http://groups.google.com/group/digitalsource Uma aventura com DOM CASMURRO Coleção Moacyr Scliar Ciumento de Carteirinha (contra capa) O ciúme pode levar um sujeito à loucura. Vejam só o caso de Francesco: ele e mais três amigos se inscreveram em um concurso em torno do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Os competidores devem julgar a enigmática Capitu, personagem do livro, com argumentos que comprovem ou desmintam as suspeitas de traição nutridas por Bentinho, seu marido. A história cala fundo em Francesco, pois parece que Júlia, sua namorada e parceira de equipe, resolveu dar uma de Capitu, demonstrando interesse por outro colega. Identificado com Bentinho, Francesco decide incriminar Capitu, nem que seja forjando uma prova falsa. Acompanhe de perto as peripécias desse "advogado" de pavio curto e grande coração. Moacyr Scliar, que faz parte da Academia Brasileira de Letras, é um dos mais importantes e premiados escritores brasileiros contemporâneos. Em Ciumento de carteirinha, ele homenageia um clássico da nossa literatura, o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Confira então a conversa entre esses dois escritores, concebida especialmente para o leitor jovem. Diretor editorial adjunto Fernando Paixão Coordenadora editorial Gabriela Dias Editor assistente Fábio Weintraub Preparação Agnaldo Holanda Seção "Por dentro da história" Verônica Stigger Revisão Ivany Picasso Batista (coord.) Alessandra Miranda de Sá ARTE Projeto gráfico e capa Victor Burton Edição Cintia Maria da Silva Assistente Eduardo Rodrigues Editoração eletrônica EXATA Editoração Pesquisa iconográfica Sílvio Kligin (coord.) CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. ___________________________________________________________ S424c Scliar, Moacyr, 1937Ciumento de carteirinha : uma aventura em torno de Dom Casmurro, de Machado de Assis / Moacyr Scliar. - São Paulo : Atica, 2006 (Moacyr Scliar; v.3) Acompanhado de suplemento de leitura ISBN 978 85 08 10110-8 I. Ciúme - Ficção. 2. Ficção brasileira. I. Assis, Machado de, 1839-1908. Dom Casmurro II. Título. III. Série. 05-3793. CDD 869.93 CDU 821.134.3(81)-3 _____________________________________________________________________ ISBN 978 85 08 10110-8 (aluno) ISBN 978 85 08 10111-5 (professor) 2009 - 1º edição 6º impressão Impressão e acabamento: Gráfica Bandeirantes Todos os direitos reservados pela Editora Atica, 2006 Av. Otaviano Alves de Lima, 4400 - CEP 02909-900 Tel. (11) 3990-2100 - Fax (11) 3990-1784 - São Paulo, SP Internet: www.atica.com.br - www.aticaeducacional.com.br Preparando a briga 8. Resultado surpreendente Bastidores da criação Biografia Por dentro da história . E agora. com vocês: o narrador 5. Inesperada repercussão 14. A farsa segue em frente 12. Surge uma possibilidade 3. O julgamento 15. Descobrindo Dom Casmurro 4. Reta final 13. foi a catástrofe 2.Sumário 1. A história faz a minha cabeça 7. Um ciumento de carteirinha 6. No começo. Guerra é guerra 9. Fato novo 10. Machado "escreve" uma carta 11. joguete nas mãos da "oblíqua e dissimulada" Capitu. Queco se identificará completamente com o drama de Bentinho. quando lido com atrevimento e inquietação. executa a pena.Apresentação Dentre os sentimentos que nos desnorteiam. profere a sentença e. Acompanhe você mesmo as peripécias de Queco nas páginas seguintes. herói da história que você vai ler aqui. Mas não nos adiantemos. o Queco. Facilmente ele passa de vítima a acusador. Queco se verá às voltas com a leitura de Dom Casmurro. Isso ocorre porque também ele foi mordido pelo ciúme em relação a Júlia. E veja de perto como um grande autor pode nos levar longe. . o ciúme talvez seja o que possui maior potencial cênico. julga os envolvidos. clássico romance de Machado de Assis sobre o ciúme. Durante a leitura. namoradinha de infância e parceira de equipe na competição. Com quase nada o ciumento faz o seu teatro e arma a cena. ambos personagens machadianos. no entanto. de juiz a carrasco: lavra a queixa. se calhar. É esse o caso de Francesco. O ciúme o afastará de seus amigos. desempenhando vários papéis ao mesmo tempo. a ponto de levá-lo a cometer uma fraude que envolve o próprio Machado de Assis. Por causa de uma competição escolar (de cuja vitória dependerá a reconstrução do colégio em que ele estuda). mas até hoje me lembro dele. desde que sejam bem motivados. "Cara.e que ensina a gente a viver. Insisti. muita coisa que vem nos ajudando pela vida afora. . exatamente por causa do Jaime: . mal vestido. em que época viveu o autor".uma inesperada aventura. alagando rios e provocando deslizamentos de terra: várias estradas e ruas tinham ficado bloqueadas. Disso posso dar um exemplo pessoal: na minha turma de colégio tínhamos grandes leitores.No começo foi a catástrofe Dizem que os jovens não gostam de ler.Vá. a barriga aparecendo através da camisa . Ele já não mora mais em nossa cidade. você tem de ler este livro". A gente aprendeu muita coisa com a leitura. sim.cara desleixado estava ali.aliás. Mas abrigue-se . quando nos reunimos. fizeram nossa cabeça. de óculos. temos: muitos de nós continuamos amigos e. agora com nossas mulheres e nossos filhos. Fazia questão de partilhar conosco seu entusiasmo pela leitura: "Cara. Ela suspirou. de modo que minha mãe achou que eu deveria ficar em casa. na lanchonete enquanto esperava o sanduíche. particularmente. que diverte . dia em que tínhamos aula com o Jaime. Jovens lêem. barba grisalha. causando um problemão para o trânsito. e de que ainda hoje. E eu quero saber que surpresa é essa. Cada desafio significava a descoberta de um livro ou de um autor para nós desconhecido. *** Era uma quinta-feira. E foi graças ao