados. portanto. considerando-a como o conjunto de valores técnicos. etc. a arte. sões da luta da burguesia para afirmar-se diante do clero e da nobreza e de seus ideais de submissão piedosa e da cavalaria medieval. movimento. penetra pelo Norte da Europa. o tricromatismo (normalmente o azul. dinâmicos e multicoloridos. Sua difusão ajuda a romper com a rigidez do românico e as ca­ tedrais ganhariam uma nova concepção. pois. A região da Península Itálica. O românico prevaleceu por toda a Alta Idade Média. entretanto. o dourado e o ocre). 26 . luz e cor. a isodactilia (todos os dedos de um a mesma mão com o mesmo tamanho) e a hierarquia dos espaços (com o destaque variando Igreja em estilo românico com detalhes de escultura: NotreDame - La . uma arte de raiz germânica e que. movimento. a uma concepção iconizada da imagem. Começava-se a ganhar em termos de espaço. o estilo gótico traz consigo a leveza e a delicadeza das miniaturas e o policromatismo da arte autenticamente popular.Grande. baseada na leveza dos arcos ogi- vais e na sutileza da iluminação dos vitrais. portanto. exclusivamente religiosa e rigorosamente ligada a normas fixas de composição como o hieratismo (forma rígida e majestosa imposta por um a tradição invariável). ao sul. a frontalidade (obrigação de só re­ presentar as imagens de frente). mas na última fase do período medieval aparece o gótico. Se bem que mantenha al­ gumas características do românico. presa. permanecia ainda sob a forte influência da arte bizantina. a isocefalia (todas as cabeças de uma série com a mesma altura). N um universo social de analfabetos (pratica­ mente só o clero sabia ler e escrever). eram as imagens. Mais do que normas. acarretando a destruição da obra e a punição do artista. esses requisitos da imagem eram dogmas religiosos. 27 . guiada pela palavra do clero e assegurada pelo braço da nobreza. o único que con­ tava. que transm itiam e repe­ tiam imutáveis as lições da teologia cristã. rompê-los era sacri­ légio.! . ao longo de toda a igreja. Arquitetura em estilo gótico com arcos e vitrais: Sainte das figuras mais sagradas para as menos sagradas). vistas pelos fiéis por dentro e por fora. A arte não tinha. um fim em si mesma e não guardava nenhum a relação necessária com a rea­ lidade concreta e cotidiana do m undo. a arte era concebida como um instrumento didático. As imagens eram apenas um a inspiração e um convite para que a meditação se dirigisse ao m undo espiritual e celestial. ao contrário. nesses três estilos. era preciso trans­ cender as imagens para além delas encontrar a doutrina e a verdadeira salvação. De qualquer forma. pois. Um variado cruzamento de influências con­ correu para esse fim . Por toda parte. O desenvolvimento da espiritualidade franciscana junto aos grupos populares. Mosaico da Capela Palatina: ícone bizantino. o otimismo da vida e a beleza dos elementos. con­ forme já vimos. porém voltada para a realidade material do m undo. Norte da Itália: Berço do Renascimento Devido a suas condições históricas particularmente favoráveis. a contemplação da natureza. O aumento da curiosidade pela arte e cultura clássica a partir do surgimento do humanismo. a palavra de or­ 28 . envolvendo um a atitude mística e ascética. a região do Norte da Itália pode ser considerada como o berço da arte renascentista. A difusão do neo-aristotelismo nos meios cultos a partir da Escola de Pádua. A pene­ tração do gótico através da intensificação das trocas comerciais com o Norte da Europa. seria Giotto. dando um efeito de profundidade em suas composições. tendo cada qual traços fisionômicos. dando maior expressão às figuras. esse pintor criaria uma arte original que encantou os homens de seu tempo. demonstrando ainda a preocupação de produzir um a certa ilusão de espaço e movimento em suas composições. Com base nesse jogo de fatores. vestes e posturas diferenciadas e sempre m uito expressivas de seu estado de espírito.dem era ‘‘viver mais pelo sentido do que pelo espírito’’. As personagens de suas pinturas preservavam sua individualidade. ela vi­ nha de encontro à nova sensibilidade das camadas urbanas e com elas iniciou-se o dolce stil nuovo (doce estilo novo). Giot­ to teve que desenvolver um a concepção mais nítida de espaço. E temos aí o fato mais prenhe de conseqüências: ao definir o volume tridimensional de suas figuras. I . o que eliminava a noção de espaço. passaram a dar a suas imagens um toque mais humanizado. Rompia assim com o tradicional fundo dourado. mestres pintores como Cimabue e Duccio. Giotto procurava ainda destacar o volume de suas imagens em toda a grandeza de sua tridimensionalidade. O sucesso alcançado por sua arte foi imediato. contra o qual as figuras góticas e bizanunas ficavam chapadas. porém. já na segun­ da metade do século XIV. O primeiro grande mestre desse estilo. Essa nova concepção do es- A morte de São Francisco de Asssis (detalhe) — Giotto. reduzindo a figu­ ração a um plano bidimensional e fechado. Elabo­ rando o universo dinâmico e colorido do gótico com a noção de paisa­ gem típica da arte bizantina e o frescor humano e naturalista da sensibi­ lidade franciscana. praticamente se restringia ao plano bidimensional das paredes. A arte renascentista. ou em perspectiva. mantinha um a consonância muito maior com o modo de vida implantado no Ocidente europeu com o incremento das relações mercantis e o desenvolvimento das cidades. Bertram. produzindo no máximo um efeito decorativo. como se ali ti­ vesse sido aberta um a janela para um outro espaço. Perspectiva Intuitiva Segundo o comentário do pintor Albrecht Dürer. convidava muito mais ao desfrute visual do que à meditação interior. Petrus Christus. a expressão pers­ pectiva significa “ ver através” . na Alemanha. era o principal efeito buscado pelos novos artistas. na França e na Flandres. será o eixo de toda a nova pintura praticamente até fins do século XIX. Essa impressão inédita de olhar-se para um a parede pintada e parecer que se vê para além dela. Inovações semelhantes a essas apareciam quase que simultaneamente na Boêmia. ao contrário dos estilos medievais que pre­ dispunham as pessoas a penetrarem nos universos imateriais das hostes celestiais.paço em profundidade. gótica ou bizantina. 