Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional Dissertação de Mestrado
MORAR-E-RESISTIR: Os Percursos e Percalços da Luta por Moradia na Ocupação Solano Trindade (MNLM-RJ-DC)
LIDIANE DOS ANJOS MATOS
Rio de Janeiro/2017
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LIDIANE DOS ANJOS MATOS
MORAR-E-RESISTIR: Os Percursos e Percalços da Luta por Moradia na Ocupação Solano Trindade (MNLM-RJ-DC)
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Orientadora: Prof.ª Soraya Silveira Simões
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FICHA CATOLÓGRAFICA
CIP - Catalogação na Publicação
D 722 m
Dos anjos Matos, Lidiane MORAR-E-RESISTIR: Os Percursos e Percalços da Luta por Moradia na Ocupação Solano Trindade (MNLM RJ-DC) / Lidiane Dos anjos Matos. -- Rio de Janeiro, 2017. 265 f. Orientadora: Soraya Silveira Simões. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional, 2017. 1. movimentos sociais. 2. Movimento nacional de Luta pela Moradia (MNLM). 3. Duque de Caxias. 4. PMCMV Entidades. 5. Universidade. I. Silveira Simões, Soraya, orient. II. Título.
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
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LIDIANE DOS ANJOS MATOS
MORAR-E-RESISTIR: Os Percursos e Percalços da Luta por Moradia na Ocupação Solano Trindade (MNLM-RJ-DC) Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.
Aprovado em: 08/12/2017 Banca Examinadora
______________________________________________ Drª. Soraya Silveira Simões Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional – UFRJ ______________________________________________ Drª Orlando Júnior Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ______________________________________________ Drª Maria Laís da Silva Pereira Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – UFF
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EPÍGRAFE1
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Cartazes da cozinha coletiva da Ocupação Solano Trindade. (Foto: Lidiane Matos, 23/11/2016).
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AGRADECIMENTOS Agradecer... responsabilidade por demais responsabilidade. Algo que preciso fazer de modo a destacar dentre todos os seres vivos aqueles mais importantes em minha vida. Que fizeram desta dissertação um marco, um acontecimento. Que estupefação! Primeiramente, um salve ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) por terem concedido as bolsas de estudos que possibilitam o desenvolvimento desta pesquisa e que eu cursasse o mestrado em dedicação integral. Ao IPPUR, está instituição sem igual, que desde 2014 descobri-me nos estudos sobre movimentos sociais e orientou meu engajamento político na luta pela Reforma Urbana e Direito à Cidade. À Iara, Verônica e Alexandre, os funcionários da limpeza, os meus mais fiéis companheiros quando chegava cedinho lá no IPPUR. Confidenciávamos nossas dores e sonhos. Ah, as boas gargalhadas que dávamos, que saudade tamanha! À Ana Cristina, Zuleika, Maria José e André, os mais queridos funcionários do IPPUR, sempre comprometidos em resolver os meus pepinos e de todos os outros estudantes. Que profissionais vocês são! A todos os professores do IPPUR, em especial Pedro Novais, Fred Bandeira, Cecília Campello e Soraya Simões. Soraya, com seu jeito extremamente loquaz, criativo, espirituoso – e espiritualizado – tornou-se minha orientadora e grande responsável pela pesquisadora que sou hoje. Suas contribuições, ah suas contribuições, emocionam-me diante da imensa sintonia com os meus pensamentos. Obrigada, parceira! Aos professores Orlando Júnior e Maria Laís por terem topado participar da construção desta pesquisa. Seus apontamentos ainda na qualificação foram imprescindíveis para o aguçamento de minhas percepções e do compromisso com o conhecimento científico. Ao professor Gerônimo Leitão pelas conversas memoráveis e indicações bibliográficas. E à Laura Murray pela grande ajuda dispensada na tradução do resumo desta dissertação.
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Aos colegas do Mestrado pelas trocas intelectuais e momentos de descontração. Tenho mais do que certeza que daquela turma, tão brilhante, só vai sair pesquisadores porretas. Voem, moçada! Ao pessoal da Assessoria Técnica, nas figuras de Luciana Lago, Luciana Andrade, Irene Mello e Fernanda Petrus, pelas conversas, informações e por somarmos em nosso engajamento político. Ao MNLN! Noêmia, Gelson e Edivaldo, os coordenadores do Movimentos, que são tão aguerridos, destemidos...como os admiro. De interlocutores, tornaram-se meus grandes amigos. Sem os quais essa pesquisa não existiria nem em imaginação. Valeu, companheirada! Aos moradores da Ocupação Solano Trindade: Isabel, Fred, Ramsés, Rareus, Rayan, Lilian, Emerson, Julia, Clarice, Miley, Namara, Marcos, Nayana, Natã, Nathan, Sara, Claudete, Mateus, Alcione, Rafael, Enésia, Juliana, Julia e Maria Clara. Todas e todos que me trataram e tratam como muito atenção e ternura. Que expuseram corajosamente suas vidas e tornaram-se meus amigos. Dentre eles, Janice, um grande encontro nesta vida. Trocamos de um tudo, rimos, choramos. Ela é sem dúvida a minha principal inspiração para esta dissertação. Você é uma minha heroína! Às minhas amigas e amigos. Sem vocês a vida não teria sentido! À Giulia, que conheço desde os meus 10 aninhos. Que é sincera, obstinada e bem-humorada. Para quem não tem tempo ruim e tá na luta para ser a mais competente profissional do Direito que vocês verão por aí. Pé na porta, querida! À Fernanda, minha irmãzona, minha felicidade. Nossa, quantas coisas até aqui, não é, menina? Minha maior confidente, que ouve minhas lamúrias e reclamações. Que cuida de mim de verdade. Antropóloga de uma sensibilidade sem igual. Ela é fechamento para vida inteira... meu amor! À Kelly, uma das mulheres mais incríveis que já conheci. Tenho com ela uma conexão espiritual. Sinto que sabemos das dores umas outras sem auxílio das palavras. O carinho dela sempre me cura, me salva, me protege. Mulé, não saia nunca de pertinho de mim! À Caren, uma das militantes mais brilhantes que já conheci. Apaixonadíssima por tudo o que faz. Com ela reorientei minhas percepções político-ideológicas e com
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quem aprendi que política se faz com coragem ou não se faz. Quero fazer essa caminhada com você, hein! À Ana Carolina, que só me orgulha com sua dedicação. Nossos grandes momentos foram aquelas manhãs ainda quase madrugadas quando chegávamos cedo no IFCS. Ali nos entendemos mulheres, periféricas e com uma fome por coisas inimagináveis. Minha ariana, cause mais porque tá pouco ainda! Ao Michael, um lutador. De verdade. Que já venceu tantas coisas, que muitos por aí sequer farão ideia, para ser filósofo e cientista social. De uma disciplina absurda com o processo de escrita e reflexão. É daqueles que quando abre a boca só sai considerações impares sobre a vida. Tá prontíssimo para ser professor, querido! À Joyce, essa mulher que quer ser tudo. Que não tem medo de recomeçar, se apaixonar, de fazer o que ama. No fundo, acho mesmo que seja uma artista. Essa câmera fotográfica em suas mãos ainda vai nos revelar coisas fascinantes e desconhecidas. O mundo é seu, querida! À Jubiatana, que é um grande exemplo de quem sonha verdadeiramente. Inquieta, quer viver extraordinariamente e ter uma felicidade desmedida. Nossas conversas estarão sempre aqui dentro de mim. E saiba de uma coisa: Nunca é tarde! Ao Igor, um dos grandes encontros em minha vida. Sou demais apaixonada, demais mesmo! pelo seu jeito de falar, pensar e sentir. Nele encontrei um amor que fez o meu coração atropelar o mundo. Imenso. Hoje sei que a estria também é pele, ó como sei! Sempre serei extremamente grata pelo mundo incrível que conheci através de você. Trate de ser-fazer o que gosta, meu bem... é uma ordem! Ao meu irmão, Leonardo. Que quer ser DJ, chef, surfista, designer, estilista, arquiteto e tudo mais. Criativo demais esse menino. Nunca conheci alguém tão puro e emocionado. Que sente o mundo todo dentro dele. Eu sei que você vai longe. Sua felicidade é a minha, mano! À Leticia, minha irmã. Com ela exerci o maternar e quem me deu o privilégio de observar a infância, umas das coisas mais incríveis que a humanidade inventou, tão-tão de perto. Que tem um coração gigante e dispensa a régua quando ama. Quando ela descobrir a força e a inteligência que tem não vai ficar pedra sobre pedra. Vai com tudo, minha bela!
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Ao meu pai, homem que mais admiro. Incansável, talentoso e comprometido com seu oficio. Que tem uma sabedoria imensa sobre a vida e o valor do trabalho. Que já passou tanto por coisa, mas nunca deixou a peteca cair. Se não fosse você, a Universidade ainda seria um sonho bem distante. Te amo, Pai! À minha mãe, grande responsável pela mulher que sou hoje. Dela tenho a gargalhada, os gestos e a ansiedade. Sem ela não teria crescido em mim a vontade de ter o mundo. A pessoa mais inteligente que conheço e o maior acontecimento de todos. Eu quero te dar tudo que posso, minha vida!
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RESUMO O pernambucano Solano Trindade (1908-1974) foi ator, poeta, pintor e ativista e atualmente é nome de uma das ocupações urbanas do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Situada desde 08 de agosto de 2014 no município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense e Região Metropolitana do Rio de Janeiro, os 48 mil metros quadrados da parte ociosa do Centro Pan-americano de Febre Aftosa (PANAFTOSA) é hoje terra destinada a Habitação de Interesse Social gestada pelo Movimento e no qual pretende-se construir 105 unidades habitacionais e propiciar atividades de geração de renda e formação político-pedagógico de militantes. Em um exercício de antropologia política, a dissertação irá esmiuçar as relações constitutivas do MNLM no contexto dos governos petistas de Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), a partir dos seguintes atores: (i) coordenadores do Movimento; (ii) famílias inscritas no projeto e aquelas que já moram na Ocupação; (iii) professores e pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); (iv) Caixa Econômica Federal (CEF); (v) Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); (vi) Secretaria e Superintendência de Patrimônio da União (SPUOC) e (SPU/RJ); (vii) Secretaria de Planejamento, Habitação e Urbanismo de Duque de Caxias; e (vii) o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) Entidades. Relações nas quais ressaltaremos as ações e os sentidos da Ocupação enquanto um lugar de “morar-e-resistir” e os processos de legitimação que se estabelecem nas articulações com as instituições e os agentes supracitados. Ademais, os sujeitos individuais e coletivos que se formam nesses processos serão analisados a partir das trajetórias que os levaram até ao projeto e a Ocupação. Palavras-chaves: ocupação urbana; movimentos sociais; Movimento nacional de Luta pela Moradia (MNLM); Universidade; Duque de Caxias; PMCMV Entidades.
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ABSTRACT One of the occupations of the National Movement for the Fight for Housing (MNLM – acronym in Portuguese) is named in honor of Solano Trindade (1908-1974), an actor, poet and painter from the state of Pernambuco. Since August 8th, 2014, the occupation has been located in Duque de Caxias, an area in the metropolitan area of Rio de Janeiro, on 48,000 square meters of an unused portion of the Pan American Center for Foot and Mouth Disease (PANAFTOSA – acronym in Portuguese) that has been dedicated to Social Interest Housing. The Movement manages the land and plans to construct 105,000 habitat units and offer income generation and political-pedagogical training for activists. This dissertation is an exercise in political anthropology that seeks to uncover the constitutive relationships of the MNLM in the context of the Workers’ Party governments of Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010) and Dilma Rousseff (20112016), from the point of view of the following actors: (i) Movement coordinators; (ii) families enrolled in the project and those that lived in the Occupation; (iii) professors and researchers of the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ); iv) The Caixa Econômica Federal (Brazilian federal bank); (v) National Institute of Settlements and Agrarian Reform (INCRA – acronym in Portuguese); (vi) Secretariat and Superintendent of the Union’s Patrimony (SPU-OC – acronym in Portuguese) and (SPU/RJ – acronym in Portuguese); (vii) Duque de Caxias Secretary of Planning, Housing and Urbanism; and (vii) entities of the Program My House, My Life (PMCMV – acronym in Portuguese). We highlight the actions and meanings of the Occupation as a place of “living - and - resisting” and the legitimization processes established in the relationships between the previously cited institutions and agents. In addition, we analyze the individual subjects and collectives that form part of these processes through the trajectories that led them to the project and the Occupation.
Key words: urban occupation; social movements; National Movement of the Fight for Housing (MNLM); University; Duque de Caxias; Entities PMCMV
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. O Lavrador de Café; Candido Portinari; 1939. Rasura 1. Alice após trabalhar na horta ......................................................................................................25 Figura 2. Carnaval; Carybé, 1987. Rasura 2. Alice pulando o carvanal na “pipoca”......................................................................................................................27 Figura 3. Os Operários; Tarsila do Amaral; 1933. Rasura 3.Alice, Lula e os colegas da fábrica ...................................................................................................................30 Figura 4. Guernica; Pablo Picasso; 1937. Rasura 4. Cenas das ações policiais nas favelas cariocas .........................................................................................................31 Figura 5. A Favela; Emiliano Di Cavalcanti; 1958. Rasura 5. Alice em visita aos seus amigos no Pavão-Pavãozinho ..................................................................................35 Figura 6. Morro Vermelho; Lasar Segall; 1926. Rasura 6. Alice e a mãe em magnificência .............................................................................................................38 Figura 7. Frevo nos Arcos da Lapa; Heitor dos Prazeres; 1958. Rasura 7. Alice em mais um dos seus “perdidos” pela Lapa ....................................................................42 Figura 8. Convergence; Jackson Pollock; 1952. Rasura 8. Alice e outros manifestantes no meio das bombas e gás lacrimogênio ...........................................51 Figura 9.Sem-título; Djanira da Motta e Silva; 1959. Rasura 8. Alice preparando aracajé no terceira aniversário da Ocupação Solano Trindade ................................57 Figura 10. Eduardo Kingman; Lugar Natal; 1989. Rasura 9. Encontro do Solano Trindade com a Solano Trindade ..............................................................................58 Figura 11. Em sentido horário, Manuel Congo, Mariana Criola e Solano Trindade (Fonte: Google) .........................................................................................................59 Figura 12. Oficina de bonecas Abayomi na confraternização de 1 ano da Ocupação Solano Trindade. (Foto: Lidiane Matos, 08/08/2015) ................................................64 Figura 13. Bolo com a imagem de Solano Trindade na confraternização de 1 ano da Ocupação Solano Trindade. (Foto: Lidiane Matos, 08/08/2015) ...............................65 Figura 14. Campo Grande-Duque de Caxias (Fonte: Google) ................................113 Figura 15: Curso de formação com a Assessoria Técnica do IPPUR e PROURB (Foto: Lidiane Matos, 26/03/2016) ...........................................................................163 Figura 16: Curso de formação com a Assessoria Técnica do IPPUR e PROURB (Foto: Lidiane Matos, 26/03/2016) ...........................................................................164 Figura 17: Venda de artesanatos produzidos pelas famílias inscritas no curso de formação com a Assessoria Técnica do IPPUR e PROURB (Foto: Lidiane Matos, 26/03/2016) .............................................................................................................165 Figura 18. Iconografia representado os objetivos da Fábrica Experimenta (arte desenvolvida pelo Coletivo Catálise) .......................................................................169 Figura 19. Iconografia representado as entidades participantes do projeto arte desenvolvida pelo Coletivo Catálise) .......................................................................170 Figura 20. Mapa da Ocupação Solano Trindade (Fonte: Google Maps, 9/12/2016) ..................................................................................................................................172 Figura 21. Moradores da Ocupação Solano Trindade no Grande Ato do Dia do Trabalhador convocado pele Frente Esquerda Socialista no Parque Madureira (Foto: Lidiane Matos, 01/05/2016) ....................................................................................179 Figura 22. Entrada da Ocupação Solano Trindade com a placa contendo o emblema das instituições que apoiam e assessoram a Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos, 26/11/2016) .....................................................................................195 Figura 23. Cozinha coletiva da Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos 04/01/2017) .............................................................................................................195
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Figura 24. Fachada da sala da coordenação do MNLM na Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos, 24/09/2016) ...........................................................197 Figura 25. Parede da cozinha com cartazes da escala da cozinha, da brigada, lista de cesta básica dos solteiros e lista de telefones emergenciais (Foto: Lidiane Matos, 13/12/2016) .............................................................................................................198 Figura 26. Desenho de uma das crianças em quadro da sala da coordenação (Foto: Lidiane Matos, 13/12/2016) .....................................................................................198 Figura 27 Biblioteca e sala de estudos da Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos, 18/11/2016) ..................................................................................................200 Figura 28. Horta da Ocupaçao Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos, 04/01/2017) ..................................................................................................................................201
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais ABI – Associação Brasileira de Imprensa ACAMTT - BT – Associação Cultural de Apoio à Moradia das Trabalhadoras e Trabalhadores da Baixada Fluminense ACT - BF – Associação Cultural de Trabalhadores da Baixada Fluminense ALF – Associação dos Lavradores Fluminense ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Comunitária Adere – Movimento dos Assalariados Rurais ANA – Associação Nacional de Agroecologia ANPG – Associação Nacional dos Pós-Graduandos ATRAF – Associação dos Trabalhadores de Franca AVC – Acidente Vascular Cerebral BNH – Banco Nacional de Habitação CADIN – Cadastro Informativo de Créditos Não-Quitados do Setor Público Federal CADÚNICO – Cadastro Único CAO – Comissão de Acompanhamento de Obras CBJP – Comissão Brasileira de Justiça e Paz CCFD – Comité Catholique Contre La Faim Et Pour Le Développement CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde CEBI – Centro de Estudos Bíblicos CEBS – Comunidades Eclesiais de Base CEBRAPAZ – Centro Brasileiro de Solidariedade e Luta pela Paz CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular CEF – Caixa Econômica Federal CEHAB-RJ – Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço CGHRF – Coordenação Geral de Habitação e Regularização Fundiária CiHabe – Cidade, Habitação e Educação CJU – Consultoria Jurídica da União dos Estados CLAI – Conselho de Latinoamericano de Igrejas CMP – Central dos Movimentos Populares CONAM – Conferência Nacional das Associações de Moradores
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CONAQ – Movimento Nacional dos Quilombolas CONEN – Confederação Nacional de Entidades Negras CONIC – Conselho Nacional de Igreja Cristãs do Brasil CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CONTRAF – Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro COPPE – Coordenação de Programas de Pós-graduação em Engenharia CUT – Central Única dos Trabalhadores CPT – Comissão Pastoral da Terra CRE – Comissão de Representantes do Empreendimento CTB – Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil CV – Comando Vermelho EJA – Educação de Jovens e Adultos EIA – Estudo Prévio de Impacto Ambiental EIV – Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança ETTERN – Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza FALERJ – Federação das Associações de Lavradores de Estado do Rio de Janeiro FAR – Fundo de Arrendamento Residencial FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo FCP – Fundação Casa Popular FDS – Fundo de Desenvolvimento Social FEAB – Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil FENET – Federação Nacional dos Estudantes em Ensino Técnico FEUDUC – Fundação Educacional de Duque de Caxias FETRAF Brasil – Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FIRJAN – Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação FND – Faculdade Nacional de Direito FNRU – Fórum Nacional de Reforma Urbana FRE – Ficha de Resumo do Empreendimento FUP – Federação Única dos Petroleiros GESTHU – Grupo de Estudos do Território e da História Urbana GPCHU – Grupo de Estudos de Pesquisa Cultura, História e Urbanismo GPMC – Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura GTE – Grupo de Trabalho Estadual da SPU/RJ
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GTN – Grupo de Trabalho Nacional da SPU GRR – Grupo de Representantes de Rua IAPs – Instituto de Aposentadoria e Pensões IBECC – Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Tecnologia IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas IDH – Índice de Desenvolvimento Humano IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais INEA – Instituto Estadual do Ambiente INCA – Instituto Nacional do Câncer INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INESC – Instituto de Estudo Socioeconômicos INMA – Instituto Nacional do Meio Ambiente INSS – Instituto Nacional de Seguro Social IPDM – Igreja do Povo de Deus em Movimento IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais IPPUR – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano IURD – Igreja Universal do Reino de Deus ITA – Instituto de Tecnologia da Aeronáutica ITERJ – Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro LabIT – Laboratório de Intervenções Temporárias e Urbanismo Tático LABORE – Laboratório Oficina Redes e Espaço LABMOB – Laboratório de Mobilidade Sustentável LADU – Laboratório de Direito e Urbanismo LADIH – Laboratório de Direitos Humanos LAMO3d – Laboratório de Modelos 3d e Fabricação Digital LAPA – Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas LAPU – Laboratório de Projetos Urbanos LAURBAM – Laboratório de Urbanismo e Meio Ambiente LAURD – Laboratório de Análise Urbana e Representação Digital LESTE – Laboratório Estado, Economia e Território LEAU – Laboratório de Estudos das Águas Urbanas LeU – Laboratório de Estudos Urbanos LGBTQIs – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer e Intersexuais MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens
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MAM – Movimento Nacional Pela Soberania Popular Frente à Mineração MCidades – Ministério das Cidades MCP – Movimento Camponês Popular MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas MLT – Movimento de Luta por Terra MMC – Movimento de Mulheres Camponesas MNLM/Mênêlêmê – Movimento Nacional de Luta pela Moradia MNLCN – Movimento Nacional de Luta Contra o Neoliberalismo e Pelo Socialismo MNRC – Movimento Nacional de Rádios Comunitárias MNRU – Movimento Nacional de Reforma Urbana MST – Movimentos dos Sem-Terra MUB – Movimento União de Bairros MUDA – Mutirão Agroecológico MTD – Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores por Direitos MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores MOTU – Movimento dos Trabalhadores Urbanos MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra MSTB – Movimento dos Sem Terra do Brasil NAJUP – Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luiza Mahin NIDES – Núcleo Interdisciplinar de Desenvolvimento Social NIEM – Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios OGU – Orçamento Geral da União ONG – Organização Não Governamental ONU – Organização das Nações Unidas OPAS – Organização Pan-americana de Saúde PAC – Programa de Aceleração do Crescimento PANAFTOSA – Centro Pan-americano de Febre Aftosa PANC’s – Plantas Comestíveis Não-Convencionais PCB – Partido Comunista Brasileiro PC do B – Partido Comunista do Brasil PCML – Partido Comunista Marxista-Leninista PDT – Partido Democrático Trabalhista PEC – Proposta de Emenda à Constituição
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PDISP – Portaria de Declaração de Interesse do Serviço Público PDST – Projeto de Desenvolvimento Socioterritorial PIB – Produto Interno Bruto PlanHab – Plano Nacional de Habitação PLHIS – Planos Locais de Habitação de Interesse Social PMCMV – Programa Minha Casa Minha Vida PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNH – Política Nacional de Habitação PNHU – Programa Nacional de Habitação Urbana PNHR – Programa Nacional de Habitação Rural PPGAS – Programa de Pós-graduação em Antropologia Social PPGSA – Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia PROFEC – Programa de Formação e Educação Comunitária PROURB – Programa de Pós-graduação em Urbanismo Prouni – Programa Universidade Para Todos PT – Partido dos Trabalhadores PTC – Partido Trabalhista Cristão PTS – Projeto de Trabalho Social PSB – Partido Socialista Brasileiro PSOL – Partido Socialismo e Liberdade PTS-P – Projeto de Trabalho Social – Preliminar PUC – Pontifícia Universidade Católica PPPUR – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional PRB – Partido Republicano Brasileiro RAIS – Relação Anual de Informações Sociais REDUC – Refinaria de Duque de Caxias REJU – Rede Ecumênica da Juventude RGI – Registro Geral de Imóveis RJ – Rio de Janeiro RMRJ – Região Metropolitana do Rio de Janeiro RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares Reuni – Reestruturação e Expansão das Universidades SBPE – Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo SBT – Sistema Brasileiro de Televisão
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SEFAZ – Secretária de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro SENGE-Rio – Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro SESC – Serviço Social do Comércio SEPE – Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação SFH – Sistema Financeiro de Habitação SIACI – Sistema de Crédito Imobiliário SINAD – Sistema de Inadimplência da Caixa Econômica Federal SINDSESP SP – Sindicato do Servidores Municipais de São Paulo SINDIELETRO MG – Sindicato dos Eletricitários de Minas Gerais SINDUTE MG – Sindicato Único de trabalhadores em Educação de Minas Gerais SOLTEC/UFRJ – Núcleo de Solidariedade Técnica da UFRJ SPU – Secretaria de Patrimônio da União SPU/RJ – Superintendência de Patrimônio da União do Rio de Janeiro TCP – Terceiro Comando Puro TPB – Teatro Popular Brasileiro TFG – Trabalho Final de Graduação UDN – União Democrática Nacional UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais UNMP – União Nacional Por Moradia Popular UBES – União Brasileira de Estudantes Secundaristas UBM – União Brasileira de Mulheres UJS – União da Juventude Socialista UNEGRO – União de Negros Pela Igualdade UNE – União Nacional de Estudantes UNMP – União Nacional por Moradia Popular USP – Universidade de São Paulo
xx 20 SUMÁRIO PRÓLOGO 1. A AVENTUROSA PELEJA DE UMA MULHER EM NADA CASTA, PACIENTE OU OBEDIENTE EM BUSCA DE UMA VIDA SEM DESONRAS, ANGÚSTIAS, INFORTÚNIOS E HUMILHAÇÕES ............................................................................24 2. O SUMIÇO DO GELSON: A EMERGÊNCIA DA LUTA ............................................59 3. RECORTE E COLE: MNLM E PALAVRA DE ORDEM .............................................66 4. RESEARCHER IS PRESENT: UMA EGOETNOGRAFIA URBANA .........................67 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................85 CAPÍTULO 1 1. BREVES CONTEXTOS E QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS 1.1 CARACTERÍSTICAS SOCIOECONÔMICAS DE DUQUE DE CAXIAS: UMA CIDADE DA BAIXADA FLUMINENSE ....................................................................96 1.2 A LUTA POR MORADIA EM DUQUE DE CAXIAS .................................................99 1.3 A QUESTAO URBANA E HABITACIONAL NO BRASIL: DE GETÚLIO VARGAS A LULA DA SILVA .................................................................................................102 1.4 INQUIETAÇOES METODOLÓGICAS: DIVAGAÇÕES DESSE MUNDO .............113 1.4.1 A Chegada .....................................................................................................113 1.4.2 Das interações cotidianas ..............................................................................115 1.5 NO INÍCIO ERA VERBO: AS CATEGORIAS QUE COMPÕEM O QUADRO DA VIDA E INSCREVEM SEUS HABITANTES EM UM MUNDO POLÍTICO .............124 1.5.1 Ser-pedagógico ............................................................................................125 1.5.2 Movimento Social .........................................................................................133 1.5.3 Luta ...............................................................................................................137 1.5.4 Ocupação .....................................................................................................139 1.5.5 Estado ...........................................................................................................140 1.5.6 Traição ..........................................................................................................144 CAPÍTULO 2 2. A OCUPAÇÃO SOLANO TRINDADE: SUAS CARACTERÍSTICAS E OS QUE O HABITAM 2.1 OCUPAÇÃO.DOC ..................................................................................................147 2.2 O TRABALHO SOCIAL ..........................................................................................152 2.3 O PROJETO ............................................................................................................154 2.4 A UNIVERSIDADE ..................................................................................................156 2.4.1 A Assessoria Técnica: Um perfil militante ......................................................157
21 xxi 2.4.2 O Curso de Formação ...................................................................................162 2.4.3 Vivência Agroecológica .................................................................................165 2.5 "O GOLPE MIDIÁTICO-JURÍDICO-PARLAMENTAR” ..........................................167 CAPITULO 3 3. UNIVERSIDADE
E
MOVIMENTO
SOCIAL:
AS
NUANCES
ENTRE
OS
ENGAJAMENTOS 3.1 “SOLANO TRINDADE PRESENTE”.......................................................................172 3.2 “PARA MORAR É PRECISO LUTAR”...................................................................173 3.3 A COZINHA: O LABORATÓRIO DA COLETIVIZAÇÃO DA VIDA .........................177 3.4 LUTA: SUBSTANTIVO PLURAL ...........................................................................179 3.5 ANTES DA OCUPAÇÃO SOLANO TRINDADE: A LUTA LOCAL E A LUTA NACIONAL .............................................................................................................186 3.6 ARQUITETURA DA RESISTÊNCIA ......................................................................193 3.7 OS CAMINHOS ATÉ SOLANO TRINDADE ...........................................................201 3.7.1 Dona Enésia ...............................................................................................205 3.7.2 Lilian ...........................................................................................................210 3.7.3 Isabel ..........................................................................................................215 3.7.4 Alcione ........................................................................................................219 3.7.5 Namara .......................................................................................................222 3.8 SER MULHER .........................................................................................................224
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................230 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................241 APÊNDICE - ROTEIRO DAS ENTREVISTAS .....................................................................254
ANEXO I MAPA DA DESIGUALDADE/CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – MOBILIDADE URBANA ......................................................................................................255
ANEXO II MAPA DA DESIGUALDADE/CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – POBREZA E RENDA ...........................................................................................................255
xxii 22 ANEXO III MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – SEGURANÇA PÚBLICA E CIDADÃ ...................................................................................256
ANEXO IV MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – SEGURANÇA PÚBLICA E CIDADÃ (2) ..............................................................................256
ANEXO V MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – EDUCAÇÃO ........................................................................................................................257
ANEXO VI MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – SANEAMENTO BÁSICO .....................................................................................................257
ANEXO VII MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – SANEAMENTO BÁSICO (2) ...............................................................................................258
ANEXO VIII FAC-SÍMILE DO FOLHETO DO ASSESSORIA TÉCNICA SOBRE O PROJETO DE REUSO DE ÁGUA .............................................................................................................................259
ANEXO IX FAC-SÍMILE DO FOLHETO DO MNLM ...............................................................................262
ANEXO X FAC-SÍMILE DO FOLHETO DA PARÓDIA DA MÚSICA “ASA BRANCA” APRESENTADA EM FESTA JULINA DE 2018 ...............................................................................................263
ANEXO XI FAC-SÍMILE DAS EDIÇÕES 1, 2, 3 DA BAIXADA PRA CIMA ...........................................265
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A MORADIA É ESSE LUGAR PRIMEIRO DA PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DA VIDA .
Onde descansamos, guardamos nossos pertences, protegemo-nos de intempéries, alimentamo-nos, cuidamos e somos cuidados. Atualmente, chegamos em um momento da história da humanidade no qual a moradia deve existir enquanto direito social, humano, constitucional. Esta é a história daqueles que lutam para que tal direito se cumpra.
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PRÓLOGO:
1. A AVENTUROSA PELEJA DE UMA MULHER EM NADA CASTA, PACIENTE OU OBEDIENTE EM BUSCA DE UMA VIDA SEM DESONRAS, ANGÚSTIAS, INFORTÚNIOS E HUMILHAÇÕES I.
“EU SOU UMA MULHER... NÃO UM RATO” Assim parafraseou Alice2 – Ó ANTÍGONA3 DOS TRÓPICOS E DA CONTEMPORANEIDADE! –, desta feita, prolongando a humanidade dos homens às mulheres enquanto enchia, empolgadíssima, o carrinho de mão com ervas-daninhas e concluía o plantio de mudas na horta da Ocupação Solano Trindade, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Mênêlêmê para os íntimos; e para aqueles que norteiam suas lutas em prol da Reforma Urbana e do Direito à Cidade, cujas concepções fundamentamse na defesa da moradia integrada aos bens, serviços e equipamentos urbanos, e às políticas públicas em saúde, cultura, educação, segurança, transporte e mobilidade urbana. Pernambucano de nascença, e paulistano e fluminense das andanças por aí, – ator, poeta, pintor, cineasta, teatrólogo e militante comunista – Solano Trindade foi então reparido, repartido; outra vez corpo em solo de resistência popular na luta pela moradia digna autogestionária. Em 08 de agosto de 2014, a Ocupação fez-se na parte ociosa do Centro Panamericano de Febre Aftosa (PANAFTOSA)4 na Av. Governador Leonel Brizola, esta que atravessa o município de Duque de Caxias; Baixada-Fluminense-Rio-de-JaneiroBrasil-América-Latina, a qual denomino de amálgama periférica. Duque de Caxias foi durante longos anos conhecida pelos epítetos “Cidade sem Lei”, “Cidade do Crime” e “Chicago da Baixada”, reforçados sobretudo pelas linhas editoriais de O Dia, O Globo e A Última Hora; estes, os jornais de maior circulação entre as décadas de 1950 e 2000 (ENNE, 2004, p.6). Ademais, práticas como clientelismo e assistencialismo enraizaram-se na política institucional; em razão da sua instrumentalização por grupos 2
O nome foi trocado em prol da preservação da identidade da pessoa/personagem em questão. Personagem da mitologia grega celebrada por Sófocles (496 a.C? - 406 a.C?) em tragédia homônima. 4 O Centro Pan-americano de Febre Aftosa (Panaftosa) é um centro científico da Organização Panamericana de Saúde (OPAS). Criado em 1951, o Panaftosa oferece cooperação técnica de saúde pública veterinária em pesquisa, prevenção e erradicação de enfermidades a todos os países membros do OPAS. Mais informações: https://nacoesunidas.org/panaftosa/ (Acessado em: 04/01/2017). 3
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de extermínio, milicianos, especuladores fundiários e grileiros de terra. Deise do Marcelo do Seu Dino, do Partido Trabalhista Cristão (PTC), foi o nome de campanha de uma candidata à Câmara de Vereadores eleita para o pleito de 2017-2020. Um nome emblemático que sumariza como as relações pessoais e familiares são correlatas da política eleitoral e revela a sobrevivência, desde o período colonial, da hipertrofia do poder privado (FAORO, 2000; HOLANDA, 2012; LEAL, 2012; NUNES, 1997; PRADO Jr., 2011) em detrimento do poder público. Entretanto, Duque de Caxias não pode ser reduzida aos justiceiros e milicianos; a Tenório Cavalcanti (1906-1987), “a pecha do faroeste fluminense”, uma dentre as inúmeras alcunhas que recebera. Vide a própria Ocupação, é onde há outras lutas, conscienciosas na criação e legitimação de novas formas de vida. Figura 1. O Lavrador de Café; Candido Portinari; 1939. Rasura 1. Alice após trabalhar na horta.
Alice, aquela que definitivamente não é um quadrúpede roedor, mostrou-se indignada, enquanto lavava mãos ainda amarronzadas pelas terras úmidas, com a afirmação de Marcelo Crivella – agora Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro pelo
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Partido Republicano Brasileiro (PRB) e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – no qual dizia que uma mulher negra só poderá se sentir realizada se tiver filhos. E assim retrucou Alice: “Tem mulher que não quer filho, eu não quero ter filho. Pra botar no mundo pra passar fome? Melhor não”. Por isso diz corriqueiramente que se ganhar na Mega Sena vai doar metade para “minha África”; “lá as crianças nascem pra morte, com as doenças tudo dentro delas”. O que reafirma quando mostra pelo celular vídeos e fotografias de crianças esquálidas com olhos opacos em algum canto daquele vasto continente. Já a outra parte vai usar para viajar pelo mundo, como fez a jornalista Glória Maria, exemplo de mulher negra “que deu certo”. Em especial, Alice quer conhecer os Estados Unidos da América e os esportistas olímpicos Usain Bolt, Simone Biles e Michael Phelps, além de outras tantas figuras célebres das indústrias fonográfica e cinematográfica; “eles são bons em tudo”. Quem sabe até ir morar em São Francisco, 1 dentre os 50 estados norte-americanos, onde afirma não ter violência e no qual poderá ver neve. Ideário que provavelmente deriva dos filmes hollywoodianos – bem longe de representarem “niggers”, “chicanos”, “hillbillies”, “rednecks” e “white trash”5 – que passam nos programas vespertinos da Globo, SBT, Bandeirantes e Record. Baiana de São Salvador. Assim se define Alice quando quer falar de saudade e pertencimento. Lá era lugar de andar em bando, sentar na terra, pegar bicho na mão e ter os pés descalços. Conquanto vivesse na displicência dos limites, tampouco acredito que fosse devido à selvageria, promiscuidade ou degenerescência inatas. Contradizendo, desta maneira, os que definem o abrasileiramento – fundamentado na miscigenação – no tornar-se cada vez mais luxurioso, preguiçoso e imprevidente; como se as altas temperaturas climáticas e a compartimentalização geometricamente não racional dos espaços fossem cada qual causa e efeito de desordem, imoralidade, despojamento e concupiscência. Segundo certos preceitos cientificistas propagados entre os séculos XIX e XX (cf.: realismo, naturalismo, positivismo, materialismo e evolucionismo), o delineamento cognitivo e comportamental de povos e sociedades dá-se através de determinismos e condicionalismos geográficos; os quais fazem os do Hemisfério Norte detentores de empreendimentos civilizatórios – Arte, Ciência, Filosofia, Educação, Política, Guerra, Moda e Gastronomia – e os do Hemisfério Sul
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Na sequência: afro-americanos; imigrantes mexicanos; brancos pobres que vivem nas montanhas do Apalache; trabalhadores rurais brancos; e trabalhadores brancos, pobres e sem instrução universitária, vitimados pelo processo de desindustrialização na região noroeste dos EUA.
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de suas respectivas deturpações. De sorte, como se as leis, regras, convenções, instituições e estabelecimentos em Terra Brasilis fossem incompletos, inconsistentes e improvisados, haja vista o demasiado calor ensejar o derretimento de ideias e compostura, fazendo-nos na sensualidade (vide: requebrado e malemolência), na hospitalidade (confundida com subserviência e alheamento de si) e na ausência da devida separação entre a vida pública e a vida privada (i.e.: patrimonialismo e rebaixamento moral das instituições político-administrativas); em suma, longe de valores como: Razão, Polidez, Prudência, Temperança, Bondade, Justiça, Verdade, Compaixão, Gratidão, Tolerância e Misericórdia. Como ilustra o personagem Bonifácio Odulfo na obra “Viva o Povo Brasileiro” de João Ubaldo Ribeiro (2014), Não se deve esposar um determinismo rígido quanto a essas questões, pois fatores outros, tais como a raça, desempenham papéis cruciais, mas na verdade é que a clara definição do ano em quatro estações distintas é civilizada e civilizadora. As nações como Brasil, em que praticamente só existe inverno e verão, imperando a mesmice de janeiro e a dezembro, parecem fadadas ao atraso e são abundantes os exemplos históricos e contemporâneos. Até culturalmente, as variações sazonais se revestem de enorme importância, eis que forçam a diversidade de interesses e atividades em função das alterações climáticas, de modo que os povos a elas expostos tem maior gama de aptidões e sensibilidade necessariamente mais apurada. Além disso, o frio estimula a atividade intelectual e obvia à inercia própria dos habitantes das zonas tórridas e tropicais. Não se vê preguiça no Europa e parece inteiramente justificada a inferência de que isso se dá em razão do acicate proporcionado pelo frio, que, comprovadamente, ao causar a constrição dos vasos sanguíneos e o abaixamento da temperatura das vísceras luxuriosas, não só cria condições orgânicas propícias a prática do trabalho superior e da invenção, quer técnica e quer artística, como coíbe o sensualismo modorrento dos negros, índios, mestiços e outros habitantes dos climas quentes, até mesmo os brancos que não logrem vencer, pela pura força do espírito civilizado europeu, as avassaladoras pressões do meio físico. Assim, enquanto um se fortalece e se engrandece, o outro se enfraquece e se envilece (RIBEIRO, 2014, p.461).
Reiterando: isso em nada tem a ver com o temperamento de Alice, cujos limites a faz tão somente no sublime de ser chão-bicho-objeto-humana. Como em um poema de Manuel de Barros, Alice amanhece, entardece, anoitece, chove, orvalha, farfalha, pia, assobia, zumbi, grasna, conversa, gargalha e sofre. Dando prosseguimento às suas memórias e reminiscências, Alice conta dos carnavais e que com os vizinhos saia para “pipocar” em Salvador, pelas Cidades Alta e Baixa, nos circuitos que passam por: Farol da Barra, Praia de Ondina, Pelourinho, Avenida Oceânica, Morro do Cristo, Mudança do Garcia, Campo Grande, Rua do Norte e Rua Sítio Caruano. Alice fala de Ivete Sangalo, Daniela Mercury, Margareth Menezes, Maria Bethânia, Carlinhos Brown, Caetano Veloso e Gilberto Gil com admiração e intimidade, como se fossem seus amigos de longa data; “eu era piveta, onde eles estavam eu tava junto”. Enfim,
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os carnavais foram tempos de euforia, brigas e acertos de contas que “ah, não voltam mais”, nos quais a violência, agora saudosa, transformava-se em desafio, fantasia e divertimento. Figura 2. Carnaval; Carybé, 1987. Rasura 2. Alice pulando o carnaval na “pipoca”.
No Rio de Janeiro desde 2002, Alice já morou no Rio Comprido, Madureira, bairros da então cidade, e em Queimados, município da Baixada Fluminense. Na Bahia trabalhou como babá e ladrilheira, e assim que chegou ao Rio de Janeiro foi trabalhar na FAET com montagem de eletrodomésticos, onde ficou por 7 anos. Fundada em 1927, a FAET foi uma das primeiras empresas a utilizar mão de obra feminina em sua linha de produção e tem como um de seus objetivos “melhorar a vida das donas de casa do século XXI”, como consta no portal da empresa. Lá foi onde conheceu Elizete, hoje coordenadora nacional do MNLM, que a indicou para morar na Ocupação quando viu-se desempregada e consequentemente sem condições de pagar o aluguel. Após trabalhar na FAET, Alice foi vendedora ambulante, o que ainda faz esporadicamente no Carnaval e no Réveillon da Praia de Copacabana, e auxiliar de serviços gerais no Norte Shopping, no bairro carioca Cachambi. No momento está procurando emprego; “tenho que trabalhar se não vou ficar maluca”. Trabalho, que além da subsistência, é em sua vida, como na de tantos outros, o parâmetro das condições de normalidade. Através do qual acredita tornar-se digna e respeitável, haja
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vista o trabalho configurar-se como aqueles empreendimentos existenciais que humanizam e desumanizam na mesma medida. “Eu sou metalúrgica igual ao Lula”; assim Alice se equipara ao carismático expresidente do Brasil pelo Partido dos Trabalhadores (PT) por dois mandatos consecutivos (2003-2010). Lula, entre adoradores ou detratores, é considerado um dos maiores líderes políticos da história do País. Nascido na cidade de Caetés, no agreste pernambucano, Lula e família mudaram-se para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Foi lá que, já adulto, começou a trabalhar como metalúrgico e tornou-se sindicalista, liderando as mais importantes greves da Região do ABCD6 paulista entre as décadas de 1970 e 1980. Anos depois, junto de outros sindicalistas, intelectuais e dirigentes de movimentos sociais, fundou o PT, legenda pela qual Lula candidatou-se 5 vezes consecutivas (1989, 1994, 1998, 2002 e 2006) para a Presidência da República. Seus governos foram conhecidos pelo crescimento econômico e pela criação de programas como: Bolsa Família, Prouni (Programa Universidade Para Todos), Reuni (Reestruturação e Expansão das Universidades), Farmácia Popular, Programa Mais Médicos, Programa Crédito Solidário, Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) – estes últimos relacionados às políticas habitacionais de equacionamento do déficit habitacional. Foi também a partir de seu governo, com a criação de fóruns, conselhos e conferências, que se fortaleceu a relação institucional com sindicatos, movimentos sociais e organizações não-governamentais. Através do qual o MNLM, junto com outros movimentos de luta por moradia, vislumbrou a construção de uma política habitacional fundamentada em controle e participação social. Entretanto, apesar de acreditar que Lula foi o melhor presidente deste país, Alice reitera que ele foi dentre todos o maior traidor. Por ser o primeiro Presidente da República advindo da classe trabalhadora, Lula e o PT foram alçados enquanto portavozes legítimos das reivindicações das camadas populares. Em razão da “conciliação de classes” – compromisso que Lula estabeleceu tanto entre as camadas populares e movimentos sociais e o agronegócio, empresariado industrial e capital financeiro internacional na composição de uma agenda novo desenvolvimentista (ALVES, 2013; BOITO JR. 2012, GONÇALVES R.; 2012; SINGER, 2009) – o PT, a despeito dos avanços sociais e aumento real de salários, não promoveu mudanças estruturais nas 6
Tal correspondem as cidades: Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema.
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relações de poder, que privilegiam os poderosos em detrimento da classe trabalhadora. Além do mais, o pacto de governabilidade, imprescindível em um presidencialismo de coalizão, forjou alianças entre o PT e partidos de diferentes espectros ideológicos. Sua aliança com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), fundamental para conquistar a maioria nas bancadas legislativas e conseguintemente aprovar as matérias governistas, mostrou-se insatisfatória e sobremaneira catastrófica quando o PMDB, nas figuras de Michel Temer, Renan Calheiros, Romero Jucá, Eduardo Cunha, organizou o impeachment, ou “golpe midiático-jurídico-parlamentar” da presidente petista Dilma Rousseff em idos de 2016. Por isso, desde então, tem sido dificílimo para Alice confiar na política eleitoral como solução última para os problemas sociais e econômicos. Figura 3. Os Operários; Tarsila do Amaral; 1933. Rasura 3.Alice, Lula e os colegas da fábrica.
Em frente à televisão, Alice mostra-se sempre amedrontada; “aqui parece o Estado Islâmico. Estamos numa guerra e ninguém faz nada”. Assim que chegou ao Rio de Janeiro, Alice tinha o costume de se sentar na porta de casa e contemplar as faíscas dos fogos de artifício caindo do céu. Se não fossem os vizinhos, desesperados, nunca saberia que tais faíscas eram balas traçantes. “Com essa carinha de quem-não-presta” (GOFFMAN,1975) – sua pele negra enquanto representação estética da pobreza, do perigo, da violência e da criminalidade – Alice
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teve que aprender a diferença entre “nós e a gente” para entrar nas favelas, uma demarcação de filiação e respeito ao Terceiro Comando Puro (TCP) e ao Comando Vermelho (CV) – duas facções criminosas rivais. Caso contrário era morte na certa. Delas, a geografia é algo que a impressiona, como se impusesse convivialidades até então desconhecidas e inimagináveis. Ela afirma que os adolescentes da Ocupação precisam ser apresentados a “realidade da vida”; podem morrer caso não performem os códigos apropriados, as devidas fachadas (IDEM, 2011), ao entrarem nas favelas cariocas. Precisam saber “como as coisas são” em vez de defenderem que a solução é serem elas controladas pelas Forças Armadas, “que entram lá só pra matar morador!” Figura 4. A Favela; Emiliano Di Cavalcanti; 1958. Rasura 4. Alice em visita aos seus amigos no Pavão-Pavãozinho
Outro dia vendo no RJTV 2ª Edição, telejornal noturno da Rede Globo, a manifestação dos servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro diante do decreto de calamidade orçamentária, Alice perguntou-me em meio conjecturas e elucubrações diversas: “o brasileiro fazia ato, manifestação, mas nunca invadiu o parlamento. Isso aí vai dá em quê?” Eu titubeei, e depois contemporizei zombeteiramente até, dizendo
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algo como rebelião ou insurreição. Entretanto, ela pronta e seriamente afirmou que chegaremos em uma guerra civil: “aqui vai ser Osama Bin Laden, Saddam Hussein, Síria, Paquistão, Afeganistão!” Não era a primeira vez que Alice fizera analogias com o Islamismo ou o Oriente Médio – que nos últimos anos têm sido reduzidos, sobretudo na cobertura midiática, aos ataques terroristas de Hamas, Al Qaeda, Hezbollah e Estado Islâmico e aos fundamentalismos político-religiosos, em contraposição a paz militarizada e aos secularismos ocidentais. Contudo, desta vez tal relação não pareceu de todo ruim porque de algum modo as pessoas finalmente agiriam sem pensar nas consequências e contra os verdadeiros inimigos, ao em vez de tê-los nos trabalhadores, em si próprios. Até aquele momento eu não havia pensado nas possíveis semelhanças, mesmo que longínquas ou improváveis, entre a luta de classes e a Jihad, a guerra santa islâmica. No mesmo noticiário também assistimos aos ex-governadores do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho (1999-2000) e Sérgio Cabral (2007-2014) sendo presos em operações da Policia Federal. Alice comentou que a cadeia muda por fora e por dentro todos os que vão para lá; “viu o Cabral? Tá com cara de marginal. Eu sou das margens, mas eles são os verdadeiros marginais”. Depois sentenciou que preto e pobre nunca têm voz e por isso mesmo até pensou em apagar a tocha olímpica quando a mesma passou em Duque de Caxias. Se porventura fosse presa, enforcada ou asfixiada, teria voz. Mesmo que momentaneamente a violência em seu corpo, não fosse somente física, mas símbolo do mundo em que vive, ela teria voz. Alice é assídua espectadora do Balanço Geral e Cidade Alerta: dois dos mais populares programas jornalísticos da Rede Record. Estes são aqueles programas bem policialescos e sensacionalistas, que transformam a violência em entretenimento e cuja apresentação faz-se com descontração e informalidade. Acidentes, enchentes, deslizamentos, assaltos, estupros, sequestros, chacinas e homicídios são dispostos entremeadamente às propagandas de: empréstimos descontados em folha para aposentados e pensionistas, planos de saúde e funerário e produtos milagrosos de emagrecimento. Tudo para o deleite contemplativo do telespectador na materialização de uma weltanschauung, uma visão cristalizada do mundo social (DEBORD, 2013 p.14). Com efeito, um espetáculo na fusão de imagens e realidades em prol da banalização e naturalização dos mais variados tipos de violências. Desta feita, uma maneira de diluir, minimizar e fragmentar táticas de controle (VANEIGEM, 2002, p.33)
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na possibilidade de comprar em parcelas mensais de 24, 36 ou 48 vezes sem juros e sem fiador o “tão sonhado” carro, celular ou motocicleta. A premissa de tais programas, cujos apresentadores compõem-se exaltados e escandalizados, é aquela do “bandido bom é bandido morto”, um argumentum ad infinitum, fundamentando um sistema dualista e maniqueísta na criação de algozes e bodes expiatórios, e por conseguinte, salvaguardando a legitimidade de instituições estatais – exército, polícia, judiciário, governo – na constante reorganização da violência física e simbólica. Ao mesmo tempo, convocam “ó cidadãos de bem, trabalhadores e vitimados por tanta violência” às práticas de justiçamento, dado que os mecanismos oficiais “não dão conta”. Desta maneira, a televisão – “instrumento modelizador da subjetividade, cuja eficácia ultrapassa a de partidos políticos, as escolas, a máquina governamental e as instituições religiosas” (MACHADO 2005, pp.135-137 in GUATTARI; ROLNIK, 2005) – configura-se enquanto um aparelho repressivo e ideológico na criação de mecanismos de punição e criminalização que são consumidos pelos cidadãos, de modo que aos oficiais – estatais por excelência – colocam-se complementar e justapostamente os oficiosos e não-estatais. Assim como aço, plástico, roupas, alimentos, móveis e eletrodomésticos, a violência está em um processo de produção-distribuição-troca-consumo, e por isso não é simplesmente superestrutura de processos econômicos, mesmo que lhes sejam por vezes subjacentes7. Doravante, a televisão enseja o lastreamento da ideologia dominante “Donde o caráter muito particular da violência de Estado: é difícil assinalar essa violência, uma vez que ela se apresenta sempre como já feita. Não é nem mesmo suficiente dizer que a violência reenvia ao modo de produção. Marx observa no caso do capitalismo: á uma violência que passa necessariamente pelo Estado, que precede o modo de produção capitalista, que constitui a “acumulação original” e torna possível esse próprio modo de produção mesmo. Se nos instalamos dentro do modo de produção capitalista, é difícil dizer quem rouba e quem é roubado, e mesmo onde está a violência. É que o trabalhador nasce aí objetivamente todo nu e o capitalista objetivamente “vestido”, proprietário independente. O que formou assim o trabalhador e o capitalismo nos escapa, uma vez que já é operante em outros modos de produção. É a violência que se coloca como já feita, embora ela se refaça todos os dias. É agora ou nunca o caso de dizer a mutilação é previa, preestabelecida. Ora essas análises vêm ser ampliadas, pois não deixa de haver uma acumulação imperial que precede o modo de produção agrícola, longe de decorrer dele; via de regra, há acumulação original cada vez que há montagem de um aparelho de captura, como essa violência muito particular que cria ou contribui para criar aquilo sobre que ela se exerce, e por isso se pressupõe a si mesma. O problema, portanto, seria distinguir os regimes de violência. A esse respeito, podemos distinguir como regimes diferentes: a luta, a guerra, o crime e a polícia. A luta seria como o regime de violência primitiva (incluindo-se aí “guerras” primitivas): é uma violência golpe a golpe, a que não falta contudo um código, uma vez que o valor dos golpes é fixado segundo a lei das séries, a partir do valor de um último golpe trocável, ou de uma última mulher a conquista, etc. Daí uma espécie de ritualização da violência. A guerra, pelo menos quando remete à máquina de guerra, é um outro regime, porque implica a mobilização e a autonomização de uma violência dirigida primeiro e por princípio contra o aparelho de Estado (a máquina de guerra, nesse sentido, é a invenção de uma organização nômade original que se volta contra o Estado). O crime é ainda diferente, porque é uma violência da ilegalidade que consiste 7
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para além dos outros aparelhos de Estado (POULANTZAS, 2000, p.27), baseando-se em uma lógica de espelhamento – inversão, encobrimento, falseamento e reconhecimento/desconhecimento – na qual as classes dominadas vislumbram seus desejos, vontades e necessidades nos das classes dominantes (ALTHUSSER, 1985) e estabelecem, portanto, relações de poder paralela e transversalmente às relações estatais ou de produção (POULANTZAS, 2000) e na qual os dominantes prescrevem sua consciência na dos dominados (FREIRE, 1987, p.18) – que podem ser superadas com a conscientização e subversão pela classe trabalhadora. Assim, quando do acirramento da repressão, os porta-vozes dos aparelhos (establishment) pronunciamse no cumprimento d’A Vontade Popular; que desta feita, existe senão como farsa, engodo ou escamoteação (FAORO, 2000, p.829). Conforme apregoa o personagem orgulhosamente apolítico de “Viva o Povo Brasileiro”: – Mas, vejamos bem, que será aquilo que chamamos de povo? Seguramente não é essa massa rude, de iletrados, enfermiços, encarquilhados, impaludados, mestiços e negros. A isso não se pode chamar de um povo, não era isso que mostraríamos a um estrangeiro como exemplo do nosso povo. O nosso povo é um de nós, ou seja, um como os próprios europeus. As classes trabalhadoras não podem passar disso, não serão jamais povo. Povo é raça, é cultura, é civilização, é afirmação, é nacionalidade, não é o rebotalho dessa mesma nacionalidade. Mesmo depuradas, como prevejo, as classes trabalhadoras não serão jamais o povo brasileiro, eis, que esse povo será representado pela classe dirigente, única que verdadeiramente faz jus a foros de civilização e cultura nos moldes superiores europeus – pois quem somos nós senão europeus transplantados? Não podemos perder isto de vista, deixando-nos cair no erro abismal de explorar nossas riquezas e nossa virtual grandeza para entrega-las a esse tal povo, que, em primeiro lugar, não saberia como gerir tão portentosa herança, logo conforto e regalias a escravos e servos, pois não atinam com o que fazer desse conforto e dessas regalias (RIBEIRO, 2014, p.252).
em apoderar-se de alguma coisa a que não se tem “direito” de capturar. Mas, justamente, a polícia de Estado ou violência de direito” é ainda diferente, uma vez que ela consiste em capturar ao mesmo tempo em que constitui um direito de captura. É uma violência estrutural, incorporada, que se opõe a todas as outras violências diretas. Definiu-se com frequência o Estado por um “monopólio da violência”, mas essa definição reenvia a uma outra (Rechtsstat). A sobrecodificação do Estado é precisamente essa violência estrutural que define o direito, a violência policial e não guerreira. Há violência de direito cada vez que a violência contribui para criar sobre que ele exerce ou, como diz Marx, cada vez que a captura contribui para criar aquilo que ela captura. É muito diferente da violência do crime. É por isso também que, ao inverso da violência primitiva, a violência de direito ou de Estado parece sempre se pressupor, uma vez que ela preexiste a seu próprio exercício: o Estado pode então dizer que a violência é “original”, simples fenômeno na natureza, e pela qual ele não é responsável, ele que só exerce a violência contra os violentos, contra os “criminosos” – contra os primitivos, contra os nômades, para fazer reinar a paz...” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, pp.153-155).
35 Figura 5. Guernica; Pablo Picasso; 1937. Rasura 5. Cenas das ações policiais nas favelas cariocas.
Certa vez, Alice ficou em desespero ao ver uma coruja nos galhos de uma árvore. Segundo ela, o canto do pássaro é prenúncio de morte; “oh, lá na Bahia não errou uma, tá!”; o qual é seu momento de devoção, de evocação ao sobrenatural: o mais temerário dentre superstições, premonições e mediunidades. De ter em sua crença uma necessidade de “apoio, tranquilidade, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si” (NIETZSCHE, 2012, p. 10). É comum encontrar Alice em emoções cujos níveis desenham um corpo, a despeito da magreza e dos 1m.50 de altura, em linhas de exagero; irascíveis, intempestivas, periclitantes de certo modo. Seus clamores, gargalhadas e choramingos convocam as crianças em ritmo e unissonância e transformam expressões outrora individuais em coletivas (MAUSS, 1974); em música com leveza, andamento e profundidade. Gosto de pensar que em vez de centímetros faz-se em pontos cardeais, colaterais e coordenadas geográficas. Ter-se em medidas planetárias, constelares ou galácticas; de existir no metafórico porque desaprendera as delimitações do corpo e do seu estabelecimento enquanto algo enfadonho e constrangedor; de estar em graus, movimentos e velocidades variadas de humanidades e animalidades pretéritas e porvir: um corpo-sem-órgãos (DELEUZE; GUATTARI, 2011a, 2011b, 2012a, 2012b, 2011c). Sua verborragia acaricia, mas não deixa ainda assim de maltratar. Briguenta, insolente, falastrona e debochada narra os sofrimentos da vida tecendo delicadamente as frases em entonações viscerais,
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dramatúrgicas. Alice tem por vezes a sua história em pretensões literárias como Mariana8, Bertoleza, Rita Baiana9, Clara dos Anjos10 e Kahinde11; precisa ser personagem protagônica12. É a sua maneira de ser uma mulher selvagem: sábia, oráculo, visionária, intuitiva, criativa, inventora e inspiradora; de uma natureza tácita, visceral, presciente e fundamental; e de não se intimidar diante do vasto, cíclico, inesperado, poderoso, estranho e incomum (ESTÉS, 2014, pp.21-117). As histórias que conta sobre si variam no sabor e dissabor das circunstâncias – são como os mitos ameríndios analisados por Claude Lévi-Strauss (2004, 2006, 2010, 2011), que mesmo depurados em axiomas e postulados são irrisórios diante das incontáveis versões que nem sequer serão descobertas. Não posso esquecer de dizer que era exímia na bola de gude, mas a mãe a proibiu de jogar porque era “brincadeira de menino”. Quando 8
Conto homônimo de Machado de Assis, In: Rocha, Joao Cezar de Castro. Contos de Machado de Assis. V5. Rio de Janeiro: Record, 2008. 9 Personagem do romance O Cortiço de Aluísio Azevedo. 10 Personagem de romance homônimo de Lima Barreto. 11 Personagem principal de Um Defeito de cor de Ana Maria Gonçalves. 12 “Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina. Sua cultura histórica literária, as canções, as lendas com que a embalam são uma exaltação do homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações, que descobriram a Terra e inventaram os instrumentos que permitem explorá-las, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros e de livros. A literatura infantil, a mitologia, contos, narrativas, refletem os mitos criados pelo orgulho e os desejos dos homens: é através de olhos masculinos que a menino explora o mundo e nele decifra seu destino. A superioridade masculina é esmagadora: Perseu, Hércules. Davi, Aquiles. Lancelot, Duguesclin, Bayard, Napoleão, quantos homens para uma Joana D’Arc; e, por trás desta. Perfila-se a grande figura masculina de são Miguel Arcanjo! Nada mais tedioso do que os livros que tratam vidas de mulheres ilustres: são pálidas figuras ao lado das dos grandes homens; e em sua maioria banhamse na sombra de algum herói masculino. Eva não foi criada para si mesma e sim como companheira de Adão de uma costela dele; na Bíblia há poucas mulheres cujas ações sejam notáveis: Rute não fez outra coisa senão encontrar o marido. Ester obteve a graça dos judeus ajoelhando-se diante de Assuero, e ainda assim passava de um instrumento dócil nas mãos de um Mardoqueu; Judite teve mais ousadia, mas ela também obedecia aos sacerdotes e sua proeza tem um vago sabor equívoco: não se poderia compará-la ao triunfo puro e brilhante do jovem Davi. As deusas da mitologia são frívolas e caprichosas e todas tremem diante de Júpiter; enquanto Prometeu rouba soberbamente o fogo do céu, Pandora abre a caixa das desgraças. Há, é certo, algumas feiticeiras, algumas mulheres velhas que exercem nos contos um poder temível. Entre outras, no Jardim do Paraíso de Andersen, a figura da mãe dos ventos lembra a Grande Deusa primitiva: seus quatro enormes filhos obedecem-lhe tremendo, ela os surra e os encerra em sacos quando se conduzem mal. Mas tais personagens não são atraentes. Mais poderosas são as fadas, as sereias, as ondinas que escapam ao domínio do homem. Sua existência incerta é porém, e apenas individualizada; elas intervêm no mundo humano sem ter destino próprio: a partir do dia em que se torna mulher, a pequena Sereia de Andersen conhece o jugo do amor e do sofrimento passa a ser seu quintão. Nas narrativas contemporâneas, como nas lendas antigas, o homem é o herói privilegiado. Os livros de Mme de Ségur são uma curiosa exceção: descrevem uma sociedade matriarcal em que o marido, quando não está ausente, desempenha um papel ridículo; mas de costume a imagem do pai é, como no mundo real, aureolada de glória. É sob a égide do pai divinizado pela ausência que se desenrolam os dramas femininos de Little Women. Nos romances de aventura são os meninos que fazem a volta ao mundo, que viajam com marinheiros nos navios, que se alimentam na floresta com a fruta-pão. Todos os acontecimentos importantes ocorrem por intermédio de homens. A realidade confirma esses romances e essas lendas. Se a menina lê os jornais, se ouve a conversa de adultos, constata que hoje, como outrora, os homens dirigem o mundo. Os chefes de Estado, os generais, os exploradores, os músicos, os pintores que ela admira são homem; são homens que fazem seu coração bater de entusiasmo” (BEAUVOIR, 2009, p.387-388).
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aos 12 anos a perdeu, teve que enfrentar o “mundão” e por isso é hoje aquela que deixou de somente aprender para também ensinar: graduou-se na “Escola da Vida”. Diante das feminilidades e masculinidades impostas e desejadas (BUTLER, 2003), o “menino” assumiu-se em trejeitos, vocabulários e vestimentas. No Rio teve a liberdade, longe dos julgamentos familiares, de ser uma mulher “entendida” – denominação para lésbica na Bahia. Alice, vivaz, grandiosa e resplandecente é ainda assim lúgubre, taciturna e sorumbática em alguns momentos. Que se faz em timidez, retraimento, indulgência e circunspecção, de falar nos silêncios e reticências. Miniaturizar-se, ser parte de si ou perder em si quando necessário; de existir no metonímico. O Reggae de Edson Gomes, Tribo de Jah, Oswaldo Silva, Bob Marley, Peter Tosh, Jimmy Cliff, Jacob Miller, Alpha Blondy e Burning Spear, além dos pagodes românticos de Belo, Kiloucura e Karametade, Olodum e hinos de louvor evangélicos, não faltam no seu celular. Escutar os regueiros é novamente falar de saudade e remeter-se a África como o lugar primeiro de todos os baianos; no parentesco, na vizinhança, na ancestralidade – categoria esta que se soma a outras como “lugar de fala”, “empoderamento” e “representatividade” utilizadas pelos movimentos negros brasileiros nos últimos anos. Válido salientar, que através do Atlântico Sul, há uma contínua influência das antigas correntes culturais da África Ocidental sobre a cultura popular da Bahia (HANNERZ, 1997, p.13). Deste modo, Alice se reconhece enquanto africana, é a sua raça, afirma veementemente. É sua origem apesar das reiteradas diásporas (HALL, 2003) pelas quais passou até chegar ao Rio de Janeiro. Em seus relatos, a África transforma-se em uma unidade, difusa em certos casos, porque várias são suas línguas, costumes e nacionalidades. Para além do escravismo, colonialismo e imperialismo existem outras histórias sobre os diversos povos, etnias e territórios africanos; transnacionais e transcontinentais de certo modo (ADICHIE, 2003, 2006, 2013). Há, portanto, uma organização global de culturas, um entrecruzamento de fluxos e contrafluxos, que não pode ser resumida nos vigentes modelos centroperiferia e nas fronteiras físicas e político-administrativas do Estado-nação. Em suma, existe incomensuravelmente uma série de deslocamentos espaço-temporais na qual as culturas são transmitidas e transformadas. No caso da cidade de Salvador ocorreu e ainda ocorre a reconfiguração das tradições dos povos africanos em diversos pedaços, manchas, trajetos e circuitos (MAGNANI, 2002, 2003, 2009) que realocam valores, identidades, o público e o privado em um gradiente de variações e
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especificidades. E todos esses lugares ressoam as alegrias, dores e sofrimentos advindos da escravidão, como canta Tincoãs em Cordeiro de Nanã: Fui chamado de cordeiro mais não sou cordeiro não/ Preferir ficar calado que falar e levar não/ O meu silencio é uma singela oração a minha santa de fé/ Meu cantar vibram as forças que sustentam meu viver/ Meu cantar é um apelo que eu faço a nanã ê/ SOU DE NANÃ Ê UÁ Ê UÁ Ê UÁ Ê/ SOU DE NANÃ Ê UÁ Ê UÁ Ê UÁ Ê/ SOU DE NANÃ Ê UÁ Ê UÁ Ê UÁ Ê/ O que peço no momento é silêncio e atenção/ Quero contar sofrimento que passamos sem razão/ O meu lamento se criou na escravidão que forçado passei/ Eu chorei sofri as duras dores da humilhação/ Mas ganhei pois eu trazia nanã ê no coração/ SOU DE NANÃ Ê UÁ Ê UÁ Ê UÁ Ê/ SOU DE NANÃ Ê UÁ Ê UÁ Ê UÁ Ê/ SOU DE NANÃ Ê UÁ Ê UÁ Ê UÁ Ê.
Lá na Bahia, enquanto a mãe trabalhava em sua barraca de quitutes, Alice foi criada desde criancinha nas praias da Barra, Ondina, Flamengo e Porto do Farol. “Lá a praia funciona 24 horas por dia por causa dos hotéis e luzes acessas”. Compreendi a partir de sua fala, que mar e areia estão fundamentados em expedientes humanos; que cultura está na natureza e vice-versa e não são estanques, senão sobrepostas, complementares e interdependentes. Em outras palavras, os modos humanos de ser, estar, fundar, construir e habitar o mundo estão não só para além de tal relação, pretensamente antinômica e dicotômica, como dos seus homólogos: ativo/passivo, sujeito/objeto, razão/emoção, sociedade/indivíduo, masculino/feminino. Em tempo, são ainda assim correspondências nas quais podemos apreender o habitar enquanto padrão de poder, gestão, controle, segurança e regulamentação da vida diante dos ditos perigos do imprevisível, incontrolável e não-regulamentado (MEGGITT, 1976, P.56 apud STRATHERN, 2014, p.23). Assim, o habitar compreende-se enquanto uma capacidade cognitiva na inteligibilização da vida humana, através do qual fundamos outras dimensões como: fora/dentro; atrás/frente; próximo/distante; aberto/fechado; claro/escuro; puro/impuro; limpo/sujo e público/privado (SEGAUD, 2016, p.19). Sendo aquilo que elimina as contingências e multiplica as continuidades, e faz da casa – lar, moradia, residência, alojamento, acampamento, ocupação –, o primeiro mundo do ser humano (BACHELARD, 1957 apud IBIDEM, p.98); estruturada e estruturante de relações imprescindíveis para a convivência social. De sorte que a falta de teto, devido a processos de remoção, desapropriação, inundação e deslizamentos de terra, prejudica a identidade do habitante, dado que este não tem um lugar próprio onde possa ter intimidade consigo e com terceiros (SERFATY-GARZON 2003 apud SEGAUD, 2016, p.100). A casa traz, portanto, elementos humanizadores, como a beleza, a limpeza e a ordem, conforme afirma Freud (2011):
39 A Ordem é uma espécie de compulsão de repetição que, uma vez estabelecida, resolve quando, onde e como algo deve ser feito, de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico. O benefício da ordem é inegável; ela permite ao ser humano o melhor aproveitamento de espaço e tempo, enquanto poupa suas energias psíquicas. Seria justo esperar que se impusesse à atividade humana desde o princípio, sem dificuldades; e é de espantar que isto não aconteça, que as pessoas manifestem um pendor natural à negligência, irregularidade e frouxidão no trabalho (...) (FREUD, 2011, p.38).
Figura 6. Morro Vermelho; Lasar Segall; 1926. Rasura 6. Alice e a sua mãe em magnificência.
A vida de Alice na Bahia – “mais na rua do que em casa” – permitiu-lhe desenvolver afetos na existência grupal com outras crianças e adolescentes. Embora escusas, é possível em suas falas subentender que realizavam furtos e outras atividades ditas criminosas e/ou estigmatizantes, como por exemplo, o uso da maconha. Através dos quais provavelmente transfigurou a subsistência em desejo e liberdade, de se ver livre de certas repressões familiares; em contrapartida sofrendo duras e esculachos por parte da Polícia Militar. Atualmente, longe da família e de tais grupos, a reafirmação de si, no qual individualismo e individualidade confundem-se em um mecanismo de reações exageradas diante certos constrangimentos, é de tal
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forma proeminente e em detrimento das instituições sociais que Alice é colocada em uma “zona fronteiriça”, já que não é dada a docilidades e subserviências. O que pode ser observado por diuturnamente ralhar e praguejar contra tudo e todos, proferindo impropérios dos mais variados – com Alice o papo é reto, sem embromação ou tergiversação. Desta feita, ela evoca a escapatória de supervisões – religiosas, familiares, empresariais e governamentais; Ó CREONTE13 DOS TRÓPICOS E DA CONTEMPORANEIDADE!
