Nariz de vidro - Mário QuintanaLivro: Nariz de Vidro Autor: Mário Quintana Editora: Moderna Ano: 2003 Transcrito por: Anair Meirelles Uso exclusivo dos alunos do Instituto Santa Luzia O ADOLESCENTE A vida é tão bela que chega a dar medo. Não o medo que paralisa e gela, estátua súbita, mas esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz o jovem felino seguir para a frente farejando o vento ao sair, a primeira vez, da gruta. Medo que ofusca: luz! Cumplicemente, as folhas contam-te um segredo velho como o mundo: Adolescente, olha! A vida é nova... A vida é nova e anda nua - vestida apenas com o teu desejo! O CIRCO, O MENINO, A VIDA A moça do arame equilibrando a sombrinha era de uma beleza instantânea e fulgurante! A moça do arame ia deslizando e despindo-se. Lentamente. Só para judiar. E eu com os olhos cada vez mais arregalados até parecem dois pires: Meu tio dizia: "Bobo! Não sabes que elas sempre trazem uma roupa de malha por baixo?" (Naqueles voluptuosos tempos não havia maiôs nem biquínis...) Sim! Mas toda a deliciante angústia dos meus olhos virgens segredava-me sempre: "Quem sabe?..." Eu tinha oito anos e sabia esperar. Página 1 . não sabia Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida.Nariz de vidro .ou celestial . tão perto Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra. Página 2 . no alto. Enquanto a gente grande passava. caçoava... Porque todas as coisas que estavam dentro do balão azul daquela hora Eram curiosas e ingênuas como a flor que nascia E cheias do tímido encantamento de se encontrarem juntas... imóveis de espanto. entre vôos ariscos Olhavam olhavam. Crianças. ria-se. Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu: Não. não importava as coisas bobas que disséssemos. E as torres. olhando. o menino às vezes segreda-me baixinho "Titio.. Que apenas tinham a mesma fidelidade sem compromisso E a mesma animal . quem sabe?. Éramos um desejo de estar perto. Olhos que eu não encontrava em ninguém mais. Falávamos de coisas bobas..... A SURPRESA DE SER A florzinha crescendo Subia Subia Direito Pro céu Como na história de Joãozinho e o pé de Feijão.. Ah. essas crianças! IMDIVISÍVEIS O meu primeiro amor sentávamos numa pedra Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.. Joãozinho era eu Na relva estendido Atento ao mistério das formigas que trabalhavam tanto. Isto é. Nem no cachorro e no gato da casa.. E as nuvens. pasmadas.Mário Quintana Agora não sei esperar mais nada Desta nem da outra vida.inocência. E a água do arroio arregalava bolhas atônitas Em torno de cada pedra que encontrava. que a gente grande achava bobas Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos. No entanto o menino (que não sei como insiste em não morrer em mim) ainda e sempre apesar de tudo apesar de todas as desesperanças.. Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos A não ser o azul imenso dos olhos dela. meu Deus. Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema. que ela não é dessas... Mas nada de superaviões. mas a mão ainda erguida segura ainda no ar o hastil invisível deste poema! OS POEMAS Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês. Triste. Ferido de mortal beleza. essas tuas mãos vazias. Que cantaria? Nada de óperas. Ou. se cantasse.. A forma grácil de suas pernas ele é que as plasma. Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna. Quando fechas o livro.. de rosas e coroaria A vaca natural e simples como a primeira canção A vaca. o seu par de ar... êmbolos E outros truques mecânicos! Página 3 .Mário Quintana Olhando-se. paras. Solitário. Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia! Cantaria o cheiro dos trevos machucados. de vento. agora. se fora na manhã dos tempos. DANÇA A menina dança sozinha por um momento.Nariz de vidro . A longa. eles alçam vôo como de um alçapão. quando muito. Eles não tem pouso nem porto alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem.. cm o ar. E olhas. Único. com o sonho de olhos imensos. tu. A menina dança sozinha com o vento. então. misteriosa vibração dos alambrados. o seu par fantasma.. não! Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada. TÃO LENTA E SERENA E BELA Tão lenta e serena e bela e majestosa vai passando a vaca Que. Como um pobre animal palpitando ferido. O POEMA Um poema como um gole dágua no escuro... Menina de olhos imensos. no maravilhoso espanto de saberes que o alimento deles estava em ti. tratores. É lá que eu canto. que a vida é breve. Eu faço parte dela. tu nem sabes quanto foi o bem que eu te quis. Por sinal Que o mundo se lhe mostra indiferente! E o meu anjo da Guarda. MINHA RUA Minha rua está cheia de pregões.. tem de ser bem devagarinho... enfim.. decerto inda nem comeras nada. se fosses gente.. ao encontrar-te.. Vivo regendo estranhas contradanças No meu vago país de Trebizonda. tão magrinha...só nosso e onde apenas chegasse o canto das cigarras e o vago marulho do mundo afogado.. Nem é deste Planeta.. E enquanto o mundo em torno se esbarronda. Tão linda... EU NADA ENTENDO Eu nada entendo da questão social.. e o amor mais breve ainda.. numa eterna ronda. Página 4 ... um céu cara a cara . Mas.. Nossos comuns desejos e esperanças!... Vem! vamos cair na multidão! Não é poesia socialista.. BILHETE Se tu me amas. Anjo da Guarda... É quem lê os meus versos afinal. minha pequena bailarina pobre! Se eu fosse bicho. iríamos morar sob um céu oblíquo de água-furtada.. Mas vem. O ritmo da rua nos convida. Parece que estou vento com os ouvidos: "Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!' Eu vou sair pro carnaval dos ruídos. Amada.Nariz de vidro .Mário Quintana RÃZINHA VERDE Rãnzinha verde. Entre os Loucos.. pele e osso.. simplesmente. Que não é bem o mal de toda a gente. Não. ele somente. Por que pões Horrorizado as mãos em teus ouvidos? Anda: escutemos esses palavrões Que trocam dois gavroches atrevidos! Pra que viver assim num outro plano? Entremos num bulício cotidiano. E sei apenas do meu próprio mal. tu me destes a alegria franciscana de não fugires ao sentir meu passo.. os Mortos e as Crianças. ama-me baixinho Não o grites de cima dos telhados Deixa em paz os passarinhos Deixa em paz a mim! Se me queres. sabe lá que tontos que verdes amores seriam os nossos... . os arranha-céus! Daqui Do fundo Das suas goelas.. pela névoa lenta. sais por essas ruas. QUE BOM FICAR ASSIM Que bom ficar assim. estreitamente. RECHINAM MEUS SAPATOS Rechinam meus sapatos rua em fora. Enquanto há verde. Enquanto. a Vida!.. Que bom... os papões..... quando o vento veio. fora. misteriosa Das poéticas novelas policiais.. Onde os lampiões. Que mais sei eu. num poste as andorinhas: "Olha! É o Idiota desta Alceia!" dizem. esvoaçaram no ar. Só vemos o céu.. Penas que eram. Um peso enorme para carregar! Porém as penas. cantam os beirais A baladilha ingênua das goteiras E vai a Névoa. Todos os meus olhares são de adeus Como o último olhar de um condenado! Página 5 . Os verdadeiros monstros... Nessa Londres longínqua.Nariz de vidro . Tão leve estou que já nem sombra tenho E há tantos anos de tão longe venho Que nem me lembro de mais nada agora! Tinha um surrão todo de penas cheio.... Para que lhes serviu beberem tanta luz?! Defronte À janela onde trabalho Há uma grande árvore. mais e mais. com sua luz febrenta. uma grande árvore. a bruxa silenciosa... Com a displicência de um fantasma inglês.. e olhando as lentas espirais. São sóis enfermos a fingir de luas. horas inteiras..Mário Quintana Meu pobre anjo. POEMA DE CIRCUNTÂNCIA Onde estão os meus verdes? Os meus azuis? O Arranha-Céu comeu! E ainda falam os mastodontes. Sair assim (tudo esquecer talvez!) E ir andando.. Fumando. Mas já estão gestando um monstro de permeio! Sim. olhos meus. Que os Doutores Sutis se