30 . portanto. O novo esti­ lo artístico multiplicava o espaço dos interiores e. A pintura tradicional. Uma arte desse tipo impres­ sionava muito mais os sentidos que a imaginação. o espaço pictórico. Francke e principal­ mente os irmãos Limbourg e Jan Van Eyck. parecia multiplicar a própria vida. Era um a arte que remetia o homem ao próprio homem e o induzia a uma identificação maior com seu meio urbano e natural. com a preocupação de dar às pessoas. Seus introdutores no norte seriam mestres como Dirk Barts. objetos e paisagens retratados a aparência mais natural possível. em parte como evolução do gótico e em parte como imitação da pintura italiana. Quem quer que observe a obra deverá colocar-se exa­ tamente na posição do olhar do artista e terá sua observação dirigida ne­ cessariamente pela dinâmica que o ponto de fuga im põe à totalidade da obra. Como efeito da utilização dessa perspectiva central. que estabelece um a re­ lação matemática proporcional entre o objeto e sua representação pictó­ rica. todo o espaço pictórico fica subordinado a um a única diretriz vi­ sual. A invenção da perspectiva mate­ mática. que simplificaria o trabalho do pintor. Ã liberação do olhar do artista corresponde. representada pelo ponto de fuga. já que nem todas as dimensões do espaço retratado se submetiam à mesma orientação de profundidade. que são depois combinados para produzir o efeito de profundidade deseja­ do. quanto maior a distância com que os objetos e elementos são percebidos pelo olhar do pintor. ou “ perspectiva exata” . Ele seria aperfei­ çoado pelo arquiteto Leon Battista Alberti em seu Tratado de Pintura de 1443. arquiteto florentino. As­ sim. o plano do quadro é interpretado como sendo um a “ intersecção da pirâmide visual’ ’ cujo vértice consiste no olho do pintor e a base na cena retratada. Brunelleschi instituiu a técnica do “ olho fixo” . em que todos os pontos do espaço re­ tratado obedecem a uma norma única de projeção. que foi denominado “ construção legítima” .Técnica do “ Olho Fixo” Contudo. as técnicas de perspectiva introduzidas por Duccio. Giot- to e pelos mestres franco-flamengos careciam ainda de um acabamento mais rigoroso. tanto menores eles aparecem no quadro. ou seja. o método se difundiría com notável rapidez e se tornaria um a das características fundamentais da arte renascentista e de todo o Ocidente europeu até o início de nosso século. que representa o próprio infinito visual. que observa o espa­ ço como que através de um instrumento óptico e define as proporções dos objetos e do espaço entre eles em relação a esse único foco visual. A imagem fica claramente definida em função desses dois re­ ferenciais básicos: o “ olhar fixo” do pintor fora do quadro e o ponto de fuga no seu fundo. ou perspectiva linear. desse m odo. Sua técnica foi por is­ so denominada perspectiva intuitiva. deveu-se com uma grande dose de certeza a Filippo Brunelleschi. estabelecendo-se desse modo um a construção geométrica ri­ gorosa. por volta de 1420. Obtém-se as­ sim um a completa racionalização do espaço e das figuras pintadas que dá aos quadros um tom de uniformidade e hom ogeneidade em que na­ da. Assim facilitado. de forma que todas as linhas paralelas da composição tendem a convergir para um único ponto no fundo do quadro. por sua qualidade de lhes propiciar um total controle do espaço repre­ sentado. nem o m ínimo detalhe escapa ao controle geométrico matemático do artista. cujos elementos e cujas relações são matematicamente determi­ nados. Baseado no teorema de Euclides. propondo a elaboração da perspectiva em função de dois esquemas básicos: planta e elevação. Esse método obteve de imediato um a tal aceitação dos pintores. a subor­ 31 . dinação do olhar do observador. im punham por sua vez um estu­ do minucioso do fenômeno da luz. As dife­ renças de coloração impostas pela profundidade (quanto mais distantes os elementos representados. o criador do método. à matemática e à astronomia. mas um cientista com­ pleto. A visão fixa e monocular por sua vez tornou-se uma prática habitual com a utili­ 32 . conforme proposto por Aristóteles e Ptolo- meu e reiterado pela Igreja. dos pincéis e das telas. a quem só fica aberta a possibilidade de uma única leitura da obra. da refração. a mecânica e a precisão rigorosa. O sonho desses astrônomos. como Leonardo. Dürer e tantos outros. de tons e meios-tons. Um fato notável e que não pode ser tomado como meramente ca­ sual é que dois dos maiores perspectivistas do Renascimento. geometria e óptica. e Dürer. Michelangelo. à filosofia. Nessas condições. das cores e. Não havia mais como separar a arte e a ciência. o que fizeram os pintores com a introdução da técnica da perspectiva linear foi justamente a redução do espaço pictórico a um conjunto de relações ma­ temáticas e a sua projeção para o infinito indicado pelo ponto de fuga. mais opacos e diluídos eles ficam). portanto. à teologia. A essa altura a composição de uma obra pictórica implicava uma tal sofisticação que não estava mais à altura do artesão comum. os recursos do movimento e a psicologia das expressões. por sua vez. a elaboração da perspectiva linear envolvia necessariamente o domínio de noções bastante profundas de matemática. haviam sido relojoeiros e ti­ nham um a longa prática na construção de relógios. junto à poesia. exigia um domínio completo sobre a anato­ mia do corpo. Arte e Ciência Brunelleschi foi o primeiro a exigir que as artes