Jaime que vivi . mamãe.1 . então. Grande Jaime. Ha em qualquer lugar: na fila do banco.livros que.vivemos . doze anos passados.Ele disse que tem uma surpresa para nós. Ah. lembro-me perfeitamente. muito importante. garanto a vocês. como fez a minha". e lêem com prazer. este escritor vai fazer a sua cabeça. E. Tínhamos não.disse. Um acontecimento que para mim. Ainda por cima eu estava resfriado. . Não é verdade. aprendemos com prazer e emoção. Chovia torrencialmente . Como dizia o professor Jaime: livro bom é aquele que emociona. dos livros que já lemos um dia . e não o vejo há tempos. um homem grandão. Sempre levava consigo uma pasta cheia de livros: minha biblioteca portátil. sempre falamos dos livros que estamos lendo. e estava sempre nos lançando desafios: "Duvido que vocês adivinhem o fim deste conto" ou "Quero ver se vocês deduzem. foi decisivo. Jaime adorava ler.Você é teimoso mesmo . pela temática do romance. olhos arregalados. segundo dizia. fazia uma semana que a chuva desabava sobre a região. sem nada. é marca registrada. que muita gente faltaria à aula. grandes clássicos. fora de moda. na encosta do pedregoso Morro da Carranca.Uma noite destas. Ali estávamos. E leve o guarda-chuva. falou da lua e dos ministros. para Santa Ifigênia. Um clássico da literatura brasileira. A viagem era curta. agências bancárias e um shopping. debaixo do aguaceiro. O estilo do autor é inconfundível. que eu conheço de vista e de chapéu. e os versos pode ser que não fossem inteiramente . aliás. aguardando na maior expectativa. Meio desligado. achei que não encontraria quase ninguém. se revelaria profética.encharcado. vindo da cidade para o Engenho Novo. Muitos jovens ficam com um pé atrás quando se fala em clássico. com novas lojas. o pobre. Para Jaime essa atitude não passava de preconceito. pitoresca região onde agora fica o pequeno comércio. sentou-se ao pé de mim. Disso dão testemunho o prédio da prefeitura e as ruazinhas tortas do Lavradio. é coisa superada. Nos últimos anos o centro até que se desenvolveu bastante. quando finalmente cheguei à escola. mas o bairro da Santa Ifigênia deteriorou-se. Pouco tempo depois chegou o Jaime . com aquela sua bela voz de barítono: .Quero apresentar a vocês uma obra-prima.bem. podem resultar em leitura prazerosa. data do período colonial. e na nossa turma isso era comum: clássico é literatura do passado. Mas tomara a precaução de proteger. Era um pequeno livro que tinha encapado. sustentava ele. Expressão ameaçadora que. Lá fui. A escola fica numa subida. . Itaguaí é uma cidade histórica. o que se vê ali agora são casas velhas e ruas esburacadas. assim chamado porque uma das muitas pedras existentes naquele local parecia uma cara humana com expressão ameaçadora. Mas estava enganado: a turma viera em peso. Abriu o livro e leu. com um saco plástico. encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro. Chegou a ser importante durante o Império e mesmo no começo do século XX. Anunciou. sem guarda-chuva. mas primeiro quero ver quem sabe que obra é esta. A medida que eu subia a ladeira a chuva apertava e. a surpresa que havia prometido. bairro que no passado até mansões imponentes sediara. emocionado: . diziam vários dos meus colegas. Ouçam só o primeiro parágrafo. em nossa pequena sala de aula. Cumprimentou-me.Vou mostrar a vocês este livro sensacional. todos curiosos por causa da tal surpresa. viera sem capa. obviamente para impedir que descobríssemos de que obra se tratava. e acabou recitando-me versos. no Brasil e até fora do país. como eu disse. o sangue escorrendo de um ferimento na testa. de uns dois metros de largura ou mais. No meio do que fora a nossa sala havia agora uma grande pedra. nenhum dos alunos ficara ferido.Isto deve ser obra do fantasma daquele poeta ofendido. as notícias não eram ruins: afora as fraturas. enquanto ele era examinado e radiografado. uma delas meio complicada. ele tentou. algo como se fosse um trovão. verdadeira catástrofe. destruindo o telhado. Finalmente conseguimos falar com o doutor Eustáquio. Eu olhava. mas onde estaria o Jaime? Começamos a procurá-lo no meio dos destroços. ele não tinha sofrido ferimentos graves.. fechei os olhos três ou quatro vezes. é. Fez uma pausa e comentou: . Alguém saberia me dizer que apelido é esse.maus. Ia ajudar o pessoal que estava perto dele. e depois um estrondo. nervosos. meio soterrado por caibros e telhas. que dera nome ao lugar. ele deu ao homem um apelido. sem entender: o que era aquilo? Um meteorito foi a primeira hipótese que me ocorreu: no dia anterior eu havia lido uma notícia qualquer sobre chuva de meteoritos. e em seguida aquela coisa aterradora: o teto da sala começou a ceder e a desabar. Por milagre. porém. para onde fomos também. fazendo com que uma parede inteira desabasse. tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.Esse rapaz evidentemente não gostou da atitude do nosso narrador: todo cara que lê versos quer ser ouvido. Com cuidado. a propósito. nós o tiramos dali. Magoado.gritou Jaime. e Jaime anunciou: . veterano médico de Itaguaí. que. Uma ambulância chegou pouco depois e levou-o ao hospital. . que como eu estava cansado. fazer uma piada: . E atenção para a pergunta de cem milhões de dólares. Sucede. é também o título do livro. e que estava ah porque rolara do alto do morro e viera cair sobre o colégio. que título de livro é esse? Fez-se um silêncio cheio de suspense.. e finalmente o encontramos. Não chegou a terminar a frase: ouvimos um ruído assustador. que estava atendendo o Jaime. contudo. Com muita dor. mas nesse momento sumiu: parte do teto tinha caído exatamente no lugar em que ele estava. Aguardamos.. Mas meteorito coberto de