escandalizem: "Como é possível sem doutrinação?!" Mas entendem-me o céu e as criancinhas. nos tiranossauros.. depois. simplesmente.. E ao ver-me assim.. pastai. Ah.. nos brontossauros..... Uma grande árvore muito verde. Todo de Deus me iluminei então. são eles. Pastai.. através de suas empinadas gargantas ressecas. É.. Transformando a Cidade...... . meu reizinho. sorrias. Teus suspiros são barquinhos Que me levam para longe.. Há dragões na noite imensa.. Me perdi no céu azul E tu. CANÇÃO DO CHARCO Página 6 ... Estão comendo os sapatos Dos meninos que não dormem. sob o velho céu arqueado de bugigangas A mesma canção jubilosa se erguia. CANÇÃO DE MUITO LONGE Foi-por-cau-sa-do-bar-quei-ro E todas as noites.. Só o luar te banha o rosto E tu sorris no teu sonho..Nariz de vidro .. Os dragões. O retrato na parede Fica olhando para mim. E chove sem sabem por quê.. com a boca enorme.Mário Quintana CANÇÃO DA AIA PARA O FILHO DO REI Mandei pregar as estrelas Para velarem teu sono. meu reizinho. Dorme quieto.. Um anjo. Despetalei uma estrela Para ver se me querias. Minhas mãos dormem na sombra. Despetalei as estrelas. Há emboscadas nos caminhos.. Que não soube remar.. Ergues o braço nuzinho. Foi por causa do barqueiro. A noite parada. Os luares extáticos...... A medo Eu começo a acariciar-te Com a Sombra de meus dedos. Apaguei as luzes todas. O relógio vai bater: As molas rangem sem fim.. todo molhado... Soluça no seu flautim. CANÇÃO DE GAROA Em cima do meu telhado Pirulin lulin lulin. E tudo foi sempre assim! Parece que vou sofrer: Pirulin lulin lulin.. A canoooavirou Quemfez elavirar? uma voz perguntava. A quem será que sorris? Dorme quieto.. Aonde irão os barquinhos? Com que será que tu sonhas ! Os remos mal batem nágua. Quase me tocas. dormindo. E como coaxa! A estrelinha dança em roda. agora. Coaxa o sapo... Que brancos são seus pezinhos..Nariz de vidro .... te abraçara com seu maior carinho e há de dizer-te para o teu maior assombro: Página 7 .... Para enamorá-la.. A janela abrirás devagarinho: fará nevoeiro e tu nada verás..RISOS Depois do Circo já ter ido embora. tudo tem. Sim. não sei como. Que frio! A estrelinha pula. o sapo Põe seu chapéu de cozinheiro. que nunca viste.. a porta se abrirá. Se não adiantam mais! Pobres cartazes por ai afora Que ainda anunciam: ... esse Escovou seu traje preto. pula. Essa tonalidade amarelada Dos cartazes que o tempo descolora. Uma estrelinha desnuda Dança e pula sobre o charco.. E um ser.. Com as velhas rondas e as canções de outrora. Mas para quê?. Cricrila o grilo. silenciosa.. a campainha e...ALEGRIA . indecisos. Hás de tocar.Mário Quintana Uma estrelinha desnuda Está brincando no charco. e de amantes não cuida.. Uma estrelinha desnuda! O grilo. desses cartazes ante os quais Nós às vezes paramos. em um sorriso triste... que é pobre. a medo. UM DIA ACORDARÁS NUM QUARTO NOVO Um dia acordarás num quarto novo sem saber como foste para lá e as vestes que acharás ao pé do leito de tão estranhas te farão pasmar. Que nua! É A MESMA A RUAZINHA SOSSEGADA É a mesma a ruazinha sossegada. E os meus lindos pregões da madrugada Passam cantando ruazinha em fora! Mas parece que a luz está cansada. Desnuda por sobre o charco! Uma estrelinha desnuda Brinca. E... As pessoas atrapalham. Multiplicam-se em excesso. E Vestidos. animal ou cousa: João. Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto.. Para quê? não importa: João vem! E há-de estar triste ou alegre. Macio. Lento.. Uma pedra. Depois.no teu ombro e devorar teus olhos. Escuro. Um ovo (Ovo. que sofro há tanto! Quero chorar . João só será definitivo Quando esticar a canela.Mário Quintana -.. os entrevadinhos. são os adjetivos. sabiá. volvendo ao sol as nossas quatro palmas. As cousas são quietas. duas máscaras calmas E felizes. Um poema que te mate de amor Antes mesmo que tu saibas o misterioso sentido: Basta provares o teu gosto... entre o fumo e os cata-ventos! VIAGEM ANTIGA Aqui e ali reses pastando móveis como num presépio a mata ocultando o xixi das fontes Página 8 . Sonoro. Luminoso.... Até os cegos. E não exigem nada. Encheremos o céu de vôos encantados. sem saber por quê.. E as rosas da cidade inda serão mais rosas. Nos improvisaremos danças espantosas Sobre os telhados altos. na manhã. Seremos.) As cousas vivem metidas com as suas cousas.. caneta".Não te assustes de mim. Eu sonho. Bastam-se. DE GRAMÁTICA E DE LINGUAGEM E havia uma gramática que dizia assim: "Substantivo (concreto) é tudo quanto indica Pessoa. Estão em toda a parte. de tons vibrantes e violentos. Um armário.. entrelaçados.. meu amor. Verde. Mas o bom. nem sempre. Ovo pode estar choco: é inquietante. Eu gosto é das cousas.Nariz de vidro . Ainda mais: Eu sonho com um poema Cujas palavras sumarentas escorram Como a polpa de um fruto maduro em tua boca.... reticente ou falastrão.apenas ... contra o azul.. João. O DIA SEGUINTE AO DO AMOR Quando a luz estender a roupa nos telhados E for todo o horizonte um frêmito de palmas E junto ao leito fundo nossas duas almas Chamarem nossos corpos nus. E João pode neste mesmo instante vir bater à nossa porta. Morre. sim!. Rente. Serão todos felizes.. Amigo ou adverso. Não se metem com ninguém. mesmo. As cousas.. de grandes olhos claros e rasgados. Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais. Apenas que não as tirem do lugar onde estão. Áspero. . Que envelheceu.... Depois surgiu. Algum brinquedo novo à minha porta. em letras rústicas: FIM DO MUNDO. Não vos iluda o velho que aqui vai: Eu quero os meus brinquedos novamente! Sou um pobre menino.. acreditai. Mi-nu-ci-osa-men-te desenhado. A Lua . e nada mais me importa. ai. ficou a olhá-la admirado. um menininho que seguia Parou. sempre. Embora idade e senso eu aparente.. meu Deus. E estava até um fumo. Como era possível.... Estrada fora após segui. de lembrança... um dia. Ah! depois nos ensinaram que o mundo não tem fim E não havia remédio senão irmos andando às tontas Como formigas na casca de uma laranja.Mário Quintana uma cidadezinha de nariz pontudo furava o céu depois sumia-se lentamente numa curva e a gente olhava olhava sem nenhuma pressa porque o destino daquelas nossas primeiras viagens era sempre o horizonte A GENTE AINDA NÃO SABIA A gente ainda não sabia que a terra era redonda. RECORDO AINDA . E pensava-se que nalgun lugar.... de repente!. Pus meus sapatos na janela alta. que subia.em pleno meio-dia. (Para Dyonélio Machado) O DIA ABRIU SEU PÁRA-SOL BORDADO O dia abriu seu pára-sol bordado De nuvens e de verde ramaria. Céu é que lhes falta Pra suportarem a existência rude! Página 9 . Viver naquela confusão? Foi por isso que estabelecemos uma porção de fins de mundo.... Mas veio um vento de desesperança Soprando cinzas pela noite morta! E eu pendurei na galharia torta Todos os meus brinquedos de criança. Aqueles dias de uma luz tão mansa Que me deixavam... Recordo ainda.Nariz de vidro .a Lua! .. como era possível. muito longe Deveria haver num velho poste uma tabuleta qualquer -uma tabuleta meio torta E onde se lia. Na rua. Sobre o rebordo. Mas.. no céu azul arqueado.... bem ali... Íamos. Deus. eu e outros. Não digo que a gente saiba que são águas estrelas grilos. E conhecermos Deus. E isso explicava tudo. O santo e eu. até parece que já está degolado! Se está.. já são 6 horas: há tempo... diante dos nossos olhos que a terra já comeu! E nós nos prostramos por terra e adoramos ao Senhor Deus Todo-Poderoso e foi-nos concedida a vida eterna. Que são dois velhos barcos. Ele era um santo tão fútil que vivia fazendo milagres. De lado a lado da rua Há um grande cartaz em letra vermelha Anunciando: FELIZ ANO NOVO! O povo acredita O povo ri de orelha a orelha. (por que flor-de-lótus?) até que um dia chegamos ao fim da peregrinação. Eu. Quando se vê. Quando