MOEMA_O Desafio Do Escombro - A Literatura Guineense

March 20, 2018 | Author: Jesiel Oliveira | Category: Politics (General), Philosophical Science, Science, Science (General)


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MOEMA PARENTE AUGELO DESAFIO DO ESCOMBRO A LITERATURA GUINEENSE E A NARRAÇÃO DA NAÇÃO Rio de Janeiro 2005 AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: a literatura guineense e a narração da nação. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras-UFRJ, 2005. 387 p. (Tese de Doutorado em Literatura Portuguesa, na especialidade das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa). Orientadora: Profª Drª. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. 1.Literatura guineense – análise. 2. Literatura africana. I. Secco, Carmen Lucia Tindó Ribeiro (orientadora) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras III. Título O DESAFIO DO ESCOMBRO A LITERATURA GUINEENSE E A NARRAÇÃO DA NAÇÃO MOEMA PARENTE AUGEL Tese de Doutorado em Literatura Portuguesa (na especialidade das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa), apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutora em Letras Vernáculas. Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco Rio de Janeiro 2005 DEFESA DE TESE AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro. A literatura guineense e a narração da nação. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras-UFRJ, 2005. (Tese de Doutorado em Literatura Portuguesa, na especialidade das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa). BANCA EXAMINADORA Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (Orientadora) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Professor Doutor Benjamin Abdala Júnior Universidade de São Paulo (USP) Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Professora Doutora Laura Cavalcante Padilha Universidade Federal Fluminense (UFF) Professora Doutora Maria Nazareth Soares Fonseca Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Tese defendida em 15/12/2005 Para Johannes que sabe o que a letra não alcança. AGRADECIMENTOS Si festa na sabi, parmanha ki ta sibidu – diz a sabedoria popular guineense. As premissas, os preparativos de uma festa já deixam transparecer a satisfação e o enlevo que envolverão o momento festivo, já lhe antecipam o prazer e a fruição. Ou ainda, lembrando um outro velho ditu guineense: sabura de bianda e ka na kabas, ampus i na fugon! O melhor não é quando a comida já está servida ou a mesa está posta e começa a refeição, mas sim antes, já na cozinha. Portanto, a melhor parte não é a iguaria pronta, mas a azáfama que antecede o seu fazer e o gosto em prepará-la. Chego ao fim de minha empreitada, apresentando meu “prato feito”, esse desafio lançado sobretudo a mim mesma, olhando com alegria para o tempo que antecedeu este momento de agora, tempo de crescimento, maturação e verticalidades. Sei muito bem que sozinha não me teria sido possível desbravar o denso emaranhado textual que constitui o corpus deste Desafio do escombro, nem alcançar a meta final. Foi um caminho longo, mas infinitamente prazeroso, com muitas curvas e muitos desvios, algumas paradas de pouso, alguns tropeços e errâncias. Um caminho de gratos encontros e decisivas descobertas. Contei, entretanto, todo o tempo, com muitos amparos, com muitas luzes que clarearam meu não-saber e minha procura de direção. Agradeço a Odete Semedo pelas inumeráveis explicações que generosamente me forneceu, não apenas sobre sua própria obra, mas também para a tradução de textos, para a decodificação de muitos símbolos e para a contextualização do ambiente cultural em que muitos significantes foram empregados pelos autores. A ela, meu grande afeto e minha admiração que não cessam de crescer. Agradeço naturalmente e com muito gosto aos próprios autores, sem os quais não me teria atrevido a essa grande viagem, incursionando pelos suas obras. Sobretudo a Abdulai Sila, a Tony Tcheka, a Huco Monteiro, a Respício Nuno, meu muito obrigada, minha admiração sempre renovada. Agradeço-lhes, sobretudo, o prazer e as lições que me proporcionaram com seus textos. Meu reconhecimento a Teresa Montenegro, referência indispensável para qualquer estudioso da oratura guineense. Profunda conhecedora das diversas culturas do país, socorreume em minhas muitas dúvidas e pude sempre contar com sua disponibilidade. Sou particularmente devedora ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, o INEP, onde, de 1993 a 1998, ergui em Bissau as bases de meu trabalho, nessa instituição que, sendo dedicada à pesquisa social e política, recebeu-me generosamente, com abertura de visão, com amizade e com confiança. Desejo expressar minha gratidão muito especial à Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Secco, persistente pioneira dos estudos africanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora incansável e em cujos densos e originais ensaios ecoa em surdina uma voz poética. A ela, que tanto me encorajou com sua confiança em meu trabalho, meu muito obrigada por me ter acolhido entre suas doutorandas na UFRJ, atendendo com presteza e paciência e muita participação as minhas muitas perguntas e receios. Da mesma forma, minha gratidão à Professora Doutora Laura Cavalcante Padilha que foi a primeira grande mestra da Africanidade que conheci no Brasil e cuja autoridade ultrapassa de muito nossas fronteiras. Seus ensaios, sua leitura atenta e sensível das literaturas dos países africanos de expressão portuguesa muito me inspiraram e ajudaram a pensar. A ambas africanistas, a expressão do meu grande respeito e admiração pelo laborioso empenho com que estão formando uma nova geração de estudiosos sérios e interessados em nosso continente irmão. Sem o incentivo de minhas irmãs Helena e Zilma, não teria chegado até aqui. Veio de Helena a idéia e foram as duas que acabaram convencendo-me a transformar numa elaboração de maior fôlego meu envolvimento emocional com a Guiné-Bissau e minhas vivências da cultura guineense. Zilma tomou a si a responsabilidade de todas as formalidades necessárias à preparação de meu currículo e de minha candidatura, sempre me animando a continuar. Helena amparoume em minhas hesitações, trocou comigo frutuosas idéias por via telefônica e cibernética, nutriu-me com literatura específica e acompanhou, com olho clínico, a elaboração de cada capítulo. Meu agradecimento para Zilma e para Helena, e também meu grande carinho. Não posso deixar de envolver em minha emoção de fim de viagem meus dois irmãos Abel e Juracy, meu filho Claus com Geórgia, minha filha Christina, meus netos Fernanda, Julianna e Raphael e lhes expressar minha ternura, na certeza de que compartilham comigo da satisfação de termos alcançado esta meta. Com Johannes, meu marido, que leu e releu com rigor e perspicácia todo meu texto, discuti cada lance desta elaboração. Seus exigentes questionamentos e ponderações, nosso constante diálogo me ajudaram a aprofundar e a amadurecer minha própria reflexão. Não teria conseguido realizar esta empreitada sem a completa abnegação de Johannes, companheiro presente em todos os momentos e em todos os sentidos, desafogando-me da lide doméstica, aceitando com paciência minha vida anti-social da última e longa fase desta elaboração, encorajando-me e apoiando-me totalmente neste percurso que já se fez longo. Este trabalho, como todos os que tenho feito, não me pertence. É da Guiné-Bissau, terra sabi, e dos filhos do seu chão, sobretudo dos meninos de amanhã, para os quais Cabral lutou, sonhando com um futuro de liberdade, de justiça e de bonança. Tais dias que fantasmagoricamente assombram nosso tempo e nossas pátrias confrontam nosso senso de progresso com o desafio do escombro. [...] Nem construção, nem desconstrução, o escombro é a criação de uma forma cuja ausência virtual levanta a questão do que quer dizer começar de novo, no mesmo lugar, como se fosse noutro lugar, sítio adjacente ao desastre histórico ou trauma pessoal. O resto da ruína que acaso sobrevive carrega a memória das torres caídas. [...] Não temos opções, exceto a de nos interessarmos por construir edifícios; ao mesmo tempo, não temos alternativa, senão situar, em visão panorâmica a partir de nossos edifícios, a visão do Escombro – a fundação de possíveis edifícios, outras fundações, outras palavras outras. Homi K. Bhabha*. * BHABHA, Homi K. “Democracia des-realizada”. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. n° 148, jan.-mar. de 2002, p. 78-79. Os destaques são do autor. RESUMO AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: a literatura guineense e a narração da nação. Orientadora: Profª. Drª. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras-UFRJ, 2005. 387 f. (Tese de Doutorado em Literatura Portuguesa, na especialidade das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa). A busca identitária na África como nas Américas, se quiser escapar da autocolonização, terá forçosamente que encontrar definições face ao violento processo de anulação das diferenças e das especificidades culturais vivenciadas pelos novos estados. Os autores guineenses, com seus textos descolonizados, a partir tanto da recuperação da memória ancestral pelo jogo intertextual com as tradições, quanto pela desconstrução e reterritorialização da herança colonial prolongada pelo neocolonialismo e pelo autocolonialismo, representam uma resposta e uma reação, no nível da fabulação e da apropriação simbólica, à dependência dos parâmetros ocidentais e hegemônicos. A literatura guineense oferece fecundos elementos para uma reflexão sobre a identidade nacional e acerca de como o discurso estético-literário nos contempla com construções de significados de nacionalidade que substituem, ou podem pelo menos substituir, a falência (e a falácia) do discurso ufanista, autocelebrante do poder autoritário, ainda ancorado nas glórias das lutas libertárias. A força da dicção de Abdulai Sila em Mistida, o brado de Odete Semedo em No fundo do canto, o acerto de contas de Filinto de Barros em Kikia Matcho, as crônicas divertidas e irônicas de Carlos Lopes, assim como os poemas de Huco Monteiro, Respício Nuno, Félix Sigá ou Tony Tcheka entre outros, marcam a conjuntura literária da Guiné-Bissau dos anos 90 em diante e mudam os contornos da figuração da identidade nacional, neste momento em que as promessas já nada dizem nem nada representam. ABSTRACT In Africa and Latin America the search for own identity will have to find solutions in view of the increasing destruction of their characteristic cultural features, avoiding autocolonization. The Guinean authors expose in their decolonized texts the memory of their ancestors, they deconstruct and reterritorialize their colonial heritage which was continued by neocolonialism and autocolonization. They give an answer to the dependance from western colonial supremacy on the level of linguistic creation and symbolic appropriation. The Guinean literature offers fruitful points of departure for the reflexion of national identity. The aesthetic-literary discours provides meaning in the semantic field, which discloses or even replaces the failure of illusions of national discourse which up to now was founded on the selfproduction of authoritative power and which was limited to the transfiguration of the national fight for independence. The powerfull expression of Abdulai Sila in Mistida, the outcry of Odete Semedo in No fundo do canto, the reckoning with demagogic discourses by Filinto de Barros in Kikia Matcho, the ironic and humorous chronicles by Carlos Lopes and the poems by Huco Monteiro, Respício Nuno, Félix Sigá, Tony Tcheka and others are milestones of the literary rivival in Guinea-Bissau since the 90s and outline the contures of a new national identity at a time when political discourse and promises do not mean much. RÉSUMÉ La recherche identitaire en Afrique, comme dans les Amériques, si elle veut échapper à l'autocolonisation, devra forcément trouver des définitions face au violent processus d'annulation des différences et des spécificités culturelles vécues par les nouveaux états. Les auteurs guinéens, avec leurs textes décolonisés, à partir aussi bien de la récupération de la mémoire ancestrale par le jeu intertextuel avec les traditions qu'à partir de la déconstruction et de la reterritorialisation de l'héritage colonial prolongé par le néocolonialisme et par l'autocolonialisme, représentent une réponse et une réaction, au niveau de l’effabulation et de l'appropriation symbolique, à la dépendance des paramètres occidentaux et hégémoniques. La littérature guinéenne offre des éléments féconds pour une réflexion sur l'identité nationale et sur la manière qu'a le discours esthétique et littéraire de contempler les lecteurs avec des constructions de signifiés de nationalité qui remplacent, ou au moins peuvent remplacer, l'échec et la tromperie du discours chauvin qui est un pouvoir autoritaire qui se loue, discours encore ancré dans les gloires des luttes libertaires. L'intensité de la diction d'Abdulai Sila dans "Mistida", le cri d'Odete Semedo dans "No fundo do canto", le règlement de compte de Filinto de Barros dans "Kikia Matcho", les amusantes histoires de Carlos Lopes, ainsi que les poèmes de Respício Nuno, Félix Sigá ou Tony Tcheka, entre autres, marquent la conjoncture littéraire de la Guinée-Bissau des années quatre-vingt-dix et suivantes et changent les contours de la figuration de l'identité nationale, alors que les promesses ne disent plus rien et ne représentent plus rien. ZUSAMMENFASSUNG In Afrika wie in Lateinamerika wird die Suche nach eigener Identität – will sie die Selbstkolonisierung vermeiden – notwendigerweise Lösungen finden müssen angesichts der zunehmenden Vernichtung ihrer kulturellen Merkmale, die diese Länder erleiden. In ihren entkolonisierten Texten legen die guineischen Autoren das Gedächtnis der Ahnen frei; sie dekonstruieren und reterritorialisieren ihr koloniales Erbe, das von Neokolonialismus und Autokolonisierung fortgeführt wurde; sie geben eine Antwort auf die Abhängigkeit von westlichen hegemonialen Parametern auf der Ebene sprachlicher Schöpfung und symbolischer Aneignung. Die guineische Literatur bietet fruchtbare Ansatzpunkte für die Reflexion nationaler Identität. Der ästhetisch-literarische Diskurs stellt Bedeutungskonstrukte bereit, die das Scheitern und die Illusionen des nationalistischen Diskurses offen legen oder gar ersetzen können, der bisher auf der Selbstinszenierung autoritärer Macht gründete und sich in der Verklärung des nationalen Befreiungskampfs erschöpfte. Die Sprachgewalt von Abdulai Sila in Mistida, der Aufschrei von Odete Semedo in No fundo do canto, die Abrechnung mit den demagogischen Diskursen durch Filinto de Barros in Kikia Matcho, die ironischen und lustigen Geschichten von Carlos Lopes und die Gedichte von Huco Monteiro, Respício Nuno, Félix Sigá, Tony Tcheka und anderen sind Marksteine der literarischen Konjunktur seit den 90er Jahren in Guinea-Bissau und entwerfen die Umrisse einer neuen nationalen Identität zu einem Zeitpunkt, zu dem politische Diskurse und Versprechungen nichts mehr besagen und nichts mehr bedeuten. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO: OS CAMINHOS DA MOTIVAÇÃO, DA METODOLOGIA E DA ELABORAÇÃO 1.1 Metodologia 1.2 Elaboração O CONTEXTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO 2.1 O meio ambiente 2.2 Panorama histórico 2.2.1 A época antes da colonização 2.2.2 Primeiros contactos com os portugueses 2.2.3 A colonização 2.2.4 A luta armada 2.2.5 O período pós-independência 2.2.6 Antecedentes do conflito armado de 1998/99 2.2.7 Onze meses de guerra e luto 2.2.8 Período pós-guerra 2.3 Situação social do País 2.4 Os grupos étnicos 2.5 A questão lingüística 2.5.1 A língua guineense 2.5.2 O guineense nas manifestações escritas 2.6 As religiões A LITERATURA GUINEENSE: PRODUÇÃO E RECEPÇÃO 3.1 Guineenses sobre a literatura guineense 3.2 A literatura guineense em Portugal 3.3 A literatura guineense no Brasil 3.4 A literatura da Guiné-Bissau nos países não lusófonos 3.5 A Guiné-Bissau e sua literatura nos países africanos PÓS-COLONIALISMO, NEOCOLONIALISMO, ANTICOLONIALISMO 4.1 Inocência versus força bruta 4.2 A máquina de fazer o outro 4.3 Os espaços do pós-colonial 4.4 O neocolonialismo e a “lógica imperial” 4.5 A reação anticolonialista 4.6 A língua portuguesa – espaço de transgressão 4.7 Guiné-Bissau: descolonização ... e agora? LITERATURA COMO APROPRIAÇÃO SIMBÓLICA 5.1 O processo de entendimento interétnico 5.2 A apropriação simbólica 5.3 O desenraizamento na diáspora 5.4 O estranhamento 5.5 O espaço vital 5.6 A construção social de etnia 5.7 O “nós” e os “fora de nós” 5.8 Motivos do “desassossego da Guiné” 5.9 Os poilões vão sangrar de desgosto 5.10 A ermondadi em perigo 5.11 A baraka reterritorializada 15 25 35 45 45 46 46 47 51 56 58 61 63 65 67 71 73 77 80 86 91 92 96 101 104 111 115 117 122 128 133 148 153 160 165 166 168 170 175 180 184 187 197 204 207 211 2 3 4 5 6 LITERATURA E IDENTIDADE CULTURAL 6.1 O ser nacional 6.2 Desterrados de si mesmos: a identidade individual 6.2.1 Oscilações e incertezas. O “olhar para dentro” de Odete Semedo 6.2.2 Félix Sigá, “foz de mil cascatas furiosas” 6.3 Comunidade de destino: a identidade compartilhada 6.3.1 Pascoal D’Artagnan Aurigemma, “poeta soldado”, “poeta proibido” 6.3.2 Tony Tcheka e o seu insone “olhar para fora” LITERATURA E A NARRAÇÃO DA NAÇÃO 7.1 Desejo de ser nação 7.1.1 Poesia de africanidade 7.1.2 A comunidade imaginada 7.1.3 O não apagar da memória 7.1.4 A construção de significados 7.1.5 Ver com “os olhos da mente” 7.1.6 “Unidade e luta” 7.2 O discurso literário dos anos noventa 7.2.1 Revelando os arquivos do silêncio 7.2.2 Um pequeno exercício de ficção: Kikia Matcho 7.2.3 A visão dos vencidos 7.2.4 Fundação da nacionalidade 7.3 A metonímia da nação: Abdulai Sila e sua Trilogia 7.3.1 As três faces de Ndani 7.3.2 A terra para onde “a gente pode regressar” 7.3.3 O tratamento do inverso: mistidas a safar 7.3.4 Das frases, cartucheiras, e das palavras, balas 7.4 Tcholonadur Odete Semedo 7.4.1 “No fundo... no fundo...” 7.4.2 O espaço da dor e do escárnio 7.4.3 O “Consílio dos Irans” 7.4.4 Os “embrulhos” 7.4.5 Retraçando territorialidades CONCLUSÕES: O DESAFIO DO ESCOMBRO REFERÊNCIAS 9.1 Obras literárias de autores guineenses 9.2 Outras referências 9.3 Sites consultados APÊNDICES Apêndice A –Guiné- Bissau - Dados gerais Apêndice B - Cronologia histórica Apêndice C - Indicadores econômicos Apêndice D - Indicadores sociais Apêndice E - Dados culturais ANEXOS Anexo A – Hino Nacional da Guiné-Bissau Anexo B - Mapa da Guiné-Bissau 215 215 219 220 222 227 228 234 243 244 246 248 251 255 259 264 268 269 271 273 279 281 283 287 292 302 303 307 313 316 322 331 333 351 351 352 369 371 373 375 378 379 380 383 385 387 7 8 9 1 INTRODUÇÃO OS CAMINHOS ELABORAÇÃO DA MOTIVAÇÃO, DA METODOLOGIA, DA O crítico é aquele que reconstrói sua vida no interior dos textos que lê. A crítica é uma forma pós-freudiana de autobiografia. Uma autobiografia ideológica, teórica, política, cultural. E digo autobiografia porque toda crítica se escreve a partir de um lugar preciso e de uma posição concreta. Ricardo Piglia. O laboratório do escritor O intérprete perdeu hoje a segurança no julgamento, segurança que era apanágio de gerações anteriores. [...] Sabe ele que o seu trabalho – dentro das circunstâncias atuais – [...] é o de saber colocar as idéias no devido lugar. [...] O intérprete é, em suma, o intermediário entre o texto e o leitor, fazendo ainda deste o seu próprio leitor. Procura formalizar e discutir, para o curioso, os problemas apresentados pela obra, deixando com que esta se enriqueça de uma camada de significação suplementar e que aquele encontre trampolins menos intuitivos para o salto de leitura. Silviano Santiago. Uma literatura nos trópicos A motivação em escrever uma tese de doutorado sobre a literatura guineense tem razões não apenas de cunho científico. Fui viver na Guiné-Bissau em 1992 e, depois de algumas interrupções, de lá saí em 1998. Conhecia, ao chegar, apenas umas poucas obras de autores estrangeiros sobre o país, da época colonial e pós-colonial e, apesar de ter encontrado somente algumas coletâneas de poemas, levei em minha bagagem a convicção de que não há povo sem literatura e o firme propósito de descobri-la. Venho apresentando, desde então, alguns resultados dessa minha procura1. Depois de ter elaborado uma história da literatura da Guiné-Bissau (AUGEL, 1998a), o passo seguinte é o que estou a dar no momento: o da leitura e do entendimento mais profundo da literatura guineense e de seu papel na sociedade local. As diferentes nações atribuem diferentes pesos à questão identitária. Para o pensador inglês Derek Parfit, “nossa identidade não é o que importa”, enquanto que o peruano Anibal Quijano considera que “a mais pungente questão que circula entre os intelectuais latinoamericanos é a da identidade” (SODRÉ, 1999, p. 28). No Brasil, ela impregna o pensamento das 1 Cf. a bibliografia final. 16 elites intelectuais já desde antes da nossa independência e o mesmo se pode afirmar dos países latino-americanos em geral. Para mim, como brasileira e latino-americana, é-me familiar o debate sobre a essência do ser brasileiro, a “brasilidade”, definida no Novo Aurélio como ”propriedade distintiva do brasileiro e do Brasil” (FERREIRA, 1999, p. 330). Oscilando entre o ufanismo do “não verás país nenhum como este” (Olavo Bilac) e a estigmatização do “país dos coitadinhos” (Emil Farhat), ou do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, muitos pensadores brasileiros têm palmilhado diferentes caminhos interpretativos, procurando captar o “caráter nacional”, visto mesmo, para muitos, como uma ideologia2. A recente publicação de Roberto DaMATTA, O que é o Brasil (2004), uma nova versão de O que faz o brasil, Brasil? (a segunda edição é de 1986), onde o autor diz ter pretendido “sugerir uma certa leitura do Brasil” (DaMATTA, 1986, p. 119), apesar do tom aparentemente despretencioso e da intenção de atingir um público não acadêmico, segue uma tradição de “pensar” o Brasil e a brasilidade, como os trabalhos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Darcy Ribeiro e muitos outros autores que procuram detectar o típico, o singular, a especificidade do nosso país e do “ser” brasileiro. Vivendo na Alemanha há quatro décadas, é-me igualmente familiar a cuidadosa abordagem dos intelectuais alemães da problemática do nacionalismo e de sua dolorosa e constrangedora trajetória. Interessada nos assuntos africanos, tenho acompanhado com preocupação e tristeza as conseqüências, muitas vezes trágicas, do estímulo imprudente de nutrir-se uma identidade nacional ou étnica num ambiente caracterizado pela multiplicidade. Por tudo isso, procurei munir-me de um instrumental diversificado e amplo para orientar meu mapeamento da literatura guineense a partir do enfoque escolhido, que sei não ser o único, mas que considero da maior atualidade: a compreensão das representações culturais e do universo simbólico que fazem a singularidade da literatura guineense. E, a partir daí, acompanhar o percurso dos textos na elaboração de uma narração da nação, buscando as imagens constituintes da nacionalidade através de obras literárias enquanto veículo e enquanto articulação da definição – ou redefinição – da nacionalidade. Não conheço, em relação à Guiné-Bissau, ensaios que tematizem expressamente o questionamento identitário, que especulem sobre a guineidade, que procurem responder ao “quem somos”, numa definição do sentido da identidade coletiva. Ecos desse tipo de reflexão podem ser percebidos como entretons em estudos na área das ciências sociais ou ciências políticas e da história. Mas é sobretudo na literatura que se vão encontrar, clara ou sublinarmente, respostas a esse questionamento. 2 Por exemplo, Dante Moreira Leite escreveu O caráter nacional brasileiro. História de uma ideologia, originariamente sua tese de doutorado, redigida em 1954, tendo conhecido várias edições. 17 Em nossos países descolonizados, a memória coletiva e a identidade nacional estão enredadas no trauma colonial. A ocupação das terras africanas pelos poderes colonialistas desmantelou as estruturas sociais existentes, embaralhou os sistemas de referências, aniquilou as bases culturais do continente africano. O maniqueísmo que regeu as relações assimétricas de séculos de confrontação deixou cicatrizes indeléveis. A opressão gerou a reação anticolonial, as lutas libertárias criaram uma nova espécie humana, teimosa e insistente. A descolonização não passa jamais desapercebida, diz Frantz Fanon, pois ela modifica totalmente o ser humano, transforma vítimas esmagadas em seres de ação, promove os “últimos” a “primeiros” (FANON, 1961, p. 30)3. Para nós, portanto, a contagem do (re)nascimento do mundo e da dignidade começa com a constituição do novo Estado que se libertou pelo esforço de seu povo. É a geração da utopia, como a chamou Pepetela, que se levanta dos escombros de um passado desmembrado e fragmentado, passado que é preciso relembrar e re-agregar para retrabalhar os traumas do presente e suas duradouras seqüelas. Transparece pelo tecido literário guineense a onipresença dessa dolorosa história de opressão interligado às práticas de resistência e à arquitetação do futuro. Buscam-se o sagrado e a tradição ancestral. Os mitos e os símbolos das culturas abafadas ressurgem com uma nova vitalidade e são convocados sem subterfúgios as forças espirituais e os entes protetores. É convincente a solidariedade sentida pelos subalternos, a empatia pelos marginalizados ou socialmente desfavorecidos. É onipresente e polissêmica a repulsa ao status quo vigente, a denúncia contra os abusos do poder. É surpreendente a arrojada alegoria do apodrecimento dos frutos abortados de um sonho. É comovente e encorajadora a teimosia dos que continuam a crer e a lutar contra as marés adversas, os redemoinhos desassossegantes. São todas facetas de um cristal poliédrico, gema rara, com seus lados de brilho, seus lados de sombra, suas arestas acutilantes e suas riscas de intercessão. São linhas e ângulos, são traços e trilhas que adquirem um valor emblemático para a narração da nação e da nacionalidade. São os constituintes do corpus da presente pesquisa. São poucos os autores, menos ainda as autoras, que têm produzido ou publicado obras literárias desde a independência, perfazendo ao todo menos de meia-dúzia de romances e um número só pouco maior de coletâneas de poemas e contos. Trata-se, porém, de uma literatura surpreendentemente vital. Seus escritores assumem, na ainda jovem história desse pequeno país, um papel de vanguarda intelectual, atuando como ponta de lança para o esforço de autodefinição 3 Relembro os versos corrosivos e decididos de Arlindo Barbeitos: “oh monstro enorme / fecha a nossa boca / o nosso ventre falará / abre o nosso ventre / o nosso cu falará / rebenta o nosso cu / os nossos dedos falarão / corta os nossos dedos / os nossos ossos falarão” (BARBEITOS. In: FERREIRA, M., 1977, v. 2, p. 42). 18 do Estado-nação e sua sociedade, desde os tempos de colônia atrasada e semi-abandonada, caminhando para uma nação independente e moderna, dentro do quadro polifacético da diversidade étnica da população. Analisar e procurar entender essa trajetória, a partir da leitura das obras dos escritores guineenses, detectando o papel que assumem na definição ou redefinição da nacionalidade, é um dos propósitos do estudo aqui desenvolvido. As epígrafes que encimam este capítulo apontam para minha maneira de ver e de sentir meu papel de leitora, intérprete, intermediária, aventurando-me a dar o salto nas águas ora serenas, ora turbulentas da literatura guineense. Considero fascinante penetrar na cultura guineense navegando através dos textos, percorrendo os caminhos do discurso literário, num processo de conhecimento, de apreensão e de compreensão de uma mundivivência e de uma cosmologia, para nós brasileiros, também excolonizados, tão diferentes e ao mesmo tempo tão próximas de nós. Essa literatura participa dos esforços e do movimento de autodefinição do país e de seus povos e o texto literário pode ser visto como um espaço de representação política e de manifestação cultural de um tecido social coletivo. A Guiné-Bissau está ainda sem identidade nacional consolidada, com tradições culturais e lealdades locais muitas vezes mais claras em relação à própria coletividade étnica do que à “nação” guineense propriamente dita, com convicções de pertencimento as mais divergentes. Debate-se entre as raízes africanas, ora idealizadas como paradisíacas, ora estigmatizadas como símbolos do atraso e está, juntamente com sua literatura, à procura de sua identidade que, obrigatoriamente, deve abarcar a fidelidade às origens e o caminho em direção ao mundo moderno. Esta modernidade, uma fuga do atraso e do subdesenvolvimento, foi primeiro imposta pelo regime colonial sob forma retrógrada; depois, redefinida nas visões do anticolonialismo e das guerras de libertação nacional. Recentemente desacreditada por uma política ineficiente e corrupta, a Guiné-Bissau, no momento, está de novo envolta em cuidadosas esperanças. A democracia, aplaudida depois de um longo regime autocrático, não trouxe o bem-estar esperado, mas antes sinais de fortalecimento de particularismos étnicos bastante inquietantes. Apesar de haver ainda “tanto, tanto por caminhar”, há também a perspectiva de um “dia nobu di padida ku na bin”, como cantou um de seus poetas maiores4. O título que dei a este trabalho, O desafio do escombro, tem sua razão de ser. Deixei a Guiné-Bissau em abril de 1998, no sábado de Páscoa, depois de três meses de intenso trabalho para a publicação do último volume da “Colecção Kebur”, a história da literatura guineense, de minha autoria (AUGEL, 1998a), o volume que iria fechar o projeto pioneiro, financiado pela 4 “Há-de vir um novo dia, tal como [vai chegar] a hora feliz do parto para a mulher prenhe” (padida). Cf. TCHEKA, 1996, p. 30. 19 União Européia, sendo da terra os autores dos sete volumes anteriores daquela coleção por mim idealizada e organizada. Foi uma luta contra o tempo, sob a pressão do organismo financiador, pois já havia sido ultrapassado o prazo para sua conclusão. Deixei Bissau profundamente comovida pela forte repercussão dessa obra que pôde de certo modo concluir, com sua contribuição analítica, os volumes anteriores. E eu ainda me achava sob a impressão do espontâneo djunta mon (isto é, com o mutirão), quando até o motorista e as faxineiras da Editora Escolar ajudaram a costurar a mão os cadernos do livro, numa confecção artesanal, pois as 466 páginas não podiam ser simplesmente coladas. Foi um trabalho comunitário e gratuitamente desinteressado, todos participando para o lançamento festivo do livro e que, assim, pudesse ser solenemente concluído aquele projeto literário, único no país. Deixei Bissau otimista quanto à vida literária que ali estava em franca ebulição, espelho de uma quase febril operosidade de que o país estava tomado, apesar da imensa tensão política e da insatisfação do povo com a governança. A economia se estava fortalecendo, o investimento privado se multiplicava, as perspectivas de um melhoramento do ensino eram promissoras, as infra-estruturas estavam menos precárias, as estradas melhoradas e até uma grande ponte ligando a quase ilha de Bissau com o interior, a partir do lugarejo João Landim, às margens do rio Mansoa, sonho de muitos anos, estava já com o financiamento pela União Européia garantido. Então, a 7 de junho daquele ano de 1998, o barril de pólvora das tensões acumuladas detonou com a revolta da caserna de Brá, alastrando-se sem demora numa guerra infeliz de onze meses de duração. O estado de espírito da população, insatisfeita, descrente face à desgovernança, foi revertido por aqueles onze meses de guerra que, entre morte e destruição, provocaram um desafio positivo, deflagrando uma situação semelhante a da guerra de libertação nacional: em meio às ruínas políticas e aos escombros do recente conflito, foi desencadeado um frutífero e rico processo de acrisolamento, fecundo em iniciativas para soerguer o novo edifício da nação guineense. Foi despertado o sentimento nacional, mobilizado no momento doloroso da ocupação estrangeira. A partir da ameaça do cataclismo, vem-se buscando estratégias e caminhos para o futuro do país. Diante dos escombros de uma nação que mal começava a caminhar com os próprios pés, está-se diante de um insistente e pertinaz recomeço. O subtítulo do trabalho, A literatura guineense e a narração da nação, tem pertinência, pois procurarei desenvolver e sustentar a tese de que a literatura que acontece na Guiné-Bissau de hoje é um contributo essencial para a construção da nação guineense – e isso através de sua narração. É reflexo da crise que já se prenunciava e cuja explosão as obras surgidas na década de noventa profetizavam. E pelo viés da estética e da representação simbólica, através do discurso 20 literário, os autores guineenses apontam para possíveis saídas, desconstruindo a história hegemônica, dando voz a personagens muitas vezes fantásticas, porém maravilhosamente verdadeiras, representantes da realidade local e não só. Os autores tentam, cada um a seu modo, com a criatividade específica de cada um, numa perspectiva de futuro, sustentar a bandeira das mudanças substantivas, sem as quais não será possível reformular o Estado ou criar a nação guineense, sempre apostando no capital esperança. A própria narrativa que constitui a nação é construída pela articulação de símbolos os mais diversos, não podendo se restringir ao discurso ideológico desenvolvido e difundido pelo poder autoritário. “O estudo da nação através de seu discurso narrativo não significa apenas chamar a atenção para sua língua e sua retórica”, afirma Homi Bhabha. “É também uma tentativa de alterar o próprio objeto conceitual” (BHABHA, 1997, p. 53). Eduardo Coutinho, na mesma linha das idéias formuladas por Antonio Candido, afirma que as literaturas nacionais não somente são “elaboradas para respaldar a identidade de uma nação”, como também, mais do que isso, “desempenham um papel relevante na elaboração de uma nação”, sendo ao mesmo tempo “produtos e constituintes parciais da nação e de seu sentido coletivo de identidade nacional” (COUTINHO, 2001, p. 54-55). Embora o país ainda não possua um grande acervo de obras literárias (e por isso mesmo tenho um certo cuidado em referir-me a uma “literatura nacional guineense”, como um conjunto já solidamente constituído), creio poder afirmar que na Guiné-Bissau, os autores que compõem o corpus de meu estudo estão plenamente dentro destes critérios: suas obras não podem ser divorciadas de seu tempo e de seu lugar – trata-se de produtores textuais em sua especificidade enquanto cidadãos guineenses pós-coloniais. Ao mesmo tempo contribuem decisivamente, através de seus textos, para a elaboração – ou a narração – da nação guineense. Antonio Candido reflete sobre as imensas dificuldades materiais que condicionam a pequena representatividade da literatura em países de poucos recursos, onde os fatores de ordem sócioeconômica e política entravam sobremaneira a veiculação dos bens culturais. O fato básico é provavelmente o alto índice de analfabetismo, mas o fraco número de leitores reais (muito inferior ao já reduzido número de escolarizados) tem sua razão de ser agravada por muitos obstáculos, que vão desde a pluralidade lingüística e “políticas educacionais ineptas ou criminosamente desinteressadas”, como a dificuldade de divulgação das obras (editoras, bibliotecas, revistas), além de uma “inexistência, dispersão e fraqueza dos públicos disponíveis para a literatura” (CANDIDO, 1987, p. 143-144). Mesmo tendo consciência de que a influência exercida pelas letras não representa um fator muito relevante num país com alto nível de analfabetismo como a Guiné-Bissau, onde o hábito da leitura não é cultivado senão por uma frágil minoria, a literatura que se está fazendo hoje na Guiné- 21 Bissau constitui, sem dúvida, um dos poucos veículos, e por isso indispensável, para a demarcação, inclusive dos contornos afetivos e emocionais, do território dessa comunidade de pensamento e de sentimentos, para o balizamento das margens de representação manifestadas em função da construção da nacionalidade. Antonio Candido qualifica de “uma literatura empenhada” os momentos das letras brasileiras por ele estudados em sua Formação, embora com a ressalva de não pretender construir, com tal epíteto, um critério ou um juízo de valor e sim apenas considerá-lo um subsídio, uma vez que aquelas obras “só podem ser compreendidas e explicadas em sua integridade artística, em função da qual é permitido ressaltar êste ou aquêle aspecto” (CANDIDO, 1971, I, p. 28-29). Também em relação à literatura guineense, irei sempre de novo pôr em relevo esse enfoque “empenhado” de que fala o mestre brasileiro. A visão crítica e a postura desconstrutiva que assumem os escritores guineenses, cada um a seu modo, confirmam a imagem de “bisturi literário”, “impiedoso”, capaz de “cortar com rigor e vigor as carnes esclerosadas da classe dominante”. São palavras de Silviano Santiago, referindo-se a certos ângulos da literatura brasileira e que se coadunam bem com a grande parte da produção guineense e também com muitas obras africanas da atualidade (SANTIAGO, 1982, p. 40)5. Parece-me que justamente num país de tão breve passado coletivo, onde os interesses e as ligações étnicas ainda estão tão vivos, seja legítimo o esforço político de sedimentar o gosto em pertencer a esse território e de procurar motivar seus habitantes, de todas as formas possíveis, a nutrir o sentimento de coletividade em prol do bem comum. O saber local de cada espaço étnico multiplica-se em saberes locais, onde nenhum é obscurecido, nenhum é destacado em detrimento dos outros, numa disseminação amplificadora, base do campo comum de significações e de símbolos associados à vida nacional. A literatura, sendo um espaço de fruição estética e um espaço de projeção identitária, representa sem dúvida um instrumento e um contributo, sendo pouco relevante a quantificação dos seus receptores. O público ledor, consumidor do objeto “livro”, pode ser ainda escasso na Guiné-Bissau. Uma maior divulgação desse produto de consumo deveria ser do interesse do Estado, com a multiplicação de bibliotecas públicas, com o incentivo à leitura nas escolas, com uma melhor formação pedagógica de seus professores. Um dia, esperemos, se vai chegar lá. Embora correndo o perigo de parecer um devaneio sentimental e de estar romantizando, reafirmo minha convicção de considerar a literatura guineense uma plataforma, um espaço válido e precioso que uma política educacional e cultural eficiente pode e deve alargar e cuja influência como formadora do pensamento não se deve desprezar. Sintomático 5 Não só na Guiné-Bissau o livro é um produto que não conta entre os bens básicos da maior parte da população. Referindo-se ao “reduzidíssimo” público ledor brasileiro, Silviano Santiago classifica de “ridícula e deprimente” a relação entre a população total e o número de leitores no Brasil de então: “pena que essa cirurgia fique restrita a uma edição de 3 mil exemplares num país de 110 milhões da habitantes” (SANTIAGO, 1982, p. 40). 22 para corroborar essa assertiva é o número de personagens “exemplo” (o “Professor”, a “mulher grande”, o “Poeta” ou “Cantor da alma”) de que é eivada a literatura guineense, empenhada em deixar modelos a serem seguidos para os “meninos de amanhã”, como o grande líder africano Amílcar Cabral gostava de dizer. Instrumentos didatizantes sempre fizeram parte da transmissão das ideologias. Entre os recursos amalgamadores do sentimento de pertença da população a uma comunidade nacional, cultivados sistematicamente pelos Estados nacionais, sobretudo no século XIX, mas não só, contam técnicas mnemônicas coletivas institucionalizadas, em especial, a partir da educação cívica, processada através da escola. E de livros didáticos com as imagens por eles transmitidas, entre outros meios. Igualmente os monumentos e os museus, os arquivos e as bibliotecas, assim como os festejos de caráter comunitário, têm como fim preservar a memória coletiva, registrando fatos, comemorando efemérides, celebrando guerras passadas com o culto aos heróis e a lembrança dos mortos, animando o grupo social através de paradas cívicas e hinos patrióticos. Na Guiné-Bissau, falta o “projeto Guiné-Bissau”. Faltam mecanismos desencadeadores ou nutridores desse sentimento de pertença. O precário estado da rede escolar e o muito baixo nível de ensino não constituem instrumentos para tal. O que existe, sobretudo, é o discurso autoritário, pedagógico e demagógico, pautado na glória nacional das lutas libertárias. A grande preocupação de Amílcar Cabral, o “pai da nacionalidade guineense”, em insistir na importância da cultura como meio de resistência contra o aniquilamento identitário programado pelas instâncias colonizadoras, passava pela valorização despreconceituosa de todas as diferentes culturas étnicas, cuja soma constituía a cultura nacional. A herança ideológica deixada por Amílcar Cabral tem sido desvirtuada, mas em seu nome continua uma fala autopromocional, hoje em flagrante crise de conteúdo. Os Estados modernos, quase todos, possuem uma longa história da formação da nacionalidade, com símbolos, datas e heróis para criar e estimular o sentimento de pertença do cidadão e da cidadã a essa unidade abstrata, emocional e “espiritual”, como disse Ernest Renan já em 18826. O Brasil tem Tiradentes, o Sete de Setembro, o Rio de Janeiro e a Bahia, Brasília e os índios; e mesmo a pluralidade étnica dos seus habitantes é transformada no canto ufanista a uma nação única e múltipla. A Alemanha possui todo um acervo de contos e epopéias, uma literatura secular que desde a Canção de Nibelungen (Nibelungenlied) do século XII alimenta a imaginação coletiva com a convicção de uma unidade de destino prolongada até as deformações nacionalistas que levaram às atrocidades do nazismo. Portugal ostenta-se com as façanhas das 6 Ernest Renan pronunciou a sua famosa conferência na Sorbonne, a 11 de março de 1882; ela foi publicada primeiramente num conjunto de discursos e conferências (Qu’est-ce qu’une nation? Discours et conférences. Paris: Calmann Lévy, 1887) que teve várias edições. Consultei uma edição francesa de 1947. Em português, cf. ROUANET, 1997. 23 navegações transatlânticas pioneiras e o orgulho do desbravamento de terras desconhecidas. Os Estados Unidos da América do Norte têm seus Founding Fathers; a Inglaterra, a Magna Carta Libertatum (1215) e a Bill of Rights (1689); a França, a pompa de Versailles e as glórias de Napoleão7. E a Guiné-Bissau? A Guiné-Bissau é um país com uma superfície habitável de 28.000 quilômetros quadrados8, com uma população de apenas cerca de um milhão e meio de indivíduos, tendo saído da colonização com uma taxa de analfabetismo de quase cem por cento (e ainda hoje essa taxa quase alcança os sessenta por cento), com uma diversidade e complexidade étnica e lingüística que, se não dificultam propriamente a comunicação, sempre de novo ameaçam entravar a coesão. Esse pequeno e menosprezado país conseguiu a proeza hercúlea de afrontar e vencer uma potência européia, superior em armamento, em conhecimentos bélicos e estratégicos, em possibilidades econômicas e em interligações diplomáticas – elementos que a experiência e a ambição imperialistas tinham aperfeiçoado no decorrer de vários séculos. Foram onze anos de conflito armado, onze anos de ação e reação, rumo à independência, antecedidos de vários outros anos de preparação na clandestinidade. O engenheiro agrônomo Amílcar Cabral, com mais um punhado de jovens guineenses e cabo-verdianos, ousou em 1956 fundar, em Bissau, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (o PAIGC), núcleo e motor do movimento de independência, com militantes organizados clandestinamente, tanto no continente africano como em Portugal. O sonho de alguns poucos idealistas conseguiu convencer e eletrizar as populações heterogêneas e desiguais daquele território do oeste africano, levando-as à vitória contra as forças colonialistas, antes da independência de Angola, de Moçambique, de São Tomé e Príncipe, vitória concretizada com a proclamação unilateral de independência a 24 de setembro de 1973, sete meses antes da revolução que libertou Portugal do regime ditatorial fascista9. Essa guerra assimétrica emocionou o mundo e mobilizou uma grande rede de simpatia e solidariedade. O título de “combatente da liberdade da pátria” é ainda hoje, decorridos mais de trinta anos, motivo de orgulho e vaidade para os veteranos desse confronto e não só. A guerra de libertação continua a render capital, sendo o tema preferido dos grupos que detêm as rédeas do país. Os antigos “comandantes” continuam a vangloriar-se dos feitos passados e a aproveitar-se 7 Só a título de exemplo, lembro que, sob a direção de Pierre NORA, foi publicada uma obra em sete volumes sob o título geral Les lieux de mémoire de la République, reunindo uma extensa gama de elementos constituintes da memória coletiva da França (bibliotecas, arquivos, museus, monumentos, etc.). 8 “La Guiné actuelle est un pays ayant une étendue réduite. Officiellement, elle est de 36.125 km2, mais si l’on défalque les parties inondées, elle n’est plus que de 28.000 km2”. A Guiné atual é um país com uma reduzida extensão. Oficialmente, ela tem 36.125 km², mas se daí se desfalcam as partes inundadas, alcança apenas 28.000 km² (PÉLISSIER, 1989, p. 18). A tradução é minha. 9 No capítulo 2 discorrerei com pormenores sobre o assunto. 24 dessa aura para o próprio benefício. O “sol da independência” já não se encontra em seu zênite, as turbulências atmosféricas são inquietantes e tempestuosas nuvens ameaçam no presente a paz na Guiné-Bissau. Se bem que espezinhado e sempre de novo sacudido por tormentas e terremotos morais e políticos, o povo guineense não cessou de ter esperança e, mais uma vez, decorridas as eleições em junho e julho de 2005, se prepara para encetar mais uma etapa de sua história. A poesia e a música sempre acompanharam os revolucionários nas pelejas e campanhas. A poesia da geração que viveu o colonialismo e as lutas da independência está naturalmente traspassada pela dor da dominação, pela experiência da guerra, da violência e da morte, mas também pelo anseio de liberdade e pelo sonho de uma nova África. Aqueles que se engajaram no combate contra o colonialismo, sob os perigos constantes da mais violenta repressão, e mesmo com o sacrifício da própria vida, são saudados e festejados em versos vibrantes e emocionados. E muitas vezes os soldados da revolução foram também os seus próprios vates, os seus porta-vozes. Trata-se de uma poesia necessariamente patriótica, reivindicatória e didatizante, de conteúdo por vezes talvez por demais doutrinário e circunstancial, mas admissível e justificável em seu contexto. Os prefaciadores da primeira publicação literária do país recém-independente, a pequena coletânea Mantenhas para quem luta!, anunciavam serem aqueles versos "arma de combate, ferramenta de construção" (1977, p. 7). E, confirmando essa diretiva, a segunda coletânea de poemas, publicada um ano depois da primeira, trazia como título já uma apologia ao tempo pós-revolucionário, com todas as suas conotações positivas: Momentos primeiros da construção, título de um poema de José Carlos Schwarz (1949-1977), cujos versos finais são os seguintes: "Sob estes ventos soalheiros da revolução / Que as quedas não sejam definitivas / E que os desfalecimentos sejam vencidos / Pela certeza da vitória que amanhecerá / Nas frescuras das madrugadas" (SCHWARZ. In: Momentos primeiros da construção, 1978, p. 29). O feito literário alimenta o desejo de um mundo possível, imaginado, que acontece paralelamente aos feitos históricos, desenhando uma nova categoria e uma nova qualidade de realidade, liberada da objetivação cientificista, como um ato performativo de narrar a nação, através de deslocamentos metafóricos, estratégias textuais, uma retórica específica. A literatura é que melhor registra as idiossincrasias culturais, afirma Julio Ortega, “onde se vê como a mentalidade enlaça o individual com o coletivo, como os procedimentos empíricos se imbricam com as inclinações imaginárias, como a subjetividade se relaciona com a realidade externa (ORTEGA, 1988, p. 9)10. 10 As traduções das citações são minhas, caso não constar explicitamente o nome de um outro tradutor. 25 Tenho plena consciência das dificuldades e da complexa tarefa a que me proponho ao pretender apresentar uma análise da literatura guineense a partir do prisma que elegi. Como não africana, tendo tido minha socialização e minha formação em parte no Brasil e em parte na Alemanha, vejo o mundo “com olhos ocidentais”, como Christopher L. Miller11 se expressou, e minha leitura será sempre a partir deste meu duplo lugar de enunciação. Miller especula sobre as opções que restam ao leitor ocidental de literaturas não ocidentais, indagando-se se é possível uma ruptura com sua formação teórica para alcançar o salto que o leve ao Outro, aqui, no caso, ao Africano, e permitir-lhe uma leitura a partir do autêntico ponto de vista desse Outro. Mesmo que uma visita ao texto “a partir de fora” tenha sua legitimidade e seu encanto, devem-se procurar caminhos para conseguir penetrar nos meandros desse território outro, captar a África no sentido africano, e então interpretar seu acervo literário sem projeções (ib., p. 230) ou sem reducionismos simplificadores. Ciente de que uma leitura é sempre a leitura de outras leituras, norteou-me a preocupação de que a interpretação dos textos aqui apresentados (a minha leitura) fosse o mais fiel possível ao pensamento guineense e, para isso, foi decisiva a pluralidade de enfoques que me proporcionou a interdisciplinaridade dos Estudos Culturais. 1.1 Metodologia Ao determinar o tema de minha tese, multiplicaram-se as indagações sobre os caminhos a seguir. Na escolha dos pressupostos metodológicos e teóricos para fundamentar minha investigação, vi-me confrontada com a necessidade de esclarecer um denso emaranhado histórico e cultural, uma simultaneidade de visões divergentes, uma heterogenidade de concepções, um ecletismo de palavras de ordem e de moda, teorias incorporadas nos mais diversos discursos, tendo também, principalmente, que levar em conta o contexto geográfico, histórico e político do país, a convivência de atitudes de modernidade e de atavismo, o uso das muitas línguas, sem falar na rica e múltipla herança cultural de seus povos. A literatura oral ou oratura, acervo transmitido apenas pela voz e pela memória, constituído pelas histórias tradicionais, provérbios, adivinhas, cantigas, manancial de saber e de criatividade populares, filosofia e sabedoria, sempre foi, como a arte tradicional africana, praticada de modo funcional, isto é, não perdendo de vista a relevância social para a comunidade. O mesmo posso dizer da literatura. Na tradição oral, a ligação entre arte e a moral ou ética é muito estreita, constituindo um momento informal de educação dos mais novos. A arte literária africana 11 Christopher MILLER é autor de um elucidativo ensaio cujo título pode ser traduzido como: “Ler com olhos ocidentais. Literatura francófona e Antropologia na África” (1996, p. 229). Cf. bibliografia final. 26 tradicionalmente encerra, de modo claro ou subliminar, referências ou intenções didáticas. Obras que criticam o status quo, satirizam o abuso do poder e os atentados contra a ordem social carregam consigo a intenção de levar a uma mudança, a um melhoramento da postura ética. Assim, a literatura assume muitas vezes, na África, também uma função utilitarista e desempenha o papel de regulador social. Vem ao encontro de minha opção em escolher uma abordagem de relevância mais que apenas estética, a atual abertura dos estudos literários em direção a uma ciência social empírica interdisciplinar, com o alargamento de quadros teóricos que deixam margem a empréstimos de outras áreas. Partilhando dessa preferência, interessou-me desenvolver um discurso analítico que reunisse, revisse e combinasse diversos enfoques, entrelaçando os estudos literários aos estudos culturais, à história, à etnologia, à sociologia, à antropologia e à política. A meta deste trabalho é, portanto, menos seguir, defender, comprovar ou desenvolver uma posição teórica pré-definida, muito menos proclamar verdades do que tentar um diálogo com os textos em seu contexto histórico e social, através de uma leitura partindo de múltiplos ângulos que interagem e se complementam. Isso se torna possível devido ao acervo disponível ser muito reduzido, mas me parece se reforçar pela minha intenção, se bem que secundária, de contribuir para a reflexão fundamental dos possíveis caminhos à internalização, por parte, sobretudo, da juventude guineense, do sentido de pertencimento e de unidade, dentro da bela e enriquecedora multiplicidade étnica do país. Pires Larajeira lembrou que “só pelo facto de ser escrita em línguas europeias, a literatura africana deriva das seqüelas do colonialismo” (LARANJEIRA, 1985, p. 10). Meu trabalho, portanto, vai-se desenvolver dentro de um âmbito alargado e de uma ampla perspectiva póscolonial. Pode-se falar de três áreas centrais de teorias pós-coloniais, sempre sob o prisma da utilidade para os estudos literários africanos: a análise do discurso colonial, desenvolvida a partir do famoso estudo de Edward SAID sobre o orientalismo (Orientalism, 1978), apresentando a idéia da construção do Oriente como um produto do imaginário europeu (por extensão também a construção da idéia do outro, estereotipada e reducionista), o que constitui um exercício do poder e de controle12; teorias de hibridismo cultural, sobretudo as reflexões desenvolvidas por Homi Bhabha, relativas ao contexto sociocultural do colonialismo, no seio do qual se deu uma adaptação, uma assimilação do colonizado ao colonizador, resultando disso ambivalências e uma 12 Assim como a Europa definiu e expressou suas idéias a respeito do Oriente, faz o mesmo com o continente africano, tornando-o objeto. O Orientalismo, tal como exposto por Edward Said, faz levantar primeiramente uma grande barreira entre as culturas, priorizando e ressaltando a diferença como algo de negativo e intransponível; depois, o Ocidente apropria-se do “Outro”, assume o controle, o domínio e a tutela sobre ele, dando-se o direito de possuir maior capacidade e maior conhecimento. Mudimbe, Appiah e outros pensadores africanos, escreveram sobre a “invenção da África”, no mesmo sentido que Said. Cf. a bibliografia final. 27 nova forma híbrida da cultura; e, como terceira área, a teoria segundo a qual as literaturas das antigas colônias se desenvolvem numa permuta constante com as antigas metrópoles, intertextualmente, num jogo desconstrutivista de contraponto subversivo, satírico e carnavalizante13. Serão sobretudo as reflexões em torno das rupturas e dos confrontos com o colonial que estarão como um pano de fundo para minha análise. Passando em revista o acervo textual guineense, pode-se constatar a recorrência de certos tópicos. Entre eles, a apropriação simbólica de valores étnicos, os mitos, as tradições e os saberes ancestrais, assim como as relembranças do momento fundador da terra-pátria ocupam um lugar proeminente. Sem dúvida alguma, trata-se de uma literatura guineense escrita para guineenses, autônoma, através de uma louvação das belezas naturais, e das sabura (os prazeres, as delícias) do país. Mesmo no relativamente reduzido número de textos em que a subjetividade permite aflorar a identidade individual do enunciador, há um diálogo permanente com o substrato cultural, num enredamento dialético entre o local que se quer expresso ou subentendido – mas sempre valorizado – e o global que, a partir das margens das diversas alteridades e especificidades, quer ultrapassar as diferenças para se harmonizar no todo e espelhar a nação. A “cor local” da literatura guineense nada tem de exotismo. É a expressão de sua diferença, de sua alteridade. Pelo isolamento em que vive o país, marginalizado também no seio da tão louvada comunidade dos países de língua oficial portuguesa, pela ausência de fontes de consulta, ou pelo difícil acesso a informações, impõe-se muitas vezes a necessidade de uma “tradução”, não por questões lingüísticas, mas sobretudo pelas idiossincrasias culturais, onipresentes na textura literária. Uma antropologia literária, com orientação etnológica, analisa o modo pelo qual textos literários estão implicados em processos simbólicos mais amplos, ou fazem parte deles, os quais se referem expressamente a práticas culturais de grupos sociais, a diferenças étnicas e próprias para um determinado gênero e para estruturas políticas de poder (BACHMANN-MEDICK, 1996, p. 15). A perspectiva antropológico-etnográfica a partir da qual se pode enfocar a literatura africana está sem dúvida vinculada aos Estudos Culturais, cujas direções teóricas foram desenvolvidas sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos e que serão de grande relevância para minha pesquisa14. Os Estudos Culturais constituem uma instigante corrente de pensamento da segunda metade do século XX e estão estreitamente ligados aos estudos pós-coloniais. É bastante sabido 13 Essa teoria foi desenvolvida sobretudo a partir da publicação The Empire writes back – Theory and pratice in post-colonial literatures (1989), explicitada programaticamente por ASHCROFT, GRIFFITHS e TIFFIN na coletânea de ensaios intitulada The post-colonial studies reader (1995). 14 Os Estudos Culturais, como direção teórica, têm tido até agora pouca repercussão na Alemanha, ao contrário do grande eco no Brasil e na América Latina em geral. Deve-se ao jamaicano Stuart Hall, radicado na Inglaterra, um grande esforço de reflexão e de divulgação dos Estudos Culturais. 28 que foi nos anos sessenta, com os trabalhos de Claude Lévi-Strauss e Roland Barthes na França, e de Raymond Williams, E. P. Thompson e Richard Hoggart, na Inglaterra, que a “virada cultural” começou a ter um impacto maior na vida intelectual e acadêmica, e novos campos interdisciplinares de estudos organizados tendo como conceito a cultura – os “estudos culturais” – vieram a instituir-se, espraiando-se da Inglaterra para os Estados Unidos e a França, transformando-se em amplo e influente movimento intelectual. Na raiz dos Estudos Culturais como múltiplo campo de estudo estão três publicações precursoras e seminais: os trabalhos de Richard HOGGART (The uses of literacy, 1957), de Raymond WILLIAMS (Culture and society, 1958) e de E. P. THOMPSON (The making of the English working-class, 1963). Entende-se aqui cultura como uma rede de práticas e relações que constituem a vida cotidiana dentro da qual o papel do indivíduo está em primeiro plano – tal foi a visão dos precursores dos Estudos Culturais na Inglaterra. Segundo a opinião de muitos, sobretudo a contribuição teórica de Williams é fundamental para o desenvolvimento desses estudos, pelo peso dado à cultura, traço de união entre a análise e a história literárias e a pesquisa social. Stuart Hall, um dos corifeus dos Estudos Culturais, ressaltou a influência do estudioso inglês, justamente por ter pensado a cultura por um novo prisma, deslocando-a das esferas elitistas para um espectro mais amplo, incluindo o popular e as práticas cotidianas, definindo-a pelo enfoque antropológico, o que constituiu uma mudança básica. A cultura seria um processo “por meio do qual os significados e as definições são socialmente construídos e historicamente transformados”, encarando-se a literatura como um instrumento privilegiado da comunicação social (JOHNSON et al., 2000, p. 140). Através de uma democratização do entendimento sobre cultura, a nova perspectiva abriu espaço ao estudo da multiplicidade cultural dentro das sociedades, inclusive das periferias, surgindo novas áreas de interesse e de observação. Uma série de fatores desempenhou um grande papel tanto no desenvolvimento das reflexões teóricas como na análise dos resultados empíricos em torno sobretudo de questões de cunho literário e sociocultural. A criação do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), isto é, Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, em 1964, foi de grande influência, consolidando a disciplina e exercendo também um efeito multiplicador. Stuart Hall foi seu segundo diretor, tendo continuado e ampliado o campo dos estudos culturais para o estudo dos meios de comunicação, da cultura proletária dos trabalhadores ingleses, da cultura popular de modo geral, da cultura juvenil, das subculturas, como ainda de questões relativas aos estudos feministas e das minorias. O impacto de teorias européias não britânicas sobre os Estudos Culturais também se fez sentir de maneira essencial, incorporando-se a esses estudos uma gama de enfoques através das idéias de Louis Althusser, de Antonio Gramsci, de Walter Benjamin, de Roland Barthes, de Jacques Lacan, de Pierre Bourdieu, dentre outros, e dos 29 assim chamados “filósofos da descolonização”, Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze. Apesar da grande aceitação, ou talvez mesmo por isso, não é possível uma definição única dos Estudos Culturais, pois o conceito continua complexo e vem assumindo múltiplas direções (HALL, 2003, p. 134). Pelas suas origens e pelo contexto social em que eles primeiro se desenvolveram, a proposta inicial foi mais política do que analítica, postura que dos anos noventa em diante se diluiu (mas não desapareceu), dando lugar a outros enfoques, por exemplo, à inclusão do subalterno, das culturas marginais e das minorias, desbancando-se definitivamente a definição elitista de cultura (JOHNSON et al., 2000, p. 142; 150). Para Stuart Hall, sempre empenhado em desmascarar as estruturas de dominação, o núcleo substantivo dos Estudos Culturais reside no “interesse em combinar o estudo das formas e dos significados simbólicos com o estudo do poder” (RIBEIRO, 2001, p. 256). Como fruto ou conseqüência da discussão sobre a pós-modernidade, registra-se uma outra importante abordagem que amplia a multiplicidade dos enfoques: a ênfase nas questões de subjetividade e de identidade e, mais recentemente, nas reflexões sobre a nação, das quais não se pode desvincular o nome de Benedict Anderson. A cultura é uma categoria chave que conecta tanto a crítica literária quanto a investigação social. Para os Estudos Culturais, cultura é não apenas uma esfera do conhecimento, mas sim, levando em conta a ótica antropológica, o processo social visto em seu conjunto e em sua multiplicidade. Esse processo toma em consideração tanto os diferentes modos de viver, os usos e os costumes de uma comunidade ou de um povo, quanto os diversos prismas pelos quais as pessoas captam, percebem, interpretam, vivenciam, organizam e constróem suas vidas. A partir do enfoque dos Estudos Culturais, é possível melhor captar como textos literários, munidos da arma da palavra, da força da metáfora e das imagens, podem ser direcionados em favor de interesses sociais e políticos, assim como para uma auto-definição étnica ou nacional (BACHMANN-MEDICK, 1996, p. 16-17). Ainda é Doris Bachmann-Medick quem afirma a necessidade de o aparato simbólico de uma cultura precisar permanentemente ser “traduzido”, interpretado, compreendido. Para a sociedade da qual ela é imagem ou expressão, esse aparato é natural, entende-se por si mesmo, pois a cultura é “uma rede de significações autoconstruída pelos próprios membros dessa sociedade e através da qual as ações são permanentemente transportadas em sinais interpretativos e em símbolos” (ib.). A pergunta sobre como se percebe, se apreende o mundo mental de culturas estranhas às nossas, questionamento próprio da antropologia e da etnologia, também se apresenta para a percepção e leitura de textos literários de um país estrangeiro, sobretudo quando nada ou pouco se conhece sobre o povo e o substrato cultural da qual ela é reflexo. É comum experimentar estranheza, insegurança ou mesmo impaciência diante de textos 30 cujas formas se reconhecem como “socialmente relevantes”, mas cujo sentido não se consegue alcançar e que parece à primeira vista enigmático (ib., p. 22). Indo ao encontro de semelhante pensamento, lembro aqui Clifford Geertz, pensador social, antropólogo, que afirma em sua obra O saber local, muito conhecida também no Brasil, que a antropologia “sempre teve um sentido muito aguçado de ver as coisas”, ressaltando ainda que todas “as formas do saber são sempre inevitavelmente locais, inseparáveis de seus instrumentos e de seus invólucros” (GEERTZ, 2001, p. 11). Geertz é autor de uma outra obra seminal, com contribuições para o entendimento dos sistemas culturais, a partir de uma concepção teórica que ele denomina de thick description, (descrição densa), título do primeiro capítulo de The interpretation of cultures (1973) e que conheço a partir da tradução alemã (Dichte Beschreibung, 1991). Ali, o autor lembra uma observação do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, segundo a qual não se compreendem as pessoas de um país estranho não porque não se fala a língua desse país, mas porque “nós não podemos nos encontrar neles ou não nos reconhecemos neles” (GEERTZ, 1991, p. 20). Daí a importância capital de estudar os sinais e símbolos que servem para expressar conteúdos e representações do pensamento. Guiada por essas reflexões, procurei, na medida do possível, captar da melhor forma o sistema simbólico do povo guineense em sua multiplicidade cultural. A partir de uma rede de malhas finas e de uma “densa descrição”, o autor pretende fazer conhecer, da forma mais abrangente possível, acontecimentos sociais, modos de comportamento, instituições e o aparato simbólico que devem ou podem ser descritos de forma accessível, de tal modo que vão constituir uma espessa teia de informações entrelaçadas que permitem ao observador ou leitor exógeno o acesso à cultura e então, naturalmente, às obras literárias. Minha leitura pretende urdir essa rede com muitas meadas e muitas agulhas, debuxando os contornos e os meandros da tapeçaria do discurso literário e social guineense, retendo-o de uma forma inteligível e possível de ser apreendida. Faço isso através de meu esforço de compreensão – que serve primeiro para mim mesma. Familiarizar-se com a cultura de um povo leva a descobrir sua normalidade, sem com isso negligenciar suas especificidades e assim, para nós, leitores ou expectadores alienígenas, colocados os muitos aspectos culturais no contexto do cotidiano e do saber local, desaparece a estranheza, sendo preservados, porém, bem o espero, o interesse e a atração pela alteridade. Em vez de uma abordagem direta do texto “estranho”, para tentar entendê-lo, Clifford Geertz prioriza um tratamento textual que inclua uma busca de leitura etnológica das formas de expressão cultural, e isso por considerar que o sucesso da abordagem tanto dos textos quanto dos costumes de uma sociedade alienígena só pode se dar através de um amplo leque de elementos 31 interdisciplinares, um largo espectro de mediação, ponte para a tradução ou apreensão de códigos culturais menos familiares (ib.). Foi Stephen J. Greenblatt, um dos principais representantes do “Novo Historicismo”, quem aplicou à literatura os princípios antropológico-culturais de Clifford Geertz, apoiando-se também na análise do discurso foucaultiana. A partir desses princípios, caem as fronteiras entre os discursos centrais e os periféricos, torna-se possível pôr em relevo textos literários e outras formas escritas que podem ser apreendidos dentro do saber local de uma sociedade. O texto literário está conectado com as práticas sociais e vice-versa e a partir do enfeixamento e das interferências e cruzamentos de uma rede de informações é possível “des-cobrir” e reconstruir os códigos culturais de uma sociedade. A tarefa do analista literário seria, segundo Greenblatt, um “intercâmbio dialógico” tanto com a obra quanto com o autor (Metzler Lexikon Literatur, p. 230232). Bachmann-Medick considera a descrição etnográfica como constituindo um traço de união entre a etnografia, a antropologia e a literatura. É discutível até que ponto há necessidade de completar a interpretação literária com a ajuda da pesquisa etnológica ou até que ponto se encontram em textos literários processos etnológicos. É necessário, de todo modo, encontrar o equilíbrio entre tornar a diferença (o estranho) compreensível e, por outro lado, aplainar a estranheza, mas com o cuidado de não apagar essa diferença. Pormenores etnográficos, literários, artísticos povoam os textos não apenas com funções de transmitir autenticidade e vitalidade, mas constituem elementos que desempenham uma força de persuasão e de orientação de leitura. Faz parte da arte literária a capacidade de textualizar elementos culturais no ato de escrever e de descrever. O analista alienígena arrisca apresentar traduções “desmetaforizadas” e banalizantes, esmaecendo a beleza estética, anulando as diferenças, o singular, o local e o específico do texto e de seu autor ou de sua autora (BACHMANN-MEDICK, 1996, p. 45-46). Autores africanos criticaram muito a arrogância de analistas europeus e americanos, ressaltando ironicamente que o papel dos “teóricos” continua na mão dos ocidentais e aos africanos parece ser reservada tão somente a tarefa de coletores de material. O filósofo ganense Paulin Hountondji é um dentre muitos deles, autor de vários livros e ensaios que analisam tanto os mecanismos do mercado como as relações entre o mundo acadêmico e científico ocidental e o mundo africano. A África produz a matéria-prima (óleo de palma, textos literários), e instituições européias processam esses produtos (como o sabonete Palmolive e obras teóricas sobre literatura africana; HOUNTONDJI, 1994, p. 3). O enfoque dos Estudos Culturais tem contribuído para se levar cada vez mais em consideração o prisma da reflexão antropológica e a perspectiva do olhar etnográfico, além de dar vital relevância ao contexto social e ao etnocriticismo, em consonância 32 com as críticas feitas por Paulin J. Hountondji, Wole Soyinka, Ngugi Wa Thiong’O, Anthony Appiah e muitos outros. A dinâmica e rica literatura africana atual, incluindo a guineense, tem comprovado que o foco da representação (inter) cultural passa a ser não a descrição exógena, mas sim a autorepresentação. Portanto, ao estudar a literatura guineense, é essencial encarar o ato criativo tanto por seu valor estético quanto como reverberação do substrato cultural ali implícito. O texto literário se engendra num encadeamento de múltiplas significações e seu sentido mais profundo advém de sua dimensão simbólica. Uma tal perspectiva é fundamental, ao se abordarem as obras literárias guineenses, o que também vai ao encontro da tônica dos Estudos Culturais que insistem decididamente no contexto, sendo relevante para meu trabalho detectar as implicações culturais e simbólicas do corpus aqui tratado, na convicção de que muitos conhecimentos e informações a respeito de um país e sua cultura são transmitidos pelo viés da literatura. Portanto, procuro, neste trabalho, levar em conta tanto a função cultural quanto o valor estético das obras literárias que constituem o corpus de minha investigação. É no seio dos estudos literários que desenvolvo uma leitura multifacetada dos textos, pondo em relevo seus aspectos formais e temáticos e me preocupando no sentido de apreender as condições e o contexto de produção da obra em seu conjunto e em seu ambiente. E, mesmo que hoje em dia a hermenêutica textual não seja mais vista como “o mapa da ilha”, continua extremamente instigante e necessária, dialogando com o contexto sociocultural. É possível, e mesmo necessário, sobretudo em um país multiétnico e ainda tão jovem como a Guiné-Bissau, indagar-se sobre a legitimidade do conceito de nação. Já em 1882, Ernest Renan considerava-a unidade abstrata e espiritual. Eric Hobsbawm refere-se às identidades nacionais como "tradições inventadas" e, na mesma linha, Benedict Anderson cunhou a tão difundida expressão "comunidades imaginadas", enquanto Ernest Gellner foi mais longe, taxando a identidade nacional de “uma contingência sociológica”, fruto de “produtos ideológicos artificiais”15. Já Immanuel Wallerstein refere-se de um modo reducionista aos "artefatos lingüísticos" que moldam as identidades nacionais e Homi Bhabha sublinha as “estratégias discursivas” da nação. Enquanto Etienne Balibar fala de "etnicidades fictícias", Manuel Castells as define como “comunidades culturais construídas”, “resultado da experiência em comum” e para Antony Smith a nação seria uma comunidade de cultura, de história e de destino. 15 Anderson, Hobsbawm e Gellner publicaram suas obras mais conhecidas sobre a nação, o sentimento nacional e o nacionalismo no mesmo ano: 1983. Gellner tinha publicado em 1965 o seu Thought and Change, onde já discorria sobre “The contingency of Nationalism”. Lançarei mão, no decorrer deste trabalho, de diferentes edições desses autores básicos, tanto as originais como em tradução para o português; todas estão referenciadas na bibliografia final. Sobre as diferentes edições do livro de Anderson, cf. nota 284. 33 Não importa que fatores assumam importância para unir uma comunidade por cadeias de pertencimento. Não importa, tampouco, que fatores separem uma comunidade (a prepotência dos traçados de fronteiras, as inimizades políticas dos senhores do poder), se seus integrantes a imaginam como uma unidade de destino comum. O que move as emoções, o fanatismo e mesmo a morte, considera Cisneros, “é o pertencimento que se imagina e não a ‘etnicidade’ verdadeira; é o subjetivo, não o objetivo” (ESCUDÉ; CISNEROS, 2000). Produto da imaginação coletiva, a identidade nacional, portanto, provoca arrebatadores sentimentos de pertença, “afetos profundos” (ANDERSON, 1989, p. 13), alimentados e manipulados muitas vezes perigosamente pelo poder hegemônico. Hobsbawm, comentando criticamente a evolução dos conceitos de nação e de nacionalismo, procurando discernir entre “mito e realidade”, concorda com Gellner em enfatizar o aspecto de “artefato”, de “invenção” e de “engenharia social” que entra na formação das nações (HOBSBAWM, 2002, p. 19). Na mesma linha, Smith considera que “a nação não existe para além de seus membros individuais e de seu legado comum de lembranças, mitos, valores e símbolos” (SMITH, 1998, p. 63). Esses autores, e muitos outros, discutem a propriedade dos conceitos nação, nacionalidade e identidade nacional, conceitos que continuam bastante polêmicos. O escopo do famoso e tão elucidativo livro de Benedict Anderson, Imagined Communities, que tem como subtítulo “reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo”, foi justamente aprofundar uma análise sobre os motivos que comandam o nacionalismo e que provocam, ainda hoje, um coesivo sentimento de fraternidade, uma profunda legitimação emocional, arrastando os indivíduos a morrerem em seu nome, o que pode, inclusive, trazer desastrosas conseqüências. Anderson considera os conceitos de nação e o de nacionalidade (nation-ness) “artefatos culturais de um tipo peculiar”, especiais (ANDERSON, 1989, p. 12), desenvolvidos na Europa em um passado recente, tendo sido possível “pensar” a nação a partir do declínio de dois importantes sistemas culturais europeus: o das comunidades medievais reunidas em torno da religião e o dos reinos dinásticos. O autor lembra a conhecida e sempre atual afirmação de Ernest Renan, segundo o qual “a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum e que também tenham esquecido outras tantas”16. A lembrança e a deslembrança, a memória e o esquecimento, o passado e o presente fazem parte, portanto, da construção e conseqüente narração da nação. 16 “Or, l’essence d’une nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun et aussi que tous aient oublié bien des choses” (RENAN, 1947, p. 892; cf. nota 6). A tradução é minha. Anderson, na segunda edição de seu Imagined Communities, de 1991, acrescenta um capítulo no final do livro (“Memória e esquecimento”; cf. também ROUANET, 1997, p. 60-97) no qual, com muitos argumentos, refuta como eurocentrismo a persistência em considerar o nacionalismo como uma invenção européia. Para Anderson, o surgimento do nacionalismo aconteceu no novo, e não no velho mundo ANDERSON, 1997, p. 67. 34 Os cientistas sociais, considerando a opacidade e a indefinição do conceito de nação, passaram a dar mais ênfase ao sentimento nacional e ao nacionalismo, considerado uma “anomalia” ou um “artefato” (ANDERSON, 1989, p. 12), o qual “constrói” ou “imagina” a nação, sendo mesmo, como se expressou Gellner, uma “invenção acidental de alguns pensadores”, pois “o nacionalismo não é o despertar das nações para uma autoconscientização: ele inventa nações onde elas não existem” (GELLNER, 1965, p. 168). As idéias desenvolvidas por esses autores, e mais recentemente por Homi Bhabha e Stuart Hall, apontam para uma concepção segundo a qual seriam as nações, como os Estados, comunidades políticas imaginadas, limitadas e soberanas (ANDERSON, 1989, p. 14) e não uma necessidade universal ou algo de natural (GELLNER, 1965, p. 150), nem “uma entidade social originária ou imutável” (HOBSBAWM, 2002, p. 19). Anthony Smith acrescenta que, mesmo imaginada, a identidade nacional “de toda maneira se sente, se conhece e se vive (SMITH, 1998, p. 76). O filósofo social ganense Anthony Appiah considera que, embora a idéia nacional se tenha expandido pela ação do imperialismo, o acolhimento que teve por parte dos africanos escapou do controle de seus arautos e acabou transformada em “um meio de articular resistência à dominação material dos impérios mundiais” e do “projeto ocidental de domínio cultural” (APPIAH, 1997, p. 85-86). Nessa acepção, por mais ambíguo e discutível que o conceito seja, pode-se afirmar a existência da nação guineense. Não tanto porque possua uma realidade antropológica objetiva, nem porque, devido a circunstâncias políticas e posteriores mecanismos de ordem ideológica, implantou-se o Estado guineense. Existe uma condição suplementar indispensável para isso que é a crescente convição de pertencimento e de compartilha da história comum, com seus mitos, crenças e tradições, ancorada no momento fundador da nacionalidade que foi o libertar-se do jugo colonial – e é sob esse prisma que faço minha leitura das obras literárias aqui apresentadas, vendo os escritores em seu papel de bardos, reflexos e porta-vozes de uma consciência / identidade coletiva, emprestando a voz ao povo que “imagina” a GuinéBissau como seu tchon, seu chão, caminhando (aos trancos e barrancos) para vê-la como Nação, sentindo-a e vivendo-a como tal. Vou tratar nos diferentes capítulos, sobretudo no sétimo, da questão da identidade nacional, da nação e da elaboração de sua narração dentro da urdidura literária guineense. No corpo dos capítulos desenvolverei os conceitos que nesta introdução estão sendo apenas mencionados, preocupando-me em apresentar diferentes facetas, desenvolvidas por autores de várias disciplinas, dos aspectos teóricos a partir dos quais basearei minha leitura. 35 1.2 Elaboração No complexo enredamento de abordagens, fui tecendo minha leitura com várias meadas e múltiplos são os fios que vão matizar o meu lavor: o conceito de identidade, tanto a individual como a coletiva, assim como a identidade cultural; o conceito de etnicidade, o entendimento interétnico, a construção social da etnia; o conceito e a idéia de nação, de território, de nacionalidade e de identidade nacional, os caminhos da desterritorialização e da reterritorialização17. Não vou tratar de cada autor em separado, como o fiz em meu livro anterior sobre a literatura guineense, quando a cada escritor e sua obra dediquei um capítulo. Além desta introdução e das conclusões, desenvolvi minha análise em seis capítulos, priorizando cada vez um aspecto específico, o que necessitou também de diferentes abordagens18. Como os capítulos são bastante longos e intimamente interligados, não pude evitar algumas repetições, inclusive, justamente, para tornar mais visível esse imbricamento. O suporte teórico de que me servi para embasar minha leitura será desenvolvido no desdobrar de cada capítulo. Dado ao pouco conhecimento que geralmente se tem dos autores guineenses e da imensa dificuldade de acesso aos textos, optei por estender, em parte, as citações. Destaquei, em separado, como fonte primária, as referências bibliográficas de títulos de obras literárias guineenses; o amplo espectro de abordagens interdisciplinares me levou igualmente a um número alargado de referências teóricas. Conservei a ortografia dos textos originais, mesmo havendo variações ou incoerências. Como a língua guineense19 ainda não está com a grafia institucionalizada, as citações nessa língua podem trazer certa confusão, que procuro esclarecer em notas de rodapé, para onde também em geral remeto minha tradução dos termos ou dos pequenos textos em crioulo apresentados como exemplos. Os leitores vão verificar que os poemas não se apresentam escritos numa mesma variante do crioulo: as diferentes variantes faladas no país refletem-se na criação literária e assim tem-se tanto textos escritos num crioulo aportuguesado (kriol lebi), como num crioulo tradicional (kriol fundu), de vários níveis de profundidade, muitas vezes de difícil compreensão mesmo para habitantes crioulófonos da praça, isto é, da cidade. Também nas citações 17 O conceito de desterritorialização, adotado por Félix Guattari, se refere ao ser humano contemporâneo que, perdendo o sentido de seu lugar e seu modo de estar-no-mundo, seus territórios existenciais originais, como o corpo, o espaço doméstico [e eu acrescento: o clã, o culto] – sente-se perdido e desfalcado, mas sempre fazendo parte de um mundo de representações em movimento (cf. DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 20, 22, 23 e ss.). Creio poder estender tanto a metáfora como o próprio conceito para contextos mais alargados. 18 Dado às especificidades da Guiné-Bissau, preferi deixar para um segundo plano a questão do hibridismo ou da crioulização, embora também sejam aqui tratados certos aspectos culturais de imbricações segundo essa perspectiva. 19 Usarei aqui indiscriminadamente as expressões língua guineense ou crioulo. Darei esclarecimentos a respeito no capítulo 2.5. 36 em português, conservei a grafia original, respeitando as normas locais (portuguesas ou brasileiras) e a época em que foram publicadas. A literatura de um país está estreitamente ligada a seu lugar de enunciação. Os fatores geográficos, étnicos, históricos, econômicos e políticos estão em correlação com as estruturas sócio-culturais locais e se refletem no discurso literário, em sua manifestação estética que, a todo passo, direta ou indiretamente, a eles fazem referência. São fatores externos que delineiam o contexto histórico-cultural e que serão internalizados na realização textual. Ciente disso, o capítulo 2 (“O contexto geográfico e histórico”) apresenta um panorama geral onde trato do país, de seu meio ambiente sócio-cultural, da história da época antes da colonização, da chegada dos portugueses e dos primeiros contactos, da colonização, da luta armada, do período pósindependência. Considerei necessário esse capítulo geral por causa das parcas informações que correntemente circulam sobre esse pequeno país da África Ocidental e para melhor situar espácio-temporalmente o tecido textual guineense. Alonguei-me em esboçar o quadro dos antecedentes do conflito armado de 1998/99, assim como o período pós-guerra, para fundamentar o conhecimento do difícil momento por que passa atualmente a Guiné-Bissau e que tem reflexos diretos nas obras literárias que vou analisar. A situação social do país, as religiões, os grupos étnicos, a questão lingüística e a posição do crioulo (ou língua guineense), serão também subcapítulos que vão completar a caracterização do ambiente e do local de enunciação das obras referidas. A divulgação de uma literatura se faz tanto pelas obras quanto pelo discurso crítico sobre elas e seus autores. Com a finalidade de passar em revista o que até agora se publicou, tanto no campo da análise e da crítica literárias, quanto visando à divulgação, o capítulo 3 (“A literatura guineense: produção e recepção”) apresenta o inventário e uma revisão crítica da produção do conhecimentoe da recepção das obras que trazem ensaios ou comentários mais amplos sobre o corpus aqui estudado. Compreende o balanço das referências sobre a literatura guineense, tanto no campo da historiografia como no da análise literária, tratando primeiramente das obras escritas por guineenses sobre sua literatura; em seguida as referências a essa literatura em Portugal e no Brasil. Em igual procedimento, arrolei o que pude encontrar nos países não lusófonos e referi-me à tênue presença da literatura guineense nos países africanos. Foi possível indicar ensaios muito informativos, mas também constatar que, embora o “espaço vazio” a que se referira Manuel Ferreira em relação à literatura guineense vá sendo aos poucos preenchido (FERREIRA, 1975, p. 319), o desconhecimento dessa literatura, a transmissão de informações incompletas e mesmo incorretas e um conseqüente desinteresse, são ainda lamentavelmente muito grandes. Depois dos capítulos de caráter informativo e introdutório, vou situar e contextualizar minha análise a partir dos efeitos da colonização e sua influência na construção da identidade e 37 da narração da nação, no âmbito específico do acervo literário pós-independência, num esforço de diferenciação de diversos níveis da tomada de consciência identitária. Essa análise constitui o escopo mesmo da pesquisa e a dividi em quatro partes, isto é, em quatro capítulos interpretativos. Homi Bhabha, nas primeiras páginas da introdução de seu clássico O local da cultura, comenta que a pós-modernidade é marcada, entre outras características, pelo fato de que as idéias eurocentradas perdem sua exclusividade e cedem lugar a um alargamento das fronteiras enunciativas, abrindo espaço para outras vozes e outras histórias, muitas vezes dissonantes e mesmo dissidentes (BHABHA, 1998, p. 24). Não entrarei, em minha leitura, no questionamento sobre a inserção ou não das obras estudadas nos espaços da pós-modernidade, pois considero que a diacronia da literatura guineense precisa ser encarada por outros parâmetros. Uma das minhas preocupações é sempre de novo tentar não partir de minha visão não africana, não desejando deter-me em especulações se tal ou tal obra é ou não pós-moderna ou até que ponto se pode falar de pós-modernidade na Guiné-Bissau. Tentando buscar ajuda entre os africanos mesmos, recorri a Anthony Appiah que, em seu livro Na casa de meu pai, se pergunta como a modernidade e a pós-modernidade são vistas a partir dos espaços pós-coloniais (APPIAH, 1997, p. 206). Segundo Appiah, a ideologia que levou os consumidores de arte africana – e da literatura, acrescento eu – a incorporá-la no mundo ocidental, levou-os a incorporar um “Outro” feito nos moldes esperados de exotismo e autenticidade: essa arte deveria ser julgada “por critérios estéticos pretensamente universais e, por esses padrões, finalmente se verificou que era possível valorizá-la” (APPIAH, ib., p. 207). Sempre transmitindo o pensamento do filósofo ganês, “na África, em geral, a distinção entre cultura e cultura de massa, se é que faz algum sentido, corresponde predominantemente à distinção entre os que têm e os que não têm uma educação formal de estilo ocidental como consumidores culturais” (ib.) Isso significa, prossegue Appiah, que o único campo em que essa distinção ocorre com algum significado decisivo ou representativo é na literatura africana escrita em línguas ocidentais. Ali é possível encontrar, sempre ainda na dicção de Appiah, “um lugar para a consideração da questão do póscolonialismo da cultura africana contemporânea” (ib., p. 208), isso no sentido de que a composição e a recepção da literatura pressupõem um comércio de bens culturais do capitalismo mundial (ib.). Segundo ainda Appiah, o que o leitor pós-moderno parece esperar – ou mesmo exigir – de “sua” África é sumamente próximo do que sempre foi exigido: ser uma “máquina de alteridade”, isto é, a obrigatoriedade de corresponder à expectativa de ser “outro”. E Appiah conclui, deixando a questão em aberto: o papel que a África desempenha para o pósmodernismo deveria ser distinguido do papel que o pós-modernismo poderia desempenhar no Terceiro Mundo. Qual seria esse papel, na visão de Appiah, ele não revela: ”é cedo demais 38 para dizer. E o que acontecer, acontecerá, e não por nos pronunciarmos sobre o assunto na teoria, mas pelas práticas cotidianas mutáveis da vida cultural africana” (ib., p. 219). Minha análise da produção literária guineense vai se desenrolar dentro do largo espectro do pós-colonialismo, servindo-me da polifonia e da orquestração de muitos instrumentos e partituras. Vou tratar no capítulo 4 (“Pós-colonialismo, neo-colonialismo, anticolonialismo”), da descolonização, do pós e do neocolonialismo, assim como da auto-colonização e seus reflexos na sociedade e nos discursos literários, pois uma abordagem de qualquer aspecto das culturas na África tem que passar obrigatoriamente pelo crivo da reflexão sobre o colonialismo e suas conseqüências, levando em conta a afirmação de Homi Bhabha que a pós-colonialidade “é um salutar lembrete das relações ‘neocoloniais’ remanescentes no interior da ‘nova’ ordem mundial e da divisão de trabalho multinacional” (BHABHA, 1998, p. 26). Os escritores africanos procedem em seus discursos à “autenticação das histórias de exploração”, para de novo citar Bhabha (ib.), e desenvolvem ”estratégias de resistência” (ib.) as mais diversas. O uso que os autores africanos fazem da língua do colonizador pode ser tomado como um exemplo significativo da reação anticolonialista: os escritores guineenses, apropriando-se do português como veículo literário, praticam um ato político e de auto-afirmação, pois promovem, pela transgressão às normas vigentes do português continental culto, uma desconstrução consciente desse veículo de comunicação para, em seguida, reconstituí-lo, reterritorializá-lo, emprestandolhe uma feição própria e formalizando sua alteridade através de um discurso em que a língua guineense desempenha um relevante papel de diferenciação. É preciso ter-se sempre a consciência de que o “pós” não significa algo que passou. O “colonial” continua a ser para os países africanos o eixo de referência e o elo entre a história que aconteceu antes e a que vem acontecendo depois da independência. Para qualquer estudo que envolva os países descolonizados, é imprescindível relativizar o fim da dominação geopolítica e não perder de vista as outras formas de dominação. Se por um lado a análise enfatiza a ruptura com o regime de exploração e domínio colonial e exógeno, não deve diluir a permanência de novas formas de dependência, talvez mais eficientes, nem tampouco solapar a multiplicidade de contemporaneidades, pois não se pode deixar de ter em conta os muitos e diferentes processos e estágios de dependência e de marginalização das ex-colônias e, dentro de cada uma, as assimetrias existentes, por exemplo, entre a cidade e o campo. A partir das diferenciações conceituais propostas por Schulze-Engler (2003), tratarei no capítulo 4 tanto de textualidades que rasuram e desconstroem a visão colonial como de exemplos que registram e denunciam, pela ironia, a autocolonização, tal como procederam poetas como Tony Tcheka e Pascoal D’Artagnan Aurigemma e prosadores como Abdulai Sila, Filinto de Barros e Carlos Lopes. 39 Introduzo, a partir desse capítulo, o conceito de subalterno, conceito que foi desenvolvido sobretudo por historiadores indianos no âmbito de um projeto pioneiro denominado Subaltern Studies e divulgado, de forma polêmica, por Gayatri Spivak, também indiana, teórica da literatura, docente nos Estados Unidos. G. Spivak, em seus ensaios, insiste em uma revisão crítica da representação do “terceiro mundo”, chamando a atenção para a heterogeneidade e para os diferentes estágios de desenvolvimento entre os países descolonizados, argumentado que não se pode estudá-los num bloco que apague essas diferenças. Põe em relevo, principalmente, a clara discrepança existente, nos países ex-colonizados, entre as elites e a massa subalterna, entre as diásporas cosmopolitas e o povo pauperizado que permaneceu nesses países. “Subalterno” é o marginalizado, o silenciado, o ignorado, o sem voz, o sem direitos. Seu provocante ensaio “Can the Subaltern Speak?” (1988), onde Gayatri Spivak põe em dúvida a possibilidade de que essa situação de marginalidade e de afasia possa ser de fato ultrapassada, continua atual. No capítulo 5 (“Literatura como apropriação simbólica”), tomei emprestado da antropologia social esse conceito, estreitamente ligado às questões étnicas, questões muito palpitantes no mundo africano e que, no momento atual da conjuntura política e social da GuinéBissau, é de grande relevância. Como já vimos, são muitos os estudiosos que insistem na necessidade de um “olhar etnográfico”, isto é, na necessidade da aquisição de conhecimentos indispensáveis sobre o ambiente cultural das diferentes e numerosas etnias que constituem o intrincado mosaico populacional dos países africanos, pois só assim estarão instrumentados para captar os interstícios da comunicação e do entendimento interétnico que ali têm lugar. Assim, será possível contextualizar devidamente a literatura que se está fazendo na Guiné-Bissau. O conflito bélico de 1998/1999 vai congregar os guineenses, unindo todas as etnias que passaram a ter como adversário o inimigo invasor, o senegalês, que era antes concorrente no comércio, mas também o vizinho próximo, muitas vezes inteiramente integrado na comunidade guineense. Tomou-se consciência, de forma dramática, do antagonismo entre o “nós” e o “fora de nós”. Com a apresentação de poemas inéditos de Huco Monteiro e de Respício Nuno, escritos durante a guerra, verdadeiros brados de revolta e de patriotismo, e que demonstram de forma eloqüente esse imbricamento cultural e literário, vai ser possível conhecer os motivos do “desassossego da Guiné” através da voz exaltada daqueles poetas que, embora muito conhecidos como intelectuais em Bissau, até o momento não publicaram senão alguns poucos poemas em antologias. A consciência por parte dos escritores de aspectos da especificidade étnica e cultural dos diferentes grupos constituintes da nação guineense é importante como apropriação simbólica da nação e com isso como afirmação identitária. Os autores estão empenhados no entendimento entre as etnias que convivem no país e o expressam pela apreensão dos símbolos do locus 40 individual como espaço da coletividade que forma o “nós” constituidor da nação guineense. Verifica-se um processo de apropriação do espaço vital no plano da emoção e da representação, intensificado ao se emprestarem densas significações a elementos desse espaço vital, reterritorializado. A questão da apropriação simbólica e da construção social da etnia, analisada por Ulrich Mai e outros, está estreitamente ligada à imaginação da nação de que fala Benedict Anderson. Os elementos constitutivos da identidade cultural são a base dessa construção simbólica. A condição geral de neo ou autocolonizado vai amortecer ou anestesiar a busca de identidade ou, pelo contrário, instigar uma desconstrução do status quo ditado pelos valores e pela visão do discurso autoritário, reagindo contra a ameaça da perda de identidade com a internalização dos valores e elementos que possam contribuir para levar a um encontro consigo mesmo e com a comunidade. Do outro lado dessa polaridade, está a ausência desse espaço vital, o desenraizamento do emigrante na diáspora, em busca do bem-estar que as dificuldades sócio-econômicas e políticas do país não podem oferecer. A conseqüência é o estranhamento, o sentir-se isolado, sem chão e des – locado, tópico explorado na literatura, seja na poesia, seja na ficção. Tanto os versos de Tony Tcheka como as personagens romanescas de Filinto de Barros servem, exemplarmente, entre outros, para ilustrar esse subcapítulo. O capítulo 6 (“Literatura e identidade cultural”) vai tratar primeiramente da relação com a representação da identidade, tanto individual como coletiva, para depois analisar a representação da identidade cultural e da identidade nacional em seus reflexos no tecido textual. Fui buscar no dicionário de literatura da editora Metzler uma definição de identidade que fosse ampla bastante para poder ser aplicada aos estudos literários e culturais: “A identidade é um processo de construção e de contínua revisão da imagem de si mesmo, processo esse que está no ponto de intercessão entre a biografia individual e a interação social, passível tanto de influências pessoais como do meio social e cultural” (Metzler Lexikon Literatur, 2001, p. 267). Nos Estudos Culturais, o conceito de identidade nacional é da maior relevância. Tem sido muitos os autores que buscam defini-lo, como já me referi acima. Todos os teóricos que tratam do tema têm em comum a constatação que nação e nacionalidades modernas são constructos mentais, nem por isso, contudo, menos verdadeiros, envolvendo identificação e lealdade. Para Homi Bhabha, é pacífico também que é pela socialização, resultante de um processo de interiorização das imagens e das idéias simbolizantes da nacionalidade que se estabelecem as distâncias e as diferenças que delimitam e territorializam a “comunidade imaginada”. Segundo Homi Bhabha, “é a partir das tradições do pensamento político e da linguagem literária que a nação surge, no Ocidente, como uma poderosa idéia histórica” (BHABHA, 1997, p. 48). A nação é, para o teórico indo-britânico, um sistema de significação cultural, uma 41 elaboração em que a representação da vida social ou do coletivo é um agente da narração. É o mesmo pensamento de Stuart Hall, que enfatiza o valor da representação, do conjunto de significados no interior do qual as identidades nacionais são forjadas e transformadas (HALL, 2000, p. 49). Os símbolos e as representações são os tijolos que constroem o discurso da narração da nação. A literatura pode funcionar como transportadora da idéia da nação, territorializada pela narrativa que a traduz e lhe empresta uma forma e uma representação. Os escritores, atentos aos múltiplos empregos de tais instrumentos, tantas vezes usados para o exercício do poder, servem-se de seus textos para desmistificarem a ambigüidade do discurso hegemônico salvacionista e centralista, para desconstruirem e reinventarem um novo discurso, rebelde, denunciador, clarividente, muitas vezes profético, eco, mas também termômetro, das turbulências políticas e sociais da atual conjuntura histórica. Dentro do espectro africano, tem-se que levar em conta que as modernas nações ocidentais constituíram no passado o âmago dos impérios e o epicentro da expansão ultramarina, continuando no presente a operar um movimento centrífugo de dominação neocolonialista, não tendo abandonado a ambição de uma hegemonia tanto econômica e política quanto cultural. Um dos programas mais urgentes da descolonização foi o reavivamento e o resgate das culturas autóctones, programa esse que continua atual. As identidades, entre outros fatores, têm a ver com as etnias e, de forma alargada, com o coletivo comunitário e, assim, com a nação. Se no capítulo 5 abordo demoradamente a questão da etnicidade, vai-me interessar, no capítulo 6, num concatenamento necessário, além da identidade individual e da coletiva, a identidade cultural enquanto sentido de pertencimento a uma cultura nacional. A identificação assenta-se no contexto da interação social, numa relação dialética com a alteridade, confrontando o indivíduo com seu grupo social, gerando a necessidade do estabelecimento de trilhos que liguem o “eu” e o “outro” (a identidade individual), mas também entre o “outro” e o “nós” (identidade coletiva ou compartilhada). A primeira pessoa do plural, “um dos maiores mistérios do predicamento humano”, como se expressou Cisneros, emerge às vezes quando objetivamente o "nós" tem pouco fundamento, “outras muitas vezes nem chega a surgir, embora as diferenças entre dois povos que se encaram como inimigos só sejam percebidas por eles mesmos”. (ESCUDÉ; CISNEROS, 2000). O sentimento de pertença é, pois, sedimentado por variados componentes, entre os quais a cultura é da maior relevância. Convencida de que o conceito de identidade cultural assume uma posição central na análise da literatura guineense, vou procurar aqui recompor a malha dos símbolos identitários reveladores da guineidade através das agulhas e linhas da literatura. Embora no discurso literário guineense as especulações em torno do próprio eu, do destino individual, não sejam muito correntes, o sujeito fragmentado e oscilante pode ser 42 reconhecido na poesia intimista de Odete Semedo, principal representante dessa tendência na literatura guineense, indecisa “entre o ser e o amar” (SEMEDO, 1996). Também nos poemas amargos e cáusticos de Félix Sigá emerge a insatisfação do sujeito poético, aprisionado interiormente em angústias existenciais. Já o eixo referencial da obra poética de Pascoal D’Artagnan Aurigemma e de Tony Tcheka, assim como dos poemas-letras de canções de José Carlos Schwarz, aponta para manifestações poéticas expressando sobretudo sentimentos de pertença, de identidade compartilhada e de consciência coletiva, ao lado de indiscutível qualidade estética. As obras desses autores, nos seus diferentes aspectos, podem ilustrar a maneira como o escritor, assumindo seu papel social, identifica-se com seu povo, exercendo a dupla função de porta-voz e intérprete. O último capítulo temático de O desafio do escombro, o sétimo (“Literatura e a narração da nação”), vai tratar alargadamente, através de abundantes exemplos, de como a literatura guineense constitui um importante elemento para a narração da nação. A sociedade, e não somente a nação como um todo, é imaginada nos moldes de um conjunto social detentor de uma história própria que vivencia, na dialética entre o lembrar e o esquecer, dramas, tensões e contradições reais e atuais e é portadora de uma estrutura de valores e símbolos que atribui sentido à história da comunidade, com todos seus conflitos e altos e baixos. Homi Bhabha refere-se às tensões e ambigüidades que envolvem esse conceito e posiciona-se claramente em relação à representação cultural dessa ambivalência nas sociedades contemporâneas: vivencia-se a antinomia entre o “meu” e o “do outro”, entre o prazer despertado pelo espaço “ao pé da lareira” e o receio ou desconforto provocados pelo espaço e pela “raça” do outro. Bhabha serve-se do conceito de espaçonação, no sentido de representação social, destacando as diferenças que configuram o território nacional, com suas fronteiras internas, onde não há (não deveria haver, acrescento eu) lugar para supremacias culturais (BHABHA, 1997, p. 51). Falar de nação na África implica muitas revisões e muitas reformulações que estão sendo elaboradas, até o momento, apenas no nível intelectual da intelligentsia africana, muito longe ainda de uma prática por parte dos governantes e igualmente muito longe da internalização de seu potencial identitário por parte das camadas mais amplas da população. A literatura, nunca é demais repetir, é um dos instrumentos para essa finalidade. O capítulo 7 vai englobar quatro segmentos subordinados ao tema geral dessa última parte do trabalho, estuário para onde vão desaguar as concatenações teóricas dos capítulos anteriores, concebidos como afluentes que tiveram a função de alimentar e adensar as águas desse caudal medular ou seja, “a narração da nação”: a abordagem diacrônica revelou-se adequada para retesar o arco que vai das primeiras manifestações líricas na novel república, expressando uma 43 idéia de africanidade como canto ao continente, à “Mãe África”, até uma gradativa tomada de consciência da guineidade e, posteriormente, da unidade dentro da multiplicidade construtora de uma nação plural. Relendo os autores guineenses, pode-se verificar que se delineia com clareza toda uma trajetória da narração da nação, a partir da encenação de um mito fundador, onipresente na literatura de combate, com manifestações de dor, de repúdio ao colonialismo e de nostalgia de um tempo anterior, da vida não corrompida, ilesa à civilização ocidental. Paralelamente, tem-se a poesia encomiástica e triunfalista, celebrando os heróis construtores do Estado-Nação, temperada com o júbilo e o orgulho pela vitória alcançada contra o poder colonial, e a convocação à união dos esforços na construção da nacionalidade. Seguindo a cronologia, o discurso literário dos anos noventa está marcado pelo aparecimento dos primeiros romances na Guiné-Bissau que refletem a busca identitária que, tanto na África como nas Américas, para escapar da autocolonização, terá forçosamente que encontrar saídas e soluções face ao violento processo de anulação das diferenças e das especificidades por que passaram os novos Estados latino-americanos e africanos. Nas obras que vou analisar nesse último capítulo, sobressai um aspecto fundamental que é o questionamento dos caminhos e das diretrizes básicas percorridos ou a serem percorridos pela incipiente nação. Essa perquirição está latente em Kikia Matcho, romance de Filinto de Barros (1997), que vai ocupar o segundo segmento desse capítulo, obra que o autor mesmo qualificou como sendo “uma abordagem [...] dinâmica do processo de síntese sóciocultural de um Povo”. Filinto de Barros, com seu romance inaugural, passa em revista o passado recente, a partir do enfoque do subalterno e é da representação dessa franja da sociedade que trata esse segundo ítem ou subcapítulo. O terceiro segmento vai enfocar novos aspectos da narração da nação a partir dos três romances que constituem a Trilogia de Abdulai Sila, o primeiro prosador guineense, romancista criativo e original. Vou ressaltar, sobretudo, o instigante Mistida, romance, a meu ver, excepcional, um dos pontos altos da literatura africana de língua portuguesa. Assim como no espectro político do país a legalidade foi sendo cada vez mais desfigurada pelos abusos crescentes da má governança, Abdulai Sila, com seu terceiro romance, exprime uma indignada decepção através de estratégias de representação lançando mão da transgressão às leis da narratologia tradicional, em uma transposição simbólica do estado de espírito de muitos dos seus conterrâneos face à inviabilidade da situação política dos últimos anos da década de noventa. São dez episódios cujo fio condutor é o fato de terem as personagens “uma mistida a safar”, isto é, algo urgente a resolver. O autor apresenta os descaminhos e errâncias provocados por um crime fatal, o roubo 44 da memória, sem a qual a história não é possível, como impossíveis também se tornam a dignidade e a autodeterminação. No quarto e último segmento vou proceder à análise de No fundo do canto , de Odete Semedo, que atualmente é a única mulher escritora da Guiné-Bissau20. Essa obra elabora poeticamente o fenômeno da guerra e seus efeitos morais e psicológicos, sem, entretanto, constituir uma escatologia. Odete Semedo protocola e relata os flagelos do conflito bélico que fustigou a Guiné-Bissau no findar do milênio, registrando os resultados daquela convulsão política e social, fazendo ecoar um canto sui generis que recupera, a seu modo, vivências individuais e coletivas que vão muito além do momento traumático da guerra. A autora põe em relevo a natureza mítica de suas origens, reinscreve e reinventa símbolos e conteúdos apreendidos do imaginário social da coletividade a que pertence, acionando estratégias representacionais de dignidade e esperança para construir novos sentidos com os quais possa remapear experiências partilhadas. Todos esses autores, cada um a seu modo, buscam uma interpretação do momento histórico atual, mas principalmente elaboram uma denúncia da derrota da utopia salvacionista preconizada pelos “donos” do poder. No estudo de todas essas obras, concentro-me na narração da nação, para a qual elas são decisivas. 20 Registro o nome de Domingas SAMY, a primeira mulher a fazer uma publicação em prosa na Guiné-Bissau, com três contos reunidos em A escola (1993), um livro ainda incipiente, mas com o mérito do pioneirismo e de apresentar, pela via literária, diferentes aspectos da vida das mulheres no país. 2 O CONTEXTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO As armas e os barões assinalados Que da ocidental praia Lusitana Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram E também as memórias gloriosas Daqueles Reis, que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando Luis Vaz de Camões. Os Lusíadas 2.1 O meio ambiente A Guiné-Bissau está situada na costa ocidental do continente africano, estendendo-se por uma área de 36.125 km2. A superfície habitável é apenas de 24.800 km2, devido às terras inutilizadas pelas inundações das marés fluviais e pelo alagamento causado pelas chuvas regulares e periódicas. Sua população é atualmente estimada em cerca de um milhão e quinhentos mil habitantes. O país se limita com o Senegal ao Norte, e a Leste e ao Sul com a República da Guiné (cuja capital é Conakry, o país sendo comumente chamado de Guiné-Conakry). Em toda sua extensão ocidental a Guiné-Bissau é banhada pelo Oceano Atlântico. Além do território continental, acrescente-se ainda o arquipélago dos Bijagó, com mais de 80 ilhas, muitas delas desabitadas, de vegetação tropical densa, separado do continente por diversos canais. A Guiné-Bissau é um país plano, o clima é tropical, embora marítimo; nas regiões do Leste, no interior, apresenta-se com extensas planícies áridas, enquanto selvas e florestas ocupam a parte ocidental. O território continental é cortado por rios caudalosos como o Geba, o Cacheu, o Corumbal, o Mansoa, o rio Grande de Buba e o rio Cacine, todos com inúmeros braços. A produção agrícola mais representativa, constituindo a maior percentagem das exportações, é o caju, cultivado por causa da castanha, exportada, sem processamento, em grandes quantidades. A produção de arroz é básica para a alimentação da população. Bissau é a capital e de longe a cidade mais importante, com cerca de 300 mil habitantes e onde se concentra quase toda a economia não agrícola do país. 46 Devido não só à pouca presença da Guiné-Bissau nos compêndios que tratam dos países africanos de colonização portuguesa, mas também ao quase geral desconhecimento sobre esse pequeno país, vou apresentar primeiramente algumas informações gerais, com breves dados sobre a história dos povos que já ali habitavam antes da era colonial, além de informações sobre as lutas coloniais e os principais acontecimentos do período pós-independência até os dias atuais. Parece-me necessário, e mesmo indispensável, esboçar tal panorama para a compreensão das obras literárias guineenses, estreitamente ligadas ao meio e à história do país. Os autores escolhidos como base da minha análise, assim como toda a literatura escrita e grande parte da oratura, no meu modo de ver, só podem ser compreendidos plenamente dentro de um amplo conjunto de referências aos acontecimentos históricos e à extraordinária diversidade étnicocultural da Guiné-Bissau. Trata-se de uma literatura incipiente que se abastece da multiplicidade e diversidade cultural dos grupos populacionais, do passado pré-colonial, da experiência da colonização e da luta de libertação, da difícil descolonização, assim como das dolorosas tentativas do Estado pós-colonial em definir o poder e em encontrar caminhos entre o apego ao “chão” dos antepassados e a inserção dentro do “moderno” mundo das nações contemporâneas. O próprio drama do desenvolvimento e do subdesenvolvimento da Guiné-Bissau está intimamente ligado às tentativas de interpretação do caminho histórico-cultural desse pequeno e desconhecido país, um dos mais pobres do mundo, mas que conheceu uma das mais heróicas e vitoriosas lutas por sua independência e soberania. 2.2 Panorama histórico 2.2.1 A época antes da colonização A história da região que hoje corresponde geopoliticamente à Guiné-Bissau quase se confunde com a dos reinos mandingas. Os Mandinga, etnia muçulmana, vindos do Alto Níger, constituíram o Império do Mali e estendiam-se por uma imensa área na parte ocidental interior africana. Um dos últimos imperadores, Kankou Moussa, famoso por seu poder e riqueza, empreendeu uma peregrinação a Meca no início do século XIV, um sinal de sua autoridade e de sua inserção no mundo muçulmano, feito digno de nota dadas as dificuldades de locomoção naquela época longínqua. O império de Mali estava estreitamente ligado ao do Kaabú (cuja capital era Kansala), formado justamente a partir da expansão do primeiro21. Um de seus guerreiros, Tiramakan Traore, parece estar envolvido com a fundação do Estado Kaabunké, nas 21 Kaabú não deve ser confundido com a cidade de Gabú, a segunda maior cidade do país. 47 planícies da Alta Costa da Guiné (LOPES, 1989, p. 6). Os Mandinga, vindos do interior da África, expandiram-se através de invasões, submetendo pouco a pouco outros grupos, deslocando-os para a costa e impondo sua supremacia. O poder desses povos islâmicos conheceu o apogeu nos séculos XIII e XIV, dominando várias etnias que cultuavam os antepassados e as forças da natureza, povos que praticavam um regime comunitário acéfalo, sem poder estatal, sem hierarquia, e que guardaram, apesar de tudo, suas culturas originais (como os Balanta, os Mandjaco, os Bijagó)22 ou em parte também se islamizaram, como foi o caso dos Beafada. Essa grande influência ou, em alguns casos, até mesmo absorção, é conhecida como malinkização ou mandinguização. Nos séculos XV e XVI, começou a expansão dos povos fula ou fulbe (chamados pelos ingleses de Fulani e pelos franceses de Peul), igualmente muçulmanos, que até o século XVIII estavam sob a dominação mandinga. Espalharam-se pela Guiné, principalmente durante o século XIX, sobretudo depois da conquista de Kansala, em 1867, destruindo o reino de Kaabú e estabelecendo a supremacia dos Fula na região (LOPES, 1982, p.19-21). 2.2.2 Primeiros contactos com os portugueses Data de 1446 o primeiro registro de navegadores portugueses na Costa da Guiné23, quando Nuno Tristão, vindo da costa senegalesa, aportou no trecho do litoral africano que veio a constituir mais tarde a província portuguesa da Guiné24. Nessa sua quarta viagem à “terra dos pretos” encontrou a morte, tendo sido assassinado “por nativos hostis” com uma vintena de companheiros. O massacre terá sido na embocadura de um rio em algum ponto da costa ocidental, não claramente identificado. Entre as diversas hipóteses, pode ter sido na foz de um rio da Guiné, rio Geba ou rio Grande (SILVA, 2002, p. 152). A hostilidade dos nativos tem sua razão de ser na reação africana aos permanentes ataques de frotas portuguesas à costa ocidental, quando seqüestradores incursionavam pelas aldeias litorâneas, levados pela cobiça, apresando escravos. “O escravo era o bem mais valioso ao alcance dos navegadores, enquanto não descobriam os caminhos para o metal amarelo”, escreve Costa e Silva, “e era pelos escravos que os portugueses desciam nas praias africanas” (SILVA, ib., p. 151). Costa e Silva lembra a 22 Para a grafia dos etnônimos guineenses seguirei o Novo Aurélio, onde, no verbete etnônimo, se lê: “Entre os antropólogos que estudam esses grupos indígenas, a grafia dos etnônimos brasílicos adota inicial capitular, não varia em gênero e número, e obedece à convenção para a grafia de nomes tribais recomendada pela maioria dos participantes da Primeira Reunião Brasileira de Antropologia, que ocorreu no Rio de Janeiro em 1953” (FERREIRA, 1999, p. 850). 23 Para este capítulo, cf., entre outras, as obras dos autores guineenses Carlos LOPES, 1987, 1989 e 1999 e Peter MENDY, 1994; do historiador português João BARRETO, 1938 e do francês René PÉLISSIER, 1989; 1989a. 24 Sobre as incertezas e controvérsias acerca das viagens de descobrimentos da época, cf. CORTESÃO, 1975. Em relação ao Brasil, cabe lembrar que os empreendimentos comerciais portugueses desenvolvidos na costa africana constituem a base do que veio a ser o comércio transatlântico dos séculos seguintes, inclusive do tráfico de escravos; cf. p. ex. CARREIRA, 1969. Importantes, entre outras, são ainda as obras de SILVA, 1996 e 2002. 48 Chronica do descobrimento e conquista da Guiné, de Eanes Gomes Zurara (1841), que transmuda essas viagens em “feitos de honra e coragem – e até lhes empresta bandeira de cruzada” – quando o motivo principal teria sido “a preia de escravos e nas quais as maiores façanhas eram a caça a gente desprevenida ou fracamente armada” (ib., p. 150). Ficou também nas crônicas da época um relato de Diogo Gomes em que o navegador revela: “E eu Diogo Gomes tive muito tempo depois uma ancora que me deu de presente o rei dos pretos. E eu fui o primeiro christão que fiz paz com eles, e este rei se chama Nomemains e é senhor de muitas almadias” (BARRETO, 1938, p. 33)25. Por ocasião desses primeiros contactos, os vários povos que habitavam a região constituíam sociedades agrárias em diferentes estágios de desenvolvimento. Comumente, à guisa de simplificação, esses povos são divididos entre os que possuiam uma estrutura social “vertical”, com algumas formas organizadas de poder proto-estatal e hierárquico, com uma autoridade coercitiva central; e aqueles pertencentes a uma sociedade “horizontal”, não estratificada, igualitária, havendo grupos intermediários devido a diferentes influências sofridas ao longo de suas histórias. Como foi visto no segmento anterior (2.2.1), a sede expansionista de uns ou outros grupos ocasionou também muitas correntes migratórias e deslocamentos que continuaram a ter lugar em parte até o século XIX26. Na época das navegações portuguesas, o império dos Mandinga começava a desintegrarse e no século XVI deu origem a diversos Estados mais ou menos autônomos, quando a autoridade máxima do imperador foi repartida com alguns vassalos que se proclamaram mansas, isto é, reis. Dentre eles, um dos mais importantes era o Mansa de Kaabú, extensa região que ocupava áreas muito além dos limites da atual Guiné-Bissau. Kaabú superou mais tarde Mali em importância, pois o eixo de atração econômica da África Ocidental se deslocou cada vez mais em direção ao litoral e bem cedo os portugueses notaram que era mais proveitoso negociar diretamente com a família real do Kaabú do que com Mali. As relações entre D. João II (14811495) – e os demais reis que o sucederam – e os chefes africanos regionais atestam a importância daquele reino, sendo o monarca do Kaabú o maior vendedor de escravos daquela parte do mundo (LOPES, 1987, p. 29)27. 25 O relatório de Luís de Cadamosto, viajante veneziano que esteve várias vezes nas costas africanas, é uma das fontes mais importantes para essa primeira presença portuguesa na África; conheceu várias edições e foi também publicado, entre as muitas fontes dos descobrimentos, pela Academia Portuguesa de História. 26 Essa interdependência iria provocar efeitos não só no plano econômico, também político e cultural, como a resistência das etnias animistas de formação social comunitária, habitantes da costa atlântica, face à dominação e influência das etnias do interior (LOPES, 1982, p. 45). A troca fez-se em ambos os sentidos: a influência animista penetrou nas práticas islâmicas, assim como alguns daqueles grupos se converteram ao islamismo (ib.). 27 O início do colonialismo coincide com o esvanecer do reino do Kaabú. Ambos os acontecimentos estão ligados ao tráfico negreiro que, ao deixar de interessar às nações em via de industrialização, abalou as bases econômicas da região. O fim do Kaabú simbolizará igualmente o fim do período histórico pré-colonial (LOPES, 1989, p. 7). 49 É ainda Carlos Lopes que ressalta a importância do Kaabunké, a nação mandinga, o Estado unificador de tantas etnias da região e cujos diferentes espaços de influência continuam a abranger a cultura de uma vasta área da África Ocidental. É densa e viva a rede de relações entre “os que são hoje os Estados da Gâmbia e da Guiné-Bissau e as regiões da Casamance, do Senegal Oriental e do Futa Jalon”, parte da Guiné Conakry (LOPES, 1994, p. 137). Portugal se limitou por muito tempo quase exclusivamente a se servir da região como ponto de apoio para o comércio escravagista ao longo da costa ocidental africana, vendo-a como um empório comercial e não uma colônia de assentamento própria para a agricultura, como o foram Angola e Moçambique. No século XVI, foram instaladas algumas feitorias ao longo do curso do rio de São Domingos e do rio Grande. Com as sucessivas viagens de navegadores portugueses, foram-se estabelecendo as bases para a expansão mercantil portuguesa na área. No final do século, criou-se a Companhia de Cacheu e de Cabo-Verde, tendo como objetivo principal o tráfico de escravos. No século XVII, os contactos entre o reino do Kaabú e os entrepostos comerciais portugueses de Ziguinchor, Cacheu, Geba e Farim eram regulares. Esses contactos e trocas entre súditos da coroa portuguesa e as autoridades africanas eram, ainda nos primeiros tempos, marcados por uma certa base de mútuo acatamento, sinais de uma relação mais ou menos simétrica. Os portugueses, naqueles primeiros tempos, adotaram estratégias de demonstração de respeito para com seus parceiros comerciais, fazendo crer, assim, aos contraentes africanos, não serem eles tratados como inferiores. A primeira feitoria fortificada, Cacheu, às margens do rio do mesmo nome, data de 1588 (LOPES, 1993). Em 1603, alguns missionários capuchinhos iniciaram seus trabalhos de conversão ao cristianismo entre os habitantes de Bissau28. Em 1607, o régulo de Guinália cedeu aos portugueses a ilha de Bolama, para que nela se estabelecessem e defendessem os seus territórios contra os ataques dos Bijagó, povo insular estabelecido nas muitas ilhas do arquipélago do mesmo nome. Dos fins do século XVI em diante, o crescente florescimento do comércio escravagista contribuiu decisivamente para a desintegração dos reinos do Oeste africano, com isso facilitando a ação colonialista dos portugueses. Esses introduziram novos produtos, tornando o comércio mais lucrativo e conseguiram, com isso, incrementar desavenças e rivalidades étnicas. Entretanto, quando se observa o desenvolver histórico da região, constata-se que o impacto da administração colonial, com seus efeitos desagregadores, só se deu de fato a partir do século XIX e início do XX e necessitou de uma acentuada presença militar como apoio ao colonialismo sistemático para poder impor-se pela força e por violenta repressão. 28 Cf. REMA, Henrique Pinto. História das missões católicas da Guiné. Braga: Editorial Franciscana, 1982. 50 Com o enfraquecimento do tráfico escravista e a diminuição do comércio triangular entre a África, a Europa e as Américas, Portugal passou a dedicar-se com afinco à conquista territorial, preocupando-se também para que os entrepostos comerciais fossem cada vez mais numerosos e ativos. Os historiadores situam o período da conquista propriamente dita entre 1841 e 1936 (PÉLISSIER, 1989, p. 403). Somente a partir do primeiro terço do século XX é possível considerar-se a existência real de um domínio português naquele território, quando se empreenderam, levadas mesmo até as últimas conseqüências, as famigeradas “campanhas de pacificação”, entre 1913 e 1936 (cf. MENDY, 1994). Apenas depois da segunda guerra mundial que a “Guiné” foi submetida a uma verdadeira política de colonização. Conheceu, então, um período extremamente sanguinário e violento, despótico e cruel, em que os estrangeiros se empenharam em realizar a dominação e os africanos resistiram com bravura das mais diversas formas (MENDY, 1994; PÉLISSIER, 1989). Durante séculos, o território guineense foi administrado conjuntamente com o arquipélago de Cabo Verde, inicialmente desabitado, tendo-se estabelecido como um entreposto indispensável para o tráfico humano e para o abastecimento da navegação transatlântica. A ocupação do território continental intensificou-se em 1850 e os estrangeiros eram constantemente confrontados com uma grande resistência por parte das populações locais. Em março de 1879, a colônia foi separada administrativamente de Cabo Verde e recebeu o nome de Guiné Portuguesa; foi quando, então, passou a ter uma administração própria, sendo a capital sediada na ilha de Bolama, no arquipélago dos Bijagós. Naquele ano, instalou-se a primeira tipografia na colônia e no ano seguinte teve início a publicação do Boletim Oficial, importante fonte da história colonial, que foi editado até a retirada dos portugueses do país, isto é, 1974. Bolama desenvolveu-se muito, caindo aos poucos na decadência depois que a capital foi transferida para Bissau, em 1940. Hoje, é uma cidade fantasma, arruinada (cf. CARDOSO, 1996). Mas, como se diz popularmente, “Bolama dismaia ma i ka muri”, a cidade definha mas ela não morre ... Estando a Guiné encravada num território em que predominavam colônias francesas, o difícil problema das fronteiras teve muitos capítulos e foi encerrado em 1886, em decorrência do Congresso de Berlim, convocada por Bismarck para proceder à partilha da África entre as nações européias. Portugal já não podia mais concorrer com as grandes potências imperialistas e teve que se contentar apenas com Angola, Moçambique, as ilhas de São Tomé e Príncipe, o arquipélago de Cabo Verde e a (hoje) Guiné-Bissau. Os limites da então colônia da Guiné Portuguesa, que continuam atuais, foram fixados, portanto, a partir do convênio de 12 de maio de 1886, estabelecido entre Portugal e a França. E só em 1951, a “Guiné” mudou de estatuto, elevada à categoria de Província Ultramarina de Portugal, adquirindo quatro anos depois uma 51 constituição própria e autonomia financeira e administrativa. Carlos Lopes ressalta que “não existe uma legitimidade e continuidade territorial para a nação guineense, que não seja a imposta pela presença colonial” (LOPES, 1987, p. 61). A arbitrariedade de toda essa divisão territorial e o artificialismo das fronteiras impostas pelos interesses imperiais colonizadores, desbaratando famílias clânicas, levantando barreiras geográficas e políticas, provocaram e continuam a provocar tensões desastrosas no continente. Se formos remontar aos primeiros contactos ao século XV, e acompanharmos em seguida, no decorrer dos séculos, a gradual passagem da convivência para a ocupação, dentro das diversas modalidades históricas que esses contactos sofreram, vamos constatar que a presença portuguesa na África foi a mais longa, comparando-a com a de qualquer dos países europeus. A Guiné foi, aliás, um dos últimos países africanos a se tornarem independentes, tendo sido, porém, o primeiro entre as colônias portuguesas. 2.2.3 A colonização Como Angola, Moçambique, o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de São Tomé e Príncipe, a Guiné fez parte do vasto império marítimo português. A experiência dessa longa dominação colonial e da luta anti-colonial está presente na memória coletiva e, mesmo para a grande parte da população, na memória individual dos guineenses. Os confrontos armados e sangrentos que se verificaram entre os africanos e os portugueses desde o início da presença lusitana no território estão fartamente documentados. E, embora tenha havido também colaboração com o invasor29, a hostilidade contra as reivindicações do estrangeiro a exercer “direitos exclusivos” foi por parte de todas as etnias. Durante um largo período (a partir do século XV até sobretudo a metade do século XIX30) foram os portugueses que pagaram tributos e outras taxas aos monarcas locais, inclusive uma taxa de residência. Os Pepel (ou Papel), habitantes da região de Bissau, recusaram sempre qualquer submissão, não se tendo considerado nunca súditos do regime invasor31. Os Fula têm até hoje a reputação de terem sido condescendentes com o regime colonial português. Durante a guerra colonial, Portugal recrutou sobretudo entre eles os “comandos africanos”, temidos por sua crueldade na luta contra a guerrilha anticolonial. 