plásticas saíssem do universo do artesanato e entrassem para o círculo da cultura superior. que escreveu os mais completos trata­ dos sobre a teoria das proporções humanas. Ni- colau de Cusa e Galileu era no sentido de contestar a hierarquização e a finitude do espaço cósmico. O esforço de toda nova astronomia de Copérnico. ao invés do espaço fechado do mundo gótico e bizantino. era reduzir a ciência astronômica à matemática e demonstrar a definição incomensurável do espaço e dos corpos estelares. Daí sua grande habi­ lidade com o cálculo. do reflexo. nas palavras de Descartes. os jogos de luz e sombra. ambas representavam a vanguarda da aventura burguesa da conquista de um m undo aberto e de riquezas infinitas. E não era sem sentido sua exigência. Abre-se um enorme fosso entre a arte voltada para a elite e presa a todos esses procedimentos científicos e a arte popular. Brunelles­ chi. podemos verificar que o desenvolvimento artístico acompanhava paralelamente o desenvolvi­ mento científico. De fato. Com efeito. o pintor já não era um artesão. A representação realista da figura hum ana. Ora. o projeto. das tintas. a que se habituou chamar de primitiva. pois. Criação Individualizada Esse zelo racional totalizante de que os artistas pretendem cercar as obras de arte é um a indicação segura da conceoção da arte científica que se origina com Brunelleschi e principalmente com Alberti. destinados à mensura- ção geométrica e cálculo matemático. apenas de um a possibilidade dentre várias. Já o espaço da arte renascentista é rigorosamente concentrado. O seu princípio fundamental é. de tempo. deriva­ va de um a série de práticas e procedimentos que já se haviam tornado habituais para a nova d ite burguesa. o da unidade e da unificação: unidade de espaço. e devido ao formato esferói- de do globo ocular. jogando todo o peso de sua competência contra os regulamentos medievais: a administração da cidade optou pelo arqui­ teto e m andou os mestres que o perseguiam para a cadeia. engenheiros. unidade. relojoei­ ros. percebe a realidade através de planos curvos e não retilíneos. a criação artística torna-se livre e cada artista torna-se um criador in ­ dividualizado. Se. a ele cabe decidir onde deve abrir essa janela e que cena deve mostrar. unificação geográfica através do m apeam ento de todo o globo terrestre. sendo a visão de conjun­ to da obra simultânea e não desdobrada como no outro. no entanto. Assim sen­ do. composta em paralelismos coordenados ou em seqüência livre. 33 . a pintura aparece como um a janela aberta para o m undo. Eis porque ela assimilou de im e­ diato essa forma de representação do espaço e passou a considerá-la co­ mo a única forma exata e possível. A perspectiva linear. a visão hum ana é bifo­ cal e não monocular. como na perspectiva geométrica. de forma que o observador deveria movimentar-se o tem po todo para observar o conjunto. unificação da natureza sob o primado das leis universais. Brunelleschi foi o primeiro a romper ruidosam ente com as corporações de ofício. A grande vantagem desse método para os pintores renascentistas consistia no princípio da unidade nele implícito. graças à criação do espaço pictórico produzido pela técnica da perspecti­ va. m udando sempre seu foco óptico. Do âmago de sua liberdade ele escolhe o ponto de vista que vai fixar na tela para o regalo dos observadores. Nada mais adequado a um mundo marcado pelos esforços da unificação: unificação política sob as Monar­ quias nacionais. o primeiro a teorizar que a matemática é o terreno comum da arte e da ciência.zação de instrumentos ópticos de origem árabe. utilizados por as­ trônomos. unidade de tema e unidade de composição sob os cânones unificados das proporções. navegadores e matemáticos. Para começar. arquitetos. construtores civis e navais. Nasce daí um novo orgulho do artista — a pretensão de desfrutar de um a dig­ nidade social e cultural superior. ela é tam bém dinâmica — formando imagens atra­ vés de movimentos constantes — e não fixa. como a alidade. A perspectiva linear absolutamente não corresponde à complexidade psicofisiológica da visão humana. Tratava-se. portanto. O espaço na arte medieval era criado pela justaposição de imagens. Ticiano conquis­ ta títulos de nobreza e freqüenta os círculos mais aristocráticos. É a imagem do mecenas se submetendo ao artista. só poderá fazê-lo isolando-se como Michelangelo e Tintoreto. A alienação e a angústia por sua vez são a fonte 34 . vários artistas e aprendizes participam da composição de um a mesma obra de que o artista pouco mais faz do que o esboço geral e assinatura final. pois a rapidez de entrega se torna também um valor de mercado. porém reduz sua espontaneidade e sua individualidade. É conhe­ cida a história. aos nobres e aos grandes burgueses. Mas o tempo e o espaço da contemplação não existem mais num a sociedade de concorrência brutal. reforçava sua individualida­ de e consagrava a formação de um mercado de obras de arte nas grandes cidades. Mas essa espiral crescente de valorização da arte e do artista. Esse processo certamente aumenta seus dividendos. Filarete passa a exigir que todos os artistas as­ sinem seus quadros. Assim sendo. como o reforço de uma sociedade individualista e suntuosa. Isso au­ mentava ainda mais a liberdade dos artistas. maiores enco­ mendas recebe. confirmados na sua individualidade. o que lhes dá maior valor de mercado e maior prestígio a seus compradores e proteto­ res. seu neto. Ghiberti es­ creve a primeira autobiografia que se conhece de um pintor e Vasari as primeiras biografias dos grandes artistas de seu tempo. exigindo um ritmo próprio de trabalho e produção. Mas para que produza tão rápido é preciso que racionalize a produção das obras através da divisão social do trabalho. de que o Imperador Carlos V se abai­ xou para apanhar um pincel caído das mãos