– afirmando que não confia em ninguém, que amizades ou
quaisquer relacionamentos devem ser no mais circunstanciais e é, portanto, o que a vida nas metrópoles lhe reserva. Isso porque, Alice percebe os outros enquanto aqueles querem tirar algum proveito dela. Assim, entre ser uma pessoa com virtudes “da obediência, da castidade, da piedade, da justiça” ou preocupada com sua “própria conservação, elevação, desenvolvimento, promoção, ampliação de poder”, prefere ser a última, posto que se tornar uma pessoa virtuosa, uma “utilidade pública”, faz-se pela da “desvantagem particular” (NIETZSCHE, 2001, p.69) – e por isso prefere a autossuficiência e autodeterminação; da qual concluímos que a vida social é feita não só de sentimentos de identidade e comunidade, bem como de inadequação, desconforto e deslocamento. Logo, entre sociedade e indivíduo, Alice prefere ser só, mesmo que seja contraproducente em algumas circunstâncias, uma vez que “o deliberado isolamento, o afastamento dos demais é a salvaguarda mais disponível contra o sofrimento que pode resultar das relações humanas” (FREUD, 2011, p.21).
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O Creonte de Rei de Tebas que condenou Antígona pelo sepultamento de Policine (irmão de Antígona e sobrinho de Creonte). Eis um de seus discursos: “Meu filho, este é, na verdade, o sentimento que te convém: subordinar tudo à vontade paterna. Esta é a razão de querermos criar filhos obedientes em nossos lares, que ataquem com rigor o inimigo e que honrem o amigo como o próprio pai. Mas o que sustenta filhos inúteis, dirás que ele não faz mais do que cultivar seu próprio prejuízo para a alegria de seus inimigos. Não queiras, meu filho, perder a razão pelo prazer que pode proporcionar-te uma mulher. Sabendo que glacial é o abraço de uma mulher malvada em tua casa. Poderá haver chama mais pestilenta que um mau amigo? Vamos, rechaça, essa mulher como praga. Que vá procurar marido no inferno. Pois eu a apanhei desrespeitando abertamente as leis; de toda a cidade, só ela. Não quero passar por mentirosos na minha cidade. Eu a matarei. Que invoque, querendo, a Zeus, protetor do lar. Se eu tolerar os desmandos da minha gente, perderei autoridade sobre os demais. Quem é correto em sua própria casa, também agirá com justiça na cidade. O insolente, o transgressor das leis, o que se opõe às autoridades não conte com meu aplauso. A que a cidade conferiu poder, a este importa obedecer, seja nas grandes questões seja nas justas... e até nas injustas. Atrevo-me a declarar que deverá governar bem quem se dispõe a ser governado. Na tempestade da guerra exaltado, saberá conduzir-se como digno combatente e honrado. Não há mal maior que a anarquia, ela devasta a cidade, arrasa casas, aniquila a investida de forças aliadas. Mas, dos que prosperam, vidas são salvas pela obediência. Por isso convém apoiar os que velam pela ordem sem jamais ceder a uma mulher. Se devemos cair, que seja pela mão de um homem. Não se diga que somos inferiores às mulheres” SÓFOCLES, 1999, pp.47-49).
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Tal conduta de Alice me lembra bem uma fala inflamada de um personagem de Viva o Povo Brasileiro: – Cala a Boca! Aqui não interessa o que o senhor pensa, porque tudo o que o senhor pensa, ou pensa que pensa, é que lhe puseram na boca e na cabeça, e isso já conhecemos. Também não interessa a sua identidade, pois sua identidade é uma coisa que só vale para o senhor, para nós o senhor não tem identidade, tem a mesma identidade que os outros que vieram em sua companhia. Da mesma forma que, para o senhor, nós também não temos identidade, não temos cara, temos uma cara só. Também não interessa o que o senhor diga ou possa dizer a respeito do julgamento que fazemos de suas ações, pois o único julgamento que lhe interessa é que fizeram de acordo com sua medida. Seu poder constituído para mim é merda, suas instituições para mim são bosta. Vocês chamam dinheiro de verba e numerário, chamam furto de apropriação, nomeação de eleição, assassinato de execução, vocês se vestem fantasiados e usam palavras que julgam bonitas, assim concluindo que os atos são legítimos. Podem ser legítimos para vocês, mas para nós que nunca fomos nem ouvidos nem cheirados e temos de aceitar o que vocês resolvem para nós e até o que vocês pensam por nós. Então, porque aquele que condena um homem à fome e a à miséria tem um papel na mão, isso se torna menos imoral, se torna certo de alguma forma. Vocês vem nos dizer verdades. Que verdade é essa que nos humilha, nos diminui, nos transforma em nada, como pode ser isso verdade para nós? Para mim vocês são a encarnação da mentira e da morte. Mas, assim mesmo, é nossa prática que possam falar em sua defesa. Contudo, falem em sua defesa e não para nos atacar, porque lhe faço calar a boca outra vez, aqui não temos necessidade das palhaçadas de sua justiça, que arma grandes pantomimas para mascarar o que toda gente já sabe que fará: punir o pobre e premiar o rico. (RIBEIRO, 2014, p.550).
De mais a mais, Alice é alguém que não se adequa perfeitamente às estratificações (organismo, significância e subjetivação), estas que articulam, normatizam e categorizam os seres em instituições como escola, família, exército e profissão (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.25), fundamentados em um “regime de verdade”14 vigente (FOUCAULT, 2015, p.52). Por isso, Alice é designada por alguns moradores da Ocupação por certa loucura, delinquência e vagabundagem, seja na convocação das crianças – Ó HEMON15 DOS TRÓPICOS E DA CONTEMPORANEIDADE! – em “Por “verdade”, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e funcionamento dos enunciados. A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que produzem e apoiam, e os efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. Regime da verdade (FOUCAULT, 2015, p.53). 15 Hemon, filho de Creonte e a quem Antígona foi prometida. Eis o seu discurso: “Caro pai, dos deuses nos vem a razão, bem mais valioso que tudo quanto há. Que não falas sabiamente, eu não poderia nem saberia dize-lo. Contudo, também o outros poderia ocorrer algo acertado. Como teu filho, cabeme ver pra teu bem tudo o que se diz, faz ou murmura. Tua imagem intimida o homem do povo que não se atreve a pronunciar palavras que não te agradariam. Eu, no entanto, ouço, às escondidas, como a cidade lamenta a sorte desta jovem, de todas mulheres a menos merece morte aviltante por ação inquestionavelmente bela como a de não consentir que irmão tombado em combate sumisse insepulto, exposto à voracidade das aves e dos cães. Não seria ela, antes, merecedora de recompensa em ouro? Este obscuro rumor emerge no silêncio. Para mim, meu pai, nada é mais precioso que tua ventura. Haverá para os filhos tesouro maior que o brilho dos pais; para um pai, tesouro maior que o brilho dos filhos? Não carregues em ti só uma morada na verdade: o que tu dizes, nada mais que isso. Quem julga deter saber exclusivo, possuir língua e mente estranhas aos demais, nesse, se o abres, verás o vazio. Para o homem, ainda que seja sábio, aprender continuamente e ser flexível não é vergonhoso. 14
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torno de si, e cujo sucesso dá-se porque a consideram não-criança, não-adulta ou adulta-criança, por “falar coisas sem sentido” e por seus “perdidos” pela Lapa, conhecido bairro boêmio do Rio de Janeiro, pulando o muro da estação de trem ou pedindo carona a motoristas de ônibus usando-se da retórica da fome e da extrema pobreza. Evocando, desta maneira, uma sorte de culpas, compadecimentos; e igualmente ódio e repulsa de terceiros. Entendemos que para Alice, assim como para outros que nela vivem, a cidade é por excelência o espaço da complexidade, uma vez que pode ter os mais variados sentidos; podendo ser “ameaçadora, licenciosa, perturbadora e perigosa” e “excitante e acolhedora” (SIMÕES; VEIGA, 2016, p.11). Ou seja, a cidade não pode ser reduzida aos discursos sobre solidão, massificação e despersonalização; ou secularização, individualização e desorganização social como defendem os teóricos da “cultura urbana” (CASTELL, 2006, p.131). Como diria Jonathan Raban (1974) citado por Harvey (2012), a cidade é "labirinto, enciclopédia, empório, teatro, (...) o lugar em que fato e imaginação simplesmente precisam se fundir” (p.17). Isso porque, a vida citadina propicia a “existência de grupos, redes, sistemas de troca, pontos de encontro, instituições, arranjos, trajetos e muitas outras mediações” (MAGNANI, 2002, p.12), nas quais os indivíduos podem ser “empreendedores sociais” na manipulação de regras, normas e procedimentos em seu benefício próprio (BOISSEVAIN, 2010). Não à toa é possível observar a trapaça, a esperteza e a malandragem enquanto elementos de arquétipos sociais (DAMATTA, 1997) – dos “excluídos”, “desterrados”, “vulneráveis”, “precarizados” e “abandonados” – no desenvolvimento de estratégias diante do alijamento de políticas públicas e do mercado de trabalho; “das trocas socialmente consagradas” (CASTEL, 1998, p.23) e do capital econômico e/ou do capital social, cultural e simbólico (BOURDIEU, 2015). O que lembra o romance “Clara dos Anjos” de Lima Barreto no qual são retratados tipos citadinos como Cassi Jones, o “deflorar de moças”, e sua coorte formada Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo (BARRETO, 2012), que vivem de golpes e furtos em trens e bondes pela cidade do Rio de Janeiro.
Observa que, nas torrentes de inverno, as árvores que cedem salvam os ramos, enquanto as que resistem sucumbem, arrancadas as raízes. Do nauta que firma absolutamente o pé e não arreda um passo, o barco vira e a viagem termina com o casco ao vento. Modera-te. Abranda a ira. Se há algum juízo em mim, embora jovem, declaro que nada supera o homem que, por natureza, é dotado de saber. Não sendo assim – como frequência não o é – convém estar atento ao que de bom se diz” (SÓFOCLES, 1999, pp.50-51).
43 Figura 7. Frevo nos Arcos da Lapa; Heitor dos Prazeres; 1958. Rasura 7. Alice em mais um dos seus “perdidos” pela Lapa.
Alice afirma ter estudado até a 4ª série do Ensino Fundamental e que adorava matemática. Acrescenta, que por ser ansiosa e impaciente, não parava quieta e respondia as inquirições professorais quando nem sequer era solicitada. Dentre as predileções profissionais, Alice gostaria ter sido bancária ou jogadora de futebol, mas por ter sido feita nas violências afetivas, ou nos afetos violentos – visto que o amor e a violência compartilham o mesmo lugar, ou como diria Machado de Assis em Dom Casmurro: “os instantes do Diabo intercalavam-se os minutos de Deus” (1997 [1899], p.217) – Alice cometeu “uns vacilos por aí” e a imaginação morreu... de realidades outras, duríssimas. Uma cicatriz em sua cabeça sumariza bem essas histórias de audácia e valentia; de fazer o rigor da vida no confronto de sua carne com tantas outras. A despeito da violência existente na Bahia, afirma que “aqui no Rio de Janeiro a vida não vale nada”. Diante de tamanha consternação, Alice sentiu-se enganada por acreditar que aqui encontraria as oportunidades que nunca teria no Nordeste. Chorou a falta das irmãs e sobrinhos, mas a única alternativa era ainda “lutar muito, muito, muito”. Assim, os tempos de outrora existiriam daqui em diante somente através das lembranças; como em Gonzaguinha em Mundo Novo, Vida Nova:
44 Mundo novo, vida nova/ Buscar um mundo novo, vida nova/ E ver, se dessa vez, faço um final feliz/ Deixar de lado/ Aquela velha estória/ O verso usado/ O canto antigo/ Vou dizer adeus/ Fazer de tudo e todos mera lembrança/ Deixar de ser só esperança/ E por minhas mãos, lutando, me superar/ Vou rasgar no tempo o meu próprio caminho/ E assim, abrir meu peito ao vento, me libertar/ De ser somente aquilo que se espera/ Em forma, jeito, luz e cor/ E vou, vou pegar um mundo novo, vida nova/ Vou pegar um mundo novo/ vida nova.
Já no trato com as crianças, o seu tom de voz estridente eleva-se surpreendentemente acima dos demais, às vezes produzindo ecos como de uma entidade fantasmagórica – juro juradinho! diriam as meninas que me imploram o maternar. O que prenuncia a sua chegada nos lugares, os pequenos prontamente no seu entorno, à espreita das suas já tão conhecidas galhofas – as gargalhadas dos pequenos me trazem uma conhecida música, Palhaço de Egberto Gismonti, e hoje tenho elas em minha já tamanha coleção de lembranças de certas alegrias infantis. Um dos costumes de Alice é praticamente todos os dias cantar “parabéns pra você” para a bebê de uma das famílias ocupantes. Ela assim o faz na demonstração do anseio pelo primeiro aniversário da criança e também por maravilhar-se com a animação de todos, principalmente da “aniversariante” que não se contém de tamanha alegria no colo da mãe. Sendo, portanto, um modo de trazer o extraordinário dos rituais e cerimoniais para assiduidade nas e das vidas cotidianas; de antecipar acontecimentos e fazer da memória, não somente dialética entre lembrança e esquecimento do passado (NORA, 1981 apud HOBSBAWM, 2014, p.13), mas futuro e expectativa. Bem como para elaborar o riso, a descontração e a felicidade nas adversidades da vida. Ah crianças...Alice gosta delas demais. O anseio de festejar o nascimento de mais um bebê na Ocupação transformou-se em grande preocupação quando Alice observara atentamente a frustração da mãe, Namara, em suas 39 semanas de gestação voltando do hospital sem atendimento. A despeito de serem mulheres negras e pobres, Namara e Alice distanciavam-se por valores morais e religiosos; uma considerada “fanática” e “fundamentalista” assim preconcebida por sua vestimenta larga e comprida, e a outra “imoral” e “promíscua” por suas camisas e bermudas masculinas. Características, portanto, que as fazem percebidas em vontades aparentemente inconciliáveis. Contudo, ambas são articuladas, que se sabem nas palavras, sejam sagradas e profanas. Que se assemelham a outras mulheres negras,
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aquele ¼ da população brasileira16 com os maiores índices analfabetismo, desemprego, violência doméstica e obstétrica, sem representatividade em espaço políticos, artísticos e midiáticos decisórios. Elas tornaram-se companheiras de luta diante do imperioso compromisso de Alice em salvar a vida de Namara e sua filha Sara. Em mais uma ida sem sucesso ao hospital, Alice decidiu voltar imediatamente com Namara, já que diante da proximidade na 40ª semana torna-se uma questão de “vida ou morte”. Quando lá chegaram, Alice constatou o descaso dos funcionários e decidiu fazer um escarcéu para chamar atenção de todos. Foram horas de corre-corre de seguranças e funcionários na tentativa de apaziguar a situação, que se mostraram ineficazes diante de uma Alice que prometeu não arredar o pé dali enquanto Namara não fosse encaminhada para a sala de parto. Para evitar maiores tumultos, os médicos decidiram atender Namara, que momentos depois deu a luz aquela que de agora em diante iria ser conhecida por ter sido salva por Alice. “Minha mãe me deixou no mundo sabendo a filha que tem. Eu sou assim”, retruca Alice quando “enquadrada” exemplarmente pelos dirigentes e coordenadores do Movimento. Que são os mesmos indivíduos, mas a autodenominação entre um ou outro faz-se para denotar relações de poder ora mais verticalizadas, na reafirmação de hierarquias e responsabilidades, ora mais horizontalizadas, para reiterar afetos e solidariedades. A saber, relações estruturais e antiestruturais respectivamente (TURNER, 1974). Ambas, entretanto, no fortalecimento da legitimidade (WEBER, 1991) daqueles que possuem a autoridade na realização dos atos de instituição; que acessam, enquanto classe de conhecimento, vis-à-vis a classe de reconhecimento, o “mistério do ministério”: de exercer legitimamente saberes e discursos do Movimento (BOURDIEU,1989). A coordenação de Duque de Caxias é composta por seis integrantes, e dentre eles os mais atuantes são: Noêmia, Gelson e Edivaldo. Todos são moradores da cidade e assemelham-se socioeconomicamente aos outros militantes e às famílias do projeto. Os coordenadores destacam-se por estarem, seja nos momentos cotidianos ou celebratórios, com suas camisetas vermelhas, propagando os valores do Movimento e orientando os ocupantes. De alguma forma, o coordenador “é uma pessoa que possui um mandato, uma comissão ou uma procuração (...) para mostrar e fazer valer os interesses de uma pessoa ou grupo”
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Para o aprofundamento na questão consulte o Dossiê Mulheres Negras: Retrato das mulheres Negras no Brasil publicado em 2013 pela Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA), em: http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_dossie_mulheres_negras.pdf
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(BOURDIEU, 1990, p.188). Contudo, diferentemente de um ministro, delegado ou parlamentar, o coordenador é porta-vozes de um grupo de “oprimidos”, “dominados” e “explorados”, que desconhecem sua condição, e assim se vale de uma pedagogia para devidamente conscientizá-los. Neste empreendimento de ensinar para aprender e desaprender certos valores, o coordenador inverte a lógica da representação, uma vez que se torna representante ao mesmo tempo em que constitui os representados. Conforme sentencia Bourdieu (1990): No caso limite dos grupos dominados, o ato de simbolização pelo qual se constitui o porta-voz, a constituição do movimento, é contemporâneo à constituição do grupo; o signo faz a coisa significada, o significante identifica-se a coisa significada, que não existia sem ele, que se reduz a ela. O significante não é apenas aquele que exprime e representa o grupo significante; ele é aquilo que declara que ele existe, que tem o poder de chamar à existência visível, mobilizando o grupo que ele significa. É o único que, em determinadas condições, usando o poder que lhe confere delegação, pode mobilizar o grupo: é a manifestação. Ao dizer: “Vou lhes mostrar que sou representativo, apresentando-lhes as pessoas que represento” (esse é o eterno debate sobre o número de manifestantes, o porta-voz manifesta a sua legitimidade tornando manifestos aqueles que lhe conferem a delegação. Mas ele tem esse poder de tomar manifestos os manifestantes porque ele é, de certa forma, o grupo que ele manifesta. (BOURDIEU, 1990, p.192).
A vida de Alice prescinde de estatutos e regimentos. Tem a inteireza enquanto competência daqueles que já viveram muito nesta vida e por isso não é dada tão facilmente às “desconstruções” de si, mesmo que o Movimento enfatize que são necessárias para construção da moradia e da cidade na qual ansiamos viver – aqui é preciso morar-e-resistir, já que a Ocupação não é um projeto de caridade, filantropia ou voluntariado, mas resultado histórico de lutas, resistências e enfrentamentos dos mais variados. Embora, licenciosa e inquebrantável. Alice não é inescrupulosa ou condescendente, e assim dessacraliza os procedimentos litúrgicos, aquelas fraseologias grandiloquentes do Movimento, quantas vezes julgar necessário. Foi através da convivência com ela que aprendi que a política é o pretexto da humanidade e não tem quem já não a faça para viver, desejar e nomear o mundo a sua maneira; está para além de algo meramente partidário, institucional e governamental, quando sim na própria sobrevivência. Em suma, a política é ter conhecimento de si nos outros, seja nos afetos ou nos desafetos, e através da qual estabelecemos verdades cujo corolário é o questionamento das mesmas e por isso rupturas e dissidências lhes são tão características. Ademais, através dela atribuímos lógica e racionalidade entre acontecimentos e com os quais fundamos temporalidades de esperança – ou
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desesperança. Seriam política e história correlatas? E não seriam ambas correlatas a própria vida? Dia desses Alice perguntou-me: “o que é nazista?” Foi eu explicar pra ela imediatamente dizer que dois políticos se encaixam nesta categoria: Michel Temer e Donald Trump, presidentes do Brasil e dos Estados Unidos respectivamente. Segundo ela, eles são “os verdadeiros terroristas” cujas políticas, sem dúvidas, transformaram os cidadãos em vítimas ou carrascos, substituíveis e intercambiáveis de certo modo (LITTELL, 2007, p.100-101) – e que nos levarão a um processo de desumanização e ao fim da política, como nos regimes totalitários (nazismo e stalinismo) (ARENDT, 1974). Não obstante, mesmo que tenhamos certa consciência, há ainda os que se surpreendem com os pronunciamentos conservadores de tais governantes. Segundo Poulantzas (2000, p.31), o Estado, em que se pesem os segredos de poder e burocráticos, jamais se esconde. As tácitas – espaço cênico na representação das classes dominantes – não são “conciliábulos de antessala” que se tornam conhecidos contra a vontade do Estado, quando sim revelados em prol da reorganização dos interesses destas mesmas classes. E por isso certos governantes não escondem os seus anseios, sobretudo os impopulares e cuja justificativa basilar é: “não há alternativa” (MÉSZÁROS, 2002, p.40). No dia 29 de novembro de 2016, Alice foi à Brasília em sua primeira manifestação convocada pelas Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo17 lutar contra 17
Criado em 05 setembro de 2015 em uma assembleia em Belo Horizonte, a Frente Brasil Popular faz a defesa de valores como: democracia, participação popular, direitos trabalhistas, soberania e interação nacionais através de um unidade entre sindicatos, pastorais, movimentos sociais e partidos políticos como: ABGLT, Abrasco, Adere, A Marighella, ANA, Associação de Advogados da União pela Democracia, ANPG, Ainda MG, ATRAF, Barão de Itararé, CBJP CEBES, CEBRAPAZ, CMP, CONAM, CONAQ, CONEN, Consulta Popular, CONTAG, CPT, CTB, CUT, ESTOPIM, FETRAF Brasil, Fora do Eixo, FNDC, Fórum Político Interreligios, FEAB, Federação dos Metalúrgicos do RS, Fórum 21, FUP, Grupo ACONTECE – Arte e Política LGBT, INESC, Igrejas, INMA, Juventude Revolução, Levante Popular da Juventude, Marcha Mundial das Mulheres, Mídia Ninja, MCP, MTD, MLT, MMC, MAB,MPA, MST, MOTU, MAM, MNLCN, MNRC, Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, Movimento das Pescadoras e Pescadores do Brasil, Movimento Fé Brasil, Nação Hip Hop Brasil, Pastorais Sociais, Rede de Médicas/os Populares, RENAP, Sindsesp SP, Sindieletro MG, SENGE-Rio, Sindute MG, UBES, UBM, UJS, UNEGRO, UNE, UNMP, Via campesina. Além de parlamentares do PT, PCdoB, PSB, PMDB, PCML, Refundação Comunista e PDT. Mais detalhes: http://www.frentebrasilpopular.org.br/conteudo/organizacoes-participantes/ (Acessado em 06/12/2016). Também criado 2015, em 9 de outubro, a Frente Povo Sem Medo defende a “radicalização da democracia” e contra a “ofensiva conservadora”, e da qual fazem parte entidades como: ANPG, Bloco de Resistência Socialista, Círculo Palmarino, Coletivo Construção, Coletivo Juntos, Coletivo Cordel, CUT, CTB, Fenet, Intersindical – Central da Classe Trabalhadora, JSOL, IPDM, MTST, MLB, Mídia Ninja, UBM, UNE, Ubes, Uneafro, Unegro, UJS, UJR, Rua – Juventude Anticapitalista, UJR, JSOL, MLB, Mídia Ninja, e Rede Emancipa de Educação Popular. Mais
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a PEC 241/55, aquela “da morte”, “do fim do mundo”, “do austericídio”, que pretende congelar os investimentos em saúde e educação por 20 anos. No ônibus fez amizade com secundaristas do movimento estudantil, aqueles mesmos que ocuparam as escolas públicas de ensino médio, distribuiu bolos de aipim com coco, pastéis de carne moída e sucos de manga – tudo preparado por ela. Em seguida tocou no pandeiro palavras de ordem: (i) “O povo unido é o povo forte, não teme a luta, não teme a morte. Avante, companheiro, que essa luta é minha e sua, unidos venceremos e a luta continua!”; (ii) Se morar é um direito, ocupar é um dever!”; (iii) Reforma Urbana Já! Estas palavras de ordem são da lógica “dos sem parcela”, daqueles que não são contados e nem sequer considerados humanos. E ela que funda a política, dado que opera a “contagem” por emissão sonora inteligível e a anuncia o justo de modo a superar o “barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta” (RANCIÈRE, 1996, p.35-36). Em suma, fazendo da política: (...) primeiramente o conflito em torno da existência de uma cena comum, em torno da existência e a qualidade daqueles que estão ali presentes. É preciso antes de mais nada estabelecer que a cena existe para o uso de um interlocutor que não a vê e que não tem razões para vê-la já que ela não existe. As partes não preexistem ao conflito, que elas nomeiam e no qual são contadas como partes. A "discussão" do dano não é uma troca — sequer violenta — entre parceiros constituídos. Ela diz respeito à própria situação de palavra e a seus atores. Não há política porque os homens, pelo privilégio da palavra, põem seus interesses em comum. Existe política porque aqueles que não têm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão, o mundo onde há algo "entre" eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada (IDIBEM, p.40).
A palavra de ordem faz surgir na efervescência coletiva certa espiritualidade, indispensável na passassem do incognoscível ao cognoscível; no chamamento, portanto, dos indivíduos em vistas da fundação do social em grupos, comunidades, assembleias e manifestações (DURKHEIM, 1996). De fazer com que os indivíduos reunidos sejam mais do que um ajuntamento circunstancial, quando sim classe, projeto e empresa na composição de deferimentos institucionais e corporativos, e de elementos cênicos, simbólicos e dramáticos. Em Brasília, observamos o quanto as
detalhes:http://www.mtst.org/noticias/carta-convocatoria-de-lancamento-da-frente-povo-sem-medo/ (Acessado em 06/12/2016).
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categorias Povo, País, Estado, Governo, Partido, Sindicato, Movimento Social, Universidade, Juventude, Trabalhador, Brasileiro, Reforma Urbana e Direito à Cidade eram as mais utilizadas pelos militantes. E graças ao deslizamento ontológico de serem adjetivadas – bom, mau, traidor, corrupto, desonesto, necessário, inexperiente, esperançoso, ignorante e/ou conservador – passaram da existência do nome para a existência da coisa nomeada (BOURDIEU, 1990, p.72). Ou seja, um ato performativo no qual a coisa se realizou através de uma espécie de magia e encantamento; a coisa como efeito da nomeação. Nesta apreensão, a palavra seria condição sine qua non da palavra e da não-palavra, e a nomeação o processo de revelação/encobrimento (aparecimento/desaparecimento) do esconderijo das coisas e da autoria, propriedade e responsabilidade de quem diz o quê, onde e quando (STRATHERN, 2014, p.348). A palavra de ordem pode ser compreendida também como um ato imanante, ou seja uma redundância entre ato e enunciação. Não é informação ou comunicação da informação; ela não representa o conteúdo, no mais o antecipa, retrocede, retarda, precipita, destaca, reúne ou recorta (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.29) “pela instantaneidade, por sua imediatidade, pela simultaneidade que a exprime e do efeito que ela produz (p.20). Sendo assim um agenciamento coletivo de enunciação, perpetrando transformações incorpóreas; acontecimentos que interferem e não se referem ao conteúdo das coisas e dotando de profundidade a pele, a dobra, a superfície ou a aparência (NIETZSCHE, 2012, p.15) – somente interferimos e não vemos propriamente o conteúdo das coisas porque estão elas em um continuum que escapa à divisão e isolamento da “noção de causa e efeito e de qualquer condicionalidade” (p.131). Conforme Deleuze e Guattari (2011), o agenciamento é:
[Em] um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos: um de conteúdo, o outro de expressão. Por um lado, ele é agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas sendo atribuídas aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem, de uma parte, lados territoriais ou reterritorializados que o estabilizam e, de outra parte, picos de territorialização que o arrebentam. Ninguém mais do que Kafka soube destacar e fazer funcionar conjuntamente esses eixos do agenciamento. De um lado, a máquina-barco, a máquina-hotel, a máquina-circo, máquina-castelo, a máquina-tribunal: cada uma com suas peças, engrenagens, seus processos, seus corpos enredados, encaixados, desarticulados (cf. a cabeça que fura o teto). Por outro lado, o regime de signos ou de enunciação: cada regime com suas transformações incorpóreas, seus atos, suas sentenças de morte e seus veredictos, seus processos, seu “direito” (DELEUZE; GUATARRI, p.2011, p.31).
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Em razão de não serem simplesmente um proferimento laudatório e taumatúrgico, a Reforma Urbana e o Direito à Cidade não se realizam a contento, sobretudo, porque opõem-se às outras palavras de ordem; àquelas oficiais que projetam imperativamente a “ordem distante” (moral, política, religiosa e econômica) na “ordem próxima” (imediata, pessoal e interpessoal) ocultando e dissimulando conflitos e rivalidades (LEFEBVRE, 2008, p.68). A Reforma Urbana e o Direito à Cidade, de acordo com Lefebvre (2008), urgem em vistas do preenchimento das lacunas do pensamento ativo, originariamente especulativo e contemplativo e dos “conhecimentos parcelares e das decupagens fragmentárias” (p.115); não somente enquanto linguagem, mas como elementos de outra ordem na qual forma, função e estrutura componham uma tríade indissociável e não dogmática. Assim, é necessário escaparmos de dogmas – formalismo, funcionalismo e estruturalismo – e criarmos estratégias revolucionárias de superação das relações capitalistas. Segundo Lefebvre (2008), a cidade é “projeção da sociedade sobre uma local” e, por conseguinte, sua conceituação deve evidenciá-la enquanto centro de decisões na exploração da sociedade e na aceleração dos processos de troca, acumulação de conhecimento e concentração de capitais (p. 63). Por isso, a classe operária tem uma “missão histórica” cujo objetivo é produzir uma sociedade urbana sem segregações geográficas e socioeconômicas. Deste modo, as lutas populares devem compor uma plataforma política utópica que vislumbre uma vida humana completamente diferente, e não apenas uma “humanização” do sistema capitalista, para qual o Direito à Cidade e a Reforma Urbana serão somente a institucionalização da luta nos moldes do arcabouço jurídico vigente e não real ruptura da ordem urbana capitalista. Então, as diligências reformistas ou revolucionárias devem ser argumentações e contraargumentações construídas a favor do tempo, tanto nas memórias e identidades, como nos atos e revoltas. Ademais, a palavra de ordem não deve ser mera publicidade (como se fosse somente algo panfletário, propagandístico e circunstancial), mas nome, peso, medida, aparência e reputação que damos as coisas, e pode, lidando sempre com a possibilidade do erro, da ilusão e da arbitrariedade, criar novas “coisas” (NIETZSCHE, 2011, p.90-91), uma vez que concebe uma realidade criadora18, e não
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A título de curiosidade algumas das palavras de ordem mais icônicas e antológicas das manifestações de Maio 68 na França: (1)"Abaixo a sociedade de consumo." (2) "Abaixo o realismo socialista. Viva o surrealismo." (3)"A ação não deve ser uma reação, mas uma criação." (4) “O agressor não é aquele que se revolta, mas aquele que reprime." (5) "Amem-se uns aos outros." (6) "O álcool mata. Tomem LSD." (7) "A anarquia sou eu." (8) "As armas da crítica passam pela crítica das
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como algo parado, estático, bem comportado e compartimentado (FREIRE,1987, p.33). Em suma, a palavra de ordem não é mera ideologia, alienação, superestrutura ou estranhamento, tampouco réplica, reprodução, representação ou reconhecimento do conteúdo, da coisa per se. Mais do algo performativo, do que constituir a coisa partir da fala, a palavra de ordem é algo ilocucionário porque tem a própria fala e a coisa cada qual enquanto materialidades – a um só tempo conteúdo e expressão – em uma relação de complementaridade, de correspondência e não meramente de dependência causal e reflexiva, porquanto a fala e a coisa “já têm suas qualidades próprias, suas ações, suas paixões, suas almas”; de modo que a fala é também corpo (DELEUZE;GUATTARI, 2011, p.28) Portanto, através das palavras de ordem, o movimento social constitui-se (i) em falar o que deve ser feito; (ii) em fazer o que se falou; e (iii) ter a fala enquanto um fazer de si. Assim, na tentativa de adequar texto,
armas." (9) "Parem o mundo, eu quero descer."(10) "A arte está morta. Nem Godard poderá impedir." (11) "A arte está morta, liberemos nossa vida cotidiana." (12) "Antes de escrever, aprenda a pensar." (13) "A barricada fecha a rua, mas abre a via." (14) "Ceder um pouco é capitular muito." (15) "Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês." (16) "A cultura é a inversão da vida." (17) "10 horas de prazer já." (18) "Proibido não colar cartazes." (19) "Abaixo do calçamento, está a praia." (20) "A economia está ferida, pois que morra!" (21) "A emancipação do homem será total ou não será." (22) "O estado é cada um de nós." (23) “A humanidade só será feliz quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último esquerdista.” (24) "A imaginação toma o poder." (25) "A insolência é a nova arma revolucionária." (26)"É proibido proibir." (27) "Eu tinha alguma coisa a dizer, mas não sei mais o quê." (28) "Eu gozo." (29) "Eu participo. Tu participas. Ele participa. Nós participamos. Vós participais. Eles lucram." (30) "Os jovens fazem amor, os velhos fazem gestos obscenos." (31) "A liberdade do outro estende a minha ao infinito." (32) "A mercadoria é o ópio do povo." (33) "As paredes têm ouvidos. Seus ouvidos têm paredes." (34) "Não mudem de empregadores, mudem o emprego da vida." (35) "Nós somos todos judeus alemães." (36) "A novidade é revolucionária, a verdade, também." (37) "Fim da liberdade aos inimigos da liberdade." (38) "O patrão precisa de ti, tu não precisas do patrão."(39) "Professores, vocês nos fazem envelhecer." (40) "Quanto mais eu faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução. Quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor." (41) "A poesia está na rua." (42) "A política se dá na rua." (43) "Os sindicatos são uns bordéis." (44) "O sonho é realidade." (45) "Só a verdade é revolucionária." (46) "Sejam realistas, exijam o impossível." (47) "Tudo é Dadá." (48) "Trabalhador: você tem 25 anos, mas seu sindicato é de outro século." (49) "Abolição da sociedade de classes." (50) "Abram as janelas do seu coração." (51) "A arte está morta, não consumamos o seu cadáver. " (52) "Não nos prendamos ao espetáculo da contestação, mas passemos à contestação do espetáculo. " (53) "Autogestão da vida cotidiana" (54) "A felicidade é uma ideia nova." (55) "Teremos um bom mestre desde que cada um seja o seu." (56) "Camaradas, o amor também se faz na Faculdade de Ciências." (57) "Ainda não acabou!" (58) "Consuma mais, viva menos." (59) "O discurso é contrarrevolucionário. " (60) "Escrevam por toda a parte!" (61) "Abraça o teu amor sem largar a tua arma." (62) "Enraiveçam-se!" (63) "Ser rico é se contentar com a pobreza?" (64) "Um homem não é estupido ou inteligente: ele é livre ou não é." (65) “Adoro escrever nas paredes." (66) "Decretado o estado de felicidade permanente." (67) "Milionários de todos os países, unam-se, o vento está mudando." (68) "Não tomem o elevador, tomem o poder." Mais detalhes em: http://g1.globo.com/Sites/Especiais/Noticias/0,,MUL463636-15530,00CONHECA+DAS+FRASES+MAIS+MARCANTES+DE+MAIO+DE.html (Acessado em 18/01/2018).
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contexto e subtexto e constituindo, desta feita, o passado, o presente e o futuro do Movimento. Figura 8. Convergence; Jackson Pollock; 1952. Rasura 8. Alice e outros manifestantes no meio das bombas e gás lacrimogênio.
Ainda em Brasília, Alice vestiu a camisa caracteristicamente vermelha do Mênêlêmê, cujo ícone central são dois braços com punhos cerrados sobre um telhado e iluminadas por um sol, e que além do nome contém o seguinte lema: “Ocupar, resistir para morar”. Enquanto força atrativa de afetos e desentendimentos, devido sobremaneira ao seu atabalhoado temperamento, Alice rivalizou com aquela que analogamente a é em outra ocupação do movimento; cada qual com seu jeito peculiar de organizar as falas em sentenças de peremptória desobediência. Enciumadas, as duas se implicavam a todo instante, disputando a afeição das coordenadoras mais prestigiosas. Por certo criançamento ou adolescência retardatária e remanescente – ainda não foram tomadas pela “exaustão, descrença e enregelamento” tão próprios do envelhecer (NIETZSCHE, 2012, p.9) e cujos discursos não são nenhum um pouco “bem rimadinhos, penteadinhos, perfumadinhos, lambidinhos” (BARRETO, 2011, p.26) – eram vistas por alguns como erráticas por estarem sem dúvidas em corpos já tão adultos e dos quais deve se esperar: (i) o oportuno silêncio; (ii) o comedimento dos gestos, (iii) o discernimento fundamentado por tão amadurecidas ideias; (iv) o envelhecimento; (v) e nada mais. Entretanto, a despeito da rivalidade, as duas
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combinaram que irão trabalhar juntas nas areias da Praia de Copacabana no aluguel de cadeiras e guarda-sóis. O que de modo algum fez cessar as agora nem um pouco sérias provocações, que mais a ver tinham com a inevitável diferenciação entre seres de demasiada semelhança. As duas são mulheres na luta pela moradia, pela reterritorialização. Contudo, mesmo que conquistem a moradia sonhada, continuarão desterritorializadas em relação a certas condutas sociais normatizantes. São mulheres de guerra, cuja “originalidade (...), excentricidade, aparece necessariamente sob uma forma negativa: estupidez, deformidade, loucura, ilegitimidade, usurpação, pecado (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.15). Uma aqui e a outra lá são aquelas que ocupam o lugar da anormalidade, como se a estigmatização de determinados comportamentos fosse necessária na composição de arquétipos e estereótipos, estes em prol da manutenção de grupos para os quais o “provocado, insultado, ultrajado, injuriado, desafiado, escarnecido, inferiorizado, humilhado, transformado em chacota” (GUIMARÃES, 2014, p.19 in MACHADO DE ASSIS) cumpre uma função social. Em tempo, Nietzsche (2012) descreve e adverte-nos sobre a distinção entre normais e loucos: O oposto do mundo dos loucos não é a verdade e a certeza, mas a universalidade e obrigatoriedade de uma crença, em suma, o que não é capricho no julgamento. E o maior trabalho dos homens até hoje foi entrar em acordo acerca de muitas coisas e submeter-se a uma lei da concordância – não importa se tais coisas são verdadeiras ou falsas. Esta é a disciplina da mente, que conservou humanidade; – mas os impulsos contrários são ainda tão poderosos, que não se pode, no fundo, falar confiadamente no futuro da humanidade. A imagem das coisas se move e se desloca ininterruptamente, e, a partir de agora, talvez com rapidez maior do que nunca; sem cessar, precisamente os espíritos mais seletos se revoltam contra tal obrigatoriedade – os investidores da verdade em primeiro lugar! Continuamente essa crença, enquanto crença de todos, produz uma náusea e uma nova ânsia nas mentes mais refinadas: e já o ritmo lento que ela requer para os processos espirituais, a imitação da tartaruga que aí e reconhecida como norma, transforma artistas e poetas em apóstatas – é nesses espíritos impacientes que irrompe um verdadeiro prazer de loucura, pois ela tem um ritmo alegre! Portanto, intelectos virtuosos são necessários, os inabaláveis metrônomos do espírito lento, para que os fiéis da grande crença geral se mantenham juntos e continuem a sua dança: é uma necessidade de primeira ordem que aí comanda e exige (NIETZSCHE, 2012, p.98).
Na Esplanada dos Ministérios, Alice ficou abismada com a repressão policial e chegou a enfrentá-la para defender um sindicalista agredido e preso. Segurou o seu colete até o final da manifestação procurando obstinadamente por seus conhecidos. Alice não conseguiu entender por que as pessoas eram agredidas e “ninguém fazia nada”. Além de serem espaços contestatórios, as manifestações são fatos sociais
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totais, que além da exterioridade, generalidade e coercitividade – regras, valores, condutas e procedimentos que fazem as representações coletivas se sobreporem às representações individuais (DURKHEIM, 1977, 1985, 1966) –, relacionam-se a um só tempo as dimensões: mentais, sociais, culturais, políticas, religiosas, jurídicas e econômicas (MAUSS, 2003, p.187). Contudo, além da comunhão, as manifestações podem promover experiências de embotamento e insensibilidade. Segundo Simmel (1969), diante da intensificação dos estímulos nervosos, a vida citadina faz com que os indivíduos desenvolvam uma base psicológica, em razão das impressões na cidade serem súbitas, rápidas, diferentes, descontínuas e justapostas em contraste àquelas demoradas e duradouras, típicas de vidas mais pacatas e interioranas. Assim, diante das mais variadas atividades, a consciência metropolitana racionaliza as relações sociais a partir de princípios numerários, mensuráveis e pecuniários, fundamentados por: precisão, exatidão, pontualidade e calculabilidade. Deste modo, o blasé desenvolve-se enquanto uma propriedade mental e fisiológica que enseja aversão, repulsa, indiferença, estranheza, reserva e autopreservação dos indivíduos em relação aos “perigos típicos da metrópole” (p.18). Como canta Marcos Valle em Capitão de Indústria: Eu às vezes fico a pensar/ Em outra vida ou lugar/ Estou cansado demais/ Eu não tenho tempo de ter/ O tempo livre de ser/ De nada ter que fazer/ É quando eu me encontro perdido/ Nas coisas que eu criei/ E eu não sei/ Eu não vejo além da fumaça/ O amor e as coisas livres, coloridas/ Nada poluída/ Ah, Eu acordo pra trabalhar/ Eu durmo pra trabalhar/ Eu corro pra trabalhar/ Eu não tenho tempo de ter/ O tempo livre de ser/ De nada ter que fazer/ Eu não vejo além da fumaça/ Que passa e polui o ar/ Eu nada sei/ Eu não vejo além disso tudo/ O amor e as coisas livres, coloridas/ Nada poluídas/ Eu acordo pra trabalhar/ Eu durmo pra trabalhar/ Eu corro pra trabalhar/ Eu não tenho tempo de ter/ O tempo livre de ser/ De nada ter que fazer/ É quando eu me encontro perdido/ Nas coisas que eu criei/ E eu não sei/ Eu não vejo além da fumaça/ O amor e as coisas livres, coloridas/ Nada poluídas/ Ah, Eu acordo pra trabalhar/ Eu durmo pra trabalhar/ Eu corro pra trabalhar
Ah, mas se isso tivesse ocorrido em Salvador... Alice e “o seu grupinho da rua” teriam, indubitavelmente!, livrado o manifestante dessa; “eles não deixavam ninguém pra trás”. Momentos depois, Alice quis ocupar o Senado Federal e ficou na linha de frente arremessando pedras e pedaços de madeira nos policiais enfileirados – foi quando pela primeira vez experimentou spray de pimenta e gás lacrimogênio. Enquanto corríamos a procura de esconderijos, tarefa nada fácil diante de uma Brasília sem becos e vielas – produto dos ideários modernistas de fazer cidades em zonas e ângulos retos – tentávamos dissuadi-la do enfrentamento. Queríamos dizer
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que como nas revoltas e insurreições da Primavera dos Povos em 1848 “o soldado não via mais “o povo”, mas rebeldes, agitadores, saqueadores, desagregadores, a escória da sociedade” (ENGELS, 2012, p.24). Então, caso ficasse seria triturada, vilipendiada e esculhambada pelos policiais. Já à noite, na volta para o Rio, ainda refletindo sobre os acontecimentos nada ordinários daquele cansativo dia, Alice contou histórias de Salvador e de que como perdeu vários amigos, lembrando-os carinhosamente no diminutivo. Todos foram assassinados pela Polícia Militar de Salvador cujo lema é: “Pai faz, mãe cria e catinga (polícia) mata” – como se ao pai atribuísse a vida biológica, a mãe a vida social e a polícia o enceramento de ambas; a solução para a violência e a criminalidade das grandes cidades. Algo que vai ao encontro dos ideais de limpeza étnica e embranquecimento propagado por nossas elites, cujo arquétipo foi perfeitamente retratado em “Viva o Povo Brasileiro”: Mas, tremo, meu estimadíssimo irmão, pois os sintomas que saltam à vista, são, deveras, perturbadores. Já não pode sair à rua, sossegado, principalmente, à noite. Já não se pode frequentar qualquer lugar público, dada a presença, cada vez mais opressiva, de uma malta de negros e pardos, desocupados e pedintes, gentinha da pior espécie, cuja linguagem e cuja aparência fazem, com que, sempre, pareçamos estar a transitar, pelo Pátio dos Milagres. A Abolição, como eu temia, revelou-se um grande mal. Não estavam, como estão, os negros, preparados, para a liberdade. Obtusos, broncos, analfabetos, pouco asseados, viciados mesmo, agora exercem, livremente, sua influência deletéria e corruptora, sobre os costumes e a raça. Não se procede a alegação de que são vagabundos e vadios, porque não há trabalho. Trabalho há, sempre houve, para quem quer e, para quem não quer, por indolência e fraqueza de caráter, nunca há. Mas, não se tomam, por incrível que pareça, as medidas para conter eficazmente, essa vadiagem. Quando despertarem, os governantes, será tarde demais, para delir tal chaga social e moral, que ameaça fazer desabar tudo o que se vem tentando, laboriosamente, construir, ao longo de séculos de dedicação e sofrimento (RIBEIRO, 2014, p,526).
Em um final de tarde qualquer, enquanto eu falava no celular com minha mãe sobre as últimas fofocas da família, Alice ficou alarmada quando me despedi dizendo que aqui temos hora certa para almoçar e jantar e por isso precisava encerrar o quanto antes a ligação. Logo em seguida perguntou-me: “você não tem vergonha de dizer que morar em um lugar que tem horário pra fazer as coisas?” Respondi negativamente e que até via como uma forma de deixar a minha família a par das condições de vida na Ocupação. Entretanto, de alguma maneira, compreendi através deste diálogo os intransponíveis de ser alguém que mora aqui a contento de desenvolver uma pesquisa, com toda exterioridade e estranhamento – inebriamento e maravilhamento, mesmo! – próprias às experiências etnográficas de primeira impressão (MAGNANI, 2009, p.150); e dela, cujas regras da Ocupação são análogas àquelas de instituições
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totais – colégios, penitenciárias, seminários confessionais e hospitais psiquiátricos (GOFFMAN, 1987). Contudo, a relação lá/campo/observação – aqui/escrita/análise, um momento etnográfico convencional (STRATHERN, 2014, p.305), não é o que empreendo rigorosamente. Em razão do engajamento político, o aqui é lugar no qual a escrita também se faz, e as atribuições, outrora tão próprias da imersão e emersão, não são subsequentes, senão intercaladas e intercambiáveis. Em que pese a militância, ainda é necessário ter o rigor científico como fundamental para a construção da visibilidade etnográfica (ótica, tátil, olfativa, auditiva e gustativa) “mediada, distanciada, diferenciada, reavaliada, instrumentalizada (...) [e] em todos os casos retrabalhada pela escrita” (LAPLANTINE, 2004, p.17), e que não se confunda com um olhar “controlado, educado, abalizado por referências ocidentalizantes que transforma o objeto em uma presa” (p.18). E independentemente das especificidades concernentes ao estudo de cada cultura, sociedade, comunidade e/ou agrupamento, a escrita e o trabalho de campo mobilizam cabeça e coração, e tudo aquilo que está para além da formação acadêmica como: sexo, idade, classe social, nacionalidade, família, escola, igreja e amizades (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.244). Logo, podemos pensar os pesquisadores a partir daquilo Nietzsche (2012) sentencia acerca dos filósofos: Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós (NIETZSCHE, 2012, p.12).
Alice é a minha “Doc” (WHITE, 2005). Aquela que além de mediadora e informante-chave, fornece-me proteção e aconselhamento sobretudo diante “das intempéries e imponderáveis próprias do campo” (WHITE, 2005 apud VALLADARES, 2007, p.153). Dentre os seus bordões, o “tu é de verdade” está em predileção; é o que diz quando, apesar das minhas “mãos delicadas”, ajudo nas atividades da Ocupação. Entretanto, sempre tenta evitar que eu faça algum esforço maior, como se meu corpo não soubesse ou suportasse ter as marcas do labor desmedido. Nessas situações espera de mim languidez, prostração ou esgotamento e nunca um corpo cuja esperteza maior seja a força. Mas-porém-contudo-todavia-entretanto, eu que não tenho sangue de barata, assim como ela feita também na teimosia, provo que posso ser mais do que o suficiente: vou lá, cavo, encho, empurro e carrego – o que não quer
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dizer que não sinta às vezes um misto de atordoamento e estremunhamento diante da quentura de tão esforçoso trabalho. Em um destes momentos de trato da terra, Alice descobriu um pé de cacau na terra; “conhece Ilhéus? Terra do Cacau. Isso aqui é ouro!”. Foi dia de mostrar as crianças a matéria-prima do chocolate e eu, sob um céu límpido e cetinoso, provar a fruta pela primeira vez. Gosto que até os dias de hoje se confunde com o perfume do sabão em pó e do amaciante das roupas estendidas nos varais. Desde o início de 2015 na Ocupação, Alice é a única que está tanto na escala da brigada e da cozinha coletiva. É notório o seu saber-prazer em preparar os alimentos. Temperos e condimentos fortes são as inscrições de si nas refeições; “a pimenta da baiana não pode faltar”. Às vezes tenta fugir do usual arroz-feijão-frangobatata-macarrão-e-salada, fazendo galinha com quiabo ou massa grelhada no forno. Contudo, o que gostaria mesmo era preparar acarajé, abará, caruru e vatapá. Em virtude da recitação dos respectivos ingredientes faz-se salivas transbordantes em nossos lábios. Seu cozinhar – algo ritualístico, uma interface entre o profano e o sagrado, entre a imanência e a transcendência – compõe-se em revelações, estas necessariamente em contrapartida às demais coisas que não podem ser de conhecimento de mais ninguém. Onde está também sua vaidade, celebridade e embevecimento. A relação entre a Alice e a cozinha fez-me recordar dois filmes, Como Água para Chocolate (1992) e A Festa de Babette (1987), nos quais as respectivas protagonistas, Tita e Babette, preparam as refeições com tamanha poesia, magia ou bruxaria. Na Ocupação, a cozinha coletiva, a despeito das acusações de ser injusta e assistencialista, funcionou em completude nas mãos de Alice quando realizou um almoço no qual todos os ocupantes reuniram-se em torno de uma mesa posta com os melhores copos, pratos, talhares e travessas. No preparo dos refeições e seleção dos alimentos é curioso observar que Alice tem no ovo ou nos legumes em excesso correlatamente a ausência ou insuficiência da carne. Seu descontentamento lembra o da minha avó materna, que diante das privações da vida tem no ovo a não-carne, um atestado da falta dignidade alimentar (BOLTANSKI,1979) e ou mesmo da ausência de um paladar mais distinto e refinado, daqueles que comem pelo prazer.
58 Figura 9.Sem-título; Djanira da Motta e Silva; 1959. Rasura 9. Alice preparando acarajé no terceiro aniversário da Ocupação Solano Trindade.
Espírito livre que é Alice tem dentro de si “um rebelde arbitrário, vulcânico anseio de viagem, de exílio, afastamento, esfriamento, enregelamento, sobriedade” (NIETZSCHE, 2000, p.9). Como uma romântica – cujo escapismo, pessimismo, subjetivismo e sentimentalismo compõe uma personagem localizada e deslocalizada de seu próprio tempo –, Alice olha para obstinadamente para o passado onde encontra os amores, glórias e adorações que já acredita ter dito por toda vida. Entretanto, com as mangas, ela cria mundos ao seu redor; tem nelas o contraponto aos seus azedumes e subsequentes distanciamentos Em tempo das docinhas-madurinhas caindo dos pés, ou quando delas faz sacolé, geladinho como se diz lá na Bahia, Alice é o lugar dos encontros mais demorados, nos quais lê atentamente os semblantes e dentre todos os sentimentos inimagináveis até, diz sempre aqueles que melhor nos definem. Insiste em metamorfosear-se em ouvidos para ter com juras, alegrias, confissões e arrependimentos de terceiros, ser contrabandista de histórias alheias para depois dizê-las suas (BOURCIER, in PRECIADO 2000, p.13). Ou como um indiano adepto do janismo19 que ininteligivelmente lamenta todas as maldades do
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Religião, que assim com o Budismo e o Hinduísmo, é uma das mais comuns e antigas da índia.
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mundo. Mesmo que eu diga que há momentos em que as palavras são como guardanapos na tentativa de secar um rio: simplesmente não dão conta. Do que come e do que diz e do que diz sobre o que come, para Alice “cada coisa ordinária é um elemento de estima” (BARROS, 2013, p.9). Comer, que além de necessidade primeira, classifica o mundo e o lugar que nele ocupamos; a um só tempo experiência e representação, categoria sensível e também inteligível. “Não é para comer é para pensar” – comer-história, comer-identidade, comer-ornamentação, comer-brincadeira, comer-acontecimento, comer-transformação – a máxima de um ex-professor quando explicava a Antropologia Estruturalista de Lévi-Strauss nunca fizera tanto sentido.
II. Figura 10. Eduardo Kingman; Lugar Natal; 1989. Rasura 10. Encontro do Solano Trindade com a Solano Trindade.
dentes-de-leão, cosmos-laranjas, hibiscos-vermelhos, trapoerabas, coqueiros, jambeiros, jaqueiras, amoreiras, aceloreiras, goiabeiras, cacaueiras, mangueiras, bananeiras, abacateiros, amendoeiras, pimenteiras, jabuticabeiras, maracujazeiros, sóis, tempestades, vendavais, risos, choros, discussões, ruídos, devaneios, brincadeiras, cores e gestos, dos protocolares aos nem um pouco, foi preciso inventar(iar) Alice – ubíqua, inexorável, fundamental, peremptória, determinante – e tudo o que restou. 2. SUMIÇO DO GELSON: A EMERGÊNCIA DA LUTA
I. Figura 11. Em sentido horário, Manuel Congo, Mariana Criola e Solano Trindade (Fonte: Google).
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No anseio de aprofundar os conhecimentos sobre movimentos sociais e políticas habitacionais, iniciei em 2014 a Especialização em Planejamento e Política Urbana no Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Foi lá, que além das teorias que me levaram a compreender a Questão Urbana no Brasil e em outras partes do mundo, onde conheci Gelson de Almeida, um dos coordenadores estaduais do MNLM. Gelson apresentava-se através de vocabulário e indumentária caracteristicamente militantes; e que o transformava, legitimamente, em um dos enunciadores oficiais do Movimento. Os seus apontamentos em sala de aula fundamentavam-se não somente em sua reconhecida experiência na luta pela Reforma Urbana e Direito à Cidade, bem como configuravam-se enquanto pronunciamentos que clamavam por um entendimento além das teorias, uma vez que o conhecimento deveria estar a serviço de melhorias sociais, seja para elaboração de políticas públicas ou no cumprimento de direitos sociais, e não “encastelado” na Universidade. Assim, na composição de sua performance, Gelson utilizava axiomas enquanto imanências da realidade, como se fossem verdades imprescindíveis para a compreensão dos acontecimentos, e de que modo as mesmas se encaixavam, ou não, na agenda programática do Movimento. Entretanto, depois de alguns módulos, Gelson ausentou-se das aulas e algumas semanas depois descobrimos, eu e outros colegas de turma, que era porque uma nova ocupação do Movimento estava em curso, a Ocupação Solano Trindade. Gelson estava, portanto, na elaboração de um momento dramático, que exigia sua dedicação integral, e por isso a necessidade de interromper estudos, trabalho e relacionamentos; de modo a ter compromentimento total com a luta. No Estado do Rio de Janeiro, o MNLM tem 4 ocupações: Manuel Congo e Maria Crioula, ambas no Centro do Rio de Janeiro, respectivamente Cinelândia e Gamboa; 9 de novembro, em Volta Redonda; Solano Trindade, em Duque de Caxias. Não é coincidência que Manuel Congo, Maria Crioula e Solano Trindade sejam negros. A escolha dos mesmos se deu tanto pela valorização enquanto personalidades históricas, já que suas respectivas biografias foram rejeitadas ou abreviadas pela historiografia oficial, como para criar uma relação de causalidade entre a luta dos negros em diferentes momentos da história do Brasil. Demonstrando, em suma, que há relações estruturais entre a luta pela moradia e a luta pela emancipação dos negros escravizados na defesa de suas formas de vida e expressões culturais e religiosas.
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Algo que por sua vez possibilita a criação de identidade e pertencimento entre os militantes do Movimento; negros em sua maioria. Trajetória de Solano Trindade Enquanto Manuel Congo e Mariana Crioula foram líderes de revoltas de escravizados e quilombolas na região fluminense em 1838, o Solano Trindade foi poeta e militante comunista ativo entre as décadas 40 e 70 do século XX. José Francisco Solano Trindade, filho da doceira Merenciana Maria de Jesus Trindade e do sapateiro Manoel Abílio Pompílio da Trindade, nasceu 24 de julho em 1908 no bairro de São José, em Recife, capital de Pernambuco (PERES, 2008, p.20). Nos anos 30, Solano Trindade participou ativamente da criação da Frente Negra Pernambucana e do Centro de Cultura Afro-Brasileiro, cujo programa consta a “criação de um teatro social, o combate ao racismo, curso de preparação profissional e reuniões culturais, cívicas e recreativas” (GREGÓRIO, 2008, p.7). A Fundação e o Centro tinham como objetivos ensejar estudos científicos e estabelecer uma missão civilizatória na inserção dos negros na sociedade brasileira, uma vez que estes eram marginalizados social e politicamente. Segundo Gregório (2008), o ano de 1938 representou um marco na vida de Solano Trindade devido ao rompimento com o Cristianismo (o Presbiterianismo), a mudança com a família para a Região Sudeste e o ingresso no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1942, Solano Trindade mudou para o Rio de Janeiro e em 1944 publicou o seu primeiro livro, Poemas de Uma Vida Simples, que assim como suas outras obras “enfatizam a exploração de classe e as conexões entre a classe operária e a opressão racial, através da identidade negra” (p.11). De acordo com Gregório (2008), nos anos 40 Solano Trindade tornou-se um dos mais renomados defensores da cultura negra, assim como Sebastião Rodrigues Alves e Abdias Nascimento, que também denunciavam as condições precárias em que viviam a maior parte da população negra no Brasil. Em 1944, morando em Duque de Caxias (Rua Itacolomy, nº966, atual Rua Cairbar Schutell), Solano Trindade foi indiciado sob alegação de fazer boletins subversivos (p.13). Em 1946, o Centro de Cultura Afro-Brasileiro em conjunto com o Comitê Democrático de Duque de Caxias e o subcomitê da Vila Guanabara organizaram festividades para arrecadação de fundos em vistas da construção de uma escola em Duque de Caxias, que resultou na criação da Escola do Povo e como apoio do Partido Comunista e o Partido Trabalhista (p.12). Já em 1950, Solano Trindade, Maria Margarida Trindade, sua esposa e como quem
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teve 3 filhos, e Édison Carneiro criaram o Teatro Popular Brasileiro, que segundo Gregório, Era um teatro folclórico, entendido por Solano Trindade como um espaço de valorização da arte popular. Pode-se relacionar a sua fundação à criação da Comissão Nacional de Folclore, instituição ligada ao Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), criado conforme orientação da convenção internacional, que definiu a existência da UNESCO, em 194620. O Teatro Popular Brasileiro atuaria como um dos elos de um movimento de revitalização do folclore promovido por essa Comissão, que teria como função: encorajar as atividades folclóricas, estabelecer o contato entre os folcloristas e despertar o amor pelo cultivo ao folclore21 (GREGÓRIO, 2008, p.15). Os ensaios do Teatro Popular Brasileiro eram realizados, no decorrer da semana, na rua da Constituição, na sede da ABI. No domingo, a festa acontecia na residência de Solano Trindade em Duque de Caxias, onde eram organizados eventos visando a angariar recursos para o financiamento dos espetáculos folclóricos22 (idem). Nos espetáculos folclóricos, eram apresentados: autos dramáticos, pantomimas, danças e cantos do “populário” brasileiro, como bumba meu boi, maracatu, candomblé, pregões, tipos populares do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, frevo, caboclinhas, pastoril e outros23 (idem). Ao observarmos os espaços onde Solano Trindade selecionava os seus artistas, podemos afirmar que, além do compromisso de classe social, o fundador do Teatro Popular Brasileiro desejava oferecer aos negros e mestiços a oportunidade de ingresso na instituição cultural, ou pelo menos essa oportunidade era oferecida aos que eram comprometidos com a cultura afro-brasileira (ibidem, p.16) É interessante destacar a função social que o teatro exercia: ao representar a dimensão social do seu cotidiano, o artista estava adquirindo e oferecendo ao seu grupo social uma nova dignidade, ou seja, estimulando a capacidade de criar, revitalizando a inteligência, a sensibilidade e a sociabilidade presentes nas classes populares. Através da representação da “cultura popular” era possível construir uma nova consciência, um elo de ligação entre o seu “lugar social” e a sociedade mais ampla” (idem).
Na década de 50, Solano excursionou com o TPB à Polônia para participar do Festival da Juventude Comunista. No cinema, atuou como ator nos filmes “O Santo Milagreiro”, “Agulha do Palheiro” e “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, além de participar dos documentários “Brasil Dança” e “Magia Verde”, este premiado no Festival de Cannes (PERES, 2008, p. 19). Já no final da década de 50, Solano mudou-se para cidade de Embu, em São Paulo e em seguida, em 1958, lançou o livro “Seis tempos de Poesia”. Em 1962, publicou novo livro de poemas, “Cantares do Meu 20
VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: O movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte: Fundação Getúlio Vargas, 1997.p. 94. 21 Ibid. p. 98 22 SILVA. Mayte Ferreira da. Mayte Ferreira da Silva. Depoimento sobre Solano Trindade [Julho 2003]. Entrevistadora Maria do Carmo Gregório. Rio de Janeiro. Entrevista concedida para a pesquisa. 23 FOLLIES Solano Trindade no. Diário Carioca, 19 de Ago. 1952. Disponível em acervo digitalizado do Centro Nacional do Folclore Acessado em 01 nov. 2004.
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Povo” e em 1963 e ofereceu uma série de cursos, palestras e conferências sobre a importância do folclore brasileiro em instituições de São Paulo como: Pontifícia Universidade
Católica
(PUC),
Instituto
Tecnológico
da
Aeronáutica
(ITA),
Universidade Mackenzie, Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero (GREGÓRIO, 2008, p. 17). Em 1973, o grupo Secos & Molhados, em disco homônimo, lançou um poema musicado de Solano Trindade, “Mulher Barriguda”24, e o que se seguiu com o poema “Tem Gente com Fome” 25 no álbum Secos & Molhados II de 1974. Neste mesmo ano Solano Trindade morreu em decorrência de uma pneumonia (DE SOUZA, 2008). Em 2008, ano em que Solano faria 100 ocorreu uma série de homenagens e comemorações na cidade de Embu e de Duque de Caxias, o que evidencia a importância de Solano Trindade para o movimento negro e para a valorização da cultura popular brasileira. Mênêlêmê De acordo com Almeida (2015), o Movimento Nacional de Luta pela Moradia foi criado em 1990 com o intuito de transformar a luta por moradia em uma pauta transversal na defesa de políticas públicas em saúde, educação, transporte, mobilidade, segurança e saneamento básico; já que tais políticas são necessárias para a devida realização da moradia digna e seu cumprimento enquanto direito social, humano e constitucional. Ademais, a complexidade da luta faz-se de modo nacional e continuado, de modo a evitar “bairrismos” e engajamentos meramente “emergenciais”. Por isso, as principais pautas do MLNM, o Direito à Moradia e o Direito à Cidade, além de inalienáveis são sobretudo indissociáveis. O Movimento tem representações em diversos estados como, “Amazônia, Pará, Acre, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo,
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Mulher barriguda que vai ter menino/ Qual o destino que ele vai ter?/ Que será ele quando crescer?/ Haverá guerra ainda?/ Tomara que não/ Mulher barriguda/ Tomara que não/ Haverá guerra ainda?/ Tomara que não/ Mulher barriguda/Tomara que não. 25 Trem sujo da Leopoldina/ Correndo correndo/ Parece dizer/ Tem gente com fome/ Tem gente com fome/ Tem gente com fome/ Estação de Caxias/ De novo a dizer/ De novo a correr/ Tem gente com fome/ Tem gente com fome/ Tem gente com fome/ Tantas caras tristes/ Querendo chegar/ Em algum destino/ Em algum lugar/ Só nas estações/ Quando vai parando/ Começa a dizer/ Se tem gente com fome/ Dá de comer/ Se tem gente com fome/ Dá de comer/ Se tem gente com fome/ Dá de comer/ Mas o freio de ar/ Todo autoritário/ Manda o trem calar/ Psiuuuuuuuu.
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Pernambuco, Rio de Janeiro, Tocantins, Paraná, Paraíba e Rio Grande do Sul” (MELLO, 2015, p. 78). De acordo com panfleto do MNLM (cf.ANEXO), a luta do Movimento é pela “inversão da lógica capitalista de planejamento, uso do solo e mercantilização de bens e serviços essenciais” e em prol “universalização dos direitos sociais, contribuindo para a construção de uma sociedade socialista, igualitária e democrática”. II. Figura 12. Oficina de bonecas Abayomi na confraternização de 1 ano da Ocupação Solano Trindade. (Foto: Lidiane Matos, 08/08/2015)
No dia 8 de agosto de 2015 fui à comemoração do 1º de aniversário da Ocupação Solano Trindade. Cheguei pela manhã, depois de um pouco mais de duas horas de viagem. Cumprimentei as pessoas e procurei por Gelson e Noêmia, coordenadores do MNLM, já que é “crucial ter apoio dos indivíduos-chave” para o desenvolvimento da pesquisa (WHYTE, 2005, p.301). Minutos depois, empenhada na confecção de bandeirinhas observei atentamente os que preparavam o almoço, instalavam os outros enfeites ou arrumavam os bancos. Os coordenadores, enquanto isso, concediam uma entrevista a um grupo de jornalistas e/ou documentaristas. Depois do almoço algumas pessoas continuaram na organização e outras, como eu, interagiam com as crianças. Dispomos alguns colchonetes em baixo de uma árvore, e além de criarem histórias criativas e inusitadas, elas desenhavam com giz de cera e faziam colagens com recortes de revistas. Logo depois ajudei a conduzi-las à uma oficina de bonecas Abayomi, oferecida por um grupo de militantes do movimento
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negro da Baixada Fluminense. Durante a oficina, elas explicaram o significado da palavra Abayomi, de origem iorubá e cujo significado é “encontro precioso”. As bonequinhas, feitas de retalhos das barras das roupas, eram um presente que as meninas aprisionadas nos navios negreiros recebiam de suas mães também aprisionadas. Eram uma forma de proteção e lembrança que as acompanhariam caso fossem separadas de suas mães, seja no navio ou no país destinatário. Figura 13. Bolo com a imagem de Solano Trindade na confraternização de 1 ano da Ocupação Solano Trindade. (Foto: Lidiane Matos, 08/08/2015)
Eu fiz uma bonequinha e decidi presentear minha mãe, uma mulher negra que se sentiu emocionalmente ligada àquelas histórias. Quando a oficina terminou já era final da tarde e lanchamos bolos e salgadinhos. Depois fomos para um espaço coberto, onde mais cedo alguns meninos estavam fazendo um graffiti com o rosto de Solano Trindade, e assistimos alguns vídeos de 8 de agosto de 2014, o primeiro dia em que o Movimento e as famílias ocuparam a terra. Algumas pessoas, sobretudo as que estavam neste primeiro dia, demonstraram-se emocionadas e algumas delas foram encorajadas a fazer depoimentos sobre a data. As crianças também participaram entoando cantos do movimento, além de frases como: “Se morar é um direito, ocupar é um dever”; “Solano Trindade Presente”; e “Reforma Urbana Já”. Foi um momento de risos e choros finalizado com o “Parabéns pra você” e o corte do bolo com as fotos de Solano Trindade, da pessoa e agora ocupação urbana em luta pela moradia. Depois de alguns insights, decide que além ter a Ocupação como objeto para a dissertação de mestrado, gostaria de tê-la também enquanto moradia.