30 De 1850 a cerca de 1915 fala-se de um período caracterizado pelo paralelismo de dois espaços de jurisdição (os povoamentos africanos e os centros comerciais e residenciais do colonizador), sem deixar de haver o pagamento dos referidos tributos. Cf. DIALLO, 2004, p. 88. 31 Corre a crença que o nome dessa etnia estaria mesmo ligado ao relacionamento difícil com o colonizador. Conta-se que os habitantes da ilha de Bissau, muito rebeldes, nunca quiseram pagar os impostos impingidos pelos colonizadores e, sempre que recebiam a notificação de pagamento, levavam o “papel” diretamente ao “posto”, reclamando serem eles os donos do chão e que por isso não iriam pagar nada. Assim, sempre que os homens apareciam, os brancos exclamavam “aí vêm os homens do papel”. E o nome ficou. A informação me foi fornecida por Odete Semedo, a quem agradeço. Os guineenses usam a forma Pepel, enquanto que os portugueses parecem preferir Papel. 29 52 Os esforços e sacrifícios enfrentados pelos colonizadores para realizar a posse do território foram imensos e, na memória coletiva dos portugueses, são interpretados como atos heróicos e justificados. Como ilustração dessa postura e para espelhar a mentalidade corrente na época, transcrevo uma declaração de um administrador colonial: “Aquilo que hoje temos é nosso e muito nosso, custou rios de sangue a portugueses”32. Custou igualmente rios de sangue aos africanos. Pela persistente e cruenta insubordinação de seus habitantes, a colônia ficou conhecida como Guiné, a rebelde (PÉLISSIER, 1989, p. 408). Quando Fausto Duarte, funcionário do Estado português, romancista de repercussão em sua época, refere-se à “Guiné”, retrata-a como a “terra temida entre tôdas as outras, mal afamada, o inferno de África, só boa para degredados” (DUARTE, 1945, p. 52). É um exemplo entre muitos. Na medida em que o “outro” e o seu locus são caracterizados negativamente, avultam a importância e a heroicidade daqueles que se aventuraram a enfrentar os horrores e as dificuldades em nome e para a glória da coroa portuguesa. A história das lutas pela conquista e conservação do território colonial e da paralela e incansável resistência perpetrada pelos africanos está bem documentada e continua sendo tema importante para os historiadores. Utilizei aqui, sobretudo, obras que trazem uma visão endógena desse longo período: as várias publicações de Carlos Lopes33 e muitos artigos da revista Soronda, abordando diferentes aspectos e fases da ocupação estrangeira e conseqüente rechaço por parte dos africanos. Foi-me essencial a visão do historiador Peter Mendy, e sua obra sobre “a tradição de resistência na Guiné-Bissau” (MENDY, 1994). Além dos muitos estudos portugueses a respeito, a pesquisa mais divulgada sobre a colonização na região e sobre os povos que ali habitavam é a de René Pélissier, historiador francês que também escreveu sobre o mesmo período em Angola, em Moçambique, Timor e outros países do antigo império ultramarino português. Atestando exaustiva investigação, tendo sido publicada no mesmo ano em francês (1989) e em português (1989a), apesar da massa dos dados históricos e aspiração de objetividade, a obra deixa transparecer a posição eurocentrada do autor. Apesar de tantos conflitos e da superioridade do aparato militar dos europeus, somente no início do século XX os portugueses alcançaram vitórias mais duradouras e suas investidas decisivas lhes asseguraram o domínio do território guineense. As reações anticolonialistas, porém, continuaram sempre. Além dos confrontos armados, elas foram dos mais diversos tipos: resistência passiva, emigração, fuga, não pagamento dos impostos, recusa aos trabalhos forçados 32 Arnaldo Brazão. “A vida administrativa da colónia da Guiné”. In: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. n° 7, 1947, p. 751 (apud LOPES, 1987, p. 31). A administração “de fato” colonial portuguesa, ancorada na “efetiva” ocupação do solo, só teve início em 1925, tendo sido precedida de uma primeira fase da “campanha de pacificação” (DIALLO, 2004; MENDY, 1994, p. 187 e ss.; PÉLISSIER, 1989, sobretudo o capítulo V; MENDY, 1994, p. 187 e ss.). 33 Cf. as obras de C. LOPES na bibliografia final; e ainda A construção da nação em Africa (1989). 53 e protesto contra uma agricultura voltada à exportação. Contudo, “seria uma distorção da história dar a impressão de que a resposta dos africanos à intromissão dos portugueses foi em toda parte de firme oposição”. Paralelamente à tradição de resistência coexistiu a tradição da colaboração, reconhece o historiador Peter Mendy (ib., p. 423). E desde os primeiros tempos houve ambos os lados da medalha, a hostilidade e a hospitalidade, a reação e a submissão, o compromisso e a revolta. O tratamento dado aos africanos foi o mesmo em todos os regimes coloniais, norteados pela falta de respeito, a brutalidade e a completa desatenção aos direitos humanos básicos. O regulamento de trabalho dos “indígenas” era severo e cruel, estando-se disposto a todo custo a “castigar o gentio rebelde”; também a cobrança de tributos e impostos era exorbitante e arbitrária, os africanos sendo, sistematicamente, cada vez mais excluídos de suas prerrogativas políticas, sociais e econômicas, e tudo isso em nome da “missão civilizadora” (LOPES, 1987, p. 35). O período de 1913 a 1915 foi marcado por um recrudescimento da "pacificação", levada a efeito com invulgar violência pelo comandante Teixeira Pinto, nome ainda hoje gravado na memória popular. A ilha de Bissau e a área que hoje constitui a capital guineense estavam firmes nas mãos da etnia dos Pepel que fizeram hostilização acirrada até 1915, quando foram vencidos. Os cronistas da época atestam o orgulho e a valente altivez dos soberanos pepéis. A localização geográfica desse grupo étnico, como a dos Mandjaco, ao longo da costa, deram-lhes possibilidades privilegiadas de negociação com os portugueses, tendo seus reinados34 acumulado grandes riquezas e poder (LOPES, ib., p. 24), mudando diversas vezes de estratégia, ora colaborando com o invasor, permitindo que este edificasse um grande forte em Bissau, ora hostilizando-o, restringindo-lhe o raio de ação a essa única cidadela fortificada e exigindo-lhe o pagamento de tributos. Peter Mendy registra comentários dos cronistas da época: “nenhum respeito, nenhum temor” pelos portugueses aos quais era permitido “arvorar as bandeiras de Vossa Majestade” somente porque pagavam tributos ao “Rei negro” que era quem de fato fazia a lei na povoação, resolvia as disputas e impunha multas, enquanto o governador português era um “mero espectador” (MENDY, 1994, p. 421)35. 34 Esses reinados chamavam-se “regulados” e seus chefes eram denominados “régulos”, muitos deles exercendo autoridade e influência sobre vastas regiões. Essa estrutura de poder atesta a influência dos Mandinga e mais tarde dos Fula. O termo régulo, evidentemente do léxico português, consagrou-se no uso corrente. É um diminutivo de rei e o fato de o colonizador empregar um termo que significa “reizinho” ou “pequeno rei” para designar o chefe máximo dos agrupamentos étnicos pode espelhar o menosprezo eurocentrado do expoliador, pois se tratava muitas vezes de soberanos senhores de muitas riquezas, de grande poder e respeitabilidade. Hoje em dia o termo se generalizou, sem que se pense mais nessa carga depreciativa. 35 Sem esquecer as hostilidades contra os apresadores de escravos que marcaram já os primeiros contactos, a resistência à ambição portuguesa na área remonta pelo menos a 1588, quando se deu um sangrento e violento combate entre os africanos e os invasores por ocasião da construção da aldeia fortificada de Cacheu. A resistência ali prosseguiu e culminou em 1878, com o massacre das forças militares portuguesas na região (MENDY, 1994, p. 108). Sobre Cacheu, no norte do país, cf. LOPES, 1993. Sobre a resistência por parte de outras etnias, cf. os autores aqui citados e a bibliografia final. 54 Os Bijagó, povo das ilhas do arquipélago do mesmo nome, não se dobraram tampouco à dominação portuguesa. A legendária rainha Okinka Pampa continua presente na memória dos guineenses como um baluarte contra o domínio colonial. Devido a essa férrea resistência, os portugueses só puderam considerar o território completamente “pacificado”, isto é, dominado, em 1936, quando, depois de anos de ferozes combates, os povos insulares acabaram capitulando (MENDY, ib., entre outros). As províncias ultramarinas estavam diretamente ligadas à capital da metrópole e isoladas do resto do mundo. Em 1930, o assim chamado Acto Colonial, idealizado por Salazar quando ainda ministro das colônias, consolidou um colonialismo centralizador, seguindo a convicção de que as colônias existiam em função do enriquecimento da grande burguesia metropolitana. A partir de 1940, Bissau se tornou a capital, substituindo Bolama que já na época se encontrava em franca decadência. A nova capital teve um surto de desenvolvimento e de modernização urbanística, ficando conhecida como a mais bonita cidade do império português ultramarino. Em 1951, a então colônia foi transformada em Província Portuguesa de Ultramar. O Estatuto do Indigenato36 era posto em prática com mão de ferro, separando clara e discriminadamente os “indígenas” da rarefeita camada dos “civilizados” – aqueles que falavam minimamente o português ou pelo menos o crioulo, tinham adquirido hábitos urbanos e tinham o privilégio de um rudimento de escolarização. A insatisfação minava a aparente consolidação do poder colonizador, o que não passava desapercebido, e foram em vão as tentativas de aliciar o povo a partir de benefícios a alguns régulos e de um certo afrouxamento da severidade dos governadores (e concomitantemente o alastramento dos tentáculos repressivos da polícia secreta, a famigerada PIDE, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado), culminando com a iniciativa já improdutiva de uma ação que visava, face aos fracassos militares, a aliciar a população, abrandando (aparentemente) a repressão, libertando presos políticos, tentando de todo modo fazer frente ao PAIGC, o partido da libertação, na época clandestino. O clima para a reação anticolonial organizada e alargada tornava-se cada vez mais propício. O General António de Spínola, Governador e Comandante Chefe das Forças Armadas da Guiné de março de 1968 a setembro de 1973, concretizou a execução do referido programa “Por uma Guiné Melhor”, ou simplesmente “Guiné Melhor”, uma campanha psicológica “combatendo ideias com ideias”, na convicção de que a salvação da soberania portuguesa em ultramar não seria um empreendimento das Forças Armadas, mas se daria sobretudo a partir do fomento econômico e social e pela promoção cultural das populações (GARCIA, s.d.). 36 O Estatuto do Indigenato, que teve várias modificações desde a separação em 1917 entre “indígenas” e “não indígenas”, foi sancionado em sua forma definitiva em 1954 e acabou sua validade somente em 1961, quando se deu a tentativa demagógica e aliciante, fruto do desespero, da campanha da “Guiné Melhor”, levada a efeito pelo governador António de Spínola. 55 Fernando Delfim da Silva, político guineense que ocupou várias pastas ministeriais, em livro recente sobre o período pós-independência (SILVA, 2003), carregado pela emocionalidade participativa de testemunha ocular da história, faz uma análise alargada dos últimos anos antes da descolonização, destacando o papel fundamental que o jovem compositor e poeta José Carlos Schwarz e seu grupo musical e cultural Cobiana Jazz teria desempenhado nessa fase crucial dos estertores do colonialismo português, confrontando sua liderança revolucionária com o spinolismo que, pelo chamariz do projeto “Guiné-Melhor”, tentava ainda ganhar a causa colonial, perdida militarmente. Fundado em finais de 1971, “na maré alta do spinolismo” (ib., p. 174), era intenção do grupo Cobiana Jazz tornar-se uma associação cultural e política “onde o papel do agrupamento musical emergente seria nuclear mas não exclusivo” (ib.)37. Foi, pois, a convicção de que não mais era possível uma vitória militar ante a massiva revolta das populações das colônias ultramarinas que levou o governo português à necessidade de reformular a construção política do império, ao reconhecimento da necessidade da participação das populações e da africanização dos quadros políticos e administrativos. O poder colonial passou a realizar uma série de manobras contra-subversivas com o objectivo de proteger e fortalecer as estruturas políticas e sociais coloniais e impedir que a reação anticolonialista tivesse êxito. A estratégia escolhida foi apoiada por uma maciça “ação psicológica”, uma bem estruturada campanha de contra-propaganda para aliciar as populações e neutralizar e, se fosse possível, anular, a influência da guerrilha comandada pelo PAIGC. Entre as muitas medidas de contra-propaganda, opondo-se ao trabalho clandestino e no seio da população por parte dos revolucionários, estavam a publicação de jornais e revistas, como o “Panorama da Guiné” e a “Voz da Guiné”, e a difusão de programas radiofônicos, tanto em português, como em línguas nativas e até em francês, com a intenção de divulgar e popularizar a política governamental, contradizer a propaganda do PAIGC e fomentar a deserção e contestação dentro daquele partido libertário. As ações empreendidas, tanto interna como externamente, no campo social, político, militar e psicológico chegaram tarde demais e se mostraram impotentes face às investidas do movimento anticolonialista liderado por Amílcar Cabral38. 37 Cf. SILVA, 2003, p. 168-186, com uma visão inédita do papel do grande compositor que permanece inesquecível e continua a ser celebrado no país. Cf. também AUGEL, 1997b; 1998a. Delfim da Silva pretende, com esse livro, demonstrar como a situação política atual, sobretudo a crise que culminou com o conflito militar de 98/99, tem suas raízes nos inícios mal começados do Estado guineense. 38 Há uma literatura imensa sobre o colonialismo português e sobre a vã política “contra-subversiva” de Portugal. Para as notícias sobre a “Guiné Melhor”, servi-me, entretanto, sobretudo, das informações da rede eletrônica contidas no site http://www.instituto-camoes.pt/bases/25abril/ultimabatalh.htm, da autoria do Major Miguel Garcia. 56 2.2.4 A luta armada Na década de cinqüenta do século XX, o clima de insatisfação geral que sacudia toda a África fez vibrar também nas colônias portuguesas a ânsia pela liberdade. Apesar de poucos em número, pois a metrópole não foi pródiga em proporcionar aos seus súditos de além-mar oportunidades de formação acadêmica, estudantes africanos em Lisboa reuniam-se na Casa dos Estudantes do Império onde veiculavam livros e notícias vindos da França e as idéias libertárias se expandiram, embora em clima de clandestinidade. Dentre esses estudantes, destacam-se os angolanos Agostinho Neto e Mário Pinto de Andrade; os moçambicanos Eduardo Mondlane e Samora Machel; e Amílcar Cabral, nascido na Guiné, criado em Cabo Verde, ligado estreitamente a ambas as colônias, o líder máximo e mentor da resistência guineense e caboverdiana39. Cabral, dirigente intelectual, militar e político da luta da libertação, foi admirado e aplaudido internacionalmente como teórico revolucionário, chefe militar e estadista. Em 1956 (19 de setembro), com “mais 5 patriotas da Guiné e Cabo Verde” (P.A.I.G.C., 1974, p. 147), ousou a criação, em Bissau, do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, cujo objetivo foi “a conquista imediata da independência e a construção da paz, do bem-estar e do progresso para o povo da Guiné e Cabo Verde” (ib.). O partido foi, dessa época e diante, núcleo e motor do movimento de independência, com adeptos organizados clandestinamente tanto na então Guiné Portuguesa como na Guiné-Conakry e em Portugal, começando por atividades políticas de arregimentação e conscientização nos centros urbanos, espalhando-se por todo o território. Desde o início, a ideologia libertária do Partido envolvia o binacionalismo, ambicionando tanto a independência da colônia continental como da insular. A ação militar desenvolveu-se somente em terras da Guiné, mas, com todo o empenho, Cabral ressaltava a união entre os “dois ramos do mesmo tronco”, união desejada pelos líderes do partido mas nem sempre aceita pelas bases que viam com maus olhos os cabo-verdianos (chamados de burmedjos, vermelhos, mestiços), muitos pertencentes à elite urbana, mais instruídos, mais próximos aos portugueses, permanente motivo para comparações, ciúmes e ressentimentos. Em 1958, foi criada a UNTG, União Nacional dos Trabalhadores da Guiné, movimento sindical também clandestino que provocou em 3 de agosto de 1959 uma greve geral de estivadores e marinheiros, trabalhadores do porto do Pindjiguiti, para protestar contra os baixos 39 Sobre Amílcar Cabral há um grande número de publicações, tanto em português, como em inglês, francês, russo, espanhol e mais. Mário Pinto de Andrade, seu companheiro de luta, foi o editor de suas “obras escolhidas”, sob o título Unidade e luta, em dois volumes. Cf. ainda, entre muitos, Patrick CHABAL que fez seu doutorado sobre Cabral, contendo o substancioso livro daí resultante uma riquíssima bibliografia ligada ao líder africano (1983). Cf. também ROSA, 1993. Cf. a bibliografia final. 57 salários, e que foi brutalmente repelida pelas forças coloniais. Do massacre do Pindjiguiti até 1961, as atividades dos revolucionários se desenvolveram sobretudo “no mato”, num sistema de guerrilha. O cerco de repressões se estreitava e crescia a ousadia dos insatisfeitos. A partir de agosto de 1961 deu-se início à “acção direta”, com sabotagens, cortes de vias de comunicação, destruição de instalações; em 1962, deu-se um assalto pela PIDE a um centro clandestino do PAIGC em Bissau, seguido de muitas prisões. A 3 de janeiro de 1963, depois de alguns anos de preparação, foi desencadeada a luta armada para a libertação do país, nas frentes do Sul e do Leste, a partir de bases militares de guerrilha na vizinha República da Guiné. Meses depois, em julho, foram abertas frentes de combate ao Norte. A luta armada tornou-se cada vez mais cruenta e desesperada, desenvolvendo-se por onze anos, em sistema de guerrilha, conquistando pouco a pouco quase todo o território guineense40. Em 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi assassinado em Conakry, diante de sua residência, sendo substituído por seu meio-irmão Luís Cabral à frente do PAIGC. Os assassinos, dois guineenses, foram presos, mas os mandatários desse crime nunca foram descobertos. Longe estava, porém, que um tal golpe emocional e político enfraquecesse a luta pela libertação nacional. As forças libertadoras proclamaram unilateralmente a independência da Guiné naquele mesmo ano, em 24 de setembro de 1973, em um ato festivo, na pequena localidade de Lugadjol (ou Lugajol), situada na longínqua e inóspita região montanhosa de Madina de Boé, no Sudeste do país41. Somente depois da queda do regime ditatorial português (25 de abril de 1974) Portugal reconheceu, em 10 de setembro de 1974, a independência da Guiné. No dizer de Carlos Lopes, o aspecto mais espetacular da independência continua a ser a unilateralidade da proclamação. Portugal não fez senão reconhecer de jure uma situação de facto já anteriormente consolidada (LOPES, 1987, p. 99)42. Seguiram-se em 1975 as independências de Moçambique (25 de junho), São Tomé e Príncipe (12 de julho) e, meses depois, de Angola (11 de novembro). Cabo Verde, que empreendeu conjuntamente com a “Guiné” as lutas de libertação, alcançou sua independência a 5 de julho de 1975. 40 Contam-se onze anos de luta tomando como ponto de partida o desencadeamento da luta armada (1963), mas já tinha havido vários embates sangrentos entre grupos guerrilheiros e forças militares portuguesas. No livro de história publicado pelo PAIGC, na penúltima página, pode-se ler: “Aos 17 anos de luta, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) proclamou no dia 24 de setembro de 1973, no interior do território que ele controla, a República da Guiné-Bissau” (P.A.I.G.C., 1974, p. 181). A contagem, ali, foi a partir da fundação do partido (1956). 41 Existe um romance de um autor português atualmente radicado no Brasil que trata ficcionalmente dos últimos meses que antecederam a proclamação da independência da Guiné e Cabo Verde; a cena do ato festivo em Boé é o ponto alto daquela narrativa. Cf. FERREIRA, João. Uaná. Narrativa africana, 1986. A respeito, cf. AUGEL, 1998a, p. 57 e ss. Sobre as circunstâncias e as implicações políticas da morte de Amílcar Cabral, cf. CASTANHEIRA, 1995. 42 Não me alonguei aqui sobre as lutas de libertação por haver um grande némero de publicações sobre o assunto. 58 2.2.5 O período pós-independência Após a conquista da independência, a estrutura administrativa colonial do novo Estado GuinéBissau sofreu uma profunda reformulação. O território foi dividido em oito regiões, um setor autônomo, 38 setores e várias seções administrativas. Politicamente, o país, como os demais PALOP, ficou sob forte influência dos países socialistas, dos quais recebeu massiva ajuda. O primeiro presidente da República da Guiné-Bissau foi Luís Cabral, um dos principais líderes da resistência anticolonial, chefe militar que comandou uma parte do exército guerrilheiro, figura carismática e de grande respeito no seio dos revolucionários. Governou o país até 14 de novembro de 1980, quando um golpe de Estado, tendo como justificativa salvaguardar a unidade nacional e os ideais revolucionários, o derrubou, em nome do que foi chamado eufemisticamente de "movimento reajustador", liderado pelo então primeiro ministro João Bernardo “Nino” Vieira43, um dos principais estrategistas das lutas libertárias, guerrilheiro legendário, herói nacional igualmente carismático, um dos braços fortes do PAIGC. A constituição foi dissolvida e uma junta militar de nove membros, sob a chefia de Nino Vieira, passou a dirigir o país até a promulgação de uma nova constituição, em 1984. Essa mudança foi reflexo da crise político-estrutural que se estava agravando desde os primeiros anos da descolonização e era indicador do profundo fosso, tanto político como econômico, que se estava abrindo entre a cidade e o campo, isto é, entre a elite pequeno-burguesa detentora do poder e os produtores camponeses, sobre cujos ombros pesaram os maiores sacrifícios durante os longos anos da luta, mas que continuavam sem representação política e relegados à própria sorte. Essa elite era em parte constituída por cabo-verdianos, o que acrescia as insatisfações. O novo governo prometia estabelecer uma política rural condizente com os interesses e necessidades locais e se propunha a refrear a onda de modernização, uma das prioridades do governo anterior que se empenhou no fomento à industrialização, iniciativa em princípio boa mas que resultou megalômana, ultrapassando a demanda e as possibilidades da recém-fundada república, evidenciando-se como quimérica, criando “novos fantasmas no mato” (PADOVANI, 1991, p. 3), instalações industriais e conjuntos de processamento de produtos da terra, em enorme escala, muito além da demanda local. A primeira década desse segundo governo foi marcada por tensões de ordem tribalista que, sem a liderança de Amílcar Cabral, se mostraram difíceis de serem contornadas. A 17 de novembro de 1986 as tensões se concretizaram provocando uma série de prisões e de execuções 43 O nome do presidente é João Bernardo Vieira. Como é corrente do país, tem também um apelido, “Nino”, que ficou consagrado, sendo como esse político é até hoje conhecido. Ainda é comum chamá-lo pelo seu nome de guerra, Cabi ou Caby. O nome de guerra de Amílcar Cabral era Abel Djassy. 59 de líderes políticos e essas mortes ainda hoje pairam como uma sombra na história do PAIGC e de seus governantes. O recente livro de Fernando Delfim de Silva relata com muitas particularidades todo esse conturbado período (SILVA, 2003). O governo era mantido com mão de ferro por um Partido-Estado, partido único, o PAIGC, força onipresente e onipotente, auto-intitulado representante da democracia revolucionária, coberto e legitimado pelas glórias da libertação. Aos poucos, na seqüência de uma tímida liberalização econômica, o país conheceu a abertura política: o pluralismo partidário foi implantado a partir de 1991, processo que durou alguns anos, período em que se ensaiou uma oposição finalmente tolerada44, culminando, em agosto de 1994, nas primeiras eleições legislativas e presidenciais. O antigo presidente João Bernardo Vieira foi eleito com uma estreitíssima maioria de votos no segundo turno das eleições presidenciais, não se verificando nenhuma alternância no poder. Em maio de 1997, consumou-se oficialmente a integração da Guiné-Bissau na União Económica e Monetária da África Ocidental (UEMOA), da qual falarei mais adiante. A partir dessa integração regional, foi acenada aos guineenses a esperança de maior prosperidade e estabilidade para o país, embora muitas dúvidas e protestos se fizessem ouvir. Tanto no tempo de Luís Cabral como no período seguinte, praticamente até o começo da década de noventa, a imposição do status quo foi efetuada através da força e da prepotência, do serviço secreto, da prisão, da eliminação de adversários e da repressão de toda resistência. A corrupção, o nepotismo, o compadrio dominaram. O discurso oficial prosseguiu pautado na permanente evocação do heroísmo dos combatentes pela liberdade da pátria (dos quais são esses antigos generais seus representantes máximos), na glória da revolução e na unidade nacional. A campanha para as primeiras eleições pluralistas na Guiné-Bissau foi, por exemplo, caracterizada por uma freqüente referência à história, a aquele momento fundador da nacionalidade, como fonte de legitimidade dos candidatos. No ano 2005, quando novas eleições tentaram pôr fim a uma instabilidade que se faz por demasiado alargada, muito tardando a paz e a sonhada prosperidade, o discurso dos candidatos prossegue o mesmo, a recordação apelativa ao passado de luta e de bravura continua substituindo um programa de governo e de metas concretas para o desenvolvimento do país. A valorização da história oficial fixada pelo PAIGC continua sendo uma bandeira usada pelos governos e ninguém melhor do que Nino Vieira podia apelar para o simbolismo de que o passado recente guineense está impregnado. Segundo o analista político Fafali KOUDAWO (1994), Nino Vieira, como herói nacional, imbuiu-se do papel de herdeiro da revolução 44 Uma das conseqüências dessa política de abertura foi a reabilitação dos régulos, como são conhecidos os chefes tradicionais, detentores do poder local tradicional, descendentes e herdeiros dos monarcas dos reinos pré-coloniais e que continuaram a existir na época colonial. Cf. nota 34. 60 cabralina e do espírito da luta, pondo-se na posição de legatário do PAIGC, continuador da obra de Amílcar Cabral, com toda a sua aura irradiante, unindo a imagem do herói morto à do herói vivo, presente em todas as fases da recente história do país, encarnando a afirmação da dignidade do povo guineense, finalmente livre do opressor, da fundação de sua nacionalidade, da preservação da unidade nacional num país que se festeja como multicultural, multiétnico e mesmo multirracial. A pequeníssima percentagem com que Nino Vieira conseguiu conservarse no poder em 1994, apesar de toda a potência do aparato governamental à sua disposição, patenteia a desconfiança e a insatisfação que grassavam no seio da população. Quatro anos depois das eleições, essa crescente insatisfação e o desprestígio do governo mostravam-se cada vez mais agudos, indo desembocar numa séria crise política que culminou com o golpe militar desencadeador da guerra, ocorrida de junho de 1998 a maio do ano seguinte, pondo fim à hegemonia do PAIGC, que vinha mantendo firmemente as rédeas do governo desde 1974. As conseqüências daí advindas (materiais, morais, políticas e econômicas) ainda na atualidade não foram superadas. A Guiné-Bissau estava, apesar de todas as dificuldades, tentando aprumar-se, as iniciativas de empresários privados estavam dando frutos devido à liberalização econômica, o programa de ajustamento estrutural ligado aos setores produtivos parecia funcionar, assim como os projetos macro-econômicos orientados pelo Banco Mundial, a rede rodoviária estava sendo alargada e muito melhorada, o sistema educacional pela primeira vez estava sendo moralizado e modernizado45 e havia uma luz – até brilhante – no fim do túnel. Desde o término do sangrento conflito de 1998/99 que o país vem tentando recompor-se, até agora sem conseguir superar as mais elementares deficiências infra-estruturais. Nino Vieira, deposto e exilado em Portugal, expulso do partido do qual foi um dos ícones, ameaçado de julgamento pelos crimes cometidos, depois de seis anos no exterior, volta espetacularmente para a Guiné-Bissau, para reassumir um lugar no palco político do país, apesar de juridicamente estar impedido disso. Depois de turbulenta campanha eleitoral, é consagrado por mais da metade da população votante como o quarto presidente, eleito em 24 de julho de 2005. Sobre o assunto, tratarei mais adiante. Antes, porém, para melhor compreensão dos traumatismos que a guerra de 1998/99 causou, será necessário recuar no tempo e lembrar os antecedentes mais diretos desse conflito crucial para os destinos do país. No capítulo 5 deste 45 Com perspectivas concretas, por exemplo, para a introdução da língua guineense e mesmo de outras línguas étnicas no ensino elementar, distribuição de material escolar por toda a rede de escolas do país, etc. Muito embora o PAE (Programa de Ajustamento Estrutural) não tenha contemplado propriamente os setores sociais. Sobre o setor de educação, cf. SEMEDO, Maria Odete Costa (Coord.). Plan Internacional (ed.). Educação na Guiné-Bissau. Organização, evolução e alguns indicadores de desempenho. Bissau, 2000. 61 trabalho apresentarei exemplos tirados sobretudo da poesia e com temáticas estreitamente ligadas a esse doloroso momento. 2.2.6 Antecedentes do conflito armado de 1998/99 As causas do levante estão enraizadas nos albores do surgimento do Estado da Guiné-Bissau. Toda insurreição esconde antecedentes conjunturais de caráter político, social e econômico e os analistas estão concordes em apontar a crise e conseqüente descrença no Estado como os mais importantes fatores (e os mais recuados no tempo), somados em um conjunto de situações que se vinham acumulando e agravando havia pelo menos duas décadas (CARDOSO, 2000, p. 89). Pode-se mesmo buscar na história colonial, na velha concorrência entre Portugal e a França, um dos pivôs que afinal espoletaram esse conflito sangrento. Como resultado da imposição artificial das fronteiras e da troca de certos territórios entre a França e Portugal, no já referido acordo de 1886, uma pequena região se tornou causa de instabilidade e guerra local, sobretudo durante as últimas décadas. Trata-se da Casamansa, uma estreita faixa de terra ao sul do Senegal, na fronteira com a Guiné-Bissau, de antiga colonização portuguesa, onde atua há muitos anos um movimento independentista. Como em tantas áreas fronteiriças da África, ali se mostram patentes as trágicas conseqüências da arbitrária demarcação dos limites das colônias pelas potências estrangeiras. Até hoje ali se fala um crioulo muito semelhante ao crioulo guineense e há profundos laços, inclusive familiares e étnicos, entre os habitantes da Casamansa e os das terras guineenses vizinhas46. Havia mais de quinze anos que militares guineeenses vinham fornecendo armas aos rebeldes da região, para grande descontentamento de Dacar e de Paris, ocasionando constantes conflitos. Além de ser uma região muito bonita, com lindas e aprazíveis praias, própria, portanto, à exploração turística, o principal interesse senegalês, além do potencial agrícola, está nas jazidas de petróleo “off-shore” ali descobertas, fato obviamente ainda desconhecido quando, em 1886, em conseqüência do Tratado de Berlim, a Casamansa foi destinada à França, dentro da área do Senegal, em base de uma troca da região de Cacine. Com o desbarato do mundo socialista, a Guiné-Bissau perdeu no Leste europeu importantes aliados e parceiros, tanto na área militar quanto econômica, o que a obrigou a aproximar-se da França, aproximação que teve seu preço: a 46 A 30 de dezembro de 2004 foi celebrado um acordo geral de paz entre o governo da República do Senegal e o Movimento das Forças Democráticas da Casamance (MFDC), o grupo separatista, que assim renuncia definitivamente à luta armada. Deverá haver a desmobilização dos ex-combatentes, a integração dos mesmos em corporações para-militares e se tomarão medidas para o regresso dos refugiados. Cf. notícia publicada na Gazeta de Notícias, Bissau, 5.1.2005, p. 16. Sobre os contornos do conflito, cf. p. ex. ESTEVES, Maria Luísa. A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Bissau: INEP, 1988. Casamansa é o nome do rio e da região, o gênero gramatical variando se a referência é a um ou à outra. Sobre a Casamance, cf. também na internet: http://fr.wikipedia.org/wiki/Casamance. 62 exigência de que cessasse o fornecimento de armas aos rebeldes senegaleses. Freqüentes denúncias por parte das autoridades senegalesas e francesas não conseguiram, entretanto, pôr fim ao tráfico de armas e ao envolvimento das autoridades militares guineenses nessas transações. A pressão de Dacar e de Paris tornou-se mais intensa depois da integração da Guiné-Bissau na aliança monetária dos países africanos ocidentais, ocorrida oficialmente, depois de largo tempo preparatório, a 2 de maio de 1997, e a adoção do Franco CFA como moeda corrente. Medida muito controversa, essa união ficou conhecida pela sigla UEMOA União Económica e Monetária da África Ocidente)47 e acirrou os ânimos, inflamando as opiniões, pois o país precisou logo depois renunciar à sua moeda (o peso guineense) e adotar uma moeda estrangeira, havendo um embate de interesses os mais diversos. Isso significou a adesão da Guiné-Bissau à comunidade financeira direcionada para a França, e não para Portugal, dividindo os interesses políticos e econômicos dentro da classe política guineense, pressionada dos dois lados. A moeda, o Franco da Comunidade Financeira da África, conhecida como franco CFA, é válida para oito países da África Ocidental que estiveram sob a colonização francesa e já circula na região desde 1947. A Guiné-Bissau, integrando-se a essa aliança econômica, tornou-se mais estreitamente envolvida nos interesses senegaleses (e franceses) relativos à região de Casamansa48. O presidente guineense, Nino Vieira, viu-se obrigado a afastar do seu cargo o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, General Ansumane Mané, sob a alegação de estar ele implicado no tráfico de armas em Casamansa. Esse episódio não foi senão a ponta do iceberg de um conflito interno mais profundo e bem mais alargado, reflexo de crescentes insatisfações de ordem política, social e econômica que mereceriam uma análise mais extensa. Ansumane Mané, amigo íntimo e companheiro de armas do presidente Nino Vieira desde as lutas pela independência, tendo estado ao seu lado na tomada do poder em 1980, conhecedor profundo dos segredos militares do país (e das irregularidades da elite política e militar), não podia aceitar sem contestar tais acusações. Diante da Comissão de Inquérito da Assembléia Nacional Popular, recusou assumir essa responsabilidade, acusando, inclusive, o próprio Nino Vieira de ser mentor do comércio de armas com os rebeldes. 47 Sobre a história do Franco CFA e da UEMOA, aliança econômica de grande importância para a região, entre outras, a publicação da Associação de Jovens Empresários da Guiné-Bissau (AJE-GB) e da Associação de Estudos e Alternativas da Guiné-Bissau (ALTERNAG), 1997, é a mais completa. Cf. a bibliografia final. 48 Para uma informação detalhada sobre as diferentes etapas do conflito, sobretudo durante 1998, cf. AUGEL, 1998d. Esse artigo (“Guiné-Bissau ka pudi kaba”, a Guiné-Bissau não pode acabar), que registra o que estava sucedendo no país, foi escrito em português, tendo sido muitas vezes policopiado e distribuído; fez parte de uma intensa e extensa rede de solidariedade internacional que se desencadeou desde o início da guerra. 63 2.2.7 Onze meses de guerra e luto Pelo que consta, a gota d’água que fez desencadear os acontecimentos foi a tentativa de prisão de Assumane Mané na madrugada do domingo, 7 de junho de 1998. O general reagiu à voz de prisão e, com seus homens, tomou o quartel de Santa Luzia (num dos bairros da capital), conseguindo logo depois ocupar o quartel de Brá (bairro ao norte de Bissau, no caminho do aeroporto), onde se encontravam os mais bem sortidos paióis de armas pesadas do país, além de farto armazenamento de gêneros alimentares. O aeroporto e mais a base aérea de Bissalanca foram igualmente logo ocupados. A reação armada por parte do governo não se fez esperar e já pela manhã bem cedo eram travados combates na cidade, com mortes de ambos os lados. A 9 de junho, Ansumane Mané autoproclama-se chefe de uma Junta Militar para a Consolidação da Paz, Democracia e Justiça e, num comunicado à imprensa, anuncia suas reivindicações: a demissão do Presidente da República e do governo, bem como a realização das eleições legislativas em julho próximo (essas eleições já estavam programadas para o final do ano). Apesar das muitas crises e tensões que caracterizam a política na Guiné-Bissau desde o início da república, o conflito surpreendeu a população completamente despreparada e mobilizou as instâncias diplomáticas tanto no continente africano como nos países diretamente implicados na “cooperação”, na ajuda ao desenvolvimento local. Uma comissão de cidadãos, composta por representantes diplomáticos estrangeiros, representantes das comunidades religiosas católica, protestante e muçulmana, líderes parlamentares e jornalistas, procurou uma mediação, numa tentativa de fazerem as contrapartes dialogarem, mas Nino Vieira não aceitou nenhum entendimento com os rebeldes, exigindo em primeiro lugar a deposição das armas. O General Assumane Mané recusou o rótulo de "rebelde", intitulando-se, a si e aos seus companheiros, de combatentes da liberdade da pátria, expressão carregada de significados, diretamente ligados às lutas anticoloniais. A grande maioria do exército regular apoiou o movimento de Ansumane Mané. Acuado, sem respaldo de seus militares, Nino Vieira pediu auxílio aos países vizinhos: o Senegal enviou, já nos primeiros dias do conflito, cerca de um milhar e meio de soldados, enquanto que a República da Guiné-Conakry, meio milhar49. O governo tentou com todos os meios tomar o quartel de Brá, símbolo da resistência e da rebelião, mas os rebeldes continuaram firmes em suas posições estratégicas. Foram muitas as 49 O envio de tropas senegalesas teria sido feito no âmbito de um acordo bilateral assinado em 1975 entre os dois países. A verdade é que o comando da investida militar das tropas governamentais ficou a cargo de um general senegalês e ultrapassou a cifra de cinco mil o número de soldados do país vizinho que tomaram conta não só do centro da capital como controlaram as fronteiras do país. A população considerou as tropas estrangeiras claramente como invasoras. 64 tentativas frustradas de mediação, inclusive por parte dos governos da Gâmbia, de Portugal e de Angola, mas também, e sobretudo, por reiterados esforços do Bispo de Bissau, Dom Settimio Ferrazzetta. Desde a terceira semana que "a guerra subiu os rios", como se expressou um jornal português (Público, 2.7.98), tendo a ofensiva do presidente Nino Vieira se direcionado para o Sul, na região de Kebu e o conflito ampliou-se, espalhando-se para o interior. As tropas governamentais, constituídas praticamente apenas por soldados senegaleses, atacaram Mansoa, subindo o canal do rio Geba, o rio mais extenso do país, repetindo a mesma operação realizada pelas tropas portuguesas durante a guerra colonial, desembarcando em pequenos botes, tencionando tomar o controle da principal artéria de comunicação terrestre do país, que é a estrada entre Bissau e Gabú, a segunda cidade mais importante do país. Multidões de fugitivos, que dormiam ao relento ao longo das estradas, tinham seguidamente que se deslocar, sempre à procura de um local mais seguro. Os relatos denunciavam torturas e atos de maldades perpetrados por soldados senegaleses, incêndio de casas e maltratos da população desarmada e impotente que nada mais ansiava do que viver em tranqüilidade. Já poucos dias após o espocar do conflito, os rebeldes aconselhavam a população a retirar-se da capital, onde eles estavam aquartelados, e teve lugar um êxodo em massa em direção ao interior. Também se fez a evacuação dos estrangeiros, numa dramática operação de salvamento organizada pelo governo português. Cerca de dois mil e duzentos estrangeiros, sobretudo portugueses, mas também de muitas outras nacionalidades e inclusive também guineenses, foram evacuados sob tiroteio, nas mais precárias condições. Cada vez mais os escombros tomaram conta de Bissau. Dos seus trezentos mil habitantes, mais de oitenta por cento abandonaram suas moradias e fugiram em pânico, tanto para o interior do país como para fora. As pequenas cidades e vilas não dispunham em absoluto de infraestrutura para acolher tal multidão. Bissau quedou em parte abandonada e destruída, edifícios públicos e particulares (e até as embaixadas estrangeiras) foram arrombados e saqueados pelos soldados senegaleses, outros incendiados ou destruídos por obuses e granadas, a pilhagem das lojas e das residências ficou generalizada. A fome e as moléstias grassaram no interior, onde a carência era dramática: alimentos, água, combustível, medicamentos, tudo faltava. Houve ajuda humanitária, mas a engrenagem burocrática é sempre lenta, o receio de melindrar a soberania nacional entravava, por parte dos países estrangeiros, o emprego de medidas imediatas. As fronteiras, fechadas pelos soldados senegaleses, eram de difícil e perigoso acesso. Caminhões repletos da preciosa ajuda humanitária, levando inclusive médicos e enfermeiros, eram barrados e só a muito custo um ou outro grupo conseguia entrar no país. Por outro lado, recrudesceram o desconforto e a insatisfação entre os guineenses pela presença das tropas estrangeiras, senegalesas e guineenses de Conakry, no território da Guiné- 65 Bissau. A hostilidade em relação aos forasteiros perpassava todas as etnias, assim como a preocupação quanto ao ônus que cairia sobre o país por causa desse “socorro” vindo de fora, temendo-se pela soberania nacional. Tudo isso, aliado a um impressionante movimento de solidariedade entre todos os setores e grupos da sociedade guineense, contribuiu, entretanto, para que o povo desenvolvesse uma incrível capacidade de auto-ajuda e de improvisação50. 2.2.8 Período pós-guerra O conflito armado de 1998/1999 evidenciou a derrota do “antigo” regime, personificado em Nino Vieira, e pôs fim a uma era tida como heróica, fundadora de novas perspectivas para o povo recémsaído da colonização. Se havia na consciência popular o orgulho sempre realimentado em relação à vitoriosa luta libertária e à independência nacional, havia igualmente a desilusão e a indignada revolta devido aos muitos fracassos e desmandos de uma política arbitrária, autoritária e mesmo ditatorial; a guerra veio significar para a população a derrota e a desmoralização da elite política e militar que não tinha conseguido nem minimamente corresponder aos anseios do povo por uma vida melhor nem realizar as promessas de levar o país ao desenvolvimento social e econômico. Se o fracasso do projeto nacional tornou patente aos guineenses que não se pode confiar no Estado nem na elite urbana, a ocupação do país por tropas estrangeiras e a queda de Nino Vieira, com sua conseqüente perda de prestígio, tiveram o efeito de reacender a chama do espírito nacional, imbuindo o povo da necessidade de superar as divisões e as divergências em prol de um bem comum e superior às tensões intestinas. Com a destruição parcial de Bissau e o seu quase completo esvaziamento populacional, o campo e os laços familiares e étnicos provaram sua força vital, indispensável para a sobrevivência física, social e cultural das pessoas. Ao contrário da situação de trinta anos atrás, porém, a guerra não abriu perspectivas nem muito entusiasmo por um novo começo. Desde então têm prevalecido a descrença, a decepção, a desconfiança e uma vaga esperança por dias melhores. A guerra e a ocupação por tropas estrangeiras puseram a nu a existência de um tipo de “nacionalismo sem Estado”. Enquanto o Estado e suas estruturas foram reduzidos a um mínimo e seu máximo representante, o presidente da República, foi transformado em joguete de militares, tanto guineenses quanto estrangeiros, um outro tipo de espírito de unidade nacional assomou, reunindo as etnias do país. A guerra parece ter feito surgir um novo congraçamento de forças e aconteceu uma nova organização da comunidade guineense ao redor da idéia do Estado nacional a 50 A revista Soronda, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), publicou em dezembro de 2000 um número especial, dedicado exclusivamente ao conflito, com o título 7 de Junho, com a colaboração de onze pesquisadores, numa abordagem multidisciplinar, numa “primeira tentativa de desvendar a trama da guerra”. Cf. bibliografia no final. 66 ser defendido, superando gradualmente o sentimento de pertença a um dos grupos étnicos ou à camada urbana da população crioula, ocidentalizada, em grande parte herdeira dos integrantes da antiga categoria colonial de “civilizados”. A exclusividade da elite burguesa passou a ser relativizada, apesar desse grupo continuar, evidentemente, a constituir um elemento fundamental do poder econômico, político e militar do país. Terminado o conflito, depois de um governo provisório, foram efetuadas novas eleições, em 28 de novembro de 1999, com treze partidos políticos alistados para a concorrência eleitoral. O PAIGC sofreu clamorosa derrota e o PRS (Partido da Renovação Social) conseguiu eleger, no segundo turno, Koumba Yalá51 como presidente, que tomou posse nos primeiros dias do terceiro milênio, tendo governado até novembro de 2003, quando um novo golpe de Estado pôs fim ao seu governo. Koumba Yalá não correspondeu às expectativas do povo guineense nem da comunidade internacional, representada pelos doadores financeiros e da qual o país depende. O temperamento problemático e instável do novo presidente, a clara preferência dada aos membros de sua etnia balanta e os conflitos internos no seio das comunidades política e militar não deixavam lugar para uma boa governança. Não surpreendeu, por isso, logo no ano 2000, o assassinato do cabeça da revolta militar de 1998, Ansumane Mané, embora os motivos nunca tenham sido inteiramente esclarecidos. Em 2003, um golpe de Estado retirou Koumba Yalá da presidência e o governo do país, em meio a muitas crises e muita instabilidade, passou novamente para um regime provisório até as novas eleições parlamentares, ocorridas em maio de 2004, com a já esperada vitória para Primeiro Ministro do comerciante Carlos Gomes Júnior (também conhecido pelo seu apelido Cadogo Filho), candidato do PAIGC, partido que vinha gozando de crescente retomada de prestígio. O governo de transição, com o Presidente Henrique Pereira Rosa, pessoa completamente fora das esferas políticas e partidárias até então, pautou-se pela seriedade e pela prudência. Mesmo assim, em 6 de outubro de 2004, aconteceu um novo assassinato político, a saber, do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, General Veríssimo Seabra, estreitamente ligado a Ansumane Mané. As eleições presidenciais de junho de 2005 decorreram sob muita tensão, sobretudo antes do segundo turno (24 de julho) que deu a vitória a João Bernardo “Nino” Vieira que, expulso do PAIGC depois de deposto em junho de 1999, voltou ao país, malgrado proibição de fazê-lo, candidatando-se na qualidade de “sem partido”, e venceuo seu último oponente por uma margem de 52,35% sobre 47,65% votos apurados. É o quarto presidente da República da Guiné-Bissau. O clima político continua, entretanto, inseguro e problemático. 51 Há várias versões correntes da grafia do ex-presidente. Optei pela grafia que consta do seu próprio livro de “pensamentos filosóficos” e que é a mais corrente também na imprensa atual. 67 2.3 Situação social do país A Guiné-Bissau não se equilibrou ainda. Tendo conquistado a independência política há pouco mais de três décadas, a Guiné-Bissau continua a figurar entre os dez países mais pobres do mundo. Segundo dados das Nações Unidas (2000), situa-se no 169º lugar no conjunto de 174 países que fazem parte da lista de países analisados em termos de performance de Desenvolvimento Humano52. Os indicadores econômicos e sociais que geralmente são usados para avaliar os países segundo seu desenvolvimento atestam claramente a difícil situação em que a Guiné-Bissau se encontra, com 87% da população vivendo com menos de um dólar por dia. O rendimento per capita era de 233,9 dólares americanos em 1994, caindo para 192 dólares em 200253. Os salários são extremamente baixos, pagos além do mais com grande irregularidade. Com um salário médio mensal, no serviço público, na ordem dos 25 dólares americanos, a maior parte dos guineenses não tem condições de adquirir no fim do mês mais do que um saco de 50 quilos de arroz, base da alimentação da população. O índice de desemprego e subemprego é altíssimo, embora não haja dados estatísticos concretos a respeito. O número de empregos formais, fora do exército e do serviço público, não atinge a cifra de dez mil em todo o território nacional. Existe uma grande falta de quadros qualificados para o desenvolvimento do país o qual, ao mesmo tempo, não oferece perspectivas profissionais para os indivíduos por falta de empregos e atividades nos setores secundário e terciário. O êxodo de talentos, o assim chamado brain drain, é dramático. A qualidade do ensino é talvez das mais fracas no continente africano. As cifras disponíveis variam muito, a depender da fonte consultada, e representam muito mais estimativas do que dados seguros. A taxa de analfabetismo foi calculada em 74%, atingindo de forma diferenciada os homens (59%) e as mulheres (82%). A taxa de escolaridade é muito baixa, sendo estimada em 54%, havendo uma clara diferença entre os gêneros: 68% dos meninos freqüentam a escola contra apenas 38% das meninas. O número de professores com uma formação pedagógica e acadêmica é mínimo, predominando os professores leigos e com um precário preparo. Até hoje o ensino é efetuado na língua oficial do país, o português, que continua a ser desconhecido pela grande maioria da população. As inúmeras tentativas de se introduzir o ensino 52 53 Cf. Human Development Report, UNDP, vários anos. Cf. A análise da situação da criança e da mulher na Guiné-Bissau. Bissau: UNICEF, julho 2000. 68 da língua guineense (o crioulo)54 pelo menos nas primeiras classes (como era feito no interior durante a luta de libertação) resultaram até agora infrutíferas55. Quando se deu a independência, o número de guineenses com formação acadêmica não superava os quatorze, aos quais se somavam apenas mais dezessete com formação média, o que mostra o deplorável estado de desinteresse de Portugal para com essa sua colônia56. O comando das forças libertadoras se preocupou desde muito cedo com a formação de quadros, estabelecendo mesmo uma escola em regime de internato na vizinha República de Guiné para crianças guineenses, filhas de guerrilheiros (1965). Imediatamente depois da independência, muitos jovens foram enviados com bolsas de estudo para outros países, sobretudo países socialistas com os quais eram mantidas estreitas ligações, mas também para a França e Inglaterra, para Cuba e mesmo para o Brasil e, com o passar do tempo, igualmente para Portugal57. O número de pessoas com formação universitária e uma excelente qualificação profissional hoje é grande, embora a maior parte dos formados não tenha permanecido na GuinéBissau, o que tem por conseqüência a falta de quadros qualificados para exercerem as funções chaves para o desenvolvimento do país. Existe também um grande desemprego de pessoas com formação acadêmica, não há perspectivas profissionais e por isso, muitas vezes, são obrigadas a submeterem-se a subempregos ou a atividades em áreas alheias a sua formação, nos setores secundário e terciário e que, devido sobretudo aos baixos salários, são completamente desinteressantes. O país não conta até hoje com nenhuma livraria, há apenas uma editora particular (Ku Si Mon), além da Editora Escolar58, fundada e mantida pela cooperação sueca, e que edita livros didáticos. Há uma gráfica do Estado e algumas poucas particulares, alguns jornais, nenhuma revista cultural, porém são dignas de nota as publicações regulares do INEP, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa: tanto os livros de estudos e de ensaios, como a revista Soronda, muito 54 55 56 57 58 Apesar de geralmente fazer-se referência ao crioulo, prefiro chamá-lo de língua guineense ou simplesmente guineense, concordando com a argumentação e a proposta do dicionarista Luigi Scantamburlo (1997, 2002). Trato do assunto mais adiante (item 2.5). O pedagogo brasileiro Paulo Freire, logo após a independência, tentou aplicar um plano de alfabetização e escolarização em grande escala na Guiné-Bissau e, depois de uns poucos anos, acabou desistindo por não conseguir convencer o governo da necessidade de se começar a alfabetização pelas línguas maternas, método usado largamente em muitos outros países africanos de colonização inglesa ou francesa. Sobre essa malograda experiência, cf. FREIRE, 1978. O primeiro estabelecimento de ensino secundário na então Guiné Portuguesa foi aberto somente em 1958; já em Cabo Verde, desde 1860 havia um liceu na cidade da Praia. O Estatuto do Indigenato restringia o acesso dos guineenses à escola e até o final da década de sessenta (do século XX!) o número de alunos não ultrapassava os 3% da população. Sobre a questão do ensino na Guiné-Bissau, cf. HOVENS (1994); BENSON (1994); CALLEWAERT (1995); AUGEL, J. (1996a), MONTEIRO, J. J. S. (1996; 1997), SCANTAMBURLO (1997). Digno de interesse também é um artigo sobre a concessão de bolsas de estudos a estudantes guineenses no programa de cooperação estrangeira para a formação de quadros nacionais (MCGUIRE, 1996). Direcionada sobretudo para a edição de livros didáticos e material escolar, embora de sua gráfica tenham também saído várias obras literárias, como as da Colecção Kebur, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP). 69 conhecida e respeitada nas áreas especializadas. Algumas organizações não governamentais têm publicado interessantes e importantes relatórios de suas atividades, oferecendo uma visão dos trabalhos realizados, ao mesmo tempo em que apresentam um quadro das condições socioeconômicas atuais. Em 2004 começaram a funcionar no país duas universidades, uma oficial (a Universidade Amílcar Cabral) e outra particular (a Universidade Colinas de Boé), se bem que oferecendo até o momento só alguns poucos cursos. A afluência de estudantes é imensa. Cresce, com isso, a esperança que o ensino superior possa contribuir para uma melhor formação dos quadros do país59. Existe desde já alguns anos uma Faculdade de Direito (cujo embrião data de 1980), apoiada por uma universidade portuguesa, e uma Escola de Medicina, apoiada sobretudo por médicos cubanos. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) é a única instituição que desenvolve estudos teóricos e aplicados na área das ciências políticas, econômicas e sociais. Não há cursos de formação técnica e a formação de professores para o curso elementar se faz numa única instituição (Escola Normal Superior Tchico Té). O Brasil pretende apoiar a fundação de uma escola técnica em 2005. Os indicadores para a área de saúde também se encontram em níveis muito baixos. As taxas de mortalidade materno-infantil são as mais elevadas da sub-região oeste africana. Os dados disponíveis, da Organização Mundial da Saúde, apresentam um índice de 15,48 óbitos para cada mil habitantes (1998), enquanto o índice de natalidade registrava naquele mesmo ano 38,67 nascimentos por mil habitantes. A mortalidade infantil chegou mesmo a crescer nos últimos anos: no ano 2000 era 36,4%, elevando-se a 39,9% em 2002. As principais causas de morte entre os guineenses continuam a ser enfermidades endêmicas, tais como a malária e infecções intestinais. A expectativa de vida da população continua a ser uma das mais baixas do mundo (45 anos em 2001)60. O índice de infectados pela síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS, que na Guiné-Bissau, como em Portugal, é conhecida por SIDA) é enorme, embora não haja cifras oficiais. O país conta com pouquíssimos hospitais, todos em desoladoras condições. Os postos de saúde no interior, quase sempre atendidos somente por enfermeiros que não possuem formação adequada, muitas vezes não contam nem mesmo com ataduras ou 59 A Universidade Amílcar Cabral foi fundada em 2000, através de um protocolo de cooperação entre o Governo da Guiné-Bissau e a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Portugal. A Universidade Colinas de Boé deve sua criação à iniciativa de um grupo de guineenses, em colaboração com o Instituto Politécnico de Leiria/Portugal, tendo sido festivamente inaugurada a 24 de setembro de 2003. Ambas as instituições iniciaram de fato as atividades em 2004, concentrando-se em cursos preparatórios para o ensino superior, com o intuito de compensar as graves falhas do curso secundário oferecido no país, além de alguns ainda poucos cursos de licenciatura. 60 Cf. PNUD, Relatório do Desenvolvimento Humano, 2001. 70 desinfetante de ferimentos, enquanto o reduzido número de médicos tenta fazer o impossível para cuidar da população. Registra-se um grande esforço, sobretudo da parte de entidades privadas e organizações não governamentais, para minorar essa situação realmente de grande penúria. As infra-estruturas continuam igualmente muito precárias. No conjunto do país, apenas cerca de 25% da população têm acesso à água potável. Dessa percentagem, apenas 21% usam água canalizada ou de fontenários públicos. Os restantes recorrem à água das fontes protegidas61, com todas as conseqüências que isso acarreta à saúde das populações. A rede elétrica é insuficiente e não atinge com regularidade nem mesmo os principais bairros da capital. Ladislau Dowbor, num livrinho publicado em 1983, depois de uma experiência pioneira na Guiné-Bissau, trabalhando com Paulo Freire (seu sogro) na alfabetização do país recémindependente, registra o entusiasmo que presidiu os primeiros anos pós-independência: refere-se a ter ali havido tentativas de realizar uma trajetória que diferisse da opção capitalista e exógena, relembra que “talvez” tivesse havido “o desejo de não faltar ao compromisso com o povo, de manter o vínculo com Boé e seu mundo agrário e tradicional”. A falta de recursos de um país pobre, de uma nação incipiente, releva Dowbor, “levaria a muitos compromissos, a muitas buscas de ajuda, que não tardaram em revelar a sua ambigüidade”. Sucedeu o mesmo que já se tinha visto em muitos outros países recém-descolonizados: os financiamentos induziram ao gasto do empréstimo com os produtos e o know how daquele mesmo país doador, e assim se repetia o círculo vicioso do circuito da riqueza, enquanto a engrenagem internacional apertava seus elos e nada deixava escapar (DOWBOR, 1983, p. 20 e ss.). […] Antes de chegarem os técnicos, há missões de estudo de factibilidade, de estudos de execução técnica. Durante o projeto, há missões de acompanhamento da execução. É normal a metade dos recursos fornecidos ser consumida neste processo, voltando assim o dinheiro "oferecido" para os próprios países ricos, sob a forma dos salários elevados dos técnicos (ib., p. 21). Na Guiné-Bissau do terceiro milênio, continua-se a constatar o que Dowbor já tinha verificado há mais de vinte anos atrás, os efeitos do neocolonialismo continuam a se fazer sentir, grupos estrangeiros estão presentes no país numa concorrência desleal, as entidades multilaterais esbanjam milhões em esforços de influência muitas vezes através da corrupção, da bajulação, do compadrio. Os dirigentes do país “descobrem pouco a pouco – e talvez tarde demais – a intensidade deste combate desigual” (ib., p. 117 ). Dowbor continua, lembrando que o conjunto dos meios financeiros e materiais deste desenvolvimento vêm de uma máquina internacional rodada para promover a extravasão econômica, a implantação de multinacionais, a monocultura de exportação. […] O financiamento externo, a tecnologia importada aparecem como soluções mais fáceis e mais rápidas para o desenvolvimento. Nem os financiamentos, no entanto, nem a tecnologia são neutros. 61 Cf. UNICEF, Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS), Bissau, 2001. 71 Com os meios, vêm os fins. E estes fins importados raramente coincidem com os objetivos da população" (ib., p. 119-120). A Guiné-Bissau prossegue em suas tentativas nem sempre bem sucedidas de encontrar um espaço próprio. Os infortúnios e os descalabros acumularam-se durante esses trinta anos de “liberdade”, mas também é possível computar-se o enorme esforço por parte da população (e não só da intelligentsia nacional) em direção de uma mudança. O país continua a viver à mercê das instituições financeiras estrangeiras, sobretudo das Nações Unidas (o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD), assim como da União Européia e outras organizações internacionais. A ajuda bilateral, que já foi muita, está cada vez mais restrita. A Suécia, por exemplo, que desde os tempos das lutas de libertação se engajou financeira e tecnicamente em prol do desenvolvimento do país, encerrou seu apoio, o mesmo acontecendo com a maioria dos projetos que constituíam praticamente, fora o Estado, a única fonte de empregos para os nacionais. Apesar de um aparente progresso como, por exemplo, o moderno aeroporto internacional, o novo edifício da Assembléia Nacional, obras da cooperação chinesa; as pontes e estradas financiadas pela União Européia, as infra-estruturas básicas, sobretudo as da saúde e da educação, o abastecimento de água e de eletricidade, continuam restritas praticamente à capital e mesmo ali continuam sumamente deficientes. 2.4 Os grupos étnicos A Guiné-Bissau é um país, como quase todos os países africanos, constituído por grupos populacionais de origens diversas. O mosaico étnico da Guiné-Bissau é muito variado, tendo sofrido no correr dos séculos muitas modificações. A migração, as guerras de conquista e a colonização desempenharam um papel importante na redistribuição e no entrecruzamento populacionais62. Apesar da pequena extensão do território, ali vivem dezenas de grupos e subgrupos étnicos muito heterogêneos, com suas culturas próprias, suas línguas, em grande parte muito diferentes umas das outras. Luigi Scantamburlo refere-se a 27 grupos étnicos, mas os autores não são unânimes nessa quantificação e isso porque há grupos, subgrupos e os critérios variam bastante. Aos grupos étnicos corresponde igual número de línguas faladas no território guineense e todas elas já ali estavam antes da chegada dos europeus (SCANTAMBURLO, 1997, p. 8). O território que 62 As grandes migrações são tratadas como parte obrigatória em toda a historiografia da África, p. ex. entre outros por Joseph Ki-Zerbo, Roland Oliver, João Carlos Rodrigues, Alberto da Costa e Silva. Para as regiões que hoje formam a Guiné-Bissau, cf. PÉLISSIER, 1989a, 1989b e MENDY, 1994, já referidos no subcapítulo sobre os acontecimentos históricos. 72 hoje corresponde geopoliticamente à Guiné-Bissau foi outrora o refúgio de numerosos povos que se deslocaram devido às sucessivas invasões. Além disso, se se acrescentam as migrações internas e externas, a assimilação, a mestiçagem e destruições de várias naturezas, está-se diante de um mosaico complexo e multifacetado, incluindo um acúmulo de “poeiras étnicas” ou “micro-etnias” (PÉLISSIER, 1989, p. 19), muitas vezes com apenas algumas centenas de indivíduos63. Os grupos percentualmente mais numerosos são os Balanta (27%), os Fula (22%), os Mandinga (12%), os Mandjaco (11%) e os Pepel ou Papel (10%). Existem diferenças marcantes entre os povos do litoral e os do interior. Os primeiros, já nos séculos XIII e XIV, foram alvo do poder expansionista das etnias islâmicas de origem mandé, a chamada malinkização ou mandinguização, como já referi, tendo havido uma grande influência sobretudo dos povos de estrutura social “vertical” sobre os demais. Os Mandinga e os Fula diferem fundamentalmente dos povos do litoral pela sua organização política, pois baseiam-se numa forma hierárquica de sociedade, com um poder central e clara divisão “vertical” de classes64. Dedicam-se sobretudo ao comércio, enquanto que as etnias costeiras eram compostas de agricultores, professavam uma religião natural, baseada no culto aos antepassados, e possuiam uma organização social horizontal onde a família era (e ainda é) a única unidade política e econômica. As mais importantes etnias do litoral são os Balanta, com vários sub-grupos, dedicados à criação de gado bovino e ao cultivo do arroz nas bolanhas alagadas, sendo o grupo étnico mais ativo e em expansão. Na costa estão também os Brame, subdivididos em Mandjaco, Pepel e Mancanha. Para esses povos, a base econômica era e continua sendo, essencialmente, uma produção agrícola e agro-pecuária de subsistência. O excedente da produção de cada etnia – o vinho de palma dos Mandjaco, o arroz dos Balanta, os artesanatos dos Fula, os tecidos dos Mandinga – era geralmente trocado por outros produtos. Essa interdependência iria provocar efeitos não só no plano econômico, mas também político e cultural como, por exemplo, a resistência das etnias animistas e comunitárias do Atlântico face à dominação e influência das etnias do interior 63 64 O Anuário da Guiné Portuguesa de 1946, publicação do Governo da Colônia, organizado por Fausto Duarte, afirma que “a população nativa é composta pelas seguintes tribos, umas mais diferenciadas do que as outras: Baiotes, Balantas, Banhuntos, Beafadas, Bijagós, Brâmes ou Mancanhas, Cassangas, Felupes, Fulas, Mandingas, Manjacos, Nalus, Papéis e Sôssos” (p. 71). De acordo com o Censo da População de 1950, vol. II, “a população não civilizada”, arrola um total de trinta ‘tribos’, entre as quais cinco subgrupos de Fula, além da categoria de ‘outras tribos’, com um total entre 146.398 pessoas (Balanta, cerca de 29% da população total) e 8 pessoas dos Teménés (p. 174-175). Ainda hoje não há um consenso. O número de etnias varia de autor para autor. Alguns computam mais de três dezenas, outros cerca de vinte etnias. Autores nacionais consideram que uma análise mais criteriosa não levaria para além de uma dezena e meia de grupos étnicos em todo o território nacional. Essas duas etnias muçulmanas, Mandinga e Fula, tidas como colaboradoras do regime colonial português, ainda hoje são da maior importância na Guiné-Bissau, perfazendo cerca de 38% do total da população, enquanto que os adeptos de práticas ligadas às religiões naturais continuam a maioria (54%). Uma minoria cristã (8%) concentrase sobretudo na capital. 73 (LOPES, 1982, p. 45). As práticas animistas penetraram nos cultos islâmicos, assim como alguns grupos se converteram ao islamismo (ib.). As relações interétnicas são hoje em dia pacíficas, constatando-se um vínculo em geral positivo interligando os vários grupos num sistema social englobante, controlado por um sistema estatal dominado pelo grupo crioulo, da capital, embora haja espaços para a diversidade cultural, sobretudo no que diz respeito às atividades religiosas e domésticas. Diferenças culturais persistem em harmonia. Há uma complementaridade relativa a certos traços culturais, por exemplo, por um lado entre os Fula, os Mandinga, os Beafada e os Nalu, etnias muçulmanas; e de outra parte entre os Pepel, Mancanha e Mandjaco e até certo ponto os Balanta, etnias chamadas de animistas (expressão que não me agrada, pois às vezes é empregada com uma conotação negativa, mas que uso na falta de outra mais adequada)65. Os Bijagó vivem nas muitas ilhas do arquipélago do mesmo nome, sendo Bubaque a principal delas. O número de ilhas não é certo, chegando a se falar de oitenta e oito, das quais uma vintena seria povoada. Cláudio Maretti nomeia 25 ilhas “e outras” (MARETTI, 2002, p. 15). A região Bolama-Bijagós é uma das oito subdivisões político-administrativas do país66. Cada grupo clânico tem um régulo com certos poderes tradicionais, sobretudo usufruindo do prestígio e do respeito de sua comunidade. Originalmente um povo guerreiro e conhecedor de técnicas de navegação, famosos e temidos como apresadores de escravos, os Bijagó são hoje agricultores. Sua estrutura social é matrilocal e matrilinear e a principal divisão é por classes de idade, os velhos usufruindo de direitos especiais. 2.5 A questão lingüística Luigi Scantamburlo, escudado no Thesaurus of African Languages, de M. Mann e D. Dalby (1987), informa serem as 27 línguas étnicas da Guiné-Bissau pertencentes a duas das sete subfamílias da família Níger-Congo. As línguas mais faladas seriam em número de dez, destacando-se o Balanta (estimando-se a existência de 245.000 falantes); o Fula (estimativa de 200.000 falantes), o Mandinga (100.000), o Mandjaco (80.000), o Pepel (72.000), o Beafada (20.000), o Bijagó (20.000), o Mancanha (19.000), o Felupe (15.000), o Nalu (4.000), sendo 65 O Boletim Cultural da Guiné Portuguesa publicou muitos artigos referentes às diversas etnias. Na atualidade, são as publicações do INEP, sobretudo da revista Soronda, que desempenham esse papel de divulgação, trazendo estudos específicos sobre as etnias da Guiné-Bissau. Sobre os Mancanha, cf. FONSECA, 1997. 66 Em princípio, a ilha de Bolama, com a cidade do mesmo nome, pertence também ao arquipélago, embora não seja contada entre as demais ilhas. Sobre o arquipélago dos Bijagó, cf. a tese de doutorado de Cláudio MARETTI (2002), profundo conhecedor da região. Indicações na bibliografia final. 74 todas essas cifras apenas estimativas (SCANTAMBURLO, 1997, p. 8). O sacerdote e lingüista italiano ainda acrescenta 17 outros grupos étnicos menores (ib.)67. Não há muitas transcrições da produção literária nas línguas étnicas. Já na época colonial havia o interesse em documentar estórias da tradição oral das diferentes etnias, inclusive com notícias sobre línguas étnicas, como se pode verificar em várias publicações, por exemplo na Revista Lusitana e em diferentes números do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, importante órgão de divulgação de assuntos da Colônia (cf. nota 98, no capitulo 3). Sabe-se que a tradição oral balanta tem um acervo de canções e poemas rituais, cantados ao som do balafom (marimba), contendo reflexões de fundo edificante sobre a vida das populações dessa etnia, suas crenças e costumes e os feitos admiráveis dos antepassados. Também a tradição oral mandinga conhece peças literárias, poemas épicos, que tratam, por exemplo, do modo de vida dos Soninkê, guerreiros pré-islâmicos; são longos textos heroicizantes sobre a ética guerreira e que constituem um verdadeiro espelho da sociedade local. A epopéia da família Kalefá Sami, por exemplo, é das mais belas e mais apreciadas. Os djidius, isto é, os bardos ou trovadores, cantadores populares que, ao som do korá (instrumento de 21 cordas, típico da África Ocidental onde estão espalhados os agrupamentos das etnias muçulmanas da família mandinga), cantam os feitos guerreiros dos grandes chefes mandingas, e o fazem até hoje naquela língua étnica. Presentes em toda celebração, seja casamento, batizado ou enterro, aniversário ou festa religiosa, os djidius, tal como os repentistas das feiras e mercados nordestinos brasileiros, improvisam na língua mandinga loas de boas vindas, de agradecimento e de saudação para os anfitriões e sua família, seus convidados e, hoje em dia, mesmo para turistas, em restaurantes. O português, embora língua oficial do país, não é uma língua corrente entre os guineenses, uma vez que se estima em menos de dez por cento o número dos falantes desse idioma na Guiné-Bissau68. Carolyn Benson, na sua tese de doutoramento sobre o uso das línguas maternas como língua inicial para a escolarização, estabelece a diferença entre uma língua aprendida (learned) e uma língua adquirida (acquired), para frisar o pouco desenvolvimento da língua oficial no território guineense (BENSON, 1994, p. 175), não sendo suficiente o ensino obrigatório ministrado nas escolas, muitas vezes por professores que por sua vez também não 67 68 Outras fontes preferem referir-se às seguintes percentagens: Balanta 32%, Fula 21%, Mandjaco 14%, Mandinga 14%, Pepel (ou Papel) 7%. Como língua primeira, não chegava a meio por cento o número de falantes monolíngües do português em 1979 (seriam 215 locutores lusofalantes). Carlos Lopes refere-se ao caráter “agonizante” que tem a língua colonial na Guiné-Bissau (LOPES, 1988, p. 243). Pessoalmente considero a declaração extremada, pois continua a ser uma língua de prestígio e indicadora de melhor escolarização, e o número de falantes do português como segunda ou terceira língua é bem mais expressivo. Em famílias urbanas das classes abastadas, constata-se o uso do português entre pais e filhos, para fins didáticos, isto é, para possibilitar às crianças melhores oportunidades na escola e na vida futura, enquanto os filhos, entre si, assim como os pais entre si e na verdade praticamente todos em situações informais, falam a língua guineense. 75 dominam o idioma. É dela também a indicação de que apenas 0,4% da população total do país têm o português como língua primeira (ib.). O mesmo não acontece com o crioulo, como é geralmente chamada a língua veicular de maior circulação e de maior prestígio na Guiné-Bissau. Vou referir-me aqui, indiscriminadamente como sinônimos, tanto ao crioulo quanto à língua guineense. A denominação de língua guineense, ou simplesmente o guineense, para o crioulo da Guiné-Bissau, ainda não está consagrada69. Mas concordo com Luigi Scantamburlo quando argumenta, na introdução do seu Dicionário Guineense-Português, que [...] a escolha do nome Guineense para designar a língua crioula da Guiné-Bissau, termo já utilizado por Marcelino Marques de Barros em 1897, ajudará a respeitar melhor o estatuto desta língua, verdadeiramente nacional, veicular e inter-étnica, e a evitar a conotação depreciativa que o termo crioulo tem ainda no país e no mundo (SCANTAMBURLO, 2002, p. 6)70. Como o dicionarista ressalta, é de fato o crioulo a língua corrente no país, sem prejuízo para as línguas étnicas. Somente nos meios urbanos, sobretudo na capital, nas camadas socialmente privilegiadas, pode-se observar que o domínio da língua oficial é motivo de prestígio social. Mas de fato, para a grande maioria da população espalhada no país, a questão nem mesmo se põe. Um antagonismo, ou mesmo uma certa fricção, existe, na verdade, não entre os diferentes grupos étnicos, mas sim entre os habitantes “da praça” e os “da tabanca”, isto é, entre os grupos aculturados que assimilaram a língua, a religião e os valores do colonizador português (os escolarizados sobretudo) e aqueles das aldeias, que estão mais ligados às tradições africanas, ocupantes do espaço agrário, rural, ou da periferia urbana. Essa dicotomização tem suas raízes na separação já existente na época colonial: de um lado os centros urbanos, ocupados pelos estrangeiros ou pelos nativos “assimilados”, constituintes mais tarde da burguesia nacional e detentores do poder depois da independência71; de outra parte, e em claro confronto, as aldeias ou povoamentos dos “indígenas”, constituídos pela população rural, ligada estreitamente às tradições e às suas línguas étnicas. É o mundo “departamentado” de que fala Frantz Fanon e sobre isso voltarei mais adiante. 69 70 71 A respeito do crioulo como língua literária, cf. AUGEL, 1998a; AUGEL, 2000a; AUGEL, 2005. Como o dicionarista ressalta, é de fato o crioulo a língua corrente no país, embora as línguas étnicas continuem vivas e fazendo parte do cotidiano de seus utentes. O português, língua oficial, não é falado nem por 10% da população. O cônego M. de Barros publicou primeiramente na Revista Lusitana, de Lisboa, artigos sobre a gramática e o léxico do idioma guineense. Na década de 60, a única cidade digna deste nome era Bissau, com 20 mil habitantes. Juntamente com Bolama, concentrava 75% da população “civilizada”. Cacheu, Farim e Geba constituíram núcleos urbanos já desde a criação dos primeiros entrepostos comerciais portugueses ao longo dos rios. Era nesses burgos que nasciam as novas camadas sociais autóctones (LOPES, 1989a, p. 255). Hoje, as cidades mais importantes e mais populosas depois de Bissau são Gabú e Bafatá, contando cada uma por volta de cinqüenta mil habitantes. 76 O crioulo, pela sua expansão, é justamente o alvo de muitas críticas e causa de um certo ressentimento por parte daqueles que não o dominam e se sentem por isso desprestigiados ou mesmo discriminados. É preciso fazer, entretanto, uma diferença entre os que falam o guineense como língua primeira e vivem nas cidades e os que o falam como língua veicular, conservando a língua étnica como língua principal. O grupo crioulo é, sem dúvida, o mais influente, o mais “moderno” e ocidentalizado, o mais assimilado aos hábitos introduzidos pelo poder colonial e é entre eles que se vai encontrar a magra percentagem dos falantes do português. A sociedade crioula vive na capital ou nos centros urbanos, seus membros são geralmente cristãos, mais escolarizados, e sempre foram, politica e economicamente, os mais ligados ao setor estatal. Embora não seja uma questão que tenha merecido até agora um debate muito amplo, entre os menos letrados existe um receio de o crioulo, ou língua guineense, sendo um idioma e uma cultura urbanas, da camada hegemônica do país, poder abafar as demais línguas étnicas, com ameaça de um empobrecimento cultural, além de com isso desenvolver-se um flagrante juízo negativo de valor, taxando-se as línguas étnicas (e suas culturas) como não civilizadas, desqualificando seus falantes como indivíduos de segunda classe. Assim, as marcas de pertencimento grupal e o pouco grau de crioulização poderiam prejudicar a ascensão social. É o argumento, por exemplo, de Isaac Monteiro: A origem étnico-cultural crioula confere ao indivíduo um maior grau de oportunidades de acesso aos diferentes aparelhos ideológicos do estado e às instituições estatais (p. ex. governo, administração, etc.) e, consequentemente, confere maior probabilidade de sucesso. [...] se um indivíduo nascer no campo ou de uma família cujo grau de crioulização é pouco acentuado, ser-lhe-á muito mais difícil ter acesso a determinadas funções ou responsabilidades, assim como ser objecto de determinados reconhecimentos técnico-profissionais do que se nascer de uma família crioula (MONTEIRO, 1996a, p. 349)72. Interessante ainda observar que o articulista nem mesmo se refere ao português, certamente a língua de maior prestígio e status, mas que é falada apenas em situações formais, e somente em parte na rádio e na televisão, restringindo-se seu uso quase que somente entre ou com estrangeiros e à expressão escrita73. 72 António Isaac Monteiro, ele mesmo vindo de uma família crioula, como seu nome e sobrenome o demonstram, é autor de varias reflexões sobre essa questão. Cf. ainda MONTEIRO, 1994; 1996a na bibliografia final. 73 Em princípio, o português é ainda a língua obrigatória nas escolas e os livros didáticos são em português. Acrescente-se que muitos professores não dominam inteiramente a língua oficial e de facto mesmo nas escolas a maioria se serve da língua guineense nas situações informais. Só a título de curiosidade, no Togo e nos Camarões, onde houve por breves anos uma colonização alemã, deu-se grande importância ao ensino das línguas étnicas. Desde 1911, camaroneses ensinaram o ewondo e o douala, línguas étnicas locais, na Universidade de Hamburgo (cf. MIDIOHOUAN, 1986, p. 50). 77 As línguas étnicas continuam vivas e são faladas praticamente na mesma percentagem do número de habitantes de cada etnia74. Em áreas rurais, em aldeias onde a concentração de uma só etnia é muito grande ou mesmo total, acontece ainda hoje não haver muitos indivíduos que dominem o crioulo, havendo necessidade de intérpretes por ocasião de alguma campanha política, campanha da saúde ou de algum assunto de interesse geral. As missões religiosas de há muito sabem que, para atingir a população, é preciso contactá-la na língua étnica. Há edições do Novo Testamento naturalmente na língua guineense, mas também em pepel e em mandjaco. Os serviços litúrgicos (missa, cânticos religiosos, ladainhas) são muitas vezes feitos nas línguas locais nas aldeias do interior. Os vários canais radiofônicos, inclusive canais locais, transmitem programas e avisos também nas línguas étnicas. Os casos de diglossia são freqüentes e é comum indivíduos falarem várias línguas étnicas, dado aos misturados laços de parentesco e ao convívio de vários grupos étnicos na mesma aldeia e na mesma rua. Mas praticamente quase não há aldeias onde, pelo menos, algumas pessoas não falem a língua veicular, o crioulo ou língua guineense. 2.5.1 A língua guineense A diversidade lingüística da Guiné-Bissau, não obstante todos os problemas que daí possam advir, constitui uma grande riqueza e sua preservação é merecedora do maior apoio e incentivo. Ao contrário das línguas étnicas, de existência milenar, a crioulização é um fenômeno recente e está ligada ao processo de expansão do colonialismo europeu no mundo, sendo o resultado da necessidade de uma comunicação em sociedades multilíngües. O guineense, hoje em dia uma língua autônoma, tanto do ponto de vista gramatical quanto lexical, é uma língua híbrida, mestiça, com a função social de língua veicular, ponte de comunicação entre os falantes de origens as mais diversas, desde os tempos coloniais. Já no decurso do século XVI, através dos primeiros contactos de viajantes e navegadores portugueses com as populações locais, isto é, os povos da costa da Senegâmbia até Cabo Verde, se foram formando, pouco a pouco, os inícios tanto do crioulo guineense, como do cabo-verdiano e o crioulo de Ziguinchor, de base lexical portuguesa75. Como disse o sacerdote italiano Artur Biasutti, um dos pioneiros do estudo do criolo na Guiné-Bissau, autor de um Vokabulari kriol-purtugîs, trata-se de uma língua “filha do português pelo vocabulário, mas de mãe africana, isto é: gramática, sintaxe e psique” (BIASUTTI, 1987, p. 8). 74 Como Pinto Bull fez questão de ressaltar: “Sem ser, por sua vez, língua dominante entre as outras línguas nacionais, [...] o crioulo tornou-se ainda mais a língua de comunicação” (BULL, 1989, p. 128). 75 Cf. entre outros ROUGÉ (1986); KIHM (1994); COUTO (1994); SCANTAMBURLO (1997). 78 Desenvolvendo-se a partir dos continuados contactos com os portugueses, durante quatro séculos, esse falar passou pouco a pouco ao estatuto de idioma, organizando-se estruturalmente, sedimentando-se na sua forma nacional e genuinamente guineense. Nos tempos coloniais, obrigados a aceitar a realidade, os portugueses tinham que tolerar a língua corrente dos centros mais urbanizados, embora a contragosto, pois de fato apenas uma pequena minoria dominava o idioma do colonizador; bastava, portanto, falar o crioulo para ser admitido como "civilizado" (MENDY, 1994, p. 310). “O crioulo”, escreve Carlos Lopes, “durante a longa noite colonial, foi sistematicamente desprezado, considerado um dialecto redutível ao português, falado por africanos, proibido no ensino” (LOPES, 1988, p. 227). Tolerado mas também combatido, viveu lado a lado com o português, em relação ao qual esteve por muito tempo em situação de diglossia. A língua guineense conheceu grande expansão durante as lutas de libertação. A mensagem política dos revolucionários era transmitida em crioulo e essa sua função emprestou-lhe a aura de língua da unidade nacional, de “detentor sócio-linguístico do conceito de independência” (ib., p. 231), para usar uma expressão de Carlos Lopes que lembra um pormenor importante, em geral descuidado: “Tendo-se desenrolado a luta armada principalmente no campo, é após a independência que o crioulo irá ter uma maior difusão nas cidades” (ib.). E continua: “Esse fenómeno de apropriação pela parte urbana da população eruditizou o crioulo, injectando expressões vizinhas do português” (ib.). Benjamim Pinto Bull apresenta uma minunciosa história do desenvolvimento do crioulo guineense e considero especialmente importante sua contribuição por se tratar de um guineense, o primeiro, um século depois do cônego Marcelino de Barros, a empreender estudos alargados nesse campo. Como ele mesmo escreve, a intenção de seu trabalho é “reabilitar o crioulo guineense, língua dominada até à independência” (BULL, 1989, p. 21), declarando ter “neste estudo [...] um duplo olhar”, isto é, “um olhar do exterior e um olhar do interior; em observador e em observado; em informador e em informado” (ib., p. 23). Pretende ainda o estudioso desmentir afirmações inexatas de pesquisadores estrangeiros, como a de Alain Kihm, que teria afirmado em sua tese de doutorado que “o crioulo não é ainda a língua materna de quase nenhum adulto” (1980). Entretanto, prossegue Pinto Bull, “se mandassem desfilar em Bissau, na Praça dos Heróis todos os Guineenses adultos que têm o crioulo como língua materna, isto é, a dos seus pais e a dos seus avós maternos ou paternos, o desfile duraria longas horas” (ib.). Implantado sobretudo em Bissau, o guineense vem afirmando-se cada vez mais, tanto em número de utentes como em prestígio. Se o censo demográfico de 1979 indicava o crioulo falado como primeira língua por 15% da população (e 44,3% como língua segunda), essa cifra multiplicou-se rapidamente e, embora os dados não sejam unívocos, foram registradas, dez anos 79 mais tarde, cifras que oscilam entre 51% (censo de 1991) a 90% ou mais (BENSON, 1994 e HOVENS, 1994)76, o que atesta o significativo crescimento do uso desse idioma77. O emprego praticamente generalizado dessa língua veicular durante as campanhas eleitorais, já desde as primeiras eleições multipartidárias realizadas na Guiné-Bissau, no decorrer de 1994, assim como seu uso nos debates da Assembleia Nacional Popular e em cada vez mais programas da rádio e da televisão guineenses, só fazem confirmar o óbvio dessa escolha espontânea e consagrada. Hoje em dia é cada vez maior a incidência de falantes do crioulo como primeira – e mesmo única – língua, sobretudo entre os mais jovens, nos centros urbanos. E como segunda língua (falada depois da língua étnica), a percentagem eleva-se, nos centros urbanos, aos noventa por cento ou mais. Na “praça” a pertença étnica se dilui e grande parte das crianças e dos jovens das cidades desconhecem as línguas ancestrais, não chegam nem mesmo a aprender o português, tendo o crioulo como seu único meio de expressão. Apesar de tudo, há, entretanto, uma certa situação de ambigüidade, uma vez que continua a não ser a língua de ensino nas escolas. A primazia da língua guineense não significa monolingüismo e é sempre bom de novo lembrar que o crioulo é a língua urbana da Guiné-Bissau, enquanto nas zonas rurais continua viva a língua étnica localmente predominante, sendo comum os falantes poliglotas, dominando três, quatro línguas étnicas. Os lingüistas definem os crioulos como um sistema lingüístico em que o léxico é tomado na sua maioria de empréstimos da língua base, a língua do dominador, e as estruturas são resultantes dos substratos das línguas africanas. Foi do contacto do português com as línguas étnicas mais correntes naquele território que nasceu e se desenvolveu o crioulo guineense que acabou se tornando a língua da unidade nacional. O léxico do guineense é constituído sobretudo de empréstimos do português (cerca de 80%), adaptado e transformado. O sistema gramatical do guineense está hoje em dia completamente estruturado e a língua demonstra uma grande vitalidade e capacidade de acrescentar neologias tanto de forma como de conteúdo (SCANTAMBURLO, 1997, p. 56). Vários autores se têm ocupado com a língua guineense, tanto em ensaios tratando de alguns aspectos específicos, como apresentando uma sistematização gramatical completa (como KIHM; ROUGÉ, 1992; COUTO, 1994; SCANTAMBURLO, 1997). Dicionários ou “vocabulários” existem também vários, destacando-se BIASUTTI (1987) e os trabalhos de Luigi Scantamburlo, a começar pelo primeiro resultado de seus estudos, a ainda modesta Gramática e dicionário da língua criol da Guiné-Bissau (1981), até culminar com a 76 Cf. sobretudo as informações apresentadas por Carolyn BENSON (1994), que compara, na sua tese de doutorado, os dados do censo de 1979 com os de 1991 e com as estimativas de 92/93, diferenciando o uso do crioulo como língua primeira, segunda ou terceira. Cf. também SCANTAMBURLO (1997). 77 É ainda Carlos Lopes que lembra que também as línguas fula e mandinga são línguas veiculares importantes para a comunicação dentro da sub-região (LOPES, 1988), principalmente entre a vasta população muçulmana do Senegal, República da Guiné e Guiné-Bissau (mas não só). 80 tese de doutorado, publicada em dois volumes: um introdutório e dedicado à gramática, o outro um dicionário bilingüe, muito completo e da maior utilidade (SCANTAMBURLO, 1997, 2002)78. É necessário ainda fazer uma distinção entre os diferentes níveis da língua guineense. As variações são, naturalmente, tanto de ordem diatópica e diacrônica, como diastrática. Na “folklingüística local” (a expressão é de COUTO, 1994, p. 54) diferencia-se entre o kriol lebi (crioulo leve) e o kriol fundu, isto é, entre a língua mais próxima do português e aquela tradicional, falada hoje em dia sobretudo pelos mais velhos ou em certos espaços menos influenciadas pela escola. É Hildo do Couto que propõe, no campo lingüístico guineense, uma escala de variabilidades que vai das línguas nativas ao português lusitano, passando pelo crioulo nativizado, o crioulo tradicional, o crioulo aportuguesado, o português acrioulado (ib., p.53)79. 2.5.2 O guineense nas manifestações escritas São muitas as dificuldades e os obstáculos com que as línguas étnicas se defrontam, não tendo até o momento conseguido chegar a constituir um veículo consolidado para a expressão escrita. O guineense, que se desenvolveu principalmente nas cidades, tinha e tem todas as possibilidades de também ser escrito. É ainda basicamente uma língua oral e só a duras penas vem alcançando o estatuto de língua escrita. Trata-se de uma língua plena de metáforas, flexível e maleável, que joga com a liberdade da composição e da derivação, a facilidade das transferências categoriais do verbo para o substantivo e vice-versa, que se deleita com palavras raras e sonoras extraídas do enredado de empréstimos africanos que compõem o crioulo antigo (KIHM; ROUGÉ, 1992, p. 129). Até o fim do século XIX não se conheceu nenhum registro nessa língua a não ser a transcrição de algumas palavras, como atesta Bertrand Bocandé em 1849. Foi o cônego guineense Marcelino Marques de Barros, que havia divulgado já em 1882 alguns poemas e canções em crioulo, quem publicou, em 1900, sua Litteratura dos negros, onde transcreveu no idioma original, além do crioulo, canções e pequenas histórias da tradição oral de diversas etnias, de qualidade literária inconteste. Também é de sua autoria o ensaio “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre os usos, costumes e línguas da Guiné”, publicado na Revista da BSG em 1882, com “duas páginas de um vocabulário sucinto, com várias colunas: Português, Mandinga, Beafada, Fula, Balanta e 78 79 Acrescentem-se ainda ROUGÉ, 1988; DIETERLE, 1999; MONTENEGRO, 2002b. No final do capítulo 3.4 vou comentar os diferentes trabalhos lexicográficos relativos à língua guineense. A escala e a nomenclatura são do crioulista brasileiro, mas me permiti inverter a ordem, começando não pelo português, como consta de seu livro, mas pelas línguas nativas. 81 Bijagó” (BULL, 1989, p. 97). Embora se reconheça seu valor, a obra desse sacerdote guineense ainda não foi completamente estudada80. O fato de o crioulo estar inserido numa sociedade multilíngüe e de até hoje não ter havido uma regulamentação para a escrita nessa língua ocasiona uma grande insegurança quanto à maneira de grafá-lo, sendo natural um certo número de variações e incertezas. Já começa pela própria denominação da língua: crioulo, criol, kriol, kiriol são algumas variantes mais freqüentes. A denominação guineense ou língua guineense ainda não se impôs, como já disse no começo deste subcapítulo, mas não tenho dúvida de que isso acontecerá. A língua mais corrente no país não conhece, até o presente, nem uma ortografia fixada nem uma escrita normatizada. Em 1987, o Ministério da Educação, Cultura e Desportos apresentou uma "Proposta para unificação da escrita crioula", com uma ortografia eminentemente fonética, tendo como base o alfabeto latino, mas tentando suprir ora com empréstimos do alfabeto internacional, ora com convenções locais, a transcrição dos sons próprios do crioulo e inexistentes nas raízes etimológicas para manter a fidelidade à língua falada81. Benjamim Pinto Bull, como ja referi, é autor de um trabalho fundamental sobre o crioulo ou língua guineense. Sua tese de doutorado, defendida em Dacar, é muito mais completa e minuciosa do que a excelente publicação, dali resultante, sobre a filosofia e a sabedoria do crioulo, editada em conjunto em Portugal e pelo INEP em 1989, com um prefácio de Léopold Sédar Senghor, onde discorre sobre diferentes manifestações do crioulo na oratura, ou seja, nos contos (storia), nos provérbios (ditu) e nas adivinhas (dibiña)82. Passando em revista as manifestações culturais expressas na língua guineense, destaca-se a música. A música popular muito cedo se expressou em crioulo. Era cantada inclusive em festas populares, os famosos bailes da tina, que foram até proibidos pelo governo colonial, sempre atento em combater as afirmações identitárias africanas. Durante todo o período da luta armada, compositores e intérpretes populares e iletrados, "cantores do povo", animavam os combatentes com seus cantos guerreiros, nos mais diversos idiomas desse variadíssimo mosaico lingüístico que é a Guiné-Bissau. Mário Pinto de Andrade registra algumas delas na sua Antologia temática de poesia africana (1979, II, p. 17-33) e anteriormente na coletânea que organizou, publicada em francês (1969). As cantigas das mandjuandadi eram também apreciadas e difundidas, estando atualmente a se presenciar um renascimento desse gênero nos centros urbanos mais populosos. As cantigas de ditu ou de mandjuandadi, esclarece Odete Semedo, são em geral muito breves, cantadas quase 80 Um estudo bastante completo sobre a obra do Cônego Marcelino Marques de Barros é o de VICENTE (1996). Cf. também BULL, 1989, sobretudo p. 95-105. 81 Sobre o assunto, cf., por exemplo, SCANTAMBURLO, 1997. 82 Cf. ainda a respeito no capítulo 3. Sobre Pinto Bull e seus méritos como crioulista e homem de cultura, cf. também um artigo que Leopoldo AMADO publicou por ocasião de seu falecimento (2005), “Elegia ao Professor Pinto Bull”, disponível na internet. Cf. bibliografia final. 82 sempre por mulheres, em certas ocasiões específicas, momentos de convívio de certas comunidades, em reuniões de mandjuandadi, que são agrupamentos de indivíduos de ambos os sexos, da mesma faixa etária, companheiros e amigos (mandjua), com uma estrutura social específica e hierarquizada, que se confraternizam em festas e encontros sociais83. A canção urbana em crioulo foi retomada com dinamizadora energia sobretudo por José Carlos Schwarz, o criador da moderna música guineense (AUGEL, 1997b). Nos últimos anos, até o eclodir dos lamentáveis acontecimentos atuais, a música popular guineense encontrava-se numa fase de grande dinamismo e originalidade, tendo conseguido impor-se, inclusive, no exterior. Quase todos os conjuntos musicais e os compositores guineenses optam pelo crioulo e a música de intervenção, isto é, de crítica social e política, continua a ter importância e grande aceitação, ao lado de letras mais leves e menos comprometidas84. É comum darem-se títulos em guineense a jornais (como Nô Pintcha, o jornal mais antigo do país; Banobero, Kansaré), a revistas (Soronda; Tcholona), a coleções literárias ou ensaísticas (colecção Kebur; colecção Lus bin), ou a eventos ou projetos (Firkidja), também a nomes de estabelecimentos comerciais (o restaurante Bantaba), para só dar alguns exemplos. Apesar das dúvidas a respeito da codificação da escrita, existem algumas obras publicadas em guineense, entre elas, sobretudo, trabalhos envolvendo a tradição oral ou publicações de cunho religioso. Também folhetos com informações utilitárias, por exemplo sobre questões sanitárias e médicas (campanhas de saúde de base, esclarecedoras quanto à SIDA ou AIDS ou de prevenção ao cólera), da mesma forma os folhetos de propaganda eleitoral que pretendem alcançar um público mais amplo, são apresentados hoje em dia quase sempre nesse idioma. Parece-me que o crioulo é usado, por parte das instituições, sempre que existe um interesse maior em alcançar o povo e fazerse ouvir. No mundo da política, por exemplo, popularizou-se desde a democratização do país e o pluripartidarismo. Igualmente as religiões não hesitam em cada vez mais lançar mão da língua guineense (como de outras línguas étnicas) para melhor alcançar seus objetivos de catequese. A propaganda comercial, tanto nos jornais, na rádio como na televisão, também já reconheceu a eficácia desse meio de comunicação, enquanto as escolas mantêm, quase que de modo generalizado, a fixação no português como língua primeira de ensino. O êxodo escolar e o mau desempenho de uma grande parte dos alunos podem ter aí a sua origem. No âmbito da oratura, avulta primeiramente o papel representado pela Editora Nimba, com sua Oficina Gráfica, criada logo depois da independência, e que editou contos da oratura em crioulo. Sobressaem os trabalhos de Teresa Montenegro e Carlos de Morais que procederam durante muitos 83 Odete Semedo tem em andamento uma pesquisa sobre as mandjuandadi da qual a revista Tcholona publicou uma pequena amostra em primeira mão (SEMEDO, O., 1996d). No mesmo número da revista Tcholona, da mesma autora, cf. ainda: “Um canto para as cantigas de ditu” (SEMEDO, O., 1996c). 84 Sobre a música de intervenção guineense, cf. BORSZIK, 2003, 2004. 83 anos a uma extensiva recolha e posterior análise de exemplos da oratura. Publicaram inicialmente dois livros com os primeiros resultados, ‘N sta li, ‘n sta la, um livro de adivinhas (1979a) e Junbai. Storias do que se passou em Bolama – e outros locais – com bichos, pecadores, matos, serpentes e viagens ao céu nos dias de 1979 (1979b)85. Ambas são edições comemorativas do centenário da Imprensa de Bolama e foram os primeiros livros na língua guineense editados no país86. A recolha processada por esses dois estudiosos em Bolama até hoje não cessou de dar preciosos frutos. A editora Ku Si Mon tem realizado um trabalho importante de resgatar essas jóias da tradição oral. A série No bai, organizada e editada por Teresa Montenegro, é uma valiosa coleção de storias de animais, muito conhecidas e de grande aceitação na Guiné-Bissau, em edição bilingüe, em crioulo e em francês, com bonitas ilustrações coloridas do artista guineense Luís Lacerda87. Em 1995, surge Uori. Storias de lama e philosophia, dos mesmos autores, e que estava pronto desde 1988, com prefácio do consagrado lingüista português Luís Filipe Lindley Cintra. Trata-se da reprodução de vinte e quatro estórias, transcritas em crioulo e traduzidas para o português. Em Uori, as personagens são humanas, diferentemente das fábulas da coleção No bai e à semelhança da primeira recolha Junbai, como os autores se expressam no prefácio: a rapariga transgressora, o espírito do mato que assistiu a tudo e que terá que a castigar, o caçador exímio na morte e nas artes mágicas, a dona de casa em guerra com a combossa [co-esposa], o pauteiro [vidente paranormal] a derrotar o feiticeiro, o homem que casou com duas mulheres (MONTENEGRO; MORAIS, 1995, p. XVIII). A coletânea Uori é enriquecida com um cuidadoso glossário, com cerca de trezentas entradas. Essas obras, ao mesmo tempo que divertem e instruem, contribuem para a legitimação da língua guineense elevando-a, por meio da palavra impressa, fazendo-a sobressair como genuína expressão literária. Saindo do domínio da transliteração, a antologia Kebur (1996) é a primeira iniciativa de uma publicação de poemas contemporâneos exclusivamente em crioulo. A revista Tcholona, durante sua curta existência (1994-1997), trazia regularmente poemas nesse idioma. Praticamente todas as obras literárias publicadas de 1993 em diante incluem textos, ou pelo menos expressões, 85 Novamente a questão da grafia pode trazer certa confusão. Na época daquelas publicações estava-se tentando uma normatização ortográfica a partir das diretrizes recém-criadas pela nova república. Mas as grafias djunbai ou djumbai, mais próximas da pronúncia do fonema inicial, têm prevalecido hoje em dia. Também há hesitações quanto ao emprego dos grafemas n ou m antes das labiais b e p. A tendência, aí, é preferir a mais próxima do português. 86 Russell Hamilton dedicou um longo comentário a essas duas obras no capítulo sobre “A arrancada tardia de uma literatura”. O subcapítulo tem o expressivo título “A legitimação do crioulo guineense como linguagem literária”. Cf. HAMILTON, 1984, p. 224-231. 87 A coleção conta, até o momento, com oito livrinhos, a saber: 1.Gasela ku Liopardu / La Gazelle et le Léopard; 2. Ami ki mas tudo jiru / Le plus intelligent des animaux; 3. Gera di jintis di riba ku jintis di bas / La guerre des gens d'en haut contre les gens d'en bas; 4. Korosata tabanka di mufunesa / Korosata, le village de la malchance; 5. Kunankoi ku Galiña di matu. Dame Pique-boeuf et son amie Pintade; 6. Lubu ku Lebri ku Pis-kabalu. L'Hiène, le Lièvre et l'Hyppopotame; 7. Timba ku Purku-matis ku Saniñu / Le Fourmilier, le Porc-épic et l'Ecureuil; 8. Siñora na rema, Katibu na jungu. Madame Pagaye, l’esclave se repose. Acrescente-se ainda, da mesma editora, o primeiro título da colecção Kindin-Kondon, em crioulo e em português, também uma história com animais, Lion, lifanti ku lubu. O leão, o elefante e a hiena. 84 em guineense, numa atitude consciente por parte dos autores de assinalar sua pertença, sua guineidade. José Carlos Schwarz, pioneiro da música de intervenção, já compunha e cantava na língua guineense antes da independência, o que em princípio era mesmo proibido88. Há autores que só escrevem na língua guineense, mas até hoje apenas um deles, Nelson Medina, publicou um livro de poemas individual, Sol na mansi, na sua língua materna (MEDINA, 2002). Pode-se dizer que, com a enorme ampliação do emprego da língua guineense como veículo intercultural, está-se diante de um primeiro elemento de identificação coletiva, de tomada de posição, de definição mesmo e que significa uma contribuição importante para o sentimento em comum de nacionalidade. As publicações do INEP, de modo geral, inclusive a da Série Literária. Colecção Kebur, assim como as da Ku Si Mon Editora, procuram uma coerência no campo da escrita. Mas, como a codificação gráfica da língua guineense até agora não conseguiu alcançar um consenso por parte de todos os autores, alguns preferem não abrir mão de certos usos já consagrados e essa desvantajosa imprecisão e enorme flutuação ainda perduram, constituindo reais entraves para a expansão do crioulo na expressão escrita. Um outro exemplo de textos na língua guineense são as populares e saborosas estórias em quadrinhos, chamadas na Guiné-Bissau bandas desenhadas, expressão calcada no francês e de uso dos portugueses. Os mais famosos autores de cadernos ou folhetos com estórias cheias de humor e sátira são os irmãos Manuel e Fernando Júlio, que já na década de oitenta foram avaliados positivamente e comentados por Pinto Bull em sua obra sobre os saberes de seu país (BULL, 1989, p. 121-128). Os dois irmãos mereceram também comentários altamente elogiosos em um artigo na revista guineense Soronda, aliás condensação de um outro artigo anteriormente saído na França, dos autores KIHM e ROUGÉ (1988, 1992). A língua desses desenhistas-escritores é o crioulo e eles mesmos comercializam seus trabalhos, publicados primeiramente em jornais e em rústicas reproduções mimeografadas e vendidos tanto pelos autores como por intermediários ambulantes ou instalados nos mercados da cidade. Os ensaístas franceses questionam-se sobre a propriedade de considerar as estórias em quadrinho como uma arte inferior ou não, sobretudo na Guiné-Bissau onde não havia, na época em que começaram a circular, na década de oitenta, quase nenhuma obra literária publicada. Os temas refletem a realidade cotidiana urbana e as personagens são representantes do mundo em que circulam os seus leitores, onde a maior parte da população não tem emprego fixo, vivendo de "expedientes" e trabalhos circunstanciais. A sátira social é consciente e bem dosada, embasada numa visão realista do momento atual, emparelhada a estórias picantes onde o sexo pode quase chegar à obscenidade, mas que atinge com certeza o gosto popular. Fernando Júlio notabilizou-se 88 Lembro o capítulo sobre a ação revolucionária e política de José Carlos Schwarz em SILVA, 2003, p. 171-186 – um testemunho apaixonado de um conterrâneo e “filho espiritual” do compositor. 85 com a publicação de uma série de estórias com os 3 N’Kurbados, título que poderia ser traduzido como "os três malandros", "os três espertalhões", e onde o eterno confronto entre a brutalidade e a estupidez de um lado e a astúcia e a inteligência do outro (inspirado talvez no confronto entre a lebre e a hiena, uma constante nas estórias tradicionais da oratura, tão conhecidas e apreciadas na Guiné-Bissau), é representado por três engraçadas figuras, sempre metidas em estrepolias e malandragens. Da mesma forma digno de referência é o seu irmão gêmeo Manuel Júlio, que nos inícios da década de oitenta criou a personagem Ntori Palan, cujas aventuras continuam hoje a divertir a população89. O papel de anti-herói dessas personagens é evidente, caracterizado pela astúcia, pela sagacidade, pela esperteza e os recursos que usa para conseguir o que quer, sem nenhum escrúpulo. Ambos os irmãos Júlio continuam empenhados nas "bandas desenhadas", confeccionando muitas vezes pequenos folhetos em quadrinhos, com fins didáticos e esclarecedores, encomendados pelas instituições as mais diversas. Os muitos jornais (de periodicidade muito irregular) que hoje em dia circulam na GuinéBissau trazem obrigatoriamente um comentário sobre algum acontecimento político brisante em forma de cartoon ou de uma breve estória em quadrinhos, bastante caricatural. Os irmãos Júlio destacam-se sobre os outros cartoonistas do país. Dignas de nota são suas publicações saídas durante a guerra de 1998/99. Em “A guerra desenhada”, Fafali Koudawo tece oportunos comentários sobre dois desses cadernos muito especiais (KOUDAWO, 2000). O primeiro tem o título “Lutu na polon di Bra” e o segundo, “Panha ku mon”, duas estórias em quadrinhos onde as principais personagens são os chefes das duas facções em conflito, apresentando todo o decorrer dessa guerra de forma caricatural e histriônica, onde as referências aos costumes tradicionais e ao mundo simbólico guineense formam uma base de grande criatividade e com um excepcional valor de afirmação identitária. O artista procede a uma habilidosa desconstrução, transpondo o conflito para o mundo familiar e cotidiano, embora mantenha a apresentação fiel da cronologia do desenrolar dos acontecimentos: a Guiné-Bissau é uma tabanca (uma aldeia), a população é a do mundo rural, o presidente da república é o chefe da aldeia, caracterizado pelas roupas típicas da etnia Pepel à qual pertence; o chefe supremo do exército é o guardião do depósito das ferramentas e outros utensílios, também vestido de acordo com a sua etnia, com as largas indumentárias muçulmanas; o parlamento é o conselho dos anciãos, as armas são machetes, facões, machados, lanças. As únicas notas exóticas nesse cenário são os aviões e “as incontornáveis gravatas e malas de diplomatas” (KOUDAWO, 2000, p. 289). Como o comentarista F. Koudawo observou, Fernando Júlio “tendo escolhido rir e fazer rir da guerra civil que assombou a Guiné-Bissau”, 89 Cf. apresentação, tradução e comentários de uma das aventuras de Ntori Palan (Caderno n. 2) em BULL, 1989, p. 121-128. 86 relata a seu modo “onze meses de conflito sangrento sem mostrar, nem uma gota de sangue nem desenhar um único cadáver” (ib., p. 294). O que lhe interessou foi, pelo viés da caricatura e da hilaridade, desnudar o lado absurdo daquele episódio (ib.)90. Para a maioria dos que têm o crioulo como primeira língua, por melhor que dominem o português ou o francês, a expressão aí é diferente, é mais colorida, mais maleável e mais espontânea, mais próxima do íntimo dos produtores textuais e dos receptores. Mesmo aspirando à universalidade, a aproximação do linguajar cotidiano, através da língua materna, confere ao texto crioulo uma grande força telúrica da qual emanam originalidade e autenticidade. É laborioso tanto para quem escreve como para quem lê, fazê-lo num sistema que não está ainda inteiramente codificado e no exercício do qual não se tem ainda quase nenhuma prática. Para quem parte do português como norma, o fluxo da leitura é perturbado pelo estranhamento da grafia, havendo a tendência a desistir da leitura, voltando-se para aquilo com o qual se está mais acostumado, o português. Mas é imprescindível que se multipliquem as publicações e se uniformize o quanto antes a escrita. 2.6 As religiões A ligação entre o visível e o invisível, o natural e o sobrenatural é muito estreita e importante na Guiné-Bissau e na África em geral. Sobretudo nas comunidades rurais (mas não só), a vida social é regulamentada pela consulta à força sobrenatural que vai possibilitar o contacto com o sagrado, vai propiciar o acesso aos recursos da natureza, regular a disponibilidade da força de trabalho ou mesmo interferir nas relações intergrupais. Na Guiné-Bissau, sobretudo nas comunidades tradicionais, o apelo a uma instância espiritual ocorre nas mais diversas circunstâncias, em tempo de paz ou de guerra, em momentos de felicidade ou de dor, de saúde ou enfermidade (de algum membro da família ou dos animais), para resolver dúvidas ou contendas, para orientação em caso de problemas na família, casos amorosos, para o sucesso econômico ou profissional, na procura de alianças ou por desavenças políticas. Assuntos de qualquer natureza são sempre tratados levando em conta um componente espiritual. A base das ações individuais está ancorada, como em outros campos de ação, no mundo dos espíritos e das forças sobrenaturais (SCHIEFER, 1994). No total da população do país, 54% são incluídos na categoria de adeptos das religiões chamadas animistas, cuja crença está baseada no culto dos antepassados, das forças da natureza e no poder da espiritualidade. Há cerca de 38% de muçulmanos, entre os quais os Fula e os 90 Cf. as referências bibliográficas no final. 87 Mandinga são os mais numerosos, e uma minoria cristã correspondente a cerca de 8% da população, concentrada nos núcleos urbanos, sobretudo na capital. Não há extremismos nem fundamentalismo no país e a miscigenação tanto religiosa como étnica é muito grande. As sociedades agrárias guineenses são organizadas etnicamente, isto é, o princípio determinante da organização interna é o parentesco. O culto aos antepassados assume, por isso mesmo, um papel proeminente na cultura religiosa. As principais etnias animistas são a Balanta, a Pepel, a Mancanha, a Mandjaca, a Felupe e a Bijagó. Embora haja diferenças entre elas, há uma base comum que é, além da crença em um Deus onipotente e criador, o culto aos antepassados, a crença na reincarnação e nas forças da natureza. Como Deus está muito longe dos mortais, é necessário uma intermediação e as forças espirituais que exercem essa ponte entre o divino e o humano são os irans91. Nas religiões tradicionais, a prática religiosa gravita em torno dos irans e de seus intermediários, os balobeiros e os djambakus. Os glossários que acompanham as obras literárias até hoje publicadas não trazem uma explicação satisfatória sobre o significado desses enunciados. Abdulai Sila limita-se a designar o “yran” como “Deus; espírito sagrado” (SILA, 1995, p. 166); para Odete Semedo, é a “divindade protectora mas que também pode castigar quando se está em falta para com ele, segundo a crença popular (SEMEDO, 2003b, p. 175). Não é fácil resumir num curto verbete toda a complexidade do que represente ou seja um iran. Para Joop de Jong, “a palavra irã indica a representação simbólica da residência do espírito” (JONG, 1988, p. 6). Segundo Teresa Montenegro, seria a designação genérica da divindade, espírito sagrado que protege ou que pune, “objeto de culto e de consulta das populações animistas da Guiné” (MONTENEGRO; MORAIS, 1995b, p. 222). Os irans são também as almas dos antepassados que protegem os familiares. Os que morreram gozam de um respeito especial, pois são superiores aos vivos em conhecimento e em experiência, uma vez que ultrapassaram a ombreira da morte e a eles foi revelado o seu mistério. Os irans podem ser associados à gestão de determinados acontecimentos da vida dos seus crentes como, por exemplo, à circuncisão, ao parto, etc. Ou são considerados como seres protetores e que conhecem (e às vezes revelam) o que ainda vai acontecer. Existem vários tipos de iran, havendo também uma hierarquia. O iran do fundador da linhagem é o mais importante, seguindo-se o espírito ancestral ao nível da moransa (agrupamento de moradias de uma família alargada; a própria família). Se alguns são ligados diretamente a uma família ou linhagem (isto é, aos antepassados), outros, entretanto, têm relação somente com certos grupos dentro da comunidade e outros ainda estão accessíveis a todos os membros de uma etnia. Além deles, há ainda os que podem ser invocados por todas as pessoas, não importando a que etnia pertencem 91 Escreve-se a palavra de diversas maneiras: iran, irã, yran. 88 (SCHIEFER, 1994, p. 114). Há, portanto, os irans familiares e os irans coletivos, sendo alguns tão importantes e poderosos que atraem peregrinos de todas as regiões do país (MONTENEGRO; MORAIS, ib). Certas localidades ficaram famosas pelo poder que tinha (ou tem) o seu iran. Bassarel, do chão mandjaco, é uma delas (cf. VAZ, 1994). Há igualmente matas sagradas (matu malgos), onde temíveis e poderosos irans são senhores absolutos, como as matas de Cobiana e de Mama Djombo92. Os irans são cultuados nas balobas (santuário, local de culto, de evocação ou de consulta) e os balobeiros são seus sacerdotes ou intermediários. O local é marcado por uma árvore sagrada, em geral um imponente e secular poilão, de enormes proporções e que tão bem caracteriza a paisagem africana93, árvore de raízes tubulares, gigantescas, com seu tronco rugoso e acidentado, esgalhando-se em todas as direções, formando uma copa majestosa, como um imenso abrigo ombroso. Conforme escreve Carlos Vaz, “são inúmeras as ocasiões para as cerimónias de evocação aos irans: Vão desde o pedido de protecção e conservação do poder dos régulos, a uma acção de justiça, ao respeito pela tradição, até aos pedidos de bom sucesso na lavoura e nas colheitas e em outros domínios da vida familiar” (VAZ, 1994, p. 18). A existência do iran pode ser simbolizada através de vários objetos. As mais importantes representações são esculpidas em madeira. Nos santuários ou no terreiro das moransas, é comum verem-se agrupamentos de figuras de madeira, toscas ou finamente esculpidas, antropomórficas (também figuras femininas), de forma estilizada ou muito simplificada, como simples estacas. A essas figurações dá-se o nome de “forquilha” (furkidja). Elas estão nos terreiros ou em pequenos santuários, em geral dispostas em semicírculo ou uma ao lado da outra, e os fiéis ali vão para consultas, para render graças ou fazer cerimônias de preceito, rituais de invocação e outros. Irã ou iran é um termo guineense derivado de erande, empréstimo da língua dos Bijagó e tem o significado de “espírito inferior a Deus”. O termo cobre todos os seres e símbolos da religião tradicional africano-guineense. Luigi Scantamburlo afirma que esse aspecto redutivo do termo teria a ver com uma conotação de inferioridade em relação à religião cristã. O sacerdote italiano, na Introdução ao dicionário guineense-português, acrescenta que apesar de não ser certamente o único motivo, o uso do termo redutivo ‘irã’ tem influenciado a incapacidade dos cristãos e muçulmanos de dialogarem com o mundo da religião tradicional africana e de perceberem todas as suas distinções entre Deus e as categorias dos antepassados e dos outros espíritos” (SCANTAMBURLO, 1997, p. 52). 92 93 O nome de dois dos mais famosos grupos musicais guineenses são justamente tirados desses dois últimos (Cobiana Djazz e Grande Mama Djombo). O artigo de JONG (1988), psiquiatra holandês e fundador do Hospital Psiquiátrico de Bissau, é bastante esclarecedor a respeito dos irans, baloberus, djambakos. É a mafumeira angolana, o ocá de São Tomé, a paineira ou sumaúma brasileira (da família das bombacáceas, Ceiba pentandra). 89 Nas sociedades agrárias guineenses existem assim, através da aliança com as forças espirituais, muitas possibilidades de exercer influência sobre os acontecimentos e decisões da comunidade e mesmo, alargadamente, sobre o moderno sistema político, o que ocorre, de forma expressiva, na luta pelo poder (SCHIEFER, 1994, p. 120), uma vez que a religião é um fator básico na vida dos guineenses em geral. É de preceito fazerem-se consultas ao balobeiro ou ao moro muçulmano antes de uma decisão importante, por exemplo na escolha do sucessor do régulo, antes da colheita, num momento de angústia ou dificuldades familiares, e assim por diante. As autoridades espirituais são, conseqüentemente, da maior importância e gozam de grande prestígio. Destacam-se o djambakus e o balobero (baloberu), que podem ser consideradas “entidades religiosas incontornáveis para a realização de qualquer cerimônia de culto tradicional, pois são eles que estabelecem a comunicação e interpretam a vontade dos espíritos” (CARDOSO, 2004, p. 26). O djambakus (também se usa a grafia djambacós ou djambakós) seria mais especialmente o curandeiro e adivinho, considerado um homem sábio e bom conselheiro, que sabe diagnosticar a origem dos problemas, mas também das enfermidades; tem a capacidade de tratá-las e também de desviar feitiços e maus olhados. É muito freqüente a consulta ao djambakus para um tratamento de saúde; e o emprego de ervas e outros mezinhos (medicamentos) atesta muitas vezes grandes conhecimentos da medicina tradicional e dos segredos da arte de curar. Alguns se especializam em certos males, por exemplo, podem ser famosos por terem sucesso no tratamento de fraturas ou outros problemas ortopédicos. O balobero, por sua vez, é um misto de sacerdote e xamã, é o chefe de culto durante as cerimônias e o transmissor de pedidos e de desejos. Recebe, em transe, a alma do antepassado e comunica, numa linguagem oracular, a mensagem recebida. Sua função é hereditária e requer um período iniciático de preparação. Em várias etnias, é o xamã a quem se atribui a função e o poder, de natureza ritual mágico-religiosa, de recorrer a forças ou entidades sobrenaturais para realizar rituais, adivinhação do futuro, exorcismo, encantamentos, conforme consta do Novo Aurélio século XXI (FERREIRA, 1999, p. 2094). Para as etnias muçulmanas, como os Fula e os Mandinga, a instância espiritual se personifica ou se concretiza na figura do moru ou muro (mouro ou marabout), um misto de vidente, adivinho, curandeiro e também xamã. Um moro é, como o balobeiro, capaz de mobilizar forças sobrenaturais, em princípio sempre apoiado na sabedoria do alcorão, para interferirem positiva ou negativamente em um acontecimento ou uma ação. O moro, que recebe seu poder de Alá e deve ter freqüentado uma escola de Corão, é consultado com as mesmas finalidades como nas religiões animistas se consulta o iran pelos seus intermediários, servindo-se da arte divinatória e da arte curativa. Lança mão de recursos cabalísticos como os djambakós e 90 interfere, pela feitiçaria, na sorte alheia. Na realidade, muitas vezes o moro lança mão secretamente da ajuda também do iran, mantendo assim a ligação com as antigas tradições espirituais pre-islâmicas da sua etnia (SCHIEFER, 1994, p. 117). Um costume muçulmano muito arraigado é a simola (esmola), dádiva em forma de alimento ou dinheiro, que se oferece ou distribui (às vezes em quantidade), para se alcançar uma graça ou em sinal de gratidão. Assim como entre os irans existem diferenças e uma certa hierarquia, isto é, diferentes graus de importância ou de poder, o mesmo acontece em relação aos mouros muçulmanos. Estreitamente imbricada com o sentimento religioso de comunicação (re-ligio) com o divino e o sagrado, persiste a crença nas kasisas (alma do morto que não encontrou pouso, alma penada), nos kikia matcho (o mocho ou coruja, anunciador de desgraça), nas asalmas (os espíritos dos mortos). Ao contrário do que acontece, desde os começos de 2004, na África do Sul com os sangomas, na Guiné-Bissau os curandeiros, moros e outros especialistas populares de saúde física e espiritual, não têm nenhum status oficialmente reconhecido. Pelo contrário e apesar de continuarem a ser muito procurados pela população, são muitas vezes identificados como representantes de um sistema retrógrado, tradicional e residual, operando ao lado da medicina moderna que, mesmo sendo muito deficiente e ausente, arvora-se a manter o monopólio da arte de curar94. Paulin J. Hountondji chama a atenção sobre a necessidade de se interrogar sobre o lugar dos saberes tradicionais e seu modo de coexistência com a ciência dos laboratórios. Esses saberes tradicionais são quase sempre marginalizados, empobrecidos, minimizados, privados de antiga vitalidade, estando estacionados em seu desenvolvimento. A atenção e o respeito a esses saberes fazem parte do cuidado da preservação cultural95. Embora a vida moderna, sobretudo nos meios urbanos, faça diminuir a importância da religião, o povo guineense mantém uma relação muito intensa ainda com a divindade e suas representações simbólicas e isso não podemos deixar de levar em conta ao nos confrontarmos com textos literários. 94 95 A identificação dos profissionais tradicionais de saúde (física e mental) com o atraso pode dever-se em parte à política tipo socialista do movimento de independência e da grande influência dos países do bloco soviético e de outros países socialistas durante a guerra de libertação. A ideologia do partido único, o PAIGC, referia-se a criar o “homem novo”, o que significava, na Guiné-Bissau, como em outros países africanos, a condenação da tradição como antiquada, ultrapassada. Hoje em dia, há as duas atitudes, entre desprezo e respeito. Recentemente, um jornal transmitiu a declaração de um médico guineense que chamou de “parceiros” aos curandeiros tradicionais (Diário Bissau, 6.8.2005, p. 8). Cf. “chamada” para um congresso ocorrido no Benin, em Porto Novo, de 18 a 21 de setembro de 2001, sob o título “La rencontre des ‘rationalités’” (não mais disponível na internet). Cf. ainda outros trabalhos do autor sobre o assunto (HOUNTONDJI, 1989; 1994). 3 A LITERATURA GUINEENSE: PRODUÇÃO E RECEPÇÃO Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Antonio Candido. Formação da literatura brasileira Dentro do amplo espectro dos questionamentos que giram em torno da produção literária de um povo e da sua recepção, os discursos elaborados sobre essa produção assumem um papel da maior importância. A crítica acadêmica tem o poder de consagrar ou proscrever um autor e muito se tem discutido sobre a validade do veredicto canônico. Em relação à Guiné-Bissau, nem no campo da historiografia, nem no da crítica ou da teoria literária existem muitas obras, o que corresponde à pouca produção e à ainda mais débil recepção dessa literatura. Essa situação se está aos poucos modificando, embora esteja ainda longe de ser satisfatória. Passarei a fazer um balanço do conhecimento que se tem até o presente dos aspectos culturais e literários da Guiné-Bissau, publicado tanto dentro do país como no exterior. Vou apresentar uma revisão crítica das obras de que tenho informação, procedendo a um levantamento o mais exaustivo que me foi possível, a fim de fornecer um panorama geral do que até agora foi publicado sobre a literatura guineense. Esbocei um primeiro balanço da fortuna crítica em A nova literatura da Guiné-Bissau (AUGEL, 1998a, p. 115-135), onde arrolei essa produção, seguindo critérios que levaram em conta o local da enunciação e sua cronologia, pois, como disse Eduardo Coutinho: Assim como a produção literária de um povo já tem sido vista, há algum tempo, por uma perspectiva histórica que leva em conta suas diferenças culturais, bem como os fatores específicos que a cercam, os discursos que sobre ela se constroem não podem tampouco ser encarados de maneira desenraizada, por uma dimensão atemporal e aespacial (COUTINHO, 2001, p. 8). Manuel Ferreira, no primeiro volume da trilogia No reino de Caliban, lamentava que as fontes para a literatura africana lusógrafa fossem “precárias, tristemente precárias, e a responsabilidade é toda nossa” (FERREIRA, 1975, p. 29). As bibliografias portuguesas até então publicadas eram “quase sempre parciais. E isto para não falarmos das estrangeiras, em que as lacunas são imensas também” (ib.). Como Laura Padilha registrou, a partir dos anos 60 começaram a surgir ensaios historiográficos sobre as literaturas africanas de língua portuguesa, “tirando-as do limbo cultural onde se encontravam. As antologias, por exemplo, têm um papel decisivo neste processo” (PADILHA, 2002b, p. 164). Veremos que, no caso da Guiné-Bissau, vêm de fora os primeiros 92 olhares que se debruçaram em registrar e em analisar a produção estética guineense. Da mesma forma, são, de fato, sobretudo coletâneas estrangeiras que dão um mínimo de visibilidade às incipientes manifestações literárias daquele país. 3.1 Guineenses sobre a literatura guineense Destaca-se, já no século XIX, o cônego guineense Marcelino Marques de Barros (1843-1929), estudioso da oratura das etnias de seu país96. Já havia divulgado exemplos da oratura em língua guineense e nas línguas de diferentes etnias no Novo Almanach de Lembranças LusoBrasileiro (para 1875 e 1882) e no Almanach Luso-Africano (para 1899), antes de publicar, em 1900, a Litteratura dos negros, onde transcreveu, nos idiomas originais, além do crioulo, canções e pequenas estórias da tradição oral de alguns grupos étnicos. Deixou ainda trabalhos dispersos em vários periódicos, além dos já acima citados, como a Revista Lusitana, A Tribuna, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Anais das Missões Ultramarinas, Voz da Pátria, divulgando canções e contos, dois dos quais foram aproveitados por José Leite de Vasconcelos em 1964, nos seus Contos populares e lendas97. Além de Marcelino de Barros, outros autores reproduziram amostras da tradição oral dos diferentes grupos étnicos, sem nunca ter havido, ao que me consta, uma coletânea escrita em alguma das muitas línguas faladas na Guiné-Bissau. O Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (B.C.G.P.) dedicou espaço em muitas ocasiões a artigos sobre várias línguas étnicas, com amostras do vocabulário e transcrição de estórias tradicionais, tais como os Apontamentos sobre a língua dos balantas de Jabadá (por L. de Sousa Bela, B.C.G.P., n. 4, p. 729-765, 1946); Aspectos do problema da semelhança da língua dos papéis, manjacos e brâmes (por J. Basso Marques, B.C.G.P., n. 5, p. 77-109, 1947); Conhecimento da língua balanta, através da sua estrutura vocabular (por Fernando Rogado Quintino, B.C.G.P., n. 64, p. 737-768, 1961), para só nomear alguns98. 