vegetação? Impossível.. Finalmente dei-me conta. . nenhum órgão vital havia sido atingido. O apelido.Pois o apelido. uma catástrofe. dá título ao livro.Todos para fora! . que pegou e ficou famoso. Aquilo era a Pedra da Carranca. Em suma. Para nosso alívio. . isso. o doutor Eustáquio. Durante dias nos revezamos. Essa obra custaria muito. percam a esperança. na escola José Fernandes da Silva tinham estudado pessoas importantes para nós: o prefeito Gondim (duas vezes reeleito). todos gostavam dele. E agora acontecia aquilo. aconteceu. torcendo para que ele melhorasse. todo o telhado teria de ser refeito. Não era só o antigo prédio que havia sido atingido. Teríamos de restaurá-lo. decidimos cuidar dele. . Na parede do fundo. verdade que meio precária. Mas de onde tirar recursos para isto? A escola.uma infecção que exigiu grandes doses de antibióticos . A prefeitura de Itaguaí e alguns empresários se dispunham a ajudar. Logo ele voltou a ser o Jaime de antes. mas mesmo assim ainda faltaria muito dinheiro. havia um lindo e antigo vitral. o professor dedicado que todos conhecíamos: até no quarto do hospital lia e falava de literatura. Uma reunião foi convocada pela diretoria. era a nossa auto-estima. Esta escola. de José Fernandes da Silva. visitando-o no hospital. Nós. prioridade. Além disso. por exemplo. junto com nossos pais e ex-alunos. Mas.Ele vai ficar bom . afinal. que atraía até turistas de outros lugares. um prêmio cultural José Fernandes da Silva. Reconstruir o prédio era. lá estávamos. levava o nome de José Fernandes da Silva. Depois de algumas complicações .. aquilo não seria obra pequena. como teríamos de restaurar o prédio em geral. O Jaime era uma unanimidade. e até gracejou: -Se vocês pensavam que iam ficar sem aula durante muito tempo. Proposta que não tinha muito apoio. os alunos. o prédio fazia parte da história da cidade. entre parênteses. e sério. uma estátua. as paredes precisavam ser reforçadas. muito dinheiro. publicado até em Portugal. pois. Como era um homem só. isto sem falar na enorme quantidade de crianças que eram batizadas com seu nome. seu fundador. a catástrofe. um homem que dedicara a vida a educar crianças e que era. Mas parte desse vitral estava quebrada. Então nos demos conta de que tínhamos outro. mas segura.opinou.garantiu o médico. sem família. como afirmou o engenheiro Otávio. Respiramos aliviados. também ele ex-aluno do Zé Fernandes. A recuperação era lenta. mantida por uma associação comunitária. e a última coisa que desejaríamos era vê-lo doente ou entrevado. uma verdadeira lenda viva. problema a enfrentar: boa parte da escola estava em ruínas. felizmente. Havia uma rua José Fernandes da Silva. era pobre. A discussão prolongou- . entre nós. era um orgulho para a cidade. Para começar.Seria melhor fazer uma escola nova . o poeta Jerônimo de Oliveira. mestra. O Jaime fora provisoriamente substituído pela jovem professora Sandra. Já no dia seguinte grupos de alunos e pais começaram a percorrer estabelecimentos comerciais pedindo doações. correndo e agitado. obviamente. Volta e meia formava-se uma fila na porta. por fim.Vá em frente . cedido pelo padre Afonso. . mas exercia essa capacidade de liderança de maneira equilibrada. mas a quantia ainda era insuficiente. Ainda ofegante da corrida. quadro-negro. 2 . Por isso surpreendia a excitação que ele agora mostrava. e que gostaria de transmitir aos colegas . Posso perguntar? . Defendia as causas estudantis com muito ardor .se fosse necessário reclamar de algum problema do colégio ele ia à Rádio Itaguaí ou ao Diário Itaguaiense -. madura. segundo nossos professores. trazer mesas. que também era ótima. O pior é que o salão só tinha um banheiro. .se a professora permitisse. ele acabara de ser informado de algo que poderia ser muito importante para o futuro da escola. minúsculo. tivemos de improvisar divisórias. as coisas funcionavam. mas havia motivos para tanto.Até eu estou curiosa.Mas primeiro tenho uma consulta para lhe fazer. Um exemplo. Estávamos justamente tendo uma aula com ela quando o Vitório entrou.Surge uma possibilidade Nesse meio-tempo as aulas estavam sendo dadas no salão paroquial da igreja do bairro. ponderado. cadeiras. decidimos fazer uma coleta de fundos. O lugar era pequeno. . todo mundo reclamando da demora. O que não era comum: presidente reeleito do grêmio do colégio. Uma consulta literária. e que igualmente sabia nos motivar para a leitura.se por horas. e na falta de opção melhor. aliás. Nenhuma boa solução surgia. Conseguimos alguma coisa.disse Vitório. . Vitório era conhecido como um cara tranqüilo. de um jeito ou de outro. Resultado: não sabíamos o que fazer. pediu desculpas à professora por ter se atrasado.disse Sandra. e por ter entrado daquela maneira tão brusca. Mas.Já vou contar do que se trata . chateado porque acha que não teve a atenção merecida.. o cara? Como que adivinhando o nosso pensamento.Então vamos lá. .retrucou Sandra. Sandra fez que sim .Sosseguem. existia uma tradicional rivalidade entre os dois lugares. Estamos sempre competindo com "eles": nosso futebol é melhor (mesmo porque temos dois times. Tirou do bolso um recorte de jornal: . pelo menos de ouvir falar. do Machado de Assis! Gente. para ver "o que eles estão aprontando". nossa estação rodoviária é maior. surpresa com aquela reação inusitada. mas considerando que o coitado ainda está se recuperando. não estou louco.Estou falando disto aqui. meio anti-social: casmurro. o professor Jaime disse que iria nos apresentar um livro muito importante. Sandra. o Itaguaiense e o Conquista. sem saber o professor Jaime nos transmitiu um recado! Um recado do Destino! Nós o olhávamos assombrados. No dia do