se vê... Página 10 . Ele ressuscitou uma flor murcha e uma criança recém-morta e transformou uma pedra. E Durante todo o santo dia Do Primeiro do Ano O povo todo dança no meio da rua Cantando a canção da eterna esperança! A NOITE GRANDE Sem o coaxar dos sapos ou o cricri dos grilos como é que poderíamos dormir tranqüilos a nossa eternidade? Imagina uma noite sem o palpitar das estrelas sem o fluir misterioso das águas. Naquele tempo dizia-se: íamos de longada. talvez sem o terror da palavra DEUS! O PEREGRINO MALCONTENTE Íamos de caminhada.Nariz de vidro . resolveu mostrar que também sabia fazer milagres: O santo desapareceu! Mas como? Não sei! desapareceu. deslumbrados.. Deus é assim. em flor-de-lótus..... na beira da estrada. porque longa.. SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS A ida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. já é sexta-feira. longa era a viagem. -morrer é simplesmente esquecer as palavras. imóveis. então.... nada. nem acredita. pois. (Para Érico Veríssimo) NA OUTRA MARGEM Na outra margem do Ao Novo Me sacudo todo como um cão molhado.. Meu Deus. encalhados Sobre a margem tranqüila de um açude.. o santo.Mário Quintana E eles sonham. nos meus sermões. O Doutor Quejando Vinha andando Andando Quando encontrou o carneirinho Mé Em companhia da vaquinha Mu. não falaria em Deus nem no Pecado . E numa cerca havia um urubu: Mudo.. passaram 60 anos.. eu. e um belo poema ...uma outra oportunidade. Se eu fosse um padre eu citaria os poetas. E a vida continua. é tarde demais para ser reprovado.Mário Quintana Quando se vê. Agora. Se acabou a história. as mocinhas da casa punham papelotes antes de irem dormir... O Doutor Quejando continuou andando..Olé! Como vais tu? . desses que desde a infância me embalaram e quem me dera que alguns fossem meus! Porque a poesia purifica a alma .amava apaixonadamente os gerúndios. E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas. que já eram as mesmas de sempre! O MUDO PASSEIO DO DOUTOS QUEJANDO Ora pois.o Doutor Quejando . Mudo.menos para as dores de amores. e aplicava-se a Maravilha Curativa para todas as dores ..um dia .ainda que Deus se aparte um belo poema sempre leva a Deus! Página 11 .no entanto . sempre em frente.. SE EU FOSSE UM PADRE Se eu fosse um padre.. E o pior de tudo é que se acabou a história. os negrinhos tocavam pente com papel de seda branco. Rezaria seus versos.muito menos no anjo rebelado e os encantos das suas seduções.... E o Doutor Quejando e o urubu trocaram os dois um horrendo olhar de simpatia.disseram-lhe os dois.. TÃO SIMPLESMENTE Tudo se fazia tão simplesmente: as chinoquinhas pintavam as faces com papel de seda vermelho.. E se me dessem um . eu nem olhava o relógio seguia sempre. os mais belos.Nariz de vidro . Anotação que não coube no poema anterior . não citaria santos e profetas: nada das suas celestiais promessas ou das suas terríveis maldições... -.. papel.. II O meu anjo da Guarda é dentuça.. E o mais triste é que não são verdadeiras lágrimas. V Poeta...Mário Quintana PASSARINHO EMPALHADO Quem te empoleira lá no alto do chapéu da contravó.. sobre todas as cousas. Pelo teu beijo como uma estrelinha. Há muito que só me dirigiam olhares de interrogação! IV E obrigado. meninazinha.. Há muito que eu não me sentia assim. III Obrigado... Como esse pó de asas de mariposas Que ele vais esfarelando... Tem uma asa mais baixa que a outra.. tão só? Meu tico-tiquinho coberto de pó. menina feia! As lágrimas embaciam os teus óculos. que vontade de criar raízes! UMA SIMPLES ELEGIA Página 12 . Pobre alma. Ah. tão feio. tão bem comigo. São um mero subproduto do Tempo. por esse olhar confiante. está na hora em que os galos móveis dos pára-raios Bicam a rosa-dos-ventos. Está na hora de trocares a tua veste feita de momentos.. Está na hora E quando Aflito Levas Teu relógio ao ouvido. E tu que querias fazer