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3. RECORTE E COLE: MNLM E PALAVRA DE ORDEM
MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA: É um MOVIMENTO SOCIAL DE ESQUERDA em defesa Da REFORMA URBANA e do DIREITO À CIDADE Não é ESTADO, GOVERNO, PARTIDO, PREFEITURA, SECRETÁRIA ou ONG Uma vez que “NÃO DÁ A CASA” Mas organiza a LUTA para que a moradia seja DIREITO SOCIAL
É NÃO MERCADORIA! É também contrário as VIOLÊNCIAS, PRECONCEITOS, DISCRIMINAÇÕES, INJUSTIÇAS e DESIGUALDADES SOCIOECONÔMICAS da sociedade CAPITALISTA e da COOPTAÇÃO do Movimento pelo GOVERNO. Em sua luta soma-se uma REDE DE
INTERMEDIÁRIOS E INTERLOCUTORES: SECRETARIAS, SUPERINTENDÊNCIAS, MINISTÉRIOS, ONGS, PARTIDOS, SINDICATOS e UNIVERSIDADE. Para o MNLM, as TERRAS PÚBLICAS OCIOSAS, sobretudo para o EQUACIOMENTO DO DÉFICIT HABITACIONAL, devem cumprir com a FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE como consta nos ARTIGOS 182 e 183 do CAPÍTULO DE POLÍTICA URBANA da
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988; regulamentados em 2003 pelo ESTATUTO DA CIDADE
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PALAVRA DE ORDEM: (De cunho DEMOCRÁTICO, PROGRESSISTA e/ou REVOLUCIONÁRIO, de modo a evitar sectarismos, reacionarismos e conservadorismos) Deve ser CULTURAL, DIALÓGICA e PROBLEMATIZADORA ou seja,
PRÁXIS AÇÃO e REFLEXÃO PALAVRA GERADORA e PRONÚNCIA DO MUNDO (NEM ATIVISMO, NEM VERBALISMO) Em suma, um processo de CONSCIENTIZAÇÃO (INTELIGIR E COMUNICAR O INTELIGIDO) De modo a superar a ALIENAÇÃO, MANIPULAÇÃO, SLOGANIZAÇÃO, DESESPERANÇA e ACABRUNHAMENTO através da DENÚNCIA, QUESTIONAMENTO e TRANSFORMAÇÃO do MUNDO, esta por sua vez fundamentada em SONHOS, UTOPIAS e PROJETOS; em uma
ÉTICA UNIVERSAL DO SER HUMANO (E NÃO DO LUCRO, DO MERCADO; HUMANISTA e não HUMANITARISTA) Que rompa como a relação OPRESSOR-OPRIMIDO e com processos de INVASÃO, ESPOLIAÇÃO e COLONIZAÇÃO. Fazendo o estar no mundo não simples ADERÊNCIA e ADAPTAÇÃO, mas INSERÇÃO e INTERVENÇÃO. Baseado nas obras Pedagogia do Oprimido (1987), Pedagogia da Autonomia (1997) e Pedagogia da Indignação 1997) de Paulo Freire.
4. THE RESEARCHER IS PRESENT26: UMA EGOETNOGRAFIA URBANA I. Porque reconhecemos apenas nossas fontes textuais, mas não o chão em que pisamos, os céus em constante mudança, montanhas e rios, rochas e árvores, as casas nas quais habitamos e as ferramentas que usamos, sem mencionar os inúmeros companheiros, tanto animais não humanos quanto outros seres humanos, com os quais e com quem compartilhamos nossas vidas? Eles estão
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O título é uma ironia com o nome da exposição The Artist is Present da artista performática Marina Abramovic no Museu de Arte Moderna de Nova York em 2010.
69 constantemente nos inspirando, nos desafiando, nos dizendo coisas (INGOLD, 2011, p.12). Aos realistas – Vocês, homens sóbrios, que se sentem defendidos contra a paixão e as fantasias e bem gostariam de transformar orgulho e ornamento o seu vazio, vocês chamam a si próprios de realistas e insinuam que, tal como lhes aparece o mundo, assim é ele realmente: apenas diante de vocês a realidade surge sem véu, e vocês próprios seriam talvez a melhor parte dela (...). Mas também vocês, no seu estado sem véu, não continuam seres altamente apaixonados e obscuros, se comparados aos peixes, e ainda muito semelhantes a um artista apaixonado? – o que é “realidade’ para um artista apaixonado? Vocês ainda levam e andam às voltas com as avaliações das coisas que tiveram origem nas paixões e amores dos séculos passados! Sua sobriedade é ainda impregnada de uma oculta e inextinguível embriaguez. O seu amor à “realidade”, por exemplo – como é velho, antiquíssimo! Em cada impressão, em cada sensação há um quê desse velho amor: e igualmente alguma fantasia, um preconceito, uma desrazão, uma insciência, um temor e alguma coisa mais contribuíram para tecê-la. Ali, aquela montanha! E aquela nuvem! O que é “real” nelas? Subtraiam-lhes a fantasmagoria e todo o humano acréscimo, caros sóbrios! Sim, se pudessem fazê-lo. Se pudessem olvidar sua procedência, seu passado, sua pré-escola – toda humanidade e animalidade! Não existe “realidade” para nós – tampouco para vocês, sóbrios –, estamos longe de ser tão diferentes como pensam, e talvez nossa boa vontade em ultrapassar a embriaguez seja tão respeitável quanto sua crença de que são incapazes de embriaguez (NIETZSCHE, 2012, p.90).
De longa data, compreendo o espaço enquanto uma espécie de inscrição no e do tempo. Onde ficam rastros, trajetórias e estabelecimentos e através do qual nos multiplicamos em outros indivíduos. Do que concluo que todos, animais, humanos, objetos, elementos orgânicos e inorgânicos materializam-se no mundo: estar é ser. E ocupar o mundo significa trabalhá-lo, aquilo através do qual o transformamos de acordo com as nossas necessidades históricas de subsistência. Contudo, o sentido de ocupar enquanto um lugar de resistência popular só descobri alguns anos depois. Ainda é sobre animais, humanos, objetos, elementos orgânicos e inorgânicos, mas é também sobre onde será e qual deve ser devidamente espaço de cada de uma dessas tantas coisas. Então, colocamo-nos uma questão sumária: quem diz ou quem tem o poder de dizer o lugar das coisas? Alguns por questões fundiárias e patrimoniais já possuem o espaço onde podem reproduzir dignamente suas vidas; o que já sabemos que não é algo dado a todos. Há os despossuídos, os despropriados, que conseguem somente atingir uma vida digna se lutarem por um espaço. Assim, no intuito de saber mais sobre aqueles que precisam lutar para viver que decidi pelos estudos sobre movimentos sociais na luta pela moradia digna. Movimentos Sociais. Sempre foi com certo fascínio que escutava esse termo. Escutava e via porque além das palavras de ordem, as imagens, essencialmente enunciativas e discursivas, de dedos e punhos em ristes, bocas desenhando gritos,
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marchas, faixas, cartazes, panfletos e bandeiras fizeram com que eu entendesse os movimentos sociais
enquanto um conjunto de
movimentos
– musicados,
coreografados ou cinematográficos – de corpos, objetos e palavras. Observá-los era colocar os meus pelos em arrepio, o coração acelerado e o estômago em frio. O que comprova como os acontecimentos sociais produzem em nós os mais diversos processos sensoriais, bioquímicos e metabólicos: uma espécie de encantamento corpóreo. Nas manifestações é comum que o tráfego de ônibus, automóveis, motocicletas e transeuntes seja interrompido, para que assim as vias públicas tomem a forma dos descontentamentos mais difusos; agigantados por um entendimento que naquele momento precisa ser único. A princípio, eu sabia que eram pessoas previamente organizadas, de diferentes setores, coletivos e agrupamentos, lutando pela criação e cumprimento de direito civis, sociais, humanos e/ou trabalhistas. Depois descobri que os movimentos sociais não se fazem só de manifestações e podem ser: rurais, urbanos, sindicais, estudantis, feministas, étnico-raciais, LGBTQIs, culturais, religiosos, ambientalistas, antiproibicionistas, antimanicomias e etc. Ademais, não situam-se somente na parte vermelha do espectro político; além dos libertários, progressistas e/ou revolucionários, existem os reacionários, conservadores e fundamentalistas. Ou mesmo aqueles que não estão em nenhum desses lados. Até porque nem todos têm como pressuposto o questionamento da ordem vigente, podendo ser um agrupamento de pessoas com uma característica comum apenas, seja até mesmo pelo consumo de produtos, aplicativos e redes sociais virtuais como Facebook, WhatsApp, Instagram e Youtube. Uma das siglas mais emblemáticas que aprendi inicialmente foi: MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Uma organização de trabalhadores rurais que lutava pela reforma agrária, por um pedaço de terra no qual pudessem morar e trabalhar. Foi quando compreendi que além da disputa de terras existia sobretudo uma disputa de discursos e representações entre os grupos hegemônicos e os contrahegemônicos; estes os “pobres”, trabalhadores”, “camponeses”, “proletários”, “explorados”, “expropriados”, dominados” e “desprivilegiados” e aqueles os “ricos”, “industriais”,
“empresários”,
“latifundiários”,
“exploradores”,
“expropriadores”,
“dominantes” e “privilegiados”. A grande mídia, um dos grupos hegemônicos, classificava
os
militantes
enquanto
“invasores”,
“bandidos”,
“baderneiros”,
“vagabundos”, “criminosos”, como se os militantes estivessem desrespeitando o direito de propriedade do latifundiário. Entretanto, quando tive a oportunidade de
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conhecer um dos militantes do MST descobri que no entendimento de um movimento de lutar por terra e/ou moradia, a expropriação e proletarização da classe trabalhadora foram fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo e por conseguinte para o enriquecimento da burguesia e dos grandes proprietários e especuladores de terras. Classes estas que historicamente já acumulam uma série de privilégios, dentre eles o de explorar o trabalhador, que é: privado dos meios de consumo, descodificado dos instrumentos de produção e desterritorializado do solo (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.299). Portanto, para o MST, lutar pela terra era lutar para existir, o que não é algo meramente superficial. O engajamento político é assim a crença que os incertos rumos da história podem nos levar a concretude, através da conscientização das condições de vida, de um outro futuro, de superação das estruturas do sistema político e econômico no qual vivemos. Sendo a luta, mesmo não possibilitando grandes transformações e revolucionamentos, fundamental para o desenvolvimento de valores e relações humanas mais equânimes e igualitárias. Ah, depois de tudo isso o que eu queria mesmo era descobrir e entender tudo aquilo que pudesse explicar e equacionar a situação da classe trabalhadora. Queria ser tomada por uma espécie de delírio machadiano e assim como Brás Cubas peregrinar em um curtíssimo espaço de tempo por todos os tempos históricos, de Gênesis até o Apocalipse. A história do homem e da terra tinham assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e imaginação, mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-las seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias -, desde essa cousa, que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e enxada e a pena, úmidas de suor, e ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à diferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Entoa o homem, flagelado e rebelde corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura – nada menos que a quimera da felicidade – ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão (ASSIS, 2014, p.54).
Anos depois e ainda perseguindo entendimentos mais qualificados acerca dos movimentos sociais, iniciei a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal
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do Rio de Janeiro (UFRJ) em meados de 2009. Além de me aprofundar na análise dos paradigmas teórico-metodológicos, acreditava que o ambiente de uma universidade pública propiciaria inserção em diferentes movimentos sociais, através, por exemplo, da extensão27, um dos pilares da universidade juntamente com o ensino e a pesquisa. Moradora de Campo Grande, bairro periférico da Zona Oeste do Rio de Janeiro: assim categorizei-me quando fui estudar no Centro da Cidade (Largo São Francisco, Uruguaiana). Tal posicionamento foi imediato, automático, uma vez que sempre era levada a justificar minhas ausências em eventos de socialização que se prologavam para além do horário das aulas. Era preciso evitar os horários de engarrafamento na Avenida Brasil ou mesmo aqueles em que trens e ônibus já não estariam mais disponíveis. Além disso, tinha que ter na mochila todos os objetos que pudessem improvisar uma casa: roupas, itens de higiene e marmitas. A mochila abarrotada fez de mim uma “tartaruga”, apelidada assim por alguns colegas de turma que diziam não entender porque eu carregava “a casa nas costas”. Saia às 4h30 de casa com casaco, calça comprida e tênis porque independentemente das estações climáticas, as madrugadas eram sempre mais frias. Chegava uma hora antes das aulas e encontrava outras “tartarugas”, que não coincidentemente eram também periféricas, vindas sobretudo da Zona Oeste ou da Baixada Fluminense. As meninas-de-chinelobolsa-tiracolo-e-cabelos-molhados moravam perto e chegavam horas depois. Eu, que não tinha as devidas marcações estéticas das curtas distâncias percorridas, periferizei-me mais uma vez e criei amizade com aqueles que diziam “eu também passo por isso”. Por uma, duas, três vezes e enfim cotidianamente tornei-me “aquela menina que mora longe”. Longe de uma vida propriamente citadina, dos negócios e oportunidades, dos bens, serviços e equipamentos urbanos e culturais. Para alguns 27
A extensão é o comprometimento social e político da Universidade com a sociedade, no qual há ou se pretende a difusão do conhecimento científico com interfaces de aprendizagem e reconhecimento de saberes e experiências locais, comunitárias e tradicionais. É comum que institutos, departamentos e programas de pós-graduação ofereçam: (i) assessoria técnica, jurídica, médica, psicológica e assistencial; (ii) formação política e pedagógica; e (iii) capacitação profissional às comunidades, coletivos e movimentos sociais. A extensão universitária também envolve a destinação de recursos e financiamento de projetos de autogestão, geração de renda e valorização do patrimônio material e imaterial de povos e etnias. Defendida como imprescindível para a formação cidadã e humana de estudantes, professores e funcionários, de modo que a educação alcance públicos de variadas naturezas, não somente acadêmica, e que seja mais do que a reprodução de cânones ou mercantilizada diante da lógica que apregoa que a Universidade deve ter somente foco na profissionalização e especialização da mão-de-obra para assim atender os critérios competitivos do mercado de trabalho formal.
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eu morava em uma espécie de não-cidade, nos vazios, nas ausências, nos preenchimentos efêmeros, inoportunos ou intermitentes. Ou na anti-cidade, diante do deliberado projeto ideológico de grupos dominantes na produção de desigualdades e segregações socioeconômicas. Conforme Bourdieu (1997) em suas reflexões sobre espaço social e espaço físico, (...) as surdas injunções e os chamados silenciosos à ordem das estruturas do espaço físico apropriado são uma das mediações através das quais as estruturas sociais se convertem progressivamente em estruturas mentais e em sistemas de preferências. Mais precisamente, a incorporação insensível das estruturas da ordem social realiza-se, sem dúvida, para uma parte importante, através da experiência prolongada e indefinidamente repetida das distâncias espaciais (das quais se afirmar distâncias sociais), e também, mais concretamente, através dos deslocamentos e dos movimentos do corpo que essas estruturas sociais convertidas em estruturas espaciais assim naturalizadas organizam e qualificam socialmente como ascensão ou declínio (“subir a Paris”), entrada (inclusão, cooptação e adoção) ou saída (exclusão, expulsão e excomunhão), aproximação e distanciamento em relação a um lugar central e valorizado (...) (BOURDIEU, 1997, p.162).
E continua: Como o espaço social encontra-se inscrito ao mesmo tempo nas estruturas mentais que são, por um lado, o produto da incorporação dessas estruturas, sob a forma mais sutil, a da violência simbólica como violência desapercebida: os espaços arquitetônicos, cujas injunções mudas dirigem-se diretamente ao corpo, obtendo dele, como a mesma segurança que a etiqueta das sociedades de corte, a reverencia, o respeito que nasce do distanciamento ou melhor, do estar longe, à distância respeitosa são, sem dúvida, os componentes mais importantes, em razão de sua indivisibilidade, da simbólica do – poder e dos efeitos completamente reais de poder simbólico” (IBIDEM, p.163).
Enfim, a cidade transformada em mercadoria, empreendimento empresarial estava cada vez mais distante de ser idealmente o espaço por excelência da vida pública democrática, da distribuição equânime de infraestrutura e políticas públicas. Duas, três ou quatro horas para fazer o trajeto casa/trabalho/casa, sair de madrugada e chegar tarde da noite andando em conduções lotadas e por ruas desertas e mal iluminadas. Assim, eu e outros tantos, acessamos o centro da cidade; para trabalhar, estudar, curar doenças e conseguir documentos. Todos os dias os seres periferizados vão justapor-se, imiscuir-se no centro; vão fazê-lo. Sempre adaptando o corpo a constranger-se com outros inúmeros e indistintos corpos. Corpos que aprendem a pressa, a produtividade, o cansaço. Enfim, mais uma questão sumária: Seria isso a questão urbana?
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Em contrapartida, na periferia desenvolvem-se estratégias de sobrevivência para satisfação de necessidades (CARDOSO, 2000, p.65). A relação de vizinhança e parentesco é algo considerado imprescindível para ter uma vida coletiva e comunitária, no qual as pessoas, usando-se de conjugalidades – oficiais ou não – e de hereditariedades – patrilinhagens e matrilinhagens, algumas difusas e ocasionais – podem reinvidicar com certa justeza: ajuda financeira, empréstimos de objetos, cuidados com as crianças, mediação em conflitos e auxílio nos reparos e reformas das casas. Tais relações correspondem “a um modo de vida gregário que se diferencia de um processo de individuação característico da modernidade”. Ou seja, são redes de sociabilidade primária (CASTEL, 1998), de intimidade e solidariedade, produzidas dialeticamente diante do isolamento dos grandes centros urbano; leia-se, devido a segregação socioespacial (PARK, 1979, p.34); que é: [Não] Um status quo inalterável, mas sim uma guerra social incessante na qual o Estado intervém regularmente em nome do “progresso”, do “embelezamento”, e da “justiça social para os pobres para redesenhar as fronteiras espaciais em prol de proprietários de terrenos, investidores estrangeiros, a elite com suas classes próprias e trabalhadores da classe média (DAVIS, 2006, p.105).
Já a autoconstrução configura-se como um desses elementos de sociabilidade entre moradores, principalmente para “bater laje” nos finas de semana ou feriados. Na periferia é comum que a maioria dos homens, e algumas mulheres também, já tenham trabalhado, mesmo que uma única vez, fazendo “picos” na construção civil como: pintores, pedreiros, gesseiros, ladrilheiros, marceneiros, eletricistas e encanadores. Conhecimentos que adquiriram construindo a sua própria casa e dos vizinhos, visto não possuírem condições financeiras para contratar empresas ou arquitetos. Os moradores organizam-se em mutirão, entre 10 e 20 pessoas, e escalonam-se em diferentes atividades: peneirar a terra e a areia, misturá-los com água, pedra e cimento, separá-los em baldes e aplainá-los na estrutura de ferro e tijolos. Para isso, a rua é fechada e as crianças aproveitam para brincar de pique-pega, pique-esconde, pique-bandeirinha, andarem de skate, patins, patinete e bicicleta ou jogarem vôlei, futebol e queimada. As mulheres ficam na cozinha preparando o almoço, que varia entre: feijoada, baião de dois, caldo verde, sopa de ervilha ou churrasco. Alimentação esta que “exprime uma representação mecanicista do corpo”, porquanto é preciso ter a força física necessária para fazê-lo funcionar por mais tempo possível (BOLTANSKI, p.158, 1979). Depois do trabalho realizado, o som é ligado em algum funk, pagode,
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forró ou sertanejo e as pessoas iniciam o consumo de bebidas alcoólicas, como cerveja e cachaça. A partir deste momento, o trabalho transformava-se em uma festa madrugada adentro; uma “festa no pedaço (MAGNANI, 1998). Ou seja, um espaço de sociabilidade entre a casa e a rua, que não é nem privado e nem público, na qual compõem-se os “chegados”, aqueles que estão entre parentes e estranhos (IDEM, 2003, p.87). A autoconstrução, portanto, é como uma ciência nômade, um conhecimento mais sensível, sensitivo e aproximativo, no qual as técnicas, problemáticas e não axiomáticas ou teoremáticas meramente, são mais afetivas (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.27). Dentre as trocas de favores enumeradas, os milicianos são presença constante. No geral, são policiais e bombeiros militares na ativa ou aposentados. No entanto, é considerável a quantidade de jovens, homens desempregados em sua maioria arregimentados para fazer serviços de cobrança, instalação de TV fechada e internet e até mesmo de ameaças e justiçamentos. Os milicianos compõem redes de prestígio e influência e usam-na em prol do aparelhamento de serviços públicos e de atividades culturais tradicionais (como a distribuição de doces no dia de São Cosme e Damião, por exemplo), em vistas do reavivamento de laços comunitários e do poder costumeiramente exercido. Através de tais redes, os milicianos prestam segurança e por isso a legitimidade que possuem não é de todo modo contestada porque são os que afastavam os “bandidos” “drogados”, “delinquentes” e “vagabundos” que podem “acabar com a nossa paz”. Por sua vez, são considerados agentes legítimos no estabelecimento de certo direito penal e consuetudinário, utilizando-se de práticas vexatórias e expiatórias na elaboração de uma solidariedade mecânica que eleva a dimensão coletiva em detrimento da dimensão individual (DURKHEIM,1989). Isso nos levaria a concluir que o Estado não é presente na periferia. Contudo tal afirmação é falaciosa, já que próprio Estado fundamenta-se por diferentes relações de poder de acordo também diferentes processos de territorialização que engendra (DELEUZE; GUATTARI, 2010). A periferia, em suma, não é uma terra indivisível, atrasada, incivilizada, mas uma organização familiar, fundiária e residencial baseada em relações próprias do sistema político e econômico vigentes (p.194). Em tempo, os milicianos performem a presença do Estado-ausente através das redes de vizinhança e parentesco. Exercem o poder, autoritário e paternalista, imiscuído em afetos e amizades por serem aqueles que conhecemos de crianças. São filhos da “Dona Maria”
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ou do “Seu Antônio” aqueles que transferem carisma e respeitabilidade aos seus descendentes nas relações de poder futuramente estabelecidas. Por isso mesmo a polarização nós X milicianos é contestável, uma vez que com eles também conjugamos pertencimentos de parentesco, de vizinhança e das memórias coletivas. Desde de tenra infância, ouço inúmeras reclamações acerca do que nos faltava em termos de saúde, transporte, educação e cultura. Contudo, o Conjunto Campinho sempre foi defendido como um lugar sem violência ou no qual cerceamentos, comuns em certas favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais, como toques de recolher e demonstração ostensiva de armas, não existiam. Não poderíamos ter certos serviços, mas as ligações clandestinas de luz, água e internet eram corriqueiras e até incentivas já que os moradores, pela intermitência em empregos, não podiam arcar com tais tarifas – para alguns moradores não era de todo ruim que o Estado “não chegasse” com suas leis, normas e padrões. De mais a mais, a periferia apresenta variações socioeconômicas entre seu contingente populacional, e que quando significativas mobilizam distinções sociais. De forma que dentro da periferia existam os “ricos” e os “pobres”, o que é reafirmado sobretudo em termos simbólicos, representacionais. Minha família era considerada “rica” porque morávamos em uma casa relativamente grande com dois andares e carro na garagem, eu e meus irmãos estudávamos em escolas particulares, comprávamos roupas e alimentos “de marca”, aos domingos almoçávamos “fora” no West Shopping e sempre éramos atentamente observados pelos vizinhos quando chegávamos com sacolas de compras; um modo de sermos distinguidos não só pela materialidade econômica, mas pela materialidade da própria representação que se fazia na cenografia ou dramatização de olhares curiosos e falas ao pé do ouvido. Ainda na alçada das distinções, era comum que algumas crianças utilizassem biscoitos e iogurtes, itens de luxo para alguns, – assim como também eram: sabão em pó, amaciante, detergente, desinfetante, sabonete, escova e pasta de dentes, shampoo, condicionador, desodorante, papel higiênico, toalhas de banho, lençóis, edredons, casacos e tênis – como objetos de ostentação e eram incentivados por seus próprios pais a comerem na calçada entre as brincadeiras como uma forma de superiorizar-se às outras consideradas mais pobres. Algo semelhante também acontecia quando éramos levados a visitar suas casas através da cozinha para comtemplar armários e geladeiras abarrotados pelas “compras do mês”. Práticas que minha mãe nunca permitiu que fizéssemos porque, por ser ela essa figura cuja
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empresa era contestar a fingimento, ou a fachada (GOFFMAN, 2011), daqueles que acentuavam somente os prós de se morar no Conjunto Campinho. Tendo indo lá morar a contragosto ainda criança, minha mãe, uma mulher negra – “que-isso-você-não-negra-é-morena-moreninha-mulata-mulatinha” – sempre fez viver em mim e meus irmãos sonhos e perspectivas de futuro. Vários foram os elementos utilizados para que nos distinguíssemos dos outros, sem contudo humilhar terceiros, dentre eles os itens de comida e de higiene. Se para os vizinhos eram itens de sobrevivência para nós teriam que ser de distinção social. Ir ao supermercado Guanabara portando folheto de promoções e calculadora era coisa de pessoas pobres, e nós não tínhamos a menor necessidade de fazê-lo. As compras, pretensiosamente despretensiosas, eram feitas de modo que escolhíamos primeiro os biscoitos, iogurtes e guloseimas, para em seguida pensarmos no arroz, feijão e carne. O mesmo dava-se com as roupas. Até usávamos roupas de loja de departamento como C&A, Leader, Renner, Riachuelo, SuperLar e Lojas Americanas, mas eram sempre inferiorizados diante das roupas da Nike, Adidas, Ellus, Levi’s, Colcci, Vide Bula, Coca-Cola, cujas respectivas logomarcas deveriam ser visíveis em espantas e etiquetas.
LISTA DE COMPRAS COMO MARCA DE DISTINÇÃO SOCIAL 1. ARROZ: TIO JOÃO 2. FEIJÃO: COMBRASIL 3. MACARRÃO: PIRAQUÊ 4. CONGELADOS: SADIA; PERDIGÃO 5. SAL: CISNE 6. AÇUCAR: UNIÃO 7. PÃO: PLUS VITA 8. MANTEIGA: ITAMPÉ 9. MARGARINA: QUALI 10. BISCOITO: BAUDUCCO; PIRAQUÊ 11. LEITE: NINHO 12. ACHOCOLATADO: NESCAU 13. FARINHA DE TRIGO: DONA BENTA 14. SUCRILHOS: KELLOGS
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15. SOBREMESA: GELATINA ROYAL E LEITE MOÇA 16. REFRIGERANTE: COCA-COLA; GUARANÁ ANTARTICA 17. KETCHUP/MOSTARDA/MAIONESE: HELLMAN’S 18. EXTRATO E MOLHO DE TOMATE: POMAROLA 19. SHAMPOO, CONDICIONAR E SABONETE: DOVE; ELSEVÉ 20. PASTA DE DENTES: COLGATE 21. DETERGENTE: LIMPOL 22. DESINFETANTE/DESENGORDORANTE: VEJA 23. SABÃO EM PÓ: OMO 24. AMACIANTE: COMFORT 25. PAPEL HIGIÊNICO: NEVE
Minha mãe tinha uma certa obsessão por adquirir certos produtos de “marca” e observava o mesmo na casa de vizinhos e parentes para auferir se porventura compartilham os mesmos hábitos de consumo e, portanto, o mesmo “gosto”. O gosto é uma disposição adquirida para “diferenciar” e “apreciar”, de acordo com a afirmação de Kant, ou se preferirmos, para estabelecer ou marcar diferenças por uma operação de distinção que não é – ou não necessariamente – um conhecimento distinto no Leibniz, já que ela garante o reconhecimento (no sentido comum) do objeto em implicar o conhecimento dos traços distintivos que propriamente o definem. Os esquemas do habitus, formas de classificação originárias, devem sua eficácia própria ao fato de funcionarem aquém da consciência e do discurso, portanto, fora das tomadas do exame e do controle voluntário: orientando praticamente as práticas, eles dissimulam o que seria designada, erroneamente, como valores nos gestos mais automáticos ou nas técnicas do corpo, na aparência, mais insignificantes, por exemplo, habilidades manuais ou maneiras de andar, sentar-se, assoar-se e posicionar a boca para comer ou falar; além disso, envolvem os princípios mais fundamentais da construção e avaliação do mundo social, ou seja, aqueles que exprimem mais diretamente a divisão do trabalho (entre as classes, as faixas etárias e os sexos) ou a divisão do trabalho de dominação, em divisões dos corpos e das relações com o corpo que pedem de empréstimo mais de um traço, como que para lhe dar as aparências de natural, à divisão sexual do trabalho e à do divisão trabalho sexual. Controle prático das distribuições que permite sentir ou pressentir o que tem possibilidade de advir ou não e, indissoluvelmente, de convir ou não ao indivíduo que ocupa determinada posição no espaço social, o gosto, ao funcionar como uma espécie de sentido de orientação social (sense of one’s place), orienta os ocupantes de determinada posição no espaço social para as posições sociais ajustadas a suas propriedades para as práticas ou bens que convêm aos ocupantes desse posição, que lhes “ficam bem”. Ele implica uma antecipação prática do que, provavelmente, será no sentido e o valor social da prática ou bem escolhido, considerando sua distribuição no espaço social, assim como o conhecimento prático que os outros agentes têm da correspondência entre bens e grupos (BOURDIEU, 2006, p.434).
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Minha mãe fazia questão que não assistíssemos Globo, SBT, Band ou Record, canais abertos de maneira geral, e por isso fomos praticamente a primeira família no Conjunto Campinho e adjacências a ter TV por assinatura. Uma forma de consumir pelo entretenimento outras formas de viver para além: de casarmos com os moradores locais, termos filhos antes dos vinte anos, construirmos uma casa no seu quintal e trabalharmos em padarias, sacolões e mercadinhos ou de manicure, cabelereira, balconista, entregador, cobrador ou motorista de van. Segundo ela, tínhamos que querer os estudos, a Universidade e nada mais. A nossa salvação era sair dali onde individualidades autônomas não eram possíveis, sobretudo diante de relações familiares, religiosas e comunitárias que nos aprisionavam em fofocas, picuinhas e em tomar conta da vida alheia – como fazem aquelas icônicas figuras sentadas no portão a qualquer hora do dia; donas das tragédias, adultérios, incestos, “pederastias” enquanto histórias daqueles, que agora com a vida na boca do povo, escolhiam a culpa, a resignação, o tolhimento ou mesmo a fuga. Era, portanto, uma forma de sair do provincianismo para o cosmopolismo. De acordo com Bourdieu (1997), O bairro chique, como um clube baseado na exclusão ativa de pessoas indesejáveis consagra simbolicamente cada um de seus habitantes, permitindo lhe participar do capital acumulado pelo conjunto dos residentes: ao contrário, o bairro estigmatizado degrada simbolicamente os que o habitam, e que, em troca, o degradam simbolicamente; porquanto, estando privados de todos os trunfos necessários para participar dos diferentes jogos sociais, eles não têm em comum senão comum excomunhão. A reunião num mesmo lugar de uma população homogênea na despossessão tem também como efeito redobrar a despossessão, principalmente em matéria de cultura e de prática cultural: as pressões exercidas, em escala da classe ou do estabelecimento escolar ou em escala do conjunto habitacional pelos mais carentes ou os mais afastados das exigências constitutivas da existência “normal” produzem em efeito de atração, para baixo, portanto de um nivelamento, e não deixam outra saída que a fuga (na maioria das vezes interdita pela faltas de recursos) para outros lugares (BOURDIEU, 1997, p.166).
Contudo, alguns anos mais tarde foram os engajamentos na Universidade que transformam a periferia, para mim, em algo identitário. Os encontros e desencontros com o movimento estudantil, sobretudo quando falávamos de moradia e mobilidade urbana, fizeram-me perceber que seguir os caminhos da luta política era inevitavelmente reafirmar os outros tantos que me levaram até ela. Era preciso falar enquanto moradora da periferia das especificidades de vivências desconhecidas por colegas e professores da Universidade como uma forma de disputar os sentidos da própria vida e sobrepujá-la, devido as inúmeras violências e dificuldades que a fazem, enquanto resistência. Por ter tido acesso à Universidade em um período de expansão
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e democratização do ensino superior no Brasil foi possível ver as realidades periferizadas, que prescindiam de arquétipos reducionistas e nem sempre estavam rigorosamente territorializadas em áreas ditas periféricas, evidenciarem-se ou transformarem-se em múltiplos sujeitos coletivos. A saber, correspondentes às muitas periferias existentes, seja em termos escalares (locais, regionais, nacionais e continentais) ou em matizes políticos subjacentes às representações de mundo possíveis. Em suma, foi na Universidade que descobri a possibilidade de assumir a pesquisa científica enquanto militância política e ter nos estudos dos movimentos sociais de luta pela moradia algo que contemplasse tal anseio. II.
No final da graduação em Ciências Sociais comecei a ter dúvidas se faria mestrado no IFCS. Estava de certo modo desmotivada em continuar na instituição, posto que não havia uma linha de pesquisa sobre os temas – movimentos sociais urbanos e políticas habitacionais – que queria estudar. A ideia, a princípio, era fazer pós-graduação em outro programa de sociologia e/ou antropologia ou mesmo ir para cursos em outras áreas de conhecimento. Assim, no intuito de ter uma opinião balizada fui buscar em colegas e professores algum aconselhamento resoluto. Se uns disseram que eu deveria seguir o meu coração; outros, caso eu optasse pela mudança de área, estaria desistindo das ciências sociais. Confesso que tal posicionamento pareceu-me um tanto quanto extremado, mas entendi a preocupação daqueles que somente queriam que no futuro eu não passasse por maiores complicações, sobretudo, quando dos concursos de docência. Isso porque, os editais têm exigido cada vez mais titularidade em áreas restritas, o que acho contraproducente como a formação dialógica e humanista defendida pela maioria dos cientistas sociais que conheço. Contudo, mesmo temerosa, decidi pelo mestrado em Planejamento Urbano e Regional, uma vez que através desta escolha senti-me plenamente confortável em desenvolver uma pesquisa sobre moradia e movimentos sociais. Antes do mestrado, na especialização, fiz uma monografia, cujo título “Estratégias Desenvolvimentistas e Políticas Habitacionais: Uma Análise sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida, abarcou o tema das políticas habitacionais e da agenda econômica vigente nos governos petistas (2003-2010). O trabalho foi breve, mas no qual já pude delinear temas e objetos a serem aprofundados no
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mestrado. Entretanto, no início do mestrado estava de tal maneira desnorteada – mesmo já tenho vislumbrado a pesquisa na Ocupação – haja vista ainda perseguir, inequivocamente, nos temas “novo desenvolvimentismo” e “financeirização do mercado imobiliário” um viés etnográfico. Não que tal empresa fosse impossível, mas o que queria mesmo era primeiro escolher o estudo de caso e depois destrinchar os temas possíveis. Isso porque, não queria subordinar a pesquisa ao levantamento bibliográfico, quando sim fazer deste um recurso flexível. Assim, algumas semanas depois, decidi que estudaria a Ocupação e solicitei a orientação de uma das antropólogas da instituição, a professora Soraya Silveira Simões. E antes mesmo de firmamos nosso vínculo orientadora-orientanda, Soraya indicou-me a leitura de “Movimentos Sociais Urbanos” de Carlos Nelson Ferreira Dos Santos. Este livro, considerado um clássico nas ciências sociais, foi resultado de uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS), e que consiste em uma pesquisa sobre a luta por moradia de associações de moradores da Gamboa e Brás de Pina em idos de 1960. Confesso, que enrolei, enrolei mesmo para terminar a leitura do livro em questão. Por mais que soubesse de sua importância, não consegui lê-lo, e consequentemente o delinear o projeto de qualificação. Foi neste momento que percebi o quão difícil seria conciliar a vida com o processo de escrita... Glório e inglório. Sem qualquer acanhamento começaremos a destrinchá-lo aqui na página 81. A grade curricular de 15 disciplinas (10 obrigatórias e 5 eletivas) e o fato de acordar todos os dias às 4 horas da manhã esgotavam-me emocional e fisicamente, por isso tive dificuldades de me engajar nas leituras, levantamentos e sistematização concernentes ao desenvolvimento da dissertação. Por conseguinte, sentia-me inútil, improdutiva e sem foco, posto que somente estudava e não tinha responsabilidades como filhos ou emprego. No intuito de tornar-me produtiva entrei em um transporte universitário para economizar horas em transporte público; bem como evitar o desconforto da lotação. Era um transporte que levava estudantes de Campo Grande até a Cidade Universitária, lá na Ilha do Fundão. Porém, como o passar das semanas, comecei a sentir certa inadequação, uma vez que viajava em companhia de jovens recémformados no Ensino Médio. Eles com 17 e eu com 25, mesmo que em nada quantitativamente distantes em tempo de vida, éramos ainda assim geracionalmente
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de mundos diferentes. A despeito das possíveis experiências em comum, sentia a todo instante que deveria estar em um emprego com salário e carteira assinada, valealimentação e plano de saúde. Ademais, o tratamento que o motorista dispensavanos fazia com que eu me sentisse como uma mulher adulta indevidamente brincando de escolinha. Era como se o prolongamento da vida acadêmica representasse o insucesso profissional e que a dedicação a ela me distanciasse de oportunidades mais vantajosas, sobretudo, as financeiramente. Ao final de 2 meses, decidi sair do transporte. E voltei ao meu trajeto, pegando ônibus até Coelho Neto, Metrô até Del Castilho e ônibus até do Fundão; e para voltar BRT até Madureira, trem até Campo Grande e van até o Conjunto Campinho. Neste mesmo período, entendi a seriedade e responsabilidade que o ofício de pesquisadora exigia-me e decidi encará-lo como um trabalho qualquer: extenuante e nem sempre recompensador. Eu cursava as disciplinas pela manhã e tinha as tardes livres; nas quais eu passava praticamente desmaiada em uma poltrona da FAU, que assim como o IPPUR funcionava no Prédio da Reitoria. Além do cansaço, acredito piamente que a sonolência que me acometia era a súplica de um corpo que só queria repousar depois do almoço no bandejão; sinônimo de proteínas e carboidratos em demasia, e de subsequentes crises de azia e mal-estar. Calma, sei que não parece que eu esteja falando do processo de escrita. Mas até aqui considerei crucial detalhar aquele conjunto de momentos que antecedem o engate perfeito das partículas microscópicas do corpo, como em um autômato, cuja função é nunca parar de escrever. Bem, sei que é uma ideia pueril porque, convenhamos, o processo da escrita não é maquínico. Se antes uma exterioridade, ele só se faz quando incorporado; isso mesmo, no próprio corpo e sujeito as sensibilidades próprias das interrupções e dos prosseguimentos do curso da vida. De certo modo, eu sabia que a escrita já se perfazia aqui dentro, na mente. Contudo, à medida que os pensamentos se avolumavam, exigiam também uma espécie de materialização: eles clamavam pelo papel. Assim, comecei a escrever o projeto de qualificação no meio dessa enchente, de ideias. Lembro-me que à época estava encantada como o livro O Estado, O Poder e O Socialismo, do filósofo grego e marxista Nicos Poulantzas. Então, comecei o texto escrevendo sobre a noção de tempo, espaço e movimento com base nos preceitos do autor. E em 7 de março de
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2016 enviei um memorial, um compilado despretensioso sobre os meus devaneios de pesquisa. Eis o seu primeiro parágrafo, O tempo. Racionalizado e compartimentalizado é assim que inevitavelmente o conhecemos e são as noções de causalidade, mensurabilidade e previsibilidade que ao fundamenta-lo nos permitem organizar e inteligibilizar ações, experiências e pensamentos. Memórias, narrativas e reminiscências são aquilo que no presente nos auxiliam na construção do passado, podendo ser uma experiência de pertencimento e/ou estranhamento aos espaços físicos e afetivos que as mesmas nos permitem ocupar. O futuro é também construído, algo mais expectacional, mas dependente das condições tangíveis e intangíveis previamente dadas para que possamos assim representá-lo; fundamentado em muitos acúmulos do passado decerto. Imagina-se que uma vida dominada por questões emergenciais e de sobrevivência seja somente uma sequência unilinear de dias corriqueiros. Mas muitas são também as contradições e antagonismos que oportunizam a construção material e/ou representacional de futuro minimamente diferente do estabelecido. Produtividade e calculabilidade são imperiosos em uma vida que precisa se adequar as exigências de uma sociedade capitalista; lutas e enfrentamentos o são também já que a vida nas grandes cidades guarda obstáculos e dificuldades em termos de sobrevivência mesmo. O tempo é formado por muitas e inúmeras narrativas porque está ele constantemente em disputa, não existe consenso e unanimidade sobre o presente, passado e futuro de indivíduos, grupos, coletivos e sociedades; o que é tempo e se todas as sociedades humanas operam por categoria igual e semelhante são questões que nem sempre conseguiremos responder. O transcorrer dos dias não se faz sem a territorialização de nossas vidas. Isso é uma exigência da reprodução da vida, mesmo quando a utilização do espaço uma coisa intermitente ou temporária. O espaço. Assim como o tempo é também um conceito polissêmico, são indissociáveis entre si, sendo senão necessário falar em espaço-tempo; isso porque a vida propriamente humana exige tanto uma matriz temporal como uma matriz espacial – o que pode diferir historicamente é como tais matrizes vão sendo reconfiguradas. Podemos também pensar nos inúmeros espaços que frequentamos e que nos frequentam, e principalmente naqueles, cuja complexidade é tamanha decerto. A moradia é um desses espaços nos quais se reproduzem a vida, não sendo somente um abrigo mas sobretudo onde, no geral, temos o primeiro contato com a socialização humana; onde somos constrangidos em papeis sociais e aprendemos as normas, condutas e comportamentos ditos adequados para nos portamos no mundo.
Confesso que hoje sinto certa irritação e vergonha pela forma como escrevia. Eu não gostaria de ter escrito assim, com tantas falhas ortográficas e gramáticas. Mas fiz o que me foi possível. Até porque a escrita é um processo de aperfeiçoamento; você até pode saber o começo, mas certamente nunca saberá o fim. Antes eu acreditava que escrever bem era uma dádiva e que eu não havia sido contemplada. Medo, frustração, insegurança e sofrimento foram comuns em meus momentos de escrita. Mas sabia que no mestrado precisava, de certo modo, superálos. Que a escrita era um só tempo trabalho intelectual e trabalho físico, como acredito ser grande parte dos trabalhos, e que precisava encará-lo sem temor.
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Até o momento de mudança para a Ocupação, a escrita era algo intermitente e desorganizado. Entretanto, quando cheguei lá percebi, que mesmo com as mínimas condições de habitabilidade, eu teria algo que na casa dos meus pais nunca tivera: privacidade, cadeira e escrivaninha. A vida na Ocupação ocupou-me de escrever. Foi lá que escrevi em um período de 4 meses as 95 páginas que compuseram o projeto de qualificação. Todavia, as constantes chuvas do mês de Janeiro tornaram meu quarto inabitável. Sempre que voltava dos finais de semana, nos quais visitava a minha família, sentia uma camada de mofo e umidade nos objetos. Então, em busca de um lugar mais saudável voltei para a casa dos meus pais. O ano de 2017 foi aquele no qual me dediquei integralmente a pesquisa e ao processo da escrita. Algumas semanas após a qualificação sistematizei um cronograma de leituras que incluía: O Anti-étipo e Mil Platos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Guerra Civil na França e Luta de Classes na Franca de Karl Marx. Neste momento eu não toquei no texto da dissertação e fiquei imersa nas leituras. O meu encanto por Gilles Deleuze e Guattari foi tão grande que ficava obcecadamente pensando em formas de incluí-los na dissertação. Semanas depois, voltei para o texto; confesso que estava como medo de encará-lo. Quando abri o documento percebi-me em um processo de estranhamento; de afastamento. Eu não me reconhecia mais em algumas ideias e nem mesmo na forma de escrever. Como vocês puderam perceber eu tenho uma fixação por parágrafos grandes, ponto e virgulas, advérbios de modo e adjetivação excessiva – com termos organizados em ordem de numeração silábica. O texto inicial estava impregnado de todas essas manias. Apesar da vergonha que sentia da minha escrita, não queria apagar ou mudar tudo de modo a descaracterizá-la. Assumo que se o fizesse, seria também como apagar-me. Então, decidi encarar o texto; e a mim. Aprendi que o texto está vivo, de modo de que nasce e morre constantemente. Estou no processo final de revisão, dia 24 de fevereiro de 2018. E sei que se mais tempo tivesse, mas eu o mudaria. Uma forma, portanto, de inventá-lo a todo instante, diante novas visões de mundo incorporadas. Por isso tudo vejo, leio e escuto está aqui. Não sei se sorte ou coincidência, sinto que elas todas couberam na escrita; dizendo muito sobre mim e sobre tantos outros.
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INTRODUÇÃO Alice: um indivíduo de uma sociedade. Assim como todos os outros, reproduz e transforma a sociedade em que vive (ELIAS, 1994, p.13). Aparentemente um raciocínio simplório, tautológico e reducionista, mas através do qual podemos observar algo relacional e processual. Deste modo, nesta dissertação, para além de uma abordagem exclusivamente estruturalista ou fenomenológica, compreenderemos os indivíduos a partir do conceito de habitus28 (BOURDIEU, 1990; 2015a; 2015b). Interessa-nos, portanto, não determinar quem nasceu primeiro, o indivíduo ou a sociedade, mas como a vida social permite, além das violências, dominações e constrangimentos, que desenvolvamos um repertório de estratégias (BOURDIEU, 2000, p.20) elaborado, sacramentado, bem-fundamentado e adequado as mais esperadas e inesperadas circunstâncias. Em que pese a importância das categorias dominantes-dominados, representantes-representados ou governantes-governados, elas não nos possibilita compreender satisfatoriamente a capacidade de invenção, improvisação e criatividade dos atores sociais envolvidos em nossa análise. Logo, Alice é o pretexto não só do detalhamento das trajetórias de vida de outros ocupantes, como também das relações entre MNLM, Estado e Universidade. Relações que explicaremos a contento nas próximas páginas. Nas linhas que se seguirão, as justificativas da escolha da temática – Reforma Urbana, Direito à Cidade, Movimentos Sociais Urbanos e políticas habitacionais – e do objeto – a Ocupação Solano Trindade do Movimento Nacional de Luta Pela Moradia – poderão ser compreendidos através de anseios pessoais e acadêmicos sub-repticiamente avulsos. Entretanto, isso não nos autoriza substituí-las por uma apresentação mais propositiva. Diversos são os estudos sobre a temática em que se insere esta pesquisa (BONDUKI, 1994; 2009; 2014a; 2014b, 2014c; CARDOSO; ARAGÃO, 2011, LAGO, 2000, LEITÃO, 2014; MARICATO, 2017, MACHADO, 2016;
“O habitus mantém com o mundo social que o produz uma autentica cumplicidade ontológica, origem de um conhecimento sem consciência, de uma intencionalidade sem intenção e de um domínio prático das regularidades do mundo que permite antecipar seu futuro, sem nem mesmo precisar colocar a questão nesses termos (BOURDIEU, 2000, p.24). “O habitus como social inscrito no corpo, no indivíduo biológico, permite produzir a infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estados de possibilidade e de exigências objetivas as coações e as exigências do jogo, ainda que não estejam reunidas num código de regras, impõem-se àqueles que não estejam reunidas num código de regras, somente àqueles que, por terem o sentido do jogo, isto, é o senso de necessidade imanente do jogo, estão preparados para percebe-los e realiza-los”. (p.82). 28
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SILVA, 2007). Dentre tais estudos, a despeito dos diferentes matizes teóricosmetodológicas, encontram-se a pertinência de analisar o contexto das cidades e metrópoles brasileiras à luz da questão habitacional, seja: (i) o panorama das políticas públicas desde o governo Getúlio Vargas (1930-1945/1950-1954) até Lula Inácio Lula da Silva (2003-2010); (ii) a especificidade de tais políticas no contexto de remoção de favelas e dos loteamentos irregulares na Região Metropolitana do Rio de Janeiro; (iii) a agenda de atuação de associações de moradores e movimentos sociais de abrangência nacional seja na Ditadura Civil-Militar (1964-1985), redemocratização e/ou no contexto do Programa Minha Casa Minha Vida, criado em 2009. Teóricos como Georg Simmel (1902), Louis Wirth (1906), Robert Park (1916) e Henri Lefebvre (1969), assim como Manuel Castells (1973), Jordi Borja (1975) e Jean Lojkine (1980) influenciaram fortemente a constituição das ciências sociais no Brasil sobretudo no que concerne os estudos sobre as questões urbanas e habitacionais e a atuação de movimentos sociais urbanos. As pesquisas29 de Mauricio Abreu, Lícia do Prado Valladares, Luiz Antônio da Silva Machado, Arno Vogel, Marco Antônio Mello da Silva e Maria Laís Pereira da Silva foram fundamentais para a compreendermos analiticamente as favelas, cortiços e loteamentos irregulares como a solução de moradia para as camadas populares nas cidades a partir do século XX, sobretudo, diante do crescimento populacional e da ausência de políticas públicas de provisão habitacional. Isso porque, de acordo com Clécio Campolina Diniz (2009): As altas taxas de crescimento demográfico das últimas décadas e os fortes processos migratórios inflaram as cidades. A concentração da propriedade fundiária, a especulação imobiliária, as grandes desigualdades na distribuição de renda, as deficiências de infraestrutura trouxeram dramáticas consequências na forma e estilo da urbanização brasileira. Parcela significativa da população das grandes cidades foi colocada em situação de marginalidade absoluta ou relativa, Segundo Gohn: “No final dos anos 1970 e durante toda a década de 1980 surgiu uma nova fonte de estudos sobre os movimentos sociais: os populares urbanos nos chamados países de terceiro mundo, especialmente América Latina. No Brasil, apresentando em cena novos atores (SADER, 1998), novas problemáticas e novos cenários sociopolíticos, mulheres, crianças, índios, negros e pobres em geral articulam clérigos, intelectuais e políticos da esquerda, gerando ações coletivas que foram interpretadas como a nova “força da periferia” (GOHN, 1988), realizando “uma revolução no cotidiano” (KRISCHKE, SCHERER-WARREN, 1987), Na época, destacaram-se também os trabalhos de J.A Moisés (1982), T. Evers (1984), Machado da Silva e Ribeiro (1985), L.Valladares e Boschi (1981), Barreiro (1992), A.Doimo (1995), P.Jacobi (1989) etc. Alguns autores como para dar suporte teórico aos pesquisadores sobre os movimentos populares no Brasil com o desenvolvimento dos temas da marginalidade, da crítica à razão dualista, das novas configurações da periferia urbana, da importância das relações com o Estado etc. Apesar de alguns esforços quanto ao tratamento conceitual (CAMACHO, 1985), a maioria dos estudos foi histórico-descritivo e pouco interpretativo. Paralelamente, na Europa surgiram novas ondas de movimentos sociais sobre ecologia/meio ambiente, antinucleares, pela paz, de estudantes, de mulheres etc., dando origem ao que Offe denominou de um novo paradigma da ação social (1987)”. (GOHN, 2014, p.32). 29
87 vivendo em precárias condições de habitação, com falta de saneamento, deficientes sistemas de transporte público e, consequentemente, de mobilidade, além da falta ou dificuldade de acesso aos serviços básicos (DINIZ, 2009, p.5).
Segundo Machado (2016), foi somente a partir da década de 1960, que as favelas passam a ser consideradas “uma espécie de zona de sociabilidade periférica territorial e habitacionalmente demarcada” (p.18). O debate intelectual e acadêmico surgiu sob forte influência da Igreja Católica (Teologia da Libertação) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB); uma na defesa da “conscientização e ajustamento ao mundo modernos” dos favelados e outro tenho as Reformas de Base30 como solução para os problemas urbanos (p.19). Entretanto, os favelados já se organizavam antes de angariaram importância teórica. De acordo com Maria Laís Pereira da Silva (2007), em idos de 1933 e 1934, diante das ameaças de despejos e demolições, os moradores da Favela de São Carlos, na área central da cidade do Rio de Janeiro, organizaramse em comissão para impedir o despejo de mais de 5 mil famílias, utilizando-se de encaminhamentos jurídicos-legais e notas no Diário de Notícias para denunciar tal situação (p.119). Na continuidade da defesa de seus direitos criaram em 1937, a Sociedade dos Trabalhadores Humildes do Morro São Carlos (IDEM, 1920), no qual o mutirão e autoconstrução já existiam enquanto alternativas para o provimento habitacional. Nesta dissertação, aquilo que existe de profícuo dá-se sobretudo por nos debruçarmos sobre uma atualidade; não no empreendimento de comparações categóricas, contudo de evidenciar as práticas de uma ocupação urbana em Duque de Caxias e o acirramento de sentidos sobre direito, cidade e moradia. Além de contribuirmos, mesmo que breve e diminutamente, com a tradição de pensamento sobre a questão habitacional, objetivamos fazê-lo em prol da análise da relação do MNLM com a Assessoria Técnica da UFRJ e das trajetórias dos militantes do MNLM, evidenciando assim as histórias de mulheres e aspectos como: racismo, religião, maternidade e emprego/desemprego. A dissertação, como será explicitado nas páginas subsequentes, é uma análise etnográfica baseada em (i) observação, (ii) conversas informais e (iii) entrevistas
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No governo João Goulart (1961-1964) ocorreu uma tentativa de aprofundamento do projeto nacionaldesenvolvimentista norteado pelas reformas de base – bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e universitária. Contudo, o projeto não se concretizou devido ao golpe civil-militar que instaurou a autocracia burguesa e consolidou o capitalismo financeiro no país .
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semiestruturadas. A escolha de tal abordagem não se fez pelo menosprezo das ditas questões grandes, mas sobretudo porque acreditamos que a pesquisa antropológica é capaz, quando devidamente orientada, de esmiuçar perspectivas em paralelo. Dito isso, nos guiaremos pelas seguintes questões: 1. Como se dá a integração das famílias com o projeto? E os ocupantes: quais são as questões relevantes no que tange as interações cotidianas e as atividades políticas? 2. Quais são as nuances da relação entre MNLM e UFRJ, além das outras instituições como prefeitura, Secretaria de Patrimônio da União (SPU), Ministério das Cidades, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Caixa Econômica Federal (CEF)? 3. O que representou o contexto dos governos petistas e do MCMV Entidades para a reconfiguração de táticas e estratégias de luta do Movimento? 4. Quais são os métodos e procedimentos adotados pelo Movimento em prol da conscientização dos moradores? Podemos denominá-los enquanto uma pedagogia? Ademais, a escolha de uma ocupação urbana em Duque de Caxias mostra-se como uma tentativa de acrescentar-se os estudos que pretendem visibilizar outras formas de organização e engajamento no município e na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). A motivação da pesquisa deu-se em vistas da superação de reducionismos vigentes e cuja observação acurada, balizada e fundamentada revelounos outros sentidos em contraposição aos que reduzem Duque de Caxias a violência, ao “abandono” pelo Estado e aos problemas concernentes a falta ou precariedade de infraestrutura urbana (cf. ANEXO). O povoamento de Duque de Caxias passou por diferentes fases, em relação causal com processo de expansão capitalista no país, sobretudo no que diz respeito a disputa de terras e a propriedade. A cidade recebeu fluxo de ex-escravizados, quando a área ainda correspondia o município de Nova Iguaçu, vindos do Vale do Paraíba para trabalhar nas fazendas citricultoras e dos vitimados pela reforma de Pereira Passos, entre os anos de 1903 e 1906 (COSTA, 2015). Nas décadas de 1950
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e 1960, os conflitos entre latifundiários e trabalhadores rurais intensificam-se sobretudo diante da organização dos últimos na garantia do acesso à terra para fins de moradia, fonte de subsistência e renda. Já nas décadas de 1980 e 1990, o processo de industrialização e urbanização deram novos contornos a uma cidade até então considerada predominante rural, atraindo contingentes oriundos dos programas de remoção de favelas e de nordestinos – o que até mesmo deu a Baixada Fluminense alcunha de “nordeste sem seca” (ENNE, 2014, p.3). Para fugir do aluguel e da coabitação, trabalhadores começaram a se organizar em associações de moradores e compuseram relações com parlamentares, sindicatos, universidades, Igreja Católica e Cooperação Internacional em busca de apoio, recursos e ajuda técnica. Soma-se a isso, o processo de redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã”, através dos quais as associações de bairro encontraram unidade na defesa da moradia digna enquanto um direito constitucional que deveria ser assegurado pelo Estado. Entretanto, diante do enfraquecimento das associações de moradores no que tange a integração comunitária, o MNLM, de acordo com Gelson de Almeida (2016) e Noêmia Magalhães (2016), ambos coordenadores municipais do Movimento, tem o compromisso de retomar a luta por moradia digna na Baixada Fluminense. Contudo, diferenciando-se de práticas “bairristas”, “cartoriais” e “clientelistas”, comuns à atuação das associações de bairros; dos quais Gelson e Noêmia fizeram parte por longos anos. Um dos motivos pelos quais se distanciaram das associações e aproximaram-se do MNLM foi porque agora acreditam que a luta por moradia precisa relacionar-se a luta contra o sistema político e econômico vigentes. Segundo Gelson e Noêmia, a falta de moradia digna não é um algo individual ou circunstancial, mas estruturado e estruturante do capitalismo na produção de injustiças, segregações e desigualdades, que por sua vez privilegiam as classes dominantes em detrimento das classes dominadas. Por conseguinte, o Movimento defende a Reforma Urbana e o Direito à Cidade não somente enquanto direitos, mas enquanto valores, ou seja palavras de ordem que precisam ser transmitidas em prol da transformação de indivíduos em militantes do Movimento. Sendo a formação político-pedagógica aquilo que permite ao Movimento, a existência progressiva e continuada da luta por moradia digna não só no espaço, mas também no tempo; já que os indivíduos “alienados”, “ignorantes” e “individualistas” precisam ser conscientes: (i) dos processos de expropriação e exploração que os colocam em condições de miséria, pobreza e
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desemprego; (ii) de se reconhecerem uns nos outros através de símbolos, práticas e discursos, e assim promoverem coesão, unidade e identidade na “resistência” e no “enfrentamento”; (iii) da capacidade de formulação de projetos de moradia enquanto projeto de cidade e de sociedade, fundamentados nos preceitos de autogestão31, associativismo
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e cooperativismo33, sobretudo na geração de renda e de trocas
econômicas favoráveis aos trabalhadores. Deste modo, a Ocupação configura-se como um espaço no qual a motivação e o engajamento dos agentes envolvidos revelam-se como tentativas de suspensão ou supressão de condutas em prol da construção de um espaço para além da precariedade, informalidade e criminalidade; estas que estigmatizam as camadas populares. O termo ocupação, a semelhança da “comunidade”, denota a elaboração e o estabelecimento de “una especie de ciudadanía empequeñecida, de pertenencia única a la polis de proximidad” (SIMÕES, 2016, p.173). A despeito das diferenças compõe um conjunto lexical com termos como: “bairro”, “favela”, “conjunto” e “condomínio”. Ou seja, algo de caráter ético, que segundo Michel de Certeau (1985) é: O ético é recusa à identificação com a ordem ou com a lei dos fatos. É abrir um espaço que não é fundado sobre a realidade existente, mas sobre uma vontade de criar alguma coisa. Assim, na multiplicidade dessas práticas cotidianas, dessas práticas transformadoras da ordem imposta, há constantemente um elemento ético. Isto é uma vontade histórica de existir. O que também deve ser restaurado como realidade histórica das práticas cotidianas (CERTEAU, 1985, p.7).
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“ Autogestão na habitação corresponde a ações em que a produção habitacional ou a urbanização de uma área se dá através do controle e da gestão de recursos e da obra pelos movimentos populares, associações e cooperativas. E a própria comunidade gerindo o processo de produção e solução de sua habitação. Falamos de controle em todas as etapas, desde a definição do terreno, do projeto, da equipe técnica que acompanhará, da forma de construção, compra de materiais, contratação de mão de obra, organização do mutirão, prestação de contas e organização da vida comunitária” (MINEIRO; RODRIGUES, 2012, p.19). 32 “(...) denominamos de associativismo produtivo para qualificar a produção autogerida de empreendimentos habitacionais por movimentos sociais, que ganhou impulso, a partir de 2005, através dos programas federais de financiamento direcionados para forma de produção. Trata-se de uma nova combinação de processos de produção do espaço periférico: a ação coletiva realiza-se desde o acesso à terra urbana até a produção da moradia e a gestão de serviços, sustentada por um ideal de bem estar urbano construído” (LAGO, P.187, 2012). 33 O cooperativismo é um conceito polissêmico. De acordo com Rios (2006) foi até mesmo instrumento de modernização das oligarquias nordestinas no Estado Varguista. Relacionada à economia solidária e agricultura familiar envolve o controle dos trabalhadores no processo de produção e circulação de mercadorias e serviços, seja na coletivização de responsabilidade, lucros e dividendos. Na Ocupação em questão o projeto de cooperativismo tem como base: a produção de materiais de construção alternativo, a horta e a cozinha de refeições a preços populares.
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A Ocupação Solano Trindade é um projeto de moradia popular fundamentado na defesa da função social da propriedade para Habitação de Interesse Social (HIS), como consta nos artigos 182 e 183 do Capítulo de Política Urbana na Constituição Federal de 1998; estes regulamentados pelo Estatuto das Cidades em 2003. A Ocupação insere-se em um contexto de governos petistas, de Lula da Silva (20032010) e Dilma Rousseff (2011-2016), considerados de esquerda e progressistas e que propiciaram relações dialógicas com vários movimentos sociais a partir da criação de fóruns, conselhos, conferências, secretarias, superintendências e ministérios. Relações estabelecidas não só com os movimentos sociais de luta por moradia, considerados tradicionais, como também com os Novos Movimentos Sociais – feministas, negros, quilombolas, indígenas, ambientalistas e LGBTQIs. No quesito das questões urbanas e habitacionais foram criados o Ministério das Cidades (2003), o Programa Crédito Solidário (2004) e promulgada a Lei Federal 11.124 de 2005 que instituiu o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). A chegada de um partido de esquerda à Presidência da República representou uma conquista positiva para movimentos sociais de mesmo espectro ideológico e programático; em razão, sobremaneira, da possibilidade de participarem efetivamente da formulação e execução das políticas públicas. Isso porque, os governos petistas estabeleceram um novo regime de signos ou máquina semiótica (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.24) no que tange direitos sociais e a incorporação de reivindicações de movimentos sociais, como: (i) cidadania; (ii) democracia participativa; (iii) controle social; (iv) justiça social; (v) protagonismo. Já na discussão da política habitacional inclui-se: (vi) moradia digna; (vii) direito à cidade; (viii) déficit habitacional; (xv) função social da cidade e propriedade (Política Nacional de Habitação, Ministério das Cidades, 2004). Todo esse vocabulário foi reproduzido em leis, atas, relatórios, cartilhas e portarias como uma espécie de materialização do discurso militante enquanto oficial, institucional, governamental. Contudo, diante da complexidade das alianças políticas e da crise econômicafinanceiro de 2008, a política habitacional discutida junto dos movimentos sociais – e que previa participação popular na formulação, acompanhamento e execução de provisão habitacional autogestionária – foi descontinuada e o Governo Federal redirecionou-se a questão urbana e habitacional para o Programa de Aceleração do
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Crescimento (PAC), criado em 2007, e Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), criado em 2009. O que segundo os coordenadores do Movimento representou uma traição por parte do governo, uma vez que tais programas foram criados visando os lucros do mercado imobiliário e do setor da construção, de empresas como: OAS, Odebrecht, Gafisa S/A, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, MRV/Engenheiros e suas receptivas subsidiárias. Mesmo com a criação do PMCMV-Entidades, os coordenadores do Movimento afirmam que o programa ainda está consideravelmente distante da realização de projetos autogestionários, baseados em controle e participação social. Além do mais, os coordenadores reiteram que as exigências da Caixa “engessaram” o Movimento, o que pode engendrar processos de “cooptação”, “aparelhamento”, “instrumentalização” ou “institucionalização” – que ocorrem quando o Movimento perde sua autonomia e subordina sua agenda aos anseios de determinado partido ou governo. Em virtude do lançamento do Entidades, mesmo sendo considerado uma conquista diante de outros reveses, originou-se internamente no Movimento uma série de desentendimentos. Isso porque, os coordenadores estaduais, diante das experiências da Ocupação Manuel Congo34, decidiram que era preciso desvincular-se do Entidades e colocaremse na dianteira às críticas os governos petistas em prol da retomada do seu papel autônomo e combativo enquanto movimento social de luta, em luta. Já a coordenação municipal de Duque de Caxias, em uma posição mais pragmática, posicionou-se na defesa do Entidades, que mesmo não saindo a contento dos anseios do MNLM, é ainda o único a viabilizar o financiamento para a construção das casas, dos equipamentos urbanos, dos projetos de geração de renda e da escola de formação – escola, que além da capacitação profissional dos futuros moradores, projeta-se como uma referência nacional para a formação política-pedagógica dos militantes do Movimento. Logo, o sucesso da Ocupação Solano Trindade diz respeito não somente às questões de Duque de Caxias e do Rio de Janeiro, mas ao projeto político do MNLM como um todo. Até o presente momento, existem mais de 180 famílias cadastras pelo Movimento e incluindo as outras 10 que moram na Ocupação a fim de fazerem a
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A Ocupação Manuel Congo é uma das ocupações da Solano Trindade situado na Cinelândia, Centro da Cidade do Rio de Janeiro desde 2007. Para mais detalhes, consultar a dissertação de mestrado de Irene Mello, intitulada “Trajetórias, Cotidianos e Utopia de uma Ocupação no Centro do Rio de Janeiro”, defendida em 2015 no IPPUR.
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“resistência” na conquista da moradia digna. As famílias que atualmente moram na Ocupação não são as mesmas da formação política de 2008 e nem aquelas do início da ocupação em 2014. Isso porque, há um processo de rotatividade entre elas. O que para os coordenadores não representa necessariamente instabilidade ou desistência das famílias, uma vez que já preveem a não adaptação às mínimas condições habitabilidade ou ao cumprimento do código de conduta – ambos, condições e o código, serão explicitados e esmiuçados nos capítulos subsequentes. Logo, devido a rotatividade, a renovação da crença na luta, segundo os coordenadores, é fundamental para a continuidade do projeto, posto que ao componente da resistência somam-se a insistência, persistência e desistência das famílias ocupantes. Na
Ocupação,
mutirões
de
limpeza,
vivências
agroecológicas
e
confraternizações realizam-se objetivando o melhoramento das condições de habitabilidade, o manejo da terra para produção alimentar de subsistência e o fortalecimento dos laços entre moradores, Movimento e Assessoria Técnica da UFRJ. A Assessoria é coordenada pelas professoras Luciana Lago do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) e a professora Luciana Andrade do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB). De acordo com as coordenadoras, o objeto da assessoria não é somente “servir” ao Movimento, quando sim promover uma colaboração horizontal para uma formação político-pedagógica fundamentada em participação social. Então, mais do que “assessorar”, o que denota uma relação distanciada e hierarquizada, a Universidade quer “cooperar”, ou seja gerar escuta e visibilidade a partir de conversas com as famílias e inteligibilizar os seus anseios na realização técnica do projeto. Ou seja, a assessoria não pretende somente realizar a topografia, o georeferenciamento e o projeto arquitetônicourbanístico, como também o engajamento social e político na defesa da Reforma Urbana e do Direito à Cidade. De mais a mais, será a partir da complexidade entre a técnica e engajamento que observaremos afinidades e divergências na relação entre Universidade e Movimento. Em um primeiro momento, a pesquisa seguiu a linha dos sentidos pedagógicos observados nas práticas do MNLM e da Assessoria Técnica. O intuito era observar os meandros da relação entre ambos de modo a evidenciar como se dava o processo de formação das famílias. Contudo, o aprofundamento desta empresa revelou-nos outros aspectos, dentre eles a relação do Movimento com o PMCMV-Entidades, SPU-
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OC/SPU-RJ35, MCidades e CEF e a percepção dos ocupantes, de mulheres e homens das camadas populares em seu primeiro contato com um movimento social. Uma das questões desta dissertação foi também observar a interação dos ocupantes e o processo de se tornarem – ou não – militantes do Movimento. Em suma, de modo a comtemplar as várias questões abordadas, a dissertação está estruturada da seguinte forma: O Capitulo 1, Breves contextos e questões teórico-metodológicas, apresentaremos aspectos sociais, econômicos e políticos do município do Duque de Caxias e as principais políticas habitacionais no Brasil, desde a Fundação Casa Popular (FCP) no governo Getúlio Vargas até o PMCMV no governo de Luis Inácio Lula da Silva. Neste mesmo capítulo são esmiuçadas 7 categorias, a um só tempo nativas e analíticas: (i) ser pedagógico; (ii) movimento social; (iii) luta; (iv) ocupação; (v) Estado; e (vi) traição. Elas permearão toda a dissertação, de modo a costurar os fragmentos; entre falas, observações e acontecimentos. Além do mais, serão apresentadas as bases teórico-metodológicas que sustentaram a observação e a pesquisa de campo. O Capítulo 2, Universidade e Movimento Social: As nuances entre os engajamentos, analisaremos como o Movimento lida com os limites e possibilidades das portarias e instruções normativas do Ministério das Cidades, além de apresentarmos as principais características do projeto arquitetônico-urbanístico para a Ocupaçao Solano Trindade. Por fim, elencamos os núcleos, laboratórios e programas de pós-graduação da UFRJ, integrantes da Assessoria Técnica, em seus respectivos posicionamentos em defesa de direitos sociais e humanos. O Capítulo 3, A Ocupação Solano Trindade: Suas características e os que o habitam, descreveremos os aspectos físicos do espaço, além do processo inicial de ocupação com relatos dos coordenadores Gelson e Noêmia sobretudo no que concerne a relação do Movimento com a SPU e na necessidade de diferenciar-se dos “movimentos associativos”. Segue-se a apresentação da trajetória de vida de algumas
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A Secretária de Patrimônio da União (SPU), ligada aos Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e estão, tem como atribuição administração do patrimônio imobiliário da União seja a incorporação e regularização do domínio dos bens, sua adequada destinação além do controle e da fiscalização dos imóveis. Mais informações em: http://www.planejamento.gov.br/acesso-ainformacao/institucional/unidades/spu (Acessado em: 04/01/2017).
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ocupantes e suas respectivas impressões sobre a vida na Ocupação, coletados através de entrevista e conversas informais.