96 Há autores que indicam 1843, como MOSER; FERREIRA (1993, p. 165) e outros, 1844 (BULL, 1989, p. 95) para o nascimento do cônego Marcelino. 97 Nas referências bibliográficas no final deste trabalho estão os dados das principais obras que se ocupam de algum modo com a literatura da Guiné-Bissau. Preferi, entretanto, dar as indicações bibliográficas das obras que consegui reunir e que não foram usadas diretamente para este trabalho nas notas de rodapé deste capítulo. 98 O Boletim Cultural da Guiné-Portuguesa (B.C.G.P.) não tem similar nos outros países de colonização portuguesa. É uma publicação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, com sede em Bissau, e saiu durante vinte e oito anos (1946-1973), em ritmo trimestral, totalizando cento e dez números. Constitui um receptáculo precioso de informações no campo da administração colonial e no âmbito cultural com artigos sobre a administração colonial, a economia e manufaturas, a pesca, a pecuária, a agricultura, a medicina tropical, a demografia, sobre a flora e a fauna, artigos de ordem etnográfica referentes às diferentes etnias, à religião, aos costumes, à língua, além de descrições de viagens, biografias e a transcrição de contos tradicionais das mais diversas proveniências. Ao lado de uma consideração positiva e mesmo de aplauso face à riqueza das informações contidas no B.C.G.P., não se pode esquecer o caráter de órgão de dominação e de representação da ideologia colonial que constitui a essência e a razão de ser desse periódico. Para uma visão crítica do Boletim, cf. CARVALHO, 2004. 93 Já depois da independência, outro guineense de destaque é Benjamim Pinto Bull (ca. 1916 2005) que se doutorou em Dacar. Sua tese, publicada depois em livro, O crioulo da Guiné-Bissau. Filosofia e sabedoria (1989), à qual já me referi no capítulo anterior, trata não apenas das estruturas do crioulo mas também, como o título indica, dos saberes do crioulo como patrimônio cultural guineense. Na segunda parte desse livro, o autor aborda as diferentes formas pelas quais se exprimem a sabedoria e a filosofia dos falantes do idioma analisado: os provérbios, as adivinhas, as estórias e contos, assim como os costumes e as tradições que estão na base dessas manifestações da oratura guineense. Pinto Bull divulgou, em menores dimensões, parte do conteúdo dessa obra em vários artigos, entre eles Proverbes, contes et devinettes, publicado num número especialmente dedicado à Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe do periódico francês da Collection Notre Librairie (BULL, 1993). No mesmo número daquela revista, Vasco Cabral (1926-2005), homem público e poeta, escreveu sobre os trovadores populares, num artigo cujo título é “Djidius. Poètes et militans” (CABRAL, V., 1993), onde expõe brevemente o labor e o fazer desses bardos populares, cantores e cronistas. São aspectos relevantes daquela rica oratura e por isso mesmo tem aqui pertinência o registro desses autores nacionais. O primeiro balanço feito no próprio país da literatura escrita guineense deve-se a Leopoldo AMADO (1990), com um artigo na revista Soronda. Diante da quase ausência de obras e de autores a arrolar, o ensaísta se deteve com mais profundidade na literatura de temática guineense, de autores portugueses ou cabo-verdianos que lá viveram e transpuseram para a ficção suas impressões e experiências, sua fantasia traspassada pelo exotismo. O periódico Tcholona. Revista de letras, artes e cultura divulgou, durante o curto período de sua existência (1994-1997), artigos sobre a literatura guineense e a cultura em geral, assinados por guineenses e por estrangeiros. Os autores nacionais foram Leopoldo Amado, Odete Semedo, Tony Tcheka e ainda Carlos Lopes, Carlos Cardoso, Maria Domingas Pinto, Alexandre Furtado, entre outros (cf. as referências bibliográficas no final deste trabalho). No periódico Soronda. Revista de estudos guineenses, que vem sendo editado regularmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) desde 1986, registra-se, além de artigos de alguns poucos estudiosos estrangeiros mais diretamente ligados a assuntos literários, apenas o já referido trabalho de Leopoldo Amado (1990). O mesmo autor também apresentou, alguns anos mais tarde, um ensaio com o título “O itinerário ambígüo da ideografia literária guineense”, num colóquio internacional que teve lugar em Lisboa, em novembro de 1997, no âmbito das comemorações dos descobrimentos portugueses (AMADO, 1997). Ali, o autor traça um quadro geral da literatura nacional até as últimas publicações de 1996. Atualmente vivendo em Lisboa, Leopoldo Amado tem escrito artigos sobre a 94 história guineense, disponíveis na rede eletrônica, no site de Fernando Casimiro do qual irei falar logo abaixo. Fruto daquele mesmo colóquio, importante também o ensaio de António Soares Lopes Júnior sobre os primeiros momentos da lírica do país, “Os meninos da hora do Pindjiguiti e as mutações na poesia guineense” (TCHEKA, 1997). Ainda no âmbito do mesmo evento, destaca-se Carlos Vaz, com um balanço sobre “O teatro na Guiné-Bissau” (VAZ, 1997). Odete da Costa Semedo, a principal, mas não única, mulher escritora guineense da qual ainda muito vou tratar, apresentou num congresso em Coimbra, em outubro de 2003, um trabalho sobre a oratura nas mandjuandadi (“As cantigas de Mandjuandade na oratura da Guiné-Bissau”) que deverá ser publicado em parte no periódico África lusófona. Política, Economia, Sociedade, em Lisboa99. Esse periódico tem dado um amplo espaço à literatura e à música guineenses atuais, sendo praticamente no momento o único órgão da imprensa escrita a divulgar no estrangeiro autores e compositores desse país. Seu redator chefe e um dos diretores é Tony Tcheka, pseudônimo do já referido António Soares Lopes Júnior. Nos últimos anos, Tony Tcheka, Odete Semedo e Leopoldo Amado têm prefaciado várias obras recentes de autores guineenses. Odete Semedo prefaciou o livro de contos de CarlosEdmilson M. Vieira, Um cabaz d’amores (1998). Tony Tcheka prefaciou na língua guineense o livro de poemas em crioulo de Nelson Medina, Sol na mansi. Poemas (2002); Leopoldo Amado, o livro de poemas de Carlos-Edmilson M. Vieira, Contos de N'Nori (2001) e o de Rui Jorge C. Gomes Semedo, Stera di tchur. Poesias (2001). É preciso ainda acrescentar um rápido comentário sobre o periódico Soronda. Revista de Estudos Guineenses, publicada pelo INEP desde 1986. O significado do título é muito sugestivo: uma palavra da língua guineense que significa “germinar”, “desabrochar”, “crescer”, tendo intencionado seus fundadores que ali haveria de ser o canteiro e o vetor da eclosão cultural e científica do país. A revista tem saído continuadamente durante esses vinte e quatro anos. Ao completarem-se vinte números, em julho de 1995, foi decidido dar início a uma “Nova Série”, que vem saindo desde janeiro de 1997, e que já está com quase uma dezena de números, apesar do hiato entre 1997 e 2000 e da falta permanente de verbas. Ali, renomados cientistas sociais e ensaístas nacionais e estrangeiros vêm escrevendo sobre questões relativas à sociologia, à antropologia, à etnologia, à economia, à história, ao direito, aos mais diferentes aspectos da cultura guineense, sem deixar de lado os temas literários e da oratura. Trata-se de um acervo indispensável para qualquer estudioso de assuntos relativos à Guiné-Bissau, com artigos que possibilitam uma compreensão do 99 Odete Semedo vem desenvolvendo uma pioneira pesquisa de campo sobre a oratura desses grupos típicos da sociedade guineense, tendo apresentado primeiros resultados em artigos na Tcholona (SEMEDO, 1996c; 1996d) e mais recentemente como capítulo (“Ecos da terra”, no livro que está sendo organizado por Laura PADILHA e Inocência MATA. A mulher em África: Vozes de uma margem sempre presente, a ser publicado brevemente. 95 “pano de fundo” que está por trás de tantas manifestações culturais. Importantíssimo o fato de a maioria dos artigos serem resultado da reflexão teórica e da pesquisa de campo dos próprios cientistas do país, apresentando a visão endógena indispensável para nós, pesquisadores de fora. Apesar da dificuldade de divulgação, a revista é conhecida e reconhecida mundialmente, consagrando-se como referência obrigatória para qualquer estudo que envolva a Guiné-Bissau. A rede eletrônica tem abrigado muitos sites, de cunho privado, de guineenses espalhados tanto na Europa, como no Brasil e nos Estados Unidos e vários deles apresentam, dentro do âmbito de informações gerais sobre o país e notícias sobre acontecimentos no campo político, também um item sobre a literatura. O nome de Abdulai Sila, com algumas linhas de notas biobibliográficas, é o mais freqüentemente referido na rede eletrônica. Também Odete Semedo está presente com certa assiduidade, inclusive com poemas e artigos. É de sua autoria um breve e muito informativo ensaio, “A língua e os nomes na Guiné-Bissau”, onde discorre sobre esse interessante aspecto da cultura guineense100. Deve-se, contudo, estar atento para não perder o olhar crítico quanto ao conteúdo das informações virtuais. Há atualmente muitas homepages feitas por guineenses, infelizmente muitas vezes completamente desinformados sobre o panorama atual da literatura do país. Também os dados históricos com freqüência não correspondem à realidade. Um exemplo positivo é a “Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau”, noticioso artigo de Filomena Embaló, com um balanço resumido mas abrangendo desde a literatura colonial até obras publicadas no ano 2000. Nas referências bibliográficas no final deste trabalho, alguns desses sites estão alistados, sendo o mais importante, na minha opinião, o organizado por Fernando Casimiro pela atualidade das notícias, pela variedade dos assuntos tratados e pela seriedade de seu organizador. Fernando Casimiro criou na rede eletrônica o projeto CONTRIBUTO, que nasceu a 10 de maio de 2003, como se pode ler na apresentação. As secções são, entre outras, as seguintes: um tipo de editorial com comentários sobre a atualidade; sobre a vida e os discursos de Amílcar Cabral (a partir do acervo da Fundação Mário Soares, de Lisboa); um espaço literário; um espaço com “sínteses históricas”; uma secção aberta a outros colaboradores. Como ele mesmo esclarece na apresentação desse projeto, sua intenção foi escrever artigos sobre a Guiné-Bissau, tentando assim, passar mensagens de sensibilização pela causa guineense, não só para os guineenses, mas também para o Mundo. CONTRIBUTO é um projecto de orientação pessoal, de carácter reflectivo, não informativo, apartidário e sem fins lucrativos. É um projecto que visa incutir e desenvolver o espírito de reflexão e debate de ideias na Guiné-Bissau e nos guineenses (http://didinho.no.sapo.pt). 100 Cf. o site http://ciberduvidas.sapo.pt/php/portugues.php?id=36. 96 3.2 A literatura guineense em Portugal É sobretudo em Portugal onde se encontra a maior parte de trabalhos sobre a literatura guineense. O angolano Mário Pinto de Andrade (1928-1990), incentivador e divulgador da literatura africana de língua oficial portuguesa, muito atuante desde os tempos estudantis da Casa dos Estudantes do Império em Lisboa e um dos fundadores do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola)101, já muito cedo organizou e publicou uma Antologia da poesia negra de expressão portuguesa. Precedida de cultura negro-africana e assimilação (1958)102. Ali reuniu poemas dos cinco países africanos lusógrafos, incluindo dois poemas do afrobrasileiro Solano Trindade. Da Guiné-Bissau, Mário de Andrade registrou um único poema (Meia-noite), de Terêncio Casimiro Anahory Silva (ib., p. 19) que, segundo informações do compilador, nasceu em Cabo Verde, viveu algum tempo na Guiné e estava estudando naquela altura Direito em Lisboa (ib., p. 102). Anahory Silva, que aparece em outros contextos sempre como poeta cabo-verdiano, foi igualmente incluído na antologia brasileira de João Alves das NEVES (1963, p. 25), ao qual me referirei mais adiante; e tem seus versos transcritos também numa antologia holandesa organizada por Bertus Dijk (1969). Anos depois, Mário de Andrade deu à estampa a Antologia temática de poesia africana103. Ele datou de Bissau o prefácio ao segundo volume (1979) e, embora conhecedor e amante da Guiné-Bissau como era, incluiu apenas dois nomes guineenses na coletânea: Agnelo Regalla e José Carlos Schwarz. E isso quando pelo menos já haviam sido publicadas na Guiné-Bissau duas pequenas coletâneas poéticas, Poilão (1973) e Mantenhas para quem luta! (1977). Outro grande africanista foi Manuel Ferreira (1917-1992), autor da exaustiva Antologia panorámica da poesia africana de expressão portuguesa, em três volumes, sob o título geral de No reino de Caliban104, com um total de cento e trinta e oito poetas. Mas apresenta um único guineense, António Baticã Ferreira, incluído no primeiro volume, com seis poemas datados de 1972. Foi de Manuel Ferreira a qualificação, sempre repetida, de “um espaço vazio” para a literatura da Guiné-Bissau (FERREIRA, I, 1975, p. 319). De fato, pouco havia a registrar em 1974, quando foi encerrada a coleta que pretendeu abranger o mais largo espectro possível das manifestações 101 Mário de Andrade foi coordenador-geral do Conselho Nacional da Cultura (1974-1978) e depois Comissário da Informação e Cultura (até 1980) na Guiné-Bissau. Sobre ele, cf. o suplemento de domingo do periódico português O Público: “A grande aventura do nacionalismo angolano”, in: Pública, 8.2.98. E ainda MATA; PADILHA (2000). Sobre as atividades de Mário de Andrade na Guiné-Bissau, cf. AUGEL, 2000c. 102 Essa e outras obras de Mário de Andrade foram traduzidas em diversas línguas, sobretudo francês, italiano e alemão. Cinco anos antes, tinha sido publicada a primeira obra do gênero: o pioneiro caderno Poesia negra de expressão portuguesa (1953), da autoria de Francisco José Tenreiro e Mário de Andrade, com prefácio de Manuel Ferreira. Esses poemas foram traduzidos entre outros para o tcheco e também para o alemão (Rumba Macumba, Carl Hanser Verlag, 1957, por Janheinz Jahn). 103 Vol. I, 1976; vol. II, 1979, 1980 (2. ed.). 104 Vol. I, 1975; vol. II, 1976; vol. III, 1980. 97 literárias de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, sem deixar de incluir “ainda a Guiné-Bissau, quanto mais não seja para uma breve referência” (ib., p. 17). Na obra Literaturas africanas de expressão portuguesa (1977), embora lamente não terem sido ainda criadas na Guiné-Bissau condições sócio-culturais propícias à revelação de valores literários (ib., p. 30), Manuel Ferreira dedica sete páginas a esse país, no final do primeiro volume (ib., p. 89-95). Valoriza, na parte introdutória da obra, o papel do cônego guineense Marcelino Marques de Barros, constatando estar-se “perante o capítulo menos expressivo do espaço literário africano de expressão portuguesa” (ib., p. 89). Registra o aparecimento do recém-publicado Mantenhas para quem luta!, comentando cada um dos autores ali presentes e fazendo breve referência aos poemas em crioulo: “Só recentemente as tentativas poéticas em dialecto (sic!) crioulo começam a ganhar espaço textual. Não só nas canções, nos cantos revolucionários, gravados em disco, como também na lírica que desponta” (ib., p. 95). Entre outros livros de Manuel Ferreira, além das obras já referidas, destacam-se ainda A aventura crioula (teve três edições: 1967; 1973, 1984) e também 50 poetas africanos (1989), com poemas de Vasco Cabral (p. 289-302) e Hélder Proença (p. 295-302). A importante revista trimestral África. Literatura, arte, cultura, idealizada e editada por Manuel Ferreira em Linda-a-Velha, nos arredores de Lisboa, teve quatorze números durante sua curta e dinamizadora existência de nove anos (1978-1986). Em diversas ocasiões, foram publicados artigos sobre a cultura guineense, em especial sua literatura, assim como foi aberto espaço para vários autores daquele país, tendo sido alguns deles ali divulgados pela primeira vez, como Vasco Cabral (nº 5, 1979) e Hélder Proença (nº 6, 1979). Manuel Ferreira prefaciou inúmeras obras de escritores africanos, como a Antologia poética da Guiné-Bissau (1990). As duas primeiras coletâneas guineenses mereceram na revista África dois alentados artigos de Fernando Martinho: “A nova poesia da Guiné-Bissau” (1978), sobre Mantenhas para quem luta! (1977), da qual Martinho diz se tratar de “poesia escrita sob o signo da urgência, da circunstância histórica” (MARTINHO, 1978, p. 162); e o artigo “Antologia dos jovens poetas (Guiné-Bissau)”, onde o resenhista expressa o desejo de que “à experimentação de vanguarda, em curso naquele país no campo político-social corresponda um avançar [...] estético-literário” (MARTINHO, 19789, p. 352). A antologia Primeiro livro de poesia, com poemas em língua portuguesa para a infância e a adolescência, organizada por Sophia de Melo Breyner Andresen (Editora Caminho, 1991), incluiu poemas de Vasco Cabral. Os professores portugueses Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas, com uma modesta publicação policopiada, Literatura na Guiné-Bissau, datada de 1992, proporcionaram uma primeira visão geral da produção literária na Guiné-Bissau, desde os tempos coloniais até o início da década 98 de noventa. Essa elaboração deu lugar, cinco anos depois, ao livro A literatura na Guiné-Bissau (1997a), a primeira obra a apresentar essa literatura fora da Guiné-Bissau. As cinqüenta e seis páginas iniciais constituem um rápido vôo por diferentes aspectos da cultura escrita guineense e seus múltiplos “saberes”, útil como uma primeira abordagem para os que desejam travar conhecimento com o mundo das letras na Guiné-Bissau. A par uma exposição sobre o “saber tradicional” da oratura e da assim chamada literatura colonial, esses autores arrolaram sucintamente o que até os meados da década de noventa era conhecido no campo da literatura no país. Apesar de muito condensado, parece-me que tiveram o mérito de terem apresentado um panorama geral e atualizado do assunto. O manual é enriquecido com uma Antologia mínima (p. 65-174), importante, inclusive, por ser tão pouco divulgada a literatura guineense no exterior, sendo difícil fora da GuinéBissau o acesso às obras ali arroladas. É de lamentar, entretanto, que o espaço reservado à literatura colonial seja ainda mais expressivo do que o reservado aos autores guineenses, o que era natural numa época em que a produção literária dos autores do país era ainda inexistente ou quase, mas que hoje, na minha opinião, não mais se justifica. Alguns estudiosos das literaturas africanas lusógrafas nem ao menos se referem à GuinéBissau nos seus escritos, como Alfredo Margarido (1980), que apresenta um panorama geral das literaturas de todos os países africanos de expressão portuguesa e silencia quanto à Guiné-Bissau. Da mesma forma, a conhecida revista portuguesa Discursos publicou um número inteiramente dedicado à literatura dos PALOP (fevereiro de 1995), não tendo, entretanto, incluído a GuinéBissau. Tampouco Salvato Trigo detém-se nesse país em seus trabalhos, dos quais destacam-se os Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira (ca. 1986). Pires Laranjeira publicou em 1995 o primeiro manual para uso de estudantes universitários com estendidos capítulos sobre diferentes aspectos e fases das literaturas angolana, moçambicana, cabo-verdiana, são-tomense e guineense, tendo cabido a Inocência Mata o capítulo sobre essa última (LARANJEIRA, 1995a, p. 351-364). É um grande e louvável avanço, pois foi a primeira vez em Portugal que a Guiné-Bissau com sua literatura foi incluída num manual, embora seja de lamentar que também esse artigo se tenha detido no ano de 1992, quando justamente a partir daí se verifica um florescimento literário na Guiné-Bissau. Tal lacuna vem mais uma vez comprovar a urgência de um maior intercâmbio entre os diferentes países de língua oficial portuguesa e a necessidade de um trabalho de divulgação que precisa começar sobretudo dentro da própria Guiné-Bissau. Inocência Mata tem publicado artigos referentes à literatura guineense em vários periódicos. “A literatura colonial de inspiração bolomense” foi publicado pela primeira vez em 1992, em Portugal, e reeditado em Bissau, em 1996; “Da oralitura à literatura guineense”, de 99 1998, saiu na revista África Hoje. Não conheço o texto, mas as referências podem ser consultadas na bibliografia final. Luciano Caetano da Rosa, professor universitário português radicado na Alemanha, é autor de um extenso balanço, “A literatura na Guiné-Bissau”, publicado em um número especial, suplemento do periódico Lusorama. Revista de estudos sobre os países de língua portuguesa (1993). Partindo do princípio de ser a literatura guineense “praticamente desconhecida”, Luciano Caetano da Rosa empenhou-se em comprovar que não há razão em se afirmar ser essa literatura inexistente, ou quase. Arrolou uma exaustiva lista de obras e de autores, num laborioso trabalho de pesquisa, precedendo suas informações por um esboço das características geográficas, étnicas e culturais do país (p. 60-67), além de uma “síntese histórica” (p. 67-70) e de alguns apontamentos bastante simplificados sobre a “cultura portuguesa”, a cultura “crioula cabo-verdiana” e as africanas locais (p. 78-79). Tratou também da literatura oral e a literatura na língua guineense (as adivinhas, os provérbios, as storias ou contos, poemas e canções). No capítulo intitulado “As oraturas de base etno-cultural”, apresentou exemplos de contos tradicionais de diferentes etnias guineenses, compilados em grande parte do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e de outras obras portuguesas da época colonial. Caetano da Rosa também se refere aos autores que constam das diferentes antologias guineenses, traçando em poucas palavras uma caracterização de cada um. Seria preciso, entretanto, levar em conta que alguns dos nomes que constavam nessas primeiras coletâneas desapareceram completamente do cenário das letras e creio que não mais se justifica continuar a alistá-los como “poetas”, ao lado de autores cuja continuidade da produção testemunha a sua vocação literária. Um grande mérito do estudo de Luciano Caetano da Rosa é a inclusão do que chamou de “prosa anti-colonial” (p. 177-183), detendo-se longamente em publicações quase desconhecidas, a saber: Georgette EMÍLIA, Na Guiné com o P.A.I.G.C.; Gadamael: Memórias da Guerra Colonial (um “livro de crónicas dissertadas a partir da experiência da guerra colonial”, p. 179)105 e ainda o romance de José Martins Garcia, Lugar do massacre. Infelizmente, esse importante estudo de Caetano da Rosa quase não tem tido divulgação fora da Alemanha, mesmo tendo sido publicado em português. Apesar do meu respeito e admiração pelo grande esforço empreendido por Caetano da Rosa, permito-me aqui uma reflexão sobre o perigo que corremos nós, estudiosos de culturas alienígenas, em assumir ou incorporar informações de fontes secundárias. Ao discorrer sobre as características étnicas e culturais dos diferentes povos da Guiné-Bissau, o autor repete o discurso colonial haurido das fontes consultadas, sem colocá-lo no seu contexto histórico, sem nem sempre atentar 105 A batalha de Gadamael "representou o princípio do fim para as tropas coloniais portuguesas na Guiné-Bissau" (ROSA, 1993, p. 183). Cf. ainda AUGEL, 1998a, p. 126. 100 que os tempos mudaram e, se a globalização não aplainou as diferenças “tribais” (talvez não tenha chegado a tal com a mesma carga assolante e desfiguradora como em outros sítios), não é apropriado descrever os costumes das diferentes etnias a partir de uma obra de 1935106. É pelo menos ingênuo repetir-se em 1993 que este ou aquele grupo se alimenta “de arroz, semente de tarrafe”, ou que alguns utilizam o sal, ou que “gostam de adornos, colares, pulseiras” (ROSA, 1993, p. 62-63). Ainda em Portugal, o Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses editou uma série de obras onde a Guiné-Bissau está presente. O congresso internacional realizado dentro desse contexto em Lisboa, em novembro de 1997, foi um evento importante, assim como a publicação organizada naquela oportunidade. Além da já referida obra de Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas (1997a), esses professores são autores de um Dicionário de autores de literaturas africanas de língua portuguesa (1997b), onde estão referenciados praticamente todos os autores guineenses e muitos daqueles que escreveram a respeito. Esse Grupo de Trabalho é responsável pela edição de uma série de cadernos destinados aos estudantes de escolas portuguesas do segundo e do terceiro ciclos. Cada um desses cadernos, organizado por um ou mais professores, apresenta exemplos da literatura de um dos países africanos de língua oficial portuguesa, iniciativa muito louvável e muito oportuna, entre outros motivos porque o número de imigrantes africanos em Portugal é imenso. É preciso assinalar, entretanto, que o volume dedicado à Guiné-Bissau (MATOS; MEDEIROS, 1997) contém um engano constrangedor: indica as principais personagens do romance de Abdulai Sila, Eterna paixão (1994), Daniel e sua esposa Ruth, como brancos! Somente a criada Mbubi é referida como negra. Basta, porém, chegar-se ao segundo capítulo do livro de Sila para se verificar que Daniel é um afroamericano, fazendo mesmo parte de uma associação de negros ativistas, e Ruth é africana, tendo estudado nos Estados Unidos, onde conheceu o futuro marido. Foi um lapso, a meu ver, imperdoável, fruto talvez de inconsciente etnocentrismo, pois a descrição minuciosa do primeiro capítulo do romance, focalizando um casal bem situado socialmente, parece ter levado apressadamente os autores a ver ali a evocação da imagem muito conhecida e sempre repetida dos senhores brancos e da criada negra, a “mãe preta” tantas vezes cantada e decantada em todos os nossos países onde a escravidão nos marcou e deformou tão profundamente. Foi assim escamoteada, banalizada e deturpada a atitude intencional e consciente de Abdulai Sila de reverter os padrões “coloniais” estabelecidos, apresentando em seu romance suas personagens negras, de perfis diferenciados, bem marcados e fugindo dos estereótipos tão divulgados na literatura ocidental. 106 Landerset SIMÕES. Babel Negra. Porto: Edição do Autor, 1935. 101 No último ano do século XX, o sexto número da revista Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas, publicação do Instituto Camões, foi dedicado às “Pontes Lusófonas II”. Uma bela e cuidadosa publicação com muitos artigos interessantes, mas de novo nenhuma referência à literatura ou à música guineenses. Mesmo um artigo sobre a crioulização do golfo da Guiné se refere somente às ilhas de São Tomé e Príncipe107. O romance de Filinto de Barros, Kikia Matcho, vindo à estampa em Bissau em 1997 sob os auspícios do Centro Cultural Português, foi reeditado em 2000 em Lisboa pela Editora Caminho, com o apoio do Instituto Camões, com o subtítulo “O desalento do combatente”. A revista África Lusófona, publicada em Lisboa e que tem como redator chefe o poeta guineense Tony Tcheka, traz em todos seus números assuntos referentes à Guiné-Bissau, tendo a literatura um lugar de destaque. É uma revista divulgada no mundo luso-africano e circula inclusive entre os emigrantes radicados em Portugal. Não pretendo, com minha crítica, diminuir o esforço meritório dos estudiosos e africanistas e bem sei que meus trabalhos são igualmente passíveis de lacunas, erros e distorções etnocentradas. Intenciono, com os registros anteriores e outros que ainda virão, ressaltar as dificuldades de informação, a dubiedade muitas vezes das fontes consultadas (que pecam igualmente pela desinformação) e chamar a atenção para a marginalidade em que continua a se encontrar esse pequeno país e sua cultura. As falhas, as lacunas, os silêncios são sempre de novo retransmitidos sem que se consigam até agora grandes progressos para quebrar esse injusto círculo vicioso. 3.3 A literatura guineense no Brasil Não só em Portugal há pouco conhecimento ou mesmo silêncio em torno da literatura guineense. No Brasil, até bem pouco tempo a ausência de informação era ainda uma constante, tirando-se raras referências em algumas poucas antologias. Entretanto, numa exceção a confirmar a regra, João Alves das Neves organizou uma antologia já em 1963, durante o período de grandes tensões entre a “metrópole” e as suas “colônias”, uma iniciativa portanto pioneira, só posterior às coleções editadas em Portugal por Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade (1953). Neves dividiu seu livro em duas partes, poesia e prosa, registrando para a Guiné-Bissau, na primeira parte, Terêncio Casimiro Anahory Silva e também António Baticã Ferreira, de fato o primeiro guineense a publicar poemas de expressão verdadeiramente africana. Na segunda 107 É interessante e ao mesmo tempo também lamentável observar que, no referido número da revisa Camões, a única referência à literatura negra brasileira é o artigo sobre Cruz e Sousa, sem dúvida da maior importância, mas ao meu ver é imperdoável que ainda se silencie e provavelmente se desconheça a extensa e excelente literatura feita hoje em dia por afro-brasileiros que se auto-intitulam escritores negros. 102 parte, dedicada à prosa, foram escolhidos excertos de Auá, de Fausto Duarte, e um conto de Alexandre Barbosa. Embora não o tenha orientado “qualquer propósito deliberadamente político” (NEVES, 1963, p. 1), afirma o antologista, “os textos recolhidos neste volume [...] são depoimentos que não iludem” (ib., p. 6). Já em 1986, na cidade gaúcha de Ijuí, o Núcleo Ibérico, Latino-Americano e LusoAfricano, do Instituto de Letras, iniciou a publicação seriada dos “Cadernos Luso-Africanos”. O primeiro desses cadernos (não sei se houve outros), organizado por Maria luiza de Carvalho, “As literaturas africanas em língua portuguesa”, com 96 páginas, ao lado de notícias sobre a produção literária em Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, traz uma curta referência à literatura guineense, registrando inclusive a publicação da primeira antologia pósindependência, Mantenhas para quem luta!108. A publicação é extremamente modesta e despretenciosa, concebida provavelmente como breve informação para os estudantes, mas considero muito positiva a existência, nessa pequena cidade, de um núcleo acadêmico com interesse nos estudos luso-africanos. Na década de noventa, sai à estampa a coletânea computada por Rogério Andrade Barbosa, No ritmo dos tantãs, a segunda publicada no Brasil (BARBOSA, 1991). Aí a Guiné-Bissau está representada por Marcelino M. de Barros, Amílcar Cabral, José Carlos Schwarz, Tony Tcheka, Agnelo Regalla, Tony Davyes e Hélder Proença, prova evidente que a situação das letras guineenses já tinha evoluído bastante. Rogério Barbosa, que se dedica à literatura infanto- juvenil, tem muitas publicações de contos e estórias africanas onde inclui também algumas produções da oratura guineense, como Bichos da África, da editora Melhoramentos (2002). Além dessas coletâneas, registre-se ainda, de Cremilda Araújo Medina, Sonha Mamana África, onde a autora destaca apenas um escritor guineense, Hélder Proença Medina (1987, p. 387411), por ela entrevistado amplamente. Hélder Proença, presente em todas as antologias da pósindependência até 1992, e autor de um dos dois únicos livros individuais de poesia até aquela data, excelente poeta, distanciou-se da cena literária e há muitos anos se dedica exclusivamente à política. Na Bahia, registre-se o trabalho de Gramiro de Matos (pseudônimo de Ramiro de Matos Neto), sobre as influências da literatura brasileira nas letras africanas lusógrafas (1996). A data da publicação é muito posterior a da elaboração do trabalho (início dos anos 80), a partir de pesquisas anteriores. A Guiné-Bissau ocupa o subcapítulo 3.1.5, da página 504 à página 534. Os autores registrados são ainda aqueles dos albores da literatura guineense, chegando apenas até a publicação das duas primeiras antologias (1977 e 1978). Gramiro de Matos faz um levantamento exaustivo e 108 Cf. ARMANDO, Maria Luiza de Carvalho. As literaturas africanas em língua portuguesa. Cadernos LusoAfricanos 1, Instituto de Filosofia, Letras e Artes. Núcleo Ibérico, Latino-Americano e Luso-Africano. Ijuí (RS): Livraria UNIJUÍ Editora, 1986, p. 62-63. 103 uma análise cuidadosa dos autores por ele computados, referindo-se a obras portuguesas que resenharam ou comentaram essas primeiras antologias (Fernando Martinho e Manuel Ferreira) e sobressaltando a presença de alguns guineenses já na revista África (Vasco Cabral e Hélder Proença), dirigida por Manuel Ferreira. Gramiro de Matos dá notícia de um curioso poema da autoria de Armando A. Pereira, datado de 1910 e publicado na revista Correio D’África em 1921, “dedicado às ‘gentis filhas da Guiné’, idolatradas patrícias minhas”, acrescentando terem saído naquele mesmo jornal poemas de A. Sousa Paim, provavelmente um guineense (cf. MATOS, 1996, p. 514). Chama a atenção também para a originalidade de Vasco Cabral (de quem Gramiro de Matos desconhece o livro, publicado somente em 1981) e tece sensatas considerações a respeito da desatenção dada aos de fato poucos (mas existentes) autores guineenses. Trata-se sem dúvida de uma obra pioneira no Brasil, bastante abrangente e que permaneceu praticamente desconhecida num ambiente onde os raros estudos sobre o continente irmão deveriam ser mais considerados. O periódico Papia. Revista de crioulos de base ibérica, editado pela Universidade de Brasília, sob a direção do Professor Hildo Honório do Couto, publicou artigos referentes ao crioulo guineense e no seu número nove (1997) saíram resenhas de obras literárias guineenses naquela altura recentemente lançadas109. Depois da publicação de A nova literatura da Guiné-Bissau (1998a), eu mesma tenho continuado meu trabalho sobre a literatura guineense através de participação em congressos internacionais, além de artigos e palestras, sobretudo no Brasil e na Alemanha, mas não só (cf. referências bibliográficas no final). Pode-se constatar uma pequena melhora do ponto de vista da divulgação e análise das obras tanto em Portugal como no Brasil. Mas é sempre de novo com pesar que se verifica o contrário, como por exemplo quando é editado na Alemanha um léxico de autoras e autores da África negra sem nenhum representante da Guiné-Bissau110. Nos últimos anos, justiça seja feita, na área acadêmica, o desconhecimento no Brasil a respeito da literatura guineense se vem modificando. O círculo ainda é restrito e débil, não podendo ser muito diferente dado aos poucos africanistas existentes no Brasil. Professores dedicados às literaturas africanas de expressão portuguesa, como Laura Cavalcante Padilha, Carmen Lucia Tindó Secco, Benjamin Abdala Júnior e outros têm incluído também obras e autores guineenses em suas análises e estudos111. A professora Carmen Lucia Tindó coordenou 109 Cf. Hildo do COUTO, sobre a antologia Kebur e os livros de Tony Tcheka (1996) e Odete Semedo (1996) e Wilson TRAJANO, sobre Uori, de T. Montenegro e Carlos de Morais, in: Papia (nº 9, 1997). Ambos autores têm várias obras publicadas onde o crioulo ou a cultura guineense são postos em relevo. Cf. bibliografia final. 110 Cf. EHLING e RIPKEN (Orgs.), 1997. Um motivo talvez seja o fato de não haver obras guineenses traduzidas nem para o alemão nem para o inglês, dificultando ainda mais o acesso. 111 Cf., por exemplo, PADILHA (2002b), SECCO (2003), ABDALA JR. (2003). 104 uma equipe de professores e estudantes na elaboração de antologias poéticas temáticas dentro de um projeto de pesquisa em torno do “Mar, mito e memória na poesia africana do século XX” (1993-1998), estando a Guiné-Bissau presente no terceiro volume com quatorze autores e vinte e dois poemas (SECCO, 1999, p. 206-245). A revista Metamorfoses, da Cátedra Jorge de Sena, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicou, no seu número 5 (2004), poemas de Odete Semedo e uma recensão sobre o livro daquela poetisa, No fundo do canto (AUGEL, 2004). Como mostra de crescente interesse, autores da literatura guineense têm sido tema de dissertações de mestrado ou mesmo de doutorado, embora até o presente tenha sido concluído apenas o valioso trabalho de Érica Cristina Bispo, Gestos e vozes de papel: Odete Semedo e a reinvenção de passadas e estórias da tradição oral guineense (BISPO, 2005). Antes disso, Érica Bispo já tinha apresentado uma comunicação sobre um conto de Odete Semedo (“Odete, Djênia e Lamarana: a autora, o livro, a personagem”), por ocasião do simpósio “Encontro Africanas 10!”, realizado no Rio de Janeiro, por iniciativa da Professora Carmen Lucia Tindó Secco, em 2004. No mesmo simpósio, Rogério Andrade Barbosa também apresentou uma brevíssima comunicação sobre um tema guineense (“O canto da Guiné-Bissau”), a respeito do cantor e compositor José Carlos Schwarz. As atas desse encontro foram publicadas em CD ROM, em setembro de 2005. 3.4 A literatura da Guiné-Bissau nos países não lusófonos Na Itália, Giuseppe Tavani muito cedo interessou-se pela expressão literária nos países de colonização portuguesa, tendo publicado, já antes das independências desses países, o livrinho Poesia africana di rivolta. Angola, Mozambico, Guinea, Capo Verde, São Tomé que foi enriquecido com uma nota histórico-literária por Mário de Andrade. E apenas na sua introdução, com o título “Colonialismo e rivolta poética”, Tavani faz uma única referência a respeito da Guiné-Bissau: “A Guiné, onde o fervor da luta armada é mais vigoroso e ativo, está ausente na produção poética em português; sua única manifestação literária, os cantos de guerrilha, são em crioulo” (TAVANI, 1969, p. 18). Também da Itália é um despretencioso livrinho de Ditus kriolus, como consta na capa da recolha de provérbios feita pelo padre italiano Luis Andreoletti, durante sua permanência na GuinéBissau de 1947 a 1984. Trata-se de uma “colheita”, como ele se exprime, de 466 ditus ou provérbios112, apenas na língua guineense pois, segundo o autor na sua introdução, “Os ‘ditus’ desta 112 Sobre os provérbios guineenses, cf. BULL, 1989, 1993; MONTENEGRO, 1994a, 1994b, 1996. 105 minha pequena antologia, aqui vão nus, [...] porque os publiquei somente para uso do Povo que fala crioulo e que portanto os deveria compreender sem dificuldade” (ANDREOLETTI, s.d., p. 14)113. A recolha é preciosa porque registra uma das mais vivas manifestações culturais africanas, veículo do pensamento tradicional, testemunho da sabedoria do povo. Obedecendo a uma certa ordenação cronológica, faço um salto para os Estados Unidos, antes de retornar à Europa. O professor americano Russell G. Hamilton é autor de uma volumosa publicação, Voices from an Empire: A History of Afro-Portuguese Literature (1975), o primeiro estudo abrangente sobre a literatura desses países editado nos Estados Unidos. O trabalho foi reelaborado e alguns anos depois surgiu em português em dois volumes: Literatura africana, literatura necessária (1981, 1984). O capítulo sobre a Guiné-Bissau ocupa, na versão em português, as páginas 215 a 234, com o título: “A arrancada tardia de uma literatura”, com um estudo minucioso dos títulos existentes até aquela data. Detém-se numa análise alargada das poucas obras que era na época possível computar, dedica atenção à expressão literária em língua guineense, comentando os poemas aparecidos nessa língua na antologia de 1978, destacando o Hora ke yabri porta, de José Carlos Schwarz. Russell G. Hamilton dá um especial relevo às duas coletâneas editadas pelo Conselho Nacional de Cultura da recém-proclamada República, enfatizando a importância dos livros Junbai e ‘N sta li, ‘n sta la, de Teresa MONTENEGRO e Carlos de MORAIS (p. 227-231), duas valiosas recolhas da tradição oral e leitura obrigatória para quem se ocupa da oratura guineense. Dentre outros conhecidos estudiosos das literaturas africanas de expressão portuguesa, constatei, nos países de língua inglesa, que Gerald Moser, nos seus primeiros ensaios (1969), não se referiu à Guiné, uma vez que naquela época nada havia a destacar. Mas já em 1979, o conceituado africanista festejava a recente produção poética guineense com um artigo intitulado Os jovens poetas de Bissau, publicado na revista Colóquio/Letras. A excelente e indispensável Bibliografia das literaturas africanas de expressão portuguesa, de Gerald MOSER e Manuel FERREIRA, na sua primeira edição em 1983, traz tudo o que os autores na época puderam arrolar; a segunda edição, surgida em 1993, foi enriquecida e atualizada até 1992. Justamente a partir daí se registra um maior número de obras guineenses publicadas que, assim, infelizmente, não foram incluídas114. 113 Embora em crioulo se use apenas o termo ditu, é preciso distinguir entre ditu e provérbio que em português “constituem designações intercambiáveis, certamente em virtude do seu parentesco formal. [...] Enunciados do tipo ‘a vergonha é pior que a morte’ [...] dizem exactamente isso e mais nada. Neles está tudo dito. O provérbio, em contrapartida, exige sempre uma segunda leitura capaz de transpor o umbral das aparências” (MONTENEGRO, 1994a, p. 40). 114 MOSER; FERREIRA, 1983 e 1993. De Gerald M. Moser registro ainda dois artigos sobre Amílcar Cabral como poeta.. Sobretudo os escritos de Cabral, visto principalmente como revolucionário e pensador político, continuam a ser estudados e o número de publicações a respeito é imenso. Sobre Cabral poeta, ver sobretudo CHABAL, 1985b. 106 Lembro ainda Donald Burness, autor de várias obras sobre a literatura dos países da África lusógrafa, com uma antologia de 1989, A Horse of White Clouds: Poems from Lusophone Africa, onde aparecem como representando a Guiné-Bissau Amílcar Cabral115 e Carlos d'Almada, este último presente também nas recolhas guineenses de 1977 e 1978. Tenho notícia de um artigo, não publicado, de circulação apenas interna, da autoria de Carmen M. Rivera, apresentado no departamento de estudos africanos da Vanderbilt University, sobre o primeiro romance guineense, com o título “A delineação do herói nacional em Eterna Paixão de Abdulai Sila” (1995), certamente dentro do raio de influência de Russell Hamilton. Registro esse artigo para chamar a atenção que provavelmente vários outros trabalhos acadêmicos não publicados são conhecidos de círculos interessados nos estudos guineenses e que não chegam a meu conhecimento. Em fins de 1996, a Luso-Brazilian Review publicou nos Estados Unidos um número especial inteiramente dedicado às diferentes literaturas luso-africanas, com contribuições sobre Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, com artigos de George Lang sobre o crioulo literário, de Russell G. Hamilton sobre Eterna paixão, o primeiro romance de Abdulai Sila, e um pequeno balanço da literatura guineense contemporânea (AUGEL, 1996e). Das cinco resenhas (book reviews), quatro são de obras guineenses. Na introdução, seu organizador, Gerald M. Moser, ressalta esse fato como uma “boa notícia” que o alegra de modo especial: “A pequena Guiné-Bissau tem começado, bem recentemente, por acrescentar à sua poesia uma notável literatura em prosa, a primeira a ser escrita por guineenses nativos, pondo, assim, finalmente, sua literatura no mapa” (MOSER, 1996, p. 2). Na Inglaterra, foi publicado em 1996, sob a responsabilidade e iniciativa de Patrick Chabal, The Postcolonial Literature of Lusophone Africa (1996), com capítulos sobre as literaturas de Moçambique, Angola, Guiné-Bissau (p. 165-178), Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, além de uma extensa introdução e uma bibliografia. Ali, como em outras listagens bibliográficas, é erroneamente dado como publicado um livro de Hélder Proença, O canto por vezes tem a cor das cordilheiras em chamas, mas que na verdade nunca veio à estampa116. A informação deve ter sido tirada da segunda edição da bibliografia de Gerald Moser (1993). 115 É discutido à literatura de que país pertence Amílcar Cabral pois, embora tenha nascido em Bafatá, GuinéBissau, criou-se em Cabo Verde. Sua produção poética é muito pequena e não mostra nenhuma relação com a Guiné-Bissau, pois são criações de sua juventude, passada no Arquipélago. A maioria dos autores o classifica como poeta cabo-verdiano. 116 Indicações sobre um novo livro de H. Proença são fornecidas por C. MEDINA (1987, p. 386), que dá como título do livro ainda inédito Para além da dor. MOSER e FERREIRA (1993), no verbete nº 2393, fornecem esse último título, já com referência da editora; também Caetano da ROSA (1993, p. 260), CHABAL (1996, p. 289); GOMES e CAVACAS, no Dicionário de autores africanos de língua portuguesa (1997b, p. 164), anunciam "a publicar" esse segundo livro, dando mesmo os dois títulos. Mas o próprio Hélder Proença me confirmou que o livro não foi publicado nem há perspectivas próximas de fazê-lo. Desde a época das primeiras antologias e do seu livro individual que Proença, excelente poeta, nada mais publicou. 107 As publicações francesas sobre literatura africana ignoram em geral a Guiné-Bissau, quando muito assinalando uma breve referência para indicar a pobreza ou ausência de obras literárias. Como exceção para confirmar a regra, registre-se um encontro internacional e multidisciplinar, iniciativa de Jean-Michel Massa, diretor de um dos grandes centros de estudos dos países africanos de língua oficial portuguesa, da Universidade de Rennes, o colóquio Les littératures africaines de langue portugaise. A la recherche de l'identité individuelle et nationale, realizado no final de 1984, onde houve três contribuições sobre a Guiné-Bissau que foram mais tarde publicadas nas atas do colóquio (MASSA, 1985): uma de Benjamim Pinto BULL, “A la recherche de l'identité guinéenne?” (ib., p. 319-324); a de Hugues Jean de DIANOUX, “La littérature guinnéenne-bissau d’expression portugaise” (ib., p. 325-341) e a comunicação de Carlos LOPES, “Concepção de poder e identidade nacional” (ib., p. 343-346). Uma oportuna iniciativa na França são as edições Notre librairie. Revue du livre: Afrique, Caraïbes, Océan Indien. Em 1993; foi dedicado um número às literaturas do Cabo Verde, da GuinéBissau e de São Tomé e Príncipe. Os capítulos reservados à literatura guineense contemporânea, sob o título geral Une naissance littéraire tardive, foram da autoria dos já conhecidos Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas. Vasco Cabral ali escreveu sobre os trovadores populares, os djidius, e Benjamim Pinto Bull sobre as adivinhas, contos populares e provérbios117. Em 1994, foi organizada na França uma bonita antologia de autores africanos lusógrafos, Anthologie de littératures francophones de l'Afrique de l'Ouest (1994), onde foram incluídos seis autores guineenses: Vasco Cabral, Hélder Proença, Domingas Samy, José Carlos Schwarz, Odete Semedo, Tony Tcheka. Ainda posso registrar dois breves artigos relativos à literatura guineense publicados na França: um apanhado do que estava acontecendo no campo das letras desde a independência, de Patrik ZIMMERMANN, “La littérature bissauguinéenne depuis l'indépendence: de la nécessité à la diversité” (1995) e uma elogiosa resenha de Gérald GAILLARD sobre o primeiro romance de Abdulai Sila, Eterna paixão, publicado em Paris na Révue Espaces, sob o título “Un jeune écrivain bissau-guinéen: Abdulai Sila”. O primeiro romance de Abdulai Sila foi bem cedo traduzido para o francês, com o título L'ultime tragédie (1996), com tradução e notas de Alain Canihac e Graziella Neves Forte Canihac. Os mesmos tradutores estão preparando a tradução de Entre o ser e o amar, de Odete Semedo. Pela internet foi-me possível encontrar ainda três antologias editadas na França, com autores da África lusógrafa, nas quais a Guiné-Bissau está presente: A Poésie d’Afrique au sud du Sahara, 1945-1995, organizada por Bernard Magnier, em 1995, onde aparece Hélder Proença como único 117 Cf. a bibliografia final. 108 poeta guineense, ao lado de autores dos cinco PALOP118. Em 2000, sob a responsabilidade de Jean Sévry, saiu Regard sur les littératures coloniales. Tome III: Afrique anglophone et lusophone, com dois artigos sobre a Guiné-Bissau: um de Elisabeth Monteiro Rodrigues, “Une littérature en devenir”; e outro de Marlyse Baptista, “Le créole de Guinée Bissau. Genèse et situation sociolinguistique”119. No mesmo ano, a Editora L’Harmattan publicou Des nouvelles du Portugal. Anthologie, com uma apresentação de Pierre Léglise-Costa, e textos de autores de Macau, de Moçambique, de Angola, Cabo Verde Timor. Da Guiné-Bissau foi escolhido um texto de Abdulai Sila120. Infelizmente não conheço essas publicações, mas repasso aqui as informações121. Lamento a ausência – até o momento – da Guiné-Bissau na importante série de obras publicadas por Michel Laban, Encontro com Escritores, entrevistas por ele conduzidas com autores dos diferentes países da África lusógrafa. A aparição do volume dedicado a São Tomé e Príncipe foi saudada como sendo o “último” que faltava para completar a série. Espero vivamente que ainda venha a ser elaborada a de facto “última” coleção de entrevistas aos autores guineenses. Na antiga República Democrática da Alemanha, onde sobretudo em Leipzig se concentrava um grupo de estudiosos das literaturas moçambicana e angolana, os diversos trabalhos aparecidos não se detiveram, ao que eu saiba, sobre a Guiné-Bissau. Uma tal ausência é digna de nota porque a R.D.A. se ligou de modo bastante engajado às novas repúblicas africanas de língua oficial portuguesa, tendo prestado uma substancial ajuda ao desenvolvimento desses recém-criados Estados, enviando à Guiné-Bissau muitos “cooperantes”122. Na República Federal da Alemanha, o grande divulgador da literatura africana Janheinz Jahn não se refere a autores guineenses, o que é explicável por ter esse estudioso morrido já em 1973. Sua influência, indiretamente, faz-se sentir pela sua postura em relação à originalidade das literaturas africanas. Segundo Pires Laranjeira, 118 Poésie d’Afrique au sud du Sahara, 1945-1995. Anthologie composée et presentée par Bernard Magnier. Arles: Édition Actes-Sud / Unesco, 1995. 119 Regard sur les littératures coloniales. Tome III: Afrique anglophone et lusophone. Édition de Jean Sévry. Paris: Édition L’Harmattan, 2000. 120 Des nouvelles du Portugal. Anthologie, présentation par Pierre Léglise-Costa. Paris: Éditions Metaillié, “Suite Littérature. Suite portugaise”, n. 30, 2000. 121 Disponíveis no site http://www.librairie-compagnie.fr/portugal/afrique/biblio.htm. Consultado em junho de 2005. 122 Expressão literária desse engajamento são três romances escritos por médicos ex-cooperantes da R.D.A., todos publicados na antiga Berlim Oriental: de Gerhard FEIX. Entscheidung bei Mores, “A decisão de Morés” (1986); Dietmar BEETZ publicou várias obras tendo a Guiné-Bissau como tema: Visite in Guiné-Bissau, “Visita médica na Guiné-Bissau” (1975); Haupthaarstudie und andere Arztgeschichten aus der Vor-Seehofer-Zeit, “Ensaio sobre cabelo e outras histórias de médico” (1993); além de uma coletânea de contos populares da Guiné-Bissau: Dietmar BEETZ. Der Schakal im Feigenbaum und andere Märchen aus Guinea-Bissau, “O chacal na figueira e outras histórias da Guiné-Bissau”, já em 1977. 109 Janheinz Jahn demonstrou que a África é um conceito geográfico e não cultural, que a “cultura negra” de África e os territórios negroafricanos deixaram de coincidir há séculos e que a literatura africana recebe a herança de uma dupla tradição: a literatura africana oral e a ocidental. Não foi ele o primeiro a explanar estes pontos, mas foi quem lhes deu desenvolvimento coerente (LARANJEIRA, 1985, p. 9). Em 1980, um número especial da revista Zeitschrift für Kulturaustausch, especializada no intercâmbio cultural, com o título Pulsschläge: Afrikanische Literatur heute (Pulsações: literatura africana hoje), foi dedicado à literatura de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, trazendo dois autores guineenses: José Carlos Schwarz (p. 405-406) e Agnelo Regalla (p. 404). O periódico LiteraturNachrichten Afrika-Asien-Lateinamerika, sediado em Frankfurt Meno, sob a direção de Peter Ripken, incansável divulgador das literaturas africanas, por duas vezes abriu espaço para artigos sobre a literatura guineense (cf. AUGEL, 1994c; 1997a) e a revista IKA. Zeitschrift für Kulturaustausch incluiu um artigo sobre um autor guineense, José Carlos Schwarz (AUGEL, 1997c). Na mesma altura, foi publicada artesanalmente um pequeno folheto com o título “Assim respira a minha pátria” (So atmet meine Heimat. Literarische Texte aus Guinea-Bissau; 1997), com textos extraídos de diversas obras guineenses. A revista Tranvía, também alemã, publicou em tradução um trecho do romance Mistida, além de uma entrevista com o autor, por ocasião de sua estada na Alemanha em 1998, onde fez uma série de palestras sobre sua obra. As referências constam da bibliografia final. Ainda se pode registrar uma rápida referência à Guiné-Bissau feita por Ilse Pollack no artigo sobre as literaturas luso-africanas num livro organizado por Henry Thorau, lançado por ocasião da Feira Internacional do Livro em Frankfurt de 1997. De novo se faz notar a ausência de informação: Guiné-Bissau não mereceu senão pouco mais de uma página e Fausto Duarte continua a ser citado com um certo relevo, embora se reconheça nele seus traços colonialistas. Abdulai Sila aparece com apenas o primeiro dos seus três romances, mas está presente o sociólogo e cientista político Carlos Lopes, também autor de excelentes crônicas regularmente publicadas em periódicos portugueses. São eles os únicos referidos de passagem. Os outros autores contemporâneos são mencionados apenas em nota de rodapé (POLLACK, 1997, p. 461-462), uma vez que a articulista ainda não tinha informação de que outras obras já estavam publicadas, pois se tratavam de fato de, na época, recentíssimas edições, de 1996 e 1997. Devido à menor repercussão e ao desconhecimento do que se está passando no país no campo da beletrística, muitas vezes o espaço reservado para a GuinéBissau é de antemão limitado a poucas páginas pelo editor, dificultando o trabalho e a seleção de informações. Mas já é um grande avanço que esse país e seus autores não tenham sido aí silenciados. 110 Em meio a tanta precariedade, é digno de nota, na Alemanha, um trabalho de mestrado de Anne-Kristin Borszik, com o título Die Música de intervenção aus Guinea-Bissau: Themen, Äußerungsformen und Kommunikationsprozesse sowie die Rezeption in der Lissabonner Diaspora. Isto é: “A música de intervenção da Guiné-Bissau: temas, formas e processos comunicativos, assim como a recepção na diáspora [guineense] em Lisboa” (Berlim, dissertação de Mestrado, manuscrito policopiado, 2004), onde as letras de músicas do cantor e compositor José Carlos Schwarz (1949-1977) e de outros compositores da atual cena musical guineense, dentro e fora do país, foram o tema principal. A tese da Anne-Kristin Borszik é bastante rica em idéias sobre a música guineense, enfocando sobretudo a produção e a recepção dessa música por parte dos emigrantes guineenses em Portugal. Enquanto a literatura tem pouca aceitação, poucos leitores, a recepção da música é ampla e positiva, a influência é enorme, contribuindo para a reflexão e para uma conscientização da massa receptora. O fato de ser cantada quase sempre na língua guineense aumenta-lhe o raio de influência e de aceitação. Além disso, trata-se de um instrumento de diversão bem mais popular e abrangente do que a leitura. Na Áustria, a revista Sterz. Zeitschrift für Literatur, Kunst und Kulturpolitik, editada na cidade de Graz, dedicou em 1996 um número exclusivamente às literaturas dos países africanos lusógrafos, tendo sido a Guiné-Bissau representada por seis autores contemporâneos: Carlos Lopes, Tony Tcheka, Félix Sigá, Odete Semedo, Pascoal D'Artagnan Aurigemma e Abdulai Sila. A concepção e realização dessa publicação pioneira esteve a cargo de Ilse Pollack, publicista e autora de vários trabalhos sobre autores africanos lusógrafos. Na Espanha, um grande conhecedor das literaturas africanas lusógrafas é Xosé Lois García, ele mesmo excelente poeta e autor de várias obras de divulgação, como a antologia Floriram cravos vermelhos (1993). E de novo apenas Vasco Cabral e Hélder Proença estão presentes. Uma publicação sua posterior, a Antologia da poesia feminina dos PALOP (1998), refere-se às vozes de mulheres guineenses que o compilador pôde encontrar nas antologias existentes (Eunice Borges, Mariana Ribeiro, Domingas Samy e Odete Semedo) e inclui poemas de todas elas. Mas, na verdade, somente Odete Semedo continua ativa nas letras. As demais poetaram circunstancialmente, no momento de fervor patriótico logo após a independência. Uma categoria de publicações ainda digna de nota é a dos dicionaristas. Todos os dicionários (com essa ou outra denominação) até o momento publicados foram organizados por autores estrangeiros, com exceção de glossários que podem ser encontrados em muitas das publicações de autores guineenses. Torna-se indispensável a referência ao trabalho pioneiro do Cônego Marcelino Marques de Barros que já a partir de 1897 foi autor do primeiro esboço gramatical e do primeiro glossário do crioulo, com correspondências em português, publicados em vários números do quinto volume da Revista Lusitana, em Lisboa, sob o título O Guineense. 111 Um século mais tarde, Benjamim Pinto Bull organizou um glossário trilíngüe, em crioulo, português e francês, o mais extenso que conheço (2.737 entradas), como parte final do seu livro já aqui tantas vezes mencionado (BULL, 1989, p. 249-346). Destacam-se os italianos Artur Biasutti, com seu Vokabulari kriol-portugîs (duas edições, 1982 e 1987) e os vários trabalhos de Luigi Scantamburlo: a ainda modesta Gramática e Dicionário da língua criol da Guiné-Bissau (1981), e os dois tomos do Dicionário do Guineense: o primeiro é um trabalho introdutório e dedicado à gramática, a Introdução ao dicionário guineense-português (1997), e o segundo, o Dicionário Guineense-Português. Disionariu guinensi-purtuguis (2002). Ambos esses autores são sacerdotes italianos; Biasutti viveu muitos anos na Guiné-Bissau e Scantamburlo ainda hoje lá está, sendo um profundo conhecedor do país, sobretudo do arquipélago dos Bijagó, centro de suas atividades. Editado em 1988 pelo Instituto Nacional e Estudos e Pesquisa (INEP), até hoje é de utilidade o Petit Dictionnaire etymologique du Kriol, de Jean-Louis Rougé. Na França, o conhecido africanista Jean-Michel Massa publicou em 1996, com Françoise Massa, sua esposa, o Dictionnaire bilingue Portugais-Français des particularités de la langue portugaise en GuinéeBissau, o primeiro dentro de um amplo projeto que abarca obras da mesma envergadura sobre a língua portuguesa em países africanos. Apareceram até agora o dicionário relativo a São Tomé e Príncipe Massa e Massa (1999) e a Cabo Verde (MASSA; MASSA, 2001). Publicados em Bissau, mas de autores estrangeiros, são o Disionariu Kiriol-Ingles, de Gertrud Dieterle (1999), missionária evangélica alemã que viveu por longos anos na GuinéBissau, e o original e rico Kriol ten. Termos e expressões (duas edições, em tiragem de 300 exemplares, a primeira de junho de 2002, a segunda, ampliada, de novembro do mesmo ano), trabalho de Teresa Montenegro, chilena por nascimento, mas guineense por eleição, autora de importantes obras sobre a oratura guineense e em muitas das quais há glossários da maior valia (MONTENEGRO; MORAIS, 1979a, 1979b, 1995). Neste seu último estudo, resultado de uma parte de uma pesquisa iniciada em 1987, a autora dispõe os verbetes em função do sentido, tendo como centro “o ser humano como pessoa (e outros seres vivos como as plantas e os animais), ilustrado através de temas tais como a anatomia, a fisiologia, [...] a vida afectiva, [...] a linguagem” (MONTENEGRO, 2002b, p. X). 3.5 A Guiné-Bissau e sua literatura nos países africanos Apresentou-se como muito difícil a minha procura a respeito da repercussão da literatura guineense no continente africano. Tenho apenas notícia de uma antologia bilingüe português- 112 inglês, por Margaret DICKINSON, onde está incluído um poema de Mário Cissoco: When bullets begin to flower: poems of resistence from Angola, Mozambique and Guiné, publicada em Nairobi já em 1972, tendo tido uma segunda edição em 1989. A obra de Abdulai Sila foram reeditada em 2002 em Cabo Verde, num só volume, com o título Mistida (Trilogia), com o prefácio da primeira edição e um outro para a segunda, ambos uma excelente introdução à obra, de Teresa Montenegro. Enriquece a edição uma entrevista do autor conduzida por Fernanda Cavacas. As publicações financiadas pelo Instituto Camões têm divulgação garantida, não só dentro do espaço lusófono como em muitos outros países onde hoje essa instituição se faz presente, o que proporciona uma publicidade mais alargada para determinados autores. Não pretendo ter esgotado a computação das obras relativas à Guiné-Bissau. Vendo dentro de um conjunto mais amplo, dentro do contexto da “literatura mundial”, ou pelo menos ocidental, sabe-se que o interesse por Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe ou Guiné-Bissau por parte de outros países não africanos, com exceção talvez de Portugal e mais recentemente do Brasil (e talvez ainda possa incluir os Estados Unidos), continua bastante reduzido, sobretudo em relação à literatura. Isso pode ter várias razões. Fala-se, por exemplo, que apenas dois por cento e meio das publicações mundiais, são editadas na África. Não sendo a língua portuguesa muito accessível aos leitores anglófonos ou francófonos, as dificuldades e impedimentos somam-se e se perpetuam. Foi possível, entretanto, reunir um certo acervo com estudos provenientes de origens diversas. Motivados primeiramente pelas lutas de libertação, surgiu, como vimos, um número razoável de coletâneas estrangeiras com poemas africanos contemporâneos – e as há em francês, inglês, holandês, espanhol, italiano, tcheco, russo, húngaro, como é possível constatar pelas referências sobretudo na grande obra bibliográfica de Gerald Moser e Manuel Ferreira. Em algumas aparece também uma tênue presença da Guiné-Bissau. Verificamos que permanecem repetidos sempre os mesmos nomes, a partir basicamente das informações fornecidas pelos dois incansáveis divulgadores da literatura africana de língua oficial portuguesa, que foram Mário de Andrade e Manuel Ferreira. Com poucas exceções, esse defasamento tem perdurado na atualidade e os autores guineenses da década de noventa quase ainda não foram descobertos. Termino este capítulo, que tem a finalidade de uma revisão crítica do conhecimento, tanto de estudos como de demais referências sobre a literatura guineense, repetindo minha preocupação e a lástima sobre o silêncio que em geral paira em torno da literatura desse país (e não só da literatura). Ressalto mais uma vez a importância da função das bibliografias nos trabalhos acadêmicos, apoiando-me na professora portuguesa Maria Alzira Seixo, segundo a qual 113 a fortuna crítica é da maior relevância “não apenas enquanto informação mas sobretudo enquanto activação concreta do conhecimento na construção da aprendizagem e na aquisição experiencial dos modos de fruição e de explicitação do fenómeno literário” (SEIXO, 2004, p. 214). Meus comentários pretendem apenas contribuir para uma reflexão sobre esse silêncio e essa marginalização, sobre a posição de periferia da periferia em que se encontra a literatura guineense. É freqüente que sejam organizadas coletâneas de ensaios sobre autores africanos lusógrafos e a Guiné-Bissau não seja referida. Outras vezes, o número de páginas dos ensaios é determinado proporcionalmente pela importância atribuída ao país. O ensaista vê-se constrangido a uma redução involuntária mas que perpetua o círculo vicioso de desinformação e desconhecimento. É lamentável constatar que mesmo em publicações recentes prolonga-se a mesma situação da época de Manuel Ferreira, como se a Guiné-Bissau ainda fosse “um espaço em branco” em relação ao mundo das letras. De todo esse arrolamento, onde a grande maioria são referências parcelares, mas nem por isso pouco significativas, fica talvez um travo amargo, uma impressão de falta, marcada pelo silêncio, pela ausência dos estudos não existentes (SEIXO, ib., p. 234). Não desejo aqui fazer simplesmente uma crítica e sim frisar o quão pouco divulgada é a literatura guineense, como seus autores são desconhecidos e lamentar esse silêncio e o desconhecimento que geram, inclusive, informações nem sempre corretas pela falta de fontes ou a dificuldade de acesso a elas. Tudo isso é devido, em grande parte, às precaríssimas condições de divulgação dentro do próprio país. E, assim, continuam a não serem ouvidas as vozes que desde pelo menos a segunda metade dos anos noventa têm-se manifestado literariamente na Guiné-Bissau. É a triste realidade de um país que ainda não pensou em desenvolver uma política cultural que o faça aparecer. A multiplicação dos silêncios, o desconhecimento do que se passa na cena cultural guineense não é certamente intencional, é sobretudo devido aos próprios guineenses que, diante de tantos outros problemas urgentes, não se têm preocupado bastante em divulgar seu acervo literário. O esquecimento de que a Guiné-Bissau existe e que “até” possui autoras e autores dignos de serem apreciados é um corolário de toda uma situação deficitária, onde predominam a falta de um público ledor mais amplo, a falta de livrarias, o baixo poder aquisitivo, a baixa escolaridade, a pouca circulação dos bens culturais. E a pouca repercussão dentro e fora do país desencoraja as iniciativas em lutar contra a maré. Para encerrar este capítulo, uma notícia positiva e reveladora de que, apesar dos pesares, a literatura guineense já começa a circular um pouco mais do que meus comentários pessimistas finais possam deixar entrever. Nas recentes edições tanto do Dicionário Novo Aurélio Século XXI 114 (1999; 2000), quanto do Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), é possível encontrar-se o significado de muitos termos do léxico guineense, tais como baloba, balobeiro, mantenha, passada, pautero, tcholonador, tchur, tabanca, exemplificados com textos da literatura guineense contemporânea, principalmente dos três romances de Abdulai Sila. 4 PÓS-COLONIALISMO, NEOCOLONIALISMO, ANTICOLONIALISMO Os ocidentais podem ter saído fisicamente de suas antigas colónias na África e na Ásia, mas as conservaram não apenas como mercados, mas também como pontos no mapa ideológico onde continuaram a exercer domínio moral e intelectual. Edward Said. Cultura e imperialismo A literatura que se tem produzido em Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau – e não só, se pensarmos em outros países historicamente herdeiros da descolonização – é geralmente caracterizada como literatura pós-colonial, o que pressupõe e subentende um discurso de resistência às ideologias colonialistas. O pós-colonial é um conceito de múltiplas significações, devendo ser entendido aqui como expressão de uma produção tanto ficcional ou poética quanto teórica que espelha e questiona essa herança e as relações dentro dos binômios colonizador/colonizado, centro/periferia, primeiro/terceiro mundo. Essas dicotomias não refletem, porém, nem a interligação nem a dependência mútua nem tampouco as relações de poder entre os pólos. Trata-se de uma dialética de exclusão segundo a qual o mundo colonial funciona. Pois, como já disse Frantz Fanon, “le monde colonial est un monde coupé en deux. La ligne de partage, la frontière en est indiquée par les casernes et les postes de police” (FANON, 1961, p. 31)123. Essa exclusão se efetiva não apenas na separação física e geográfica, o espaço colonial sendo fronteirizado e departamentado, como também no plano dos direitos e dos privilégios e, inclusive, no plano das representações e dos valores (ib.). O sujeito colonizado, lembra Michael HARDT (2003)124, é concebido no imaginário metropolitano como o “Outro” e, como tal, é alijado tanto quanto possível dos princípios que definem os valores da civilização 123 “O mundo colonial é um mundo cortado em dois. A sua linha divisória, a sua fronteira está indicada por casernas e postos policiais”. A tradução é minha. 124 Michael Hardt é um pensador americano que publicou, entre outros livros e ensaios, em colaboração com o filósofo italiano Antonio Negri, o importante Empire (2000), obra que teve grande repercussão internacional. Em seu artigo “L’hybridité de l’Empire”, saído na revista Futur Antérieur em 1995, e posto na internet em 2003 (e de onde retiro as citações deste capítulo), já estão traçadas muitas das idéias mestras que foram mais tarde desenvolvidas em Empire. Hardt e Negri definem com o termo “Império” a nova ordem mundial que está surgindo e submetendo todo o planeta a uma globalização com efeitos positivos e negativos, criando um novo poder (a “soberania imperial”) que já não se baseia na soberania dos Estados nacionais. Segundo eles, os Estados nacionais perderam grande parte de sua influência, pois a competição na luta pela conquista de mercados não se faz mais entre Estados. E quando a ideologia do mercado mundial se liberta do contexto nacional, ela abre espaço à heterogeneidade, abarcando todas as culturas, religiões, origens étnicas. Todos são benvindos ao “Império” desde que aceitem o lugar que lhes é indicado. As empresas “imperiais” fazem da multicultura e da multi-etnicidade a chave do sucesso, patenteando a capacidade de apropriação e reapropriação do sistema capitalista. Esse Império emergente é fundamentalmente diferente dos imperialismos da dominância européia e expansão do capitalismo. Inclui tradições de identidades híbridas e fronteiras em dilatação. 116 européia. O colonialismo, tal como foi praticado no século XIX e parte do século XX, sob a máscara do zelo civilizatório, desprezava e negava a identidade do colonizado. O poder colonial funcionava como agente de controle social “produzindo”, por assim dizer, o colonizado. Os valores locais, autóctones, relativos ao ambiente não europeu, à cultura, à tradição, às crenças eram considerados inferiores e eram mesmo proibidos e combatidos com a patente intenção de substituí-los. O que predominava era o princípio dos vasos estanques e incomunicáveis, pois o sistema colonial determinava que as identidades fossem demarcadas com uma nítida separação a partir das fronteiras entre a metrópole e a colônia, entre o colonizador e o colonizado; eram válidas regras que se aplicavam diversamente segundo um lado ou outro da demarcação (ib.). “Na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta. Um só Deus, um só Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (SANTIAGO, 1978, p. 16). O colonizador partia de suas verdades absolutas e da negação absoluta do nativo enquanto sujeito. A estratégia era ignorar ou silenciar as culturas dos colonizados. Silenciar é um não dizer que pode ter conotação histórica e ideológica, dependendo da posição do sujeito que fala. Há um interrelacionamento significativo entre o silenciado, a memória e o esquecimento. Através do instrumento do silenciamento, emudece-se a memória do subalterno, procura-se fazer esquecer a narração do passado vergonhoso ligado à subserviência, ao acapachamento, ao tráfico intercontinental que esvaiu e aviltou todo um continente e, com isso, esvaziam-se as tentativas de resistência. Adormecendo uma memória, acorda-se outra. O silêncio permite que o discurso etnocêntrico, homogeneizador e monolítico, que se quer único e verdadeiro, grite mais alto. O silêncio boicota movimentos que tentam recuperar memórias sufocadas, por exemplo, a história da resistência ao jugo colonial, em suas múltiplas facetas125. Muitas formas de dizer o dito mascaram o não dito, motivam distorções, estereótipos, camuflam os conflitos entre os senhores do poder e os que lutam pela sua visibilidade social (ORLANDI, 1997, p. 14 e ss.). A historiografia eurocentrada silenciou a história africana, apropriando-se da cronologia, iniciando a contagem da história na África com a chegada dos navegadores europeus. As terras foram “descobertas” e a partir de então passaram a existir nos mapas e assim na percepção dos ocidentais. Os regimes autoritários, como em um verdadeiro pacto do esquecimento, fizeram valer sua visão da história, impuseram uma única memória oficial, a memória e a história dos vencedores. No caso específico da Guiné-Bissau, seus escritores, por muitos e diversos caminhos, empenham-se em dar voz ao avesso da história. Isso significa levar em consideração os interstícios das relações coloniais, as concepções que as dominaram e fizeram com que lutas fossem ignoradas e tornadas invisíveis, significa compreender a que interesses essa narrativa 125 Remeto, mais uma vez, ao livro de Peter Mendy, sobre a tradição da resistência na Guiné-Bissau (1994). 117 atende, revelando as rupturas e as experiências compartilhadas, os anseios que não se realizaram, significa trazer à tona o passado emudecido, praticar o exercício da rememoração. Uma obra fundamental que desencadeou uma revisão do modo de embasar as relações estabelecidas entre a Europa e o “resto do mundo” é certamente Orientalism, de Edward SAID (1978), que empreende uma análise pioneira tanto dos processos de cristalização de estereótipos e de juízos de valor que dominam a formação de opinião quanto dos mecanismos pelos quais certas idéias se difundem como indiscutíveis e generalizantes. O “Orientalismo” é baseado em uma estratégia política e ideológica que possibilita subordinar ao Ocidente, metonimicamente, o Oriente cuja representação passa a existir (a “ser”) como uma realidade. Edward Said, mostrando uma importante ligação entre o imperialismo e a cultura, ressalta a grande força estratégica que significa “o poder de narrar, ou de impedir que se formem ou surjam outras narrativas”, e considera a literatura, em especial o romance, a expressão cultural que muito influenciou a “formação de atitudes, referências e experiências imperiais” (SAID, 1999, p. 12), enfatizando que “as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo” (ib., p. 13). A literatura colonial é um dos exemplos mais marcantes de uma tal afirmação pois, como disse Homi Bhabha, “o discurso colonial produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um ‘outro’ e ainda assim inteiramente apreensível e visível” (BHABHA, 1998, p. 111). Começando por exemplos da literatura colonial na Guiné-Bissau, vou proceder a uma análise de diferentes manifestações literárias no espaço descolonizado. 4.1 Inocência versus força bruta A literatura colonial articula sempre uma apologia do colonialismo, mas também faz transparecer as diversas faces da perfídia do sistema. Denomina-se em geral literatura colonial os textos escritos por metropolitanos que, tendo passado algum tempo na África ou em outros espaços colonizados, produziram textos em que o olhar etnográfico ressaltava a alteridade e onde a descrição dos costumes e do ambiente em que viviam as diferentes “tribos” africanas podia até mesmo representar um interesse verdadeiro pelo país e pela gente, ultrapassando o mero pincelar da cor local. Sempre, porém, um olhar de fora, onde se mesclavam o fascínio e o repúdio, camuflado às vezes em piedade ou paternalismo. Apesar de séculos de presença na África, na metrópole prevalecia um grande descaso e mesmo desinteresse da população portuguesa pelas colônias, não existindo quase obras literárias que tematizassem a vida em “ultramar”. Essa lacuna levou as autoridades competentes a instituírem um concurso literário, pois 118 um dos melhores meios para despertar o espírito dos portugueses é, sem dúvida, a literatura – o romance de assuntos coloniais, a descrição de aventuras de além-mar, a novela, o conto, etc. Por isso, a Agência Geral das Colónias, que não se poupa a quaisquer esforços na propaganda de Portugal ultramarino, tomou a iniciativa dum concurso de Literatura Colonial (POLLACK, 1995, p. 756). Foi a partir dessa motivação imediatista que surgiram obras de maior ou menor qualidade e aqui só interessa destacar as que tiveram a Guiné-Bissau como palco: entre outras Mariazinha em África (1925) e mais tarde O veneno do sol (1928), ambos de Fernanda de Castro; Auá, de Fausto Duarte (primeiro prêmio em 1934); África: da vida e do amor na selva, de João Augusto da Silva (também primeiro prêmio, em 1936). Os prêmios eram uma soma em Escudos, bastante elevada, verdadeiro incentivo para os escritores. Por volta de 1952, torna-se usual a denominação literatura ultramarina e os prêmios, do ponto de vista financeiro ainda mais convidativos, são diferenciados por categoria – poesia, ensaio, novelística e história126. O escritor mais conhecido desse período é o cabo-verdiano Fausto Duarte (1903-1953)127 que escreveu, entre outros, o romance Auá. Novela negra (1934), um “documentário etnográfico” e “também um novo capítulo da psicologia indígena”, segundo suas próprias palavras (ib., p. 31). O autor esforça-se em “apresentar o africano e a sua cultura sob uma luz favorável”, diz Russell HAMILTON (1984, p. 217), embora esteja “patente o conflito entre as culturas africana e europeia” (ROSA, 1993, p. 162). Nesse romance, a trama se desenrola em torno de Malan, jovem fula (etnia islâmica) que viveu na capital e que volta, bastante aculturado, à aldeia natal para desposar Auá, sua prometida segundo os costumes tradicionais. O contraste entre a vida urbana e a rural se mostra em muitas passagens, servindo de ocasião para o louvor à civilização. Considero bastante sintomáticas as referências estereotipadas e reducionistas de Fausto Duarte às diferentes etnias e passo a dar alguns exemplos. Referindo-se a Malan, que foi “servir mais tarde como criado do Administrador de Bissau”, o autor assim o descreve: Inteligente e dócil, servia à mesa com aprumo e fidalguia característicos da raça e altivez da religião. [...] Amoldara-se, sem se adaptar inteiramente à civilização europeia, porque a sua crença islâmica, definida e espiritualista, fôra sempre uma barreira insuperável ao domínio dos brancos, que usavam coisas proibidas pelo Alcorão. A-pesar-disso, Malan era um criado exemplar que adivinhava os menores pensamentos do amo, orgulhoso por servir a maior autoridade de Bissau. [...] Tinha apenas um desgosto: não sabia ler, se bem que vagamente conhecesse os caracteres árabes. Porém, as garatujas que enchiam os papéis timbrados do Govêrno não as compreendia, a-pesar-dos esforços que fizera adquirindo muito em segredo uma cartilha maternal por onde começara a aprender (DUARTE, 1934, p. 11-12). 126 Boletim da Agência Geral das Colónias, nº 7, jan. 1926, p. 9, (apud POLLACK, 1995, p. 756), de onde coligi as informações a respeito. 127 Fausto Duarte escreveu vários romances tendo como cenário a Guiné, onde viveu muitos anos como funcionário da administração colonial. É considerado o mais importante representante da literatura de temática guineense. Sobre o assunto, cf. entre outros ROSA (1993, p. 162-165); AMADO (1990); GOMES; CAVACAS (1997 a, b). 119 Sobre os Balanta que, segundo sua descrição, eram sempre alegres e sorridentes, Fausto Duarte ressaltou “a expressão das suas feições incorrectas, onde a fiada regular dos dentes brancos punha uma nota de satisfação inconsciente, dir-se-ia insensível ao calor que os causticava” (ib., p. 3). Em relação aos Nalu, descreveu um “rito fúnebre – cerimônia singular duma tribu bárbara”, “impressionante”, com “um bailado macabro, sobrevivência dum culto pagão”, com “mulheres dançando freneticamente ao som dos tambores”, “bailado sinistro de mulheres habitando um continente povoado de tradições quasi inverossímeis!”, cena que fez os dois Fula, Malam e seu pai, concluirem que “os nalus eram ainda selvagens” (ib., p. 153-154). Sobre as mulheres das diferentes etnias, as descrições são sempre rápidas e estereotipadas. As mulheres mandjacas, por exemplo, “provocantes nos seus trajos bizarros, que ocultavam a cabeça encarapinhada com lenços de seda multicores. Tinham atitudes duvidosas. Olhavam os homens meneando expressivamente o corpo ondulante. Eram as horizontais de Bissau” que vendiam aos “brancos por bom preço as hipotéticas primícias duma requintada sensualidade” (ib., p. 165). Edward Said afirma não acreditar que os escritores fossem “mecanicamente determinados pela ideologia, pela classe ou pela história econômica, mas [...] profundamente ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em diferentes graus” (SAID, 1999, p. 23). Considero essa reflexão sumamente importante para nortear a leitura desses romances produzidos sob o “olhar etnográfico” de seus autores. O discurso colonial128, do qual a literatura colonial é um dos porta-vozes, como aparato do poder, afirma Homi Bhabha, procura legitimação para suas “estratégias pela produção de conhecimentos tanto do colonizador quanto do colonizado que se apresentam como estereotipados mas antiteticamente avaliados” (BHABHA, 1992, p. 184), como é possível constatar nos exemplos acima apresentados. O estereótipo é um modo de representação incompleto e fetichista em meio ao próprio campo da identificação: circula dentro do discurso colonial como uma forma limitada da alteridade, como uma forma fixa da diferença (ib., p. 196). Tem-se, de um lado, os auto-louvores, as afirmações de responsabilidade, um claro triunfalismo; e do outro lado da polarização, o primitivismo, a força bruta, a animalidade, o servilismo, a inferiorização a todo custo. Fausto Duarte expressa a opinião corrente entre seus iguais: “Uma coisa porém era certa: com a presença dos brancos tinha melhorado a vida dos indígenas no seu aspecto social” 128 “O termo ‘discurso’ refere-se a uma série de afirmações, em qualquer domínio, que fornece uma linguagem para se poder falar sobre um assunto e uma forma de produzir um tipo particular de conhecimento. O termo refere-se tanto à produção de conhecimento através da linguagem e da representação, quanto ao modo como o conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento”, assim se expressou Stuart Hall e é como tal que estou empregando o termo durante este trabalho. Cf. HALL (disponível em: http://www.educacaoonline.pro.br/art_a_centralidade_da_cultura.asp.). 120 (DUARTE, 1945, p. 51). Os autores dessa assim chamada literatura colonial são quase sempre funcionários da administração portuguesa, ou militares ou missionários, todos marcados logicamente pela convicção da missão civilizatória do branco, como é possível verificar em muitas passagens do romance O negro sem alma, de Fausto Duarte, por exemplo, quando o narrador onisciente faz conhecer os pensamentos de Henrique, o chefe do posto, o “bom tubabo129, a quem todos os negros estimavam” (DUARTE, 1935, p. 176): A África era ainda um mundo a explorar, dizia Henrique para consigo. A-pesar-de tudo, quantas proezas, quantos esforços dos portugueses de antanho, atestavam tôdas essas clareiras, todos êsses pontos ignorados do mato, onde agora viviam numa perene tranqüilidade indígenas pacíficos voltados à gleba depois de inutilizadas as armas. Henrique sentia-se estimulado por um íntimo orgulho ao vê-los resignados, saüdando os europeus respeitosamente porque ainda se encontravam bem impressas nas suas almas rudes e nos modos servis, a energia e a coragem dos brancos, agora senhores do mato (ib., p. 176-177)130. Num outro livro do mesmo autor, A revolta (1945), sucedem-se os exemplos dessa imagem que se procura sempre de novo transmitir: a do chefe branco justo e magnânimo, superiormente dedicado a estabelecer a paz entre os indígenas que barbaramente guerreavam entre si: Ele bem sabia qual a extensão que poderia adquirir a revolta do ambicioso fula, as suas conseqüências entre a população vencida quer dum ou doutro lado, sujeita à crueldade do vencedor, aos rancores entre famílias desejosas de um sucesso dêsse gênero para se desagravarem. Culturas queimadas, aldeias arrazadas, raptos de mulheres à mão armada e sangue de inocentes marcariam a passagem dos rebeldes ou o triunfo dos adversários. [...] Antes de ser empossado no cargo de comandante do Posto Militar de Geba, de quando em vez era declarado pelo Govêrno o estado de guerra nas regiões vizinhas, suspensas as garantias e proibido o comércio, por meio de bando. Tudo isso acabara com a sua presença. Os anos da dura escola que é o mato de África, a reflexão e o conhecimento directo dos costumes indígenas tinham-lhe dado a necessária experiência para agir com eqüidade, obrando com firmeza e prudência (DUARTE, 1945, p. 83-84). A obra de Fernanda de Castro (1900-1994) também conheceu grande repercussão. A estória infanto-juvenil Mariazinha em África, publicada pela primeira vez em 1925, teve mais de uma dezena de edições, apresentando alterações segundo a direção dos ventos políticos da “metrópole”. O longo poema África raiz (1966), tantas vezes citado e integrando manuais didáticos até mesmo na Guiné-Bissau, é um protótipo do eurocentrismo131, camuflado em arroubos maternalistas/paternalistas. A imagem da África é sempre acompanhada de epítetos 129 O termo tubabo refere-se ao branco de modo geral. É um termo da língua mandiga e significa o europeu (SCANTAMBURLO, 2002, p. 622). 130 A fixação obsessiva dos portugueses nas lembranças de façanhas marítimas e da colonização, forjando uma imagem irreal de si mesmos, foi comentada por Eduardo LOURENÇO em O labirinto da saudade (1999) de maneira bastante crítica e aberta, chamando de ficção uma tal idéia de grandeza. 131 Fernanda de Castro, portuguesa, viveu muitos anos na Guiné. Escreveu romances, sobretudo para a juventude, além de poesia. Cf. também ROSA (1993, p. 158-162) e AMADO, 1990. 121 negativos, fazendo sobressair o fascínio pela alteridade, ao mesmo tempo temida e atraente: África no teu corpo rugem feras, uivam fomes e medos ancestrais, na tua pele há dardos e punhais. [...] E a gente, a gente negra? [...] a gente é como nós, mais próxima, talvez, dos bichos e de Deus. De Deus pela inocência, pela alma, dos bichos pela carne, liberta do pecado da ideia do pecado. [...] Sua lei é o instinto, a força bruta. Alma não tem (CASTRO, ib., p. 9-14). Não me posso furtar a um paralelo com a literatura brasileira, lembrando o grande poeta afro-brasileiro João da Cruz e Sousa, unanimemente consagrado como o maior representante do simbolismo brasileiro132. Seu texto em prosa Emparedado, conservado inédito mesmo depois de sua morte, ocorrida em 1898, só foi divulgado com a publicação de suas obras completas (1961). Nesse texto, Cruz e Sousa refere-se à África acumulando todos os estereótipos negativos correntes no seu tempo (e não só): África, [...] tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das civilizações despóticas [...]. A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas [...]. Longínqua região desolada, criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados [...], grotesca e triste, África, gigantescamente medonha, absurdamente ululante, pesadelo de sombras (SOUSA, 1961, p. 663). Longe de abraçar tal perspectiva, o poeta afro-brasileiro esmera-se, com essas metáforas violentas e depreciativas, em mostrar os preconceitos que o etnocentrismo europeu continuava a divulgar e a fortalecer, pondo a descoberto com isso o “emparedamento” a que estão condenados os descendentes dessa África “medonha” e por Deus castigada, esquecida e desprezada. Mesmo sem a exuberância hiperbólica do simbolista santa-catarinense, é fato que a presença colonial na África e no “Novo Mundo”, com a imposição de seus próprios valores taxados como superiores, contribuiu, de modo negativo e decisivo, para um latente e autocorrosivo complexo de inferioridade, empurrando os colonizados ao mimetismo e ao esvaziamento de seus bens culturais. Até hoje, o sentimento de desqualificação, de inoperança, de falta de confiança em si mesmo e nos seus conterrâneos, efeitos maléficos do colonialismo, não foram ainda completamente suplantados. 132 João da Cruz e Sousa (1861-1898) deixou entre outras obras Missal, poemas em prosa (1893), Broquéis, poesias (1884), Evocações, poemas em prosa (1898), publicação póstuma, onde se encontra Emparedado (p. 646-664, da edição da Obra completa, ed. Aguilar, 1961). 122 4.2 A máquina de fazer o outro133 O discurso colonial tende a “construir” o colonizado, munindo-o de artefatos negativos baseados em preconceitos raciais que têm como finalidade justificar a conquista e a ocupação e estabelecer sistemas administrativos e culturais em seu próprio benefício (BHABHA, 1992, p. 184). Foi o contexto da expansão imperialista e do colonialismo, com sua intrincada rede de interesses, que incitou os invasores europeus a identificarem os africanos (e os habitantes das Américas igualmente) como adversários que precisam ser subjugados e a englobá-los “nessa apelação unificadora e redutora” (GRUZINSKI, apud ABDALA JR., 2003). Para submeter o colonizado foi necessário quebrar-lhe a vontade, “coisificá-lo”, surrupiar-lhe a língua, as crenças, as tradições, engabelá-lo com mistificações e roubar-lhe a capacidade de escolha própria. Desprestigiar, desconsiderar a cultura autóctone em detrimento da cultura imposta, embriagando o colonizado com o elixir da civilização, foi uma estratégia recorrente e eficiente. Na literatura guineense, muitos textos aludem ao fascínio que a “civilização” despertava nos africanos do meio rural, mas também na capital, provocando admiração e cobiça pelos bens de consumo inimagináveis para aquelas sociedades. Ndani, a protagonista do romance A última tragédia, de Abdulai SILA (1995)134, enumera algumas das comodidades trazidas pelo colonizador, expressando sua satisfação por ter acesso aos benefícios da moderna sociedade “dos brancos”. Referindo-se ao djambakus135 de sua aldeia que tinha vaticinado que ela não poderia nunca ser feliz, Ndani aponta algumas das diferenças entre a vida da tabanca que ele levava e a sua vida na cidade: Ele devia ver o que é dormir numa cama de molas e comparar a diferença com um colchão de palha com troncos no meio; ele devia saber o que é dormir num quarto sem mosquitos a chatear e com ventoinha a soprar fresco toda a noite e comparar isso com o martírio de dormir com galinha e cachorro ao lado e dabi no colchão; ele devia experimentar para depois explicar às mulheres dele a diferença entre sentar-se de manhã a uma mesa e tomar calmamente o mata-bicho e o acordar com o segundo galo e começar a pilar arroz, ainda por cima com filho às costas; ele devia ver como é que com 133 134 Expressão cunhada por Michael HARDT em L’hybridité de l’Empire, 1995/2003. Cf. bibliografia final. Abdulai Sila destaca-se na literatura nacional como o pioneiro do romance guineense. Inaugurou suas atividades de prosador com Eterna paixão (1994), a que se seguiram A última tragédia (1995) e Mistida (1997), todos publicados pela Ku Si Mon Editora, a primeira editora privada do país e da qual ele é um dos três proprietários. Nasceu em Catió, em 1º de abril de 1958, é engenheiro eletrotécnico, tendo feito sua formação em Dresden, na Alemanha (1979-1985). Em Bissau, foi um dos que constituíram o pequeno núcleo de intelectuais fundadores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, o INEP. É também co-fundador de um centro de computação (SITEC, 1987), o primeiro do país, e da empresa EGUITEL, desempenhando um papel pioneiro na telecomunicação do país e contribuindo com cursos de computação para a formação técnica da juventude guineense. Sila continua fazendo cursos de especialização nessa área em diversos centros nos Estados Unidos. No capítulo 7 vou tratar com mais pormenores dos três romances de Abdulai Sila. Agradeço ao autor as explicações e esclarecimentos que muito me ajudaram na leitura de sua obra. 135 Indivíduo das comunidades animistas com o dom de prever o futuro e fazer vaticínios, dominando fórmulas encantatórias. É o curandeiro ou a curandeira, ou adivinho, vidente com capacidades paranormais, o xamã de certas etnias. 123 um simples truque de torcer uma torneira, só com dois dedos, sem o menor esforço, se podia obter a quantidade de água que se quisesse e comparar depois esse esforço com a canseira das mulheres da tabanca de caminhar distâncias enormes com pote ou balde grande na cabeça; ele devia ver a quantidade de carne que o cão daquela casa comia todos os dias e comparar com a comida que os meninos tinham na tabanca [...]; ele devia ver tudo o que o homem branco tem e ver se encontrava uma forma de convencer o Yran a ajudar a encontrar coisas parecidas para o homem preto, em vez de estar só a anunciar desgraças e tragédias (SILA, 1995, p. 30)136. O “Professor”, protagonista do mesmo romance, educado pelos padres, foi o primeiro fruto da missão evangelizadora dos colonizadores, assumindo ele próprio o elã missionário que lhe foi inculcado (“ele respeitava a tradição, pelo menos enquanto não entrava em contradição com as suas convicções religiosas”; ib., p. 88), evoluindo depois para uma independência de pensamento e de ação, ousadia que lhe custou o degredo e a morte. Aqui, o autor apresenta, num primeiro momento, a figura do africano que se acultura e incorpora os valores do colonizador, transformando-se num “bom cristão” e conseqüentemente, abandonando suas próprias tradições. Mas que se distancia da postura de benevolente protecionismo própria do agente civilizador. A população estranhou que ele não ficasse amigo do Chefe, isto é, o administrador do posto, já que eram “duas pessoas com escola”, portanto, “com pensamento parecido” (ib., p. 85). O Professor deveria ter interesse nessa amizade, para poder “mostrar aos outros que ele não era um indígena, mas sim um assimilado e talvez até um civilizado” (ib.). Agente propagador dos novos tempos, caracterizado pelo autor como um homem digno e altivo, o Professor, em contacto com o povo da aldeia, bem depressa ultrapassou a estreiteza do pensamento discriminatório dos missionários, reconhecendo os valores tradicionais. Seu ideal como mestre não era transmitir aos alunos a cultura do branco, mas sobretudo instrumentá-los para enfrentar as mudanças da modernização que não podiam ser mais evitadas. O administrador não está muito em evidência na trama narrativa, mas seu vulto, como o prolongamento da mão autoritária da metrópole, lança sombras e ameaças. O outro lado da medalha é o régulo, o grande régulo de Quinhamel137, exemplo da resistência dos Pepel – e não só – contra o jugo colonial opressor: Se um dia os brancos forem embora, não devia mais haver nem polícia, nem cipaio, nem nada parecido. [...] O branco não vai nunca? Aí é que está o problema do preto, não quer pensar como é que o branco veio, por isso não sabe que um dia tem que ir. [...] O branco veio, tem que ir um dia. Ainda há-de aparecer um preto com coragem para pensar nisso (ib., p. 81-82). 136 Alguns enunciados talvez não sejam muito conhecidos: dabi significa percevejo; mata-bicho é a primeira refeição do dia, nosso café da manhã; tabanca é a aldeia; Yran (escreve-se geralmente iran ou irã) é o espírito ou a divindade protetora. Para maiores esclarecimentos sobre os irans, cf. o capítulo 2.6. 137 Pequena localidade a oeste de Bissau. 124 Abdulai Sila traça o perfil do africano mentalmente emancipado, seguro de si, que recusa a coisificação. Consciente de sua responsabilidade como chefe da comunidade nativa, dirige com sabedoria sua gente e reconhece que muitos males provocados pelo colonizador poderiam ser minimizados se o povo tomasse consciência da própria força e capacidade: No fundo, este é que era o problema do preto: tem medo de fazer mal ao branco, enquanto que o branco faz mal ao preto todos os dias que o sol nasce [...]. O branco está a dominar o preto é só porque não há ninguém a pensar. Ninguém diz isto está bom, aquilo está mal e depois procura pensar porquê. Tudo o que o branco faz é porque está bom. O branco é que estava a pensar no lugar do preto. Mas branco é homem como qualquer outro homem! (ib., p. 64). Com uma visão ampla e independente, o régulo de Quinhamel respeita por um lado as tradições, consultando o djambakus e cumprindo as cerimônias rituais, mas implementa novidades, não receando assumir outras posturas que não as ditadas pelos “usos e costumes”. Uma de suas transgressões foi nomear conselheiros para o ajudarem nas decisões importantes para a comunidade. Apesar de analfabeto, utiliza-se da palavra escrita para fixar para as gerações vindouras seus pensamentos e princípios. É através do testamento do Régulo, ditado ao jovem Professor, que Abdulai Sila faz transparecer sua mensagem política. As idéias do Régulo Bsum Nanki, bastante contundentes, são expostas de forma pitoresca e testemunham, na sua aparente simplicidade, independência e orgulho, auto-confiança e destemor: Duas cabeças valem mais que uma cabeça só. [...] apesar disso ser uma coisa evidente, muitas pessoas se esquecem. Então vivem sem saber [...] que têm que a usar. [...] Um régulo tem que ter conselheiro [...]. Quando uma pessoa manda numa terra tem que ter bons conselheiros, não precisa de ter polícias. Uma pessoa não pode mandar na base da força, força da polícia ou da tropa. [...] Porque quem toma um couro à força, ou pensa que pode ficar com ele à força, sempre perde o couro à força138 (ib., p. 92-95). O régulo é a antítese da imagem do colonizado dependente e incapaz, contrariando o discurso colonial que asfixia o africano dentro dos limites rígidos do estereótipo, reflexo da arrogância do dominador que tantas vezes promoveu o silenciamento das culturas nativas pelas mais diversas estratégias. A sua anulação leva à desorientação, à internalização do sentimento de inferioridade e a uma assimilação acrítica e passiva do modelo imposto, ocorrendo uma “epidermização”, para usar uma expressão de Frantz FANON (1952, p. 10). O olhar eurocentrado sempre prevaleceu, num juízo de valores dicotomizado, em pares hierárquicos onde o conhecido, o familiar, o “mesmo” era privilegiado em detrimento da cultura local, qualificada pela ótica do negativo, da barbárie, da carência e da falta, como ficou patente nas passagens dos romances de Fausto Duarte, acima referidos. 138 O termo crioulo couro significa uma boa posição ou cargo. 125 Nos meios urbanos, onde o contacto entre brancos e negros era constante, os segundos quase que sem exceção no papel subalterno e dependentes dos primeiros, a única via possível para alcançar um mínimo de ascensão social e de respeitabilidade era a via da assimilação, e eram muitos os que ansiavam pelo carimbo de “aculturado” (em oposição ao “indígena”), pelo frágil prestígio de ser, pelo menos “um bocadinho português”, como uma estória bem humorada de Carlos Lopes tão bem ilustra. Sociólogo e economista do desenvolvimento, Carlos Lopes139 é autor de muitas obras e ensaios sobre temas sociológicos, históricos e políticos, sendo também um ficcionista de grande talento; escreve crônicas e pequenos estórias que por muito tempo eram publicadas regularmente no jornal português Público. Alguns desses escritos estão reunidos no livro Corte geral (1997), onde o escritor retém, com fina ironia, saborosos traços da vida cotidiana guineense, tanto da capital como do interior, tanto episódios passados na época colonial da sua infância como no momento presente. Em “O sipaio Mendes”, Carlos Lopes reporta-se aos tempos da ocupação portuguesa e ridiculariza gostosamente essa inconsciente ou ingênua imitação colonial de que fala BHABHA (1998, p. 131). O sipaio Mendes140 viu sua autoridade de capitão do mato ameaçada durante um pequeno incidente com o motorista de um caminhão-cisterna que parou indevidamente na rua em frente da praça do mercado, enlameando a rua e sujando os passantes. Diante da pergunta “Você não sabe que não pode parar?”, o motorista, indignado, mostrou ao representante da lei que não aceitava a arrogância por parte de um outro africano, não lhe reconhecendo a autoridade –“pensar que és português, ou quê?” (LOPES, 1997, p. 16) – verbalizando o que muitos tinham vontade de lançar-lhe ao rosto mas não se atreviam. A estória se desenrola em muitas peripécias até que, dando-se novamente a ocasião dos dois se confrontarem, o motorista dessa vez seguiu seu caminho, sem parar, isto é, sem desobedecer, não ousando provocar novamente o sipaio, o qual concluiu muito satisfeito: “Afinal, sempre sou um bocadinho português!” (ib., p. 19). Para o bom funcionamento do aparato colonial, era necessária a constituição de uma mínima camada que fizesse a ponte entre os dois mundos. A cooptação das elites 139 Carlos Lopes nasceu em Canchungo em 1960. Doutorou-se em Estudos Africanos pela Universidade de Paris I e tem ainda graus acadêmicos em Sociologia, História e Planificação Estratégica. Aos 24 anos foi o primeiro diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) e um dos seus fundadores. Exerceu atividades acadêmicas em várias universidades, como em Zurique, Uppsala, México, Coimbra. Publicou uma vintena de livros e dezenas de artigos no âmbito das ciências políticas e sociais (cf. bibliografia final). Desde 1988 integra o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/UNDP), tendo ali ingressado como economista do desenvolvimento. Ocupou muitos postos de direção, entre eles o de Residente e Coordenador das Nações Unidas em Harare (Zimbábue). De 2003 a 2005 foi o Representante Residente e Coordenador das Nações Unidas no Brasil. Deixou o Brasil para exercer o cargo de diretor político da Secretaria Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. Apesar de ter escrito sempre crônicas em vários periódicos, sobretudo no Público, de Lisboa, apenas em 1997 reuniu-as em parte no livro Corte Geral. 140 Às vezes escreve-se cipaio; é o policial africano a serviço da administração colonial. 126 tradicionais141 na administração colonial é vista como maneira de domesticar o instinto ambicioso dos nativos (BHABHA, 1992, p. 185). A formação de uma elite autóctone, muitas vezes mestiça, acenava com a “integração”, o que para os colonizados significava uma completa assimilação dos valores brancos, ocidentais, uma identificação com o invasor. Amílcar Cabral, o grande mentor intelectual, político e estratégico das lutas de libertação da antiga Guiné e do Cabo Verde, em uma das suas falas aos revolucionários142, assim se expressou, resumindo a situação desses assimilados que não queriam trocar as vantagens que tinham pelas incertezas das lutas libertárias: Entre os grupos a que podemos chamar pequeno-burgueses, gente com uma vida certa, seja descendentes de guineenses ou de cabo-verdianos, aparecem sempre três grupos de pessoas. Um grupo pequenino, mas forte, que é a favor dos colonialistas, que nem mesmo querem ouvir falar disso, da luta contra os tugas. Daquelas pessoas que foram a minha casa em Pessubé, como gente grande, bem empregada, comendo bem, bebendo bem, que vai a férias, etc., sentaram-se e disseram: “Bom, queremos conversar contigo. Tu, filho do fulano de tal, nós conhecemos-te bem, estás-te a meter em problemas, estás a estragar a tua carreira de engenheiro, nós queremos aconselhar-te, porque nós não temos nada que fazer contra os tugas, nós todos somos portugueses”. Para esses não há remédio (CABRAL, A.)143. A escola era um dos meios mais eficazes para uma certa ascenção social. Somente aquele que era alfabetizado e comprovava possuir costumes “civilizados” tinha a prerrogativa de adquirir o status de aculturado144. Carlos Lopes, numa de suas estórias, escrita na primeira pessoa, faz a voz narradora relembrar os tempos da infância, quando os filhos dos “assimilados” freqüentavam a melhor escola de Bissau: Na Escola Primária Dr. Oliveira Salazar só andavam filhos de gente fina de Bissau. [...] De manhãzinha, mal se chegava, fazia-se uma formatura e cantava-se o hino da Mocidade Portuguesa. [...] Havia um dia na semana em que tínhamos de ir para a formatura com a nossa farda da Mocidade. [...] A compra do fardamento era um acto muito importante. [...] O “S” de Salazar [...] ornava a fivela. O “S” do cinto e o emblema das quinas na camisola é que davam pinta àquilo tudo. [...] Só falávamos em “kriol” no recreio das dez e meia. Os da metrópole faziam queixinhas de nós falarmos 141 O conceito de elite contém a idéia de concentração do poder nas mãos de um grupo de pessoas que formam uma oligarquia que toma a si uma série de tarefas decisivas, sendo constituída pelos indivíduos que ocupam a mais elevada posição na escala social (cf. CARDOSO, 2001, p. 232). Esse autor guineense tem trabalhado sobre as elites e sua inserção na política da Guiné-Bissau, com vários ensaios sobre o assunto. Cf. bibliografia final. 142 Para uma biografia (entre muitas) de Amílcar Cabral, cf. CHABAL, 1983; sobre seu assassinato, ainda envolto em mistério, cf. CASTANHEDA, 1995; sobre sua (pequena) obra poética, cf. entre outros, artigo de CHABAL, 1985; ou AUGEL, 1998a (p. 139-145). 143 Cf. CABRAL, A. “Unidade e luta”. Esse discurso está disponível, como as demais citações deste subcapítulo, no site sobre a Guiné Bissau, mantido por Fernando Casimiro (Didinho): http://didinho.no.sapo.pt, e que visitei pela última vez em julho de 2005. A fonte parece ser os arquivos da Fundação Mário Soares em Lisboa e os da Fundação Amílcar Cabral, na cidade de Praia, Cabo Verde. 144 Mais uma vez cito de Amílcar Cabral um breve texto sobre o assunto: “Na Guiné, 99% da população não podia ir à escola. A escola era só para os assimilados, ou filhos dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou contá-la outra vez. Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem, aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África, do mundo de hoje. Isso é um obstáculo grande, uma dificuldade enorme para o desenvolvimento da nossa luta” (CABRAL, A.; disponível no mesmo site acima indicado). 127 “kriol” nos recreios. Era proibidíssimo falar “kriol” e isso só aumentava o interesse em fazê-lo. Quem não arrisca não petisca. E daí que o “kriol” passasse a ser linha de demarcação (LOPES, ib., p. 21-22). No mesmo teor, uma outra estória lembra o reduzido número de africanos que tinha o privilégio de participar da restrita e seleta elite local: Terminei a comunhão solene em tempo recorde, quem sabe se com uma ajudinha do padre Cruz, e também fui escolhido para entrar numa peça de Gil Vicente antes de completar dez anos. Até o governador da província foi assistir a essa efeméride, se calhar a primeira que proeminentemente exibia um mulato no papel de nobre da corte (ib., p. 35-36). Ainda Carlos Lopes, no seu conto “Fazi sapo”, traça a figura do jovem filho de um rico comerciante local que “nunca duvidou que chegaria onde chegou porque era filho de quem era” (LOPES, ib., p. 147). A descrição do jovem calha muito bem como exemplo do que acabamos de comentar: Tinha um bom carro, que comprara há pouco tempo, um BMW último grito, que não aguentaria muito nas ruas de Bissau cheias de buracos, mas isso nem entrava em linha de conta. [...] Vestia roupas da moda, sapatos de Lisboa, e até tinha introduzido um accessório, raro: uns suspensórios que não serviam para agarrar as calças, já que tinha engordado um pouco, mas eram óptimos para dar estilo (ib.). Como no tempo do colonialismo, o comportamento eurocentrado, que sempre prevaleceu, foi sendo assumido pelos nativos, acriticamente, num juízo de valores em dicotomias hierárquicas, numa tentativa infrutífera de igualar-se ao usurpador. Trago mais um exemplo tirado de uma fala de Amílcar Cabral, onde ele procura fazer uma categorização, de forma bastante didática e simples, pois estava falando sobretudo para iletrados, dos diversos tipos de guineenses que aderiam aos independentistas: Uma grande maioria de pequeno-burgueses [...] está indecisa [...]. Quem mais sofre com os tugas são essa gente da cidade, todos os dias os tugas estão em cima deles, a aborrecê-los. [...] É gente que sofre directamente com o colonialismo todos os dias, enquanto, por exemplo, o homem que vive no mato, lá no fundo do Oio, ou no Foreá, por vezes morre sem ter visto um branco. Enquanto que quem vive na cidade vê brancos todos os dias. Continuando, esse é um grupo de gente, grande grupo de pequeno-burgueses que têm o seu vencimento no fim do mês, e que o seu desejo de facto é que os tugas se vão embora, mas têm medo. [...] Perdemos a nossa geleira, o nosso dinheiro no fim do mês, o nosso rádio, o nosso sonho de ir a Portugal passar as férias. [...] E os nossos trabalhadores assalariados? [...] É que quando um homem que trabalha como pedreiro ganha dez, e um branco ganha 80$00, senão 800$00, ele sente uma exploração grande pela sua condição de vida. [...] Muitos rapazes que não têm emprego certo, sabendo ler e escrever, trabalhando um bocado ou outro, vivem muitas vezes à custa do tio que está na cidade, [...] tinham um contacto permanente com o colonialismo: jogadores de bola, um tanto entusiasmados com o tuga, mas sentiam também um bocado. [...] Essa gente veio para a luta muito rapidamente. E desempenharam um papel importante nesta luta, porque, por um lado, são da cidade e por outro lado estão muito ligados ao mato. [...] Gente que aprendeu na cidade como é bom ter coisas boas, mas que por causa da humilhação que sofre, sente que o tuga está a mais. E o Partido ajudou-os a aumentar a sua consciência disso (CABRAL, A.)145. 145 Citado de um discurso de Cabral, ”Unidade e luta”, disponível no site acima referido. 128 4.3 Os espaços do pós-colonial Frantz Fanon discorre longamente, no capítulo sobre a violência, em seu livro Les damnés de la terre (1961), sobre as complexas implicações da descolonização. Sem transição, “tudo passa a ser diferente, tem lugar uma substituição radical, completa, absoluta”, podendo-se considerar que uma tabula rasa define o início da descolonização (FANON, ib., p. 29). A necessidade dessa mudança existia, em estado latente, impetuoso e impulsionador, na consciência e na vida dos homens e das mulheres colonizados (ib.). Não se trata de um passe de mágica, é um processo que parte da “desordem absoluta” depois da última “confrontação entre duas forças congenitamente antagônicas” (ib., p. 30). Na Guiné-Bissau, não se pode, entretanto, falar de tabula rasa. A substituição não foi absoluta, faltaram sobretudo quadros qualificados para ocuparem os postos de direção, em todos os setores, e isso provocou, de fato, um grande transtorno. Mas as estruturas da governança continuaram em parte as mesmas. A ausência de pessoas qualificadas foi, e ainda é, um dos grandes problemas do país. Fosse pela precariedade de meios, fosse pela inércia, ou ainda por um certo comodismo que é também sinônimo de uma postura pouco politizada, até bem pouco tempo as estampilhas para os documentos oficiais ainda eram as da época colonial. Pouco mais de trinta anos não se mostraram ainda suficientes para que, depois da descolonização, o país enfrentasse os tempos pós-coloniais de forma realmente soberana e independente. No campo da literatura, o discurso pós-colonial tem muitas faces, refletidas na tensão entre representações das culturas nativas e suas sobrevivências e representações da cultura imposta pelo dominador e que hoje em dia, antropofagicamente, faz parte integrante da guineidade146. O vasto debate sobre o pós-colonialismo tem provocado muitas vezes confusão e misturas. Devido às múltiplas perspectivas segundo as quais se enfoca o pós-colonial ou a póscolonialidade, tornam-se necessárias uma análise e uma rearticulação do termo, muitas vezes utilizado indiscriminadamente tanto para designar uma fase (ou uma situação) sócio-histórica ligada à expansão colonial e à descolonização, quanto para referir-se a práticas teóricas e acadêmicas nada uniformes. SCHULZE-ENGLER (2003, p. 181 e ss.), anglista e africanista alemão, com obras publicadas na perspectiva comparatística, sobretudo sobre o pós-colonial e a modernidade não européia, arrola, para fins de simplificação, mas também para uma maior clareza quanto à conceituação, cinco diferentes concepções (ou variantes, como ele chama) do conceito “pós146 A generalização é sempre perigosa. Mas, mesmo se em muitas áreas isoladas do mundo rural a ocidentalização não se mostra tão presente (ou quase nada), seus reflexos se fazem sentir. “A fronteira entre o urbano e o rural, num país como o meu, é sentida dentro das pessoas: não há ninguém completamente urbano ou completamente rural”, disse Mia Couto numa entrevista (CHAVES, 1998). Na Guiné-Bissau, creio, é semelhante. 129 colonial”. Para ele, o “pós-colonial” pode ser tratado como uma teoria (variante 1), como uma denominação geográfica (variante 2), como um termo político (variante 3), como uma nova disciplina científica (variante 4) e, finalmente, como um termo pragmático, um simples adjetivo (variante 5). Explicitando melhor, o termo “pós-colonial” se refere, como teoria, na primeira variante, a uma direção teórica específica que se caracteriza, sobretudo, por tratar de diferentes conceitos teóricos pós-modernos e pós-estruturalistas para literaturas, culturas e sociedades nas regiões que foram colonizadas – mas também para as culturas das “diásporas” ou culturas de migrantes nos antigos centros coloniais. O adjetivo “pós-colonial” aparece, normalmente, em combinação com enunciados como “teoria pós-colonial” e tem suas bases nas obras de três grandes pensadores contemporâneos: Edward Said, Homi Bhabha e Gayatri Spivak. Aqui, é essa variante que interessa à nossa perspectiva, mais estreitamente ligada à teoria literária, tal como é apresentada na obra pioneira The Empire Writes Back, publicada em 1989, de Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin. “Pós-colonial” marca, com isso, uma direção teórica específica que encontrou grande aceitação justamente na teoria e crítica literárias e nas ciências da cultura, estando no mesmo nível de categorias como teoria ou crítica literária marxista ou feminista ou ainda pósestruturalista. Enquanto na primeira variante o termo é definido na sua essência teórica, a segunda variante tem a ver banalmente com o aspecto espacial, isto é, com certas regiões geográficas. O termo aparece, por exemplo, em combinações como “literatura pós-colonial”, “sociedades póscoloniais”, “culturas pós-coloniais”, e mesmo “mundo pós-colonial”, referente aos países saídos da situação colonial. Nesses contextos, “pós-colonial” se refere ao “mundo real” e não a certas direções teóricas e com esse significado substitui categorias como “Commonwealth” ou “Terceiro Mundo”. Apesar de os termos pós-colonial (1) e (2) não serem de forma alguma associáveis, ou seja, como categorias não se pode estabelecer uma correspondência entre uma e outra, no uso comum elas são vulgarmente confundidas entre si. Uma terceira variante tem a ver com um determinado comportamento político e ideológico. “Pós-colonial”, nesse sentido, é aplicado para marcar um largo espectro de correntes anticoloniais, nacionalistas, anti-imperialistas e anti-capitalistas que estão em maior ou menor escala ligadas à idéia básica de “libertação do Terceiro Mundo”. Como os protagonistas de diferentes movimentos políticos e sociais nos países da África, Ásia e América Latina, afirma Schulze-Engler, não se tenham mostrado até agora inclinados a se definirem a si mesmos como “pós-coloniais”, o termo (na acepção 3) continua sendo um constructo acadêmico, também mesmo quando, ocasionalmente, se tenta definir o “pós-colonial” como uma forma de ativismo político. 130 Continuando a classificação de Schulze-Engler, a variante número 4 refere-se a uma nova disciplina científica e é usada, por exemplo, na designação “postcolonial studies”, “estudos póscolonais”. “Pós-colonial” designa, assim, uma área acadêmica de estudos interdisciplinares cujo núcleo se situa nos estudos de teoria literária e da ciência das culturas e que se ocupam tanto com as sociedades e as culturas das regiões geopolíticas e dos países ex-colônias – no sentido da variante 2 – como com as incontáveis teorias pós-coloniais no sentido da variante 1. Como essa nova disciplina ainda se está estruturando, uma grande parte dos estudos de temas “póscoloniais”, tanto na pesquisa como no ensino, está ancorada em disciplinas já consagradas e reconhecidas. Nos últimos anos, diz o autor, cursos de “postcolonial studies” se vêm estabelecendo em diversas universidades européias e americanas (e, acrescento eu, também brasileiras e latino-americanas). A última variante (5), sempre seguindo a classificação de Schulze-Engler, é compreendida como o termo tem sido vulgarmente utilizado na linguagem cotidiana comum, um adjetivo com um sentido meramente pragmático, empregado quando se trata dos assim chamados países, literaturas e culturas “pós-coloniais”, ou quando há referência a alguma teoria póscolonial. Fala-se tanto de escritores ou críticos que são originários de países “pós-coloniais” ou que estão de algum modo a eles relacionados, como de perspectivas políticas mais ou menos radicais relativas ao “Terceiro Mundo”. As literaturas chamadas de “pós-coloniais” são, em geral, caracterizadas pela sua relação ambígua com a literatura do país europeu colonizador, oscilando entre o mimetismo e o repúdio. Assim terá de fato acontecido nos primeiros tempos pós-independência. A literatura não escapou do amplo espectro de questionamentos e ajustes de contas com a antiga metrópole. Entre, de um lado, a rejeição e a negação e, do outro, a continuidade das relações historicamente constituídas, uma necessária catarse se realizou (e se vem realizando) em quase todos os países que se encontram a escanteio do centro hegemônico na era da globalização. A descolonização é sempre um longo processo e não apenas um ato político e pontual. Não é possível, simplificadamente, e muito menos generalizadamente, falar-se de “póscolonização”, sem situar espácio-temporalmente essas referências. A catarse acontece, está acontecendo, mas também os países africanos se estão confrontando com novas formas de dependência e de influências. Os analistas não africanos nem sempre estão atentos à complexidade de atitudes, momentos, transformações, regressões, reações que envolvem a descolonização, tendo herdado um par de antolhos conceituais (a expressão é de APPIAH, 1997, p. 22), fruto do etnocentrismo. E muitos autores, sobretudo africanos, ocupam-se em rever o olhar eurocentrado, etnográfico, sobre a África, tendo em vista o que vem acontecendo, no plano político e sócio-econômico, desde bem antes da virada do milênio, na maior parte dos países 131 daquele continente. Niyi Osundare, autor nigeriano, poeta e crítico literário, resume assim suas críticas: The tag “postcolonial” is more useful for those who invented it than for those who are supposed to wear it, its passive signifies [...] a project which sounds “post-colonialist” in intent may turn out to be “neo-colonialist”, even “re-colonialist” in practice147. SCHULZE-ENGLER (2003, p. 188), na mesma linha, escudado inclusive em outros analistas, mostra que as literaturas africanas contemporâneas têm hoje outras preocupações e outras motivações que não a de se confrontarem com as ex-metrópoles, não lhes interessando mais tanto uma acareação com a história colonial européia. Insistir na mesma tecla seria bagatelizar outras formas de exploração política, continua o autor, como a má governação, a corrupção ou ainda os genocídios, ou a violência do Estado em relação aos ‘inimigos internos’. Tudo isso tem hoje em dia uma grande importância para os africanos posicionados criticamente, constituindo um tema recorrente em escritores de todo o continente. Esses aspectos têm sido teoricamente também discutidos por muitos cientistas sociais africanos e não só. Quanto à Guiné-Bissau, veremos nos próximos capítulos deste trabalho exemplos da nova literatura que se está fazendo desde a segunda metade dos anos noventa e que segue essa postura de autocrítica. Nessas obras, o foco de interesse se desloca justamente para uma nova reterritorialização desconstrutiva do status quo e se empenha em ultrapassar ou contestar o discurso hegemônico vigente, ensaiando uma nova narração da nação. No artigo “La razón postcolonial. Herencias coloniales y teorías postcoloniales”, Walter Mignolo também problematiza os muitos usos do termo “pós-colonial”, lembrando ser “uma expressão ambígua, algumas vezes perigosa, outras vezes confusa, e geralmente limitada e empregada de forma inconsciente (MIGNOLO, 1996, p. 8). Ressaltando que existe uma diferença entre, por um lado, as situações pós-coloniais e, do outro, os discursos e as teorias póscoloniais (ib., p. 13), defende a posição de que deva ser “a razão pós-colonial entendida como um grupo diverso de práticas teóricas que se manifestam na raiz das heranças coloniais, na interseção da história moderna européia com as histórias contramodernas coloniais” (ib., p. 9)148. 147 Apud SCHULZE-ENGLER, 2003, p. 188, nota 5. “O rótulo ‘pós-colonial’ serve mais para os que a inventaram do que a aqueles aos quais ela é atribuída. [...] um propósito que soa ‘pós-colonialista’ na intenção pode acabar tornando-se neo-colonialista e na prática até ‘re-colonialista’”. A tradução é minha. 148 O mesmo autor chama a atenção também para a necessidade de não se perder de vista a existência de três planos de raciocínio e análise: o primeiro abarcaria as situações e condições pós-coloniais (que apresentam muitas diferenças entre elas); o segundo plano seria constituído pelos discursos (políticos, históricos, literários, jurídicos) e finalmente o terceiro pelas teorias pós-coloniais – que seriam teorizações eruditas conectadas aos estudos acadêmicos, por sua vez submetidos a regras institucionais e disciplinárias. Trata-se, segundo Mignolo, como já vimos em exercício de raciocínio semelhante em Schulze-Engler, de marcos conceituais bem distintos, se bem que imbricados. Considerando ainda ser menos a condição histórica pós-colonial o que lhe interessa, mas sim os loci de enunciação do pós-colonial, o autor americano externa a opinião de que “a teorização pós-colonial luta por um deslocamento do locus de enunciação do Primeiro para o Terceiro Mundo” (ib., p. 16) e ressalta que “se pode conjecturar que uma característica substancial do pós-colonial constitua na emergência de loci de enunciação de ações sociais que surgem dos países do Terceiro Mundo, e que invertem a imagem contrária produzida e sustentada por uma longa tradição a partir da herança colonial (ib., p. 17). 132 Considero importante destacar o aspecto, assinalado por Mignolo, de que os discursos e teorias pós-coloniais começaram a desafiar a construção hegemônica da modernidade conectada com a expansão européia, idéia que foi bastante poderosa para perdurar por quase quinhentos anos. O primeiro mundo foi sempre visto como o locus de enunciação que, em nome do racionalismo, da ciência e da filosofia, afirmou seu próprio privilégio intelectual (e não só), em detrimento de outras formas de pensamento. Os discursos e teorias pós-modernas estariam construindo uma razão pós-colonial como um locus de enunciação diferencial (ib., p. 19), priorizando, ou pelo menos dando relevo, aos substratos subalternos (SPIVAK), marginais, até então desprezados ou silenciados. Na perspectiva do meu presente estudo, interessa-me a teoria crítica pós-colonial (Postcolonial Critique) por estar estreitamente imbricada com o campo dos Estudos Culturais, desenvolvidos, como já me referi, primeiramente por acadêmicos ingleses e americanos, ocupando ali um lugar central. O deslocamento da perspectiva da análise constitui o pano de fundo do desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, passando para um segundo plano a análise de processos e das relações sociais de produção, priorizando uma abordagem discursiva, política e cultural na qual a literatura e a análise de texto passam a ser elementos de suma relevância. A reflexão sobre as conexões entre o saber e o poder adquire maior peso do que o estudo das condições materiais da existência social dos indivíduos e seus condicionamentos econômicos. Como Gayatri Spivak formulou: “no contexto pós-colonial global atual, nosso modelo deve ser o de uma crítica da cultura política, do culturalismo político, cujo veículo é a escritura de histórias legíveis, seja do discurso dominante, seja das histórias alternativas” (SPIVAK, 1994, p. 189). A exposição de diferentes aspectos da problemática pós-colonial pareceu-me importante para me situar tanto criticamente como receptora da literatura africana, ou melhor, guineense, quanto para orientar minha interpretação, sem perder de vista minha proposta teórica do estudo da nação a partir do discurso literário e que passarei a desenvolver nos capítulos seguintes. Considero que todas essas questões estão intimamente interligadas e a própria idéia de nação, fruto da modernidade ocidental, vem sendo desconstruída, rearticulada, reorganizada, recriada justamente a partir da implosão da descolonização, da queda dos impérios ultramarinos, com o surgimento dos Estados soberanos africanos que lutam pela integração nacional. Manuel Castells defende um posicionamento bastante diverso, taxando como eurocêntrica a idéia de que as nações se moldam à imagem e semelhança do modelo europeu surgido desde a Revolução Francesa. Critica, igualmente, considerando como uma atitude de excessivo desconstrutivismo, reduzir-se a simples produto ideológico ou mesmo artificial o sentimento ligado à nacionalidade (CASTELLS, 2002, p. 45-46). Das idéias de Castells voltarei a tratar no capítulo 7. Passarei agora a abordar um aspecto que tem ocupado muito tanto teóricos 133 e ensaistas como vem refletindo também nas obras literárias, que é a questão das modernas formas de interação e de recuperação de influências por parte dos países centrais face aos países satélites. 4.4 O neocolonialismo e a “lógica imperial”149 Quem primeiro cunhou a expressão “neocolonialismo” foi Kwame Nkrumah (1909-1972), o primeiro presidente de Gana, depois da independência (1957). Ele mesmo membro da elite burguesa, defendeu a opinião que a soberania nacional dos países africanos, adquirida com a independência, não passava de fato de uma formalidade e que na verdade não tinha havido grandes modificações no relacionamento assimétrico entre os poderes coloniais e os povos colonizados, permanecendo uma relação de dependência e exploração, sendo assim o neocolonialismo a pior forma de imperialismo (NKRUMAH, 1965). Em plena época da expansão econômica da Europa e sobretudo dos Estados Unidos, na busca de novos mercados, na euforia capitalista de multiplicação de lucros e de poder, desenvolveu-se a idéia da necessidade de modernização, constatando-se a dificuldade de países saídos da colonização de se pautarem pelos princípios tais como eram demarcados pelo Ocidente, segundo os quais o desenvolvimento é linearmente definido por parâmetros do crescimento econômico. Foi quando surgiu o binarismo reducionista que dividia os países entre o “primeiro” e o “terceiro” mundo. Os países do “primeiro mundo” etiquetavam o atraso do “terceiro mundo” pelo atraso econômico devido à não industrialização, sendo necessária uma modernização fomentada a partir de fora, com uma “ajuda ao desenvolvimento”, palavra de ordem que permitiu justamente um novo surto de camuflada colonização. Sendo assim, os países descolonizados não tiveram outra saída do que fazerem parte desse sistema, naturalmente como subalternos, continuando vítimas da exploração e da dependência. Como disse G. Spivak, “o neocolonialismo é uma repetição deslocada de muitas das velhas linhas traçadas pelo colonialismo” (SPIVAK, 1994, p. 192). O conceito de neocolonialismo está estreitamente ligado à teoria da dependência, enfoque de grande relevância a partir da década de sessenta, com base em estudos sobretudo latinoamericanos. Os estudiosos da teoria da dependência consideravam que as razões do atraso dos nossos países, latino-americanos e africanos, estavam nas estruturas da economia mundial e eram devidas à perpetuação da subordinação e suas conseqüências que bloqueavam a autoiniciativa e as tentativas de produção econômica autônoma dos assim chamados países 149 Conceito cunhado por Michael HARDT, 1995. Cf. nota 124. 