Mulheres Testosteronadas Resenha Preciado

March 29, 2018 | Author: Mô Fulana de Tal | Category: Sexual Intercourse, Gender, Ethnicity, Race & Gender, Testosterone, Feminism


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Mulheres testosteronadas: adictas, malditas, transgressoras, bombásticas? Testo Yonqui. seguintes discussões: era farmacopornográfica; história da tecnossexualidade; farmacopoder; pornopoder; micropolítica de gênero na era PRECIADO, Beatriz. farmacopornográfica; e vida eterna. Preciado qualifica sua obra como livro de autoficção, Madrid: Espasa, 2008. 324 p. pois se trata de um protocolo de intoxicação voluntária à base de testosterona sintética, de um ensaio corporal, do corpo experimental em mutação no período que dura a escrita do livro. Ela descreve o uso da testosterona sintética em Beatriz Preciado é filósofa, estudou teoria forma de gel, que é absorvida na pele; basta de gênero na New School for Social Research, uma dose de 50 miligramas de Testogel diárias em Nova York, onde foi aluna de Jacques Derrida para experienciar o que ela nomeia como e Agnès Heller. É autora do livro Manifesto contra- mutação de uma época. sexual, traduzido para cinco idiomas, e entre seus A proposta do livro é de uma análise sexo- ensaios destacamos Sex Design (Centre política da economia mundial, em que a Pompidou, 2007), Multitudes Queer (Multitudes, testosterona sintética pode representar tanto 2004) e Savoirs-Vampires@War (Multitudes, 2005). uma construção tecnológica de um novo Atualmente, ensina teoria contemporânea de tecnopoder difuso como a possibilidade de gênero em diferentes universidades, entre as quais mudança identitária para as mulheres através destacamos Paris VIII, l’École des Beaux Arts de da experiência transexual. Sua toxidade difere Bourges, e Programa de Estudios Independientes dos psicotrópicos justamente pela capacidade del Museu d’Art Contemporani, de Barcelona. A de mutação de humores que transitam nas autora se fundamenta nas teorias feministas relações generificadas, pela associação contemporâneas, que problematizam a biológica que se fez com a masculinidade performatividade dos gêneros e servem como hegemônica; portanto, sua experiência não é marco conceitual para discutir corpo, tão mental quanto sexual. Ela faz os/as leitores/ sexualidade e gênero. as embarcarem em uma cronologia das O livro Testo Yonqui é dividido em 13 transformações da produção industrial do último capítulos, dentre os quais destacamos as 288 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 283-300, janeiro-abril/2011 século, do ponto de vista da conversão progres- la pertencia de um individuo a um grupo siva em uma gestão política e técnica do corpo, culturalmente reconocido como “masculino” do sexo e da sexualidade. Para tal, ela se o “femenino” y afirma que es posible “modificar pergunta como o sexo converteu-se no centro el género de cualquier bebé hasta los da atividade política e econômica atual e qual dieciocho meses” (p. 28). sua relação com os produtos farmacoquímicos. Sexo e gênero não seriam mais os mesmos. Um longo percurso nos faz visualizar possíveis Com as fronteiras de gênero rompidas, a pistas. Durante o período da Guerra Fria os Estados tecnofabricação dos corpos sexuados alavanca Unidos investiram milhões de dólares em pesquisas uma das indústrias de maior crescimento nas científicas sobre o sexo e a sexualidade como últimas décadas: a indústria farmacêutica. A nenhum outro país ao longo da história. A muta- manipulação dos hormônios e a criação dos ção do capitalismo vem sendo a transformação sintéticos consolidam a tecnofabricação dos do sexo em objeto de gestão política da vida, tal corpos sexuados. como já apontava Michel Foucault ao descrever Com a criação do plástico para fabricação a biopolítica e as novas formas de controle social. de objetos do cotidiano, definem-se as condições No final da Primeira Guerra Mundial vê-se o mo- materiais de transformação ecológica em mento de visibilidade das mulheres nos espaços grande escala, tais como destruição dos recursos urbanos, assim como a emergência de formas naturais e energéticos do planeta, consumo visíveis e politizadas da homossexualidade em rápido e alta contaminação. Rápida mutação espaços inesperados, tais como no exército que, também, representa rápida destruição norte-americano. O macartismo americano dos planetária em massa. A vida é colocada em anos 1950 soma perseguição aos comunistas questão, pois pode ser destruída, reconstruída e com a luta anti-homossexualidade como forma criada a qualquer momento. Não se trata mais de patriotismo e ao mesmo tempo ressalta da questão de reprimir o sexo, mas colocá-lo valores como família, masculinidade laboriosa e em evidência, transformá-lo, recriá-lo, manipulá- feminilidade doméstica. No Ocidente inúmeros lo. Em 1953 o soldado americano George W. centros de pesquisa sobre