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CAPÍTULO 1 1. BREVES CONTEXTOS E QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS 1.1 CARACTERÍSTICAS SOCIOECONÔMICAS DE DUQUE DE CAXIAS: UMA CIDADE DA BAIXADA FLUMINENSE Afim de conhecer as origens da Baixada Fluminense realizei uma pesquisa nos seguintes periódicos: “A Columna: Orgam Político e dos Interesses da Baixada Fluminense” e o “Sambaibense: Órgão dos interesses da Baixada Fluminense Político, Litterrario e Noticioso”, cujos exemplares entre os anos de 1921 e 1922 faziam referência a uma Baixada desconhecia por mim. Um relacionava a Baixada a Cachoeira de Macacu, Araruama e Cabo Frio; e outro a Niterói, Itaboraí e Rio de Janeiro. Contudo, a Baixada Fluminense que aqui faremos referência é formada pelos municípios originados do desmembramento de Estrela e Nova Iguaçu – denominado Maxambomba até 1916 – sendo eles: Duque de Caxias, São João de Meriti, Queimados, Nilópolis, Japeri, Belford Roxo e Mesquita. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), Duque de Caxias tem uma população de 886.917 habitantes (2016), com área territorial de 467.620 km² (2016) e densidade demográfica de 1.828,51 hab/km, sendo o terceiro município mais populoso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, depois de São Gonçalo e Rio de Janeiro. Duque de Caxias é limítrofe aos municípios de: Magé, São João de Meriti. Belford Roxo, Nova Iguaçu e Rio de Janeiro; e divide-se em 4 distritos: Duque de Caxias, Campos Elíseos, Imbariê e Xerém. Situado a 20 km do centro da cidade do Rio de Janeiro, o município de Duque de Caxias está próximo a várias rodovias como: Linha Vermelha, Linha Amarela, Rodovia Presidente Dutra, Rodovia Washington Luís e Avenida Brasil. Além de ser próximo do Aeroporto Internacional Tom Jobim. Em relatório da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), “Arco Metropolitano: Ordenamento Urbano e Desenvolvimento Social na Baixada Fluminense”36, a Baixada Fluminense, baseado em dados do Atlas de
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Mais detalhes em: file:///C:/Users/Lidiane/Downloads/Ordenamento%20urbano%20e%20desenvolvimento%20social%20 na%20Baixada%20(1).pdf (Acessado em: 26/11/2016).
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Saneamento/Censo 2010, compreende 16 municípios 37 com um total de 1.172.334 domicílios, dos quais 269.284 estão em Duque de Caxias. Em termos de déficit habitacional38, dos 302.107 domicílios sem acesso geral a rede de esgoto ou água, 100.748 se situam em Duque de Caxias e dos 64.324 de domicílios em aglomerados subnormais39, 18.336 estão também no munícipio (KAUFFMANN, 2015). O polo industrial de Duque de Caxias é composto por vários setores, dentre eles: gás, químico, petroquímico, metalúrgico, alimentício, mobiliário, têxtil e vestuário. Um dos polos mais conhecidos é a Refinaria de Duque de Caxias da Petrobrás (REDUC) criada em 1961 e responsável pelo crescimento econômico do município. De acordo com Camaz (2015, p.3), a cidade tem entorno de 810 indústrias e 10 mil estabelecimentos comercias, tendo por sua vez o sexto maior Produto Interno Bruto (PBI) do país e o segundo maior do estado do Rio de Janeiro. Contudo, apesar de ser o maior polo industrial do estado, Duque de Caxias “não experimenta ciclo virtuoso caracterizado por elevado nível de investimentos produtivos e infraestrutura dentro do munícipio” (p.4). Ou seja, o crescimento econômico do município, segundo Camaz, não se reflete em desenvolvimento econômico, uma vez que, a despeito do PIB expressivo, o município tem um dos piores Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado do Rio de Janeiro. Isso se dá, conforme Camaz, pela escolha política do governo, da sociedade civil e de empresários na gestão de recursos (p.10) em menosprezar as questões sociais e a necessidade de políticas públicas para o desenvolvimento humano do município. De acordo com o relatório “Impunidade na Baixada Fluminense” do Observatório da Violência40, o território que hoje compreende a Baixada é onde existiu 37
Magé, Guapimirim, Miguel Pereira, Mangaratiba, Paty de Alferes, Belford Roxo, Duque de Caxias, Belford Roxo, Paracambi, Nova Iguaçu, Itaguaí, Queimados, Japeri, Mesquita, São Joao de Meriti, Seropédica e Nilópolis. 38 De acordo com o Relatório Déficit habitacional 2013/2014 da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional: está ligado diretamente às deficiências do estoque de moradias. Engloba aquelas sem condições de serem habitadas em razão da precariedade das construções ou do desgaste da estrutura física e que por isso devem ser repostas. Inclui ainda a necessidade de incremento do estoque, em função da coabitação familiar forçada (famílias que pretendem constituir um domicilio unifamiliar), dos moradores de baixa renda com dificuldades de pagar aluguel e dos que vivem em casas e apartamentos alugados com grande densidade. Inclui-se ainda nessa rubrica a moradia em imóveis e locais com fins não residenciais. O déficit habitacional pode ser entendido, portanto, como déficit por reposição de estoque e déficit por incremento de estoque (RELATÓRIO FUNDAÇAO JOAO PINHEIRO, 2016). 39 “Assentamentos irregulares conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, ressacas, mocambos e palafitas, entre outros” (KAUFFMANN, 2015). 40 Mais detalhes em: http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_jg_rj_impunidade_baixada.pdf (Acessado em 26/11/2017).
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no século XVII “centenas de engenhos de açúcar e aguardente” e o transporte de mercadorias pelos rios: Meriti, Sarapuí, Iguaçu, Inhomirim, Estrela e Magé até a Serra do Mar, o que propiciou a criação de alguns vilarejos (2005, p.13). Já no século XIX, além da estrada de ferro construída pelo Barão de Mauá, foi construída a Estrada de Ferro Pedro II em 1884. No século XX, como política de compensação diante do declínio da produção de café no Vale do Paraíba, o governo fomentou a produção de laranja atraindo portugueses e agricultores do norte do Estado para a Baixada Fluminense (p.14). Contudo, a produção citricultura sofreu os impactos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com redução da exportação e apodrecimento dos estoques. Objetivando atenuar os prejuízos, os “Barões da Laranja” autorizaram o loteamento41 de seus sítios, chácaras e fazendas, para serem comercializados pelos empreendedores imobiliários. Nos anos subsequentes, os loteamentos atraíram grande contingente de migrantes, sobretudo de nordestinos, para trabalhar nas indústrias da região. Além deste, existiram outros fatores de atração 42 para a Baixada Fluminense. De acordo com Lima Barreto (2017) em Clara dos Anjos: Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências [leia-se Baixada Fluminense], só é levada pela relativa modicidade do aluguel da casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal, que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgoto; não há médicos, não há farmácias (BARRETO, 2017, p.189).
Anos depois, a Baixada Fluminense passou a receber as camadas populares expulsas pelas políticas de remoção e erradicação de favelas do centro da cidade do Rio de Janeiro (MACHADO, 2016; SILVA, 1997; VALLADARES, 1978); políticas que refletiam os interesses de governantes e empresários na acumulação capitalista e especulação imobiliária (KOWARICK, 1979, p.31). Diante da ausência de políticas públicas de provisão habitacional, o loteamento e a autoconstrução tornaram-se as principais soluções de moradia em áreas periféricas. Estas áreas devido a oferta precária de bens, serviços e equipamentos urbanos, como escolas, hospitais, postos 41
Até 1929, foram aprovados 21 loteamentos com 20.524 lotes. De 1940 a 1949 foram aprovados 447 loteamentos com 73.025 lotes. E de 1950 a 1959, período em que inicia a onda nacionaldesenvolvimentista, são registrados 1.168 loteamentos e 273.208 lotes na Baixada Fluminense (OBSERVATÓRIO DAS VIOLÊNCIAS, 2005, P.14). 42 “(...) as obras de saneamento do governo federal nos anos 1930, a eletrificação da Central do Brasil a partir de 1935, a instituição da tarifa ferroviária única para todo Grande Rio e a abertura da Avenida Brasil em 1946” (ABREU, 1987, P.107 apud IBIDEM, p. 89).
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de saúde, transporte público, saneamento básico e pavimentação, passaram a ser denominadas de “bairros dormitórios”, posto que os trabalhadores no deslocamento pendular para áreas centrais saiam de madrugada e chegavam em suas respectivas casas somente no final da noite. Contudo, mesmo sem políticas públicas, a população local desenvolveu diversas formas de organização no intuito de exigir melhoramentos urbanos e a regularização fundiária dos loteamentos. 1.2
A LUTA POR MORADIA EM DUQUE DE CAXIAS Nas décadas de 80 e 90 do século XX observou-se em vários municípios da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o “crescimento e institucionalização do movimento de bairros” as associações de moradores, como “instrumento legítimo da população urbana (...) no combate ao populismo e clientelismo” (MACHADO, 2016, p.85). De acordo com as edições da Baixada Pra Cima, da Associação Cultural de Trabalhadores da Baixada Fluminense (ACT-BF), em Duque de Caxias consolidaramse várias formas de ocupação da terra; todas elas fruto da organização e engajamento da população em vistas da conquista de casa própria. A segunda edição, cuja chamada “Terra Vida: Produzir pra Ficar”, convocava “companheiros (as)” para a 6º Romaria da Terra, realizada na Diocese de Duque de Caxias, na comunidade de Capivara-Xerém, em 26 de julho de 1992. A comunidade, assim como Xerém, Tabuleiro, Tinguá, Fazenda Esperança, Barro Branco, São Lourenço, Penha Caixão e Piranema foram grandes fazendas até o início dos anos 60 e lideranças, como Seu Chico Silva, Seu Jair, Dona Santinha, Zé Maria, Seu Antônio e Henrique Barbudo, resistiram às investidas de grileiros e latifundiários (BAIXADA PRA CIMA, 1992a, p.7). Assim, diante dos processos de expulsão, os pequenos produtores decidiram formar em 1952 a Associação dos Lavradores Fluminenses (AFL), organizados na defesa dos trabalhadores e da terra. Em 1959, na 1ª Conferência de Lavradores foi criada a Federação de Associações de Lavradores do Estado do Rio de Janeiro. Já em 1960, a ALF organizou a resistência armada de 600 famílias na Fazenda Capivari, na qual enfrentaram a polícia, os latifundiários e as forças armadas. Nos anos de 1961, 1963 e 1982 foram decretadas novas ordens de despejo, mas as famílias continuaram resistindo, contando com a solidariedade de entidades como: sindicato, Igreja Católica e parlamentares progressistas.
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A edição de 1991 traz a notícia de que em 28 de Março de 1992, um grupo de 80 famílias ocuparam uma terra abandona na Av. Governador Leonel Brizola, ao lado da Fundação Educacional de Duque de Caxias (FEUDUC) – terra que assim como do a Centro Pan-americano foi protocolada pelo MNLM anos depois. A terra estava sob gestão do INCRA43, o que segundo a edição não é de competência da instituição, já que a terra encontra-se em área urbana. Na mesma edição, a Constituição Federal é evocada como aquela no qual:
(...) o dever do governo é realizar o assentamento das famílias que estiverem em estado de necessidade em toda terra pública, realizando obras de infraestrutura, construção de casas populares com intuito de erradicar a pobreza” (BAIXADA PRA CIMA, 1992b, p.8).
Na edição de dezembro de 1992 enfatizaram a ausência de uma política habitacional para o atendimento dos trabalhadores que ganham até 3 salários mínimos Como um modo de contornar a situação, surgiram várias ocupações de terras como: São Bento, Vila Esperança, Chico Mendes, Pilar, Parada Angélica e Chácara Rio-Petrópolis. Na edição de fevereiro/março de 1993 foi publicada uma carta aberta intitulada “Pelo Direito de Morar” que revela os desdobramentos da Ocupação São Bento – aquelas 80 famílias que ocuparam a terra do INCRA. Até aquele momento a prefeitura não cumprira com a contrapartida da aterragem e drenagem do terreno e para demonstrar que o projeto habitacional não avançava por falta de vontade política as famílias construíram uma casa modelo. A casa de 50 metros quadrados com 6 cômodos custara 5 vezes menos do que as casas construídas pelo Governo Federal, que no geral tinham 22 metros quadrados e dois cômodos. No dia 01 de março de 1993, o então prefeito Moacir do Carmo deu ordens para derrubada da casa e no dia 03, 15 policiais e assessores presenciaram a resistência das famílias ocupantes que não permitiram que a casa fosse a baixo. Na carta, que contou com o Movimento União de Bairros e Favelas (MUB), ACT-BF e SEPE/Caxias como signatários, as famílias denunciaram a Prefeitura de Duque de Caxias e enfatizaram que a luta por moradia digna não deve ser tratada como caso de polícia, mas como questão social.
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O Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária (INCRA) foi criado em 1970 pelo decreto nº 1.110, conta atualmente com 30 superintendências regionais, e tem como competência: executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiária nacional. Mais informações em: http://www.incra.gov.br/institucional_abertura (Acessado em: 04/01/2017).
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Outra ocupação conhecida em Duque de Caxias é a Vila Getúlio Cabral. Lideradas por Luiz Cabral, a época presidente da associação de moradores do bairro de Santa Lúcia, 150 famílias ocuparam, a 23 de fevereiro de 1992, uma área de 700 mil metros quadrados, onde anos antes funcionava uma fazenda experimental do INCRA (LEITÃO et.al, 2014, p.59). Dando início a Ocupação, as famílias usaram barbantes para demarcar de modo padronizado vias e lotes, além de reservarem áreas para “futuras praças e equipamentos urbanos” (p.61), uma vez que o intuito das famílias era construir um “bairro popular” por ações de mutirão. Em abril do mesmo ano ocorreu a ampliação da área ocupada para abrigar mais 650 famílias e realizouse a visita do governador Leonel Brizola “que reconheceu a legitimidade da ocupação” e determinou que se “iniciasse os procedimentos necessários para promover a regularização fundiária” (p.62). No mês de julho, Brizola retornou a ocupação acompanhado do presidente Fernando Collor, que assinou a transferência da terra para o Governo do Estado do Rio de Janeiro para fins de “uso habitacional de interesse social”. Assim, o projeto da ocupação foi assumido pelo Companhia Estadual de Habitação (COHAB-RJ), ampliando o número de lotes e o Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) estabeleceu normas, dentre elas a proibição de venda e aluguel dos imóveis. Conforme relato de Gerônimo Leitão (et al. 2014, p.65), algumas ruas da Vila foram nomeadas com os nomes de líderes revolucionários como “Che Guevara, Mário Alves, Capitão Lamarca, José Mártir e Luiz Carlos Prestes” o que denotava “o caráter político do movimento de ocupação” no projeto de transformação social dos bairros de Duque de Caxias.
1.3 A QUESTÃO URBANA E HABITACIONAL NO BRASIL: DE GETÚLIO VARGAS ATÉ LULA DA SILVA Conforme Nabil Bonduki (1994), o período Vargas (1930-1945/1951-1954) foi aquele no qual a habitação tornou-se pela primeira vez uma questão social. Neste período, a construção, comercialização, financiamento e locação habitacional passou a ser uma estratégia estatal de fortalecimento da sociedade urbano-industrial (1994, p.711). Dentre as medidas adotadas estão: (i) o decreto-lei n.58/1938, que regulamentou a venda de lotes a prestação; (ii) a criação das carteiras prediais dos Instituto de Aposentadorias e Pensões (IAPs) em 1937; (iii) a Lei do Inquilinato, de 1942, que congelou o valor dos aluguéis (IDEM, 2012, p.41). Contudo, segundo
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Campos (2011) a partir da década de 1950, o financiamento pelo IAPs entrou em declínio devido à crise da previdência e desequilíbrio dos fundos. Foi somente em 1946, no governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) com a criação a Fundação Casa Popular (FCP), que passou a existir uma instituição de âmbito nacional voltada para provisão de casas para a população de baixa renda (CAMPOS, 2011, p.67). O FCP além da provisão de habitação popular tinha como objetivos: “financiar obras de infraestrutura urbana, atuar no serviço social, abrir linhas de financiamento para as indústrias de material de construção e apoiar pesquisas de processos construtivos” (BONDUKI, 2012, p.48). No governo de Juscelino Kubistchek, o FCP foi responsável pela construção de conjuntos habitacionais em Brasília, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Entretanto, a FCP não cumpriu com os seus objetivos e não contribui significativamente na redução do déficit habitacional, posto que durante os seus 20 anos de funcionamento proveu somente 17 mil unidades habitacionais (FERREIRA, 2009, p.15). Em 1964, na Ditadura Civil-Militar (1964-1985) foi criada a primeira política habitacional de ámbito nacional: o Banco Nacional de Habitação (BNH). O BHN tinha como base o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que por sua vez possuía dois tipos de financiamento: um gerido pela poupança compulsória dos assalariados brasileiros, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o outro pela poupança voluntária dos assalariados brasileiros, o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). Segundo Bonduki (2008), o BNH exerceu importante papel econômico na geração de renda e fortalecimento da construção civil. Contudo, em termos de provisionamento habitacional, (...) nos vinte e dois anos de existência do BNH, o Sistema Financeiro da Habitação financiou a construção de 4,3 milhões de unidades novas, das quais 2,4 com recursos do FGTS, para beneficiários das classes populares, e 1,9 milhões com recursos do SBPE, para beneficiários da classe média. Se for considerado o período até 2000, pois o SFH continuou funcionando após a extinção do BNH em 1986, foram financiadas cerca de 6,5 milhões de unidades habitacionais (BONDUKI, 2008, p.73).
Devido à ausência de uma política fundiária, o BNH proveu moradia em terras sem infraestrutura urbanizada para população de baixa renda (CAMPOS, 2011, p.2009). O que agravou as desigualdades socioeconômicas e a segregação territorial. Como enfatiza Bonduki (2008),
103 Os pressupostos de gestão adotados pelo BNH – típicos do regime militar – eram rígidos e centralizados, impermeáveis à incorporação das práticas desenvolvidas pela população para enfrentar, a custos mais baixos, o problema da habitação, podendo ser assim caracterizados: administração autoritária; inexistência de participação na concepção dos programas e projetos; falta de controle social na gestão dos recursos; adoção da casa própria como única forma de acesso à moradia; ausência de estratégias para incorporar processos alternativos de produção da moradia, como a autoconstrução, nos programas públicos. Ademais, utilizando apenas recursos retornáveis, sem contar com qualquer fonte de subsídios e adotando critérios de financiamento bancários, o sistema excluiu parcelas significativas da população de mais baixa renda do atendimento da política habitacional (BONDUKI, 2008, p.74).
Ademais, de acordo com Raquel Rolnik (2015), o BNH teve como fundamento certos interesses políticos, a saber: O lançamento do BNH foi fruto da coalizão de interesses empresarias, particularmente ligados à indústria da construção civil, que, a partir do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) – instituição criada em 1961, por empresários e doações do governo norte-americano, para formular uma contraofensiva política à ascensão de Joao Goulart -, articulou se à União Democrática Nacional (UDN) e ao lacerdismo. Antes do golpe militar e no âmbito de sua campanha presidencial “Lacerda já havia anunciado o compromisso político de instituir um Banco Nacional de Habitação Popular, visando a construção de milhões de casas populares no Brasil inteiro para fazer de cada trabalhador um proprietário e dar às classes médias um lugar ao sol”44. Essa posição foi reiterada pelas declarações da primeira presidente do BNH, Sandra Cavalcanti: “a casa própria faz do trabalhador um conservador porque defende o direito de propriedade”. Ela expressava a preocupação – a exemplo do já citado regime franquista espanhol – a política habitacional baseada na casa própria fosse instrumento de combate às ideias comunistas e progressistas no país, em plena Guerra Fria. Entretanto “foi o papel econômico desta política habitacional – que dinamizou a economia, através da geração de empregos e fortalecimento do setor da construção civil – que a transformou num dos elementos centrais da estratégia dos governos militares” 45 (ROLNIK, 2015, p.282).
Em 1986, com a extinção do BNH a CEF tornou-se o agente do SFH, o que segundo Campos (2011) não significou necessariamente uma “mudança relevante nos problemas crônicos da habitação no Brasil” (p.69). No Governo Collor, as suspeitas de corrupção, com liberação de contratos acima da capacidade do FGTS, levaram a paralisação, entre os anos de 1991 e 1995, dos financiamentos advindos do Fundo. Então, como alternativa a falta de financiamento federal, em vários municípios e estados surgiram diversas iniciativas de fomento à habitação popular,
Marcus, A.B.C de Mello. “Classe, burocracia e intermediação de interesses na formação da política de habitação, Espaço e Debates, n 24, ano VIII, 1988, p.76 45 Nabil Bonduki, “Política habitacional e inclusão no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas no governo Lula, Arq.urb, n.1, 2008. Disponível em: www.usjt.br/arq.urb/numero_01/artigo_05_180908.pdf. Acesso em 12.dez.2014. 44
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inaugurando uma fase denominada de pós-BNH. Em especial, os municípios administrados pelo PT passaram a desenvolver programas habitacionais alternativos ao modelo do BNH, utilizando recursos orçamentários e adotando uma perspectiva mais social, além de práticas como o mutirão e a autogestão. Concluímos que o período da Ditadura Civil-Militar foi caracterizado por políticas sociais insatisfatórias e antidemocráticas. Ademais, as propostas de reforma urbana – discutidas por movimentos sociais, sindicatos, ONG’s e intelectuais – foram enfraquecidas, ressurgindo somente no fim do regime, na década de 1980, em um período de emergência e legitimidade “na sociedade brasileira (...) de um sistema de proteção social universalista e redistributivo (RIBEIRO, 1994, P.261) No ensejo do processo de redemocratização e da instalação da Assembleia Constituinte, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) apresentou uma emenda constitucional de iniciativa popular – subscrita por 130 mil eleitores em todo o Brasil – denominada de Emenda Popular de Reforma Urbana. Segundo Maricato (1994), um dos objetivos centrais do MNRU foi a instituição de novo padrão de política urbana, substituindo o modelo tecnocrático e autoritário de planejamento, vigente na ditadura civil-militar, por um modelo democrático e participativo. De acordo com Ribeiro (1994), a proposta de reforma urbana apresentava os seguintes princípios: a) b)
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Instituição da gestão democrática da cidade, com a finalidade de ampliar o espaço da cidadania e aumentar a eficácia/eficiência da ação governamental; Fortalecimento da regulação pública do uso do solo urbano, com introdução de novos instrumentos (solo criado, imposto progressivo sobre propriedade, usucapião especial urbano, etc;) de política fundiária que garantam o funcionamento do mercado de terras condizente com os princípios de função social da propriedade imobiliária e da justa distribuição dos custos e benefícios da urbanização; Inversão de prioridade no tocante à política de investimentos urbanos que favoreça às necessidades coletivas de consumo das camadas popular, submetidas a uma situação de extrema desigualdade social em razão da espoliação urbana (RIBEIRO, 1994, p. 262).
A vitória do MNRU resultou na criação do Capítulo de Política Urbana na Constituição Federal de 1988, especificamente os artigos 182 e 183, que versam sobre o cumprimento da função social da propriedade em caso de “solo urbano não edificado, subutilizado e não utilizado” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, p.112). Contudo, segundo Rolnik (2015),
105 No entanto, para se tornarem efetivas, as mudanças sinalizadas pela nova ordem constitucional exigiam mais do que o estabelecimento de princípios jurídicos. Elas exigiam por sua prática políticas públicas em grande escala, uma condição que não poderia ser satisfeita sem gastos públicos elevados e sem uma reforma radical nas políticas urbanas de caráter excludente. Porém, naquele contexto, o cenário econômico global levou os governos nacionais na direção oposta. Em vez da expansão de políticas distributivas, a ascensão do consenso neoliberal forçou os países a adotarem reformas fiscais ortodoxas, o que resultou em uma retração generalizada dos gastos públicos no que diz respeito aos direitos sociais 46. Da mesma forma que a maioria dos países latino-americanos, o Brasil passou por uma séria crise financeira ao final dos anos 1980, o que restringiu suas possibilidades de seguir uma agenda desenvolvimentista. Por outro lado, a transição da ditadura para a democracia não significou a derrocada das forças políticas que estavam no poder. Por mais que novos atores – como movimentos sociais urbanos (entre eles, os de moradia), e o novo movimento sindical – tenham entrado em cena por meio de novos partidos e participado cada vez mais nos órgãos legislativos em executivos no nível local, os líderes dos antigos partidos e das antigas oligarquias ainda detinham grande influência e controle político47 (ROLNIK, 2015, p.268).
Anos depois, em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a Secretaria de Política Urbana, divulgou o documento da Política Nacional de Habitação (PNH), realizado no contexto da preparação para a 2ª Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos – Habitat II (BONDUKI, 2008, p.78). O PNH consistia em um conjunto de programas como: “Programa de Apoio à Produção, Programa de Demanda Caracterizada, Programa Carta de Crédito, Programa Carta de Crédito Associativo e Programa de Arrendamento Residencial” (CAMPOS, 2011, p.69-70). Entretanto, segundo Bonduki (2008), tais programas, apesar de expressarem uma renovação, geraram uma série de efeitos perversos como: O financiamento para aquisição de imóvel usado, que absorveu 42% do total de recursos destinados à habitação (cerca de 9,3 bilhões), é um programa com escasso impacto, não gerando empregos e atividade econômica. O financiamento para material de construção, embora tenha o mérito de apoiar o enorme conjunto de famílias de baixa renda que auto-empreeende a construção da casa própria e de gerar um atendimento massivo (567 mil beneficiados no período, a de maior alcance quantitativo), tende a estimular a produção informal da moradia, agravando os problemas urbanos. Ademais, o baixo valor do financiamento e a ausência de assessoria técnica não permitem que as famílias beneficiadas alcancem condições adequadas de habitabilidade (BONDUKI, 2008, p. 80).
Gilberto Bercovini e Luís Fernando Massonetto, “A constituição dirigente invertida: a blindagem da constituição financeira e a agonia da constituição econômica”, Boletim de Ciências Econômicas, v.49, 2006. 47 Wendy Hunter e Timothy J. Power, “Lula’s Brazil at Midterm”, Journal of Democracy, v.16, n.3, jul.2005. 46
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Já em 2001, o Estatuto da Cidade foi sancionado pelo Congresso Nacional. No ínterim a entre promulgação da Constituição de 88 e do Estatuto houve a supressão, substituição e modificação de vários objetivos e princípios acerca da política urbana nacional (FERNANDES, 2006). Ou seja, mesmo sendo um instrumento reivindicatório de entidades e movimentos sociais, a Estatuto também foi direcionado para o favorecimento de determinados grupos econômicos, principalmente aqueles relacionados ao empresariado da construção civil. Por exemplo, ainda no projeto de lei aprovado pela Câmara e pelo Senado constava o direito de usucapião em terras públicas. No entanto, estes artigos foram vetados pelo Governo Federal e só posteriormente publicados como Medida Provisória (nº 2.200 de setembro de 2001); o que também só foi possível mediante pressão exercida por alguns movimentos sociais. Em suma, tais vetos revelam que o Governo Federal estava eximindo-se de sua responsabilidade em relação ao direito à moradia, uma vez que era signatário da Agenda Habitat II da Organização das Nações Unidos (ONU) e, por conseguinte, afastando-se cada vez mais do cumprimento da moradia digna enquanto direito social e constitucional. Segundo o seu texto, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de junho de 2011) “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (Cap. I, art. 1º, par. Único). Além do mais, o Estatuto dispõe que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno funcionamento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” (art.2º). No quesito da função social da propriedade, o Estatuto deve atentar-se ao aproveitamento do solo urbano valendo-se de instrumentos como: (i) parcelamento, edificação e utilização compulsórios; (ii) IPTU progressivo no tempo; (iii) desapropriação mediante pagamento com títulos da dívida pública; (iv) direito de preempção; (v) outorga onerosa do direito de construir; e (vi) transferência do direito de construir – quando há solo urbano não edificado, não utilizado ou subutilizado. Em vista de viabilizar uma “cidade sustentável”, o Estatuto prevê: (i) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; (ii) instituição de unidades de conservação; (iii) regularização fundiária, (iv) Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA); e (v) Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV).
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No mesmo período, em idos do ano 2000, o Instituto Cidadania, atual Instituto Lula, elaborou o Projeto Moradia, sistematizado a partir de um seminário que contou com a participação: de Lula da Silva, presidente de honra do PT e do Conselho Consultivo do Instituto; Olívio Dutra, governador do Rio Grande do Sul; os arquitetos Ermínia Maricato e Nabil Bonduki, o sociólogo Lucio Kowarick, três professores da Universidade de São Paulo (USP); e representantes48 da União Nacional de Moradia Popular (UNMP), da Central Única de Trabalhadores (CUT), da Caixa Econômica Federal (CEF), além de deputados e senadores. O Projeto Moradia (2000) enfatiza que a moradia é Direito Social, como consta do Artigo 6º da Constituição Federal de 1988, e Direito Humano, de acordo com o Tratado da ONU. Além do mais, defini a moradia digna enquanto aquela que deve: [i] estar ligada às redes de infra-estrutura (transporte coletivo, água, esgoto, luz, coleta de lixo, telefone, pavimentação); [ii] localizar-se em áreas servidas ou acessíveis por meio de transporte público – por equipamentos sociais básicos de educação, saúde, segurança, cultura e lazer; [iii] dispor de instalações sanitárias adequadas, e ter garantidas as condições mínimas de conforto ambiental e habitabilidade, de acordo com padrões técnicos; [iv] ser ocupada por uma única família a menos de outra opção voluntária; [v] contar com pelo menos um dormitório permanente para cada dois moradores adultos (PROJETO MORADIA, 2000, p.3).
O objetivo do Projeto foi o de consolidar uma proposta de erradicação do déficit habitacional em um prazo de 15 anos. Envolvendo não só o poder público, (União, Estados e Municípios), como também a sociedade civil e a iniciativa privada, tendo em vista que o problema exige “amplitude nacional e descentralizada” (p.10). Deste modo, o projeto valoriza a participação social como possibilidade de ensejar uma transformação cultural na “construção de um sólido tecido social e de uma sólida democracia” (p.14), permitindo, por conseguinte, a reflexão sobre outros problemas urbanos como “violência, marginalidade e exclusão social. Soma-se aos objetivos a “institucionalização de uma estrutura pública com poderes” com “articulação ministerial das ações da política urbana e habitacional” e criação de organismos como: Ministério das Cidades, Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, Agência
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FAUMack – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie; ARQHAB – Grupo de Pesquisa e Assessoria em Habitação e Urbanismo – EESC-USP; LABHAB – Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos - FAU-USP; CRECI-SP – Conselho Regional de Corretores de Imóveis; CUT – Assessoria da Representação no Conselho Curador do FGTS; SEEB – Sindicato dos Bancários de São Paulo; DCE – Diretório Central dos Estudantes da Universidade Mackenzie; ANTP - Associação Nacional de Transporte Público (p.6).
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Nacional de Financiamento, Agência Nacional de Informações e Dados sobre Desenvolvimento Urbano e Câmara Setorial da Construção Civil (p.15). O projeto ambicionava criar um programa de” investimento maciço em habitação e reconstrução das cidades” com subsequente barateamento dos custos do terreno e ampliação do mercado de imóveis e construção de forma a “não privilegiar uma minoria de empresários” (pp.16-17). Um dos motes era construir uma “política pública” é não um “programa governamental” cujos mecanismos de fiscalização e acompanhamento possibilitassem a “reeducação de toda população que desconhece as leis e seus direitos” (p.17). Além de contar com participação de pessoal qualificado – advogados, médicos, engenheiros, cientistas sociais, geógrafos, economistas e arquitetos e urbanistas – na implementação e operacionalização dos programas e criação de subsídios para as famílias que foram excluídas de políticas habitacionais, como o BNH, que são aquelas vitimadas por enchentes, deslizamentos, moradoras de favelas e loteamentos irregulares. O Projeto Moradia foi relativamente implantado após a eleição de Lula da Silva à Presidência da República em 2002, com a criação do Ministério das Cidades e a elaboração da Política Nacional de Habitação em 2004. O Ministério das Cidades é subdivido em 4 secretarias: habitação, saneamento, transporte e mobilidade e programas urbanos. Segundo Cardoso e Aragão (2013), a equipe técnica do MCidades possuía “fortes vínculos com o Fórum Nacional da Reforma Urbana e (...) já participado de algumas experiências de administração local em governos do Partido dos Trabalhadores” (p.29). Em suma, o Ministério das Cidades foi responsável por convocar: (...) em 2003, a Primeira Conferência Nacional das Cidades, que recebeu cerca de 2.500 delegados escolhidos através de conferências municipais, regionais e estaduais, chegando a mobilizar mais de 3 mil municípios. A Conferência aprovou os princípios gerais da política urbana do governo e propôs a criação e composição do Conselho Nacional das Cidades, instalado em 2004, ampliando a proposta original do Projeto Moradia para todas as políticas urbanas (ARAGAO; CARDOSO, 2013, p.29).
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Já a Política Nacional de Habitação49 conta com um conjunto de instrumentos como: (i) Sistema Nacional de Habitação (SNH); (ii) Sistema de Desenvolvimento Institucional; (iii) Sistema de Informação, Avaliação e Monitoramento da Habitação; e (iv) Plano Nacional de Habitação. O Sistema Nacional de Habitação – Subsistema de Habitação de Interesse Social e Subsistema de Habitação de Mercado – visa o enfrentamento do déficit habitacional por meio de ações integradas e articuladas nos três níveis de governo, com a participação dos Conselhos das Cidades, Conselhos Estaduais, do Distrito Federal e Municipais (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2004). Em 2005, no âmbito da produção habitacional autogestionária foram criados o Programa Crédito Solidário e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS). O SNHIS foi criado pela Lei nº 11.124/2005, reunindo o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e prevendo a elaboração do Plano Nacional de Habitação (PlanHab). O sistema tinha uma lógica descentralizada, podendo ser aderido por munícipios e Unidades da Federação, desde que estes atendessem as exigências de: constituir fundos e conselhos locais de habitação – com participação de 4 ou mais representantes da sociedade civil – e formular os Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS). Algo que se destacava no SNHIS era a ênfase dada as instâncias de participação social, formada por representantes do governo, da iniciativa privada e da sociedade civil, como: Conselho Nacional das Cidades, Conselho Gestor do Fundo de Habitação de Interesse Social e Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. No caso dos movimentos sociais, o MNLM conquistou assento no Conselho Nacional das Cidades – do qual também fazem parte movimentos sociais, organizações não governamentais, sindicatos, setor empresarial e Universidade – e nos grupos de trabalho estadual (GTE) e nacional (GTN) de apoio à provisão habitacional, respectivamente da Superintendência e da Secretaria de Patrimônio da União. Dos quais também fazem parte: União Nacional de Moradia Popular (UNMP), Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM), Central de Movimentos Populares (CMP) e Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Nos grupos, as entidades discutem temas concernentes ao planejamento
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A Política Nacional de Habitação tem como componentes principais (i) urbanização; (ii) regularização fundiária; (iii) integração urbana de assentamentos precários e a provisão da Habitação; e (iv) integração da Política de Habitação à Política de Desenvolvimento Urbano (MCidades, 2004).
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pressionarem para que as terras públicas sejam destinadas para a Habitação de Interesse Social. Contudo, de acordo com Irene Mello (2015), o FNHIS recebeu verbas somente em 2008 quando do lançamento da Ação de Apoio à Produção Social de Moradia a Ação, esta descontinuada devido ao PAC – Urbanização de Assentamentos Precários. Tal programa não previa “mecanismos de controle social” (CARDOSO, 2011, p.5 apud MELLO, 2015, p.96), o que acabou por frustrar as reivindicações dos movimentos sociais no que concerne a participação democrática para elaboração e execução de políticas públicas. Ao enfraquecimento do FNHIS, somou-se o lançamento do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) em 2009. O PMCMV 50 – dividido em dois subprogramas: Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU) e o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) – é um programa habitacional do Governo Federal criado pela Lei Nº 11.977/2009 e que conta com: recursos do Orçamento Geral da União (OGU), do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), contrapartidas do poder público local, recursos próprios dos beneficiários e empréstimos dos agentes financeiros – tais instrumentos configuram-se como a promoção do acesso de famílias de 0 a 10 salários mínimos ao mercado de habitação formal. De acordo com portal oficial do Governo Federal51, o PMCMV desde sua criação contratou 4,2 milhões e dos quais já entregou 2,7 milhões de unidades habitacionais. O PMCMV foi criado enquanto uma medida anticíclica para conter os efeitos da crise financeira52 de 2008 e consequentemente “impactar a economia através dos 50
Para devido funcionamento do programa exige-se a participação efetiva do gestor municipal ou estadual como indutor, articulador e parceiro da implantação do PMCMV. São suas atribuições fundamentais : (1) gestão do território – regulamentar e aplicar os instrumentos urbanísticos do Plano Diretor, sobretudo, as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); (2) organização da demanda – realizar o cadastramento de beneficiários e diagnóstico da situação e demandas habitacionais; (3) articulação para viabilização de empreendimentos – (i) propor desoneração fiscal de tributos para redução dos custos de produção; (ii) identificar áreas prioritárias para implantação dos empreendimentos, (incentivando que as propostas sejam realizadas em ZEIS); (iii) articular-se com concessionárias para viabilizar a implantação, operação e a manutenção das redes de energia elétrica, água, saneamento e transporte público; e (4) gestão dos empreendimentos após a entrega das unidades – apoiar as famílias na gestão e manutenção do empreendimento . 51
Mais detalhes em: http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2015/09/minha-casa-minha-vida-entregou2-4-milhoes-de-moradias (Acessado em 15/10/2016). 52 Em 2007, a crise do neoliberalismo começou com o colapso dos empréstimos subprime nos Estados Unidos e tornou-se um marco na história do capitalismo especialmente porque desestabilizou não somente a estrutura financeira, como também economia real (DUMÉNIL; LEVY, 2012). Após a falência
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efeitos multiplicadores gerados pela indústria da construção” (ARAGÃO; CARDOSO, 2013, p.35). Ou seja, é um programa que relaciona-se a alavancagem financeira da construção civil e ao equacionamento do déficit habitacional. Desta feita, operou-se aquilo que Shimbo (2012, 2013) denomina de “habitação social de mercado”, na qual as empreiteiras são ao mesmo tempo: banco, construtora, incorporadora, vendedora de ações no mercado de capitais e correspondente do Governo na intermediação do financiamento. Ou seja, o programa configura-se como“ um instrumento eficiente para a sustentação do processo de financeirização e concentração de capital imobiliário” (ARAGÃO; CARDOSO, 2013, p.103) – cuja lógica de barateamento dos custos de projeto, mão de obra e matéria-prima ensejou processos de terceirização, subcontratação e periferização, uma vez que as unidades habitacionais foram construídas em áreas sem infraestrutura adequada e dissociadas de políticas públicas em saúde, educação, transporte, mobilidade urbana. Paulatinamente ao sucesso empresarial do PMCMV ocorreu o abandono dos processos participativos propostos pelo PlanHab. Enquanto o Plano incentiva a participação local e a diversidade de soluções, reconhecendo as especificidades locais e regionais, o PMCMV apoia-se em um modelo uniformizador como solução única para os problemas habitacionais. Uma das consequências foi a transferência de recursos do FHHIS para construção de casas padronizadas em áreas periféricas das grandes cidades. Em suma, devido ao o PMCMV, o FHNIS, mantido com recursos do OGU, deixou praticamente de apoiar a provisão pública de Habitação de Interesse Social. Caminho semelhante foi o do SNHIS, que a partir de 2009, foi redirecionado para ações de assentamentos precários em favelas, no apoio de ações do PAC e cujas diretrizes de participação popular e o controle social do sistema foram descontinuadas (BANDIM, KRAUSE E NETO, 2013, p.6).
do banco de investimentos Lehman Brothers, uma crise de crédito clássica transformou-se paulatinamente em uma crise bancária, financeira e sistêmica. Os derivados de crédito e os produtos lastreados em crédito imobiliário replicaram e multiplicaram os riscos decorrentes por uma grande variedade de instituições financeiras. Com a crise financeira internacional (2007-2008), em entorno de 2 milhões de famílias foram despejadas ou saíram de suas casas porque não conseguira pagar as dívidas hipotecárias. Ocorreu também a desvalorização do valor de mercado do imóvel e abandono de empreendimentos de obra. Isso foi resultado da financeirização, que vinculou o mercado de terra ao mercado de capitais. O certificado de terra transformou-se em uma forma de capital fictício – um título jurídico que dá a seu detentor o direito de se apropriar de uma parte da riqueza social (FIX, 2011, p.29). No Brasil, a viabilidade de contornar a crise foi contraditoriamente aquilo que desencadeou a crise nos Estados Unidos da América: processo de mercantilização da moradia (não enquanto direito, mas mercadoria), no qual o crédito tornou-se o principal instrumento para seu acesso.
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A despeito das críticas dos movimentos sociais, o PMCMV era a única alternativa para lidar minimante com o equacionamento do déficit habitacional. Então, o FNRU – composto pelo MNLM, CMP, CONAM e UNMP – mobilizou-se em idos de 2008 para disputar sua parte no PMCMV. Como fruto de uma série de manifestações, os movimentos sociais, em audiência com Luis Inácio Lula da Silva, então Presidente da República, e Dilma Rousseff, a época ministra da Casa Civil “(MINEIRO; RODRIGUES, 2012, p.26) reivindicam que “parte das 1 milhão de casas fossem construídas por autogestão”. Sendo a partir desta negociação que surgiu o PMCMV Entidades. De acordo o manual de Caixa53, o PMCMV-Entidades destina-se ao atendimento de famílias de até R$ 1.800.00 com recursos provenientes da OGU e do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS). Além da renda, exige-se das famílias do CADUNICO54 e que se comprometam na entrega da unidade a iniciar o pagamento das parcelas – podendo ser até 120 mensais ou no máximo 10 anos – relativa a 5% da renda. Já das Entidades exige-se o desenvolvimento do projeto, organização das famílias e apresentação dos documentos.
1.4 INQUIETAÇÕES METODOLÓGICAS: DIGRESSÕES DESTE MUNDO 1.4.1 A mudança Dos desejos e motivações, dentre eles o trabalho de campo, mudei-me para a Ocupação em 26 de setembro de 2016. Também o fiz pela inadiável dramatização da vida, já que com meus 26 anos de idade julgava ter ultrapassado o momento de sair daquela que precisava ser de daqui em diante: a casa dos meus pais, uma casa das visitas e confraternizações e não mais do cotidiano em comum. Levei livros, roupas, sapatos, computador, armazenadores e utensílios de higiene e cozinha enquanto tudo aquilo que já provisoriamente pudesse constituir o meu lar.
Além do CadUnico exige-se situação regular nos sistemas cadastrais: FGTS, Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), Sistema de Inadimplentes da Caixa (SINAD), Cadastro Informativo de Créditos Não-Quitados do Setor Público Federal (CADIN), Sistema de Crédito Imobiliário (SIACI/CIWEB) e Cadastro Nacional de Mutuários.
113 Figura 14. Campo Grande-Duque de Caxias
Antes vir morar aqui, eu só conseguia apenas fazer visitas pontuais. Estava nos momentos festivos, fundamentais para o reavivamento dos sentimentos coletivos, nos quais, entretanto, não acreditava poder vivenciar as coisas mais corriqueiras. Morar seria a possibilidade de estar “mais perto” das pessoas, relações e conflitos no decurso do cotidiano; de analisar tudo e todos pormenorizadamente, nas situações mais banais. Contudo, surgiu uma implicação: a proximidade física poderia produzir distanciamentos de outras ordens que nem mesmo a própria distância de então produzira. Os moradores poderiam ficar incomodados com alguém estudando a Ocupação, sentindo-se vigiados ou mesmo acharem que eu estava “roubado o lugar de uma pessoa que precisava mais”, o que advertidamente ouvi de alguns colegas do Mestrado. Este último foi um dos motivos pelos quais adiei a minha vinda. Porém, enquanto moradora de periferia, além de certa sensibilidade para entender o quão caro era a luta pela moradia, sabia que era possível fazer disso a minha luta, o que foi reiterado pelos coordenadores. Se estava disposta e disponível, então poderia vir assim que considerasse melhor. No dia da mudança meus pais acompanharam-me até aqui. Temerosos, não entendiam por que eu vim morar na Baixada Fluminense; “um lugar muito violento”, exaustivamente diziam. Decerto, impressões não sem qualquer embasamento, mas que reduzem múltiplas realidades às midiáticas abordagens sensacionalistas nas quais a população da Baixada é no geral retratada animalescamente em empurraempurras nas longuíssimas filas de transportes públicos e supermercados ou nas
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vidas encerradas por grupos de extermínios; de corpos ensanguentados estendidos em chãos de botecos. Em contrapartida, no intuito de dar-lhes um senso de identidade e continuidade, eu enumerava o que existia em comum entre Duque de Caxias e Campo Grande. “Tá vendo só, não é tão diferente”, assim sublinhava as similitudes no exercício de observância das precariedades caracteristicamente periféricas da infraestrutura urbana. Algo comum também quando reconhecia padrões na dinâmica econômica das suas respectivas centralidades; “tem um Calçadão com muitos comércios também”. Em suma, tentava demonstrar que não teria uma vida completamente diferente, no mais era sobre levar a vida que já tinha, que, em uma dimensão política, o sentimento de pertença ou mesmo limitações e possibilidades periféricas permaneciam. De acordo com Ana Lucia Silva Enne (2011), As pessoas que residem na Baixada Fluminense experimentam, continuamente, situações de conflito quanto às imagens que são projetadas para a região em que vivem, seja pelas representações da mídia e do senso comum, seja por aquelas criadas por setores da própria região. Esta relação de conflito evidencia-se ainda mais nas situações de contato, que, como indica Goffman, aumentam as possibilidades de identificação negativa dos estigmatizáveis, caso típico dos moradores da Baixada. É no mundo fora da Baixada, na imprensa, na grande mídia, no emprego, no local em que se estuda, no fim de semana na praia, enfim, nas diversas situações de interação e estabelecimento de fronteiras é que esta possibilidade de receber sobre si a marca da discriminação e do preconceito, conjugadas nas visões estereotipadas de que a Baixada é um lugar que se resume à violência e pobreza, aparece com mais força. A experiência cotidiana de quem reside na Baixada é, portanto, não linear e composta de um imaginário (entendido aqui como um conjunto de imagens projetadas sobre determinado objeto, fruto de construções de matizes diversas e espelho/reflexo de discursos vários sobre o mesmo) em permanente atualização (ENNE, 2011, p.2).
Quando chegamos, apresentei meus pais aos coordenadores do Movimento, Gelson e Noêmia. Algo notório foi observar nos risos e nas falas de “brincadeirinha” uma espécie de transferência de tutela e a exigência de cuidados. Sem qualquer mesura ou circunlóquios diziam: “cuidem da nossa filha”; “eles precisam saber que você tem pai e mãe”. Eu, reiteradamente, “uma mulher de família” agora desprotegida, desamparada e desacompanhada. Como se a mulher senão na virtualidade estaria no envergonhamento; sua bem-aventurança está no casamento, na maternidade, nos afazeres domésticos para os quais deve dedicar-se devotamente, caso contrário está fadada a desgraça moral – eu deveria ser uma mulher como Hera (Deusa das bodas, das esposas, da fidelidade conjugal e da maternidade) e não como Atenas (Deusa das artes, da justiça, da sabedoria, da civilização, da habilidade e da estratégia em batalha) ou Afrodite (Deusa do sexo, do amor, do prazer, da beleza e da perpetuação
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da vida). “Vamos trazer a sua irmã para cá, ela vai ver o que é bom pra tosse”, assim asseguram que a vida na Ocupação deve servir também enquanto uma pedagogia: da expiação, de expurgação de culpas, remorsos ou arrependimentos, dos mais aos menos espirituais. Liminaridade essencial para a reorientação de valores e expectativas em prol de uma existência apropriadamente humana e humanista – como se o movimento social ensejasse experiências de graça, piedade, misericórdia, conversão, salvação e santificação. Assim, a Ocupação enquanto uma espécie de empresa da precariedade que deve ensinar as pessoas a darem “valor as suas vidas” porque “sempre tem alguém em situação pior”. Envergonhada, eu não fiquei necessariamente. Não contestei os preconceitos comuns às socializações e sociabilidades vigentes. Contemporizei e indulgentemente entendi que aquele era mais um daqueles momentos de diluir os constrangimentos parentais nos amiúdes afetos e dos quais, de uma maneira ou de outra, sentiria saudades. 1.4.2 Das interações cotidianas “Estou escrevendo um livro” era o que dizia aos moradores quando indagada sobre o que “fazia da vida”; recurso este comumente utilizado por pesquisados em trabalho de campo (WHYTE, 2005, p.301). Os moradores não sabem, ou pelo menos não sabiam, o que significa exatamente mestrado ou dissertação, por isso decidi que era a melhor forma de dizer que estava escrevendo uma história sobre a Ocupação Solano Trindade. Fascinadas, as crianças, meninas entre 2 e 9 anos de idade, pegaram livros das mais variadas cores, formas e tamanhos na estante da sala da coordenação e perguntavam-me se o tal livro iria ser como este ou aquele – foi assim que, a despeito das diferenças, eu e os moradores estabelecemos um assunto em comum (p.304). Inúmeras outras perguntas corriqueiramente eram feitas. Esperadas até, haja vista ser a mais nova moradora daqui. Para os moradores era preciso saber quem eu era, de onde vinha e para onde estava indo. Assim, estava sob o olhar atento de todos; uma pesquisadora inextricavelmente pesquisada. Era como se estivesse em um “sistema de revezamento” (SIMÕES, 2015, p.41 apud FOUCAULT; DELEUZE, 1972) no qual a relação entre “nativo” e “etnográfico” borrava as fronteiras das margens entre um e outro (SIMÕES, 2015, p.43). Como observamos, a Ocupação é lugar da pedagogia do morar. Mora quem “precisa” e quem quer “fazer a luta”. Por isso, analisar uma ocupação urbana em luta
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por moradia digna é revelador tanto das relações interpessoais, ou dos “espaços intersticiais” (NADEL, 1956 p.172 apud FELDMAN-BIANCO, 2009, p.29), como das estruturais que, imiscuídas, se separam somente diante dos subterfúgios das delimitações teóricas. Em suma, para “fins de análise”. Na Ocupação, além de acionar a minha identidade enquanto “mulher periférica”, precisava reconhecer-me enquanto cientista social e “branca-de-olhosverdes”. Quando as moradoras afirmavam que eu não deveria estar com “uma vassoura na mão”, compreendi que meus atributos fenotípicos estavam também em correspondência com os aspectos culturais e socioeconômicas. Assim, definindo-me como aquela que não deve ou não precisa saber fazer atividades manuais ou afazeres domésticos, alguém que possui algo de notoriamente “aristocrático” e que “não deve provavelmente saber pegar no pesado”. Eram em momentos como estes em que percebia como as minhas características físicas afastavam-me daquele lugar subalterno e periférico que julgava ocupar independemente das circunstâncias. A maioria dos moradores da Ocupação é negra e por isso não posso desconsiderar os processos históricos que os transformaram em sem-tetos, periféricos e formalmente desempregados e a mim em alguém cujo lugar no trabalho intelectual não é no geral contestado. Embora tal distinção não seja ela prerrogativa para dizer que o conhecimento cientifico que (re)produzo é neutro, objetivo e imparcial, como se “por não ser eles” eu pudesse compreender suas respectivas realidades melhor do que os próprios, por estar “de fora” – como um “juiz de fora”. Como se o não-ser fosse por si só o distanciamento analítico. Todavia, o que não-seria eu, ali? E em que isso poderia validar o que escrevo aqui? De onde ou do que seria preciso me distanciar? Ou de que seria necessário me des-identificar para, supostamente, melhor entender? “Só compreende sociologicamente algo quem quer socialmente algo”. Esta máxima de Florian Znaniecki (apud THOMAS, 1918) pareceu-me a mais adequada e apaziguadora para enfrentar os comentários daqueles que insistiam não haver entre academia e a militância política caminhos possíveis e complementares. Justamente por entender que os obstáculos epistemológicos para a formação do espírito científico são de várias naturezas e se impõem tanto ao ateu quanto ao crente, tive que tomar os meus próprios posicionamentos como objeto de minhas reflexões metodológicas e, assim, pouco a pouco fui vendo se delinear um dos objetos dessa dissertação: em
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que se engajavam os atores que, de algum modo, e a partir de lugares sociais e institucionais distintos, se encontravam na Ocupação Solano Trindade? Quais eram os seus projetos? Eram todos políticos? Ou melhor, o que queriam produzir aqueles que ali estavam agindo politicamente? De antemão é preciso considerar que os objetos de estudo são o produto de relações e interações. Nesse sentido, enquanto sujeitos de projetos, interesses e motivações, os produtores da vida têm conhecimento de si e visões de mundo que deveriam, sempre, interessar à pesquisa acadêmica ou científica. Do contrário, ao tentar desqualificar a importância do mundo da vida, aí sim, teríamos razões para criticar um trabalho acadêmico, apontando uma “pura militância”. Por isso, afirmo minha militância, mas também reivindico o meu estatuto de pesquisadora. E, claro, esse meu posicionamento pode ser interpretado como uma decisão política. Mas é, sobretudo, epistemológica. Neste mesmo processo, compreendi que não era simples ou possível ter a procuração dos sofrimentos da humanidade e que as pessoas não precisavam de axiomas para inteligibilizarem suas vidas. Expertises, saberes e conhecimentos estão em disputa não somente no meio acadêmico, mas nas mais variadas esferas da vida. Trata-se de disputas de significados que são eminentemente políticas e no caso do meio acadêmico, Becker (1977) assevera: Não podemos jamais evitar tomar partido. Assim ficamos com a pergunta sobre se tomar partido significa que foi introduzida alguma distorção tão grande em nosso trabalho que o tornou inútil. Ou de maneira abstrata, se foi introduzida alguma distorção que deva ser levada em consideração antes que os resultados de nosso trabalho possam ser usados. Não me refiro aqui ao sentimento de que o quadro dado pela pesquisa não seja “equilibrado”, ao sentimento de indignação despertado quando uma definição convencionalmente desacreditada da realidade recebe propriedade ou igualdade em relação ao que “todo mundo sabe”, porque está claro que não podemos evitar isso. Esse problema é dos funcionários, porta-vozes e facções interessadas e não nosso. Nosso problema é ter certeza de que qualquer que seja o ponto de vista que adotamos, nossa pesquisa irá satisfazer aos padrões do bom trabalho científico, que nossas inevitáveis simpatias não tornaram nossos resultados sem validade (BECKER, 1977, p.129).
Assim, os métodos são a medida multidimensional, que temporária ou permanentemente, damos às coisas. A princípio poderia dizer que a diferença entre ambos, qualitativo e quantitativo respectivamente, é por um ser microscópico e outro macroscópico. Contudo, vai depender daquele que observa, capaz de ver algumas propriedades no objeto justamente por ter, dele, alguma perspectiva. Ambos os
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métodos citados, portanto, não analisam diferentemente uma mesma coisa, senão coisas diferentes; que não são estáticas ou estanques e cujas delimitações, mais do que analiticamente necessárias, movem-se, dilatam-se, comprimem-se e rompem-se à revelia do que estabelecemos. Logo, desconsiderar as múltiplas perspectivas possíveis e imagináveis é o mesmo que colocar os outrora confiáveis instrumentos à beira da obsolescência. Ademais, entre agigantar e apequenar coisas, ou por tornarem-se coisas no momento mesmo em que as delimitamos enquanto pequenas ou gigantes, a ciência, em alguns casos, é mais verossimilhança do que fidedignidade, uma vez que ao invés de mero espelhamento é uma ficção de realidades. Isso porque padrões, sínteses e simulações estão tanto no cerne da aleatoriedade metodológica como na arbitrariedade das convenções sociais. Sendo a ciência do mesmo modo uma invenção caracteristicamente real e realista de tais ficções. Portanto, fazer estudo de caso não é algo correlato ao menosprezo às questões estruturais e conjunturais da política nacional. Observamos as situações sociais para também compreendermos relações, estruturas e instituições sociais (GLUCKMAN, 2009, p.239). Ter por prioridade o método qualitativo, não é escolher as pessoas ao invés de dados, estatísticas e tabulações. Os números são também enunciados de um discurso e, como tal, dizem algo a respeito dos sujeitos, ao mesmo tempo que, apropriados por eles, também os constituem – são, pois, representações de indivíduos que enunciam indivíduos e também de sujeitos que enunciam outros sujeitos, e essa alternativa é exemplo de uma aposta epistemológica e política. O método qualitativo é privilegiado aqui porque o conhecimento que ora nos interessa produzir é expressado pela prospecção de discursos e representações, bem como das trajetórias individuais e coletivas que compõem a Ocupação Solano Trindade, e os seus significados para todos os que nela se encontram. Em suma, a pesquisa empírica, de caráter etnográfico, é aquela através da qual observamos os embates e consensos firmados entre os grupos, instituições e movimentos sociais envolvidos no projeto. Outro ponto importante, foi que entender que nem sempre as circunscrições teóricas iriam justapor-se às aquelas produzidas por sujeitos que agem e que fazem mundos humanos de formas não teóricas. De acordo com Carlos Nelson Ferreira do Santos, em introdução a sua obra Movimentos Sociais Urbanos: É comum os analistas se esquecerem de que não são neutros (ocupam posição hierárquica e têm função privilegiada em nossa sociedade, o que lhe confere poder)
119 e de que seus objetos de estudo são, de fato sujeitos) o que explica a sua tendência incomoda e renitente à fuga de classificações e delineamentos simplistas). Além do mais, nada autoriza o pensamento de que os conceitos transparentes e puros dados pelas teorias sobre a social sejam simétricos e isomorfos em relação às práticas sociais. Na realidade, a complexidade das práticas ultrapassa, em muito, a pobreza da teoria e obriga à sua contínua revisão. Trata-se, assim de evitar o uso dos moldes que acabam por provar, de modo consequente e circular, que o que se propunha está bem pressuposto, ou, como em certos sistemas de equações algébricas mal resolvidos após um enorme esforço de cálculo, que x é igual a x. (DOS SANTOS, 1981, p.12).
O início desta dissertação faz-se no escrutínio de um indivíduo, de um ser social padronizado, normatizado, mas ainda assim diferenciado e característico: Alice. Na Ocupação, cada indivíduo com suas respectivas generalidades e especificidades foi como um achado antropológico. De tal maneira que suas vidas poderiam aqui ser também esmiuçadas. Entretanto, por uma série de motivos, dentre eles sobretudo a amizade, eu escolhi Alice. Desta feita, a fiz em cabimento às questões teóricometodológicas acima detalhadas e em circunspecções mais abrangentes, através dos quais processos como: capitalismo, urbanização, emprego/desemprego, violência, criminalidade, déficit habitacional e políticas públicas tornaram-se pano de fundo no detalhamento das vidas humanas em sociedade. Ou seja, não compreendo Alice como um simples fragmento, quando sim integrante de uma totalidade; totalidade esta que não “evoca um todo orgânico, funcional, sem conflitos” e nem mesmo “coincide com limites político-administrativos” de um país, mas algo cujo pressuposto, partindo “múltiplos planos e escalas”, inteligibiliza as mais diferentes experiências humanas (MAGNANI, 2009, p. 137). Ademais, a dissertação se sustenta também na necessidade do trivial e corriqueiro, no estabelecimento de assuntos universais (WHYTE, 2005, p. 303) para que tivéssemos e ainda tenhamos uma relação de troca, sem contudo aprisionarmo-nos em pares como pesquisada-pesquisadora ou entrevistada-entrevistadora. Já o conceito de etnobiografia (CARDOSO; GONÇALVES M.A; MARQUES, 2012) serviu-nos para a analisar as entrevistas, uma vez que os entrevistados foram entendidos para além de dualismos como individual/social e público/privado. O que nos permitiu também compreender as instituições sociais enquanto constituídas e constituintes da criatividade individual. A saber, (...) a narração é tida como simultaneamente constitutiva da experiência, do evento, do social e dos personagens-pessoas. É tomada para além de uma função representativa, evidenciando assim sua função poética de dar forma ao ‘real’. No
120 lugar de tratar a narrativa como distinta de práticas sociais ‘concretas’, a etnobiografia recusa a separação entre discurso, linguagem e experiência, insistindo na qualidade produtiva do discurso. Da mesma forma, o conceito de etnobiografia afeta necessariamente não só o modo como tratamos as histórias que os sujeitos etnográficos nos contam, mas também como contamos nossas histórias etnográficas sobre essas histórias e seus personagens-pessoas. Em outras palavras, a etnobiografia implica uma dimensão metanarrativa da etnografia, em que o lugar da agência da própria narrativa etnográfica torna-se objeto etnográfico (CARDOSO; GONÇALVES M.A.; MARQUES, 2012, p.5).
Além do mais, a etnografia não pode ser confundida com tornar-se porta-voz ou fazer transcrições ipsis litteris nos quais erros de sintaxe e concordância são mantidos como marca de realidade e autenticidade (MAGNANI, 2003, p.83) – no mais é preciso considerá-las como Geertz: “words, whole words and, nothing but the words” (GEERTZ, 1988, p.96 apud PEIRANO, 1995, p.37). Nem sequer com uma obsessão de detalhamento ou com uma “tentativa de aldeia”, no qual o objeto tem que ser “exótico, distante e singularizado” (MAGNANI, 2003, p.81). Em suma, a etnografia é uma relação de troca através da qual se produz um modelo novo de entendimento (pp. 84-85), um “modo de acercamento e apreensão de um conjunto de procedimentos” (IDEM, 2002, p.11). Em se tratando da cidade, é capaz de nos revelar os “arranjos coletivos” e os “usos vernaculares”; as estratégias que os atores sociais utilizam para usufruir e transitar nela (IDEM, 2009, pp.136-137). Contudo, a observação não pode ser nem tão de perto, que transforme o indivíduo em algo atomizado e não tão distante, ou no nível das “grandes estruturas físicas, econômicas e institucionais”, que mesmo abrangentes são, nestes casos, indecifráveis (p.138). Entendemos que a pesquisa antropológica é análise, mas também um tipo de interação social que não se sustenta pela oposição entre neutralidade e engajamento, visto ter como corolário a interferência da participação e das contingências sociais (MACHADO, 2016, pp. 16-17). Assim, o pesquisador, a despeito de sua área de conhecimento e das motivações pessoais, observa e descreve tenho “su copresencia y su coparticipación em una situación dada la afecta directa o indirectamente, así como afeta su propia investigación (ABÉLÈS; BADARÓ, 2015, p.18). Ou seja, a pesquisa coloca tanto a “prática etnográfica” e “experiência etnográfica”, esta imprevista e descontínua e aquela continua e programada (MAGNANI, 2009, p. 136). Conforme Simões (2015): O etnógrafo é, por excelência, um tipo de pesquisador que vai “ao encontro do mundo”. Um mundo que existe na ação. E é em um conjunto de interações que o
121 etnógrafo tem a matéria de seu trabalho, o seu “dado empírico”. Ele interage com outras pessoas, e a materialidade do seu próprio corpo e a concretude de seus gestos, palavras e ações também constituem a pesquisa na medida em que engajam os seus interlocutores. Nesse sentido, eu gosto sempre de pensar que a etnografia é um método que ensina e educa o pesquisador para a atenção. O etnógrafo, em sua prática, tem a ocasião de desenvolver os seus sentidos – olfato, paladar, tato, visão e audição – para os significados que os convocam e tornam relevantes aspectos do mundo que pretende conhecer. Nesse processo do fazer – a pesquisa etnográfica – opera-se uma educação para a atenção ao mundo do outro (SIMÕES, 2015, p.52).
Já o ato de descrever não é uma realidade anterior e exterior a pesquisa ou a linguagem; como se entre as palavras e as coisas houvesse sempre unidade, identidade, estabilidade e permanência de sentido (LAPLANTINE, 2004, p.38). Mais do que recolher dados, a saber, informar ou comunicar um conteúdo pré-existente, a descrição faz o inédito, não por meio da transcrição ou decodificação, mas da tradução e da comparação (EVANS-PRITCHARD, 1972 apud PEIRANO, 1995, p.39). Isso porque, descrever não é um decalque, mas um mapa, por isso “aberto, conectável em todas suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p.30). A etnografia, portanto, não é “um horizonte explicativo”, quando sim um “horizonte histórico e hermenêutico que “deve dar conta das circunstâncias nas quais observações foram feitas” (SIMÕES, 2015, p. 53). Assim, as conversas formais e informais não revelam simplesmente as dimensões sociais da vida, quando são elas próprias essas tais dimensões; simultaneamente contando e fazendo a vida; narrando-a e entretecendo-a em histórias. Como reitera Ingold (2011), Pois as coisas deste mundo são as suas histórias, identificadas não por atributos fixos, mas pelas suas trajetórias de movimento em um campo de relações em desdobramento. Cada uma é o foco de uma atividade em curso. No mundo narrativo, portanto, como já vimos (capitulo 22, p.227), as coisas não existem, elas ocorrem. Onde as coisas se encontram, as ocorrências se entrelaçam na medida em que cada uma se torna ligada à história da outra. Cada uma dessas ligações é um lugar ou tópico. É nesta ligação que o conhecimento é gerado. Conhecer alguém ou alguma coisa é conhecer a sua história, e ser capaz de juntar essa história a sua. No entanto, é claro, as pessoas crescem em conhecimento não somente através dos encontros diretos com outras pessoas, mas também por ouvirem suas histórias contadas. Contar uma história é relacionar, em uma narrativa, as ocorrências do passado, trazendo-as à vida no presente vívido dos ouvintes que como se estivessem acontecendo aqui e agora. (...) o significado da “relação” tem que ser entendido literalmente, não como uma conexão entre entidades predeterminadas, mas como o retraçar de um caminho através do terreno da experiência vivida. Trilhando o caminho de um lugar a outro na companhia de outros mais experientes do que eles, e ouvindo suas histórias, os novatos aprendem a conectar os eventos
122 e experiências das suas próprias vidas às vidas dos antecessores, tomando recursivamente os fios dessas vidas passadas no processo de fiar a sua. Mas, ao contrário do crochê e do tricô, o fio que está sendo fiado agora e o fio tomado do passado são ambos o mesmo. Não há nenhum ponto em que a história termine e a vida comece. As histórias não devem terminar pela mesma razão que a vida também não deveria. E na história, como na vida, é no movimento de lugar a lugar – ou de tópico a tópico – que o conhecimento é integrado (INGOLD, 2011, pp.236237).
Entretanto, as interações sociais não são per se estabelecimentos da observância cientifica. De modo que a pesquisa não pode prescindir do tratamento científico e nem desconsiderar o senso comum e os entendimentos tácitos enquanto equipamentos para a imprescindível autonomização da vida em corpos e sociedades; em sistemas sociais, culturais, cognitivos, políticos e econômicos. Assim nem sempre será
possível
questionar
tais
entendimentos,
sobretudo
diante
de
certos
interlocutores, posto que são os caminhos dos encontros e dos relacionamentos. Em suma, isso nos ensina a respeitar as mais comuns e múltiplas vivências que, em prol de uma vida social, estamos todos sujeitos. Como baliza Simões (2015):
O pesquisador é visível, assim como os elementos que nota e anota. Essa presença é sempre criativa, ainda que sem outro esforço que não seja a mera presença física. E isso porque uma nova presença surge ainda como ocasião para a criação de um novo espaço fundado, também, por uma nova linguagem. As trocas que ali passam a acontecer exigem um repertório comum, um vocabulário comum, um comportamento compreensível ou um aprendizado(...). Estar é, assim, a ocasião imprescindível para que surjam oportunidades únicas de ver o mundo – ou de ver um mundo – e, assim, fazê-lo existir (p.15).
A impossibilidade de descrever e circunscrever todas as influências que nos trouxeram até às preocupações apresentadas demonstra que certas categorias dão conta do escopo teórico-metodológico, mas não necessariamente da totalização da vida. A ciência, assim compreendemos, é correlato de tudo aquilo que não a é. Isto porque, as palavras presentes nesta dissertação são resultado das tantas outras que não estão aqui, uma vez que existir é escolher também o que desacontecer; essa coisa de “quem, o quê, por quê, quando e onde” ´pode mais nos afastar do que nos aproximar das pessoas (WHYTE, 1995, p.303). Desta maneira torna-se imprescindível assumirmos que na reordenação e reposicionamento entre observação e escrita algumas coisas inevitável, ou mesmo negligentemente, perdem-se e/ou transformamse (STRATHERN, 2014, p.346). Não somente pelo laboral aprimoramento textual, mas porque entre os interlocutores é permitida a sobrevida das alegrias e tristezas ao
123
mesmo tempo que certas palavras são como segredos jamais contados. Logo, o contrabalanceamento entre senso comum e os fundamentos científicos estará sempre nas possibilidades, (imagináveis e inimagináveis) dos imponderáveis do campo de pesquisa (MAGNANI, 2003, p.93). No meu caso, morar na Ocupação significou tornar-me moradora, um devir que não escapou ao trabalho da etnógrafa, na medida em que trazia comigo algumas virtudes heurísticas, posto que situada no mundo, tendo adquirido outras qualidades ao estar ali dessa forma, eu adquiria também um ponto de vista. Além do mais, eram projetadas em mim expectativas de outros tantos engajamentos, o que me obrigava a compreender os agenciamentos possíveis, plausíveis e desejáveis como moradora de uma ocupação. Tratava-se, assim, dos processos de formação de uma militante, agora claramente colocados.
SUGESTÕES PARA UM JOVEM PESQUISADOR
Teremos que transpor, às vezes, enorme distância temporal entre o fato NARRADO e o ACONTECIDO, experiência sempre difícil devido às transformações ocorridas, sobretudo nas mentalidades. O PASSADO, a rigor, é uma alteridade absoluta, que só se torna COGNOSCÍVEL mediante a voz no narrador.
Para compreendermos tal AVENTURA, útil é nos munirmos como os etnólogos de um diário de campo, onde iremos registrando DÚVIDAS e DIFICULDADES. Nossas falhas, longe de serem um entrave, irão, se compreendidas, aplainar o caminho dos estudiosos que nos agradecerão por tê-las apontado.