134 subdesenvolvidos. O subdesenvolvimento estaria estreitamente conectado com a expansão capitalista dos países industriais, sendo que o desenvolvimento e o subdesenvolvimento não seriam senão dois aspectos diferentes do mesmo processo global150. Edward Said comenta que, apesar de emancipadas, as nações descolonizadas continuam, sob muitos aspectos, “tão dominadas e tão dependentes quanto o eram na época em que viviam governadas diretamente pelas potências européias. [...] E assim, no final do século XX, o ciclo imperial do século passado parece se repetir em alguns aspectos” (SAID, 1999, p. 51). O neocolonialismo não tem a ver tanto com instrumentos formais de controle, tais como a implementação de estruturas administrativas, o estacionamento de forças militares nem tampouco com a incorporação ou submissão das populações nativas ao controle de um governo metropolitano, de um poder exógeno. Refere-se, muito mais, a uma forma indireta de domínio através de uma dependência cultural e sobretudo econômica. O neocolonialismo reflete um tipo de controle mais sutil das antigas colônias, processado pela continuada cooptação das elites nativas e do poder hegemônico local, cúmplices das potências neocoloniais em detrimento dos interesses do povo. É mantida a dependência, tanto no que se relaciona com o trabalho como no plano do subconsciente, das populações exploradas, submetidas a uma sujeição psicológica e mental que as leva a querer satisfazer suas necessidades tanto culturais quanto materiais a partir dos bens e valores etiquetados como imprescindíveis por parte desse mundo primeiro e perfeito. A dependência não constitui apenas um fenômeno de ordem externa, pois se manifesta também através de muitos fatores interligados e infiltrados na estrutura interna de um país. A cooptação das elites periféricas, assumindo os padrões de consumo dos países centrais, principais usufruidoras dos benefícios dos avanços tecnológicos, distanciou cada vez mais a classe dirigente, concentrada na renda e no proveito próprio, do povo, herdeiro dos malefícios não ultrapassados da colonização, disfarçada sob a máscara neocolonial e neoliberal. A aceitação, e até o encorajamento, por parte das antigas metrópoles, da política levada a efeito por um sem número de ditadores e caudilhos africanos, asiáticos, latino-americanos têm sua justificativa ou explicação evidente, pois essa relação assimétrica e abstrusa tem trazido muitas vantagens para o “Centro”. Ao discurso imperialista nada importa, nem os abusos de autoridade, nem a brutalidade da repressão das revoltas populares, nem o fato de os direitos humanos ficarem submetidos aos interesses do mercado e da economia internacionais. 150 Levaria longe demais discorrer sobre esse assunto que apaixonou sociólogos latino-americanos e de outras regiões afetadas pelas conseqüências da expansão capitalista. Uma revisão das discussões da década de sessenta centradas no binômio centro-periferia, com um balanço dos caminhos da teoria da dependência, pode ser encontrada, por exemplo, em SANTOS, Theotônio dos. Evolução histórica do Brasil. Da Colônia à crise da “Nova República”. Petrópolis: Vozes, 1995. 135 Nas estórias de Carlos Lopes que aqui apresentei, no caso de “O sipaio Mendes”, por exemplo, tratava-se de um simples e ignorante policial; igualmente, em “Fazi sapo” (LOPES, 1997), a personagem principal era um jovem fanfarrão e irresponsável. Triste e inquietador quando, no mundo real, são membros da camada dirigente que dão altas demonstrações dessa assimilação ditada pelo oportunismo, resultando numa verdadeira colonização interna, a mais perigosa de todas elas151. Como já afirmara Frantz Fanon, “o opressor, pelo carácter global e terrível da sua autoridade, chega a impor ao autóctone novas maneiras de ver e, de uma forma singular, um juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir” (FANON, 1980, p. 42). Essa “imposição” é assimilada, deglutida, e a ideologia capitalista se inocula no pós-colonizado, condicionando seu comportamento e sua maneira de pensar. Tão criminosa mutilação foi uma forma da qual os poderes hegemônicos exógenos se serviram para reduzir ainda mais a autenticidade, o próprio” de cada cultura, de cada grupo étnico: despossuindo-os de seus próprios valores, de seus bens simbólicos, de seus hábitos característicos para, esvaziando-os, preenchêlos e satisfazê-los com os valores e produtos primeiro do mercado colonial, depois das transações do mundo industrial e moderno e desenvolvido (SEABROOK, 2001). Os movimentos de independência recuperaram, pelo menos em parte, as expressões culturais tradicionais, revalorizando-as e procurando devolver aos povos suas identidades. Se essas identidades culturais não foram totalmente extirpadas, elas foram grandemente reduzidas, postas em dúvida, enfraquecidas em suas raízes. Tem sido lento e cheio de percalços o processo de reinstauração das identidades fragmentadas, da auto-estima abalada e da luta contra a descrença nos próprios valores. No romance Kikia Matcho (1997)152, Filinto de Barros apresenta António Benaf, o sobrinho “doutor” que tinha estudado na Europa e, voltando para a terra natal, foi obrigado a reconhecer que seu título acadêmico não lhe trazia nenhuma vantagem. Depois de meses tentando a sorte, continuava desempregado e sem ver chegar a grande oportunidade de tornar-se rico e poderoso, fantasiosa ambição que o havia impelido a regressar. Obrigado a estar presente no enterro do tio, 151 A colonização interna ou autocolonização abrange um processo que acontece sobretudo dentro do sujeito quando ele assume cegamente os interesses (econômicos, políticos) de um poder de fora assim como sua forma de viver e de pensar (cf. p. ex. ALLERKAMP, 1991, p. 1). 152 Filinto de Barros nasceu a 28 de dezembro de 1942 em Bissau. Entrou para as fileiras do PAIGC em 1963, na Zona Zero, isto é, em Bissau. Durante as lutas de libertação, desenvolveu atividades em Bissau e em Lisboa, onde estudou engenharia e foi dirigente daquele partido na clandestinidade. Proclamada a independência, foi durante mais de uma década ativo participante dos destinos políticos do país: foi membro do Comité Organizador do Partido e do Comité do Sector Autónomo de Bissau; foi também Secretário Geral e Secretário de Estado da Presidência. Foi Embaixador da Guiné-Bissau em Portugal, Ministro de Informação e Cultura, Ministro dos Recursos Naturais e Indústria, Ministro da Justiça e Ministro das Finanças. Desde 1994, com as eleições multipartidárias e o início de uma nova era na história política do país, Filinto de Barros retirou-se da vida pública. Tem exercido em Bissau cargos de conselheiro técnico em entidades estrangeiras de cooperação. Autor de ensaios de ordem política e técnica, Filinto de Barros surpreendeu com a publicação do romance Kikia Matcho do qual tratarei alargadamente no capítulo 7. 136 enquanto muitos dos conhecidos apareciam apenas para dar as condolências e iam embora, Benaf tinha que permanecer toda a noite na vigília do velório, dever de família, tendo assim tempo para refletir sobre o mundo de contradições em que vivia metido: os anos de estudo na Europa haviam feito dele um materialista, “interessado nos sucessos pessoais” (ib., p. 21). Cínico e decidido a usar da bajulação e do oportunismo para conseguir um posto vantajoso, viveu na ilusão de que, sendo os diplomados ainda pouco numerosos no país, as oportunidades não lhe poderiam faltar. Mas estava amargando a decepção de não ter seus planos realizados: O lema é comer e deixar os outros comerem! [...] Desde que chegou das europas, que tem visto os adaptados a saírem-se muito bem, com boas casas, boas mulheres e segundo lhe disseram, com contas no estrangeiro. Era isso que ele pretendia e quanto antes melhor! (ib., p. 154). Benaf despreza as crenças e os rituais, se bem que não deixe de ser tomado pelo terror ante a ameaça clara da presença do kikia matcho, a coruja azíaga pousada em sua janela, e da cena de transe e incorporação a que assistiu, quando o defunto exigia, incorporado na pessoa da jovem Ofitchar, que fossem feitas cerimônias rituais para redimir os muitos pecados e erros cometidos durante as lutas libertárias, não só por ele, mas por tantos outros combatentes. A análise dos efeitos da colonização sobre o colonizado é atravessada por muitos conceitos como o do hibridismo cultural (Homi Bhabha), o da identidade rizomática das origens (Deleuze e Guattari), entre outras, das quais não cabe, no momento, tratar. Para o colonizado, o caminho para alcançar um equilíbrio passa por muitas curvas e desvios, tropeços e retrocessos até se chegar à nova personalidade do sujeito cultural africano, dialogando com seus dois “eu”, entre duas temporalidades: o presente africano-ocidental e um passado nativo que ainda se mantém vivo, apesar de todas as pressões (REIS, 1999, p. 33). Ambigüidades e incoerências fazem parte do processo, como Carlos Lopes ilustra em várias de suas estórias. Por exemplo, em “Indigenização”: O orador, conhecida figura pública, proprietário com o alvará de uma casa comercial, à qual juntou também, com pompa, a denominação de industrial, falava sem parar: é preciso mostrar ao Governo que não há progresso só porque se tem uma bandeira e os ministros são pretos. O verdadeiro poder é económico e esse obtém-se com a consolidação dos comerciantes da terra. [...] A economia continua nas mãos deles e nós ficamos a ver navios. [...] O orador era imparável na sua retórica, agora apelidada de novo nacionalismo africano, ou de luta pela independência económica. O interesse neste discurso é que ele é protagonizado por gente que só veste camisas de seda, passeia de Mercedes, tem os filhos a estudar nas melhores universidades ocidentais e vive em palácios decorados com gosto de novo-rico (LOPES, 1997, p. 5152). 137 Armando Gnisci, na sua obra Via della decolonizzazione europea (GNISCI, apud FONTES, 2003)153, argumentando que o “pós” não pode significar “após a colonização” como se essa já tivesse terminado, mostra-se particularmente empenhado em que a Europa se descolonize, abandone seu eurocentrismo e reconheça os crimes praticados. Para o comparatista italiano, como para tantos outros autores, o mundo atual está confrontado com uma contínua colonização, ampliada e agravada pela globalização neoliberal, controladora e determinante dos destinos individuais e das massas e do seu imaginário. Para avançar na via da descolonização um caminho seria através da literatura. Porque a literatura é um “diálogo com autores e com textos” – e esses textos são fontes de experiência e de mudanças, oferecendo oportunidade de formação, de educação. Para Gnisci, enfim, “la letteratura è produzione di realità” (ib.), constituindo a via de diálogo mais intenso entre as culturas, pois permite estabelecer uma poética e uma política de relações, a partir de uma determinada location, isto é, do lugar de onde se fala, de seu enunciado (ib.). Segundo o pensador ganês Kwame Anthony Appiah, o que ocorreu em grande parte da África foi devido ao fato de que o Estado que surge após a independência passou a apresentar os mesmos vícios e vivenciar as mesmas conjunturas do Estado colonial, em suma, perpetuando muitos aspectos carcomidos do sistema econômico colonial, além de serem escamoteadas ou ignoradas as diferenças étnicas, muitas vezes encobertas pelo discurso nacionalista no que diz respeito à junção dos povos no processo de independência. As conseqüências dessa perpetuação e a crença em uma igualdade étnica que de certa forma não existia (no caso da “Guiné” foi obra de anos de empenho e obstinação de Amílcar Cabral) foram claras: um Estado independente que nascia para gerar condições para o desenvolvimento e criação de infra-estrutura não poderia jamais apoiar-se nas bases de um Estado que visava de certo modo à manutenção da ordem hegemônica vigente. Aconteceu que os governantes pós-coloniais, afirma Appiah, assumindo as rédeas do poder resgatadas do domínio colonial, não souberam reconhecer os limites desse poder, “não repararam, no princípio, que elas não estavam ligadas a um bocal de freio” (APPIAH, 1997, p. 230). Anthony Appiah demonstra, em várias passagens de seu livro Na casa de meu pai, a inviabilidade da idéia européia de nação no contexto pós-colonial africano. A idéia de nação como resultado de um contrato social, como uma associação livre de cidadãos, para muitos autores uma criação do Iluminismo europeu, é inapropriada para o contexto africano, pois não se 153 Maria Aparecida Ribeiro Fontes agradece a Armando Gnisci por lhe ter cedido o manuscrito do livro mesmo antes da publicação, ocorrida somente em 2004. Como em geral nos artigos que cito a partir da rede eletrônica, não me é possível indicar as páginas consultadas. Gnisci já tinha desenvolvido reflexões semelhantes em outros trabalhos, como “A descolonização que não passa”, artigo que pode ser encontrado no site: http://www.unigranrio.com.br/letras/revista/textoarmando.html. 138 pode perder nunca de vista o fato dos Estados africanos terem surgido como conseqüência da política imperialista européia. A identidade cultural entre os grupos étnicos não foi levada em conta para a formação (arbitrária) das colônias, não tendo igualmente sido fundamental na manutenção dos novos países. Muito mais relevante foi o esforço para conseguir a unidade política dentro do espaço geográfico pré-traçado pela conjuntura imperial, apesar das heterogeneidades culturais. Aos novos países africanos, tal como se passou na América Latina, “tratava-se de vertebrar as nações que padeciam as indefinições próprias do império” (AINSA, 1986, p. 126). Como disse Eliana Reis, referindo-se às idéias de Anthony Appiah e de Wole Soyinka, não cabia estimular a criação de uma identidade nacional ou étnica dentro de ambientes caracterizados pela multiplicidade, postura “difícil ou mesmo imprudente”, haja visto o exacerbamento de emoções desencadeadas por rivalidades étnicas (dentro ou além fronteiras) que as políticas nacionalistas puseram e ainda põem em prática e que tantas e tão trágicas conseqüências têm trazido, acendendo rivalidades e etnocentrismos (REIS, 1999, p. 123-124). É justamente devido a certos excessos perpetrados em nome do bem comum nacional que Ernest Gellner chega mesmo a comparar o tribalismo com o nacionalismo que, por algum acaso, conseguiu, sob condições modernas, constituir-se como potência capaz de exercer o poder. Os movimentos nacionalistas inventam, diz Gellner, num processo de racionalização dos interesses de uma elite, idéias que a propaganda política usa para sensibilizar as massas, em nome de uma determinada identidade nacional a ser defendida ou a ser conquistada, mas, em caso de sucesso, é apenas uma minoria que tem acesso aos benefícios. Dentro da sua crítica veemente aos nacionalismos, aponta, já antes do advento das independências dos Estados africanos, para as conseqüências que de fato sempre se repetem: Em geral, tanto a intelligentsia quanto o proletariado são solicitados para um movimento nacional efetivo. Seus destinos divergem depois de conseguirem a independência nacional. Para os intelectuais, a independência significa uma vantagem imediata e enorme: empregos, e empregos muito bons… Para os do proletariado, por outro lado, a independência só pode, a curto prazo, trazer desilusões. As dificuldades não são eliminadas, elas provavelmente aumentam no afã de um desenvolvimento rápido e pelo fato que o governo nacional às vezes consegue ser mais duro do que um governo estrangeiro (GELLNER, 1964, p. 169; minha tradução). A concessão de vantagens políticas e econômicas às ex-colônias se torna para o “Centro” cada vez menos atraente, dada a mudança do foco de interesses e prioridades por parte dos países doadores e das organizações internacionais, privadas e públicas. Para os governantes “terceiromundistas”, o avanço econômico que vem sendo alcançado pelo menos em parte por alguns desses países, assim como a promessa de participação do círculo dos privilegiados, dos “importantes”, acrescendo-se a corrupção aberta ou escamoteada por meio de agrados, “parcerias”, “intercâmbios”, todos esses fatores têm levado a eles mesmos assumirem o papel 139 que antes cabia aos colonizadores, aos exploradores estrangeiros e invasores. Uma autocolonização, eficiente e nem sempre sutil, substitui a interferência estrangeira, impondo-se um modelo econômico importado de fora, que nada tem a ver com os reais interesses e necessidades da população, submetendo o povo às duras e opacas regras de consumo, de obrigações fiscais, de dependência completa do mercado externo, acenando-lhes com a ilusão dos benefícios e doações. Enquanto o povo é aniquilado ou integrado pelas avalanches sucessivas de progresso e modernização, diz Jeremy Seabrook, a camada dirigente encontra para si mesma uma outra saída desse impasse, formas complementares de adaptar-se às mudanças vindas de fora, por esse processo chamado de “autocolonização”. “Os objetos dessa nova fase da construção do império saúdam-no de braços abertos” (SEABROOK, 2001, p. 7). Enquanto o povo perde a sua identidade, a camada dirigente assume a identidade da elite dos países do “Centro”, com sua cultura de mercado, do dinheiro, do enriquecimento e de uma suposta liberdade de escolha. Autocolonização é definida por Jeremy Seabrook como “a imposição em seu próprio país de um modelo econômico importado de fora, um modelo que não corresponde aos interesses da maioria do povo” (ib., p. 8-9). As instituições das Nações Unidas, especialmente o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, os sucessivos acordos de comércio e liberalização do mercado são interpretados por Seabrook como os instrumentos pelos quais os governos e elites locais executam, em nível dos países periféricos, as estratégias do “Centro” que não lhes deixa “nenhuma chance a não ser como uma parte do sistema mundial” (ib., p. 8). A expansão global do sistema ocidental é executada através dos governos e elites locais. “O que o Ocidente aplicou antigamente pelo uso da força”, continua Seabrook, “os governantes dos países do Sul agora praticam voluntariamente contra seus próprios povos” (ib., p. 9)154. Michael Hardt especula sobre a mudança de atitude das antigas metrópoles face aos países africanos que deixaram de pautar-se pela dialética excludente e dicotômica do passado e adotaram comportamentos mais diferenciados, inclusive ambivalentes. E pergunta-se se essa mudança de comportamento marca uma atitude de respeito e de aceitação da liberação ou se se trata apenas de uma forma mais sutil de controle e dominação: Essa lógica não dialética de controle que, de um certo modo, substituiu o sistema dialético do colonialismo, eu chamaria de a lógica do Império; por “imperial” eu compreendo antes de tudo um outro tipo de relação entre o poder e as periferias. O fato colonial funciona segundo uma divisão binária central e a dialética do seu governo se organiza recobrindo ambos os lados dessa fronteira fixa. O fato imperial não repousa sobre uma divisão binária; suas fronteiras são sempre indefinidas, flexíveis e em expansão. A lógica imperial se apresenta primeiro como integrativa e impõe em seguida, em seu espaço linear e aberto, lógicas de diferenciação e de controle (HARDT, 2003; minha tradução). 154 Estou indicando a paginação, mesmo tratando-se de um site na internet: http://globalization.icaap. org. 140 Também na Guiné-Bissau foi levada a efeito uma forma de alienação eficiente e duradoura, subreptícia e enganadora, primeiramente em nome da “civilização” e, mais tarde, em nome da “modernidade”, do “progresso”, acenando-se com o “desenvolvimento sustentado”, a integração no Ocidente e a ilusão do “direito” quimericamente adquirido de participar, em uma relação simétrica, igualitária e justa, das benfeitorias da globalização. A literatura deu testemunho dessas ambivalências, pondo a nu, pelo viés da ficção ou da poesia, identidades fragmentadas, bifocalizadas, iludidas. Como escreveu o sul-africano Ezekiel Mphahlele, em seu livro The African Image (1974), referindo-se à colonização inglesa, “a língua do homem branco, a tecnologia que ele introduziu, as conveniências que resultam dessa tecnologia”, tudo isso é absorvido, provocando “a síndrome da classe média” (MPHAHLELE, apud REIS, 1999, p. 33), ppor parte da franja populacional mais permeável a internalizar os valores considerados mais apreciáveis e por isso merecedores de imitação. O poeta e jornalista Tony Tcheka, já na década de oitenta, se ressentia dessa situação de dependência. Em “Poesia brava”, orgulhosamente, recusa-se a aceitar meios-termos, concessões, paternalismos por parte dos assim considerados “primeiro-mundistas”: “Não seremos / o casco do velho galeão combatente que / [...] brigou sem saber / matou sem conhecer” (TCHEKA, 1996, p. 81)155. Quando a utopia se desvaneceu, a traição aos ideais revolucionários anuviou o entusiasmo do passado recente e, ao lado do descalabro dos governantes, a autocolonização ulcerou a dignidade e o amor próprio da classe dirigente. Os interesses alienígenas passaram a se fazer valer no país, à custa do bem-estar da população. A Tony Tcheka horroriza a visão da degradação do emigrante africano na antiga metrópole ou de todo aquele dependente da complacência – e do desprezo – dos privilegiados. O poema prossegue alistando recusas a perpetuar aquele estado de dependência: Não seremos o velho das grandes avenidas de cadillacs e benzes que estende a mão sem vintém ouve desdém e passa fome (ib.). 155 António Soares Lopes Júnior, conhecido pelo pseudônimo Tony Tcheka, nasceu em Bissau a 23 de dezembro de 1951. É jornalista desde 1974. Foi chefe de redação (1976) e depois por muitos anos diretor do Nô Pintcha, o primeiro jornal do país depois da independência; ali criou um suplemento cultural denominado Bambaram, que circulou de 1979 ao começo da década seguinte. Exerceu também os cargos de secretário executivo da UNAE (União Nacional de Artistas e Escritores) e de presidente da Associação de Jornalistas da Guiné-Bissau. Foi correspondente em Bissau do periódico português Público, de Lisboa, desde o seu primeiro número, e é um dos jornalistas colaboradores da Agência Lusa. Foi co-prefaciador de Mantenhas para quem luta! (1977); aparece com dezesseis poemas na Antologia poética da Guiné-Bissau (1990). Foi o organizador da coletânea O eco do pranto (1992), autor de Noites de insónia na terra adormecida (1996). A obra em prosa de Tony Tcheka (crônicas, ensaios, resenhas, produção jornalística) é abundante e se encontra dispersa na imprensa nacional e estrangeira, sobretudo portuguesa. Depois do conflito de 98/99, instalou-se em Lisboa, onde é redator chefe da revista África Lusófona. Sobre o autor, cf. AUGEL, 1998a, p. 87-114. 141 Na Guiné-Bissau, país que, principalmente depois da crise de 1998/99, não tem conseguido equilibrar-se nem política nem sócio-economicamente, as vozes que se alteiam, na ficção, na música ou no ensaio, estão preocupadas com os problemas locais urgentes e atuais e, se consideram a antiga metrópole como ponto de referência, é sobretudo para denunciar um outro tipo de perigosa dependência, isto é, o auto-colonialismo reinante. Além de cientistas sociais como Carlos Cardoso e Carlos Lopes, sobressai o romancista Abdulai Sila que, no momento atual de crise de confiança na governança, tem escrito em jornais uma série de artigos da maior relevância, combativos e denunciadores da falta de interesse pelo bem comum por parte da elite dirigente. Destaco, como exemplo, um trecho da “Apologia da barbaridade”, publicada em 20 de outubro de 2004 no semanário local Kansaré. Eis aqui apenas uma curta passagem que já pode dar uma idéia da diatribe do articulista: Mais de trinta anos depois de proclamada a independência, depois de uma experiência considerada exemplar de luta pela sua emancipação, seis meses depois das eleições legislativas que recolocaram o PAIGC novamente no poder, importa indagar-se sobre o destino e, sobretudo, os novos paradigmas da sociedade guineense. […] Depois de submetido a infindáveis sacrifícios, tão injustos como difíceis de entender, de facto mesmo o mais pessismista dos guineenses não podia admitir que, hoje e justamente pela mão do “partido libertador”, o país voltasse a enveredar por uma humilhante e vergonhosa fase de colonização versão digital. Uma colonização discreta, moderna, mas muito violenta; uma colonização que, tal como no passado, vai encher os bolsos e as contas bancárias de alguns, mas retirará a última esperança de uma vida decente e honrada a muitos cidadãos (SILA, 20.10.2004). Tal afirmação vai justamente ao encontro do posicionamento do sul-africano Jeremy Seabrook (2001), já tantas vezes citado, que, entre muitos outros, considera que o colonialismo está sendo de novo re-exportado, de modo mais eficaz e sistemático do que no século XIX, aos países africanos, asiáticos e latino-americanos, camuflado em “pacotes de reforma econômica”, diferente da versão clássica do colonialismo, tal como foi praticado no século XIX, que envolvia o aniquilamento e negava a identidade do colonizado. O neocolonialismo alimentou e agravou essa tendência, expandindo-se subrepticiamente através de uma assimilação dos valores alienígenas, encravando-se nos indivíduos e reforçando a dependência dos Estados satélites. Essa expansão hoje em dia tem o nome de globalização e suas conseqüências estendem-se por toda parte. No seu ensaio sobre “as metamorfoses do colonialismo”, Jeremy Seabrook analisa a autocolonização como um processo. Se, no tempo do colonialismo, os valores, as culturas, as línguas e as tradições dos indígenas foram inferiorizados, diminuídos, ridicularizados e proibidos, a globalização representa uma nova onda de repressão a tudo que não corresponde às linhas mestras e às finalidades da “nova ordem mundial”, representado pelo lucro, pelo processo de acumulação e de uniformização. Uma tal transformação, rápida e violenta, pretende “a pacificação da população refractária do país” (ib.), tanto pela agressão capitalista quanto pela 142 difusão de novos bens de consumo e a auratização de uma imagem criada refletindo humanidade, solidariedade e anunciando uma nova ordem, permitindo o acesso de todos à felicidade do mundo global. Tudo isso tanto fazia parte da missão civilizatória do colonialismo quanto hoje em dia da globalização, e tudo está apontando “numa só direção: a extirpação de todas as anteriores maneiras de satisfazer as necessidades da vida e sua substituição pelo mercado” (ib.). São muitos os autores que tratam do neo e do autocolonialismo como estando hoje em dia estreitamente ligados ao fenômeno da globalização. Néstor García Canclini analisa largamente com os efeitos da globalização sobretudo nos países latino-americanos, ressaltando a influência exercida pelos Estados Unidos, responsável por grande parte das mudanças socioculturais ocorridas em nossos países e que, através dos modernos meios de comunicação de massas, despertaram novos hábitos (ou desejos e sonhos) de consumo e novos comportamentos. Para Canclini, se a globalização trouxe uma homogenização, descarrilhou também um fracionamento e um novo reordenamento das diferenças e das desigualdades (CANCLINI, 1995, p. 13 e ss.). Essa visão crítica dos efeitos da mundialização como conseqüência (ou prolongamento) do neocolonismo não ignora os diversos aspectos positivos do mesmo processo. A globalização está levando, como foi dito, a um alargamento dos horizontes de informação e comunicação, ao mesmo tempo tornando irrelevante e até ameaçando de extinção partes das tradições, inclusive as línguas não codificadas em escrita, mas trouxe também, por outro lado, novas facilidades de revitalização dos elementos locais. Nem sempre teve o efeito de abafar os particularismos e tornar irrelevantes ou desqualificar o ambiente imediato de vivência das pessoas e de grupos humanos; o acesso nos meios urbanos à internet e as facilidades de informação e de comunicação tornaram local o global e global o local156. Constata-se, em muitas situações concretas, uma nova consciência dos particularismos, surgem novos e se revigoram velhos movimentos identitários que, ao menos potencialmente, levam a uma revitalização de identidades. Pierre Bourdieu, referindo-se às classes sociais e à classificação hierárquica em indivíduos subordinados e indivíduos superiores, chamou a atenção para uma duplicidade importante: a hierarquia existe em dois níveis: uma vez na realidade e uma outra vez na mente humana, encravada na cabeça das pessoas. Mesmo se classes e hierarquias deixassem de existir, mesmo assim voltariam bem depressa a serem realidade porque os indivíduos cujas cabeças elas continuam a povoar, sempre de novo as projetariam na realidade (BOURDIEU, 1992, p. 20). 156 Os diferentes sites que circulam na rede eletrônica sobre a Guiné-Bissau constituem uma plataforma de diálogo e de formação de opinião, sobretudo para os milhares de guineenses que vivem fora do país, mas não só. Destaco aquele assinado por Fernando Casimiro, já referido no terceiro capítulo, e que se consolidou como um forum de trocas e espaço para vários colaboradores e onde se propagam e defendem valores que se querem especificamente guineenses. 143 Mas não se pode reduzir a um só aspecto o autocolonialismo. No recém-criado Estado guineense, depois que “a noite colonial foi vencida”, como exclama Tony Tcheka em “Abusivamente” (Mantenhas para quem luta!, 1977, p. 29), não foi possível fazer reviver as expressões culturais tradicionais, pois o orgulho da conquista da independência levou também em parte à negação do que ficou sendo considerado passado e retrógrado. A alienação colonial levava a uma despersonalização a partir da profanação das culturas e do território e talvez se tenha aqui um dos seus efeitos mais dramáticos: a orientação socialista dos discursos nacionais hiperbolizava o progresso, priorizando a modernização do país. Assim, os eflúvios da mentalidade colonialista continuaram a surtir efeito, escorregando-se para um neocolonialismo mimetizante e que impunha “máscaras brancas” (FANON, 1952) alienantes, dobrando-se ao fascínio das “opressivas tecnologias assimilacionistas” (BHABHA, 1998, p. 26). No afã da modernização e na vaidade de equiparar-se à metrópole (ou a um outro centro econômico ou ideológico), ambicionou-se um rápido desenvolvimento industrial, apesar da falta de infraestruturas, em detrimento de um direcionamento de recursos para a agricultura, base econômica e cultural da grande maioria da população (PADOVANI, 1991, p. 3). Na Guiné-Bissau, esse impulso de grandeza sem medida resultou na queda do primeiro presidente (Luís Cabral) e na implantação, por golpe, de um “movimento reajustador” (cf. cap. 2.2.5). No elenco das 36 crônicas ou estórias de Carlos Lopes, uma delas ressalta justamente essa mentalidade. Em “Cerveja em barda” (LOPES, 1997, p. 43), o escritor, pela tangente da ironia, relembra o prestígio da cerveja guineense de nome Cicer, fabricada no país, “um dos legados mais importantes do fustigado período colonial” (ib.). Apesar da origem, o povo orgulhava-se daquela fabricação, pois se tratava de “cerveja produzida por um país revolucionário, com uma fábrica moderna, dirigida, pela primeira vez, por guineenses!” (ib., p. 45). No entusiasmo e na crença de que a modernização finalmente catapultaria o país para os píncaros do desenvolvimento, os projetos monumentais se multiplicaram: instalou-se uma fábrica de automóveis Citroën157, foi construída uma enorme instalação para o descascamento do arroz e outros produtos agrícolas e De repente, já não eram só os produtos da Cicer que nos faziam orgulhosos, era uma série de outras coisas que contribuíram para que a nossa dívida externa passasse de zero a três vezes o produto nacional bruto. Uma dívida também ela revolucionária, já que só há três ou quatro países no mundo que se atreveram a chegar tão alto (ib.). A autocolonização vai ainda mais longe que o neocolonialismo imposto pelos governos periféricos a seu próprio povo. Segundo Andrea ALLERKAMP (1991), a colonização interna refere-se a processos dentro do próprio sujeito que, como um território, é invadido por elementos 157 Sobre as tentativas de industrialização, especialmente a fábrica Citroën, cf. PADOVANI, 1991. 144 de fora, explorado e submetido, colonizado enfim158. As conquistas e ocupações de áreas geográficas estendem-se até as latitudes do subconsciente, do eu historicamente colonizado. Os indivíduos dos Estados “periféricos” – e não apenas as instâncias econômicas e políticas – assumem os valores que são ditados pelo “Centro”. Foi injetada como indispensável uma nova socialização e alimentada a ambição de fazer parte dos círculos privilegiados, o que se manifesta por posturas na base do consumo de bens modernos, alienígenas e em grande parte inaccessíveis, impossíveis de serem adquiridos pelas camadas mais largas das populações, desencadeando-se nas esferas mais favorecidas ondas de consumismo, de afetado arremedo por parte de uns poucos e conseqüente insatisfação da maioria. É a “cultura do consumo” de que fala Jeremy Seabrook. Paralelamente, deu-se o processo do esquecimento construído, planejado, da própria história, da própria tradição. Como Albert MEMMI (1966) expressou, as estratégias colonialistas condenaram o colonizado a perder progressivamente a memória, esfumando-se nas brumas do silêncio suas ligações com a tradição. Seu posicionamento, muito anterior, é semelhante ao de Seabrook: o povo é envolvido (mas não integrado) pelas avalanches sucessivas de progresso e de modernização, a camada dirigente encontra para si mesma formas complementares de aproveitar-se das seduções e ofertas vindas de fora. Como satirizou Félix Sigá159, no poema “Manás”: Compraram compraram da China os fatos os vasos e mais da França os postiços as sapatilhas de Portugal outros calçados da América os jeans [...] Já têm bacalhau grão-de-bico e azeite maçãs uvas e figos Receberam de aviões vinhos e whiskies [...] Mas compraram compraram [...] crentes e ateus cristãos e muçulmanos todos serventes e o Presidente entraram no feriado (SIGÁ, 1996, p. 109-110). Muitos foram os autores africanos que apresentaram na ficção as conseqüências ou efeitos da educação européia nas sociedades autóctones. O papel da moderna educação que as escolas, sobretudo, incutiam nos jovens africanos, ou depois, ao irem estudar no exterior, tem também o sabor amargo da dependência e da submissão a uma ordem que não lhes é (ou era) própria, resultando em dramas individuais muito bem explorados na textura literária. Na linha do autor senegalês Cheik Hamidou Kane, com seu conhecido Aventure ambiguë (1961), um dos 158 Gayatri Spivak enfoca diferentemente a colonização interna. Para seria “o modo como os países metropolitanos discriminam em seu meio os grupos não emancipados” (SPIVAK, 1994, p. 192). 159 Félix Sigá exerce atividades no jornalismo, sobretudo na rádio e na televisão, com programas culturais. Autor de um livro de poemas, Arqueólogo da Calçada (1996). Sobre Sigá, cf. nota 261 e o capítulo 6.2.2. 145 clássicos da literatura africana, e de tantos outros, Filinto de Barros retrata o dilaceramento interno de um desses africanos divididos e inadaptados através da personagem António Benaf, no romance Kikia Matcho (1997). António Benaf, o sobrinho “doutor” que tinha voltado por oportunismo e não por vontade própria para seu país, não consegue reintegrar-se nem fazer a síntese entre os valores tradicionais e os ocidentais. Mostra-se arrependido de ter retornado ao país natal e somente com dificuldade aceita o papel de “sobrinho do falecido”; enfada-o ter que conviver com as pessoas simples que constituem o ambiente em que viveu o tio, incapaz de enfrentar a realidade insossa e medíocre que o aguardava e que ele desprezava, secretamente ansioso para que terminassem as cerimônias fúnebres, para se livrar daquela gentalha. “Anos de vivência na Europa [...] haviam-no transformado num ser desumano, num materialista interessado nos sucessos pessoais, saudoso das grandes cidades de luzes por todos os lados, dos automóveis, dos gigantes de betão armado” (BARROS, 1997, p. 21). Os anos na Europa – de passagem alude aos estudos em Sófia, na Bulgária (ib., p. 51) – tornaram-no completamente estranho e insensível aos valores e às tradições do seu grupo étnico: A África tinha-se esfumado do seu ser. Voltou porque era africano e intelectual, portanto podia ser ministro ou presidente, mas do continente não conseguia reter nem compreender a profundidade da sua mística. Fixou o olhar no caixão e tentou imaginar como foi possível que um semi-analfabeto pudesse ter sentido a necessidade de lutar por algo transcendental (ib., p. 21). Uma tal atitude de autocolonização é produto do neocolonialismo que pressupõe uma dependência moral, psicológica, que torna o indivíduo incapaz de identificar mesmo o que está por detrás desse empobrecimento identitário e cultural. O sobrinho sofreu uma aculturação voluntária, o “doméstico” e o “familiar” foram sendo perdidos, esquecidos, substituídos, mas essa perda não levou entretanto a um ganho da parte de Benaf, deixando-o à margem da sociedade envolvente, inadaptado e insatisfeito. Em Eterna Paixão, Abdulai Sila apresenta Ruth, a esposa africana do afro-americano Daniel, como exemplo da personagem que se embriaga pelos requisitos da modernidade e da “civilização”. Ruth distancia-se dos costumes de origem, preferindo copiar o que viu e aprendeu durante os estudos no exterior: os móveis de sua casa são importados, o filho vai estudar na Europa desde pequeno, seu carro é um Volvo, símbolo do progresso e do poder160, em tudo seguindo as pisadas dos “Altos Dignatários da Nação” (SILA, 1994, p. 66). Na vida profissional, 160 O Volvo era o carro de prestígio na época, devido à ajuda sueca ao desenvolvimento do país. Falava-se da “volvocracia”, que designava o regime de privilégios de que gozavam os membros do governo e do partido único. Cf. também notas 308 e 326. 146 assina contratos duvidosos com firmas estrangeiras, recebendo propinas, mostra-se convencida de que a “África, para se desenvolver, precisava de novas tecnologias”, e para isso ser realizado, “vamos meter aqui mais máquinas, mais tecnologia, moderna tecnologia” (ib., p. 28). Premiada, por isso mesmo, com “sucessivas promoções”, passa a comportar-se com “arrogância, agressividade”, chocando pela “intolerância dos seus actos” (ib., p. 67). Odete Semedo, pela via da efabulação, do humor e da paródia, diverte-se, e diverte os leitores com “Kunfentu, stória da boa nova”161, conto em que esboça, com traços precisos, o ambiente monótono de uma localidade do interior onde nada acontecia até que a chegada de um “filho da terra”, vindo de viagens, trazendo “novas dos quatro cantos do mundo”, abalou a tranqüilidade do lugarejo, “mexeu com as cabeças, com o povo, com a população e, logo logo, todos começaram a pensar em como fazer para serem iguais aos dos quatro cantos do mundo” (SEMEDO, 2000a, p. 109). A autora ironiza com primor os efeitos da implantação de novos costumes e a procura de expressões correspondentes dessas “modernidades” no seio da sociedade tradicional: numa localidade imaginária de nome Nbetenne, os nbetennianos discutem sobre a nbetennecracia, ocupando-se também com novidades tais como a desenvoltura, o desenvolvimento e o developemento, decidindo-se a promover democraticamente a eleição do régulo. Essa novidade pouco africana se transmuda de repente numa abota – a moderna e desconhecida modalidade de escolha pelo voto (con)fundiu-se com o familiar costume local de “fazer um peditório, uma cotização ou subscrição” (segundo o dicionarista Luigi SCANTAMBURLO, 2002, p. 49), que sofreu um jocoso alargamento de significação. A partir da encenação das atividades que transformaram a vida daqueles pacatos cidadãos, Odete Semedo parodia a campanha eleitoral, o desconhecimento da complicada ação democrática de escolha entre vários candidatos. Um dos pontos altos da história é o diálogo hilariante entre os “mesantes” e duas velhotas, completamente desnorteadas: – Qual destes é o Djoku? É nele que eu quero dar a minha abota, mas são tão parecidos [...]. – Tia, tem paciência, a tia não pode, é secreto – diziam os mesantes quase em coro, e perante o espanto do responsável máximo; só a tia e Deus é que podem saber em quem... – Ai sim? – dizia a tia [...] então mostra-me o retrato do Djoku que lá dentro só Deus e eu é que saberemos que foi nele que dei a minha abota (SEMEDO, 2000a, p. 115). Com essa storia paródica, Odete Semedo (e este não é o único exemplo entre os seus textos curtos) hiperboliza pelo viés do riso uma situação de fato, comum ainda nas aldeias, da má 161 Odete Semedo, em suas Histórias e passadas que ouvi contar I e II, faz uma fusão entre o moderno e o tradicional, entre o inventado e o rememorado, tendo o grande mérito de contribuir para preservar e valorizar com seu trabalho um campo literário – a oratura – cada vez mais esquecido pelas novas gerações, menosprezado como uma arte menor, algo do passado e portanto ultrapassado. Os contos, publicados pelo INEP em Bissau, estão reunidos em dois volumes. Cf. a edição original (2000a, 2000b). A obra teve uma nova edição em um só volume em Viana do Castelo (2003a). Cf. a bibliografia no final. 147 absorção de idéias vindas de fora e, por isso mesmo, consideradas positivamente como melhores. Traz ao mesmo tempo, para o palco textual, todo um cenário verídico da vida cotidiana das pequenas comunidades rurais. O termo Kunfentu, parte do título da estória, é estranho aos nossos ouvidos lusófonos, um termo crioulo que significa ventania, vento forte e frio, sendo simplesmente derivado de “com [muito] vento”. Os ventos da modernidade sopram às vezes de uma forma violenta, desorganizando as estruturas tradicionais. O régulo não é geralmente eleito, ele é investido por direito de linhagem. A abota é uma instituição tradicional, uma quotização entre os membros de uma comunidade, doação ou contribuição para algo que deve servir ao bem comum. Nas mandjuandadi, por exemplo, dá-se a abota como uma mensalidade, para as despesas em comum como uma quota extra quando há alguma festa, cerimônia ou funeral162. No mesmo teor, também recorrendo à comicidade, Carlos Lopes transporta os leitores para a tabanka163 de Ponate, onde “a vida sempre se manteve igual”, até que um dos filhos do lugar, que vivia na capital, voltou à casa dos pais para convencer a família e os demais aldeões a votar num certo candidato. Diante da explicação do filho de que se tratava de um “voto democrático, universal e secreto”, Domingos queria saber qual era a diferença com o outro voto em que lhe diziam em quem votar e que servia para não pagar imposto. [...] Domingos finalmente decidiu aceitar o que o filho lhe tinha pedido. Sábado [assim se chamava o rapaz] vinha da cidade e via-se que tinha ido à escola. Vestia já como os tugas. Domingos prometeu mobilizar a tabanka [...] convocou a assembleia [...] anunciou que ia haver um grupo de gente que viria a Ponate para que eles dissessem que governo é que queriam. Que agora era assim, eles podiam escolher e que havia muitos governos que queriam formar partidos. E ditou a escolha para que ficasse mais fácil. Todos deveriam votar no democrático, universal e secreto (LOPES, 1997, p. 64-65). Os episódios visam ao desmascaramento do papagueamento e do mimetismo próprio ao neocolonizado, acrítico e despreparado politicamente, já denunciado por Frantz Fanon e por Amílcar Cabral, entre muitos outros. Homi Bhabha, referindo-se à “economia conflituosa do discurso colonial”, destaca a ação desconstrutiva da mímica. O discurso da mímica, segundo aquele crítico, “é construído em torno de uma ambivalência; para ser eficaz, a mímica deve produzir continuamente seu deslizamento, seu excesso, sua diferença” (BHABHA, 1998, p. 130). Temos acompanhado esses excessos causadores do riso nos exemplos dados. No presente, mudados os tempos, a estratégia neocolonialista surtiu e vem surtindo efeitos duradouros e desastrosos: as novas nações africanas, recém-criadas graças às heróicas e impressionantes lutas pela libertação do jugo estrangeiro, caíram numa nova dependência, econômica e moral, psicológica. A massa popular continua incapaz de identificar o que está por detrás dessa perda de autonomia, desse empobrecimento identitário, cultural e econômico. 162 163 Sobre as mandjuandadi, cf. SEMEDO, 1996c. 1996d. Ou tabanca. Temos visto como é grande a flutuação na grafia das palavras da língua guineense. 148 Continua, pois, lícito e atual falar-se de neocolonialismo, de colonialismo interno, de dependência acrítica e da ganância “primeiro-mundista” com seus tentáculos globalizantes. Mas não é possível deixar de pôr em relevo o anticolonialismo, suas muitas faces e seus ainda pálidos mas promissores efeitos. 4.5 A reação anticolonialista Edward Said, em Cultura e Imperialismo (1999), ressalta que “em quase todos os lugares do mundo não europeu a chegada do homem branco gerou algum tipo de resistência”, tendo sido justamente “a reação ao domínio ocidental que culminou no grande movimento de descolonização em todo o Terceiro Mundo” (ib., p. 12): O contacto imperial nunca consistiu na relação entre um ativo intruso ocidental contra um nativo não ocidental inerte ou passivo; sempre houve algum tipo de resistência ativa e, na maioria esmagadora dos casos, essa resistência acabou preponderando (ib.). Uma das resistências foi sempre a não assimilação, a recusa a renunciar ao modo de vida anterior à colonização. Escritores como Camara Laye, da República da Guiné, o nigeriano Wole Soyinka ou Anthony Appiah, de Gana, mostram em suas obras de caráter memorialístico como, apesar da proximidade de convivência com o colonizador, apesar do biculturalismo em que foram educados, não se distanciaram de suas raízes africanas: “a experiência da vasta maioria desses cidadãos das colônias européias na África foi a de uma penetração essencialmente superficial por parte do colonizador” (APPIAH, 1997, p. 25). Prosseguindo, Appiah afirma que Insistir na alienação dos súditos coloniais de educação ocidental, em sua incapacidade de apreciar e valorizar suas próprias tradições, é correr o risco de confundir o poder dessa experiência primária com o vigor de muitas formas de resistência cultural ao colonialismo (ib.). Parece-me importante observar uma tal postura que apenas registro sem juízo de valor, bem distante daquela de Seabrook, por exemplo, não se podendo deixar de levar em conta o lugar a partir do qual Appiah fala, sua inscrição nos dois mundos sociais, africano e “ocidental”; trata-se de um intelectual oriundo de uma família de elite, tanto étnica quanto cultural e política, para quem os laços com a Europa estão estreitados tanto pela educação e pela religião, como pelos muitos casamentos multiétnicos, a começar pela origem inglesa materna. Sua visão e sua experiência não podem ser generalizadas e certamente houve outros tipos de interação bem menos simétricos e bem mais traumáticos, até o extremo dos muitos casos de genocídio que ensombreceram a época colonial. 149 Appiah, como muitos pensadores africanos, recusa-se a reduzir a definição da africanidade à fidelidade aos costumes e crenças tradicionais, como se o “moderno” não se coadunasse ao esquema mental pré-fabricado da “invenção da África” que, tal como o “Orientalismo”, é um reflexo da atitude, da mentalidade ainda colonizada de pensadores ocidentais. “Podemos reconhecer que a verdade não é propriedade de nenhuma cultura; devemos apoderar-nos das verdades de que precisamos onde quer que as encontremos” – é novamente a voz de Anthony Appiah que faço ressoar aqui, mas que encontra eco em muitos espaços. Appiah continua sua linha de reflexão, afirmando ser necessário “saber se as verdades que retiramos do Ocidente serão ou não dignas de crédito”, e isso vai depender “de como consigamos administrar as relações entre nossa herança conceitual e as idéias que correm a nosso encontro, vindas de outros mundos” (APPIAH, ib., p. 21). No que concerne à Guiné-Bissau, ressalto o pensamento de Amílcar Cabral, o grande nome das lutas da independência da Guiné e de Cabo Verde, para quem a experiência da repressão fascista, durante seus estudos universitários em Portugal, constituiu o motor de sua politização e o levou a juntar-se a outros estudantes africanos que mais tarde se destacaram igualmente na luta anticolonial, empenhados em pugnar a favor de um espaço de dignidade, recusado até então ao africano. E, ao mesmo tempo em que se batiam pela "reafricanização dos espíritos", pois a lavagem cerebral perpetrada pela máquina colonialista amortecia as mentes, negava a afirmação da personalidade e da dignidade humanas, também peleavam pela modernização das instituições e pela entrada de seus países no mundo moderno. Amílcar Cabral, no seu estilo didático, ao dirigir-se aos militantes do partido e aos guerrilheiros, procurava conscientizá-los, mostrando-lhes que era necessário ultrapassar certa dependência da tradição. A citação é extensa, mas considero o texto sumamente interessante, sobretudo ao levar-se em conta o locus da enunciação e seus receptores, observando o cuidado com que Cabral, sem renunciar à sua tarefa de mentor e formador de uma nova consciência revolucionária, abordava delicadas questões, respeitando o saber local164: Há muita gente que pensa que ser africano é saber sentar-se no chão e comer com a mão. Sim, isso é certo africano, mas todos os povos no Mundo se sentaram já no chão e comeram com a mão. [...] Ninguém pense que ser africano é ter chifres pegados ao peito, é ter mesinho165 na cintura. Esses são os indivíduos que ainda não compreenderam bem qual a relação que existe entre o homem e a natureza. [...] Temos que ter coragem para dizer isso claramente. Ninguém pense que a cultura de África, o que é verdadeiramente africano e que, portanto, temos de conservar para toda a vida, para sermos africanos, é a sua fraqueza diante da natureza. Qualquer povo do Mundo, em qualquer Estado que esteja, já passou por essas fraquezas, ou há-de passar. Nós não 164 165 Esses “discursos”, muito informais, eram pronunciados “no mato”, isto é, nos acampamentos da guerrilha, para combatentes em geral iletrados, aldeões agricultores, praticantes das religiões tradicionais. Mas “mato” também é o “mato sagrado”, onde habitam os irans, as divindades sagradas de muitas etnias guineenses. Mesinho significa medicamento, remédio, mas também amuleto e é nessa acepção que Cabral aqui emprega o termo. 150 podemos convencer-nos de que ser africano é pensar que o relâmpago é a fúria de Deus [...]. A nossa luta é baseada na nossa cultura, porque a cultura é fruto da história e ela é uma força. Mas a nossa cultura é cheia de fraqueza diante da natureza. É preciso saber isso. [...] Muitos de nós acreditaram que não nos devíamos instalar em certos matos porque está lá o “irã”. Mas hoje, graças aos muitos “irãs” da nossa terra, a nossa gente entendeu, e o “irã” também, que o mato é do homem, e ninguém mais tem medo do mato. O nosso Partido, no plano cultural, procurou tirar o maior efeito possível, o maior rendimento possível da nossa realidade cultural. Quer não proibindo aquilo que é possível não proibir sem prejudicar a luta, quer criando no espírito dos camaradas novas ideias, nova maneira de ver a realidade (CABRAL, A.)166. As “novas idéias” estão diretamente ligadas ao progresso e ao desenvolvimento tecnológico, à inserção da sociedade guineense na modernidade, definida por Appiah como “formação intelectual e social característica do mundo industrializado” (APPIAH, 1997, p. 155), aspiração que não tem que passar (nem deve) pela polarização com o tradicional mas que exige uma maior ou menor interação com o Ocidente, com toda sua carga de esperanças e de ameaças. O grande problema trazido pela modernização tem sido a enorme discrepância entre o estilo de vida dos representantes dos novos estados africanos e o de seus representados. No dizer de Boaventura de Sousa Santos, houve “uma assimilação mimética de padrões [...] dos Estados e das sociedades políticas (em sentido gramsciano) dos países centrais”, sem que tivesse havido uma interiorização da parte dos agentes políticos (SANTOS, 1999, p. 69). O resultado foi o descalabro e o deslizamento para a corrupção, o clientelismo, a autopromoção e o autoenriquecimento, mazelas que Cabral previu mas não vivenciou. As profundas mudanças e o descarrilhamento político que ocorreram na Guiné-Bissau, espelho do que está acontecendo em quase todo o continente desde a descolonização, proporcionaram (ou melhor: até provocaram) as mais expressivas obras literárias do país. Em toda a África, intelectuais opõem-se, preocupados, à situação neocolonial. São muitos os filósofos da cultura, cientistas sociais e políticos, teóricos da descolonização como foram denominados por Appiah, que, em suas publicações, denunciam o status quo e se batem por uma transformação, incluindo-se uma mudança mental e não apenas política, tanto da parte dos africanos como dos estrangeiros que se ocupam com a África. Chamam também a atenção para o perigo de generalizações indiferenciadas, condenando tanto o ressentimento acerbo contra as novas feições do imperialismo, supervalorizando a penetração branca no continente, quanto o contrário, a subestima das deficiências da autoconfiança que escorregam para a alienação autocolonizadora. Entre muitos autores, lembro apenas alguns, sem entrar em pormenores quanto ao leque variado de suas abordagens: o ganense Kwame Anthony Appiah167, Paulin 166 167 Cf. o já referido site disponível na internet: http://didinho.no.sapo.pt. A citação foi tirada do discurso que tem como título “Partir da realidade da nossa terra” e está no parágrafo sobre a “realidade cultural”. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura, 1997. Appiah é um dos pensadores africanos mais conhecidos no Brasil. 151 J. Hountondji 168 , da Costa do Marfim; Ngugi wa Thiong’o, que escreve em seu idioma materno, o gikuyo, a língua do maior grupo étnico de Quênia169, ou ainda o congolês Valentin Yves Mudimbe170. Acrescento ainda a nigeriana Sophie B. Oluwole171, o sul-africano Mogobe B. Ramose172, o moçambicano Elísio Macamo173 e também Jeremy Seabrook, ao qual devo muitas das idéias para este capítulo, um dos mais brilhantes intelectuais sul-africanos. Axelle Kabou, em seu provocante livro Et si l'Afrique refusait le développement (1991), discute o uso do passado colonial como pretexto para não se falar dos males “cometidos em casa” pelos maus governos, na África. Seu livro teve grande repercussão na década de noventa, tendo desencadeado muita indignação. Segundo a autora camaronesa, os africanos alfabetizados foram condicionados a “perceber a tradição e a modernidade como valores conflitantes. [...] Aplicada à África de hoje em dia, a noção de alienação cultural é um mito tendo como função instaurar um clima de resistência à penetração de idéias novas nas mentalidades” (KABOU, 1991, p. 94). Se os povos africanos querem participar do circuito mundial de trocas, torna-se indispensável a modernização, diz ela. Esse dilema foi tratado por vários outros autores, como os já aqui várias vezes citados Paulin J. Hountondji e Anthony Appiah ou ainda o apaixonado Ngugi wa Thiong’o. 168 Entre suas publicações, destacam-se Combats pour le sens: Un itinéraire africain. Academic Literature, 1997; Les savoirs endogènes. Pistes pour une recherche. Paris, Karthala, 1994 / Les savoirs endogènes: pistes pour une recherche, édité par le CODESRIA, Dakar, 1994; edição em inglês: Endogenous Knowledge: Research Trails; como organizador: Sur la philosophie africaine. Critique de l'ethnophilosophie. Paris: François Maspero, 1997. 169 Além de obras de ficção e um depoimento de seu tempo como preso político, destacam-se Decolonising the mind. The politics of language in African literature (1986), onde defende a posição que os autores africanos devem expressar-se nas suas línguas nativas, pois só assim podem atingir as populações africanas. Em Homecoming: Essays on African and Caribbean Literature, Culture, and Politics (1972) traz uma série de ensaios, todos orientados por essa postura descolonizadora. Appiah comenta que a postura de Ngugi despertou também uma reação negativa: “ao escrever em sua língua materna, o gikuyu, levou muita gente em seu próprio país a vê-lo – erroneamente, em minha opinião – como uma espécie de imperialista gikuyu (o que não é uma questão nada trivial no contexto das relações interétnicas no Quênia)” Cf. APPIAH, 1997, p. 20. 170 Mudimbe é um conceituado pensador africano, com mais de uma vintena de obras, das quais as mais discutidas são The invention of Africa. Gnosis, philosophy and the order of knowledge (1988) e The ideia of Africa (1994), além de Diaspora and Immigration.(1999). Como Hountondji e outros, critica o etnocentrismo dos etnólogos ocidentais, responsáveis por uma “invenção” reducionista e uma idéia monolítica do continente; a lógica etnológica teria servido para “patologizar os africanos” e para dominá-los. 171 Autora de uma firme defesa das crenças tradicionais na obra Witchcraft, Reincarnation and the God-Head. Issues in African Philosophy. Lagos: Excel Publishers, 1992. Critica a visão depreciativa européia da religiosidade africana, mostrando como esses elementos (magia, reincarnação, crença nos espíritos e na ligação com os mortos) estão estreitamente ligados a sentimentos religiosos, constituindo uma das bases das estruturas sociais dos povos africanos). 172 Sua principal publicação, African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999, foi comentada em An African perspective on justice and race (disponível na internet: http://them.polylog.org/3/frm-en.htm). O conceito umbuntu de justiça, baseado no equilíbrio e na harmonia, foi desequilibrado pela desumana conquista colonial. Colonização e racismo, negando esse princípio fundamental de igualdade humana, são a face oposta da filosofia umbuntu. 173 Publicou Was ist Africa? Zur Geschichte und Kultursoziologie eines modernen Konstrukts. Berlin: Duncker & Humblot, 1999 (O que é a África? Sobre a história e a sociologia da cultura de uma idéia construída) Macamo é professor em Bayreuth, na Alemanha, e o livro é o resultado de sua tese de doutoramento. 152 Abdulai Sila, em Eterna paixão, pela voz de Daniel, o afro-americano por nascimento e africano por adoção que emigrara para a “terra dos nossos avós” (SILA, 1994, p. 34), expressa a decepção que tantos experimentam ao constatarem que os ideais pregados pelas revoluções libertadoras não eram seguidos: Lembrou-se de Mark, das suas ideias apaixonadas sobre África, da sua convicção no sentido de justiça e de solidariedade do Homem africano. Sentindo desmoronar todo aquele edifício, procurou forças para [...] confessar-lhe tudo o que sentia. Iria contar da África que estava descobrindo. Daquela com cara cruel, que reprimia barbaramente; daquela com mãos sanguinárias, que assassinava nas prisões; da outra, de olhos vedados, perdida na corrupção (ib., p. 71). Desde as últimas décadas do século XX que se vem assistindo a uma tomada de posição cada vez mais clara e mais diferenciada por parte da intelligentsia dos assim chamados “periféricos”, povos saídos da colonização. Com a expansão dos estudos sociais e antropológicos, e mais recentemente dos estudos culturais, vêm afluindo ao palco acadêmico novos atores, africanos, asiáticos, árabes, latino-americanos, contribuindo com novos aportes e novas perspectivas, desalojando o eurocentrismo e suas conseqüências. As teorias pós-coloniais, dentro desses novos horizontes, têm tido uma abrangência cada vez maior. Paulin J. Hountondji, em seu livro Sur la “philosophie africaine” (1980; a expressão aparece no título entre aspas)174, faz uma revisão crítica de obras de africanistas europeus que se propuseram a explicar o fundo filosófico e ético que norteava as práticas sociais de determinados grupos étnicos do território colonizado. Na sua opinião, porém, o que esses autores praticaram foi uma “etnofilosofia”, às vezes até “bonita demais para ser verdadeira” (HOUNTONDJI, 1980, p. 19). Por etnofilosofia ele entende uma pesquisa que parte do pressuposto da existência de uma “filosofia africana” que admite uma visão de mundo coletiva e hipotética de um determinado povo (ib., p. 33), isto é, são construções arbitrárias, hipotéticas, que não se baseiam em material discursivo concreto, “discursos explícitos” (ib., p. 32), ou seja, tradições orais, contos, mitos, o saber dos anciãos. Tomando como exemplo a obra do missionário belga Placide Tempels sobre a filosofia bantu, Hountondji mostra que, apesar desse sistema ontológico apresentar uma “maravilhosa coerência”, considerando-o sob a lente da sua função política, verifica-se que ele “desvia a atenção dos problemas políticos fundamentais dos povos bantu [...], defasado em relação à ardente realidade da exploração colonial” (ib., p. 19), “uma abstração incrível face à situação concreta histórica do país” (ib.). O então Congo Belga reconhecia a superioridade do branco e, 174 Paulin J. Hountondji ressalta que há mais de meio século intelectuais africanos se vêm ocupando em produzir um “discurso laborioso pelo qual nos empenhamos em nos definir” e essa literatura “não pára de crescer” (1980, p. 12). E procede a uma extensa listagem, nas páginas seguintes, de um grande número de nomes de autores e de títulos de obras africanas das mais variadas procedências (p. 12-13). 153 assim, salvaguardava e consolidava a dominação imperialista. O pérfido da questão, diz Hountondji, é que pensadores africanos caíram na mesma armadilha, assumindo a interpretação do sacerdote belga de que haveria uma visão do mundo que seria subjacente a todas as tradições africanas e a todo comportamento. O sacerdote, escrevendo sobretudo para um público europeu, adotando igualmente um universalismo abstrato, ignorou a realidade local, “por cima das costas de seu povo”: “O etnofilósofo africano se fazia o porta-voz da África global diante da Europa global” (ib., p. 35). Concluindo que “a filosofia africana é um imenso contrasenso”, como se fosse possível admitir a existência de “um sistema de crenças implícitas ao qual adeririam espontaneamente todos os indivíduos de uma sociedade, passados, presentes e futuros” (ib., p. 88-89)175. Parece-me que, no momento, os intelectuais da Guiné-Bissau não estão muito interessados em formulações desse teor, embora lembre aqui os artigos já referidos de Abdulai Sila contra as intempéries da desgovernança, um exemplo entre muitos outros que aparecem diariamente na imprensa do país. Queria completar este capítulo registrando um aspecto muito presente nas discussões sobre a relação do escritor africano com a língua do colonizador, repetindo a velha metáfora do Caliban shakespeariano que, aprendendo a fala do seu senhor, passa, com sua voz, a contestá-lo. 4.6 A língua portuguesa – espaço de transgressão Os fundamentos sobre os quais se esteiava a dominação colonial foram constituídos pela tríade “o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (SANTIAGO, 1978, p. 16). Coerentemente, dentro das estratégias de desfiguração cultural, também na Guiné-Bissau as línguas autóctones, algaravias incompreensíveis, foram proibidas, assim como a língua veicular, o crioulo. Apesar de toda repressão, contudo, os idiomas nacionais continuaram vivos e ativos, permanecendo o centro de referência para as comunidades étnicas, não tendo jamais perdido seu status de meio de comunicação e de expressão familiar e grupal. Já tratei desse assunto no segundo capítulo (segmento 2.5) e não preciso reter-me novamente nele. A língua do dominador passou a língua oficial do país depois da descolonização, continuando a ser a mais prestigiada socialmente, constituindo a língua do ensino escolar, das redações oficiais no campo da legislatura e da representação no exterior. Seu conhecimento pleno estava (e ainda está) 175 Trata-se de um dos temas recorrentes da discussão contemporânea e tem sido muitos os intelectuais africanos que procuram demonstrar, em suas obras, a falácia do pressuposto que Hountondji chamou de “unanimismo”, isto é, a afirmação da existência de um conjunto central e geral de idéias compartilhadas pelos “africanos”, como um bloco unitário e indiferenciado, um “pressuposto de que exista, mesmo num nível de abstração bastante elevado, uma única visão de mundo africana” (APPIAH, 1997, p. 123). 154 reservado praticamente a uma pequena minoria privilegiada que com ela mantém, como em outros países ex-colonizados, uma relação ambivalente e não totalmente desprovida de artificialismo. A língua portuguesa é, apesar de todos os limites, indissociável da vida cultural da Guiné-Bissau, tendo sido considerada por Amílcar Cabral como sendo o melhor legado deixado pelo colonizador. Como se pode constatar em toda a África, nos primeiros tempos pós-independência, o intelectual muitas vezes repudiou a língua do dominador da mesma forma como se distanciou da cultura metropolitana. Fez e continua a fazer parte da política cultural de uma grande parte dos países africanos a preocupação em valorizar as línguas maternas, faladas pelas diferentes etnias nacionais, como constituindo elemento básico e indispensável para a afirmação da identidade pessoal e coletiva. O problema da confrontação entre a presença de idiomas nativos e línguas de contacto com a língua colonial é comum à maioria dos países africanos e não está livre de ambigüidades. Apesar do conflito evidente, para dar apenas alguns exemplos, existe uma literatura escrita em iorubá, na Nigéria, em xona no Zimbábue; em suaíli e em ganda em Quênia; em sotho, língua da África do Sul. Mas os imbricamentos internacionais dos tempos modernos inviabilizam um insulamento improdutivo. Apesar de signo do colonialismo, é a língua do dominador o veículo que acabou por impor-se como língua literária, depois de muitos debates e indecisões, discussões que continuam atuais e sempre de novo reabertas176. Albert Memmi, em seu livro Portrait du colonisé suivi de portrait du colonisateur (1966), esboçou sem rodeios a real dificuldade, se não impossibilidade, do uso da língua nativa: A língua materna do colonizado, aquela que é alimentada por suas sensações, suas paixões e seus sonhos, aquela na qual se liberam a ternura e os espantos, aquela, enfim, que reúne a maior carga afetiva, é justamente essa que é menos valorizada. Ela não tem nenhuma dignidade no país nem no conjunto dos países. Se quer conseguir um trabalho, construir seu espaço, existir na cidade ou no mundo, ele tem primeiro que se dobrar face à língua dos outros, a dos colonizadores, seus senhores. No conflito lingüístico que habita o colonizado, sua língua materna é humilhada, esmagada (MEMMI, 1966)177. Entretanto, a apropriação que o intelectual africano faz do inglês, do francês, do português, transfigurando-o e reterritorializando-o, é uma atitude tipicamente anticolonial. São de Wole Soyinka as seguintes palavras: Os povos negros arrancaram a lâmina lingüística das mãos do castrador cultural tradicional e entalharam novos conceitos na carne da supremacia branca. O uso 176 E assim, o emprego das línguas européias, tanto do português como do francês ou do inglês, terá preferência em termos internacionais e será dominante, pois as leis do mercado assim o exigem. Além disso, o idioma do antigo dominador está arraigado nas mentes como a língua da “civilização” e do “desenvolvimento” e é bem mais tenaz do que até pode parecer ou desejar-se. 177 A tradução é minha. Consultei o site http://www.mef.qc.ca/portrait%20du%20colonise.htm. 155 lingüístico costumeiro foi completamente rejeitado e uma nova sintaxe, crua, urgente e revolucionária, foi dada a esse meio que havia se tornado o maior repositório de conceitos racistas (SOYINKA, apud REIS, 1999, p. 103). O fato é que a grande maioria dos autores africanos prefere escrever no idioma do colonizador, embora isso não corresponda geralmente à realidade lingüística de seus países. Assim, falar da Guiné-Bissau como “país de língua portuguesa” implicaria não levar em conta que ali o português é uma língua falada por uma pequena minoria, sendo ainda mais reduzido o número dos que a falam corretamente, e ínfimo o dos que a escrevem. As implicações ideológicas do termo “lusófono” são de certo modo até mesmo perversas, seguindo o pensamento do estudioso beninense Guy Ossito MIDIOHOUAN (1986) que se refere especialmente ao francês. Admitir que “os” guineenses, como totalidade, sejam lusófonos seria inverter a realidade, pois isso implicaria em admitir que falam habitualmente o português. Mas o português na Guiné-Bissau, embora seja o idioma oficial, não é nem a língua segunda da maior parte da população, nem mesmo a da elite instruída, que não a usa espontaneamente em situações descontraídas, no seu meio de origem. Afirmar o contrário seria querer iludir-se ou pretender distorcer politicamente a realidade. Poderia ser viável, talvez, falar que a Guiné-Bissau é um país lusógrafo, embora essa realidade esteja cada vez mais confrontada com o crescente emprego da língua guineense também na comunicação escrita. Numa primeira instância, numa visão diacrônica, ao escritor guineense sucedeu o mesmo que ao brasileiro ou ao angolano recém-descolonizado. Socializado e aculturado pelo instrumento da língua, o vínculo com a metrópole perdurava e “fazia com que o produtor textual colonizado quisesse inserir-se, e a sua obra, no quadro geral da literatura do dominador, esforçando-se ao máximo para aproximar a sua dicção literária da dos autores metropolitanos” (PADILHA, 1995, p. 3)178. Mas, se existe a cooptação, existe igualmente a sublevação. Entre as táticas subversivas empregadas por escritores latino-americanos ou africanos, uma das muitas faces da reação contra os tentáculos do neocolonialismo, está a utilização da língua imposta pelo vencedor como forma de expressão, sem obedecer à norma castiça e culta, modificando-a, estética e ideologicamente. A consciência de que os efeitos condicionantes da colonização continuam a corroer a auto-estima e a autoconfiança dos ex-colonizados mostra-se através do uso que os escritores fazem do português, abrindo um espaço de expressão contestatória. A introdução de elementos da tradição oral das diferentes culturas, a constante referência a mitos e lendas, à sabedoria ancestral de múltiplas raízes, tudo isso é enunciado por uma desconstrução da linguagem, numa rebelde apropriação. 178 Conheci um intelectual guineense que se autoqualificava de “Camilo Castelo Preto”, considerando aquele autor português (1825-1890) como modelo de beleza e elegância de linguagem que pretendia alcançar. 156 Na Guiné-Bissau é Odete Semedo quem levanta a questão que tanto apaixona os escritores africanos: escrever na língua do colonizador ou escrever nas línguas étnicas? O debate vem de longe e certamente ainda não terminou. Odete Semedo, como quase todos os demais escritores aqui analisados, escreve tanto em português como na língua guineense. Sentindo-se inteiramente à vontade dentro da cultura portuguesa, tem, entretanto, suas raízes profundamente fincadas no seu “chão”. Ela abre seu primeiro livro, Entre o ser e o amar (1996), escrito em português e em crioulo, com um poema intitulado “Na kal lingu ke n na skirbi nel” – “Em que língua escrever”, ressaltando a ambigüidade dessa dupla influência, expressando a dúvida em escolher expressar-se entre a língua do coração e dos sentimentos e a língua que a ligará com o resto do mundo: “Em que língua escrever / as declarações de amor? [...] Em que língua escrever / contando os feitos das mulheres / e dos homens do meu chão?” Por um lado, o eu poético sabe que “em crioulo gritarei / a minha mensagem / que de boca em boca / fará a sua viagem”, ao mesmo tempo em que reconhece ser importante expressarse num idioma de maior repercussão, “falar nesta língua lusa / eu sem arte nem musa, pois assim terei palavras para deixar / aos herdeiros do nosso século” (ib., p. 10/11). Através da palavra, a voz poética quer vencer suas dúvidas e angústias interiores, quer verse una, harmonizada interiormente e quer também chegar ao outro. Ciente da força transformadora e mágica da palavra, a autora hesita na escolha de em que língua escrever, pois sabe que não só o efeito será diverso, como a própria essência do seu enunciado dependerá dessa decisão. Daí a questão se se articula em sua língua materna e uterina ou se lança mão de um meio de expressão estranho às suas raízes. A escritora se põe diante de um problema que precisa resolver e que mostra a ambivalência face à cultura ocidental. Ela quer ser testemunha da sua própria cultura, quer transmiti-la aos seus sucessores (e a seus leitores, acrescento eu). Quer passar adiante “as histórias que ouvi cantar”, quer divulgar “os feitos das mulheres e dos homens do meu chão, [...] falar dos velhos, das passadas e cantigas”, e o lógico seria fazê-lo em seu próprio idioma, que é igualmente o das pessoas e dos fatos aos quais ela se refere: “Falarei em crioulo? Falarei em crioulo!”. Falar na sua língua materna e original, gritar mesmo, é o impulso primeiro do eu poético. Mas, seguindo essa direção, restringindo-se ao registro oral, o testemunho que tanto deseja prestar, passando apenas “de boca em boca”, não chegaria a expandir-se muito, pois a posteridade só tomará conhecimento do que ela tem a dizer se a poetisa deixar escritos tais feitos, e isso numa língua que transcenda os horizontes da sua terra natal. O eu enunciador tem que se decidir: “Mas que sinais deixar aos netos deste século?”, e o faz de uma maneira pragmática: “deixarei o recado num pergaminho nesta língua lusa [...] os netos e os herdeiros saberão quem fomos” (ib., p. 11). Escrever em português significa, porém, usar um veículo de segunda mão, empalidecer a riqueza da tradição, da história e dos sentimentos da sua própria cultura. Assim, a escritora tem 157 que decidir-se à renúncia de algo que lhe é essencial, em favor do dever supra-ordenado e que julga imprescindível: transmitir às gerações vindouras como que a prova da existência da cultura da sua gente. E cabe uma tal tarefa – o texto na língua guineense é mais longo e mais explícito – anos... mindjeris ku omis d'e tchon, “a nós, mulheres e homens deste chão”, pois são eles, e só eles, que de fato podem firmanta no storia (ib., p. 12). Trata-se, portanto, a meu ver, nesse poema de abertura do livro inaugural de Odete Semedo, de um texto programático, da articulação proposital de uma tomada de posição que transcende a esfera pessoal e íntima dos demais poemas e a partir do qual a leitura do resto do livro poderá até certo ponto orientar-se. Foi por atitude, por posicionamento consciente, portanto, que Odete Semedo optou por um livro bilíngüe179. Para os guineenses que lerem Odete Semedo, ser-lhes-á fácil detectar laivos da sua origem mandjaca, em pequenos pormenores espalhados em um ou outro poema. Não são casuais as referências, por exemplo, à stera di n bañala (“[Re]unidos”, p. 66/67), que evoca um tipo de “pano de pente” muito especial, resultado da junção de vários pedaços de outros panos, e que acaba sendo como que o mostruário do conjunto das peças que uma mulher guarda na sua arca. Ela refere-se também às histórias do pássaro “se n'há n'há e das serpentes do grande mar”, do folclore mandinga (“Saudades”, p. 79) ou “aos passos de asalmas”, as almas defuntas (“Ansiedade”, p. 71). Sua guineidade não aflora de modo ostensivo, mas faz parte integrante do seu ser, estando sobretudo espelhada em seus poemas na língua guineense180. É possível constatar, em quase todos os autores guineenses contemporâneos, a desenvoltura com que escrevem em guineense e como essa língua faz parte integrante do seu universo, uma presença clara ou subreptícia ao longo da maioria das obras. Tony Tcheka escolheu para abrir seu primeiro livro individual (Noites de insónia na terra adormecida, 1996) uma série de dez poemas que denominou “Kantu Kriol”. Odete Semedo decidiu-se, como vimos, por uma publicação bilíngüe (Entre o ser e o amar, 1996), com poemas em português e em crioulo. Nas suas obras posteriores (Histórias e passadas que ouvi contar, 2000a e 2000b; 2003a) e No fundo do canto, 179 Lembro aqui a posição do queniano Ngugi wa Thiong’o, bastante radical, argumentando que “uma cultura específica não pode ser transmitida através de uma língua na sua universalidade, mas sim na sua particularidade enquanto língua de uma comunidade específica com uma história específica”. A literatura e a oratura, prossegue Thiong’o, “são os principais meios pelos quais uma língua particular transmite as imagens do mundo contidas na cultura que ela carrega. [...] A língua carrega a cultura e a cultura carrega todo o corpo de valores pelos quais nós nos apercebemos de nós mesmos e de nosso lugar no mundo. Ela é inseparável de nós que constituímos uma comunidade de seres humanos com uma forma específica, uma história específica, uma relação específica com o mundo. (THIONG’O, 1986, p. 15-16). 180 As dúvidas que Odete Semedo sente diante da decisão de poetar em português ou em crioulo não correspondem só a uma questão da sua identidade individual, à expressão dos seus sentimentos. Um outro queniano, Ali A. Mazrui, professor de estudos culturais globais na Universidade de Binghamton, vê uma desvantagem fundamental da África em depender das línguas dos colonizadores europeus para o desenvolvimento das suas culturas e da ciência. Para ele, é extremamente grave essa “deficiência linguístico-cultural” que acontece até entre africanos do mesmo grupo lingüístico que não conseguem comunicar-se entre si nas suas línguas maternas, como podem, por exemplo, os japoneses (MAZRUI, 2001). Como se vê, o debate em torno do assunto suscita paixões e as posições são as mais diversas. 158 2003b), já procede de forma diferente, lançando mão com freqüência do guineense, assim como Filinto de Barros em Kikia Matcho (1997) respinga seu romance com uma centena de termos em crioulo, explicados no final em um glossário. O mesmo acontece com Abdulai Sila, nos seus três romances (1994; 1995; 1997), sendo que somente o segundo contém um glossário. A língua guineense é também onipresente na poesia em português de Félix Sigá (1996). Muitas vezes camuflada, contribui para uma remodelação da língua de prestígio a partir de efeitos originais e vivificantes. O poeta não só introduz na enunciação em português muitos termos e expressões em crioulo, dando o tom de oralidade à fala das personagens, como emprega construções daquele idioma nos enunciados em português. Ele recorre também a vocábulos não só do crioulo como de algumas línguas étnicas, alterando com empréstimos escolhidos conscientemente à sintaxe portuguesa culta. Assim, tocava palmas, cabelo tecido, cobou-o mal (insultou-o), contar passadas (contar, passando adiante, notícias, acontecimentos ou “fofocas”), kulkar (vender na rua ou na feira) são expressões imediatamente detectáveis pelos crioulófonos, mas de difícil compreensão para os leitores exógenos. Félix Sigá também insere freqüentemente pequenas frases em crioulo de grande efeito estilístico, assinalando uma mudança de registro, a passagem de um tema mais geral para outro, mais diretamente ligado a si mesmo, ressaltando a origem social do sujeito. Pegar teso (trabalhar duro), falar mantenha (cumprimentar), roncar (vangloriar-se, contar vantagem), usar o soco de bas (usar pistolão), tomar o couro (ocupar um lugar de direção), fumar uma ordem (dar uma ordem), apanhar castigo (ser castigado), rampar o terreno (nivelar), uma situação de afronta (momento de dificuldade, de “foronta”, desgraça), branco coitado (europeu pobre, sem prestígio) são expressões, entre muitas outras, encontradas nos romances A última tragédia e Mistida, de Abdulai Sila, dentro de contextos fraseológicos do português culto. Esse autor também usa com freqüência torneios sintáticos próprios da língua guineense, tais como “um grande problema que era preciso pensar nele”, construção que ocorre várias vezes. Abdulai Sila renunciou propositadamente, em seu terceiro romance, Mistida, a acrescentar um glossário ao livro. É preciso estar a par do código da cultura guineense para alcançar o significado de certas alusões: conhecer o código “moderno” – por exemplo o papel representado pelos carros de marca Volvo (cf. notas 160 e 308); ou o significado da Cicer, a companhia nacional de bebidas (uma fundação que data da época da guerra, quando Portugal teve que satisfazer certas necessidades do grande contingente dos seus soldados) e uma das poucas tentativas industriais do país independente, mas que acabou falhando; saber o que é um klandô (designativo dos bares na época logo depois da libertação); decifrar o significado de um soco de baixo, enunciado em português de um termo crioulo (suku di bas) relativo ao pistolão e/ou ao dinheiro pago corruptamente para se alcançar algo da parte de um funcionário. E também é preciso dominar o código “tradicional” para compreender referências aos djambakus, murus, yrans, aos poderes da 159 alma biafada, ao apoló (tortura em que se é amarrado pelos tornozelos, com as pernas para o ar), ao kambletch (pedaços partidos de cabaça) e assim por diante. Em todo o tecido textual há símbolos e situações que podem ser imediatamente decodificados mas o recurso ao código usual em geral não causa espanto nem admiração, passa praticamente desapercebido. É a transgressão a esse código que surte efeito. Odete Semedo lança mão, a todo momento, de vocábulos da língua guineense, no seu livro mais recente, No fundo do canto, e procede a uma re-ocupação da palavra e do seu conteúdo semântico, recorrendo a neologismos plenos de intencionalidade, quando nomeia certos personagens que entram na cena textual, fazendo desfilar, ao lado de um “Matutino” e de um “Vespertino”, ou de um “Vivêncio” (SEMEDO, 2003b, p. 138, 140, 141), outras figuras paródicas que dão ênfase e vivacidade ao contexto de crítica e sarcasmo que a autora pretende encenar: “o Viviano de ontem / hoje Presentino / neto de nhu Prudêncio / e de nhara Conveniência / anda de porta em porta / pronto a vender / palmo e meio / de trapo e trapaça / a quem mais der” (ib., p. 144). O surgimento de um enunciado em uma outra língua (sobretudo na guineense) no meio de um texto em português é sempre intencional e essa aparição é estilisticamente bem marcada, patenteando sempre um momento de tensão no acontecer literário. Na prosa de Abdulai Sila e na poesia de Félix Sigá, na minha opinião, encontram-se os melhores exemplos dessa propositada inserção da língua materna no texto em português, num ato de criatividade e de liberdade, sinalizando um posicionamento transgressor consciente e não apenas ilustrativos “guineismos”. Além disso, o uso do crioulo nem sempre é de forma direta e às claras, mas sim detectável por detrás de muitas estruturas frásicas em português, sendo uma das marcas estilísticas própria a esses dois escritores que a manejam com maestria. Sem dúvida, o pleno gozo dessas pérolas estilísticas está reservado aos que dominam ambas as línguas, restando irreveladas aos não crioulófonos, ficando quando muito uma impressão de desconforto ou curiosidade diante de estruturas insólitas que se pressentem propositais sem ser possível decodificá-las. Ao utilizarem transgressoramente a língua oficial, enxertando-a com crioulismos e elementos de outras línguas étnicas, subvertendo a sintaxe e emprestando-lhe um visual próprio, os autores guineenses estão tomando uma postura política de rebelde independência, de clara contestação e de distanciamento anticolonialista, nacionalizando o instrumento herdado, praticando uma literatura menor, como entendem Gilles Deleuze e Félix Guattari (1977): uma produção literária que subverte a língua “maior” que é a língua do dominador (e do segmento dominante). O autor ou a autora comporta-se como ponta de lança de um proclamar coletivo de autodefinição e auto-afirmação. Verifica-se uma orgulhosa postura que ressalta a diferença e que procura seu próprio espaço, a voz movendo-se entre a terrritorialidade, a desterritorialização e uma reterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1977). O idioma oficial e elitista, a estética 160 legitimada são desmontados e desestabilizados para dar lugar a uma nova ordem, um novo espaço inventivo e libertário. Ana Mafalda Leite, estudando à luz das teorias pós-coloniais a literatura angolana, onde a tematização e o questionamento da língua são recorrentes, ressalta que “o hibridismo lingüístico foi uma das constantes mais significativas da textualidade africana em língua portuguesa”; refere-se à língua do colonizador como “lugar de abrogação e de apropriação” (LEITE, 2003, p. 19), lembrando que o termo “abrogation” foi empregado pelos organizadores da coletânea de ensaios The Empire Writes Back (ASHCROFT et al., 1989, p. 44) para indicar a “negação, supressão, da normatividade lingüística, imposta pela metrópole colonial, e a apropriação da língua em múltiplas vertentes, e sua textualização” (ib.). Tropicalizado, canibalizado, deglutido e ruminado antropofagicamente, o português na África se torna digestível, reterritorializado. Desmontada a rigidez canônica da “língua de Camões” (metonímia irônica ou aberrante, costumeira e irrefletidamente empregada, evocando exatamente o grande vate da expansão imperialista portuguesa), o autor se converte em filtro ou plataforma, porta-voz da coletividade antes subalterna e silenciada. É de novo Caliban opondose, pelo exercício da fala, a seu opressor. O espaço textual deixa de ser o lugar da enunciação de um “eu” autoral para tornar-se a expressão de um “nós” coletivo, pulsante de sentido político e de orgulhosa afirmação de sua diferença. 4.7 Guiné-Bissau: descolonização... e agora? Consumada a independência, reconhecida a Guiné-Bissau como um Estado soberano, iniciou-se a tarefa de também se consumar o Estado. Segundo Carlos Lopes, diferentemente da Europa, a criação do Estado na Guiné-Bissau (como na África em geral) “não foi precedida pela criação de uma nação” (LOPES, 1982, p. 53). Aqueles poucos indivíduos que tomaram as rédeas do país depois das lutas libertárias tiveram a tarefa de “reunir um patrimônio territorial e de unificar, e mesmo integrar, as populações do país assegurando uma orientação política comum” (ib., p. 5354). E Carlos Lopes prossegue, ressaltando ser essa uma situação que ocorre em quase todo o continente africano: “Constituindo uma ‘unidade física’ sólida, pensa-se assim resolver os problemas de integração das diferentes etnias” (ib., p. 54). Entretanto, interesses individuais, pessoais – e não coletivos – orientaram a base do fazer político. Ao lado da assimilação, processo de absorção física e cultural de um grupo pelo outro, havia também a acomodação, uma posição estratégica de boa convivência. Novas relações de poder se estabeleceram e resultaram em novas relações sociais, dissolvendo em parte a base da conjugação interétnica que fez a força das lutas de libertação. Os princípios democráticos do 161 PAIGC (então mandatário do governo), que regeram ideologicamente o período de luta foram sendo desprezados em favor de uma corrida pelo poder e foram muitos (e continuam) os conflitos internos de interesse regidos por militantes de origens diversas (LOPES, ib., p. 73). Os interesses políticos e econômicos se sobressaíam num real confronto de classes e, sobretudo, entre o movimento de libertação nacional e uma pequena burguesia de comerciantes aliada aos funcionários coloniais (ib., p. 75-76). Essa classe dirigente está em grande parte imersa numa autocolonização prejudicial aos interesses da soberania do país, enredado no neocolonialismo. Vimos que o que se observa depois das independências dos países africanos são mecanismos que favorecem determinadas elites dentro do Estado, de bases frágeis, o que explica os vários golpes de Estado sucessivos em muitos países recém-independentes, que acabam por comprometer a formação de estruturas que viabilizem o desenvolvimento dos mesmos. A Guiné-Bissau, sobretudo desde o conflito de 1998/99, vive em sobressalto, sob constante ameaça de novo dramático desequilíbrio, resultado de tensões internas baseadas na luta pelo poder. Os jornais, que hoje em dia na Guiné-Bissau expressam com espantosa clareza e liberdade o estado de insatisfação reinante, espelham a frágil estabilidade em que o país se encontra, congestionado por lutas partidárias, na verdade entre grupos oriundos da mesma classe privilegiada da oligarquia política. O queniano Ngugi wa Thiong’o, tanto em seu livro sobre a “descolonização das mentes” como nos ensaios reunidos em Homecoming, insiste nesse triste fato: A independência não lhes trouxe a terra de volta. Eles continuam sem alimentos e sem roupa. Mas agora há uma diferença. Antes da independência, as realidades básicas eram clara e visivelmente delineadas: todos os conflitos eram reduzidos a duas polaridades – branco significava saúde, poder e privilégio; negro, pobreza, trabalho e servidão. “Expulsemos o homem branco”, gritavam os líderes nacionalistas, “e desaparecerá a fundamental razão dos nossos problemas”. Desapareceu? Não exatamente! Os camponeses e os operários continuam sendo só os trabalhadores das minas e os carregadores, mas agora, são o que Aluko chamaria “o Branco Homem Negro” (THIONG’O, 1972, p. 56)181. Na Guiné-Bissau, as últimas décadas da colonização foram caracterizadas por dezessete anos de luta política e onze anos de luta armada. A vitória contra as forças coloniais abriu caminho para a realização do sonho de transformar o país numa nação em que a sociedade descolonizada se modernizaria e se autogeriria, ingressando na “civilização” pelas portas da 181 Independence has not given them back their land. They are still without food or clothes. But now there is a difference. Before independence basic realities were boldly and visibly delineated: all conflicts were reduced to two polarities – white was wealth, power and privilege; black was poverty, labour and servitude. 'Remove the white man’, cried the nationalist leaders, 'and the root cause of our troubles is gone.' Gone? Not exactly! The peasants and workers are still the hewers and carriers, but this time, for what Aluko would call the 'black White Man. A tradução é minha. 162 educação e da independência política e econômica. Aos poucos, os heterogêneos grupos étnicos conheceram uma unidade, reunida em torno da causa nacional. A meta comum, isto é, a luta contra o inimigo colonialista comum e a tarefa de conquistar a independência e construir um Estado novo, estreitou os laços entre as etnias e as fez superar as divergências. Caindo no caos devido tanto à herança colonial quanto ao desgoverno, à inoperância e à corrupção, o país, trinta anos após a independência, ainda não se encontra capaz de caminhar pelos próprios pés. Mas, apesar de ter tido seus limites determinados pela arbitrariedade das nações colonizadoras e a inoperância dos governos nacionais, a Guiné-Bissau, na multiplicidade e na riqueza de sua multiculturalidade, é, hoje em dia, uma unidade geopolítica que procura seu lugar no mundo como um Estado-nação. A literatura participa dessa busca. Limitei-me neste capítulo a uma breve referência ao amplo tópico da reação anticolonial que, como também a resistência contra a escravidão, sempre acompanhou a pressão exercida pelos dominadores. Os movimentos nacionalistas latino-americanos, tão nossos conhecidos, não foram senão outra face dessa insatisfação e da auto-afirmação, um erguer-se contra a dependência e o “entreguismo”, termo já quase esquecido mas tão em voga num passado não muito longínquo. No Brasil, no campo da literatura, já data do Romantismo a oposição aos modelos europeus importados, a procura de caminhos próprios de expressão. José de Alencar já se sublevava, em 1872, conclamando os escritores a evitarem “cousa que pareça vinda em conserva lá da outra banda, como a fruta que nos mandam em lata”, (ALENCAR, 1959, p. 701), concluindo com saborosa ironia: “O povo que chupa o caju, manga, o cambucá e a jaboticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?” (ib., p. 702)182. A Semana de Arte Moderna (1922) vai marcar de forma definitiva a virada não só nacionalista, mas nativista, que definiu a maturidade literária brasileira. De forma irreverente e carnavalizante, Oswald de Andrade defendeu a nacionalização da literatura na base de temas autóctones e, com ele, seus companheiros desencadeadores do Modernismo batiam-se contra o “passadismo” mimético e pleiteavam o “antropofagismo” (título da famosa revista-manifesto, de 1928). Não posso aqui, pelo menos de relance, deixar de lembrar o nome e a influência seminal do brasileiro Mário de Andrade, o “papa do Modernismo”, seu marcante guia intelectual. Nos estudos sociais da década de sessenta e seguintes, a já referida teoria da dependência procurou caminhos alternativos para o florescimento do pensamento social latino-americano livre das amarras do pensamento capitalista europeu e norte-americano. Apraz-me recordar, nesse contexto, o 182 A citação foi tirada do prefácio ao romance Sonhos d’Ouro, a partir da edição da obra completa de José de Alencar (1829-1877), editada pela Editora Aguilar (1959). É interessante ler todo o prefácio, “Benção paterna”, p. 691-702 do primeiro volume. 163 nome muitas vezes silenciado de Guerreiro Ramos (1915-1982), autor da original e frutífera teoria da redução sociológica. Enfatizando a desafiante necessidade da formação de uma consciência crítica das massas, Guerreiro Ramos procurou caminhos para impedir a transposição acrítica de problemáticas (e de soluções) alheias à realidade local, combatendo a assimilação literal e passiva dos produtos científicos importados183. Vimos, também apenas rapidamente, ao longo deste capítulo, muitas expressões da reação nos países africanos contra a imposição clara ou subreptícia dos valores das antigas metrópoles. O colonialismo serve indiretamente de propulsor, provocando a reação anticolonial, abrindo espaço para um confronto, um redimensionamento, uma reterritorialização. E no poder do confronto dessa rebelião literária, lingüística e ideológica, diz Pires Laranjeira, “é que reside o estatuto de liberdade”, da emancipação das amarras metropolitanas (LARANJEIRA, 1985, p. 10)184. Nesse sentido, a Guiné-Bissau nada mais é que um exemplo, no qual me detive, pondo em evidência o posicionamento dos escritores, com sua postura transgressora, recuperando, pela trama literária, seu território simbólico original. Hoje em dia, é sobretudo na ampla rede dos estudos culturais que se tematiza dialeticamente o confrontamento centro versus periferia. O “saber local” (Geertz), o “local da cultura” (Bhabha), a recusa às idées reçues e aos estereótipos reducionistas do juízo de valor (Said), a recuperação do subalterno (Spivak), a insistência na importância do locus da enunciação (Mignolo), o direito à diferença (Derrida) e à alteridade, a construção simbólica das etnias e a imaginação da nação (Barth, Gellner, Anderson) e, não por último, as relações entre a cultura e o poder (Hall), são meadas de um mesmo complexo bordado que vou elaborando ao longo de diferentes segmentos deste meu trabalho. Vou tratar, nos próximos três capítulos, de como a literatura reflete a busca identitária e de seus reflexos na definição da nação guineense praticada pelo discurso literário e de como esse discurso mesmo engendra a nação, narrando-a enquanto unidade simbólica identificatória daquele povo. 183 Autor prolífero, sua obra mais conhecida é a A redução sociológica, publicada em 1958, com uma terceira edição pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1996. 184 Por não ter sido praticamente presente na Guiné-Bissau, não me referi ao movimento da Negritude, movimento tão controverso, mas, de todo modo, também uma reação pós-colonial que assumiu o discurso da diferença e do retorno aos valores e à estética africanas. Sobre a Negritude nos países africanos de língua portuguesa, cf. LARANJEIRA, 1995b. 5 LITERATURA COMO APROPRIAÇÃO SIMBÓLICA Como é que nós pudemos unir todos estes povos, todos estes grupos étnicos, de forma a que marchassem juntos como um só homem? Escuta os nossos anciãos: “Não pode ser obra de homens, tem de ser trabalho de Deus”. Talvez tenham razão, desde que em face de cada ameaça possamos conservar e fortalecer essa grande arma da nossa luta que é a unidade do nosso povo, de todos os seus grupos étnicos, de todos os seus estratos sociais. Amílcar Cabral Na Guiné-Bissau, numa exígua área de menos de 40 mil quilômetros quadrados, como foi visto no capítulo 2, convive uma multiplicidade de grupos étnicos que se foram constituindo a partir de diferentes levas migratórias, ao longo dos séculos, como resultado da expansão de certos povos e conseqüente deslocação de outros185. O sentido da unidade dentro da imensa diversidade étnica ocupa na Guiné-Bissau um espaço polarizado e sempre em estado de um equilíbrio instável e delicado que é necessário analisar. No primeiro período depois da independência, a tônica posta na construção de um Estado nacional e centralizado combateu os “etnismos”, considerados como encorajadores de tribalismo186 e por isso anti-nacionais (FERNANDES, 1993, p. 49)187. A crise do Estado-Nação que culminou com o “Movimento Reajustador”, de 14 de novembro de 1980, e a queda do presidente Luís Cabral (1974-1980) inauguraram um novo discurso nacionalista que reivindicava uma cultura guineense autêntica, uma volta às tradições, em oposição ao período anterior em que a união entre a Guiné e Cabo Verde constituiu a base das lutas de libertação. Essa mudança de atitude contribuiu não só para restaurar a autoridade dos chefes tradicionais como para fortalecer o sentimento de pertença étnica como uma forma de identificação social, sentimento esse que nem sempre representou um papel positivo e que, durante a década de noventa, se encontrava senão superado, pelo menos adormecido, sem 185 186 Sobre as regiões que hoje formam a Guiné-Bissau, cf. sobretudo PÉLISSIER, 1989, 1989a; MENDY, 1994. Tribalismo, neste contexto, refere-se a uma atitude política existente em muitos países africanos, segundo a qual um grupo étnico privilegia de modo exagerado e excludente o sentimento de pertença étnica e prioriza seus interesses em detrimento dos demais grupos constituintes da unidade nacional. O tribalismo pode provocar guerras fratricidas, como a que ocorreu em Ruanda. Segundo J.-L. Amselle, os tribalismos contemporâneos exprimem algo diferente do sentimento étnico. “A análise desses fenômenos mostra que ele está ligado a certas fases históricas no curso das quais os atores políticos, as categorias e as classes sociais encontram-se reduzidos a exprimir suas ambições, sua cólera ou sua indignação numa linguagem tribal, étnica ou regionalista” (AMSELLE, 1985, p. 10). 187 Em nome da modernidade, do progresso e do socialismo, o sistema dos chefes tradicionais das comunidades rurais, o regulado, foi abolido e seus régulos até mesmo perseguidos ou eliminados; uma ideologia do tipo socialista tentou impor-se no seio da população como a nova doutrina a ser seguida. Paralelamente, promoveu-se um processo de esquecimento da própria história, o silenciamento do passado ancestral, das tradições, com a rejeição do autóctone e do nativo. Cf. FERNANDES, 1993. 166 maiores tensões nem bloqueios políticos. Prova de uma relativa harmonia é o grande número de casamentos interétnicos que existe em todo o país, sendo difícil encontrar famílias que não ostentem várias ascendências. No momento histórico atual, observa-se uma instrumentalização dessa problemática em função de interesses partidários, o que torna o tema bastante explosivo e delicado, não faltando admoestações, e mesmo pesadas críticas, por parte de muitos guineenses, plenamente conscientes dos perigos do tribalismo. 5.1 O processo de entendimento interétnico Até a queda do governo de João Bernardo “Nino” Vieira (1980-1999), podia-se falar de uma harmonia relativamente grande entre os diferentes grupos étnicos do país. A literatura testemunha essa harmonia através de versos de vários poetas. Os meninos da hora de Pindjiguiti188, a chamada “geração da independência”, marcaram a cena cultural da primeira década da novel república com seus versos de repúdio ao colonialismo e glorificação da bem sucedida luta pela libertação nacional e de seus heróis, celebrando, com fervor patriótico, tanto a união entre os conterrâneos como a guineidade e a africanidade. A “pátria nacional de todos nós”, como cantou Pascoal D’Artagnan AURIGEMMA (1996, p. 71), resumindo assim o sentimento geral. O que contava, no período da formação nacional, eram a construção e a estabilização da nação guineense no seu conjunto, não sendo considerada como estorvo a diversidade entre as muitas etnias do país. Como escreveu Tony Tcheka: “Ninguém perguntou a ninguém / quem era / nem de onde vinha” (TCHEKA, 1996, p. 97). Pascoal D’Artagnan Aurigemma (1938-1991), ele mesmo mestiço, da etnia balanta do lado materno e de pai italiano, escolheu, como título da coletânea de seus poemas, um termo fula, Djarama, expressão de saudação e também de agradecimento. Seus poemas estão repletos de referências à cultura materna, dentre eles destacando-se “Bumbulum de Clabus”, escrito já em 1965, evocando a resistência do camponês balanta ao “colonial mando” e onde o poeta mistura o texto em português com sonoras expressões na língua local, familiares aos guineenses, mas à primeira vista incompreensíveis para os “de fora”, emprestando um cunho conspirativo ao poema189: 188 189 A expressão é de Tony Tcheka. Sobre esses primeiros momentos do desabrochar da literatura guineense cf. TCHEKA, 1997; e ainda AUGEL, 1998b, p. 87-114. Sobre Pindjiguiti, cf. adiante nota 192 e capítulo 2.2.4. Pascoal D'Artagnan Aurigemma nasceu em Farim a 15 de março de 1938 e morreu em Bissau a 7 de dezembro de 1991, sem ver seus poemas publicados. Alguns deles constam de coletâneas poéticas de autores guineenses, como por exemplo do Poilão (1973), da Antologia poética da Guiné-Bissau (1990) e de O eco do pranto (1992), ou encontram-se esparsos em jornais locais, como no Nô Pintcha e no Bolamense. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) editou sua obra completa, com o título Djarama e outros poemas (1996). Sobre o autor, cf. AUGEL, 1998a, p.195-216. 167 Olhos pingando sangue na revolta na carne no nervo Clabus lante n’dan [...] Os sons fendendo a teimosia do segredo penetram e a tabanca desperta, os blufos rechaçam medo e morte Revolta recrudesce, as florestas abrem caminho E a voz de Clabus Na Delé porfia o colonial mando Clussé uói! Uói! Binté a uló! Tchak... tchak... (AURIGEMMA, ib., p. 94)190. Em muitos poemas, o poeta utiliza conscientemente nomes de pessoas ou famílias de origens diversas, como se pode verificar em “Reticências”, onde ele se refere à moransa de Mutaro Baldé, depois à tabanca de Mamandin Dabó, e ainda à moransa de Imbali Na Bliba (ib., p. 91), agrupamentos familiares191 respectivamente fula, mandinga (ou talvez beafada) e balanta. Da mesma forma, no belo poema “O cantor miserável da noite no cais”, de março de 1975, evoca nominalmente, por duas vezes, num só longo verso, os estivadores das mais variadas origens, numa insinuação velada à famosa revolta do porto do Pindjiguiti192 e à “unidade e luta”, um dos slogans do recém-vitorioso movimento libertador: “Estão ali / no cais / Ansumane Becô, Infamará, Bicinti Cabupar, Malan Seidi, Djodje Badiu, Batipom Cá... / Estão ali uma data de anónimos / da noite no cais!” (ib., p. 55). Outro poeta guineense da época é Jorge Cabral (1952-1994)193 que enumera em um dos seus raros poemas em crioulo, “Dia ta lanta”, várias localidades, querendo com isso mostrar que de Norte a Sul, de Leste a Oeste, trata-se de um só país: 190 O bumbulum ou bombolon é um instrumento de percussão, feito de um tronco grande e escavado, tocado ou batido em cerimônias fúnebres ou para transmitir alguma mensagem. Clabus (Na Delé) é um patronímico balanta. E da língua balanta são as expressões uói! (sim), binté a uló! (vem cá), tchak ... tchak ... (depressa), assim como Clabus lante n’dan, “Clabus homem velho”, referência ao ancião que fala animando os blufos (os ainda não circuncisados) à resistência contra o colonizador. 191 A moransa é a unidade habitacional de um agregado familiar; a tabanca (ou tabanka) é a aldeia. 192 O poema foi primeiramente publicado na Antologia Poética da Guiné-Bissau (1990, p. 183). A 3 de agosto de 1959 os estivadores do porto de Pindjiguiti, em Bissau, protestaram com uma greve contra as más condições de trabalho; a força colonial reagiu brutalmente e em menos de meia hora foram abatidos cinqüenta estivadores e feridos uma centena. Esse ato de terror, que ficou legendário e assegurou a suas vítimas um lugar na galeria dos heróis nacionais, desencadeou o início da resistência armada e da luta para a independência, perpetrada onze anos mais tarde. Cf. também o capítulo 2.2.4. 193 Rui Jorge Dias Cabral nasceu em Canchungo, a 30 de dezembro de 1952. Fez os estudos universitários na antiga Iugoslávia, licenciando-se em Relações Políticas Internacionais pela Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Belgrado. E foi no país onde fez sua formação universitária que veio a morrer, num acidente de aviação, quando realizava uma missão de serviço da ONU em Ratkovc, Croácia, no dia 17 de setembro de 1994. Jorge Cabral foi Director-Geral dos Assuntos Políticos, Económicos e Culturais do Ministério de Negócios Estrangeiros antes de exercer suas funções na área da diplomacia. Além de escrever poemas e ensaios, pintava nas horas vagas e compunha canções em crioulo, além de ser exímio guitarrista. Como cientista político, freqüentemente colaborava com artigos em periódicos guineenses e estrangeiros. Como poeta, deixou uma obra inacabada mas significativa, publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), Os marinheiros da solidão (1998). Sobre Jorge Cabral, cf. AUGEL, 1998a, p.299-313. 168 Di Buruntuma pa Djiu di Bubaki di Cacini pa San Domingo [...] i kila ki Guiné-Bissau i kila ki no Guiné. Di Madina di Boe pa Djiu di Rei na Bissau di Sukudjake pa Tombali [...] i kila ki Guiné-Bissau i kila ki no Guiné194 (CABRAL, J., 1998, p. 95). A estabilidade do processo de entendimento entre as etnias depende fortemente do grau de estabilidade das relações políticas, econômicas e sociais. A consciência étnica se exacerba em situações de crise, de penúria, de tensões, de luta pelo poder. A boa convivência entre as etnias pressupõe uma bem sucedida apropriação de espaços vitais individuais ou grupais, simbolizada em expressões como “torrão natal”, “tchon” ou “chão”. Na Guiné-Bissau, a literatura que hoje se está fazendo pode contribuir para um processo de tomada de consciência, por parte da população (penso na juventude nas escolas sobretudo, representantes do futuro do país), da história coletiva, do especificamente guineense, mas também das belezas e das singularidades da cultura de cada etnia, respeitando a identidade de cada uma, ressaltando a multiplicidade cultural e contribuindo para o entendimento entre os grupos e a superação de antigos conflitos étnicos. O discurso literário abre oportunidades de uma reterritorialização quando elementos sócio-espaciais da identidade cultural do guineense são ressignificados, recontextualizados, contribuindo não só para definir, como até mesmo para construir uma identidade interétnica. Representa, sob esse aspecto, um elemento tanto revelador quanto construtor de identidade intergrupal, desenvolvida para além das particularidades – sociais, culturais, locais ou regionais. 5.2 A apropriação simbólica O conceito de apropriação simbólica parece indicado para analisar como se processa o espelhamento, na literatura, das questões ligadas à etnicidade. Os espaços vitais humanos são configurados pelas suas culturas específicas. Pode-se interpretar como pertencente à categoria da “apropriação simbólica” a internalização, por parte do indivíduo, do aparato simbólico dos elementos que constituem a marca cultural específica do espaço social do qual ele faz parte – tais como regras sociais, valores, códigos de comportamento e de ação e mesmo expectativas em relação aos papéis sociais a desempenhar. 194 “De Buruntuma para a ilha de Bubaque / de Cacine para São Domingos / isto é a Guiné-Bissau / isto que é a nossa Guiné. // De Madina de Boé para a ilha do Rei, em Bissau / isto é a Guiné-Bissau / isto que é a nossa Guiné”. 169 O termo “apropriação” é usado em múltiplos contextos. Trata-se de uma interação ativa e criativa entre a pessoa ou um grupo de pessoas e seu ambiente material ou social. Fala-se da apropriação ou ocupação de áreas urbanas na ecologia social, por exemplo; ou pode-se ainda lembrar a apropriação de chances ou oportunidades econômicas e sociais (Max Weber) ou a apropriação da mais valia (Karl Marx), entre muitas outras conotações. Uma apropriação simbólica faz referência ao ato de tornar seu – da pessoa ou do indivíduo – o que também é do domínio de outros indivíduos, de muitos, de todos, referente a uma comunidade tanto de uma cidade, de uma nação ou de um Estado. Falar de uma casa, um bairro, uma cidade, um país, um governo ou de um povo como o “meu” ou a “minha”, implica pertencimento e identificação positiva, muitas vezes em relação a algo que, como um bem público, é do domínio de todos, não excludente e não sujeito a concorrência, como por exemplo a língua, a maneira de se vestir, um estilo arquitetônico, a memória coletiva e signos e símbolos culturais de todo tipo. Sentindo-se bem e “em casa”, a pessoa faz parte de um ambiente sócio-geográfico que define como próprio, junto a outras pessoas com o mesmo tipo de socialização, com as quais se entende, se solidariza, se identifica. Aceitar e sentir-se aceito por seus semelhantes é um elemento chave tanto da formação da personalidade individual, quanto da identidade coletiva, social, étnica, política. Numa sociedade multi-étnica, isso significa também uma definição da posição da pessoa dentro do seu grupo étnico e do grupo étnico, por sua vez, dentro do conjunto mais abrangente que é o Estado ou a nação, representados pelo governo, os órgãos públicos e os artefatos materiais e simbólicos do conjunto do país. Através da apropriação simbólica, mental e afetiva, o indivíduo se insere harmonicamente no seu grupo social e na sua comunidade. Quando isso não ocorre, dá-se o estranhamento, o distanciamento, a falta de adaptação – fatores que podem constituir uma ameaça ou levar mesmo à perda de identidade. A apropriação se contrapõe também à discriminação, à exclusão, à segregação, ao predomínio étnico-cultural de um determinado grupo em detrimento dos demais. Se é verdade que a construção e a reconstrução ou readaptação permanente da cultura por esse processo de apropriação simbólica, da parte de um indivíduo ou de um grupo social, consolidam a interação com o conjunto da sociedade, o mesmo processo pode ser posto em cheque em momentos de crise. Ocorre, aí, em sociedades de várias etnias, o perigo de um estreitamento ou retraimento das relações sociais, com a revitalização de antigos estereótipos de natureza étnica e daqueles relativos à imagem de si próprio e à imagem do outro, chegando, em casos extremos, a sangrentos conflitos. Típicos para uma situação de deteriorização das relações étnico-sociais são os casos individuais daqueles que deixam a aldeia natal e vão procurar a sorte nos centros urbanos, 170 assunto muito tratado nas ciências políticas (questões relativas à migração, marginalidade, identidade), e também presente na literatura, por exemplo, na apresentação de certas personagens na obra de Abdulai Sila, de Filinto de Barros, nas crônicas de Carlos Lopes e mesmo em poemas de Tony Tcheka, como veremos a seguir. 5.3 O desenraizamento na diáspora Já a literatura colonial de temática guineense registrava o fenômeno do africano que, educado no ambiente europeu dos colonizadores, dificilmente se adaptava à vida do meio rural. Como o nalu de nome Momo, da novela O negro sem alma, de Fausto Duarte, que fora obrigado a guerrear na Europa (“na guerra entre os brancos”; DUARTE, 1935, p. 111) e, anos depois, ao regressar, causava admiração a toda a aldeia: Momo [...] voltara da guerra com modos afectados, maneiroso, afrancesado o nalu. [...] Os negros presos da sua fala onde havia resquícios do argot, da linguagem pitoresca das trincheiras, escutavam-no maravilhados, arrogantes de ter na aldeia aquele moço que viera da terra dos grandes Un-quir (brancos). [...] Momo entregava-se de alma e corpo à ociosidade. Deixava-se ficar na cama sôbre duas peles de onça todo entregue às suas recordações, e só no pino do meio-dia se levantava (ib., p. 124-126). Carlos Semedo, a primeira voz poética guineense, tem um poema (“Ansiedade) que se enquadra muito bem nessa temática, datado de Bissau, 1962, e que consta de seu modesto livrinho Poemas, publicado em Bolama, um ano depois. O africano procura adaptar-se, pelo menos exteriormente, ao ambiente e aos costumes europeus, vestindo-se e comportando-se como aqueles que o rodeiam, mas tem consciência de continuar sendo um corpo estranho. A saudade o atormenta e o emigrante anseia pelos ruídos, cores e aromas do seu torrão natal: Visto fato de corte moderno gravata condizente A camisa de fibra sintética assenta impecávelmente Sou peça sombria d’uma Europa patética Minha África distante... A saudade faz-me louco QUERO SER ESBORRACHADO 171 PELAS PATAS D’UM ELEFANTE (SEMEDO, C., 1963, [p. 27]).195 A experiência vivenciada pela volta ao torrão natal, depois de um largo tempo num meio mais desenvolvido, pode provocar reações as mais diversas, tanto naquele que retorna quanto nos que o recebem. No romance A última tragédia, de Abdulai Sila, Ndani fugiu aos treze anos de uma aldeia da região de Biombo para escapar de um vaticínio e, na capital, conseguiu trabalho como empregada doméstica em casa de um casal português. Na cidade grande, a jovem teve o destino de muitas mocinhas que se empregam como criadas: aprendeu bastante bem não só a língua como os costumes portugueses, alfabetizou-se, foi batizada e catequizada pela patroa e violada pelo patrão. Mas, apesar do verniz civilizatório, conservou sua identidade de aldeã, não sendo atingida pelo elã missionário da patroa: “ir à missa ou à catequese era como lavar prato sujo”. “Um trabalho que criado tinha que fazer por obrigação, nada mais” (SILA, 1995, p. 38)196. O fenômeno é geral, podendo-se alinhar exemplos os mais diversos. Os imigrantes, em número cada vez maior nos países industrializados, vivenciam muitos problemas, tanto do ponto de vista de integração como por razões sociais, econômicas e políticas. Portugal, onde o número de africanos de países de colonização portuguesa é grande, não foge à regra, embora os dados ali não sejam propriamente dramáticos, se comparados a outros países de imigração, como a Alemanha contemporânea, por exemplo. Portugal acolheu a primeira grande leva de imigração de guineenses imediatamente após a independência da Guiné e de Cabo Verde (1973/75). Tratava-se sobretudo de africanos aculturados, “crioulizados”, antigos funcionários da administração portuguesa, inclusive soldados africanos que tinham lutado ao lado do colonizador e que não tiveram dificuldades em integrar-se no mercado de trabalho na metrópole, devido à experiência que podiam comprovar. Embora não apresentassem um diploma acadêmico, possuíam uma certa habilitação, adquirida graças ao íntimo contacto com o colonizador, única possibilidade que lhes restara, uma vez que a metrópole negligenciara completamente a formação de quadros. Desses imigrantes, apenas 41% eram trabalhadores, operários não qualificados, enquanto, por exemplo, a percentagem dos caboverdianos na mesma situação era de 65% (CRAUSE, 1998, p. 45 e ss.). Com as crescentes dificuldades políticas e econômicas, que culminaram com a deposição do presidente Luís Cabral (1980), a década de 80 registrou um número muito elevado de emigrantes guineenses não qualificados que abandonaram o país movidos pela necessidade econômica ou por motivos 195 196 Carlos Semedo, nascido em Bolama em 1939, foi o primeiro poeta guineense a ter uma publicação individual, (Poemas), por iniciativa da Imprensa Oficial de Bolama, ainda nos tempos coloniais, modesta coletânea com 18 poemas. Sobre ele, cf. MATA (1992, 1996); AUGEL (1998a,, p. 64-70). No capítulo 4 referi-me a Ndani para exemplificar o fascínio que a jovem aldeã experimentava face às comodidades do mundo moderno, mas não considero incongruente a jovem se sentir, apesar de todas as tentações da cidade, profundamente ligada à sua africanidade. 172 financeiros. É a época da qual trata Filinto de Barros em Kikia Matcho (1997). Lá está espelhado muito fielmente o drama dos emigrantes. A interação entre eles e os portugueses é, na maioria dos casos, quase nula e as condições de trabalho são duras e até humilhantes. Os africanos se viam (e ainda se vêem) obrigados a se submeterem a ocupações pouco atraentes, sobretudo na área da construção para os homens (cerca de 83,5% em 1995, segundo CRAUSE, ib.) e como empregadas domésticas para as mulheres (cerca de 64,1%; ib.), suportando uma jornada de até doze horas de trabalho, muitas vezes sem que fossem pagas horas extras, sem direito a férias, sem segurança em caso de enfermidade ou invalidez. Repete-se, na metrópole, a mesma linha divisória de que fala Fanon e quase a mesma situação de dependência, como reconheceu Mário, imigrante guineense em Lisboa, uma das personagens do romance Kikia Matcho: “Para estes brancos, diferentes dos da época colonial, todos somos pretos, pobres e ladrões” (BARROS, 1997, p. 40). Segundo ainda os dados fornecidos por Julia Crause, os guineenses, como os caboverdianos, ocupam a posição mais baixa na escala econômico-social entre os africanos lusófonos (cf. também BORSZIK, 2004, p. 78 e ss.). Apesar das dificuldades, em comparação com a péssima situação que deixaram no país de origem, os imigrantes gozam de mais vantagens e maior conforto, aceitando por isso mesmo a saudade e as conseqüências da exclusão social. Sentindo o racismo e a discriminação, esses imigrantes vivem majoritariamente em verdadeiros guetos não muito diferentes das favelas brasileiras, em Portugal conhecidos como “bairros de lata”, em geral na região leste de Lisboa, ou em cidades satélites na parte noroeste da capital (BORSZIK, ib.). Ainda segundo Crause, dos 2.457 guineenses em Portugal, 71,3% viviam no começo da década de noventa em Lisboa (ib., p. 94 e ss.)197. Em Kikia Matcho, Joana é o retrato da emigrante típica que um dia havia saído de Bissau à procura de uma vida melhor. Mas já não alimentava nenhuma ilusão, sabendo que em Portugal não passaria jamais de uma estrangeira e não chegaria nunca a um nível social digno; quando muito conseguiria deixar o pardieiro onde morava, um cômodo miserável num prédio em demolição, para alcançar “uma casa do Social” (BARROS, 1997, p. 88), uma morada menos promíscua, num dos bairros populares de Lisboa, verdadeiros guetos de imigrantes pobres, construídos por parte das entidades sociais do governo português. Enfermeira, continuava a ter uma vida paupérrima, apenas sobrevivendo às custas de muito esforço e amargura. Embora não seja um tema tão presente na literatura guineense, como entre os escritores afro-brasileiros, a discriminação racial é 197 Recentemente, em conseqüência da guerra de 1998-99, uma nova onda migratória teve lugar, levando para fora do país, sobretudo para Portugal, não só fugitivos sem maiores qualificações como uma grande parte da intelligentsia guineense. Muitos deles estão bem instalados e com bons empregos, em condições econômicas satisfatórias, o que não favorece a perspectiva de retornar à Guiné-Bissau. O fenômeno do brain-drain, a fuga dos cérebros, é uma das dramáticas conseqüências da instabilidade política e da precariedade econômica do país. 173 mostrada sem amenidade198, tanto através dos solilóquios de Joana quanto, por exemplo, pela reação do filho, que não queria ser chamado de “Chico Preto” ou “pretinho da Guiné que lava a cara com café e vai à missa de lopé” (ib., p. 30)199. Em Kikia Matcho, as causas da emigração são enumeradas pelo narrador onisciente: a falta de víveres, os horrores do racionamento, a falta de competência dos novos chefes, sem qualificação para os cargos que assumiam; os problemas crescentes do país recém-independente, onde o novo poder, “amarrado nas suas próprias contradições”, não conseguia tomar pé ante “a nova realidade dum país carente de recursos humanos capazes” (ib., p. 25). E surtia efeito a propaganda desenvolvida pelo ex-colonizador, que queria provar que os africanos, não satisfeitos com o novo regime, dirigiam-se em massa para a “pátria portuguesa”. Abandonar o país era, pois, como trair a revolução, “renegar [...] a nacionalidade, dizer não à nossa LUTA” (ib., p. 26), conforme o tio havia dito a Joana antes de sua partida. Tal sacrifício não teve a recompensa material tão esperada e os anos numa capital européia a tinham de tal modo distanciado de sua terra e de sua gente que “as coisas que dantes tinham algum valor em Bissau, agora não têm nada a ver comigo”, confessa Joana (ib., p. 84). Joana, embora reconheça ser difícil retornar à terra natal, não parece ter perdido completamente a sua identidade, fazendo questão de educar o filho no amor e respeito às coisas da Guiné, concordando em procurar a djambacus200 ‘N Malé, sua conterrânea, para consultá-la a respeito do estranho sonho com o kikia apresentando a cara do tio morto e, se vivia na “metrópole”, era por não encontrar outra solução. Magia, reincarnação, diálogo com os mortos ou interferência dos antepassados são elementos que fazem parte do cotidiano nos países africanos e representam esteios da organização social tradicional. Na diáspora, mesmo que amortecidos pela distância, afloram com vigor em momentos de dificuldades. “A integração foi um fiasco” (ib., p. 142), conclui Joana. Fora do país de origem, os emigrantes juntam-se num microcosmos em que prevalece a solidariedade básica entre aqueles que vêm do mesmo lugar e a multiplicidade étnica deixa de estar em primeiro plano para dar margem ao entendimento e à confraternização, desenvolvendo-se assim um processo de construção social de um espaço comum que faz as vezes de “pátria” para os deslocados, os póscolonizados. É possível conservar-se um certo cultivo das diferenças que não entram em conflito, pois há um “nós” como base comum a contrastar com a grande barreira quase intransponível e 198 Não me estenderei aqui sobre o assunto, lembrando apenas a vasta literatura existente sobre identidade híbrida e sobre a diáspora. Cf. Stuart Hall, a respeito de raça, cultura e identidade (HALL, 2000 e outros). O hibridismo tampouco é tematizado na literatura guineense. 199 Lopé é uma peça íntima do vestuário masculino dos Pepel, uma tira de pano ou couro com que se envolvem as pernas e as nádegas e se cobre o sexo (SCANTAMBURLO, 2002). 200 Xamã, curandeiro, vidente. A grafia da palavra varia muito e encontram as variantes djambacós, djambakus, para só citar algumas Cf. nota 135. 174 mesmo ameaçadora do verdadeiro “outro”, o “estranho”, no caso a sociedade portuguesa à margem da qual vive uma grande parte dos imigrantes africanos. A aculturação nem sempre se realiza, ou se realiza apenas em parte, devido à distância cultural, a discriminações de natureza racista, a um relativo fechamento da cultura envolvente e majoritária que chega a ser xenófoba, o que provoca como resultado uma estreita coesão social no seio da minoria imigrante. A conseqüência muitas vezes é uma tendência à conservação e mesmo à acentuação dos hábitos e valores da cultura de origem, à revitalização de antigos valores culturais e símbolos da terra natal, deixada para trás. Evita-se, além disso, o contacto com a cultura envolvente e hostil, resultando daí a formação de enclaves comunitários e segregados espacialmente que oferecem uma certa segurança. O romance de Filinto de Barros pode ser lido como uma ilustração dos problemas de emigração e da vida na diáspora a que acabo de referir-me: no pequeno quarto que serve de morada a Joana, alguns outros compatriotas emigrantes vão visitá-la, conforme o costume africano, solidários com seu luto, ao saberem da morte do tio na distante Bissau. O autor se serve desse recurso para reunir no velório alguns tipos humanos característicos do multicolorido mosaico étnico e social daquele submundo: Djaló, “ex-comando fugido das vinganças do Partido pelas atrocidades que cometera”, promovido a pensionista de guerra do governo português (ib., p. 82); Mário, que sonhou em tornar-se famoso como jogador de futebol, achando-se por isso superior, não querendo rebaixar-se nos trabalhos das “obras”; Daniel, o burmedjo (“vermelho”, mestiço, muitas vezes a designação local para os cabo-verdianos), casado com uma guineense amiga de Joana, sendo sempre agredido ou hostilizado por Mário que, por ser “filho e neto dos donos de tchon”, se considerava portanto mais guineense201. Mais tarde, com o desenrolar da estória, aparecem 'N Malé e o marido, dois estereótipos que ainda faltavam à galeria do romancista: sem profissão, a mulher oportunisticamente transformou-se em djambacus, isto é, vidente e curandeira; o marido, ex-militar nas fileiras portuguesas, tinha apenas uma ínfima pensão, pois “não matou com requintes de malvadez, [...] não bebeu sangue do inimigo, logo não teve direito a medalha alguma” (ib., p. 143), vivendo de pequenos expedientes. A ligação com a “metrópole” é ambivalente e problemática para todo emigrante. A consciência da inferioridade e da exclusão por parte da sociedade envolvente, o desejo de ultrapassar a discriminação à custa da aquisição de bens de consumo, de estabilidade econômica, de uma melhor formação profissional estão no cerne de uma crise de identidade que quase nunca 201 Alusão às tensões étnicas entre os guineenses e os cabo-verdianos, tensões que chegaram a um tal extremo que contribuiram para a queda do presidente Luís Cabral (1980) e a quebra da unidade entre os dois países recém libertados. O nome do partido PAIGC continua lembrando essa antiga unidade, desejada e alimentada por Amílcar Cabral, ele próprio guineense de Bafatá, atualmente a terceira maior cidade da Guiné-Bissau, mas tendo passado parte da infância e da juventude em Cabo Verde, antes de ir estudar Agronomia em Lisboa. 175 é completamente resolvida. Por um lado, o desejo de inclusão, de integração e, por outro lado, a necessidade de amparo psicológico, de pertencimento, tudo isso vai levar, apesar das muitas diferenças culturais, ideológicas e mesmo religiosas entre os guineenses, a um agrupamento “étnico”, à busca de uma guineidade compartilhada, onde o reconhecimento dos traços em comum sejam mais fortes do que as diferenças. 