o teu ninho na máquina do Giovanni fotógrafo! APONTAMENTOS PARA UMA ALEGIA I Debruço-me Sobre mim Com a melancolia De quem completa as coisas disparatadas que há na vitrina de um bric. aqui e ali. Só ouves o misterioso apelo das águas cantando distantes! OS PÉS Meus pés no chão Como custaram a reconhecer o chão! Por fim os dedos dessedentaram-se no lodo macio..Nariz de vidro ..... por tua palidez de espanto. Tico-tico surubico? Tão triste.. agarraram-se ao chão. .. Flor sem perfume.morta... No meio da vida caiu e ficou! CANÇÃO DA PRIMAVERA Um azul do céu mais alto. Alguém cantou.. que ao me ver neste abandono. junto à correnteza. Pobre flor que não teve infância! E que a gente.... E era Maria.. não foi a morte que acabou contigo: Foi a vida..... bem assim que foi: Sempre morte ... Sei que havia um rio. às vezes...... Por entre uns sonhos pesados Que nem morcegos voejando... Quem foi que ao rezar por mim Página 13 ... Tão afastado me achava Dos meus antigos papéis! Dormi.. Só conheci meus sapatos Me esperando..Mário Quintana Caminhozinho por onde eu ia andando E de repente te sumiste. Uma esperança que um dia eu tive..... ..o que seria que te aconteceu? Eu sei. O menino dormira.. no entanto. amigos fiéis.. Mas o canto Natural como as águas prosseguiu... Daí do Céu cantavas com certeza Para embalar ainda uma vez meu sono!.. Do vento a canção mais pura Me acordou. Lavando as roupas do Jesus Menino.... E era a voz que eu ouvi em pequenino. CANÇÃO DO BAÚ Sempre-viva. Sempre. Não. (de uma cantiga de ninar) Tudo tão vago.. cheio de cuidados Como um barco soçobrando. Eras tu. o tempo.Nariz de vidro . E ia purufucando como um rio Meu coração que enegrecera tanto. TUDO TÃO VAGO Nossa Senhora Na beira do rio Lavando os paninhos Do bento filhinho. Sempre viva. Um choro aflito... Como a outra criatura. Ah.. pensativo encontra Nos baús das avozinhas mortas.. E o monótono embalo do acalanto O choro pouco a pouco se extinguiu... num sobressalto. a vida. as ervas más..... nunca a vida fez uma história mais triste Que a de um caminho que se perdeu. E além do mais. tão bem." -"Mas. Olhas todo carinho. e não úteis". e liso. Eu estou sempre ao lado do patrão. como de aspeto. Apesar disto. um branco. Comer. Só o que sabes é servi-lo! Olha... o desgraçado. E tu. Diferentes do humor. Dir-se-ia um cônego em arminho. este sobressalto.. um triste camondongo!. desse negror de poço em noite escura. maninho..." -"Pois não é meu dever? -"Seja! Mas eu. o essencial É fazermo-nos hábeis. do porão à água-furtada. como sucede às vezes entre manos... assim. sempre no sono. Quanto ao caçula. diz ele a seu irmão: . Esta nova criatura! OS DOIS GATOS (uma fábula traduzida de Florian) Dois bichanos. Eram.. O OVO Na terra deserta A última galinha põe o último ovo. Divirto-o com minhas graças. Como dentro de uma tela? Um azul do céu mais alto. tristonhamente. e bem-disposto.. Esfrego o pêlo em suas calças E ronrono e me enrosco e me contorço. francamente. Ó sorte desigual! Por que motivo então Nos trata o nosso dono A ti. No entretanto passava a noite. Vou ganhando um vidão regalado e tranqüilo... dava gosto Olhá-lo. sem maior esforço.. Do vento a canção mais pura E agora. Carícias falsas E maneiras fúteis.. Ora! Vede Se tinha compostura aquilo. Página 14 ... Tão rechonchudo era. meu caro. Nascidos ambos sob o mesmo teto. para teu mal. Na tenaz procura De possível caça.. dado à preguiça e à gula. Um verdadeiro gato pingado! Negro.. A correr. de raro em raro. Sobre a espinha recurva ao feitio de uma rede. o dia inteiro. Lá um dia. Não tinha mais que a pelo.Mário Quintana Mudou o rumo da vela Para que eu desperte.. E assim.Nariz de vidro .. é claro! Só Deus sabe a existência que tu passas. Mas tu. eu não compreendo isso. O mais velho dos dois. Isso agrada ao patrão. e a mim tão mal? Não... E todo esse trabalho cansativo e longo Para afinal.."Eu