Confessar, em DIÁLOGO ABERTO, nossas dificuldades ao depoente, durante cada etapa do trabalho, fará com que ele acompanhe melhor o rumo
da
pesquisa
FACILITADORAS.
e
muitas
vezes
ajuda
a
descobrir
PISTAS
124
Sobre a distância temporal que nos separa do fato lembrando, teríamos ainda a considerar que o sujeito realiza uma ordenação pessoal. Essa ordenação obedece a uma LÓGICA AFETIVA cujas motivos ignoramos; enfim, recontar é sempre um ATO DE CRIAÇÃO. (BOSI, 2003, pp.61-62)
Os moradores da Ocupação são meus conterrâneos e contemporâneos e compartilhamos, reconhecendo de antemão diferenças e especificidades, certas vivências e categorias no empreendimento classificatório do mundo e das coisas. Entretanto, é certo que alguns de meus companheiros da Ocupação só são ouvidos quando estabelecem relações com mediadores e interlocutores. Por isso, a depender da legitimidade conferida pelos pesquisadores, os moradores são ora “diminuídos”, ora “engrandecidos” em certas circunstâncias. Assim, a relação dos ocupantes com pesquisadores tem tanto reconhecimento mútuo como assimetrias. Essa questão será abordada quando falarmos da relação do MLMN com a Assessoria Técnica da UFRJ, posto que foi nesta relação na qual observei o aparecimento dos sentidos pedagógicos de uma ocupação urbana e das intensidades variadas que engajam os sujeitos nesta dissertação. 1.5 NO INÍCIO ERA O VERBO: AS CATEGORIAS QUE COMPÕEM O QUADRO DE VIDA E INSCREVEM SEUS HABITANTES EM UM MUNDO POLÍTICO. As categorias a seguir são as mais recorrentes em conversas entre as famílias do projeto, coordenadores do Movimento e da Assessoria Técnica. Ao mesmo tempo são categorias analíticas baseadas em referenciais bibliográficos das Ciências Sociais e Humanas. Elas, as categorias, compõem um conjunto de ideias que valoram a interação dos atores citados em prol da formação político-pedagógica, sobretudo daqueles em suas primeiras experiências com movimentos de luta por moradia. Como também, compõem-se na delimitação teórica desta pesquisa.
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1.5.1 Ser-pedagógico No geral relacionamos a pedagogia à escola, educação, crianças, alfabetização e a relação professor-estudante. Em se tratando do MNML, ser-pedagógico é uma das atribuições dos militantes na conversão e chamamento de outros indivíduos para que assim participem efetivamente da luta do Movimento. A pedagogia consiste em um processo de convencimento no qual os indivíduos devem deixar de ser “alienados”, “ignorantes” e “preconceituosos” e, por conseguinte, perceberem-se enquanto “trabalhadores explorados”, cuja sobrevivência e vida digna dependem da luta pela conquista e cumprimento de direitos sociais. Uma vez que a luta pretende-se duradoura, os coordenadores e demais militantes responsabilizam-se pela propagação e manutenção de consensos sobre os processos sociais, culturais, políticos e econômicos, através dos quais os recémchegados possam ter a noção verdadeira do seu lugar no mundo. Isso consiste no que a literatura marxista e marxiana define como “consciência de classe”. O Movimento lança mão de uma série de expedientes para “desconstrução” de ideias machistas, racistas, preconceituosas e individualistas, ensejando assim um processo de desnaturalização no qual os iniciados aprendem que tais ideias são construções sociais que prejudicam a coesão e organização da classe trabalhadora, e consequentemente impedem o surgimento de uma sociedade mais justa e igualitária. A Ocupação Solano Trindade corresponde a uma área de 48 mil metros quadrados e na qual se pretende construir 105 unidades habitacionais, além des bens, serviços e equipamentos urbanos. Como parte do processo de conquista da terra, mesmo já tendo garantido sua destinação para o projeto de moradia autogestionária, os coordenadores do Movimento decidiram ocupá-la em agosto de 2014 sob a justificativa de acompanhar o projeto, resistir as possíveis tentativas de reiteração de posse e iniciar as famílias no aprendizado da luta. Portanto, o intuito de ocupar era fazem com que as famílias assimilassem o significado de morar-e-resistir na vida cotidiana e assim fizessem valer a agenda programática do Movimento na sua transformação em militantes: naqueles que compõem a base e reproduzem os códigos da luta em ocupações, congressos, assembleias, manifestações ou reuniões. Este sentido pedagógico assemelha-se ao Dagnino (2000) denomina de política cultural, a saber:
126 Interpretamos política cultural como o processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais moldados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflito uns com os outros. Essa definição supõe que significados e práticas – em particular aqueles teorizados como marginais, oposicionais, minoritários, residuais, emergentes, alternativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos em relação a uma determinada ordem cultural dominante – podem ser fontes de processos que devem ser aceitos como políticos. (...) A cultura é política porque os significados são constitutivos dos processos que, implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder social. Isto é, quando apresentam concepções alternativas de mulher, natureza, raça, economia, democracia ou cidadania, que desestabilizam os significados culturais dominantes, os movimentos põem em ação uma política cultural (DAGNINO, 2000, p.25).
Aliás, relacionamos o sentido pedagógico com o conceito de política cultural porque compreendemos que a luta pela moradia digna faz-se necessariamente de mudança de concepções e comportamentos em prol da ideia fundamental de que morar dignamente é um direito social. O caminho até a assimilação deste entendimento perpassa a idealização de que a cidade deve ter uma distribuição equânime de serviços e infraestruturas. O que pode ser apreendido pela sentença proferida pelos coordenadores: “Não deve existir moradia sem cidade e cidade sem moradia”. Assim enfatizam a indissociabilidade entre Direito à Moradia e Direito à Cidade e a defesa de um projeto habitacional enquanto um projeto de sociedade. O projeto do Movimento contrapunha-se àqueles considerados “individualistas”, “empresariais” e “mercadológicos”, posto que compõe-se na integralidade com políticas públicas em saúde, educação, cultura, transporte, mobilidade e segurança. Desta feita, o Movimento distancia-se da lógica fundiária e imobiliária do interesse privado, bem como da defesa de ideias que só beneficiam política e economicamente as classes já privilegiadas historicamente. A pedagogia do Movimento está também nos seus símbolos, faixas, bandeiras e camisetas. Em uma das tentativas de reintegração de posse, policiais militares realizaram uma espécie de cerimônia de destruição e eliminação efetiva dos objetivos do MNLM, no qual celebraram a expulsão do Movimento e a restituição da ordem vigente. Vale salientar que ao em vez de jogá-los no lixo, devolvê-los ou deixá-los como estavam, o ato de colocar fogo fez-se como uma maneira das instituições repressoras reconhecem a eficácia simbólica dos objetivos; como se quisessem evitar algum tipo de contágio e contaminação. Alguns meses depois, ainda no quesito da eficácia simbólica dos objetos, quando funcionários da Secretaria de Meio Ambiente de Duque de Caxias quiseram retornar a horta que funcionava próximo à entrada da Ocupação, os moradores e coordenadores decidiram hastear a bandeira do
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Movimento na entrada da Ocupação como demonstração do controle e da autoridade que exercem sobre a terra. Entendemos, portanto, que os sentidos dos símbolos se fazem por um processo de agenciamento no qual os militantes atribuem aos objetos significados de acordo com as exigências das circunstâncias de dramatização da luta. Ora os expõem, ora os guardam; ora os afirmam; ora os negam. Decerto, já é fácil compreender que o conceito de ser-pedagógico é um dos motes desta dissertação. Com tal categoria delineamos analiticamente a relação dos coordenadores com militantes e as famílias inscritas no projeto. Até porque, além do Movimento, a Assessoria Técnica demonstra um intento pedagógico na formação dos inscritos no projeto, posto que pretende transformá-los em participantes efetivos do projeto arquitetônico-urbanístico. Mesmo que não façam referências reiteradas, os coordenadores balizam-se pelos preceitos do pedagogo brasileiro Paulo Freire (1991-1997), cujas obras Pedagogia do Oprimido (1987), Pedagogia da Autonomia (1996) e Pedagogia da Indignação (1997) são reconhecidas nacional e internacionalmente. Considerado um dos maiores defensores da Educação Popular, Freire (1996) enfatiza o quão caro é o desenvolvimento de uma pedagogia com o povo e não sobre o povo. Isso porque, o ser humano é uma Presença no Mundo, que fala, intervém, transforma, avalia, valora, decide e rompe (p.10) e, para tanto, ao se diferenciar dos animais instaura a necessidade da ética e da responsabilidade para com o mundo e os outros seres humanos. Segundo Freire (1996), a educação não deve ser somente transferência de conhecimento, mas sim “ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado” (p.13), de maneira que realize a prática ensinaraprender enquanto “uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, epistemológica, pedagógica, estética e ética” (p.13). Assim, a educação progressista precisa instigar uma “inquietação indagadora” nos educandos e desenvolver “uma inclinação ao desvelamento de algo” ou uma “procura de esclarecimento” (p.15). Ou seja, a educação progressista deve fomentar a criatividade de modo que enseje uma forma de transformar a curiosidade ingênua em curiosidade epistemológica, está no reconhecimento do “valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação” (p.20). Freire (1996) enfatiza que a vida humana é uma intervenção, uma vez que as ações e linguagens inevitavelmente transformam o mundo. Deste modo, diante das
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tensões radicais “entre o bem e o mal, entre a dignidade e a indignidade, entre a decência e o despudor, entre a boniteza e a feiura do mundo” (p.22), devemos fazer da educação progressista o meio pelo qual nos descobrimos enquanto seres históricos, condicionados e não determinados na elaboração de uma ética consonante com a vida humana digna e de superação da relação oprimidos-opressores. Portanto, a educação progressista auxilia-nos na compreensão da inconclusão e inacabamento do ser humano através de valores imprescindíveis como: a eticidade, a dialogacidade, a amorosidade e a solidariedade. Conforme Freire (1996):
Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar não é possível (FREIRE, 1996, p.24).
Preceito elementar que atravessa todas as obras de Paulo Freire é aquela que considera a prática pedagógica enquanto uma prática fundamentalmente política. Isso porque para Freire (1996) a pedagogia possui um aspecto de politicidade, posto que não há a menor possibilidade da vida ser neutra e imparcial. Logo, é justamente por não ser que podemos criar uma “subjetividade curiosa, inteligente e interferidora” (1996, p.24) e, por conseguinte, ensejarmos um processo de humanização cada mais distante da desumanização (1987, p.16). Em Pedagogia do Oprimido, Freire (1987) afirma que a educação progressista deve ser elaborada pelos oprimidos e não pelos opressores, uma vez que deve consistir em um processo de libertação, ou seja a “restauração da intersubjetividade”, baseado na autenticidade, na generosidade e no humanismo. Para Freire (1987): A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação (FREIRE, 1987, p.23).
Ademais, a conquista da liberdade pelos oprimidos deve ser dialógica, consciente de seu lugar na história e não instrumento de anti-diálogo, domesticação, verticalidade e sloganização (p.29). Estes normalmente utilizados pelos opressores
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para fazer o povo “cair no engodo populista e transformá-los em massa de manobra” (p.29). Segundo Freire (1987), a libertação dos oprimidos é imprescindível para que se reconheçam enquanto homens e mulheres em “sua vocação ontológica e histórica de Ser Mais” (p.30). Deste modo, o papel do educador progressista, que se assemelha ao dos coordenadores do Movimento e da Assessoria Técnica, é o de conjuntamente com o educando apreender a realidade enquanto uma totalidade e não como mero depósito, como faz a “educação bancária”. Por sua vez, a educação bancária é conservadora, instrumento da classe opressora, baseada na repetição, memorização e arquivamento de conteúdo. Diferindo, portanto, da educação progressista cujo conteúdo é crítico, complexo e vivificado e de caráter libertário e problematizador, visto ser um ato cognoscente e gnosiológico. Aliás, a educação progressista não “assistencializa”, quando sim criticiza” (p.40), se fundando “no caráter histórico e na historicidade dos homens” (p.42); na ação e na reflexão. No propósito de desenvolver um conteúdo programático baseado em ação política esperançosa e transformadora é imprescindível que exista uma relação “presente, existencial e concentra” (p.46) entre educador e educando. Portanto, a educação progressista deve ser aquela na qual educandos sejam educadores e educadores, educandos. Para Freire (1987), o processo de conscientização não deve ser algo puro, estoico, subjetivo e situacional, mas aquilo que “prepara os homens, no plano da ação, para a luta contra os obstáculos à sua humanização” (p.65). O mesmo vale para as lideranças políticas que devem permanentemente vigiar suas condutas de modo a evitar que sua autoridade transforme-se em opressão, violência ou constrangimento. Em suma, as lideranças não podem tratar os oprimidos “como meros fazedores ou executores de suas determinações” (p.71), quando sim praticarem conjuntamente uma ação cultural dialógica cujo horizonte seja a “revolução cultural” e a chegada dos oprimidos ao poder. Por isso, a pedagogia do oprimido propõe provocar uma fusão entre lideranças e massas em uma espécie de ação revolucionária; desta feita uma experiência realmente humana, por isto, “simpática, amorosa, comunicante e humilde” (1968, p.99).
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OS PRECEITOS DA EDUCAÇÃO BANCÁRIA QUE DEVE SER SUPERADA POR UMA PEDAGOGIA LIBERTADORA a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição; g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador; h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptarse às determinações daquele; j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos. (FREIRE, 1987, p.34).
Já em Pedagogia da Esperança, Freire (1996) afirma que a esperança é uma necessidade ontológica, um imperativo existencial e histórico. Contudo, ela não deve ser uma simples espera, mas uma prática através da qual devemos almejar a concretude histórica de superação dos massacres dos povos “invadidos”, “subjugados” e “colonizados” (p.6). Logo, ter esperança é lutar por um outro mundo e encarar os riscos necessários à sua concretização.
Não haveria cultura nem história sem inovação, sem criatividade, sem curiosidade, sem liberdade sendo exercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, sem a luta. Não haveria cultura nem história sem risco, assumido ou não, quer dizer, risco de que o sujeito que o corre se acha mais ou menos consciente. Posso não saber agora que riscos corro, mas sei que, como presença no mundo, corro risco. É que
131 o risco é um ingrediente necessário à mobilidade sem a qual não há cultura nem história. Daí a importância de uma educação que, em lugar de procurar negar o risco, estimule mulheres e homens a assumi-lo. É assumindo o risco, sua inevitabilidade, que me preparo ou me torno apto a assumir este risco que me desafia agora e a que devo responder. É fundamental que eu saiba não haver existência humana sem risco, de maior ou de menor perigo. Enquanto objetividade o risco implica a subjetividade de quem o corre. Neste sentido é que, primeiro, devo saber que a condição de existentes nos submete a riscos; segundo, devo lucidamente ir conhecendo e reconhecendo o risco que corro ou que posso vir a correr para poder conseguir um eficaz desempenho na minha relação com ele (FREIRE, 1997, p.16).
De acordo com Freire (1997), nossa existência no mundo fundamenta-se em dois atos: escolha e decisão. Escolhemos e decidimos enquanto maneiras de existir, posto que inevitavelmente valoramos, percebemos, inteligibilizamos e damos nomes as coisas. Essa, portanto, é condição primordial para “eticizarmos” o mundo, e constituirmos sonhos, imaginários e idealizações com potências geradoras. Conforme Freire (1997): é na “capacidade de observar, de comparar, de avaliar para, decidindo, escolher, com o que, intervindo na vida da cidade, exercemos nossa cidadania” (p.17). Mesmo que a realidade idealizada seja utópica deve ser ainda assim prática de transmissão de valores e condutas transformadoras. Portanto, é somente deste modo que a programação de nossa existência humana de mera aderência e adaptação, devolvendo-se em uma programação de transformação do mundo. É porque podemos transformar o mundo, que estamos com ele e com outros. Não teríamos ultrapassado o nível de pura adaptação ao mundo se não tivéssemos alcançado a possibilidade de, pensando a própria adaptação, nos servir dela para programar a transformação. É por isso que uma educação progressista jamais pode em casa ou na escola, em nome da ordem e da disciplina, castrar a altivez do educando, sua capacidade de opor-se e impor-lhe um quietismo negador do seu ser. É por isso que devo trabalhar a unidade entre meu discurso, minha ação e a utopia que me move. É neste sentido que devo aproveitar toda oportunidade para testemunhar o meu compromisso com a realização de um mundo melhor, mais justo, menos feio, mais substantivamente democrático (FREIRE, 1997, p.17).
Segundo Freire (1997), é a consciência do mundo que permite a consciência de nós mesmos e coloca desta maneira sua mudança. Por isso, “não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos faz e que nos torna históricos” (p.20). Aliás, a educação progressista como metodização da curiosidade e leitura de mundo problematizadora permite-nos “a ultrapassagem da pura conjectura para o projeto do mundo” (p. 21). Logo, enquanto “prática docente em que o ensino rigoroso dos conteúdos jamais se faça de forma fria, mecânica e mentirosamente neutra”
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(p.22), a pedagogia libertadora, deve valorizar as emoções, desejos, vontades, escolhas, decisões e resistências, bem como a compreensão da história como possibilidade (...), substantivamente esperançosa e, por isso mesmo, provocadora da esperança (p.23). Aliás, percebi que minha vivência na Ocupação não escaparia de um sentido pedagógico qualquer. Aqui tornei-me, entre outras coisas, a “tia” das crianças. Tia por uma extensão do parentesco, como dado às professoras das escolas de ensino infantil e fundamental, por quem as crianças têm respeito, admiração e intimidade. Através das quais as crianças espelham-se para se tornarem homens, mulheres, pessoas de alguma importância, reconhecidas pelos membros de suas comunidades. Como uma tia, eu adquiri atribuições, sobretudo por ter entendido o proeminente caráter pedagógico de uma ocupação, diferentes das de outras moradas e de outros modos de morar. Mais importante do que “Minha Casa, Minha Vida”, a vida em uma ocupação parecia orientada por um valor coletivizado, social. Nós, nossa casa, nossa cidade, nossa cidadania. Na Ocupação não é raro ouvir os adultos dizerem que “minha casa virou uma creche”. De certo modo, todos os adultos têm responsabilidades para com as crianças. Geracionalmente, os mais idosos devem ser exemplares na formação política dos mais novos. Assim, é fato que a vida em sociedade é um eterno processo de aprender e ensinar. Contudo, ser-pedagógica em uma ocupação alça-nos na assunção de compromissos explícitos na transformação da vida em uma existência digna, justa, igualitária e democrática. Além de tia, assumo uma maternidade ocasional nas brincadeiras de mãe-efilha; o que tem se tornado uma solicitação constante das meninas para brincamos de “comidinha”, “arrumar a casinha” e “amamentar a filha” 55. Percebo que isso não se faz “(...) Grande parte do trabalho doméstico pode ser realizado pela criança muita pequena; habitualmente os meninos são dispensados; mas permite-se, pede-se mesmo à irmã, que varra, tira o pó, descasque os legumes, lave um recém-nascido, tome conta da sopa. A irmã mais velha, em particular, é assim geralmente associada às tarefas maternas. Por comodidade, hostilidade ou sadismo, a mãe descarrega nela boa parte de suas funções; ela é então precocemente integrada no universo da seriedade; o sentido de sua importância a ajudará a assumir sua feminilidade, mas a gratuidade feliz, a despreocupação infantil são-lhe recusadas. Mulher antes de idade, ela conhece cedo demais os limites que essa especificação impõe ao ser humano; chega adulta à adolescência. Mulher antes da idade, ele conhece cedo demais aos limites que essa especificação impõe ao ser; chega adulta à adolescência, o que dá à sua história um caráter singular. A menina sobrecarregada de tarefas pode ser prematuramente escrava, condenada a uma existência sem alegria. Mas se só lhe pedem um esforço ao seu alcance, ela experimenta o orgulho de ser eficiente com um adulto e regozija-se de ser solidária com as “pessoas grandes”. Essa solidariedade é possível pelo fato de não haver entre a 55
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porque necessariamente as suas respectivas mães estejam em falta, mas porque de alguma forma a maternidade precisa existir em excesso. Desta maneira, a maternidade compõe um complexo: exercido não somente pelas mães, mas por outras mulheres que correspondem aos arquétipos estabelecidos (punitiva/proibitiva, afetuosa/permissiva ou negligente/indiferente). Dia desses, uma das crianças disseme, em sua linguagem deliberadamente infantilizada: “tem que dar muito amor, muito carinho, muita atenção senão não é mãe”. Já outra parece subtender a maternidade em minha simples presença, chamando-me de mãe sem que alguém tenha pedido ou permitido “brincar”. Ela assim solicitou: “vamos no mercado comprar biscoito e danone, mãe”. Compreendi que ela quer ter comigo aquilo que com a sua mãe é ou está em suspenso – e como já exploramos nesta dissertação, biscoite e iogurte são considerados para algumas pessoas elementos de luxo na produção de distinção social. Deste modo concluímos que a vida social dispõe simulacros e emulações de normas, protocolos e procedimentos socioculturais para que funções e condutas já existam como uma espécie de ensaio. Neste caso, das “filhas” em futuras mães e, por conseguinte, a reprodução das normatividades de gênero e dos relacionamentos conjugais e familiares. Em resumo, a brincadeirinha de mãe-e-filha reafirma uma “natureza” que mulheres devem ter nos afetos e cuidados como as crianças. O que não é mero faz de contas, uma vez que a Ocupação também se faz com valores mais ou menos tradicionais, em que papéis de gênero existem e são dispositivos para certas formas de engajamento no mundo.
1.5.2 Movimento Social O MNLM é um movimento de luta por moradia na defesa da Reforma Urbana e do Direito à Cidade, e utiliza certas insígnias como: palavras de ordem, faixas, bandeiras e camisetas vermelhas no intuito demarcar-se enquanto um Movimento menina e dona de casa uma distância considerável. Um homem especializado em seu ofício acha-se separado da fase infantil por anos de aprendizado; as atividades paternas são profundamente misteriosas para o menino; neste, mal se esboça o homem que será mais tarde. Ao contrário, as atividades da mãe são acessíveis à menina; “já é uma mulherzinha”, dizem os pais; e julga-se por vezes que ele é mais precoce do que o menino: na verdade, se se acha mais próxima da fase adulta é porque esta fase permanece mais infantil na maioria das mulheres. O fato é que ela se sente precoce, que sente lisonjeada por desempenhar junto dos irmãos mais jovens o papel de “mãezinha”; torna-se facilmente importante, faça sensatamente, dá ordens, assume ar de superioridade sobre os irmãos encerrados no círculo infantil, fala com a mãe em pé de igualdade” (BEAUVOIR, 2009, p.381-382).
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Social de Esquerda. De modo geral, compreendemos o MNLM como um grupo ou destacamento social cuja autodeterminação faz-se por indivíduos que compartilham interesses e engajamentos em comum; tanto na (i) produção de identidade e pertencimento em prol da coesão entre “os de dentro” (militantes e coordenadores); em uma dimensão mais interna. Como (ii) nas formas, a despeito de contrapontos e desentendimentos internos, através das quais se apresenta para “os de fora” (outros movimentos, ONG’s nacionais e internacionais, pesquisadores e agentes do Estado) e vislumbra produzir consensos; em uma dimensão mais externa. O Movimento converte seus interesses tanto para uma “comunidade intencional” (ABERS; BULOW, 2011, p.62) na defesa da autogestão, associativismo e cooperativismo, ou seja uma “sociedade de aperfeiçoamento local” 56 que visa reconstituir a vida citadina através de novos valores, costumes e sentimentos (PARK, 1979, p.32). Como também em manter uma “política de conflito” (ABERS; BULOW, 2011, p.60) ou uma “política de proximidades” (ABERS, SERAFIM, TATAGIBA, 2014) na configuração de relações com agentes do Estado para realização das suas
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A cidade, segundo Park, possui dois tipos de organizações que interagem reciprocamente, uma física e outra moral, a saber, estrutura e tradição. Ou seja, além dos limites definidos por “zonas industrial e residencial” ou “empreendimentos privados”, existe a segregação por “gostos e conveniências pessoais, interesses vocacionais e econômicos”, por aquilo que “não pode ser projetado ou controlado” (1979, p.29). Para tal, Park elenca a “vizinhança” como “uma sociedade de aperfeiçoamento local” enquanto uma categoria analítica. As relações de vizinhança são “diretas”, ou seja de “associação e cooperação face a face” (p.46), no qual o controle social é pessoal, espontâneo e costumeiro e dá-se através de instituições, como igreja, escola e família, em detrimento de um sistema abstrato e racional característico das leis positivas (p.47). Outra categoria analítica que evoca um grupo ou solidariedade social é a “vocação”, que na cidade adquire um “caráter de profissão e de disciplina” (p.38). Contudo, diferentemente, da “vizinhança”, a “vocação”, devido a divisão do trabalho, tende a ser uma “comunidade de interesses” e não de hábitos e sentimentos (p.39). A vocação relaciona-se a mobilidade do trabalhador, negociante ou proprietário na busca de melhores condições nas quais podem ganhar dinheiro; o dinheiro que racionalizou os valores (p.40), transformando os sentimentos em interesses e desenvolvendo uma moral para as relações impessoais. De forma que a mobilidade, em oposição ao isolamento, levou os indivíduos ao desenvolvimento intelectual de ideia abstratas (pp.40-41), e é o aquilo que diferencia um camponês de um judeu, por exemplo, tendo este último adquirido um sistema de análise e classificação através de relações mercantis de compra e venda realizadas nas praças; que o levou a adaptar-se melhor ao reajustamento das condições materiais de vida. Assim, diante da imprevisibilidade dos momentos psicológicos típico de crises e multidões, como greves, mudanças sociais e movimentos revolucionários, a notícia e os jornais tornam-se os relatórios através dos quais os indivíduos se mantém “a par dos tempos”, ou seja, atualizados em “novos métodos, experiências e esquemas” (p.43). Sem contar, o surgimento de reformas, restrições e controle governamental para elaborar um novo controle social (p.52). Contudo, a vida citadina no desenvolvimento de todos “os tipos de gente” faz com que as classes vocacionais existam segregacionalmente, de modo que podem andar juntas pelas calçadas dos grandes centros, mas não se comunicarem ou compartilharem valores e interesses; ou seja produz-se um novo tipo de isolamento. Ou mesmo, para além das “condições econômicas” ou “interesses ocupacionais” desenvolve, uma “região moral”, um local de reunião ou encontro formado por aqueles com gostos e temperamentos em comum no intuito de liberar as tensões, paixões e instintos reprimidos (p.65).
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demandas e reivindicações, seja para acessar subsídios e financiamentos ou na participação em conselhos, conferências e grupos de discussão em ministérios, secretarias e superintendências. Deste modo, almejando participar da formulação, acompanhamento e execução de políticas públicas. Ambas as dimensões, complementares e interdependentes, fundamentam--se na ideia de que é preciso desenvolver princípios de igualdade, cooperação e solidariedade em prol da coesão dos militantes em torno da elaboração de uma esfera pública na superação dos problemas da esfera privada (ABERS; BULOW, 2011, p.56). Em suma, uma maneira de sair do individual para o coletivo. De modo a manter-se enquanto tal, o Movimento deve firmar constantemente o seu compromisso com a luta; o que perfaz uma essência ou ontologia. Desta maneira, compreendemos o MNLM em uma existência apriorística: 1) do diacrônico ao sincrônico: (i) de constituirse como entidade social em um processo histórico, de ser um empreendimento duradouro e legitimado – com projeto elaborado, bem-fundamentando, que não confie em voluntarismos e espontaneísmos e por isso possui registro, estatuto e regimento – de caráter autônomo, contestatório e reivindicatório; 2) contudo, não ser anacrônico: (i) não permitir que nas relações com o Estado – imprescindíveis, uma vez que diante da nova institucionalidade democrática (DAGNINO, 2000, p.87) não se colocam mais em posição de insulamento (TILLY, 2006 apud MCADAM; TARROW, 2011, p.19) em relação a política institucionalizada – sua agenda seja cooptada e aparelhada, que incline-se às lógicas burocráticas e empresariais e (ii) que sua natureza moral e lógica, propagada por militantes e coordenadores no chamamento de iniciados, mesmo de caráter axiomático e doutrinário, não seja retrógrada, conservadora e fundamentalista. Ou seja, é preciso transformar a luta em algo perene sem contudo permitir que transformações sociais, culturais, políticas e econômicas desvirtuem-na em processos de inflexão e capitulação. De mais a mais, o MNLM não se configura como um grupo social contra o Estado (CLASTRES, 2017). Ou seja, por mais crítico que seja, não só do Estado – mas de toda e qualquer organização autoritária e totalizante que coagula, sedimenta, sedentariza, reterritorializa a existência humana em segmentos hierarquizados de idade, gênero, raça, profissão e classe social excluindo e execrando outras formas de vida (DELEUZE; GUATTARI, 2011a , 2011b, 2012a, 2012b, 2011c) – o Movimento é formado por indivíduos produzidos pela subjetividade capitalística (GUATTARI;
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ROLNIK, 2005), lutando assim por cidadania e políticas públicas dentro das possiblidades do sistema vigente. Por isso, o Movimento desenvolveu um repertório de ação coletiva (TILLY, 2005), ou seja, “um conjunto de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e encenadas através de um processo deliberado de escolha (TILLY, 1995, p. 26 apud SILVA; OLIVEIRA, 2011, p. 90). Assim, diante das exigências formais para financiamento, o MNLM apresenta-se como entidade filantrópica com CNPJ para CEF; em outro momento aglutina-se com demais movimentos sociais de luta por moradia quando das manifestações pela manutenção de direitos sociais; como também diferencia-se dos mesmos em termos de táticas e estratégias sobretudo na disputa de cadeiras em conselhos e grupos de trabalho; ainda imiscui-se na legitimidade da Universidade para apresentar-se na sociedade enquanto entidade com lastro de confiabilidade, e de modo a usufruir do conhecimento cientifico fornecido por seus profissionais na defesa de uma educação comprometida com o social; e de diferenciar-se desses mesmos profissionais quando disputa o protagonismo na luta pela Reforma Urbana e pelo Direito à Cidade.
FASES DE UM MOVIMENTO SOCIAL 1. Situação de CARÊNCIA ou IDEIAS e conjunto de METAS e VALORES a se atingir; 2. FORMULAÇÃO das demandas por um pequeno número de pessoas (liderança e assessorias); 3. AGLUTINAÇÃO de pessoas (futuras bases do movimento) em torno de demandas; 4. TRANSFORMAÇÃO das demandas em REIVINDICAÇÕES; 5. ORGANIZAÇÃO elementar do movimento; 6. Formulação de ESTRATÉGIAS; 7. PRÁTICAS COLETIVAS de assembleias, reuniões, atos públicos etc; 8. ENCAMINHAMENTO das reivindicações; 9. PRÁTICAS DE DIFUSÃO (jornais, conferências, representações teatrais etc.) e/ou execução de certos projetos (estabelecimento de uma comunidade religiosa, por exemplo);
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10. Negociações com os OPOSITORES ou INTERMEDIÁRIOS por meio de INTERLOCUTORES; 11. CONSOLIDAÇÃO e/ou INSTITUCIONALIZAÇÃO do movimento; (GOHN, 2012, p.266-267)
Aliás, uma das premissas do MNLM, considerando certas falas dos coordenadores, é a definição rigorosa de seus limites conceituais; o que faz do MMLM um Movimento Social e não uma empresa, ONG, governo ou Estado. Contudo, isso não quer dizer que o Movimento necessariamente seja anti-empresa, anti-ONG, antigoverno ou anti-Estado, uma vez que se consideram imprescindíveis as relações com técnicos, secretários, administradores, superintendentes, parlamentares, estudantes e professores universitários enquanto intermediadores e interlocutores na formulação e execução do projeto de moradia autogestionária. Desta forma, é com tais agentes, mesmo com divergências formais e conjunturais, que o Movimento realiza a “costura”: a formação de redes de troca de saberes, influências e legitimidades. Por exemplo, os técnicos são aqueles que acumulam expertises sobre funcionamento da burocracia. Então, os considerados progressistas ou que tenham feito parte da luta pela Reforma Urbana são vistos como companheiros de luta que auxiliam no cumprimento das exigências protocolares em editais de financiamento e de processos de regularização fundiária. O mesmo ocorre com a Assessoria Técnica da UFRJ que tem realizado a topografia, o levantamento socioeconômico, a análise de impacto ambiental e o projeto arquitetônico-urbanístico. Assim, na articulação com tais atores o Movimento supera “supostas propensões paróquias, fragmentárias e efêmeras” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.36). Por isso, além das táticas de enfrentamento através dos quais procura diferenciar-se do Estado, o MNLM constitui também campos institucionalizados de negociação com aparelhos estatais (p.26), fazendo parte: do Conselho e da Conferência das Cidades (Ministério das Cidades); Grupo de Trabalho Estadual de Apoio a Provisão Habitacional (GTE) da SPU-RJ e do Grupo de Trabalho Nacional de Apoio a Provisão Habitacional (GTN) da SPU-OC; além de comporem a Comissão de Representantes do Empreendimento (CRE) e a Comissão de Acompanhamento de Obra (COA), em vista do cumprimento dos prérequisitos do financiamento da Caixa para o PMCMV-Entidades.
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1.5.3 Luta No senso comum, luta significa um confronto físico entre duas ou mais pessoas que se desentendem por razões quaisquer, ou mesmo porque competem esportivamente. Portanto, a luta é algo que envolve agressividade e adversarismos. Já no MNLM, e em outros movimentos sociais de modo geral, é corriqueiro ouvirmos sentenças como a “luta é necessária”, que uma pessoa “é de luta” e “companheira”, por estar reconhecidamente comprometida como projeto. Compreendemos a luta como uma categoria cotidiana, posto que se relaciona com o entendimento de que os direitos
sociais
só
serão
cumpridos
mediante
“pressões”,
“resistências”,
“enfrentamentos” e “tensiosamentos” exercidos organizadamente pelos militantes do MNLM. Vale salientar que o quê entendemos como luta é um processo de formação bastante complexo, onde os participantes vivem estados de “communitas” mais ou menos pronunciados (TURNER, 1974), e no qual os ocupantes constroem um lugar de acordo com desejos coletivos estabelecidos. Os militantes e coordenadores assumem que a produção de injustiças e desigualdades é própria do sistema capitalista. Por isso, a garantia de direitos sociais compete paralelamente com interesses políticos e econômicos contrários aos avanços sociais e adoção de políticas públicas. Assim, a luta do Movimento está também embasada por ideias marxistas, socialistas e revolucionárias, uma vez que se entende que algumas conquistas só serão possíveis em outra sociedade – e não é nenhuma coincidência ouvir os militantes constantemente elencam categorias de temporalidade como “avanço”,
“progresso”,
“mudança”,
“transformação”,
“crise,
“recuo”
e
“retrocesso”. Logo, tais categorias expressam que o MNLM tem o futuro enquanto melhoramento social, político, cultural, econômico, jurídico; no qual as instituições humanas precisam ser aprimoradas. No processo de expansão capitalista, o tempo tornou-se cada vez mais dividido, serializado, segmentado, cumulativo e irreversível (POULANTZAS, 2000, p.109). O que dificulta a inteligibilização do tempo, e por isso, o Movimento desenvolveu uma lógica no qual se entende que certas questões da existência humana não são meramente individuais, efêmeras ou circunstanciais, mas estruturais e estruturantes, ou seja causa e efeito da lógica do sistema político e econômico vigentes. Entretanto, como sentencia Karl Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte: fazemos a História, mas não como a queremos. Ou seja, o tempo não é sequência
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unilinear, progressiva, evolucionista e teleológica (POULANTZAS, op.cit. p.110); um encadeamento causal que enseja equacionamento ou aperfeiçoamento daquilo que outrora é considerado errado, incompleto ou rudimentar. Tampouco o tempo é uma aleatoriedade de eventos dispersos e externos entre si, como se acidentais, efêmeros e incomensuráveis fossem. Logo, nem sempre os projetos políticos do Movimento se realizarão a contento; do qual podemos observar como os militantes interpretam os acontecimentos, e de que maneira políticos e lideranças são responsabilizados ou não pelos fracassos e sucessos do Movimento. 1.5.4 Ocupação Em um questionário socioeconômico, o termo ocupação refere-se a situação de trabalho e emprego, sejam formais ou informais. Já em um movimento de luta por moradia, ocupação é usado em contraponto ao conceito de “invasão”, este recorrentemente utilizado por meios de comunicação em vistas da deslegitimação e criminalização de certos movimentos sociais. Assim, ocupação é uma forma de positivar as ações do Movimento e arregimentar “pobres” e “trabalhadores explorados” para a conquista de direitos sociais. Ademais, com a criação do Capítulo de Política Urbana na Constituição Federal de 1988, o MNLM incorporou uma espécie de ideal de legalidade, afirmando assim que a luta está praticamente subtendida pela lei. De modo que, exemplarmente, uma de suas palavras de ordem mais conhecidas é: “Se morar é um direito, ocupar é um dever”. No caso do MNLM, antes do estabelecimento de uma ocupação, há um levantamento prévio das terras públicas inutilizadas, ocupando-se aquela que apresenta mínimas condições de habitabilidade e de resistência em relação às possíveis tentativas de reintegração de posse. Compreendemos que ocupar uma terra envolve organização e planejamento, não sendo, portanto, algo meramente espontâneo. O termo ocupação é também utilizado para designar as manifestações nas audiências de câmaras legislativas e no hall de instituições como Ministério da Fazenda, Ministério das Cidades e Caixa Econômica Federal, como uma forma de visibilizar a luta pela moradia e exigir o encaminhamento de acordos e resoluções no que tange a execução satisfatória de políticas públicas. Além do mais, é uma forma do Movimento transmitir o modus operandi da luta para os seus militantes, dando-lhe, em suma, um caráter pedagógico.
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A ocupação é um espaço construído e idealizado. De acordo com Michel de Certeau (1994), o espaço diferentemente do lugar é constituído por relatos e experiências; desta feita formado e transformado por subjetividades individuais e coletivas – compondo-se fenomenológica e linguisticamente, como algo feito, refeito e desfeito por ações, semânticas, sintaxes e metáforas e por estruturas políticas, sociais e econômicas ou mesmo aquelas psicológicas, cognitivas e comportamentais. Assim, o espaço é o cruzamento de móveis ou um lugar praticado. Contudo, enquanto resultado de diversidades – e adversidades –, o espaço compõe-se na elaboração de distinções, delimitações, identidades e disciplinamentos, seja pelo Estado ou por grupos sociais na imposição de éticas e estéticas hierarquizantes e legitimatórias, que podem tanto homogeneizar ou heterogeneizar o espaço. Ou seja, a construção de um espaço envolve relações de poder e disputas de significado com reconhecimento de algumas experiências em detrimento de outras – envolvendo, portanto, o ocultamento ou esquecimento de relatos que não coadunam com os oficiais. Ademais, o espaço faz-se na territorialização de grupos, comunidades e sociedades, cujas identificações configuram aquilo que José Reginaldo Gonçalves (2005) denomina de “ressonância”; colocando, por exemplo, dimensões como: corpo e alma, material e imaterial e passado e presente. Logo, a Ocupação é uma tentativa de realizar a cidade idealizada pela imperiosa ação de transformar o lugar em espaço, se constituindo assim enquanto uma prática cotidiana de furtividade; de apropriação territorial e identitária.
1.5.5 Estado Como já explicitado, é constante a relação do Movimento com agentes de instituições governamentais. Aparentemente poderíamos reduzir a relação em dois conceitos, Movimento Social e Estado, e a depender dos matizes metodológicos e epistemológicos fundamentar tal relação em (i) como aquela que se dá entre dois entes estanques, herméticos e homogêneos, anterior e externamente determinados ou (ii) como aquela em que não sendo externos entre si, Movimento Social e Estado não existem ontológica e aprioristicamente na natureza, mas nas circunstâncias das relações dadas. Assim apresentados aparentam meros axiomas. Mas não estão aqui pelo propósito da escolha entre ou outro, quando sim pela possibilidade de dizermos algo a partir do que não queremos dizer. Se a escolha da a primeira opção é afirmar que as instituições possuem uma única verdade, intrínseca, ahistórica e atemporal,
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não a queremos. Tampouco, se escolhermos a segunda, na qual as instituições não possuem materialidade própria. Entretanto, se com elas entendermos que as verdades podem ser múltiplas e discursivas e que mesmo que digam sobre a materialidade e estabeleçam o que ela é e ou deve ser – consideraremos ainda que há algo de tal materialidade que nenhuma linguagem permite-nos dimensionar – decerto nos será útil. Desta feita, o que é observável não é tudo o que pode ser Estado ou Movimento Social, mas que também não é uma parte insignificante diante de um todo obscuro, misterioso e desconhecido; é o que temos e sobre o qual teorizamos. Seja o Estado, os funcionários imbuídos de certa militância em transformá-lo em prol de políticas sociais, será ainda Estado. Seja o Movimento Social, o produtor de formas inovadoras de violências e constrangimentos, ainda será Movimento Social. Em suma, o objetivo é escapar de dualismos e binarismos como mal/bom; algoz/vítima e dominantes/dominados. Segundo Poulantzas (2000), o Estado é o lugar da Luta de Classes, logo, não é simples reduto da dominação política de determinada classe 57. O que existe é uma natureza de classe, é no caso do Estado Capitalista é a dominação da classe burguesia que está inscrito na sua materialidade institucional (2000, p.13). Essa materialidade institucional do Estado é não constituída como superestrutura de um
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Karl Marx inicia o segundo parágrafo de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte com a seguinte frase: Os homens fazem a história; contudo não fazem de livre e espontânea vontade (Marx, 2011, p.25). Esta obra e As Lutas de Classe na França são duas nas quais Marx apresenta uma análise de conjuntura sobre a Revolução de Fevereiro de 1848 na França, que destituiu o Rei Luis Felipe de Orleans em vistas da criação da uma nova república, a Segunda República (1848-1851). O governo provisório que se constituiu era liderado pela burguesia industrial republicana e formado por diferentes classes sociais: pequena burguesia democrático-republicana, operariado social-democrata e oposição dinástica (os Bourbon). O ideal da Revolução era superar o monarquismo, assim como os resquícios do absolutismo e do feudalismo, pelo menos foi o que aglutinou classes sociais com interesses e condições materiais diversas e antagônicas. Entretanto, diante do desenrolar dos acontecimentos, a classe operária começou a demonstrar certo descontentamento, uma vez que o engajamento na Revolução foi em prol de conquistas para a classe e não somente para alçar a burguesia ao poder. O que culminou com a insurreição proletária em junho de 1848 massacra pelo própria República Constitucional ou Parlamentar. Esse embate, assim como o conjunto de outros que se seguiram delineiam de modo cada vez mais nítido a oposição entre burguesia e proletariado; que a burguesia outrora revolucionária na superação do absolutismo e do feudalismo torna-se conservadora e o proletariado o novo sujeito histórico revolucionário. Assim a burguesia alijou violentamente o proletariado do processo da constituição republicana, alçando o poder, não por uma revolta liberal da burguesia contra o trono, mas por meio de uma rebelião do proletariado contra o capital (Marx, 2011, p.41) – que ao invés de ser o mais revolucionário, foi o mais contrarrevolucionário dos eventos. Para controlar o proletariado, a burguesia se organizou no Partido da Ordem. Contudo, no anseio de controlar as massas, optou abrir mão de seu poder político e das instituições democráticas e repúblicas em vistas da manutenção de seu poder econômico, o que permitiu o crescimento da figura de Luís Napoleão Bonaparte, eleito em 1848 para presidente e o seu golpe de Estado que restaurou o regime imperial.
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modo de produção econômico “hermético, enclausurado e depositário de suas próprias leis de funcionamento interno” (2000, p.15). Ou seja, não é a “cristalizaçãoenvoltório-reflexo” de um processo tecnológico das forças produtivas, quando sim relações políticas e ideológicas que conferem ao Estado uma externalidade que prescinde de determinações econômicas. Principalmente porque tais relações não intervêm nas relações de produção de modo a ocultá-las, como se elas tivessem uma pureza original de autogeração. Em suma, as relações político-ideológicas já estão presentes nas relações de produção e por isso a primeira atuação do Estado está, portanto na formação e reprodução das classes sociais e, por conseguinte, na luta de classes (2000, p.26). De acordo com Poulantzas (2000), o Estado exerce o seu domínio político repressivo lançando mão da ideologia para ter a legitimidade necessária. A ideologia é tanto um sistema de ideias ou representações como “uma série de práticas materiais, extensivas aos hábitos, costumes e modos de vida” (p.27). Contudo, a ideologia em Poulantzas (2000) não é um sistema de inversão, encobrimento e falseamento, como se as classes dominantes através do Estado simplesmente estivessem mentindo e enganando as classes dominadas. Ou seja, a hegemonia não é só fazer o que se quer, mas estabelecer equilíbrio e compromisso através de discursos fragmentados e fragmentadores, que prescindem de uma unidade intrínseca e se destinem às diferentes classes. Por isso observamos que o discurso do rei, imperador ou presidente não é algo meramente heroico, encantatório ou carismático, quando sim assentado em uma “política de adesão social de bem-estar para assegurar as massas” (WEBER, 1992, p.826 Apud FAORO, 2000, p.27). Logo, a soberania e a legitimidade do Estado estão em “uma séria de fundações sucessivas” envolvendo sobretudo um saber-poder – composto por conhecimentos políticos, sociólogos e econômicos – por meio do qual discurso é ao mesmo tempo ação, tática e estratégia. Segundo Poulantzas (2000): O Estado não produz um discurso unificado e, sim, vários, encarnados diferentemente nos diversos aparelhos de acordo com a classe a que se destinam; discursos dirigidos às diversas classes. Ou então produz discurso segmentar e fragmentado segundo as diretrizes da estratégia do poder. O discurso, ou segmentos de discursos dirigidos à classe dominante e suas frações, e às vezes também às classes de apoio, são na realidade discursos-confissões de organização. O Estado jamais se esconde, nem as táticas que representa; não que se trate de conciliábulos de antessala que se tornam conhecidos contra a vontade do Estado, mas porque a um certo nível o dizer da tática é parte integrante das disposições do Estado com vistas a organizar as classes dominantes, é parte do
143 espaço cênico do Estado em seu papel de representação dessas classes (POULANTZAS, 2000, p.31).
Conforme afirma Poulantzas (2000), o Estado Capitalista concentra outras formas de poder, interferindo cada vez mais nas diferentes esferas da realidade social, “dissolvendo o tecido social tradicionalmente “privado” e infiltrando-se nas tramas e setores do poder” (p.35) e desenvolvendo uma técnica política para ocupar campos como lazer, transporte, habitação e assistência social, perfazendo aparelhos de elaboração e expansão da ideologia dominante. Tal ideia, se aproximada do conceito de Estado enquanto caixa de ressonância, desenvolvido por Deleuze e Guattari (2011a, 2011b, 2012a, 2012b, 2011c); e para os quais a ressonância estatal, segundo (ABÉLÈS; BADARÓ, 2015) é o procedimento através do qual o Estado “captura” forças externas para constituir o seu próprio poder. La metáfora acústica de la “resonancia” pone de relieve la capacidade del Estado para organizar, jerarquizar, resignificar en un ámbito específico y singular una multiplicidad de elementos cualitativamente heterogéneos. El poder estatal se expressa como poder de captura, codificácion y amplificacíon: la resonancia estatal opera capturando los flujos, singulares y expressiones múltiples de la vida social y codificándolos bajo um registro y binario que somete a los indivíduos a segmentos duros interconectados: família-trabalho-mercado-escuela-ciudad, etc. (...) La resonancia estatal concentra y fija el poder en um território sobre el cual reclama soberanía. Pero esta resonancia nunca es absoluta ni infalibre (ABÉLÈS; BADARÓ, 2015, p.35-36).
Deleuze e Guattari desenvolveram uma série de conceitos como: devir, molar, molecular, estratificação, segmentaridade, linha de fuga, corpo-sem-órgãos, plano de consistência, agenciamento e multiplicidades – e outros como rizoma, rostidade e hecceidade. Tais conceitos, sobretudo o de agenciamento, prestam-se a produzir uma concepção de Estado, não pelas noções de estrutura, infraestrutura e superestrutura ou de indivíduo e sociedade, quando sim pelo entendimento de que ele é composto por graus, repousos, velocidades e movimentos. Ou seja, o Estado é uma linha de segmentaridade molar ou rígida com uma sobrecodificação generalizada e de concentricidade de círculos em ressonância. Deste modo, o que ele faz é binarizar a existência em sociedade (homem-mulher, sujeito-objeto, individuo-sociedade). Contudo, o Estado não realiza somente macrodecisões e escalas binárias, como também submerge em atrações, desejos e microdeterminações (DELEUZE; GUATTARI, 2012 p. 111) na composição de linhas de fuga e de segmentaridade flexível. Conforme Guattari (2005):
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O Estado cumpre um papel fundamental na produção de subjetividade capitalística. E um Estado-Mediador, um Estado Providência, pelo qual tudo deve passar, numa relação de dependência, na qual se produz uma subjetividade infantilizada. Essa função ampliada do Estado – muito mais abrangente do que os poderes administrativo, financeiro, militar ou policial – se realiza, por exemplo, através de um sistema assistencial, aquilo que no EUA é chamado de welfare state. É um sistema de “salários diferidos”; um sistema de subvenções que fazem com que o grupo se autorregule, se autoforme, se autodiscipline; um sistema de informação, de exame, de controle, de hierarquia, de promoção etc. O Estado é esse conjunto de ramificações, essa espécie de rizoma de instituições que denominamos “equipamentos coletivos”. É por essa razão que programas partidários podem incluir sem medo, propostas de autogestão (ROLNIK, GUATTARI, 2005, p. 172).
E enfatiza: Insisto no fato de que isso não se dá apenas em relação às funções produtivas. É também ao Estado-Providência que nos referimos para saber se vamos ou não transar, como quem e como, se devemos ou não amamentar e de que jeito. Essa função infantilizadora do poder do Estado se dá a um nível extremamente miniaturizado, que não se limite ao esquadrinhamento do social e do comportamento. Essa modelização atinge também as representações inconscientes. Aí talvez resida a diferença desta concepção em relação à concepção althusseriana dos “aparelhos ideológicos do Estado”; não se trata só desses equipamentos visíveis, encarnados na sociedade. O Estado também funciona a um nível invisível de integração (Ibidem, p.173).
Nesta dissertação, os técnicos, professores, secretários, supervisores, superintendentes – os funcionários do Estado –, assim como as leis, regulamentos e portarias – a escrita do Estado – compõem tanto os as linhas de segmentaridade molar como as linhas de segmentaridade molecular do Estado. Em que pese tal afirmativa estabelecer os funcionários e a escrita enquanto totalidades e integralidades – como se nada escapasse do Estado –, é ainda através da qual compreendemos os mecanismos de captura estatais, uma vez que sua lógica de funcionamento faz-se de forças díspares, ora no sentido do fortalecimento das classes dominantes, ora na contestação do poder dessas mesmas classes com o contrabalanceamento através da distribuição de direitos sociais e políticas públicas em favor das classes menos privilegiadas. De mais a mais, tal concepção ajuda-nos a escapar de apreensões como: Estado-mínimo e Estado-máximo, Estado-próximo e Estado-distante; EstadoResponsável e Estado-Abandônico, Estado-divino (deus ex machina) e EstadoDiabólico (diabolus in machina) (BOURDIEU, 2012, p.33). Interessamos, portanto, como os funcionários do Estado relacionam sua militância a uma espécie de engajamento que é a um só tempo político e profissional. Assim como os militantes
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do Movimento, cujas relações estabelecidas com tais funcionários faz-se na transformação de reivindicações enquanto direitos que devem ser assegurados pelo Estado. 1.5.6 Traição O termo Traição usamos corriqueiramente para designar uma quebra de confiança e fidelidade no trato dos relacionamentos pessoais. Algo, portanto, de uma dimensão afetiva. Desde que iniciamos a pesquisa, é comum ouvir por parte dos coordenadores do MNLM que os movimentos sociais foram traídos pelos governos de Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), ambos do PT. O uso do termo revela-nos que os militantes possuem uma relação política – e afetiva – fundada em também em sentimentos de amor, amizade, camaradagem e companheirismo. Alguns movimentos de luta por moradia, sobretudo o MNLM, possuem um histórico de atuação em comum com o PT – sendo alguns de seus militantes são filiados ao partido. Ou seja, é “uma militância múltipla” (MISCHE, 1997; 2008 apud SILVA; OLIVEIRA, 2011, p.96) na qual há o “compartilhamento de militantes, marcos interpretativos, orientações ideológicas e estruturas organizativas” (HANAGAM, 1998 apud IBIDEM, 95). Isso porque, tais movimentos, diferentemente do restante da sociedade, identificam-se com partidos políticos na crença de que os mesmos são crucias para a realização das mudanças sociais desejadas (ALVAREZ, DAGNINO, ESCOBAR, 2000, p.44). Assim, uma agenda de diálogos e compromissos foi estabelecida entre o PT e certos movimentos sociais de esquerda, já que os últimos ajudariam a eleger Lula e Dilma e, por conseguinte, dariam legitimidade popular ao pleito da eleição majoritária para executivo. Contudo, para garantir a governabilidade – na composição da maioria na Câmara e no Senado Federal – , além dos sindicatos, movimento sociais e entidades progressistas, que evidenciam “um forte enraizamento do PT no universo associativo brasileiro” (p. 97), foram estabelecidos pactos e alianças com grupos econômicos de interesses contraditórios aos dos movimentos sociais – como o agronegócio e setores da burguesia nacional – ; o que André Singer (2009) denominou de Lulismo e Armando Boito Jr. (2012) de Frente Novodesenvolvimentista. Contudo, segundo os coordenadores do Movimento, o estopim da traição foi quando o governo descontinuou os projetos de políticas habitacionais
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que envolviam participação popular em prol de um programa governamental, o PMCMV, criado em 2009 no contexto da crise financeira. Conforme Rolnik (2015), Se a vitória de Lula teve significado simbólico forte, ganhando sentido de triunfo histórico dos trabalhadores, migrantes, pobres e marginalizados da sociedade brasileira, e se representou uma vontade de mudança generalizada, ela não significou uma ruptura radical, mas antes uma acomodação de interesses e intenções conflitantes. A candidatura de Lula se baseou em uma coalizão ampla e pluralista, que abarcou políticos de partidos conversadores e antigos rivais, representantes de grandes empresas e outros stakeholders que estavam em lados opostos em eleições anteriores. A ampliação do eleitorado de Lula, que tornou sua vitória possível, foi baseada em um programa de reformas gradual e cauteloso, comprometido com o respeito às instituições de mercado e a manutenção da estabilidade macroeconômica58. A governabilidade, por sua vez, dependeu de alianças com partidos conservadores que haviam aderido à coalizão por conveniência, e não por convergência programática. Disso resultou um equilíbrio político frágil, que exigiu concessões reiteradas para ser mantido. Nesse cenário político, as margens efetivas para mudança permaneceram muito limitadas59” (ROLNIK, 2015, p.294).
Não obstante, para alguns militantes, coordenadores e assessores técnicos mesmo não sendo uma política habitacional, de caráter estatal, orçamentário e participativo, como vislumbravam com o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), mas um programa governamental de alavancagem financeira para o empresariado da construção civil, é ainda assim a única forma de viabilizar os seus projetos de moradia popular e em parte o equacionamento do déficit habitacional. Para outros, o Entidades e a Caixa com suas normativas, portarias e documentos oficiais “engessaram” os movimentos sociais levando-os a um processo de institucionalização, sendo tratados como empresas ou organizações não-governamentais. Por isso é preciso pensar em financiamentos alternativos que garantam sua autonomia e respondam aos seus princípios regimentais, estatutários e programáticos. Tais posições provocaram tensões dentro do Movimento e entre Assessoria Técnica da UFRJ e, é possível observar que dentro do grupo formado, realizam-se circunstancialmente uma série de desagrupamentos e reagrupamentos. Neste caso o Movimento desagrupa-se na pauta sobre o financiamento do Entidades, mas reagrupa-se em pautas de esquerda e progressistas, que sejam contrárias as ideias ditas direitosas, como por exemplo: impeachment de Dilma Rousseff e o Fora Temer, a PEC “da morte” e a Reforma da 58
André Singer¸ Os Sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador (São Paulo, Companhia das Letras, 2012). 59 Raquel Rolnik e Álvaro Luís dos Santos Pereira. The Financialization of Housing and Spatial Segregation, cit.
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Previdência. O que nos mostra como os meandros a nível nacional reverberam em outras organizações sociais; de como crises políticas e econômicas ensejam crises familiares e existenciais, e a depender do teor dos acontecimentos elevam lideranças enquanto responsáveis pelo curso de processos históricos; seja na personificação da crise ou da esperança. E revelam amiúde que corpos, instituições, movimentos e sociedades não são monolíticos e apresentam indispensavelmente suas múltiplas facetas.
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CAPÍTULO 2 UNIVERSIDADE E MOVIMENTO SOCIAL: AS NUANCES ENTRE OS ENGAJAMENTOS 2.1 OCUPAÇÃO.DOC Dentre as exigências do Ministério das Cidades, uma delas é habilitação60, de modo que as entidades (associações de moradores e movimentos sociais) possam pleitear o financiamento junto à Caixa em vistas da realização de seus projetos autogestionários. Para cumprir, os pré-requisitos da regularidade institucional e qualificação técnica61, os movimentos sociais62 precisam apresentar documentos comprobatórios para cada um dos itens dos pré-requisitos técnicos e institucionais cuja somatória permitem-lhes atingir um nível da habilitação: (A) até 100, (B) até 200, (C) até 500 e (D) até 100 unidades habitacionais. De acordo com os coordenadores, a exigência de tais documentos assemelha-os a organizações empresariais ou governamentais, dado que os documentos são necessários para atestar reconhecida
60
Portaria nº 747 de Dezembro de 2014. Pré-requisitos da regularidade institucional: (a) Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) de no mínimo 3 anos; (b) Estatuto e contrato social em cartório competente contemplando a provisão habitacional; (c) ata de fundação e da eleição da atual diretoria, (d) CPF de todos os coordenadores; (e) Comprovante de regularidade com a Fazenda Federal, Fazenda Estadual, Fazenda Municipal, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e a Justiça do Trabalho (CNDT); (f) declaração do dirigente máximo atestando a inexistência de dívida com o Poder Público e de inscrição nos bancos de dados públicos ou privados de proteção ao crédito; (g) Declaração do dirigente máximo atestando que nenhuma das pessoas relacionadas na alínea “d” é agente político de Poder ou do Ministério Público; (h) Declaração do dirigente máximo atestando a existência de cadastro de demanda habitacional composto por, no mínimo, 30% (trinta por cento) de famílias associadas, e contendo as informações necessárias à aplicação dos critérios de priorização nacionais de demanda estabelecidos em ato normativo específico e critérios adicionais da ENTIDADE para seleção da demanda. Pré-requisitos da qualificação técnica: (a) experiência em processos de autogestão ou gestão habitacional com atestado de órgão contratante; (b) experiência em processos de articulação de projetos habitacionais; (c) experiência em elaboração e desenvolvimento de projetos habitacionais, incluindo assistência técnica, trabalho social e regularização; existência de equipe permanente composta por técnicos das área de abrangência da produção habitacional; (d) ações de capacitação de seus associados nas áreas de estão participativa de empreendimentos habitacionais, programas e políticas públicas de habitação; (e) Desenvolvimento de atividades de mobilização dos seus associados, comprovadas por meio de atas de reunião, de assembleias ou atos públicos promovidos pelo ENTIDADE; (f) ações de difusão de informações referentes a área de atuação e de direito à moradia; (g) participação e representatividade em conselhos, conferências, fóruns ou congressos municipais, estaduais, distritais ou federais referentes aos temas de habitação, transporte, saneamento ou política urbana (Portaria nº 747 de Dezembro de 2014). 61
De acordo com Manual da Caixa: “Fica dispensada do processo de habilitação a Entidade Organizadora cujo projeto seja voltado ao atendimento de refugiados, comunidades quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, indígenas e demais comunidades socialmente vulneráveis, localizadas em áreas urbanas. Devendo, contudo, comprovar capacidade técnica, de acordo com o porte do empreendimento, na apresentação da proposta”. Acessado em: http://www.caixa.gov.br/Downloads/habitacao-minha-casa-minhavida/MANUAL_MCMV_ENTIDADES.pdf 62
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experiência das entidades
na elaboração e desenvolvimento de
projetos
habitacionais, além da gestão de empreendimentos já existentes. O que enseja, na concepção dos coordenadores, um processo de institucionalização ao exigir a participação em fóruns, conselhos e conferências municipais, estaduais ou federais que versam sobre política urbana. O que, em suma, pode comprometer a autonomia do Movimento em relação ao Estado e ao Governo. O MNLM, a nível estadual e nacional, possui habitação para cada um dos seus projetos, já que um único CNPJ não pode ser utilizado ao mesmo tempo para formalizar dois ou mais projetos – exceto quando o CNPJ refere-se a um projeto anteriormente encaminhado e que esteja em vias de conclusão. No MNLM, a nível estadual, já existia uma pessoa jurídica criada para o projeto da Ocupação Manuel Congo, e por estar em uma etapa avançada de sua concretização, entendia-se que a mesma habilitação poderia ser usada para o projeto da Ocupação Solano Trindade. O que, desta maneira, representaria o cumprimento de uma grande etapa sobretudo em termos de economia de tempo, dado que o projeto da Ocupação Solano Trindade teria o respaldo da regularidade institucional e qualificação técnica de uma entidade já devidamente habilitada. Contudo, diante de uma série de divergências acerca da atuação estratégica do Movimento, os coordenadores municipais de Duque de Caxias, em contraponto aos coordenadores estaduais do Rio de Janeiro, decidiram em assembleia pela criação de outro CNPJ, como forma de não permitir que a coordenação estadual “desse a linha” no projeto da Ocupação Solano Trindade. Os coordenadores de Duque de Caxias, dizendo-se respaldos pela coordenação nacional do Movimento, defendiam o entendimento de que o projeto precisava seguir à risca a consolidação da luta pela moradia em Duque de Caxias e na Baixada Fluminense, além de tornar a Ocupação uma referência para a formação política-pedagogia dos militantes do Movimento a nível nacional; analogamente como é a Escola Florestan Fernandes para o Movimento do Trabalhadores Sem-Terra (MST). Então, os coordenadores de Duque de Caxias decidiram começar “do zero”, e em abril de 2016 foi criada a Associação Cultural de Apoio à Moradia das Trabalhadoras e Trabalhadores da Baixada Fluminense (ACAMTT-BF), cujas as finalidades são:
150 [i] reunir, incentivar e organizar os moradores sem teto para lutar em defesa de seus direitos sociais e coletivos, promovendo, através da mobilização de esforços e recursos, o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana; [ii] refletir sobre os problemas que afetam as comunidades do município; [iii] lutar pela construção de nova concepção de cidade, unindo forças para as conquistas populares de saúde, saneamento básico, água, luz, esgoto, transporte, entre outras infraestruturas básicas e necessárias para o integral desenvolvimento do ser humano; bem como acesso à cultura; [iv] lutar pela conquista da cidadania plena, combatendo toda e qualquer forma de violação dos direitos humanos e sociais; [v] unir-se a outras entidades e movimentos sociais em defesa dos direitos sociais e da cidadania plena; [vi] promover Ação Civil Pública e outros instrumentos legais na defesa de seus associados e também de toda a população; [vii] promover ações e projetos educacionais e culturais visando atender um processo de conscientização, formação e alfabetização de jovens e adultos; [viii] apoiar as articulações dos movimentos sociais de luta pelos direitos sociais e coletivos e estimular a unificação das lutas, visando fortalecer a conquista de uma política pública condizente com os direitos da população; [ix] apoiar as articulações dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil em torno da luta pela Reforma Urbana; [x] prestar apoio jurídico, administrativo e financeiro ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM - DC- RJ; e [xi] elaborar acordos, convênios e contratos visando a realização dos interesses de seus associados; [xii] participar em programas dos poderes públicos e entidades privadas” (Estatuto da ACAMTT-BF, 2017).
Ademais, complementarmente ao CNPJ, a Caixa exige um relatório detalhado sobre o histórico de atuação política da entidade. Como o intuito dos coordenadores de Duque de Caxias era contar a história da luta por moradia no município e na Baixada Fluminense criaram a ACAMTT-BT a partir da reforma estatutária da Associação Cultural dos Trabalhadores da Baixada Fluminense (ACT-BF)63, originada em 1992. Ou seja, estabeleceu-se uma relação de causalidade entre as duas associações através da trajetória política de Gelson, que além de coordenador do MNLM foi um dos fundadores da ACT-BF. Logo, Gelson enquanto liderança em comum estendia a entidade atual uma atuação pregressa e consolidada na luta pela moradia digna. Diante do meu envolvimento com o projeto, fui solicitada por Gelson para fazer o relatório, já que segundo ele: “você é da Universidade então domina a escrita como
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Em 25 de julho de 1992, foi fundada a Associação Cultural de Trabalhadores da Baixada Fluminense. O seu objetivo social era a promoção de cultura dos trabalhadores na Baixada Fluminense sob todas as formas: trabalho, educação, saúde, moradia, informação, direito e cidadania. A associação surgiu como uma possibilidade de construir a Baixada no horizonte da dignidade, solidariedade e democracia popular e anticapitalista, já que foi ela recorrentemente representada pela miséria, violência e falta de escolas, hospitais e habitação. A associação criou uma publicação chamada Baixada Pra Cima, para demonstrar as diferentes iniciativas do povo trabalhador para melhorar as suas condições de vida. De acordo com a publicação, o município de Duque de Caxias tem grande tradição de luta e resistência pela terra; é na área rural onde se dá o começo da luta pela terra no Estado do Rio de Janeiro.
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nenhum de nós”. Após algumas conversas, que se prestarem significativamente esclarecedoras, Gelson entregou-me uma pasta vermelha com inúmeros documentos, dentre eles: (i) ata da assembleia geral extraordinária da ACT-BF com o estatuto da ACAMTT-BF, de abril de 2016 (ii) Relatório e programa da 5ª Conferência da Cidade de Duque de Caxias; (iii) Ofício convocatório da reunião do Plano Local de Habitação de Interesse Social; (iv) as cinco primeiras edições do Baixada Pra Cima, publicação da ACT-BF entre março de 1992 e outubro de 1993; (v) programação do I Festival Cultural Solano Trindade; (vi) Noticias Reduc com Foco na Comunidade, edição nº16, de setembro de 2011; e (vii) certificados de participação em cursos, palestras, seminários e conferências sobre a questão urbana. A princípio, fiquei insegura e apreensiva. Conhecia o MNLM há pouco tempo e possuía uma compreensão superficial e introdutória sobre a questão da Reforma Urbana e do Direito à Cidade. Era algo que precisa ficar pronto dentro de 3 dias e, portanto, tive dúvidas se o realizaria a contento. Entretanto, Gelson e Noêmia contemporizaram sob a alegação de era apenas um documento descritivo que prescindia de grandes problematizações teóricas ou detalhamentos maiores. Assim, durante dois dias dediquei-me exclusivamente ao relatório, contando a história de luta por moradia na Baixada Fluminense através das ocupações, lideranças, atos, manifestações e congressos. A ideia era mostrar que o Movimento ocupou a terra de modo articulado, planejado e constitucional para atender a demanda habitacional da município e adjacências. O intuito, resta claro, era mostra o MNLM como entidade idônea, ou seja responsável e competente, que faria uso adequado dos recursos e sem nenhum interesse escuso. Alguns meses depois, em janeiro de 2016, a ACAMTT-BT foi habilitada. Entretanto, essa foi ainda a primeira etapa do processo de destinação do imóvel da União para Habitação de Interesse Social (HIS) no âmbito do PMCMV-Entidades/FDS. De acordo com o Fluxo De Destinação De Imóveis Da União Para HIS | MCMVENTIDADES /FDS SPU – MCIDADES – CAIXA, a destinação envolve as seguintes instituições: MCidades, CEF, Entidades, SPU-UF/Grupo de Trabalho Estadual de Apoio a Provisão Habitacional (GTE), SPU-OC/Grupo de Trabalho Nacional; nas seguintes etapas: (i) habilitação da entidade; (ii) seleção pública; e (iii) contratação.
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Na primeira etapa, o MCidades tem como atribuição publicar a instrução normativa, para que assim as entidades encaminhem os documentos comprobatórios em vistas da habilitação – que é confirmado e publicado oficialmente pelo Ministério. Nesta mesmo etapa, a SPU-UF verifica as áreas disponíveis para Habitação de Interesse Social e o GTE, formado pelo superintendente da SPU e coordenadores do Movimento e da Assessoria Técnica, analisa a aptidão do imóvel para HIS com realização de vistoria participativa. Logo após a vistoria, a SPU-UF deve: (i) providenciar a regularização fundiária; (ii) abrir o processo de destinação com informações sobre o imóvel; (iii) elaborar a minuta da Portaria de Declaração de Interesse do Serviço Público (PDISP) e; (iv) enviar a SPU-OC para publicação. Depois da publicação da portaria, inicia-se a segunda etapa na qual se realiza o chamamento público e as entidades interessadas apresentam propostas para as áreas Declaradas de Interesse do Serviço Público. Tal proposta, de acordo com a portaria nº45 de 06 de abril de 2015, deve ser realizada através de uma carta-consulta acompanhada dos seguintes documentos:
I - ofício com a manifestação de interesse pelo imóvel, assinado pelo representante legal da ENTIDADE; II - comprovação da habilitação da ENTIDADE junto ao Ministério das Cidades; III - comprovação de qualificação técnica, nível de habilitação e abrangência de atuação da ENTIDADE; IV - cópia do Estatuto Social, com todas as eventuais alterações, e do CNPJ da ENTIDADE; V - cópias do RG e CPF do representante legal da ENTIDADE (SECRETÁRIA DO PATRIMÔNIO
DA UNIÃO, MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO, 2015).