5.4 O estranhamento A conseqüência da emigração é muitas vezes um estranhamento, uma inadaptação, em maior ou menor escala; uma perda de identidade, resultando em crise existencial. O indivíduo se sente muitas vezes desenraizado, vítima das forças anônimas do processo de modernização que predomina nos meios urbanos, dividido entre querer voltar ao ambiente que lhe é mais familiar e a tentação das atrações e possibilidades que lhe são acenadas na cidade. Tony Tcheka tem plena consciência dessa realidade e evoca, num poema na língua guineense, “Noba di prasa” (Novidades da cidade), a jovem Binta que sai de sua aldeia natal para tentar a vida num meio maior: Kuma sabi i li na prasa kasabi i la na tabanka [...] ora ku sukuru iabri si mantu na matu sol ta iardi na prasa202 (TCHEKA, 1996, “Noba di prasa”, p. 21-22). A sedução da cidade (a prasa203, isto é, “praça”) e a rejeição da aldeia (a tabanka) são insinuadas pelo confrontamento antitético dos enunciados sabi e kasabi, de múltiplas conotações (aqui significando prazer e desprazer ou prazeroso e desagradável), prasa e tabanka, sukuro e sol ta iardi. Com o emprego desses elementos antitéticos, alinhados numa série de contrastes, o poeta esboça o quadro desolador da falta de perspectivas em todos os sentidos, tanto de formação como de trabalho ou de lazer, que caracteriza o estagnante ambiente dos lugares pequenos: à noite, enquanto a escuridão (sukuru) e a monotonia dominam o mato, lá na cidade, as luzes ainda brilham, cheias de atração, como se o sol ainda ali continuasse a arder (iardi). O poeta vai buscar os sons fechados para sinalizar a escuridão, passando aos sons abertos para indicar os atrativos do outro lado. Os encantos do progresso e do bem-estar do mundo urbano podem ser ilusórios, não trazem nem a esperada fartura nem a almejada felicidade, as pessoas não têm nem mesmo tempo umas para as outras: 202 “Assim como é bom, agradável, aqui na cidade, lá na aldeia é ruim, sem encantos; [...] enquanto que a escuridão abre seu manto no mato, o sol demora ardendo na cidade”. 203 Na língua guineense, o /s/ intervocálico é sempre uma fricativa alveolar surda. 176 ka ten tempu pa bo tarbadju keia diñeru nin pliu! [...] é barankial bida kurpu sinti204 (ib.). De todo modo, nem o conforto nem o brilho da cidade conseguem arrefecer a falta que a jovem sente do lugar de origem, a saudade do vento a soprar nos campos de arroz, nas bolanhas, misturada à sede da água da fonte, à sede de autenticidade: sodadi di bentu di blaña djagasi ku sidi di iagu di fonti (ib.). Tony Tcheka vai expressar num outro poema também a vida difícil e dividida interiormente dos emigrantes, saudosos do torrão natal, inadaptados em terras estrangeiras: Este estar assim sem estar faz mal-estar (ib., “Sonho emigrante”, p. 60). A falta de oportunidades profissionais na Guiné-Bissau, como em tantos outros países do mundo, a estagnação econômica, o mau estado da agricultura e das infra-estruturas sociais provocando o êxodo rural, a ausência de indústrias que criariam lugares de trabalho, são fatores que motivam a saída de muitos: É gente nossa partindo desesperadamente semana a semana vôo a vôo (ib., “Ilusão”, p. 63). A ilusão de uma vida melhor, a perspectiva de salários mais elevados, de liberdade e de autodeterminação podem levar ao fascínio muitas vezes falacioso da emigração. Mas a realidade é bem distinta. O que quase sempre espera o emigrante na metrópole é uma vida de operário não qualificado, trabalho por vezes aviltante, salários de fome e a frustração, fatores que o arrastam freqüentemente, por desespero, ao vício da embriaguez, além da marginalização e do isolamento, os sacrifícios e desilusões são tantos que o fazem envelhecer antes do tempo: Um copo-três tinto do tinto que queima o peito [...] manhãs de invernia 204 “Não há tempo para ti, nenhum trabalho, nenhum dinheiro, [...] a vida sacode-a (a jovem) com violência, a pessoa sofre”. 177 em pleno verão [...] “uma sandes de chouriço” sem manteiga [...] e mais.. um copo e outro no papo-seco [...] Lisboa coisa-boa disseram-me um dia!!! (ib., “Ceia operária”, p. 58). Num outro poema, ele encontra uma expressiva metáfora para traduzir o estado de espírito do eu poético: “Já não caibo nesta concha” (ib., “Sonho emigrante”, p. 60). Tony Tcheka vive atualmente, pela segunda vez, em Lisboa, conhecendo por experiência própria a amargura da inadaptação, a saudade da pátria distante, o perigo do desenraizamento205. De longe entre as sete colinas vejo-te [...] sinto-te sombra minha protegendo as minhas ibéricas noites (ib., “Guiné”, p. 59). A ânsia do regresso provoca miragens no sujeito poético: “aquela ausência demorada / faz-me ver o Geba / subindo sobre o Tejo” (ib.). Por mais que se adapte à vida no país estrangeiro, será sempre um estranho, o que o poeta constata com melancolia: O aceno da palmeira eucalipta o ar e faz a diferença entre mim e ti meu irmão do Norte (ib., “Bilhete postal”, p. 57). Nem todos, ou talvez bem poucos, voltam para viver na terra natal. Os produtos alimentícios “de casa”, a música guineense, as festas e, em alguns grupos, certos rituais, são pontes de ligação com o torrão natal deixado para trás. Da mesma importância são objetos culturais como a cerâmica mandjaca ou as esculturas bijagó, os panos de pente, os tecidos coloridos e tingidos segundo as tradições africanas da região, e mesmo o uso das roupas típicas e dos penteados africanos para certas ocasiões. Entretanto, o traço-de-união mais forte e a força congregadora mais eficiente é a dor comum, o sofrimento causado pela situação de imigrados. A inclusão se efetua, assim, entre os excluídos, formando uma comunidade de sofrimento e insatisfação, de frustração e ressentimentos, mas que lhes proporciona uma certa estabilidade 205 Mas, fugindo da dicotomia assimilação/ rejeição, SCHNAPPER (1991, apud POUTIGNAT-STREIFF-FENART, 1998, p.173), analisando os efeitos da imigração na França e nos Estados Unidos, mostra que a aculturação também pode ser vista por um outro prisma, numa conotação positiva: seria um processo dinâmico de reinterpretação, de negociação e de ajustes culturais, dos quais os imigrados são os atores. Para esse autor, a noção de imigrante deixa de ser encarada por uma dimensão estática, aproximando-se com isso do louvor ao hibridismo, tal como concebido por Homi Bhabha, Edouard Glissant, Paul Gilroy e tantos outros. 178 emocional. A Praça da Figueira, em Lisboa, é, por exemplo, um microcosmo africano, tantos são os imigrantes desse continente que ali se encontram. Carlos Lopes, num dos contos de Corte Geral (1997), refere-se aos emigrantes de logo depois da independência, lembrando que esses, mesmo longe, não prescindiam dos produtos da terra. E, em situação de marginalidade, necessitavam sem dúvida dessas pequenas compensações para fazerem face emocionalmente a uma relação social assimétrica de outro modo insuportável: Os mais velhos, emigrados para Portugal, não dispensavam os sabores mais exóticos que tinham pautado a sua vida: papaia, mango (que nós não dizemos isso no feminino), goiaba, mas sobretudo fole, azedinha, veludo e miséria206. Para já não falar de chabéu207 e outros suculentos molhos pré-preparados. Essas coisas não se vendem nos hipermercados, nem tão pouco “baguitche” (LOPES, 1997, p. 36)208. Carlos Lopes ironiza em muitos dos seus contos o guineense que vai tentar a sorte na “metrópole”. Uma de suas estórias mais divertidas é “O cooperante Malan Djabicunda”, onde narra as peripécias em Lisboa de Malan que, à semelhança da personagem de Filinto de Barros, exerce a profissão de djambakos, atendendo exclusivamente clientes portugueses. Malan foi primeiro proprietário de uma discoteca que não lhe rendia muito, mas ensinou-lhe algo importante. Se havia clientes brancos, portugueses de gema, na discoteca que, embora não soubessem dançar música crioula, lá saltavam de alegria, é porque havia um interesse pelas coisas africanas. [...] Pois Malan não demorou muito a perceber que a coisa africana mais mística e peculiar era o curandeiro. E toca de começar a oferecer consultas [...]. Aprendeu depressa, porque começou a entender que precisava era de responder à ideia – mais do que à realidade – que as pessoas tinham do curandeiro africano. E de consultor anónimo e irregular passou a especialista (LOPES, 1997, p. 108). Do mesmo autor, da coleção de suas saborosas crônicas, destaco ainda o “Mulato cultural”, aquele que era chamado de Chico Fininho, que foi cultivando a sua identidade como mulato assumido. Se lhe perguntavam sobre a sua nacionalidade dizia ser guineo-luso, se o interrogavam sobre a sua música preferida, o afro-new-age e quanto à roupa, usava um par de jeans com feitio de calças de bu-bu, com fundinho209, feito por um costureiro do Cupelon de Baixo (ib., p. 113). 206 207 São frutas silvestres regionais, de sabor acidulado e muito apreciadas. O chabéu (ou tchebeu) é o fruto ou o cacho dos coquinhos da palmeira do dendê, com o qual se prepara um molho à base da polpa dos coquinhos fervidos, resultando disso um líquido espesso, vermelho, muito alimentício e saboroso, usado sobretudo com galinha ou com peixe. 208 O baguitche (também se diz badjiki) é uma leguminosa muito apreciada pelos guineenses, rica em vitamina C e em ferro. Segundo Scantamburlo (2002), a denominação em português é rosela e o nome científico Hibiscus sabdarifa. As flores da rosela quando secas são usadas para infusão quente ou refresco tanto na Guiné-Bissau como no Senegal. 209 O bu-bu é um tipo de túnica comprida e larga, sem mangas, costurada apenas nos lados, usada por homens e por mulheres. O fundinho é um tipo de calça, melhor dizer calções largos e com pregas, usados pelos homens das etnias islamizadas. 179 “Tartaruga Joe” é a estória de José Bonifácio Tartaruga (assim apelidado por causa da sua lentidão e moleza), guineense de Safim, nas proximidades de Bissau, que conseguiu sobreviver na grande cidade através de incríveis malabarismos: Quando a maior parte dos seus colegas de escola, sobretudo brancos de segunda e outros assimilados, tentava arranjar algo nos negócios da família, fossem eles qual fossem, José Bonifácio decidiu que o importante era ir para a metrópole. […] A viagem foi já um primeiro choque. Era o único preto a bordo. […] Em Lisboa, José Bonifácio continuou os estudos e doutorou-se em tudo o que se podia imaginar menos em matérias académicas. De vigarice em vigarice, ganhou uma reputação de fala-barato que tudo sabe e tudo conhece. […] Recentemente, José Bonifácio apareceu de novo na cena bissauense. […] E Tartaruga, no seu estilo lento mas decidido, não hesitava em demonstrar tudo o que tinha aprendido “na Lisboa”. […] decidiu que o melhor era adaptar-se. […] E que lhe chamassem de Tartaruga Joe para mostrar que tinha algo de estrangeiro (ib., p. 157160). Tony Tcheka, exteriorizando de certo modo a própria experiência, tem vários poemas inéditos referentes ao imigrante. Enviou-me há pouco o seu ainda inédito “Angulazada!”, neologismo invulgar que assinala as diferentes interseções dos ajustes e compromissos da aculturação, sobressaltando a imensa distância que existe entre os dois mundos, mas também a inevitável coexistência, chamando a atenção, inclusive, que essa influência se dá em ambas as partes, o (ex-)colonizador sucumbe também aos encantos importados do outro lado. Transcrevo aqui algumas passagens: obtuso o ângulo, na intercepção de um tempo fronteira abriu-se a 360 graus [...] e quando o mar desadamastado anuiu aos encantos do korá o nhanhero traçou a nobel rota cantado o último fado sob o tuc-tuc toc-toc do bombobolom210 benzidas com cálices de porto e palma211 as novas caravelas zarparam ligando o tejo ao geba sem adamastores e sem recear bojadores voltei à terra-branco das sete colinas de infantes conquistadores [...] na tasca do zé alentejano sorvi um copo três saboreei rodelas de bom chouriço [...] fui às docas catingadas de suor antigo 210 211 O korá, o nhanhero e o bombolom são instrumentos musicais. Referência ao vinho do Porto e ao vinho de palma, extraído da palmeira do dendê. 180 de cais em cais fui ouvindo zeca afonso interpretado na dança das gaivotas [...] subi, subi na mouraria, alfama, bairro alto becos de saudade fogueando segredos guardados nos elevadores teimosos [...] eu estava na tugalândia212 sem mordaça mas senti a falta de cafés de boa bica mesas de cavaqueira de tempos estéreis em que eu, tu, nós, éramos os outros [...] hoje estou aqui sem lanhos rancorosos aliviado do peso de naus e caravelas crucificadoras (TCHEKA, “Angulazada!”, inédito). 5.5 O espaço vital O emigrante é, como se viu, um ser freqüentemente inadaptado, deslocado, isto é, fora do seu locus, do seu espaço vital. O conceito de Lebensraum, isto é, espaço onde a vida se desenrola, espaço vital, portanto, ou mesmo simplesmente a bio-esfera, foi instrumentalizado na Alemanha durante o nazismo para justificar a insanidade expansionista dos nacionais-socialistas. Readquiriu, entretanto, sua conotação primeira como conceito utilizado na antropologia e nos estudos sociais, ligado ao da “identidade espacial”, que se poderia chamar também de identificação do indivíduo com o espaço físico e social em que vive. A identidade espacial (räumliche Identität) desenvolve-se como produto da socialização em um determinado espaço de um grupo social com normas, comportamentos e atitudes mais ou menos em comum. A familiaridade que se vai adquirindo no decorrer da socialização com esse espaço físico e social, geralmente a terra natal, cria sentimentos de proteção e aconchego, segurança e continuidade, propicia uma ligação emocional com esse território, desenvolvendo-se, enfim, uma identidade espacial que constitui uma das necessidades básicas do indivíduo213 (MAI, 1995, p. 5). 212 213 Os guineenses chamavam (e na ironia ainda chamam) os portugueses de “tugas”. Sobre o assunto, cf. MAI, 1989; BAUSINGER, 1990. 181 A identificação da pessoa com seu meio social e físico transcende em muito a esfera do intimismo introspectivo, da psiquê, e tem grande relevância para o posicionamento do indivíduo dentro da sociedade e em sua interação com ela. O espaço geográfico é receptáculo e apoio das lembranças biográficas e da memória coletiva e, quando ameaçado por elementos exteriores e exógenos, faz recrudescer a consciência de pertencimento, agudiza a percepção das diferenças e fortalece o apego ao lugar, levando o indivíduo desenraizado a sentir em perigo a sua identidade espacial, seu espaço vital. Longe, na cidade grande, a saudade envolve a pessoa e fazem crescer na memória o espaço físico do torrão natal, que desperta uma força agregadora de grande intensidade. Referências geográficas são parte da comunicação, apontam simbolicamente para um sentido social e guardam uma vigorosa memória histórica e biográfica, contribuindo para um equilíbrio emocional, além de reforçar a “consciência de pertença ou pertencimento”, expressão já utilizada por Georg SIMMEL (1903, p. 41). A saudade provocada pela distância leva o poeta Tony Tcheka a confessadas miragens, fusionando o perto e o longe, justapondo familiares locais da terra natal com o espaço estrangeiro: “Esta ausência demorada / faz-me ver o Geba / subindo sobre o Tejo” (TCHEKA, 1996, “Guiné”, p. 59). O rio Geba está para a Guiné-Bissau como o Tejo para os portugueses214. Certos toponímicos possuem um conteúdo simbólico que lhes empresta qualidades associadas a uma relação social que tem grande efeito na preservação identitária (MAI, 1995, p. 7). “Vinculados estreitamente aos mapas da terra natal”, escreveu Anthony Smith, “estão os sítios de comemoração que unem gerações de uma comunidade em sua terra natal com os contemporâneos e os que ainda não nasceram” (SMITH, 1998, p. 66). O porto de Pindjiguiti, símbolo maior da resistência guineense contra o colonialismo215, é referido em muitos poemas, principalmente nas antologias que marcam o alvorecer da literatura guineense. Encontram-se muitas alusões ao episódio ali ocorrido, lá onde “tudo começou, lá onde o genocídio cometido / contra um povo de paz / fez o marco”, como se expressa de novo Tony Tcheka no poema “Pindjiguiti” (Mantenhas para quem luta! 1977, p. 35). São versos da primeira antologia publicada no país recém-libertado, uma saudação aos heróis combatentes. Nessa e nas demais coletâneas da fase imediatamente após a independência, encontram-se muitas evocações a esse fato histórico. Os lugares, os sepulcros e os aniversários de morte dos mártires caídos durante as guerras estão impregnados de uma simbologia extremamente significativa para a identidade nacional (SMITH, 1998, p. 67) e o martiriológio desempenha um papel fundamental nas 214 O rio Geba é um dos quatro mais importantes rios da Guiné-Bissau. As desembocaduras do Geba e do Corubal formam um estuário muito amplo em cujas margens está a cidade de Bissau. 215 Sobre o porto do Pindjiguiti, cf. nota 192 deste capítulo. 182 cerimônias da nação. Vasco Cabral216 alarga metonimicamente a meia centena de estivadores metralhados na revolta do porto, ressaltando assim o sentimento de que os que se sacrificaram pela causa comum são receptáculos sagrados da nação mesma (SMITH, ib., p. 69): “O meu povo morre massacrado / no cais de Pindjiguiti! (CABRAL, V., Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990, p. 63). Ou ainda, de Tony Tcheka, o poema “Poesia Brava” (TCHEKA, 1996, p. 81-82), que mostra uma teimosa afirmação, certeza de que não foram debaldes as “convulsões” das muitas lutas pela liberdade que exigiram renúncias e provações (“Aprendemos no sofrimento / das manhãzinhas de cuntango / sem pão / sem manteiga”; ib.), mas o sacrifício dos estivadores mortos produziu frutos. O poema é de 1978, ainda impregnado pelo orgulho de finalmente não depender nem de “compromissos” nem de “discursatas”: Cremos no hoje caldeado nas convulsões de Pindjiguiti no amanhã sonho-flor sem recuos compromissos ou discursatas capeadas pelo suave odor da luta (ib., p. 82). Doze anos mais tarde, o mesmo autor externa, numa “Ode a Pindjiguiti”, outros sentimentos. O tropo simbolizando a luta pelo ideal é reunido à imagem materna (recorrente na poesia e na música guineenses), sugerindo com amargura que o sacrifício dos que tombaram não produziu os frutos esperados, as mães não puderam parir a verdadeira libertação: Pindjiguiti é um sonho alado embalado ninado e assumido em colos minguados de muitas 216 Vasco Cabral (1926-2005), o decano dos intelectuais guineenses, nasceu em Farim e faleceu recentemente quase octogenário. Formou-se em Economia, em Lisboa, foi um dos fundadores do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, o PAIGC, tendo sido várias vezes preso por razões ideológicas e tendo vivido muitos anos na clandestinidade. De 1973 a 1995, exerceu o mandato de deputado da Assembleia Nacional Popular em todas as legislaturas. Além de poemas, escreveu textos políticos e textos ligados a diferentes áreas da cultura. Em 1981 publicou A luta é a minha primavera, com poemas escritos a partir de 1951, o que levou Fernando J. B. Martinho a considerá-lo como o iniciador da poesia guineense (MARTINHO, 1981, p. 8). O livro foi traduzido para o espanhol, editado em Havana (1989). Tenho, oferecidos pelo autor, alguns poemas seus inéditos, mas suas atividades poéticas não prosseguiram senão pontualmente depois dessa única publicação. Sobre Vasco Cabral, cf. ainda HAMILTON, II, 1984; AUGEL, 1998a, p. 159-173. No dia 24 de agosto deste ano, faleceu o “Camarada Dr. Vasco Cabral, histórico Dirigente do PAIGC e Combatente da Liberdade da Pátria”, como foi anunciado na imprensa, tendo-lhe sido prestados funerais de Estado (cf. Nô Pintcha, 26.8.2005). 183 mães sem direito 217 a parto (TCHEKA, ib., p. 89) . Da mesma forma, tem sido celebrado pelos poetas o local denominado Brá, a meio caminho da estrada entre o aeroporto e a cidade de Bissau, ensombrado por um imenso e majestoso poilão, árvore considerada sagrada, e onde está um dos quartéis da cidade, tomado pelas forças revoltosas em 1998. Ali se deram muitos combates entre as tropas rebeldes e os senegaleses e a resistência oferecida por esse quartel tem sido na atualidade evocada como símbolo da valentia e da pertinácia dos bissauenses. Como Huco Monteiro expressa no final do seu poema “Sinais de paz”: “Djitu ten na glória de Brá!” (Vamos vencer na glória de Brá!), poema que analisarei em profundidade mais adiante. No romance Eterna paixão, de Abdulai Sila, aparece a referência a Woyowayan, à primeira vista um local fictício, produto da imaginação do autor, onde o protagonista Daniel, depois de ter sido perseguido, preso e torturado, já separado de Ruth, decide instalar-se e, graças a seu empenho e diligência, em pouco tempo aquele pequeno lugarejo transforma-se numa comunidade exemplar: “A vida em Woyowayan mudou. Mudou profundamente. Depois foi a vida das tabancas vizinhas. Era como o fogo numa lala na estação seca” (SILA, 1994, p. 130). O lugarejo Woyowayan-Ko (cuja grafia pode variar: Wèyã-Wèyãnko ou ainda Wèyãnko) está situado no território da atual Guiné-Conakry, nas proximidades da fronteira com o Mali. Tornou-se famoso devido ao episódio histórico ligado à gesta de Samori Turé (1830-1900), um dos maiores e mais famosos chefes africanos, ferrenho e incansável opositor do domínio francês na África Ocidental. Ali em Woyowayan-Ko, um irmão de Samori Turé, que chefiava um dos seus exércitos, teria derrotado os franceses, depois de gloriosa batalha, em 2 de abril de 1882218. Woyowayan, o território imaginado, é mais que simplesmente o sonho utópico de Abdulai Sila. A partir do esboço de uma sociedade ideal, a aldeia Woyowayan reflete tanto a visão do autor a respeito da política, da economia e da organização social de uma comunidade, quanto igualmente revela seu posicionamento face à realidade que o rodeia, diagnosticando os males e as mazelas da sociedade, procurando ativamente soluções. Não é por acaso que o autor escolheu uma pequena aldeia tradicional para ali fazer sua personagem realizar um projeto de desenvolvimento, numa antecipação do que hoje em dia tantos pensam para a África: um respeito e um aproveitamento do tradicional conjugados com a aplicação de um modelo de desenvolvimento integrado e adaptado às reais necessidades do país. E, se não é possível a completa harmonia, pelo menos é imprescindível o empenho da sociedade em aproximar-se de 217 218 Esse poema foi primeiramente publicado na Antologia poética da Guiné-Bissau (1990), p.167. Sobre os acontecimentos históricos ligados a essa batalha, cf., entre outros, PERSON, I, 1968, p.407 e ss. 184 uma maior perfeição. Escolhendo um simples lugarejo no interior como o símbolo da “nação imaginada” (Benedict Anderson), como comunidade de história e de destino (Max Weber), e de cultura (Smith), o autor põe em relevo o lugar dos saberes tradicionais, em geral marginalizados e empobrecidos, apontando possibilidades de coexistência no mundo globalizado contemporâneo, emprestando-lhes um dinamismo e um poder de assimilação e de reapropriação crítica e “antropofágica” (na acepção andradiana) dos saberes endógenos, integrando-os nas necessidades das sociedades modernas. 5.6 A construção social de etnia No exemplo acima citado sobre a aldeia idealizada de Woyowayan, Abdulai Sila refere-se a saberes fincados nas tradições e na memória coletiva dos diferentes grupos étnicos. Na África, a etnicidade foi e é um processo contínuo de construção e reconstrução do social que, no final, se define em torno dos espaços políticos e econômicos (AMSELLE, 1985). Na antropologia, o termo “grupo étnico” designa em geral uma comunidade que se perpetua biologicamente, que compartilha valores culturais fundamentais e cujos membros se identificam e são identificados por outros como constituindo uma categoria diferenciável de outras categorias do mesmo tipo219. Cláudio Maretti dá a seguinte definição: “uma coletividade de pessoas que partilham alguns padrões de comportamento normativo, ou cultura, e que representam uma parcela de um grupo populacional mais amplo, interagindo no quadro de um sistema social comum, por exemplo o Estado” (MARETTI, 2002, p. 24). Grupos sociais são qualificados como grupos étnicos quando, além do forte sentimento de pertença que os une numa identidade coletiva, possuem certas características em comum, como a língua, a história, a religião, a mesma cultura, as mesmas tradições. Os grupos étnicos devem ser identificados sobretudo pelos seus suportes culturais. A identidade étnica é associada a um conjunto cultural específico de padrões valorativos. Já em 1896, Vacher de Lapouge diagnosticava uma certa atração “entre as partes disjuntas e uma antipatia particular para com os grupos sociais de outras origens”220. A tendência é desqualificar os estranhos em favor dos da mesma comunidade e isso constitui mesmo um dos fatores da formação das nações. Max Weber punha em relevo a importância das origens para a constituição dos grupos étnicos, por ele definidos independentemente da existência objetiva de descendência biológica, 219 Cf. Fredrik BARTH. “Grupos étnicos e suas fronteiras”. In: POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p.189190. Nesse livro está reproduzido, como segunda parte, a tradução desse importante ensaio de F. Barth. 220 Vacher de Lapouge, 1896, p. 10, apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p.34. 185 como “convicção de pertencimento” de “grupos humanos que, baseando-se nas semelhanças dos hábitos exteriores ou dos costumes, ou de ambos ao mesmo tempo, ou em suas lembranças de colonização e migração, guardam uma crença subjetiva em sua origem comum” (WEBER, 1964, vol. 1, p. 307). A obra de Fredrik Barth é especialmente relevante para o alargamento do conceito, com sua teoria sobre os grupos étnicos e suas fronteiras (ethnic boundaries). Sua grande contribuição foi deslocar o prisma da abordagem, privilegiando não a constituição interna ou a história dos grupos, mas sim enfocando as fronteiras que os separam. O termo fronteira em Barth é empregado no sentido de critérios de pertencimento e de exclusão, marcando a distância que se estabelece entre o “nós” e o “eles”221. A etnicidade existe tanto como fenômeno “essencial” ou “primordial”, no sentido de Clifford Geertz, quanto também de uma forma mais variável, flexível, circunstancial ou mesmo funcional de pertença étnica, historicamente e socialmente constituída (Barth). Entendo, portanto, a etnicidade como uma categoria que põe em relevo tanto o sentimento de pertença como o de alteridade. O conceito de etnicidade222 interessa à minha análise sobretudo quando pretendo ressaltar a ancoragem social do grupo que sustenta certos traços culturais relevantes para a tomada de consciência identitária, refletida sobretudo nas obras literárias nascidas com o conflito fratricida de 1998/99223. É possível ainda abordar o assunto por um outro prisma, considerando-se uma outra conotação, a de uma “construção social de etnia”, uma vez que tal fenômeno ocorre – ou se agudiza – em situações de crise ou conflito e onde forçosamente se estabelece um binarismo polarizante entre o “próprio”, o “nós”, de um lado e, do lado oposto, o “alheio”, o “estranho”, o “outro”. Ambas as frentes carregam-se de um sistema específico de significados e de símbolos, delimitando claramente os espaços sociais. Também Max Weber já ressaltava que as semelhanças e os antagonismos de hábitos e costumes agem da mesma forma (WEBER, ib., p. 306), isto é, criando identidades. O sentimento de pertença e solidariedade, de um “nós” compartilhado voltado para dentro de um certo limite geográfico, vai despertar o sentimento contrário de exclusão e mesmo hostilidade em situações extremas de tensão e essas emoções são corolários complementares da 221 222 Cf. entre outros POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 187 e ss. Cf. também GARCÍA (s.d.). Barth é considerado um autor básico para os modernos estudos relativos à etnicidade. Seu livro mais conhecido, uma obra coletiva por ele organizada, Ethnic groups and boundaries, já data de 1969. Sua obra marcou um “antes e um depois na antropologia”, como se expressou Santiago García, num artigo disponível na internet, publicação virtual da Universidade de Navarra, Espanha. Não me foi possível detectar a data exata da publicação eletrônica, provavelmente 1999. Cf. a bibliografia final. 223 O conceito está estreitamente ligado ao de nação e identidade nacional, de que tratarei mais adiante. São reflexões a serem desenvolvidas no capítulo 7, especificamente dedicado à idéia da nação e da narração da nação pela tecedura literária. 186 identidade espacial. Na Guiné-Bissau, enquanto guineenses, senegaleses e outros estrangeiros sempre viveram em harmonia em tempo de paz, as diferenças e a antipatia latentes em relação, sobretudo, aos comerciantes do Senegal, país imediatamente vizinho e com o qual existe há mais de um século uma grande tensão devido à disputa pela posse da estreita faixa de Casamansa224, foram exacerbadas de forma violenta por ocasião do conflito armado de 1998/99. A rejeição aos senegaleses foi completa, subindo à tona os ressentimentos provocados pela concorrência, uma vez que os comerciantes senegaleses sempre foram muito bem sucedidos na Guiné-Bissau e ocupam uma grande percentagem do mercado local. No momento em que a soberania nacional é posta em perigo, que o espaço vital de uma comunidade, sobretudo a comunidade alargada que constitui uma nação, é invadido ou ameaçado, nesse momento em que a ação política está na mão de poucos e a sensação de impotência pode deixar o indivíduo (ou o grupo) chegar ao desespero ou a situações limite, a apropriação desse espaço ameaçado pode-se desenvolver num outro plano, pela criação ou pela busca de símbolos já existentes, procurando, com isso, um sentido para a sobrevivência emocional e psicológica (MAI, 1995, p. 13). As formas de coesão grupal com base no espaço social, no sentimento de pertença a um território ou espaço vital que se mostra também pela lealdade ao lugar, traduzem-se num complexo social simbólico que só em parte tem de fato a ver com uma realidade funcional ou factual. O pertencimento étnico fica atenuado, perde a prioridade face à ameaça do “outro”, e o sentimento concentra-se num “nós” abrangendo toda a nação, comunidade simbolicamente imaginada (ib., p. 15). Segundo GARCIA (s.d.), é a história comum que os habitantes de um território vivenciam e é o seu passado compartilhado que nacionaliza um pedaço de terra, um espaço geográfico e preenche o território pátrio de conteúdo mítico e de sentimentos sagrados. Foi o que se deu na Guiné-Bissau por ocasião do conflito ocorrido em 1998/99 e a literatura produzida naquele momento de extrema tensão bem o comprova. A presença dos soldados senegaleses, acorridos a pedido do próprio chefe de Estado guineense, presidente João Bernardo “Nino” Vieira, para ajudá-lo a abafar a “revolta da caserna” de junho de 1998, mudou o caráter daquela guerra fratricida e os sentimentos do povo adquiriram uma nova qualidade225. O território nacional estava de repente ameaçado. Mais do que as fronteiras geográficas, era a fronteira social, e mesmo emocional, que estava em perigo. O território passou a adquirir uma transcendência, passou a ser um atributo cultural e social ao qual foi dada uma prioridade e uma urgência, definindo-se por ele, através dele, a identidade nacional. 224 A posse da região da Casamansa provoca há décadas grandes problemas entre os dois países. Cf. PÉLISSIER, 1989, p. 172 e ss; e MENDY, 1994, p.175-176. Cf. o 2° capítulo deste trabalho, segmento 2.2.6. 225 Sobre essa guerra e as circunstâncias em que ocorreu, cf. capítulo 2.2.6 e 2.2.7. 187 Estava sendo ultrajado o espaço de pertencimento, componente indispensável de toda soberania política, ancoragem simbólica e de fato identificatória, anulando as diferenças, fazendo surgir uma força catalisadora, amalgamando a população de todo o país. A face externa da fronteira, assim como os sinais de diferenciação étnica dentro do espaço-nação, perderam a relevância, consolidando-se uma comunidade de história e destino: o território nacional passou a abrigar uma consciência partilhada coletivamente. A área geográfica, o território, onde se amealham e se entrelaçam o passado e o presente, passou metonimicamente a simbolizar a nação. Naquele momento de alta tensão emocional, o sentimento de coesão étnica , o papel da etnicidade e seu confronto com a alteridade refletiram-se sobremaneira no discurso literário dos autores guineenses. O povo assistiu, entre atônito e horrorizado, à invasão do país por parte dos senegaleses e dos guineenses da vizinha República da Guiné226. O “outro” passou a ser exclusivamente o invasor, esquecendo-se qualquer tipo de rivalidade ou de concorrência entre as etnias do país. É o tema de que vou tratar a seguir. Relações emocionais e cognitivas do indivíduo com seu espaço vital, isto é, com seu ambiente social e material, no qual diariamente sua vida se desenrola, podem ser detectadas de maneira exemplar nos poemas inéditos de Huco Monteiro e de Respício Nuno, escritos durante a guerra civil guineense acima referida. A ligação emotiva ao lugar e a apropriação simbólica do território ameaçado, diante do perigo provocado pela presença dos soldados estrangeiros, tornaram-se extremamente conscientes e dolorosas, despertaram o sentido identitário relacionado a esse espaço, provocando versos lancinantes e acalorados. 5.7 O “nós” e os “fora de nós” O poema “Sinais de Paz”, de Huco Monteiro227, ainda inédito, oferece ocasião para refletir sobre o drama do ser desterritorializado devido a percalços externos à sua vontade. O poeta vê territórios existenciais originais, conforme Félix GUATTARI (1994) – corpo, espaço doméstico, clã, culto – desintegrarem-se em um mundo de representações precárias e em transformação. O seu espaço vital (seu território, sua nação) estava ameaçado e o poeta reage com a intensidade de sua indignação ao perigo, e sobretudo ao opróbio, vindos de fora. Embora seja fartamente sabido que em geral, em todas as etapas da história, o arcabouço formador das nações é constituído pela 226 227 A capital é Conakry e por isso o país é geralmente chamado de Guiné-Conakry. Huco Monteiro (João José Silva Monteiro), nascido a 19 de fevereiro de 1959, até agora publicou apenas em antologias. Formado em Estudos Sociais em Dijon e com pós-graduação em Paris, foi titular de vários ministérios de seu país e hoje é o vice-reitor da recentemente fundada Universidade Colinas de Boé (Bissau). Como poeta, escreve somente em crioulo e está presente com dez poemas na coletânea Kebur (1996). Durante o conflito, pela via eletrônica, enviou a amigos textos de angústia e de pungente beleza mas que até agora não foram publicados. 188 brutalidade das conquistas, ou pelo traçado arbitrário das fronteiras ou ainda por outras circunstâncias quase sempre fortuitas e violentas, esse espaço geopolítico que constitui hoje a Guiné-Bissau adquiriu força congregadora e despertou novo interesse de pertença, confirmando o que Ernest Renan já dizia: ser a nação uma “família espiritual” (RENAN, 1947, p. 903). Importante para esta análise é se ter em conta a qualidade da percepção subjetiva da realidade em relação ao estrangeiro – leia-se, no caso, aqui, sobretudo os senegaleses – por parte da população guineense, durante o conflito. A convivência pacífica e amistosa entre as gentes do lugar e esses estrangeiros mudou radicalmente, passando eles a serem vistos como inimigos, invasores, indesejáveis e ameaçadores. Preconceitos e estereótipos, mais latentes que expressos, com os quais os forasteiros eram desqualificados, à boca pequena, de uma forma branda ou mesmo divertida, foram exacerbados, transformaram-se bem depressa em estigmas. Ao mesmo tempo, o que era familiar e tradicional, assim como os costumes locais, foram supervalorizados e carregados de conotações positivas e laudatórias. Em “Sinais de Paz”, poema de quarenta e dois versos, distribuídos em nove estrofes de extensão variada, Huco Monteiro desenvolve dois pensamentos centrais: o horror ao inimigo e o amor pela pátria. No momento em que as fronteiras do país foram violadas e forças estrangeiras acorreram ao chamado do próprio Presidente da República que receou (com razão) não contar com o apoio nem da maior parte dos militares nem da população, o povo guineense, ultrajado, sentiu sua soberania posta em perigo. A ocupação da capital por tropas estrangeiras despertou no poeta uma emocionada repulsa e os ocupantes são por ele evocados ora com ironia, ora com violência. Rejeitando energicamente a ingerência de estranhos, o poema defende a integridade do território guineense, fazendo uso de linguagem original e criativa, calcada na cultura multifacetada do povo. O sentimento de pertença ao território-nação recrudesceu, as diferenças grupais internas ficaram relegadas a um plano secundário e verificou-se a tomada de consciência dos antagonismos em relação ao estrangeiro invasor, hiperbolizados naquele momento. A lembrança dos onze anos das lutas libertárias volveu à tona, empalidecendo a lembrança de um secular e traumatizante passado de submissões e de rebeldias que, em realidade, desenharam e determinaram o traçado multiétnico da atual Guiné-Bissau. É a lembrança comum e gloriosa da vitória contra o colonialismo que constitui o fundamento simbólico da história do povo guineense, não devendo ser confundido com a história real das populações. “A memória fundadora da unidade nacional”, afirmam Poutignat e Streiff-Fenart, “é, ao mesmo tempo e necessariamente, esquecimento das condições de produção desta unidade: a violência e o arbítrio originais e a multiplicidade das origens étnicas” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 34-36). Essa dialética, englobando a memória e o esquecimento, foi desenvolvida primeiramente no final do século XIX, na obra de 189 Ernest RENAN (1947)228, continuando atual e na base de muitas modernas configurações do significado e da idéia da nação,. Referindo-se a seu país, naquele momento periclitante, Huco Monteiro apropria-se dos símbolos sagrados da nacionalidade, usando enunciados explícitos como “pátria”, “república”, “nossa terra”, “nosso chão” (no tchon), mas também metonímias e sinédoques tais como os topônimos Bissau, Brá, Bissalanka, P’Nghana, barraka (o local reservado e secreto do fanado) e que foram funcionalizados, representando ora ameaça e perigo, ora orgulho, resistência e amor. Vale a pena conhecer o poema inteiro. A tradução literal que fiz para o português não tem intenções literárias e obedece apenas à finalidade de facilitar a compreensão do poema229. Numerei as estrofes e os versos para facilitar as referências durante a análise do texto: Sinais de Paz I. 1 2 3 4 II. 5 6 Sinais de Paz Estamos a ser obrigados [a jogar o jogo] mentu ntidu [com balas dos suruás Bandim [ficou] para trás, Calequir [está] adiante Nós ficamos de pé, assumindo nossa coragem Na defesa do segredo da nossa barraca. Aí estão eles e afirmam com arrogância que não vão regressar [para casa, para o país deles]. Eles não conhecem nem o Kankuran nem o Ussai Plek (eles não conhecem a ameaça que paira sobre eles). [Há aqui] tantos Ndjol, tantos Ndjai, arrenego todos eles Pois eles não trouxeram roupas para comerciarem nem bissap para [venderem] Trouxeram, sim, armas nas costas para caçar a República rebelde. Lá vão eles, os filhos de Ndjai Té e até mesmo os Ndjai Djú Cordas grossas na cintura, Canela seca, cabelo como bosta de cabra. Ai de Djop [que se atrever a ir ] a Bissalanka. A batalha de Brá não vai levar à vitória. [A resina do] binhalé prendeu o pardal no poilão e tu o afogaste na ponte Sibi, Os caçadores senegaleses desembarcaram em Geba e se instalaram até em Nghala Estamos aqui com eles, (inseparáveis) como a rolha e o gargalo da garrafa. Alinu-li na mentu ntidu ku balas surua Bandé trás, Kiliquir dianti Nô firma suma nô matchundadi Na defesa di sigridu di baraka Ali élis li é na njata ka na retourner È ka kunsi nin Kankuran nin Ussai Plek Kada kim kada Ndjol kada Ndjai arnegu di élis Ma é ka tissi nin fuka nin bissap Arma na kosta pa montia Republika rebelde Ala é na bai fidjus di Ndjai Té kuma Ndjai Djú Korda di lantcha na rabada Kanela seku, kabelu kuma bosta di kabra Arnegu di Djop ia Ussalanka Lutu di Brá i ka tchiga fidi lifanti Binhalé un djamba na polon bu fogantal na Puntu Sibi Montiaduris nhominca salta na Djiba i djunki na Nghala Alinu li ku elis suma tap ku bangadje 7 8 9 III. 10 11 12 13 1 IV. 14 15 16 V. 17 228 229 Cf. RENAN, 1947, p.891-892. Cf. nota 6, na introdução. Fui obrigada a desenvolver às vezes certas idéias que, na língua guineense, são expressas de modo muito conciso. Coloco entre colchetes minhas interferências e entre parênteses as alternativas para a tradução. A pontuação, como a numeração dos versos e das estrofes, são minhas. Mas respeitei a grafia utilizada pelo autor. Agradeço a Huco Monteiro as preciosas explicações que me deu, sem as quais não me teria sido possível a total compreensão do texto. 190 18 19 20 Ronku i ku Elis Ma badju di Brá i djambadon Guer lambés na toka sikó djamba na badja kafé kinti Alinu li na kassabi di P'Nghana Kada familia i um stera di tchur Kada surua i un fora di nós ku na padjiga dur na Pátria Ali é nega far kussa di bai kuma Bissau mela tchut Arma na pontada, lunetas suma di Bubu Na Tchut Ali élis li é na sussa lensolis di Pátria È na sibi riba ku bás Suma djintis ku bin nan ten Tchon Alinu li ku returnez na totis Albés ku fomi albés ku sedi Pontada kumpridu Ma é nega bai Ali élis li é na kunfundi M'Pandja ku Psak È na buska Repúblika pa montia Alinu li nô firma tchan Suma nô matchundadi pó di sangui Certeza na kabeça Amanhã suma farol dianti Esperança na pitu Nô ndianta ku nô Terra Pabia di amanhã Djitu ten na glória di Brá! Eles andam sempre bem aprumados, Mas em Brá dança-se é o djambadon. Os veteranos na guerra vão tocar sikó e os djambas [em pânico] [vão dançar muito depressa. Estamos aqui na tristeza [por causa de] de P’Nghana. Cada família é uma esteira de choro (Há um morto em cada família) Cada surua é um fantasma espalhando a dor na Pátria. Aqui eles recusam-se a ir embora pois Bissau é doce como o mel. Armas na ilharga, óculos escuros como os de Bubu Na Tchut, Eles estão aqui a macular os lençóis da Pátria, Vagueiam [pela cidade] para cima e para baixo Como conquistadores que vieram apropriar-se do nosso chão. Aqui estamos com os “retournez” nas costas, Os senegaleses estão famintos, os senegaleses estão sedentos, Suas costelas estão longas, [à mostra], Mas mesmo assim se recusam a ir embora. Aqui estão eles, confundindo M’Pandja com Psak (desconhecendo a topografia da cidade). Eles estão querendo capturar a República. Aqui estamos nós firmes, com o pênis erecto (como verdadeiros machos), Como [o tronco de] um pau de sangue. A certeza nas nossas mentes, O amanhã como um farol à [nossa] frente, A esperança no coração, Avançamos sempre adiante com a nossa terra, [E] por causa do amanhã Venceremos na glória de Brá! VI. 21 22 23 VII. 24 25 26 27 28 29 30 31 32 VIII. 33 34 35 36 IX. 37 38 39 40 41 42 O poeta, portador da experiência coletiva, vai pautar sua escolha lexical pela busca de símbolos referentes ao rico acervo cultural guineense. Muitos dos seus tropos tanto são baseados em imagens tiradas dos rituais das etnias que praticam o culto das religiões tradicionais, como se reportam a costumes das etnias islâmicas. A preservação de uma memória cultural comum é sentida pelo eu poético como um possível baluarte contra a perda da auto-estima e reconhece-se no texto o claro intento de pôr em relevo a unidade dentro da diversidade, numa tentativa de resgatar os valores identitários desmantelados. É patente o desejo de valorizar os elementos étnicos de diferentes origens, numa apropriação símbólica da identidade coletiva e, com isso, contribuir para o entendimento interétnico e fortalecer a unidade nacional. Parece-me oportuno transmitir certos esclarecimentos, pois o acúmulo de metáforas e de 191 símbolos tão específicos da multiculturalidade guineense pode acarretar dificuldades para a compreensão e apreciação do texto. Vou proceder tratando estrofe por estrofe. O sujeito da enunciação parte primeiramente da constatação da desorganização material e moral causada pela luta armada e pela presença de soldados vindos de outros países, indesejados em todos os sentidos, desconhecedores das tradições locais. As metáforas empregadas para manifestar o desagrado pela situação em que o povo se encontra são carregadas de ressentimento. Os estrangeiros, aqueles que estão fora de nós230, o eu poético os arrenega a todos, amaldiçoando-os e ridicularizando-os. Já na primeira estrofe, o poeta revela a força da engrenagem da violência. Os senegaleses (aqui denominados surua) obrigam os guineenses a jogarem segundo suas regras, as do medo e da brutalidade. No primeiro verso, o poeta se refere a um jogo tradicional, o mentu ntidu, da etnia mandinga, mas também usual na cultura crioula, onde ganha aquele que dá o último toque. Esses estrangeiros não estão ali para vender seus produtos, roupas ou alimentos, como antigamente, mas trouxeram armas mortíferas e destruição, sendo desqualificados com violentos pejorativos. Os invasores não praticam as tradições nem conhecem os costumes locais nem muito menos os espíritos protetores nem os rituais, não conhecem os bairros da capital nem muitos locais do país, nem tampouco os jogos nem as brincadeiras, nem as danças típicas. O poeta refere-se ao Bandim (v. 2), o enorme mercado popular de Bissau, centro nevrálgico do comércio informal, onde se pode comprar (e vender) de tudo, desde produtos alimentícios a tecidos, roupa pronta, ferragens, peças para carros ou computadores. Calequir é um outro bairro de Bissau. A baraka, aqui (v. 4), é a barraca do fanado, isto é, como já disse acima, o local onde se desenrola o ritual de iniciação. O fanado é secreto e muito complexo, com muitas etapas e ritos, próprio de muitas etnias do país, e seu desenrolar difere segundo a crença religiosa. Metonímia para a Guiné-Bissau, a imagem sugere que não se admite a ingerência de estranhos231. 230 Em verdade, a expressão “fora de nós” refere-se, na língua guineense, às almas do outro mundo, o que torna o eufemismo dirigido aos senegaleses ainda mais negativo. 231 O fanado é uma importante etapa da vida comunitária, tempo de iniciação quando se preparam os jovens de ambos os sexos para a vida adulta, para a responsabilidade social, instruindo-os, inclusive, para o contacto com os antepassados, ensinando-lhes as tradições culturais do próprio povo (SCANTAMBURLO, 2002, p.207). O termo vem do verbo fana, que remete para uma das práticas mais secretas e decisivas da preparação para a vida adulta e significa “ter cortada a membrana do prepúcio do pênis (circuncisão masculina) ou ter cortados os lábios da vulva ou o clítoris (excisão feminina)”. Algumas etnias praticam a excisão enquanto a menina ainda é pequena, mas muitas vezes essa intervenção se dá na adolescência. Trata-se de uma prática ainda muito divulgada e freqüente, embora tabuizada, difícil de ser erradicada, apesar dos muitos protestos de certas camadas da sociedade que tentam, pelo menos, que a operação se faça obedecendo a certas regras de assepcia. O fanado, entretanto, é mais do que apenas esse momento traumático, podendo alongar-se por meses; compreende diversos rituais e cerimônias, algumas secretas, outras nas quais toda a comunidade participa, como no momento da saída da “barraca sagrada”. Se em geral, para os rapazes, esse rito de iniciação ocorre na juventude, em algumas etnias dá-se o caso de esse momento acontecer apenas bem mais tarde; fala-se de “jovens sociais”, pois pode suceder que o indivíduo só vá para o fanado aos quarenta anos, e só então passa a ser considerado “adulto social” (informação concedida por Teresa Montenegro, a quem agradeço). 192 Na segunda estrofe, as referências culturais locais não se limitam a uma única etnia. Entre os Mandinga, etnia islâmica, o Kankuran (v. 6) é o espírito guardião do fanado. O Ussai Plek é a divindade (o iran) do fanado dos Pepel, Mandjaco e Mancanha, a divindade da mata sagrada onde se desenrola grande parte dos rituais de iniciação e não só. Ambos são espíritos muito poderosos, representados com roupas e máscaras medonhas, e protegem o grupo enquanto está na reclusão, mas também, conforme a situação, são agentes de castigo e repressão. Os antropônimos Ndjol e Ndjai (v. 7) apontam para famílias no Senegal. Fuka (v. 8) é um termo da língua guineense, significa roupa usada para vender, um dos comércios mais lucrativos dos senegaleses na Guiné-Bissau; o bissap, que em crioulo se chama de ondjo, é a floração de uma leguminosa comestível, a rosela, conhecida na Guiné-Bissau como baguitche (hibiscus sabdarifa); de cor vermelha e sabor muito ácido, de muito uso entre os senegaleses mas também entre os guineenses, e dela fazem uma infusão de grande valor nutritivo, rica em ferro e em vitamina C. O ondjo ou bissap é tomado quente ou mais geralmente como refresco. Também do ponto de vista da linguagem, Huco Monteiro lança mão de uma grande mistura: o verbo ndjata (v. 5) é um termo da língua guineense e significa afirmar com orgulho ou arrogância; tratando-se do hiperônimo de jactar-se e de enjeitar, segundo SCANTAMBURLO (2002). No mesmo verso, o poeta utiliza o verbo francês, retourner (voltar, retornar), língua oficial do Senegal, acentuando ainda mais o caráter estrangeiro da invasão. O termo, preferido na forma do imperativo retournez, foi popularizado durante a guerra para designar o militar estrangeiro, postado nos check points instalados nas ruas da capital, pois era uma ordem freqüentemente ouvida pelo povo, instado a parar e não prosseguir nem ousar continuar o caminho por onde ia. Na terceira estrofe, além da referência aos Ndjai, sobrenome senegalês, o poeta acrescenta que ao lado deles estão os Ndjai Té e os Ndjai Djú. Té e Djú são sobrenomes da etnia Pepel, denominativo aqui dos guineenses desnaturados que atiram contra seus irmãos, fazendo a guerra junto aos senegaleses, traindo os interesses da nação (v. 10). No verso 11, há referência às cordas grossas que os soldados senegaleses usam enroladas à cintura e que servem para amarrar o inimigo capturado. Entretanto, permitindo-se mais um desvio de significação, o poeta emprega para isso o termo em crioulo para designar a corda com a qual as balsas não motorizadas, utilizadas na travessia dos rios, são puxadas para a terra. O verso 12 mostra o desprezo pelo inimigo, ridicularizando sua aparência física (seu cabelo é como bosta de cabra), ojeriza reforçada no verso seguinte. O verso 13 é denso em significados, o poeta emprega uma mistura lingüística (e não só). Arrenego significa na língua guineense “ai daquele”, “maldição para aquele”; e a frase se completa na língua pepel Djop ia Ussalanka. Ai daquele estrangeiro Djop 193 (também um sobrenome senegalês) que vai a Bissalanka, que ousa lá ir232. Bissalanka é uma região logo depois do aereoporto, bem próxima a Bissau, ponto muito visado pelos invasores naquele conflito. Trata-se aqui de uma ameaça aos estrangeiros que ousarem ultrapassar a zona que divide as duas fracções. No primeiro verso da quarta estrofe (v. 14), há de novo a referência a um costume das etnias “animistas”: o fidi lifanti é uma competição numa das fases finais do fanado. Trata-se de um evento realizado na véspera da saída da reclusão, um tipo de maratona, na qual aquele que, correndo, alcançar e bater primeiro no tambor é o vencedor. O enunciado tem, na verdade, segundo informação do próprio autor, dois sentidos: ou significa “bater no tambor”, ou pode referir a uma competição que se realiza nessa mesma ocasião e que consiste em o jovem mostrar ter a força e a coragem de segurar um javali e lançá-lo contra uma grande árvore. Essas competições provam a destreza e o bom preparo físico dentre os melhores daqueles que se submetem ao fanado. Vencendo as provas, estão de fato aptos a enfrentar a vida adulta, a nova vida que começa depois dessa fase preparatória. Com essa imagem, o poeta quer expressar que os invasores que lutam para conquistar Brá, local divisor das fronteiras entre os senegaleses e os rebeldes guineenses, não serão os primeiros a alcançarem o tambor ritual, ou a vencer a maratona; eles não vão, portanto, chegar à vitória final. O verso 15 expressa que guerrear contra os senegaleses é tão fácil de ganhar como apanhar passarinhos e depois jogá-los na água para afogá-los. O djamba é um passarinho pequeno de plumagem escura, tipo pardal; e o autor está aqui fazendo um trocadilho com o termo djambar, mais uma das muitas expressões para designar o senegalês. O djambar (o inimigo senegalês) foi capturado, ficou preso, grudado no poilão (grande árvore local, tida como sagrada), como se fosse o passarinho djamba; para o combate ao inimigo foi utilizado um método tradicional usado na caça, isto é, passando-se uma resina chamada binhalé nos galhos das árvores, para que as aves fiquem grudadas nessa resina e possam, assim, ser facilmente capturadas. Continuando nessa estrofe a desfiar os momentos de vitória, os guineenses, diz a voz poética, derrotaram sem dificuldades os senegaleses na ponte Sibi, local perto de Bissau, onde houve um grande número de mortos, local que assinala uma das fronteiras entre as duas forças antagônicas. O verso 16 refere-se aos Nhominka, indicativo do povo Serere, do Senegal, um povo de pescadores, etnia que também se encontra na GuinéBissau233. Esses “caçadores senegaleses” chegaram ao rio Geba (Djiba) e mesmo até a aldeia balanta de nome Nghala, isto é, adentraram-se pelo interior do país, sinal de grande ameaça e perigo. 232 233 Agradeço a Odete Semedo as explicações a respeito. Costa e Silva refere-se aos “niomincas, os habilíssimos canoeiros, que falam serere, vivem nas ilhas do estuário do Sine-Salum” (SILVA, 2002, p.153). A grafia varia: niominca, nyominca, nhominka. 194 Na quinta estrofe, o poeta expressa com desgosto o quanto o convívio com o inimigo é desagradável. Eles não querem sair, estão agarrados aos guineenses como se estivessem colados um ao outro, como a rolha está presa ao gargalo da garrafa (tap ku bangadje, v. 17). Os senegaleses podem mostrar-se superiores, roncarem (v. 18), que é o termo na língua guineense para vangloriar-se ou para apresentar-se bem vestido. Podem estar bem bonitos e bem trajados para o baile (isto é, muito bem armados), mas o baile de Brá234, isto é, a guerra, embora pareça fácil (festiva), não o é; pois eles não sabem dançar a dança ritual e por isso mesmo vão de lá sair fugidos, derrotados, portanto (v. 19). O último verso da estrofe é cheio de imagens diretamente ligadas à história das lutas gloriosas da libertação (guer, a “guerra”). A lembrança das vitórias obtidas naquela ocasião é acentuada pela referência aos lambé235, aqueles que já tiveram a experiência de luta, o batismo do fogo. Esse substantivo é aqui utilizado transgressoramente como adjetivo (guer lambé). Os veteranos da guerra da libertação, os assim chamados antigos combatentes pela liberdade da pátria, sabem lutar e os senegaleses fogem em pânico. A imagem utilizada para a idéia de guerrear é, entretanto, de novo ligada à cultura local: os antigos combatentes eram animados com canções marciais acompanhadas do sikó, instrumento de percussão (espécie de pandeiro), típico da região. Com a força encantatória de seus versos, o poeta ressalta que esses valentes guerreiros que já demonstraram seu valor, vão agora vencer os inimigos com o som da sua música e fazê-los fugirem de medo (“dançar muito depressa”). A expressão corrente da língua guineense para “muito depressa” é também uma metáfora pitoresca: kafe kinti (v. 20). Firmar a fraternidade e pôr em relevo a unidade da nação guineense são as duas aspirações máximas do poeta. Nesse sentido, Huco Monteiro apela para as glórias passadas, para o papel heróico dos antigos combatentes da liberdade da pátria, pois a guerra anticolonial continua a ser o orgulho nacional. A evocação histórica é seguida pela referência a heróis da guerra atual e às vitórias alcançadas. Com isso, o autor faz intencionalmente a ligação entre dois momentos importantes para a história pátria, a guerra da independência e a guerra que a GuinéBissau estava vivendo naquele momento. Essa justaposição, essa interpenetração da atualidade no pano de fundo do passado, é de suma importância e grande força retórica. Foi a guerra anticolonial do país que fez surgir a nação guineense; é a guerra contra os estrangeiros que de novo está unindo a nação contra o novo inimigo. Foi a guerra da independência que fez surgir os celebrados heróis da liberdade da pátria; os heróis atuais estão lutando com a mesma bravura. Foi a guerra passada que unificou a diversidade das etnias e as fez superar os antagonismos 234 Já me referi à importância de Brá neste mesmo capítulo, um pouco atrás. Atualmente, a cada aniversário do início do conflito, são depositadas coroas de flores ao pé do poilão de Brá. 235 Os lambés são aqueles que já participaram das cerimônias de iniciação sendo, portanto, mais experientes. 195 existentes; é a guerra contra o inimigo externo atual que fez o povo reunir todas as forças com a mesma finalidade. E assim como a guerra da independência foi vencida gloriosamente, o mesmo ocorrerá naquela que se estava desenrolando no momento da elaboração do poema. A sexta estrofe expressa a profunda tristeza e o grande desgosto causados pela guerra. P’Nghana designa uma região sagrada da etnia pepel, ao norte de Bissau, e aqui o termo é tomado metonimicamente para indicar a zona do conflito (v. 21). A esteira de choro (v. 22) é estendida nas cerimônias fúnebres de muitas etnias, quando as mulheres se sentam numa esteira para carpir a dor. Há mortos em todas as famílias, os invasores, como espíritos maus, espalham o sofrimento por toda a pátria (v. 23). Novamente imagens locais colorem o poema na sétima estrofe. Para expressar como os estrangeiros estão gostando de estarem aquartelados na cidade, o poeta revela que “Bissau é tão doce como o mel”, reforçando a afirmação com o advérbio crioulo de intensidade tchut (v. 24). No verso seguinte, é feita uma referência a uma vivência histórica daquele momento: [Américo] Bubu Na Tchut236 é o nome de um dos comandantes da Junta Militar que se levantou contra o então presidente Nino Vieira; era um militar muito temido e famoso durante a guerra que se estava desenrolando (1998/99), apresentando-se sempre de óculos escuros (lunetas, na língua guineense). Um efeito colateral de toda ocupação militar é o relacionamento entre os soldados e as mulheres da região. A violência dos estrangeiros se estende às mulheres guineenses, violadas e vilipendiadas. Mas também há relacionamentos não conflituosos entre os dois sexos, sugerindo uma colaboração com o inimigo, e ambos os casos constituem uma vergonha que suja, macula “os lençóis”, isto é, o mais íntimo de toda a pátria (v. 26). Aqui nesta estrofe aparece de novo a expressão jocosa “retournez” (v. 29), como substantivo, para designar os senegaleses que, embora passando necessidades, estando magros, com fome e com sede (v. 30, 31), persistem em continuar no país como invasores. A oitava estrofe ressalta o caráter estrangeiro do inimigo, mostrando como ele desconhece a topografia da cidade e confunde M'Pandja com Psak (topônimos designativos de bairros de Bissau, v. 33). Mas nem por isso desiste de guerrear contra a “república”, isto é, contra um país soberano. O verbo da língua guineense utilizado, montia, significa exatamente “caçar”. O pau-de-sangue (po di sangi, v. 36) é uma das árvores típicas da região, de madeira muito rija e, sendo difícil de ser cortada, simboliza firmeza. Em língua guineense, o termo matchundadi corresponde a “macheza”, no sentido de coragem. Aqui, porém, a idéia de firmeza e coragem reunidas para a defesa da pátria é expressada de forma extremamente irreverente, pois 236 Tchut é um advérbio de intensidade, mas que nada tem a ver com o sobrenome balanta Na Tchut ou N’ Tchut, referido na sétima estrofe, verso 25. 196 a expressão no firma tchan no matchundadi (v. 35 e 36) tem inequivocamente o sentido pornográfico de um vangloriamento do macho (firma mantchundadi significa demonstrar a macheza “com o pênis erecto”), como homens de verdade. O poeta lança mão de duas metáforas conjugadas, já que o termo pó, “pau” (árvore), também é um símbolo fálico. O pau-sangue, juntamente com o poilão, são símbolos positivos e importantes da pátria237. Na última estrofe predominam otimismo e orgulho nacional. Huco Monteiro vislumbra um futuro melhor para seu país, ousando sonhar entre bombas e destruição. Os guineenses não desistirão (Certeza na kabeça, Esperança na pitu), lutarão até a vitória final. Resolutos e firmes como o pau-de-sangue, lá seguirão eles, rumo à vitória, alegorizada na imagem familiar a todo guineense, pois a estrada de Brá, como já foi dito, marcou uma fronteira cruenta entre as tropas adversárias no conflito de 1998/99: djitu ten na glória di Brá. Djitu ten é uma expressão típica da língua guineense, usada mais correntemente na forma negativa: djitu ka ten (não tem jeito, não há solução ou saída), denotando, inclusive, o espírito conformista e fatalista atribuído à maioria da população, motivo de crítica e censura para aqueles que tentam mudar a situação precária do país. Na euforia da campanha política para as primeiras eleições multipartidárias, acontecidas em 1994, em oposição ao derrotismo pessimista que então reinava, procurou-se mostrar que o país não estava em situação de calamidade, havia uma saída sim, para o progresso e o desenvolvimento. Djitu ten238 é uma exclamação de confiança e pertinácia, afirmação final de crença no futuro da Guiné-Bissau. A história comum e o passado compartilhado nacionalizaram um pedaço de terra e preencheram o território (nacional) de conteúdo mítico e de sentimentos sagrados (GARCÍA, s.d.). Uma atividade racional, como é o caso da defesa do território, fator, portanto, externo e até certo ponto ocasional, pode favorecer a emergência de uma consciência grupal alargada ou a eclosão de um sentimento de dever moral ligado à defesa da pátria (WEBER, 1964). No caso do conflito armado de 98/99, vê-se claramente que a “defesa da barraca” é menos a proteção do território real, que não foi propriamente ameaçado na sua integridade física239, do que do território emocional e simbólico, e tal atitude esteve acima do sentimento étnico, priorizando-se apaixonadamente a defesa da soberania e unidade da nação guineense. Para os grupos, o sentimento de honra social compartilhada por todos, além da crença subjetiva comum de constituir uma comunidade, é sumamente importante, daí a lembrança em tantos poemas das lutas libertárias ocorridas no passado, fundadoras da nacionalidade, quando a nação guineense 237 238 Aqui, como em outras passagens, sou grata a Teresa Montenegro pelos esclarecimentos dados. Ou, com mais ênfase ainda, é comum ouvir-se djitu ten ke ten. A expressão foi também usada como título dos Estudos Prospectivos Nacionais a Longo Prazo (National Long Term Perspective Studies), conduzidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, o INEP, a partir de 1992. Expressa um voto de confiança no país. 239 Apesar de existirem, sintomaticamente, rumores sempre renovados sobre pretensões senegalesas em relação a uma posição hegemônica na região. 197 começou a dar seus primeiros passos. A relação que se estabelece entre os vivos e os mortos, entre o passado e o presente é – como já afirmei anteriormente, apoiada em tantos autores – de ordem espiritual e da maior importância, sendo recorrente na literatura guineense. 5.8 Motivos do “desassossego da Guiné” A novíssima literatura guineense reflete, ao lado desses fortes sentimentos de pertença em relação à nação-território, igualmente o receio da desarmonia entre as etnias e a preocupação face a uma instabilidade social por motivos de ambição política ou de idéias separatistas que o tribalismo pode acarretar240. Cabe aqui uma breve retrospectiva, para uma melhor compreensão do pano de fundo dos poemas tratados neste subcapítulo. Até 1974, na Guiné-Bissau (e não só) os quadros qualificados eram muito reduzidos, devido ao descaso do poder colonial a respeito da formação profissional ou acadêmica dos colonizados241. Depois da independência, enquanto a massa dos antigos combatentes, os soldados simples e iletrados, não foi agraciada com vantagens nem benesses, não teve compensações nem materiais ou financeiras nem morais, uma pequena elite, formada sobretudo dos chefes militares, considerados heróis nacionais, e seus protegidos, passou a ocupar os principais postos administrativos e políticos, cumulando-se de privilégios. Ao lado dessa elite militar, atuante e poderosa, mas nem sempre instruída, está uma camada de antigos funcionários coloniais, muitas vezes de sólida formação, e de onde se constituiu a intelligentsia do país, e que representou no passado o papel de pára-choques entre os administradores externos e o território administrado. Gayatri Spivak denomina essa classe de indivíduos, presentes nos territórios colonizados de todo o mundo, os “sujeitos coloniais”, recrutados, com diferentes graus de sucesso, geralmente, embora não invariavelmente, a partir da elite nativa. São eles que vão mais tarde, com a descolonização, formar a burguesia nacional, e é essa burguesia, juntamente com a elite militar, que vai forjar uma certa “identidade nacional” (SPIVAK, 1994, p. 192). O neocolonialismo, como já vimos no capítulo 4, iria completar o trabalho de catapultar cada vez mais as massas para a periferia. Durante décadas imperou esse status quo, mas a abertura política, o multipartidarismo, o ajustamento estrutural, a liberalização econômica foram transformando a situação e tornando mais ágil a mobilidade social242. 240 241 Sobre tribalismo, cf. nota 186 neste capítulo. Sobre o assunto, cf. entre outros KOUDAWO, 1996. 242 Com a liberalização econômica que teve lugar desde 1987, deu-se um grande surto de urbanização; a população de Bissau cresceu de 80.000 habitantes em 1975 para 300.000 em 1996, segundo as estimativas. A população do país, hoje, é estimada em 1.500.000 habitantes, dos quais cerca de 300 mil vivem em Bissau. 198 O despreparo e a sede de mando por parte da elite já eram previstas por Cabral, que externou essa preocupação em muitos dos seus escritos e discursos. As arbitrariedades e os abusos do poder chegaram ao limite máximo de tolerância e o resultado foi o conflito armado de 98/99. O povo, inclusive a numerosa classe castrense243, vem tornando-se cada vez mais insatisfeito com as promessas não cumpridas, pois os salários, mesmo baixíssimos, continuam a não ser pagos com regularidade, as greves se multiplicam, o governo está cada vez mais desacreditado e impopular, fragilizado por grandes tensões políticas que constituem uma permanente ameaça à débil paz instaurada desde o final do século. Como se pode ler nos jornais guineenses, hoje em dia numerosos e muito atuantes, refletindo o clima conjuntural do momento, o conflito de 98/99 nada mudou, a população continua com as mesmas dificuldades e restrições. Um dos problemas é a sombra do tribalismo, nomeado abertamente pela imprensa, execrado mas instrumentalizado, fazendo parte dos cálculos políticos. São muitas as vozes que se levantam contra esse jogo imprudente que pode ter sérias e irreversíveis conseqüências futuras. Daí a insistência, por parte dos autores aqui estudados, em acusar a desarmonia e em temer o “desassossego”, exaltando paralelamente a união e a fraternidade, ao mesmo tempo em que criticam certos dirigentes que, por ambição política, forjam e provocam artificialmente a concorrência e o desentendimento entre as etnias. Para o leitor ou a leitora exógenos, que não têm conhecimento da língua guineense, a fruição completa dos textos que ilustram este capítulo torna-se talvez um pouco difícil. Acrescentese o provável desconhecimento de muitos pormenores do contexto histórico e cultural, dada a pouca informação existente sobre a Guiné-Bissau. Os exemplos que tenho aqui trazido evidenciam a estreita ligação e a interação entre discursos literários e esse contexto, a literatura funcionando como um processo de reflexão sobre a cultura (LEITE, 2003, p. 46) – e, acrescento, de mediação também. Apresentarei a seguir alguns exemplos de poemas nos quais, embora tivessem sido escritos no mesmo período que o poema de Huco Monteiro, e embora tratem do mesmo tema, são bastante diferentes, pois a ótica de Respício Nuno recai sobre os resultados morais da desordem interna que cumulou com o conflito armado e prosseguiu existindo depois do cessar fogo. Em seus poemas, dos quais escolhi três, o poeta enfatizou menos o horror ao inimigo do que as razões internas que levaram o país à desgraça e ao descompasso, expressando seu grande desgosto, revolta e até ojeriza pelos atos dos conterrâneos responsáveis pela má governança. 243 Um dos grandes e não resolvidos problemas do país é a questão do soldo dos militares e as condições indignas de pobreza e abandono em que a grande maioria dos antigos combatentes se encontra. Tratarei desse assunto ao analisar o romance Kikia Matcho (BARROS, 1997). 199 Em Respício Nuno244, como em Huco Monteiro, está bem nítida a presença de uma intenção testemunhal e acusadora, provocada por esse acontecimento limite, extremo, que foi a vivência da guerra. Trata-se de uma poesia anti-épica, com seu eixo corrosivo e o efeito desconstrutor da palavra. Recebi de Respício Nuno, datados de 1999, dois textos em português e cinco na língua guineense, com pesadas críticas cheias de ironia em relação aos políticos e ao governo, ao lado das demonstrações de repúdio pelos horrores vivenciados na guerra. Os títulos revelam logo de saída o estado de espírito do eu poético: “Disasusegu di Guine”, “Disgraça”, “Rais di fel”, “Praga”, “Ermondadi”. Como os textos são inéditos e de difícil acesso, reproduzirei três poemas na íntegra, acompanhados da tradução em português245. Antes, porém, uma breve explicação sobre o difícil problema da transposição gráfica dos textos na língua guineense. Respício Nuno emprega a grafia oficial, segundo a Proposta de Unificação da Escrita do Crioulo, implantada pelo Ministério da Educação, Cultura e Desportos da Guiné-Bissau em 1987, mas que encontrou poucos seguidores. Até hoje a enorme flutuação da grafia da língua guineense é um dos argumentos para os que persistem em negar a capacidade do crioulo de se estabelecer como língua escrita. A tendência da maioria dos autores é preferir uma escrita “filo-portuguesa”, isto é, mais aproximada do português, em oposição à “escrita científica” (COUTO, 1994, p. 80). A dificuldade está principalmente nos grafemas de fonemas inexistentes em português. Na transcrição abaixo dos poemas de Respício Nuno, conservo sua grafia, com duas exceções: para facilitar a leitura dos textos mudei para dj e tch246. A numeração das estrofes é minha, assim como a pontuação, acrescentadas para facilitar a leitura. 244 Respício Nuno Marcelino da Silva nasceu a 10 de novembro de 1959, em Bissau. De 1983 a 1991 estudou na Rússia, no Instituto Lingüístico de Moscou, concluindo com um mestrado seu curso superior. Até hoje não publicou nenhum livro individual. Está presente com uma dúzia de poemas em crioulo na antologia Kebur (AUGEL, 1996a) e escreve muitas vezes em parceria com Eduíno Sanca, sob o pseudônimo de Bnur-Bater. Tem também muitos contos na língua guineense, igualmente inéditos. Tem exercido vários cargos de chefia na administração do país, tendo ocupado diversas vezes a pasta de Secretário Geral da Cultura e dos Desportos, cargo em que se encontra no momento (setembro de 2005). Agradeço a preciosa ajuda do autor não só para a tradução dos textos como pelos esclarecimentos do contexto cultural de muitas das imagens por ele empregadas. 245 Quanto à tradução, cf. nota 229 neste capítulo. 246 O fonema /dj/ é grafado, por exemplo, pelo autor apenas com j, tal como o fonema /tch/ é grafado c. Em atenção aos leitores de língua portuguesa, utilizei também aqui a grafia mais próxima da fonética (dj e tch). A proposta do Ministério da Cultura vem sendo em geral ignorada e a conseqüência é a edição de textos com base em diversos sistemas ortográficos ou mesmo em nenhum, resultando em incoerências e incompatibilidades. O maior problema decorre de certas ambigüidades com o sistema do português. A tendência atual, porém, é grafar-se o tch e o dj segundo a pronúncia corrente da língua guineense. Os grafemas ou letras j e c indicam, no sistema fonológico guineense, as consoantes africadas pré-palatais / t∫  (surda) e / dʒ (sonora), enquanto que em português indicam respectivamente a fricativa pré-palatal sonora / ş / e a fricativa surda alveolar /s/ ou ainda a oclusiva velar /k/ (SCANTAMBURLO, 1997 e 2002). Prefiro, por isso, empregar tanto dj como tch para grafar esses fonemas, pois as letras d e c correspondem em português a outros fonemas, o que poderia causar confusão e levar a uma pronúnica inadequada das palavras desconhecidas. As palavras grafadas na língua guineense com /s/ intervocálico são pronunciadas com o fonema que corresponde à alveolar surda do sistema fonético em português e não à alveolar sonora. 200 Destaco primeiramente o longo poema com o título “Disgrasa”, com setenta e três versos em quatorze estrofes de extensões desiguais. A tradução literal desse título é certamente “desgraça”, embora talvez a idéia de calamidade melhor exprima o sentimento do autor. O poeta faz uma crítica aberta e direta a aqueles antigos combatentes da liberdade da pátria, que subiram na hierarquia e atualmente são donos do poder, aqui chamados pelo autor de “donos do mato”. São os comandantes de ontem que hoje ocupam os lugares-chave da governança, “golpeando as costas do povo inocente”. O egoísmo e a falta de escrúpulo de alguns ocasionaram a desgraça e a miséria que vieram com o descontentamento, a decepção e, como derradeira conseqüência, a recente guerra, arrasando aldeias e cidades, dividindo e enlouquecendo o povo, lançando a discórdia entre as pessoas, engordando os abutres que se banqueteiam com os corpos queimados ou mutilados. Vejamos o poema na íntegra: Disgrasa II. 1. 2 3 4 5 6 7 8 9 II. 10 III. 11 12 13 14 15 16 17 18 IV. 19 20 21 22 23 24 25 26 27 V. 28 29 30 Sintadu na baranda di simuladu Puera di yagu fungulin uju Junbulin ku kudadi Na kil tenpu di fanadu Ku dunus di matu Na latchi kalef Na kosta di pubis nosenti Kalef di fugu Kalef di fugu? Es gora i disgrasa! Kasadias konkoñi Kurpus tisna Utrus padasa Pubis nbuldja sin paraderu Moransas padasa Pabia kañako di kasisas Mortundadi laga Disgrasa balia pubis Tenpu di junta baloba ka ten Irans panta Duensa muñungu Kabesa di jintis Dudisa ku tisi disgrasa Disgrasa ku leba fartura Di jugde Jugde ku bisia kemansa Kemansa di banbaran di Guine Kasisas ku pekaduris Na torkia dala Plitikerus bida pasenserus Desgraça / Calamidade Sentado na varanda como um esmoler a poeira da água (um véu de lágrimas) embaciando os olhos a razão [misturando-se confusamente] com a preocupação Naquele tempo do fanado Com os donos do mato Golpeando com a catana (o facão) nas costas do povo inocente Golpes de fogo Golpes de fogo? É o momento da desgraça (Isso agora é uma calamidade!) [Os moradores d]as casas acorrem para ver os corpos queimados Outros despedaçados (mutilados) o povo corre sem destino (em pânico) aldeias destruídas pela lança das kassissas A mortandade se espalha A desgraça divide o povo Tempo para rituais [e sacrifícios] não há os irans estão chocados as doenças se alastraram as pessoas endoideceram e isso trouxe a desgraça A desgraça que levou fartura para os abutres abutres que vigiaram os incêndios O incêndio do berço da Guiné As kassissas e as pessoas (os mortos e os vivos) vão trocar as roupas (misturam-se, não se sabe quem é quem) Politiqueiros viraram intrigantes 201 31 32 33 34 VI. 35 36 37 38 VII. 39 40 41 42 43 44 45 VIII. 46 47 48 49 50 51 52 53 54 IX. 55 56 57 58 59 X. 60 61 62 63 XI. 64 65 XII. 66 67 XIII. 68 69 70 XIV. 71 72 73 Sintidu na kabas garandi Kabas garandi ku tisi disgrasa Disgrasa ki nudadi Ku barsa Guine Guine ku as almas na disfindra Suma manpatas Ermondadi rapati Suma Blama ku San Jon Disgrasa trapaseru Disgrasa mofinu Disgrasa futseru Ku misti gasija na Guine Disgrasa ku kabesas mandintis Na sumia E na sumia son Disgrasa ntemus Ku ka misti kunpaña Ku rabida di tenpu Ku misti tujinu mati Flura di kaju Ku misti tujinu mati Tchigada di ñominka Ku misti mainanu Yalsa stera di tera E disgrasa Ku pu n'medi N'medi ka mundu Bin turbida N'bes di rabida N'medi Ku tera Ku sinta na balei i na pera feki N'medi Ku kabesa di Guine N'medi Ku korson di Guine N'medi Pa ka disgrasa Kontinua disgrasia Guine N'medi ku Guine Kila son kun medi E disgrasa di nudadi. A razão está posta na cabaça grande cabaça grande que trouxe a desgraça Desgraça que é uma má notícia (desgraça da desgraça) que abraça a Guiné Guiné onde as almas (os mortos) cairão como os frutos do mampatas A fraternidade está [tão] separada como Bolama [está longe] de São João Desgraça trapaceira Desgraça mofina Desgraça feiticeira que quer hospedar-se na Guiné Desgraça que as cabeças insanas estão a semear E vão semear cada vez mais Desgraça teimosa que não quis acompanhar a mudança dos tempos e quis impedir-nos de presenciar a nova floração do caju que quis impedir-nos de presenciar a chegada dos nhominkas/ pescadores que quis impedir-nos de levantarmos a esteira do chão Essa desgraça (calamidade) que me dá medo tenho medo que o mundo caia no caos em vez de mudar para o bem Tenho medo da areia (das impurezas) que está no balaio esperando ser sacudida (jogada fora) Tenho medo das cabeças da Guiné (do estado mental) Tenho medo do coração da Guiné Tenho medo que a desgraça continue a desgraçar a Guiné Tenho medo pela Guiné é só disso que tenho medo dessa desgraça das desgraças. O poema inicia exprimindo na primeira pessoa a impotência, o eu poético identificando-se como o esmoler que nada tem, pois tudo perdeu e, envolto na tristeza, relembra o tempo do fanado, isto é, o tempo da preparação para a vida. Para tornarem-se resistentes a toda dificuldade, viviam os iniciandos durante um certo período no mato sagrado e tinham que sofrer certos castigos, como 202 golpes ou pancadas com o kalef (a catana ou facão; v. 6). A imagem referente aos “donos do mato”, em princípio as divindades, chamadas de irans, confunde-se com a dos antigos combatentes, heróis quase sagrados também e que igualmente viviam nas florestas como guerrilheiros (v. 6). Mas esses, hoje, utilizam a catana (o facão) para pancadas nas costas do povo inocente (v. 7), que neles confiou, e esses golpes não são para um castigo ou provação construtiva, mas sim trazem a dor, a miséria e a desgraça, são verdadeiramente golpes de fogo (v. 8 e 9). A segunda estrofe, com um verso apenas, enfatiza a dramaticidade da situação, a guerra sendo conseqüência da má governança. A terceira estrofe traz a evocação de momentos da guerra (v. 11-15). O povo é atingido pela lança mortífera das kasisas247 (v. 16), almas penadas portadoras da desgraça, espalhando a morte e o desespero, enquanto o povo está dividido, os indivíduos culpando-se uns aos outros, desirmanados. No verso 18, o autor emprega uma imagem retirada do cotidiano doméstico, dos afazeres femininos, utilizando o verbo balia para expressar a divisão e hostilidade que estão crescendo no seio das etnias; balia é a ação de agitar a peneira para separar a palha (e outras impurezas) do arroz. As mulheres jogam com destreza o cereal para o ar, a parte leve é levada pelo vento, restando no fundo das grandes peneiras somente os grãos comestíveis. Até mesmo as divindades se espantam (panta, quarta estrofe), estão chocadas com tudo o que está acontecendo no país. As pessoas, em pânico (sem paradeiro, sem destino), perdem a cabeça, endoidecem (dudisa), não encontram nem mesmo tempo para consultar os oráculos ou os sacerdotes, ação que está expressa no primeiro verso dessa quarta estrofe com a expressão (d)junta baloba. A baloba é o local sagrado das etnias que praticam a religião tradicional, abrigando os símbolos da família ou da aldeia; local aonde se vai para consulta e veneração, para onde o crente leva oferendas para os sacrifícios rituais. Pode ser também o altar familiar, onde pairam as almas dos antepassados. Os abutres, atentos e ávidos, encontram alimentação farta nesse tempo de calamidade. A Guiné está sendo destruída nos seus alicerces, o incêndio, o fogo dos canhões que detonam os obuses assassinos, atinge o âmago do país. O banbaran (grafado com m ou com n antes do b) é o pano retangular com o qual as mães cingem o filho pequenino para carregá-lo às costas; a palavra também pode indicar o seio materno, o berço; banbaran di Guine é um termo freqüentemente empregado na poesia ou em canções, o berço da Guiné. A guerra não só trouxe destruição como perturbou todo o sistema social, a confusão estabeleceu-se, não se sabendo mais por onde passa o limite entre os mortos (as kasisas) e os vivos. Na quinta estrofe, os versos kasisas ku pekaduris / na torkia dala expressam essa confusão, e para 247 Sobre as kasisas, cf. o artigo “Kasisas: marginais deste e do outro mundo” (MONTENEGRO, 1992). A presença das kasisas e de outros “marginais” foi trabalhada na literatura sobretudo no romance de Filinto de BARROS, Kikia Matcho (1997). A pronúncia do /s/ em guineense é sempre uma alveolar surda, por isso transcrevo a palavra em português com as letras geminadas quando não estou transcrevendo uma citação. 203 isso o poeta emprega uma imagem bastante complexa, uma vez que evoca elementos culturais desconhecidos para o leitor exógeno (e não só). As kasisas ou kassissas são as almas penadas, os mortos sem sepultura; pekaduris é, na língua guineense, a pitoresca expressão para os humanos de modo geral (independentemente de seus pecados ou falhas). E esses dois grupos, vivos e mortos, confundem (torkia), ou misturam suas roupas, isto é, já não se sabe quem está vivo, quem está morto. Aqui o poeta usa de novo uma parte pelo todo: a dala é uma peça do vestuário masculino, espécie de cinta ou tanga, usada na luta livre tradicional muito apreciada em torneios esportivos de certas etnias. Os lutadores, no calor da porfia, confundem e misturam suas tangas, a sinédoque querendo significar que, nesse tempo de conflito e guerra, não se sabe mais quem é quem. Talvez se possa mesmo dizer que os vivos já estão praticamente mortos também, sem alma, sem os sentimentos ou a sensibilidade que deveriam e poderiam ter. Trata-se de um tempo de crise, quando os políticos, depreciativamente designados de politiqueiros e intrigantes, só têm o sentido posto na conquista ou na conservação do poder. Nos versos 31 e 32 da quinta estrofe, a cabaça, antes sagrada e portadora de benefícios, tem sua finalidade desviada e alberga apenas a desgraça. As muitas anadiploses ou reduplicações nesta estrofe emprestam uma grande densidade ao texto. De novo a língua guineense pode provocar certa confusão aos não crioulófonos, pois o termo nudadi, no final dessa estrofe (v. 33), pode lembrar “novidade”, mas de fato significa “má notícia” ou uma “novidade ruim”, sendo praticamente sinônimo de disgraça, enquanto que notícia se diz em crioulo noba. Todo guineense conhece a comparação contida no verso as almas na disfindra / suma manpatas, da sexta estrofe, alusão a um ditado popular: as almas vão cair mortas como os frutos do manpatas, que é uma árvore frutífera de grande porte, e seus frutos, redondos e doces, caem dos galhos tanto quando verdes como maduros248. Portanto, aqui a morte ceifa indiscriminadamente tanto jovens como velhos. O último verso dessa estrofe (v. 38) refere-se a duas ilhas do arquipélago dos Bijagó, em frente a Bissau: os guineenses estão tão desunidos, tão separados quanto as duas ilhas estão distantes uma da outra, pois cada uma se situa em um extremo do arquipélago. Aqui, não se trata de uma desunião entre as etnias e sim entre os governantes, os aproveitadores e oportunistas de um lado, e do outro o povo, impotente contra tantos desmandos. As duas estrofes (sétima e oitava) seguintes trazem mais uma vez imagens locais: em anáforas eloqüentes, o poeta impropera contra o tormento e a miséria que assolam no momento o país e contra aqueles que, teimando em querer preservar os antigos privilégios, não sabem ou não 248 Manpatas ta kai kusidu o kru ou manpatas kru na kai, kusidu na kai é um ditu popular, uma expressão figurada do crioulo; kusidu o kru significa “maduro ou verde”. Quando maduros, esses frutos são de cor vermelho castanha e podem ser consumidos ao natural ou como bebida, fermentada na água, como vinho (SCANTAMBURLO, 2002; MONTENEGRO, 2002a, 20002b). Conservei a grafia original, com o grafema n em vez de m marcando a nasalidade da primeira sílaba em manpatas. 204 querem reconhecer a “mudança dos tempos” e, com sua ambição, impedem o povo de viver na simplicidade do cotidiano: o camponês com suas colheitas de caju ou os pescadores (aqui designados pelo povo pescador duma região parte guineense parte senegalesa, os Nhominka, aos quais também Huco Monteiro se referiu) com suas pescarias. Os permanentes conflitos provocam a mortandade e não é possível “levantar a esteira do chão”, guardar a esteira onde as mulheres se sentam durante o velório para carpir seus mortos, pois precisa-se dela todo o tempo. Toda essa situação de insegurança e de insana hostilidade entre os irmãos provoca medo e preocupação, impedindo que a paz retorne ao país. As últimas estrofes, muito curtas e repetitivas, insistem sobre o sentimento de medo e preocupação provocado pela atual situação do país. A enunciação performativa, utilizando sete vezes a forma verbal na primeira pessoa (insistentemente expressada pelo pronome pessoal n’, que significa eu), retoma o sujeito poético da primeira estrofe, emprestando um cunho confessional cuja dramaticidade é reforçada pelas anáforas. 5.9 Os poilões vão sangrar de desgosto Em “Disasusegu di Guiné”, mais um poema de Respício Nuno, vamos ver que, embora o mesmo tema do repúdio à guerra esteja presente, predomina uma crítica à má governança e à ambição pelo poder que levaram o povo a essa situação extrema, sofrendo o desgosto pelas conseqüências desastrosas que caem sobre a população. O poema é datado de janeiro de 1999, quando o país se encontrava já há oito meses envolto no conflito; é riquíssimo em imagens, gemas garimpadas, como sempre, no manancial inesgotável da cultura tradicional guineense. Disasusegu di Guine I. 1 2 3 4 5 II. 6 7 8 9 10 III. 11 12 13 14 Angústia da Guiné Sofrimento estampado nas almas penadas, sofredoras almas voadoras (não encontram pouso) [juntam-se] com os malvados de Nnala e com as hienas do Bandim O furúnculo nasceu na elefantíase mudanças [políticas] misturaram-se às matanças [tal como] ferroada de abelha sangra fazendo mal poilões vão sangrar de desgosto a Guiné vai ser arrasada pelo fogo A corda não é igual à fibra os pés vão andar sem a cabeça [eles] procuram tirar [para si] a flor do arroz (a melhor parte) as contas não estão certas (há desordem) Rostu na alma dentru Almas di Badjodjas Almas buaduris Ku brabusi di Nnala Ku lubus di Bande Mandita nansi na kantinbon Mudansa djagasi ku matansa Feretcha na sangra kasabi Polons na sangra kasabi Guine na mermudu ku fugu Daria rapasa ku padja Pé na yanda sin kabesa Djitu di tira fariña di arus Konta na fiadu sin tatchi 205 15 IV. 16 17 18 19 20 21 22 V. 23 24 25 26 27 28 29 VI. 30 31 32 33 34 35 36 37 Pa disasusegu di Guine Purbitu i barkafon Di okalerus ku pasenserus Nbundé-Nhauta Na diskarna Sá-Bá-Kanna Lopé saklata ku fundiñu Sinkur di Bissalanka Dingi na si kindin-kondon Djorsons na djubidu Pandiga ardiga totona Mañotis na ramasa Djugdes na pulga Pekaduris na ratcha pitu Di kumpañer pa saka Matchundadi na ontiñi Batata di fugu na sumiadu Sin kudadi di kuma amaña Si lakakon i bida di nosentis Na iamalidura disgrasa Ku lingu disabidu na djamu mañotis na ramasa Djugdes na pulga Pa disasusegu di Guine. para o desassossego da Guiné A ganância (o proveito) é um cesto cheio de mentirosos e intrigantes N’bundé-Nhauta (pessoas de várias etnias) vão prejudicar Sá-Bá Kanna (outras etnias) o lopé está misturado ao fundinho (se confunde com) e o iran Sinkur de Bissalanca está completamente sozinho As linhagens (os grupos) procuram suas origens perdeu-se o juízo e a conseqüência foi a guerra gaviões a vomitar abutres a purgar (com diarréia) as pessoas arrancam o coração dos companheiros para tirarem-lhes a coragem (a macheza) que fica [só] no trazeiro Batatas de fogo estão sendo semeadas sem se pensar como será o amanhã como o lakakon [que se alastra] e abafa a vida dos inocentes a maldade da desgraça línguas ignorantes a estão elogiando Os gaviões a vomitar os abutres a purgar para a desgraça (a infelicidade) da Guiné. O eu poético ressalta o sofrimento estampado tanto no rosto como na alma dos indivíduos. A mortandade é enorme, os mortos são almas penadas e sem sossego, pois não há explicação para tanto extermínio. O poeta refere-se às badjodjas249 (v. 2) e às kasisas (v. 3), almas malditas que amedrontam o povo, perturbando os viventes. Os moradores do bairro Nnala voltam-se contra os do Bandim, irmãos guerreiam-se como selvagens ou hienas, uma desgraça vem seguida de outra, como um furúnculo, já por si um mal, que cresce num membro atacado pela elefantíase. Isso porque, como se não bastassem as matanças causadas pela guerra, o povo está confrontado também com a má governança, com mudanças políticas que são tão desastrosas e prejudiciais “como ferroadas de abelhas” (v. 8). O povo e a natureza (metonimizada nos poilões) sofrem a conseqüência da insanidade de uns poucos. Na terceira estrofe reconhece-se a influência da oralidade, do gosto popular por comparações, por provérbios e “ditos”: assim como “a corda não é igual à palha” (v. 11; palha aqui significando a fibra da qual a corda é confeccionada), cada pessoa é uma individualidade, por extensão, cada etnia tem suas características e suas preferências. Se a desordem se instala, se a autoridade se quebra e não mais se impõe ou se faz respeitar, é como se “os pés andassem soltos, separados das cabeças” (v. 12) e o resultado é cada um por si, sem sentido de solidariedade ou de bem-comum. O verso 13 tem uma imagem emprestada do mundo rural e para a qual vejo dois sentidos diferentes: “jeito de tirar a farinha do arroz” pode significar, parece249 O fonema /dj/ é grafado pelo autor apenas com j, não correspondendo à pronúncia da palavra. Cf. nota 246. 206 me, ou algo impossível, uma vez que o arroz não tem farinha, ou a farinha seria imagem para a flor do arroz, a melhor parte desse alimento. De todo modo, o sentido oculto é que os poderosos (mais abaixo os “politiqueiros” e também os “intrigantes”) estão tirando, extorquindo do povo, o que existe e o que não existe, aproveitando-se ao máximo (comendo o melhor do arroz). E isso provoca naturalmente inquietude e insatisfação no país, o “disasusegu di Guiné”. A discórdia, a desarmonia entre as etnias estão expressas com muitas imagens. Os versos 18 e 19 referem-se aos indivíduos do clã dos Nbundé-Nhauta, os quais vão fazer mal, vão “descarnar” os de um outro clã, os Sá-Bá-Kanna; o poeta quer sugerir que os muçulmanos não se entendem mais com os compatriotas das religiões tradicionais, idéia que está de novo na imagem metonímica do lopé (peça do vestuário dos Pepel) que se confunde (no sentido de desavença) com o fundinho (calça masculina das etnias islâmicas; v. 20). Por causa de tudo isso, o poderoso iran Sinkur, da região de Bissalanca, está sozinho, completamente isolado e sem voz (v. 21 e 22)250. O enunciado crioulo jorson (que prefiro grafado djorson), segundo SCANTAMBURLO (2002, p. 191), corresponde ao português “geração”, mas tem um significado mais amplo, equivalendo menos aos grupos etários do que referindo-se ao clã, à linhagem ou à série de gerações de uma família, ao conjunto de ascendentes e descendentes; sendo muitas vezes sinônimo de grupos familiares, étnicos, portanto. Traduzindo-se ao pé da letra, esse primeiro verso da quinta estrofe seria algo como “os componentes de cada clã vão procurar suas origens” (v. 23). O sentido da frase, segundo a explicação do autor, seria que os indivíduos agora, nesse momento de crise e de tensão, procuram saber a que etnia cada um pertence, quando antes isso não importava tanto, havia fraternidade, não interessando as origens de cada um. Agora, “perdeu-se o juizo” (v. 24) e essa insanidade trouxe a discórdia e a guerra, horror tal que os gaviões e os abutres, aves fortes e carnívoras, “estão a vomitar” ou a “purgar”, recusam-se a aceitar a carne sacrificada entre os irmãos. Os versos 27 a 29 escondem sarcasmo: agora, nesse tempo sinistro, os companheiros se destroem uns aos outros (“abrem o peito” dos seus semelhantes, isto é, arrancam-lhe o coração), matam e se aproveitam daqueles que têm “macheza [só] no trazeiro”, não têm o caráter firme. Sabe-se da extensão e da gravidade do extermínio causado pelas minas mortíferas, granadas e obuses, conhecidas na Guiné como “batatas de fogo”. Elas são tão numerosas que se espalham, alastrando a destruição como uma trepadeira rasteira e daninha de nome lakakon (Ipomoca repens, SCANTAMBURLO, ib., p. 358), planta muito comum na região. Nessa estrofe 250 Acho oportuno relembrar a observação de Luigi Scantamburlo sobre a origem do termo iran, um termo emprestadado da língua dos Bijagó, significando “espírito inferior a Deus”, isto é, com um sentido profundo de respeito ao supremo ser divino e que não entra em choque com a dimensão monoteísta das grandes religiões. Como Scantamburlo conclui, uma compreensão redutora do termo “tem influenciado a incapacidade dos cristãos e muçulmanos de dialogarem com o mundo da religião tradicional africana e de perceberem todas as suas distinções entre Deus e as categorias dos antepassados e dos outros espíritos” (SCANTAMBURLO, 1992, p. 52). Cf. o capítulo 2.6, sobre as religiões. 207 há ainda uma outra crítica à falácia da guerra, crítica àqueles que, inescrupulosamente, encontram algo de positivo nessa situação, elogiando “a maldade da desgraça”, aproveitando-se para ganho próprio da infelicidade que se abateu sobre o país, comportamento tão aviltante que mesmo as aves de rapina se enojam. As hipérboles e oxímoros, assim como as anáforas e os reduplicamentos, emprestam um tom retórico ao texto que, declamado, soa como um brado de recriminação e de alerta. Nos dois poemas de Respício Nuno até agora analisados, a representação do horror assume cada vez uma face diversa. Profundamente políticos, esses textos não negligenciam o valor estético. Da linguagem poética com suas metáforas não se espera, entretanto, aqui, um papel meramente decorativo. Desempenhando uma função de tomada de conhecimento e de reconhecimento, o texto dá realce a símbolos pertencentes a espaços múltiplos de participação (CANCLINI, 1997)251, recusa uma crítica direta ou argumentativa, procurando antes, pela linguagem figurada, através do inesperado e do incomum de suas imagens, surpreender o leitor ou a leitora que passa assim por um processo de reflexão e de descoberta. Dá-se, nesses textos, a conversão da função ontológica do discurso poético em função social e política, ocasionando empatia e participação, despertando a solidariedade entre os receptores. Esses textos multifuncionais, pela sua linguagem própria e específica, levam os leitores a se confrontarem com seu conteúdo, incitando assim ao questionamento do “desassossego”, do horror, da “desgraça” ou da calamidade, assim como sobre as atividades dos “politiqueiros e intrigantes” e suas conseqüências para a população. O texto vai ao encontro das decepções reinantes no país e assim encontra de imediato uma sintonia e concordância por parte do receptor, contribuindo desse modo para uma ativa conscientização e mesmo politização. 5.10 A ermondadi em perigo O terceiro poema de Respício Nuno que vou apresentar difere do anteriores menos pela sua motivação do que pela abordagem e o desenvolvimento temático. Expressões de dor e de perplexidade se desdobram em versos de grande dramaticidade em “Ermondadi”, escrito em agosto de 1999, cerca de dois meses após o término da guerra. O antigo presidente Nino Vieira tinha acabado de ser deposto, um novo período começava, com um governo provisório tributário das esperanças de mudança e o desejo de paz da população. Entretanto, após a retirada das tropas estrangeiras, a verdadeira paz só poderia ser alcançada com a reconciliação fraterna entre os compatriotas, envoltos ainda em discórdias e desunião, sendo imprescindível que os políticos 251 A indicação é de um artigo da revista mexicana Fractal, de 1997. Consultei, entretanto, o artigo na internet. Cf. a bibliografia final. 208 voltassem à razão e se ocupassem do bem-estar do povo e a governança fosse pautada pela “aliança”, pelo “casamento” “da fraternidade da terra com seus filhos”. O poeta evoca as crenças coletivas e as tradições populares, apelando para os sacrifícios rituais para livrar o povo das calamidades, aqui metaforizadas na figura do urdumuñu, o redemoinho ou levantamento turbilhonante de poeira, que se abateu sobre a Guiné. O urdumuñu é um fenômeno da natureza, muito freqüente na Guiné-Bissau e o povo lhe atribui um significado mágico, sendo temido por todos, pois tem o poder de punir e de trazer azar, ou mufunesa, como se diz na língua guineense. Uma excelente descrição do urdumuñu encontrei numa publicação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), Bissau, coordenada por Faustino Imbali: No seu movimento em espiral, sem direcção nem destino certo, vai destruindo tudo o que encontrar na sua passagem. As suas capacidades destruidoras e o seu poder místico fazem dele um fenómeno forte, capaz de desafiar todos os obstáculos. Urdumunho limpa e suja, avança e retrocede, provoca azar; felizmente ele produz-se em períodos determi-nados do ano e do dia, e em condições bem específicas (IMBALI, 1996, p. 43). O poema “Ermondadi” tem quarenta e nove versos distribuídos em seis estrofes: Ermondadi II. 1 2 3 4 5 6 7 II. 8 9 10 11 III.12 13 14 15 16 17 18 19 IV. 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 Urdumuñu peteli Batenti di Guine Kabas di sorti pirsisadu Pa limpsa paraderu des urdumuñu Ku na rapasa Ermondadi di tera Ku si fijus Difuntus tisi klarensa Ku pukentan korson i pirsis sirmonia Di Guine ku si fijus Sirmonia nunde ku sangui ka na darmadu Binu ka na bibidu son yagu friu di puti ku na dosadu ku blungujuba kinti pa madri pudi limpsa Kubanba na firbintidu sin siti son ku liti Baju na bajadu sin sajô sin bumbulum nin tambur nin kabas garandi pa banu di ermondadi entra na sintidu mokus pa pudi mara ermondadi di tera ku si fijus Fraternidade Um turbilhão escancarou (abriu com violência) as portas da Guiné é preciso uma cabaça da sorte para explicar (decifrar) a origem (a razão) desse turbilhão que baralhou tudo [perturbando] a fraternidade da terra e de seus filhos. Os mortos já trouxeram a explicação daquilo que afligiu nossos corações é preciso [fazer-se] uma cerimônia da Guiné com seus filhos. Cerimônia em que o sangue não será derramado não se tomará vinho somente água fresca do pote que será adoçada com o chá de blungujuba quente para purificar nosso ventre (nossos corações). A kubamba será preparada sem óleo de palma, somente com leite vamos dançar uma dança sem sajô (sem guizos nas pernas) sem o bater do bumbulum nem do tambor também sem a cabaça grande [de oferendas] para que a proclamação da fraternidade penetre nos ouvidos surdos (nas cabeças ocas) para fazer a aliança da fraternidade da terra com seus filhos. 209 V. 31 32 33 34 35 36 37 38 VI.39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 Omis ku minjeris na baja ku rabada na mon pa ermondadi pudi sikidu Dias, dias ki na bajadu suma na fanadu ma sin tchor-mama nin kalef pa pudi firmanta ermondadi É sirmonia Na ermons i di kasa pa simteru Pa kasisas rukuji susegadu Pa tchon dosa Pa lagua di sangui seksa Sin tchor-mama Nin kalef Pa tera nbes Pudi mara kasamenti Ku si fijus na ermondadi Homens e mulheres vão dançar com a cintura na mão (desnudos) para a fraternidade poder firmar-se vamos dançar durante dias e dias tal como no fanado mas sem gritos do kankuran nem golpes de catana (nem castigo) para poder firmar (selar) a fraternidade. Essa cerimônia entre irmãos vai de casa para o cemitério para as kassissas se acalmarem para o chão tornar-se doce para a lagoa de sangue secar sem gritos do kankuran nem golpes de catana para a terra de uma vez por todas poder contrair casamento com seus filhos, na fraternidade. Em “Ermondadi”, o sujeito poético compara a guerra a um grande turbilhão que provoca redemoinhos na água ou levantamento de poeira e espalha a destruição, “escancarando as portas da Guiné”, expondo o país a todos os perigos. Quando uma infelicidade ou uma enfermidade cai sobre uma família, os costumes tradicionais levam os indivíduos a procurarem uma explicação através da consulta aos oráculos ou curandeiros. Um meio utilizado por essas pessoas dotadas de dons paranormais para descobrirem a razão da infelicidade é através de cerimônias, isto é, de rituais de purificação, de sacrifício, de cura ou de adivinhação. Nessas ocasiões, em muitas etnias há a oferenda sacrificial de um animal (galinha, porco ou cabra, mesmo um boi), com derramamento de sangue, além do uso da aguardente ou do vinho (de palma ou de caju) e da obrigatoriedade de danças rituais. A cabaça (kabas) é usada em toda a região como recipiente, utensílio doméstico de várias serventias, objeto onde se recolhem, guardam ou transportam alimentos ou líquidos, servindo também de prato para as refeições em comum ou mesmo como bacia para o banho das crianças, ou receptáculo para os mezinhos di tera (os medicamentos tradicionais “da terra”). A cabaça é igualmente indispensável nas cerimônias religiosas. É o receptáculo de oferendas, da água ritual, enfim, é carregada de simbologia ligada ao sagrado. O autor emprega no v. 3 a expressão kabas di sorti, referindo-se à cabaça ritual. Na segunda estrofe, Respício Nuno faz referência aos mortos (difuntus; v. 8), os antepassados, ligados indissociavelmente aos vivos nas culturas tradicionais africanas, que tudo sabem, sendo capazes de explicar o que estava acontecendo. Aqueles que já transpuseram os umbrais do além, que passaram pela experiência suprema e conhecem o seu segredo, estão dotados de poderes e saberes inaccessíveis aos vivos. Nesse momento de perigo, urge uma cerimônia sacrificial e o poeta quer que desta vez esse ritual seja diferente e sem obedecer às regras tradicionais. O poeta se permite, na terceira estrofe, ousadas transgressões, desconstruindo os ritos 210 e sinalizando com isso o quanto é especial a situação calamitosa em que o país se encontra: aqui, nesta festa singular, não correrá sangue, nem se beberá nenhuma bebida alcoólica (v. 12-15). Será preciso tomar-se o chá tradicional reservado às recém-paridas, infusão feita com a erva blungudjba (ou bulungudjuba), destinada a limpar, desinfetar o ventre depois do parto, própria, portanto, também, para purificar os corações empedernidos. Ou – ousando ir mais longe na minha viagem interpretativa – para purificar a matriz da “mátria” (a “mãe Guiné”) e permitir que sejam gerados filhos puros e bons (v. 18-19). Prosseguindo sua desconstrução, na quarta estrofe o autor expressa esperança e desejo de paz entre seus conterrâneos, sonhando com uma aliança entre todos os guineenses. Os símbolos e as marcas étnicas presentes no poema não se confinam a uma só etnia, muito pelo contrário, a intenção do autor é justamente celebrar a união entre os diferentes grupos do país, sem preferência de uma raiz fundadora, mas rizomaticamente múltipla, como sugerem DELEUZE e GUATTARI (1980). A identidade étnica é aqui concebida como abrangendo um quadro cognitivo comum que vai orientar as relações sociais (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 115). Tais símbolos são referentes acionados pragmaticamente a partir de conhecimentos próprios ao grupo e com uma intencionalidade específica. Em festas de casamento há naturalmente banquetes e danças. Nos casamentos muçulmanos, na etnia mandinga, a iguaria ritual, destinada à noiva, indispensável numa festa de bodas, é a kubanba, preparada com azeite de dendê (óleo de palma), leite coalhado e arroz cozido bem mole (às vezes usa-se um tipo de milho em vez do arroz). O prato, também apreciado em outras ocasiões, é comumente chamado de siti ku liti (dendê e leite). Mas, para esse momento excepcional, a kubanba será servida sem o azeite vermelho da palmeira do dendê, contrariando todas as regras (v. 20-21). Somente o leite, branco, será usado. A imagem quer expressar o desejo de uma festa de paz, sem derramamento de sangue, sem qualquer tipo de música, uma dança silenciosa, portanto, para que a mensagem de paz possa penetrar nos ouvidos surdos, mocos, sem o acompanhamento dos instrumentos característicos – e via de regra indispensáveis – que são o bumbulum, o sajô, o tambor (isto é, sem o troar dos canhões ou fuzis; v. 22-25) e onde homens e mulheres dançarão nus (a rabada na mão; v. 32), desarmados e de coração puro, na intimidade e confiança de irmãos. Na alegria da confraternização, a festa durará muitos dias, tal como acontece no final do tempo do fanado (v. 35-37), a importante fase da iniciação, quando se festeja o fim da difícil e longa reclusão e a entrada para a vida adulta. Novas imagens povoam essa quinta estrofe. O sujeito poético deseja essa grande festa sem ameaça de nenhum perigo. Sem o tchor-mama nin kalef252 (v. 35-37), isto é, sem os gritos que 252 Pronuncia-se [tchór mama]. No original, o autor grafa o som [tch] apenas com a leta c, con em vez de tchon, cor em vez de tchor. Sobre as questões ligadas à grafia da língua guineense, cf. nota 246. 211 acompanham a presença da divindade do kankuran (à qual já me referi ao tratar do poema de Huco Monteiro) e também sem castigo, sem os golpes dados com o lado cego da catana ou facão, como chicotadas, gesto também próprio das festividades que acompanham o final do fanado. O tempo do fanado insere provas de força e coragem, aprendizado para o domínio do corpo e da vontade. O kankuran apresenta-se com uma máscara de aparência medonha e, se inspira pavor, também tem a faculdade de proteger os iniciados. Quando ele sai à rua, em geral por causa de algum acontecimento negativo, o povo o acompanha com gritos (tchor-mama) e encenações de balbúrdia. As alusões a costumes e rituais tradicionais pressupõem um leitor local, ou ouvinte, conhecedor dessas particularidades. Transmitem aos familiarizados com esse ambiente cultural uma aura de confiança, de confidência, pois o locus da enunciação é endógeno. Não é o olhar etnográfico típico para a literatura colonial. O leitor e a leitora guineenses vão reconhecer o contexto no qual esse festim excepcional e esdrúxulo deve acontecer e ao mesmo tempo vão evocar sua própria experiência, vivida diretamente no fanado ou como espectadores, no âmbito da convivência comunitária das festividades de encerramento desse período. As enunciações desse poema adquirem um sentido especial para os “de dentro”, difícil de serem apreendidas pelo leitor exógeno. Há então uma carga de subjetividade que leva a um novo enquadramento daquilo que está latente na experiência individual ou coletiva, fazendo aflorar ao espírito ou à memória uma lembrança, uma evocação que as inesperadas metáforas lançam para uma nova perspectiva. As antigas significações adquirem um novo revestimento, uma outra dimensão subjetiva. Ao desconstruir as cerimônias rituais, Respício Nuno lança conscientemente mão da ruptura de certas seqüências conhecidas e familiares, retira propositalmente um dos elos de uma certa cadeia tradicional (por exemplo, modificando os preparativos do festim nupcial, excluindo a obrigatória música) e esse procedimento insólito e ousado vai provocar o efeito surpresa e as imagens adquirem uma ressignificação, efeito esse justamente calculado. Essa substituição metafórica e não real vai ocupar o lugar do elo suprimido na seqüência tradicional, possibilitando uma coexistência das duas cadeias (a real e a metafórica) que se justapõem e se interpenetram, possibilitando que a mensagem do poeta atinja o impacto desejado e vá engendrar um novo universo de referências. 5.11 A baraka reterritorializada Huco Monteiro e Respício Nuno são porta-vozes de um estado de espírito bastante generalizado no país na presente conjuntura. A harmonia é turvada em tempo de crise e essa crise já vem 212 durando alguns anos253. A Guiné-Bissau continua sendo um espaço periférico em relação tanto à África como, e sobretudo, à Europa e aos países industrializados, com consideráveis deficiências estruturais em questões de educação, de saúde, de transporte, ausência de indústrias, graves deficiências nas infra-estruturas em geral, de práticas de democracia e de responsabilidade política e administrativa. E, embora se possa falar que persiste no país a situação de uma coexistência das etnias praticamente desprovida de conflitos graves, predominando um sentimento de Estado-nação que transcende as diferenças étnicas locais e regionais, as pressões de natureza econômica e mesmo manipulações político-partidárias têm levado, nos meios urbanos, presentemente, a uma certa tensão entre as etnias, a uma “etnização” (por parte sobretudo de alguns políticos) da procura de solução para os problemas sociais. A isso o poeta chama de “disgrasa” ou calamidade, “praga”, “disasosegu”, “nudadi”, empregando, com a arma do seu discurso poético, os mais diversos meios para esconjurar as dificuldades que atrasam e emperram o desenvolvimento e a estabilidade social. A apropriação de símbolos representativos da nação é uma forma de afirmação identitária. Os poemas aqui apresentados evidenciam o propósito dos produtores textuais ao escolherem aspectos da especificidade étnica e cultural dos diferentes grupos constituintes da nação guineense para, através do jogo de imagens e da alegoria, ressaltarem a unidade sem negligenciarem, nem negarem a alteridade. O entendimento entre as etnias que convivem no país é da maior importância para o equilíbrio nacional e a exteriorização da pluralidade das referências simbólicas como espaço da coletividade que forma o “nós” constituidor da ainda frágil nação guineense, o qual precisa sempre ser revitalizado e provido de conotações positivas. Ao emprestarem uma significação coletiva a elementos singulares verificou-se um processo de apropriação dessa baraka reterritorializada, ou seja, dos espaços vitais, no plano da emoção e da representação textual. Ao estudar-se a literatura guineense, é imperativo captar-se nela uma textualidade mais além da letra, não manifesta de forma clara, mas onipresente nos interstícios da voz enunciadora, e que, ao ser captada, desnuda sentidos e aspectos culturais subjacentes da maior importância, não apenas para o leitor exógeno, mas para os próprios guineenses que sentem carregada de valoração positiva o que por muito tempo foi considerado primitivo ou bárbaro, etiquetado como 253 A inquietude tem aumentado sobretudo desde de 6 de outubro de 2004, quando o chefe do Estado Maior do exército foi assassinado e quase se deu mais um golpe de Estado. Esse foi mais um dos muitos assassinatos políticos que sempre pautaram a luta pelo poder no país. Os preparativos para as eleições realizadas em junho e julho de 2005 provocaram uma grande tensão entre os políticos e no seio do povo e a vitória de Nino Vieira para assumir novamente as rédeas do governo, depois de seis anos de exílio, não é desprovida de preocupações. Por isso mesmo, a palavra de ordem dos últimos anos tem sido a da reconciliação nacional, muitos defendendo a necessidade de uma anistia geral dos erros e crimes passados para se tentar recomeçar do zero uma nova era política e social. 213 subdesenvolvido e retrógrado. O ato criativo, ao ser encarado tanto pelo seu valor estético quanto como revelação do substrato cultural – plasmador não somente de atitudes mentais individuais como da essência coletiva de um povo – constitui um dos fundamentos de onde emerge o sentido identitário de uma comunidade, ou mesmo da nação interna, imaginada e desejada. Mais uma vez foi possível constatar, através dos exemplos escolhidos, que o texto literário se engendra numa semiose, num concatenar de significações, e seu sentido mais profundo advém da sua dimensão simbólica. Traçando uma ligação entre os significantes e seus significados, buscando a revelação da significação engastada nesses versos excepcionais (e espero que meus achados sirvam a outros leitores e despertem novas leituras), procurei deslindar a complexa configuração de diferentes aspectos dessa mundivivência para nós tão pouco familiar, enredada nos interstícios da interculturalidade. 6 LITERATURA E IDENTIDADE CULTURAL A prática do domínio imperialista, como qualquer outro domínio estrangeiro, exige, como factor de segurança, a opressão cultural e a tentativa de liquidação, directa ou indirecta, dos dados essenciais da cultura do povo dominado. Amílcar Cabral Na Guiné-Bissau, como em toda a África, a questão da identidade é onipresente, e isso mesmo quando não expressamente nomeada. O passado colonial, a escravidão e o tráfico negreiro, a dominação estrangeira, as inúmeras línguas faladas e a etnicidade de cada um254 penetram ou estão latentes em todas as relações humanas e em todas as decisões particulares e políticas, sem que isso implique obrigatoriamente discriminação ou preconceito. De forma pacífica ou em eclosões violentas, a identidade, sobretudo grupal, é uma das forças motrizes mais poderosas do continente – e não só. As diferentes nações atribuem pesos diferentes à questão identitária. No Brasil, ela perpassa o pensamento das elites intelectuais já desde antes da nossa independência. Foram muitos os nossos ensaístas e cientistas sociais que engendraram discursos de definição da nossa nacionalidade255. O mesmo se pode afirmar dos países latino-americanos em geral. É Muniz Sodré quem traz exemplos da diversidade dessa abordagem: enquanto o inglês Derek Parfit afirma que “nossa identidade não é o que importa”, para o peruano Anibal Quijano “a mais pungente questão que circula entre os intelectuais latino-americanos é a da identidade” (SODRÉ, 1999, p. 28). E o próprio Sodré debruçou-se, em muitos ensaios, sobre a questão da identidade afro-brasileira e sua inserção na identidade nacional. 6.1 O ser nacional Não conheço nenhuma obra que se ocupe especificamente da identidade ou do processo identitário na Guiné-Bissau. O “ser nacional” é assunto abordado recorrentemente, como panode-fundo, pelos historiadores e cientistas sociais, mas o “caráter guineense” ou a “alma guineense”, o “ser guineense”, a guineidade, enfim, com o sentido de configuração de atitudes, 254 Na Guiné-Bissau, é muito comum ouvir-se a pergunta “de que raça és?” ou “de que raça ele ou ela é?”, no sentido da pertença étnica. 255 Não cabe neste contexto alongar-me sobre o assunto. Lembro, aqui, apenas e de forma aleatória, alguns nomes como Paulo Prado, Manoel Bonfim, Alberto Torres, Fernando Azevedo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Dante Moreira Leite, Sílvio Romero, Tobias Barreto, Oliveira Viana, Darcy Ribeiro que, em suas obras, refletiram sobre a questão identitária. Da mesma forma, na literatura, José de Alencar e Machado de Assis, entre outros. Muniz SODRÉ, em Claros e escuros (1999), o faz sob o prisma dos afrodescendentes. 216 de procura de traços específicos e diferenciadores, não têm sido propriamente tematizados, nem parecem ter sido matéria de discussão ou análise256, como se conhece em Angola ou em Cabo Verde e, sobretudo, no Brasil. Entretanto, considero que o pensamento identitário, a busca ou mesmo a afirmação da identidade assumem uma posição importante na literatura guineense. A maior parte das obras literárias publicadas na Guiné-Bissau está clara ou subliminarmente impregnada dessa procura de identidade individual ou coletiva, numa representação afetiva que implica na tentativa de interpretação e de compreensão das raízes e do porquê das experiências humanas no território nacional. E é, no momento, a partir do discurso literário, que se está aos poucos processando o campo do pensamento identitário guineense e a configuração do caráter nacional. O conceito da identidade é múltiplo e aplicado em várias disciplinas científicas. Face à heterogeneidade e a transdisciplinaridade do conceito e à amplitude e diversidade da sua significação, torna-se difícil uma definição que abarque ao mesmo tempo tantas áreas do conhecimento. A questão identitária é uma constante força propulsionadora da vida humana e dos esforços de interpretá-la. Essa idéia está contida em uma ampla gama de noções e teorias, como raça e etnia, povo, nação e Estado, pessoa e personalidade, auto-estima e auto-consciência, cultura, desenvolvimento. Procurando uma definição o mais abrangente possível, pode-se dizer que a identidade é um processo de construção e de contínua revisão da imagem de si mesmo, processo esse que está no ponto de intercessão entre a biografia individual e a interação social, passível tanto de influências pessoais como do meio social e cultural (METZLER – Lexikon Literatur, 2001, p. 267). Uma definição tão ampla oferece um largo leque de aplicações nos estudos literários e culturais. Tanto a identidade individual como a coletiva e a cultural vão desembocar na identidade nacional e são importantes para a minha análise e interpretação da literatura guineense. George Herbert Mead (1863-1931) desenvolveu uma teoria da identidade que ainda hoje é válida, sobretudo nas ciências sociais, segundo a qual, estabelecendo a diferença entre os termos em inglês “I” e “me”, reflete a interpretação e as normas do generalized other (o “outro generalizado”) e com isso, dentro de uma “interação simbólica”, vai descrever os resultados da internalização da comunicação interativa, entre as pessoas, efetuada através da linguagem (cf. MEAD apud NEUMANN, 1970, p. 21). Certos autores, como Erik Erikson, consideram a identidade um processo que, começado a se constituir na infância, se estabiliza e se conclui na adolescência. Segundo esse psicólogo alemão da corrente freudiana, a identidade é o ponto de intercessão entre aquilo que uma pessoa 256 Por exemplo, o assunto foi tratado lateralmente por Carlos Lopes, Carlos Cardoso, Peter Mendy entre outros e, evidentemente, por Amílcar Cabral. Cf. indicações bibliográficas na bibliografia final. 217 quer e aquilo que o mundo lhe permite257. Para outros, como Erving Goffmann e Lothar Krappmann, por exemplo, o equilíbrio entre o pessoal e o social é precário e deve sempre de novo ser restabelecido. A identidade, para Bernd NEUMANN (1970, p. 20), é vista como a concordância ou a ligação do indivíduo entre ele mesmo e a sociedade. Somente no seio de uma comunidade, na interação com outros indivíduos, a pessoa pode desenvolver sua identidade. Por isso mesmo, à diferença do organismo biológico, apenas através do processo social é possível que o indivíduo tome consciência do seu próprio eu. O conceito identidade expressa, portanto, uma relação bilateral, compreendendo, ao mesmo tempo, tanto uma tentativa de contínua harmonia consigo mesmo como uma ininterrupta participação em certos traços característicos de um grupo (ib., p. 21). Conseqüentemente, as identidades são elaboradas a partir de valores, de códigos sociais compartilhados de forma coletiva. Para os psicólogos, a identidade seria o funcionamento ideal do “eu”, resultado de um bem sucedido equilíbrio dos contrários dentro da personalidade de cada um, uma conciliação que lança a ponte entre as pulsões subjetivas, individuais e as expectativas da sociedade envolvente (NEUMANN, 1970, p. 22). No findar do século XX, em meio às muitas mudanças e transformações acontecidas, uma das mais importantes foi a alteração da percepção de identidade, deslocada para uma perspectiva de descentramento. O sujeito dividido e desarticulado, interrogando-se sobre seu lugar, espelhando a fragmentação e a desorientação (ou as reorientações) da sociedade fim de século, é característico da pós-modernidade, da qual as identidades cambiantes e transitórias são decorrências. A biografia individual escapa muitas vezes da linearidade, atestando uma seqüência até talvez desconexa de papéis, tarefas, trabalhos, lutas internas e externas pela sobrevivência. Stuart HALL (2000) discute a situação dos indivíduos hoje, ao porem em questão a idéia que têm de si mesmos como “sujeitos integrados”, partindo da premissa que as transformações políticas, sociais, tecnológicas, econômicas, ocorridas antes da virada do século, são responsáveis por essas alterações: Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma "crise de identidade" para o indivíduo (HALL, ib., p. 9). 257 Erik Erikson (1902-1994) é um dos mais destacados psicólogos alemães. Esta citação é repetida em muitas obras sobre ele, inclusive em vários artigos na internet. O texto original é o seguinte: "identitaet, das ist der schnittpunkt zwischen dem, was eine person sein will, und dem, was die welt ihr zu sein gestattet" (A:\E - Erik Erikson - 3 Rezensionen zum Thema IDENTITAET.htm). 218 Segundo Hall, a identidade do sujeito pós-moderno é concebida como uma “celebração móvel”, sempre mutante, em transformação e em reformulações permanentes, pois depende diretamente das formas através das quais o indivíduo é representado ou questionado nos sistemas culturais envolventes. Mas a questão da identidade transcende o plano meramente pessoal, como já vimos. Passa também para o plano do coletivo, ampliando-se e expandindo-se para o plano da identidade nacional, questionamento visceral para as nações egressas do colonialismo, por exemplo, mas não só. Ambas, a identidade subjetiva e a identidade nacional, são cunhadas e impregnadas por sistemas de representação cultural. Vale, entretanto, aqui a ressalva feita por Stuart Hall mesmo: O próprio conceito com o qual estamos lidando, "identidade", é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova. Como ocorre com muitos outros fenômenos sociais, é impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos seguros sobre as alegações e proposições teóricas que estão sendo apresentadas (HALL, 2000, p. 8-9). É ainda Stuart Hall que acrescenta, lembrando o crítico cultural Kobena Mercer, que a identidade só é questionada quando algo que se considerava como estável “é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (ib., p. 9), fragmentando-se, deixando de apoiar-se em um “eu” coerente e unificado. É a instabilidade própria do pós-modernismo, compreendido como a debilitação dos grandes discursos narrativos de explicação do mundo, da crise do sujeito e a conseqüente problematização da identidade. Para Manuel Castells, à luz da teoria social, nenhuma identidade pode ser encarada como algo de essencial, ou intrínseco, radicada na essência do ser (CASTELLS, 2002, p. 24), afirmando que, de uma perspectiva sociológica, “todas as identidades são construções“ (ib., p. 23). A construção de identidades se faz com matéria prima tirada da história, da geografia, da biologia, de instituições produtivas e reprodutivas, da memória coletiva e de fantasias pessoais, assim como dos aparatos de poder e da experiência religiosa. Mas os indivíduos, grupos sociais e sociedades elaboram essas matérias primas e reordenam seus sentidos de acordo com determinantes sociais e projetos culturais (ib.). Castells, não se detendo na identidade individual, considera, para fins de análise, quatro tipos identitários: a identidade religiosa, a étnica, a territorial e a identidade nacional (ib., p. 28). É sobretudo esta última que me interessa ressaltar neste trabalho, junto às identidades individual e cultural, dando relevo às manifestações identitárias ligadas ao sentimento nacional, com suas múltiplas faces e espelhamentos na urdidura literária. Nos exemplos que darei a seguir, vai ser possível acompanhar alguns percursos de afirmação ou questionamento identitário no contexto da literatura guineense contemporânea. 219 6.2 Desterrados de si mesmos: a identidade individual Este subtítulo é tirado de Octavio Paz que afirma que “o homem é um desterrado do fluir cósmico e de si mesmo” (PAZ, 1972, p. 40). A procura de um território interno, de um espaço seu e singular, onde o indivíduo possa conhecer-se e reconhecer-se, é universal e aflora nas mais variadas manifestações artísticas e filosóficas. A filosofia e a psicanálise vão mais longe, mas não cabe aqui discorrer sobre a procura da unidade perdida ou o desejo de completude, assuntos caros àquelas disciplinas. De todo esse vasto campo do conhecimento, retenho no momento apenas a idéia de que a busca ou afirmação da identidade passa por esses caminhos de errância e de articulação das diferenças. Ao lado da expressa intenção de transmitir, através do discurso textual, uma mensagem cultural reivindicatória, insinuam-se, entre os poetas, vozes subjetivas e intimistas, em que a identidade individual adquire tons de emotividade e confissão. Helena Parente Cunha refere-se ao conhecimento racional do indivíduo que, empenhado em separar, dividir, medir, pesar, calcular, categorizar – cria distinções e oposições excludentes”, o que provoca “um conflito psíquico associado à perda da unidade fusional com que se relacionam vários processos inconscientes” (CUNHA, 1994, p. 26). O “eu” que se debate para libertar-se das amarras da razão, não se reprime, expõe seus sentimentos e suas tensões, mas traz marcas de uma crise identitária que se manifesta muitas vezes por indefinições, oscilações. “Um solilóquio lírico e ensimesmado”, como Russell HAMILTON (1985) qualificou esse veio poético, onde o enunciador vai buscar na poesia uma válvula de escape para a insatisfação própria do sujeito pós-moderno. Podendo-se ou não empregar a categoria “pósmoderno” para o corpus que estou analisando, esse aspecto de insatisfação do sujeito fragmentado e oscilante, embora não freqüente entre os escritores guineenses, poderia enquadrarse no âmbito alargado dos tempos pós-modernos. Hamilton caracteriza esse aspecto das manifestações poéticas da literatura africana lusógrafa como o aparecimento de um “eu reivindicatório e contrito” (ib., p. 494) – a voz poética reivindica para si mesma o espaço da palavra e da expressão de seus sentimentos de desajuste e de busca de um equilíbrio harmonizador e emancipatório. É sobretudo na produção poética onde melhor aflora a subjetividade, é o território onde a confissão e o perscrutar das tensões subjetivas se manifestam, sendo aí possível detectarem-se elementos dessa busca ou dessa afirmação da identidade individual. 220 6.2.1 Oscilações e incertezas. O “olhar para dentro” de Odete Semedo Na Guiné-Bissau, a fragmentação do indivíduo assume traços específicos e particulares, refletidos nas obras literárias, objetos de minha leitura. “Quem sou eu?”, pergunta-se Odete Semedo, dividida entre a mulher moderna, intelectual poliversada, alta funcionária e mais de uma vez ocupando uma pasta ministerial, mas mulher também completamente presa às raízes profundas e múltiplas de sua terra natal, suas crenças e tradições, ligada à família, aos antepassados e a seus mitos. A Odete poetis solta-se em sobrevôos numa viagem ao interior de si mesma, fazendo do espaço poético o topos do “gosto de dizer / sem reprimir” (SEMEDO, 1996, “Eu e a poesia”, p. 53)258, onde deixa aflorar o íntimo de seus sentimentos. Nesse espaço da poesia (“Poemar [...]