sempre no serviço. nada! Sempre chupando como um gato em passa... dobrado em dois.) O BAÚ Como estranhas lembranças de outras vidas. se espantam das gotas de orvalho na orla das saias. E em vão tentas lembrar o nome dela. Bem no fundo. e a sua boca tenta sorrir-te mas está quebrada! CADEIRA DE BALANÇO Quando elas se acordam do sono.. e como saberia Página 15 . Que outros viveram.. dos fios de relva nos negros sapatos. O anjo a que estava afeto o cuidado da terra Dá de asas e como o ovo. De repente...Mário Quintana Seu cocoricó não encontra eco. sim! Só pode ser aquela.Eu corria menina em um parque. no chão! (Alguém... e em vão ela te fita. uma boneca toda estraçalhada! (isto não são brinquedos de menino.. parou como gota que ia cair.diz uma e se espanta: Que idade terei? Diz outra: ... perpassa no rosto de casa avozinha Um susto do mundo que está deste lado. na velha cadeira em que a morte as embala. invisível. quantas coisas perdidas e esquecidas no teu baú de espantos.Nariz de vidro .. aperta em dores o ventre angélico. alguma coisa deve estar errada) mas o teu coração em desatino te traz de súbito uma idéia louca: é ela... Humm! o ovo vais sentar-lhe mal.. que era a da sesta.. E olhando o relógio de junto à janela onde a única hora. num estranho mundo. O OVO! O Anjo. quando elas se acordam na sala de sempre.. ri baixinho. O Anjo cai duro... a jamais esquecida Bem-Amada.. Que sonhei que sinto ainda um gosto de beijo apressado? ... Nossas almas? Sei lá! Mas como são belos os filmes coloridos! (Ainda mais os de assuntos bíblicos. Parado na beira Do cais do Outro Mundo? Amigo ou Amiga Que olhe tão fundo Tão fundo em meus olhos E nada me diga. Acenderam-se de súbito os postes de iluminação! O CAIS Naquele nevoeiro Profundo profundo. Somos democratas e escravocratas. Que ainda me ama.... fazem poemas: Estou triste porque vocês são burros e feios E não morrem nunca. COCKTAIL PARTY (Para Elena Quintana) Não tenho vergonha de dizer que estou triste. Ou radiante face Puro sorriso De algum novo amor?! Página 16 . as avozinhas dormem na deserta sala onde o relógio marca a nenhuma hora enquanto suas almas vêm sonhas no tempo o sonho vão do mundo. Quem é que me espera? Quem é que me espera. em vez de se matarem. e depois se acordam na sala de sempre na velha cadeira em que a morte as embala... E trocamos brindes Acreditamos tudo o que vem nos jornais... Minha alma assenta-se no cordão da calçada E chora. Que rosto esquecido. A morte as embala. Misturo-me a vocês.Nariz de vidro .. Acho vocês uns amores Na minha cara há um vasto sorriso pintado a vermelhão.. Olhando as poças barrentas que a chuva deixou. Eu sigo adiante..... Não dessa tristeza ignominiosa dos que.. quando a primeira estrelinha ia refletir-se em todas as poças dágua.Mário Quintana o tempo que era? Os pensamentos delas já não têm sentido. Amigo ou amiga.) Desce o crepúsculo E... . um grito último da esperança..Nariz de vidro . Julgou que ele estivesse ali à sua espera. E a poesia. porém.) Mas talvez não pensou em nada disso. Feiosa. Quando apenas sentara para descançar um pouco! A Morte chegou na sua antiga locomotiva (Ela sempre chega pontualmente na hora incerta. E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu. Ao vê-lo tão sozinho àquela hora Na estação deserta... Um cavalo pastava junto a uma coluna que agora apenas sustentava o céu... Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância! DEPOIS DO FIM Brotou uma flor dentro de uma caveira. A missa era campal: o vendaval dos cânticos curvava como um trigal. toda a sua vida Apenas restava de seu a Glória.. Ficou. lustrosos pelo uso estaçõezinhas pobres do mundo. Diziam que uma guerra simplificara tudo. as pétalas da flor irresistivelmente azuis... e sorriu amargamente Pensando que E.. Brotou um riso em meio a um De Profundis. Mas o riso era infantil e irresistível.... Ele fugiu de casa. O POETA E A SEREIA Sereiazinha do rio Ibira.. Já não se viam mais os pássaros mecânicos... Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade. a cabeça dos fiéis.. às vezes... quietinho: Chegou a idade de dormir! Mas quem é que pode parar os caminhos? E os rios cantando e correndo? E as folhas ao vento? E os ninhos. o grande Velho. Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas Coloridas Nas mãos esclerosadas de um caduco! E então a Morte. a prece.. Página 17 . aquele riso inexplicável de criança e sempre havia alguém reinventando amor... A poesia como um seio nascendo. Subia.. no ar. Sentou-se. Contra uma parede nua.. Tudo já era findo sobre o velho mundo.. coração?! Fica aí. UM VÔO DE ANDORINHA Um vôo de andorinha Deixa no ar o risco de um frêmito. Que é isto..Mário Quintana POEMA DA GARE DE ASTAPOVO O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos E foi morrer na gare de Com certeza sentou-se a Um desses velhos bancos Que existem em todas as Astapovo! um velho banco. .meticulosamente .Mário Quintana Até sardas tem.. Eu é que sinto frio agora.. DE REPENTE Olho-te espantado: Tu és uma Estrela-do-Mar. Embalo-a nos joelhos. Mas os heróis só morrem . O mar onde tudo recomeça. EVOLUÇÃO Todas as noites o sono nos atira da beira de um cais e ficamos repousando no fundo do mar. Ensino-lhe catecismo E conto histórias que inventei especialmente para o seu espanto. ela mal pode.. fio a fio.. No entanto. qualquer heroísmo se desmoraliza dia a dia como a barba do Tempo arrancada. Onde tudo se refaz... Mas agora encheram-se de sombra e cântaros E só o meu cavalo pasta na solidão.. Não sei. Aqui. O livro na mão. um dia. Como é possível. setenta. com esses cuidados e mais cuidados sem conta... ela quase não tem tempo de ficar pronta! Como é possível... das folhinhas. E andaremos no ar como se anda em terra. como é possível uma alma triturada assim pelos relógios? Como é possível nascer com um barulho destes? Página 18 . Até que. Ah. muito cuidado Para que a alma possa nascer normal na outra vida. oitenta anos Quando bem poderia surgir de súbito o nobre leão da morte Na plenitude nossa Como acontece com os heróis da Ilíada. Cantar não sabe: Olha e me quer bem. Um dia ela voltou para o seu elemento! Sereiazinha.por milhões de ratos durante sessenta.. Era sempre o teu seio! Tu estavas no morno da grama. Cuidado! É preciso muito. nós criaremos asas. toda essa vergonha de sermos devorados . Na polpa saborosa do pão.. CUIDADO Nós somos gestantes da alma. Nesta.. Um minério estranho. Seus ombros têm frio..no País da Ilíada Belos e jovens.Nariz de vidro . O livro que eu lesse. . No colo.. As mãos da menina morta Estão varadas de luz.Mário Quintana CANÇÃO DE UM DIA DE VENTO O vento vinha ventando Pelas cortinas de tule. E o vento vinha ventando Palas cortinas de tule. Nunca a água foi tão pura... Mais um nome na oração. âncora e cruz. enquanto o mundo não poluir o azul do ar! Não vás ficar não vás ficar ai. A vida múltipla dá-se as mãos como um bando de raparigas em flor e está cantando em torno a ti: Como eu sou bela.Nariz de vidro ..... cantemos a canção das chamas! Cantemos a canção da vida. (Como a vida é bela! como a vida é louca!) INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA A vida é um incêndio: nela dançamos. na própria luz consumida. Como um salso chorando na beira do rio.. Quem a teria abençoado? Nunca o pão de cada dia Teve um gosto mais sagrado. amor! Entra em mim.) Daquela de cujas penas Só os anjos saberão! A CANÇÃO DA VIDA A vida é louca a vida é uma sarabanda e um corrupio. Página 19 . Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta? Em meio aos toros que desabam. Menos um lugar na mesa. âncora e coração (E o vento vinha ventando... salamandras mágicas.. refulgem Coração. Da que consigo levara Cruz... juntos. como em uma tela De Renoir e nquanto é primavera.