Adiante, a SPU-UF é incumbida de analisar e selecionar a entidade e em seguida a SPU/OC de publicar o resultado provisório em site e Diário Oficial com abertura de recurso. Com apresentação e posterior análise do recurso pela SPU-UF, ele deve ser analisado pelo Coordenação-Geral de Habitação e Regularização Fundiária (CGHRF) da SPU-UF. Aprovando-se o recurso, a CGHRF da SPU-OC deve publicar o aviso da seleção em site e no Diário Oficial. Em seguida, volta-se para CGHRF da SPU-UF agora responsável pela elaboração e encaminhamento de carta de anuência para o Consultoria Jurídica da União dos Estados (CJU-UF). Com a entrega da carta de anuência tem início a terceira etapa do processo, e no qual a SPU-UF deve elaborar nota técnica de justificativa de destinação, dispensa de licitação, portaria autorizativa de destinação e contrato, subsequentemente analisado pela CJU-UF. Após as alterações necessárias a SPU-OC publica portaria autorizativa da destinação e o
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contrato de cessão é levado ao GTE para ser assinado pelas partes interessadas. Nesta mesma etapa, a entidade deve ter o projeto habitacional analisado e aprovado pela Caixa, para que logo após a publicação do extrato do contrato de cessão no Diário Oficial se encaminhe assinatura do contrato de financiamento pela CEF. Contudo, o processo do MLMN teve início antes da publicação de PDIPS pela SPU. Em abril de 2013, a Coordenação Estadual do Rio de Janeiro do MNLM enviou um oficio ao INCRA solicitando uma reunião com o superintendente regional para tratar das terras de Habitação de Interesse Social vinculadas a demanda do cadastro de moradores em área de risco e sem tetos organizados pelo MNLM de Duque de Caxias. Dentre as terras solicitadas: (i) Terras do INCRA/FEUDUC e (ii) Centro Panamericano de Febre Aftosa (terras devolvidas ao INCRA). Já em março de 2014, a coordenação do Movimento enviou ofício ao superintendente Eduardo Fonseca Moraes da SPU reafirmando a decisão pela terra do Centro Pan-americano de Febre Aftosa; efetivando a ocupação da terra em agosto do mesmo ano. 2.2 O TRABALHO SOCIAL O trabalho social é o acompanhamento realizado por profissionais das áreas da assistência social e/ou ciências sociais em projetos, programas e políticas públicas de instituições estatais. No PMCMV tornou-se uma exigência a partir da portaria nº 21 de janeiro de 2014, divulgada pelo MCidades. A portaria em questão aprova o Manual de Instrução do Trabalho Social nos Programas e Ações do MCidades em vistas da “elaboração, contratação e execução do trabalho social em intervenções de habitação e saneamento básico”, do PAC e do PMCMV64. No PMCVM – pelo Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) ou Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) –, deve ser executado pelas secretarias de habitação, urbanismo e/ou planejamento das prefeituras municipais. Já no caso das Entidades deve ser realizado pelas associações ou movimentos sociais; podendo ter também assistência das secretarias supracitadas. De acordo o Capítulo I da Portaria o Trabalho Social:
(...) compreende um conjunto de estratégias, processos e ações, realizado a partir de estudos diagnósticos integrados e participativos do território, compreendendo as dimensões: social, econômica, produtiva, ambiental e político-institucional do território e da população beneficiária, além das características da intervenção, visando promover o exercício da participação e a inserção social dessas famílias, 64
Artigo 1 da portaria 21.
154 em articulação com as demais políticas públicas, contribuindo para a melhoria da sua qualidade de vida e para a sustentabilidade dos bens, equipamentos e serviços implantados (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2015. p.5).
No projeto da Ocupação, a escolha dos integrantes do Trabalho Social não foi um ponto pacífico. A princípio, o pessoal da Assessoria Técnica da UFRJ entendia que o Trabalho Social seria uma de suas atribuições, até mesmo por já ter uma equipe multidisciplinar. Contudo, quando da formalização da equipe, os coordenadores de Duque de Caxias decidiriam que o Trabalho Social deveria ser conduzido pelo Movimento, o que significa que a Assessoria não seria responsável e nem se envolveria decisivamente. Isso ocorreu, porque os coordenadores do Movimento sentiram a necessidade de demarcar o Trabalho Social como algo do “Movimento”; em razão de certo descontentamento dos coordenadores na condução de algumas atividades pela Assessoria Técnica. Embora reconhecessem sua importância, em especial pela relação consolidada com profissionais da UFRJ, os coordenadores demonstravam-se incomodados com o fato de Assessoria não acatar suas decisões ou mesmo apresentarem-se aos moradores, mesmo que não intencionalmente, de forma tal que os mesmos começaram achar que o projeto era da UFRJ e não do MNLM. Questão está que esmiuçaremos nos tópicos seguintes. Assim, a coordenação de Duque de Caxias decidiu que eu e Noêmia formaríamos a equipe, sendo Noêmia a coordenadora do Trabalho Social. No Entidades, os coordenadores e alguns militantes da base, são responsáveis pela elaboração do Projeto de Trabalho Social – Preliminar (PTS-P), do Projeto de Trabalho Social (PTS) e do Projeto de Desenvolvimento Socioterritorial (PDST), além da eleição da Comissão de Representantes (CRE) e Comissão de Acompanhamento de Obras (CAO) – uma das exigências da Caixa para o financiamento . Antes da realização do Trabalho Social, contamos com a colaboração de Gorete Gama, assistente social responsável pelo Trabalho Social dos empreendimentos do PMCMV pela Secretaria de Habitação, Urbanismo e Planejamento da Prefeitura de Duque de Caxias. Gorete orientou-nos, indicando as portarias que deveríamos seguir e fornecendo os modelos de relatórios e atividades; que são necessários enquanto comprobatórios para realização do Trabalho social.
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O Trabalho Social define-se pela intersetorialidade entre saúde, educação, meio ambiente, transporte e segurança. Na análise do Manual, percebemos que as categorias mais recorrentes são: (i) sustentabilidade; (ii) empreendedorismo; (iii) capacitação profissional (iv) participação social; (v) gestão democrática e participativa; (vi) mobilização comunitária; (vii) gestão condominial; (viii) mulheres chefes de família; (xv) educação ambiental e patrimonial. Das suas 56 páginas, tais categorias repetemse, dentre elas principalmente: sustentabilidade, empreendedorismo e participação social. Elas estão não só neste Manuel, mas em vários outros projetos de entidades governamentais, não-governamentais, e empresariais, dando legitimidade social e política às suas ações. Atualmente, o termo empreendedorismo tem ganhado destaque no cenário de reconfiguração de certos paradigmas do mundo do trabalho, difundindo a ideia de que “todos podem ser o seu próprio patrão”. A partir desta compreensão, os trabalhadores devem ser orientados para o desenvolvimento de valores como: autonomia, perseverança e criatividade; e na composição de personalidades “empreendedoras” que rompam com a relação empregado/empregador e capazes de criar o “seu próprio negócio”. O que para os coordenadores do Movimento representa um conflito como a formação pedagógica do MNLM, visto que o Movimento pretende: conscientizar os trabalhadores de sua condição de exploração e espoliação sendo, portanto, contraproducente identificarem-se enquanto patrões. Contudo, em que pese a discordância, os coordenadores assumem a necessidade de conciliar sua formação com as exigências administrativas para realização do projeto.
2.3 O PROJETO Em setembro de 2014 foi elaborado pela Assessoria Técnica um projeto denominado de Proposta Preliminar para Ocupação Residencial e Multiuso de Área Ociosa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). De acordo com a proposta, o objeto da Ocupação Solano Trindade é: “garantir o cumprimento da função social do imóvel público e implantar moradias e equipamentos sociais para a população de menor renda organizada pelo MNLM (2014, p.3). Tendo como ações:
[i] capacitação e formação de moradores; [ii] aperfeiçoamento da formação de graduandos e pós-graduandos da Universidade Federal do Rio de Janeiro; [iii]
156 aperfeiçoamento da formação docente; [iv] intercâmbio de saberes entre diversas áreas de conhecimento, estabelecendo uma efetiva transdisciplinaridade (2014, p3).”
No ano seguinte, foi apresentado a SPU e a prefeitura de Duque de Caxias, o projeto baseado no TFG (Trabalho de Final de Graduação) da arquiteta Fernanda Petrus, integrante da Assessoria Técnica. De acordo do TFG, o projeto prevê a construção dos seguintes espaços:
SEDE DE PRODUÇÃO AGRÍCOLA; LAZER; CULTURA DO MNLM – RJ Hortas – Sistema de Mandala de Produção Centro comunitário: cozinha coletiva; padaria comunitária; alojamento temporário; creche; salão comunitário; memorial Solano Trindade, auditório e restaurante
5.000 m²
2.700 m²
Área para prática de esportes e lazer
3.000 m²
Lojas para desenvolvimento de atividades comerciais e geração de renda coletiva
1.000 m²
150 unidades habitacionais
6.750 m²
12 unidades habitacionais em edifício existente
650 m²
CAMPUS EXPERIMENTAL DE TECNOLOGIA SOCIAL (PROGRAMA DE EXTENSÃO DA UFRJ): Canteiro escola para produção/montagem das unidades residenciais a partir de componentes pré-fabricados produzidos no local + comercialização de componentes para o mercado
6.000 m²
De acordo com a Ficha de Resumo do Empreendimento (FRE) da Caixa, o projeto refere-se ao imóvel de 45.000 metros quadrados doada pela SPU para o MLMN para fins de Habitação de Interesse Social. O terreno já possui 4 edificações, 3 reaproveitáveis, e uma a ser demolida, que são: a antiga sede com 2085 metros quadrados e duas edificações com 1848,94 metros quadrados que serão utilizadas para fins de geração de trabalho e renda. O TFG também apresenta a composição do material que o Movimento e a Assessoria Técnica pretendem utilizar na construção
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das casas, que será de estrutura metálica e tijolo ecológico (PETRUS, 2015, p.65); comparativamente mais baratos e versáteis do que os materiais tradicionalmente usados nos projetos empresarias do PMCMV. 2.4 A UNIVERSIDADE A Universidade enquanto lócus privilegiados da produção de conhecimento técnico e científico – de antemão considerando as especificidades de cada país, cultura e sociedade – tem mudado historicamente; tanto no que concerne os paradigmas teórico-metodológicos, como os engajamentos políticos dos setores que a compõem. Se partirmos de uma observação mais acurada, podemos afirmar que tais paradigmas, mesmo os defendidos enquanto neutros, objetivos e imparciais, são atravessados, senão fundamentados, pelos mais diversos alinhamentos políticoideológicos. Assim, em nossa análise, compreendemos a Universidade enquanto um lugar heterogêneo e permeado por conflitos e disputas, sobretudo, as que se referem ao devido papel da Universidade, de governos e da sociedade civil. Como afirma Bourdieu (1990), a Universidade é um “lugar de luta para saber quem no mundo social está fundamentado para dizer a verdade” (p.116). Quando aqui citamos o termo Universidade o fazemos diante daquilo que nos foi possível observar nas instituições que assessoram o Movimento, dentre elas: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Programa de PósGraduação em Urbanismo (PROURB); Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP) Luiza Mahin; Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC), Núcleo Interdisciplinar de Desenvolvimento Social (NIDES) e o Projeto Muda – Mutirão Agroecológico. Logo, observar a atuação da Assessoria Técnica foi fundamental para o desenvolvimento desta pesquisa, já que nos evidenciou a rede de articulação do MNLM em prol da realização do projeto. A relação do Movimento com a Universidade não se faz somente pelo cumprimento de um pré-requisito da CEF e do MCidades. Além da obrigatoriedade, todos os programas de pós-graduação da Assessoria Técnica, assumem-se, na figura de estudantes e professores, em defesa da Reforma Urbana, do Direito à Cidade e dos Direitos Humanos. Ademais, a maioria dos mesmos estudantes e professores possui uma relação longínqua e consolidada assessorando movimentos
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sociais, sendo no mais dos casos aquilo que define sua atuação acadêmica e profissional. Há, portanto, uma relação de troca no qual tais professores almejam uma educação “mais humana” para seus alunos e a produção de conhecimentos na resolução de problemas sociais. De modo complementar, os coordenadores do Movimento veem tal atuação como oportuna para cumprimento de exigências burocráticas, bem como valerem-se da legitimidade da Universidade em vistas de apoio de setores da sociedade na defesa de suas reivindicações. Isso evidencia-nos que o saber propagado pela Assessoria Técnica relaciona-se ao seguinte entendimento de Jean-Françoise Lyotard (1986):
(...) não se entende apenas, é claro um conjunto de enunciados denotativos; a ele misturam-se as idéias de saber-fazer, de saber-viver, de saber-escutar, etc. Tratase então de uma competência que excede a determinação e a aplicação de um critério único de verdade, e que se estende às determinações e aplicações dos critérios de eficácia (qualificação técnica), de justiça e/ou felicidade (sabedoria ética), de beleza sonora, cromática (sensibilidade auditiva, visual), etc. Assim compreendido, o saber é aquilo que torna alguém capaz de proferir “bons” enunciados denotativos, mas “bons” enunciados prescritivos, avaliativos...Não consiste numa competência que abranja determinada espécie de enunciados, por exemplo, os cognitivos, à exclusão de outros. Ao contrário, permite “boas” performances a respeito de vários objetos de discursos: a ser conhecer, decidir, avaliar, transformar...Daí resulta uma das principais características: coincide como uma “formação” considerável de competências, é a forma única encarnada em um sujeito constituído pelas diversas espécies de competência que o compõe (p.37).
A Assessoria Técnica é coordenada pelas professoras Luciana Lago (IPPUR) e Luciana Andrade (PROURB). Contudo, a assessoria ao Movimento não se restringe a Ocupação Solano Trindade, tendo se originado no projeto de qualificação predial da Ocupação Manuel Congo (MELLO, 2008), em idos de 2007. Apesar da participação de vários núcleos e laboratórios, a atuação do IPPUR e PROURB é a mais proeminente, o que podemos observar nas reuniões, confraternizações e falas dos coordenadores do Movimento, dado que é decisiva na resolução de problemas e encaminhamento de deliberações.
2.4.1 ASSESSORIA TÉCNICA: UM PERFIL MILITANTE O IPPUR é um instituto de pós-graduação criado em 1987 a partir do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PUR), por sua vez originado em 1971 na Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (COPPE). A pós-graduação (mestrado e doutorado) oferecida pela instituição se
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insere dentro da área de Ciências Sociais Aplicadas e possui cunho interdisciplinar “combinando conhecimentos de Sociologia, Economia, Geografia, Urbanismo, Ciência Política e Direito”. Dentre os seus laboratórios 65, o Observatório das Metrópoles e o Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) possuem uma longa trajetória assessorando projetos de comunidades e movimentos sociais. Um dos mais notórios, e na qual ambos estiveram envolvidos, foi o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, realizando o monitoramento dos impactos sociais, ambientais, econômicos e políticos dos megaeventos na cidade do Rio de Janeiro. Criado em 1996, o Observatório das Metrópoles, de acordo com o coordenador Luiz César Queiroz em vídeo institucional do laboratório 66 é “uma rede de instituições 67 que trabalha de maneira cooperativa em torno do problema metropolitano brasileiro”. No mesmo vídeo, Orlando Júnior define o observatório na “permanente e sistemática busca por compreender as metrópoles brasileiras de uma forma interdisciplinar”. Dentro os seus grupos de trabalho, o Grupo de Moradia e Habitação, coordenado por Adauto Lucio Cardoso68 e Luciana Lago, desenvolvem pesquisas sobre políticas 65
Os laboratórios de pesquisa do IPPUR são: Grupo de Estudos do Território e da História Urbana (GESTHU), coordenado pela professora Fânia Fridman; Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura, coordenado pelo professor Frederico Guilherme Bandeira de Araújo (GPMC), Laboratório de Regiões Metropolitanas e Laboratório Redes Urbanas, coordenados pelo professor Mauro Kleiman, Laboratório do Estudo das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro, coordenado pelo professor Alex Ferreira Magalhães; Laboratório Estado, Economia e Território (LESTE), coordenado pelo professor Alberto de Oliveira; Laboratório Estado, Sociedade, Tecnologia e Espaço, coordenado pela professora Tamara Tania Cohen Egler; Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN), coordenado pelos professores Carlos Vainer e Henri Acselrad; Laboratório Oficina Redes e Espaço (LABORE), coordenado pelo professor Rainer Randolph; Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratório (NIEM), coordenado pelo professor Hélion Povoas; Observatório Imobiliário de Políticas do Solo (OPISOLO), coordenado pelo professor Pedro Abramo; e Laboratório Responsabilidade Social, Desenvolvimento Local e Políticas Públicas no Brasil, coordenado pela professora Cláudia Ribeiro Pfeiffer; e Observatório das Metrópoles, coordenado pelos professores Adauto Lúcio Cardoso, Luciana Correia do Lago, Luiz César de Queiroz Ribeiro e Orlando Alves dos Santos Júnior. 66 Mais informações em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_content&view=article&id=46&Itemid =142&lang=pt# (Acessado em: 15/11/201). 67 Segundo site da instituição: “Constituímos hoje um grupo que funciona como um instituto virtual, reunindo hoje 159 pesquisadores (dos quais 97 principais) e 59 instituições dos campos universitário (programas de pós-graduação), governamental (fundações estaduais e prefeitura) e nãogovernamental, sob a coordenação geral do IPPUR - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As Instituições reunidas hoje no Observatório das Metrópoles vêm trabalhando de maneira sistemática sobre 14 metrópoles e uma aglomeração urbana: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Goiânia, Recife, Salvador, Natal, Fortaleza, Belém, Santos, Vitória, Brasília e a aglomeração urbana de Maringá”. Mais informações em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_content&view=article&id=46&Itemid =142&lang=pt. (Acessado em: 15/10/2017). 68 Atuação do IPPUR assessorando comunidades e movimentos sociais não é algo recente, configurando como um dos fundamentos de sua produção técnica e intelectual. Dentro os inúmeros exemplos, destacamos a participação do IPPUR, na figura do professor Adauto Lúcio Cardoso. No início da década de 90, o IPPUR participou de um projeto em Rancho Fundo, bairro do município de
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habitacionais, tendo vasta produção acadêmica acerca do PMCMV. Sendo este o grupo que compõe a Assessoria Técnica nos projetos do MLMN. De acordo com Luciana Lago (2016), sua atuação na Assessoria, assim como dos outros participantes, não a de é simplesmente trabalhar para o Movimento, como se realizasse um projeto meramente técnico e distanciado. Para Lago (2016), o que chamam de assessoria é na verdade um acordo de cooperação técnica no qual seus participantes estão engajados na luta em defesa da Reforma Urbana e do Direito à Cidade. Algo que se evidencia não somente na atuação do IPPUR, como também nos outros núcleos e laboratórios – o que pudemos observamos nas conversas informais e nos textos institucionais em páginas eletrônicas. O PROURB criado em 1993 é um programa de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ). Dentre os seus laboratórios 69, o Cidade,
Nova Iguaçu, realizado pelo Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) 68 – com apoio da União Europeia e do Comité Catolique contre la Faim et pour le Développement. O projeto tinha como objetivos levantar informações sobre as questões ambientais da Região Metropolitana e produzir material educativo, de caráter político e ambiental, a ser vinculado para a população através de um TV comunitária, a TV Maxambomba (PAIVA, 2000, p.14). A TV tinha um papel crucial, já que um dos pressupostos do projeto era de que as camadas populares não conquistam ou exercem os seus direitos por falta de informação (p.14). Rancho Fundo era um bairro praticamente rural cujos moradores sofriam com a ausência de serviços e políticas públicas, sendo a coleta de lixo uma das mais evidentes. Através do método da pesquisa-ação, que aposta na conscientização e engajamento para a transformação social, criou-se o Grupo de Representantes da Rua (GRR) no qual moradores desenvolveriam o senso de cidadania, comunidade e liderança; para que assim pudessem lutar por seus direitos. O IPPUR foi convidado para “contribuir na identificação dos problemas ambientais” (CARDOSO, 2000, p.55) através de uma pesquisa. Um dos dilemas colocados, de acordo com Adauto Lúcio Cardoso, era “refletir permanentemente sobre a maneira pela qual a ação educativa traduzir-se-ia em mudanças efetivas de comportamento” e como era possível combinar os saberes populares e os saberes técnicos de modo que um não fosse realizado em detrimento do outro (p.56). O que nos mostra que as questões colocadas diante da relação entre assessória técnica e movimento social não são novas. 69 Os laboratórios do PROURB são: Arquitetura, Cidade e Cultura, coordenado pela professora Maria Cristina Nascentes Cabral; Cidade, Habitação e Educação (CiHabe), coordenada pela professora Luciana da Silva Andrade; Grupo de Estudos e Pesquisa Estado e Políticas Públicas, coordenado pela professora Eliane da Silva Bessa; Grupo de Estudos de Pesquisa Cultura, História e Urbanismo (GPCHU), coordenado pela professora Lilian Fessler Vaz; Laboratório de Intervenções Temporárias e Urbanismo Tático (LabIT), coordenado pela professora Adriana Sansão Fontes; Laboratório de Mobilidade Sustentável (LABMOB), coordenado pela professor Victor Andrade; Laboratório de Habitação e Forma Urbana, coordenado pelo professor Pablo Cesar Benetti; Laboratório de Direito e Urbanismo (LADU), coordenado por Rosangela Lunardelli Cavallazzi; Laboratório de Modelos 3d e Fabricação Digital (LAMO3d), coordenado pelos professores Andres Passaro e Gonçalo Castro Henrique; Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas (LAPA), coordenado pela professora Andréa de Lacerda Pessôa Borde; Laboratório de Projetos Urbanos (LAPU), coordenado pela professora Denise B. Pinheiro Machado; Laboratório de Urbanismo e Meio Ambiente (LAURBAM), coordenado pela professora Rachel Coutinho Marques da Silva; Laboratório de Análise Urbana e Representação Digital (LAURD), coordenado pelo professor Naylor Barbosa Vilas Boas; Laboratório de Estudos das Águas Urbanas (LEAU), coordenado pela professora Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto; Laboratório de Estudos Urbanos (LeU), coordenada pela professora Margareth da Silva Pereira; Núcleo de Pesquisa em Paisagismo, coordenado pela professora Lúcia Maria Sá Antunes Costa; Grupo Teoria, Ensino e Metodologia do Projeto Urbano, coordenado pelo professor Guilherme Lassance.
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Habitação e Educação (CiHabe), coordenado por Luciana Andrade, e o Laboratório de Estudos de Águas Urbanas (LEUA), coordenado por Ana Lúcia Nogueira de Paiva Britto, são o que integram a Assessoria Técnica. Conforme consta no site, o Programa: (...) Visa também promover a reflexão crítica, teórica e metodológica sobre este campo disciplinar, fomentar a produção científica e sua divulgação, incentivar práticas de cooperação e intercâmbio acadêmico no ensino, na pesquisa e na extensão, e participar nas competências do seu corpo docente nos fóruns governamentais e da sociedade civil.
Já o Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin, coordenado pela professora Mariana Trotta, é um projeto de extensão universitária formado por estudantes de graduação da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ) e integrante do Laboratório de Direitos Humanos (LADIH). Segundo site do laboratório, o Núcleo define: O projeto tem como objetivos principais a troca de saberes entre os estudantes e movimentos sociais do estado do Rio de Janeiro. Dessa forma, o projeto busca contribuir na formação de uma consciência cidadã que permita ao futuro profissional do direito atuar nos conflitos sócio jurídicos contribuindo nas transformações relevantes para uma sociedade mais justa, assim como contribuir na efetivação dos direitos e políticas públicas desses sujeitos coletivos. O presente projeto fundase no princípio da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão e na interdisciplinariedade e interprofissionalidade. O grupo trabalha com os princípios e a metodologia da assessoria jurídica popular utilizando referenciais da pesquisa participante (especialmente a pesquisa-ação) e da educação popular.
No blog do NAJUP é possível observar a ênfase dada ao engajamento político; haja vista ser este o fundamento de sua atuação. A figura de Luiza Mahin – “negra, nagô, mulher, guerreira, escrava, pagã, revolucionária, líder da Revolta dos Males” – foi escolhida para representar o Núcleo, já que o mesmo se posiciona contra “aqueles que erguem suas garras com unhas fétidas para ferir o nosso povo, o povo brasileiro” e por isso enfatiza que: “Não deixaremos, guerreamos assim como ti [Luiza Mahin] por um novo mundo, um mundo verdadeiramente livre. Não está escravidão velada”. De acordo com o manifesto do NAJUP podemos observar a defesa de uma sociedade sem opressões e desigualdades e para qual é necessário que o exercício do direito seja “insurgente”, “empoderador” e “transformador”. Conforme o Manifesto: Por isso, nós não queremos estar só na universidade, vemos no mundo nossa maior escola e vamos buscar nele as pessoas com as quais vamos construir nosso conhecimento. Queremos aprender com aqueles que sentem a cada dia, o que é
162 ser explorado, precisar do serviço público, ser estigmatizado e não ter oportunidade de alcançar o que a TV nos diz que traz felicidade. É no construir com essas pessoas que a palavra práxis pode fazer sentido, é no diálogo entre sabedoria popular e academia que podemos pretender encontrar as soluções para nossos conflitos e injustiças.
Já o Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ) é um projeto interdisciplinar de extensão, pesquisa e ensino. Segundo o seu site70, foi criado em 2013 “a partir de uma mobilização de estudantes e professores da Escola Politécnica” e atualmente integra o Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (NIDES), este por sua vez integra o Centro de Tecnologia da UFRJ. A definição do NIDES assemelha-se ao do NAJUP em termos a sua atuação social e política: O NIDES é um Órgão Suplementar do Centro de Tecnologia da UFRJ composto por programas e projetos que fundamentam suas ações de extensão, pesquisa e ensino nos princípios da solidariedade, alteridade, cidadania, transparência, do respeito à diversidade cultural e ao meio ambiente. A partir do pressuposto de que a ciência e a técnica não são neutras, suas ações buscam desenvolver tecnologias, por meio de métodos participativos e de forma interdisciplinar, para promover o desenvolvimento social e contribuir com a elaboração de políticas públicas. Atua prioritariamente com trabalhadores e estudantes da universidade, movimentos sociais, comunidades e povos tradicionais, comunidades escolares, trabalhadores associados e grupos e organizações de territórios populares.
Outro grupo que integra o NIDES é a Projeto Mutirão Agroecológico (MUDA). O MUDA tem promovido as atividades agroecológicas – sobre qual nos dedicaremos nos tópicos seguintes – surgiu de uma iniciativa de alguns estudantes do curso de engenharia ambiental. De acordo com o site71:
A intenção do grupo é testar e disseminar soluções harmônicas para a vida urbana e rural, a partir dos conceitos agroecologia, permacultura e tecnologias sociais, possibilitando a geração de renda, a solução de problemáticas ambientais locais, a melhoria da saúde individual e coletiva, além de promover a aproximação entre campo e cidade. São buscadas, desde então, soluções baseadas na ética e nos princípios da Permacultura e da Agroecologia, de modo a favorecer a consolidação de culturas sustentáveis num contexto de urbanização e preservação da natureza. O grupo se organiza através da autogestão e liderança circular. Em resumo, as decisões, o planejamento e a execução das ações do projeto estão sob o controle de cada integrante e as tarefas são distribuídas a partir da demanda, aptidão e interesse individuais.
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Mais detalhes: http://nides.ufrj.br/ (Acessado em: 27/11/2017). Mais detalhes: http://www.inovacao.ufrj.br/index.php/noticias/570-mutirao-de-agroecologia-mudaufrj-oferecera-curso-de-compostagem. (Acessado em: 27/11/2017). 71
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A análise dos núcleos, laboratórios e pós-graduações nos fez perceber, que a Universidade tem a luta pela Reforma Urbana e Direito à Cidade enquanto projeto político e para tal possuiu uma série de estratégias concernentes aos seus modos de atuação. Portanto, a Universidade para além do caráter tecnicista e profissionalizante compõe-se como um campo de disputas – técnicas, discursivas, epistemológicas, políticas e orçamentárias –, definindo-se, desta feita, não somente em termos de conhecimento científico, como também de engajamentos que realocam socialmente sua posição no mundo.
2.4.2 O Curso de Formação A cada 15 dias ou 1 vez por mês, nos sábados das 9h às 12h, a Assessoria Técnica oferece um curso de formação para os/as representantes das 180 famílias cadastradas72 no projeto – comparecem de 20 a 30 representantes e em sua maioria mulheres. Costumeiramente às 7 horas da manhã, os moradores e coordenadores do Movimento organizam um dos espaços da Ocupação para receberem as famílias e o pessoal da Assessoria Técnica. Enquanto alguns dispõem mesas, bancos e carteiras escolares, outros preparam o café da manhã, no qual é servido água, café e pães com manteiga e mortadela. O pessoal da Assessoria chega um pouco antes do horário e tem como hábito conversar com moradores e coordenadores sobre assuntos que vão desde encaminhamentos até amenidades sobre questões pessoais. Assim que as famílias começam a chegar, os coordenadores da Assessoria e do Movimento iniciam as atividades. E quando o quórum é atingido, com presença de no mínimo 10 representantes das famílias, os coordenadores do Movimento apresentam-se solenemente proferindo palavras de ordem, reforçando o quanto o projeto precisa da participação de todos para se concretizar. Em seguida a Assessoria, além de fotos, mapas e desenhos, apresenta as formulações e sistematizações das discussões das semanas anteriores. A discussão não se restringe a moradia, cômodos, tamanhos ou pavimentos, estendendo-se aos equipamentos urbanos; como consta no FRE, a área ainda não possui infraestrutura interna adequada – não possui água, esgoto, energia elétrica, iluminação pública, pavimentação, guias e sarjetas, aguas pluviais, coleta de lixo ou telefone – para a
72
O levantamento socioeconômico-habitacional é preenchido pelos dirigentes do Movimento.
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realização do projeto arquitetônico-urbanístico. O intuito da Assessoria, com os cursos de formação, é promover uma relação com os moradores de modo que possam elaborar um projeto respeitando e solidarizando-se com anseios e necessidades dos futuros moradores. Ademais, a Assessoria promoverá oficinais profissionalizantes nas quais os moradores poderão aprender e aperfeiçoar técnicas de construção. Por isso, os coordenadores da Assessoria e do Movimento tem procurado entre os inscritos no projeto aqueles que já tenham exercido o ofício de pedreiro, marceneiro, eletricista e/ou encanador. Figura 15: Curso de formação com a Assessoria Técnica do IPPUR e PROURB (Foto: Lidiane Matos, 26/03/2016).
Foi nos encontros do curso de formação que pudemos observar a relação da Universidade com o Movimento, sobretudo com seus coordenadores. Certa vez, em uma apresentação do projeto pela Assessoria Técnica, a representante de uma das famílias perguntou se poderiam incluir no projeto a construção de uma piscina olímpica. Algumas representantes ficaram visivelmente animadas, assim como os membros da Assessoria. Entretanto, os coordenadores do Movimento interromperam, enfatizando que o projeto precisa ser construído pelo e para coletivo e que uma piscina olímpica destoaria de uma cidade em que os recursos, neste caso a água, precisam ser utilizados nas atividades de subsistência e produtivas e não para o lazer. Acrescenta-se a isso, que a Baixada Fluminense, principalmente São Bento, o 2º distrito de Duque de Caxias, onde se situa a Ocupação, tem um sério problema de
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abastecimento de água. Desde aquele momento foi comum ver os coordenadores fazendo intervenções nas falas da Universidade e enfatizando que é o Movimento quem deve “dar a linha’ no projeto. Figura 16: Curso de formação com a Assessoria Técnica do IPPUR e PROURB (Foto: Lidiane Matos, 26/03/2016).
Figura 17: Venda de artesanatos produzidos pelas famílias inscritas no curso de formação com a Assessoria Técnica do IPPUR e PROURB (Foto: Lidiane Matos, 26/03/2016).
Outra questão observada nas reuniões refere-se a assiduidade das famílias nos cursos. Como já mencionado, comparecem grupos de 15 a 20 pessoas a cada encontro. Contudo, nem sempre são as mesmas pessoas, o que segundo os
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coordenadores do Assessoria e do Movimento não tem possibilitado uma formação continuada e aprofundada. Por isso, é comum que as apresentações da Assessoria e do Movimento reforcem a necessidade de um compromentimento real das famílias com a luta; caso contrário o projeto não se sustentará. Em suma, os grupos de famílias são formados por “laços incertos, frágeis, controvertidos e mutáveis” (LATOUR, 2012, p.50), de forma, que não existe um grupo, mas a formação de grupo permeado por constantes dispersões e estratégias de reagrupamento. E neste caso, os coordenadores da Assessoria do Movimento são os oficiais de recrutamento do grupo, fazendo-o existir em símbolos, palavras de ordem e confraternizações. 2.4.3 Vivência Agroecológica Entre os dias 20 e 22 de Janeiro de 2017 ocorreu a I Vivência Agroecológica na Ocupação realizado pelo coletivo MUDA. A equipe, formada por estudantes de geografia e engenharia ambiental, ofereceu aos moradores da Ocupação um curso de plantio, compostagem e preparação de alimentos. No dia 20, depois de montarem o acampamento e apresentarem-se aos moradores, os membros do coletivo iniciaram a separação e a higienização dos alimentos para o preparo do almoço. Alguns moradores ficaram surpresos quando descobriram que o coletivo preparava uma jacalhoada, uma bacalhoada feita de jaca, Um dos moradores disse que “não ia comer essa gororoba” e outro, advertidamente, que “carne não pode faltar na mesa”. Neste momento, foi oportuno observar que entre os moradores revelaram-se algumas dualidades como: qualidade/quantidade; nãoorgânico/orgânico; comida leve/comida pesada; e comida de rico /comida de pobre. Tais categorias valiam-se como uma espécie de diferenciação, pois que denotam a distância que possuam daqueles, cuja alimentação é de “rico”, “leve”, “orgânica” e “qualidade”. Ademais, uma das moradoras contou que quando sua mãe estava com câncer foi necessário seguir uma série de prescrições e recomendações médicas, dentre elas uma dieta alimentar sem enlatados, conservantes e industrializados. Ela disse que uma das coisas mais curiosas que descobriu em umas palestras do INCA (Instituto Nacional do Câncer), recomendável à paciente, familiares, cuidadores e acompanhantes, foi que o feijão deveria ficar de molho antes do cozimento, “para eliminar os gases”. Foi ali que descobriu que o preparo até então desconhecido era o
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que justamente eliminava aquilo que julgava ser necessário para “encher a barriga do pobre”; dar a devida sensação de saciedade. Depois do almoço, iniciou-se uma roda de apresentação entre a equipe e os moradores. Cada um falou brevemente o seu nome e sua trajetória de vida. Alguns integrantes da equipe reforçaram que “agroecologia é ciência, pesquisa e movimento social”; uma forma de dizer que o conhecimento científico é feito também de engajamentos sociais e políticos. Horas depois fomos jantar caldo com batata inglesa e doce, ora-pro-nóbis, hibiscos e chaya – essas duas últimas são plantas comestíveis não convencionais ou PANC’s e a equipe, em uma visita na terra, afirmou que tem outras espécies delas e que podemos incluí-las nas refeições diárias. Enquanto jantávamos, apesar da recusa de um morador em comer, os outros não só aprovaram como também teceram elogios aos ingredientes considerados inusitados. Após a refeição, começamos uma roda de conversar com alguns estudantes da equipe, que queriam conhecer melhor o Movimento e o projeto. Logo em seguida, assistimos algumas animações e documentários sobre agroecologia e um vídeo do dia 08 de agosto, dia da Ocupação, no Youtube. No dia seguinte, dia 21, comemos frutas e tubérculos no café da manhã, diferentemente do pão francês, biscoito e café que comemos todos os dias. As atividades do dia foram recolher a grama campinada e levá-la para a área atrás da cozinha, na qual a composteira73 e banheiro seco74 foram montados. Já para horta, optamos pela técnica da mandala75, no qual o plantio de hortaliças e tubérculos é feito em círculos concêntricos, para que assim tenhamos a otimização dos espaços, nutrientes e mão de obra. Na hora do almoço, foi servida novamente jacalhoada, e os moradores que não haviam comido no dia anterior surpreenderam-se por terem feito uma refeição “tão leve” e “tão gostosa”. Depois intervalo do almoço e descanso, retomamos a feitura da horta; que concluímos somente no dia seguinte quando plantamos as primeiras mudas de chaya e vinagreira, as tais PANC’s. No almoço dia 22, no domingo, continuamos com o cardápio vegetariano. Um dos membros da equipe fez questão de frisar que os ingredientes que estavam em nossos pratos e 73
E o recipiente no qual se faz a compostagem, reciclagem e reaproveitamento de materiais orgânicos, como grãos, sementes, verduras, vegetais e frutas. 74 Diferentemente do banheiro convencional, o banheiro seco é aquele no qual as fezes são reaproveitas para compostagem e adubo. 75 Técnica de plantio da permacultura desenvolvida pelo ambientalista Bill Mollison.
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copos, que consistiam em: sal, açúcar, alho, cebola, coentro, limão, pimenta, cheiroverde, chaya, ora-pro-nóbis, vinagreira, pepino, quiabo, tomate abobrinha, abóbora, macarrão, manga e goiaba. Enfatizando, portanto, a importância de sabermos exatamente a procedência e os benefícios dos alimentos que estávamos ingerindo, sobretudo em suas propriedades terapêuticas e medicamentosas. Para alguns moradores, a vivência trouxe experiências novas no que tange a diversidade de alimentos e de outros modos de preparo. Por isso defendem atualmente que a cozinha coletiva não precisa ter somente arroz, feijão, macarrão e carne, e que a horta, além da geração de renda, poderá mudar positiva e drasticamente a relação com os alimentos e com a natureza.
2.5 APÓS O “GOLPE MIDIÁTICO-JURÍDICO-PARLAMENTAR” Após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e iniciada a gestão de Michel Temer, o presidente “golpista” – consenso entre os envolvidos no projeto – os financiamentos para os projetos do PMCMV-Entidades foram suspensos. Como forma de protesto, foi realizada, no dia 30 de março de 2017, a 1ª Jornada Nacional em Defesa da Moradia Popular das Entidades do Campo e da Cidade do qual participaram: MNLM, UNMP, CONAM, MBL, MST, Central de Movimentos Populares (CMP),
Coordenação
Nacional
de
Comunidades
Quilombolas
(CONAQ),
Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro CONTRAF/CUT. O objetivo, segundo a nota publicada76 era articular atos e manifestações em diferentes estados do Brasil para resistir ao (i) “avanço conservador e neoliberal”, a (ii) “retirada de direitos sociais e trabalhistas”, aos (iii) “mega projetos rurais e urbanos que deslocam ou despejam comunidades” e as (iv) “ações que criminalizam os movimentos sociais”. Michel Temer, além de “golpista”, recebeu a alcunha de “Robin Hood em sentido contrário”, já que tira dos pobres para das aos ricos. Em nota, os movimentos sociais informam que o “governo golpista” anunciou a retomada do PMCMV priorizando agora as faixas 2 e 3, de renda até R$ 9.000,00, em detrimento da faixa 1, de renda até R$ 1.800, 00. Como também a contratação de 70
76
Mais informações em: http://www.mst.org.br/2017/03/30/movimentos-do-campo-e-da-cidade-saemas-ruas-em-defesa-da-moradia-popular.html (Acessado em: 26 de novembro de 2017).
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mil unidades, 35 mil delas pelo Programa Minha Casa, Minha Vida Rural (PNHR) e as demais pelo Programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades. Contudo, os movimentos sociais em questão afirmam que as contratações não se realizarão até o final do ano, posto que não estão previstas no calendário de descontingecimento dos recursos do Orçamento da União. O que demonstra, portanto, que não há interesse por parte do Governo em construir uma política habitacional “que seja alinhada com as necessidades da população de baixa renda”. Ainda em nota, os movimentos elencam duas reivindicações:
[i] Garantia do acesso à terra em áreas infraestruturadas e com serviços públicos no campo e na cidade; [ii] Garantia de acesso à terra que combata a mercantilização, especulação imobiliária, os despejos forçados de comunidades pobres de comunidade pobres e privatização de serviços públicos, considerando que MORADIA É DIREITO, É POLÍTICA EMANCIPATÓRIA E NÃO É MERCADORIA.
Além destas, os movimentos sociais defenderem a retomada da faixa 1 no PNHR
e
PMCMV-Entidades
e
das
discussões
do
Sistema
Nacional
de
Desenvolvimento Urbano, além da realização da 6ª Conferência Nacional das Cidades e cumprimento do calendários e atribuições do Conselho Nacional de Cidades. Em 12 de setembro de 2017, os referidos movimentos sociais, incluindo o Movimento de Atingidos por Barragem (MAB) e o Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), publicaram nota de “repúdio” e “indignação” contra a proposta orçamentária de 2018 enviada pelo governo “golpista” e “ilegítimo” de Michel Temer ao Congresso Nacional no dia 31 de agosto de 2017. De acordo com a nota, a proposta não prevê rubrica para a Moradia Digna para o ano 2018, que se for aprovado extinguirá automaticamente a faixa 1 (até R$ 1.800,00) do Programa Minha Casa, Minha Vida, além do PNHR, o FAR e o FDS e os recursos para urbanização de Favelas. Deste modo, o intuito da nota é denunciar: A agenda golpista de retirada de direitos e convocamos todas e todas para a resistência a luta contra mais este golpe que joga uma pá de cal no Programa Minha Casa Minha Vida, e acaba de vez com sonho da moradia de milhões de brasileiros.
Em contrapartida, na Ocupação Solano Trindade, Movimento e Universidade criaram soluções para arrecadação de recursos. Uma delas foi a elaboração de um projeto de crowdfunding, um financiamento coletivo, para a construção da Fábrica
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Experimental de Cidade, lançado a 22 de Agosto de 2017 pela empresa Benfeitoria. De acordo com texto explicativo do projeto, que é a transcrição da narração de Noêmia no vídeo de divulgação77, a Fábrica Experimental de Cidade será um espaço de criação de tecnologias alternativas de construção, além de ser um espaço de “educação” e “emancipação”, como mostra a figura 18. O financiamento está dividido em duas etapas. A primeira visa atingir a meta de R$ 30.000,00, para que possam assim iniciar a construção das primeiras oficinas e dos materiais. Já a segunda objetiva alcançar no mínimo R$ 60.000, em vistas “conclusão do edifício para abrigar as demais oficinas, a mercearia e o centro de formação profissional”. Figura 18. Iconografia representado os objetivos da Fábrica Experimenta (arte desenvolvida pelo Coletivo Catálise)
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Mais detalhes em: https://benfeitoria.com/fabricaexperimentalmnlmdc?ref=benfeitoria-home (Acessado em 26/11/2017).
171 Figura 19. Iconografia representado as entidades participantes do projeto (arte desenvolvida pelo Coletivo Catálise)
No texto de divulgação são acentuados também os termos “Reforma Urbana” e “Direito à Cidade enquanto princípios necessários para produção de uma cidade para além da lógica da “Cidade Mercadoria” e dos programas governamentais existentes. Ainda no texto, é enfatizada a relação do Movimento com a Universidade, conforme a figura 4, como algo imprescindível para “a troca de conhecimento, inovação em tecnologia e habitação, formação dos alunos e moradores e até mesmo experimentação de novas políticas de gestão urbana e habitacional”. A fábrica será uma das primeiras etapas de realização de um “campus transdisciplinar experimental”, cujo objetivo é “complementar o uso habitacional da propriedade”. Ademais, o financiamento disponibilizou 11 valores contribuição (R$ 10, R$ 30, R$ 50, R$ 70, R$ 90, R$ 100, R$ 300, R$ 500, R$ 1000, R$ 2500 e R$ 5000) com recompensas que variam entre: foto, livro, sapato, cartilhas, camiseta, visita à Ocupação, mudas de plantas agroecológicas, cesta de produtos da mandala e produção de acarajé. No dia 14 de novembro de 2017, foi realizado o Sarau de Encerramento do Financiamento Coletivo da Fábrica Experimental de Cidades na Casa de Estudos Urbanos, no bairro da Glória, Zona Sul do Rio de Janeiro. O evento contou com mesas sobre o Direito à Cidade e o projeto para Solano Trindade, das quais participaram: Noêmia Magalhães, Edivaldo Gomes, Gelson de Almeida, Luciana Lago e Fernando Minto. Três moradores da Ocupação, Fred, Isabel e Jane ficaram na venda das
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bebidas e comidas, cuja arrecadação seria somada ao do financiamento. Os presentes nos eventos eram, em sua maioria, estudantes de arquitetura e urbanismo que já frequentam outros eventos e confraternizações no espaço; espaço este que destina-se a coworking, palestras e exibição de filmes e documentários temáticos. No dia 19 de novembro, a campanha foi encerrada, somando o valor de R$ 31.690,00 e com contribuição de 239 pessoas. A construção da Fábrica começará em Janeiro de 2017, assim como a construção do campus experimental da UFRJ e a escola de formação política e profissionalizante do Movimento. Além dos materiais construídos, serão usadas as madeiras doados pela UFRJ, provenientes da desativação do prédio do Instituto Politécnico no campus de Cabo Frio, município da Região dos Lagos.
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CAPÍTULO 3 A OCUPAÇÃO SOLANO TRINDADE: SUAS CARACTERÍSTICAS E OS QUE A HABITAM 3.1 “SOLANO TRINDADE PRESENTE” Figura 20. Mapa da Ocupação Solano Trindade (Fonte: Google Maps, 9/12/2016).
Durante os anos 2000, o MNLM concentrou sua atuação nas ocupações do Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Depois de minimante consolidadas, conquistando a destinação da terra e seleção pública para financiamento, a coordenação estadual do Rio de Janeiro e a municipal de Duque de Caxias decidiram direcionar a atuação do Movimento para Baixada Fluminense. Em torno de 40 famílias, vitimadas por enchentes e deslizamento de encostas, já estavam sendo organizadas pelo Movimento desde 2008 – somente 27 participaram do momento inicial de ocupação. As famílias, oriundas de Saracuruna, São Bento (bairros de Duque de Caxias) e Belford Roxo, passaram por um processo de formação política, uma vez que precisam acessar interpretações e entendimentos sobre o significado da luta. Nesta formação, o Movimento ofereceria seu repertório icônico e discursivo, em vista do alinhamento e conscientização dos militantes, além de exigirem o comparecimento em reuniões, assembleias, atos e manifestações.
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3.2 “PARA MORAR É PRECISO LUTAR” Para morar na Ocupação, além da adaptação as mínimas condições de habitabilidade, é necessário que os moradores cumpram com as seguintes atribuições: (i) respeitar o código de conduta (que estão expostos nos quadros deste capítulo); (ii) assumir horários na escala de revezamento da cozinha, banheiro ou brigada; (iii) cotizar com itens básicos de limpeza e alimentação; e (iv) participar de cursos de formação, assembleias e manifestações públicas. Residir na Ocupação, portanto, consiste em morar-e-resistir ou morar-para-resistir na tentativa de garantir a realização do projeto baseado nos preceitos da Reforma Urbana e Direito à Cidade. Sendo este, portanto, o caráter de um movimento de luta de direito para ter direito; “uma reivindicação ao acesso, inclusão, participação e pertencimento a um sistema político já dado” (DAGNINO, 2000, p.87). Enquanto um espaço de resistência, a Ocupação é uma maneira de fazer a cidade surgir através de uma nova forma de morar: uma metonímia da cidade ideal. Na Ocupação, as casas não podem ter cadeados, somente tramelas que fecham por dentro. Cadeados representariam a separação entre pessoas suspeitas e insuspeitas. Logo, constituindo-se enquanto um espaço de respeito aos pertences pessoais e familiares, a ausência dos cadeados torna-se fundamental para que todos aprendam a “não destruir ou pegar as coisas uns dos outros”. Ademais, de acordo com os coordenadores, cozinha78, banheiro e lavanderia coletivos existem para instaurar uma nova socialização através da distribuição equânime de tarefas. Já a vigilância da Ocupação deve ser constante, uma vez que mesmo conquistada a destinação da terra, não se pode prever a atuação do poder público ou mesmo de milicianos e grupos de extermínio.
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Na cozinha coletiva, as “famílias” e os “solteiros” colaboram com itens de cesta básica e um valor, respectivamente R$150 e R$ 100. Na cesta básica contém: arroz, feijão, macarrão, café, açúcar, extrato de tomate, vinagre, sal, alho, esponja, desinfetante, sabão em pó e detergente.
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1. CARTA DE PRÍNCIPIO: 2. Porque a NECESSIDADE, o DIREITO, o AMOR pelo outro e a disposição de luta nos une; 3. Porque sabemos que NÃO PODEMOS ESPERAR que os governos respeitem a nossa dignidade, se antes não nos respeitarmos; 4. Porque descobrimos que nossa está na nossa CAPACIDADE DE UNIÃO e AJUDA MÚTUA; 5. Porque sabemos que o que nos falta para VIVER COM DIGNIDADE, sobra para aqueles nos explora e nos oprime a vida inteira; 6. Porque que a JUSTIÇA que precisamos e a IGUALDADE que sonhamos têm que ser obra de nossas mãos. 7. Porque sabemos que o mundo (natureza) nos foi dado, para ser PARTILHADA, PRESERVADA e DEFENDIDA para nós e para futuras gerações; 8. Porque sabemos que o LUCRO, o INDIVIDUALISMO, a COMPETIÇÃO, a GANÂNCIA e a EXPLORAÇÃO do homem pelo homem deve ser combatido.
A Ocupação teve início no dia 08 de agosto de 2015. Até o momento exato de ocupar, as famílias, para fins de segurança, não tinham conhecimento do local. Elas foram realocadas em 2 ônibus e previamente divididas em equipes de: creche, limpeza, cozinha, reparos elétricos e hidráulicos. Naquele dia, a partir das falas dos coordenadores, apresentarem-se alguns atributos do que Victor Turner (1967) denomina de: liminaridade. A liminaridade propiciaria um “estado de communitas” capaz de reunir pessoas que anteriormente não tinham identificação umas com as outras, mas que nas circunstâncias dadas, formam uma “comunidade de aflição”. Turner (1967) descreve esquematicamente as etapas que configuram um drama social79, e inspirada neste roteiro, identificamos alguns procedimentos e investimentos
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O drama social, tal como observado, foi o quadro que possibilitou a descrição da luta dos moradores do Catumbi, no final dos anos 1960, pelos autores do livro Quando a rua vira casa. A idéia de liminaridade, portanto, nos pareceu igualmente pertinente para compreender a ação (drama) dos que não tem casa para morar, ou que, em alguma circunstância qualquer, se veem impelidos a buscar uma solução habitacional que, nesse caso, se organiza coletivamente.
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na produção coletiva da moradia como expressão da ação daqueles que se engajam em uma ocupação; são eles: (i) transição: da terra ociosa para terra ocupada (ii) homogeneidade: todos estão sem moradia digna, moram de aluguel ou favor, e estão desempregados ou em trabalhos precarizados; (iii) igualdade e camaradagem: cada um assumiu uma tarefa de limpeza, cozinha, cuidados das crianças, segurança ou instalações elétricas e hidráulicas em cooperação e solidariedade uns com os outros; (iv) ausência de propriedade individual: o espaço é coletivo e ninguém é dono ou proprietário de alguma parte em especial; (v) nivelamento ou redução de todos ao mesmo nível de condição social: todos são considerados “pobres”, “exploradores” e “alienados” pelo sistema capitalista; (vi) despojamento – nudez ou uniformidade no vestuário: todos usaram a camisa do Movimento com a estampa de Solano Trindade (vii) altruísmo e humildade: ninguém pôde mandar em ninguém, no mais orientar e esclarecer o que deve ser feito; (vii) obediência total: os coordenadores do Movimento eram aqueles que autorizadamente conduziram a transição, personificando os valores axiomáticos e absolutos do Movimento; (ix) aceitação da dor e do sofrimento: diante das falta de habitabilidade, estavam privados de banho, iluminação e deveriam resistir as situações de violências que porventura poderiam ocorrer nas já esperadas tentativas de reiteração de posse. Atualmente, as condições de habitabilidade têm sido conquistadas através de mutirões, parcerias, doações e financiamentos. O abastecimento de água ainda não é regular e alguns espaços não possuem instalações elétricas ou ventilação adequados. Algumas famílias também não conseguiram se adaptar à coletivização da cozinha, que exige o cumprimento de escalas no preparo das refeições e limpeza do espaço. Outros motivos relacionam-se ao não cumprimento dos códigos de conduta. Dentre os códigos, há os que proíbem o consumo de bebida alcoólica e de realizarem confraternizações que envolvam “pessoas de fora”. Visitas não são proibidas, mas não podem pernoitar. Isso porque, segundo os coordenadores, elencando exemplos de outras experiências de ocupação, é comum que pessoas, que não passaram pelo crivo do Movimento, estendam-se por dias ou semanas. Em suma, para os coordenadores só moram na Ocupação as famílias que “constroem” e reproduzem as práticas corroboradas pelo movimento. Como explicita Noêmia: As pessoas têm uma necessidade urgente, sabe. Elas querem que a gente de resposta imediata aos problemas delas. Elas não entendem, embora a gente repita sempre, que é uma luta e que o Movimento não dá a moradia, o Movimento não
177 resolve o problema; ele chama pra luta, ele organiza a luta. Então na medida que as pessoas vão percebendo que a gente não vai dar uma resposta rápida... Poucos vai caminhando junto conosco, e outras vão caminhando pra trás. Mas isso não termina, isso dá continuidade. Umas saem, outras vem. Alguns saem, outras vem. Alguns saem, outros vem. Porque sempre tem um renovo. A necessidade desse município é muito grande. As pessoas não têm...elas não sabem a quem pedir ajuda. As prefeituras não resolvem. Governo do Estado não resolve.
Segundo Noêmia, a Ocupação não é um “abrigo”, uma vez que o Movimento não faz “caridade”, “filantropia”, ou “assistência social”. Apesar de entender a pressa das famílias, Noêmia reitera que “tempo do Movimento não é o tempo do poder público”. O Movimento não é o Governo Federal, a Prefeitura ou a Secretaria de Habitação, Planejamento e Urbanismo de Duque de Caxias. Ou seja, as famílias não devem somente fazer o cadastro e voltarem quando as casas estiverem prontas, mas participarem ativamente da formulação e execução do projeto – até mesmo porque das 180 famílias somente 105 serão selecionadas a partir do critério da participação efetiva. O Movimento, portanto, não é um simples paliativo diante da falta de políticas públicas, mas sim por excelência a organização que elabora projetos de habitação social de caráter “popular”, “solidário” e “coletivo”. Das famílias que ocupam atualmente, a maioria não trabalha de carteira assinada e realiza serviços temporários, “os bicos” ou “biscates”, nos quais ganha o equivalente a 1 salário mínimo. Os ofícios mais comuns são: porteiro, pedreiro, ladrilheiro, ajudante de feira, mecânico, vendedor ambulante, coveiro, manicure, diarista, auxiliar de serviços gerais, acompanhante de idosos, babá e doceira. A maioria não concluiu o ensino médio ou fundamental, mas alguns almejam – sobretudo as mulheres que dizem ter interrompido os estudos para cuidar e sustentar os filhos – fazer cursos técnicos ou universitários. Todos já moravam na Baixada Fluminense ou em bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro. Os ocupantes conheceram o projeto por intermédio de outras famílias ou pelos coordenadores, Noêmia e Gelson. Aqui na Ocupação moram em antigos laboratórios e salas administrativas; nos quais, sem a compartimentação adequada, criam uma arquitetura imaginária (MELLO; VOGEL, 2016, p.43) atribuindo usos a espaços que pareciam ser impossíveis de se habitar. Fazendo dos jardins, brinquedos e confraternizações maneiras de descrever e prescrever a vida na Ocupação. Dando, assim, uma dimensão humana aos espaços e a própria vida.
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3 CARTA DE PRINCÍPIOS: NOS COMPROMETEMOS EM COMBATER: 1.
A ESPECULAÇÃO imobiliária e a propriedade PRIVADA da terra;
2.
O PRECONCEITO e o desrespeito às diferenças;
3.
O MACHISMO;
4.
O ACÚMULO do que não é necessário para a nossa vida e de nossa família;
5.
A tendência que eu sinto às vezes de esperar que o outro lute sozinho para eu me beneficiar sem me expor;
6.
Todas as FORMAS DE VIOLÊNCIA, entre nós e contra nós;
7.
O SENTIMENTO DE VINGANÇA contra o outro e contra o mundo, que provoca REAÇÃO INDIVIDUAL, desconsiderando a luta coletiva por justiça e igualdade;
8.
A SUBMISSÃO do nosso movimento a partidos, governos e religiões;
9.
As DIVISÕES E INTRIGAS que nos enfraquecem e fortalecem nossos inimigos, sabendo que o Movimentos somos nós, e que o debate fraterno e fraco tem que ser feito em nossos espaços democráticos;
10.
O SENTIMENTO DE SUPERIORIDADE E INFERIORIDADE, respeitando os limites e o tempo do outro sem que com isso se comprometa a luta de todos.
3.3 A COZINHA: LABORATÓRIO DA “COLETIVIZAÇÃO DA VIDA” De acordo com os coordenadores do Movimento, “a cozinha é a pedagogia” do convívio diário e da consciência ambiental porque ensina os moradores a terem nas refeições uma responsabilidade coletiva, além de ser um espaço de socialização de modos de preparo, utilização de alimentos e reciclagem. Das famílias inscritas no projeto, somente 10 delas moram na Ocupação. Isso porque é preciso ocupar a terra como forma de (i) dar visibilidade a questão do déficit habitacional; (ii) resistir as investidas de grupos locais ou do poder público na reivindicação da terra; e (iii) promover a formação político-pedagógica – o fundamento
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de tal formação perpassa por aquilo que os coordenadores denominam de “coletivização da vida”. As famílias “improvisam” a moradia em salas administrativas, que por não terem a infraestrutura adequada, impossibilitam a individualização de certos espaços. Assim os cômodos de casa são providenciados em espaços coletivos e nos quais o Movimento oportunamente materializa os seus valores e princípios. Contudo, dentre os espaços, a cozinha é aquele sobre a qual os moradores apresentam opiniões divergentes. Isso porque além de escala, o funcionamento da cozinha depende da cotização de itens básicos de alimentação. O que traz outra questão conflituosa. Os ocupantes com renda afirmam que a distribuição não é equânime, já que “sustentam” aqueles que não tem renda. Para os ocupantes que trabalham, os que não o fazem são “acomodados”, “vagabundos”, preguiçosos e “aproveitadores”. Ou seja, o não trabalho não é visto como falta de emprego no mercado, mas falta de disposição ou “vergonha na cara”, uma vez que qualquer um pode fazer “uma faxina ou procurar um chão para capinar”. Assim, a cozinha, ao em vez de prezar pela coletizaçao da vida, seria somente uma espécie de assistencialismo, no qual pessoas que já não têm muitas condições precisam ainda dividir com aqueles que não contribuem. Para os coordenadores do Movimento, a cozinha coletiva por mais importante que seja, é de caráter provisório e por isso temporária. O seu fim se dará quando os melhoramentos infraestruturas propiciarem condições para que cada uma das famílias possa ter sua própria cozinha. Contudo, há discordâncias entre os coordenadores porque alguns acham que os atritos entre os moradores é motivo cabal para o encerramento das atividades da cozinha coletiva. De outro lado, há aqueles que defendem a sua continuidade, já que várias famílias ainda dependem dela para a sua sobrevivência. O que para eles não é necessariamente uma falha da cozinha, mas da pedagogia do Movimento em convencer as pessoas da necessidade da coletivização da vida.
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3.4 LUTA: SUBSTANTIVO PLURAL Figura 21. Moradores da Ocupação Solano Trindade no Grande Ato do Dia do trabalhador convocado pele Frente Esquerda Socialista no Parque Madureira (Foto: Lidiane Matos, 01/05/2016).
A luta tem seus expedientes. Coisas que imperiosamente precisam ser feitas; do contrário, não é luta. Pelo menos é que tenho observado nas táticas e estratégias do Movimento em relação às famílias ocupantes e as inscritas no projeto. As casas ainda não foram construídas. Tudo ainda está em projetos, existindo em cursos, reuniões, mutirões e assembleias; o que dá conta de tangibilizar algo que está por vir. Logo, a comunhão de sonhos, desejos e imaginários é uma tentativa, porque diversos podem ser os interesses. Entretanto, há momentos em que estes tornam-se inconciliáveis. As famílias do projeto não são necessariamente militantes do movimento, mas de alguma forma espera-se que se tornem. Por isso, a pedagogia do MLNM tem exigido das famílias inscritas no projeto o comparecimento em atos e manifestações pelas cidades do Rio de Janeiro, Duque de Caxias ou Brasília – os coordenadores com isso reforçam que a luta está para além do curso de formação oferecido pela Assessoria Técnica. Contudo, em certo momento, uma das inscritas revelou que se isso for uma obrigatoriedade ela terá que sair do projeto. Ela é Testemunha de Jeová e para justificar a sua saída mobilizou uma série de argumentos baseada na Bíblia. Apesar de reconhecer a necessidade da luta para fazer cumprir certos direitos constitucionais, sobretudo os relacionados à moradia, ela não concorda com o
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repertório de performance do enfretamento: ocupações em espaços públicos, palavras de ordem contra o governo ou o sistema capitalista. Para tal mulher, a luta política é uma luta terrena e mundana, que não levará à graça, livramento ou arrebatamento. Ela já foi recrutada por Jesus Cristo para a luta maior, divina e transcendental. Logo, fazer parte da luta política não é somente ir contra os desígnios de Deus, como também negar a Bíblia enquanto prescrição da verdadeira luta. Os coordenadores do Movimento tentaram convencê-la, enfatizando que a cidadania só se faz com essa luta que ela diz ser insignificante diante dos projetos, incontornáveis, que Deus tem para as nossas vidas. Uma das coordenadoras do Movimento, também evangélica de denominação presbiteriana, acionou alguns fundamentos em comum, citando livros, passagens e versículos bíblicos que não proíbem e, que até de certo modo, orientam os fiéis para a luta terrena e não no plano espiritual.
3. CARTA DE PRINCÍPIOS: PRIMEIRO – Construir o Movimento Nacional de Luta pela Moradia como um ESPAÇO DEMOCRÁTICO de luta de milhares de empobrecidos do nosso estado e do nosso país em busca de moradia digna e Reforma Urbana, de forma a DERROTAR o CAPITALISMO e todas AS SUAS FORMAS DE DOMINAÇÃO; SEGUNDO – Combater dentro, entre nós a e na sociedade, VÍCIOS que aprendemos com o capitalismo e com a OPRESSÃO especialmente...são nossos INIMIGOS, sendo responsáveis pelo MISÉRIA e DESTRUIÇÃO da vida; TERCEIRO – Participar dos espaços de ORGANIZAÇÃO e FORTALECIMENTO do nosso movimento e da nossa luta; QUARTO – Organizar a JUVENTUDE de moradia em um projeto de ALEGRIA, LUTA e ESPERANÇA; QUINTO – Organizar as MULHERES na e da moradia de forma a restaurar sua AUTOESTIMA e propiciar EMANCIPAÇÃO feminina na busca de igualdade, potencializando sua capacidade de luta em defesa da MÃE TERRA e dos seus filh@s;
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A partir deste conflito, pudemos compreender que movimento social e religião equiparam-se quando exigem a recodificação de condutas, sejam interditos ou permissões, ou mesmo uma nova concepção de vida social e espiritual. Espiritual na medida em que os ritos do Movimento envolvem analogamente certa efervescência coletiva e renovação do sentimento de pertença, que fazem dos indivíduos mais do que um ajuntamento, quando sim organicamente uma comunidade fundada na crença de que um futuro melhor é possível. Contudo, à medida que a religião não abre mão de sua doutrina, o Movimento não abre da sua. De modo, que a coordenadora orientou-a, propondo que ela buscasse em alguma liderança de sua Igreja conselhos que lhe ajudasse a encontrar na Bíblia algo que pudesse corroborar com preceitos do Movimento. Caso contrário, não teria como ela ficar no projeto.
4. CARTA DE PRINCÍPIOS: SEXTO – Transformar os espaços conquistados em EXEMPLOS VIVOS da cidade que queremos com CORRESPONSABILIDADE, gestão DEMOCRÁTICA, PARTICIPATIVA, FORMAÇÃO e EDUCAÇÃO permanente, FOMENTO cultural, alternativas de GERAÇÃO DE RENDA, espaços de USOS COLETIVOS, prioridade para INFÂNCIA e ADOLESCÊNCIA e biblioteca; SÉTIMO – Construir uma REDE DE SOLIDARIEDADE e compromisso na luta com ENTIDADES, COMUNIDADES, OCUPAÇÕES e PESSOAS que tenham os mesmos objetivos; OITAVO – Participar ativamente da luta ANTICAPITALISTA contra a CRIMINALIZAÇÃO
da
pobreza
e
empobrecimento
da
CLASSE
TRABALHADORA na perspectiva da EMANCIPAÇÃO da nossa classe, em conjunto com organizações da classe trabalhadora que não se entregaram ao CAPITALISMO, a BUROCRACIA e a CORRUPÇÃO; NONO – Lutar pela garantia com absoluta prioridade de acesso à moradia digna das famílias com renda familiar de 0 A 3 SALÁRIOS MÍNIMOS;
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DÉCIMO – Lutar até a VITÓRIA pela TRANSFORMAÇÃO concreta da moradia e do acesso à terra na cidade e no campo, derrotando na sociedade e nos governos a visão e a prática de MERCADORIA e de COMPRA E VENDA, sabendo que esta visão foi constituída para deixar a maioria do povo excluído e que nossa missão é construir um novo mundo onde tod@s ESTARÃO INCLUÍDOS PELA DIGNIDADE DA VIDA e não pela capacidade de pagar.
Para os coordenadores do MNLM, a leitura evangélica tem sido mais um empecilho do que propriamente uma orientação complementar à luta política. Isso pode ser observado também nas declarações em redes sociais como no grupo de WhatsApp – um outro instrumento do Movimento para propagar valores, princípios, informações e esclarecimentos sobre o projeto. No grupo é comum que alguns integrantes compartilhem mensagens de cunho religioso. Tal conduta é rechaçada pelos coordenadores, e as pessoas que o fazem são “enquadradas” porque nada as impede de terem religião ou inclinações semelhantes, mas isso não pode ser a tônica de todos os espaços que elas ocupam, sobretudo, os que se propõem às questões concernentes a luta do Movimento. A questão religiosa envolve também uma das famílias ocupantes, cujos membros - um casal com quatro filhos – são evangélicos neopentecostais. O que pode ser percebido pela vestimenta característica; a mãe e filha, por exemplo, usam um roupão colorido que cobre todos os membros do corpo, além de manterem os cabelos sempre presos em um coque. A família participa de todas as atividades da Ocupação, comparecendo em atos, mutirões e assembleias – diferentemente das Testemunhas de Jeová não demonstra problemas em participar da dramatização da luta. Em contrapartida, expõe outros conflitos. O discurso religioso, sobretudo por parte da mãe da família, faz-se presente em qualquer conversa que estabelece com terceiros. Sua história de vida é sempre contada na série perdição-chamado-provação-livramentoglória. Em sua interpretação, a religião traz a predestinação, que fundamenta não só o futuro, como também atribui novos sentidos aos acontecimentos passados, que outrora causas de grandes sofrimentos, são agora justificados como imprescindíveis
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para a valorização da vida cristã. O que coaduna com o entendimento de Freud no texto o Futuro de uma ilusão:
Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas idéias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. Reside aqui a essência da questão. A vida neste mundo serve a um propósito mais elevado; indubitavelmente, não é fácil adivinhar qual ele seja, mas decerto significa um aperfeiçoamento da natureza do homem. É provavelmente a parte espiritual deste, a alma, que, no decurso do tempo, tão lenta e relutantemente, se desprendeu do corpo, que constitui o objeto desta elevação e exaltação. Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que, ao final, embora seus caminhos e desvios sejam difíceis de acompanhar, ordena tudo para o melhor - isto é, torna-o desfrutável por nós. Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado inorgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. E, olhando na outra direção, essa visão anuncia que as mesmas leis morais que nossas civilizações estabeleceram, governam também o universo inteiro, com a única diferença de serem mantidas por uma corte suprema de justiça incomparavelmente mais poderosa e harmoniosa. Ao final, todo o bem é recompensado e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer (FREUD, 1997, p.14).
Na primeira assembleia ordinária do Trabalho Social, eu, Noêmia e alguns moradores e inscritos realizamos um jogral da música “Cidadão”; conhecida pela interpretação Zé Ramalho80. Na dinâmica utilizamos dobraduras em forma de casinha nas cores verde, amarela, rosa e branca e cada em uma delas continha até duas estrofes, de modo que quem tivesse a casinha de tal cor deveria recitá-las em uníssono. Logo depois, dando prosseguimento à dinâmica, abrimos para que as pessoas pudessem tecer comentários sobre a parte que leram. A mãe da família ficou justamente com a parte81 que fazia referência às questões religiosas. Isso deu a ela a possibilidade de iniciar uma fala evangelizante, que parecia até previamente ensaiada, à espera de momentos como esses, com ouvintes. Os coordenadores ficam incomodados, como se de alguma forma o discurso religioso rivaliza-se com seu 80
Cantor, compositor e instrumentista nascido em 1949 no Estado da Paraíba. Tá vendo aquela igreja, moço? / Onde o padre diz amém/Pus o sino e o badalo / Enchi minha mão de calo / Lá eu trabalhei também/ Lá foi que valeu a pena/Tem quermesse, tem novena / E o padre me deixa entrar / Foi lá que Cristo me disse / Rapaz deixe de tolice / Não se deixe amedrontar/Fui eu quem criou a terra/Enchi o rio, fiz a serra/ Não deixei nada faltar . 81
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discurso político. Até porque em sua fala, a mulher enfatizava que o destino de todos estava na mão de Deus, independentemente das vontades humanas e até mesmo do Movimento. Algumas outras pessoas presentes ficaram visivelmente incomodadas e no final da dinâmica nos procuraram para dizer que “ali não era um culto”, no que concordamos e comprometemo-nos em tomar providências que garantissem que tal “situação constrangedora não mais se repetirá”. Os conflitos decorrentes da inserção de famílias evangélicas em projetos de moradia popular têm se tornado uma constante. Como ilustram Barbosa e Swatowiski (2016), em estudo sobre a Ocupação Glória, É preciso considerar que muitos pastores e fiéis evangélicos não participam das reuniões promovidas pelo MSTB na plenária. Alguns por não querer se envolver com o Movimento, levantando questionamentos sobre as práticas estabelecidas para organização do Glória, que envolve pagamento de taxas para advogados, custeamento de despesas de viagem de lideranças em eventos políticos. Outros simplesmente não participam pela prioridade que dão aos cultos, dado que na percepção cosmológica evangélica, compartilhada por boa parte dos nossos interlocutores, o destino da ocupação, em última estância, está nas mãos de Deus. Isto implica, inclusive, em uma forma resignada de lidar com a possibilidade de insucesso da ocupação. Ouvimos muitas vezes falas do tipo: “se não for da vontade de Deus, nós saímos daqui e Deus vai nos dar outro lugar para morar”. Ou: “temos de confiar em Deus, porque Deus nunca erra e nunca perde o controle da situação” (p.16).