É trazer à superfície / O subconsciente”, diz a poetisa em ”Poemar”; ib., p. 85), o ser poético mergulha na busca de si mesmo. Os versos de Entre o ser e o amar espelham, em poemas bilingües, as “Oscilações” que abalam o sujeito enunciador na busca e na delimitação de seu território interior, tentando encontrar seu verdadeiro lugar: “eu cresci [...] Desconhecendo-me”, ou, na língua guineense, “Sin kunsi ña kabesa”259 (“Pesadelo”; ib., p. 2829), pois “sou a sombra dum corpo que não existe” e, vagueaando sem destino, apenas “finjo existir”, “n findi kuma n sta” (“Silhueta da desventura”; ib., p. 26-27). Em outras passagens, como em “Desespero” (ib., p. 34-35), a poetisa revela sua “dúvida de ser gente”260, certa, entretanto, de que, onde há “fuga”, há também “reencontro” (ib.). A voz que sussurra muitas vezes se sente vacilante ("vou crescendo de pesadelo em pesadelo [...] na incerteza do espaço” (“Pesadelo”; ib., p. 29), perdida (“N pirdi susego / ña sombra bua na bentu”, isto é, “perdi o sossego, minha sombra evanui-se ao vento”; “Djon Gagu“; ib., p. 102), auto-intitulando-se “flor sem nome” (ib., p. 33), muitas vezes considerando-se apenas “padas di es mundu”, “parte desta natureza”: Sou parte desta natureza Tão gasta Desta face da terra Tão frágil e vasta Sou o rio que corre Tropeçando em pedras e vales Ami i padas di es mundu Ku gasta dja Ami i un burdu di n tera Ami i iagu ku na kuri Ku na n baransa na pedras (“Sou”; ib., p. 30-31). O sentido múltiplo e ambíguo da identidade emerge do texto, enquanto o limite estático das oposições binárias é ultrapassado pelo abandono da dicotomia entre masculino e feminino: “não sou mulher nem homem” (ib.), constatando-se em muitos dos versos uma insegurança no 258 259 As citações dos poemas de Odete Semedo são tiradas de SEMEDO, 1996. Literalmente seria “não conhecer minha cabeça”. Trata-se de uma das duas possibilidades para representar a expressão “não me reconheço”. 260 O verso em crioulo é: n’bisti di djinton. Literalmente: “visto-me”, isto é, “transvisto-me, de gente”. 221 delimitar o próprio espaço (“sou […] apenas um pedaço deste chão”; ib.), com medo de sair da sua concha recôndita e expor-se. O sujeito poético não alcança uma interação entre o seu eu e o meio envolvente, vendo-se a si mesma como uma sombra apenas e não como sujeito definido, como em “Silhueta da desventura”: “Sou um ponto no infinito” ou, na língua guineense: “un kusasiñu ku sta lundju” (uma coisinha que está longe), “perdida no espaço”: Sou a sombra dum corpo que não existe Sou o choro desesperado Sou o eco de um grito articulado Numa garganta sem forças Sou um ponto no infinito Silhueta da desventura Ami i sombra di un kurpu ku ka ten Ami i tchur di dususpero Ami i tuada di girta ku girtadu Na un garganti sin forsa Ami i un kusasiñu ku sta lundju [...] Ami i sombra di k asabi (ib., p. 26-27). É através da palavra, da escrita, do verso e do canto que se manifesta o debate interior da poetisa que vasculha o fundo da alma, a própria voz, seu rosto e seu corpo, questionando não apenas seu estar-no-mundo, mundo que ela metaforiza como um campo de batalha (“Desespero”; ib., p. 35), mas igualmente seu próprio ser, “flor sem nome, sem cheiro” (“Flor sem nome”; ib., p. 33). Questionando-se permanentemente, tentando decifrar-se “Porque serão lamentos / As vozes do meu canto, […] Porque vejo / O lado triste da vida”; “Inquietação”; ib., p. 91), o eu poético procura afirmar sua identidade e vive essa busca como um desconforto, às vezes mesmo um conflito, sempre perplexo diante da indecisão na escolha, como confessa logo num dos primeiros poemas de seu livro Entre o ser e o amar e que tem sintomaticamente o título “Oscilações”: Entre o céu e a terra Qual navio sem rumo Numa quimera Oscilo no alto mar da vida [...] Oscilo tristemente entre a sombra e a penumbra Na metadi di tchon ku seu Suma barku sin rumu Na suñu N na balansa N na balansa [...] Entre metadi di sukuru ku fuska-fuska (ib., p. 14-15). Mas, em outros versos, o eu poético se quer “Eu”, nítido e claro, único e intransferível: “Sou apenas eu”, balbucia, ainda insegura (“Eu”; ib., p. 19). Apesar das estratégias do meio envolvente que procura livrar-se ou mandar para escanteio seus elementos desviantes, apesar de muitas vezes esconder-se na penumbra e fingir não ser, refugiando-se em vários poemas atrás de um enunciador no masculino, mesmo assim, pelo menos de vez em quando, a poetisa aspira à independência (“Quero ser a heroína […] Que firme segue o seu destino […] uma semi-deusa / E vencer os obstáculos”; “Heroína do teu conto”; ib., p. 45) e o sujeito dividido procura a clareza da autodefinição (“Eia luz! / Que deixa transparecer / O medo de ser o que se é”; ”Eia luz!”; ib., p. 47). Muitos poemas de Odete Semedo que especulam sobre o amor e o ser estão enfeixados no subcapítulo com o mesmo título do livro e se caracterizam pela autoreferencialidade e pela auto-reflexão. Testemunham o questionamento interior sobre a 222 existência humana, sobre sua própria existência, seus desejos, sonhos e dúvidas, palpitações metafísicas, diferenciando-se tematicamente dos demais escritores guineenses, com uma introspecção até agora pouco comum no corpus em questão. Embora esses temas não sejam apanágio de sua condição de mulher, nota-se claramente, em Entre o ser e o amar, a mão (e a alma) da mulher que escreve. Neste livro inaugural pode-se detectar a presença de uma linguagem que reflete a identidade feminina, com suas realizações simbólicas próprias. Tomando como base as idéias desenvolvidas por autoras como Hélène CIXOUS (1980), Ingeborg WEBER (1994), Isabel Allegro de MAGALHÃES (1995), verifica-se, por exemplo, que a auto-referencialidade, a subjetividade, o envolvimento afetivo, o registro confessional, a percepção interior em que o corpo, em vez de ser visto de fora, é expresso a partir de dentro, assim como alusões à realidade doméstica como realidade artística. Angélica SOARES, em A paixão emancipatória (1999), enumera igualmente algumas características da escrita no feminino, tais como o desejo que gera a linguagem, a consciência erótica do literário, a errância do desejo, o afrontamento da pulsão erótica, o saber corpóreo que passa pela epiderme, a consciência física como elementos próprios da escrita da mulher e dos quais a poética de Odete Semedo apresenta abundantes exemplos. Considero pertinentes em relação à ânsia de uma realização unificadora que a liberte de suas oscilações existenciais, presente na obra poética de Odete Semedo algumas considerações desenvolvidas por Helena Parente CUNHA, em seu livro Mulheres inventadas (1994), referindo-se, a partir do pensamento psicanalítico, ao “sujeito dividido, movido pelo caráter contraditório do desejo, constituído da e na dualidade, do e no conflito”, desejo considerado também como “desejo da plenitude narcísica, através da recuperação da unidade perdida” (ib., p. 48). Entre o ser e o amar revela a constante busca de autoconhecimento, ressaltando o empenho em anular as tensões conflitivas que afligem o eu poético, em libertar-se das dualidades antagônicas (ib., p. 46) e alcançar uma unidade redentora. Apesar dos altos e baixos entre diferentes estados de espírito, a poetisa esforçase para ultrapassar essa hesitação. Odete Semedo, pelo exercício catártico da poesia, tenta encontrar sua própria via de emancipação do aprisionamento dualístico, procurando aplacar assim sua mais íntima aspiração de equilíbrio e harmonia. 6.2.2 Félix Sigá, “foz de mil cascatas furiosas” Outro poeta guineense cujos versos pelo menos em parte se inserem também nessa busca identitária é Félix Sigá. Tendo publicado até o momento um só livro, o Arqueólogo da calçada, o 223 quarto da Colecção Kebur (SIGÁ, 1996)261, é lamentável que muitos de seus bons poemas não tenham sido incluídos nesse único livro. O motivo da acerbidade que muitas vezes escapa de seus versos pode em parte ser devida à frustração do fecundo autor que vê seus escritos nas gavetas sem conseguir divulgá-los, do intelectual que conhece a própria potencialidade e não alcança ver seus talentos reconhecidos nem aproveitados, resultado infelizmente da maior freqüência num país onde os empregos rareiam. Félix Sigá é, entre os poetas guineenses, aquele em cujos textos mais ressaltam a amargura, o desamparo, frutos de conflitos identitários não resolvidos, levando-o a não acreditar em nada – “Nem na crença íntima / Nem na voz rompante [...] Nem nos direitos [...] / Nem nos sonhos” (SIGÁ, “Contas guardadas”; 1996, p. 87). Está-se diante do espelho do sujeito dividido, tal como já verificamos nos versos de Entre o ser e o amar, de Odete Semedo. Entretanto, muito embora com a “mente em turbilhão / ventre em revolta” (“Noite derradeira”; ib., p. 81), Sigá consegue também, como a poetisa sua contemporânea, evadir-se através da palavra poética. Os percalços da sua trajetória não lhe permitiram uma formação mais sistematizada, sendo um autodidata. Para um indivíduo independente e exigente, nem sempre tem sido fácil impor-se e fazer-se reconhecido em Bissau. As oportunidades de trabalho são poucas, as perspectivas profissionais problemáticas, a frustração está como que pré-programada. Daí, talvez, a desolação e o sentimento de abandono (“Não cabe – nem no ar – a minha casa”; “Contas guardadas”; ib., p. 87), ao lado da causticidade refletida na aspereza de certos enunciados, o jeito abrupto e até rancoroso de expressar-se, os solavancos e as síncopes na enunciação, a procura de um vocabulário contundente e às vezes mesmo desconcertante que vai transmitir sem véus o estado de insatisfação do poeta, insatisfação com o mundo e consigo mesmo. Mas, no entanto (ou talvez justamente por isso), não perde a garra de lutar e de buscar o seu lugar, numa vitalidade que está em coerência com o que o eu poético afirma, denotando com muita ênfase esse empenho: “rasgando a pele da terra / um rasto de carne [...] / escreve nas minhas artérias / uma vontade exaltante de viver” (SIGÁ. In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990, p. 236). 261 As citações dos poemas de Félix Sigá, salvo outra indicação, serão dessa edição. António Félix Sigá nasceu a 16 de maio de 1954, em Bissorã. Foi o primeiro responsável pela Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC) na sua região natal (de 75 a 77) e na mesma época formou o conjunto musical de nome "Tchon Tchomá". Exerceu desde então diferentes cargos dentro dos quadros do PAIGC e do governo, no campo da cultura, tendo participado como delegado político de vários eventos internacionais. Esteve presente nas duas últimas das quatro coletâneas nacionais de pós-independência, com oito poemas ao todo. Além de escritor, é músico e compositor. Jornalista bissexto, foi realizador e coprodutor de programas radiofônicos, tendo sido membro do conselho redatorial do jornal Expresso Bissau e repórter da televisão guineense. Atualmente é gestor de uma organização não governamental dedicada à medicina tradicional. Seu primeiro livro individual, Arqueólogo da calçada, foi editado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), em 1996. Os poemas transcritos nas publicações coletivas não dão uma verdadeira imagem da versatilidade e do grande talento de Félix Sigá, cuja obra inédita é imensa. Sua produção da década de oitenta em diante, reunida em parte em seu único livro, e outras numerosas criações, a grande maioria ainda inéditas, são de temática múltipla, traduzem tensões variadas, falam sobretudo de amor e paixão, do seu apego ao país e às belezas da terra e em especial da gente, do povo e do seu estar-nomundo. Cf. AUGEL, 1998a, p. 281-297. 224 O poeta tem consciência de que sua visão dos fatos e das gentes não agrada a todos, talvez cause mesmo indignação ou fastio. Seus versos evidenciam um constante questionamento, um debater-se em definir seu estar-no-mundo, mas também seu modo de ser. Em “Confissão aliciante” escancara seu avesso, numa visão de si mesmo profundamente negativa e mesmo destrutiva: Sou um facto escandaloso que desafia os porquês de um mundo desejado [...] Sou sucata de um destroço falhado [...] levo enxadas à ferrugem [...] Sou a palavra mal pronunciada [...] Sou a foz humana de mil cascatas furiosas (1996, p. 21-22). Sigá chega, no conflito consigo mesmo, até a querer rejeitar princípios básicos e universais, geralmente incontestados, por não mais acreditar neles: “Gostaria de odiar / consciente / a paz e a felicidade – sempre palavras” (“Natal querido”, inédito). Sem querer fazer concessões, “estremece” por causa do “fedor da metamorfose”, cansado de presenciar inverdades e falsidades, injustiças e promessas vãs, declarando que “farto / farto / farto ando” (“As favas da crença”, inédito). A literatura pode ajudar ou mesmo ser o instrumento para a superação de conflitos de identidade, como reação ou até como sublimação das tensões. A relevância da experiência estética literária como recurso catártico é sempre de novo constatada. Sentindo-se incompreendido e isolado, o eu poético procura entender a razão de ser “um pássaro gigante”, sim, ao mesmo tempo “destemido temido”, mas que não consegue alçar vôo, estando “só a andar / sem asas / em tempos de mudança” (“O pássaro operário e o caçador de dotes”; ib., p. 76). E pergunta-se, desolado: “Onde depositar credível / Tanto encanto obstruído?” (ib., p.87). Todo o texto desse poema destila um clima de desencanto e acidez, numa composição ríspida e sincopada, em que as anáforas e as simetrias desempenham um papel tão importante como as assonâncias e os oxímoros. Referindo-se a seus “sonhos / Que o direito me tolheu” e igualmente aos “direitos – todos sonhos”, Sigá desabafa sua desilusão (“Quanto grito sorvido pelo silêncio / Tanto amargor”; ib.), mostrando uma completa inadaptação e solidão interior: “Não cabe – nem no ar – a minha casa” (ib.). Os desapontamentos e frustrações não lhe tolhem a força de continuar nadando contra a corrente, numa teimosa e orgulhosa decisão de não se dobrar aos infortúnios. Tal postura também se encontra em muitos de seus poemas inéditos da década de noventa: “Pobre sou / Mas não desfaleço”, diz ele, e, intuindo que seus brados de alerta e de protesto não caíam em terreno fértil, 225 deu ele mesmo a explicação: “Por nunca me cansar / Sou semente entre pedras”262. Seu corpo assim “vertical”, declara no mesmo poema, “foi tudo quanto tive”, prosseguindo, obstinado, como num desafio, à procura de mudanças (“Contas guardadas”; ib., p. 87). Félix Sigá perscruta os labirintos psíquicos de sua personalidade. Em seus versos, são sobretudo elementos externos e perturbadores, provenientes da realidade social envolvente, que parecem levá-lo quase ao desvario e pôr em questão a própria identidade. São metáforas que expressam bloqueios, limites, solidão. O autor sente-se isolado, aprisionado em suas dúvidas e em dilacerante pessimismo. A integridade da pessoa humana, material, psicológica e moral, assim como sua liberdade, física ou de pensamento, são algo de sagrado e intocável para ele. Se os regimes políticos perverteram, muitas vezes de modo superlativo, esses bens inalienáveis, as malhas emocionais enredam igualmente o indivíduo e as cadeias do aprisionamento subjetivo são igualmente cadeias. A prisão é imagem de degradação e de perda, em todos os níveis; de limitação, de repulsa, de abuso do poder e de impotência. A prisão é metáfora, tropo revelando uma comunicação interditada, dilacerada, de dupla incidência, que leva concretamente ao cerceamento da possibilidade de movimentação, de saída ou entrada, e também à separação, à marginalização social, ao isolamento psicológico. E assim se sente o eu poético, entre grades, acorrentado: “Era o cárcere / a última página / deste episódio / alucinante e necessário / do velho drama” (“Transposição”; ib., p. 48). As imagens evocam limites e solidão, em metáforas que negam a dádiva de uma vivência compartilhada. Impossível separar o sentimento subjetivo de abandono e impotência causado pela desilusão coletiva em razão do fracasso dos ideais do passado. Não é difícil detectar o alcance político do poema (o momento histórico por que passava a Guiné-Bissau era de grandes tensões, perseguições políticas e arbitrariedades) quando conclui: “Era o cárcere / o fedor cessante / da transição obrigatória / era era sim era assim / o porto do poder” (ib.). Há outros estados alienatórios que se assemelham psicologicamente ao emparedamento de uma prisão e o reflexo do drama interior do indivíduo que se sente manietado moralmente pode-se ver espelhado no poema “Foragido”, um dos textos mais bem sucedidos da coleção. O poema, estruturado a partir de uma justaposição de conceitos, através de antíteses, oxímoros e inversões, espelha a perplexidade e o desacerto interior do sujeito poético. A vida, para Sigá, é como o “prolongamento do presídio”, em que ele vagueia, à procura da união dos opostos. Através de oposições semânticas e antíteses vigorosas, o sujeito poético é um “ávido insaciável”, oscilando “de presidiário liberto a fugitivo livre”, escondendo-se, sem perseguição aparente, dos 262 Extraído do poema inédito Semente entre pedras, título também de um livro que Sigá tem pronto há mais de uma década, com 88 poemas escolhidos dentre sua produção dos anos 91 a 93. 226 próprios amigos. Num grito de desespero, clama sua dificuldade de estar no mundo: “mal caibo nos pátios / aah, não sei mais a liberdade” (ib., p. 49). Os sintagmas “fugitivo livre” e “mal caibo” apontam para uma dinâmica do pensamento que envolve a passagem da passividade da frustração ou da resignação para a vontade de lutar e de superar tanto o derrotismo como a impotência em entender o momento presente. O poeta anseia livrar-se desse aprisionamento interior, da insegurança emocional que fustiga a racionalidade, e vencer os antagonismos que estão no mais profundo de si mesmo. Daí suas dissonâncias e sua indignação impaciente. Mas, diferentemente de Odete Semedo, as causas da amargura e das oscilações de humor de Félix Sigá vêm do exterior, de sua “ira santa” em relação aos representantes do poder. Não só no tempo colonial havia opróbrio, prisões, perseguição e cerceamento de liberdade. Agora, no período de consolidação da nova república, o olhar exigente do intelectual se volta criticamente contra a corrupção de certos dirigentes e da burguesia, o concerto dos detentores do poder, e busca, “desvairado”, ainda com certa timidez, uma possibilidade de reorientação (“na senda do meu norte”; ib.). É possível admitir-se com Satya Mohanty que se está diante de um sujeito impelido a procurar definir para si os vínculos de pertinência que o situem no mundo e o levem a elaborar processos identitários coerentes, constituindo as identidades posicionamentos a partir dos quais os indivíduos interpretam suas vivências e o mundo ao seu redor, aprendendo a definir e a reformular seus valores e alianças (MOHANTY, 1993, p. 55). Pode-se observar que Sigá, nas suas perquirições, enleia-se em contradições, frutos das oscilações de seu estado de espírito: “sou pássaro andante / a construir tudo […] sem asas / em tempo de mudança” (SIGÁ, “O pássaro operário e o caçador de dotes”; 1996, p. 76); as ambigüidades do texto traduzem a busca de autodefinição, mas também de redefinição de seu mundo de perdidas ilusões: “Marco passos / na incerteza / das coisas / certas” (“Compasso”; ib., p. 93). Sempre de novo o poeta entrelaça, lançando mão de oxímoros extremados, sentimentos subjetivos e pessoais com um participante amargor face aos reveses por que passa a sociedade guineense. Com olhos “cegos de tanto ver”, lança um convite consternado: “Chora comigo / a moleza dos braços e dos espíritos” (“Chora comigo”; ib., p. 36). Às vezes, decepcionado com essa fraqueza de caráter e essa “moleza” tanto da parte da iniciativa privada como da parte do poder político, inconformado com o clima de corrupção, inoperosidade e arbitrariedade reinante, considera-se “perdido”, vendo “A vida / feita de sal e limão, / A felicidade / feita espuma, / O destino / feito sonhos” (“Teimosia”; ib., p. 90). Mas o poeta vivencia também momentos de mais otimismo, por exemplo, quando o nascimento de um filho lhe devolve a esperança, e então confidencia: “trago na pele / a vida e o sol” (“Síntese”; ib., p. 91) e “no breu absoluto / um lençol de luz súbito / transmuda-me” (“Clênyo, Filho”; ib., p. 70). 227 “Cantor da quietude e da amargura”, como a voz poética se autodenomina, Félix Sigá também é sensível tanto ao “bulício” dos ambientes urbanos como ao bucolismo da vida rural e, em poemas de cunho social e ocasionalmente mesmo num tom de reportagem jornalística, com verve e muita propriedade, quase sempre com ternura, oferece aos leitores flashes, instantâneos do cotidiano, referindo-se, em versos saborosos, às bideiras (vendedoras ambulantes) dos mercados da cidade ou nas feiras à beira das estradas, às prostitutas, às empregadas domésticas “que também gozam férias”, aos operários anônimos, aos militares “que dançam fardados”, ao mendigo “torpe, sudoroso, perseverante, arqueólogo da calçada” da cidade. O poeta capta também com argúcia o embate desigual entre o moderno e o tradicional, aponta com o dedo crítico e até sarcástico o estado lastimável e vergonhoso em que o país se encontra (“Essa Reconstrução mal iniciada”; “Perseverança”; ib., p. 33), não poupando denúncias (“tu sabes / que o povo sabe...!”; “Eh! Eh!”; ib., p. 37) nem admoestações (“Cautela / que o casaco não cobre a camisa!”; ib.). No âmago de cada indivíduo existem contradições que não cabem num espaço identitário coerente. Movido ora por pulsões subjetivas, ora por revoltas ou emoções coletivas, o sujeito assume sempre de novo identidades diferentes em diferentes momentos, afirma Stuart Hall (e não só ele), e que não são unificadas ao redor de um “eu” consolidado, que são móveis e cambiantes, continuamente deslocadas (HALL, 2000, p. 13). Mas não queria chegar ao ponto de etiquetar as dúvidas e ambivalências de Odete Semedo ou de Félix Sigá como características da pós-modernidade, quando se tornou bastante generalizada a tão decantada “crise de identidade” que, ainda segundo Stuart Hall, deve ser vista como parte de um processo mais amplo de mudança, mudança essa que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (ib., p. 7). Nem as identidades culturais nem as identidades individuais são, hoje em dia, rígidas ou imutáveis, lembra Boaventura de Sousa Santos: elas “escondem negociações de sentido, jogos de polissemia” (SANTOS, 1999, p. 135). O “eu individual” e o “nós coletivo” não se excluem, muito pelo contrário, entrelaçam-se, e esse entrelaçamento não pode ser vivenciado sem tensões. Acabamos de ver que Félix Sigá, como outros escritores guineenses aqui presentes, recupera com sua poesia a presença dos vencidos, esquecidos e marginalizados, identificando-se com eles, o que agudiza suas angústias existenciais. 6.3 Comunidade de destino: a identidade compartilhada A procura plural do equilíbrio identitário, de um lado em busca de uma sintonia interna, sempre de novo esforçando-se para uma harmonia ou um encontro balanceado consigo mesmo, leva o indivíduo, inserido num espaço social, a também procurar harmonizar sua inserção em sua 228 comunidade ou grupo. A reciprocidade, mas também a consciência da diferença, são elementos importantes quando se pensa a identidade. Muniz Sodré, citando Heidegger, lembra que o termo alemão para pertencimento é Zugehörigkeit, termo que inclui na sua raiz o verbo “escutar” (hören). “Todo pertencimento é, assim, uma recíproca escuta na diferença, e toda identificação se dá no comum-pertencer, com acento forte no ato de pertencer” (SODRÉ, 1999, p. 38). A capacidade do indivíduo de ser ao mesmo tempo sujeito e objeto da sociedade faz parte dessa biunivocidade: pode exercer influência enquanto sujeito, sendo potencialmente capaz de alterá-la e, como objeto, ser por ela influenciado, intercâmbio que não acontece sem tensões. O crítico africanista Russell Hamilton faz uma leitura do “eu intimista” também como voz coletiva, quando a produção textual, expressando uma reivindicação mais pública, faz-se ouvir pronunciando-se em favor de um “nós”, abrangendo protesto social, reivindicação de um espaço para os subalternos – os que até então não tinham tido o reconhecimento de sujeitos da história (HAMILTON, 1985, p. 496). Considerando as identidades como posicionamentos a partir dos quais os indivíduos interpretam suas vivências e o mundo a seu redor, o assumir um papel social está, portanto, diretamente ligado ao sentimento identitário. Rastreando o discurso literário guineense, notase que as elucubrações em torno do próprio eu, do destino individual, para muitos autores resvalam para um plano secundário em detrimento do sentido comunitário e das preocupações sociais. É possível detectar com muito mais freqüência momentos em que palpitam manifestações poéticas expressando sentimentos de pertença, de identidade compartilhada e de consciência coletiva, ao lado de indiscutível qualidade estética. 6.3.1 Pascoal D’Artagnan Aurigemma, “poeta soldado”, “poeta proibido” A obra de Pascoal D’Artagnan Aurigemma, em seus diferentes aspectos, pode ilustrar como o escritor, assumindo seu papel social, identifica-se com seu povo, convencido de sua função como porta-voz e tcholonadur, expressão guineense muito apropriada para designar o mensageiro, o intérprete. Pascoal D’Artagnan Aurigemma teve sua obra publicada postumamente, também dentro da Colecção Kebur. Seus versos foram reunidos no livro Djarama e outros poemas (1996)263. 263 Seus poemas foram por ele mesmo compilados em vários códices datilografados, com muitas variantes e nem sempre foi fácil decidir que versão utilizar para a publicação final. Sobre esses cadernos e coleções de poemas e sobre os critérios para a edição crítica, cf. minha introdução à edição de sua obra em AURIGEMMA, 1996, p. 919. As citações dos poemas de Pascoal D’Artagnan Aurigemma são dessa edição. Cf. também, do mesmo autor, uma seleção publicada por Hildo Honório do Couto, em AURIGEMMA, 1994. As indicações biobliográficas desse autor estão no capítulo 5, nota 189. 229 Nomear os problemas e as questões que mais afligem o povo é para ele uma forma de responsabilidade social. A empatia do poeta é tal que ele se chama a si mesmo de “cantor miserável”, ao evocar os estivadores, os trabalhadores braçais e sofredores, “uma data de anónimos”, individualizados, entretanto, pelo poeta que lhes desfia sonoramente os nomes no belo poema “O cantor miserável da noite no cais” Eu sou o cantor miserável da noite no cais! Estão ali no cais Ansumane Becô, Infamará, Bicinti Cabupar, Malan Seidi, Djodje Badiu, [Batipom Cá ... Estão ali uma data de anónimos da noite no cais! […] Gente para carrego de sacos fartos e tantas caixas de whisky and coca-cola and beer que o mundo galã há-de consumir em noites diferentes das noites no cais... (AURIGEMMA, 1996, p. 55). Num gesto de sublimação, ou, como se expressou Muniz Sodré, num “desvio do alvo por pulsão” (SODRÉ, 1999, p. 94), isto é, num processo inconsciente que consiste em transferir as emoções para novos objetos, o poeta superlativa o homem qualquer com o qual se depara no cais, emprestando às suas qualidades uma função simbólica que está além da realidade: o tronco forte do homem qualquer untado de calor quente rolando corpo abaixo como gotas de lágrimas expoliadas dum gesto forte dum sofrimento longo... (ib., p. 56). O cais é, em toda parte, sítio de trabalho braçal, masculino e duro, mas também o espaço de desesperança onde atuam as prostitutas pobres, como a “menina Penina que não sabe viver para a seriedade / onde mastigaria – gulosa e totalmente – / outro pão de menos veneno” (ib.). A solidariedade está presente, mas também a crítica e a denúncia. As dificuldades sociais do povo de sua terra inspiram o escritor que, em várias passagens, externa sua sensibilidade a respeito. Em sintonia com a interpretação de Benedict Anderson, que para denominar o sentimento de fraternidade, o coletivo de iguais, lança mão do neologismo “frátria”, o poeta vai confessar essa identificação que o leva ao “Amor fraternal” sem pieguice: Não não levarei para casa o suor do rosto trabalhador do meu irmão trabalhador. 230 Rasgarei com energia os chãos duros e regarei os canteiros com o meu próprio rosto (ib., p. 105). Também no poema intitulado “Essência”, lê-se que o eu poético leva essa identificação ao paroxismo, pretendendo absorver no próprio organismo as aflições morais e emocionais que o outro, seu próximo, experimenta no íntimo e com isso consegue tornar seu, tornar parte de si mesmo, “a matéria nascida da chaga”. Assim, incorpora simbolicamente o que de mais aviltante e repulsivo consegue expressar, como uma celebração num altar sacrificial, comungando com “o homem semelhante” numa comunidade de sofrimento: Eu sou mesmo aquele homem que bebeu matéria nascida da chaga do homem semelhante [...] que chorou chorou sempre a matéria vasada sagrada do homem semelhante (ib., p. 62). Na mesma linha, os poemas dedicados ao velho (“Cachimbeiro”; p. 54; “Irmão balanta”; p. 78; “Bumbulum de Clabus”; p. 94); à mulher (“Prato de fome”; p. 35; “Mamãe Mulher”; p. 41; “Imagem para um romance”; p. 74) e à criança (Canção da criança; p. 34; “Acorda criança”; p. 110; “Rapazinho de rua”; p. 119), todos da edição de 1996, são testemunhos eloqüentes dessa sensibilidade participativa. O mesmo se pode dizer de “Retrato de um natal”, onde o autor propositadamente assume uma atitude de provocação e traz à cena personagens para os quais o natal não é sinônimo de abastança nem de alegria, desconstruindo a imagem de harmonia e doçura ligada a essa festa: Juntos – mesmo chegadinhos mamãe filho & miséria no calendário social da vida Não há gestos de amor nem fôlego d'alguém a minorar-lhes a dor [...] Olhos inchados de escárnio mãos tremulantes estendidas ao silêncio, pernas tomadas de grande canseira (ib., p. 75). D’Artagnan Aurigemma era filho de pai italiano e de mãe mansoancá, um subgrupo dos 231 Balanta264. A origem afro-européia pode ser notada ao longo de toda sua obra: como africano, sentia-se profundamente enraizado na terra natal e ligado a tudo o que lhe dizia respeito. Seus versos telúricos, impregnados pelos aromas e cores dos campos, pelo amor à natureza, à gente de seu país, ombreiam com aqueles que refletem um humanismo sem barreiras, através da preocupação pelo social e pelos destinos do homem e da mulher. Os costumes e a cultura balanta estão presentes em muitas passagens, apesar de muito conscientemente o poeta não limitar suas referências a aquela etnia, usando termos também de várias outras línguas, como os títulos de suas coleções bem o mostram265. Inúmeras vezes o poeta lança mão de termos da língua balanta, como em Bumbulum de Bitna (p. 63) e em Bumbulum de Clabus (AURIGEMMA, 1996, p. 94). Clabus e Bitna são nomes próprios masculinos da etnia balanta; mas também há patronímicos de outras etnias, como Mariama (ib., p. 74, p. 111), Sulai (ib., p. 53), comuns entre as etnias muçulmanas, fula e mandinga, por exemplo. No poema “Irmão balanta”, a partir de sugestivas imagens, pode-se mesmo visualizar a típica figura do ancião com o seu lancón, o pano usado hoje em dia sobretudo pelos homens idosos, jogado do peito para as costas, a “tapar a nudez [...] / dedo anelar / com o anel de tempos atrás” (ib., p. 78), ou nos deparamos com o amigo pepel com o seu lopé (tira de pano envolvendo o ventre e o sexo), ou ainda com o homem mandinga usando as suas largas calças denominadas fundinho (“Pensamento”; ib., p. 115). Depois do tempo sombrio da opressão colonial, quando os valores africanos foram vilipendiados e desqualificados, o papel do escritor expressando repúdio e denúncia foi da maior importância para a retomada da auto-estima e da valorização das coisas da terra. A poesia ufanista da época pós-independência desempenha um papel basilar na construçãoda identidade coletiva. Em Aurigemma, a paixão pela terra, pelo chão guineense, soma-se a seu amor à pátria vitoriosa e a seus heróis. Em “Hino ao meu país”, dá livre curso a esse entusiasmo patriótico. O poeta, prostrando-se numa atitude de veneração quase religiosa, exalta as peculiaridades de seu torrão natal. E o emprego anafórico do verbo beijar na primeira pessoa do presente do indicativo acentua a intenção de prece, de um hino de fé e fervor: “Beijo o chão negro / do negro chão / Beijo o chão das altaneiras e desafiantes palmeiras”. Prossegue no mesmo tom eloqüente, ressaltando de forma muito pessoal os elementos típicos da paisagem guineense, caracterizandoos com inesperados epítetos: 264 A etnia balanta é a mais numerosa do país, corresponde a cerca de um terço da população total. Os Balanta são sobretudo agricultores e criadores de gado. Constituíram o maior contingente de guerrilheiros durante as lutas de libertação. Sobre as diferentes etnias que vivem na Guiné-Bissau, cf. capítulo 2, item 2.4. 265 O livro de poemas de 1996 está dividido em três partes: “Djarama” (expressão fula), “Bumbulum de Clabus” (Clabus é um nome próprio masculino balanta) e “Nénom, Nenó N’té” que é uma expressão em crioulo usada como saudação e exprime o contentamento por se encontrar alguém que há muito tempo não se via (cf. AUGEL, in: AURIGEMMA,1996, p. 17). 232 Beijo o chão das bananeiras molengonas e rechonchudas de mangueiros segredentos em cerimónias de garandesa de poilões bravos e insolentes – génese de irãs sábios Beijo o chão dos coqueiros dos laranjais e pinhais e que mais? (ib., p. 37). Mas o poeta vai além do mero louvor aos encantos da natureza, ultrapassando a simples admiração. O chão da pátria tornou-se sagrado também pelos sofrimentos passados que o autor confia estarem eles definitivamente ultrapassados naquele ano de 1975, data do poema, uma vez que, sem essa superação, a liberdade duramente conquistada perderia a razão de ser: Beijo o chão de cansaços do negro acorrentado e grades de prisões e fomes e pancadas surdas em masmorras do silêncio absoluto! Beijo o chão onde o sangue do sacrifício correu em caudal de libertação (ib.). Alusões a elementos típicos da paisagem e da cultura africanas, especificamente guineenses, são freqüentes na obra de Pascoal D'Artagnan Aurigemma. O poeta nomeia pássaros (“Rasgando os ares / intrepidamente / aí vão as andorinhas pombos / águias djugudés e djambas”; p. 90), animais (onças, bufris, leões, lobos, cabras do mato, gazelas da lala; p. 87), assim como nos “matos longos e insubmissos / as onças linguanas cobras bufris / o leão real” (p. 90). Alista também tanto as “ostras calcáreas”, quanto os peixes que vivem nas “águas ensaudadas e mansas beijando estacas”, os” bagres e barbos / [...] bentanas e esquilões / que menino pescador de cana e linha / vai ali pescar!” (p. 56). Faz referência a alimentos regionais, tais como “cuscuz panquete e cungutu”266, o “copo de sida”, que é o termo na língua balanta para qualquer bebida alcoólica (p. 27), ou o “cassequê e o nhelém”267; menciona instrumentos musicais, misturando, por exemplo, num só verso, instrumentos pertencentes a diferentes culturas: enquanto os nhanheros e os balafons são utilizados sobretudo por fulas e mandingas, etnias islâmicas, os bumbuluns são instrumentos de percussão típicos das etnias balanta, pepel, mandjaca e outras, praticantes de religiões naturais, sendo um instrumento musical mas também veículo de mensagens mesmo à longa distância. Logo no verso seguinte, refere-se a violões, violas, guitarras (“Poema do Passado”; ib., p. 117), de gosto mais das camadas populacionais crioulizadas. Relembra ainda o don-don, espécie de pequeno tambor fula que igualmente serve para enviar mensagens; ou o tambor gingão, de “rumor trepidante” (p. 115). Pascoal D'Artagnan Aurigemma sabia-se e queria-se poeta, com todas as implicações acarretadas pelo ofício. É o destemido “poeta-verdade”, o combatente “poeta-soldado” (ib., p. 39), o terno “poeta da paz e do sossego / do amor e do carinho” (“Dilúculos”; ib., p. 121). Mas tem consciência que sua postura o torna também um “poeta proibido”, como revela neste poema: 266 O panquete é um tipo de panqueca, feito de farinha, leite e ovos, uma massa frita e doce. O cungutu é um doce feito de amendoim pilado e amassado em bolas. 267 O cassequê é o peixe seco, alimento de gente pobre; o nhelém é o arroz quebrado e de má qualidade. 233 Eu sou o poeta proibido de grito aglutinado de suspiro abafado [...] aquele em quem os inimigos da palavra – tugindo e rugindo – erguem a vigilância – hipócrita e malvada vigilância – [...] Sou poeta da paz e do sossego do amor e do carinho […] Sou poeta: canto as glórias os amores (ib.). Inimigos, ou pelo menos, contrários a seu pensamento, a seu comportamento e a sua maneira de ser, parece que encontrou, e não poucos, no transcurso de uma vida atribulada. O autor confessa que os conhece e sabe do que são capazes: Quando os pressinto junto a mim homens de valor mesquinho Quando sobre mim vossos olhares noto desprezíveis desonestos insensíveis Quando enfim vossa injustiça sinto (cambiante em silêncio sepulcral) desafiando a voz da consciência (“Libertação”; ib., p. 116), O poeta, vendo a enorme distância que o separa de toda aquela mesquinhez, conclui que justamente quando se confronta com tais baixezas é “quando mais se agiganta em mim minha grandeza” (ib.). Vê-se mais uma vez que a obra de Aurigemma se caracteriza pela predominância de uma refletida decisão de pôr a descoberto injustiças e situações para ele motivadoras de indignação e protesto e é esse, a meu ver, o forte de sua poesia, numa permanente preocupação com os valores comunitários e fraternais. Reflete-se, numa constante, em seus poemas, um humanismo amplo e universal (“Harmonia a simbolizar a união”), como muitos exemplos bem ilustram: […] sonho de humanidade-amor de humanidade-desespero [...] Voz a desafiar o segredo rotinante daquela fome que poeta-verdade cantou em versos de amor-humanidade [...] de amor-fraternidade! (“Música – poeta – voz”; ib., p. 38-39). O lexema fraterno e derivados aparecem doze vezes em sua obra, o que por si já confirma o que observamos. Com efeito, o poeta irradia um amor fraternal e solidário, um profundo sentimento de pertença, latente na maior parte de seus textos, unindo-o a todos os irmãos de sofrimento (a todas as vítimas da dominação colonial), os filhos da “mártir África” (ib., p. 80) sim, mas sobretudo da 234 “Mãe África” (ib., p. 30), da “África liberdade” (ib., p. 47), da “negra África de nós mesmos!” (ib., p. 50), do “chão-pátria-unida da África africana / de todos nós africanos!” (ib., p. 37). Não é por acaso que o poeta escolheu o poema “Djarama” para abrir seu livro. Abrangendo nesse texto, num só fôlego, personalidades de relevo tanto para a Guiné-Bissau como para a África em geral e para o resto da humanidade, misturando conscientemente os nomes históricos e universais, mas dando a cada um a amplitude de um verso (“Neto / Andrade / Dante / Cabral / Benúdia / Senghor / Gabriel / Ovídio”), enfeixando tudo sob o signo que lhe é muito caro da Negritude, sem usar nessa passagem nenhuma forma verbal, nenhum conectivo, nenhuma ligação, o poeta termina aquela estrofe com o brado: “O canto da África / O grito da África / O hino de África!” (ib., p. 28), finalizando com Ala djarama (ou seja, Alá, obrigado!), utilizando a expressão de agradecimento e de saudação da língua fula, que não era a sua, língua comum a vários povos da África ocidental, selando com isso talvez a sua africanidade268. 6.3.2 Tony Tcheka e o seu insone “olhar para fora” Stuart Hall, referindo-se à tipologia do sujeito, em A identidade cultural na pós-modernidade, rastreia, de modo simplificado e esquemático, três diferentes etapas no percurso da história, mapeando as mudanças de sentido que o conceito foi sofrendo. Primeiro, a idéia do sujeito, no Iluminismo, estava baseada na concepção de um sujeito centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. O cerne essencial do “eu” consistiria num núcleo interior que seria a identidade da pessoa. Numa segunda etapa evolutiva, a partir do século XIX, refletindo a complexidade do mundo moderno, cresceu a consciência de que esse núcleo interior não seria autônomo, muito ao contrário, formando-se sempre numa conexão com outros indivíduos. Surge “um sujeito em relação com os outros” e a identidade se estabelece na interação do “eu” com a sociedade. Não se trata de negar a existência do núcleo central e individual (o “eu real”), mas sim de vê-lo permanentemente influenciado, modificado e intercambiando com os valores, sentidos e símbolos dos mundos culturais “exteriores” e as identificações por eles oferecidas (HALL, 2000, p. 10-11)269. É o assim chamado “sujeito sociológico”, cujo modelo abrange de modo geral boa parte das últimas gerações, atingindo, e mesmo regendo, seu comportamento. 268 Entretanto, numa modesta publicação policopiada com esse mesmo título e que tardiamente me chegou às mãos, o poema de abertura é “Hino ao meu país” e “Djarama” não foi incluído. 269 A terceira etapa corresponderia à fragmentação da identidade, resultante da provisoriedade advinda das grandes mudanças estruturais e institucionais dos últimos decênios, caracterizando o sujeito da pós-modernidade por “uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis” (HALL, ib., p. 13). 235 Muitos dos poemas de Tony Tcheka270 estão nesse espaço intercambiante onde o “eu” e o “outro” se entrelaçam. Encontramos em sua obra poética versos de exaltação amorosa e também versos denotadores de introspecção e indagação do ser e do estar-no-mundo. Essa subjetividade refere-se aos sentimentos, à interioridade, à introspecção, opondo-se ao mundo objetivo e aos outros sujeitos. O eu poético, num momento de desencanto, sentindo-se “nu sem acento tónico” e prematuramente com “pés cansados”, vê com pessimismo as perspectivas do futuro que não lhe parecem sorrir, temendo a vida que tem pela frente, parecendo desencorajado por haver ainda “tanto / tanto / por caminhar!” (TCHEKA, “Melodia do desespero”; 1996, p. 72). Mas o poeta quer sacudir o desalento e retomar a caminhada, numa postura mais construtiva e operosa, motivado pelos companheiros, unidos numa mesma comunidade solidária. Sabendo-se um entre muitos iguais, pertencendo todos ao mesmo espaço (a tabanca), todos com o passado comum de dificuldades e (des)esperanças, o poeta confia na força da sua palavra animadora: Nascemos na tabanca somos poesia-brava filhos de noites sem estrelas [...] Somos a bolanha271 ávida de mão para semear (“Poesia brava”; ib., p. 81-82). As formas verbais, tanto na primeira pessoa do singular como do plural, são sintomáticas para expressar a empatia do autor em relação ao outro, considerado por ele fraternalmente como seu semelhante. O “nós” revela solidariedade, um “sentir com”, alargando a identidade pessoal para a coletividade, tanto a sofredora como, em outros casos, a vitoriosa, mas de todo modo englobante e não restritivamente pessoal. Tal posicionamento faz parte do projeto subliminarmente presente nesses textos que vão além do reflexo de uma identidade ora subjetiva ora compartilhada, expandindo-se para a construção da identidade nacional, numa tomada de posição reveladora do lugar do subalterno, na versão e na visão que o dominado tem de si e de seus iguais, de seu modo peculiar de ser, de viver – mas também de reagir e resistir. Tony Tcheka destaca-se por ter ultrapassado bem cedo aquela já referida intenção didatizante ou documental tão comum dos primeiros tempos da afirmação da nacionalidade. E isso já se podia vislumbrar nos textos que escolheu para figurarem na Antologia poética da GuinéBissau (1990). Não é por acaso que o escritor emprega em seu livro por dezesseis vezes o enunciado “amanhã”, no sentido de “dia novo”, de renovação e de esperança. Apesar de não ter vivenciado pessoalmente as lutas da libertação nacional, Tony Tcheka internaliza e torna sua a lembrança das atrocidades da guerra, duro tributo que o país pagou para 270 Tony Tcheka, pseudônimo de António Soares Júnior, é um escritor polivalente, participante das letras guineenses desde a juventude. Cf. nota 155, no capítulo 4. 271 As bolanhas (ou bulanhas) são campos planos, alagadas ou alagáveis, situados às margens de rios, preparados para o plantio do arroz aquático (SCANTAMBURLO, 2002, p. 136). A tabanca ou tabanka é a aldeia. 236 sacudir o jugo colonial. Na memória coletiva de todo guineense continuam vivas as imagens daquela época que assinalou com vivências semelhantes toda uma geração de africanos de diferentes recantos do continente, marcada pelos derradeiros esgares da dominação portuguesa, fera ferida debatendo-se ante o caminhar irreversível da História. A fantasia criativa do poeta torna suas, e as faz emergir, reminiscências de cenas patéticas da guerra cruel: ermo habitado por recordações... De meninos em pânico correndo fugindo ao napalm, à arma inimiga De mulheres ninando o corpo que a bala adormeceu (“Melodia do desespero”; ib., p. 72-73). Retornam as lembranças dos combatentes na luta, fazendo-se a voz poética também companheiro presente, misturando-se no convívio camarada de um cigarro fumado a dois e da sede saciada em comum, comungando os mesmos cuidados, partilhando os mesmos perigos: Combati! Vivi! Senti a independência logo ali Ali onde trocamos a beata passa a passa ali na conversa... a tosse seca a minha e a tua pareciam gémeas Ali curei-te a chaga que o estilhaço abriu do teu cantil matámos a sede (“Ason”; ib., p. 75-76). Ason, o título do poema acima citado, é um termo da língua guineense de conotação múltipla. Pode figurar como um apelativo, como uma expressão carinhosa ou afetiva, mas também pode ser depreciativo. Ou refere-se a alguém cujo nome não se quer revelar, ou simplesmente um "alguém" anônimo, cuja individualidade não importa, intencionando o poeta neste caso apenas pôr em evidência a conversa mantida naquele momento, a confiança e a intimidade geradas num momento difícil, a promessa otimista de um futuro melhor. O autor parece ter propositadamente empregado o termo para insinuar tanto a presença do combatente sem nome, desconhecido mas heróico, como para indicar o grau de proximidade que unia os dois: “Ontem em Quintáfine / na noite iluminada / pelo fósforo ardendo / tudo queimando / falaste-me do amanhã na vida sã” (ib., p. 75). 237 O sujeito enunciador reconhece que não há razão ou motivo por que sempre de novo considerar as dores passadas. Movido pelo afã da construção da nação, quer seu olhar sobretudo projetado para o futuro, como em seu “Hino ao dia novo”: Companheira minha, [...] vem canta comigo a nova madrugada façamos um hino ao dia novo [...] sente nascer na bolanha ... na enxada do camponês a brisa do amanhã [...] Companheira, repara, há um sorriso novo na face do pioneiro sorriso que matou a barriga grande de fome e fez o menino sentir-se menino (“Hino do dia novo”; ib., p. 101). O eu interior é inseparável da história, da cultura e dos valores em que está inserido. Durante a guerra colonial, os sacrifícios eram suportados com bravura pela fé na causa comum de recuperação da identidade perdida, abafada pela “noite colonial”272. Dispostos a qualquer sacrifício, “Sabíamos todos / para onde íamos”, afirma o poeta em “Todos e sem cor” (ib., p. 97). Depois de consumada a libertação, depois das “noites ensanguentadas”, apesar das dificuldades passadas, quando “Aprendemos no sofrimento / das manhãzinhas de cuntango / sem pão / nem manteiga” (“Poesia brava”; ib., p. 81), mesmo tendo de compartir o “mesmo prato de fome”, a dignidade estava enfim restaurada, “ninguém comia da sobra de ninguém” (“Todos e sem cor”; ib., p. 97). A voz poética assume na primeira pessoa as aflições e as agruras da dura realidade cotidiana, a decepção pelas utopias fracassadas que avilta a terra natal: “Guiné sou eu [...] Guiné somos todos / mesmo depois da esperança” (“Canto à Guiné”; ib., p. 80). Guiné é Bissau tentando emparelhar-se com as grandes metrópoles, é o país enfrentando o desafio do desenvolvimento, mas também é muito mais. A história hegemônica oficial festeja os heróis nacionais e as façanhas da vitória contra o colonizador, mas o poeta – atento, solidário – não esquece a vasta maioria silenciosa e marginalizada: Guiné és tu camponês de Bedanda teimosamente procurando a bianda na bolanha 272 a noite colonial foi vencida é um verso de Tony Tcheka quando ainda não usava esse pseudônimo, assinando António Soares Lopes Júnior o poema “Abusivamente”, com o qual abriu sua participação na primeira seleção poética guineense, Mantenhas para quem luta! (1977), cujo título foi tirado, inclusive, de um poema seu. 238 [...] Guiné és tu criança sem tempo de ser menino [...] Guiné és tu mulher-bideira em filas de insónia noites de kumpra pon (ib.). Cada indivíduo, dependendo de seu campo de comportamento ou atividade, percorre ou incorpora, vivencia ou transita por diversas esferas identitárias. A expressão parece mais significativa quando usada no plural – identidades – porquanto são elas múltiplas e não têm que estar presas a nenhuma hipóstase de tipo subjetivista. O uso do termo no plural corresponde à superação da idéia de uma identidade única e estável, ressaltando o fato de o indivíduo assumir diferentes representações e diferentes formas de ser na vida social. Não é demais reafirmar que “identidades são identificações em curso”, como se expressou Boaventura de Sousa SANTOS (1999, p. 135), categoria plural e muitas vezes díspare. Zilah BERND (1999, p. 95 e ss.), citando Derrida, que se refere à natureza inacabada da identidade, prioriza substituir o conceito por “identificação” que corresponde à idéia de movimento e de completação, sendo muitos os seus mecanismos, na mesma linha de pensamento de Boaventura de Sousa Santos. A identificação, num sentido amplo e bastante simplificado, é o ato do indivíduo assumir e internalizar, tornar “suas”, certas características (comportamento, gestos, atitudes, modo de falar ou de ser) de um outro indivíduo, deixar-se com-penetrar pelo que outrem sente ou pensa. Trata-se de um conceito haurido da psicanálise e que foi adotado tanto nas ciências sociais como literárias. Estreitamente imbricado com a identidade, encerra uma dinâmica interna, uma idéia de processo e de troca de papéis, um aspecto necessário para se melhor compreender a pluralidade identitária. A questão da identificação está sempre ligada a uma bifocalização, pois tanto se refere à produção de uma imagem de identidade como à transformação do sujeito ao assumir aquela imagem (BHABHA, 1998, p. 76). Essa imagem retornada, que ressoa dentro de si como um eco de si mesmo, como uma repetição do eu, traduz a intenção, a postura do autor em ser visto como o Outro, em ser mesmo esse Outro (o subalterno marginalizado, desprezado e até mesmo invisível, silenciado, ignorado pela sociedade) e dar-lhe visibilidade, voz e representação. Aqui, nos escritores analisados, tanto em Félix Sigá como em Pascoal D’Artagnan Aurigemma, como agora em Tony Tcheka, mas igualmente na literatura sobretudo de outros países ex-colonizados, pode-se verificar em muitos poemas uma tal postura de identificação. O discurso poético de Tony Tcheka evidencia e reflete a posição da intelligentsia africana, para a qual o destino pessoal é menos tematizado na literatura do que o coletivo, tendo a representação simbólica da subalternidade de seu país espelhada metonimicamente na figura do 239 velho, do lavrador, da viúva, do menino carente, em poemas em que o eu poético se identifica, partícipe, com as camadas desprestigiadas e silentes que estão bem longe do exercício ou do usufruto do poder. A contestação e a subversão dos valores vigentes, em consciente e proposital reversão da ideologia hegemônica, num gesto de resistência, são características comuns a muitos dos autores contemporâneos aqui estudados – e não só. Mais um exemplo disso é o poema “Chamo-me Menino”: Sou a criança pobre de uma rua sem nome de um bairro escuro [...] Sou filho da miséria escancarada enteado da vida [...] Vivo na periferia [...] Chamo-me Menino Dou passas desde os cinco tenho doze chuvas uma cara operária sobre um corpo fininho de cinco anos (TCHEKA, 1996, p. 117). São muitas as passagens em que Tony Tcheka se solidariza igualmente com o lavrador, com o operário, com o trabalhador pobre e com as dificuldades de que são vítimas. Num expressivo poema, escrito no interior do país e datado de 1995, um dos mais recentes das suas Noites de insónia, ressalta a dramática situação dos que perderam suas terras, deixaram de ser “donos do chão” (“negam-te o pedaço da tua tabanca”) para, em lugar da antiga autonomia, transformarem-se em simples empregados: “dão-te uma vida assalariada / taxam-te uns tantos por cento / para a sobrevivência autorizada”. O poeta pretende mostrar por meio de inusitada comparação, num misto de irreverência e ironia, que o camponês, como o resto do povo, sofre e pena, crucificado em suas misérias intransponíveis, mártir como o foi Jesus Cristo. Mas, não sendo o Filho de Deus, difícil se torna para ele suportar a situação (“E não te chamas Cristo”; ib., p. 79). Considerando-se pessoalmente atingido pela dor alheia, assumindo-a emocionalmente, Tony Tcheka vai mais longe na sua crítica. Nomeia sem subterfúgio “o desesper a fome / a doença os bolsos minguados / todos estes fiéis companheiros” (“Desafio”; ib., p. 61) que lamentavelmente caracterizam o dia-a-dia do país. Denuncia a “barriga da criança minguada” que “inchou / inchou / parece um balão / flutuando no corpo menino” (“Melodia do desespero”; ib., p. 73). A carência e o sofrimento, indevido e injustificável por falta de pão ou arroz, ocupam o escritor-jornalista, tematizando a questão em muitos versos: “na mesa / falho de tudo [...] / a velha plaina / o martelo / o cutelo / o malho / não fazem pão [...] / o tacho faminto / sobre-a-mesa / plaina lentamente a fome” (“Falsa valsa”; ib., p. 56). A epígrafe escolhida por Tony Tcheka para Noites de insónia na terra adormecida são versos do poeta moçambicano Grabato Dias: “Toda a Poesia é um olhar para fora” (TCHEKA, 240 ib., p. 5). Pôde-se ver nos exemplos que apresentei até agora que se trata também de um olhar para uma parte muito de dentro do eu poético, tal é a postura participativa, sensibilizada e sensibilizadora, que destila de seus versos. Com seu “olhar para fora”, o escritor capta também, solidariamente, não só o sujeito subalterno no seu país, como tem olhos e coração para a vida difícil e dividida interiormente dos emigrantes, saudosos do torrão natal, inadaptados em terras estrangeiras. A ilusão de uma vida melhor, a perspectiva de salários mais elevados, tudo isso pode levar ao fascínio muitas vezes falacioso da emigração. Tantos sacrifícios e desilusões fazem-no envelhecer antes do tempo e “viver manhãs de invernia / em pleno verão” (“Ceia operária”; ib., p. 58). Mais de uma década depois de ter escrito os poemas que integram seu livro inaugural, Tony Tcheka, atualmente vivendo em Lisboa, continua coerentemente solidário e vinculado a seus compatriotas. A voz poética identifica-se, empática, com os imigrantes na diáspora, que deixam a terra natal à procura de uma sorte melhor. Usando mais uma vez, como já o fez em tantos outros poemas, a forma verbal na primeira pessoa do plural, autodefine-se a si e aos demais marginalizados na grande metrópole, com metáforas pejorativas, acentuando com isso a vida mofina dos desterrados: chegamos asados africanamente [...] grãos de gente apeada da vida os negados do bem-estar ilegitimados da sorte engravidamos em relações de ódio sublimamos os partos adiados aprendemos a falar de boca fechada e a saborear a saliva amarga de desgraça (“Diasporando”, inédito). Abertamente intervencionista, em “Concerto de ‘djunta mon’” refere-se à revolta que experimenta ao testemunhar os desmandos da má governança em seu país e que têm conseqüências trágicas para a população. Incorporando a dor dos desvalidos, apela à emoção e à cumplicidade do leitor, reforçando com anáforas o quadro da inadmissível miséria. O olhar do enunciador procura o olhar do espectador e, nessa troca especular de olhares, se apaga a diferença. Irmanados nesse “concerto de djunta-mon”, não há lugar para preconceito nem mesmo piedade. Do triângulo constituído pelo enunciador, pelo receptor e pelo objeto em foco sobressai a transgressão insurgente do silêncio imposto pela sociedade envolvente, pelo discurso hegemônico. Nomeados, os motivos do opróbrio e da vergonha, da indignação inconformada tomam corpo e adquirem representabilidade, não podendo ser ignorados: A dor encosta-se a mim 241 abraça-me forte espalha-se pelo corpo em glândulas de fome Enfermo declino o convite para a grande festa da liberdade Estou no meu tempo no meu espaço na minha tabanca onde festa é choro é doença é criança morrendo dia a dia hora a hora! (“Concerto de ‘djunta mon’”; ib., p. 69). O título desse poema já prenuncia a intenção do poeta. A expressão guineense djunta mon significa “juntar as mãos”, “colaborar”, “fazer junto”, corresponde bastante bem à expressão brasileira “mutirão”. Tony Tcheka convida o leitor a um pacto de solidariedade, reiterando a afirmação de Satya Mohanty que as identidades são posicionamentos a partir dos quais os indivíduos interpretam suas vivências e o mundo ao seu redor, aprendendo a definir e a reformular seus valores e alianças (MOHANTY, 1993, p. 55). O poema é relativamente longo, com 46 versos, desdobrando-se em três partes, tendo sido escrito por ocasião da queda do muro de Berlim. Refere-se ao acontecimento e compara o momento festivo e de júbilo no país distante com as dificuldades sociais de seu espaço, sua tabanca. E a voz poética declara, decidida: “Não vou a Berlim / ver o muro em pedaços” (TCHEKA, 1996, ib., p. 69). Seu lugar é estar perto dos seus, pertença essa agora alargada a todo o continente africano, sua aldeia global: “Viajo sim no olhar desesperado / do menino moçambicano / nicando a raiz seca [...] / Na África-tabanca / morre-se / aos pedaços” (ib.). Está-se diante de um escritor que se preocupa sobremaneira com o social, com os problemas da vida cotidiana e do bem-comum, sem entretanto abdicar da preocupação estética. Sobretudo os poemas da década de noventa estão impregnados de uma ira santa, de indignação e impaciência pelo desbarato social e econômico em que o país está mergulhado, pelo marasmo de sua “terra adormeciada”, e o poeta arma-se ora de palavras esbravejantes, ora de um certo cinismo e amargura. Acabado o sonho, extinguiu-se também a esperança: “Mas... quando amanhã?”, pergunta, impaciente, pela boca do “Piquinote” (ib., p. 124). Com essas referências à solidariedade, à identificação com o outro, ao sentimento de pertença, o discurso poético faz sobressair de modo eloqüente os elos que unem entre si essa comunidade do sofrimento ou, como teria dito Max Weber, essa “comunidade de destino“273. 273 Max Weber, na sua obra Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e sociedade), tem todo um capítulo sobre a “comunidade de destino” (Schicksalsgemeinschaft). Cf. WEBER, 1964, 1° volume, 4° capítulo, p. 312 e ss., onde fala das relações étnicas e comunitárias. Anthony Smith refere-se à “comunidade de história e de destino” (SMITH, 1998, p. 70 e ss.). 242 Ficou visto que as identidades são construídas a partir de valores, de códigos sociais de participação coletiva. A identidade, dentro dessa ótica, tem também um aspecto indisfarçavelmente político, pois permite a idealização das relações sociais que instituem a cidadania (SODRÉ, 1999, p. 52), estando sempre em posição dialética com a alteridade. É política igualmente, uma vez que a luta por valores de dignidade humana representativos e seu reconhecimento sempre foi uma luta cívica. São necessários processos de longa duração para sedimentar o sentimento de pertença, bem além dos vínculos ou do intercâmbio entre indivíduos, e que vai permitir aflorar a identidade coletiva. O conceito de identidade se entrelaça com questões ligadas à raça e à etnia, ao povo, à nação e ao Estado. Em todo processo identitário o aspecto étnico está incluído, uma vez que representa um traço de união integrando a cultura nos contextos sociais. O comportamento que leva os membros de uma coletividade mais abrangente a desenvolverem o sentido comunitário e, apesar de não se conhecerem, serem mesmo assim capazes de fazerem medrar empatia e corresponsabilidade, chegando até a laços muito fortes e emocionalmente duradouros, base da constituição da nação, esse comportamento foi analisado por Benedict ANDERSON que desenvolveu amplamente a idéia das comunidades imaginadas em seu livro hoje clássico Imagined Communities (1983). Suas idéias vão orientar, entre outras, minhas reflexões no capítulo 7, quando tratarei da literatura como narração da nação. O discurso literário, assim como o político, assume a força da persuasão pela capacidade de levar o leitor e a leitora a identificarem-se com o texto, com personagens ou temas, incorporando a emoção experimentada na leitura. O caráter insurgente, protestatório e transgressor de muitos dos textos aqui analisados corrobora a importância que tem a literatura como contribuição para o aprofundamento do autoconhecimento e da auto-análise dos receptores. E isso, tanto como estímulo para a afirmação identitária do ex-colonizado que pode encontrar no discurso literário elementos de identificação e de encorajamento para escapar uma vez por todas do círculo vicioso da colonização interna e subjetiva, quanto para o leitor exógeno que aprenderá ou verá confirmada a necessidade sempre renovada de contestar e de invalidar os efeitos do poder repressivo hegemônico. Da indignação nasce o combate às causas, da “com-paixão” surgem a solidariedade compartilhada e o congraçamento – mesmo se, visivelmente, “apenas” através da ordem simbólica e pela força da palavra presentes nas representações literárias. Tony Tcheka, mas também Pascoal D’Artagnan Aurigemma e outros, são, sem dúvida, escritores que, com seus brados “com-movidos” de reprovação, de crítica e de ternura, dão largos passos em direção à concretização e à realização dos fundamentos da emergente nação guineense. 7 LITERATURA E A NARRAÇÃO DA NAÇÃO O simples gesto de escrever para e sobre si mesmo [...] tem uma profunda significação política. Escrever para e sobre nós mesmos, portanto, ajuda a constituir a moderna comunidade da nação. Anthony Appiah. Na casa de meu pai [As nações são] fenômenos duais, construídos essencialmente pelo alto, mas que, no entanto, não podem ser compreendidos sem ser analisados de baixo, ou seja, em termos de suposição, esperanças, necessidades, aspirações e interesse das pessoas comuns, as quais não são necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas. Eric Hobsbawm. Nações e nacionalismo O momento atual na Guiné-Bissau é propício para se refletir sobre a identidade nacional e os novos significados de nacionalidade que estão surgindo no cenário e nos bastidores da sociedade e do mundo político, com profundas implicações sociais e culturais para os indivíduos e para a coletividade. A importância da identidade individual e nacional, num território de extrema divisão étnica, assume um peso ainda maior quando se tem em vista o futuro do país e mesmo da África, tantas vezes sob a mira da suspeita de tribalismo que, em alguns casos, tem levado a guerras e genocídios. Abordei no capítulo 5 a questão da etnicidade e sua apropriação simbólica e no capítulo 6 a identidade cultural e suas manifestações na literatura. Ampliando meu enfoque, interessa-me agora refletir sobre a identidade nacional e a construção da nação na literatura guineense. Tais abordagens estão estreitamente conectadas umas às outras, como já disse na introdução, e, se as ressalto separadamente, é sobretudo para tentar, com isso, captar de forma mais diferenciada várias facetas de um mesmo fenômeno que poderia talvez resumir-se na idéia alargada de “pertencimento”. Tratando-se de países saídos da colonização, a idéia de inclusão social constitui um elemento fundamental que influencia, de forma consciente ou não, a percepção de si mesmo e sua relação com o meio envolvente. Com pouco mais de trinta anos de existência, a GuinéBissau não é homogênea nem seu passado oferece uma base que possa fazer germinar sentimentos de unidade, pertença e lealdade – nem para com o Estado-nação como instância política, nem em relação à coletividade como uma “comunidade de destino” (Weber) – capaz de absorver, em harmonia, diversidades e antagonismos advindos da multiplicidade étnica de sua população. 244 7.1 Desejo de ser nação Território pequeno e ainda de curto passado enquanto Estado, mal saído da colonização, o país vem sendo envolvido, desde sua fundação, em tensões internas e lutas pelo poder, entravado em seu desenvolvimento por problemas até agora insolúveis relacionados à gerência e à valorização de seu potencial natural e humano, o que se reflete no regime político e institucional, na saúde, na má nutrição, na educação, na distribuição de recursos, continuando quase completamente dependente da ajuda externa, tanto na sua economia como nas infra-estruturas sociais e físicas. O povo pouco ou nada é ouvido e sofre as conseqüências da desgovernança, da ambição de alguns e do subdesenvolvimento, submetido permanentemente a frustrações e privações, expectador e ouvinte de um discurso hegemônico sempre igual na base de promessas, cujo cumprimento é continuadamente postergado. É como se a evocação onipresente dos feitos heróicos da luta pela independência, alimentando o orgulho pelos gloriosos heróis nacionais, tudo justificasse, tudo compensasse, “consolando” a população em relação a seu futuro sempre de novo adiado274. A Guiné-Bissau como Estado ainda está envolta em indefinições, herança indigesta do colonialismo e resultado da própria desgovernança, buscando ser nação, buscando uma identidade amalgamadora para cimentar definitivamente as muitas pedras do seu mosaico étnico fortuitamente ligadas pela argamassa das fronteiras arbitrárias levantadas pelas potências imperialistas. Dentro de um tal quadro, tudo que possa fomentar esse sentimento de pertença, tudo que possa fortalecer a identidade coletiva é da maior importância. Como já foi exposto no capítulo 2, relembro que a área hoje ocupada pela antiga “Guiné Portuguesa” já era constituída por um conglomerado eclético e heterogêneo de povos diversos. Certas etnias “guineenses”, como os Fula (conhecidos em francês como Peul) e os Mandinga (também chamados Mandê, Mandeu), estão espalhadas por todos os Estados da África ocidental. Outras têm o seu habitat cortado por fronteiras estatais (com o Senegal, Mali e a República da Guiné), sem caráter de separação efetiva entre os habitantes de aquém e além fronteira, sendo todos interligados por laços de parentesco, mais fortes do que as balizas geográficas. Cada agrupamento étnico tem seu percurso histórico peculiar, seu passado específico, se bem que emaranhado a outros contextos igualmente com suas seqüências históricas, não se podendo falar, senão desde muito recentemente, de um passado contínuo, em termos de “país”, inserido numa malha de sociedades étnicas. Não existe para o país “Guiné-Bissau”, nem para o Estado desse nome, propriamente uma história “nacional”, a não ser a partir do momento da presença colonial 274 Recordo aqui o título do livro de poemas de Hélder PROENÇA. Não posso adiar a palavra (1982), sintomático para o sentimento de urgência que estava latente no país. 245 marcadora de perímetros territoriais e caracterizada pelas intermitentes lutas de resistência das diferentes comunidades autóctones contra a dominação de fora, incluindo um verniz de ideologia colonial transferida na época às elites crioulas dos centros urbanizados. A decisão dos Estados africanos independentes, definida na Carta da Organização da Unidade Africana (Addis Abeba, 1963), de não questionarem as fronteiras arbitrárias criadas pelo colonialismo, especialmente no congresso de Berlim (1884/85), formou a base para a configuração geográfica desse território que, com a conquista da independência política (1973/74), passou definitivamente a constituir o país soberano que é hoje a Guiné-Bissau. Faz geralmente parte da definição do indivíduo nomear sua origem. No mundo moderno, diz Stuart HALL (2000, p. 47), as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. É da maior importância para o indivíduo saber-se pertencendo a um grupo, a uma classe, a uma sociedade, a um Estado ou nação “ao qual ele pode até não dar nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar” (ib., p. 48). Embora haja, sem dúvida, tanto diferenças quanto identificações étnicas e regionais, nos tempos modernos o sentimento de lealdade ou de pertencimento foi alargado ou mesmo substituído, em detrimento da tribo, da etnia, do agrupamento comunitário; e essas formas de inclusão passaram gradualmente a tomar o lugar ou a depender do “’teto político’ do estado-nação” (GELLNER, apud HALL, ib., p. 49). Pode-se perguntar se é cabível afirmar o mesmo para a Guiné-Bissau, onde o sentimento de pertença étnica continua muito vivo, sendo mais um motivo para se tentar alimentar o sentimento coletivo mais abrangente de pertencimento à nação. Foi justamente este o grande esforço de Amílcar Cabral: reunir sob o “teto” comum de uma bi-nacionalidade, dois povos de origens e de pertencimentos múltiplos, aqueles do mosaico étnico guineense e os cabo-verdianos. A força de sua liderança e o ardor de seu empenho conseguiram essa quase impossível façanha, sempre de novo ressaltada em seus discursos, por exemplo, naquele que foi depois recolhido com o título de “Unidade e luta” e que usei como epígrafe no capítulo 5: “não pode ser obra de homens, tem de ser trabalho de Deus”275. Essa ideologia da unidade transparece no poema que Cabral escreveu e que se tornou o hino nacional do novo Estado: Sol, suor e o verde e mar, Séculos de dor e esperança: Esta é a terra dos nossos avós! Fruto das nossas mãos, Da flor do nosso sangue: Esta é a nossa pátria amada. [...] 275 Citado por LOPES, 1987, p. 57. 246 Ramos do mesmo tronco, Olhos na mesma luz: Esta é a força da nossa união (CABRAL, A., Hino Nacional)276. Carlos Lopes chama a atenção de que foi justamente o Movimento de Libertação Nacional (MLN) que conseguiu essa conjugação étnica que qualificou de “notável”. “Durante a luta armada as diferentes etnias partilharam a causa comum. Desenvolveram a interacção. Acreditaram nas mesmas palavras de ordem. Descobriram cumplicidades colectivas” (LOPES, 1987, p. 61). Foi esse o grande móvel e a grande obra de Cabral e seus companheiros277. 7.1.1 Poesia de africanidade A Guiné-Bissau, como território soberano, tem uma história, portanto, muito recente, pontilhada de ainda não de todo ultrapassadas tensões étnico-políticas. A independência resultou em autoritarismo da elite local, tanto a militar, por parte dos “heróis nacionais”, quanto da pequena burguesia colonial, e em descalabros administrativos, econômicos e políticos. No fluxo da euforia da queda do colonialismo que fazia vibrar todo o continente, o espaço de referência, o objeto de orgulho e amor era bem mais a “África” como um todo do que o restrito torrão natal. A literatura daquela época reflete esse comportamento. Manuel Ferreira, em No reino de Caliban, refere-se a António Baticã Ferreira como “a primeira e correcta representação guineense” (FERREIRA, M., 1975, p. 319) e qualifica sua poesia como uma “poesia de africanidade”, de influência senghoriana, “com profundas ressonâncias trazidas de um passado imenso” (ib., p. 322)278 como, por exemplo, no poema “Amargura”: 276 A autoria do hino nacional atribuída ao fundador da nacionalidade guineense parece corresponder à verdade. Tive a confirmação disso pelo poeta e jornalista Tony Tcheka, a quem muito agradeço, o qual me escreveu ter tido a declaração de “duas pessoas que confirmaram ser Cabral o autor do hino da Guiné e de Cabo Verde. Soube que um padre italiano de nome Bernardo fala disso num livro sobre Cabo Verde e cita Ana Maria Cabral [a segunda esposa de Cabral] como testemunha e uma nota escrita por Cabral em que dizia: “arquivar na pasta de hinos”, assinado Amilcar Cabral, 11.01.64. A música é o resultado do trabalho de vários autores, entre os quais, Luís Cabral e um músico chinês.... 277 Mais de seis anos depois de sua morte e da independência de “Guiné e Cabo Verde”, as ambições e os ciúmes políticos falaram mais forte, o país conheceu sua primeira grande crise com a deposição do presidente Luís Cabral e uma série de assassinatos de líderes antes irmanados na luta. Deu-se nessa fase conturbada a já previsível separação dos dois Estados (1981). Na Guiné-Bissau, o nome do partido que levou à independência o primeiro país do império português de ultramar continua até hoje lembrando esse sonho de Cabral: Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Desde então, o fantasma do tribalismo sempre de novo paira sobre o país, apesar de, em geral, não haver maiores tensões étnicas no seio da população. Também não se deve perder de vista a artificialidade dessa unidade, fruto da colonização, como se a história da região só tivesse começado com a ocupação portuguesa. As afinidades étnicas e históricas subentendem a memória do grande reino de Kaabunké. Sobre o assunto, cf. LOPES, 1994, 1999. Cf. também capítulo 2.2.2. 278 António Ferreira Baticã nasceu em 1939. Continua a ser um dos poucos poetas guineenses referidos fora do país, embora seu acervo poético seja muito limitado. Tendo vivido sobretudo no exterior (Senegal, França, Suíça), escreveu primeiramente em francês. Foi incluído já na antologia brasileira de J. A. das NEVES, 1963. Constou da primeira antologia guineense antes da independência, o Poilão (1973) e de outras recolhas. Sobre Baticã, cf. FERREIRA, M., 1975; AUGEL, 1998a, p. 70-72. 247 As aves cantam, Rugem leões, Urram elefantes. [...] Só estou, só e perdido na floresta africana. Os animais selváticos não entendem a minha voz; Falo com o vento, As flores, Os montes (ib., p. 326). Embora no âmbito da literatura guineense não se possa falar de uma tendência temática muito forte nesse sentido, destaco aqui, a título de exemplo desse topos, “A voz da negra África”, de Pascoal D’Artagnan Aurigemma: A voz da negra África o som difuso das marimbas as melodias harmoniosas da esperança erguem alto em tempo e espaço o reduto da hora grande na pátria nacional de todos nós (AURIGEMMA, 1996, p. 71). Já António Baticã Ferreira, num poema que Manuel Ferreira transcreve, retirado de Poesia & ficção, expressava claramente em seus versos o amor pelo “País natal”: Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração, Em espírito demando o meu país natal, E lembro aquela floresta africana, Cheia de caça e de verdura; A folhagem verde ou amarela Que nos perfuma (FERREIRA, B. In: FERREIRA, M., 1975, p. 323). Pátria e nação são dois conceitos intimamente interligados. Pátria remete ao vínculo da pessoa com a terra dos antepassados. Envolve metáforas associadas à família, ao mesmo tronco, refere-se aos pais e aos pais dos pais, ao “sangue prolífero” dos ancestrais fundadores dessa continuidade, como Hélder Proença se expressa no poema “África”. Ante o opróbrio do colonialismo e da escravidão, todos se sentem um e o poeta lança seus “gritos de dor neste continente dividido e sacrificado” que tem a “história usurpada e teus filhos comprados”: Neste continente devorado, humilhado e massacrado... [...] Ancestral, adormecido no sangue prolífero dos El Hadj Omar, Almami Samory Turé, Infali Sonco... Tombados nas horas do teu martírio – glorificando o teu nome!” (PROENÇA. In. Mantenhas para quem luta!, 1977, p. 48). O estudo da identidade, ou ainda melhor, das identidades, conduziu-me à reflexão e à análise da vinculação desse conceito e de seus componentes na obra literária. Minha pergunta, no presente capítulo, é se a literatura, tal como se vem fazendo na Guiné-Bissau, pode trazer alguma 248 contribuição, seja para a tomada de consciência nacional, seja para a construção de significados que representem – ou que narrem ou mesmo imaginem – a nação e a nacionalidade. Como convém à expressão literária e não se tratando de compêndios de ciências políticas ou sociais, na Guiné-Bissau a representação da nação, da nacionalidade e da identidade coletiva transparece no discurso literário de uma forma polissêmica e através de diferentes estratégias textuais. No mapeamento da literatura guineense, é possível detectar toda uma trajetória da narração da nação, a começar pela encenação de um mito fundador, presente primeiramente na literatura de combate, com suas manifestações de dor e de repúdio ao colonialismo e de nostalgia de um tempo anterior, da vida imune à civilização ocidental. Essa temática está estreitamente ligada à exaltação do herói revolucionário e vencedor, ao entusiasmo, à euforia e ao compreensível orgulho pela vitória das forças revolucionárias, acompanhados pelo estimulante apelo à união dos esforços em prol da “construção”, num deslocamento mítico dos primeiros tempos da fundação. É uma constante discursiva que vai, como nos demais países africanos saídos da colonização, prolongar-se por muito tempo após o período da formação do Estado nacional (LEITE, 2003, p. 136), podendo-se dizer que essa fase não está ainda concluída na Guiné-Bissau. 7.1.2 A comunidade imaginada A constituição de Estados independentes não plasma automaticamente a Nação. O conceito de nação é dos mais contestados hoje em dia e não pode ser considerado de forma isolada. Para o contexto de meu trabalho, seria necessário refletir sobre o que seja a nação e se de fato ela é necessária ou / e desejável, em se tratando especificamente da Guiné-Bissau. Há, hoje em dia, o consenso de que se trata de um conceito artificial (um artefato) e de recente procedência (desde o Iluminismo). Uma idéia básica é aquela que define a nação como uma entidade primordial que se impõe aos indivíduos na medida em que possuem em comum certos elementos como o território, a língua, a cultura, e também a raça, a religião, traços que a fazem existir objetivamente, como “fato social”, independentemente dos indivíduos, do que pensem os sujeitos isoladamente. Manuel Castells distingue diferentes tipos de nações e estados: nações sem estados; estados sem nações; estados pluri-nacionais; estados uni-nacionais; estados com nações divididas; estados que dividem nações entre si, importando, para a existência efetiva de uma “nação”, sobretudo a experiência compartilhada (CASTELLS, 2002, p. 46-47). Destacando o nacionalismo cultural, Castells vê a nação como produto de suas idiossincrasias históricas e culturais e considera o nacionalismo contemporâneo de modo geral mais cultural do que político, 249 “mais dirigido à defesa de uma cultura já institucionalizada do que à construção ou defesa de um Estado” (ib., p. 47). As nações são “comunidades culturais construídas nas mentes e na memória coletiva das pessoas por meio de uma história e de projetos políticos compartilhados (ib., p. 69). Contrariando a opinião de muitos pensadores sociais, Castells vê como manifestação de etnocentrismo a idéia de que as nações e os Estados nacionais se limitem ou se reduzam ao Estado nacional moderno, tal como este se moldou na Europa nos últimos duzentos anos desde a Revolução Francesa (ib., p. 46)279. Considerando a questão de nacionalidade e nacionalismo, o teórico espanhol vê esse último construído a partir de ações e de reações sociais, não sendo um fenômeno exclusivo das elites, mas sim refletindo, muitas vezes, uma reação das massas populares (ib.); discorda ainda que sejam as nações meros produtos ideológicos e artificiais, opondo-se sobretudo à postura “radical” de Ernest Gellner que criticou com veemência os nacionalismos desde suas primeiras publicações (ib.)280. Para Anthony Smith, a nação é “uma povoação humana denominada que ocupa um território histórico e compartilha mitos e lembranças, uma coletividade, uma cultura pública, uma só economia e direitos e obrigações comuns” (SMITH, 1998, p. 62). Monserrat Guibernau refere-se a diferenças culturais, políticas, psicológicas, territoriais, étnicas e sociológicas que estão por detrás das múltiplas definições por parte dos cientistas, políticos e ativistas que procuram esclarecer esse termo muito controverso (GUIBERNAU, 1999, p. 13), distinguindo os conceitos nação, Estado e nacionalismo nos seguintes termos: Por “estado”, partindo da definição de Weber, compreendo uma comunidade humana que reivindica (com sucesso) o “monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território [...]. Com “nação”, refiro-me a um grupo humano que conscientemente forma uma comunidade, tem uma cultura em comum, está ligado a um território claramente delimitado, possuindo um passado em comum e um projeto para o futuro também em comum, reclamando para si o direito de auto-gestão. [...] Como “nacionalismo”, entendo o sentimento de pertencer a uma comunidade cujos membros se identificam com uma série de símbolos, crenças e estilos de vida e têm a vontade de decidir sobre seu próprio destino político comum (GUIBERNAU, ib.; a tradução é minha). Benedict Anderson alerta, de forma irônica, para o fato de que, apesar da invenção da nação ter sido um produto do poder hegemônico europeu, essa idéia “mostrou ser uma invenção que era impossível patentear. Ela se tornou suscetível de plágio por mãos as mais variadas e, por vezes, imprevistas” (ANDERSON, 1989, p. 77). 279 O Estado, sendo “uma organização política, um poder independente no plano externo, e supremo no interno” deve ser fundamentalmente diferenciado da Nação (E. P. de la RIBA. In: CASTELLS, ib., p. 60). 280 Para Gellner, “o erro central cometido tanto pelos amigos quanto pelos inimigos do nacionalismo é a suposição que ele é de alguma forma natural”. Entretanto, “a verdade é, pelo contrário, que não existe nada de natural ou universal em possuir a ‘nacionalidade’ [que seria] historicamente uma curiosidade” (GELLNER, 1964, p. 150151). 250 Anthony Appiah, pensador ganês cujo posicionamento muito me têm ajudado em minhas reflexões, considera, a partir das idéias desenvolvidas por Benedict Anderson, que, para o “terceiro mundo”, o conceito de nação é um meio de articular resistências ao neocolonialismo: [...] embora a idéia nacional tenha sido apresentada a grande parte do mundo através de contatos com o imperialismo europeu, a atração dessa idéia para os “nativos” logo escapou ao controle e aos interesses da metrópole [...] A idéia da nação proporcionou – primeiro à elite local, depois aos habitantes recém-proletarizados da cidade colonial, e por fim, até ao campesinato que tentava se haver com sua crescente incorporação no sistema mundial – um meio de articular a resistência à dominação material dos impérios mundiais e à ameaça mais nebulosa aos pensares pré-coloniais, representada pelo projeto ocidental de domínio cultural (APPIAH, 1997, p. 85-86). Vimos que a definição de etnia não é muito diferente, caracterizando-se ambas por um conjunto de significados que converge num sistema de representação cultural a partir do qual se sedimentam as identidades culturais. “A identidade cultural dos países colonizados mostra-se por uma luta que não se esgota na independência política”, diz ABDALA JR. (1989, p. 27), sendo muito mais “uma conquista contínua de uma autodeterminação a efetivar-se dentro das condições de subdesenvolvimento e de necessidade de modernização” (ib.). Essa identidade coletiva, que pressupõe uma nova visão compartilhada, tende a ultrapassar as raias étnicas e ao mesmo tempo motiva e direciona as aspirações do indivíduo ou da comunidade a extrapolar a condição de “somente-Estado” para atingir a de “Estado-nação”, aspiração essa que é uma nítida herança pós-colonial, isto é, nascida do envolvimento com o imbricamento internacional, discutível talvez, mas da qual não é possível objetivamente esquivar-se. São muitos os autores africanos que procuram afastar-se do mimetismo aí contido, entre eles Anthony Appiah, Wole Soyinka, Paulin Hountondji, Kabengele Munanga, V. Y. Mudimbe, defensores de um africanismo baseado em uma diferença cultural africana a partir de um projeto nativista no qual os valores tradicionais ocupam um lugar de destaque, sem com isso negarem a necessidade de os países africanos participarem das transformações que estão ocorrendo no mundo, quando as fronteiras perdem cada vez mais a razão de ser. E não se trata apenas de considerações de ordem econômica ou política. Como Néstor García Canclini admoesta, não mais é possível pensar nem atuar sem levar em conta os processos globalizadores, sem ter em mente as tendências hegemônicas da urbanização e da industrialização da cultura (CANCLINI, 1995, p. 13). Importante, sempre, é estar atento às falácias e atrativos do asfixiante aliciamento neo-imperialista. A globalização levou, por um lado, a um alargamento dos horizontes de informação e comunicação. Tornou irrelevante e até está ameaçando de extinção partes das tradições, inclusive as línguas não codificadas em escrita, mas trouxe também, por outro lado, novas 251 facilidades de revitalização dos elementos locais. Em vez de abafar os particularismos e tornar irrelevantes o ambiente imediato de vivência dos indivíduos e de grupos humanos, o acesso quase generalizado e em rápida expansão mesmo nos países africanos, à internet, à rede cibernética, e as possibilidades quase ilimitadas de informação e comunicação tornaram local o global e global o local. Houve uma “compressão espaço-tempo”, o mundo tornou-se menor e as distâncias mais curtas (HALL, 2000, p. 69). Constata-se uma nova consciência dos particularismos, surgem novos e se revigoram velhos movimentos nacionalistas que, ao menos potencialmente, levam a uma revitalização de identidades ou à reconfiguração de novas. É preciso, entretanto, ter em conta que os efeitos da civilização ocidental, impossíveis de serem apagados, enfraqueceram definitivamente os princípios tradicionais, tornando-os de certa forma inoperantes. Além do mais, uma desejada africanidade não pode ignorar as enormes diferenças e mesmo os antagonismos existentes nesse imenso continente e que estão presentes também no microcosmos de um pequeno país como a Guiné-Bissau, com suas etnias muito diferentes entre si. Hoje é mais realista se unir a noção de identidade africana à idéia de nação, enquanto “comunidade imaginada”, como a definiram Benedict ANDERSON e Eric J. Hobsbawm que, levando em conta a origem artificial dos Estados africanos, defende a necessidade de toda nação de tamanho médio “construir sua unidade na base de uma evidente disparidade” (HOBSBAWM, 2002, p. 111). 7.1.3 O não apagar da memória Já me apoiei aqui muitas vezes em Stuart Hall, para quem a cultura nacional, no seio da qual o indivíduo nasce, constitui-se em uma das principais fontes de identidade cultural (além, naturalmente, da individual). O fato de se ser brasileiro, jamaicano ou guineense é uma representação, não consiste em algo biológico ou instrínseco à fisiologia do indivíduo (HALL, 2000, p. 48). Para Hall, as identidades nacionais são formadas e transformadas justamente no interior da representação (o grifo é dele). Assim, não se deve considerar a nação somente como uma unidade política, mas sim como um sistema de representação cultural. É verdade que as instâncias culturais, tais como a língua, a religião, o discurso identitário, fazem parte integrante das culturas nacionais, mas igualmente as representações simbólicas são elementos constitutivos e básicos para a arquitetura desse edifício que é a nação. E as culturas nacionais, prossegue Stuart Hall, “ao produzir[em] sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas 252 sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas” (ib., p. 51). As potências colonizadoras, empenhadas em impor sua presença como centro irrefutável de referência, compreenderam bem cedo o valor e o perigo daqueles meios de construção identitária, empenhando-se no “extermínio constante dos traços originais” (SANTIAGO, 1978, p. 16) e autóctones. O que Silviano Santiago afirma em relação ao “Novo Mundo” serve igualmente para o continente africano, transformado “em cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original, quando sua originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas na sua origem, apagada completamente pelos conquistadores” (ib.), como já foi visto em capítulo anterior. Um instrumento para isso foi a escola – ou a ausência dela, eficiente estratégia colonialista. Tentou-se, por todos os meios, abafarem-se as tradições, vistas como antiquadas e primitivas; episódios e nomes que estivessem relacionados com a história de resistência ou de heroísmo do continente africano foram esquecidos, ou pelo menos silenciados. Agnelo Regalla281 reconhece e desmascara essa estratégia destrutiva no “Poema de um assimilado”, datado de 1973: Mas de ti, Mãe África, Que conheço eu de ti? [...] Não me falaram de ti E dos teus filhos, Mãe África. Esqueceram-se De Samory e Abdelkader, Cabral e Mondlane Lumumba e Henda Lutuli e Ben Barka Não me falaram da revolução De Canhe Na N’Tuguê e Domingos Ramos De Areolino Cruz e Pansau De Guerra Mendes e Ludjero (Mantenhas para quem luta!, 1977, p. 15)282. Agnelo Regalla funde o passado remoto anterior à colonização com os recentes acontecimentos das lutas libertárias de todo o continente. É importante, sobretudo, a referência a Amílcar Cabral, um entre os mais proeminentes nomes africanos que devem ser sempre celebrados, pois é a partir desses “filhos”, símbolos perenes da dignidade e da coragem, que a “mãe” África sobreviverá. É a ratificação da noção do herói fundador da nacionalidade, o 281 Agnelo Regalla nasceu em Tombali a 9 de julho de 1952. Foi um dos jovens poetas dos primeiros momentos, um dos “Meninos da hora de Pindjiguiti”. Sem livro publicado, seu nome está entretanto muitas vezes entre os poucos autores referidos quando se aborda a literatura guineense. Tendo sido membro do PAIGC e participado do governo, desligou-se, passando a alistar as fileiras da oposição. A rádio Bombolon, de grande audiência e de sua propriedade, é uma das vozes de alerta contra os desmandos no país. Sobre Regalla, cf. AUGEL, 1998a, p. 187-215. 282 Relembro aqui versos semelhantes do poeta afrobrasileiro Oswaldo de Camargo: “Assim conheci Vivaldi / Rilke, Pascal, Debussy / e aprendi a sorver / a cor do vinho francês [...] Minha memória mofava / longe das minhas lembranças / acres, eu quase morria (CAMARGO, 1984, p. 36). 253 mitológico guerreiro valente e invencível, o “pai da pátria”, indispensável para a “invenção” da nação. Já analisei, no capítulo em que tratei da identidade coletiva, a importância simbólica para a Guiné-Bissau de acontecimentos como o massacre do Pindjiguiti, como espelho ou mesmo como elemento construtivo da narração da nação. Ttrago ainda mais um exemplo da carga emocional que aquele momento decisivo para a auto-afirmação da guineidade representa. Já me referi anteriormente ao poema intitulado “Poesia brava”, de Tony Tcheka, que ali assume o otimismo coletivo: “Cremos no hoje / caldeado nas convulsões de Pindjiguiti / no amanhã sonhoflor / sem recuos compromissos / e discursatas” (TCHEKA, 1996, p. 82). Quando Tony Tcheka, entretanto, em “Perdão ao poeta”, expressa sua desilusão face ao fracasso dos ideais revolucionários, dirigindo-se retoricamente a José Carlos Schwarz, poeta e compositor famoso pelas suas decididas intervenções críticas, vai buscar de novo aquele episódio, histórico, sim, mas também fabulado, que persiste como referência ao mesmo tempo grata e melancólica: Acolá jaz a esperança do hino adiado da palavra amansada de vozes emudecidas Além Pindjiguiti virou lagoa com cisnes imaculados nenúfares e gente-bem que vem e se instala sob o plasma do meu sofrimento e Morés espreitando nas persianas do silêncio (ib., p. 86)283. Stuart Hall, citando B. Schwarz, prossegue na sua reflexão sobre a nação como uma comunidade simbólica, tendo “poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (HALL, 2000, p. 49). É a partir de todo esse aparato de representações que se pode compreender o que Benedict Anderson quer expressar ao falar de “comunidade imaginada”. A idéia de nação traz, assim, em seu bojo, de um lado o caráter de um constructo, constituído pelo discurso e, do outro, o aspecto histórico. Benedict Anderson cunhou a expressão que se consagrou, definindo provocantemente a nação como um “artefato cultural” peculiar ou 283 Sobre o levante de Pindjiguiti, cf. o capítulo 2, item 2.2.4. Morés é símbolo de resistência porque ali se travou, durante as lutas da independência, uma das batalhas decisivas a favor dos insurgentes. 254 especial (ANDERSON, 1983, p. 13), como “uma comunidade política imaginada, limitada e soberana”. Imaginada, por corresponder a um processo criativo da imaginação social de uma coletividade, uma vez não ser possível normalmente que todos os seus membros, mesmo da menor das nações, se conheçam pessoal e diretamente (sem que se tenham encontrado ou que ao menos tenham ouvido falar uns dos outros), devido ao número de habitantes e à extensão territorial, não sendo produto de uma interrelação concreta. As comunidades, prossegue Anderson, não devem ser diferenciadas por critérios de falsidade ou de autenticidade, mas sim pelo modo com que são imaginadas. Limitada, porque confinada por suas fronteiras, ainda que elásticas. Soberana, porque livre e autônoma diante das outras nações. Comunidade, por ser um espaço horizontal de relações de fraternidade e de solidariedade, apesar das desigualdades e dos conflitos que possam existir. Predomina um sentimento de companheirismo que consegue impulsionar seus membros a sacrificarem-se e mesmo por ela morrerem. O texto original é o seguinte: “In an anthropological spirit, then, I propose the following definition of the nation: it is an imagined political community – and imagined as both inherently limited and sovereign (ANDERSON, 1983, p. 15). Os termos nação, nacionalidade, nacionalismo, afirma Anderson, não vão equiparados a uma ideologia, mas colocados em um outro nível do fenômeno que tem a ver com a expectativa política e estão comandados por uma profunda legitimação emocional. Trata-se de um constructo cultural particular, ao lado de categorias antropológicas como “parentesco” ou “região”, sistemas complexos correspondentes a um mesmo conjunto de necessidades sociais e individuais. É, assim, um processo criativo da imaginação social coletiva284. O título do livro de Anderson já reflete esta nuança por assim dizer “não-desconstrutiva”, pois se refere a uma comunidade “imaginada" e não "imaginária”. O termo “nacionalismo” é polivalente e pode designar atitudes ou fenômenos muito diversos e divergentes. Edward Said, lembrando que a resistência ao imperialismo foi em grande parte conduzida dentro do contexto do nacionalismo, dá uma definição que me parece adequada no contexto de que estou tratando: o nacionalismo designa “a força mobilizadora que se aglutinou como resistência contra um império exterior de ocupação, por parte de povos que possuíam uma história, uma religião e uma língua comum” (SAID, 1999, p. 281-282). Já no século XIX, o filósofo francês Ernest Renan, em discurso pronunciado na Sorbonne em 1882, como já me referi na introdução, levara em consideração tanto o papel da imaginação como o da memória e do esquecimento nesse processo de apreender ou de construir a nação quando escreveu: “A essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum e 284 ANDERSON, 1983, p. 13-14. Dessa edição foi feita a tradução brasileira, cuja primeira edição é de 1989. Anderson alargou de alguns capítulos a edição de 1991. O último capítulo, “Memória e esquecimento”, consta em tradução da coletânea organizada por Maria Helena ROUANET, Nacionalidade em questão (1997, p. 60-97), um caderno da pós-graduação em Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 255 que também tenham esquecido outras tantas” (RENAN, 1947, p. 892)285. A relação que se estabelece entre os vivos e os mortos, entre o passado e o presente é da maior importância, sendo porém de ordem espiritual, de modo que o passado comum que constitui a história de um povo não deve ser confundido com uma história real das populações. O passado histórico genealógico é uma construção contínua que repousa no olvido e no erro histórico, diz Renan, cujo pensamento ainda continua atual (ib.). A unidade nacional é forjada a partir de uma memória ou de histórias imaginadas e, ao mesmo tempo, a partir de muitas omissões. Torna-se mesmo necessário que sejam apagados da memória coletiva acontecimentos ligados à violência das conquistas e das guerras expansionistas, à arbitrariedade ou à arrogância dos vencedores e ao artificialismo do traçado das fronteiras, dando lugar ao esquecimento das condições de produção dessa unidade. Agnelo Regalla, em seu poema “Quinhentos anos de história”, denuncia a perda de suas raízes, a condenação ao esquecimento e a daí resultante a-historicidade, corolário da falta de liberdade que impossibilita o colonizado a conhecer as suas origens e a determinar ele mesmo seu destino: “Quinhentos anos de história / (Sem história...) / Quinhentos anos de escravidão e exploração / Quinhentos anos sem luz”, diz o poeta (Antologia poética da Guiné-Bissau. 1990, p. 117). 7.1.4 A construção de significados A história comum e o passado compartilhado nacionalizam um espaço geográfico e preenchem o território (nacional) de conteúdo mítico e de sentimentos sagrados. Não somente as personalidades fundadoras são celebradas como heróis, também a natureza do torrão natal é tema recorrente, como se pode ver em “Assim respira minha Pátria”, de Hélder Proença: A minha Pátria tem o esplendor matutino dos lagos a frescura serpenteante dos rios e a bravura indómita dos nossos mares Antologia poética da Guiné-Bissau. 1990, p. 83286. 285 A conferência (ou discurso) de Ernest Renan, pronunciada na Sorbonne em 11 de março de 1882, tem sido republicada e traduzida em muitas línguas. No Brasil, p. ex., cf. ROUANET, 1997, onde o texto integral foi traduzido (“O que é uma nação?”; p. 12-47). A citação acima, numa tradução um pouco diferente da minha, está na p. 20. Cf. também nota 6, no capítulo 1 do presente trabalho. 286 Hélder Magno Proença Mendes Tavares nasceu em Bolama, em 31 de dezembro de 1956. Já aos dezessete anos entrou para a clandestinidade e integrou as fileiras guerrilheiras no interior do país, abandonando a escola no quinto ano. Concluiu o liceu depois da independência e foi ele mesmo professor secundário em Bissau. Esteve no Rio de Janeiro com uma bolsa de estudos na Fundação Getúlio Vargas (1979/80). Sempre fiel ao PAIGC, assumiu vários cargos administrativos e ministeriais, foi deputado da Assembleia Nacional Popular e porta-voz do governo Nino Vieira. Presente nas primeiras antologias poéticas do país, é autor de um livro de poemas, Não posso adiar a palavra (1982). Não prosseguiu a sua vocação de poeta, tendo-se dedicado completamente à política. 256 A etimologia da palavra nação remete à forma verbal nascer: a natio é o topos dos que compartilham do mesmo nascimento, dos que têm uma mesma origem, uma raiz comum. Evoca os membros unidos por sentimentos de irmãos, de fraternidade, de coesão. Graças a essas metáforas é possível vincular o hoje ao outrora, num sentido de continuidade. Trata-se do acervo comum de uma comunidade, de um amálgama de tradições, lembranças e mitos estreitamente ligados a um grupo. Trata-se ainda de evocações de valores e de símbolos que, juntos, constituem as vigas que sustentam o edifício nacional. O processo da identidade nacional se estriba no processo de especificar, demarcar e reinterpretar uma terra natal, unindo os antepassados com os viventes, os que nascem com os que já morreram (GARCÍA, s.d.). A idéia de uma tomada de consciência pelos povos de sua própria cultura ancestral confirma a convicção de que a nação é uma entidade tanto cultural quanto política. Jean Franco, referindo-se à América Latina (e em especial ao México), lembra que foi no período pós-independência que emergiu um novo discurso no qual “amorosamente, os poetas dedicavam odes à pátria, ou à ‘mãe-pátria’, criatura recém-nascida do triste obscurantismo colonial” (FRANCO, 1994, p. 99). Pode-se dizer o mesmo dos países africanos recém-saídos das lutas libertárias. Dentro do contexto guineense, onde a multiplicidade étnica envolve tantas diferenças e onde a dialética entre a tradição e a modernidade se faz sentir em todos os domínios do conhecimento e da prática, cabe uma reflexão sobre o que é a nação, o que significa a GuinéBissau para os guineenses: um espaço material (um território geograficamente localizado no mapa, com países vizinhos separados por fronteiras que tornam primos-irmãos estrangeiros uns aos outros, muitas vezes sentidos como “outros”, mesmo quando são da mesma etnia; um espaço mental (implantado no coração e nos sentimentos); um espaço socio-político (sistema de regras que dizem respeito aos negócios públicos, especificado nas falas políticas, nos estudos sociopolíticos e econômicos); ou ainda um espaço discursivo (presente na produção literária e artística de modo geral)287. Voltando ao ponto de partida, para falar de nação, nacionalismo e identidade nacional na Guiné-Bissau, o estudioso vê-se confrontado com uma série de dificuldades. Em geral são tomados como elementos indicadores da constituição da nação a língua comum, a mesma religião, traços semelhantes da cultura e da tradição; tudo isso é disseminado em fragmentos de 287 Do ponto devista político, são várias as obras que tratam da constituição da Guiné-Bissau como nação. Cf. entre outros LOPES, 1982, 1987, 1988, além das atas do colóquio realizado em 1986 em Bissau sobre A construção da nação em África (1989), com a participação de cientistas sociais dos cinco Estados recém-saídos do colonialismo português. 257 um mosaico multiforme, desenhado pelas muitas etnias do país288. Por outro lado, o Estado, envolto em sucessivas e quase ininterruptas crises, não está em condição de exercer uma força aglutinadora ou de oferecer atrativos político-econômicos bastante fortes para constituir uma entidade que garanta o bem-estar dos seus cidadãos, como sucedeu durante os anos de luta contra o colonialismo. Se é verdade que a língua comum é um dos elementos geralmente considerados como fortalecedores do sentido de pertença nacional, este é justamente um dos fatores de insegurança ou indeterminação para a auto-identificação do guineense. Para grande parte da população não é possível falar-se de uma “língua materna” comum, sobretudo nas aldeias (o que significa: para a grande maioria da população), uma vez que à multiplicidade de grupos étnicos corresponde uma multiplicidade de idiomas. O português como língua oficial não é nem minimamente dominado pela quase totalidade da população. As tradições culturais variam enormemente entre as etnias que praticam as religiões naturais, chamadas de “animistas”, e as muçulmanas. Existem animosidades e fricções entre grupos, mesmo havendo de fato uma grande miscigenação entre as “raças” (termo popularmente empregado na Guiné-Bissau em vez de etnia) e sem dúvida uma convivência pacífica. As identificações e lealdades individuais se orientam muito mais pela família, pela aldeia e pela etnia do que pelo Estado que não oferece quase nada em termos de infra-estrutura material, serviços sociais e educacionais nem tampouco suporte ideológico, dependendo em tudo e para tudo da “cooperação” estrangeira e dos “doadores” bilaterais e multilaterais. O crioulo – a língua guineense – como língua veicular quase generalizada, hoje de fato falado pela maioria da população, pelo menos como língua segunda ou terceira, constitui sem dúvida um elemento aglutinador e de identificação, mas se trata de um fenômeno recente, de cerca de quarenta anos, e seu domínio se concentra sobretudo na capital e nos demais centros urbanos. Os primeiros tempos “nacionalistas” foram, assim, palco de uma gradual apropriação da identidade africana por parte da sociedade crioula, a elite luso-africana da praça. Dela faziam parte os jovens revolucionários e os jovens poetas das primeiras coletâneas literárias (1977, 1978). Seus versos (e sua música) refletiram, e até certo ponto talvez plasmaram, a consciência ainda não claramente direcionada para o nacional, para a guineidade, pois o que se priorizava eram o amor e a veneração à “Mãe África”, como vimos nos versos de D’Artagnan Aurigemma ou de Hélder Proença, entre outros. 288 Carlos Lopes considera que a identificação étnica se faz em relação à terra clânica, à linhagem, aos antepassados, às forças protetoras naturais (mais forte e mais presente do que se pode imaginar) e também ao nível do simbolismo cultural; cf. LOPES, 1987, p. 200. Para uma definição de clã e de linhagem, cf. nota 355. 258 Hoje, passados mais de três decênios desde a independência, aquele sentimento nacional ardoroso e positivo, abrindo visões de um futuro melhor, reacendendo sempre um novo otimismo, aflora de forma especial durante as campanhas eleitorais, cada candidato tentando convencer o povo ser ele o indicado para o bem e a prosperidade da nação. Assim sucedeu claramente quando, por ocasião das eleições em 1999, foi prometido terminar-se com o longo período de “autoritarismo revolucionário” (professado pelos “herdeiros” e “continuadores” de Cabral), e o entusiasmo aceso pela esperança de um futuro promissor conseguiu contagiar a população, ainda traumatizada pelo conflito militar. A propaganda eleitoral chegou até mesmo às mais distantes aldeias, dando vitória ao candidato populista e derrubando a oligarquia que governava o país desde 1980289. Mesmo com muitas ressalvas e dúvidas em relação à existência de um Estado-nação e de uma consciência nacional, impõe-se a evidência de um forte sentimento de pertença e de identidade do guineense em pelo menos três aspectos: em relação aos Estados circunvizinhos (lembremos a idéia de “fronteira” de F. Barth); em relação ao inimigo comum forasteiro (no período colonial e na guerra de 1998/99) e em relação ao estrangeiro imigrante, sobretudo o estrangeiro africano, popularmente considerado fonte de todos os males e influências negativas que se opõem ao idealizado “nós, guineenses”. A resistência contra o colonialismo e a guerra pela independência mobilizaram a população das aldeias contra a colonização portuguesa, sobretudo os grupos étnicos mais afastados da idéia de um Estado, como os Balanta (que, na sua organização social acéfala, centrada na família e na aldeia, não conhecem nem hierarquia nem poder de chefia). E a guerra de onze meses em 1998/99 teve, ao lado de todas as conseqüências desastrosas, o efeito de (re)acender a chama da consciência nacional, do orgulho e do espírito de luta em prol do que não pode deixar de ser chamado de nacionalismo. Como no período imediatamente antes e imediatamente depois da independência, foi sobretudo a simples e espontânea solidariedade interpessoal (e também interétnica) que desempenhou o papel fundamental no socorro aos refugiados da capital, impedindo o colapso do abastecimento alimentar e solucionando pelo menos em parte a questão da moradia, por exemplo. Em um artigo intitulado “O benefício do fracasso”, Hjalte Tin analisa tanto os efeitos pouco eficazes (ou pelo menos unilaterais) do programa de ajuda alimentar internacional prestada às populações deslocadas durante o conflito (programa conhecido como PAM), como a resposta institucional das instâncias governamentais 289 Cf. SANTOS, O., 1996 e RUDEBECK, 1997. Depois do desastre que foi o governo demagogo e populista de Koumba Yalá (2000-2003), os candidatos a dirigir a nação repetiram a mesma profissão de fé na campanha eleitoral de 2005; dessa vez, porém, o “voto étnico” ensombreceu perigosamente o discurso pedagógico da unidade nacional dentro da multiplicidade étnica, resumida na fórmula “no ermondadi” (a nossa fraternidade). Apesar do fantasma do tribalismo, os candidatos fizeram suas campanhas sempre apelando para o “bem da nação” e reafirmando, cada lado, serem continuadores da obra libertária de Cabral. 259 às necessidades da população durante o estado de exceção. Para o estudioso dinamarquês, o caos foi evitado graças à “capacidade única da população da Guiné-Bissau de responder às necessidades dos seus compatriotas deslocados e afectados pela guerra” (TIN, 2002, p. 141). É difícil encontrar-se um conceito de aceitação geral que abarque as múltiplas manifestações do nacional. Vimos que a nação pode ser compreendida sobretudo como uma idéia, de caráter simbólico, não correspondendo a uma referência do real, mas sim a um constructo mental e sentimental, ou ainda como uma categoria do discurso, aqui entendida como a instância mesma de produção desse real. São idéias correntes e recorrentes tanto nos estudos culturais como nos estudos literários– e não só – apoiadas na moderna filosofia da linguagem e na semiologia. 7.1.5 Ver com “os olhos da mente” Como afirmou Homi Bhabha, “as origens das nações, assim como das narrativas, perdem-se nos mitos do tempo e apenas na memória seus horizontes se realizam plenamente” (BHABHA, 1997, p. 48). Os livros de história nacional e os compêndios de história da literatura de cada país refletem geralmente a versão hegemônica ao reproduzirem episódios e acontecimentos ou ao discorrerem sobre o passado histórico, os feitos dos antepassados e a constituição da própria nação. A narrativa da nação é gravada nas gestas nacionais, nos eventos históricos marcantes, nos símbolos e nos rituais nacionais, todos esses artefatos que “simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação”. São palavras de Stuart HALL, do seu livro fundamental que é A identidade cultural na pósmodernidade, aqui citado na sua quarta edição brasileira (2000, p. 52). O poeta Tony Tcheka, servindo-se da intertextualidade, faz o elo entre o passado e o presente no seu “Sonho-caravela”: Sonhei caravelas as mesmas que dobraram o adamastor Deveras! Eram caravelas Vinham com outros homens pelos mesmos mares agora navegáveis Não traziam santos na mão nem espadas embainhadas Vinham de braços abertos com cravos vermelhos calando os fuzis (TCHEKA, 1996, p. 55). Seria ingênuo reduzirem-se as nações simplesmente a territórios, povos e governos. Elas “articulam sentidos, criam narrativas exemplares e sistemas simbólicos que garantem a lealdade e o sacrifício” dos que dela fazem parte (FRANCO. In: HOLLANDA, 1994, p. 99). É através do 260 “olho de nossa mente” (HALL, 2000, p. 52) que participamos da “comunidade imaginada” (Anderson), internalizada como nosso “chão”. Assim, examinando os autores guineenses, podemos perceber traços dessa narração da nação já bem cedo, expressos no amor pela terra úbere, no encantamento pela vegetação exuberante, pelos pássaros e pelos muitos bichos e plantas da Guiné. Apesar de não se encontrarem muitos poemas tematizando diretamente a natureza, ela se faz presente com alusões salpicadas em muitos versos esparsos, permitindo entrever a ligação com a terra natal. Quem já contemplou na Guiné-Bissau os campos alagados das plantações de arroz (conhecidas como bolanhas), ao pôr do sol, reconhece essa hora mágica nos versos de Carlos Semedo, para quem aquela paisagem tão especial se constitui na síntese de sua “Guiné”, título de um dos seus poemas: Bolanhas de sal e sangue Tardes poentes avermelhadas Luar de prata Águas espelhadas d’indiferente quietude A bolanha continua tingida de cambiantes variados [...] (SEMEDO, C., 1963, p. [37-38])290. O afã, a efusão em exaltar os feitos das lutas libertárias e de seus heróis, o otimismo e o empenho na construção nacional ocupam um número bem maior de páginas nos Momentos primeiros de construção (1978), título da segunda antologia poética desse período do despontar da literatura nacional. É o momento de narrar a nação, inclusive evocando com páthos os horrores da guerra e o sofrimento das mindjeris di panu pretu, título de uma das canções mais pungentes e mais famosas, datada de 1970, musicada por José Carlos Schwarz, a partir da letra de Armando Salvaterra291. São as mulheres de pano preto, as viúvas enlutadas e as mães órfãs de seus filhos tombados pelo amor à liberdade: 290 291 Sobre Carlos Semedo, cf. nota 195, do capítulo 5. José Carlos Hans Schwarz (1949-1977), filho de descendentes alemães pelo lado paterno e de guineenses e caboverdianos pelo lado materno, é o primeiro grande músico e compositor do país. Com o conjunto musical Cobiana Djazz, criado com Aliu Bari e Duko Castro Fernandes, revolucionou a cena musical guineense, ousando apresentar, ainda sob o domínio português, um repertório cantado em crioulo. Abertamente contra o regime colonialista, passou três anos preso na Ilha das Galinhas. Sua popularidade cresceu depois da independência, tendo continuado a compor canções de crítica social e política. Armando Salvaterra (1946-1977), um dos intelectuais das primeiras horas da pós-independência, é autor de poemas na língua guineense, alguns dos quais musicados por José Carlos Schwarz (o “Zé Carlos”, como ainda hoje é conhecido e cultuado). Cf. SCHWARZ, 1997b (idêntico a AUGEL, 1997b); AUGEL, 1998a, p. 217-236). 261 Mindjeris di panu pretu ka bo tchora pena Si kontra bo pudi ora ke un son di nos fidi bo ba ta rasa pa tisinu no kasa Pabia li ki no tchon no ta bai nan te bolta di mundu i rabu di pumba Ma bo na limpa korson ku no sangi ki na kai na tchon (AUGEL, 1997b, p. 153)292. Ao relembrar pateticamente os horrores da guerra, junta-se a isso a convocação a todo o povo para trabalhar em favor do crescimento do novo Estado independente. Algumas letras das canções de José Carlos Schwarz ilustram esse momento, como a “Kombersa kurtu ku Tamba”: Luta i ka son toma tera... Serka tuga i djustu di rola ordidja, Tamba Kumpu tera... Un mon na arma pa serka limaria na lugar un mon na radi pa arma ten roson na diritu di radi rumpi tchon... Kargu garandi de karga sin diskarga (si ka sin, ai di bo) (ib., p. 119) 293. Outro recurso é a celebração dos heróis e mártires – sobretudo mártires – que passam a constituir metonímias do momento mítico fundador da própria nação. São muitos os poemas exaltando Amílcar Cabral ou outros nomes famosos e legendários das lutas de libertação nacional. “Camarada Amílcar”, de Agnelo Regalla, datado de janeiro de 1974294, ainda hoje é recitado em saraus culturais com grande emoção: No chão vermelho Do teu sangue, Camarada, [...] As flores da nossa luta Que tu com carinho plantaste 292 293 294 “Mulheres de pano preto: Mulheres de pano preto, / não chorem mais // Se puderem – quando um de nós cair ferido – / rezem por nós / para que regressemos à nossa casa. // Porque aqui é que é a nossa terra, / não importa aonde formos. / Por mais voltas que der o mundo, / volta-se sempre ao mesmo lugar (as voltas que o mundo dá / são como o rabo da pomba). // Mas vocês hão de limpar o coração / com o nosso sangue / que cai no chão”. “Conversa breve com Tamba: A luta não é só conquistar o poder. / Expulsar os tugas [os portugueses] é só o começo, Tamba! // Para construir a nação, / é preciso ter u'a mão na arma, / para afugentar os animais que destroem a plantação, / a outra mão no arado, / para a arma ter uma razão de ser / e garantir ao arado o direito de lavrar o chão. // Quando tens um grande peso para carregar / se não o carregares / ai de ti!”. O assassinato de Amílcar Cabral se deu a 20 de janeiro de 1973, na Guiné-Conakry, em frente à sua residência. Até hoje não se têm provas de quem foram os mandatários do crime. 262 Estão a desabrochar Em gargalhadas infantis (Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990, p. 121). Jorge CABRAL (sobrinho de Amílcar Cabral) é autor de um longo poema intitulado “Um sonho – uma realidade” (CABRAL, J., 1998, p. 23-33) que merece atenção. A expressão crioula Cabral ka muri!, presente no cotidiano guineense, está implícita no desenrolar das cenas que constituem uma verdadeira trama épico-dramática desse poema de centenas de versos e dezenas de estrofes. Em enunciados na primeira pessoa, o eu poético, projetando-se no drama, relembra a cena do assassinato do grande líder, mesclando-a com elementos de sua imaginação poética, encenando estar diante da personalidade auratizada, que com ele dialoga: “um sorriso tranquilo / E sereno / Iluminava o seu rosto / Um rosto radiante / De luz, de vitória” (ib., p. 24). No poema, a vítima não é o líder, herói invencível, e sim os seus agressores, “criminosos”, “infames”, enquanto que tudo relativo ao herói é “radiante”, “irreal”, “insondável”, “apaziguante”, “luminoso”, “divino”. São inúmeros os sintagmas que indiciam o clima de heroização e exaltação, por exemplo, quando o poeta se refere à “majestade quase divina”, ao semblante irradiando glória num dia de “sol resplandescente” (ib., p. 27): Ele pôs-se então A falar-me E vi os seus olhos... A sua luz Fazia da noite Um dia luminoso, [...] O seu rosto Irradiava de glória E o seu sorriso De uma majestade Quase divina (ib.). Nunca ficou provado quais teriam sido os reais mandantes desse crime político, embora os estudos mais recentes tenham lançado muitas luzes a respeito (cf. CASTANHEIRA, 1995). No poema, os assassinos julgavam ser o herói “apenas de carne feito” (CABRAL, J., 1988, p. 30), mortal sujeito a finar-se, mas ele resiste ao tempo, sacralizado pela veneração dos guineenses, estando [...] aqui, Como sempre E para sempre [...] [...] vivo Nos corações e nos actos De todos os filhos dignos Do nosso povo imortal Da nossa terra africana (ib.)295. 295 O poema foi publicado pela primeira vez no periódico Expresso Bissau, em 20 de janeiro de 1993, por ocasião do XX aniversário do assassinato de A. Cabral. Sobre o autor, cf. AUGEL, 1998a, p. 299-313. 263 Pascoal D’Artagnan Aurigemma, com seu “Hino ao meu país”, datado de 1975, em exuberantes versos exclamativos, num tom de prece, reúne em um só poema as duas pontas do cordão, louvando as belezas concretas de seu país e glorificando de forma idealizada a resistência ao colonizador. Sagrado é o chão que fornece o alimento material, sagrado é o chão embebido do sangue dos mártires e heróis: Neste meu país – beijo o chão negro do negro chão! Beijo o chão das altaneiras e desafiantes palmeiras braços alongados suplicando um Deus – que eu quero! [...] Beijo o chão-pátria-unida da África africana de todos nós africanos! Beijo o chão de cansaços do negro acorrentado e grades de prisões e fomes e pancadas surdas em masmorras do silêncio absoluto! Beijo o chão onde o sangue do sacrifício correu em caudal de libertação na hora nova da consciência unida! Beijo o chão por onde pés nus de afronta colonial – Ó África! avançaram firmes para a vitória! (AURIGEMMA, 1996, p. 37). Os movimentos de independência quiseram recuperar a dignidade africana perdida, pondo fim à dominação alienígena e à alienação das suas elites296. A resistência e a luta devolveram o amor próprio e o orgulho pisoteado, tornando finalmente possível uma afirmação como a que D’Artagnan Aurigemma proferiu em “Colonial orgia”: “Nós! Poilões erguidos / na pátria Guiné!” (ib., p. 83). Porta-voz da coletividade, o poeta se sente impelido a sempre de novo insuflar coragem e otimismo em seus compatriotas. Em “Coragem povo”, D’Artagnan Aurigemma o faz com persistentes anáforas, atribuindo a si mesmo o papel profético de infalível autoridade, como um oráculo que anuncia e orienta: Coragem Pilum di bas Pilum di riba Bandé Gan Biafada N’tula Plubá Cuntum 296 Mas é preciso datar de muito antes os anseios de liberdade do povo guineense. Peter MENDY (1994, p. 29) fala de uma “longa tradição de resistência, que remonta aos primeiros anos de contacto com os portugueses” e parece sugerir uma continuidade até as lutas pela independência e a criação do Estado da Guiné-Bissau. Já tratei da questão da resistência no capítulo deste trabalho sobre a evolução histórica (capítulo 2). 264 coragem Coragem no corpo na cabeça nas mãos coragem povo As pedras também têm linhagem própria e os rios e fontes e capins rasteiros são testemunhos do vento que sopra [...] Nos matos longos e insubmissos as onças linguanas cobras bufris o leão real e outros fadados Apuram os ouvidos para melhor ouvirem a mensagem (AURIGEMMA, “Oráculo”, ib., p. 89-90). Nesse belo poema, Aurigemma invoca o povo, na primeira estrofe destacando bairros tradicionais de Bissau, sugerindo depois a participação da natureza: seres animados e mesmo inanimados (“as pedras também possuem linguagem própria”; ib., p. 89) percebem igualmente “o vento que sopra” (ib.), as novas idéias que circulam e se vão infiltrando nos matos “longos e insubmissos” (ib., p. 90), onde animais de todo tipo, inclusive os que representam os totens das linhagens étnicas tradicionais (onças, cobras) ou presentes nas fábulas e estórias da oratura (“outros fadados”, ib.), contribuem para insuflar essa coragem necessária na hora decisiva que se aproxima. 7.1.6 “Unidade e luta” Na Guiné-Bissau, a expulsão das forças coloniais abriu caminho para a realização do sonho de transformar o país numa nação onde a sociedade se modernizaria e se autogerenciaria, entrando na “civilização” pelas portas da educação e da independência política e econômica. Amílcar Cabral, o “pai” da nacionalidade guineense, mostrava-se convencido de que a luta de libertação transformaria o povo e lhe daria uma outra identidade, mais ampla, a da “unidade nacional”, base para uma nação independente e desenvolvida. A esperança da liberdade estaria “transformando completamente o nosso povo“, criando “um homem novo“ e “uma mulher nova”. Cabral tem sem dúvida razão, ao afirmar, numa entrevista à edição francesa da revista cubana Tricontinental (CABRAL, A., 1968) que “somos um povo, uma nação que deve lutar para pôr fim à dominação portuguesa”; e acrescenta que “é a própria luta que cimenta essa consciência nacional” (ib.). O mesmo pensamento está desenvolvido em muitos de seus textos e discursos, onde se pode sentir 265 a permanente preocupação do líder por essa questão e seus receios de que o binômio “unidade e luta” sofresse futuramente arranhões. Amílcar Cabral sonhou com a unidade nacional que harmonizaria a heterogeneidade das etnias sob a bandeira comum da nova nação guineense, irmanada a Cabo-Verde. Com a “arma da teoria” (título de um dos seus mais famosos textos), o grande líder tencionava forjar essa unidade. Como Amílcar Cabral já muito cedo percebera, o processo de integração ou de interação étnica que animou a luta deveria ser também a meta final para que o recém-libertado país pudesse alcançar uma integração como nação. Carlos Lopes discute longamente, em vários ensaios, se a Guiné-Bissau pode ser considerada um Estado ou uma Nação (LOPES, 1987, 1988, 1989a) e muitos outros autores trataram dessa questão nos países recém-saídos da colonização. No entanto, para a finalidade do nosso estudo, não me aprofundarei na questão se a Guiné-Bissau chegou de fato a alcançar a unidade que o termo sugere297. Um sentimento de pertença ao solo comum existe e se mostra mais ou menos intenso, segundo as crises políticas, sociais, econômicas e militares por que tem passado o país. Os dirigentes guineenses desde o começo tiveram dificuldades em integrar os valores culturais da maioria da população, pautando a qualificação do cidadão muito mais pela sua origem sociocultural. Como me referi a respeito da entrevista concedida à revista cubana, chama a atenção, por exemplo, a grande preocupação de Amílcar Cabral de ver garantidos, na constituição da nação guineense, o respeito e a valorização da mulher. Também o grande e popular cantor e compositor José Carlos Schwarz ressalta o novo papel da mulher quando diz, entre outras afirmações, que “mulher não é flor nem garrafa de vinho, é companheira de valor”298. Uma canção das mais expressivas de José Carlos Schwarz sintetiza a problemática dessa dicotomia imortalizando Apili, a mulher valente que estava na guerrilha sempre "perto do seu homem”, “matchu, matchu, matchu garandi”, isto é, homem corajoso, "combatente do povo". O marido de Apili integrou a leva dos combatentes que deixou a mata, onde se desenvolveu a guerrilha, e se instalou na cidade, quando os "tugas" foram expulsos. Aprendendo os modos refinados do novo ambiente, o marido de Apili, envergonhando-se da rusticidade da esposa, que não tinha a educação urbana, foi procurar na capital outra mulher que soubesse comportar-se em sociedade, "que sabe entrar, que sabe sair". Apili fica no campo, sozinha, "com a lembrança da kansera e da foronta, isto é, dos sofrimentos e da humilhação provocados pela guerra. Eis o poema-canção “Apili”, ainda muito popular na Guiné-Bissau: Apili, Apili, Apili son pertu di si omi 297 Carlos Lopes cita Samir Amin que diz: “O movimento de liberação nacional é frequentemente um movimento nacional sem nação. A unidade das classes anti-imperialistas (ou anti-colonialistas) num dado momento pode dar o pretexto para ultrapassar as divisões” (LOPES, 1987, p. 61). 298 Cf. AUGEL, 1997b, p. 132; AUGEL, 1998a, p. 230. 266 matchu, matchu garandi kombatenti di povo Ma tugas ruma se kargu pa e riba se tera kombatentis entra prasa omi di Apili bai Omi di Apili bai i bai buska mindjer nobu ki sibi entra ki sibi sai Apili fika el son ku si lembransa di kansera di fomi di foronta Ma Apili ka bu larga bu kurpu bardadi di Partidu ka ta pirdi si ka na boka de mal tomadus! (AUGEL, 1997b, p. 93)299. José Carlos Schwarz pressentiu o lado negativo da modernização, com a falta do senso de medida daqueles que antes nada possuíam e o impulso de usufruir ao máximo dos bens de consumo, finalmente alcançáveis. O poeta compôs em contrapartida a “Apili” uma outra canção, “Badjuda preta fina”, ironizando as "pretas finas" da pequena burguesia, uma “raça nova” que estava surgindo, moças que entravam em todos os carros e freqüentavam todas as boas famíliasda sociedade, sem mais o recato e a modéstia de antigamente: Pubis bo bin djubin Pubis bo bin djubin Badjuda preta fina Rasa nobu na no tera I ka ten karu ki ka entra i ka ten kasa ki ka kunsi No ka djuntu na nada ma e mas nos na tudu (ib., p. 55)300. A futura nação está sempre presente na obra de José Carlos Schwarz. Um poema seu pouco conhecido, de 1974, “Fidjus di Guiné”, mais uma vez atesta a clarividência do compositor-poeta e seu empenho em contribuir com sua voz para a concretização do ideal revolucionário de unidade nacional, comparando os muitos grupos étnicos aos filhos gêmeos gerados pela mesma “ 299 Apili, Apili, Apili, / sempre perto do seu homem, / homem corajoso, combatente do povo. // Mas os ‘tuga’ arrumaram as malas / para voltarem à sua terra. / Os combatentes entraram na cidade, / o homem de Apili também entrou. // O marido de Apili se foi / e procurou outra mulher, / mais fina e desembaraçada. // Apili ficou sozinha / com a lembrança dos sofrimentos, / da fome, das aflições [do tempo da luta]. // Mas Apili, não percas a coragem / que os princípios do Partido não se perdem / a não ser na boca dos ingratos”. 300 “Menina preta fina: Venham todos ver, / venham ver, minha gente venha ver, / a menina preta fina, raça nova na nossa terra // Não há carro onde ela não tenha entrado, / não há casa que não conheça. // Não somos iguais em nada / mas ela é mais que nós em tudo”. 