desastre. . O livro se chama Dom Casmurro. meus caros colegas. Santo Inácio é a cidade vizinha. É uma notícia que saiu hoje no Jornal de Santo Inácio e que me foi dada pelo padre Afonso agorinha mesmo. e eles têm um só). retraída.. .Se eu souber responder.. o autor desse livro? Sandra. O Jaime. Sei muito bem do que estou falando.Machado de Assis! Dom Casmurro..respondeu Sandra. de que livro o Jaime estava falando? Pensei em procurá-lo. Vitório estava radiante: . Leu o começo. . -Dom Casmurro! Eu sabia que era o Dom Casmurro! Eu tinha certeza de que era o Dom Casmurro! Não é o Machado de Assis.. Teria ficado maluco. um pouco maior e um pouco mais próspera que Itaguaí. Ele usa um termo não muito comum. Nunca tínhamos visto o Vitório daquele jeito. e aí encontra um poeta.Não é preciso incomodar o pobre Jaime . interrompendo-a. e o poeta quer ler pra ele uns versos... hoje em dia. O título do livro resulta de um apelido que o jovem poeta. ele tratou de nos tranqüilizar: .. disse que sim: Dom Casmurro fora escrito por Machado de Assis. E estamos sempre lendo o Jornal de Santo Inácio. que até lembro: o narrador diz que está vindo da cidade para o Engenho Novo. . mas ele não está com muita vontade de ouvir. divertida.Dom Casmurro! .Eu sei que livro é esse. dá ao narrador. mas que designa uma pessoa fechada. Como vocês podem imaginar..Posso ler a notícia? . E acho que vocês também sabem.perguntou Vitório.bradou Vitório. . Pergunto: você por acaso sabe. Capitu. um cara inteligente. e agora abriu outra linha de produtos: eles estão lançando um perfume para gente jovem chamado. haveria uma espécie de tribunal no qual um advogado de Santo Inácio faria o papel de juiz..vem o melhor. mas acho que essa idéia do Vitório é muito boa. Eu não sei se é Destino ou não. que é um cara inteligente? Nós vamos entrar nesse concurso! Nós vamos ganhar. que. e. eu ia dizer.com a cabeça e Vitório leu: . Para escolher o melhor trabalho (de "acusação" ou de "defesa". acreditava mesmo naquela coisa de Destino? Isso é bobagem.É o Destino. e conseguir dinheiro para a obra. Era muita grana. Nós ouvíamos. Será que o Vitório. Ele estava dizendo que Machado de Assis ajudaria a reconstruir a nossa escola. gente! Destino com "D" maiúsculo! Por que vocês acham que o Jaime nos falou de Dom Casmurro bem no dia do desastre? Porque o Destino estava nos mandando um recado. é muito grande. incluindo vários professores de literatura. ponderado. Ah.Mas você não se deu conta." Seguia-se a explicação de como seria esse julgamento. gente. em grupo ou isoladamente. se ganharmos o concurso. nada temos a perder. isso era indiferente). Mas a troco de quê o Vitório estava nos dizendo aquelas coisas? Esta foi a pergunta que lhe fiz. daí o concurso. sim. arrebatado. Ele respirou fundo e disse a quantia. espantados. dará origem a um original julgamento simulado. como vocês sabem. Há muitas décadas os leitores do Brasil inteiro debatem a questão: Capitu traiu ou não traiu? Agora. Seriam avaliados tanto o conhecimento da obra como a capacidade de argumentação. Ele me olhou meio surpreso: ."Capitu em julgamento. .E agora . gesticulava como se estivesse num comício: . era muita grana. e as pessoas que assistissem ao julgamento poderiam votar. para "defender" ou "acusar" Capitu. e está sendo oferecido pela Fábrica de Sabonetes Santo Inácio. e com o dinheiro vamos arrumar nossa escola! Agora. tem mais uma coisa: a nossa vitória será uma lição .Escuta. É em dinheiro. de Machado de Assis. se é com "D" maiúsculo ou minúsculo. O prêmio.. cara? Você. Deus do céu. mas a Júlia se antecipou: .disse Vitório . E vocês sabem de quanto é o prêmio? Sabem? Alguém aí tem uma idéia? Ninguém tinha. vamos trazer prestígio ao colégio e à cidade. Poderiam inscrever-se estudantes de ensino médio de Santo Inácio e das cidades vizinhas. justamente. esta dúvida que envolve a famosa personagem do romance Dom Casmurro. Pra começar. O júri seria composto por pessoas conhecidas. o que sempre acontecia.para o pessoalzinho de Santo Inácio. às vezes me parecia que sim. A gente se conhecia desde a infância. adorava os seus grandes olhos azuis. a cabeleira loira. um rompimento tumultuado. Tinha dúvidas. Mas em relação à Júlia essa coisa era muito mais forte. Adorava particularmente sua voz. e por aí eu ia. repetia a todo instante que me amava. desde criança. Voltou-se para o Vitório: . Júlia morava com a mãe. ficava por conta quando a encontrava conversando com outro colega. ciumento sempre fui. que nossos pais não hesitavam em dizer: esses dois vão acabar se casando. discutiam por coisas insignificantes. de tudo/ a tua voz. meu coração batia mais forte. gostava de mim. Eu tinha a impressão de que ela dava bola para todo mundo. claro. a boca de lábios polpudos. Eu a vigiava constantemente. Ou seja. Eu achava Júlia simplesmente linda. para mim. e ela me recebia. e me levava a seu quarto. porque ela gostava de bater papo. as dúvidas cresciam: às vezes me parecia que sim.. Por exemplo. E havia um irmão com problemas mentais. até fria. tão tema. e ficávamos trocando beijos e carinhos. . O fato é que ela era uma garota complicada. funcionária pública. O pai mudara para o Rio de Janeiro e raramente aparecia. Tínhamos até morado em casas vizinhas. mas as duas não se davam muito bem. *** Júlia. com muitas brigas e acusações. O que. e isto fazia com que eu morresse de ciúmes. se refletia em nossa relação. que passava a maior parte do tempo no hospital. Nos fundos do quintal dela havia uma casinha que era nosso refugio. Cada vez que ela falava. namorava mesmo pra valer. Mas já no dia seguinte ela se mostrava distante. Se vocês me perguntassem se a gente namorava. que parece veludo. a