A Ocupação Glória, originada em 2012 e da qual fazem parte 2.500 famílias, é uma ocupação do Movimento Sem Terra do Brasil (MSTB), situado em Uberlândia, Minas Gerais. Além das 17 células evangélicas, de acordo com mapeamento de 2013, existe também uma capela católica e um espaço para culto afro-brasileiro. Contudo, diferentemente da Solano Trindade, a leitura evangélica, a despeito dos conflitos, é ainda positivada em prol da luta por moradia e direitos sociais, complementando-se ou entrelaçando-se com a própria graça divina. Assim observam Barbosa e Swatowiski (2016),
Gostaríamos de encerrar trazendo mais um relato de campo que sintetiza muito bem os eventos que animam nossas preocupações atuais. Em uma assembleia recente, quando foi anunciada a publicação em Diário Oficial de decreto que estabelece uma das condições de regularização do Glória, o clima era de comemoração e também de medo. Comemoração pela publicação do decreto e medo de que essa conquista fosse anulada pelo governo Temer. Em meio à assembleia, Norma frisava que era importante estar na luta junto com o movimento e também orar na igreja. Então, relatou que um dia estava na igreja orando e sua filha observou que ela orava apenas com a mão esquerda para o alto. Disse à mãe que ela deveria levantar as duas mãos para orar. E Norma justificou que está tão acostumada a levantar a mão
186 esquerda para lutar que não conseguia levantar a mão direita nem para orar. O relato de Norma gerou um momento de descontração entre os moradores presentes na assembleia. Ao final da reunião, Norma retomou a passagem e deixou o seu recado: “quero ver todo mundo orando nas suas igrejas com a mão esquerda pro alto!” (p.21).
Na Ocupação Solano Trindade, a inserção de famílias evangélicas no projeto é considerada um dilema para os coordenadores de Duque de Caxias. Não que o problema seja em si religioso, mas pelo fato de algumas denominações de fé divergirem da luta do Movimento em aspectos cruciais. Até porque não só o MLNM, mas diversos movimentos sociais de luta por moradia, sobretudo entre as décadas de 1980 e 1990, estabeleceram engajamentos conjuntamente com setores da Igreja Católica – desde as ações e políticas de organização comunitária empreendidas pela Cruzada São Sebastião (VALLADARES, 2005, SIMÕES, 2010) àqueles relacionados à teologia da libertação e que defendiam posturas progressistas diante dos problemas sociais (MACHADO, 2016). Ademais, o processo de redemocratização, conhecido com um período de “efervescência movimentalista”, é marcado pela atuação de entidades políticas e da Igreja Católica, sobretudo, as Pastorais e Comunidades Eclesiais de Base (CEBS) enquanto “centro mobilizadores “e de “ação coletiva” (TIMMER, 2011, p.1). De acordo como Timmer (2008), As Comunidades Eclesiais de Base eram, em muitas realidades, a expressão e o espaço dessa vivência de uma fé que afirmava a opção preferencial de Deus pelos pobres espécie de leitmotif, síntese, de uma teologia razoavelmente sistematizada e que, pelas lentes da libertação política, buscava ler, tanto a Bíblia, quanto a realidade social e política, quanto o cotidiano onde estas comunidades se inseriam. Esta teologia, como forma de ler a Bíblia e o mundo, e que ficou conhecida como teologia da libertação, permeava e nutria a forma de trabalho das CEBS especialmente por meio de um método, o ver-julgar-agir, que compreendia um triplo movimento de: leitura da realidade e dos acontecimentos ao redor; julgamento dessa realidade inspirado a partir da leitura da Bíblia, com o viés da opção preferencial; e chamamento à ação concreta e palpável que essa dupla leitura instigava. Ainda, a título de menção, na fileira de acontecimentos que marcaram a composição do cenário dessa igreja popular estão as reuniões em torno do Concílio Vaticano II, que, com o objetivo de discutir, propor e elaborar uma concepção de missão na sociedade contemporânea, abriu-se e afirmou a necessidade de a Igreja se voltar para uma prática que levasse em conta as realidades políticas e sociais dos locais onde estivesse envolvida (p.2).
Contudo, segundo os coordenadores do MNLN, a Igreja Católica não exerce o mesmo protagonismo de décadas passadas, e a relação com seus segmentos progressistas é cada vez mais esporádico. A compreensão de tal mudança tem sido imprescindível para analisar o perfil das composições familiares arregimentadas pelo
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Movimento. Os coordenadores do MNLM afirmam que tem sido difícil lidar com os “fanáticos-fundamentalistas”, uma vez que o crescimento e o fortalecimento das denominações evangélicas82 – Assembleia de Deus, Congregação Crista do Brasil, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, Igreja Adventista do Sétimo Dia, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Adventista do Sétimo Dia, Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Luteranas, Igreja Batistas, Igreja Presbiterianas e Igreja Metodistas – tem sido significativa na Baixada Fluminense e sobrepõe-se as camadas mais populares e de baixa renda, que é a situação das famílias inscritas no projeto. O que, portanto, somase aos desafios pedagógicos do Movimento em prol conscientização das famílias.
3.5
ANTES DA OCUPAÇÃO SOLANO TRINDADE: A LUTA LOCAL E A LUTA
NACIONAL Como já expomos, a luta do MNLM antecede o projeto da Ocupação Solano Trindade. De mesmo modo, a luta por moradia em Duque de Caxias antecede a atuação do MNLM. Gelson e Noêmia, atualmente coordenadores do Movimento, possuem trajetórias que advêm de outras organizações, dentre elas as associações de moradores de bairros; aquilo que ambos denominam de “movimento associativo”. Gelson, antes do MNLM, atuou na ACT-BF, no Movimento União de Bairros (MUB) e na UNMP. Já Noêmia como secretária em uma associação de moradores em Saracuruna. Segundo ambos, suas respectivas entradas nos MNLM representaram uma mudança de concepção na luta por moradia. Isso porque, enquanto os “movimentos associativos” possuem uma atuação local, limitada e “cartorial”, os “movimentos populares”, de abrangência nacional, apregoam a luta por moradia fundamentando-se nos ideais de Direito à Cidade e Reforma Urbana. Gelson elucida essa diferença quando é perguntado sobre a reestruturação do Movimento no Rio de Janeiro em idos de 2000 e o histórico no Movimento na Baixada Fluminense: “Uma recente pesquisa [2017] feita pelo instituto Datafolha mostra que três em cada 10 brasileiros (29%), com 16 anos ou mais, são evangélicos. Deste número 22% são pentecostais e pertencem a igrejas como Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, Congregação Cristã e Igreja do Evangelho Quadrangular; já os outros 7% pertencem a outras ramificações do protestantismo, como as igrejas Batista, Metodista e Presbiteriana, chamadas de evangélicas históricas.” Mais detalhes em: http://www.semprefamilia.com.br/quais-sao-e-qual-o-perfil-das-10-igrejas-evangelicas-maisnumerosas-do-brasil/ (Acessado em: 21/01/2018). 82
188 [Eu gostaria de saber um pouco mais sobre o histórico do Movimento na Baixada Fluminense]: (...) Primeiro quando a gente começa né... Caxias. Como é que você reestrutura um movimento e que ele não tem uma estrutura de organização de um movimento associativo? Porque você também não tem movimento de reforma urbana como o Movimento Nacional de [luta por] Moradia que lida com a discussão da cidade, não tem especificamente com a cultura na Baixada, quando você funda uma associação por força das relações de bairro tem que determina o espaço geográfico pra ação. Se você diz que representa tal bairro você não pode falar do bairro vizinho que dá uma tremenda confusão. Então essa questão da legitimidade da área política e dos sujeitos em torno dela. Então quando a gente vem com o Movimento Nacional a gente quebra isso tudo. E foi uma porradaria. Porque a gente ia fazer conflito com.... Primeiro eles [as associações de moradores] queriam saber se a gente tinha estatuto pra ter a ação política e tal e eu falei: não, a gente mexe com a discussão da cidade e nossa ação se dá através de organizações de pessoas que se sintam engajadas na luta pela reforma urbana e essa luta requer que as pessoas participem e que a ação vai depender muito da discussão sobre políticas públicas. Não só a questão da moradia em si, mas de políticas públicas que é educação, saúde, transporte, mas no seguinte viés: de você ter o entendimento da cidade.
Ademais, uma das motivações de retomar a luta por moradia em Duque Caxias se deu em um contexto de enfraquecimento e redirecionamento da atuação das associações de moradores. Como explicita Gelson: Em Caxias, nós pelo MUB, que é o Movimento União de Bairros, que tem aquela estrutura que eu falei anteriormente (...) que é constituída por associações, na maioria delas cartoriais, que não tinham uma vida política nos seus bairros, e já tinha a crise da associação de moradores...já estava acontecendo. Como era essa crise? Ou era apropriada pelos vereadores, ou pelo grupo de extermínio ou pelo tráfico. Então os moradores já não se sentiam muito bem sendo representado por essas organizações... por causa dessa disputa. E na época em Caxias, não sei se foi na Baixada, começou a surgir o centro de assistência social, fundada pelos vereadores. Com isso fez-se a disputa das associações e as associações foram enfraquecidas. E os vereadores fundando, quando não eram os vereadores era o cabo eleitoral que tomava conta da assistência social, do tal do centro. E isso basicamente já quebraria a espinha dorsal da associação de representação pelas lutas. Na época a luta era pela manilha da sua porta. Porque na época você tinha um grande problema, é ainda tem, que era muito grave, que era a questão do saneamento básico (...) Com esse declínio do movimento associativo nós, a última gestão do MUB, começou a trabalhar com ocupação de terras. Ocupamos terras em Caxias. Nesta ocupação, a gente começou a ter vinculação com a história de São Paulo, que na época era a Erundina, prefeita de São Paulo, a primeira prefeita de São Paulo [pelo PT]. E que ela [Erundina] travava e dava sustentação a luta urbana em São Paulo, quando começou o processo de autogestão por moradia popular. Na época, tinha uns figurões lá, uma estrutura da Igreja, fornecimento de projetos, financiamento, que sustentava o movimento popular pra travar essa luta. Quando nessa época a gente começou a travar a questão do orçamento público, do orçamento participativo. Então a gente começou fazendo essa ponte.
Segundo Gelson, com o fim do MUB a luta por moradia foi enfraquecida na Baixada Fluminense. Retomada somente nos anos 2000 com rearticulação da Central de Movimento Populares (CMP), da qual faziam parte MNLM, UNMP e CONAM.
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Depois de sua saída do MUB, Gelson tornou-se dirigente nacional da UNPM, movimento através do qual tentou retomar a luta em Duque de Caxias. Contudo, Gelson rompei com União por não concordar com sua centralização pela Fundação Bento Rubião que seria responsável pela assessoria técnica e orientação política da UNMP no Rio de Janeiro. Isso porque a Fundação Bento Rubião, que já atuara junto do MUB, é uma organização não-governamental, é como tal, de acordo com Gelson, “não pode dar a linha política” em um movimento popular. Em sua visão um movimento social deve ser autônomo e manter sempre sua posição de “resistência” e “enfrentamento”, o que se torna impossível quando se é centralizado por outras entidades “engessadas”; ou seja, burocráticas como ONG’s e instituições governamentais. Diante das discordâncias como a União, Gelson foi convidado por Beto e Miguel, coordenadores nacionais do MNLM, para fazer parte do Movimento. Isso porque para tais dirigentes, o MNLM poderia melhor do a UNMP corresponder os anseios de radicalização política das lideranças de Duque de Caxias. Depois de passados alguns anos como “observador” em 2005, Gelson tornou-se dirigente do MNLM. Gelson relata que essa foi a mesma situação pela qual passou a “companheira” Lurdinha, que atuava em Volta Redonda, integrou a CMP e depois tornou-se coordenadora do MNLM – Lurdinha é atualmente coordenadora estadual e mora na Ocupaçao Manuel Congo. A partir de 2005, o MNLM começou a articular núcleos de formação pela cidade do Rio de Janeiro, em lugares como: Morro do Cantagalo, Caju e Centro. Neste mesmo ano, ocorreu uma tentativa de articulação em São Gonçalo, da qual, entretanto, o Movimento não obtive sucesso devido a recusa dos moradores em relação à carta de princípios. A outra tentativa foi no prédio onde funcionava o Cine Vitória – na Rua Senador Dantas no centro do Rio de Janeiro e onde atualmente se encontra a Livraria Cultura. Algum tempo depois tentaram ocupar o prédio da Secretária de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro (SEFAZ), no qual funciona atualmente o Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). Diante dessas tentativas, o Movimento, segundo Gelson, começou a “criar problema” no Centro, chamando atenção da mídia e dos governantes. O Movimento continuou realizando suas reuniões e depois de dois meses de discussões e planejamento, iniciaram a Ocupação Manuel Congo em 2007, na Rua
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Alcindo Guanabara, no Centro. Ocupação, que segundo Gelson, consolidou a atuação do Movimento no Rio de Janeiro. Em 2008, teve início a Ocupação 9 de Novembro, em Volta Redonda. A terra ocupada foi indicada por um funcionário do setor de regularização fundiária da Superintendência de Patrimônio da União e que tinha sido coordenador nacional do Movimento – a Ocupação Mariana Crioula, na Gamboa, também foi fruto de articulação com a SPU. Neste mesmo ano, o Movimento começou a reorganizar sua atuação na Baixada Fluminense, especificamente em Duque de Caxias, através de quatro núcleos de famílias em: Novo São Bento, Vila do Saí, Jardim Primavera e Saracuruna. As famílias, em sua maioria, eram indicadas por conhecidos ou pela Igreja Católica. Além do mais, com sua participação no Grupo de Discussões da SPU, o Movimento passou “a cobrar” a indicação de terras públicas ociosas para serem ocupadas pelo Movimento. Tanto nas falas de Gelson como nas de Noêmia, acentua-se o fortalecimento das relações entre os movimentos sociais de esquerda e certas instituições governamentais no contexto dos governos petistas. Em um primeiro momento, a articulação com a Secretária de Patrimônio da União em Brasília, e a Superintendência de Patrimônio da União no Rio de Janeiro foram imprescindíveis para a conquista da terra. Isso porque o superintendente era considerado progressista e demonstrava comprometimento com a luta pela Reforma Urbana em aspectos semelhantes aos do Movimento. De acordo com Noêmia:
(...) pra nossa sorte o superintendente tinha uma visão muito legal, muito bacana, muito de cidade mesmo pra todos. E ele se recusou a aceitar aquele projeto [da prefeitura de Duque de Caxias] de iniciativa privada. Né, então é assim...Terra pública... Ele tinha consciência que terra pública tem que ter função social. Então, assim, a gente via nele um aliado na luta pela reforma urbana né. Então, ele cumpria mesmo a linha da reforma urbana. Isso nos satisfazia muito. Aí a gente veio caminhado com toda aquela burocracia mesmo, mas a gente sabia que a terra seria nossa. Porque o superintendente tem essa linha da reforma urbana. Então passamos por todos os trâmites legais, protocolares. Primeiro a terra foi protocolada pra SPU. A gente, depois que foi protocolada, a gente foi participar das reuniões. Foi cobrado um projeto: ó a prefeitura apresentou um projeto, e vocês vão ter um prazo pra apresentar o de vocês. Então, o grande problema do movimento popular é que a gente não tem dinheiro. Então, a gente começou a pedir ajuda da Universidade e prontamente a UFRJ, chegou junto conosco. Aliás, caminhamos juntos o tempo todo. Na verdade, antes mesmo de começar o projeto, eles já estavam juntos conosco. Na mesma luta pela reforma urbana.
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Contudo, enquanto SPU, secretaria e superintendência, e o Ministério das Cidades eram considerados aliados, o INCRA era colocado, pelo menos em um primeiro momento, como um adversário a obstaculizar a conquista da terra pelo Movimento. Representando, portanto, os interesses do “capital”, dos “grileiros” e “especuladores fundiários”. O que pode ser evidenciado na fala do Gelson:
De um lado o governo, esse governo é ele fatiado né, não tem uma centralidade. Mas tem um grupo que age de outras formas, com apoio da milícia, com a apoio da força oficial que é a Polícia Militar pra poder legitimá-los na terra, enquanto a gente não. A gente com o nosso instrumento de organização e mobilização faz o enfrentamento. Então interesse ali, tinha um interesse bem visível do capital do mesmo, para se reestruturar na terra pública, que não era deles. Então a gente só consegui...primeiro porque o Movimento Nacional tem essa estrutura da organização, pelo fato de ser um movimento nacional, pelo histórico de luta. E pela articulação que a gente tem a nível nacional. Porque se a gente fosse um grupinho pequeno, de Caxias, que não tivesse toda essa relação política, dentro da questão da política de reforma urbana, a gente já tinha perdido a terra. Já tinha perdido de lavada porque os caras vieram pesado. Como eles percebiam que a gente tinha um trâmite, de conversa com a Casa Civil, com o Ministério das Cidades e ao mesmo tempo isso pipocava no governo estadual no trato da força polícia...a gente já falava com o comandante geral. Não era nem a gente, era Brasília que falava com eles né. E ao mesmo tempo Brasília falava com o INCRA, pressionando o INCRA. Quando falo Brasília, falo Ministério das Cidades.
Quando da ocupação da terra pelo Movimento, o Centro Pan-americano entrou com um processo de reintegração de posse. Contudo, de acordo com Gelson e Noêmia, a terra pertencia ao INCRA e não mais ao Centro Pan-americano desde 2005. Logo era o INCRA que deveria requerer a terra. Mesmo assim, o Centro Panamericano acionou suas relações com INCRA e neste contexto surgiu também outro ator, a Secretaria de Desenvolvimento Social de Duque de Caxias, cujo secretário afirmava já ter formulado um projeto para a terra em questão. Ademais, além da relação com a SPU, o Movimento fortaleceu suas relações com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR e PROURB), além de buscar algum apoio institucional dentro do INCRA. Segundo Noêmia:
Mas mesmo com todas as visitações da SPU, a gente quase perde a terra. Porque o Centro Pan-americano de Febre Aftosa, mesmo sabendo que não tinha mais gerencia na terra, (...) a terra estava sendo usada pelas prefeituras, dos governos que por ali passavam e estava tudo se deteriorando, todos os espaços. Então eu disse “vamos ocupar esse troço”. Ai foi feito a reintegração de posse, depois descobrimos um documento que o Centro Pan-americano não tinha mais gerencia sob a terra desde 2005. Logo, ele não poderia ser o ator da ação para nos tirar de lá, com a reintegração de posse. Quem deveria fazer isso era o INCRA, o INCRA não teve coragem de fazer. Mas o Centro Pan-americano fez, mas a gente sabe que fez através de forças políticas de Caxias que queria aquela terra para fazer o
192 tal do SESC [Serviço Social do Comércio], Centro Esportivo SESC, um tal de polo calçadista e fazer habitações pra moradia, não de 0 a 3 [salários mínimos], de uma outra faixa salarial. Só que a gente apresentou um projeto. (...) Neste momento a gente tinha assessoria pelo IPPUR que de imediato, junto com o PROUR, fez um projeto através de uma menina, que estava em processo de formação da sua graduação em arquitetura, fez o projeto. Então, falou: é esse projeto que a gente vai apresentar. Então a SPU pegou esse projeto debaixo do braço e foi no juiz tal e falou: olha, nós estamos pedindo essa terra; o cara falando com o INCRA. E o Eduardo que era o superintendente estava do nosso lado.
Outro fator enumerado para a consolidação do Movimento foi a realização das conferências pelo MCidades. Como já explicitado, o MNLM, assim como outros movimentos sociais, fortaleceu suas relações com as instituições no contexto dos governos petistas. No entanto, a depender do teor das relações, o Movimento poderia colocar em risco a sua autonomia. Logo, apresentou-se uma série de questões, como estas explicitadas por Noêmia: Vou contar. Assim, quando gente antes de ocupar, a gente planejou...Em janeiro de 2014, nós tivemos um grande planejamento estratégico. A gente já tinha escolhido que seria essa terra aqui, no Centro Pan-americano. E eu fiquei muito feliz porque se a gente perdesse eu ia ficar muito triste. Porque não é possível, a gente com tantas indicações, perder. Embora eu quisesse, o Gelson também quisesse, a gente poderia ter chegado na coordenação estadual e a decisão ter sido outra. Então assim, a gente ficou muito feliz quando calhou de ser a decisão da nossa escolha, do movimento de Duque de Caxias. Então planejamos cada passo do que faríamos pra ocupar essa terra, então nós fizemos uma formação de seis meses com as famílias que vinham ocupar. Tivemos o apoio da estadual em todos os momentos. Planejamos que não iriamos entrar no MCMV-Entidades. Foi uma decisão da Estadual, onde Caxias também teve consenso. Só que na medida que a gente ocupou a terra e a pressão pela terra se tornou muito difícil. Porque como eu falei, o superintendente sinalizou pra gente essa terra e facilitou bastante para que todos os processos burocráticos pra que a gente pudesse ser aceito. Porém, esse governo do Lula e da Dilma, da qual ele era superintendente inclusive. (...) A própria SPU mesmo com toda essa visão né, de reforma urbana tem uma contradição né nessa política de reforma urbana quando se é governo. Quer dizer, todos falam da política de reforma urbana, tanto o governo PT quanto os movimentos populares. Mas na hora de cumprir né, essa liberação da terra ela fica vinculada a política de governo (...) Por isso nós lutamos pra não ficar entrar no MCMV-Entidades. Que a gente não queria ficar sob as rédeas de uma política bancária né, porque mesmo que sejam os recursos públicos, a gente ficava lincado com a Caixa Econômica que é um banco. Mesmo sendo público a lógica é bancária, burocrática. Então, o Programa Minha Casa, Minha Vida é um programa de governo, e não uma política pública permanente. Os nossos movimentos eles são contra programas de governo. Apesar de grande parte dos movimentos populares do Brasil ser petista. Então, a gente acaba entrando numa contradição muito grande. (...). Aí eles começaram a forçar a barra, que toda terra vinculada tinha que estar ao programa de governo. Eles criaram uma portaria, isso depois que a gente ocupou tudo. Chegou a um nível, dessa política de habitação ficar tão acirrada, tão contra os nossos projetos que criaram um PDIPS com a grande justificativa de que seria dada transparência as terras públicas. Ela se torna mais burocrática, e de mais difícil acesso. Por um lado, pra PDISP a justificativa é boa. Nós não somos contra ela não. Mas ela vincula ainda mais o programa do governo.
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O processo de ocupação do Movimento realizou-se com planejamento e articulação com diferentes atores. Para as coordenações estadual e municipal do MLMN ocupar uma terra em Duque de Caxias significava a retomada da luta por moradia e por isso além da terra do Centro Pan-americano, outras terras foram protocoladas. Elas estão também situadas na Av. governador Leonel Brizola e tinham pertencido a Fundação Educacional de Duque de Caxias (FEUDUC). No entanto, uma delas foi destinada para um projeto do Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea) que envolvia o realocamento de famílias afetadas pela construção do Arco Metropolitano e a outra era “descampada”, o que poderia ser um ônus na resistência diante das já esperadas tentativas de reintegração de posse. De acordo com Noêmia:
(...) Aqui foi um vislumbre imenso. A gente teve momentos de tensão se ficava ou na terra da Feuduc. A terra da Feuduc é imensa, linda, tinha um bosquezinho de frente pra [Avenida] Kennedy. Ela muito chamou atenção pra poder fazer um empreendimento de moradia...seria mais fácil para construção, mas ela não era fácil do ponto de vista pra ocupar e resistir porque era muito descampado. Então discutimos isso, que isso também é discutido: qual é a melhor terra para ocupar e resistir? Porque você sabe quando a gente mete o pé, mete o pé na terra, os problemas vêm. Ai começa todas aquelas...porque as terras públicas no Brasil todo, acho que não é só aqui Baixada Fluminense, mas aqui a coisa é bem pior né. A gente sabe que quando a gente bota o pezinho. A gente diz isso na reunião pras pessoas: “a terra é pública, a terra vai ter que cumprir com a função social da propriedade dela, mas na hora que a gente botar o pé vai aparecer um muito de gente dizendo que é dono”. E assim foi aqui, na hora que a gente botou o pezinho aí veio Centro Pan-americano, veio Secretaria de Desenvolvimento Econômico dizendo que a terra seria interessante para fazer o projeto deles porque aqui era terra da prefeitura.
Como dito por Noêmia, “é só colocar o pezinho na terra que os donos aparecem”. Além do processo de reintegração de posse por parte do Centro Pan-americano, surgiram boatos de que a terra poderia estar contaminada, já que a instituição realizava pesquisas veterinárias na terra em questão. De acordo com Gelson, esta foi uma preocupação levantada pelo superintendente do INCRA quando explicitou as dificuldades de se transferir a terra para a SPU e subsequentemente para um projeto de Habitação de Interesse Social. Contudo, tal preocupação não foi adiante. Em Duque de Caxias, muitas terras públicas eram de administração do INCRA, já que a instituição é a gestora todas as terras públicas rurais ociosas. Por ser de uma gestão recente, a SPU, de acordo com os coordenadores, “não sabia nem que terras tinha” e por isso os coordenadores do Movimento “precisaram avisá-los”, uma vez que Movimento realizara o levantamento terras públicas ociosas na Baixada Fluminense.
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Ademais, a terra já tinha sido previamente escolhida pela coordenação estadual do movimento e protocolada junto do INCRA. Assim, para que fosse considerada urbana e oportunizasse um projeto de Habitação de Interesse Social era preciso que a terra passasse do INCRA para a SPU. O que foi “agilizado” por intermédio dos funcionários de ambas as instituições. Agilizado
porque existia uma conjuntura política que possibilitava o
encaminhamento institucional de certas reivindicações sociais. Não que antes dos governos petistas os movimentos sociais não tivessem interlocução com o Estado. Mas é explicitado pelos coordenadores que a criação do Ministério das Cidades e a participação em conselhos e conferências temáticas permitiu-lhes criar uma rede de relações com agentes estatais, principalmente com aqueles que tinham histórico de militância pela Reforma Urbana. Tal relação pode ser observada, quando o Movimento contestado por poderes locais ou pela administração municipal respondem: “já falamos com Brasília” – alçada à instância das decisões finais, válidas e irrevogáveis. Os coordenadores do Movimento fazem questão de assumir que não só conhecem as portarias, protocolos e procedimentos, mas que os conhecem melhor do que secretários, administradores e superintendentes das instituições governamentais.
3.6 ARQUITETURA DA RESISTÊNCIA A Avenida Governador Leonel Brizola, onde se localiza a Ocupação, é uma das principais vias de acesso à Baixada Fluminense e por onde passam diversas linhas de ônibus – cujos trajetos percorrem bairros e outros municípios limítrofes até o Centro de Duque de Caxias ou Centro do Rio de Janeiro. De ônibus, a Ocupação Solano Trindade situa-se a 5 minutos da Estação Gramacho da Supervia (Companhia de Trens Urbanos) e a 10 minutos do Centro de Caxias. Logo na sua entrada é possível observar uma placa na qual se pode ler o nome e o emblema da Ocupação e de instituições como: Governo Federal, Secretária de Patrimônio da União (SPU), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ), Programa de Pós-Graduação em Pós Urbanismo (PROURB-UFRJ), Núcleo Solidariedade Técnica (SOLTEC-UFRJ) e CiHabE (Cidade, Habitação e Educação). E na parte da cima da placa o seguinte título: Terra Destinada a Projeto de Habitação de Interesse Social com Gestão do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM - DC - RJ). Adentrando pelo portão de grades azuis segue-
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se por uma pequena rua de barro com alguns desníveis, cercada por inúmeros coqueiros dos mais variados tamanhos e por um rio margeando à esquerda. No final desta rua, já podemos avistar o prédio da Escola Municipal Alberto Vasconcellos que oferece Educação Infantil e Ensino Fundamental de primeiro segmento (do 1º ao 5 º ano) – e por isso é comum o trânsito de crianças, responsáveis, professoras e funcionários entre às 8h e as 16h, de segundas às sextas-feiras. Da Ocupação, 7 crianças estudam na escola, algo que foi conseguido por intermédio da nova diretora, já que o antigo diretor apoiava a reintegração de posse pelo Centro Pan-americano e, portanto, não demonstrava solidariedade a luta do Movimento. Em 2016, algumas atividades pontuais foram realizadas em conjunto, uma festa junina e outra de dia das crianças com contação de histórias. De modo geral os estudantes não interagem com a Ocupação. Contudo, um episódio fez perceber que a Ocupação interfere em suas vidas. Já no horário da saída algumas crianças que esperavam o transporte escolar começaram uma brincadeira de quem conseguia ler o cartaz da parede da coordenação do Movimento cujo dizeres eram: FORA TEMER GOLPISTA. Decerto, mesmo que não haja um envolvimento efetivo com o Movimento, os estudantes podem porventura aprender as suas palavras de ordem, bem como estarem expostos a dinâmica cotidiana da Ocupação através do gradeado da escola. Figura 22. Entrada da Ocupação Solano Trindade com a placa contendo o emblema das instituições que apoiam e assessoram a Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos, 26/11/2016).
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Próximo à escola, encontra-se o prédio da secretaria da coordenação municipal do Movimento, que contém computador, sofá, cama e banheiro. Além das reuniões e usado para pernoite dos coordenadores que ficam de 2 a 3 dias por semana na Ocupação. Ao lado tem as casas de 4 famílias. Na parte contínua à secretaria moram o casal Alcione e Rafael. Do lado deles moram Namara e Marcos e os filhos Nayana, Natã, Nathan Luiz e Sara. Contiguamente moram Lilian e Emerson com as filhas dela Julia, Clarice e Miley. Saindo do corredor e seguindo a direita encontra-se a lavandeira e a cozinha coletivas. A cozinha é o espaço coletivo mais frequentado, contando com: mesa, sofás, geladeiras, freezer e fogão industrial e dois televisões, um com imagem sem som e outra com som e sem imagem, e que assim complementam-se. Além da carta de princípios e dos horários de escala da brigada e da cozinha, nas paredes encontramse alguns cartazes com os dizeres: “A cidade não é um negócio, a cidade é de todos nós”; “Eles precisam de escola e não de prisão: não a redução da maioridade penal”; “Temos o direito de ser iguais quando nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza” do sociólogo português Boaventura de Souza Santos; e “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, todos se libertam em comunhão” do pedagogo brasileiro Paulo Freire. Figura 23. Cozinha coletiva da Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane 04/01/2017).
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Todos os dias, por voltas das 11:00 hrs da manhã e das 18:00 hrs da noite, a responsável pela cozinha, de acordo com a escala de revezamento, toca o sino para avisar que a refeição será servida. As famílias trazem seus respectivos pratos e talheres e somente a responsável pode servir a comida nos pratos, certificando-se que a comida servirá a todos sem faltas. Não posso deixar de ressaltar a quantidade de arroz e feijão nos pratos, que para eles pode ser proporcional, mas a mim chama atenção porque parece algo em demasia. Devido escolhas pessoais, não como mais arroz branco, o que instiga a curiosidade de todos. Dizem que estou “muito magrinha”, vou “acabar passando mal por aí” por comer menos. Para eles é inconcebível comer sem arroz, feijão ou carne (de frango ou bovina), já que é a combinação nutricional culturalmente estabelecida para a população brasileira viver em condições de saúde satisfatórias. Garantidos a proteína e o carboidrato, a quantidade posta é aquilo que subsequentemente efetivará a alimentação dos moradores. As crianças menores comem porções que dariam para alimentar um adulto. Mas para algumas pessoas, sobretudo as desempregadas, a cozinha coletiva fornece as únicas duas refeições, almoço e jantar, que terão durante o dia. Ou seja, a partir dessa observação concluímos que a comida, para além de engrendar o metabolismo na sustentação do corpo, é algo que precisa ser funcional na medida em que mais tempo fica no estômago e produz uma sensação de saciedade prolongada (BOLTANSKI, p.158, 1979).
5. CARTA DE PRINCÍPIOS Artigo 9º - O Direito Coletivo a convivência e desenvolvimento SAUDÁVEL da nossa comunidade se sobrepõem aos DESVIOS, interesses e caprichos individuais o que significa dizer entre outras a serem definidas nas próximas assembleias: A) COMERCIALIZAÇÃO DE DROGAS ILÍCITAS fica proibida dentro da Ocupação, devendo o transgressor ser retirado do espaço que ocupar pelo comitê com auxílio de tod@s quando necessário, sendo VEDADO O AUXÍLIO POLICIAL nas dependências da Ocupação. Igual tratamento será dispensado ao membro do mesmo núcleo familiar ou de qualquer outro que opuser resistência ou não colabore com a expulsão;
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B) FICA PROIBIDO O USO DE DROGAS no interior da Ocupação, ainda que em espaços individuais, cabendo ao coordenador que flagrar tal ato solicitar medidas do Comitê em um dos dois sentidos: o encaminhamento médico imediato em 48 horas, ou a retirada do espaço; C) Da mesma forma fica proibida a COMERCIALIZAÇÃO DE BEBIDA ALCOÓLICA e a participação de ocupantes visivelmente embriagados nos espaços democráticos de decisão e comando coletivo; D) Fica proibida o uso de qualquer tipo de VIOLÊNCIA FÍSICA em especial contra CRIANÇAS, ADOLESCENTES, JOVENS, MULHERES e IDOSOS e PORTADORES DE DEFICIÊNCIA; E) E vetado ao ocupante em estado de embriaguez habitual exercer função de RESPONSABILIDADE COLETIVA, assim como ser escolhido para funções de COMANDO e COORDENAÇÃO.
Figura 24. Fachada da sala da coordenação do MNLM na Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos, 24/09/2016).
199 Figura 25. Parede da cozinha com cartazes da escala da cozinha, da brigada, lista de cesta básica dos solteiros e lista de telefones emergenciais (Foto: Lidiane Matos, 13/12/2016).
Figura 26. Desenho de uma das crianças em quadro da sala da coordenação (Foto: Lidiane Matos, 13/12/2016).
Ao lado da cozinha ficam os banheiros coletivos e logo em seguida uma sala de reuniões e confraternizações, na qual estão as estantes de livros. Em tal sala foi
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realizada uma oficina sobre racismo83 e ainda hoje se encontra uma série de cartazes em papel A4 colados pelas paredes com os dizeres: “Preto tem cara de ladrão.” “A PM chega na favela atirando.” “Você parece suspeito.” “Auto de resistência”. “A coisa tá preta.” “Ué...E preta e não sabe sambar?” “Cabelo Bombril.” “Amanhã é dia de branco.” “Negão tem que ter pegada.” “É Negão, deve ter pau grande.” “Aquela escurinha ali.” “Tudo é racismo hoje em dia.” “A vaga exige boa aparência.” “Você parece picolé de asfalto”. “Que cabelo diferente, posso tocar?” “Preta de alma branca.” “Funk não é cultura”. “Macaca!” “Macumba não é religião.” “Chuta que é macumba.” “Capoeira é coisa de vagabundo.” “Povo de Santo é coisa do diabo.” “Não sou racista, mas (...).” “Mulata transa quente.” “Mulata tipo exportação.” “Hipersexualização.” “Da cor do pecado.” “Cabelo ruim.” “Seu turbante é exótico.” “Negros são os piores racistas.” “Beleza Exótica.” “Da cor do pecado.” “Denegrir a imagem de alguém.” “Mercado negro.” “Ele não é negro, é moreninho.” “Mas meu tataravô era preto.” “Porque não tem dia da consciência humana?” “Não existe racismo no Brasil, somos todos misturados.” “Quem fala cheio de gírias é marginal.” “Falei morena porque se falasse negra ficaria constrangida.” “Não enxergo cores, enxergo seres humanos.” “Nem todo branco é racista.” “#somostodosiguais.” “Negro é sujo.” “Favelado não tem educação.” “Você usa pó compacto ou carvão?”.
Tais enunciados assemelham-se aos citados por Paulo Freire em A Pedagogia da Autonomia (1997), entre os quais estão:
“O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso o que a ciência nos diz." “Em defesa de sua honra, o marido matou a mulher.” “Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros, invasores de terra?” “Essa gente é sempre assim: damos-lhe os pés e logo quer as mãos. “Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa. Perguntar-lhe seria uma perda de tempo.” “O saber erudito a ser entregue às massas incultas é a sua salvação.” “Maria é negra, mas é bondosa e competente.” “Esse sujeito é um bom cara. E nordestino, mas e sério e prestimoso.” “Você sabe com quem está falando?” “Que vergonha, homem se casar com homem, mulher se casar com mulher. “É isso, você vai se meter com gentinha, e o que dá. “Quando negro não suja na entrada, suja na saída.” “O governo tem que investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto.” “Você não precisa pensar. Vote em fulano, que pensa por você.” “Você, desempregado, seja grato. Vote em quem ajudou você. Vote em fulano de tal.” “Está se vendo, pela cara, que se trata de gente fina, de trato, que tomou chá em pequeno e não de um pé rapado qualquer.” (pp.49-50).
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Já em outra oficina, no dia 26 de novembro de 2016, o PROFEC (Programa de Formação e Educação Comunitária) realizou na Ocupação um encontro de sensibilização para apresentar o projeto “Percepção e naturalização da Violência: extermínio de jovens negros na Baixada Fluminense cujo objetivo é “ estabelecer um conjunto de ações articuladas com instituições parceiras locais, afinadas com os Direitos Humanos, para a formação de um grupo de discussão numa perspectiva democrática e estudos que permitam intervenção técnica e política para o enfrentamento ao extermínio de jovens negros na Baixada Fluminense”. O projeto conta o apoio da Missionzentrale der Franziskaner e Heinrich Böll Stiftung e tem como parceiros as seguintes organizações: Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), Rede Ecumênica de Juventude (REJU), Conselho Ecumênico de Serviço (CESE), Conselho de Estudos Bíblicos (CEBI), Conselho Latinoamericano de Igreja (CLAI) e Koinonia.
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Segundo Freire (1997), o papel dos educadores humanistas, democráticos e progressistas (dirigentes e coordenadores) é na relação dialógica com seus educandos (base de militantes), desenvolver uma reação crítica ao ouvir esses enunciados. Isso porque a educação, que lida fundamentalmente como a inclusão e inacabamento dos seres humanos, tem um aspecto político na medida que deve encarar o processo histórico como condicionamento e não como determinismo no que tange a mudança de percepções e superação de preconceitos. Papel este que deve ser exercido com respeito, amorosidade e solidariedade sem abrir mão da eticidade e da rigorosidade científica, e entendendo os limites da autoridade e liberdade para que elas não se desvirtuem em autoritarismo e licenciosidade. Desta feita, possibilitando que a curiosidade ingênua transforme-se em uma curiosidade epistemológica e a educação não seja anestesia, adaptação, ajustamento e preenchimento, mas sim desnudamento e transformação do mundo (IDEM, 1968, p.34). Ademais, os enunciados nas paredes da Ocupação são aqueles ouvidos cotidianamente por pessoas negras. Que não envolvem somente a cor da pele, mas dimensões culturais, religiosas e socioeconômicas. Relevam, portanto, não somente o racismo, mas uma série de outros preconceitos que o subjazem. A maioria dos moradores da Ocupação são negros e por isso um dos compromissos pedagógicos do Movimento é incutir a compreensão da desigualdade socioeconômica interseccionalmente pelas questões étnico-raciais. Trazendo assim a identidade e representatividade negras e afrobrasileiras como elementos cruciais para o aprofundamento da consciência política na luta pela moradia digna.
202 Figura 27. Biblioteca e sala de estudos da Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos, 18/11/2016).
Ao lado da sala de reuniões moram Isabel, Fred e os filhos dela Ryan, Ramsés e Rareus. Isabel é diarista e cuidadora e Fred está desempregado. Os meninos, já adolescentes, costumam acompanhar-me nas brigadas. Vemos televisão ou jogamos dominó enquanto conversamos sobre a vida e nos quais eles narram suas vivências no Cangulo, comunidade onde moravam no bairro de Saracuruna. A pouco metros situa-se o auditório, espaço com mesa, banco e cadeiras onde se realizam as assembleias e os cursos de formação da Universidade. Do auditório já podemos ver a horta, cuidada por Alice e Dona Enésia. Com cerca 70 metros quadrados têm pés e mudas de: pimenta, batata, banana, abacaxi, cacau, acerola e coentro. Em frente a horta moramos eu, Alice e Dona Enésia, cada qual no seu espaço e Juliana e Edivaldo, o único coordenador que mora na Ocupação e as filhas Julia e Maria Clara. Paralelamente, há um espaço com brinquedos que é destinada ao Criarte, um coletivo dentro do MNLM que cuida da formação político-pedagógica das crianças.
203 Figura 28. Horta da Ocupação Solano Trindade (Foto: Lidiane Matos, 04/01/2017)
3.7 OS CAMINHOS ATÉ SOLANO TRINDADE
Alguém que conheça bem é capaz de contar. Pode contar, não só no sentido de ser capaz de recontar as histórias do mundo, mas também no sentido de ter uma consciência perceptual afinada de seus arredores. Portanto, conhecer é relacionar o mundo ao seu redor, e quanto melhor o conhece, maior é a clareza e a profundidade da sua percepção. Contar, em suma, não é representar o mundo, mas traçar um caminho através dele que os outros possam seguir. Obviamente os antropólogos tem reconhecido, há tempo, as funções educativas de se contar histórias entre as pessoas em todo mundo. Mas eles têm se equivocado em tratar histórias como veículos para a transmissão intergeracional de mensagens codificadas que, uma vez decifradas, revelariam um sistema totalizante de categorias conceituais. Pois, como regra, histórias não vem com seus significados já anexados, tampouco significam a mesma coisa para pessoas diferentes. O que elas querem dizer é, antes, algo que os ouvintes têm que descobrir por si mesmos, colocando-se no contexto de suas próprias histórias de vida. Na verdade, pode ser que, apenas muito tempo depois de uma história ter sido contada, o seu significado seja revelado, quando alguém se encontra percorrendo exatamente o mesmo caminho que a história refere. Então, e somente então, é que história oferece orientação sobre como proceder. Evidentemente, como Volosinov disse da linguagem, as pessoas não adquirem seu conhecimento pronto, mas sim crescem nele, através de um processo do que poderia ser melhor chamado de “redescoberta guiada”. O processo é, antes, como o de seguir trilhas através de uma paisagem: cada história o levará a um ponto, até que você se depare com outra que o conduzirá mais adiante. Este trilhar é o que chamo de peregrinar (cf. Capítulo 12, p.219). E a minha tese, em poucas palavras, defende que seja através do peregrinar, e não de transmissão, que o conhecimento é realizado (INGOLD, 2015, p.238).
Como já explicitado, há uma rotatividade entre os moradores da Ocupação, que em média permanecem de 6 meses a 1 ano; de modo que não podemos afirmar padrões de percepções desconsiderando o tempo de permanência e o grupo de
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famílias em questão. No contexto de realização das entrevistas haviam 8 núcleos familiares dentre os quais: 3 mulheres, 1 mulher com 3 filhos, 1 homem, 1 casal e 3 casais com filhos – 2, 3 e 4 filhos. No quesito etário dividia-se em 11 adultos, 3 adolescentes e 8 crianças. As entrevistas foram realizadas somente entre os adultos dos quais somente 7 ocupantes dispuseram-se a relatar suas vidas. Ademais, as entrevistas versaram sobre aspectos socioeconômicos e a relação das entrevistadas com o MNLM e a Assessoria Técnica. Todas foram realizadas na Ocupação em janeiro de 2017 e possuem em torno de 50 a 55 minutos. As questões foram pensadas de modo que as entrevistas pudessem seguir de modo tranquilo e amigável. Compondo um roteiro semiestruturado, fiz entre 10 e 15 perguntas (cf. Anexo), desde as já programadas até aquelas que surgiram nas circunstâncias da própria entrevista. As pessoas entrevistadas foram receptivas e não demonstram qualquer constrangimento em responder as perguntas. No mais, certo acanhamento por acreditarem que “não tinham coisas importantes para dizer” e que se eu porventura desejasse obter informações e esclarecimentos mais acertados deveria conversar com os coordenadores do Movimento. Expliquei que o intuito de entrevistá-las era a fim de saber um pouco mais sobre suas respectivas vidas e como conheceram a Ocupação e o MNLM. Obviamente, para essas 5 ocupantes, assim como para o senso comum, uma entrevista é revestida de formalidade, para o qual é preciso estar preparada e apresentar detalhadamente conhecimentos específicos sobre o assunto em questão. Devido a intimidade que já tínhamos, não foi difícil convencê-las de que seria uma conversa e que não precisariam se preocupar com o gravador ou com as perguntas; do contrário poderíamos interromper ou mudar o curso da conversa. A solicitação de entrevista estendeu-se a todos os moradores da Ocupação. Alguns negaram e outros, mesmo prestimosos, requeriam a realização de mais uma entrevista para que eu pudesse ter um material substancialmente válido. Entretanto, a falta de disponibilidade de ambas as partes, minha e dos entrevistados, impossibilitou tal empresa. Além das circunstâncias das entrevistas, surgiram alguns questionamentos acerca de como procederia com as transcrições. Em um primeiro momento, segui o entendimento de que uma transcrição confiável é aquela na qual não se corrigi erros gramaticais. Então se a pessoa falasse “cralo”, “probrema” e “indiota”, por mais que eu soubesse que correspondessem as palavras “claro”, “problema”, “idiota”, eu
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transcreveria exatamente como foi falado. O que eu queria era de alguma forma transpor os limites entre língua fala e língua escrita, como se fosse possível escrever exatamente como se fala, suprimindo o “s” dos plurais e “r” dos verbos no infinitivo – como se o texto fosse a fala e vice-versa. Com o tempo, entretanto, vieram outras indagações. Uma delas é que nessa pretensão de ser fiel a realidade poderia incorrer em preconceitos linguísticos – e que os subjazem, como os de raça, classe e ou gênero. Isso porque, se fosse a transcrição de entrevista de um professor, secretário ou administrador dificilmente eu iria demarcar os erros gramaticais enquanto variações linguísticas culturais e socioeconômicas. E por que então fazê-lo somente com as pessoas das camadas populares com baixo nível de escolaridade, quando não analfabetas ou semianalfabetas? Como salienta o linguista Marcos Bagno (2012):
A conclusão é que, quando o “erro” já se tornou uma regra na língua falada pelos cidadãos brasileiros, ele passa despercebido e já não provoca arrepios e dores de ouvido – muito embora contrarie as regras da gramática normativa, aquelas que, teoricamente, deveriam ser seguidas pelas pessoas “cultas”, sobretudo quando se acham em situação de monitoramento estilístico (...). Existe uma escala de “monstruosidade” nos erros, sob a ótica dos falantes que ocupam o topo da pirâmide sociocultural e socioeconômica. Quanto maior o prestígio do falante, menor é o erro; quanto maior o prestígio social do falante, mais erros, e erros mais monstruosos, os cidadãos mais letrados percebem na fala dele.
+ PRESTÍGIO - ERRO
- PRESTÍGIO + ERRO (BAGNO, 2012, p.953)
A fala não é neutra. Ela é denota relações grupais (identitárias e de pertencimento), diferenças culturais e desigualdades socioeconômicas. Sendo usada em prol de distinções e hierarquização social – ricos/pobres, opressores/oprimidos e
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dominantes/dominados, privilegiados/desprivilegiados. Como ilustra o diálogo84 entre as personagens centrais de Pigmaleão, de George Bernard Shaw: Florista (Liza): Tardinha de mim! Cumo si a minha já sesse miséria qui anda pircisasse da humilhação e xingamento. Cavalheiro (Pickering): Como é que o senhor faz isso, se não sou inoportuno? Qual é o seu método? Tomador de Notas (Higgins): Simplesmente fonética. A ciência da fala. É minha profissão; e minha diversão também. Feliz do homem que pode ganhar a vida se divertindo. Eu posso distinguir um irlandês de outro irlandês pelo jeito da fala. Posso distinguir uma pronúncia de outra distante apenas dez quilômetros. Aqui em Londres identifico pronúncias num espaço de dois quilômetros. Às vezes há maneira de falar diferentes de uma rua pra outra. Florista: Divia di te vergonha, um homi grandi ansim, i contra uma cumo eu, sim nada. Cavalheiro: Mas isso dá pra ganhar a vida? Tomador de Notas: Dá, como não! E muito bem! Vivemos num tempo de novosricos, gente que dá tudo pra subir na vida. Pessoas que começam num subúrbio miserável, ganhando oitenta libras por ano, e acabam em Park Lane, com cem mil por mês. E aí, não querem que ninguém lembre que vieram de baixo. Mas falam. E cada vez que abrem a boca se denunciam. Minha missão é ensinar a... Florista: Pruque qui eli num oia o seu próprio rábu e...? Tomador de Notas: Ô mulher, para com essa choradeira estúpida, pelo amor de Deus! Ou então vai chorar num outro abrigo, noutro altar, noutro diabo que te carregue. Florista: To aqui cum u mesmo dereito qui u sinhô tem di tár. Tomador de Notas: Uma pessoa que emite sons tão desagradáveis e deprimentes não tem direito de estar aqui nem em lugar nenhum – não tem direito de viver. Lembre-se de que você é um ser humano que possui uma alma e a dádiva divina da fala articulada: que a sua língua nativa é a língua de Shakespeare, de Milton e da Bíblia – e não fica grunhindo como um porco que acabaram de castrar. Florista: Ah-ah-ow-ou-ohhhhhhhhhhh! Tomador de Notas: Céus! Que som! Florista: Disgranido! Tomador de Notas: Vê, por exemplo, está criatura com esse inglês de sarjeta. Esse modo de falar vai conservá-la na sarjeta até o fim de seus dias. Pois olha, cavalheiro, em três meses eu podia fazer essa garota passar por duquesa numa recepção de qualquer grande embaixada. Podia até arranjar pra ela um lugar de governanta ou gerente de loja, atividades que exigem um inglês melhor Florista: Qui é que se tá dizeno? Tomador de Notas: Estou dizendo, ô repolho da humanidade, ô desgraça da nobre arquitetura destas colunas, que você é a encarnação do mais espantoso insulto à língua inglesa. E que, apesar disso, eu poderia fazer você passar por rainha de Sabá. Acredita? (SHAW [1913] 2011, pp. 26-28).
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No original a distinção dá-se entre o cockney, considerada a língua dos pobres e marginalizados, e o inglês formal falado pelas classes média, alta e aristocráticas.
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Além do mais, a fala e a escrita, sobretudo no português brasileiro, são duas realidades complementares, e não um espelhamento perfeito. Em uma transcrição é preciso considerar as especificidades da cada uma de tais dimensões e revelar que o seu valor científico está em também dignificar as entrevistadas e evitar possíveis situações vergonhosas e humilhantes. Configurando-se, desta maneira, como um processo humanização. Assim, optei por seguir a norma gramatical quando necessário para evitar tais situações, bem como deixar aquilo que, salvo de apreensões negativas, são marcas características das suas falas e expressões. Que fazem delas seres de personalidade, temperamento, capacidades intelectuais e de opinião; de mulheres que devem ser compreendidas em suas vicissitudes e idiossincrasias. 3.7.1 Dona Enésia Dona Enésia tem 64 anos, é viúva e aposentada. Os seus 4 filhos não moram com ela, mas vivem também em Duque de Caxias. Dona Enésia tomou conhecimento do MLMN e da Ocupação por intermédio de um de seus filhos, que é casado com a irmã do Gelson. Em idos de 2015 mudou-se para a Ocupação após morar de favor na casa de um dos netos. Afirma que o neto e esposa precisavam de privacidade e que não se sentiria confortável em presenciar brigas, discussões ou mesmo outras intimidades do casal. Na Ocupação, mora em um cômodo de 15 metros quadrados no qual encontra-se cama, guarda-roupas, estante, televisão, geladeira e armário de cozinha. Além da cozinha coletiva e cuida de uma horta que criou ao lado de sua casa. Costumeiramente, com ajuda de Alice, replanta mudas, arranca ervas-daninhas e rega os cultivos, dos quais se encontram pés de pimenta, mandioca, abacate e cacau. Dona Enésia é a ocupante mais idosa e presença constante no curso da Assessoria Técnica, manifestações, mutirões e vivências agroecológicas. Nestas últimas auxilia tanto na cozinha como no plantio demonstrando ter experiência prática. Isso porque, antes de vir para o Rio de Janeiro, passou a infância e adolescência trabalhando em uma fazenda. Segundo seu relato, toda família trabalhou durante anos nesta mesma fazenda em Minas Gerais, na cidade de Palma. A família decidiu sair de Minas Gerais depois do dono da fazenda ter trocado o plantio de arroz e feijão por pasto, sob a justificativa de que teria mais lucro. Assim, diante do encarecimento dos gêneros alimentícios, como leite e carne, e do salário que continuava o mesmo, que
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hoje equivaleria a R$ 5,00 por dia (em média R$ 120,00), a família decidiu tentar vida nova no Rio de Janeiro, já que vislumbram aqui encontrar oportunidades de trabalho cujas remunerações pudessem bastar minimamente para as despesas da casa. Contudo, não vieram todos de uma vez. Os homens vieram primeiro porque possuíam “mais estudo” e as mulheres depois, para realizar trabalhos domésticos. Algo que foi determinado pelo pai de Dona Enésia. Como afirma: Aí meu pai falou: agora vamos pro Rio, chegou a hora. Eram 12 filhos, 8 mulheres e 4 homens. Os homens vieram antes. Eles tinham mais estudos. Meu pai tinha mania de dizer que mulher não precisava de muito estudo (...) porque mulher pra ser dona de casa não precisa de estudo. Mas eu vou estudar, mesmo o primário eu quero saber. Mas a mãe colocou todos os filhos na escola para aprender a ler.
Dona Enésia chegou ao Rio de Janeiro com 19 anos. Assim que chegou foi morar em um condomínio da Companhia Estadual de Habitação (CEHAB-RJ), na Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro. O apartamento era de um de seus irmãos, Sebastião, e foi adquirido como fruto de uma indenização por desapropriação no Morro da Catacumba, no bairro da Lagoa, Zona Sul da cidade – favela removida no ano de 1970 pelo governo de Negrão de Lima (1965-1971) e quando o município do Rio de Janeiro correspondia ao estado da Guanabara. Ficou inicialmente na casa do irmão ajudando na criação das sobrinhas pequenas, uma delas paralítica e que demandava cuidados específicos. Em seguida, ela e uma de suas irmãs começaram trabalhar em casa de família como empregadas domésticas. O pai veio depois, já que o acordo era somente vir depois que os filhos estivessem devidamente empregados. Por alguns meses toda família morou nesse apartamento na Penha até o pai comprar um terreno em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Anos depois, o irmão desistiu de morar no apartamento porque “só chegava conta por debaixo da porta para pagar”. O que denota que as tarifas de água, luz e a taxa condominial encareciam o custo da moradia. Sebastião, era porteiro e faxineiro, não demorou muito para juntar dinheiro e comprar um “barraco no morro”. Outros irmãos trabalharam de pedreiro e porteiro. Dona Enésia enfatiza que dois deles “tinham problema com bebida”; em decorrência um deles morreu e outro está internado em uma instituição cristã e filantrópica no bairro de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
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Dona Enésia afirma que o trabalho como empregada doméstica era muito cansativo, mas que se acostumou com a rotina com o passar dos anos. Em uma das casas que trabalhou ganhava somente um salário mínimo e só podia voltar para a sua casa a cada quinze dias. Tinha que fazer de tudo: almoço, jantar, lavar roupa, cuidar das crianças e limpar a casa “por dentro e por fora”. Também trabalhou em bairros como Leblon, Laranjeiras, ambos na Zona Sul, Tijuca, na Zona Norte e Duque de Caxias. Somando-se o período de solteira e quando o marido ficou desempregado – por causa de “problema de bebida”, antes trabalhava como motorista em uma loja de material de construção – Dona Enésia trabalhou um total de 20 anos como empregada doméstica. Além de trabalhar em casa de família fazia “uns biscates” lavando e passando roupa. Os filhos começaram a trabalhar com 13 ou 14 anos para ajudar na renda da família. Atualmente, aposentada, ficou encostada durante 5 anos devido problemas de saúde e ganha o equivalente a um salário mínimo, garantido apenas porque uma das famílias para qual trabalhou por 15 anos assinou a sua carteira de trabalho e pagou as contribuições previdenciárias. Quando do início da mudança, Dona Enésia diz ter sentido que as diferenças entre Minas Gerais e Rio de Janeiro eram significativas. No Rio, não conhecia nada e só o conheceu melhor, o centro e a Baixada Fluminense quando foi estudar em um colégio na Gávea; “um colégio grandão que tem lá na Marques de São Vicente”. Em um primeiro momento sentiu dificuldade de andar no Rio de Janeiro e espantou-se com a quantidade de carros que tinha na cidade. Mas depois aprendeu andar, já que precisava procurar emprego. Sempre saia com número de ônibus e o endereço completo afirmando que no Rio sempre foi ruim de pedir informação aos transeuntes. Quando casou, saiu da casa dos pais em Nova Iguaçu e foi morar em Duque de Caxias. Morou em vários bairros da cidade, em um deles chegou ter casa de posse. Contudo, em idos de 2008, a família foi desapropriada pelo Inea. A justificativa do Instituto para a desapropriação se deu em vistas da realização de uma obra de saneamento básico no entorno. Depois de alguns meses, a família aceitou a indenização, apesar de não ser o suficiente para o compra de outro terreno. A solução foi morar de aluguel, mesma situação na qual se encontra os seus filhos e netos atualmente. Como atesta Dona Enésia: Eles disseram: vocês vão ter que sair, vão ter que sair. A gente também, se vocês não aceitarem a terceira proposta não vamos dar nada. Vocês vão ter que sair de qualquer maneira. E acabou que está lá o matagal. Só que lá também não dá pra
210 morar mais porque além de encher, é beira do Rio Sarapuí. É dá muito bicho, muita cobra”. Aqui dá cobra, mas lá dava muito mais. E quando enche a água não tem meta, vem até aqui [o equivalente a 1.50 m de altura]. Quando tava chovendo assim, a gente não dormia. Eu já não dormia.
Em relação aos estudos, Dona Enésia revela que gostaria de ter continuado os estudos, mas afirma também que não teria mais “cabeça pra isso” por acreditar que não é jovem o bastante. Quando perguntada sobre a profissão dos filhos e netos, Dona Enésia fala com orgulho da filha que trabalha há 10 anos na Souza Cruz e na qual atualmente é encarregada de serviços gerais. A outra filha também trabalha em uma firma de limpeza e o filho como balconista em uma loja de material de construção e de frentista nos finais de semana. Dona Enésia diz que ele “não fuma, não bebe e não dá trabalho nenhum”, algo enfatizado em sua fala tenho em vista o histórico da dependência alcoólica entre os homens de sua família e as suas consequências na desintegração ou enfraquecimento dos laços afetivos e familiares. A mudança para a Ocupação não lhe causou maiores surpresas. No entanto, o fato dos moradores não poderem trancar suas casas por fora ou de terem uma única cópia da chave do portão para todos os moradores chamou-lhe a atenção. Essa questão da chave chegou a incomodá-la inicialmente, já que, segundo ela, muitos moradores escutam a campanha e mesmo assim, por qualquer motivo, não atendem prontamente a pessoa que deseja entrar. Por causa disso, evita sair de casa em alguns momentos. Em relação a ausência de cadeados, não teve maiores problemas. Nunca sumiram coisas de sua casa, o que é motivo fundamental para não criticar a regra estabelecida pelo Movimento. De acordo com Dona Enésia, essa regra é até mesmo importante para que os coordenadores saibam “quem é quem” e assim permitirem somente pessoas honestas e de confiança na Ocupação.
Primeiro as pessoas tem que conhecer as pessoas, saber com quem está lidando, saber como como vão fazer, pra poder se manter e ver se eles vão seguir o ritmo deles. Porque se eles estiverem morando aqui, quiser ficar à vontade, beber, fazer farra a vontade, a pessoa não vai fazer (...) Briga aqui, jamais. A carta de princípios diz: discussão, nem pensar. Então quer dizer, agressão, nem pensar.
Morar na Ocupação é avaliado positivamente por Dona Enésia. Apesar de boatos, fofocas ou desentendimentos ou dos problemas com goteira na sua casa, a vida na Ocupação é mais tranquila do que nos outros lugares em que já morou. Para
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Dona Enésia isso é possível porque o código de conduta do Movimento quando limita visitas, festas e consumo de bebidas alcoólicas cria um ambiente mais tranquilo e respeitoso entre os ocupantes. Através das falas de Dona Enésia percebemos o quanto abuso de bebida alcoólica foi algo que afetou a convivência com os irmãos e o marido, qual se transformou em gatilho para desvios de conduta, brigas e desordem generalizada. Por isso é bom que o Movimento além de proibir o consumo, estabeleça limites de horários para as confraternizações que realiza. Morar dignamente para Dona Enésia, além da infraestrutura básica, tem a ver com paz, segurança e recolhimento; de ter um seu espaço sem ser importunada pelo barulho dos vizinhos. Como reafirma: [E o que a senhora tem achado de morar aqui?]: É bom. De vez enquanto tem um nhenhenhém aí, mas a gente deixa pra lá, vai passando. [O qual é a coisa boa de morar aqui na Ocupaçao]: “Não tem bebida, não tem farra, não tem nada. É do jeito que idoso gosta porque eu não to pra isso mesmo. Aí então não tem essa bagunça. Igual essa festinha que teve ai domingo. Acabou, acabou, não tem bêbado pra ficar tolerando. Não tem nada de bebida, não tem álcool, não tem nada.
Esse mesmo raciocínio segue quando nos aprofundamentos nas questões sobre a relação do Movimento e da Assessoria Técnica. Os cursos de formação da assessoria são vistos como positivos porque ocupam a mente das pessoas e os distanciam de vícios. Ou seja, a presença da Universidade e do seu projeto pedagógico já cumpre em si o papel de reorientar a conduta dos participantes do projeto. De acordo com Dona Enésia:
“[A senhora está aprendendo coisas?]: Acho que muitas das conversas deles foram legais. As pessoas que fumam e bebem. Gastam um dinheiro tranquilo com isso. Então se eles tivessem guardando esse dinheiro, se tivesse alguém tão pobre nesse Rio de Janeiro... Às vezes as pessoas não têm dinheiro pra nada, mas dinheiro pro vício tem que ter. Então eu acho que vale a pena a pessoa escutar isso.” [Então, o que a senhora acha dessa palavra da Universidade]: Eu acho bom, a palavra deles eu acho também boa. Uma palavra de confronto, uma palavra de que tem que ter paciência... As coisas vão ser conseguidas. Tudo tem que ser com luta.
Enquanto uma das responsáveis pela cozinha coletiva, Dona Enésia afirma que ela é a fundamental para que os ocupantes mantenham contato uns com os outros. O reitera quando perguntada sobre o significado de luta em sua vida:
212 [O que significa a luta pra senhora?]: A luta significa isso que estamos vivendo aqui a cada dia. Um prestando ao outro. Prestando a aquilo que estamos fazendo. Aqui as pessoas têm uma implicância com a cozinha coletiva, mas a cozinha coletiva é o meio deles conhecer a pessoa melhor. Porque se você vive entocado na casa, não tem contado com ninguém. Passa o dia toda, uma hora o vizinho tá lá. Lá em Minas é a assim, a pessoa tá lá, mas a pessoa tem contato. Aqui as pessoas se enfiam dentro das suas casas. O outro morre lá é ninguém sabe. Vai saber dois meses depois. Então, eu acho isso ruim, eu acho que vizinho que mora por redor tem que ter contato um com o outro.
Em relação ao projeto, Dona Enésia enfatiza que é preciso ter paciência, uma vez que já sabe que ele não se realizará em curto prazo ou a contendo dos anseios das famílias inscritas. Assim, Dona Enésia segue confiante na realização do projeto e em finalmente ter sua casa. 3.7.2 Lilian Lilian tem 33 anos, casada com Emerson, que conheceu na Ocupação, e mãe de 5 filhos; um deles faleceu há três anos em decorrência de um acidente de carro. O mais velho tem 16 e as mais novas com 9, 4 e 2 anos; as três meninas moram com ela na Ocupação. Antes de se mudarem, Lilian e suas filhas moravam em uma quitinete em Anchieta, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Bairro onde nasceu e viveu até se casar pela primeira vez. Sobre Anchieta afirma que o bairro “não tem nada” e que “não tem muita opção” em termos de serviços, infraestrutura e oportunidades, e “em busca de algo” tinha que deslocar-se até Nova Iguaçu e Madureira. A mudança para a casa da mãe e retorno à Anchieta eram também recentes, já que tinha acabado de ser separar do então marido, com quem morou na cidade de Campos, no Região Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro. Lilian conheceu o MNLM e a Ocupação por intermédio de uma vizinha quando foi pedir um utensílio de cozinha emprestado. A vizinha era Dona Francisca, que também morou durante alguns meses na Ocupação. Algumas semanas depois, Lilian foi até a Ocupação participar de uma assembleia e decidiu que também compareceria em outras reuniões e nos mutirões. Contudo, em um momento de impasse entre voltar para a casa da mãe, porque já não conseguiam mais para o aluguel – seu salário era de R$ 740,00 e o aluguel de 450,00 – Lilian solicitou a coordenação do Movimento um espaço para morar na Ocupação. Passados alguns meses, uma família decidiu sair da Ocupação e Lilian mudou-se com a família em 16 de novembro de 2015. Em sua opinião morar na Ocupação tem sido a “realização de um sonho”, afirmando:
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[O que tem achado de morar aqui na Ocupação?]: “Muito bom. Assim, porque não só pelo Movimento, mas a realização de um sonho. Assim, não só pra mim, porque eu acho que... O Movimento tem muito disso. Você não sonha só pra você, você sonha pra todo mundo. E eu gosto muito de ajudar as pessoas. Então eu acho que isso me ajuda muito, particularmente. Eu vim morar aqui por uma necessidade, que era ter um canto pra ficar com os meus filhos. Mas idealizando que daqui eu teria minha casa. Um acaso levou a realização de um sonho. Eu gosto muito porque o Movimento fala abertamente do que acontece. O que é uma coisa que não encobre as coisas. Não é um Movimento que vai te mostrar só aquilo que te convém: Oh, é bom isso, mas é ruim aquilo. E a gente vai balanceando e a gente vai chegar lá. Tá difícil mas a gente vai arrumar outra estratégia para gente conseguir. Acho isso muito interessante no Movimento. Gosto muito de fazer parte desse lugar. Eu não conhecia Caxias, vim conhecer no Movimento. (...) Então é como se a minha vida tivesse começando de novo aqui. Aqui tudo é muito novo, porém de muita esperança. Lá na frente vai ter algo.
Antes de morar na Ocupação, o único movimento social que conhecia era o MST. Observava, através de reportagens na televisão, as pessoas “invadindo” fazendas. Contudo só depois, quando conheceu o MNLM, que Lilian compreendeu que aquelas pessoas estavam lutando pelos seus direitos. Além disso, conhecer o MNLM reforçou os valores de coletividade que aprendera na Igreja e hoje defende que o sentido da luta dá-se somente pela reunião de pessoas com interesses em comum. De acordo com Lilian:
(...) Eu não tinha essa noção que “uma andorinha só não faz verão, mas várias fazem”. Eu não tinha essa noção de Movimento. Hoje eu tenho que oh, a luta é pro todo mundo. A pessoa tem que querer também lutar por isso. Estou aprendendo essa parte da trajetória da luta que eu não conhecia, que eu acho muito interessante. Se eu pudesse eu estaria em todas as marchas. Eu gostei muito de participar. Mas foi uma coisa que aprendi quando vim pra cá. Porque até então eu não sabia que tinha nada disso, de terras públicas que as pessoas têm direito de conquistar. Eu não sabia dessa parte, né, da história. Porque a história só conta que o governo tem lá as casas, alguns projetos, mas não fala nada disso. Então eu participei assim, comecei a ver e isso me surpreendeu para caramba, a gente tem direito a tanta coisa. E eu não sabia. Foi o que mais me chamou atenção.
Lilian é considera “maluca” pela família por morar em uma ocupação. Seus familiares a alertam sobre as muitas enchentes que ocorrem em Duque de Caxias, e o risco que ela ocorre com repreensões por parte da polícia em casos de tentativas de reintegração de posse. Até a momento ninguém de sua família foi visitá-la, somente o filho mais velho. Em sua opinião, seus parentes se incluem entre aqueles que não possuem interesses em conhecer e entender o funcionamento de uma ocupação urbana ou de um movimento social. Lilian acrescenta:
214 Todos podem conhecer, mas a luta não é pra todos. Todos podem ter conhecimento, mas a luta não é pra todos. A gente fica louco para os que não conhecem e fica como militante pros que conhecem.