267 maternidade (“cinco de cada barriga, de cada gravidez”), e que, embora sejam tão diferentes entre si, cada qual tendo suas manhas e seu modo de ser, “mamam as dez bocas do mesmo seio”: Na no mamendadi anos i des ki no mamé padi sinku na kada bariga kada kin ku si maña kada kin ku si manera ma anos tudu djemia Fidjus di Guiné des boka na un mama nin ki mundu kinti Tudu tarda ki na tarda na no lado na firia (ib., p. 77)301. As canções que gozavam de grande popularidade eram todas cantadas e compostas na língua guineense. O veículo para a unidade nacional passou a ser sem dúvida esse meio de expressão, o crioulo, proibido durante o tempo colonial, resgatado pelos revolucionários. Tendo tido seu status elevado e sua divulgação enormemente aumentada durante a luta, nunca mais perdeu seu prestígio e se tem afirmado cada vez mais302. O jovem poeta-trovador José Carlos Schwarz mostra uma clarividência espantosa quando liga a língua guineense com a luta para transformar a opressão cultural colonial em valor próprio, positivo, corolário da independência e da nação a ser construída. Transcrevo o texto pela sua lucidez e atualidade: O crioulo é antes de mais nada uma síntese cultural elaborada numa situação de opressão, tal como o assimilado é a síntese social da sociedade colonial. Impõe-se assim a reconversão cultural do próprio crioulo, veículo cultural dos oprimidos, em língua nacional, integrada e enriquecida pelos valores culturais autóctones positivos e pelos conceitos científicos, filosóficos e técnicos estrangeiros303. As lembranças comuns, a socialização em comum e a língua comum constituem um elo de ligação dos mais vigorosos e duradouros, plasmadores da comunidade nacional. A força que leva uma comunidade (ou um grupo social) a querer viver em conjunto e a permanecer coesa no âmbito nacional, como já vimos mais de uma vez, pode ser atribuída ao passado comum, ao “rico legado de lembranças” e à herança ancestral (RENAN, 1947, p. 892). O passado comum para os 301 A riqueza da língua guineense é imensa. O poeta emprega o enunciado mamendadi, palavra formada por sufixação a partir de mamé, mãe, tal como de ”Guiné” deriva guineidade. Aqui a tradução do poema: “Filhos da Guiné: Entre os filhos da mesma mãe, / somos os dez que ela pariu:/ cinco de cada gravidez. // Cada um de nós tem seus caprichos / cada um de nós, o seu modo de ser / mas somos todos filhos gêmeos. // Filhos da Guiné, / dez bocas para um seio só, / mas mesmo que o mundo esteja quente (que haja guerras), / por mais que isso demore / o nosso lado esfriará” (voltará a haver paz). Esse poema, com tais metáforas, está bem próximo da técnica das adivinhas, tão caras do povo guineense. 302 Sobre a língua guineense, sua divulgação e sua importância, cf. o capítulo 2, sobretudo item 2.5. Cf. também AUGEL, 1998a, p. 27-53; AUGEL, 2000a; SCANTAMBURLO, 1997 e 2002. 303 O texto é datado de 14.8.1976. Encontrei-o nos arquivos do INEP, no acervo de Mário Pinto de Andrade que aquele Instituto possui. Mário Pinto de Andrade foi Comissário de Estado da Cultura de Guiné-Bissau logo após a proclamação da independência. Cf. AUGEL, 1997b, p. 29; AUGEL, 2000c. 268 guineenses é o passado das lutas de libertação nacional, o símbolo mais glorioso e eloqüente da nacionalidade. É mesmo o momento fundador da nacionalidade, do espaço vital “Guiné-Bissau”. A “luta” é a referência onipresente em todos os escalões da sociedade guineense, justificativa e argumento, apelo e qualificação. Na memória do povo, ela continua sendo o símbolo sacralizado de orgulho e de consagração. Os indivíduos são classificados entre os que participaram e os que não participaram das lutas de libertação. Os discursos políticos, de todas as plataformas e ideologias, fazem da luta uma referência obrigatória, lançam permanente apelo ao passado de resistência e glória. A “luta”, mitificada mas também mistificada, é um elemento determinante e de absoluto poder a ponto de, mesmo os traidores dos ideais revolucionários, por terem sido “antigos combatentes da liberdade da pátria”, continuarem intocáveis. 7.2 O discurso literário dos anos noventa Segundo Benedict ANDERSON (1983, p. 30), os dois gêneros discursivos que tornaram possíveis a constituição e a consolidação das comunidades nacionais foram o romance e a imprensa. Discorrendo sobre a formação dos Estados-nações, Anderson remete ao discurso “fictício” dos jornais e dos romances, procurando ali a resposta para a pergunta por ele formulada de como se pode explicar o apaixonado nacionalismo que persiste mesmo nos dias de hoje e até em regimes como o marxismo que deveria já ter superado as influências e os limites das culturas burguesas nacionais. Os romances folhetinescos, muitas vezes publicados serialmente nos jornais, tinham um grande público leitor nas elites que passaram assim a constituir uma comunidade (de imprensa), horizontalmente unida pelo desejo e o prazer da leitura, alimentados através da espectativa dos desdobramentos narrativos gota a gota publicados nos folhetins, de tal modo que um vasto número de pessoas estaria, no mesmo lapso de tempo, rindo ou chorando, envolvidas pelas emoções do mesmo fascículo do romance seriado (ib., p. 37-39). As paixões construídas pela leitura ou os modelos ideais transmitidos por tais textos influenciaram profundamente aquele meio social e essas justaposições fictícias tornaram-se as nações modernas, afirma ANDERSON (ib., p. 40). Mesmo não levando tão longe essas assertivas do filósofo anglo-irlandês, e não esquecendo que em países como a Guiné-Bissau o índice de leitores é muito baixo, é fato que através da leitura, do exercício dialógico intercambiante entre o autor e o leitor, cria-se um território comum de interação intensa – pessoas, personagens e eventos se misturam caleidoscopicamente, num processo envolvendo relações simultaneamente complementares e contraditórias. As mesmas conclusões, creio, podem ser inferidas da imensa influência exercida na África (e não só) pelo teatro e sobretudo pela música, inclusive como um instrumento de 269 incentivo e animação ao longo dos onze anos da guerrilha libertadora. Sobre o assunto, voltarei mais adiante. 7.2.1 Revelando os arquivos do silêncio Na literatura guineense, o relato da nação tem sido realizado por vozes plurais que trazem como denominador comum um vínculo forte com o passado, mas sem saudosismo, sem tentar restaurar os tempos ki sabi el ba, expressão da língua guineense que se poderia traduzir por tempos “que têm o sabor do que já passou”, os “velhos tempos” que muitos consideram melhores do que o momento atual. A narração da nação se efetua metaforicamente, plasmada tanto pelo pensamento político quanto por estratégias discursivas e textuais e por uma retórica que a enfatiza como um sistema de significação cultural (BHABHA, 1997, p. 48), onde a transgressão e a desconstrução ocupam um lugar privilegiado. Bhabha alerta contra os extremos de duas tendências antagônicas: de se encarar a Nação como o aparato do poder ideológico do Estado ou, utopicamente, como “a expressão incipiente ou emergente do sentimento ‘nacional-popular’ preservado numa memória radical” (ib., p. 54). Na Guiné-Bissau, o discurso literário contemporâneo põe a descoberto os conflitos e os desencantos que estorvam uma auto-identificação positiva face à nação, parecendo já distante o tempo em que predominava o orgulho pela resistência por tantos anos exercida e pela vitória contra o colonialismo. O estado de espírito atual, de desânimo e de errância, atravessa as simbologias, impregna as metáforas que povoam as obras literárias contemporâneas e os autores procuram uma nova linguagem, uma forma outra de expressão para traduzir não só a desilusão da utopia como a garra teimosa de uma busca de alternativas. Muitos dos textos da década de noventa e do começo do novo milênio se querem desestabilizadores da ordem simbólica imposta pelo discurso autoritário. Está-se, assim, diante da emergência de vozes que ecoam em dissonância com a retórica do discurso oficial que não se cansa de repetir o mesmo diapasão de exaltação dos feitos passados. Ao recusarem um caminho único para o discurso da nação, os escritores sabem que não é praticamente possível orquestrar a imagem do país sem enfrentar a desarmonia e a fragmentação. Para compor essa nova imagem foi e está sendo necessário buscar desvios e descaminhos, renunciando a idéias de harmonia e integração. Diante das ruínas da história, dos escombros do ideal não realizado, a pátria gloriosa e vencedora não passa de uma abstração; o clima é depressivo, sombrio; mas, na Guiné-Bissau, sem melancolia. Os escritores do fim do século, arautos e espelhos de seu tempo, enfrentam a realidade pela tangente da fantasia. Vão desencavar novos significados pelas fendas dessas ruínas, sacudindo as pedras derrubadas, construindo um novo conteúdo, uma nova significância. Filinto de Barros disseca o 270 passado, procurando compreender onde estão os descaminhos, de onde viria uma resposta. Não a vai buscar na empáfia dos comandantes, dos “construtores” do edifício nacional, mas sim no desencanto dos que sempre estiveram à margem dos acontecimentos, os esquecidos, os oprimidos, os fracassados. Abdulai Sila descontextualiza e desconstrói a História em muitas estórias, ocupado em safar uma mistida, em procurar uma saída inadiável, urgente e quase impossível. Odete Semedo, emergindo da experiência traumatizante da catástrofe, arranca da tragédia nacional o ânimo para um novo desafio. E, do fundo de sua indignação, faz brotar um canto-poema, ímpar e híbrido, misto de pranto e canto, sátira e épica, esquadrinhando as entrelinhas da tradição, apresentando a nação como uma comunidade imemorial, primordial. Os três autores que vou analisar agora nos contemplam com a narração da nação, pelo instrumento e pelo viés da alegoria, entendida como um recurso estético, uma metáfora alargada, cujo sentido remete para um segundo nível de significação304. O respaldo referencial é para os três autores o mesmo: a história recente do país, o descalabro atual, a procura de novas direções. Cada um a seu modo tenta “safar essa mistida”, executar um ato de relembrança. Cada um procura intervir criticamente através da criação estética, desenterrando fatos, passadas e estórias que jaziam no esquecimento. A obra de todos os três deve ser lida, a meu ver, como alegorias nacionais. A história das nações é geralmente escrita a partir da visão do poder hegemônico. Interessa a cada Estado fazer passar para as gerações seguintes sua própria versão do passado e da nacionalidade, elaborando um discurso excludente, unívoco, a partir da estratégia de lembrar fatos, omitindo outros. O historiador francês Jacques Le Goff, embora defendendo o caráter científico que deve presidir à historiografia, relativiza tanto a imparcialidade como a objetividade do historiador, ressaltando ser o dever do cientista desmitificar e descolonizar a história, por assim dizer “fazer o inventário dos arquivos do silêncio e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos” (LE GOFF, 1984, p. 220), cabendo ao historiador não somente procurar preencher as lacunas deixadas tanto pelo esquecimento como pela manipulação proposital dos fatos e acontecimentos. Entretanto, “falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta [...] é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços brancos da história” (ib.)305. Nós, 304 Alegoria é um modo de expressão literária e artística que, através de um conjunto de imagens, mostra uma realidade com significado simbólico. Ou seja, a alegoria tem dois planos: o da representação figurada, literal e visível, e o da significação encoberta. Os elementos da representação figurada correspondem aos da realidade ocultada, e a correspondência entre os dois planos se dá pelo princípio da analogia (Encyclopaedia Britanica do Brasil, disponível na internet, site: http://orbita.starmedia.com/~stargate2/alegoria.htm, consultado em junho de 2005). 305 Utilizei o artigo de Le Goff sobre o ofício do historiador a partir da Enciclopédia Enaudi, cujo primeiro volume é dedicado às ligações entre memória e história (1984). Quase todos os artigos desse volume são da autoria de Le Goff e são praticamente idênticos a seu livro posterior História e Memória, do qual o original francês é de 1988. 271 brasileiros, latino-americanos, africanos, que tivemos nossas histórias obnubiladas e distorcidas pelo eurocentrismo, conhecemos bem a urgência de tal atitude. Sabemos, pois, que as classes dominantes sempre empreenderam uma escolha direcionada do que deveria ou não figurar nos livros de história, nos documentos que, no futuro, erigiriam o nosso passado. Na Guiné-Bissau, os fatos do passado foram instrumentalizados pelo discurso “oficial”; a História esteve primeiro sob a influência do colonizador, depois da alta esfera militar e da elite urbana, refesteladas no “berço esplêndido” das glórias e dos privilégios passados. A função do acervo literário contemporâneo guineense tem sido, entre outras, justamente esta: preencher os bolsões de silêncio, recuperar pela via da metáfora a história que não foi contada. Foi o que fizeram Filinto de Barros em Kikia Matcho e Abdulai Sila sobretudo em Mistida. 7.2.2 Um pequeno exercício de ficção: Kikia Matcho A Guiné-Bissau carece ainda de uma obra histórica englobante, que estabeleça um arco de ligação abarcando a história desse território desde o período pré-colonial até a época atual. Historiadores e cientistas sociais têm feito um trabalho importante e meritório, mas até o momento as contribuições têm sido parciais306. A literatura está levando a efeito, dentro dos seus limites e a seu modo, a tarefa de narrar a nação através da ficção e da produção poética, sem que se deva esquecer o papel importante dos compositores e da música de intervenção em nossos países. Com a publicação de Kikia Matcho (1997) por Filinto de Barros, está-se diante de um romance sob muitos aspectos histórico, pois ali se faz uma releitura do processo de formação social e política da Guiné-Bissau e de suas conseqüências, estabelecendo uma imbricação entre o factual, a memória e a ficção. É o próprio autor que declara, numa espécie de advertência ao leitor, antes de iniciar sua estória, ter pretendido, nesse “pequeno exercício de ficção”, recorrer a uma abordagem “do processo de síntese sócio-cultural” de seu povo (BARROS, 1997, p. 7). Se concordamos com Benedict Anderson que a nação seja uma comunidade política imaginada, admitimos igualmente ser ela constituída a partir do discurso. Anderson, como já me 306 Imediatamente após a vitória final (1973), o PAIGC elaborou uma História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde, de 183 páginas, sem indicação da autoria, enfatizando três aspectos: a história da África Ocidental antes da colonização; a história dos europeus em África, a exploração e a colonização; a história das resistências, culminando com a luta travada pelo PAIGC, levando a Guiné e o Cabo Verde à libertação. Livro de propaganda, seu mérito é, a meu ver, sobretudo, o fato de apresentar a história da região antes da chegada dos portugueses. A obra teve duas edições simultâneas, uma em Paris: P.A.I.G.C., 1974; a outra em Portugal, no Porto: Ed. Afrontamento, 1974. Relembro ainda que autores como Carlos Lopes, Carlos Cardoso e Peter Mendy publicaram livros e ensaios em periódicos, da maior importância para a história do país. A revista Soronda tem publicado regularmente, desde 1986, ensaios sobre aspectos parciais da história política, social, econômica e cultural da Guiné-Bissau. Fora do país, cf. a obra sobre a “política, economia e sociedade na Guiné-Bissau”, de Rosemary GALLI e Jocelyn JONES, publicada em Londres (1987). 272 referi na introdução deste capítulo, considera que é através da ficção e da imprensa, essas “duas formas de imaginar” por excelência, que as comunidades nacionais contemporâneas tomam consciência de si mesmas e, ao praticarem o exercício de narrarem-se, numa auto-apreensão, estão igualmente contribuindo para trabalhar em prol de uma consolidação do sentimento nacional e, portanto, da própria nação. A auto-reflexão que se conheceu na Guiné-Bissau, na cena pública, até os anos noventa foi quase apenas a dicção hegemônica, sob a forma de discursos oficiais. Os ideais de nacionalidade e de cidadania eram transmitidos ao povo pelos meios de comunicação disponíveis. A imprensa e sobretudo o rádio, indispensável num país de tantos iletrados, foram instrumentos de propaganda e de doutrinação, primeiro do partido clandestino, depois do partido vencedor e único, o PAIGC. Através de tais porta-vozes se foi plasmando a história da nação guineense. Já me referi em mais de uma passagem deste trabalho ao comportamento das classes dominantes guineenses, apropriando-se do prestígio devido à participação nas lutas de libertação, dela servindo-se para legitimarem seus atos e conservarem-se no poder. Ter estado no mato era (e de certo modo ainda persiste esse comportamento) justificativa para todo tipo de desmando e abuso de autoridade, sendo atenuante para derrapagens morais e para a falta de capacidade. Nas décadas de setenta e oitenta, época em que decorre a ação do romance Kikia Matcho, esse estado de coisas era extremo. A autocelebração determinava a escolha dos novos dirigentes que passavam a ocupar cargos administrativos de direção apenas escudados com a aura de combatente da liberdade da pátria. Filinto de Barros espelha em seu texto uma atitude bastante generalizada naquela época, quando o povo ainda estava imbuído da euforia da enorme façanha que foi a expulsão dos colonialistas, os tugas, como eram apodados, deixando uma de suas personagens exclamar, como justificativa da falta de reação ou protesto da parte do povo: “não te esqueças que chefe é chefe!” (ib., p. 137). Filinto de Barros (nascido em 1942, em Bissau) é, ele mesmo, uma figura histórica. Entrou para as fileiras do PAIGC em 1963 na Zona Zero, isto é, em Bissau. Durante as lutas de libertação, desenvolveu atividades em Bissau e em Lisboa, onde estudou engenharia e foi dirigente daquele partido na clandestinidade. Proclamada a independência, foi durante mais de uma década ativo participante dos destinos políticos do país: foi membro do Comité Organizador do Partido e do Comité do Sector Autónomo de Bissau; foi também Secretário Geral e Secretário de Estado da Presidência. Foi Embaixador da Guiné-Bissau em Portugal, Ministro de Informação e Cultura, Ministro dos Recursos Naturais e Indústria, Ministro da Justiça e Ministro das Finanças. Desde 1994, com as eleições multipartidárias e o início de uma nova era na história política do país, Filinto de Barros retirou-se da vida pública. Atualmente, com pouco mais de 273 sessenta anos de idade, exerce em Bissau um cargo de conselheiro técnico numa entidade de cooperação estrangeira. O narrador traça a trajetória de três personagens (Papai, António Benaf e Joana). A trama do romance se desenrola em vários planos, em torno da morte de 'N Dingui, antigo “Combatente da Liberdade da Pátria”, que terminou seus dias num bairro decadente da capital, relegado ao abandono tanto pelos familiares como pelas instituições públicas. O sobrinho Benaf, que acabara de chegar recém-formado da Europa, onde passara alguns anos estudando, é obrigado a participar do "choro", isto é, das cerimônias fúnebres do tio. Papai307, um companheiro e amigo do falecido, como ele antigo combatente, sente-se emocionalmente mobilizado pela morte do camarada e revive saudosamente as lembranças das lutas libertárias. A sobrinha Joana tinha emigrado para Portugal e mesmo lá segue os costumes africanos, passando a noite do velório em vigília, acompanhada de outros conterrâneos também emigrados. A estória é tecida em torno de várias decepções: o velho 'N Dingui morreu sem ver realizada a promessa feita aos antigos combatentes de melhor pensão, de integração na sociedade; seus amigos e camaradas também esperaram em vão, tendo como último desapontamento a ausência dos comandantes no enterro de 'N Dingui. Sem dinheiro, sem trabalho, sem honrarias, sem reconhecimento de espécie alguma pelo que fizeram pela pátria durante as lutas de libertação, esses velhos guerrilheiros, com suas medalhas e suas recordações, são a imagem mesmo da decadência e da desolação. Vivem na periferia da cidade, passam os dias em cafés a lembrarem “os gloriosos anos da LUTA” (ib., p. 18), embebedam-se diariamente, afogando no álcool as frustrações. Elo comum interligando as três personagens principais e emprestando coesão ao entrosamento diegético é o aparecimento da ave pressagiadora do mal e da catástrofe, da infelicidade e das adversidades. O mistério e o agouro do kikia são uma maldição da qual ninguém parece poder escapar: como o falecido 'N Dingui, tanto Joana quanto o primo Benaf ou o camarada Papai não conseguirão fugir da sorte mesquinha das pessoas vulgares, destituídas de todo e qualquer poder, às quais são recusados sucesso ou brilho. 7.2.3 A visão dos vencidos Em Kikia Matcho tem-se um discurso distanciado do discurso oficial e a ótica da abordagem é claramente a partir da visão dos vencidos, dos subalternos, termo e conceito divulgados sobretudo pela estudiosa indiana Gayatri Spivak308. O autor inscreve a ação num contexto das 307 308 Esse antropônimo é comum na Guiné-Bissau. Sobre G. Spivak e a teoria do subalterno, cf. capítulos 1 e 4. 274 camadas populares do submundo dos bairros pobres e decadentes de Bissau onde se faziam sentir concretamente os indeslindáveis impasses provocados pelas infra-estruturas deficientes e pela incompetência da administração. É Joana, a sobrinha, que recorda: A ilusão da independência durou muito pouco. O desejo de servir o seu novo país nascido no fulgor da Luta esfumou-se nos discursos repetitivos dos novos senhores que tudo prometiam, mas nada de concreto acontecia. A sua vida começara a andar para trás. Os produtos rareavam. Tinha dinheiro mas não comprava nada no mercado, melhor, o mercado deixou de existir para dar lugar às senhas de racionamento. Se queria arroz, óleo, açúcar, sabão, tinha que assistir ao menos a uma reunião nos comités do bairro (BARROS, 1997, p. 24). O posicionamento do autor de Kikia Matcho não é inocente. Abandonando a perspectiva da classe dirigente, recusando a fala hegemônica, que também foi a sua, com conhecimento de causa, indica sem piedade a procedência dos problemas que estão na raiz da desgovernança e que tanto dificultaram a consolidação do Estado guineense, continuando presentes na atualidade: “No serviço passou a reinar a incompetência. Os novos chefes percebiam de tudo menos do assunto”. O recém-constituído grupo dirigente estava “amarrado nas suas próprias contradições, sem poder conciliar a realidade da Luta com a nova realidade dum país carente de recursos humanos capazes” (ib., p. 25). Confrontada com tantas dificuldades, a sobrinha Joana optou, como centenas de outros conterrâneos, pela emigração e foi tentar a sorte na antiga metrópole colonizadora, atraída por um passaporte europeu e a promessa de aposentadoria. Está-se diante de um quadro sem retoques da situação de desesperança e desbarato reinante no país depois da independência. O modelo identitário continuava a ser o colonizador, pois “lhe haviam ensinado que o progresso estava em imitar os modos do colon” (ib., p. 19). A “tirania da civilização do branco incrustada na mente dum preto” (ib., p. 47) prosseguia, permanecendo introjetados o complexo de inferioridade e a aspiração ingênua de alçar-se às esferas da urbanidade: O contacto com a cidade, com os seus colchões de espuma, seus aparelhos de ar condicionado, suas meninas de esmerada educação e, sobretudo, de tez clara, mudou os revolucionários. [...] O discurso revolucionário de tudo fazer em nome do povo dera lugar ao com o poder não se brinca. Em vez de livros, medicamentos, surgiam os volvos e as comadres e, como corolário, a vio1ência policial (ib., p. 25)309. A obra, que na sua segunda edição, publicada em Portugal pela Editora Caminho, tendo como subtítulo O desalento do combatente, serve-se do referencial histórico dos inícios da constituição do Estado guineense para denunciar o abandono da geração dos a nós ki bai luta (nós que fomos para a luta), o descaso a que foram relegados os antigos combatentes da liberdade da pátria e, por extensão, o povo guineense, não aquinhoados por privilégios, reservados a uns poucos. 309 Os carros da marca Volvo abundaram em Bissau, utilizados pelos projetos de ajuda ao desenvolvimento e pelas instituições governamentais (cf. também notas 160 e 327). Comadre remete em crioulo à amante. 275 Filinto de Barros apresenta os acontecimentos e a etapa histórica pós-revolucionária a partir da tensão existente entre os “comandantes” e os “comandantes dos comandantes” de um lado, e os “combatentes”, metonímia para o mundo dos pequeninos, dos esquecidos, dos marginalizados e injustiçados, “os companheiros da desgraça”, destacando sua presença e participação nos destinos da nação. Para isso, o autor faz soar uma multiplicidade de vozes e de perspectivas com as quais empreende a tarefa de demolir a fala mistificadora da classe dirigente. As reflexões de Papai e seus companheiros, se bem que canhestras, espelho de mentes simples, desconstroem com sabedoria a dicção mentirosa, cínica, arrogante daqueles que já foram para ele motivo de venerada admiração, pois “Papai sentia orgulho nos seus chefes” (ib., p. 81). A partir do recurso estilístico das recordações das personagens, o narrador reconstitui a realidade dos acontecimentos. Lembra-se do tempo em que combatiam no mato (“Fizemos uma Luta gloriosa. Na África fomos os únicos a correr com um exército colonial”; ib., p. 20) e as vivências de outrora contrastam amargamente com as carências atuais (“Que interesse tinha, se o comboio da independência lhe havia escapado? Para quê questionar, se a magra pensão de Combatente não chegava para comprar um saco de arroz?”; ib.). Embora muitos tentassem enganar-se a si próprios, procurando justificativas para a situação (“Isto faz parte da Luta, do desencanto que todos nós sofremos ao não conseguirmos atingir os nossos objectivos”; ib., p. 76), algumas vezes é pela boca dos mais jovens, o sobrinho António Benaf, menos preso emocionalmente a esse passado, que soam as críticas mais diretas e irreverentes: Como explicar que dum grande combatente tenha surgido um miserável? [...] Uma coisa era certa, ‘N Dingui lutou, comandou, detém medalhas de Combatente da Liberdade da Pátria, e está ali seco que nem um carapau. Mas seco em tudo, até na audiência que lhe serve de velório! (ib., p. 22). Não era mais possível culpar por tudo os portugueses, uma vez que eles já tinham sido expulsos310. As elites locais tomaram-lhes o lugar, passaram a exercer as funções do colonizador. E os simples combatentes, apesar de suas medalhas, entregues à própria sorte e esquecidos, suspiram reconhecendo a distância que os separa dos atuais dirigentes da nação aos quais o poder havia modificado tanto: “Quem não desertou dos caminhos traçados por Cabral? Que diferença 310 Carlos Lopes, já em 1987, referia-se às mudanças ideológicas e administrativas que se iam procedendo no seio do PAIGC, que continuava a “considerar-se um MLN [Movimento de Libertação Nacional] no poder”, diz o analista. E “o resultado é que a apelação a novas funções no aparelho de Estado largamente dominado por estruturas herdadas e que foram montadas para servir o colonialismo motivou uma mudança de comportamento bastante acentuada. Embora no tempo da luta estes camaradas fossem quadros extremamente bem preparados, uma outra estrutura de poder esvaziou um pouco da sua experiência política e provocou um vazio ideológico” (LOPES, 1987, p. 181). Essas mudanças levaram a uma grande crise política e social da qual Lopes não trata claramente, talvez por ter acabado de acontecer quando escreveu seu livro (1987), tendo culminado com o assassinato de vários grandes nomes do partido libertador. Sobre o assunto, cf. SILVA, 2003, sobretudo o capítulo “O golpe do poder (1985-1986). O problema do tribalismo”, p. 147-167. 276 entre este desertor da Luta e aqueles que elegeram o enriquecimento ilícito à custa do povo de Cabral como a forma mais refinada da deserção?” (ib., p. 80-81). As críticas e mostras de insatisfação são freqüentes no texto, sem metáforas, sem rodeios, também da parte dos veteranos. Tanto a História como o sentimento patriótico são postos em cheque. Os degredados da sorte questionam a legitimidade do discurso que até então estavam acostumados a ouvir e a aceitar: Nós recebemos pouco, enquanto os comandantes estão cheios de carros e de comadres por todos os lados. No mato éramos iguais. [...] Os chefes hoje pensam nas suas contas bancárias e nos seus filhos no estrangeiro! Os amigos dos nossos chefes hoje são outra gente! Nem sequer se lembram de nós (ib., p. 120-121). O balanço é o retrato de uma nação fragilizada e dilacerada pela incapacidade e falta de espírito cívico por parte da camada dirigente e seu comprometimento com o poder. A versão dos vencidos desvela a dicção falsa mas aliciante do outro grupo, dos comandantes, que nem se deram ao trabalho de comparecer ao funeral de um ex-combatente. Também no romance, eles não figuram concretamente, embora sua onipresença se faça sentir em todo o desenrolar da trama. A voz predominante e plural é, pois, a dos “desiludidos, as autênticas vítimas”, exploradas, desprezadas e traídas por aqueles que “tendo acompanhado o Partido acabaram por ficar com ele” (ib., p. 154). A ficção de Filinto de Barros denuncia a incompatibilidade reinante entre essas duas classes sociais antagônicas. E o abismo existente entre os interesses de uma e de outra impede uma imagem identitária integradora da nação (OLIVIERI-GODET, 2000, p. 216)311. A personagem Papai é a encarnação do antigo guerrilheiro exemplar e sempre fiel aos princípios da “Luta”, outrora respeitado e seguro de si, terminou sem emprego e sem dinheiro, alimentado apenas por suas lembranças: refugiou-se no lamaçal [da taverna] da Tia Burim Mudjo para fugir do desencanto duma revolução que teimava em afastar-se do caminho traçado, para não ver o que estava sendo visto pelos outros, enfim, para manter intacto o seu eldorado mundo de Amílcar Cabral (BARROS, 1997, p. 140). Quando se tem em mente que um dos estopins para o conflito armado de 1998/99 foi justamente a insatisfação que grassava entre os antigos guerrilheiros pelo descaso a que eram relegados e o protesto pela falta de pagamento dos salários dos militares de baixas patentes, compreende-se melhor o que aconteceu a partir da descrição crua e impiedosa do narrador, apresentando esses antigos heróis decaídos e aviltados, “corja de homens seminus” (ib.), entregues ao alcoolismo e à frustração. O autor resgata do silêncio suas queixas e suas histórias, focaliza os heróis auratizados a partir de um outro prisma. 311 Para a minha reflexão sobre Kikia Matcho foi-me de muita valia o artigo de Rita OLIVIERI-GODET (2000), do qual retirei várias idéias. Cf. a bibliografia final. 277 Empenhado a nada esconder e a tudo revelar, o narrador se adentra em pormenores terrificantes, histórias que correm em muitas bocas mas que a História tem silenciado e que ainda constituem um tabu real e constrangedor no país312. Os leitores exógenos tomam indiretamente conhecimento de escusos e lamentáveis acontecimentos dos primeiros tempos pósindependência, fatos que não foram esquecidos pela população, relatos de perseguições e muitas mortes, capítulo ainda não esclarecido da história contemporânea do país. Através de indagações ingênuas, a voz que se ergue é a de Papai, que não conseguia atinar o que haviam eles feito “de tão mau e de tão diferente de Cabral, para estarmos a correr todos estes perigos” (ib., p. 136). Papai teve os olhos finalmente abertos pela interferência do amigo defunto exigindo uma cerimônia de reparação pelo muito sangue derramado, sob pena de se transformar em kassissa, espírito errante e azíago que perturba os vivos313. E a revelação que o companheiro de luta e de ideais se havia envolvido em criminosas atividades confundiu aquela “mente simplória” que viu seu mundo desmoronar-se: Se tinham sido tão apoiados pelo povo como era justificável que se torturasse em nome desse mesmo povo? [...] Afinal quem eram ‘N Dingui e outros para julgarem e decidirem quem eram os amigos e os inimigos do povo? Os comandantes tinham conhecimento de tudo isso? Como era possível que uma máquina que trabalhou tão bem na Luta tivesse produzido no seu seio autênticos monstros? [...] Que perigo restava, se os tugas já tinham ido embora? (ib., p. 139). A história desse período tem sido escrita (e contada) por historiadores guineenses e estrangeiros, mas há muitos pontos que continuam obscuros, envoltos em tabus e em mistério, em véus de discreção ou de medo. Desde os primeiros tempos da luta de libertação nacional que se verificava uma diferenciação marcante na cúpula do partido: havia uma direção “intelectual” (composta sobretudo de membros egressos das burguesia crioula e urbana) e uma direção “militar”, constituída por indivíduos oriundos das camadas sociais de camponeses, trabalhadores e artesãos. Durante a maturação dos anos de luta, e nesse contexto, o primeiro congresso do PAIGC, realizado em Cassacá (no sul do país), em 1964, foi decisivo: foi possível estabelecer-se uma aliança entre essas duas direções. Foi quando tomou corpo o projeto de transformação social através da educação e da escola, numa clara intenção de eliminar as diferenças étnicas através de uma revolução cultural. A implantação de novos valores – o partido, a nação, o Estado – só 312 313 Sobretudo desde o ano 2004, a anistia geral tem sido tema muito debatido na Guiné-Bissau, principalmente nos discursos políticos e na imprensa. Os motivos para essa anistia continuam a constituir um grande tabu do qual não se fala claramente em público e que têm a ver com a luta pelo poder que, depois da posse de Nino Vieira (1980) e da separação definitiva da Guiné-Bissau e do Cabo Verde (1981), provocou uma onda de assassinatos e perseguições (1985-1986), cujos efeitos ainda se fazem sentir. Mais um exemplo da flutuação da grafia na língua guineense. Grafa-se preferencialmente kasisa. Filinto de Barros preferiu a grafia mais próxima do português e mais fonética, pois o som em crioulo é sempre o correspondente à fricativa alveolar surda. Teresa Montenegro assim explica o que é esse ser amedrontador: “O kasisa erra permanentemente por espaços fora dos mundos estabelecidos. Sem lugar no mundo dos vivos, permanece marginal ao mundo dos espíritos: em terra de ninguém” (MONTENEGRO, 1992, p. 79). 278 podia entrar em conflito com as instituições da autoridade tradicional, sobretudo no seio das etnias islamizadas. Efetuada a independência, a “construção nacional” foi feita tendo como base a articulação entre o Partido e o Estado, orientada para apagar as diferenças étnicas (os etnicismos) e opondo-se firmemente a manifestações tribalistas, utilizando a coersão e a brutalidade para fazer valer sua autoridade. É Raul Fernandes, em quem me estou apoiando para desenvolver estas explicações, que esclarece: Esse discurso nacional, elaborado pela direção intelectual do Partido, justificava a violência legítima contra os obstáculos à edificação do Estado-nação, isto é, do aparelho de Estado centralizado sob o controle de uma burocracia política. [...] Esta violência dirigia-se contra os antigos comandos africanos, milícias africanas do exército colonial, e contra os chefes tradicionais. [...] Um grande número de chefes tradicionais acusados de crime contra a nação foram julgados e condenados à morte por estes tribunais populares (FERNANDES, 1993, p. 44). É todo esse período de repressão, sangue e perseguições que está por detrás dos pavores do velho Papai e da falta de paz do defunto ‘N Dingui. Como diz um dos antigos combatentes: “Para mim, a situação está clara! Esta cerimônia de que fala ‘N Dingui está ligada aos acontecimentos pós-independência. Isto quer dizer que o caso é mais sério” (BARROS, 1997, p. 133). Filinto de Barros não ousa ir até o fim em suas críticas, estando ele mesmo enredado na contradição de seu tempo e de sua inserção na história. Seria Cabral uma fixação apenas dos ingênuos antigos combatentes ou a figura máxima da independência não continua uma miragem também para os companheiros que com ele partilharam a causa comum? De quem é essa voz que exclama: “se Cabral ressuscitasse e visse o que está a acontecer com os seus combatentes e flores da Luta, teria fugido ou suicidava-se desta vez para sempre!” (ib., 64)? Kikia Matcho põe a descoberto, como foi visto, conteúdos não apenas históricos, mas também os sociais e os ideológicos, indagando indiretamente a origem dos problemas que se arrastam desde então até a atualidade. A versão popular se revela autêntica e desmoraliza a versão oficial. É possível recompor a história de Bissau da pós-independência através dos discursos das personagens desse romance. Os antigos bairros da cidade são descritos com nostalgia, sendo assinaladas as marcas da decadência e deterioração urbanística. O que fora outrora o reino dos Pepel, a etnia dona daquele “chão”, os invasores transformaram na cidade mais bonita do império colonial português, lembram os mais velhos, pois o colonizador conseguiu empurrar os antigos senhores da terra para a periferia. Mas as famílias tradicionais mudaram-se depois para bairros mais modernos, as hortas férteis, os jardins e as praças desapareceram por falta de cuidados, assim como os lugares sagrados dos nativos, abrigo de irans poderosos. Utilizando recursos memorialistas, o autor-narrador traça os contornos do território-coração da 279 nacionalidade, o centro nevrálgico do país – a capital – e conduz a narrativa dos acontecimentos da luta pelos meandros da lembrança de pormenores, de relatos de momentos circunstanciais, revisitando a História pela fala dos antigos guerrilheiros, humanizando-a. Contracenando com o país recém-nascido e ainda marcado pelas dores de um difícil parto, avulta a metrópole que se queria “terra mãe”, vista pelo ângulo dos que para lá emigraram, iludidos por promessas e sonhos. Como foi visto no capitulo 5, também ali, na periferia da grande metrópole, durante uma vigília que reuniu os emigrantes, o ficcionista serve-se daquele instante de congraçamento como pretexto para completar seu panorama histórico e social, apresentando uma galeria de tipos humanos, característicos da teia étnico-social da Guiné-Bissau depois da descolonização. 7.2.4 Fundação da nacionalidade No seu conjunto, Kikia Matcho encerra uma soma de informações sobre o processo da independência e os primeiros passos de um Estado em formação. Essas informações são a razão de ser da obra, a estória constituindo apenas um pretexto. Ao mesmo tempo em que informa, ativo participante que foi da gestação e do momento desse parto, Filinto de Barros mobiliza os diferentes níveis da narrativa, direcionando-os tanto para o exercício dialético da compreensão do processo quanto para o julgamento de seus resultados. Informação em nível do passado e interpretação em nível do presente, o romance deixa transparecer sombrias perspectivas para o futuro. Tem-se sobretudo uma constatação dos acontecimentos presentes com um olhar para o já acontecido, com o fito de esclarecer, explicar a situação atual. A história recente da GuinéBissau é exposta e relembrada em seus diferentes aspectos, ora através de comentários das próprias personagens, ora através de alargadas assertivas da parte do narrador. As marcas mais evidentes que permitem a interpretação do presente a partir de elementos recriados do passado apontam para uma crítica sem véus do comportamento da elite militar (os comandantes) em desacordo com os ensinamentos de Cabral que, em muitas passagens de seus escritos, tinha previsto essa atitude. Filinto de Barros escreveu um romance de revisão, de balanço geral de uma época, balanço feito por uma personagem histórica – o autor-narrador – que talvez tenha escolhido esse meio para um acerto de contas com a própria história que ele ajudou a construir. Para o atual impasse do país é preciso uma revisão, mais que isso, uma purificação antes de um recomeço. Partindo de alguém de dentro do sistema (e por isso mesmo seu profundo conhecedor) que não deve nem quer calar-se, um tal aviso é um aceno – ansioso? – em direção ao amanhã. Extrapolando as partes para o todo, metonimicamente, o país, às voltas com os efeitos do 280 “ajustamento estrutural” preconizado pela “política do desenvolvimento” (a partir de cerca de 1986) e da reforma do aparato político (a partir do multipartidarismo) e agora enredado nas teias da integração na comunidade francófona e nas malhas emaranhantes da globalização, o país está com os pés no mundo tradicional e com a cabeça voltada para o futuro, o país não conseguiu ainda sacudir de cima de si os kikias agourentos e atrasadores do desenvolvimento. O país é Papai, é Benaf, é Joana, nos dias de hoje como nos anos da pós-independência, turbilhonado no círculo vicioso e desesperante de crescente inviabilidade. O ex-combatente 'N Dingui, morto e transformado em kassissa, isto é, em ser que não é deste mundo, foi escolhido para dar mostras de arrependimento e, saindo do penumbroso mistério da morte, levar os vivos a corrigirem e a mudarem tudo o que aconteceu contrário aos ideais revolucionários. Tanto eles, os mortos como os vivos, precisam de cerimônias para libertarem-se do mal que foi feito e purgarem os erros da luta e, sobretudo, de depois da luta. É preciso que os vivos encontrem uma solução, um meio de purificação dos desmandos cometidos justamente pelos que foram um dia o instrumento da libertação do povo. A mensagem vem da boca dos mais simples, dos mais ingênuos como Papai e Joana, dos que acreditam sem pestanejar na força e no poder do kikia. É preciso verificar o que se fez. É preciso “enxergar mais longe e descobrir os beneficiários últimos das acções criminosas de 'N Dingui” (ib., p. 138), os verdadeiros autores, pois não havia dúvida que aquela revolução se tinha autodestruído, e que “teimava em afastar-se do caminho traçado” (ib., p. 140). É preciso que os comandantes escutem certas verdades (ib., p. 142). O kikia lá está, imóvel mas eloqüente, a fazer tremer os vivos314. A evocação da camaradagem e do companheirismo dominantes nos grupos revolucionários guerrilheiros, outrora unidos para a libertação do país, é um dos apelos constantes do discurso oficial hegemônico. A figura do soldado, heroificado pela sua bravura e seu sacrifício pelo bem comum, é uma figura ícone que povoa a imaginação nacional. O outro lado da medalha é o estado de abandono real em que os antigos guerrilheiros vivem, a precariedade das instalações dos quartéis, os baixíssimos salários que nem ao menos são pagos regularmente, nada disso é ficção. Sempre de novo, jornais e órgãos de ajuda humanitária, inclusive Amnesty International, denunciaram e continuam denunciando as condições subhumanas em que vivem os celebrados antigos combatentes. Mesmo personalidades históricas do passado, quando não são mais persona grata, vivem em extrema pobreza315. 314 315 Parte desta reflexão encontra-se em AUGEL, 1998a, p. 359-377; cf. também AUGEL, 1998b. Abdulai Sila escreveu um acre e comovente artigo a respeito de um desses guerrilheiros, seu antigo professor, que, como outros, deixaram a “Escola Missionária” de Catió para ir lutar ao lado de Cabral. Esse professor foi, inclusive, o inspirador de sua personagem no primeiro romance. Abdulai o foi encontrar em Bissau, em um hospital miserável, na mais completa penúria. “Doente há cerca de dez anos, Ramalho Incanha mantém-se igual a si próprio” é a frase final desse emocionante artigo, publicado no semanário Kansaré com o título “Apologia da barbaridade ou dilema de uma guinendade assumida“ (cf. KANSARÉ, 25.8.2004). 281 O pequeno exercício de ficção de Filinto de Barros resultou numa procura de sentido para o grande mito nacional que é a luta pela independência do país. As muitas maiúsculas em palavras como Luta, Combatente, Comandante, Partido (mas não só) emprestam ao texto uma certa força mítica e deixam transparecer a participação emocionada e engajada do autor. O romance Kikia Matcho desempenha sem dúvida um papel importante para a literatura e para a construção da idéia de nação e de nacionalidade guineenses. Filinto de Barros, norteado pela vontade de articular as razões e os porquês que levaram o país ao ponto em que está, procedeu a um resgate e a um ajuste de contas, pretendendo assim purificar a imagem desgastada do ainda tão jovem Estado-nação. O autor fez da lembrança onipresente da Luta o pano de fundo e o fio condutor da trama ficcional e na sua “abordagem do processo de síntese socio-cultural” do povo guineense colocou em primeiro plano os protagonistas-soldados Papai e ‘N Dingui, representando os milhares de anônimos combatentes pela liberdade da pátria. Desmascarando a imagem gloriosa dos valorosos comandantes e reduzindo-os à estreiteza de sua vaidade e de sua ganância, Filinto de Barros desconstrói o discurso da classe hegemônica, procedendo a uma nova cartografia, dando visibilidade aos soldados-aldeões, aos soldados-camponeses, aos soldados-artesãos, aos soldados-estudantes. A todos que permaneceram no anonimato, relegados ao esquecimento e à marginalidade, a esses o autor elege herdeiros do legado de Cabral, apontando-os como os verdadeiros responsáveis e dignatários da construção nacional. Sua ênfase recai sobre eles e suas “Apili”, a mulher combatente eternizada por José Carlos Schwarz, e sobre seus descendentes também desesperançados, espelhados em Joana e Benaf. O texto de Hobsbawm citado em epígrafe ressalta a dualidade formada pelos “representantes” da nação e pelos seus representados e aponta para a importância dos “de baixo”, o proletariado, a periferia, os marginalizados, aqueles que constituem o objeto da propaganda e do aliciamento e cujas “esperanças, necessidades, aspirações e interesses” (HOBSBAWM, 2002, p. 20) não são levados em conta. 7.3 A metonímia da nação: Abdulai Sila e sua Trilogia As obras que vou analisar em seguida, sempre sob o enfoque da narração da nação, revelam abordagens muito diferentes da encontrada em Kikia Matcho. Embora baseando-se nos mesmos fatos históricos, a ficção assume o primeiro plano, não preocupando seu autor a “verdade”, o “factual”. A narração da nação guineense se vai completando por meios ecléticos e enriquecedores. 282 Um dos traços mais marcantes da produção literária africana é o interesse pela questão dos novos poderes a partir da independência. Numa fase anterior, dominava a dicotomia entre a África antes e depois do colonialismo. Hoje em dia, a oposição se faz entre os sonhos do país emancipado e a triste realidade reinante, entre a utopia e a distopia, uma vez que o jugo de governantes inescrupulosos depois da liberação não difere, em muitos aspectos, do jugo colonialista. Os escritores, enfocando essas contradições, procuram captar a gênese e a significação do complexo fenômeno político que se está desenvolvendo em certos países e põem em dúvida a pertinência das antinomias colonização/descolonização, dependência/ independência. A constatação do caráter problemático da emancipação política, com toda sua carga de desilusões, desperta o escritor para uma certa relativização dos valores. A identidade cultural continua a procurar meios de desenvolver-se, e mesmo definir-se, o que não aconteceu com o simples ato da independência – precisa ser assegurada numa luta permanente pela autodeterminação, tendo que contar com elementos perturbadores adversos vindos do subdesenvolvimento, da autocolonização e da necessidade de modernização. Abdulai Sila, o primeiro romancista guineense, brindou-nos até o presente com três romances, publicados em Bissau num espaço de quatro anos (1994, 1995, 1997)316. Embora haja um salto estilístico e qualitativo entre os dois primeiros romances de Abdulai Sila e o terceiro, pretendo mostrar que para todos os três o denominador comum é, por um lado, a decepção pelo insucesso da política depois da descolonização e a denúncia dos responsáveis e, por outro lado, a desconstrução do discurso “pedagógico” de que fala Homi BHABHA (1998, p. 209), acenando para uma nova narração da nação. Os três romances desenvolvem-se em tempos e em espaços diversos: em A última tragédia, a ação se situa na época colonial e as referências às localidades Quinhamel, Biombo, Catió, Bissau tornam evidentes o palco dos acontecimentos. Eterna paixão articula-se durante a época da pós-independência, num país africano não nomeado. Muitas passagens, em estruturas de encaixe317, levam os leitores às lembranças de ocorrências nos Estados Unidos, onde os protagonistas estudaram e se conheceram. A ligação entre a postura do protagonista e as idéias do pan-africanismo americano é, a meu ver, um recurso do autor para articular sua visão realista 316 Foi feita uma reedição em Cabo Verde, abarcando os três romances, e que traz como título Mistida, com o subtítulo Trilogia, publicação promovida pelo Instituto Camões da cidade de Praia, em 2002. Para as citações, utilizarei a primeira edição de cada obra. 317 Todorov desenvolve esse conceito de encaixe em As estruturas narrativas (1970), no capítulo “Os homens narrativas”, no item “Digressões e encaixes” (p. 123-127): ”A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a interrupção da história precedente, para que uma nova história, a que explica o “eu estou aqui agora”, da nova personagem nos seja contada. Uma história segunda é englobada na primeira; este processo se chama encaixe” (TODOROV, 1970, p. 123). 283 e desconstrutora do mito “África umbigo”318. Em Mistida, o autor ambienta seu texto num tempo imaginário, sem datas, mas podendo-se inferir tratar-se da época atual, quando os efeitos da decepção chegam a extremos. Os locais também são vários, sem designações concretas, embora fáceis de serem descobertos pelos guineenses. Um texto desconcertante, crítico e insurgente, mas ao mesmo tempo revelando grande ternura humana. 7.3.1 As três faces de Ndani Para tentar compreender o fracasso da independência, o escritor faz recuar a ação de A última tragédia (1995) ao período colonial, procurando aí uma explicação para a origem e as causas dos males atuais. Como disse Carlos Lopes, “o romance de Sila é uma ilustração do debate de classes numa sociedade dominada pela relação cultural, política e econômica das raças” (LOPES, 1995a, p. 18). Sila mostra-se especialmente hábil em captar os conflitos entre a mentalidade do colonizador e a dos nacionais. A ação se passa em parte na capital, onde o poder e a influência do colonizador eram muito marcantes, mas sobretudo em localidades rurais do interior, pertencentes ao mundo tradicional africano: Quinhamel e Biombo são pequenos povoados próximos a Bissau, Catió está mais distante, é a cidade natal do autor, no sul do país. Já me referi no capítulo 5 a Ndani, que fugiu de sua aldeia natal para escapar da profecia de que seria portadora de má sorte; indo para a capital, onde conseguiu trabalho como empregada doméstica em casa de um casal português. Ela tinha preparado minuciosamente a viagem. Ninguém sabia de nada em Biombo. Ninguém, a não ser a sua madrasta amiga. Com ela aprendera aquela frase que estava repetindo vezes sem conta.[…]; aprendera inclusive algumas regras do comportamento que os patrões brancos exigiam dos criados pretos, maneiras próprias de responder, gestos indiciadores de obediência e de subserviência. [...] Sinhora, quer criado? (SILA, 1995, p. 10-11). Naquele “mundo tão diferente”, a jovem familiarizou-se tanto com a língua como com os costumes portugueses, tendo aprendido também que os senhores brancos eram em tudo superiores. Exigindo obediência absoluta, esperavam que os criados não só acatassem as ordens recebidas, como também internalizassem os ensinamentos que lhe queriam incutir. Dava-se, entretanto, o que Appiah já tinha referido, em seu livro Na casa de meu pai: “os colonizadores superestimam o alcance de sua penetração cultural” (APPIAH, 1997, p. 25). Assim acontecia com os patrões de Ndani e a jovem sabia como adaptar-se sem, com isso, assimilar-se: 318 Como a trama de A última tragédia é cronologicamente anterior a de Eterna paixão, tratarei primeiro do segundo romance que, além disso, foi escrito antes, já em 1984. Na Trilogia (2002), aliás, os três romances aparecem na ordem em que foram escritos e não naquela em que foram publicados. 284 O fundamental é fazer o que o patrão quer, isso ela tinha aprendido à parte, à sua própria custa. [...] O patrão quer que o criado vá dormir cedo, o criado vai para a cama, dormir é outra coisa. O patrão quer que o criado vá a igreja, o criado vai; se for durante a hora de serviço, tanto melhor. [...] De qualquer maneira, o melhor era sempre evitar problemas, a gente nunca sabe onde pode chegar a raiva do branco. [...] A cozinha era agora como um reino dela, ela é que mandava. Dona Linda não interferia, nem mostrava muito interesse (SILA, 1995, p. 30-31). Mais tarde, Ndani foi escolhida como a sexta esposa do régulo de Quinhamel, um chefe muito respeitado, cheio de sabedoria e idéias muito pessoais de liberdade e dignidade. Também aqui Abdulai Sila vai de encontro ao discurso hegemônico da época que insistia em pintar os “nativos” como ignorantes, ingênuos, incapazes, justificativa para o paternalismo e a expoliação. O chefe daquela comunidade tinha uma postura de digna independência e, se mandava presentes ao branco e aparentemente se submetia, fazia-o, na verdade, por conveniência. Mesmo para seus subordinados, sua maneira de pensar era por demais avançada: Ele tinha posto três cabeças a juntar à sua. [...] Arranjou três Homens-Grandes e pô-los perto de si. [...] Disse que eram seus Conselheiros, coisa que causou confusão em toda a tabanca. No começo, tanto os parentes como os amigos não quiseram entender. [...] Até porque, bem vistas as coisas, um régulo não precisa de conselhos. Se é um trabalho para fazer, ele fuma uma ordem e acabou. Se é problema de imposto, há cipaios no Posto. Se é um caso de conflito na tabanca, ele dita a sentença e é tudo. Os outros têm que obedecer e mais nada. Quem não obedece, apanha castigo. Foi sempre assim em todo o lado. Nunca nenhum régulo em Quinhamel tinha tido conselheiros (ib., p. 51-52). Mas Ndani foi por ele rejeitada na noite nupcial por não ser mais virgem, uma vez que tinha sido violada pelo antigo patrão. O desgosto e a humilhação acabaram levando o régulo à morte. Do conhecimento com o jovem professor da tabanca, formado no seminário católico da capital, idealista, altivo e dedicado ao seu trabalho, nasceu a paixão da vida de ambos. Depois da morte do régulo, enfim livres, os dois partiram para tentar a sorte em outra parte, na distante cidade de Catió. No meio da felicidade que julgavam ter conquistado para sempre, rodeados dos filhos, ambos úteis e respeitados na comunidade onde se tinham integrado, de repente tudo se desmoronou: durante um jogo de futebol, deu-se um atrito com o Administrador; o Professor reagiu com violência, não aceitando as ofensas e a agressão corporal que lhe fez o branco, tal como, muitos anos atrás, seu pai tinha reagido, esbofeteando o chefe de posto tendo, com isso, adquirido fama legendária. A vingança da parte do poder local não se fez esperar: o Professor foi acusado de ter assassinado o administrador, misteriosamente encontrado morto. De nada adiantaram as provas de sua inocência e ele foi condenado e degredado para São Tomé. A maldição que sempre acompanhou Ndani destruiu sua felicidade e continuou a persegui-la. Mais uma vez Abdulai Sila sabe emprestar a essa figura feminina, como o fez anteriormente com Mbubi, em Eterna paixão, uma força simbólica e catalizadora que impregna toda a trama romanesca. Os três diferentes caminhos percorridos por Ndani exemplificam, de certo modo, os destinos da mulher africana: como criada dependente dos patrões estrangeiros, 285 como esposa num casamento forçado, como mulher livre e segura de si que escolhe ela mesma seu companheiro e enfrenta todas as convenções sociais por esse amor. A figura do professor como protagonista é recorrente na obra de Abdulai Sila319 e a maiúscula com que costuma grafar a palavra assinala o respeito e a importância que o autor atribui à tarefa de ensinar, ao mesmo tempo em que, de certo modo, idealiza a personagem, elevando-a a ícone. Sabe-se que o sistema colonial na “Guiné Portuguesa” foi criminosamente ausente em matéria de educação320. Abdulai Sila reverte a situação e atribui ao régulo a iniciativa de, com seus próprios meios, construir uma escola em sua aldeia e contratar um professor por ele mesmo escolhido, africano e filho daquela terra: Não tinham ouvido falar da escola? Pensam que aquilo foi ideia de algum branco? [...] Foi ele que insistiu, uma escola fazia muita falta em Quinhamel. [...] Foi ele quem disse que tinha dinheiro para construir a escola, os outros tratavam só do professor, que aliás até já tinha identificado um professor competente para pôr lá. [...] A escola é primeiro que tudo um sítio onde as pessoas aprendem a pensar. É isso mesmo: aprendem a pensar. Depois é que vem o resto (ib., p. 80-81). É na pessoa do régulo que queria centrar minha atenção para tratar da narração da nação nesta obra de Abdulai Sila. A convergência entre a cultura européia (no caso portuguesa) e a africana tradicional pode mesmo acontecer – e aconteceu em muitos momentos – mas trata-se de um processo traumático, envolvendo transformações políticas e sociais por muitas gerações. E, sobretudo, não foi essa a regra geral na “Guiné Portuguesa”. Durante o regime colonial, a administração e seus regulamentos estavam divorciados da vida social de base local, o que não impedia que, muitas vezes, por oportunismo ou conveniência, o sistema político colonial estabelecesse uma aliança entre a representação do poder colonial local e os poderes tradicionais; essa aliança foi, durante o período das lutas libertárias, um dos pilares do poder colonial, procurando enfraquecer o adversário, acenando com certas vantagens e dividindo os africanos. Não pagar o imposto obrigatório para toda a população era, por exemplo, um privilégio concedido aos régulos. Com isso, Portugal opunha-se à estratégia do PAIGC que defendia a transformação social a partir de uma igualdade alargada e horizontal, não aceitando as prerrogativas do poder autoritário desses chefados “tribais”. Os régulos “evoluídos”, que recusavam a colaboração e a aliança com o colonizador, eram considerados “como o núcleo da subversão donde saem os chefes e os pioneiros da rebelião” (FERNANDES, 1993, p. 43). 319 320 Já Domingas SAMY, em seu livro A escola (1993), coloca igualmente em evidência o papel da educação. Cf. a respeito AUGEL, 1998a, p. 321-329; AUGEL, 1994b; AUGEL, 1993. Havia um duplo sistema, o ensino primário elementar e complementar, promovido pelo Estado colonial, destinado aos civilizados dos centros urbanos, calcado fielmente nos programas de ensino da metrópole; e havia o ensino primário rudimentar (mais tarde denominado de adaptação), sob a tutela das Missões Católicas, oferecido aos indígenas, com a finalidade de ensinar a falar, a ler e a contar em português (MENDY, 1993, p. 6). 286 Não gostou de ouvir essa história. O Chefe afinal só queria gozar com ele! Ele lhe tinha comido um porco gordo e um bode capado e ainda queria fazer teste com ele. Teste para quê? Então os outros Chefes não lhe disseram quem ele era e como ele era? [...] Tinha que encontrar uma forma de se vingar daquela partida. Dois dias sem dormir, só a pensar na vergonha que era ele também ter que pagar imposto. O que é que pensaria então a população? [...] Se todos tinham que lhe dar respeito era porque viam que o branco também lhe dava respeito. Não pagava imposto obrigatório e isso era prova de respeito. [...] Significava que mesmo o branco sabia que ele não era um indígena qualquer. Não era assimilado, mas indígena também não era. Porque um indígena qualquer como os outros pagava imposto todos os anos e tirava o chapéu da cabeça sempre que via o Chefe perto (SILA, 1995, p. 57-58). No romance em pauta, Abdulai mostra um caso diametralmente oposto. O régulo, a autoridade tradicional daquela comunidade, fazia uma oposição clara e aberta ao chefe do posto e ambos viviam em permanente confrontação. O romance A última tragédia espelha muito bem, como se pode ver na citação acima, a tensão existente entre o administrador português do lugarejo e o chefe tradicional da tabanca321. O Régulo de Quinhamel é exemplo da resistência dos Pepel – e não só – contra o jugo opressor. É através do testamento do Régulo que o autor faz transparecer sua mensagem política. As idéias do Régulo Bsum Nanki, bastante simples e evidentes, são expostas de forma pitoresca e se podem resumir em poucas linhas: duas cabeças valem mais do que uma só; todo corpo tem uma cabeça; não é por acaso que a cabeça tem só uma boca, mas dois olhos e duas orelhas; o régulo deve ter conselheiros, outras cabeças que o ajudem a pensar. Com bons conselheiros não se precisa de polícia. Só pode mandar quem sabe pensar. São os moradores da tabanca que escolhem o chefe, mas isso não são eleições, pois essa instituição dos brancos só traz confusão (ib., p. 91-95). Haveria ainda o “plano do Régulo”, uma estratégia para expulsar os invasores da terra que não lhes pertencia. Mas esse plano não chegou a ser revelado, o “Homem grande” morreu com seu segredo. Quinhamel representa aqui um microcosmo territorialmente circunscrito e que é dado a conhecer pela ação e liderança do régulo Bsum Nanki. Abdulai Sila empreende sua narração da nação demarcando e delimitando bem claramente as fronteiras simbólicas entre um “nós” e um “outro”. O autor lança mão de símbolos tirados tanto do ambiente rural da tabanca, do mundo africano com seus usos e costumes específicos, suas regras e sua hierarquia, a crença no sobrenatural e no encantamento. Quinhamel é o mundo do “outro”, em oposição ao primeiro espaço, o da capital: a igreja e o catolicismo, a escola, a casa luxuosa e grande, com os requintes da vida moderna, a pretensa superioridade do dominador. Ao buscar a sexta esposa com brilhos e 321 As relações de força entre as classes sociais e o tratamento dado aos poderes tradicionais locais nem sempre foram tranqüilas, nem seguiram a mesma estratégia: tanto houve aceitação e colaboração integrativa, como total repúdio e mesmo sangrentas perseguições. Sobre esse relacionamento ao longo da história guineense (primeiro durante o período da luta de libertação nacional, depois o da construção do Estado nacional e após a transição democrática a partir de 1980), cf. FERNANDES, 1993. 287 educação da cidade, mas pertencendo à comunidade autóctone; ao chamar como professor um africano formado pelos missionários, mas profundamente envolvido com os valores da sua própria cultura; ao conceber um régulo livre-pensante, capaz de romper com certas tradições e abrir-se às inovações positivas que pudessem beneficiar seus subordinados, resistindo e reagindo orgulhosamente às humilhações e ao autoritarismo daquele poder instituído a partir de fora, Abdulai Sila consegue empreender a quadratura do círculo reunindo o tradicional com o moderno para assim compor sua nação imaginada, fundando uma (nova) alteridade que põe em relevo a descontinuidade entre o “mundo do preto” e o “mundo do branco”. Sem lançar mão do apelo à luta pela libertação nacional, essa está subliminarmente presente, prenunciada pelo espírito independente, pelo amor-próprio e pela liberdade de pensamento do Régulo, do Professor e de Ndani. 7.3.2 A terra para onde “a gente pode regressar” Em Eterna paixão (1994), a trama se desdobra a partir das vivências do afro-americano Daniel Baldwin que, depois de formar-se em engenheiro agrônomo e casar-se com Ruth, jovem universitária africana e idealista como ele, emigra para um país cujo nome não é revelado, influenciado pelas idéias pan-africanistas de Marcus Garvey322, disposto a contribuir com seus conhecimentos e seu trabalho para a construção daquela nação, recém-libertada do jugo colonialista. O convite para aderir ao AC [African Commitee] fora lhe feito pela primeira vez por um colega da Flórida, Mark Garvey, filho de emigrantes jamaicanos, com o qual partilhava o apartamento. [...] Falava-lhe com frequência das lutas de libertação contra os colonialistas, das potencialidades do continente e dos progressos nos diferentes domínios com tanto orgulho que às vezes parecia-lhe ser Mark africano ou ter lá estado alguma vez. E quando um dia lhe perguntou porque tanto interesse ele simplesmente respondera: “É o nosso continente, a terra dos nossos avós. E qualquer dia a gente pode regressar” (ib., p. 34). Na África, graças à boa formação acadêmica que tiveram, Daniel e Ruth ocupam altos cargos técnico-administrativos, gozam uma boa situação financeira mas, com o tempo, o casal se distancia um do outro, Ruth deixa-se corromper pelo capital estrangeiro contra os interesses do país, afasta-se cada vez mais dos valores africanos e dos ideais por que lutara: “Pois bem, eu assinei o contrato, sim. E depois? E mesmo que tenha recebido uma comissão, onde é que está o 322 Marcus Garvey (1887-1940), jamaicano, apoiou a luta dos afro-americanos em prol de maior justiça e menos discriminação. Foi o idealizador do Pan-Africanismo e fundador da Universal Negro Improvement Association (1914), que esteve à frente de um movimento que preconizava a volta à África (Come back to Africa), de grande repercussão nas décadas de vinte e trinta nos Estados Unidos. No romance, o estudante Mark (e não Marcus) Garvey é colega de Daniel e é referido como exercendo grande ascendência sobre os demais, inclusive sobre o próprio Daniel (cf. SILA, 1994, p. 34 e ss.; p. 50-51). 288 mal? Quem é o anjo neste país que não recebe comissões?” (ib., p. 27). Daniel, completamente identificado com suas raízes africanas, depois de ter sido perseguido politicamente, preso e torturado, e de ter perdido a ilusão de poder contribuir em alguma coisaem nível de governo, abandona a capital e vai fundar na aldeia natal de Mbubi, sua antiga empregada, uma comunidade que em pouco tempo se torna exemplar, de nome Woyowayan. À primeira vista um local fictício, produto da imaginação do autor, Abdulai Sila tirou o nome da comunidade modelo do lugarejo Woyowayan-Ko (cuja grafia pode variar: WèyãWèyãnko ou ainda Wèyãnko), situado em território da atual Guiné-Conakry, nas proximidades da fronteira com o Mali. Inspirou-se no episódio histórico ligado à gesta de Samori Turé (1830-1900), um dos maiores e mais famosos chefes africanos, ferrenho e incansável opositor do domínio francês na África Ocidental, finalmente vencido e aprisionado em 1898323. A partir do esboço de uma sociedade ideal, a aldeia de Woyowayan reflete tanto a visão do autor a respeito da política, da economia e da organização social de uma comunidade, quanto igualmente revela seu posicionamento face à realidade que o rodeia, diagnosticando os males e as mazelas dessa realidade. Woyowayan é metonímia da nação imaginada por Abdulai Sila que acredita – e nos estimula a acreditar – na possibilidade de uma transformação. Não é por acaso que o autor escolheu uma pequena aldeia tradicional para ali fazer o protagonista realizar seu projeto de desenvolvimento, numa antecipação do que hoje em dia tantos pensam para a África: um respeito e um aproveitamento do tradicional conjugados com a aplicação de um modelo de desenvolvimento integrado e adaptado às reais necessidades do país. A discussão entre Daniel e Ruth sobre o uso ou não de técnicas estrangeiras mostra que a crise conjugal e o distanciamento entre os dois tinham a ver justamente com posições ideológicas e políticas díspares: Lembra-te dos teus discursos nos comícios e nas palestras na Universidade. O que é que dizias? Lembras-te? Que a África, para se desenvolver, precisava de novas tecnologias, de tractores, máquinas, etc. Pois aí tens, meu caro. Vamos fazer exactamente isso! Meter aqui mais máquinas, mais tecnologia, moderna tecnologia. Tens agora algo contra isso? Responde! Não me digas que descobriste que os teus famosos discursos, todo aquele palavreado que botavas tão convicto cá para fora, não passava de mera demagogia. Ou será que queres ser mais papista que o Papa... (ib., p. 28). Cabe aqui lembrar a afirmação de Stuart Hall segundo a qual “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” (HALL, 2000, p. 48). O afro-americano Daniel Baldwin trocou as roupas ocidentais pelas tradicionais africanas, “aprendeu com espantosa facilidade a língua e os costumes. Escrupulosamente, respeitava as tradições e os anciãos” (ib., p. 129). Era conhecido 323 Sobre os acontecimentos históricos ligados a essa batalha, cf. PERSON, 1968, p. 407 e ss. 289 apenas como “o Professor”. Daniel Baldwin escolheu um outro caminho para ajudar o país que tinha elegido como sua pátria, a via para o “desenvolvimento sustentado”. E o pôs à prova em Woyowayan onde a utopia havia se tornado realidade A escola foi o primeiro empreendimento. Encheu-a de crianças e adolescentes. O clube da juventude foi o passo seguinte. [...] Depois foi a cooperativa dos agricultores e falouse num tractor. E a máquina chegou antes que pudessem acreditar na ideia. Seguiram-se outras realizações. A vida em Woyowayan mudou. Mudou profundamente. Depois foi a vida das tabancas vizinhas. Era como o fogo numa lala na estação seca. Não tardou muito foi anunciada a corrente eléctrica. Ela chegou brilhando, acompanhada do posto de saúde, onde um enfermeiro e uma parteira concorriam com os yrans e marabus (ib., p. 129-130). Uma das originalidades de Eterna paixão é ter como protagonista um afro-americano que imigra para a África, num desejo de regressar para a terra de seus avós. Para os descendentes de africanos nas Américas, marcados pelo estigma da escravidão, a imagem da África representa um papel de suma importância, se bem que de modo nenhum uniforme e único324. Para Daniel, primeiramente, “tal como acontecia com a quase globalidade dos afroamericanos, para ele a África era qualquer coisa de atrasado, ruim, horrível, cuja referência convinha evitar sempre que possível” (ib., p. 33). Não é por acaso que é justamente a partir da segunda metade do século, com as lutas de independência dos povos africanos e mais tarde com o crescente protesto contra a segregação racial na África do Sul, que o continente africano se vai tornando mais concreto e mais conhecido, verificando-se uma nova articulação de grupos negros no mundo inteiro e um recrudescer da literatura de expressão negra. Essa tomada de consciência fez Daniel olhar a África de forma mais concreta, seja por passar a reconhecer as raízes de suas origens (“É o nosso continente, a terra dos nossos avós”; ib., p. 34), seja pela empatia que une todos os que lutam pela liberdade ou contra o racismo e todas as formas de opressão. Assim, as guerras de libertação fizeram enfocar a África numa nova ótica, contribuíram definitivamente para a mudança dessa imagem negativa e vergonhosa. Para o protagonista Daniel, os acontecimentos empolgantes do início de uma nova era do continente africano levaram o afro-descendente a sentir-se não apenas solidário, mas mais ainda, uma parte integrante desse mundo, impelindo-o a 324 Para os autores afro-brasileiros essa ligação com a África-mãe é um tema recorrente. Oswaldo de Camargo, em “Oferenda“, confessa essa íntima ligação: “Como sonhei falar, sozinho, à minha mamãe África, / e oferecer-lhe, em meu peito, nesta noite turva, / os meus pertences de vento, sombra e relembrança, / o meu nascimento, a minha história e o meu tropeço / que ela não sabe, nem viu e eu sendo filho dela!” (CAMARGO, 1984, p. 52). E Márcio Barbosa assim se expressa: "A África em mim / sou eu que me renovo / nas raízes férteis de um sonho humanitário / um sonho nascido aceso / no amanhecer do meu dia solitário [...] A África em mim / Dispersa em meu sangue plantada à deriva / no olho alongado do medo / do meu viver indomável / de rica pretice da pele / [...] Mitificada Savana / do meu renovado humanismo. (BARBOSA, 1984). Ou ainda Oliveira Silveira, em “Elo”: “Aqui meu umbigo túmido, / receptor de seiva / neste lado do mar, / nesta longe placenta. // E África lá está / na outra extremidade do cordão” (SILVEIRA, 1981, p. 3). Sobre a imagem da África na literatura afrobrasileira, cf., entre outros, AUGEL, 1997d. 290 lá ir viver, convencido de ser aquela a terra para onde “qualquer dia a gente pode regressar” (ib., p. 34)325. Há aspectos de uma cultura nacional que distanciam o indivíduo do lugar de origem e o impelem para uma direção diferente, provocando uma ambivalência, ou ambigüidades. Para o afrodescendente, não são apenas sentimentos positivos que lhe são despertados em torno da terra dos antepassados, impossível de ser dissociada da sua tortuosa formação histórica, social e política. Todo aquele que conhece a literatura ou a música afro-americana, afro-antilhana ou afrobrasileira experimentou também a emoção transmitida pelos textos referentes à África, freqüentemente símbolo de um passado feliz e sem degradação, sinônimo de uma época de equilíbrio e de harmonia, em que a ordem social não fora ainda alterada pelo tráfico de escravos. É o lugar da liberdade anterior ao cativeiro e por conseguinte da ausência da opressão social, das misérias econômicas, lugar de redenção. Nascido e criado em alguma parte do Novo Mundo, estigmatizado pela afrontosa herança histórica, é comum o afrodescendente sublimar suas frustrações e catapultar seus sonhos para o outro lado do Oceano. Pela sua experiência de injustiçado, discriminado, empurrado para a margem de uma representação nacional eurocentrada e hegemônica, encontra um outro território, muitas vezes somente em sua imaginação ou no nível psicológico e sentimental, onde pode satisfazer sua demanda de pertencimento, de aceitação, de realização enfim. Daniel, com a vida que escolhe levar depois de abandonar a terra natal, sente-se recompensado de todas as humilhações e dificuldades por que passou a ponto de auto-identificar-se como africano, negando ser estrangeiro, apresentando-se como “filho de emigrantes” (ib., p. 105). O jovem idealista emigrou de fato, imbuído do “Espírito de Luta pela Dignidade do Africano”, como pregava Garvey. Sua postura enquanto estudante já anunciava essa preferência e assim, “quando foi à embaixada anunciar o seu casamento com Ruth ninguém pareceu surpreendido com a notícia. Surpresa, mas uma enorme surpresa, só surgiu quando Dan foi buscar o visto de entrada, na véspera do dia de partida para África (ib., p. 61). No final do romance, depois de vários anos no interior, naquela aldeia de sua eleição, ao ser interrogado por um amigo que tentava aliciá-lo para voltar para a capital e lá colaborar com o novo governo que acabava de se constituir, repetindo e ampliando a experiência de Woyowayan, Daniel em resposta, levou-o até a escola, depois ao posto de saúde e finalmente aos campos cultivados, declarando cada vez simplesmente: “Eis a minha paixão”. Sim, era arrebatador o sentimento por aquele pequeno território e pelo muito que ali havia conseguido, com a total 325 Vale a pena recordar que a Libéria, país da costa ocidental africana, é o resultado da reunião de pequenas colônias de afro-americanos, antigos escravos, que ali se estabeleceram, inicialmente como colônia americana, mas independente desde 1848/49. Também ao sul da Guiné-Bissau houve uma tentativa de ali estabelecer-se uma colônia para os ex-escravos daquele país e para emigrantes ingleses. 291 colaboração de seus habitantes. A Daniel, decepcionado com o amor que sentira pela esposa, bastava essa grande paixão que passou a ser a razão de sua existência. Doris SOMMER (1994) escreveu um texto muito original sobre amor e pátria na América Latina, a partir da comparação de certas reflexões em torno das obras de Michel Foucault e Benedict Anderson, baseando-se nas edições em inglês desses autores (respectivamente History of Sexuality, 1980, e Imagined Communities, 1983). Nesse artigo, ela estabelece um paralelo entre o amor físico, tal como é apresentado nos romances sentimentais, onde muitas vezes os amantes não conseguem realizar sua união (ou precisam vencer muitos obstáculos alheios à sua vontade) e o amor pela nação, também um corpo limitado, territorializado. A autora argumenta que, assim como cada barreira que os amantes encontram faz crescer mais o desejo de serem um casal, no plano político acontece o mesmo. Embora os dois níveis de desejo sejam diferentes, tanto o amor carnal como o amor pela pátria, quando se deparam com motivos de decepção, de insatisfação, de afrontamento, muitas vezes recrudescem e se acendem ainda mais (SOMMER, 1994, p. 170). O impasse político pode servir de estímulo e a esperança (ou promessa) de consolidação ou realização alimenta a paixão política e, conseqüentemente, o sentimento nacional e o patriotismo. A comunidade imaginada de uma nação, segundo Anderson, lembra a articulista, herda ou se apropria de um espírito de sacrifício, “misticamente infletido a partir dos sistemas culturais religiosos", que “seria inimaginável em ideologias autoconscientes” como o marxismo ou o liberalismo, escoradas num tipo de cálculo de custo-benefício. E, citando Foucault, a articulista diz que se trata de sentimentos como o amor patriótico que podem levar à “insanidade de massas de povo morrendo para salvar o ‘povo’” (SOMMER, 1994, p. 177), se o corpo-nação é vilipendiado, violado ou ameaçado. Continuando seu paralelo, refere-se a Anderson, que sustenta que o nacionalismo torna possível a “tantos milhões de pessoas, não tanto matar, como morrer voluntariamente por tais imaginações limitadas” (SOMMER, ib.). A Carlos Lopes, prefaciador de Eterna Paixão, já tinha ocorrido uma comparação análoga, e com isso se vê ratificada a original abordagem de Doris Sommer: O casamento é um acto de respeito. [...] Para nós, geração das independências, a modernidade urbana permitiu-nos conhecer o casamento já com nova batina. O amor, a dimensão emocional e afectiva são os pilares indefesos da nossa ligação que se pretende honrosa, senão cultivada, em vez de imposta ou fraudulenta. Não, não quero entrar nas lições de moral, mas apenas expor um fenómeno raro das nossas gerações: o casamento com o país, a terra, a pretensa nação em construção. Essa é uma ligação tão forte, amorosa, afectiva e emocional, que nos levou uma boa parte da vida e das vontades. É dessa relação que Abdulai Sila nos dá conta (LOPES. In: SILA, 1994, p. 7). 292 7.3.3 O tratamento do inverso: mistidas a safar Vimos que, para Abdulai Sila, Woyowayan seria, metonimicamente, a nação, tal como o escritor a sonha e a quer. Mas o escritor trata também de desconstituir o próprio culto da nação e realiza isso com seu terceiro romance Mistida (1997), onde põe a descoberto um universo de contestação formulado por uma insólita estratégia narrativa e um aparato simbólico ao mesmo tempo desconcertante e fascinante. Trata-se de uma obra extremamente original que, no dizer de Teresa Montenegro em seu prefácio à primeira edição, é Uma ficção que reflecte, por um lado e sobretudo, a flagrante crise de sentido que percorre globalmente o mundo em que vivemos e, por outro, e de maneira acertadamente caleidoscópica, a multiplicidade de estratégias individuais postas em jogo na procura de saídas e de novos sentidos que permitam sobreviver à desestruturação (MONTENEGRO. In: SILA, 1997, p. 11). Abdulai Sila, com seu terceiro romance, tanto abre novos espaços dentro da literatura guineense e mesmo africana como desafia o discurso hegemônico legitimador dos detentores do poder no país. Na Guiné-Bissau, depois da independência, a legalidade foi ficando cada vez mais enfraquecida pelos abusos crescentes do governo. A existência da nação estava em perigo, marcada por um tenebroso sentido de viver nos limites insuportáveis de um presente inominável que já não se sustentava. Abdulai Sila procura exprimir sua decepção e sua preocupação através de estratégias de representação lançando mão da transgressão às leis da narratologia tradicional em um decalque metonímico e metafórico do estado de espírito de muitos guineenses diante de suas esperanças frustradas. E o escritor manifesta-se desmoronando, por sua vez, o valor do sentido discursivo representado pela racionalidade que articulou a lógica dos governos e governantes pósrevolucionários. O sonho de uma nação fundada no progresso e na real independência (econômica, social, política) estava transformado em pesadelo caótico. O autor busca, nos dez episódios de Mistida, outras formas de representação, outras metáforas para imaginar sua comunidade, outras fontes simbólicas e afetivas (BHABHA, 1998, p. 199) para tramar a narrativa da nação (ib., p. 202). Mistida, cujo significado multifacetado dá lugar a muitas leituras, é o único livro de Sila com o título na língua guineense. O termo mistida, sem explicação em parte nenhuma do texto, tem vários sentidos e Sila joga intencionalmente com sua polissemia, embora para qualquer guineense bem informado seja bastante clara a significação desejada, escolhida pelo autor. A palavra vem do verbo misti, muito comum em crioulo, com origem bem clara no português antigo, derivando da expressão original latina ministerii (est), remanescente ainda nas expressões é de mister, é mister, tendo entre outras acepções, a de “ofício”, “ocupação”, “incumbência”, ou “propósito, meta, fim” (FERREIRA, A., 1999). Biasutti, em seu Vokabulari kriol-portugîs 293 (1982), dá como correspondente em português vontade, cobiça, necessidade, enquanto que o verbo misti é usado na acepção de querer, preferir, desejar, cobiçar. Na Guiné-Bissau, o termo mistida é hoje em dia empregado na acepção de “negócio”, "algo a ser realizado em proveito próprio", e é às vezes conotado com uma valoração negativa. Sila aportuguesa a expressão crioula safa mistida para safar uma mistida, expressão coloquial que significa tratar e resolver os próprios assuntos, satisfazer uma necessidade ou um desejo (SCANTAMBURLO, 2002), realizar um negócio ou uma tarefa. E é a partir dessas muitas tarefas a executar, das mistidas a safar, que talvez se possa captar o sentido subjacente do livro de Abdulai Sila que, na verdade, dá pistas para múltiplas interpretações. O autor afasta-se do discurso dos mantenedores do poder, dos políticos profissionais e envereda por caminhos conscientemente desconstrutores, pondo à mostra o avesso das representações da nação familiares e correntes. Em Mistida, Abdulai Sila continua, e com mais agressividade, sua linha de crítica social, a dissecação dos males presentes nas sociedades africanas, com o afiado bisturi de sua palavra, revelando uma intenção transfiguradora da realidade retratada. Indagado a cerca do sentido do termo, Sila explicou: 'Mistida' significa amor, desejo, ambição, afazer, etc. No entanto deve-se salientar que, ultimamente, este termo tem adquirido outros significados, que não têm nada a ver com a sua origem etimológica, nomeadamente, negócio, compromisso, etc. De facto, o seu significado só pode ser determinado no contexto de uma frase específica, tantos são seus possíveis significados e/ou sentidos. Deste modo, safar uma mistida (esta é a expressão que se usa) pode significar tanto ir beber um copo de vinho de caju, como concretizar um negócio, participar numa reunião do partido ou ainda fazer amor com uma amante" (HAMILTON, 1999, p. 20). Os belos prefácios de Teresa Montenegro à primeira edição (1997) e à segunda (Mistida. Trilogia, 2002)326 trazem muitas luzes para a compreensão do livro. Da mesma forma, a entrevista que abre o volume da Trilogia (p. 7-16), concedida pelo autor a Fernanda Cavacas, acrescenta novos e preciosos esclarecimentos para essa obra polissêmica e instigante, onde alusões a acontecimentos (passadas como o autor as chama muitas vezes) e personagens históricas do momento, bastante caricaturadas. se emaranham com as lembranças sempre atuais da “luta”: é o seguinte: a mistida nasceu de um roubo. [...] Tratava-se de roubar o cérebro a uma pessoa – e não se diz se é homem, mulher, velho, criança... É por isso que em cada capítulo essa pessoa, a quem a memória é roubada, aparece como um outro personagem. Um antigo combatente, uma criança, uma vendedeira, sei lá, um funcionário jovem... tudo isso representa essa pessoa a quem roubaram, de facto, a memória. E ela esqueceuse de quem é e em cada capítulo aparece como uma pessoa diferente e no fim todas elas se juntam. É essa a génese da Mistida (SILA, 2002, p. 10). 326 A edição da Trilogia contém os dois prefácios: p. 323-328. 294 Traços marcantes de Mistida são tanto a recusa à linearidade como a propositada e calculada estratégia textual, desviante e transgressora. O romance tem dez capítulos, dez estórias, dez destinos, dez mistérios, como um jogo de encaixes, com uma montagem estruturada em dez blocos de diferentes falas. Os títulos dos capítulos envolvem cada episódio em um conjunto emblemático de significados, convidando os leitores à participação. Ao mesmo tempo, são enigmas que apontam para uma leitura cifrada que o leitor precisa decodificar. Os paratextos, dialogando entre si e com a narrativa, são igualmente importantes, se bem que nem sempre ajudem à compreensão do leitor não guineense: cada capítulo é antecedido de uma “introdução”, bem demarcada graficamente em cursivo, e é apetrechado com uma epígrafe que reproduz quase sempre um trecho de uma canção (não só guineense) ou alguma frase feita ou provérbio popular numa língua local. Não há centralização em torno de certas personagens, nem de um herói. A diversidade intencionada pelo autor corresponde à diversidade e à complexidade, mas também ao desmantelamento das estruturas sociais e políticas da Guiné-Bissau. Como Carmen Lucia Tindó Secco se expressou em relação ao romance Mayombe (1982), do angolano Pepetela, “o multifoco narracional reflete as contradições internas do país [...] a pluridiscursividade ressalta as dissonâncias por sob a unidade pretendida pelos ideais pregados pela Revolução” (SECCO, 2003, p. 38). Em cada capítulo há cada vez uma importante “mistida a safar”, isto é, uma tarefa urgente a ser cumprida, um negócio inadiável a ser tratado, um certo e enigmático empreendimento a realizar. Em cada capítulo interagem sobretudo duas personagens, raramente mais. De caracteres antagônicos, contraponteiam-se, mas também se completam. Ás vezes o antagonismo é resolvido e o capítulo termina com um re-conhecimento, uma aproximação cordial das personagens. Desenvolvendo a ação em torno de um roubo extraordinário – o roubo da memória, sem a qual a História não é possível – o autor registra em Mistida diferentes conseqüências dessa perda. Esse crime metaforizado corresponde à realidade de um país, território não nomeado mas intuído numa cumplicidade entre o narrador e o leitor, onde “ceifaram as esperanças, [...] adiaram a palavra, [...] queimaram as promessas” (SILA, 1997, p. 155), e onde “as noites se impuseram sem estrelas no céu” e se “cantaram os hinos da violência” (ib.). As situações apresentadas nos diferentes capítulos deixam rastros, fios que se enlaçam e que vão alinhavando, direta ou indiretamente, os mais diferentes contextos; as personagens cruzam-se sem de fato encontrarem-se, ligadas pelo fio condutor que é o fato de que todos têm “uma mistida a safar”. Cada vez novos protagonistas – anti-heróis – apresentam-se em situações aparentemente irrealistas e às vezes mesmo chocantes, representantes da desestruturação por que passa o país, procurando meios e estratégias de escapar à aniquilação causada pela desesperança e cada um a seu modo mostrando as seqüelas daquele crime inicial: um deles perde o dom da 295 palavra, outro perde a vontade de ver, um outro não mais consegue ouvir, muitos não sabem nem mesmo ter sentimentos e, na medida em que o livro evolui, os sinais de deterioração e decadência tornam-se cada vez mais evidentes. Entre as diferentes personagens, vale destacar algumas. O Comandante que se recusa a voltar a ver, fixado no passado e sem aceitar as mudanças do presente (ib., p. 15-37), refugiado no mundo irreal que construiu para si, tendo como único interesse sua coleção de medalhas, da qual a maior e mais bonita é uma bússola encontrada nos destroços de um avião abatido. Decidido a não abandonar o posto que lhe havia sido confiado durante a guerra, há muito terminada, vive num buraco, um bunker subterrâneo, segregado de tudo, secundado por seu jovem acompanhante Madjudho, como se estivesse numa caserna militar, com o pára-brisas de um Volvo como porta e duas caixas de cerveja Cicer como assento327. Desiludido com o mundo, o Comandante resolveu isolar-se e não mais abrir os olhos: O Comandante decidira manter os olhos fechados durante todo o dia, da manhã à noite, enquanto houvesse um só raio de sol que tornasse algum objecto deste mundo visível. [...] – O Comandante não vai mesmo abrir os olhos nunca mais? – Não vou. – Porque? – Este mundo está cheio de hipocrisia, não quero ver. – Hipocrisia? – E de maldade... (ib., p. 21). Os presos reunidos numa cela fantástica (ib., p. 41-58) não têm nomes, apenas números. E esses números são, por cúmulo, numa língua só conhecida por uma certa percentagem da população (os Mandinga que constituem cerca de 12 a 14% dos habitantes do país). O Comissário Político vegeta no fundo dessa prisão em total silêncio, recusando-se a falar, enquanto, antes, como antigo dirigente, galvanizava opiniões com o poder da sua palavra e, com sua capacidade de persuasão, conquistava a juventude, sensibilizando toda uma coorte de adeptos e militantes para a causa que defendia. – Mas como é que ficou mudo? Foi uma doença que apanhou assim de repente? […] – Foi por causa dos seus antigos alunos… – Os seus alunos? [...] – Os seus antigos alunos foram procurá-lo um dia. Um dia muitos anos depois da independência […]. Disseram ao professor que queriam que lhes mostrasse onde estava o país que ele lhes tinha prometido […]. Eles queriam ver a justiça, a camaradagem, a solidariedade... Queriam saber onde estava o patriotismo, o espírito da luta... […]. Foi nesse dia que ele perdeu a voz… (ib., p. 48-49). 327 Em outro contexto, no capítulo 4, já me referi ao papel representado no país recém independente pelos carros de marca Volvo, o carro de prestígio; cf. nota 160. Igualmente, sobre a cerveja “nacional” Cicer, cuja fabricação foi uma das poucas tentativas industriais, mas que acabou falhando, cf. comentários no capítulo 4.6. 296 Um outro prisioneiro, Woro, não conseguia romper o constrangimento e discorrer sobre sua própria história, sobre a história da sua prisão, minimizando seu crime (“o meu caso não tem valor [...] Foi um simples equívoco”; ib., p. 49) que consistiu em ter recebido uma mensagem transmitida pelo Alma beafada (grande pássaro negro que, para algumas etnias, está ligado à crença de que são as almas dos antepassados). Era uma mensagem singela, se bem que inusitada: “O Alma-beafada ia assistir o casamento do sol com a lua”. Depois teria anunciado “algo maravilhoso que iria acontecer na terra: o fim da escuridão. [...] Vai reinar paz e harmonia na terra” (ib., p. 54-55). O serviço de segurança deduziu tratar-se de um subversivo e, à custa de torturas, “queriam à força que eu dissesse tudo: a data, a hora, o local, as pessoas que estavam presentes, tudo, tudo, tudo” (ib., p. 50). E esse sonho impossível mas fascinante “valera toda a tortura e a maldade de que aquele ser de aspecto tão pacato fora vítima” (ib., p. 56). O recurso ao imaginário constitui um dos aspectos inovadores dessa nova escrita de Abdulai Sila que pretende descer ao mais fundo do ser humano, penetrar e vasculhar no mundo interior para daí procurar tirar talvez a essência do mal. A narrativa de Sila em Mistida rompe com os limites do admissível, desarticula qualquer lógica, penetrando na loucura e no delírio do que o autor pensa estar acontecendo no momento histórico atual em África e não só. O casamento do sol com a lua é tão inaccessível como a paz e a fraternidade, como o fim das trevas do egoísmo, da discórdia, da inveja e da cooptação. Em Mistida, as figuras femininas, como nos romances anteriores, são personagens fortes e atuantes. Djiba Mané, por exemplo, imagem da mulher moderna e vítima das mazelas da urbanização desorganizada e da decadência dos costumes, mas amiga e protetora da velha Mama Sabel, cuja vida mofina a jovem não queria como modelo, ansiosa por algo melhor, que ultrapassasse os estreitos limites do cotidiano penoso de uma vendedora de amendoim. Sempre à procura de melhorar sua situação, chega a dançarina de night club e descobre depois o fascínio e a força do poder que lhe oferecem sensações de felicidade muito maiores do que “aquilo [...] que a gente sente quando tem um bom macho em cima” (ib., p. 148). Obstinada em alcançar seu objetivo, muda o nome para Mary Joe e acaba assumindo “uma das mais altas funções governativas do país”, tornando-se poderosa e uma Alta Dignitária da Nação (ib., p. 152-153), sendo “apresentada como o símbolo da emancipação das mulheres” (ib., p. 151). Com outras personagens femininas, Sila joga intertextualmente, reunindo no último capítulo as principais personagens dos romances anteriores: a mulher grande Mama Sabel, a velha vendedora de amendoim, que se identifica depois com a maternal Mbubi, a criada de Eterna paixão, conselheira e confidente de Daniel; Muntudu, aquela que espera teimosamente que partículas de cinza, infinitamente pequenas e pairando no ar, desçam finalmente até sua mão espalmada; e é ela a primeira a sentir “os ventos da mudança” (ib., p. 115) e revela, no último 297 capítulo, ser a mesma Ndani de A última tragédia, sempre a esperar pelo seu homem. Muntudu e Mama Sabel conclamam todas as mulheres a se unirem para o mesmo gesto de acolherem as partículas de cinza que pairavam no ar e que, juntas, empreendam a tarefa “urgente [de] resgatar a esperança” (ib., p. 208). As crianças que alegremente cantam hinos de liberdade são os mesmos alunos do Professor deportado para São Tomé por um crime que não cometeu (A última tragédia) e do Professor visionário fundador de Woyawayan (Eterna paixão). São essas cândidas mensageiras da paz e arautos de tempos melhores que cantam com Bob Marley: “Won’t you help to sing another song of freedom?” (SILA, 1997, p.207). Yem-Yem, o “carrasco”, é outra figura intangível e ambígua, enredado na busca da palavra esquecida (ib., p. 161), “palavra que já não se usava, que significava um sentimento que deixara de existir há tanto tempo” (ib., p. 166) e cujo “significado era muito forte, mas que acabou se perdendo porque depois veio a política e estragou tudo” (ib., p. 169). Essa figura desagradável, conhecedora dos meandros e das estratégias da política, aterrorizadora das pessoas, em meio a um ataque de fúria e de bebedeira, tem de repente a aguardente que tomava transformada em água límpida e sua farda maldita transmutada em um imaculado bubu branco (ib., p. 171). Parecia que um novo tempo ia começar pois, ao sair do klandô (local noturno, bar), “confessou perante o olhar atento e incrédulo de todos”, que seria “altura de mudar algumas coisas neste país” (ib., p. 171-172). Mas então foi abatido por uma rajada de metralhadora à porta do klandô. “Quando saíram encontraram Yem-Yem no chão, com o corpo crivado de balas” (ib., p. 172). Yem-Yem ocupa o mesmo lado da galeria de duas outras personagens de Abdulai Sila, num desfile alucinante de figuras absurdas: Nham-Nham e Amambarka328. Amambarka é aberrante e assustador, parricida (“Viajara ao passado e aniquilara seus progenitores [...] liberto das incómodas referências do outrora, tinha todo o tempo para preparar a epopeia”; ib., p. 85), ganancioso, sem qualquer escrúpulo, viciado e execrável, cujos traços repugnantes são hiperbolizados pelo romancista até a exaustão. Nham-Nham, onomatopéia indicadora do ato de comer, engolindo com avidez, é um ser repugnante e alienado, cego pelo poder, entorpecido pela bajulação, idiotizado, mas perigoso, completamente dependente do diabólico Amambarka que obedece a um plano: “Assim, fizera o melhor de si para produzir uma imagem que provocava aos olhos de Nham-Nham o fascínio do poder absoluto, o delírio da veneração num reino de gente acéfala e sonolenta” (ib., p. 197). Os diálogos entre esses protagonistas assumem grotescos laivos de paranóia e o significado implícito nas entrelinhas é evidente. A “divinização” e a admiração pelo 328 Os nomes têm todos significação simbólica: Yem-Yem na língua fula significa silêncio; Amambarka, da língua mandinga, refere-se a um indivíduo mandrião, a coisa ruim, que não presta. 298 representante da onipotência são estratégias usadas pelo poder dos caudilhos que fazem frutificar o medo e a submissão de uma coletividade despida de vontade própria. O escritor, hiperbolizando tais traços, inverte, pela paródia329, o efeito das palavras proferidas e enfatiza o anedótico e o grotesco330 da situação: – Hoje está um dia magnífico, Nham-Nham. [...] – Para ti ou para mim? – Para ti, para mim, para todo o povo desta terra. – E como é que se obtém um dia magnífico? – Venerando-te, adorando-te dia e noite, louvando o teu poder... – Diz-me a verdade, Amambarka. [...] – O povo está muito contente, Nham-Nham. – Muito contente? – Há festas por todo o lado. – E os militares? – Todos fechados nas casernas. – Todos? – Estão todos felizes. – Diz-me a verdade, Amambarka (ib., p. 89-90). Esses entes chocantes, porém, foram inspirados em pessoas reais, deformadas e caricaturadas, difíceis de serem reconhecidas (embora intuídas), mas nem por isso menos verdadeiras nem menos ameaçadoras, pois faz parte da arte de convencer lançar mão de recursos do horror. Levar em conta que o autor teve em mente também uma dimensão dessacralizante e paródica ao delinear suas personagens pode, sem dúvida, constituir um caminho e uma chave para a compreensão plural do texto deste romance tão instigante. Um outro lado da representação da nação sonhada e não alcançada está amargamente simbolizado pelos montões de lixo que abarrotam não só o espaço literário do romance como, concretamente, a capital do país, empestiada tanto pelo lixo material e fétido, como pelo lixo moral e desmoralizante. Esse lixo se multiplica e cresce monstruosamente, dele saem gargalhadas que semeiam o pavor e o mal-estar. O lixo, como tesouro absurdo e ambicionado de vários lados, o montão de lixo alastrando-se cada vez mais, não deixando espaço para mais nada, o lixo é uma das personagens principais de Mistida, uma das representações simbólicas mais expressivas da obra. Quem perambula pelas ruas de Bissau não pode evitá-lo. Metonímia extravagante, o autor foi buscar uma parte de um todo simbólico que vai muito além dos detritos, 329 330 Entendo por paródia a imitação irônica e desconstrutiva de um discurso, guardando-se a forma e o estilo mas modificando-se o conteúdo ou o sentido, marcando uma incongruência entre a forma e o real conteúdo. Linda Hutcheon define a paródia como uma “repetition with difference”. Cf. METZLER-Lexikon Literatur- und Kulturtheorie, 2001, p. 492. O grotesco pode ser aqui caracterizado como uma consciente e exagerada distorsão que remete, pelo estranhamento, para o absurdo ou o ridículo, podendo causar indignação, horror ou riso o qual, provocado, muitas vezes fica preso na garganta, mudando o cômico em horror. O grotesco pode, como também a paródia, incluir uma conotação psicológica e / ou de crítica social. Cf. METZLER-Lexikon Literatur- und Kulturtheorie, 2001, p. 233. 299 dejetos e sucatas, muito além do excremento e da podridão material, palpável e aspirável, impossível de ser ignorada. O campo semântico desse tema lixo amplia-se sensivelmente, penetrando na área mais alargada do despotismo, da corrupção, da traição aos ideais, da falsidade e da ambição desmedida. O autor ousa uma aproximação perigosa naquele momento político em que o livro se publicou, atribuindo a posse (e com isso a responsabilidade direta) do lixo a Nham-Nham, o chefe dos chefes. Mas, na verdade, quem se preocupa com o que diz ou escreve um djidiu de caneta (SILA, 1995, p. 210), como ele mesmo ironicamente denominou o sujeito da enunciação?331 – Estão a roubar o nosso lixo. – O meu... o meu lixo? – Sim. – [...] O lixo que me garante o poder? Diz-me a verdade, Amambarka [...]. Não posso permitir. Podem roubar-me tudo menos o meu lixo. [...] Não vou deixar que me retirem o meu melhor aliado, a minha maior riqueza (ib., p. 198-199). O quarto capítulo de Mistida é de uma violência calculada e provocantemente escandalizadora. Sila lança mão de uma extremada transgressão para sinalizar a extremada situação em que o país se encontra, à beira de um abismo332. Calcando-me em Arturo ARIAS (1999, p. 530), considero que seja cabível interpretar o romance Mistida aplicando o argumento derrideano, segundo o qual a transgressão das regras do discurso implica em transgressão à lei, pois o discurso só existe sustentando a norma e o valor do sentido, e este é o elemento que alicerça e fundamenta a legalidade. Abdulai Sila sofre com a perversão dos valores revolucionários cabralinos, com a corrupção e com o desprezo a que o povo, a classe produtiva da nação, era (e continua sendo) relegado. Daí tomar a perversão sexual em Mistida um lugar no texto que se contrapõe à atividade sexual reprodutiva, num deslocamento provocador. Com a experiência da transgressão expressa nesse quarto capítulo do livro, o autor espelha a consciência das fronteiras que está propositalmente violando, querendo com isso representar a quebra das promessas da luta, sempre presente como símbolo de ética, de moralidade e de princípios comunitários, denunciando promessas não cumpridas, esquecidas pela má governação, o que representa uma verdadeira agressão ao povo e à sociedade civil. O poder hegemônico encontrava-se em vias de destruir toda e qualquer possibilidade de afirmar um modelo de Estado nacional. Os valores humanos guineenses estavam sendo aviltados, o povo se sentindo espiritualmente arrasado e ideologicamente derrotado. Citarei só 331 Os bardos ou griots, os djidius, como são chamados na Guiné-Bissau, transmitem através do canto e da narração o que a memória coletiva armazenava, os feitos épicos ou gloriosos da coletividade e, além de louvores, mostra de simpatia ou de subserviência, incluem em seu repertório críticas aos príncipes, aos chefes e aos dirigentes. Ainda hoje são populares no país e em todo o continente. 332 Já me referi em outros textos ao caráter profético de Mistida e de Kikia Matcho. Seus autores, conscientes do desbarato político e moral do país, anteciparam na ficção o desastre que estava prestes a ocorrer. Cf. AUGEL, 1998a, 1998b. 300 uma curta passagem que vai dar uma idéia do clima em que se desenrola essa ousada (e desesperada) desconstrução: Eram sempre as mesmas palavras, os mesmos gestos e as mesmas reacções. [...] Sentou-se na sua perna e deixou cair a cabeça sobre o seu colo. [...] “Tu és o único que merece toda a minha confiança”, começou por dizer Nham-Nham, ao que Amambarka acrescentou: “E todo o teu amor”. Acariciavam-se mutuamente, começando pela cabeça, indo progressivamente até chegar às zonas mais íntimas. [...] É justamente nesse momento de aflição que lhe surgiam entre as pernas aqueles excrementos fedorentos. [...] Como sempre, Nham-Nham não aceitava as suas explicações nem os seus pedidos de perdão. Atirava-o violentamente contra a parede e depois mandava-o lamber os excrementos (ib., p. 91-93). Em todo o romance há símbolos e situações bastante fantásticas que podem ser imediatamente decodificados pelos guineenses, mas também há muitas passagens que são pura fantasia, o que não implica uma contradição nem impede a compreensão, sendo o realismo mágico também um dos recursos do autor. A verossimilhança não tem que fazer parte do discurso narrativo, muito pelo contrário. A referência ao código lógico não causa espanto nem admiração, passa praticamente desapercebida, afirma Irlemar CHIAMPI (1980, p. 166). É a transgressão a esse código, o estranhamento, que surte efeito e faz refletir. Mas se talvez a total legibilidade de Mistida esteja reservada aos insiders, a compreensão e o prazer da leitura não estão restritos somente àqueles que possuem ou dominam o conjunto de referências e de informações que permitem uma perfeita decodificação. Abdulai Silá, com sua nova dicção que representa um grande salto qualitativo, envereda pelo campo da experimentação estética. Dá plasticidade à desconstrução do sentido por meio da transgressão, tanto lingüística como pelo recurso ao grotesco, mas também lançando mão do maravilhoso. Sua intenção parece, de fato, a de querer romper os limites da consciência. O resultado é um texto que desmascara a ausência de pudor e de respeito ao outro, tal como estava acontecendo no palco político da década de noventa no país. Poucos meses depois da publicação de Mistida, aconteceu a guerra fratricida de 1998/1999. Os protagonistas de Mistida, aparentemente absurdas personagens, representam, entretanto, verdadeiros atores da sociedade atual – e não só de seu país. Estão, cada um a seu modo, em busca de seu território interior, seu espaço de realização e de liberdade. Mais uma vez, nesse terceiro livro, Sila lança sua mensagem de esperança, de teimosa esperança: existe uma perspectiva para seu sofrido país. Apesar dos montões de lixo, material ou humano, há as Mama Sabel, as Mbubi, as Mutundu, as Ndani e as Djiba Mané, com as quais o escritor parece identificar-se. O terceiro romance de Abdulai Sila é, assim, tanto a afirmação da recusa da desordem estabelecida, quanto é também, ao mesmo tempo, uma tentativa de reajuste ou de correção do curso patológico – e patético – do destino guineense. Trata-se de um texto plural e desconcertante, provocando tanto um clima opressivo dominado pela impotência, pela angústia, pelo medo, mistério, desespero como despertando um sentimento de esperança, através de tomadas de iniciativas, tentativas de mudanças, se bem que ainda pálidas e pouco concretas, continuando a dar prioridade à representação simbólica e não à exposição concreta de soluções ou caminhos a seguir. Abdulai Sila busca elementos que melhor possam espelhar o caráter atroz, desumano e absurdo da realidade, uma postura face à realidade que, como André Breton e outros surrealistas sustentavam, visa, em última instância, à renovação dos valores morais, políticos e sociais. Sila empreende essa tarefa desconstruindo e incomodando, apelando à interferência dos leitores que não podem ficar indiferentes ante as situações absurdas ou “maravilhosas”, isto é, surpreendentes. O romance Mistida dificilmente permite captar em uma única leitura todos os seus ecléticos componentes, assim como se torna difícil penetrar-se nas implicações secretas de cada um dos capítulos ou “momentos” de Mistida. Abdulai Sila acredita que, por sua mediação artística, pela prática consciente do ato de escrever e pela estratégia discursiva adotada, oferecendo aos leitores um espaço de reflexão crítica, lançando mão do estranhamento e do maravilhoso, da distorsão e do desconcerto, pode contribuir para uma desalienação e um autoconhecimento do público ledor333. Não lhe interessa o imediatismo de situações factuais, historicamente fiéis. Sua perspectiva é mais ampla, seu quadro referencial é o mundo alienado do qual ele faz parte, e do qual nós, os receptores, também fazemos, e que é preciso ultrapassar. Mistida não é uma estória de coisas passadas – é um romance do devir, envolto em perplexidades e esperanças. Em Mistida, Abdulai Sila empreende uma releitura do processo de formação da nação guineense ao mesmo tempo em que procura estabelecer novos contornos da identidade nacional. Empreende essa mistida por eliminação: por meio de uma multiplicidade de representações simbólicas, vai traçando uma nova cartografia, descartando, pela denúncia, pelo grotesco, pela paródia e pelo escárnio, o que não deve ser incluído nesse novo território da nação. Essa atitude é nova dentro do contexto intelectual do país. Dada à especificidade da literatura, há uma legitimação nessa busca – não de definição, mas sim de compreensão ou mesmo descoberta e desvelamento. 333 Pelo viés do surreal ou do fantástico, Abdulai Sila em Mistida e, veremos em seguida, também Odete Semedo em No fundo do canto, elastecem sua teia discursiva, encetando, por esse meio, a decifração de outros prismas da realidade. O raro, o estranho, o inaudito, pelo que contêm de surpresa e de inesperado, incitam à reflexão, aprofundam o descentramento (AINSA, 1986, p. 139), apelam claramente para a participação do leitor, desvelam a intenção intervencionista de que estão imbuídos os escritores da literatura engajada. 302 7.3.4 Das frases, cartucheiras, e das palavras, balas Se bem que, em princípio, não me agradem as metáforas bélicas, utilizei como subtítulo para a conclusão desta breve análise uma passagem do prefácio de Carlos Lopes ao primeiro romance do Abdulai Sila, Eterna paixão (o primeiro romance da Guiné-Bissau!) e que resume, em poucas palavras, o trajeto literário desse intelectual guineense: “[...] as nossas cartucheiras são frases e as nossas balas, palavras” (LOPES. In: SILA, 1994, p. 9). Abdulai, que não fez a guerra, guerreia a seu modo, inquieto e atento, lutando contra o status quo com um eficiente instrumento, a arma afiada da sua palavra e a agudeza de sua criatividade. Ao romancista não basta a simples constatação do flagelo, o desfiamento das mazelas que cobrem o povo guineense. Abdulai Sila vai desencantar os responsáveis e os denunciar, direta ou indiretamente, doa a quem doer. Como disse Guy Ossito Midiohouan, o fracasso das independências africanas reflete e se insere profundamente na temática da literatura negro-africana de 1960 em diante. Grande parte dos autores do continente se preocupa em desvelar as degenerações e os antagonismos da sociedade africana pós-colonial, o que se pode interpretar como o empenho dos escritores em influirem e participarem da construção da nação. Lançando mão dos mais diversos recursos literários, predomina a tentativa de devolver à sociedade, como um espelho, sua própria imagem. Muitos puseram a nu, aberta e desapiedadamente, a desmoralização tanto dos governantes como da burguesia africana atuantes nos aparelhos do Estado e na economia. Não são poupadas críticas à classe dirigente nem aos próprios chefes da nação, ao mesmo tempo em que os subalternos adquirem cada vez mais contorno e importância. É a literatura de denúncia, na sua acepção mais larga, uma das facetas da literatura engajada (MIDIOHOUAN, 1986, p. 148)334 que pratica o exercício da crítica ao abuso do poder e ao sistema político vigente no país e expressa poliformicamente a desilusão face aos ideais revolucionários e libertários, traídos e desprezados. Pertencendo à geração que vivenciou a euforia da concretização dos sonhos de liberdade de todo um continente, à mesma geração que viu esses sonhos realizarem-se e desmoronarem-se, autodestruídos, Sila é um dos poucos que, como diz Carlos Lopes, não foi “inundado pela corrente”, fez e continua fazendo do seu verbo arma certeira contra a indiferença, a apatia, o conformismo, não parando de lutar por aquilo em que um dia apostou, plenamente imbuído da sua dupla responsabilidade e função como escritor e intelectual. 334 A afirmação de Midiohouan é válida sobretudo para a época em que ele publicou seu livro sobre a ideologia na literatura negro-africana de expressão francesa (1986). Nos últimos anos, outras temáticas, mais universais, têm ocupado muitos autores do continente africano. 303 7.4 Tcholonadur Odete Semedo Na ótica dos Estudos Culturais, é possível compreender como os textos literários captam situações de conflito e como ao mesmo tempo esses textos, pela arma da palavra e a força da metáfora, podem ser interpretados em favor de uma autodefinição identitária. Na Guiné-Bissau, a conjuntura atual, na tentativa nem sempre bem sucedida de reaprumar-se depois do conflito armado de 1998/99, vem fazendo surgir obras literárias extremamente originais nas quais se verifica a afirmação da identidade nacional, como já temos visto ao longo desta análise, através da construção de significados de nacionalidade a partir de múltiplos recursos, por exemplo pela renovação temática, pelo esforço ou empenho de articular a relação existente entre a cultura e o objeto literário, pela apropriação simbólica de mitos e tradições culturais, pelo uso de novas formas lingüísticas, de desvios da norma consagrada e, não por último, pela desterritorialização e apropriação da língua portuguesa. A descoberta ou a redescoberta de si e, da mesma forma, da comunidade em que se está inserido, exige um esforço de auto-apreensão e a criação de uma nova territorialidade, livre dos miasmas da colonização. As mais recentes produções literárias guineenses vêm elaborando, cada uma a seu modo, processos identitários onde o reflexo da rejeição do colonialismo e de seus males ou a celebração da independência são menos relevantes do que a procura de meios de auto-apreensão. Isso é realizado buscando a afirmação dos valores das tradições nativas e traçando o mapeamento da especificidade guineense e de suas estratégias de representação que reúnem um “eu” e um “nós” numa comunidade imaginada denominada “nação”. “Eu”, e sobretudo “nós”, tornaram-se sujeitos imanentes de uma série de narrativas sociais e literárias, realizadas através de um discurso que, segundo Bhabha, não se limita ao nacionalismo, antes traduz a idéia de nação como um constructo cultural e simbólico, “como uma forma [...] de viver a localidade da cultura” (BHABHA, 1998, p. 199). Interessa-me destacar nesse contexto em especial o terceiro romance de Abdulai Sila, Mistida, que foi analisado no subcapítulo anterior, e o canto-poema de Odete Semedo, No fundo do canto, de que vou tratar a seguir. O trabalho desses autores insere-se no grupo de obras que escrevem e narram a nação, no sentido de Homi Bhabha, isto é, a partir de indagações e da procura de vínculos de pertinência que possam explicar a nação para além dos contornos políticos do Estado. São vozes, dentro da concepção de uma “nova narração”, elaboradas a partir da tensão do ato narrativo ligada à construção, ou sobretudo à desconstrução da idéia hegemônica da nação, vozes que se alteiam acima dos discursos nacionalistas, proferidos até agora pelo discurso pedagógico do poder dominante e cuja referência recorrente é o louvor à gloriosa luta de 304 libertação nacional e aos heróicos antigos combatentes pela liberdade da pátria, constituindo o refrão preferido ou quase único nos últimos trinta anos. Abdulai Sila e Odete Semedo inauguram uma outra dicção, numa versão sui generis da revalorização das culturas nativas e do espaço subalterno, expressando uma nova postura e um novo sentido de africanidade. Nos países saídos da colonização, países situados na periferia da cultura ocidental, vimos que a constituição identitária pode trilhar o caminho da assimilação acrítica da cultura das antigas metrópoles como pode optar por uma recusa do modelo que lhe foi imposto. Essa recusa, em No fundo do canto, de Odete Semedo, mostra-se pela grande ênfase dada às tradições, à veneração dos antepassados e ao substrato étnico, imemorial, que constitui a base identificatória guineense. Essa recusa se traduz, na obra de Abdulai Sila, pela escolha de anti-heróis, numa dicção contestatória, subversiva (no sentido literal do termo, alusivo à não sub-ordenação, à liberdade de pensar e de criar), que intenciona revolver e mudar a antiga ordem do discurso dominante, transgredir para incitar a pensar e a reformular. Essas novas abordagens levam-me a refletir sobre o conceito da “des-realização”, no sentido surrealista, compreendido como “situar um objeto, idéia, imagem ou gesto num contexto que não lhe é próprio, com o propósito de desfamiliarizá-lo, para frustrar sua referência naturalística ou normativa e examinar que potencial ou idéia, ou insight pode ter” (BHABHA, 2002, p. 70). Aplicando esse conceito à história atual guineense, é possível dizer que a literatura, tal como a praticam Odete Semedo ou Abdulai Sila, tem, entre outras, a função de “des-realizar”, isto é, de desfamiliarizar a história, no caso a história nacional guineense, pondo em foco o projeto político da governança atual, reconhecendo e ressaltando, no dizer ainda de Homi Bhabha, sua fragilidade, suas margens desgastadas, seus limites e tentativas de equilíbrio entre a inclusão no e a exclusão do processo democrático. Esses escritores se empenham em transpor e traduzir literariamente os altos e baixos por que passa a experiência nacional pós-colonial, ainda à procura de um modo de realização de um regime democrático e em busca das vias apropriadas para uma modernização que introduza o país no seio das nações “civilizadas”. Entre os escritores guineenses, Abdulai Sila e Odete Semedo conseguem, com suas obras, apreender as “não realizações” internas da política guineense e, a partir de uma distância crítica, “des-realizá-las”, pondo a descoberto suas genealogias coloniais e suas “fragilidades”, como o passado duplo e bifurcado, o fracasso da utopia, a autocolonização, o embate entre a tradição e a modernização e as conseqüências das tentativas de inserção no mundo globalizado e capitalista (BHABHA, 2002, p. 70). 305 Odete da Costa Semedo335, com o livro No fundo do canto, traz uma contribuição ímpar para a literatura guineense, e não só. Em 195 páginas, das quais o corpo dos 78 poemas ocupa 151, a autora revela o clima deprimente que domina seu país, logo após o conflito armado e também no momento atual. Expectativas não realizadas despertam sentimentos que deixam traços indeléveis na coletividade, seus efeitos abalam a auto-estima e a própria identidade dos guineenses. A impotência face à inevitabilidade da catástrofe, o sofrimento pelo derramar do sangue inocente, a indignação pelas destruições causadas pelas armas, a revolta devida aos resultados do desmoronamento do projeto nacional ou à má governação são tematizados em um extenso texto, estruturado em poemas curtos, divididos em quatro seqüências, em que a língua guineense se mistura ao português, enquanto elementos da cultura multiétnica guineense emprestam uma grande plasticidade ao contexto poético. Próprio de grande parte da produção deste momento “pós-colonial” é a mudança de paradigmas da literatura e a indeterminação dos gêneros literários, verificando-se uma contaminação mútua entre eles, tal como se observa em No fundo do canto, conjunto de poemas cujo traço mais característico é a narratividade, exibindo uma estratégia textual complexa, movida pela premência das circunstâncias históricas das quais a autora é testemunha e quer testemunhar. Está-se diante de uma obra poética com um amplo painel narrativo, uma obra híbrida, multicéfala, multissonante, pluriforme, plurivocal, na liminaridade entre poesia e prosa, entre memória e crítica, entre sonho e recusa, entre vivência e mito, entre o lírico e o épico, entre o escombro e a (re)construção. Do ponto de vista estrutural, a autora procede a uma consciente ruptura entre os gêneros e as formas literárias, inserindo na tecedura do texto sons, assonâncias, dissonâncias, elementos de variados discursos e de vários registros lingüísticos. Ora alteia-se uma voz na primeira pessoa que se dirige ao espectador, ouvinte ou leitor – ou murmura em cochichos a lembrança amarga de episódios passados ou o medo do devir; ora surgem terceiras pessoas a narrar fatos, lançar profecias, vaticínios e augúrios, ora a voz poética adquire um tom épico, erguendo-se num brado de horror pelas dores de uma luta fratricida, pelo testemunho das misérias e do sofrimento, para deslocar-se depois, numa mudança de registro, passando para um tom coloquial, muitas vezes jocoso, com timbres de sarcasmo e de sátira. Grito e murmúrio, 335 Maria Odete da Costa Semedo nasceu a 7 de novembro de 1959 em Bissau. É professora secundária com licenciatura em Estudos Portugueses – Língua e Literatura Modernas – pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi diretora da escola de formação de professores em Bissau (Escola Normal Superior Tchico Té), foi Ministra da Educação de junho de 1997 a março de 1999 e Ministra da Saúde em 2004/2005. É também investigadora científica do Insituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP). Juntamente com Tony Tcheka, Abdulai Sila e alguns outros, foi co-fundadora da revista guineense Tcholona. Revista de letras, artes e cultura, onde publicou diversos contos e artigos (cf. a bibliografia final). Sobre a obra de Odete Semedo, cf. AUGEL,1998a, 2000d, 2003. 306 pranto e escárnio, essas muitas vozes de No fundo do canto assumem quase sempre um caráter de denúncia e de reprovação, emprestando ao conjunto uma perspectiva política indisfarçável336. Se a obra, por um lado, contém interrogações que dizem respeito à condição ontológica do ser guineense, tratando de temas como a guerra, o medo, a opressão, a degradação, a morte, a identidade, e, num outro aspecto, vai buscar apoio nos valores tradicionais como os mitos, as crenças, o recurso ao fantástico e ao mágico, lançando mão dos ritos e da ancestralidade, essa poesia assume também uma função social, incursionando pelos subterrâneos da fundamentação da nacionalidade. Com isso, está em consonância com a afirmação de Octavio Paz, no seu ensaio “Signos em rotação”, onde considera que “a função mais imediata da poesia poderia chamar-se sua função histórica, que consiste na transmutação de um instante, pessoal ou coletivo, em arquétipo. Nesse sentido, a palavra poética funda os povos” (PAZ, 1972, p. 68); ou pode ser um instrumento para imaginar a nação, no sentido de Benedict ANDERSON (1983) ou, de todo modo, no sentido performático de narrá-la, como prefere expressar-se Homi BHABHA (1998). O legado étnico da nação inclui os mitos e as lembranças, as crenças, os valores, os símbolos e as tradições ligados a um território em particular. Uma parte importante de todo processo de identidade nacional se estriba no processo de demarcar, descobrir e reinterpretar uma terra natal autêntica que una os ancestrais com pessoas vivas, os que nascem com os que estão por nascer (SMITH, 1998, p. 64). A partir de No fundo do canto, vou proceder agora à análise da afirmação da identidade nacional, procurando detectar no texto a construção de significados de nacionalidade. A autora se empenha sobretudo em “des-construir” o culto mesmo da nação, para depois “re-construí-lo”, apresentando-a como uma comunidade primordial, narrando-a através de deslocamentos metafóricos e estratégias textuais em que um passado épico e a tradição multicultural se aliam para ultrapassar os fracassos da política e da ideologia. O resultado é uma simbiose entre o passado evocado e convocado, o presente revisto e posto em cheque e o futuro entrevisto e sonhado. A obra, circulando pela história e pela tradição, lançando mão do épico e da sátira, articula-se entre dois pólos: a contemporaneidade e a memória cultural. Odete Semedo quis, em primeira instância, com seu poema No fundo do canto, fazer a catarse dos sofrimentos seus e do povo guineense, quis elaborar dentro de si, para ela mesma, os traumas ocasionados pela vivência da guerra que assolou a Guiné-Bissau, entre 7 de junho de 1998 e 7 de maio do ano seguinte. Como já foi detalhado na introdução e tratado no capítulo 336 Cabe muito bem aqui, em relação a No fundo do canto, o que Fernando Ainsa escreveu sobre a literatura latinoamericana, referindo-se ao “direito à imaginação heterogênea”, isto é, ao direito “inalienável” capaz de “integrar” no discurso literário elementos de todos os gêneros, “desde o ensaio à poesia, passando pela epopéia e pela alegoria”, refletindo a identidade cultural múltipla e contraditória (AINSA, 1986, p. 142), sincretismo especular de nossos países, nas Américas ou no continente africano. 307 dois, lembro aqui que a insatisfação popular que já tinha provocado muitas crises políticas, fragilizando o governo, está na base daquele conflito armado, iniciado com uma rebelião de militares contra o presidente da República que foi finalmente deposto. Foram onze meses de brutalidade em que o país viveu um regime de exceção, com a presença de forças militares estrangeiras no território pátrio, concentradas na capital, cuja população se deslocou ou fugiu em massa para o interior, tentando escapar do palco dos acontecimentos337. A paz alcançada tem sido permanentemente abalada por conturbações de ordem política e social que continuam a desestabilizar o país, a braços desde então com uma crise institucional sem precedentes. Dialogando com seu próprio tempo, Odete Semedo apresenta poeticamente uma história que ainda se está fazendo. Não trata somente do passado, seu texto não é só memória ou lembrança; é também projeção e indagação do futuro. O livro se compõe de quatro grandes segmentos que se vão completando e encadeando uns com os outros, a saber: No fundo... no fundo..., com o prenúncio de uma grande desgraça prestes a acontecer, com vinte e três poemas, sendo quatro bilíngües; A história dos trezentos e trinta e três dias e trinta e três horas que testemunha a invasão da capital, quando a mufunesa se abate sobre o país, com quinze poemas, sendo dois bilígües; O Consílio dos Irans, com oito poemas, com a convocação das entidades protetoras e a grande kontrada, isto é, a reunião de encontro de todas as divindades, com seus totens, para salvar Bissau; e finalmente Os embrulhos, quando o país se ergue dos escombros, mas constata que a decadência, a ganância, os desvarios da desgovernança vêm camuflados em três desastrosos embrulhos, com vinte e seis poemas. Vou proceder a um comentário da obra segundo seus diferentes momentos. 7.4.1 “No fundo... no fundo...” O poema bilíngüe “Bu tcholonadur” / “O teu mensageiro” funciona como uma introdução, o prelúdio, onde o eu enunciador se autodesigna como intermediário da transmissão dos acontecimentos que se desdobram ao longo dessa obra poética. O sujeito enunciador assume o papel daquele que aponta caminhos, passados ou por virem: “Ami i bu tcholonadur” / “Sou eu o teu mensageiro”, confidencia o primeiro verso, incluindo logo de início o leitor ou ouvinte, o “tu” a quem serão reveladas mensagens de dor e de amor, num convite de participação e de conspirativa solidariedade. O tcholonadur, traduzido pela poetisa como “mensageiro”, é uma figura do cotidiano guineense; é o que intermedeia, que serve de ponte entre o falante e o ouvinte, pessoa necessária, 337 Sobre o conflito e as circunstâncias em que ocorreu, cf. o capítulo 2.2.6 a 2.2.8. A revista Soronda publicou um número especial dedicado ao conflito, com o título 7 de Junho (SORONDA, 2000). Cf. também AUGEL, 1998d. 308 mesmo indispensável, com atribuições diversas, tanto nas culturas com base nas chamadas religiões naturais, como nas coletividades muçulmanas. Quando há algo a tratar entre dois contraentes, muitas vezes falantes de diferentes línguas, não é possível, segundo os costumes locais, que os dois dialoguem diretamente, tornando-se necessária a presença de um terceiro, tradutor, mediador ou intermediário, que então passa para cada um o que o outro diz ou responde. A posição dos oponentes, muitas vezes sentados de costas viradas um contra o outro, simboliza a distância, o antagonismo que o tcholonadur tenta superar. Para as etnias não muçulmanas, o papel de intermediário representado pelo tcholonadur tem cunho religioso, mesmo místico, de mediação entre os indivíduos e a divindade. É quem possui o poder de decifrar e transmitir a mensagem do iran, cujos sons nem sempre são inteligíveis para aqueles que o foram consultar. Mensageira, intérprete, anunciadora dos fatos reais e dos sentimentos de seu povo que quer divulgar, noticiar e não deixar perderem-se no esquecimento, a poetisa, através do sujeito da enunciação, apela a seu ouvinte, a seu interlocutor – tal como se procede nos djumbais (saraus ou convívio) na Guiné-Bissau, quando o contador ou a contadora das passadas ou estórias passa o olhar pelo público reunido sob a frondosa árvore ritual que domina o local das reuniões e festejos e incita os espectadores a participarem da estória338: Não te afastes aproxima-te de mim traz a tua esteira e senta-te [...] Pergunta-me onde mora o dissabor pede-me que te mostre o caminho do desassossego o canto do sofrimento [...] vem ... senta-te que a história não é curta (SEMEDO, 2003b, p. 16). A história que “não é curta” gira em torno do “prenúncio dos trezentos e trinta e três dias”, onde fica bem claro que, muito tempo antes dos trágicos acontecimentos, “meninos velhos / meninas e rapazes / homens e mulheres / todos” já haviam tido conhecimento da “mufunesa339 / que um dia teria de cair / nos ombros da gente / da pequena terra” (ib., p. 18). Sabe-se que, de fato (e eu própria o vivenciei), sempre correram em Bissau certos rumores que revelavam à boca pequena a iminência de um grande e trágico acontecimento, um kasabi garandi (um grande mal- 338 Esse recurso também é corrente na literatura afro-brasileira. Lembro aqui, a título de exemplo, um belo poema de um dos seus mais expressivos representantes, Cuti, pseudônimo de Luiz Silva: “Ouça bem o que parece silêncio [...] E para saber melhor / entre / [...] e seja benvindo / ao nosso quarto de gritos / achados e perdidos / Tenha a bondade / sente no meio da mocidade / ou se quiser / não se acanhe / sente no meio dos velhos e antepassados” (CUTI, “Convite”, 1982, p. 25). 