de Ticiano. Quanto mais rápido um artista produz. pois o valor dos quadros passa a ser medido também pelo prestígio de sua assinatura. Alguns tentam resistir a essa situação. preservando sua autonomia ante os mecenas. comprando obras de arte livremente elaboradas e vendidas pelos artistas em seus ateliês. Por exemplo. que eles se tornam nomes da moda. que dominava Florença e encomenda­ va trabalhos aos artistas. contemplar o que seus olhos percebem e comunicar-se consigo mesmo” . mas também um valor de mercado. Tal é seu prestígio social já em mea­ dos do século XV. que assim se tornavam a expressão da individuali­ dade de seu criador. não poderia deixar de ter conseqüências para ambos. A solidão irremediável do artista moderno é um passo para seu encerramento na torre de marfim de seu ofício e seu mergulho na alienação completa. os artistas se esforçam para conse­ guir melhor posição social. de ritmo frenético e de profunda divisão social do trabalho. privilégio antes só reservado aos santos. que dizia: “ o pintor deve viver só. como Leonardo da Vinci. que não admitiam ninguém no seu ambiente de trabalho e tornaram-se homens terrivelmente sós. Lourenço de Médici. no que se refere ao rit­ mo de produção. dito o Magnífi­ co. reforçando todo o ciclo. Livre das guildas. Os pintores pela primeira vez ousam pintar-se a si mesmos. E se o artista pretende recuperá-lo. E se a geração de BruneJleschi ainda se encontrava sob a tutela de mecenas como Cosme de Médici. preferia comportar-se como colecionador. verdadeira ou não. Dela nasceu a terribilità tão falada do comportamento de Michelangelo. e a placidez racional da ‘‘Última Ceia’’ de Leonardo dá lugar à turbulência emocional incontida do “Juízo Final’’ da Capela Sistina.da angústia do homem dividido e fragmentado. pois ele foi o homem para quem a consciência dessa divisão e fragmentação assumiu um caráter agudo. Com ele também a ar­ te renascentista se transforma no maneirismo. num tempo trágico. 35 . preso à liberdade de sua individualidade. marcado pelo movimento reformista. pela invasão e saque de Roma sob as ordens do imperador da Alemanha e pela crise da economia italiana diante das navegações ibéricas. essa herança desconfortável que todos trazemos do homem moderno e que é a marca própria da modernidade. pelo seu ca­ ráter atormentado e sua arte tensa. porque os guias de Dante nessa travessia sacra e simbólica são um 36 . A obra tem um conteúdo simbólico e místico.. da queda e da salvação final que consubstanciavam a teologia cristã e apresentá-la numa narrativa orgânica e inspirada tal como recomendavam as diretrizes da filosofia escolástica. .. até o paraíso. Trata-se da Divina Comédia de Dante Alighieri (1265- 1321).. bem ao gosto medieval e narra a trajetória alegórica de Dante que.. composto de 100 cantos e organizado em tercetos (grupos de três versos cada) decassílabos. dali é tirado pelo poeta latino Virgílio... 4. da criação. Para começar.. que o guiaria pelo reino dos mor­ tos. O que pode ter de moderno um tal poema? Praticamente nada e praticamente tudo. a literatura de Dante guarda intocadas inúmeras carac­ terísticas da mentalidade e da expressão medievais. Mas traz consigo também os prenúncios dos fundamentos em que irá se basear a civiliza­ ção moderna. Para conti­ nuar. porque. porque o poema é escrito em dialeto tosca- no e não mais em latim. A obra é provavelmente a síntese mais bem acabada de todos os valores que nortearam o mundo medieval.. onde o entrega à salvação nas mãos de sua amada Beatriz. na qual ele se baseou rigorosamente.. como era o hábito na Idade Média.. Ao longo de seu percurso... .. Dizemos que é um marco ambíguo. literatura e teatro: a criação das línguas nacionais ■ O marco mais significativo da criação da literatura m oderna é um tanto ambíguo. através do inferno e do purgatório. Dante tem a oportunidade de transmitir toda a concepção da ordem do mundo. perdido num a floresta terrena. assim como as ima­ gens de Giotto.. A Divina Comédia consiste na realidade num longo poema épico. inveja e bondade. Ou seja. comportam-se. cir­ cunscrito a um limite de representação do belo que jamais lhe permite incluir o grosseiro ou o grotesco. magros ou gordos. Dante reconhece e conversa com inúmeras personagens dele conhecidas. Sentem. mantendo a inspiração religiosa de seu poema. que sentem dor. assim como as figuras de Giotto não são mais representa­ ções ressequidas que simbolizam abstratamente o corpo vivo de ho­ mens. fracos ou fortes. de vingança. preservando o tom sublime do conjunto. Além de que. alegria. pessoas notáveis na história recente daToscana e que apare­ cem no espaço do sagrado com todas as características de sua vida terre­ na. anseios de justiça. entretanto. que ainda lhes é o espaço de referência fundamental.poeta pagão da Antiguidade ladna e uma senhorita reles. as formas ou as emoções. Nesse sentido. Retrato alegórico de D ante — A utor anônimo da Escola Florentina. O fato de estarem num espaço transcendente não lhes uniformiza as feições. cerca de 1330. apresentando- se como seres dotados de corpos variados. burguesa e ca­ seira (embora ambos apareçam transfigurados na obra). Dante se assemelha por demais à pintura de Giotto e com toda a arte renascentista posterior. altos ou baixos. contudo. emoções ou situações concretas. mulheres e paisagens. Em sua passagem pelo inferno e pelo purgatório. 