nossa. era um sonho. mas disso eu não tinha muita certeza. Era uma relação tão próxima. e até tinha feito para ela um poeminha. À medida que o tempo passava. um mau poeminha.". razões a Júlia tinha para ser instável. eu não saberia responder. que tinha ataques.. não podia ver meus pais brincando com outro menino. quando eu ia à casa dela. que parecia veludo. e isto. O que a irritava: . ali ficávamos horas. sobretudo por causa da situação familiar. Júlia gostava de meus poemas.Comigo você pode contar.. que começava assim: "De tudo que já ouvi. Depois de uma longa e difícil convivência os pais tinham se separado. que se julga superior a nós. que éramos namorados. outras vezes que não. Aliás. imprevisível mesmo. *** Mas então estava ali o Vitório falando. como nós a chamávamos. Reconheça isso: você é um ciumento de carteirinha. do qual faziam parte. Você é daqueles que acham que as garotas não podem falar com ninguém. Talvez aquilo fosse um traço de família: meu avô. cuidando da família e sem ter contato com qualquer outro que não o marido. Você é ciumento. mas bonita. Quando lhe diziam que era ciumento não negava. que não eram raros. Eu ainda não estava inteiramente convencido. respondia com uma única frase: "Ciúme é sinal de amor". "O quarteto". Olhei ao redor. a gente não era.. sim). Palavras que eu também dizia a Júlia. não permitia que a esposa saísse sem ele. não podem olhar pra ninguém. Verdade: eu era um ciumento de carteirinha. no maior entusiasmo. muito inteligente. De qualquer jeito convivíamos. Tínhamos um grupo.. pelos pais. e vi que muitos colegas balançavam a cabeça de forma aprovadora. alguns mostravam-se bem interessados. por exemplo. era uma morena bonita (não tanto quanto a Júlia. o Vitório e a Fernanda. Enfim: namorados. era como o Jaime nos chamava.. pelos amigos. durante nossos bate-bocas. Talvez por não . muito viva. além de nós dois. achava que mulher tem de ficar em casa. destes que são reconhecidos como tal pelos colegas. homem muito severo. e convivíamos bastante. a Nanda. Amiga íntima de Júlia.Você é um cara antigo. Não sabia que tinha essa história de traição. Vamos votar: quem acha que devemos participar do julgamento da Capitu. Isso fazia parte das nossas complicadas relações). A causa é boa. e aquilo foi algo que o Vitório percebeu. Se não ganharem. sorrindo. E tenho certeza de que vocês podem contar com o Jaime também. Ele não deixaria a peteca cair: . Eu particularmente estou curiosa. No mínimo. É só ler e discutir. Nem sabíamos quem seriam os adversários.. mas agora que sei. acho que a questão está bem clara. e aprender.E você. Tem gente que gosta do autor. . Eu hesitava ainda.gostar muito desse tipo de competição. Olhava-nos.disse a Nanda. Com essas ponderações.retrucou Júlia (de vez em quando ela gostava de me contrariar em público. que fiz em voz alta. vamos dar uma grande alegria ao Jaime. Todo mundo achava que ela tinha uma secreta paixão pelo rapaz. que acha? .Qual é o problema? . é se emocionar.. ao nosso alcance. Tem gente que vai em busca de um livro porque um amigo recomendou. será ótimo se vocês ganharem esse concurso. acabei aderindo à maioria. um grande Livro. Será que não estávamos alimentando falsas esperanças? Afinal de contas. tem gente que está interessada pessoalmente no tema.Afinal. não tínhamos a menor experiência em concursos como aquele. Apesar de relutante. Já ouvimos os prós e os contras. levante a mão.perguntei. mostrou as suas qualidades de líder. .. e. mais um ou outro colega. Arranjar dinheiro para reconstruir a escola é muito importante. mas. O que importa é gostar. Podem contar comigo para isso. Temos uma chance de ouro para ajudar nossa escola. era unanimidade: todos tinham se . . quando aconteceu aquele desastre. . era exatamente isso que o coitado pretendia.. .A gente nem sequer leu o livro do Machado de Assis. tinha dúvidas acerca de como nos sairíamos e resolvi me manifestar: . . Isso não importa. Aos poucos. alguns já se mostravam desanimados. os olhos cravados em Vitório. Portanto. você é a nossa mestra. De imediato.. Só conhecemos o primeiro parágrafo. No fim. afinal. agora temos de decidir. Essa história do prêmio é meio engraçada.ela disse.Eu acho uma boa .. se funciona como motivação para vocês.. e estudado. no mínimo terão descoberto.. Sandra não dizia nada. sigam em frente. . como eu.Pessoal.Dom Casmurro está aí. a porta da afinidade. estou ansiosa para saber do que se trata.Eu também gostaria de saber do que se trata . as mãos foram se erguendo. pessoal. a porta do interesse.A literatura é uma casa de muitas portas: a porta da curiosidade. Todo mundo sabia que a separação abalara o Jaime. Vitório me conhecia bem. Jaime já tinha deixado o hospital. o da Júlia e o da Nanda. o coitado. . se reúne também com o Jaime? . Um dos colegas sugeriu que. O "Quarteto" que você conhece. .É pra já . Todos concordaram. ou não somos? E tenho certeza de que você acabará vestindo a camisa. e indicou os nomes: o meu. Mas eu ainda estava em dúvida se deveria ir junto. mas no fundo o meu entusiasmo por aquele tal de julgamento não era dos maiores e foi o que eu disse a Vitório: . todos queriam participar do concurso.. Jaime.Quem sabe. o Vitório organizasse um grupo de trabalho. O importante é não perder . além de falar com a Sandra. 