339 Mufunesa significa azar, infelicidade, o mesmo que mofineza. Termo muito empregado na língua guineense. 309 estar, uma grande infelicidade) e que a paz só retornaria depois de muitas lágrimas e de muito sofrimento, muito sangue derramado340. Não faltaram avisos, vindos dos chefes religiosos dos diversos grupos étnicos do país: “baloberus, almamus341 e padres”, além de pastores, todos predisseram: “uma foronta / um confronto vem a caminho” e será “como um punhal / [que] todo o povo vai ferir” (ib., p. 18-19). Muitos rituais foram realizados, esmolas como penitência foram oferecidas, sacrifícios com animais. A profecia era clara: “uma guerra / entre irmãos / do mesmo sangue / disseram / do mesmo djorson” (ib., p. 21)342. Os vaticínios, porém, não foram levados a sério e “passaram-se chuvas e secos / sem que mais ecos / do prenúncio [...] todos no bem bem” (ib., p. 22); e embora os maus augúrios, subrepticiamente, crescessem “como um pequeno monstro / de muitos tentáculos [...] enquanto havia o que comer / na moransa / do oráculo ninguém se lembrava” (ib., p. 23). O tcholonadur, que também se auto-intitula de Cantor da alma e às vezes simplesmente de Poeta, captou o perigo em que se encontrava seu povo, angustiando-se em não poder ser a “carpideira” de tantas mágoas, nem “engodar o desassossego”, nem tão pouco evitar aquela guerra que se anunciava com tantos presságios (ib., p. 24-26). Trovador e vidente, “qual pé de bissilão343 [...] / está o poeta no canto da vida / espreitando o mundo. [...] Desencantado [...] com a alma amarfanhada [...] o poeta sente e chora” (ib., p. 27-29), pois o egoísmo evoca violência a mentira impera a podridão alastra qual corda de lacacão.... Como um pé de bissilão está o poeta testemunho eterno do tempo e da vida (ib., p. 29). É preciso estar atento ao conjunto do enredamento de significações que configura e delimita o poema. O número três, por exemplo, já por si mágico, é ampliado em dezena e centena, ameaçadoramente: o grande flagelo de trezentos e trinta e três dias e trinta e três horas 340 A informação é de Tony Tcheka, na sua fala, infelizmente não publicada, ao apresentar No fundo do canto, por ocasião do lançamento da obra em Viana do Castelo, em maio de 2003. 341 O balobero é o sacerdote tradicional das etnias que cultuam a natureza e os antepassados; o almamu, ou almami, entre os Mandinga, dignitário islâmico, responsável pelo culto, e consultor jurídico do régulo. 342 Na verdade, muitas vezes é possível se deduzir o significado dos termos guineenses: foronta derivado de afronta, significa aflição, desespero; djorson se reporta ao vocábulo português geração, embora com o significado mais alargado de linhagem; moransa é o aglomerado de habitações de um agregado familiar, onde moram e convivem diferentes gerações ligadas por parentesco. A tabanca é a aldeia, onde pode haver várias moransas. Cf. nota 355. 343 O bissilão é uma árvore tropical da família das Meliáceas, de grande porte (Khaya senegalensis), cuja madeira é muito apreciada para obras de marcenaria; é conhecido como mogno-da-guiné. Logo a seguir a autora se refere ao lacacão, aportuguesamento do termo guineense lakakon, uma erva rastejante muito comum na região (Ipomoca repens). 310 seria antecedido por muitos acontecimentos cuja enumeração no poema revela a tensão existente na sociedade local entre a tradição e a modernidade. Depois de onze anos de guerrilha e heroísmo, a vitória contra as forças coloniais abriu caminho para a realização do sonho de transformar o país numa nação em que a sociedade se modernizaria e se autogeriria, entrando na “civilização” pelas portas da educação e da independência política e econômica. O jovem Estado guineense, desde então (1973), vem tentando impor-se como nação, não podendo nem devendo marginalizar-se face às grandes transformações do mundo moderno. Constrangidos a integrar o sistema capitalista internacional e envolvidos em imensos problemas de subdesenvolvimento econômico e social, frutos ainda da herança colonial e da própria incapacidade de autogestão, os países periféricos se empenharam em acelerar seu desenvolvimento e sua evolução, sempre a partir de modelos copiados do mundo ocidental, “moderno” e “próspero”. A ordem econômica mundial exige também na África a implementação de tecnologias modernas, apesar da ausência de mão-de-obra qualificada, o que resulta muitas vezes num fracasso, embora seja impossível furtar-se às premências da tecnologia e da industrialização. Decorre daí uma dependência praticamente total do exterior, onerando o país com um endividamento crescente. Da mesma forma, depois de efetivada a independência política, a Guiné-Bissau não podia fugir às pressões de democratização e liberalização vindas das instâncias internacionais. Os esforços para se estabelecer uma comunidade política e economicamente viável deveriam, entretanto, ter em conta as realidades empíricas do país, sua pobreza de recursos, suas desigualdades e injustiças sociais. O que até o momento vem se verificando é a má governança que provoca crises, insegurança, insatisfação e uma grande tensão social. Odete Semedo, nessa primeira parte de No fundo do canto, ironiza a situação de atraso do país, cuja classe dirigente não tem sido capaz de incorporar as realizações ou conquistas do progresso ocidental, mal digerindo os princípios democráticos e o desenvolvimento tecnológico: Veio a tecnologia espreitou mas não entrou tropeçou num buraco estava escuro não deu com a entrada e continuou na rua ao pé de casa à espera da luz344 Também a Demo se acasalou com a cracia [...] fica... não fica fica: mas não se sabe 344 As infra-estruturas precárias do país que almeja ao progresso dão motivo ao sarcasmo desses versos. Odete Semedo retrata com ironia as dificuldades cotidianas da capital, referindo-se à falta crônica de luz em Bissau onde os muitos buracos do calçamento não renovado ou consertado levam, sobretudo à noite quando não há energia, a quedas e tropeços. 311 se é homem se é mulher Todos viram que é bifronte [...] será travesti esta democracia? (ib., p. 31). Nessa obra singular, a história atual do país vai sendo apresentada fragmentariamente, de modo satírico e muitas vezes sarcástico, outras vezes burlesco, sendo pinçados acontecimentos que causaram distúrbios e controvérsias, fatos que foram ou têm sido motivo de insatisfação e insegurança para o povo, casos de desmando, impunidade ou arbitrariedade da parte dos governantes. A autora vai recorrer a alguns exemplos causadores dessas tensões, na verdade recursos metonímicos para dar a entender o clima que antecedeu o conflito dos “trezentos e trinta e três dias”. Dentro da busca de soluções realistas para o desenvolvimento econômico do país está a integração da Guiné-Bissau na região oeste africana de modo a propiciar à população o acesso aos meios de produção, satisfazer as necessidades humanas básicas e com isso salvaguardar os direitos e liberdades fundamentais do indivíduo. Como já foi visto no capítulo 2 deste trabalho, a Guiné-Bissau, incrustrada numa zona sobretudo francófona, acabou aderindo à União Económica e Monetária da África Ocidental, conhecida pela sigla UEMOA, passando a usar como moeda corrente o Franco CFA, válido para aquela comunidade financeira, levada pela esperança de um avanço e melhoramento de sua situação econômica. Mas com a integração na “zona” (como se costuma dizer, abreviadamente, sem ter de modo algum uma conotação negativa), entraram de roldão grandes males para o país, resumidos na ganância, na corrupção, na falsidade, metaforizados através de elementos familiares e locais: “Outros rostos eram precisos / já não valia apenas ser [...] djugude / à espera de restos em Tombali / manhôti / monteando galinhas em Boé” (ib., p. 32)345. A controvertida e despreparada entrada do país na “Zona do Franco” provocou uma grande insegurança na população quando, de repente, 65 pesos guineenses passaram a valer um franco CFA, abreviatura para o Franco da Comunidade Financeira da África (CARDOSO, 2000, p. 93). O clima de insegurança e de insatisfação que envolve medidas desse quilate está na raiz das tensões que engrossam os vaticínios e os rumores, prenunciando grandes desastres sociais. A comunidade imaginada pelo eu poético dispensaria aquelas interferências externas, pois essa comunidade é possuidora de sua própria história e de seus próprios valores. Captando com sensibilidade o desconforto do povo, a autora se propõe uma desconstrução e uma “desrealização” dos acontecimentos que giram em torno do “desassossego” político, social e econômico do país. Através da articulação de alguns símbolos, tanto negativos como positivos, 345 O djugude é o abutre e o manhôti, o falcão, aves de rapina. Tombali e Boé são regiões historicamente carregadas de significação, ligadas às lutas de libertação nacional. O verbo montear é o termo crioulo para caçar. 312 Odete Semedo vai trançando os fios que elaboram a narrativa da nação que aqui vai sendo construída. Metonímia para a intervenção exógena de modo geral, símbolo da idéia de desenvolvimento e seus avatares, do abuso de privilégios e mau uso de recursos, a UEMOA não é diretamente nomeada, mas travestida. Mudando a forma externa mas conservando seu conteúdo surge em cena uma “velha senhora” de nome Mumoa, “que das coisas da vida / parecia saber” e toma a palavra solene e sarcástica: A velha Mumoa que das coisas da vida parecia saber com os olhos na pobreza uma orelha no silêncio das matas e outra na high society quebrado pelo ruído babilónico do lugar comum e pelo zumbido do mundo... falou: – Venham até mim eu sou o caminho aberto [...] Não dou nada sem que em troca receba algo Quem confiar nas suas forças e no seu jeito que se aproxime de mim e nada lhe faltará Os fidalgos da economia são filhos meus [...] Eu sou a visão ou a evasão? Eu sou o futuro ou um simples monturo? (ib., p. 34-35). É evidente o desapreço e o receio que a inclusão do país nessa comunidade regional provocou na Guiné-Bissau. A modernização exige uma “ocidentalização”, já iniciada pela colonização e, à primeira vista, como conseqüência, a abdicação de seus próprios bens culturais e mesmo morais, o que redunda em perda dos valores autóctones e tradicionais, perda, portanto, de identidade. As concessões que se fazem ao progresso, na esperança da fartura e de melhores tempos, de desenvolvimento e integração no mundo “civilizado”, custam um preço muito alto, correndo-se o perigo que os antigos valores e os ideais da libertação – e, conseqüentemente, da verdadeira construção nacional – sejam menosprezados: Era preciso mais era preciso não deixar que a prostituição guiasse a nossa constituição Que a intuição grávida de mentira substituísse nua e crua a nossa construção (ib., p. 33). 313 Odete Semedo, como um tcholonadur, transmite as notícias, aponta caminhos, a partir de uma análise metafórica do poder hegemônico atuante em seu país, apresentando uma visão épicolírica do caos e da desgovernança, carregada de símbolos e de significações. Tentar captar o momento em que o acontecimento factual (a guerra e o depois da guerra) e o acontecimento estético (o poema) se cruzam e se tornam indissociáveis é a nossa tarefa como leitores. 7.4.2 O espaço da dor e do escárnio Esta segunda parte do poema tematiza o início da guerra que vai confirmar o sombrio vaticínio que pairava sobre Bissau, e expõe a ação destrutiva dos militares nacionais e estrangeiros. Como a autora declarou na nota de abertura do livro, sua intenção é de não somente deixar correr ali “todas as lágrimas que não puderam ser choradas”, como pretende nessa obra abrir “as chagas mal saradas” com o seu “bisturi, deixando correr todo o pus para que todos possam ver a real podridão e o verdadeiro fingimento” (ib., p. 7). Como no episódio bíblico346, os profetas quase nunca são ouvidos, sobretudo não em suas próprias terras, onde suas advertências caem em geral no vazio. O eu narrador procede à apresentação do clima de degeneração que “quebrou a espinha das gentes / encheu o sentido dos pecadores de ganância e de desgraça” (ib., p. 57-58), alimentando uma ambição desmedida (“se tu podes eu também posso / se tu mandas porque não eu?”; ib., p. 58), acumulavam-se “reajustes [...] acordos, muitos dissabores, mal estar” (ib.). A corrupção (“o cordão da amizade / embaraçava medidas / tolhia emendas”; ib., p. 60), a incompetência, o abuso de autoridade se alastravam ameaçadoramente pelo país, levando o povo à descrença e frustração (“Não tenho o pão de cada dia / trabalhar para quê?”; ib., p. 59), ocasionando o êxodo rural e a emigração, o desbarato das infra-estruturas e, enfim, a deterioração da situação política e social, a erosão do Estado, seus mandatários tendo perdido todo prestígio e mesmo a legitimidade moral adquirida como continuadores do movimento libertador nacional: Irmãos nossos largaram a moransa fora da terra cada um a sua riqueza [...] Hospitais da terra cemitério chão onde máquinas tristes resfolegam ferrugem (ib., p. 61). 346 Cf. os evangelhos de Marcos 6/4, Mateus 13/57; João 4/44: ninguém é profeta em sua terra. 314 Como analisou Carlos Cardoso, “o amplo consenso conseguido para e através da luta de libertação nacional tinha sido quebrado e as normas e valores criados durante essa luta tinham sido minados” (2000, p. 93). O país estava mergulhado em profunda crise e o vaticínio se cumpriu: Bissau não quis acreditar que estava sendo violada violentada [...] Vergou com a dor dos seus filhos mas não se quebrou [...] nua deitou-se de bruços para receber chicotadas para receber açoite com ramos espinhosos de nhára-sikidu347 (ib., p. 65-66). Odete Semedo, dialogando com seu próprio tempo, apresenta, ou melhor, narra poeticamente em No fundo do canto a fuga da capital, a desorientação dos retirantes, a morte e o pânico, momentos extremos vividos pela autora e dos quais ela é ao mesmo tempo personagem e espectadora: Homens mulheres e crianças todos tinham de partir [...] deixar a cidade amaldiçoada que antes paraíso fora Vais aonde? Para onde os meus pés me levarem e sei que será o mais longe possível longe do cheiro e do fumo da pólvora [...] Corpos inchados nauseabundos ameaçavam inundar barrigas de jagudis348 furibundos esfomeados (ib., p. 73-74). Os leitores estão confrontados com um documento de horror. Como disse Regina Dalcastagnè, em seu livro O espaço da dor, muitas vezes é imperioso não silenciar, levar ao público “um documento que se estabelece não como análise dos jogos do poder ou descrição de torturas, mas como acolhida à dor de suas vítimas, como espaço onde a história dos vencidos continua se fazendo, lugar onde a memória é resguardada para exemplo e vergonha das gerações futuras” (DALCASTAGNÈ, 1996, p. 25). É isso que faz Odete Semedo: Que palavras poderão espelhar este desaire? 347 348 Nhára-sikidu (Poligonium acuminatum) é uma planta espinhosa, de pontas agudas e penetrantes. Jagudi, djugudi ou djugude é o abutre ou urubu, devorador de carniça. Na Guiné-Bissau, alíás, uma ave considerada sagrada. A pronúncia é oxítona. 315 [...] Para tanta aflição expressar esta dor queimando a minha alma o nosso infortúnio Este punhal... cravado no meu chão maldição de que deuses para dilacerar as entranhas da minha gente? (ib., p. 75-76). A poetisa protocola e relata os flagelos da guerra. Testemunha e registra os resultados de uma convulsão política sem precedentes para ela (“que horror: nasci em tempo de paz!”; ib., p. 25). Na enumeração daqueles trágicos momentos, o povo (“a minha gente”) é nomeado em primeiro lugar. E Odete procura os porquês e os depois e os agora, indaga o ontem, rebela-se contra o presente e perscruta o amanhã: Nenhum grito... nenhum gemido... palavra nenhuma letra alguma jamais traduziu tanto sofrer os olhos sentiram a minha gente viu E eu? E eu? (ib., p. 77). Em No fundo do canto se vai encontrar um redimensionamento da recente história guineense que não se apresenta ali como uma história linear, cumulativa e monolítica, mas que se faz por saltos e por cesuras, tornando-se plural e polissêmica. Diante da catástrofe que estava acontecendo, o eu poético se sente como que abandonado, assim como todo o país, à própria e imerecida sorte. O único recurso é o apelo ao sagrado, às preces e aos sacrifícios rituais. Onde estarão os defuntos da nossa djorson nossos titãs Onde se terão escondido asalmas349 e irans de Kobiana e de Forombal protetores de mulheres e crianças nossas crenças [...] Com devoção todos juntaram as suas vozes numa invocação (ib., p. 79). Com sua abordagem descolonizada da História, a autora procede a uma reconfiguração da cultura multifacetada do país, faz aflorar suas bases étnicas, transitando da tradição para a 349 Asalmas são os defuntos ou as almas. A pronúncia exige uma fricativa alveolar surda (/s/). Sobre a relação entre vivos e mortos, parte integrante da cultura tradicional africana, cf., entre outros, MONTENEGRO, 1992. 316 contemporaneidade, enfatizando o local e, assim, a nação na sua especificidade, reterritorializando seus mitos e tradições (“nossas crenças”), questionando e recusando a mistificação. A autora tem consciência de que a relação que o grupo ou a comunidade estabelece com sua especificidade histórica e suas origens é sumamente importante para a narração da nação. Uma comunidade de história, de destino e de cultura que se fortalece pela crença na origem comum e na veneração aos antepassados comuns. 7.4.3 O “Consílio dos Irans” A ordem do discurso na qual a literatura se situa é o espaço de liberdade (HOISEL, 2000, p. 226). Odete Semedo vai, assim, convocar, na terceira seqüência de seu livro, as entidades protetoras de todos os grupos étnicos do país. O aparato metafórico aí empregado é de enorme riqueza, extrapolando a matriz disciplinar da literatura para expandir-se pelo terreno da etnologia, não sendo estranho à literatura o recurso a outras disciplinas. Como bem reconhece Evelina Hoisel, essa estratégia não tem a ver com um mero transplante metodológico de uma área para outra. Os trânsitos interdisciplinares, ou transdisciplinares, permitem que as construções de linguagem possam ser percebidas e focalizadas sob ângulos distintos, do ponto de vista da literatura, que faz circular os saberes, ou que se coloca sob os interstícios da ciência, como afirma Roland Barthes (ib., p. 228). A autora, no “Consílio dos Irans”350, promove o reconhecimento e a valorização dos princípios religiosos, culturais e identitários de seu país. Os ritos são elementos básicos, parte essencial da sociedade guineense e não apenas sua expressão ou sua imagem. A vida mítica faz parte da visão de mundo dos africanos para os quais o sobrenatural desempenha um papel muito importante. Trata-se da “ontologia do invisível” de que fala Anthony APPIAH (1997, p. 162). Há os ancestrais, os feiticeiros, os curandeiros, os espíritos e os deuses que influenciam os negócios e os acontecimentos. Há os adivinhadores da sorte (os balobeiros e os djambakus, os mouros e os almamus) que livram os indíviduos das forças maléficas, há castigos divinos e sinais de proteção. Para tudo há cerimônias rituais, o sagrado e o invisível acompanham pari passu a vida cotidiana. É ainda Appiah que registra que o “apelo ritualístico público a espíritos invisíveis, em ocasiões cerimoniais, faz parte de uma forma de vida em que tais apelos costumam ser feitos em 350 Certos irans são ligados diretamente aos antepassados de uma família, outros somente a certos grupos dentro da comunidade e outros ainda estão accessíveis a todos os membros de uma etnia. Já foi explicado, num capítulo anterior deste trabalho (capítulo 2.6), o significado e a extensão do termo iran. O iran é a divindade, o espírito sagrado que pode proteger ou castigar, sendo um “objeto de culto e de consulta das populações animistas da Guiné” (MONTENEGRO; MORAIS, 1995, p. 222). Cf. ainda SCANTAMBURLO, 1997, p. 52; JONG, 1988, p. 7 e ss. 317 particular” (APPIAH, ib., p. 162). O Consílio dos Irans reúne todas as entidades protetoras com o intuito de salvar Bissau e o país da catástrofe iminente, livrá-los do flagelo que os abate, castigar os causadores da desgraça, pois “há culpados... / que não fiquem mudos / nem impunes” (SEMEDO, 2003b, p. 83). O episódio da grande reunião (a kontrada) das divindades protetoras das diferentes e múltiplas etnias e sub-etnias que constituem a nação guineense, juntamente com seus totens, é uma preciosa lição sobre as complexas e vivas tradições locais. “Tanta súplica e chamamento... / tamanha invocação / [...] irans e defuntos se reuniram / [...] / é hora de ouvir a nossa djorson / e os nossos defuntos (ib.). Os irans são entidades protetoras, mas também necessitam de outras forças que, conjugadas com as deles, trazem maiores benefícios a seus protegidos. Quando se vai a uma baloba351, quando o iran fala através do baloberu e do tcholonadur, nunca é dito que o iran afirma poder resolver a questão, mas sim que ele também fala com um outro (eventualmente seu superior) e acaba-se sempre por declarar no fim que é Deus que sabe e tudo está nas suas mãos. Pois há um deus ou uma divindade da djorson, que é próprio de cada etnia, e há um Todo Poderoso que está acima de todos352. Muitos rituais são necessários para se chegar até os antepassados e as divindades e ser por eles atendidos. É conhecido, por exemplo, o ritual de inquirir o futuro interpretando o estado das vísceras de certos animais (“vísceras de galos... / de cabras... / tudo preto / sinal de que nada, / mas nada amainaria / a guerra dos trezentos e trinta e três dias”; ib., p. 20), costume tradicional de muitas etnias de toda a região. Um outro ritual exige uma cerimônia dedicada aos mortos, os defuntos, e aos irans da djorson, quando são necessárias certas oferendas: uma caneca de água fria do pote que é deitada ao chão, junto ao totem; um punhado de arroz, seguindo-se uma prece ou bota fala. Depois derrama-se um pouco de aguardente e é posta uma manta sobre o totem pelo filho daquela djorson, significando que o filho se lembrou que o pai precisa proteger-se do sol, do frio da madrugada e da chuva, assim como ele próprio necessita ser protegido pelos seus mortos. Os totens são figurados por animais, cada um correspondendo a uma etnia. A verdadeira significação do totem, segundo o Dicionário de Símbolos, é “guardião pessoal ou poder tutelar” que deve ser visto como “símbolo de um elo de parentesco ou de adoção com uma coletividade ou um poder extra-humano” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2003, p. 890). O animal, segundo a mesma fonte, em sua qualidade de arquétipo, liga-se ao inconsciente e ao instinto, é símbolo dos princípios e das forças cósmicas, materiais ou espirituais: 351 A baloba é o local sagrado de culto e de consultas das religiões tradicionais guineenses, geralmente uma cabana bem construída, com um único recinto, onde se guardam os símbolos religiosos da aldeia ou da família. O baloberu pode ser do sexo feminino ou masculino. 352 Agradeço a Odete Semedo nossa troca de idéias sobre religião e o culto aos irans. 318 O simbolismo dos animais [...] remete-o a um fenômeno infinitamente mais vasto, porquanto engloba toda a história humana e não um momento apenas de nossa própria civilização. Trata-se do totemismo que, longe de estar em relação com uma certa mentalidade “primitiva” ou com um estudo “arcaico” de sociedade, atesta uma tendência fundamental e onipresente da humanidade (ib., p. 57). Odete Semedo tem consciência de que os mitos e as crenças do passado não podem ser ignorados353. Não que eles tenham desaparecido ou precisem ser reanimados, pois eles persistem no cotidiano das gentes, na continuidade ontológica do ser guineense, na sua função espiritual e social, sendo retransmitidos pela rede da oralidade e, principalmente, pela prática familiar e pela celebração comunitária. Em No fundo do canto, o especificamente guineense, na multiplicidade e na exclusividade de suas linhagens e da sua ancestralidade, é posto em destaque – são os irans e seus totens que constituem “o elo que dá passagem ao tecido arqueológico das origens”, como se expressou Carmen Lucia Tindó SECCO (2003, p. 33). A voz poética os convoca para um ato de resgate, de salvação. Em primeiro lugar, tendo sido a capital a região mais afetada pelo conflito armado, são invocadas “as sete djorson de Bissau” que “estarão presentes” juntamente com suas sacerdotisas e seus sacerdotes. Segue-se uma longa enumeração das diferentes linhagens e grandes famílias, primeiramente de “Bissau velho” (Bissau bedju), a seguir de todos os recantos do país: Irans de Bissau de Klikir a Bissau bedju de N’ala e de Rênu de Ntula e de Kuntum de Ôkuri e de Bandim de Msurum Varela e do Alto Krim de Klelé e de Brá 354 (ib., p. 83). A seguir, ocupando ainda muitas estrofes, vem a enumeração das entidades protetoras de todos os recantos do país. A autora recita sonoros topônimos, que são do conhecimento de seus conterrâneos, que conhecem seus significados simbólicos, mas de difícil apreensão para os leitores não familiarizados: 353 Interessante observar a posição, em parte contrária, de dois conhecidos escritores africanos a respeito das tradições tribais ancestrais e o conflito com esses valores dentro do incontornável espectro de influências do mundo ocidental. Tanto Wole Soyinka como Anthony Appiah ressaltam a importância das culturas tradicionais e a necessidade de conservá-las como elemento identificatório da “africanidade”. Mas Anthony K. Appiah, no seu livro A casa de meu pai, apesar de frisar essa relevância, critica o autor nigeriano por esse mostrar-se irrealista ao priorizar estratégias políticas baseadas em elementos míticos e religiosos da tradição, considerando que “a metafísica africana de Soyinka nos incapacita porque fundamenta nossa unidade em deuses que não nos foram de muita serventia em nosso trato com o mundo”, servindo o panteon iorubano como recurso literário, mas não como instrumento para enfrentar as realidades contemporâneas (APPIAH, 1997, p. 245). Eliana Reis, em seu estudo sobre a obra de Soyinka (1999), refere-se à ambigüidade da posição daquele autor, demonstrando que a posição refletida nas primeiras obras foi em grande parte mais tarde relativizada e diferenciada nos ensaios e na obra teatral do laureado nigeriano. 354 São referências aos bairros antigos e por todos conhecidos de Bissau. Depois seguem-se referências aos centros urbanos dos arredores da cidade. O glossário, no final de No fundo de canto, esclarece cada um desses topônimos. 319 Os irmãos de Pecixe e de Jeta juntarão os seus caminhos com os de Caió e Calequisse Os de Cachungo e Batucar tomarão a bênção em Bassarel Cô será o ponto de encontro dos que sairão de Bula e Binar (ib., p. 84). É imensa a gama de mobilidade da palavra. Segundo Octavio PAZ, em Signos em rotação, “a poesia é o reino onde nomear é ser”. É o campo onde “a imagem diz o indizível” (1972, p. 44). Todos os sistemas de comunicação vivem no mundo das referências e dos significados relativos. A imagem reproduz o momento de percepção e o verso evoca, ressuscita, desperta, recria a nossa experiência do real. Quando Odete Semedo desfia os nomes de todas as etnias de que se compõe a Guiné-Bissau, isso não acontece por acaso. Exatamente no momento em que a nacionalidade está posta em perigo pelo drama da guerra, a autora torna visível os pilares em que se sustenta o edifício nacional. “Nomear”, “historiar” são verbos e são ações com os quais a autora narra – e celebra – a identidade coletiva. Nomear as etnias, seus irans protetores, seus totens e arquétipos é dar visibilidade, num território tão diferenciado, à trama da História, é cartografar as diferentes etapas dos movimentos migratórios, da constituição do território guineense, pois as diversas linhagens são ilustrações vivas dessa mobilidade e desse dinamismo demográfico e do entrelaçamento social e étnico de que é composta a Guiné-Bissau. A matriz espacial (o território, a área geográfica em que a Guiné-Bissau se desdobra) e a matriz temporal (as tradições, o passado histórico) são duas vertentes utilizadas por Odete Semedo para narrar a nação. Para Wole Soyinka, é através dos mitos e dos rituais que o mundo africano consegue preservar-se, pois eles expressam o sistema metafísico e a maneira como esse sistema se reflete na formação psíquica e emocional da sociedade africana contemporânea (REIS, 1999, p. 133). No ambiente místico e mítico em que decorre o Consílio dos Irans, a tradição ancestral vem à tona, é fortalecida a confirmação de uma unidade com base na evidente diversidade e conseqüente disparidade, vistos como algo positivo, pois “da barriga duma parida / saem filhos / corre em cada um o mesmo sangue [...]. São como os cinco dedos de uma mão / os defuntos asalmas e os irans / protectores das djorson da Guiné” (SEMEDO, ib., p. 97). Acorreram os irans de todos os recantos do país, mesmo dos limites extremos do território nacional, para realizarem num ritual (“aguardente / e um punhado de arroz”; ib., p. 99) uma empreitada em comum: sustar a ameaça da guerra fratricida, exorcizar os demônios da corrupção, da ganância, da falta de escrúpulos e do proveito próprio: São os totens que tomam a palavra, cada linhagem355 tendo o seu, representado num animal (“Mássene, djorson das jibóias / 355 Linhagem é uma unidade social formada de indivíduos que reivindicam o mesmo ancestral, paterno ou materno. É a djorson em língua guineense. Um clã é uma unidade alargada, composta de várias linhagens ligadas por descendência e no interior da qual presume-se, portanto, uma ligação de parentesco. 320 Mábadje, djorson dos abutres”), enquanto a liderança do consílio “era dos Djagra, djorson das onças / e dos Badjkumon de Orento / djorson das hienas os lobos” (ib., p. 88). A voz poética insinua que nem sempre houve harmonia, muitas tensões internas ameaçam essa unidade (“uma desavença fez-me abandonar / a nossa casa”; p. 94), sendo por isso mesmo indispensável a união na hora do perigo. O poema dá a entender a existência de uma antiga e rígida ordem hierárquica, enraizada na tradição e em épocas passadas, pela qual certos grupos familiares (linhagens) gozam de mais prestígio e são socialmente mais estabelecidos (os fidalgos). Desses irans, alguns foram convocados, outros estavam presentes por decisão própria: “Não nos chamaram / a este consílio / mas somos importantes / tal como os que foram convidados / [...] Não fomos chamados / mas viemos [...] / viemos nesta empreitada / botar a nossa fala” (ib., p. 91-94). Juntos, chegam à conclusão sobre o precário estado em que se encontra Bissau e, por extensão, o país: “Bissau está doente / não valia só a sentença / era preciso a cura / suprir a chaga atroz / olhar de frente / o amanhã”. É uma insinuação de que nem sempre houve harmonia, muitas tensões internas sempre ameaçaram a unidade da grande família guineense (ib., p. 95). Segue-se uma cena fantástica, em que elementos teatrais são utilizados para aumentar a dramaticidade do momento. O texto se adensa, ora narrativo ora dialogístico, cheio de alusões tanto históricas como topográficas. Os irans procedem a uma revisão dos males que arruinam Bissau, o centro nevrálgico da nação; muitos totens tomam a palavra em exortações carregadas de páthos, numa celebração que reafirma o sentimento coletivo de complementaridade (MARTINS, 1995, p. 64), concluindo por considerar Bissau culpada. Bissau “ouviu [...] de todos [...] condenação mágoa e compaixão / Na sua carência / aceitou a culpa” (ib., p. 96). O poema intitulado “Bissau no banco dos réus” dá-lhe voz. Bissau, antes de pronunciar-se num longo discurso, obedece ao ritual dedicado aos mortos: “pinga no chão a cana / deita o arroz / derrama / água fria / e toma a palavra” (ib., p. 100). A voz do narrador retoma seu fluxo, utilizando a terceira pessoa do singular, anunciando que “Bissau [...] exausta [...] dá a todos razão / Sobre os seus ombros / carregou o peso da desgraça” (ib., p. 108) e servindo-se do discurso indireto para fazer o balanço de sua decadência e ruína. O eu da narração, uma das muitas vozes dessa polifonia, interfere mais uma vez, como um diretor teatral, descrevendo a cena: Olhou à sua volta... lixo Lembrou-se do luxo em tempos vivido [...] viu [...] a estrada de Sacoor em coma o ninho de Santa Luzia caído mirando Klikir banhado de água podre 321 Viu tudo: um museu fantasma um falecido jardim com robustos arbustos Alices defuntas vestidas de ervas daninhas [...] Relvado macabro mascarado de palhas O coreto em agonia travestido em tasca [...] uma teimosa estátua uma estrela negra356 [...] Vamos exorcizar [...] mentiras... calúnias lixos... incertezas e desastre nacional (ib., p. 108-111). Chamada pelos irans e seus totens, também comparece ao julgamento a Guiné-Bissau, denominada de “a nossa mãe / a nossa irmã / o teu sangue / braços do mesmo rio” (ib., p. 105) e que se apresenta em um desolador estado: “todos viram / uma silhueta saindo / de um monte de baga-baga / uma sombra / Era a Guiné / vinha suja... maltrapilha / pé ante pé / ...coxeando” (ib., p. 104). A poetisa prossegue com o mesmo recurso, fazendo da Guiné personagem do drama que estava ocorrendo, dando-lhe voz num longo poema com o título “Guiné bota a sua fala”, expressão da língua guineense presente várias vezes no texto, significando falar, pronunciar um discurso ou fazer uma declaração: Sou Guiné o iran de Pindjiguiti deu-me as costas muitos me esconjuram os meus filhos desprezaram-me de mim todos riem e fogem O mal que anuncio está feito nada o desfará [...] Muita mentira haverá de pairar muita calúnia misturada ao mesmo ar que os nossos filhos respiram Isso é mais que uma guerra (ib., p. 106-107). O texto vai fluindo e se encadeia harmonicamente com as cenas que vão seguir: a Guiné lembra os “embrulhos” anunciados pelo vaticínio no início do poema e começa então a quarta e última seqüência da obra, que se desenrola tripartida, cada um dos segmentos com um tema próprio. 356 Aqui há muitas referências à paisagem urbana de Bissau: a estrada de Sacoor é a estrada Marginal, em estado de grande deterioração; Santa Luzia é um bairro da cidade, também já muito degradado; as praças de Bissau eram conhecidas como muito aprazíveis, com seus coretos e jardins; hoje o mato sufoca as flores e a relva. A estátua mencionada está na Praça dos Heróis Nacionais, é a única remanescente dos tempos coloniais, tendo resistido “teimosamente” à demolição. A solução encontrada foi, então, orná-la com uma estrela negra, a estrela que consta também da bandeira nacional e é um símbolo do PAIGC, o partido que promoveu a independência. 322 7.4.4 Os “embrulhos” Alusões à história recente da região reconhecem-se claramente nesta quarta e última parte do poema, dividida em três “embrulhos”. O primeiro trata da guerra, da fuga da população e dos aproveitadores da miséria alheia; o segundo embrulho continua e intensifica esse último aspecto, referindo-se aos larápios e oportunistas que muito aproveitaram com o conflito; o terceiro embrulho, ponto alto dessa seqüência, gira em torno do discurso na primeira pessoa do Urdumunho, sátira cáustica ao momento político por que o país estava passando. Pode causar estranheza, à primeira vista, a imagem dos “embrulhos”. O Dicionário Houaiss define esse vocábulo como: “pacote, volume”. Mas também como “coisa confusa, intricada, embrulhada”, ou “confusão intencional em uma negociação, com o fim de abusar da inexperiência ou da confiança de outrem” (HOUAISS, 2000, p.1120). Todos esses sentidos estão presentes no poema e prefiro deixar em aberto qualquer tipo de conclusão a que se possa chegar. A primeira seqüência é aberta com o poema “Lembrança”. O que pode uma vítima de guerra, uma personagem de um drama sentido na própria carne, o que pode uma escritora além de protocolar o que vivencia, além de gritar de desgosto e raiva? Talvez calar? Não mais lembrar o troar dos bombardeios, o gemido dos feridos, o pranto das viúvas e dos órfãos, o silêncio dos mortos, a indignação do povo, a profanação do chão dos antepassados? A autora, transitando do realismo à alegoria, compôs um poema-libelo, um poema-testemunho. O “primeiro embrulho” retoma o cenário dramático da guerra com seus efeitos devastadores: Onde está Estin?357 Sucumbiu durante a guerra! [...] Mar de gente... floresta intensa povo prostrado difícil a travessia de lálas358 bolanhas e rios bombas e obuses traspassando a carne humana impotente Bens desaparecidos gente em pânico famílias inteiras perecem a construção perdida entre bombas (ib., p. 115). O discurso passa de repente para a primeira pessoa, o sujeito poético assume inteiramente o sofrimento que não é somente seu: “Lágrimas corriam / pelo meu rosto / sem tolher / lamento / arrepio / esconjuro” (ib., p. 119). Tem-se aqui, mais uma vez, uma voz 357 358 Estin é um termo da língua guineense que significa fulano, um alguém qualquer. Lálas são as várzeas que se tornam alagadiças no tempo das chuvas; as bolanhas ou bulanhas são campos também alagáveis, às margens dos rios, preparados para o plantio do arroz aquático. 323 testemunhal que recupera, a seu modo, com sua dicção, experiências vividas coletivamente de forma traumatizante, oscilando entre o “eu” e o “meu” e o “nós” e o “nosso”: Hoje as asas do mal voaram até nós o mato desaconchega sufoca o meu povo sufoca as minhas crianças sem esperança no amanhã. [...] Choramos a nossa aflição e lembramos ontem desgraça em terra alheia dela... minha casa hoje cheia (ib., p. 120-121). O “segundo embrulho” apresenta os males que acompanharam o conflito armado, a desolação (“é o toka tchur de toda uma geração”; ib., p. 132), a dissolução dos costumes, a desmoralização, a multiplicação dos larápios (“vadios em tempo de guerra / do alheio aproveitaram”; ib., p. 131), ladrões e oportunistas: “Quem terá levado / os meus haveres / bens que construí / com tino e sacrifício”? (ib.). O caos é completo, “o presente não existe / do passado / apenas uma lembrança tênue / despassado / hoje é nunca / despresente” (ib., p. 135). Nada está no mesmo lugar: Esqueletos com medo da pele fogem apressadamente da carne a caveira mirando tudo vendo melhor que os olhos Corpos sem ossos serpenteando nas estradas deixando nacos de vida no caminho Um olho vesgo de soslaio mirando o passado e o presente de esguelha um olho zarolho (era de uma criança velha) disse: olhem... olhem... ali vai o meu país...! (ib., p. 135). Quando Odete Semedo se refere a acontecimentos concretos da atualidade, envolve-os quase sempre numa linguagem divertida e desconstruída. A distorção das imagens, deformadas até o grotesco, denota um distanciamento e uma propositada atitude de mascaramento, um disfarce da realidade, não para ocultá-la, mas para deslocá-la, desfocá-la. Utilizando estratégias paródicas de desconstrução, a escritora lança mão de paradoxos e ironias, do burlesco, do anedótico e mesmo da ridicularização para traduzir sua indignação e seu claro posicionamento face ao atual estado de coisas no seu país. O humor transmite ao texto um tom corrosivo que destrói a postura épica anterior. Entram em cena personagens esdrúxulas, cujos nomes 324 inventados já anunciam a categoria onde devem ser encaixados: “Vivêncio / filho de Prudêncio / jamais a sua voz se fez ouvir / senão pela boca alheia” (ib., p. 138). Há também o “Matutino / virando Vespertino / mais Viviano / e Presentino / cada um a sua história” (ib., p. 140), personagens dúbias que se anunciam antes da abertura do terceiro embrulho, conotados com a corrupção e o oportunismo: “Nascerão corpos novos / ajustados à medida / frutos da metamorfose / Não serão nem carne nem peixe / invertebrados / [...] Não serão nem galho nem feixe / nem da fauna nem da flora” (ib.). O código onomástico é da maior importância e sua decodificação pode trazer novas luzes à interpretação. Símbolos da cínica acomodação e da falta de escrúpulos daquele momento que conturbava o país, essas personagens são alvo da zombaria da autora: Matutino foi crescendo com o sol cada vez mais pujante Manhã virando tarde Matutino Vespertino se tornando Jurou até a morte jamais ficar para trás mas para trás passar os outros [...] De tão astuto até a morte enganou vomitou a luz do dia e Vespertino se tornou (ib., p. 141-142). Na censura dos males que atacavam a sociedade guineense, a dicção da poetisa se torna mordaz e implacável, referindo-se aos “falsos heróis”, denunciando-os como “bicéfalos, duas cabeças, quatro caras” e dos quais o país estava cheio. Servindo-se do burlesco e do caricato, da ambigüidade e da ironia, do grotesco e do satírico, Odete Semedo procedeu a uma corajosa diatribe do momento sócio-político que se sucedeu ao conflito, quando a inescrupulosidade, a fraudulência e a bandalheira pareciam predominar: Viviano viveu anos convivência por conveniência [...] Passou anos na prostituição sua contribuição na reconstrução [...] Anos passaram Viviano mudou de nome de postura e de residência por conveniência das circunstâncias Hoje Viviano é Presentino de futuro garantido manha no bolso 325 discurso na mão vai trocando de camisa [...] O Viviano de ontem hoje Presentino neto de nhu Prudêncio e de nhara359 Conveniência anda de porta em porta pronto a vender palmo e meio de trapo e trapaça a quem mais der (ib., p. 143-144). Clifford Geertz, em O saber local, lembra que “no centro político de qualquer sociedade complexamente organizada sempre existem uma elite governante e um conjunto de formas simbólicas que expressam o fato de que ela realmente governa”. Essas elites, diz o autor de importantes ensaios de antropologia interpretativa, “justificam sua existência e administram suas ações em termos de um conjunto de estórias, cerimônias, insígnias, formalidades e pertences que herdaram [...] ou inventaram” (GEERTZ, 2001, p. 186-187). Nos regimes políticos mais modernos, continua Clifford Geertz, a tendência dos dirigentes de “antropomorfizar o poder” é de certo modo dissimulada (ib.). As figuras carismáticas que conhecemos na Guiné-Bissau da pós-independência são personagens do poder local que governaram de forma quase absoluta e, se conseguiram um grande número de adeptos, foi também a partir da pressão e do medo, “com iniciativas nem sempre tranquilizantes” (ib., p. 215), aliciantes, servindo-se da crença generalizada de que a autoridade central é detentora do poder sagrado (ib., p. 219) e tem como objetivo apresentar-se como “soberano exemplar”, com faculdades de fazer retornar a ordem perdida e criar formas de governo mais eficientes e mais a favor do povo (ib.). Ao abrir-se o “terceiro embrulho”, Odete Semedo vai mais além na sua crítica social: propõe-se um trabalho de dessacralização da autoridade e isso a partir de uma calculada desconstrução do espaço que é ocupado pelo poder hegemônico e suas representações, fornecendo meios para derrubar os mitos fundadores dessa hegemonia. A escritora, tal como o fizeram anteriormente Abdulai Sila e Filinto de Barros, empreende um trabalho de profanação do poder estabelecido, posicionando-se como porta-voz do povo, insatisfeito e decepcionado com o comportamento da classe dirigente. Essa insatisfação popular é comum a quase todos os países africanos saídos da colonização. Fanon já reconhecia a vulnerabilidade das elites locais, afirmando que 359 Nhô e nhara são formas derivadas de senhor e senhora, usuais na língua guineense. As nharas (existiram também as sinharas) eram as poderosas e influentes intermediárias entre a sociedade local e os estrangeiros comerciantes da época colonial. 326 [...] em África, os países que se tornam independentes são tão instáveis como as suas novas burguesias ou os seus príncipes renovados. Depois de alguns passos hesitantes na arena internacional, as burguesias nacionais, não sentindo já a ameaça da potência colonial tradicional, descobrem de súbito grandes apetites (FANON, 1980, p. 223). Nesta última parte do poema, confirmando o pensamento do escritor antilhano, aparece em cena o Urdumunho ou Corpo sem cabeça que, tal como anteriormente o “gigante das sete gargantas” com seu “grande bandulho”, sua “cabeça de aço” e “pés de barro” (SEMEDO, 2003, p. 37), são figuras grotescas e necessárias para a composição do quadro pouco otimista do arruinamento moral do Estado e que sublinham a intenção desconstrutiva e carnavalizante da autora. O discurso dominante é aqui desmontado, desmascarado, num longo monólogo (“Discurso de Urdumunho”; ib., p. 151-157). Urdumunho é termo da língua guineense que significa “levantamento de pó devido a uma agitação de ar” (SCANTAMBURLO, 2002, p. 639), correspondendo ao português “remoinho” ou “redemoinho”. Como já vimos em capítulo anterior (5.10), é considerado popularmente como portador de infelicidade e azar. Uma tal metáfora alarga o campo semântico do termo, sugere desordem e desarmonia, confusão, além de medo e susto. A insinuação é bastante evidente para os que acompanham os trâmites políticos do país naquela conturbada fase. A autora aciona códigos parafrásicos e simbólicos, escamoteando a censura e, certa de ser compreendida por seus conterrâneos, apropria-se do jargão corrente do discurso hegemônico do momento, tratado pelo prisma da derrisão, em aberta paródia. O delírio narcísico e desvairado do Corpo sem cabeça360 é um dos pontos altos de No fundo do canto. Uma visão profética ou, quem sabe, movida apenas pela sensatez, pois o “corpo sem cabeça”, com seus “pés de barro”, caiu, foi deposto poucos meses depois de publicado o livro. A voz que se faz ouvir na paródia é sempre antagônica à voz na qual ela se calca. Odete Semedo se apropria do discurso do chefe político e essa deformação ou esse desmontamento, subvertendo bem humoradamente o sentido original do texto-base, cria enunciados risíveis e mesmo inverossímeis, cumprindo a função histriônica, desmoralizante, dessacralizante da paródia (GOMES, 1999, p. 31): “Meus irmãos [...] / escutai esta voz / fala de um irmão / servedor da Pátria / e do povo / Se me falta a cabeça / sobra-me a eloquência” (SEMEDO, ib., p. 151). Segundo Affonso Romano de SANT’ANNA (1991, apud GOMES, ib., p. 30), o conceito de paródia está estreitamente ligado ao receptor, exigindo o conhecimento do texto ou fala original, anterior, e do qual a paródia é um reflexo ao contrário, distorcido e caricatural. O carisma com que são envolvidos os chefes supremos é aqui desmoralizado a partir de um discurso fictício, de idéias mirabolantes, mas não muito afastadas do real, em que as verdadeiras 360 Na Guiné-Bissau existe a crença de que uma pessoa reconhece inconscientemente que está para morrer e, nesse período que antecede a morte, a cabeça, isto é, a razão, já não domina seus atos e essa pessoa muitas vezes se comporta de forma insana e desarrazoada, sem cabeça portanto (informação da Autora). 327 necessidades do povo não são tomadas a sério: Hoje é dia nacional de poupança sinal de que todos devem apertar os seus cintos sem fiança Nada de receber ao final do mês que é vício colonial trato entre patrão e freguês nada mais burguês (ib., p. 151). Tem-se aqui a apresentação desmitificada, desmistificada e mesmo hilariante da presença do poder, um poder desprestigiado moralmente e aqui retrabalhado em nível literário, mediante o tratamento do inverso. Com uma tal profanação, se alegoriza uma cadeia de mando herdada, através da história, em um processo de substituições, que inclui também o sistema políticoadministrativo que antecede aos feitos aqui aludidos. O processo de dessacralização funciona dessa forma na constituição de um espaço de carnavalização (Bakhtin), na “des-realização” (Bhabha) pela inversão das categorias simbólicas de hierarquia e de valor. O poema é também uma desconstrução diatríbica, mordaz e irônica da sede de modernização e da postura “civilizatória”, sinônimo da imitação acrítica dos modelos do colonizador que caracterizavam os primeiros tempos da pós-independência: [...] Não vos deixeis levar por ideais neocoloniais pelo saudosismo da pequena burguesia gente descontente com a vitória do povo pretos de alma branca Para quê luz eléctrica? Saudosismo do imperialismo colonial pois nada melhor que uma noite escura para contemplar a natureza e a beleza celestial Voltemos às nossas origens irmãos Para quê, importar fósforos? Mil vezes melhor atritar duas pedras e obter o lume precioso sem encher o cofre imperialista Assar ao céu aberto um porco-espinho caçado à pedrada Água canalizada? Outro vício sem perdão pois nada igual a uma marcha rumo à fonte 328 para restabelecer as pernas do povo e manter o desequilíbrio da coluna invertebrada [...] só para me atormentarem falam em hospitais Que heresia contra a nossa mata cheia de mezinhas e raízes benéficas para a saúde do povo e bem estar popular (ib., p. 153-155). O “Discurso de Urdumunho” é bastante extenso, seguindo no mesmo diapasão, frisando com afirmações caricaturais a intenção de apresentar com disparates a séria situação de carência do país, onde tudo faltava e continua faltando: o sistema de energia elétrica não funcionava e continua sem funcionar, a situação escolar e hospitalar era e continua a ser catastrófica, os salários estavam e estão sempre atrasados, a administração desbaratada. O recurso adotado, elegendo uma estratégia histriônica e um posicionamento iconoclasta e desmistificador, constitui uma nova versão da narração da nação, em que as vozes subalternas marcam o contraponto. Bakhtin, referindo-se indiretamente às más condições de vida e aos constrangimentos do Estado autoritário, mostra, em seu ensaio sobre a obra de Rabelais361, o recurso à carnavalização como uma forma literária de reação a essa situação, uma válvula de escape face aos constrangimentos da autoridade estabelecida, à frustração e ao descontentamento. Através do grotesco e do paródico, Odete Semedo aposta no efeito moral e purgativo do riso como liberação de tensões sociais e afetivas, num jogo metafórico de combinação dos contrários, aproveitando as duplicidades da linguagem, invertendo o sentido e virando pelo avesso o discurso autoritário: [...] Muitos falam da cooperação da relação entre povos etcétera e tal Para quê tudo isso? Para adquirir maus hábitos estrangeirismo exagerado almejar confortos desnecessários impróprios a patriotas [...] Olhemos para o nosso umbigo [...] Cavemos a terra Enfiemos a cabeça na areia em busca das nossas raízes [...] jamais vos esqueçais somos filhos de lavradores muito bem instalados nas nossas tabancas em tempo de férias (ib., p. 155-157). 361 Rabelais and his World. Bloomington: Indiana UP, 1984. Citado entre outros por HALL, 2003, p. 224 e ss. 329 Tendo ousado confrontar-se com o poder hegemônico, Odete Semedo faz a voz da enunciação voltar ao Consílio dos Irans. Depois da catarse, expurgados os males, exorcizado os demônios, Bissau se recupera. A salvação se efetua quando todas as etnias, depois de terem sido abertos os “embrulhos” que encerram a história contemporânea do país, unem-se para levantar Bissau e a Guiné, tirando-as do abismo. A solução partiu de dentro, saiu do conclave reunido e unido; a autora não foi buscar na “ajuda estrangeira” nem na “cooperação internacional” uma resposta para resolver o impasse em que sua terra natal se encontrava. Foram os ancestrais, os irans e seus totens, os “viventes da terra, do mar e do ar”, que num ritual sagrado, purificaram e livraram “Bissau e Guiné”, reerguendo-as dos escombros, livrando-as do “corpo sem cabeça”, finalmente vencido: “Bissau quis levantar-se / [...] Sozinha não era capaz / De repente / Outras mãos fizeram-na levitar / Mãos da Guiné? / [...] Três Onças de ar feroz / o Porco-formigueiro ...matuto / a Lebre ...astuta / o Macaco ...ágil / o Abutre ...persistente”. Ao lado dos totens, interferem também os irans mesmos, antepassados de moransas seculares: “Ominga habilidosa / Oracuma destemida / Onaca com a sua luz / Dabatchiar e Badingal [...]: Todos ... de fidalgos a servidores / viventes da terra / do mar e do ar”. Indispensável em qualquer ocasião de celebração ou de súplica, procedeu-se ao ritual derradeiro: “beijaram o chão de bruços [...] limparam os rostos / purificaram / com água doce e salgada / Bissau e Guiné / enquanto sem cabeça / o corpo se debatia / na agonia” (ib., p. 158-160). Enfim, com a “Partida dos Irans” (p. 161), cumpridos os rituais, seguese uma outra fala, largando “no vento a poesia canto” (ib., p. 167), um pouco como a bonança depois da tempestade. A literatura do trauma tem em Odete Costa Semedo uma representante muito expressiva. Entretanto, não se trata aqui de uma escatologia. Muito pelo contrário, esse “desabafo escancarado” evidencia-se em parte como um toka tchur, a cerimônia fúnebre tradicional. Mas é também um caminho para a superação das angústias e traumas de uma coletividade, com a elaboração dos díspares significados da realidade e como um instrumento para a projeção de suas esperanças. O Cantor da alma precisou buscar novas referências e novos parâmetros orientadores, encontrando a sua voz mais verdadeira: “o meu grito sussurrante / o meu silêncio / em alarido / [...] macaréu fustigando / saburas e mufunesa” (ib., p. 167). São os versos finais do livro, do último poema. A escritora propositalmente mistura duas modalidades de ser no mundo: através das ações profanas e através das ações sagradas, como postula Mircea ELIADE (1972). No plano do profano, o discurso do poder, a publicidade da governança, a autoridade da história, o desrespeito à tradição, tudo é parodiado, travestido, estilizado, reaproveitado no contexto literário de No fundo do canto. 330 No plano do sagrado, o ponto alto é o Consílio dos Irans, quando acontece o grande encontro das divindades e entidades míticas e religiosas. A escritora mostra seu empenho em prestigiar as raízes de seu povo e dela mesma, ressaltando a diversidade das organizações sociais co-existentes no mosaico cultural guineense. A nação guineense é aqui remapeada e recuperada. No plano das idéias, Odete Semedo conseguiu alcançar uma conexão entre a condenação aos horrores da guerra e o questionamento a respeito da política local contemporânea, conciliando a referência a fatos históricos e etnográficos com a invenção poética. A nação guineense é desmantelada – fazendo-se sentir depois os efeitos da finitude do Estado e a percepção dos porquês desse desmantelo; as razões ou causas são arroladas de forma ora dramática, ora sarcástica, ora divertida – para depois ser reconstruída poeticamente, rearticulada, ressaltando-se a crença num futuro melhor362. Verifica-se no poema uma mescla de fatos e fantasia, de vivência e de símbolo, emergindo um tempo não linear com tênues fronteiras entre a realidade histórica (a queda de Bissau), o mito e a invenção (a reunião dos irans) e a postura política e ideológica (a crítica envolta nos “embrulhos”). Com isso, na mesma linha das idéias de Wole Soyinka, Odete Semedo executa um projeto de nacionalismo cultural destacando e revalorizando os elementos nativos, consciente de que os mitos, os ritos, a crença e a tradição desempenham um importante papel no estabelecimento de uma identidade nacional. O desaparecimento das referências míticas de um povo equivaleria à perda de suas bases, por ele chamado “lar original, fixo e sagrado”, pois quando um povo começa a se ver historicamente e a adotar uma concepção linear do tempo, põe em perigo suas obras de arte místicas e uma visão de vida que inclui os milagres (Nietzsche, A origem da tragédia, apud REIS, 1999, p. 133-134). Para levar a efeito o processo de auto-apreensão, o escritor africano “deve provocar uma reversão de perspectivas” e para isso “torna-se necessária a construção de uma etnicidade histórica, cultural e política que insista na diferença e de uma identidade cultural que cumpra um papel importante na afirmação de um eu e uma cultura coletivos, baseados numa história e ancestralidade comuns” (REIS, ib., p. 135). O processo de recordação, de reflexão, de testemunho, de desnudamento do passado (e do presente) e de ridicularização desconstrutiva ultrapassa largamente os registros que envolvem somente revivências. É, entretanto, apenas um dos muitos recursos utilizados nesse longo cantopoema. 362 Agradeço a Odete Semedo as preciosas explicações que me prestou, sem as quais muito das riquezas do texto me teriam permanecido inaccessíveis. Não coube aqui referir-me a todos os poemas desse conjunto excepcional, mas remeto os interessados à obra, na esperança de que esses meus comentários contribuam para sua melhor compreensão e apreciação. 331 7.4.5 Retraçando territorialidades Em No fundo do canto, como vimos igualmente em Mistida, se constrói um universo de significações que, pela transgressão da história real, cresce em perspectivas, desdobra-se em polissemias. A sugestão, mais do que a enunciação clara, tem preferência e talvez seja um tal recurso que mais se adequa a captar o que subjaz da história não contada, e sim alegorizada, insinuada. Emerge do poema um mundo possível que acontece paralelo à historicidade e guarda dentro de si um anelo, uma aspiração, uma esperança, sempre de novo reformulada, camuflada às vezes em revelações mágicas ou maravilhosas, outras vezes em galhofa ou ironia, que obriga o leitor a revisar seus posicionamentos e a refletir sobre os altos e baixos do exercício da autoridade, sobre a fragmentação do poder, suas razões e desrazões (CARMONA)363. Considerando a interação entre o leitor e o texto, Evelina Hoisel comenta que o texto, muitas vezes, leva aquele que lê a percorrer determinados caminhos, “a atravessar os labirintos que ele constrói”. E, prossegue ela, se “as estratégias de leitura são acionadas pelo leitor, o texto também abre sendas, [...] traçando e retraçando suas territorialidades” (HOISEL, 2000, p. 228). Os poemas de Huco Monteiro e de Respício Nuno, o canto-poema de Odete Semedo, assim como os romances de Abdulai Sila e de Filinto de Barros amealham um verdadeiro transbordamento de significados, um acúmulo de símbolos e um complexo jogo de codificação que exige do receptor conseqüentemente um esforço de decodificação, convidando a uma abordagem plural, uma leitura não linear, reflexiva e questionadora. O processo de dessacralização, diz Luis Javier Hernández Carmona, funciona na medida em que o autor empreende a desconstrução de um espaço que antes era ocupado pelas forças hegemônicas e suas representações para, numa reterritorialização, fazer cair os mitos fundadores desse espaço de poder. Não importa o nome nem o rosto dos déspotas – um ditador latinoamericano ou um comandante guineense – mas sim os símbolos (objetos e espaços) através dos quais os conhecemos. O escritor, conscientemente, empreende a profanação do poder estabelecido, violando seu território e deitando por terra os ídolos, “quebrando com isso a cadeia de mando herdada através da história em um processo de substituições que engloba todo um sistema político-adminitrativo que antecede os feitos narrados” (CARMONA). O fazer literário dos autores que acabamos de analisar reforça a convicção de que é possível (e mesmo desejável) realizar a representação da comunidade imaginada que é a nação, construindo-a pelo prisma da alegorização de referentes históricos ou a partir do avesso da 363 Cf. as indicações do site consultado na bibliografia final. Não me é possível dar referências do ano de publicação nem na paginação. 332 realidade, desobrigada da objetivação cientificista do factual e articulada pela tangente dos referentes simbólicos ou pelo instrumento da ironia, da sátira, da paródia e sobretudo pela desmistificação, desmitificação e pela dessacralização do poder. Os pés de barro dos ídolos estão sempre na origem da sanha iconoclasta. 8 CONCLUSÕES: O DESAFIO DO ESCOMBRO Obras perfeitas, e de repente, só Deus as faz. Cônego Marcelino Marques de Barros La literatura es, a la vez, reflejo y configuración de esa concepción global que toda cultura conlleva. Es el lugar donde la identidad cultural se imprime, se organiza y se expresa como una experiencia viva, como un diseño simbólico capaz de involucrar un mundo total en movimiento según pautas de percepción, de acción y de conocimiento propias de cada sociedad. Júlio Ortega. Crítica de la identidad Quando se observa o frontispício do atlas de Abraham Oertel, Theatrum orbis terrarum, de 1570, chega-se à conclusão de que muitas coisas não mudaram daquela época para cá. A estampa tem uma eloqüente simbologia. Ali, naquele “teatro do globo terrestre”, o frontispício é como a bocade-cena, e representa alegoricamente o plano do mundo, numa ordem hierárquica baseada na importância atribuída a cada um dos atores, ou melhor, das atrizes: em maior destaque avulta-se a Europa, representada como rainha, com cetro e coroa, segurando um globo imperial, indicativo da hegemonia das potências cristãs ocidentais. À sua esquerda, vê-se uma princesa oriental coberta de jóias, com um turíbulo de incenso – a Ásia das especiarias, das riquezas exóticas e cobiçadas. Em frente, do outro lado, uma mulher negra, com vestimentas modestas, empunhando um raminho de uma planta existente no Egito, não deixa dúvida tratar-se da representação da África. Na parte inferior do frontispício, uma figura de mulher impudica, sensual e nua, simboliza a América; ela segura numa das mãos uma cabeça de homem cortada e na outra uma clava, sugerindo a antropofagia e o estado “natural” de como viviam os gentios, de uma forma anárquica e regidos pelo instinto e pela barbárie. A Oceânia está ali simbolizada por uma cabeça feminina sem corpo, indicando o desconhecido, a terra incognita (Enciclopédia ENAUDI, 1984, vol. 1., p. 130). Uma inesperada popularidade cobriu de fama e reconhecimento Abraham Ortelius (forma latina do sobrenome Oertel)264 que viu sua obra reproduzida e reeditada em toda a Europa da época. Considero importante registrar essa grande divulgação pois, através das múltiplas edições, também se disseminou a imagem redutora, estereotipada e eurocentrada da divisão do mundo e 264 Abraham Oertel (1527-1598), cartógrafo holandês, mais conhecido como Abraham Ortelius, é o autor do primeiro atlas mundial, no sentido moderno, em forma de livro e que lhe valeu a fama do maior geógrafo do século XVI. O termo “atlas” não era ainda usado na época. Publicado originalmente em latim, conheceu um sucesso imenso, tendo tido entre 1570 e 1612 dezenas de edições, em sete línguas diferentes: em latim, alemão, inglês, francês, holandês, espanhol e italiano. 334 das relações de influência e de poder. Os estigmas já vinham daquela época: a pobreza e insignificância africanas e o erotismo e primitivismo do “novo mundo”. A África, desde tempos remotos, era vista de forma negativa e preconceituosa, como o continente das trevas do conhecimento e da carência. Outros atlas reafirmaram, no correr dos primeiros séculos da história da cartografia, essa concepção eurocêntrica e estigmatizadora. As narrativas de viagem, igualmente. A assim chamada literatura colonial, apresentando uma visão da África a partir do olhar europeu, condicionado pela necessária inferiorização legitimadora da dominação, mascarada pela “missão civilizadora”, vai reforçar o relacionamento assimétrico e a representação redutora de todo um continente. Apostasiando as dificuldades enfrentadas, glorificava-se, na mesma proporção, a empresa salvacionista portuguesa. O cutelo das independências não cortou inteiramente a árvore plantada pelo colonialismo. Quando a liberdade foi conquistada, em muitos dos países africanos o sistema colonial estava intacto, tendo sido meramente necessário africanizá-lo. O abismo entre a riqueza e o bem-estar de uns poucos e as massas desfavorecidas permaneceu intransponível e os novos líderes continuaram muito distantes do povo. Mas, em Moçambique e na Guiné-Bissau, não foi bem assim. Talvez por ter sido necessária uma luta armada e cruenta, talvez pela grande sabedoria que guiou os seus dirigentes, Amílcar Cabral e Samora Machel, que decidiram organizar seus movimentos a começar da base, de baixo para cima. Organizar o povo significou que o povo não estava separado de seus dirigentes. Foi criado um sentido de unidade e, na Guiné-Bissau, as idéias de Cabral iam no sentido de que o futuro podia ser construído mais pelo retorno ao espírito comunitário africano do que a partir da cópia de modelos sociais e políticos do colonizador – o caminho escolhido para a superação do atraso e do subdesenvolvimento foi a via do socialismo. É preciso ter sempre em mente que é apenas desde os meados da década de 70, portanto só nos últimos trinta e cinco anos, que do chão guineense vozes se vêm alteando para se expressarem como sujeitos, indivíduos saídos da anulação colonial. Até então silenciados, são poucos ainda os que se arvoram a exteriorizar sua subjetividade. Mas, desde as primeiras manifestações literárias, quando soaram os brados dos “meninos da hora de Pindjiguiti”, e sobretudo a começar da década de noventa, o espaço textual guineense está marcado pelo exercício de uma “estratégia de descentramento”, usando a expressão de Jacques Derrida, a partir da qual se desloca, expulsa do seu lugar a cultura européia, que não mais representa a “cultura de referência”. A fala enunciadora, mediando o resgate do que havia ficado marginalizado, libera outras formas de dizer o mundo, articulando o saber local recém-descolonizado, inserindo-o no contexto da nascente nacionalidade, fazendo emergir fontes simbólicas e afetivas que plasmam a identidade cultural (BHABHA, 1998, p. 199) do recém-fundado Estado da Guiné-Bissau. 335 A epígrafe que encima o capítulo 3 de meu trabalho nada tem de pessimista. Antonio Candido se refere, naquele texto, à literatura brasileira do romantismo – ponto de partida, na sua visão, para a formação das letras de nosso país. Quantificada, a literatura guineense é certamente modesta, comparada às “grandes”, o que nada significa objetivamente, pois é ela de fato a expressão do povo guineense. Ela é, ao mesmo tempo, o reflexo e a configuração da identidade cultural daquele povo. É o território onde o sentimento de pertença se imprime e se arraiga, se organiza e se exprime, transmitindo a vivência individual, sim, desse ou daquele autor, mas igualmente tornando a experiência subjetiva o envólucro da identidade coletiva embasada nas raízes comuns – múltiplas que sejam, e que de fato são. Vimos que Silviano Santiago defende com veemência, em vários de seus escritos, a necessidade de “descolonizar” a cultura dependente. Isso significa substituir a autoestigmatização de inferioridade, de incapacidade por um comportamento vertical de autoafirmação, assumindo a diferença como algo de positivo, forte e fértil. Se não existem, até o presente, obras ensaísticas que, como no Brasil e na América Latina em geral, se ocupem com a divulgação e mesmo com a construção da “guineidade” (conceito imaginado, como é, segundo Anderson, a idéia de nação, como também a de etnia, mas nem por isso menos relevante), é a partir do discurso literário que também a Guiné-Bissau está aos poucos processando o campo do pensamento identitário e a configuração do caráter nacional, distanciando-se seus escritores da dicção hegemônica, restritiva, autoritária e monolítica, que interpreta a nação como o aparato do poder ideológico do Estado. Pudemos constatar, nas obras analisadas, o amplo espectro através do qual são construídos campos de significação e representações, não sendo possível fugir às ambivalências inerentes às sociedades modernas, da tensão entre o subjetivo e o público, entre o singular e o coletivo; entre, por um lado, o amor e o apego ao “chão” e, pelo outro, o horror e o repúdio ao mau exercício do poder, dissimulado sob muitas máscaras. A literatura é um espaço de intervenção que estabelece as fronteiras culturais da nação guineense e deixa emergir sua “guineidade”. Vimos igualmente que o conceito de guineidade é ambivalente e fluido, como é ambivalente, fluida e instável a própria noção de nacionalidade. As ondulações da nova sociedade que está em vias de formação no país, com suas controvérsias, suas incoerências, suas buscas, estão em direta correspondência com o artificialismo das fronteiras impostas e a recente história do Estado que se quer Estado-Nação. O próprio intelectual terceiro-mundista possui uma configuração ambivalente e híbrida, pois no seu ser está gravado o selo da aculturação, da ocidentalização, o que não o faz necessariamente perder o elo com as origens. Sendo a independência dos estados africanos algo de muito recente e a diversidade étnica muito grande, é também muito nova ali a idéia de nação e o reconhecimento de um pertencimento dentro de 336 limites geopolíticos que antes não existiam como tais, isto é, do país “Guiné-Bissau” como uma unidade. Quando falo de guineidade, ligada à literatura, refiro-me ao modo de como o texto literário se inscreve no sistema cultural guineense. Vimos que não se trata, como o foi num primeiro momento, de uma oposição à lusitanidade, ou portugalidade, e sim, muito mais, de uma auto-afirmação identitária, baseada no respeito e no apreço à alteridade, na aceitação das culturas nativas e tradicionais, na vontade de enfeixar todas as diferenças, todas as especifidades, no seio comum e no elo umbilical com a pátria, mátria ou frátria. Mas não só. A guineidade tem a ver também com o progresso e as demandas do tempo atual, com a capacidade de confrontar-se com os benefícios e atrativos da técnica e do desenvolvimento em geral, mas atentando para uma desideologização das articulações alienantes, como disse ABDALA JR. (1989, p. 19), numa atitude conscientemente antropofágica, pluralmente guineense, híbrida e aglutinante. Assume-se o que interessa, africanizando o importado, misturando a partir de várias fontes o coquetel cultural que se vai juntar ao já múltiplo caldo étnico nacional. É preciso alimentar, incentivar e levar em conta a capacidade do povo de aproveitar o que o mundo externo lhe oferece, sem abrir mão de sua singularidade, aliando o dinamismo do contacto cultural externo com o positivo e digno de ser conservado das culturas autóctones, afastando-se do tradicionalismo, muitas vezes sinônimo de primitivismo, que traz, reacionariamente, o perigo de uma guetização do africano (ib., p. 20). Amílcar Cabral, sempre adiante do seu tempo, já assim preconizava em seus discursos, tanto nas matas de seu país quanto em plataformas internacionais, aonde ia buscar adesões para a causa libertária guineense e cabo-verdiana. Os pensadores africanos são unânimes em concordar que um tema fundamental das tradições filosóficas da África negra baseia-se na idéia de que a identidade do indivíduo nunca pode ser separada de seu contexto sócio-cultural. Em lugar do cartesiano “penso, logo existo”, nas tradições africanas predomina a idéia de que “eu sou porque nós somos; e é porque somos, que eu sou“, como se expressou John S. MBITI (1989) em seu livro sobre filosofia e religiões africanas. Como o griot ou o djidiu da cultura mandinga, o escritor está revestido da obrigação de preservar a memória cultural de seu povo. Recontando a história, ressuscitando as lembranças, recuperando, pela palavra ou pelo canto, sempre de novo, as tradições encrustradas nos mitos e na memória popular, ele torna-se o porta-voz das pulsões de sua sociedade. É o “djidiu de caneta”, como ironicamente se auto-nomeou o narrador de Mistida Abdulai Sila (1997) e também, anteriormente, Félix Sigá (“ami i jidiu di kaneta”), num poema acutilante na língua guineense: djidiu de caneta, que esfola palavras, esculpe o papel, o trovador (djidiu ou 337 jidiu) que não negocia, que nada pede a ninguém, destemido, aquele que não se deixa corromper, que não se deixa influenciar e faz do uso da palavra sua missão265. Vimos, ao longo deste trabalho, como nas tradições filosóficas africanas, em geral, a ética e as reflexões morais tendem a focalizar muito mais as estruturas coletivas do que a tomada de decisão individual. É o papel do intelectual africano, seja ele filósofo ou artista, servir de intermediário entre o indivíduo, com suas aspirações e expectativas, e os interesses do coletivo social; ser o mediador capaz de integrar os complexos relacionamentos nos espaços descolonizados; procurar o equilíbrio entre os autênticos interesses das culturas africanas tradicionais e as exigências do mundo contemporâneo, pautado nos padrões culturais ocidentais. A literatura engajada, protestatária e contestadora, de tão longa tradição na África, depois da “noite colonial”, tomou novas feições, relegou a um segundo plano a confrontação com o “branco” dominador e vilão, para meter o dedo nas próprias gangrenas, denunciando-as, desconstruindo o mal para buscar um antídoto, uma saída. O que o africanista alemão Janheinz Jahn constatou, já na década de sessenta, referindo-se a Angola, estendo eu para a Guiné-Bissau: segundo ele, a realidade africana, com seu dia-a-dia sacrificado e a urgência de seus problemas, demanda um outro tipo de expressão literária e a palavra do poeta “desperta” forças e energias “adormecidas”, transformadas em imagens e projetando visões do vir-a-ser (JAHN, 1965). Uma tarefa importante da literatura é, sem dúvida, condensar e transformar a realidade e abrir perspectivas para o futuro. Para Frantz Fanon, quando o indivíduo colonizado que escreve para seu povo utiliza o passado, é o porvir que deve nortear sua intenção; e o escritor tem a obrigação “de convidar à ação, de fundar a esperança” – e o mesmo parece servir para o descolonizado e atuante escritor terceiromundista, aí incluindo os escritores guineenses. Benjamin Abdala Júnior, em seu livro sobre a literatura e suas ligações com a história e a política, já se referia à literatura engajada como produtora de uma nacionalidade construída e não apenas descoberta (ABDALA JR., 1989, p. 18), que está em direta relação com o imaginário político, constituindo articulações “comprometidas” com o devir social. Foi possível constatar que os escritores guineenses, utilizando os mais diversos recursos, vêm construindo um imaginário literário que se revela também político, onde não têm lugar nem o estereótipo, nem o convencional, onde os referentes históricos e culturais são direcionados para uma perspectiva coletiva, em articulações textuais que não se contentam em desmascarar o discurso hegemônico, mas se empenham numa reversão dos valores, desmontando as hierarquias, desconstruindo a história, recontextualizando o subalterno, numa construção de novos significados identitários. 265 Eis o poema: “Fiansadu na roson / ami i jidiu / sin tajadera [...] Jidiu di kaneta / foladur di palabra / lañadur di karta / ami i jidiu / n ka kumpra / n ka roga / n ka pista / ka ten pantadura / ka ten kamaradia / pa m’pacan / furat ku jitu / koños ku jitu / tras di roson” (SIGÁ. In: Kebur, 1996, p. 141). 338 No decorrer deste trabalho, vimos que fez parte das características dos primeiros tempos pós-coloniais tanto a constatação do flagelo da colonização quanto a euforia pela conquista da liberdade. O discurso literário expressou o pranto, o grito, a glória, o brio e o orgulho do povo guineense em poemas plenos de emoção, como lemos em D’Artagnan Aurigemma, Tony Tcheka, Hélder Proença, Agnelo Regalla, Vasco Cabral, Jorge Cabral. São esses mesmos poetas que cantam o chão reconquistado, a Guiné libertada, a recém-criada Guiné-Bissau, aparecendo os primeiros sinais de um mito de origem, um mito fundador, a começar da criação do território livre, ou antes, libertado – contingência que fez construir um vínculo ideológico e patriótico unindo as etnias, artefato imaginário mas nem por isso, insisto, menos verdadeiro. É esse o momento inaugural da formação da nação, da fundação de uma coletiva identidade mínima. Os poetas promovem a afirmação identitária assumindo a africanidade e a fidelidade à tradição, sem renunciarem ao progresso do mundo atual, o que não pode ser apanágio das esferas ocidentais. Depois da noite colonial, era indispensável, psicologicamente, acreditar no mito, na existência de uma África mãe e umbigo, cravada na aurora dos tempos ancestrais, um território de origem inscrito na memória, arquitetura imaginária de uma harmonia e integridade passadas, prenunciadora de um dia novo que finalmente despontava para o homem novo africano. Somente depois dessa fase ufanista é que são percebidas e expressas simbolicamente as engrenagens da “máquina de fazer o outro”, na expressão de Michael HARDT (1995) que continuam instaladas na cabeça dos indivíduos, roubando-lhes a identidade. A descolonização se patenteou, até certo ponto, como uma quimera e os escritores expressam em prosa e em verso os efeitos do neocolonialismo e seu corolário, a autocolonização, fenômeno que corrompeu os dirigentes (the “black White Man” de que fala o queniano Ngugi wa THIONG’O, 1986) e fez gorar a utopia, fenômeno que textos de Abdulai Sila, Filinto de Barros, Carlos Lopes, entre outros, desvelam de forma eloqüente. A oposição anticolonialista marcha passo a passo com a infiltração neocolonial e uma das manifestações dessa reação é o desmantelamento do discurso dominante, a desconstrução da narração hegemônica da nação através de vários recursos, como a ironia, o sarcasmo, o humor, o burlesco, mas também com o bisturi da denúncia, da raiva e da mágoa. A apropriação antropofágica do instrumento de comunicação por excelência que é a língua, processando uma transgressão das normas estabelecidas do “bem escrever”, de forma consciente e politicamente direcionada, tem sido outro recurso, outro brado de independência e de auto-afirmação. Vimos que a literatura guineense contemporânea se caracteriza por produzir textos comprometidos em um processo de questionamento, de problematização e de rearticulação do significado de sua alteridade e de sua especificidade enquanto nação. Na cena literária guineense, não houve, até o momento, muito espaço para as elocubrações em torno do próprio eu, do 339 destino individual; a maioria dos autores as relega a um plano secundário, priorizando o sentimento comunitário e as preocupações sociais. A poesia de Odete Semedo e de Félix Sigá revela um sujeito dividido e desarticulado que se interroga sobre seu lugar, espelhando a fragmentação e a desorientação vivenciadas no plano político e social do país. Bem mais freqüentes, também em Sigá e em obras posteriores de Odete Semedo, são os momentos em que pulsam manifestações poéticas expressando sentimentos de pertença, empatia, solidariedade grupal, irmanação identitária. No mundo compartimentado (Fanon), ainda herança colonial, perpetuada pelo poder oligárquico das novas elites nacionais, persiste a maniqueísta assimetria entre dominados e subalternos e o poeta é sensível a seus efeitos gangrenosos. A obra de José Carlos Schwarz, de Pascoal D’Artagnan Aurigemma, a de Tony Tcheka, nos seus diferentes aspectos, pode ilustrar como o escritor assume seu papel social, empresta voz aos que até então eram silenciados, identificando-se com eles, dando-lhes visibilidade. O processo de entendimento interétnico assume muitas faces e muitos contornos, como analisei no capítulo 5, em parte por causa de condições sociais cada vez mais diversificadas e, portanto, menos capazes de produzir um sentimento homogêneo de pertencimento a um grupo específico e aspirar a uma identidade “puramente” étnica. A no ermondadi (nossa fraternidade) foi posta a duras provas quando a pátria correu perigo e a guerra fratricida dividiu o país. São frutos desse momento trágico os poemas de Huco Monteiro e de Respício Nuno e o brado épicosatírico de Odete Semedo em No fundo do canto. Reconhecendo a quase onipresença da instância espiritual e mágica na vida guineense, é possível achegar-se mais instrumentado aos textos e melhor compreender o que está subjacente ao discurso explícito. Nas obras analisadas, vimos que a urdidura literária se elabora dentro da cosmovisão africana do mundo de hoje, onde se mesclam as crenças antigas, os costumes tradicionais com a realidade pós-colonial africana. O pragmatismo faz reconhecer a necessidade de ocidentalizar-se, de ter formação acadêmica no exterior, mas não impede que a vida espiritual faça parte, intrinsicamente, da cosmovisão dos africanos, que o sobrenatural desempenhe um papel essencial. No terceiro milênio, sobrevivem os ancestrais, os feiticeiros, os curandeiros, os espíritos e os deuses que influenciam as pessoas, os negócios e os acontecimentos. Há os adivinhadores da sorte (os balobeiros, os mouros, os pauteros) que livram os indíviduos das forças maléficas, há castigos mágicos ou divinos, há as cerimônias e sinais de proteção: os irans e os totens, o kankuran (espírito do fanado), o apoló (método de tortura), o korté (feitiço), o mandjir (ato de mandar preparar um feitiço para punir alguém). A ontologia do invisível, como disse Anthony Appiah, continua subliminar ou claramente, direcionando atitudes, comportamentos, mundivivências. 340 Odete Semedo, Abdulai Sila, Respício Nuno e Huco Monteiro, como tantos outros escritores e intelectuais africanos contemporâneos, incluem em seu discurso literário, sem constrangimento, a cosmovisão tradicional que põe em relevo o sagrado e escora, pelo lado do ritual, a aventura existencial de estar-no-mundo. A forma africana de mundivivência não exclui a atitude considerada européia ou ocidental da visão objetiva ou da interpretação racional do mundo. Vimos no capítulo 4 como pensadores africanos estão empenhados em embasar e em divulgar as diferentes manifestações do pensamento filosófico africano, desmitificando tanto a homogenização reducionista quanto a guetização asfixiante em que a visão ocidental e branca desde sempre confinou a África, o “espírito africano” e os africanos. Sem se abrir mão do pensamento realista e objetivo, manifestações rituais, percebidas pelo olhar de fora como pagãs ou primitivas, vêm sendo incorporadas, de forma natural e autêntica, como meios eficazes de abordar as questões existenciais. Consciente disso, Odete Semedo faz a voz enunciadora partir de um locus específico que é a tradição animista guineense, a dos Mandjaco, dos Pepel, dos Balanta, da ligação metafísica não com a ancestralidade vagamente “africana”, mas com os irans e totens, protetores das linhagens da nação guineense. O “Consílio dos Irans”, a kontrada de todas as entidades protetoras, constitui um recurso máximo, num momento extremo de desarticulação, de perigo e de morte, estando, porém, dentro do contexto familiar e cotidiano guineense em que o apelo ao invisível é uma constante. Também Abdulai Sila refere-se aos intermediários entre a coletividade e o sagrado, os balobeiros, os djambakus, os pauteiros e os mouros, incluindo na sua trama textual os mitos e crenças da cultura miscigenada popular, tais como as almas biafadas e as asalmas do chão guineense. O próprio título do romance de Filinto de Barros, Kikia Matcho, aponta para o imaginário coletivo, para o mistério e o indizível, para uma ambivalente dependência – e a luta desigual para dela libertar-se. A relação entre vivos e mortos toma formas cambiantes, mas é indissolúvel: a azíaga kikia, as kasisa, os difuntu, fantasmas temidos ou ancestrais venerados, intercessores face aos irans e às divindades, velando pela sua djorson e livrando-a do mal. Acompanhamos, no capítulo 5, Huco Monteiro e Respício Nuno que vão buscar cerimônias das diferentes etnias para esconjurar o desassossego que tomou conta da Guiné, no momento trágico do conflito dos últimos anos do século passado, quando o urdumunho “escancarou as portas” do país, deixando-o à mercê de invasores estrangeiros. Mas a obra desses autores não pode ser lida apenas sob o prisma da tradição e do apelo à espiritualidade. Em No fundo do canto, em Mistida ou em Kikia Matcho, como, em outros contextos, nos poetas Huco e Respício, produz-se uma interação entre a apresentação de elementos da organização sócio-política guineense e da organização mítico-metafísica do saber local. Constatamos, sobretudo, no romance Kikia Matcho, a presença do mito nas entrelinhas dos 341 discursos políticos sobre as atuais realidades africanas. O mito do kikia matcho, a coruja que também em outras latitudes é portadora de maus augúrios, é tratado analiticamente por Filinto de Barros, de uma forma quase didática, em referências racionais que distanciam o eu enunciador e põem em evidência sua ossatura ideológica. Já em Mistida, o mito é desconstruído e desmascarado, numa prosa surpreendente e desconcertante. E o espaço textual revela-se sempre instrumento de denúncia e de resistência, de oposição ao continuismo abjeto da dependência. A crítica aberta aos traidores dos ideais revolucionários assume um plano secundário, a representação dicotômica dos “dominadores” e “dominados” empalidece e recua, para serem priorizadas as fraquezas e contradições do novo poder, as diferentes representações do subalterno, as iniciativas de reformas e mudanças do comportamento e da mentalidade. A literatura guineense que se produziu dos anos noventa em diante (mas não só), com o desencadeamento e a agudização da crise econômica e moral que vem fustigando o país, oferece fecundos elementos para uma reflexão sobre a identidade nacional e de como essa literatura nos contempla com construções de significados de nacionalidade que substituem, ou poderiam pelo menos substituir, a falência (e a falácia) do discurso ufanista, autocelebrante, ancorado nas glórias das lutas libertárias. As declarações de fidelidade à pátria, de respeito e defesa do bemcomum, os meetings populistas, os monumentos e celebrações cívicas são claras autocelebrações de um poder que já não convence, não eletriza nem emociona. O confronto com o status quo e com a fala autoritária tem sido levado a efeito hoje em dia na Guiné-Bissau pela imprensa diária, inclusive pelo viés histriônico das caricaturas e dos cartoons e estórias em quadrinhos. É espantosa a abertura com que os jornalistas e cartunistas desmascaram tanto a corrupção como as cabriolas dos homens públicos na e da Guiné-Bissau. E a literatura é o outro dedo que aponta, o outro instrumento que desmascara, destrói e reconstrói. A dicção de Abdulai Sila em Mistida, o brado de Odete Semedo em No fundo do canto, o acerto de contas de Filinto de Barros em Kikia Matcho, entre outros, marcam a conjuntura literária da Guiné-Bissau dos anos 90 em diante e mudam os contornos da figuração da identidade nacional, nesse momento em que os discursos políticos já nada dizem nem nada representam. Os escritores, insatisfeitos com o status quo, problematizam e questionam a forma como a nação tem sido representada, enfatizando em seus discursos o lado que ficou marginalizado. Com isso, entram em franca confrontação com o grupo dominante, estagnado no exercício sistemático de omitir os momentos da história que não estão relacionados com a própria glória. Metonimicamente, trata-se da classe dos “comandantes”, tão bem caracterizada por Filinto de Barros, que igualmente pôs em relevo as especificidades daqueles segmentos da população que foram esquecidos, que ficaram na sargeta da história. Constata-se uma sistemática denúncia desse trágico esquecimento e menosprezo, que os autores apontam e contextualizam, numa 342 reconfiguração metaforizada justamente como parte integrante de uma nova narrativa da nação. Abdulai Sila hiperbolizou essa denúncia ao exponenciar a situação de descalabro político e moral em que o país se encontrava: os sombrios Nham-Nham e Amambarka, consumidos pelo monturo do lixo que era seu tesouro, deixaram espaço para “a construção de uma nação livre dos fantasmas da escuridão e da ignorância”, como se expressou o romancista (SILA, 1997, p. 202). Os autores guineenses, com seus textos descolonizados, a partir tanto da recuperação da memória ancestral pelo jogo intertextual com as tradições, quanto pela desconstrução da herança colonial prolongada pelo neocolonialismo e pelo autocolonialismo, representam uma resposta e uma reação, em nível da fabulação e na apropriação simbólica, à dependência dos parâmetros ocidentais mais prestigiados. Alcançam um tal escopo pela recuperação de seus bens culturais e de sua alteridade diferenciadora. O espaço literário onde circulam os textos aqui estudados está dentro da cosmovisão africana moderna, no seio da qual a realidade pós-colonial se mistura com crenças antigas e costumes tradicionais. Que esse imbrincamento não acontece sem conflitos também pôde ser constatado nos autores aqui analisados. Os processos de formação identitária cultural e da constituição da nacionalidade são bastante complexos. Vimos, muitas vezes, um impulso de recusa à imposição do culto da nação tal como este foi forjado, imaginado pelo discurso pedagógico ou pelo discurso autoritário, ambos frutos das contingências e urgências da descolonização. Não me parece que se trate de questionar a legitimidade desses fundamentos que estão na origem da nacionalidade, mas sim de recusar a trampa do ufanismo e da heroização, negar a persistência e a exclusividade desse discurso encomiástico e autoglorificador, recusar sua instrumentalização pelo poder. Desconstruir, contextualizar, reterritorializar a representação simbólica da nação, tendo como ponto de partida uma revisão crítica e impiedosa, pelo instrumento do trabalho estético, plenamente convencidos de que estão plantando para as novas gerações – eis a motivação primeira, a meu entender, dos escritores guineenses da atualidade. Esses autores se têm engajado numa prática cultural transformadora – prática crítica, própria de intelectuais de vanguarda. No corpus que reuni, foi possível apreender a preocupação da literatura guineense em compartilhar a sorte humana, num esforço de dar voz ao subalterno, ao oprimido, aos que estavam até agora à margem dos interesses e da representação hegemônica. A Guiné-Bissau é um país econômica e politicamente tão pouco atraente que o capital internacional não se interessa em ali investir. Sem matéria prima a ser explorada, sem mercado a ser conquistado, sem atrativos para investimentos estrangeiros, o país sente ainda pouco os efeitos da globalização. A Guiné-Bissau, como a África quase na totalidade, está do lado dos perdedores da globalização. A “ajuda ao desenvolvimento” (ou, como se fala preferencialmente na GuinéBissau, a “cooperação internacional”), seja ela bilateral ou multilateral, da qual o país depende, 343 só aparece na literatura marginalmente, nas personagens Benaf e Joana em Kikia Matcho, ou Daniel e Ruth em Eterna paixão. Ou, jocosamente, nas crônicas de Carlos Lopes (por exemplo, “O cooperante Malan Djabicunda”, “O mulato cultural”) e nos contos de Odete Semedo (“Kunfentu – stória da boa nova”). Sem que para isso se veja obrigada a uma demonstração ou comprovação, a linguagem literária é capaz tanto de legitimar o que o discurso sócio-político aponta, quanto de questionar, denunciar o que a dicção autoritária e hegemônica preconiza. São, talvez, abordagens parciais, mas nem por isso menos eficazes nem menos verdadeiras. O número de autores na Guiné-Bissau é ainda muito restrito, a recepção das obras literárias não é muito ampla e talvez seja temerário atribuir algum efeito “público” mais abrangente aos romances, estórias e poemas que se estão publicando no país. Mesmo assim, creio poder afirmar que os textos aqui analisados, refletindo a atitude de seus autores, eles mesmos representantes da elite intelectual (e, num sentido alargado, também da elite política) que se foi formando a partir da independência; não só buscam – mas também encontram e apontam – caminhos construtores e definidores de um futuro para a sociedade guineense. Espero ter deixado transparecer com suficiente nitidez, no decorrer deste trabalho, tanto as qualidades estéticas das obras analisadas quanto o empenho dos escritores em contribuir para a construção da nação através do discurso literário. Como analista, pretendi, num esforço interpretativo, pôr a descoberto o tesouro multifacetado da cultura guineense em suas interligações com a atividade autoral na empreitada da narração da nação. Como a obra só estará completa com o ato da leitura, em que o leitor participa com sua escala de valores, seus conhecimentos e seu horizonte de expectativas, importou-me sempre de novo pôr em cheque meu papel de leitora e de analista no entendimento e na criação de sentido do texto literário. Os temas tratados, assim como a elaboração formal e estética do discurso literário guineense contemporâneo, pressupõem uma percepção participante da parte do receptor, e por isso mesmo procurei munir-me de um alargado aparato teórico, uma ampla gama de instrumentos que fui buscar em muitas prateleiras, para aprofundar-me no conhecimento e na compreensão do quadro sócio-cultural dentro do qual tanto os romances de Abdulai Sila e o de Filinto de Barros ou as crônicas de Carlos Lopes como também os contos e o canto épico de Odete Semedo, as canções de José Carlos Schwarz, os poemas de Huco Monteiro, Respício Nuno, Félix Sigá ou Tony Tcheka foram engendrados. A história, a cultura, a classe social a que pertencem o escritor e a escritora não são obrigatoriamente a história, a cultura e o meio social de nós, os receptores. A interação, o diálogo conspirativo entre autor e leitor, só se pode realizar se tomarmos a literatura guineense em seu lugar e em seu tempo específicos, inserida em um onde e em um quando reconhecíveis e determinantes. 344 São esses escritores originários de uma frutuosa imbricação étnica, seus laços familiares estando enredados em diversas culturas. Se alguns nasceram em Bissau, se todos eles fizeram sua formação secundária na capital – única possibilidade para a continuação dos estudos – e muitos puderam depois estudar no exterior, suas raízes estão, rizomaticamente, fincadas em vários chãos. E, mesmo estando na “praça” e sendo “da praça”, são muitas as águas de que se abeberam e com que fertilizam sua criatividade e engenho. Seus escritos atestam a ligação com o mundo rural das tabancas, com as tradições e com os ancestrais, constituindo exemplos vivos da possível mobilidade social dessa jovem nação. Os escritores reafirmam, a todo passo, sua crença nas culturas nativas e o orgulho que sentem por elas. Lutam a seu modo contra a anulação cultural do acervo simbólico das etnias. Defendem-no contra a aculturação ocidental. Procuram impedir a homogeneização redutora que apaga as ricas diferenças que fazem a especificidade guineense. Insistem, sempre de novo, na necessidade de uma conjugação de esforços para restabelecer a esperança na gloriosa utopia da causa libertária, o sonho de Cabral e de tantos outros, de uma outra Guiné-Bissau, livre e próspera. A arte literária, assim politizada, que se está fazendo no país no momento atual, adquire uma importância capital, pois é através da produção literária, inclusive a não publicada (poemas recitados ou canções cantadas em djunbais, onde o senso comunitário continua vivo), que se efetivam a elaboração e a afirmação da nacionalidade, a configuração da identidade nacional. São poucas as obras, são muitos e diversos os olhares. E através desses olhares diversos, juntam-se os prismas da íris desse cristal poliédrico, abre-se um leque de significações, uma visão alegórica do mundo, um acúmulo de vivências e experiências e o leitor se vê de repente semelhante ao colecionador de que trata Walter Benjamin, emprestando novos sentidos às ruínas, aos cacos, aos pedaços fragmentados do edifício do Estado-nação, bocados descontínuos da história, dos acontecimentos. Novos desafios se mostram para a representação da África, da africanidade, da GuinéBissau, da guineidade. Os textos aqui trazidos desvelam uma auto-representação sui generis, escritos por autores e autoras de culturas que até agora injustamente se encontravam (ou ainda se encontram) num limbo obscuro, culturas quase desconhecidas e em geral pouco apercebidas, relegadas à franja da franja da “literatura mundial” e excluídas da consagração e do reconhecimento. Escrevendo a partir das margens da lusografia, ressaltam as suas especificidades e muitas vezes as tomam expressamente como tema. A Guiné-Bissau, junto a São Tomé e Príncipe, os menores dos países africanos dentro do espectro da “família” lusofalante, tem, através da sua literatura, a possibilidade de exibir suas idiossincrasias e o faz belamente. No mosaico étnico-cultural do país, verificamos o quanto o 345 texto literário guineense, respeitando e mesmo fazendo sobressair a variedade de sua paleta cultural, responde ao debate, à discussão sobre a etnicidade, mostrando-se aberto e receptivo à interação – e à hibridização. O texto literário guineense aceita e reconhece a multiplicidade, longe de qualquer conflito. Através desses textos, independentemente do processo de crescente globalização tanto econômica quanto política, a auto-referencialidade diferenciada do tesouro cultural guineense exerce uma decisiva força persuasiva e propulsora. Pudemos constatar que se trata de uma literatura que aprofunda a consciência e abre um novo horizonte da existência individual e social daqueles que a produzem e daqueles que a identificam como própria. Procurei, ao longo destas páginas, analisar o condensado estético e ideológico da literatura guineense, recompor a lógica dos símbolos da identidade buscada através da lente da literatura guineense e, através desse conjunto, acompanhar o traçado da narração da nação. Os escritores guineenses escrevem para o futuro, uma vez que, no presente, o público ledor no país é muito reduzido. A literatura, que sem dúvida tem um lugar ativo na afirmação e na construção das vigas nas quais se sustenta a identidade nacional, poderia exercer influência na formação das mentalidades, mas de fato são muito poucos os que lêem, muito poucos os que têm acesso aos livros, e por isso a influência real é muitíssimo restrita. A situação tende a melhorar, mas a ausência de bibliotecas, de livrarias, de uma rede de circulação do livro, o pouco poder aquisitivo, a falta de hábito de leitura, a má formação dos professores, e mesmo a ausência de professores competentes, a ausência de literatura nos currículos, tudo isso são fatores reais e desoladores. As duas universidades que se estão afirmando no país (só na capital!), desde 2003 apenas, talvez a médio prazo venham mudar a situação. Também a internet está desempenhando um papel de divulgação e não é de se desprezar a penetração e a aceitação desse moderno meio de comunicação. Há alguns sites bastante informativos, inclusive com seções literárias e dados históricos. Há também sites de qualidade lamentável, perigosamente transmissores de informações falsas ou reducionistas. Ao falar de nação, nacionalismo e identidade nacional na Guiné-Bissau, vimo-nos confrontados com uma série de dificuldades, de ambivalências e de incongruências. O país não corresponde em quase nada ao que “normalmente” é tomado como indicativos de “nação” mais ou menos homogênea, tais como língua, cultura, religião, tradição comuns. Nem o Estado está em condição de exercer uma coerção ou de oferecer atrativos político-econômicos bastante fortes para constituir uma entidade moderna, no sentido de uma nação dinâmica que garanta ou procure garantir o bem-estar dos seus cidadãos. Grande parte da população não tem nenhuma “língua materna” em comum, sobretudo nas aldeias. Ao lado das muitas línguas, a língua guineense, como língua veicular hoje falada por uma grande maioria da população, adquiriu uma tal 346 amplitude somente há cerca de quarenta anos para cá e se concentra sobretudo na capital e nos outros poucos centros urbanos. A quase totalidade da população não domina nem minimamente o português, a língua oficial. Não existe história “nacional” fora de um certo verniz de ideologia colonial e da decisão dos Estados africanos de não questionarem as fronteiras geopolíticas arbitrárias criadas pelo colonialismo, especialmente na conferência de Berlim (1884/85). A independência desembocou em autoritarismo da elite militar constituída pelos “heróis nacionais” e da pequena burguesia colonial e em descalabros administrativos, econômicos e políticos. No Brasil, como já mencionei na introdução, desde cedo, quando o Estado ainda estava a aprumar-se como tal, existiu a preocupação de delimitar e definir como “daqui” a literatura que se produzia no país, em contraponto com a “de lá”, isto é, a da metrópole, ou melhor, exmetrópole. O jovem Estado brasileiro se empenhava em demarcar e realçar suas particularidades, em nacionalizar a língua comum, e um dos instrumentos para isso foi a literatura, além da preocupação já desde esses primórdios por uma historiografia de fato brasileira. São muitas as obras que procuram promover a construção da nacionalidade já no século XIX e essa preocupação continuou e continua até os nossos dias. O mesmo se dá em outros países latinoamericanos. Através dos escritores novecentistas, e daí por diante, delineou-se a comunidade imaginada ou desejada, alternando-se imagens positivas e imagens negativas da “brasilidade”. Na Guiné-Bissau, como foi visto, falta ainda quase que completamente esse tipo de preocupação ou de empenho. Salvo esparsos artigos ou referências, sobretudo de cunho sóciopolítico, destacando-se os ensaios de Carlos Lopes e de Carlos Cardoso, não foi feita ainda por guineenses uma obra lítero-historiográfica nem sociológica mais abrangente. Mas não somente a “glória literária” precisa ser reconhecida. A Guiné-Bissau não conta com reflexões sistemáticas sobre o país em seu conjunto histórico-social, nem sobre o espírito nacional, nem com ideólogos do Estado nacional guineense. Não estou, com isso, pretendendo lastimar esse último fato, pois me é bastante presente o perigo que os “nacionalismos” podem representar. Mas, justamente devido à ameaçadora sombra do tribalismo, considero de urgência o recrudescimento de um espírito comunitário abraçando a totalidade do território “Guiné-Bissau”, sendo da maior premência incentivar o redespertar do sentido de pertencer a essa “imaginada” comunidade. Considero (e não estou obviamente sozinha) imprescindível a internalização da idéia do Estado da Guiné-Bissau como Nação, mesmo conhecendo a ambigüidade do enunciado e a polêmica em torno do conceito de nação e de nacionalidade, pois é fato que os indivíduos projetam suas expectativas nos horizontes nacionais e os Estados continuam a ser instâncias de intermediação do indivíduo com o mundo, como afirmou ABDALA JR. (2003). Falta muitas vezes na GuinéBissau, em meio às torres caídas provocadas pela desilusão com os “comandantes”, o empenho das entidades públicas na distribuição, na divulgação de imagens identitárias alentadoras. Estas, 347 além de plasmarem a nação e a nacionalidade, podem contribuir igualmente para desenvolveremse e dissemirarem-se sentimentos de pertença e estratégias para a identificação com a causa comum. Nada melhor que a escola e a imprensa para levar a efeito essa “disseminação”. As escolas se encarregam, de modo geral, do estudo e do ensino tanto da literatura como da história nacional, o que, em princípio, tem a ver diretamente com o projeto político e educacional de um país, o que na Guiné-Bissau é ainda muito precário. Assim, preenchendo de certo modo essa lacuna, os escritores guineenses cumprem com a tarefa desestabilizadora e instigante de que se auto-incumbiram, substituindo o discurso demagógico da ideologia dominante, plasmando, com seus textos, a representação simbólica de uma comunidade de destino, de história e de cultura. É a literatura que está desempenhando o papel básico e indispensável de narrar a nação, de forjar a guineidade. No momento histórico que a Guiné-Bissau atravessa, é a mais importante, a mais decisiva e, socialmente, a mais relevante mistida a safar. Apresentei fartos exemplos tirados da recente literatura guineense, inclusive uma série de poemas inéditos que, a meu ver, representam, de modo fiel, às vezes com dramaticidade, outras vezes através do compartilhamento, tanto o prazer de viver, a tão guineense sabura, quanto também a consciência de um pertencer coletivo, cimentado pela dor comum de uma nação surpreendida e abismada, traumatizada, mas não paralisada nem destruída. Os textos puderam justamente mostrar essa vontade férrea e perseverante de recomeçar, apesar de tudo. Levados pelos vôos da literatura, os autores alçam-se ao topo da expressão estética para formular a teimosa determinação coletiva de ressurgir das cinzas e dos escombros causados pelo desbarato do desgoverno, da guerra, da política e da politicagem. “O resto da ruína que acaso sobrevive carrega a memória das torrres caídas”, escreveu BHABHA (2002), num texto que reproduzi como primeira epígrafe deste trabalho e que me acompanhou ao longo dos capítulos e da minha reflexão. Rebuscando no manancial da tradição e do passado histórico e mítico e revigorando-se da água revitalizante das diferentes manifestações culturais do mosaico étnico guineense, autores como José Carlos Schwarz, Abdulai Sila, Filinto de Barros, Tony Tcheka, Pascoal D’Artagnan Aurigemma, Odete Semedo, Félix Sigá, Jorge Cabral, Huco Monteiro, Respício Nuno ou Carlos Lopes compuseram e estão compondo obras da maior importância para a auto-afirmação das gerações futuras e o retomar da dignidade e da crença no país. Nos escombros da identidade nacional dilacerada ou ainda não inteiramente reinventada, nos escombros do projeto da nação acalentado pelos que sonharam com a libertação do jugo colonial, nos escombros da desconfiança, do ceticismo, da decepção, do desolamento, de todas essas ruínas (e do lixo por elas deixado, como tão bem soube metaforizar Abdulai Sila), do passado recente e do projeto nacional soçobrado, pode ser que “os meninos de amanhã” (Amílcar 348 Cabral) encontrem, na orquestração escandida pelos “djidius de caneta” – Abdulai Sila, Odete Semedo, Tony Tcheka, Félix Sigá, Filinto de Barros, Huco Monteiro, Respício Nuno e outros que virão – os artefatos e as ferramentas com que poderão fundamentar e reconfigurar a sua identidade. Por diversos caminhos, os escritores criam a expressão de uma ontologia própria, através de seus valores peculiares e multifacetados, mas que também aspiram à universalidade. Os efeitos da descolonização mal acontecida, as mazelas vindas das assimetrias do mundo contemporâneo, o desbarato político e social, o advento de novas camadas pauperizadas nas grandes metrópoles, o perigo do achatamento cultural e da homogeneização provocada pela massificação dos meios de comunicação são todos fenômenos ou ocorrências que não se restringem ao “terceiro” mundo, não se instalam apenas nas “periferias”, mas atingem igualmente o “centro” e os antigos e novos senhores imperiais. Sabemos o quanto os Estudos Culturais e os estudos pós-coloniais têm contribuído para dar visibilidade às manifestações culturais, entre elas a expressão literária, das nações que conquistaram sua independência, libertando-se de um doloroso período de dominação política e cultural. Uma das metas de análise dos Estudos Culturais é procurar dar estatuto de respeitabilidade a discursos transgressores que pretendem pôr em evidência histórias de discriminação e de rebeldia, de reação e de afirmação identitária. Chegando ao fim desta minha elaboração, creio poder afirmar que a abordagem escolhida possibilitou-me apresentar o potencial cultural dessa jovem literatura, guiando-me nas minhas incursões pelas veredas da narração da nação guineense. Minha leitura, que sei não ser a única, das multifaces das obras aqui apresentadas, revigorou minha convicção de que, como afirmou Homi Bhabha, é justamente com aqueles que sofrem o sentenciamento da história, com suas experiências de subjugação, dominação, diáspora, deslocamento, é com eles que aprendemos as mais duradouras lições de vida e de pensamento. Resta ainda um longo caminho a percorrer, mas não tenho dúvida de que os autores guineenses estão instrumentados para emparelhar a literatura da Guiné-Bissau às literaturas dos quatro cantos do mundo. Sem abrir mão de expressar sua identidade cultural, não se querem encurralados no estreito terreno do exotismo. A ousadia de sua criatividade lhes outorga o direito a desafogar o espartilho desse perímetro marginal onde, geralmente, a crítica consagrada, tolerando a existência dissonante de outras vozes rebeldes, costuma confiná-los. Os escritores guineenses contemporâneos aqui analisados procedem à recuperação da história, narrando a nação a partir dos escombros de uma utopia em ruínas, direcionando o ato enunciativo para o momento e a começar do ponto em que a autoridade perdeu seu sentido, desmoralizando-se. Essa produção estética, como ficou demonstrado, promove o ressarcimento 349 da auto-estima e do respeito, aponta pistas de um redirecionamento em bases renovadas para a revivência do espírito identitário da comunidade nacional. São vozes testemunhais que reabilitam com seus textos a história dos vencidos, por meio de rearticulações identitárias da maior relevância. O discurso literário, ao desmantelar, desagregar, desconstruir fatos e idéias tomadas como óbvias e obrigatórias, como se a arquitetação da nação e o destino do povo estivessem apenas, ou sobretudo, nas mãos dos “comandantes”, o discurso literário torna possível encetar uma reconstrução do edifício nacional – pelos pilares da narrativa e da poética, pela alavanca do deslocamento e do estranhamento, pela verruma do riso e do horror, pela alvenaria da reterritorialização e da reabilitação de representações simbólicas, pela argamassa de conceitos e de valores que sustentam o arcabouço da narração identitária da guineidade. É a reconstrução da história e a construção da nação que a literatura está procurando realizar na Guiné-Bissau. O ponto de decolagem é aquele momento em que a autoridade se esgarçou, em que o poder constituído ruiu e quando o povo está tentando, através de um sem número de iniciativas privadas, através da música, do reavivamento do teatro popular, das mandjuandadi, de muitas outras manifestações tradicionais, restabelecer aos poucos a condição de sua cidadania e da sua dignidade. No conjunto de uma literatura ainda incipiente e com poucos autores e pouca produção, sobressai, em especial nas obras lançadas a começar da década de noventa, o questionamento da nação e da nacionalidade que percorre os textos muitas vezes como um fio condutor, invisível, mas forte e pulsante, deixando entrever que a construção da nação é uma empresa de urgência, espelho da premência de uma unidade da sociedade guineense que encontra nos autores e nas autoras seus porta-vozes. O grito de Huco Monteiro face à ameaça exterior na guerra de 1998/99, o sentimento de impotência da parte de Respício Nuno diante do desgoverno, o questionamento dos caminhos e das diretrizes básicas da nação do romance Kikia Matcho de Filinto de Barros, a desconstrução empreendida por Abdulai Sila em Mistida e finalmente a epopéia No fundo do canto de Odete Semedo apresentam a nação no centro das suas construções textuais, num discurso narrativo envolvido na ambivalência indissociável da presente conjuntura não só por que passa o país como também a “aldeia global”, o mundo contemporâneo, constantemente abalado por torres caídas, tentando emergir de sob os muitos escombros e teimosamente construir novas utopias, apontar novas direções de sobrevivência. 9 REFERÊNCIAS 9.1 Obras literárias de autores guineenses Antologia dos jovens poetas. Momentos primeiros da construção, cf. Momentos primeiros. Antologia poética da Guiné-Bissau. Lisboa: Editorial Inquérito. 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Acesso a última vez em: setembro de 2005. http://fr.wikipedia.org/wiki/Casamance. Acesso em setembro de 2005. APÊNDICES 372 APÊNDICE A GUINÉ-BISSAU – Dados gerais Nome do país: República da Guiné-Bissau Localização geográfica: África Ocidental, limitada pelo Senegal e pela República da Guiné Latitude: entre 10.55 e 12.40 Norte Longitude: entre 13.38 e 16.43 Oeste Clima: tropical úmido Superfície: 36.120 km2 Superfície habitável: 24.800 km2 Divisão em 3 províncias (Norte, Oeste e Sul) e em 8 regiões População total: 1.493.000 habitantes (2003) População da capital (Bissau): 292.000 habitantes (2001) População de Gabú: 57.000 habitantes (1999) População de Bafatá: 54.350 habitantes (1999) Religiões: Animistas 50%, Muçulmanos 40%, Cristãos 10% Principais grupos étnicos: Balanta 32%, Fula 21%, Mandjaco 14%, Mandinga 14%, Pepel 7% Grande número de etnias, mais de uma vintena. Igual número de línguas Língua oficial: Português (falado por menos de 9% da população) 373 Língua mais falada nos meios urbanos: o Guineense (ou crioulo); língua veicular em todo o país Línguas étnicas: continuam a ser faladas no seio de cada etnia. Destacam-se o Balanta (cerca de 245.000 falantes); o Fula (200.000 falantes), o Mandinga (100.000), o Mandjaco (80.000), o Pepel (72.000), o Beafada (20.000), o Bijagó (20.000), o Mancanha (19.000), o Felupe (15.000), o Nalu (4.000) Forma de governo: Democracia semipresidencial Constituição aprovada em 16 de maio de 1984 e revista em maio de 1991 O poder legislativo é exercido pela Assembleia Nacional Popular O poder executivo é exercido pelo Presidente da República O governo é dirigido pelo Primeiro Ministro Primeiro Presidente: Luís Cabral – de 1975 a 1980 Segundo Presidente: João Bernardo (Nino) Vieira – de 1980 a 1999 Presidente interino: Malam Bacai Sanhá – de maio de 1999 a fevereiro de 2000 Terceiro Presidente: Koumba Yalá – de 17 de fevereiro de 2000 a 14 de setembro de 2003 (Partido da Renovação Social – PRS) Presidente da Transição: Henrique Pereira Rosa – de 23 de setembro de 2003 a outubro de 2005 Quarto Presidente: João Bernardo (Nino) Vieira – empossado em 1° de outubro de 2005. 374 APÊNDICE B Cronologia histórica 1446 1456 1588 1879 Nuno Tristão alcança a costa da Guiné. Foi matado com parte da tripulação Diogo Gomes empreende a primeira exploração pelos rios da Guiné Fundação do primeiro empório comercial (Cacheu) Instituição da “Guiné Portuguesa”, com capital em Bolama, com separação administrativa de Cabo Verde 1886 1913-1915 Até 1915 Fixação das fronteiras entre as colônias portuguesas e francesas “Pacificação” pelo Capitão Teixeira Pinto Portugal pagou tributo ao régulo de Bissau, da etnia Pepel. Somente em 1936 cessou de pagar tributo aos régulos das Ilhas Bijagós. Fim da assim chamada “pacificação” 1940 1951 1954 Bissau torna-se capital (substituindo Bolama) Estatuto de Província Portuguesa de Ultramar Fundação do MINGC (Movimento pela Independência Nacional da Guiné e de Cabo Verde) 1956 (19.9.) 1958 Fundação do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) Criação da UNTG (União Nacional dos Trabalhadores da Guiné), movimento social clandestino 1959 (3.8.) 1962 1963 (23.1.) 1973 (20.1.) Revolta de estivadores no porto de Pindjiguiti. Massacre sangrento com 50 mortos Início dos atos de sabotagem contra a ocupação portuguesa Início da luta armada, depois de 4 anos de preparação Assassinato de Amílcar Cabral (em Conakry) Luís Cabral substitui Amílcar Cabral à frente do PAIGC 1973 (24.9.) Independência da Guiné-Bissau. Luís Cabral assume a presidência do país 375 (Presidente do Conselho de Estado) 1974 Entrada da Guiné-Bissau na UNESCO A Guiné-Bissau foi dos últimos países africanos a se libertarem do jugo colonial 1974 (10.9. ) Reconhecimento por Portugal 1980 (14.11.) “Movimento Reajustador”. Golpe militar com a deposição do primeiro presidente, Luís Cabral, e posse de João Bernardo (Nino) Vieira como segundo presidente do país 1985 (17.10.) Séria crise política que conturbou o país e culminou com o fuzilamento de importantes líderes da independência (1986) e que ainda hoje joga suas sombras na história guineense 1987 1991 Introdução gradativa do Programa de Ajustamento Estrutural Multipartidarismo (determinação votada na Assembleia Nacional Popular em maio de 1991) Formação de partidos da oposição Uma das conseqüências da abertura política foi a creditação dos régulos, detentores do poder local, também chamado poder tradicional 1994 Eleições multipartidárias presidenciais e parlamentares Vitória do PAIGC e ratificação de Nino Vieira como Presidente 1997 (2.5.) Entrada oficial da Guiné-Bissau na União Económica e Monetária da África Ocidental (UEMOA) 1998 (7.6.) Início da guerra a partir de uma revolta de grupos militares Fuga e deslocamento de quase toda a população de Bissau para o interior do país e para o exterior Milhares de mortos, sobretudo na segunda fase da guerra (fins de jan. / início de fev. 99). Destruição de grande parte da capital 376 Presença da força militar senegalesa e, em menor índice, tropas da República da Guiné, seguindo o apelo de Nino Vieira. Grande indignação e revolta por parte da população guineense 1999 (20.2.) Instituição de um Governo da Unidade Nacional (de fev. 99 a fev. 2000) Presidente interino Malam Bacai Sanhá (de maio 99 a fev. 2000) Primeiro Ministro: Francisco Fadul 1999 (7.5.) Fim da guerra com a deposição do Presidente, depois de cinco tréguas e tentativas de mediação da comunidade internacional Uma Junta Militar assume a direção do país Fim da era Nino Vieira (1980-1999) Fim da liderança absoluta do PAIGC (1975-1999) 2000 (nov.) 2000 (17.2.) 2003 (14.9.) 2003-2005 2004 (6.10.) Assassinato do Chefe da Junta Militar, Ansumane Mané Eleições presidenciais: Presidente Koumba Yalá (PRS, Partido da Renovação Social) Deposição do Presidente Koumba Yalá Governo de transição com o Presidente Henrique Pereira Rosa Assassinato do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, General Veríssimo Seabra 2005 (jun.) (julho) 2005 (1.10.) Eleições para o quarto Presidente da República Vitória de João Bernardo (Nino) Vieira no segundo turno Posse de Nino Vieira como Presidente da República 377 378 APÊNDICE C Indicadores econômicos Moeda: Franco CFA PIB per capita: 233,9 US-Dólares (1994) 192 US-Dólares (2002) Taxa de crescimento médio anual do PIB: 3,7% Índice do Desenvolvimento Humano (HDI): 0,373. Posição 166 entre 175 países (2003) Recursos naturais: cereais, coco, amendoim, arroz, óleo de palma (azeite de dendê), madeiras, castanha de caju, bauxita Importações: 58 milhões de dólares (1995 – estimativas) Principais produtos importados: produtos alimentares, equipamento de transporte e maquinaria, combustíveis Principais atividades econômicas: agricultura, pesca, silvicultura, comércio, indústria de transformação Exportações: 23,90 milhões de dólares (1995 – estimativas) Principais produtos exportados: castanha de caju, madeiras, pescado, camarão Principais fornecedores: União Européia 43,8%; Portugal 24,0%; Tailândia 32,2% Principal cliente: União Européia 52,9% (Fontes: World Bank, World Development Report; UNDP / PNUD, Human Development Report; Organização Mundial de Saúde; Institut für Afrika-Kunde de Hamburgo (Afrika Jahrbuch [Anuário da África], vários anos) 379 380 APÊNDICE D Indicadores sociais Índice de natalidade: 38,67 nascimentos por 1000 habitantes (1998) Índice de mortalidade: 15,48 mortes por 1000 habitantes (1998) Índice de mortalidade infantil: 211 mortos por 1000 nados vivos (2001) Expectativa de vida ao nascer: 45 anos (2001) (fonte: Organização Mundial da Saúde) Taxa de alfabetização de adultos: 39,6% (2001) Somente 8% das crianças que entram na escola terminam a quarta classe do curso elementar Adultos têm em média 0,3 anos de formação escolar Taxa de escolarização primária: 54% (2000-2001) Taxa de alfabetização de jovens: 59,5 % (2001) (fonte: PNUD, “Relatório do Desenvolvimento Humano – 2003”). Canalização para 21% da população Água potável para 25% da população Segundo um memorando do Governo ao FMI, de julho de 2005, “mais de dois terços” da população vivem abaixo do nível de pobreza (cf. Gazeta de Notícias. Bissau, 25 de julho de 2005, p. 10). 381 APÊNDICE E Dados culturais 1879 1900 Fundação da primeira tipografia do país, a Imprensa de Bolama Publicação de Litteratura dos negros. Contos, cantigas e parábolas, do cônego guineense Marcelino M. de Barros. Primeira coletânea da oratura guineense 1924 1946-1973 1958 1963 Fundação do primeiro jornal do país (Pró Guiné) Publicação do Boletim Cultural da Guiné-Portuguesa (total de 110 números) Fundação da primeira instituição de ensino secundário (Ginásio) na Guiné-Bissau Publicação dos Poemas de Carlos Semedo, primeira publicação literária de um guineense no país 1967 1975 Inauguração da Rádio Libertação, órgão de propaganda e divulgação do PAIGC Fundação do jornal NÔ PINTCHA, o primeiro depois da independência Criação do Banco Nacional Criação do Ballet Nacional 1977 1978 Publicação de Mantenhas para quem luta!, a primeira antologia poética do país Criação do Comissariado de Estado para a Informação e a Cultura (CEIC) Publicação de Momentos primeiros da construção, segunda antologia poética do país, com a primeira publicação de um “Espaço crioulo” Publicação em Portugal de Garandessa di nô tchon, de Francisco Conduto de Pina, primeira publicação literária individual depois da independência Publicação dos primeiros discos musicais da Guiné Bissau: de José Carlos Schwarz e o grupo Cobiana Djazz (I e II) Criação do Instituto Nacional de Cinema 1979 Publicação de 'N sta li, 'n sta la. Livro de adivinhas por Teresa Montenegro e Carlos de Morais Publicação de Junbai. Storias do que se passou em Bolama – e outros locais – por Teresa Montenegro e Carlos de Morais. 1980 Criação da Escola de Música José Carlos Schwarz Criação da Escola de Direito, embrião da Faculdade de Direito 1981 Publicação em Portugal de A luta é a minha primavera, de Vasco Cabral, segunda publicação literária individual depois da independência 382 1982 1984 1987 Publicação em Portugal de Não posso adiar a palavra, de Hélder Proença Fundação do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa) Inauguração da Biblioteca Pública do INEP Início da rodagem do primeiro filme de ficção guineense, “Mortu Nega” de Flora Gomes 1988 Inauguração da Editora NIMBA (a segunda do país, ao lado da Imprensa Nacional). Publicação de contos da oratura e de “bandas desenhadas” na língua guineense Inauguração do Museu Nacional 1989 1990 1992 1993 Inauguração da Televisão Nacional Publicação em Portugal da Antologia Poética da Guiné-Bissau Publicação em Portugal de O eco do pranto, antologia com a temática da criança Publicação de A Escola, de Domingas Samy, primeira publicação de uma mulher na Guiné-Bissau. Primeira coletânea de contos 1994 Fundação da primeira editora privada do país, a Ku Si Mon Editora Lançamento de Tcholona. Revista de Letras, Arte e Cultura – a primeira revista cultural da Guiné Bissau (ao todo 9 números, dos quais 3 duplos) Publicação de Eterna Paixão, de Abdulai Sila (Ku Si Mon Editora), o primeiro romance do país 1995 Publicação de A última tragédia, de Abdulai Sila (Ku Si Mon Editora) Publicação de Uori. Storias de lama e philosophia, de Teresa Montenegro e Carlos de Morais (Ku Si Mon Editora) 1996 Publicação de Kebur. Barkafon di poesia na kriol, a primeira coletânea de poesias na língua guineense. Primeiro dos oito volumes da Colecção Kebur (INEP): Publicação de Noites de insónia na terra adormecida, de Tony Tcheka (vol. 2) Publicação de Entre o ser e o amar, de Odete Semedo (vol. 3), primeira publicação de poemas de uma mulher guineense Publicação de Arqueólogo da calçada, de Félix Sigá (vol. 4) Publicação de Djarama e outros poemas, de Pascoal D’Artagnan Aurigemma (vol. 5) 1997 Publicação de Ora di kanta tchiga. José Carlos Schwarz e o Cobiana Jazz, de Moema Parente Augel (vol. 6) Publicação de Mistida, de Abdulai Sila (KU SI MON Editora) Publicação de Kikia Matcho, de Filinto de Barros Publicação de O silêncio das gaivotas, de Francisco Conduto de Pina 383 Publicação póstuma de E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu, de Artur Augusto da Silva (caboverdiano de origem portuguesa e radicado na Guiné-Bissau) em Bissau, pelo Centro Cultural Português / Instituto Camões Publicação em Portugal de Corte Geral. Deambulações no surrealismo guineense, de Carlos Lopes, primeiro livro de crônicas da Guiné-Bissau 1998 Publicação de Os marinheiros da solidão, de Jorge Cabral (Col. Kebur, vol. 7) Publicação de A nova literatura da Guiné-Bissau, de Moema Parente Augel (Col. Kebur, vol. 8) Publicação em Paris de Um Cabaz de Amores / Une Corbeille D’Amours, de Carlos Edmilson Marques Vieira, sua primeira obra literária 1999 Publicação em Portugal de Tiara, romance, de Maria Filomena Araújo Vieira Embaló, angolana de “raízes caboverdianas e guineense de coração”, com o apoio do Instituto Camões 2000 Publicação de Sonéá. Histórias e passadas que ouvi contar I e de Djênia. Histórias e passadas que ouvi contar II, de Odete Semedo Publicação de Contos de N’Nori, de Carlos-Edmilson Marques Vieira, edição do autor e do Instituto Camões – Centro Cultural Português de Bissau; 2ª edição em Portugal, em 2005, pela UNEAS, União Nacional de Escritores e Artistas de São Tomé e Príncipe 2002 Publicação de Sol na mansi, de Nelson Medina, primeira publicação individual de poesia na língua guineense Publicação de Stera di Tchur, de Rui Jorge da Conceição Gomes Semedo, edição do Autor Publicação de Os Testemunhos de Mbera, romance, de Meio-Dia Cepa Maria Ié Có, em Bissau, com o apoio do Programa de Incentivo às Iniciativas Culturais (PIIC) 2003 Início das atividades da Universidade Colinas de Boé (instituição privada) Início das atividades da Universidade Amílcar Cabral Publicação em Portugal de No fundo do canto, de Odete Semedo 2004 Publicação de Contos da cor do tempo. Coletânea de contos organizada por Teresa Montenegro, em comemoração aos 10 anos de criação da editora Ku Si Mon a sair em 2006 Publicação em Portugal de Guiné – a rosa que dói, de Tony Tcheka, pela UNEAS, União Nacional de Escritores e Artistas de São Tomé e Príncipe 384 ANEXOS 385 386 ANEXO A Hino Nacional da Guiné-Bissau É Pátria amada Letra de Amílcar Cabral Sol, suor e o verde e mar, Séculos de dor e esperança: Esta é a terra dos nossos avós! Fruto das nossas mãos, Da flor do nosso sangue: Esta é a nossa pátria amada. (Coro) Viva a pátria gloriosa! Floriu nos céus a bandeira da luta. Avante, contra o jugo estrangeiro! Nós vamos construir Na pátria imortal A paz e o progresso! Nós vamos construir Na pátria imortal A paz e o progresso! paz e o progresso! Ramos do mesmo tronco, Olhos na mesma luz: Esta é a força da nossa união! Cantem o mar e a terra A madrugada e o sol Que a nossa luta fecundou. 387 ANEXO B MAPA DA GUINÉ-BISSAU
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