37 . ele. objetos. pensam e clamam como se estivessem na terra. ciúmes. se afasta do realismo tosco e popular que marcara a representação dos mistérios cristãos no final da Idade Média e o compõe no estilo elevado típico da regra clássica da Antiguidade. também as criaturas que aparecem na nar­ rativa de Dante possuem características reais e autênticas. onde o esforço intenso para a re­ presentação o mais fiel possível da realidade permanece. mesmo quando realiza descrição pormenorizada de pessoas. muito amigos e dois amantes incansáveis dos novos valores humanistas. ou com o divino através do hu­ mano. Muito embora fossem ambos contemporâneos. A forma preferida de sua poesia. N a Divina Comédia o espaço celestial se subordina à experiência terrena dos homens. amada distante. recebería um tal acabamento em suas mãos que o tornaria dominante em toda a produção lírica pelo menos até o século XIX. Todos os recursos de seu lirismo se concentram para expor e glosar sua humanidade inquieta e frágil. de suas hesi­ tações e de sua perplexidade seu tema único e perm anente. o soneto. suas obras seguem diretrizes muito diferentes e assinalam duas vertentes diversas na literatura renascentista. Nesses poemas Petrarca percorre todos os desvios de sua alma. que resume cerca de 350 poemas. pers- cruta seus sentimentos mais íntimos. por ele trabalhado com tanta habilidade quanto o de Dante. Nesse sentido. pois ao mesmo tempo em que resume a civilização medieval. destacaram-se dois brilhantes -continuadores dos esforços de Dante pela criação de um stil nuovo (novo estilo): Francesco Petrarca (1304-1374) e Giovanni Boccaccio (1313-1375). O mesmo ocorrendo com o verso decassílabo. Petrarca foi o primeiro poeta a fazer de si mesmo. Dessa forma. Petrarca e Boccaccio Na mesma Toscana. onde praticamente nasceu a literatura renas­ centista. refere-se continuamente ao seu amor desenganado pela jovem Laura. a obra de Petrarca iria atingir um grau inédito de elaboração formal que exploraria todas as possibilidades rítmicas e musicais do idioma toscano. como o de Dante por Beatriz. O seu Can­ cioneiro. afirmando-se contra uma situação adversa elas ganham realce. inacessível e alvo de um amor ao mesmo tempo sublimado e tenso. Menos que o di­ vino. porque é somente dela que falam as almas penadas. acompanha as oscilações mais sutis do seu estado de espírito. sintetiza todas as perplexidades que assinalarão e dignificarão o homem moderno. É a gran­ diosidade e o mistério do destino individual de cada homem e a forma como ele joga com a sorte e com as circunstâncias históricas que o cercam que preocupam essencialmente a imaginação de Dante. pelo contrário. 38 . dando-lhe uma plasticidade e sonoridade que impressionaram os con­ temporâneos tanto dentro quanto fora da Itália. o espaço intemporal do sagrado só pode ser compreendido se for remetido à temporalidade histórica da terra e da sociedade. As pessoas que padecem nas trevas ou nas tormentas continuam fiéis ainda em primeiro lugar à história de sua própria vida e de sua comuni­ dade de origem. Ele assim é um homem de dois mundos. destacando a individualidade única de cada pessoa e o compromisso fundamental com sua condição hum a­ na. sua inquietação é com o humano. A entrada dos homens no inferno ou no purgatório não lhes aniquila as convicções. de suas emoções. em buste. Ambos eruditos. Nada mais distante do universo metafísico. Petrarca e Boccaccio fizeram parte da primeira grande geração de fundadores e divulgadores da corrente h u ­ manista. Seu renome. consta de cem con­ tos curtos. malícia. portanto. como ocorreria. sacrifício. Sua obra principal. humilhação. Nesse jogo algo brutal em que se disputa a satisfação amorosa. Impossível imaginar um a concepção mais hum ana. a ética e as convenções artificiais da sociedade são as gran­ des inimigas. criando as mais variadas situações: ciúmes. superando o dialeto da Provença. As regras. terre­ na. Ã parte de sua obra literária. a arte e as formas de composição toscanas assumem o papel de primeiro plano como lingua­ gem cultural. os portugueses e os ingleses. tenacidade. narrados por um grupo de jovens para se entreterem enquan­ to fogem de Florença. e seria pelo italianismo dos espanhóis e franceses que se guia­ ram. atravessou a Europa em todas as direções. inclusive. sempre em intensa comunicação com agentes e comerciantes dos três continentes que circundam o Mediterrâneo. por exemplo. João III. prática e terrena. a língua. dedicaram-se a fundo ao estudo do latim clás­ sico e realizaram inúmeras traduções e reedições de textos latinos. em sua concepção mais carnal. com o Portugal de D. É na musicalidade. parte de sua obra literária nesse idiom a. crenças e sentimentos de pessoas de vários meios sociais nesse m om ento de transi­ ção do m undo medieval para o moderno. a Boccaccio cabe o título de criador da narrativa em prosa artística dos novos tempos. entram em cena to­ das as emoções que movem os seres humanos. num a segunda instância. Nesse momento. Manuel I e D. que p re­ valecera até então. vaidade. Demoraria muito para que as demais nações aprendessem a desligar-se do jugo cul­ tural italiano e fizessem sua própria arte. 39 . a astúcia é a arma principal. com­ pondo. As narrativas procuram dar uma imagem concreta e sensível de hábitos. comportamentos. no ritmo e nos metros da língua toscana que iriam buscar inspiração os franceses e espanhóis nesse m o­ mento. celestial e casto da Idade Média. o Decameron. E se de Petrarca podemos dizer que foi o criador da poesia lírica mo­ derna. O material dessas narrativas é variado. Isso só ocorreria quando cada uma dessas nações atingisse o auge de seu poderio econômico e político. fácil de ser obtido nas cidades comerciais da Tosca- na. a fortuna (sorte) é a aliada in­ fiel. orgulho. A literatura e o h u ­ manismo italiano do século XIV ocupariam por isso um papel de desta­ que singular no contexto do amplo processo de renovação cultural que agitava o continente. com a Espanha do Século de Ouro e com a Inglaterra isabelina. assolada pela peste de 1348. traição. e a glória consiste na conquista do ser amado e na consumação do ato amoroso. prática e una da miserável condição hum ana e do teatro cômico do cotidiano. honra. A tônica das narrativas é a busca da