3 . jardim. Agora. Vitório ligou e perguntou se ele podia receber um grupo de alunos: .sugeriu Nanda.. mas ainda estava em casa.Já avançamos bastante. tão logo terminou a aula da Sandra.disse o Vitório. temos de decidir o que o grupo de trabalho vai fazer.O "Quarteto". . sim. na modesta casa em que o Jaime morava. o mas mostrava-se animado: . podem nos dar boas dicas.. um dentista que morava em Santo Inácio.Descobrindo Dom Casmurro Jaime nos de recebeu roupão. .Você vai.Não sei se vou atrapalhar mais do que ajudar. Poucos meses antes a esposa deixara-o por outro homem.. pessoal. tinha sido escolhido para o grupo.A gente não pode se deixar abater.Tanto o Jaime como a Sandra conhecem bem o livro. mais ele próprio: o "Quarteto". mas bonito. de repouso. Que foi aprovado pelo resto da turma. para isso. Por causa da nossa longa convivência. Emagrecera. Às quatro horas em ponto do dia seguinte lá estávamos. Ele não queria saber de minhas dúvidas. mas ele resolvera seguir com sua vida. no qual trabalhava todos os fins de tarde. sozinho. e o encontro foi marcado para as quatro da tarde do dia seguinte. a gente.Ótimo . Somos um grupo. e estamos conversados.disse Vitório. sabia que às vezes podia até decidir por mim: . Inclusive permanecera na mesma casa e fazia questão de manter o pequeno. .convencido. Jaime topou nos receber. a coragem. Estava um dia bonito: agora que parará de chover.O Machado deve estar se virando no túmulo com esta. Estendeu-lhe o recorte do jornal. nós vamos descobrir tudo sobre este livro. e é importante por causa do prêmio. Ele se pôs de pé..De qualquer modo. E o julgamento..A gente sabia que podia contar com você . Jaime tinha uma proposta: . se ganharem o prêmio para a escola. E há muito o que discutir. para mim será motivo de alegria.disse Jaime.. .. .disse Vitório. . E conhecer a fundo. Muito bem.gracejou Vitório.Não só isto . um sol quente brilhava sobre Itaguaí. pessoal. É importante por causa do livro. Sentamos nos bancos rústicos que ele mesmo confeccionara. É importante. E a quantia de que a gente precisa para arrumar o colégio Zé Fernandes.. E. Você não acha que isso é coisa do Destino? Jaime disse que não acreditava muito nisso. lendo o livro do Machado. . . pessoal do Quarteto? Estou curioso para saber o que de tão importante vocês têm para tratar comigo. .Participar do julgamento? . é enfrentar os problemas. Levou-nos para o quintal. animado. e a Nanda acrescentou: .Dê só uma olhada. nós discutimos em conjunto. uma iniciativa assim pelo menos chama a atenção para a literatura brasileira. não traiu? É com a gente mesmo.. optando por achar graça: .Já vi que vocês serão o grupo que vai tocar em frente essa questão do julgamento. Mas. surpreso.E então. Jaime leu a notícia. mestre Jaime.disse Júlia.Trouxemos a notícia porque resolvemos participar desse julgamento. Jaime nos olhou: .Vamos conhecer. . Mas topava a parada: ..Mas vocês nem conhecem o livro. Você e a Sandra nos ajudarão. A verdade . enfim. Traiu.É por isso que você é um grande professor! Todos estando de acordo. Alguém de vocês é candidato ao prêmio Nobel de literatura? . vocês vão viver uma verdadeira aventura literária. Vocês lêem o livro. era a opinião dele. a resposta.É melhor do que o prêmio Nobel . nos fundos da casa. a questão agora era planejar o que fazer.Nós vamos ler Dom Casmurro do começo ao fim.. Jaime. . destino a gente faz. Imagino que vocês me trouxeram esta notícia porque íamos começar a leitura do Dom Casmurro. Uma época de grandes transformações sociais e políticas: abolição da escravatura. e a eles eram subordinados. tinha crises convulsivas. O escritor está falando. de uma situação que conheceu de perto.Não teve mesmo. Nos seus livros.. pessoas que não eram escravas. que moravam de favor em grandes propriedades rurais. cada um tinha de ficar no seu lugar. portanto. onde Machado nasceu e onde passou toda sua vida... ou seja. . fim do Império. . como banqueiros e ricos comerciantes. Ele era de família pobre: avô escravo. Era respeitadíssimo como escritor e foi o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Era um país com uma estrutura social muito rígida. mãe lavadeira.Muito mais conservadora. que praticamente faziam todo o trabalho. e que nem sempre tinham como sobreviver. portanto. Mas gostava mesmo de escrever: começou a publicar na imprensa ainda muito jovem. decerto.disse Júlia. o José Dias.. Os pais eram agregados de uma senhora que tinha propriedades. nunca foi à escola. Ou seja: não tinham muita autonomia para decidir sobre suas próprias vidas. conseguiu se educar. tornando-se..observou Nanda. Desde cedo precisou trabalhar para ajudar a família: vendia doces. brancos separados dos negros. aquele fim do século XIX. Com muito esforço e graças à sua inteligência.. pobres separados dos ricos. uma camada intermediária.Situação meio deprimente . . A sociedade brasileira era como uma pirâmide: no alto. pai operário.O coitado do Machado pelo jeito não teve muita sorte.Mais conservadora. foi uma época interessante. dos favores dos ricos. . estavam os ricos e poderosos. mas uma cidade bem menor e bem diferente do que é hoje o Rio de Janeiro. em 1899. prestando pequenos serviços. Ele era pobre. ou então gente de posses. tratou de ganhar a vida entrando no serviço público. A relação entre .é que Dom Casmurro vem provocando polêmica desde que foi publicado.. vocês vão ver que no livro aparece um agregado desses. mas que não eram proprietárias. Naquela época isto era muito comum. Entre essas pessoas estavam os agregados. dependiam. aprendeu a ler ainda bem pequeno. . em geral fazendeiros. mais tarde. Que se saiba.. Como muitos contemporâneos. jornalista. Aliás.. O Brasil de hoje é fichinha comparado ao Brasil daquela época. chegou a ser um importante funcionário do Ministério da Agricultura. ao mesmo tempo que trabalhava como tipógrafo e revisor. .. proclamação da República. proprietários de terra. Machado fala de um Rio que era a capital federal. os escravos.. No meio. A capital era o Rio de Janeiro. lá embaixo.. Aliás. mulato (numa época de racismo escancarado) e doente: sofria de epilepsia. 