sexualidade iniciam Joorgensen se transforma em Christine, a primeira suas atividades. George Henry e Robert Dickinson transexual midiatizada. No mesmo ano é criada realizam a primeira demografia dos “desvios a Playboy, seguindo-se uma rápida e crescente sexuais”, estudo epidemiológico chamado Sex produção desse tipo de publicação. Carne Variant, e mais tarde o Relatório Kinsey sobre a fresca exposta nas prateleiras das livrarias e das sexualidade do povo norte-americano. O sexo papelarias. Representação de uma nova relação se transforma rapidamente em objeto de com o corpo, entendido como produto manipu- especulação e controle social. lável, comercializável e rentável. Preciado mostra-nos um capitalismo quen- Em 1958, na Rússia, leva-se a cabo a te, psicotrópico e punk emergindo juntamente primeira faloplastia, construção de um pênis a com essa avalanche de preocupações em torno partir de enxerto de pele dos músculos do braço, do sexo. Índices da aparição de um regime pós- como parte de um processo de mudança de industrial, global e midiático que toma como sexo de mulher para homem. Em 1960 o referência os processos governamentais laboratório Eli Lilly comercializou o secobarbital, biomoleculares (fármaco) e semiótico-técnico um barbitúrico com propriedades analgésicas (pornográfico) da subjetividade sexual, nomeado que se converteu em uma das drogas da cultura pela autora de regime farmacopornográfico. Em underground dos anos 1960. Em 1966 elaboram- 1946, com a criação da primeira pílula anticon- se os primeiros antidepressivos que atuam cepcional à base de estrógeno sintético, a diretamente na síntese da serotonina e que indústria farmacoquímica entra na era hormonal levaram até a criação da fluoxetina em 1987, e a pílula logo se converte na molécula farma- comercializada com vários nomes, dos quais o cêutica mais usada na história da humanidade. mais divulgado foi o Prozac. Em 1971 o Reino Em 1947 os laboratórios Eli Lilly (Indiana, EUA) Unido estabeleceu a lei de abuso de drogas, manipularam e comercializam a metadona (um que regulamenta o consumo e o tráfico de opiáceo simples), usada como analgésico que substâncias psicotrópicas. Em 1977 os Estados nos anos 1970 substituiu a adição de heroína. No Unidos induziram a primeira injeção letal, à base mesmo ano: de um composto barbitúrico, para aplicar a El pseudopsiquiatra norteamericano John pena capital semelhante ao chamado Money inventa el término “género” diferen- “Programa de Ação T4” de higiene racial que a ciándolo del tradicional “sexo” para nombrar Alemanha nazista usou para assassinar milhares Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 283-300, janeiro-abril/2011 289 de pessoas com deficiência física e psíquica. Preciado apresenta um corpo tecnovivo Em 1983 a transexualidade, divulgada como e multiconectado. Ela incorpora a tecnologia disforia de gênero, se inclui na lista das Doenças tematizada por Haraway e lança-a no centro de Saúde Mental (DSM) como enfermidade da indústria farmacoquímica, preferindo o termo mental. Nos anos 1980 descobrem-se e “tecnobiopoder” ao “biopoder” foucaultiano, comercializam-se novos hormônios como DHEA pois não se trata somente do poder sobre a e GH. E no fim do século XX cerca de quatro vida, mas poder e controle sobre todo tecnovivo milhões de crian-ças são tratadas com ritalina conectado. para o chamado “déficit de atenção”. Vemos A descrição técnica da testosterona nascer assim uma sociedade masturbatória pressupõe que o usuário seja um homem que embalada com dro-gas sintéticas para todos não produz naturalmente uma quantidade os gostos e persona-lidades, usadas seja para suficiente de andrógenos e, como consequência, tratar a agitação, seja para induzi-la. que seja heterossexual, pois relaciona a parceira Há uma produção de estados mentais e sexual como mulher. A noção de homem faz psicossomáticos de excitação, relaxamento, referência à definição cromossômica XY, genital, descarga, onipotência e controle total, cujos que possui pênis e testículos ou definição legal, produtos são a serotonina, a testosterona, os que menciona homem na Carteira de antiácidos, a cortisona, os antibióticos, o estradiol, Identidade. Em todo caso é necessário deixar o álcool, o tabaco, a morfina, a cocaína e o de identificar-se como mulher para obter citrato de sidenofil (Viagra). Não há nada para ser legalmente uma dose de testosterona, embora descoberto na natureza, não há mais segredos, ela seja comercializada no mercado negro e a verdade do sexo não é o desvelamento, mas facilmente encontrada na internet. É essa relação o sex design. Diz a autora: “El éxito de la tecno- hormônio”gênero que é virulentamente criticada ciência contemporânea es transformar nuestra como nova produtora dos corpos sexuados. Na depresión em Prozac, nuestra masculinidad em história da sexualidade foucaultiana o que eram testosterona, nuestra