realização amorosa entre as per­ sonagens. das mais baixas às mais elevadas. etc. a langue d 'o c. e buscavam o latim clássico do período áureo do Império Romano. Antonio de Nebrija — ou Lebrija — (1444-1532). as pesquisas lingüísticas e filológicas dos humanistas vi­ nham justamente a calhar: elas permitiram a constituição dos vários idiomas nacionais. acabaram condenando o latim medieval à ruína e à extinção. Arrasta-se pelo sé­ culo XVI em Portugal. Nesse sen­ tido. mas também declinando mais cedo na península italiana (em torno de 1527. um cortesão espanhol como Garcilaso de La Vega. escrevia o primeiro dicionário latino-castelhano e um a gramática castelhana que fornece- riam as bases para a formação do idioma espanhol moderno. Assim. exaltar e interferir na vida cotidiana e concreta das cidades e dos Estados. um humanista espanhol. tenham criado os fundamentos para definir os idiomas vulgares moder­ nos. Por outro lado. uma língua que ninguém mais — exceto eles — conhecia ou saberia falar. aos estatutos e à cultura de cada país. usado pela Igreja e pelas administrações regionais em fins da Idade Média. o fi­ lho de um sapateiro rico como Marlowe ou um intelectual capaz de viver da renda de sua própria obra. Nessas condições somen­ te é que poderíam aparecer e manter-se um Rabelais. os intelectuais e letrados do Renascimento. procuraram em suas obras o recurso de uma lín­ gua que chegasse a camadas mais amplas possíveis da população. sendo bastante prematuro na Itália e na Flandres. dando- lhe a unidade de um todo homogêneo e com uma identidade própria. O mesmo 40 . desejo­ sos de compreender. . tão preocupados em recuperar o latim clássico. próprios de cada país europeu. Mas precisamente porque desprezavam o latim degradado. essa relação do movimento renascentista com a evolução das monarquias européias não é nem um pouco acidental. um alto magistrado da monarquia francesa co­ mo Montaigne. com a invasão e saque de Roma). Espanha e França e termina no limiar do século XVII na Inglaterra. num caso ex­ tremo. Espanha. Um dos fatores fundamentais de que careciam os Estados nascentes para centralizar e concentrar o poder político sob seu completo controle era a definição e imposição de uma língua nacional que acabasse com a fragmentação re­ presentada pelos inúmeros dialetos regionais e impusesse um padrão unitário à administração. França e Inglaterra Esse fenômeno é facilmente compreensível. a fim de conquistá-las para seus projetos e suas idéias de mudança. Nesse sentido.uma vez que apenas a prosperidade comercial é que permitia a constituição de núcleos urbanos densos e ricos e cortes aristocrádcas sofisticadas o suficiente para se trans­ formarem em público consumidor de um a produção artístico-intelectual voltada para a mudança dos valores medievais. a intenção desses escritores coincidia plenamente com a dos senho­ res e dos monarcas que os sustentavam. É por essa razão que o movimento renascentista europeu segue num ritmo próprio em cada nação. Aliás. protegido por ho­ mens ricos e poderosos. Parece estranho ima­ ginar que os humanistas.Portugal. como Erasmo de Rotterdam. dentre outros. na Alem anha o idioma nacional derivaria da região da Saxônia. por sua riqueza ou importância política como sede da corte monárquica. produziu uma primeira organização exata do idiom a alemão através de sua tradução da Bíblia. o poder político e a criação cultural aparecem. cujo príncipe eleitor acolheu e protegeu Lutero contra as perseguições movidas pelo imperador e pelo papado. o drama pastoral. impõe que to­ dos os processos e trâmites judiciais só fossem conduzidos em francês. As formas e os metros eram quase todos de criação italiana. que se torna o idiom a oficial. que remontavam em grande parte ao período de apo­ geu da corte siciliana de Frederico II: o soneto. proibidas. Com efeito. só o foram aqueles dialetos que representavam as regiões he­ gemônicas de cada país. o verso decassílabo e a oi- 41 . É preciso. Os gêneros utilizados pelos literatos geralmente rem etiam aos gêneros da antiguidade clássica. na Espanha é o castelha­ no da corte madrilenha. Contudo. através da ordenança de Villers-Cotterêts. um grupo de poetas renascentistas. portanto. na França é o dialeto da Ile-de-France. por exemplo. passa a ser a base dos decretos. Na França. Nesse sentido seriam os sistematizadores de um esforço já iniciado com o reformista religioso Jean Calvino.ocorre com Dante Alighieri que. assim como a definição dos próprios limites territoriais de cada nação. a tragédia e a comédia. região onde se situava a corte parisiense. mais uma vez como sendo indissociavelmente ligados. Tínhamos assim o poema épico. leis e éditos reais. no entanto. A variedade da produção literária renascentista é m uito grande. no seu tratado D e Vulgari Eloquentia. a poesia lírica. da França. na Itália é o toscano de matiz ílcrentino que se impõe como idioma nacional. reunidos num cená- culo que se autodenominava “ a Pléiade” . na In­ glaterra esse papel iria caber ao dialeto londrino. O outro grande líder reformista. Francisco I. procura fixar o padrão do que deveria constituir a língua literária italia­ na. Henrique VII da Inglaterra impôs a Bíblia traduzida no inglês da sua corte às escolas dominicais e paróquias de todo o país. qualquer dos dialetos de um país po­ dería ser tomado como base para a constituição de seu idioma oficial. O poder econômi­ co. que dera ao francês uma elaboração literária refinada através de sua obra Institui­ ção da Religião Cristã. ficando todas as demais línguas e falas regionais mar­ ginalizadas e iletradas. quando não. como é fácil de supor. Martinho Lute- ro. A rigor. através do qual um dialeto é eleito como predomi­ nante. Idiomas Nacionais A constituição dos idiomas nacionais. as narrativas satíricas. não perder o sentido político desses esforços de unificação lingüística. estabelece as regras do fran­ cês literário ao elaborar o tratado lingüístico denominado Defesa e Ilus­ tração da Língua Francesa. portanto. seria. o resultado de um gesto de força. ganha sistematização gramatical. O poeta assim seria um experimentador que explora. 