4 . considerado o patriarca da família. Como vocês podem imaginar. Trabalhar fora.Eu conheço vocês quatro. afinal. eu era normal. eu? Talvez em bebê.homens e mulheres era complicada. um tanto difícil de escrever e de pronunciar. completa-se com um absurdo Formoso. Mulher tinha de ser submissa ao marido. Formoso. idéia de uma velha tia . Não.. A não ser pelos olhos grandes e escuros que muitas garotas achavam bonitos (sem deixar de observar que eu tinha um "olhar desconfiado"). mas nós já estávamos sentindo aquilo como desafio. mas acabo de me dar conta: daqui a cinco minutos vem o cara da fisioterapia. jogava basquete. Eu tinha um bom corpo. essa situação criava ressentimentos. que teria repercussão em nossas vidas. bem mais. olhou o relógio: . ficava em casa. Formam um grupo ótimo.Desculpe. não era missão impossível. Tenho certeza de que vão levar a coisa em frente. O que não sabíamos era que naquele momento estávamos dando início a uma verdadeira aventura. que é a questão dos ciúmes. nem pensar: marido nenhum admitiria isso. estimulante desafio. com vocês: o narrador Machado de Assis narra Dom Casmurro em primeira pessoa. Mas nós vamos nos aprofundar mais neste tema. Dom Casmurro fala de uma questão muito delicada. sem nada de especial. Podia ser uma tarefa difícil. Também não gostava muito do Francesco. Alguma coisa sobre Machado e sua época vocês já sabem. que é uma homenagem a meu tataravô italiano. Não é missão impossível. era alto para a idade. e assim nós ficamos conhecendo o personagem. Mas. Deu. falando um pouco de mim. e quando alguém brincava comigo por causa do nome eu ficava uma fera. Vamos ter de ficar por aqui hoje. gente. Garoto. Peço licença para fazer a mesma coisa. e a verdade é que. E terminou dizendo que estava confiante: .sou Francesco Formoso de Azevedo. formoso? Formoso eu não era. Colocou-se à nossa disposição para ajudar em tudo. cuidando das crianças.. Interrompeu-se. embora o apelido fosse meio esquisito (parecia um . Eu era (e sou. meu rosto era comum.E agora. para os íntimos) o Queco. cheia de preconceitos. pessoal. Claro que um apelido seria inevitável. suspeições. Não me perguntem como é que Francesco deu Queco. E um livro que. Chamo-me Francesco. vou acompanhar vocês nesta narrativa. O nome. Sim. o colégio Zé Fernandes precisava ser reconstruído. De modo que. queco!). Mas estes inconformados são exceção. quem tem de ir para o hospício são os sadios.O que é que vocês acham? Vale a pena a gente entrar nessa? Tanto papai como mamãe aprovaram a idéia. E isto sempre incomodou alguns itaguaienses. E perguntei: . se não gostava de alguém. Contei então a história do julgamento de Capitu. me simplificava a vida. ele fez da cidade cenário para uma de suas melhores histórias. mas todo dinheiro extra que entrasse seria bem-vindo. advogado sindical. meio maluco. Na sala de visitas tínhamos uma biblioteca pequena.Você vai adorar. por exemplo. são vidrados na obra dele. E . mas muito boa. se achava a pessoa meio esquisita. Gostam de ler. A história ficou tão conhecida que muita gente achava que a tal Casa Verde tinha existido mesmo. Lá pelas tantas boa parte da população estava na Casa Verde.grasnido de pato: queco. Mamãe queria saber se se tratava de uma recomendação da escola. Uma idéia me ocorreu: pedir que usasse seus conhecimentos de advogado para nos ajudar. Minha família é toda de Itaguaí. e minha mãe. do nosso plano de ganhar o concurso e de ajudar na reconstrução da escola. queco.disse papai.É um julgamento. Na nossa cidade Machado tem muitos fãs. Ele dirigia um hospício conhecido como Casa Verde. assistente social. assim como meus dois irmãos. Alienista era a denominação-que se dava. o Doutor Bacamarte. a escola também é de vocês .Afinal de contas. Leram juntos Memórias póstumas de Brás Cubas e muitos outros livros. são ambos pessoas cultas. . papai e mamãe. no século XIX. afinal. quando voltei para casa com o recémcomprado Dom Casmurro. O que não é de estranhar: muita gente em Itaguaí é leitora de Machado. eles mesmos já tinham contribuído com uma boa quantia. Meu pai. Aí o alienista chegou a uma conclusão: se a maluquice é a regra geral.É uma grande história . O alienista. mandava interná-la.disse papai. verdade que simulado. Internou-se ele mesmo na Casa Verde. também ele. com várias obras de Machado de Assis. O alienista fala sobre um médico desses. que gostariam de ver a cidade lembrada por outras razões que não essa. Nem todos os itaguaienses lhe são gratos por isso. sobretudo se conseguido pelos alunos: . sempre gostaram. onde veio a morrer. aos médicos que tratavam dos alienados. . dos loucos. mas julgamento. ficaram muito satisfeitos: . Só que o Doutor Bacamarte era. Essas pessoas prefeririam que Machado tivesse escolhido outro lugar para cenário de sua história. Você conhece o livro tão bem como eu e sabe que isso é papo furado.. Você sabe que minha especialidade são causas trabalhistas. não perdia a conversa.. Capitu traiu ou não traiu?". e acabou recitando-me versos.Um julgamento moral. Queco. foi uma vítima. queria pelo menos saber a opinião dele: Capitu tinha ou não traído? De novo papai procurou tirar o corpo fora. Mas este caso trata de outro tipo de julgamento. que uns achavam uma coisa. leitores de outros países também.. foi justamente essa: "O que é que você acha. um chato de galochas. vindo da cidade para o Engenho Novo. Ele riu: .Ora. Mas certamente não é algo a que se possa aplicar o critério da lei. A viagem era curta.