Em relação aos cursos de formação da Assessoria Técnica, Lilian os considera fundamentais por vários motivos. Um deles por ter agora a oportunidade de adquirir conhecimentos, haja vista sua família não ter tido recursos para incentivá-la a continuar os estudos. Assim, é importante morar em uma ocupação na qual a Universidade esteja presente e por isso Lilian percebe que “o sonho está mais próximo”. Lilian estudou até o 2º grau e tinha o sonho de fazer faculdade de engenharia. Em sua fala, a relação da Movimento com a Universidade revela-se com algo positivo, no qual a construção da moradia não será somente sobre paredes e instalações, mas também relaciona-se à produção de conhecimento e à compreensão do “outro”. Para Lilian, o Movimento ao estabelecer essa parceria com a Universidade demostra preocupação e responsabilidade para as famílias envolvidas no projeto. O que, em suma, denota que o projeto é sério e envolve atores comprometidos na sua realização. Como forma de gerar renda, Lilian criou um kit festas com bolo, docinhos e decoração. Ela afirma que já “fez de tudo” na vida: babá, faxineira, copeira, passadeira,
empregada
doméstica,
copista,
manicure/pedicure,
cabelereira,
revendedora de cosméticos, vendedora de cachorro quente, além de ter feito artesanato com fuxico e cesta de café da manhã temáticas. Seu último trabalho foi como bilheteria da Supervia; trabalho da qual foi demitida. Após a denúncia do exmarido no Conselho Tutelar, sob alegação de que as meninas não estariam sendo devidamente cuidadas, Lilian não conseguiu mais se concentrar no trabalho. Além disso, uma das filhas que estava a ponto de reprovar no ano letivo – porque ainda sentia a morte do irmão – exigiu mais de sua atenção e Lilian não voltou a procurar trabalho porque percebeu a melhora da filha quando pôde ser dedicar integralmente aos seus cuidados. Lilian não demonstra nenhuma contrariedade em relação aos códigos de conduta do movimento. Reitera que o comprimento das regras é essencial para o bomconvívio entre os moradores e a construção devidamente coletiva do projeto. Contudo, não nega que surjam desentendimentos entre os moradores. Em alguns momentos afirma que se evidencia uma distinção entre “os da frente” e “os de trás”; ou seja entre
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os que moram mais próximos a entrada e os que moram mais afastados. O que aparece no momento das brigadas, quando “os de trás” reclamam de não terem sido convidados para assistir um filme ou ficarem em volta de fogueira. Os problemas de convívio são considerados normais e aceitáveis desde que não prejudiquem suas filhas. Seu intuito é sempre buscar o diálogo e a resolução dos problemas, posto que a Ocupação representa seu “sonho”, a sua “história” e não desistirá do projeto tão facilmente. Ademais, reitera que a relação com as famílias tem variado com o tempo. Segundo seu relato: Porque quando eu cheguei era todo mundo muito unido. Eu não conhecia ninguém. Eu conheci Dona Francisca quando ela falou pra mim do Movimento. Eu conversando com ela por causa de um facão que eu peguei emprestado. E ela me falou do movimento. Foi aí que eu conheci ela. Eu não tinha amizade com ela. Então o que eu fazia, a gente se reunia na brigada ou pra lavar roupa de madrugada (...). Se reunia pra conversar e ficava todo mundo ali. Assim de vez em enquanto rolava um churrasco. Carnaval, Ano-Novo a gente fez. Juntei todo mundo e fomos pra cachoeira (...) Mas foi muito bom. E hoje você fala assim “vamos marcar de fazer uma confraternização”, então a pessoa olha para você é ah, palhaçada, quer puxar o saco dos outros. Assim que uma coisa que eu não consigo entender. Enfim, eu faço a minha parte.
Assim como para a maioria dos ocupantes, a dinâmica da cozinha coletiva apresenta suas controvérsias. De acordo Lilian: Em entendo algumas coisas da cozinha que me faz acreditar um pouco nela. Mas às vezes eu fico pouco de raiva (risos) pra ser sincera. Porque assim, é fácil você acreditar em um projeto que seja pra todo mundo. E difícil quando esse projeto que é de todo mundo ninguém quer participar. Essa parte que eu não entendo, entendeu? A parte do pedagógico assim, eu não entendo muito do pedagógico que eles falam não. Mas vamos botar pelo lado da convivência. Se não tivesse a cozinha, a gente quase não teria contato. Bem, desse jeito. Então eu acho que é uma forma das pessoas ficarem aqui mesmo com birra de um com a outra, de cara virada com a outra, você vai ter que ó você vai ter que ir lá e pegar comida com aquela pessoa. Tu vai ali ou então tu fica com fome. (...) é mais uma parte de eles quererem que a gente não se isole. Sabe, bem desse jeito que eu vejo a cozinha. É a única coisa que dá muita dor de cabeça na Solano Trindade é a cozinha.
Antes de morar na Ocupação, Lilian afirma que não tinha tempo de pensar ou sonhar com outra vida, já que chegava sempre muito cansada do trabalho. Contudo, a vida na Ocupação tem permitido “sonhar” e “ter esperanças”. O projeto vai demorar para se concretizar, mas Lilian acredita que a luta do Movimento possibilitará a realização da moradia digna. Segundo Lilian, a articulação do Movimento com a
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Universidade é imprescindível para elaboração de um projeto no qual tudo seja fruto da participação coletiva. Assim afirma que:
Eu imagino muitas coisas [para a Solano Trindade]. Sempre vem muitas ideias. Mas que seja um lugar...Primeiro que eu não vejo como prédios. Vejo como casas e casa me lembra quintal. Quintal me lembra chão de terra. Que eu sempre brinquei na terra, então. Então, eu sou assim. Vai surgindo uma coisa atrás da outra. Poxa, eu vou ter uma casa com quintal, então posso ter umas plantas. Aqui eu posso fazer uma hortinha, boto um...Vai ter o quarto das crianças. Eu vou ter um quarto pra mim. Pô, vai ter uma sala, uma cozinha, vai ter uma área. Assim, coisas a qual... antes eu nem podia pensar nisso. Morava numa quitinete, era um quarto, um banheiro e uma cozinha e acabou, não tinha quintal, não tinha lugar pra lavar roupa, não tinha nada (...). Só de você sonhar que pode ter um espaço pra fazer as suas coisas e deixar a sua casa arrumada, para mim já é uma grande vitória. E saber que posso fazer isso não prejudicando as outras pessoas. Entendeu? Às vezes você quer construir uma parede gigantesca e a pessoa a qual sempre prejudicada por isso. Aqui não vai ter isso. A gente vai escolher e optar por certo tipo de coisa (...) Aí eu virei para as pessoas é falei assim: poxa, lá vai ter uma horta. Como assim vai ter uma horta? Ah, vai ter um mandala. Como é que é isso? Sabe, as pessoas não conhecem...Pô, a gente vai ter um privilégio. Vai plantar e vai colher (...). Aí você ver que o sonho já vai além de casa com quarto paredes.
Lilian tem ciência de que o projeto não se concretizará em poucos meses e que para a sua a realização será necessária a participação de “um pouco de cada um”. Por isso, em seu entendimento, a Ocupação se assemelha a uma Igreja:
Aqui é engraçado, eu não vejo muita diferença em relação a igreja e a Solano. Em relação à convivência, sério. [Por quê?] Eu estava pensando esses dias. E foi engraçado chegar nessa conclusão porque assim. As pessoas vão pra Igreja pra buscar Deus, pra se sentirem bem né. Eu vou pra Igreja porque eu gosto, traz tranquilidade e eu posso ensinar algo bom pras crianças. E faz muito bem acreditar em Deus. E aqui não tem muita diferença, você tem que acreditar no projeto. Na igreja tem briga, na igreja tem fofoca. Na igreja tem disse-me-disse, tem aquele que não gosta de você porque você se veste de certa forma. Na igreja tem aquele que não gosta de você porque você é branco. Tem esses tipos de coisas? Falar que não tem é mentira. E aqui também. A única diferença é que na Igreja a gente vai pra buscar o espiritual. Concretizar aquilo a qual a gente busca. Aqui a gente está por acreditar que vai ter algo. Que não vejo muita diferença. E a mesma forma como a gente tem que conviver com as pessoas lá.
Lilian é casada com Emerson. Ele tem 23 anos e no momento está desempregado. Emerson é o único morador que está desde o início da Ocupação. Quando o interpelei, para que me concede uma entrevista, ele se disse tímido e desarticulado e afirmou que conversar com Lilian seria o suficiente. O espaço em que Lilian mora com a família tem 20 metros quadrados e ripas de madeiras são usadas de modo a compartimentalizar os cômodos: a sala com sofá e televisão, 2 quartos, 1
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cozinha com fogão e alguns eletrodomésticos como batedeira e liquidificador, 1 canto com ralo onde armazenam os baldes com água e tomam banho quando não usam o banheiro coletivo.
Recentemente, Lilian e Emerson oficializaram a união e saíram da Ocupação para morar de favor em casa de parentes no bairro de Saracuruna. 3.7.3 Isabel Isabel tem 50 anos, solteira e tem 4 filhos; com 27, 19, 16 e 14 anos. A mais velha é casada, tem dois filhos e mora na Pavuna, Zona Norte do Rio de Janeiro, e os outros moram na Ocupação. Atualmente, Isabel é cuidadora de idosos na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Antes, trabalhou como cozinheira por 2 anos em um restaurante no Campos Elísios, distrito de Duque de Caxias. Trabalha praticamente todos os dias, exceto às quartas, dia que segundo ela, usa para resolver alguns problemas cotidianos, sobretudo, relacionados aos filhos, como reuniões escolares e atendimentos médicos. Assim como a maioria das mulheres da Ocupação, Isabel “já fez de tudo um pouco”: faxineira, empregada doméstica, cozinheira e manicura/pedicure. A paixão por cozinhar descobriu aos 8 anos de idade quando teve que improvisar o almoço, já que sua mãe esquecera de deixá-lo pronto. Foi nesta mesma idade que saiu pela primeira vez da escola e começou a trabalhar em “casa de família” para ajudar a mãe no sustento dos irmãos, atualmente com 30, 36 e 42 anos. Trabalhou nestas condições até os 21 anos, quando se casou. Das atividades que já exerceu é a que mais gosta e pela qual demonstra um conhecimento considerável. Isabel chegou a trabalhar por 7 anos em uma escola como faxineira em troca de comida e enfatiza que sempre sustentou os filhos sozinha. Os filhos já com seus 10 e 11 anos foram estimulados a procurar trabalho tanto para ajudar na renda familiar como comprar “itens de luxo” como tênis, celular, hambúrguer e sair com as respectivas namoradas. Quando perguntada sobre o trabalho de faxina, Isabel responde:
Trabalhar com faxina, a gente assim, gente se adapta, a gente de qualquer jeito a gente se acostuma. Porque quando a gente tem atrás da gente filhos que querem comida... muitas das vezes me dispensavam porque não tinham dinheiro pra pagarem o meu trabalho. E uma coisa que sempre aprendi com a minha mãe: nunca tenha vergonha de pedir, é legal pedir do que tirar. Então quando o pessoal dizia que não tinha dinheiro pra pagar: olha, eu tenho filhos pequenos para criar, pra
218 sustentar, pra comer. Vocês me pagam com mantimento, o que vocês tiverem, um feijão, um arroz, um leite pra mim levar pros meus filhos, pra dar pra eles. Porque eu o que eu deixei em casa pra eles comerem foi o mínimo. Que dizer eles tiveram só o almoço, então.
Isabel enfatiza que cuidar dos filhos é um prazer, um privilégio, vangloriandose ter cuidado tão bem de modo que nenhum deles foi para o “tráfico ou bandidagem”; onde muitas mães perdem os seus filhos:
Eu falo pra eles, pros meus filhos: por vocês eu não mato e roubo, mas o que eu puder fazer por vocês eu faço. Tanto que agora o meu mais velho tá agora com 19 anos. Aí ele diz assim: mãe, eu te dou muito trabalho. Eu falo: se o trabalho que você me desse fosse igual ao trabalho que os outros filhos dão, as mães iriam ficar muito felizes. Porque não é dever, não é obrigação, mas uma contribuição de uma mãe poder trabalhar e ajudar aos filhos que estão desempregados. O de 16 anos está agoniado também de ficar em casa. Aí precisa de roupa, precisa de sapato, precisa das coisas. E aquele negócio, deixo de fazer por mim para fazer por eles. Quando eles dizem assim; mãe, to precisando...Eu: segura as pontas, aguenta um pouquinho que quando sair a gente vai fazer. E assim que acho que pra uma mãe. Não é sacrifício, é um prazer. E um prazer, dando graças à Deus. Porque tem muitas aí chorando que o filho está preso, tá envolvido com drogas, eu agradeço muito a Deus de estar com os meus filhos dentro de casa.
Isabel nasceu na Vila Militar, no bairro de Magalhães Bastos, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Mudou pra Baixada Fluminense com 10 anos de idade e em uma época em que Duque de Caxias era “tudo mato e barro”. A família buscou na cidade de Duque de Caxias uma forma de sair do aluguel e ter uma casa de posse. A intenção do pai era “dar uma vida mais digna pra mulher e pros filhos”. Contudo, segundo Isabel, o pai “morreu na cachaça e na sem-vergonhice” e não deixou casa ou pensão para sua esposa e filhos – atualmente a mãe e o irmão mais novo moram de favor na casa de parentes. Aos 22 anos, Isabel saiu da casa dos pais e foi morar no Cangulo, favela do bairro de Saracuruna, quando se casou com o pai dos seus filhos e com quem viveu junto por 25 anos. De acordo com Isabel, Duque de Caxias foi o lugar onde criou raízes e os filhos, e mesmo com a violência e outros tantos problemas, não o trocaria por nada. Isabel e filhos moram na Ocupação desde 05 de outubro de 2015 e a conheceu por intermédio do Fred, outro morador da Ocupação e com quem até alguns meses atrás tivera um relacionamento. Ambos foram colegas no voluntariado da brigada da Defesa Civil, onde também conheceram Noêmia. No voluntariado, Isabel aprendeu técnicas de primeiros-socorros e de salvamento (em enchentes e deslizamentos, algo
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corriqueiro em Duque de Caxias), e que a fez ter interesse por cursos de enfermagem e correlatos. Por isso pretende voltar à escola e concluir o 2º ano do Ensino Médio Contudo, a tentativa foi interrompida duas vezes; na primeira para cuidar da mãe que acabara de sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e depois por causa da cirurgia ortopédica de um dos filhos. Isabel decidiu definitivamente se mudar para Ocupação quando ficou desempregada e sem condições de pagar o aluguel, chegando a completar 3 meses de inadimplência. Isabel enfatiza que é uma pessoa prestativa e que devido aos conhecimentos adquiridos no voluntariado da brigada é constantemente solicitada pelos moradores da Ocupação, desde as crianças aos mais velhos, para ajudar- lhes com suas enfermidades. No momento explicita que não tem podido ajudar como gostaria por causa do trabalho, e é o que responde também quando outros moradores querem saber por que ela não tem podido ajudar na cozinha coletiva nos dias de semana. Isabel reafirma o quanto a participação nas atividades da Ocupação e do Movimento são importantes. Entretanto, enfatiza que nem sempre concorda com o teor de algumas manifestações:
Eu achei incrível. Participamos de duas passeatas, duas caminhadas né. Depois participamos de uma ocupação na Caixa Econômica, a gente dormiu lá dentro da Caixa Econômica, não deixaram entrar comida, que tomava água pelo... de canudinho, pelas frestinhas da porta. Banheiro, começamos a fazer cortininha para ocupar porque disseram que não iam liberar banheiro. Então é um tal de mulher fazer xixi nos cantinhos, (...) como eles viram que tinha muita mulher e muita criança (...) e depois fomos pra frente do INSS [Instituto Nacional de Seguro Social]. [E o que você achou?]: olha, eu gostei pra caramba. Porque nós fizemos a manifestação pacífica, não foi quebra-quebra, como eu vejo aí a respeito. Só que assim quando eu vejo que se trata de passeata aí eu vou, quando é quebra-quebra eu não vou. Que se a gente vai ali reivindicar os nossos direitos a gente não precisa ter que quebrar. Porque quem quebra fica no prejuízo, os ônibus quebrados, ônibus queimado faz falta para gente. Poder sair pra trabalhar é um sufoco. Eu saio daqui, aqui eu levanto 4h30 da manhã, teria que pegar um ônibus daqui até o Gramacho, mas eu vou a pé até o Gramacho. Lá eu vou dentro do trem, desço na Central e vou de metrô. Pra voltar, muito cansada, aí eu venho: metrô, trem e ônibus.
Desde que chegou à Ocupação, Isabel ajuda na cozinha coletiva, seja na escala normal e em dias de mutirão. Orgulha-se de ser reconhecida como uma pessoa que cozinha bem. O cardápio durante a semana é sempre o mesmo: arroz, feijão, macarrão, carne, frango ou ovo. Ou seja, as responsáveis pela cozinha têm a sua disposição os mesmos ingredientes, mas ainda assim Isabel explicita o quanto a sua
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comida se destaca pelo cheiro e pelo tempero, tornando-a inconfundível. A diferença, segundo Isabel, é porque cozinha com “amor e gosto”, pensando não somente em si, mas em agradar aos outros, e esse deve ser o motivo principal para ser fazer algo com qualidade. Em relação as regras, Isabel afirma que a princípio foi difícil aceitar o código de conduta do Movimento. Contudo, com o tempo começou a entender os porquês. Isabel foi convencida pelos coordenadores de que o não cumprimento do mesmo poderia trazer alguns inconvenientes para convívio cotidiano; dentre eles, por exemplo, situações de violência originadas ou agravadas pelo abuso de bebida alcoólica. Atualmente mesmo com ressalvas e considerações, sobretudo em relação as regras para receber visitas ou realizar festas, concorda que o código é essencial para se viver na Ocupação, como reitera:
Às vezes é estranho ter certos limites, mas a gente tem que procurar entender. Tem que fazer o possível pra poder entender porque se aqui vai conseguir a própria casa. A gente tem que estar realmente buscando, procurando saber. Aqui no movimento tem que saber como é lidar, como se tivesse morando em Avenida. Minha mãe sempre chamou, morar em avenida com muitos vizinhos barulhentos e bagunceiros... é conhecido como cabeça de porco, é barulho demais, não respeita outro, é muita bebida, não respeita o outro. Aí tem a parte que tem evangélico que não respeita aquele outro que não é. Aqui o que eu observei que isso não é um problema. Cada um com a sua religião. Questão de bebida é bom pra não haver bagunça. As pessoas que bebiam e se alteravam não estão mais aqui. Mas é bom.
Em relação os cursos da Assessoria Técnica, Isabel diz, que devido ao trabalho e as reuniões da escola do filho mais novo, só pôde participar de 4 reuniões. Contudo, dedica-se a outras atividades, dentre elas a organização da biblioteca. Para Isabel, a biblioteca é importante para que as crianças e os adolescentes da Ocupação não fiquem na rua e “sem ter o que fazer”. Tal afirmação soma-se aquelas nas quais Isabel orgulha-se de manter os filhos dentro de casa. Ou seja, em seu entendimento a rua tem um sentido negativo, de apresentar perigos, violências e aliciamentos por parte do tráfico, e em contraponto, a casa tem um sentido positivo porque representa educação, controle e disciplinamento, na qual os filhos aprendem os valores do trabalho e, consequentemente, não sejam facilmente seduzidos pelo “mundo do crime”. Além da biblioteca, Isabel quer dedicar-se a mandala; um dos projetos da horta comunitária pelos quais mais anseia. Ainda na adolescência, Isabel teve oportunidade de cursar uma disciplina de técnicas agrícolas no Ensino Fundamental; “nos plantávamos lá no colégio, comíamos da nossa plantação”.
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A mãe e a irmã de Isabel, que também moram em Duque de Caxias, demonstraram interesse em participar do projeto. Entretanto, a mãe não persistiu com a ideia e a irmã desistiu quando soube da existência das regras de convivência. Isabel afirma, assim como os outros moradores, que morar na Ocupação é “tranquilo”, “sossegado”, onde não toca músicas com “palavrão” e que não precisa conviver com o barulho dos vizinhos. Algumas semanas depois da entrevista, Isabel e os filhos se mudaram para outro espaço, considerado mais adequado para as necessidades das famílias. Antes Isabel e os filhos dividiam uma cama de casal. Com a mudança cada um terá sua própria cama ou colchão e um espaço separado por paredes, o que significa mais privacidade. Isabel ficou contente com a mudança, porque agora terá mais espaço para colocar mesas, arranjos e livros; finalmente um espaço “com cara de casa”.
3.7.4 Alcione Alcione tem 30 anos e é casada com Rafael, também morador da Ocupação. Antes, Alcione e o marido moravam de favor na casa da mãe dele em Anchieta. Alcione, o que revela um padrão entre as mulheres da Ocupação, já foi faxineira, babá, cuidadora de idosos e vendedora de salgados; sendo esta atividade que exerce atualmente. Mas antes desta, Alcione foi cuidadora de crianças na creche da irmã, praticamente a mesma atividade que exerceu quando começou a trabalhar aos 13 anos de idade. Alcione estudou até 2º grau e já fez alguns cursos, entre eles cuidadora de idosos e estética. O seu sonho mesmo é fazer faculdade de nutrição. Alcione soube da Ocupação por meio da Lilian, quando ainda eram vizinhas em Anchieta. Quando Lilian se mudou para o Ocupação teve receito em ir visitá-la e até a segunda visita tinha uma impressão negativa do lugar. O que mudou quando participou de uma reunião e pode conhecer melhor o projeto do Movimento. Assim narra: Quando eu cheguei aqui [para visitar a Lilian] eu confesso assim que não me interessou. Eu fiquei até meio assustada né de ver lugar. Eu pensei assim: caramba, a Lilian precisa, mas ele é meio doida, meio maluca né de ficar aqui com as crianças. Porque assim a primeira vista parecia tudo abandonado. Um lugar abandonado onde jogaram as pessoas e deixaram ali pra ficar. Eu não sabia a profundidade do negócio (...). Eu fiquei muito comovida com o que ela estava passando e as crianças, aí eu falei: vou aí te visitar. No que eu puder te ajudar eu vou te ajudar. Não vou te deixar sozinha nessa. Tanto é que uma vez estava tendo uma reunião. Aí eu cheguei e ela falou: olha, amiga, vai ter reunião. Eu falei: eu posso entrar lá
222 com você? Ela falou: claro que pode. Quando eu sentei na reunião, aí eu cheguei principalmente aquela parte lá trás. Me chamou atenção de ver tudo assim meio abandonado né, queimado. Mas quando eu comecei eu senti a intensidade da reunião... o que o movimento oferecia, qual era a luta, o propósito do movimento. Aí aquilo ali me deixou com uma outra visão. Porém, assim, eu não almejava vir morar aqui. Aí eu falei: poxa, Lilian, não sai não. Você está num bom negócio. Eu gostei do trabalho deles. E muito interessante. Nunca tinha ouvido falar desse movimento.
Após as visitas, Alcione e o marido decidiram participar do projeto. Alguns meses depois, já mais familiarizados com o espaço, mudaram-se para a Ocupação em outubro de 2016. De acordo com Alcione, a mudança não foi simplesmente de uma casa para outra. Isso porque, a nova vida na Ocupação transformou os seus costumes, e ela sente que agora tem responsabilidades maiores, uma vez que não responde mais por si, como também pelos “companheiros”. Em relação ao código de conduta, Alcione afirma que com não concorda com todos os pontos, na verdade acredita que os coordenadores do Movimento precisam ser mais rigorosos ao exigirem o cumprimento das regras pelos moradores. Assim reitera: [O que você está gostando de aprender?]: Eu sempre gostei de ser solidária, de ajudar, mas isso daí assim tem me reforçado mais, né. A questão de olhar pro companheiro, de fazer as coisas quando a gente não tem vontade de fazer. Por assim, né. Na minha casa, eu faço o que eu quero, na hora que eu quero. Eu e meu esposo já temos uma combinação em olhar e pensamento (...) Mas aqui assim a questão da cozinha. Nossa, eu vejo que não é uma obrigação. Mas é uma coisa muito legal. Como na brigada também, né. É uma coisa legal porque assim, você que faz brigada, você tem uma responsabilidade tanto por você como pelos seus companheiros. Aí você vai fazer uma comida na cozinha. Eu não vou fazer só pra mim, mas vou fazer para as outras pessoas.
Alcione diz que a valorização da solidariedade era uma coisa que já tinha aprendido na igreja. Afirmando o mesmo em relação ao cumprimento das regras, defendendo que todos devem obedecê-las, mesmo que não concordem totalmente. Entretanto, quando explicou a sua mãe sobre o código de conduta foi questionada se não estaria vivendo em uma prisão. Amigos e parentes, pelo menos a princípio, não entendiam os motivos pelos quais Alcione decidiu morar em uma ocupação em Duque de Caxias. Quando ocorrem chuvas e tempestades sempre recebe mensagens dos deles perguntando se está tudo bem. A preocupação não é infundada tendo em vista Duque de Caxias ser conhecida pelas enchentes de rios – somando-se a isso a cobertura insuficiente de saneamento básico e questões concernentes a informalidade/irregularidade no abastecimento de água. Contudo, Alcione sempre contemporiza:
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Eu botei o nome aqui de Jardim do Éden porque as vezes dilúvio tá acontecendo lá fora. Tu já viu. Uma porção de coisa acontece lá fora, vê na reportagem, vê o que acontece aqui dentro: nada. A gente fica em paz o dia todo. E o pessoal fala: como é que tá lá? Os meus líderes né, a minha pastora, o pessoal de lá quando começa a chover aqui manda logo mensagem: Alcione, aí encheu? Como é que tá a situação? Eu falei: não, o mundo acabou daqui pra fora. Ó eu to no Jardim do Éden. Onde a gente mora não acontece nada não.
Alcione, como a maioria das mulheres, é responsável pelo funcionamento da cozinha coletiva. Observa, “infelizmente” que nem todas fazem as coisas com “capricho” ou “higiene”, e por isso diz que o certo é só estar na cozinha coletiva aquelas que o façam por “amor” e “dedicação”, caso contrário é melhor que não o faça. Assim com as outras entrevistadas, Alcione afirma que a Ocupação é um lugar de tranquilidade e que é preciso ter paciência esperar a realização o projeto. Segundo Alcione:
O movimento né oferece mais que uma casa. Aqui se você... e a pessoa tiver cabeça e souber aproveitar o que sendo oferecido aqui, você se forma aqui dentro. Eu vejo isso antes mesmo de chegar o curso aqui. Eu vejo que nada é mentira, tudo é verdade, é questão de paciência (...) e vai chegar todo mundo junto. E eu acho muito legal quando eu vim. A Lilian mesmo passou por uma situação que o Conselho Tutelar veio aqui porque ex-marido dela denunciou falando que ela morava um local abandonado, que as crianças estavam sofrendo maus tratos. E quando ela foi lá, quando ela foi chamada e ela chegou com uma documentação daqui...nossa. Parecia que ela tinha chego com uma carta federal lá. Aí nós vimos o suporte que nós recebemos aqui. Que independentemente do local, nós não estamos largados. Nós não estamos em qualquer lugar. Ali tem ser humano, moram seres humanos ali. São pessoas que moram ali dentro. Não são qualquer pessoa. E assim, leva a gente a sério. Nossa quando eu vi vocês aqui, a UFRJ dentro.
O marido da Alcione, Rafael, tem 30 anos e realiza “bicos” de porteiro e de pedreiro. O espaço no qual Alcione e Rafael moram contém: sofá, cama, estante, televisão, ventilador portátil, guarda-roupas, fogão e armário de cozinha. Alcione enfatiza que é “pobre, mas é limpinha” e por isso sua casa está sempre arrumada. Um ano depois da entrevista, Alcione e marido se mudaram para Irajá, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro para realizarem o empreendimento de salgados e quentinhas. A mudança foi a única opção, uma vez que os coordenadores não autorizam atividades de geração de renda sem a sua integração ao projeto coletivo. Ou seja, os coordenadores afirmam que atividades de geração de renda devem ser aquelas idealizadas e de forma a beneficiar a coletividade, e como Alcione e Rafael pretendiam
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fazê-lo sem esperar o projeto, diante sobretudo da necessidade de possuírem renda, decidiram se mudar da Ocupação.
3.7.5 Namara Namara tem 27 anos, casada há 8 anos com Marcos, 40 anos, e tem 4 filhos; 9, 5, 2 anos e 6 meses. Namara decida-se exclusivamente a criação dos filhos. A família se sustenta com o salário mínimo que o marido recebe de sua aposentaria por invalidez – após o agravamento de sua saúde mental no seu ofício como coveiro. Antes da Ocupação, Namara e família moravam de favor na casa de madrinha de casamento em São Gonçalo, mesma cidade onde nasceu. Em seu relato, Namara afirma que foi raptada aos 3 anos de idade pelo próprio pai, que a levou embora São Gonçalo para Nova Iguaçu. Anos depois, já adolescente, Namara se envolveu com “pessoas ruins” e usou drogas dos mais variados tipos. Foi neste mesmo período que foi “agraciada” com o seu primeiro livramento, certamente segundo ela, resultado das inúmeras orações que sua mãe fazia na esperança de reencontrá-la. Contudo, poucos meses após o reencontro, a mãe faleceu; e 3 meses depois o seu pai. Namara e o marido conheceram a Ocupação através de uma “irmã” da igreja, situada próxima a Central do Brasil, Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Após 3 meses de participação nas assembleias da Ocupação Mariana Criola e com aviso prévio para sair da casa emprestada, Namara e marido, por intermédio dos coordenadores estaduais Vinicius e Elizete, solicitaram um espaço na Ocupação Solano Trindade. No dia 28 de fevereiro de 2016, a família se mudou para a Ocupação. A princípio tiveram que dividir o espaço com outra família, mas atualmente moram um espaço maior e mais arejado no qual encontra-se: sofá, fogão, quartaroupas e camas de casal e de solteiro. Namara considera que a mudança para a Ocupação lhe ensejou um processo de aprendizado e amadurecimento, uma vez que o modo de vida mais coletivo proporcionou novas experiências. Enfatiza que por ter sido filha única não estava acostumada com o convívio com muitas pessoas, e nem sequer em exercer uma atividade pensando antes nas necessidades dos outros. Portanto, a vida na Ocupação, segundo Namara, “radicalizou bastante” esse aspecto na sua vida.
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Apesar de nascida em São Gonçalo, Namara foi criada em Nova Iguaçu. E mesmo após voltar para São Gonçalo, vivia mais na Baixada Fluminense por causa dos trabalhos de evangelização da igreja. Em sua fala, Namara reiteradamente cita Deus e Jesus Cristo como os grandes responsáveis pelas realizações em sua vida e de sua família. Dentre as atividades na Ocupação, elenca a relação do Movimento com a Universidade como uma coisa positiva:
É bom. Eles passam muito conhecimento, despertam na pessoa o interesse de lutar por moradia e tudo. Eu vejo que eles são bem atenciosos, gostam daquilo que fazem, fazem bem o trabalho deles (...) são boas pessoas.
Contudo, Namara diz que “não liga muito” para curso de formação ou para o projeto de maneira geral. Ela assume o quanto sua opinião pode ser polêmica e controversa, ponderando que não é necessariamente um descompromisso com a luta, mas é porque o centro da sua vida é sua relação espiritual com Jesus Cristo e não com os aspectos materiais, como uma casa própria, por exemplo. Isso porque Deus lhe ensinou que a maior preocupação que uma pessoa deve ter é com sua salvação e livramento, o que faz com que qualquer outra seja secundária. Depois do “chamado” de Deus, Namara decidiu sair da “brincadeira”, da “bagunça” e do “pecado” e entregar sua vida aos desígnios cristãos. Assim, o seu coração já está comprometido exclusivamente com Ele e por isso não pode colocá-lo também no projeto do Movimento. Sobre as manifestações, das quais participa regularmente, diz que são “legais” e “interessantes”, e entende a importância de participar delas. Além do mais, a vida na Ocupação não apresenta grandes problemas, mas Namara afirma que se tivessem condições financeiras estariam certamente morando em outro lugar. Enquanto isso, morar na Ocupação tem servido de “provação divina”; um processo em que está “crescendo, aprendendo e amadurecendo”. De acordo com Namara:
O tempo que estamos vivendo aqui está sendo muito importante pra nossa vida. Tá marcando e vai marcar a nossa vida toda daqui pra frente (...) Faz parte do testemunho.
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A vida na Ocupação tem servido, portanto, para tornar Namara e sua família exemplos de conversão e/ou superação e que certamente terão lugar no púlpito da igreja. Mesmo não sendo prioridade, a vida na Ocupação e os cursos da Assessoria Técnica ensejou sonhos acerca da moradia ideal, que segundo ela deve ter 2 andares e quartos individuais para os filhos, além de estar situado em um lugar seguro. As crianças e o marido, presentes em todo momento da entrevista, mostraram-se entusiasmados com o projeto. Para as crianças é bom morar na Ocupação porque tem lugar para brincar, pelo fato da escola ser a pouco metros de distância. Já Marcos, devido a vida na Ocupação, adquiriu conhecimentos em reparos elétricos, hidráulicos e de pintura, o que poderá ser útil caso surja uma oportunidade para trabalhar na construção civil.
3.8 SER MULHER As mulheres da Ocupação Solano Trindade compõem o contingente populacional de brasileiras que vivem ou viveram em situação de pobreza e que, por conseguinte, passaram por uma série de privações: interrupção dos estudos, baixa escolaridade, falta de qualificação técnica e profissional e renda proveniente de trabalhos informais e intermitentes. Babá, cuidadora de idosos, diarista, empregada doméstica, cozinheira, manicure/pedicure, vendedora ambulante e revendedora de cosméticos são as ocupações mais comuns entre as mulheres da Ocupação, bem como de muitas mulheres em mesma situação socioeconômica. Tais atividades relacionam-se aos cuidados e administração da vida doméstica, de modo que não é valorizado pela sociedade capitalista como um trabalho devidamente remunerado e que deve envolver direitos trabalhistas. De acordo com Angela Davis (1989), o trabalho doméstico é invisibilizados pela sociedade.
As inúmeras tarefas conhecidas coletivamente como “tarefas domésticas” cozinhar, lavar a louça, lavar roupa, fazer a cama, varrer, comprar, etc – aparentemente consumem três a quatro mil horas anuais de uma dona de casa. Tão surpreendente quanto essa estatística poderá ser o facto do mesmo não contabilizar a variável inquantificável que as mães devem dar atenção aos seus filhos. Assim como os deveres maternais da mulher são tomados como garantidos, também a interminável labuta da dona de casa é raramente apreciada dentro do seio familiar. O trabalho doméstico é virtualmente invisível. “Ninguém nota a não ser que não esteja feito” – Nós notamos a cama desfeita, mas não o chão esfregado e polido”. Invisível, repetitivo, exaustivo, improdutivo, não criativo. Estes são os adjetivos que a maioria capta da natureza das tarefas domésticas (DAVIS, 1989, p. 159).
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A
maternidade
compõe-se
como
um
conjunto
de
experiências
de
subserviência, uma vez que as mulheres precisam superar as ofensas, humilhações e violências em prol do sustento dos filhos. Não obstante, para além de constrangimentos, o trabalho “fora de casa” configura-se como importante componente da subjetividade feminina no que tange a vida pública, autonomia e independência financeira e emocional. Como sentencia Saffioti (2010):
Para a mulher, ter um emprego significa, embora isso nem sempre se eleve em nível de consciência, muito mais do que receber um salário. Ter um emprego significa participar da vida comum, ser capaz em nível de consciência, muito mais do que comum, ser capaz de construí-la, sair da natureza para fazer a cultura, sentir-se menos insegura na vida. Uma atividade ocupacional constitui, portanto, uma fonte de equilíbrio da mulher não pode ser pensado exclusivamente como o resultado do exercício de uma atividade ocupacional. Seu papel na família é contrapartida necessária de suas funções profissionais, nas sociedades capitalistas. Sua força de trabalho ora se opõe no mercado como mercadoria a ser trocada, ora se põe no lar enquanto mero valor de uso que, no entanto, guarda uma conexão com a determinação enquanto mercadoria da força de trabalho do chefe da família. (...) Qualquer que seja o quadro de referência tomado, a família ou a situação do trabalho, suas funções assumem aspectos mais ou menos incompatíveis. A sociedade de classes não oferece à mulher um quadro de referência através do qual suas funções possam ser avaliadas integradas. Neste tipo de estrutura social, a vida se apresenta contraditória. Há, para as mulheres, uma necessidade subjetiva e, muitas vezes também objetiva de ser dar à família. Se agir segundo a mística feminina é caminhar em sentido contrário ao do progresso, buscar a integração na estrutura de classes entre os papéis ocupacionais e os familiais constitui, para mulher sobrecarga considerável. Esta dificuldade tem levado muitas a abrir mão de uma possível realização profissional em benefício de uma integração mais plena (e menos onerosa, do ponto de vista imediato) no grupo familial. Acresce, ainda, que as possibilidades de integração na família são muito mais palpáveis do que a integração estrutura ocupacional não só pelos objetivos que envolvem as duas estruturas, mas também em virtude do próprio tipo de formação recebido pela mulher. Nestas circunstâncias ela é levada a hierarquizar as funções que desempenha nas duas estruturas mencionada (...). Qualquer hierarquização das funções femininas nas sociedades capitalistas reforça as dificuldades de integração da mulher na sociedade. E no, entanto, parece ser esta a única via de integração social do elemento feminino sob o capitalismo” (SAFFIOTI, 2010, p.96-97).
De maneira geral, concluímos que os filhos são uma das maiores preocupações das ocupantes entrevistadas. A maternidade é onde está a responsabilidade e o comprometimento com a formação de outros seres humanos. Nas falas de Dona Enésia e Isabel, que já possuem filhos adultos, denota-se a preocupação com desvios de conduta em relação às drogas, bebidas alcoólicas e ao tráfico. Tal receio não se dirige às filhas, mas somente aos homens, vistos como aqueles que precisam ser salvaguardados para que não perpetuarem a desordem e desestruturação da família, como fizerem seus pais e avôs. O ofício materno exigiu que essas mulheres
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construíssem sonhos e expectativas em prol dos filhos, visto ora como sacrifício, ora como privilégio. Ademais, a dedicação materna é uma cobrança de modo que a mulher é no geral categorizada em uma apreensão maniqueísta: boa mãe ou má mãe. Pode ser que tais características variem contextual e circunstancialmente, contudo, é possível através das falas das entrevistadas perceber a preocupação delas em serem vistas como mães dedicadas, que fazem tudo pelos filhos, cozinham e os mantêm limpos e arrumados. Isso porque, uma das principais atribuições da mãe é contribuir para o desenvolvimento mental, físico, psicológico e emocional dos filhos. Ela é responsável pela alimentação e higienização como também pelo ensinamento das normas sociais e padrões culturais vigentes. E antes de ser mãe, há um conjunto préestabelecido de regras institucionalizadas e comportamentos moralmente aceitos. Há, portanto, antecipadamente o estabelecimento de um modo de ser mãe, pai, irmão e filho. O que denota, sobretudo, a divisão sexual do trabalho. Conforme consta em Biroli (2014): Essa forma de construção familiar [em vista da industrialização e urbanização] é geneticamente das desigualdades de gênero. Ela corresponde a arranjos que favorecem a reprodução da pobreza, da exploração, e da marginalização das mulheres, do andocentrismo e das desigualdades de renda, no uso do tempo e nas garantias de respeito85. A divisão sexual do trabalho é um fator relevante na reprodução dessas desigualdades No âmbito doméstico, impõe às mulheres ônus que serão, então, percebidos como deficiências em outras esferas da vida 86. A conexão entre os aspectos domésticos e não doméstico da vida é profunda e permeia todos os espaços e atividades87. As formas de definir – e restringir – o papel da mulher em uma dessas esferas organizam suas possibilidades de vida nas outras. Assim, a responsabilidade exclusiva pela vida doméstica corresponde, ao mesmo tempo, à vulnerabilidade na vida privada (em que os arranjos convencionais ou quase convencionais88, produzem desvantagens para as mulheres, que têm menos tempos e recursos para qualificar-se e investir em sua vida profissional, permanecendo dependentes ou obtendo rendimentos menores do que os dos homens) e da vida pública ( em que habilidades desenvolvidas pelo desempenho dos papéis domésticas serão desvalorizadas e, em alguns casos, vistas como indesejáveis para uma atuação profissional satisfatório (p.49).
Além da maternidade, há um importante elemento que congrega tais mulheres em torno de uma existência comum: a insegurança quanto a moradia. Em suas vidas 85
Nancy Frase, Justice Interruptus, cit., p.49-54. Susan Moller Okin, Justice, ender and the Family, cip. p.133. 87 Ibidem, p.126. 88 Arranjos quase convencionais são aqueles em que as mulheres têm uma atuação na esfera pública do trabalho, que lhe confere valorização e renda, mas fica mantida, na esfera doméstica, a divisão estabelecida dos encargos e das expectativas. São, assim, os arranjos relacionados À noção de dupla jornada e ao problema da divisão desigual do tempo, com impacto sobre a participação política das mulheres e o lazer, entre outros aspectos. 86
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foram corriqueiros episódios de enchentes, deslizamentos, despejos, desapropriação e coabitação. A moradia configura-se como um lugar de reprodução da família, de socializações que demarcam o feminino/feminilidade e o masculino/masculinidade, a vida privada e a vida pública. Contudo, a família além do coletividade e comunidade, é também onde se constitui a individualidade, como a demarcação da infância e de questões concernentes a sexualidade. As mulheres da Ocupação veem a família como algo fundamental em suas vidas, onde está sua dedicação maior. Contudo, ainda assim possuem sonhos e expectativas profissionais. Além da “paz”, “sossego” e “tranquilidade” em morar em um local com regras de convivência, é onde também praticam valores até então considerados estritamente religiosos, como respeito, solidariedade e companheirismo. De alguma maneira, o compromisso com a luta equivale-se a uma atividade espiritual, sobretudo para Namara; para qual a pobreza é considerada um obstáculo necessário para o crescimento e o amadurecimento individual e espiritual, algo que é precisamos passar para “dar valor a vida” – como se a vida na Ocupação, com os interditos e as condições de habitabilidade mínimas, se configurasse enquanto uma provação, um estágio intermediário entre as privações e realizações dos sonhos.
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4. CONSIDERAÇÃOS FINAIS
O desenvolvimento desta pesquisa fez-se da seguinte maneira: encontrar pessoas e encontrar-me nelas; e por vezes desencontrá-las e desencontrar-me também. O que é inevitável, posto que a produção de conhecimento científico é um dentre os inúmeros empreendimentos que estão entremeados de vidas humanas. Por mais que lancemos mão de expedientes laboratoriais – como se colocássemos as relações sociais em uma placa de Petri ou microscópio para uma observância mais acurada e controlada – é preciso considerar que elas estão imiscuídas de afetos, paixões e engajamentos; e que fazem cair por terra certos ideais cientificistas como neutralidade, objetividade e imparcialidade. Com efeito, a busca por relações sólidas e confiáveis não se faz sem frustrações e imprevistos; e com os quais aprendi que precisamos desistir de determinadas concepções de mundo para tentarmos outras vezes e de outras maneiras. Ou seja, precisamos assumir os erros com menos culpa e arrependimento, e mais enquanto os imprescindíveis do fazer científico. O mesmo serve para o querer agradar a todos: o que acaba com a possibilidade dialógica e, por conseguinte, com a formação de entendimentos complexos sobre o mundo. À medida que o MNLM configurava-se enquanto uma rede de interlocutores e intermediários para o aprofundamento dos estudos acerca dos movimentos sociais urbanos, eu perseguia cada vez mais a ideia da dissertação-militante. Ou seja, de uma dissertação que servisse, e a sua maneira, fosse subserviente às principais questões de um movimento social de luta por moradia. Deste modo, queria produzir um conhecimento pactuado com a luta política; e morar na Ocupação seria a consagração deste objetivo. A princípio, a ideia que tinha de morar na Ocupação era o de estar entrando em um jogo de experimentação, na qual as regras e procedimentos seriam explícitos, e os eventos iniciados e encerrados nomeadamente. Entendia, portanto, a Ocupação simploriamente como o lugar da idealização e materialização de um grupo em luta, desprezando em parte a própria vida e as humanidades a ela concernentes – sendo estas as que abrem o campo de possibilidades analíticas. Com o decorrer da vida na Ocupação percebi que foi através de piadas e brincadeiras que pude criar relações de vida enquanto relações de pesquisa; e relações de pesquisa enquanto relações de vida. De modo que a minha formação enquanto pesquisadora dependeu não somente de fundamentos teóricos, mas de relações interpessoais consolidadas;
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indispensáveis para a legitimidade, confiabilidade e fidedignidade das informações compartilhadas. No que concluo que a pesquisa não pode ser encarada como algo rigidamente estabelecido, mas sim como processo. Como salienta Freire (1987): Nunca um acontecimento, um fato, um feito, um gesto de raiva ou de amor, um poema, uma tela, uma canção, um livro tem por trás de si uma única razão. Um acontecimento, um fato, um feito, uma canção, um gesto, um poema, um livro se acham sempre envolvidos em densas tramas, tocados por múltiplas razões de ser de que algumas estão mais próximas do ocorrido ou do criado, de que outras são mais visíveis enquanto razão de ser. Por isso é que a mim me interessou sempre muito mais a compreensão do processo em que e como as coisas se dão do que o produto em si (FREIRE, 1987, p.9).
A escolha da Ocupação enquanto objeto de pesquisa orientou-se pela vontade de estudar moradores da periferia sendo eu também uma de suas moradoras. Em um primeiro momento, acreditava que assim inauguraria uma complexidade simétrica, posto que a vivência comum ensejaria elaborações mais “reais”. Entretanto, certas experiências mudaram algumas das minhas mais arraigadas convicções. Desta feita, é preciso admitir que me reconhecer enquanto periférica foi também movido pelo receio de ser acusada de “roubar” ou “deturpar” as histórias dos ocupantes; como fazem aqueles “interesseiros” e “aproveitadores” que ganham prestígio e notoriedade retratando as mazelas dos “pobres” e “miseráveis”. No equacionamento dessa “injustiça” ou “desigualdade”, quis ser aquela que restituiria a voz dos fracos-eoprimidos, como se empreendesse certo revolucionamento das relações entre pesquisadores e pesquisados, e nas quais ocuparia ambas posições. Assim, na tentativa de ter a confiança de meus interlocutores, coloquei-me como periférica para justificar as minhas predileções teórico-metodológicas, e colateralmente como uma forma de ser considerada pura, idônea, escrupulosa e comprometida; alguém mais cautelosa em evitar qualquer situação que os prejudicassem, uma vez que “estamos do mesmo lado”89.
Howard Becker, em de “De que lado Estamos?”, capítulo 7 de “A Teoria da Ação Coletiva” (1977) sentencia que é impossível realizar uma pesquisa neutra e imparcial, e para tanto é melhor, sobretudo metodologicamente, assumirmos de qual lado iremos ficar. Nos estudos sobre o desvio em internatos, reformatórios penitenciárias e hospitais psiquiátricos, Becker observa uma “hierarquia de credibilidade” entre os desviantes e os funcionários e administradores das ditas instituições, no quais os primeiros ocupam as posições mais baixas e os últimos, as mais altas. E não é nada incomum, para não dizer corriqueiro, cientistas sociais desenvolverem simpatias e inclinações pessoais pelos “desviantes” (bias), e consequentemente serem acusados por seus pares de prejudicaram os resultados da pesquisa. Decerto, o viés é algo que não pode deixar de ser discutido na comunidade acadêmica, mas é um tanto curioso, segundo Becker, observar que é mais fácil acusar de viés as pesquisas baseadas em falas e reclamações de “desviantes” do que aquelas que retratam favoravelmente as perspectivas 89
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A despeito das novas considerações, o “estamos do mesmo lado” foi uma das muitas convicções que sustentaram esta dissertação. Se antes a percebia como um contrato consensual e apaziguador, hoje a tenho como algo instável e conflituoso. Isso porque, as relações com os interlocutores mudam, tendo as que se fortalecem e as que se rompem. Por mais que eu vislumbrasse uma identidade, ou um conjunto delas, com os ocupantes não posso garantir que os mesmos almejassem tê-la em minha pessoa. Ademais, mesmo a categoria “periférica” sendo imprescindível nesta empresa de produção de conhecimento e autoconhecimento, não posso tratá-la como evidente mesmo entre aqueles com quem compartilho língua e cultura. A maior parte dos meus interlocutores, por exemplo, não a usam no dia a dia, e quando a uso faço em uma tentativa de “englobamento”, ou seja, no estabelecimento de analogias e homologias, que pode ser bem-sucedida ou fracassada. As relações estabelecidas fizeram-se, portanto, de proximidades em graus e variações, através dos quais compreendo as frustações, incompletudes ou desentendimentos como partes intrínsecas de uma pesquisa acadêmica, bem como da relação com outros seres humanos. Em nossa pesquisa evidenciamos dois grupos – Universidade e Movimento Social – que são conscientes do seu lugar do mundo e possuem um conjunto de práticas e discursos de racionalização e transformação do meio social, concebendo a Ocupação Solano Trindade enquanto exemplo vivo da realidade concreta e da realidade idealizada; uma vez que se coloca a constante reconfiguração entre o material e o tangível, o sonhado e o imaginado. Tais grupos assemelham-se na defesa da Reforma Urbana e do Direito à Cidade, mas diferenciam-se em táticas e estratégias; de como deve ser a “luta”. Quando decidi por um trabalho “militante”, o fiz como se com isso quisesse necessariamente dizer que ficaria ao lado do Movimento. Seria uma possibilidade de dar voz aos silenciados e deslegitimados. Contudo, o que seria dar voz? Tornar-me um canal de comunicação, intermediando a relação destas pessoas com o mundo? O equívoco de tal entendimento, de antemão reconhecendo a ausência de representação política e midiática em espaços decisivos, é supor que tais pessoas não possuem uma relação com mundo, e que por sua vez dos “superiores” ou “dominantes”. Uma das explicações para isto é que os mesmos são no geral responsáveis pela reputação das instituições que representam e que portanto podem ser expostos publicamente; gerando uma série de consequências desagradáveis. O que muda de figura quando os “desviantes” formam grupos organizados e relações institucionalizadas e o cientista social é levado a desenvolver um controle maior, pesando sua relação com ambos os grupos e as possíveis represálias e contestações que sua pesquisa porventura poderá sofrer.
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precisam ser representados por mim. Marilyn Strathern (2014), de maneira loquaz, analisa em seu artigo “Os limites da Autoantropologia”, as questões incontornáveis àqueles que pretendem fazer antropologia sobretudo em sua própria sociedade, comunidade ou grupo social: É esse, penso eu, o sentido ocidental em que todas as conversões de valor podem potencialmente ser vistas como de exploração, ou seja, as pessoas têm de adquirir valor de si mesmas à custa dos outros. Presume-se a extração porque se supõe que o que serve de base às conversões de valor é algo que outros agentes realizam sobre o trabalho que as pessoas fazem ou sobre os produtos que incorporam sua agência. A ideia do século XVIII de que as pessoas são por natureza proprietárias tanto delas mesmas como de seu trabalho ainda nos acompanha; essa noção singular de propriedade/autoria também coloca a possibilidade conceitual de um autor suplantar ou deslocar outro. O antropólogo, como acadêmica ocidental, é sensível às acusações que derivam das possibilidades de englobamento e deslocamento desse tipo. Os eventos ou situações são transformados para servir aos próprios fins como se “matérias-primas” fossem extraídas para o uso “social”. Não compartilhar algo com alguém é colocar-se em uma classe distinta no que diz respeito a conversas desse tipo; daí o movimento, na escrita etnográfica, em busca de representar os relatos como produtos de experiência compartilhada de alguma forma. Quem quer que seja o Outro, em casa ou no exterior, é necessário dar-lhe voz (STRATHERN, 2014, p.142).
Em se tratando de uma pesquisa nos quais os grupos estudados são engajados e conscientes de seu lugar no mundo, foi imperioso atentarmo-nos as categorias como voz, autoria, propriedade, responsabilidade, publicidade e compartilhamento, porquanto tal pesquisa fez-se a favor da existência de movimentos sociais em busca da criação ou cumprimento de direitos sociais. Logo, a intenção desta dissertação foi contar uma história – ou estória –, sem contudo cair no falar por, que diametralmente o correspondente a prepotência dos que afirmam não falar por ninguém. Assim, foi na escolha dos referenciais, que encontrei na antropologia a possibilidade de realizar uma pesquisa na qual estudaria com as pessoas. Algo que Tim Ingold (2011) resume de modo esclarecedor: Uma educação em antropologia, portanto, faz mais do que nos prover conhecimento sobre o mundo – sobre pessoas e sociedades. Ela antes educa nossa percepção do mundo e abre os nossos olhos e mentes para outras possibilidades de ser. As questões que abordamos são filosóficas: sobre o que significa ser um ser humano ou uma pessoa, sobre a conduta moral e o equilíbrio entre liberdade e restrição nas relações das pessoas umas com as outras, sobre confiança e responsabilidade, sobre o exercício de poder, sobre as conexões entre linguagem e pensamento, entre as palavras e as coisas, e entre o que as pessoas dizem e o que fazem, sobre a percepção, representação, aprendizagem e memória, vida e morte e a passagem do tempo, e assim por diante. Na verdade a lista é interminável. Mas é o fato que abordamos estas questões do mundo e não da poltrona – de este mundo não ser apenas o que pensamos sobre, mas o que pensamos com, e de em seu pensamento a mente vagar ao longo dos caminhos que se estendem muito além do
234 invólucro da pele – que faz o empreendimento antropológico e, por isso mesmo, difere radicalmente da ciência positivista. Fazemos nossa filosofia do lado de fora. E, nisso, o mundo e seus habitantes, humanos e não humanos, são nossos professores, mentores e interlocutores (INGOLD, 2011, p.344).
Em tempo, mesmo que eu acionasse a categoria “periférica”, o fato de realizar uma dissertação e apresentar-me como cientista social fez como que eu fosse reconhecida como alguém da Universidade, e mesmo não fazendo parte da equipe que assessora o Movimento, era tratada como alguém que poderia resolver problemas ou encaminhar ideias, demandas e reclamações dos ocupantes até os centros de decisões, ou seja, até aquelas pessoas capazes de dar-lhes sentidos – um dos motivos pelos quais deduzi que estaria dando-lhes voz. Mas tal relação não é unilateral, uma vez que precisava ser aceita por eles enquanto alguém capaz de fazer tal intermediação. Até porque não é um simples transporte de palavras, visto que esperavam que eu fosse capaz de inteligibilizar suas ideias de modo eloquente. O que me fez perceber que ocupo uma posição complexa, que independentemente de assumir uma postura militante, ser cientista social é já ter engajamento no mundo. Conforme elucida Foucault (2013) acerca do papel do intelectual: Em outras palavras, o intelectual tem um tripla especificidade: a especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês a serviço do capitalismo, intelectual “orgânico” do proletariado); a especificidade de suas condições de vida e trabalho, ligadas à sua condição de intelectual (seu domínio de pesquisa, seu lugar no laboratório, as exigências políticas a que se submete ou contra as quais se revolta, na universidade, no hospital etc); finalmente, a especificidade da política de verdade nas sociedades contemporâneas. É então que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou luta no nível geral desse regime de verdade, que tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Ele funciona ou luta no nível geral desse regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha. É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não termos de “ciência/ideologia”, mas em termos de “verdade/poder” (FOUCAULT, 2013, p.53).
A princípio, acreditava que a união das duas posições, militante e pesquisadora, era uma forma de combinar prática com teoria. O que não quer dizer necessariamente que o Movimento Social só tem a prática porque não tem teoria e a
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Universidade só tem teoria porque não tem prática. De acordo com Deleuze (2013), em os Intelectuais e o Poder, em sua conversa com Michel Foucault (2013), Para nós, intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados, seja por um partido ou sindicato que se arrogaria o direito de ser a consciência deles. Quem fala e age? Sempre uma multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age. Nós somos todos pequenos grupos. Não existe representação, só ação: ação da teoria, ação de prática em relação de revezamento ou rede (FOUCAULT, 2013, p.130).
Contudo, segundo Gayatri Charkravorty Spivak (2014), a conversa entre Gilles Deleuze e Michel Foucault, que tem como propósito desfazer “a oposição entre a produção teórica da autoridade e prática conversacional desprevenida” (2014, p.26), é um tanto quanto descuidada. Isso porque, quando afirmam que teoria é prática e pratica é teoria, Foucault e Deleuze (2013), cada qual a sua maneira, negam a existência da ideologia e representação e, portanto a responsabilidade do intelectual na divisão internacional do trabalho e na manutenção do sistema capitalista, sobretudo ambos que são reconhecidamente intelectuais progressistas. Segundo Spivak (2014), Na conversa entre Foucault e Deleuze, parece que a questão e que não há nenhuma representação, nenhum significante (deve-se, assim, presumir que o significante já foi liquidado? Não há, então, nenhuma estrutura de signo acionando a experiência e, por isso, dever-se deixar a semiótica de lado?); a teoria e um revezamento da prática (deixando, assim, os problemas da pratica de lado), e os oprimidos podem saber e falar por si pelo menos dois níveis: o Sujeito de desejo e poder como um pressuposto metodológico irredutível; e sujeito do oprimido, próximo de, senão idêntico, a si mesmo. Além disso, os intelectuais, os quais não são nenhum desses S/sujeitos, tornam-se transparentes nessa “corrida de revezamento” pois eles simplesmente fazem uma declaração sobre o sujeito não representado e analisam (sem analisar) o funcionamento (do Sujeito inominado irredutivelmente pressuposto pelo) poder e do desejo. A “transparência” produzida marca o lugar de “interesse”, e é mantida pela negação veemente: “Agora esse papel de árbitro, juiz e testemunha universal e algo que eu absolutamente me recuso adotar”. Uma responsabilidade do crítico poderia ser ler e escrever de maneira que a impossibilidade de tais recusas individualistas e interessadas dos privilégios institucionais do poder concedidos ao sujeito a sério. A recusa do sistema de signo impede o desenvolvimento de uma teoria da ideologia. Aqui também de percebe o tom peculiar da negação (SPIVAK, 2014, pp.55-57).
De todo modo, Foucault e Deleuze foram fundamentais para que eu entendesse teoria e prática enquanto ações e, portanto, maneiras de estar no mundo. Contudo, foi em Spivak que encontrei satisfatoriamente a explicação de que ao tentar ser “pura, idônea, escrupulosa e imaculada” aproximava-me daquilo que queria me
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distanciar: da pretensão de um conhecimento inocuamente comprometido. Isso porque, assumir um lado, não garante o desenvolvimento de uma pesquisa a contento dos que estão no mesmo lado que o meu. O lado que estou depende não somente de minhas posições, mas do que também fazem opiniões e impressões de terceiros. Há que se considerar que o lado que escolhemos é vivo de conflitos, inquietações e deslocamentos, e que dicotomias como certo/errado, bom/mau, verdadeiro/falso existem de modo ineficaz e impreciso sobretudo se quisermos de modo obstinado estar sempre do lado que julgamos, às vezes inadvertidamente, enquanto certo. A minha morada na Ocupação durou em torno de 6 meses, de setembro de 2016 a fevereiro de 2017. Foi neste período que realizei as entrevistas e tornei-me mais íntima dos moradores. Como já explicitamos, a vida lá teve os seus desafios, dos menos aos mais triviais. Um deles, por exemplo, foi adaptar-me aos horários das refeições e acordar às 8 horas da manhã. Não que eu fosse necessariamente obrigada, mas percebi que o “acordar de cedo” era uma forma de ser considerada útil, disposta, trabalhadeira e até mesmo honesta. Assim, mais um dos muitos valores morais que deveriam ser somados aos ideais da luta. Das categorias utilizadas pelo Movimento e pela Universidade, pedagogia foi aquela que primeiro se evidenciou em meio às problematizações do espoco teórico. Contudo, observamos que nem Movimento ou Assessoria possuem uma pedagogia enquanto teoria formalizada. Sendo no mais o ato de transmitir valores e produzir entendimentos mútuos junto às famílias através de um conjunto de ensinamentos e aprendizados básicos – ensinamentos e aprendizados em separado porque um é o projeto de conscientização do Movimento e da Assessoria, e outro é a incorporação das ideias frente aos saberes já adquiridos somados as condições de vida das famílias inscritas no projeto. O que também observamos entre a Universidade e o Movimento são as disputas pelos sentidos pedagógicos do projeto. A presença da Assessoria Técnica é considerada fundamental para o desenvolvimento do projeto, mas, segundo os coordenadores do MNLM quem “dá a linha” é o Movimento. Ou seja, o MNLM deve visto pelas famílias como a principal referência da luta, e a Assessoria Técnica como uma parceria, que mesmo consolidada, dever ser encarada como circunstancial. Observamos que a vida na Ocupação possui uma dinâmica própria do morare-resistir, que exige a adequação ao código de conduta e práticas concernentes a coletivização da vida. Os coordenadores do Movimento antecipam que a não
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adequação ou cumprimento dos valores do MNLM é algo de certo modo esperado, e por isso acreditam que a rotatividade entre as famílias é algo natural em um projeto de luta por moradia. Em primeiro momento, tínhamos como certo que o processo de formação político-pedagógico transformaria necessariamente os moradores da Ocupação em militantes; o que não se confirmou. Isso porque existe entre os moradores uma série de níveis de engajamento, passando por momentos de maior ou menor envolvimento. Por isso, uma das principais atribuições dos coordenadores do Movimento e da Assessoria é a manutenção da crença dos ocupantes e inscritos no projeto. De todo modo, a vida na Ocupação, aquela que antecede a realização do projeto, funda uma espécie de sociedade especial, uma vez que configura-se enquanto um “rito de passagem” ou “liminaridade” entre a moradia idealizada para a moradia realizada. Assim, sob a insígnia da devoção militante, a vida na Ocupação formaliza, sacramenta e cerimonializa os momentos da vida em etapas de evolução e superação, fundando uma série de temporalidades – em consonância ou a despeito do tempo cronológico. Segundo Van Gennep (2011), os ritos de passagem, de maneira geral, permite-nos observar: (...) o indivíduo classificado em diversos compartimentos, sincrônica e sucessivamente, e, para passar de um ao outro a fim de poder reunir-se com indivíduos classificados em outros compartimentos, obrigado a submeter-se, do dia do nascimento ao da morte, a cerimônias frequentemente diversas em formas, mas semelhantes pelo mecanismo. Ora o indivíduo estava só diante de todos os grupos, ora figurava como membro de um determinado grupo separada de todos os outros. As duas grandes divisões primárias tinham ou base sexual, estando os homens de um lado e as mulheres de outro, ou tinham base mágico-religiosa, estando o profano de um lado e o sarado do outro. Estas duas divisões atravessam todas as sociedades de uma extremidade do mundo e da história à outra. Em seguida há grupamentos especiais, que apenas atravessam algumas sociedades gerais, sociedades religiosas, grupos totêmicos, fatrias, castas e classes profissionais. No interior de cada sociedade aparece depois a classe de idade, a família, a unidade política-administrativa e geográfica restrita (província, comuna). Ao lado deste mundo complexo dos vivos existe o mundo anterior à vida e um outro, posterior à morte. Estas são as constantes, a que se acrescentam os acontecimentos particulares e temporários, a gravidez, doenças, perigos, viagens, etc. Sempre uma mesma finalidade condicionou uma mesma forma de atividade. Para os grupos, assim como para os indivíduos, viver é continuamente desagregar-se e reconstituirse, mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir para, esperar e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente. E sempre há novos limiares a atravessar, limiares do verão ou do inverno, da estação ou do ano, do mês ou da noite, limiar do nascimento, da adolescência ou da idade madura, limiar da velhice, limiar da morte e limiar da outra vida – para os que acreditam nela (VAN GANNEP, 2011, p.160).
Enfim, outro objetivo desta dissertação foi compreender a atuação de um movimento social a luz dos governos petistas, do PMCVM e do PMCMV-Entidades.
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Que a despeito das críticas e descontentamentos por parte dos militantes, foram considerados fundamentais para a consolidação das relações dialógicas como instâncias administrativas e governamentais. Relações estas que se desenvolveram diante de aspectos interpessoais, sobretudo, porque baseada no engajamento que técnicos, secretários e superintendentes possuem com a luta pela Reforma Urbana e o Direito à Cidade; ou mesmo porque em algum momento foram militantes e coordenadores de movimentos sociais, e por isso considerados “companheiros de luta”. E dependendo da proximidade com tais agentes do Estado, as coordenações estaduais e municipais do Movimento – uma vez que o Movimento não é homogêneo e configura táticas locais e regionais 90 – compõem um conjunto de estratégias na defesa de direitos sociais; fazendo e desfazendo alianças e compromissos diante das circunstâncias políticas. Ora aproximando-se do governo Lula para compor um campo político esquerdista e progressista, ora distanciando-se quando se percebiam em um processo de “cooptação”. Os objetivos da pesquisa não se esgotaram nesta dissertação, compondo uma série de desdobramentos e problematizações paralelas e transversais. Assim, para uma pesquisa futura, em um possível doutoramento, delineamos algumas questões: 1. Acompanhar a construção da Fábrica Experimental de Cidades, das 10 casas iniciais e do Campus Experimental da UFRJ; 2. Analisar a proposta político-pedagogia dos cursos de Pré-Vestibular Comunitário e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que serão coordenados pelo NIDES; 3. Realizar a tabulação dos dados socioeconômicos das famílias inscritas no projeto, para que possamos compreender vetores: (i) étnico-raciais, (ii)
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Segundo Latour (2012), a Teoria do Ator-Rede entende um grupo como um processo, no qual os atores fazem parte de diferentes grupos e envolvem-se nos mais variados de recrutamentos; instrumentalizando um repertório de práticas e discursos diante das circunstâncias apresentadas. O Movimento cria uma séria de alianças, compromissos, recompensas e distribuições nos mais variados níveis – local, comunitária, regional e nacional – e estabelecendo conexões interpessoais que estão para além da delimitação de grupos, comunidades e associações. Assim auferimos que a atuação política do Movimento não se limita as instituições especializadas, uma vez que estende-se àquelas que operam simultaneamente enquanto entidades políticas, administrativas, jurídicas, culturais e/religiosas; ou seja, que apresentam uma multifuncionalidade .
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religiosos, (iii) gênero e sexualidade, (iv) escolaridade e profissionalização; (v) renda monetária, (vi) situação ocupacional, (vii) deficiência mental e física, (viii) vulnerabilidade etária (criança ou idoso), (ix) densidade habitacional e condições de habitabilidade. 4. Analisar as expectativas dos coordenadores do Movimento e Assessoria Técnica no possível enquadramento do MNLM em algum processo seletivo do MCidades para o PMCMV-Entidades; 5. Delinear o perfil dos articuladores do Movimento em projetos de moradia autogestionária em outros estados como: Amazonas, Pará, Paraíba, Ceará, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A partir de critérios como: inovação, criatividade e modernização. 6. Analisar as tensões entre o sentido ideal (princípios) e o sentido pragmático (atuação e articulação política) do Movimento; dado que o MLNM, segundo alguns coordenadores, tem perdido a sua autonomia, e por isso precisa retomar o seu cunho popular – ao mesmo tempo em que precisa ter idoneidade, responsabilidade e compromentimento com os contratos de financiamento firmados com a Caixa. 7. Comparar as experiências do MNLM como o Programa Crédito Solidário, as Resoluções 460 e 560 e o PMCMV-Entidades, em busca daquelas que mais coadunam com os valores e princípios do Movimento.
Concluímos que a delimitação física e geográfica não significou a separação ou isolamento da Ocupação em relações aos inúmeros aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais de Duque de Caxias, da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e do Brasil. Até mesmo porque foi o estudo do PMCMV-Entidades aquilo que evidenciou a Ocupação Solano Trindade enquanto uma realidade complexa e interrelacionada. Apesar do PMCMV Entidades representar somente “1,5% dos contratos, 1,3% dos recursos e menos de 1,2% das unidades habitacionais” contratadas pelo PMCVM em todas as faixas (CAMARGO, 2016, p.277) – algo irrisório em termos de equacionamento do déficit habitacional – o estudo da Ocupação Solano Trindade revelou-se essencial na compreensão da lógica das políticas públicas e da agenda
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dos defensores da Reforma Urbana e do Direito à Cidade seja nas instâncias oficiais ou no dia a dia da realização de um projeto de moradia autogestionária no qual técnicos, professores e estudantes universitários, militantes, coordenadores e as famílias inscritas no projeto compõem relações de confiança e legitimidade. De mais a mais, a continuidade desta investigação far-se-á de modo que possamos compreender como os movimentos sociais produzem suas crenças e práticas – agendas, objetivos, princípios, diretrizes, fundamentos, estratégias – em prol de transformações sociais, culturais, políticas e econômicas. E de que forma sedimentam ideais, uma vez que direito, justiça e igualdade devem ser cada mais normatizados para o estabelecimento de uma vida humana digna. Como pudemos observar em nossa pesquisa, para o MNLM e a Assessoria Técnica, a existência humana tem um valor intrínseco: não devem existir vidas mais importantes dos que outras. Por isso as relações de opressão, subjugação e dominação, senão findadas, precisam, no mínimo ser contrabalanceadas com a políticas públicas de distribuição e redistribuição de renda, de melhoramentos urbanos e de saúde e educação. Isso porque MNLM e Assessoria Técnica são agentes históricos que obstinam a antecipação ou a materialização de imaginários, estes nos quais a sociedade proporcionará bem-estar, segurança, felicidade e dignidade para a maior parte de suas integrantes.
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APENDICE Roteiro semiestrutura das entrevistas: 1. Qual seu nome? 2. Quantos anos tem?
254
3. Qual é o seu estado civil? 4. Tem filhos? 5. Como conheceu o Movimento? 6. Desde quando mora na Ocupação? 7. Onde morou antes? 8. O que tem achado de morar aqui? Tem coisas boas e ruins? Se sim, quais? 9. O que amigos e familiares acham de você morar em uma ocupação? 10. O que acha da Assessoria Técnica e do pessoal da universidade?
ANEXO I MAPA DA DESIGUALDADE/CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – MOBILIDADE URBANA
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ANEXO II MAPA DA DESIGUALDADE/CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – POBREZA E RENDA
ANEXO III MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – SEGURANÇA PÚBLICA E CIDADÃ
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ANEXO IV MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – SEGURANÇA PÚBLICA E CIDADÃ (2)
ANEXO V MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – EDUCAÇÃO
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ANEXO VI MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – SANEAMENTO BÁSICO
ANEXO VII MAPA DA DESIGUALDADE CASA FLUMINENSE 2017 – BAIXADA FLUMINENSE – SANEAMENTO BÁSICO (2)
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ANEXO VIII FAC-SÍMILE DO FOLHETO DO ASSESSORIA TÉCNICA SOBRE O PROJETO DE REUSO DE ÁGUA
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ANEXO IX FAC-SÍMILE DO FOLHETO DO MNLM
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ANEXO X FAC-SÍMILE DO FOLHETO DA PARODIA DA MUSICA “ASA BRANCA” APRESENTADA EM FESTA JULINA DE 2018
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265 ANEXO XI FAC-SÍMILE DAS EDIÇÕES 1, 2, 3 DA BAIXADA PRA CIMA
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Report "MORAR-E-RESISTIR: Os Percursos e Percalços da Luta por Moradia na Ocupação Solano Trindade (MNLM-RJ-DC"