1599) na Espanha. No conjunto. 1572) e Sanazzaro (Arca- dia. rítmi­ cas. se os gêneros eram antigos. avalia e anun­ cia os limites mais extremos da emoção. Honoré d ’Urfé (lA stré e . Coleções de contos. dedicada à expansão do sentimento sublimado de um amor fervoroso por um a amada sempre longínqua e inatingível. Luís de Camões (1524-1580) em Portugal. ou novelas. Poesia Lírica O gênero mais freqüentemente explorado é a poesia lírica tal como concebida por Petrarca. Esse lirismo de fundo platônico tem um forte elemento místico. as for­ mas de composição eram novas. Maurice Scève (1501-1562) e os poetas da Pléiade na França. Portanto. não se tratava de restaurar gêneros antigos. pelo sacrifício e pela contenção dos impulsos mais instintivos do homem. e as rimas. Poesia Pastoral Outro gênero de grande sucesso na literatura renascentista é a poe­ sia pastoral. que definiría o impulso criativo como um arrebatamento de inspiração poética e ao mesmo tempo um fervor mís­ tico que o eleva a regiões superiores do intelecto e do espírito. num a idealização que a identifica em últim a instância com a fé na salvação pela abnegação. qual um ser inspirado que fala aos homens comuns sobre um a realidade acima de suas pálidas existências cotidia­ nas. 42 . pois. 1502) na Itália. a perfei­ ção. Cer- vantes (Galatéia. o belo. Seus grandes re­ presentantes seriam Torquato Tasso (A m in ta. 1607) na França e Edm und Spenser (O Calen­ dário dos Pastores. 1585) e Lope de Vega [Areadia. Célebres nessa linha são o Heptamerão da Rainha Margarida de Navarra (1492-1549) e as Novelas Exemplares (1613) de Cervantes.tava (estrofe de oito versos). Jorge M onstm^yos {Diana Enamorada. picarescas ou edificantes também tiveram gran­ de voga desde o Decameron de Boccaccio. 1579) na Inglaterra. Seus grandes expoentes fora da Itália seriam Clément Marot (1495-1544). É dessa sensação de elevação que nasce uma consciência do papel superior que cabe ao poeta na sociedade. O poeta leva a sublimação de sua paixão intensa ao ponto de atingir um estado febril de excitação. mas de servir-se deles para veicular novos conteúdos sob formas que suscitavam um a nova sensibilidade. assim como a preocupação de criar na língua nacional. Garcilaso de La Vega (1503-1536) e Fernando Herre- ra (1534-1597) na Espanha. da sensibilidade e da imagina­ ção humanas. A temática é sempre intimista e apaixonada. baseada nos poemas bucólicos de Virgílio. 1542). explorando-lhe todas as possibilidades musicais. com a amada representando o bem. com narrativas satíricas. as Paixões e os Milagres. que era quem desempenhava os vários pa­ péis envolvidos na peça. Também aqui o modelo se­ guido é o da epopéia clássica. nas suas duas vertentes antigas: a tragédia e a comédia. a participação e a receptividade po­ pular eram intensas. Tratava- se de representações de cenas do Evangelho ou da história da vida da Virgem e outros santos. pois seu objetivo era um só: o de instituir um a alma nacional e o culto de crenças e valores nacionais — fundar mesmo a idéia de nação e prognos­ ticar. único e preponderante. A arte cênica. Os cenários eram simultâneos. com maior ou m enor sucesso. Teatro Outro dos gêneros recuperados da antiguidade clássica e que encon­ traria um a enorme aceitação nesse período foi o teatro. e os próprios atores ficavam o tempo todo na cena. através das quais os poetas procuram enaltecer e glorificar suas na­ ções emergentes. independentemente de qual estivesse sendo usado. o seu destino glorioso. mas os sistemas rítmicos e de versiíkação seguem o padrão italiano. hum anista ita- 43 . Temos assim a Francíada (1562) de Pierre de Ronsard. A primeira tragédia clássica publicada em língua popular no Renas­ cimento foi a Sofonisba (1515) de Giangiorgio Trissino. efetuadas normalmente na parte frontal das igrejas ou nas praças maiores das cidades. Não havia mesmo qualquer separação entre palco e platéia: todos estavam envolvidos na peça só pelo fato de estarem pre­ sentes. povoados e aldeias. desde já. pelo andamento do conjunto da peça. Portanto. são as epo­ péias. pelo seu significado histórico. Eram organizadas pelo clero em colaboração com as corporações de artesãos e da população de forma geral. mesmo que não tives­ sem participação no ato em representação. a Dragontea (1958) de Lope de Ve­ ga e Os Lusíadas (1572) de Luís de Camões. entrevistas como um esforço coletivo de toda a nação com o fito de cum­ prir seu destino predestinado de exercer a hegemonia sobre todos os po­ vos. desconsiderando todos os elementos que não participavam do ato. contudo. De qualquer forma. tivera um grande desenvolvimento durante a Idade Média através de represen­ tações de cenas religiosas: os Mistérios. Ao espectador-ator caberia distinguir.Epopéia Mais notáveis. porém. essa exaltação do poder temporal e das conquistas e feitos de armas das casas reinantes. Praticamente em to­ das as nações tentou-se. permanecendo todos armados um ao lado do outro. em bora se mantives­ sem em cena. legitimando simbolicamente os Estados monárquicos que se centralizavam e agigantavam nesse período. pouco im portam as pro­ cedências dos recursos de que lançaram mãos os poetas nesse caso. a que cenário deveria atentar e a ação de quais atores deveria acompanhar. a Fairy Queen (1596) de Edm und Spenser. o qual era pe­ dreiro. dando à peça unidade de tempo. de espaço e de ação. O desenvol­ vimento maior da arte teatral deu-se. consolidação do poder central. filho de um sapateiro. Esse fenômeno é que permite a emergência do teatro