eréccion em Viagra, nuestra práticas sexuais se convertem em identidades, fertilidad/esterilidad em píldora, nuestra sida em condições políticas a serem estudadas, triterapia” (p. 33). Ela entende o atual mercado catalogadas, perseguidas ou curadas. Cada do sexo como amador, não mais de domínio corpo tem um indivíduo que é necessário corrigir. multinacional como já foi a Playboy e as muitas Por exemplo, a mulher barbada, na nova outras revistas do gênero, o sexo é virtual e epistemo-sexualidade, se converte em objeto de instantâneo. A internet produz crônicas audiovi- investigação para se verificarem os níveis de suais das vidas sexuais de uma infinidade de testosterona numa fêmea ou então vira em pessoas no mundo; para isso basta ter um corpo, espetáculo circense. uma web câmera, uma conexão de internet e Segundo Preciado, a relação entre esporte um cartão de crédito. Com isso é possível criar e prostituição é uma das chaves para a compre- sua própria página pornográfica e ascender ao ensão do que ela nomeia como atual regime mercado globalizado da indústria do sexo. Essa farmacopornográfico. Cita o exemplo da Copa realidade virtual provocou uma ruptura com o de 2006, quando o Governo alemão incentivou monopólio que até então detinham as grandes a “fordização da indústria sexual” criando a multinacionais pornográficas. Artemis, um prostíbulo multimídia de três mil Para a autora, a indústria do sexo é o metros quadrados situado a três quarteirões do mercado que mais cresce e o mais rentável da Estádio Olímpico de Berlim. Nele foram instalados internet, somente comparável à especulação quatro andares com piscinas, saunas, salas de financeira. Dentro da lógica masturbatória do cinema e internet, quartos suficientes para mais consumo pornográfico existe uma ideia de de 40 mil trabalhadoras do sexo atendendo uma venda direta do produto em tempo real média de 600 clientes por dia no local e milhares produzindo satisfação imediata ao consumidor. on-line. Trabalhadoras do sexo migraram com A assepsia do gozo virtual associada aos autorização temporária de vários lugares do fármacos cria um novo pornopoder. Ela lança a mundo. Na ocasião, na França, houve uma hipótese de que a matéria-prima do processo manifestação do Coalicion Internacional Contra produtivo atual é a excitação, a ereção, a el Tráfico de Mujeres (CATW), cujo slogan “Acheter ejaculação, o prazer e o sentimento de de sexe n’est pas un Sport” (comprar sexo não é autocomplacência e controle onipresente. O um esporte) leva a crer que realmente sexo é motor do capitalismo atual é o controle um esporte relacionado a uma rede de expres- farmacopornográfico da subjetividade. são do corpo sexualizado e ao universo das 290 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 283-300, janeiro-abril/2011 drogas e de hormônios sintéticos do tráfico para serem identificadas socialmente como internacional. homens? Que valor teria então a masculinidade? O futebol como cultura de massa pode Que representações médicas são divulgadas aqui ser pensado em sua íntima relação com a quanto ao uso da testosterona sintética? A prostituição e, assim, ser inserido na indústria masculinidade e a feminilidade impressas no farmacopornográfica, que controla redes de corpo são fisiológicas, políticas ou tecnológicas? internet, clubes, boates, distribuição e difusão Sua proximidade com teóricas feministas da pornografia, indústria farmacêutica, tráfico contemporâneas como Butler, Haraway e de drogas e de esteroides anabolizantes, e Bourcier está em problematizar a transgressão outros artefatos usados para suplementar tanto das fronteiras do gênero, e seu distanciamento o corpo desportista como o corpo sexuado. é notadamente a capacidade de escrever A testosterona sintética não muda o sexo, sobre temas aos quais os feminismos vinham mas o descodifica, modifica em seus afetos e dando pouca atenção. Os poderes da indústria percepções. Uma mulher, quando inicia seus farmacoquímica são em Preciado indissociáveis ciclos de testosterona, perde-se na difusa área de sua crítica radical ao pornopoder e da divisória dos gêneros, pois nem é homem nem indústria midiatizada do sexo. será ‘a mulher’, no sentido que Wittig1 aborda, Notas como uma semiótica dominante atrelada à 1 Monique WITTIG, 1992. subserviência e à dominação masculina. A testosterona é, portanto, dinamite para o regime Referência bibliográfica heterossexista e está ali sua periculosidade. WITTIG, Monique. The Straight Mind: And Other Algumas inquietações podem emergir na Essays. Boston: Beacon Press, 1992. leitura desta bombástica obra. São elas: o que aconteceria se as mulheres começassem a ad- Patrícia Lessa ministrarem-se doses suficientes de testosterona Universidade Estadual de Maringá Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 283-300, janeiro-abril/2011 291
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