isabelino. dando à representação um a linearidade. O florescimento notável do teatro inglês no período de Elizabeth I (1558-1603) deve-se em grande parte a um momento de participação intensa. que trabalhou com o padrasto. esse processo de marginalização das classes populares é o mesmo que se percebe na arte com a introdução da perspectiva e do espaço matemático. Londres criou uma atmosfera ideal para o desenvolvimento das companhias de teatro. e na literatura com a constituição das línguas vulgares cultas. cada cenário aparece e desaparece quando a ação que ne­ le se desenrola principia e acaba. O cresci­ mento prodigioso da cidade mercantil-financeira de Londres é acompa­ nhado de uma rápida ascensão social de amplas camadas ligadas ao arte­ sanato e aos negócios e permite a formação ali de um público urbano tão ansioso de refinamentos culturais quanto de distrações e distinções so­ ciais. Benjanson (1572-1637). cada personagem só permanece no pal­ co enquanto tem uma função significativa na cena e as ações se sucedem numa seqüência cronológica linear. Quer seja no seio da corte ou da população urbana. o autor se­ guiu as normas da tragédia grega. filho de um ourives. nu­ trido por toda um a geração de escritores e que daria o tom dominante ao Renascimento inglês. essa ordenação interna da peça era completamente estranha às encenações populares medievais. Os italianos tam bém desenvolveram a comédia. na Espanha e em Portugal. no entanto. Evidentemente uma concepção de arte nesses termos teria muito mais condições de satisfazer uma burgue­ sia cujo principal valor consistia no controle racional do tempo. Christopher Marlowe (1564-1593). fora da Itália. do espa­ ço e do movimento e cuja grande ambição era distinguir-se do povo ru­ de. que fez seus estudos em Cambridge. Segundo essa con­ cepção teatral. filho 44 . expressão externa e grande prosperidade da sociedade inglesa. as cinco comédias de Pietro Aretino (1492-1556) e a Mandrágora (1513) de Maquiavel. Essa geração era quase toda de origem humilde e seus principais representantes foram George Peele (1558-1597). sendo mais notá­ veis as cinco peças desse gênero atribuídas a Ludovico Ariosto (1474- 1533) e representadas na corte de Ferrara. que passam a disputar o gosto dos círculos aristocráticos e do grande público. filho de um juiz e John Fletcher (1579-1625). fi­ lho de um alfaiate. Aliás. Francis Beaumont (1584-1616). . na In­ glaterra. que se tornam línguas escritas ao receberem uma estrutura gramatical inspirada nos modelos clássicos. inculto e indisciplinado. uma disciplina e um a racionalidade que obrigavam além do mais a uma separação decisiva entre o palco e o pú­ blico e impunham a utilização de atores profissionais. Como se pode ver. foi soldado e ator profissionah Thomas Dekker (1570-1641). -. distinguindo- se das línguas populares. pui imcuu esse genero clássico. os fantasmas. Ele. posta em perigo pela amea­ ça das forças do caos e da anarquia. suas grandes tragédias. Em todo o teatro ibérico destacam-se sempre os temas cavalheirescos. filho de um fabricante de luvas e roupas de peles. uma nítida ambivalên­ cia com a preservação de elementos próprios do universo popular e m e­ dieval. Mas a figura mais proeminente desse círculo era William Shakespeare (1564-1618). que foi ator profissional. acabando a vida como um próspero empresário. O apelo popular desse teatro é tanto maior na medida em que nos países ibéricos. A arte de Shakespeare guarda. religiosos e populares — Gil Vicente. evita um a nítida separação entre público e palco nas suas montagens. tensões e fantasias. entretanto. Suas simpatias recaíam sobre um forte poder centralizado e por uma sociedade fundada em sólidos valores m o­ rais. permeado de aventuras. dramaturgo espanhol que serviu na corte do Duque de Alba. de fundo religioso ou cômico (Os Autos). autor dramático. A história de Shakespeare é um pouco a história da sua geração e a da burguesia londrina. como as bruxas. Tanto que um a das temáticas centrais na obra desse dramaturgo é a noção de ordem. Daí ser esse um teatro vibrante. E o seu Hamlet coloca dúvidas sobre a eficácia da razão e da racionalidade. in ­ vestimento e ascensão social.de um bispo anglicano. poeta dramático. eju an Ruiz de Alarcón (1581-1639). que era o metro predom inante das cantigas populares portuguesas. Tirso de Molina (1571- 1648). compunha preferivelmente em redondilha (verso de sete sílabas). com fortes elementos populares. guerreiros. os símbolos mágicos. Essas características seriam mantidas e aprofundadas por seus seguido­ res: Bartolomeo Torres Naharro ( ? -1524). dos privilégios e dos valores aristocráticos. A especia­ lidade de Encina estava na composição de pequenas peças em verso. passando em seguida a sócio de sua companhia teatral e por fim empresário teatral. um a história de trabalho. A origem do teatro secular tanto espa­ nhol como português deve ser baseada em ju an de Encina (1469-1529). que sucede ao Re­ nascimento. aristo­ cráticos e discricionários da nobreza encontraram enorme repercussão no gosto popular. em decorrência da longa luta de expulsão dos muçulmanos. por exemplo.Em Portu­ gal o grande seguidor de Encina seria Gil Vicente (1470-1536). Lope de Vega (1562- 1635) e ainda Guillén de Castro (1569-1631). esforço. Sua identificação com as doutrinas e as diretrizes da Contra-Reforma católica seria completa e o arrastaria para os ideais do maneirismo e do barroco. Joan de ia Cueva (1550- 1610). . os ideais cristãos. num prenúncio já da arte maneirista. mas estando ao mesmo tempo todo voltado para a preservação da ordem. o mais célebre de todos. H am let ou H en­ rique IV. Outro teatro que atinge um nível notável de amadurecim ento na época renascentista é o ibérico. por exemplo. como em Macbeth. poupança. 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