É . quando vocês prepararem o trabalho. Queco. . não me venha com essa. Se Capitu fosse uma empregada despedida sem justa causa. . e os grandes escritores nos ensinam a viver por meio de suas histórias. se Capitu traiu ou não. até hoje continua dividindo os brasileiros.garantiu mamãe. . . olhos no jornal. Aliás. e Bentinho o patrão. . poderia nos dar algumas dicas.E vão aprender muita coisa . e a primeira pergunta que me fez. a atividade foi pensada para os estudantes. Ali estava o começo que eu já conhecia: Uma noite destas. Cumprimentou-me. Vocês vão ter assunto para muita discussão. não vai ser fácil. que sabe tudo de julgamentos. aliás.Vão debater muito. e os versos pode ser que não fossem inteiramente .. sentou-se ao pé de mim. que eu conheço de vista e de chapéu. Esta dúvida. Pensem nisso. não para os seus pais.. falou da lua e dos ministros.Que tipo de julgamento? Ele pensou um pouco: . Entrei no meu quarto. Um ciumento clássico. Além do que. muito lido nos Estados Unidos. No ano passado conheci um professor norteamericano que era fã do Machado de Assis. acho. disse que isto era questão de opinião pessoal. que é advogado.O que. aí sim eu poderia opinar com segurança.confirmou papai.você. Eu insisti.. Minha mãe. Aquele Bentinho era um casmurro mesmo. comecei a folhear o Dom Casmurro. A coitada da Capitu não tinha culpa nenhuma. Machado é um grande escritor. outros achavam outra. Sérgio. Ou literário. Não se contendo.Eu acho que eles têm de chegar à sua própria conclusão opinou papai. disse: Ora. . Não sei bem. encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro. logo depois que nos apresentaram. e aí eu podia ler à vontade. o seu Noé. Dos vizinhos. um viúvo rico e avarento que morava sozinho na enorme casa em frente da nossa. Era um senhor escritor. ponderava que é difícil julgar as . eu queria ler mais e mais. Eu fazia questão de um lugar só meu para a leitura. os dois reclamando da luz acesa. achava que ele merecia a solidão. não simpatizei muito com o personagem principal. o que era motivo de discussão em nossa casa. concluí. Prossegui.Um ciumento de carteirinha A verdade é que sempre gostei de ler. tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. ao contrário. 5 . mas não permitia que os filhos ou sobrinhos o visitassem. um cara assim só podia ser um chato . então. "Vou gostar desse livro". só concordava em ir para a cama se papai ou mamãe lessem para mim. Meu pai detestava o velho..maus. que fica sozinho depois de velho. Um gosto que vinha da infância. diferentemente do narrador de Dom Casmurro. aquele Machado de Assis. Depois eles entraram na faculdade (Medicina e Direito) no Rio. outro ali. ele não queria nem saber. mantive esse hábito. Texto agradável.essa foi a minha impressão inicial. e aquele era meu refugio. E tive de conquistar esse lugar. Voltando ao Dom Casmurro: nas primeiras páginas. Jaime mais uma vez nos dera uma grande dica. Quando era pequeno. porque meus pais não tinham muita grana. Mas. Era até difícil parar de ler. fechei os olhos três ou quatro vezes. por isso eu dividia um quarto com meus irmãos. Crescendo. meus olhos não se fechavam. mais tolerante. Que foi muito favorável. Lembrava-me um vizinho que nós tivemos. onde foram morar. bem escrito.. tinha passado a manhã na escola. grande até. Um cara com o apelido de Dom Casmurro. porém. havia jogado basquete à tarde. procurando formar uma primeira impressão do livro. lendo um trecho aqui. que como eu estava cansado. frases claras. Sucede. Lia até de madrugada. Dizia-se que tinha família. Nossa casa não era grande. achava que estavam de olho em sua grana. e olha que eu estava cansado. mamãe. Instalei junto da janela uma velha poltrona. De volta à infância e às voltas com um difícil problema. e o José Dias. escrevendo.. e da qual mais adiante tomaremos conhecimento: "Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho. talvez mamãe tivesse razão. o que pensam. A gente costumava sentar de noite num degrau da casa dele. ou seja. dona Glória. mas ele era também o Bentinho. Quando da morte do pai de Bentinho. É. Ao menos para a mãe. as fantasias que alimentam. de onde deverá sair padre. agregado da família.". ruminando coisas tristes. eu e uns outros amigos. "Com o tempo adquiriu certa autoridade na família. com os quais curara o feitor e uma escrava na fazenda do pai de Bentinho. talvez atrás de cada Casmurro se escondesse um sujeito triste. e aí resolve mandar vocês embora do jeito que ele sabe. já no terceiro dos pequenos capítulos o narrador está de volta à infância. Isto por causa de uma promessa que ela fez. em Itaguaí. Uma vez tive um incidente com o seu Noé. Casmurro e Bentinho." É com esta autoridade que ele procura dona Glória para falar de Bentinho. pensando em desforra.. algo meio grotesco. mas depois muda de idéia: "Voltou dali a duas semanas. "Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo. preparados de acordo com certos princípios. Ou seja: o cara era o Dom Casmurro. Aí ele ouve vocês rindo e cantando. Nós ficamos furiosos.Imagina esse homem deitado na cama dele. dona Glória pede a José Dias que continue na propriedade.. e o que é que ele pensa? "Por causa desses garotos chatos eu não consigo dormir". minha mãe . molhando o traseiro de vocês. seu objetivo era "atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência". não usava remédios comuns e sim outros. e confiando nisso fui adiante na leitura. o senhor maduro e o rapaz. Oferta que José Dias em princípio recusa. cantando. José Dias apresentava-se como médico praticante da homeopatia. diz o narrador. é o que ele pensa. mas mamãe aconselhou-me a ver a coisa de outra maneira: .. virando de um lado para outro sem conseguir dormir. ficávamos conversando. Lá pelas tantas sentimos o traseiro molhado. aceitou casa e comida sem outro estipêndio. o destino do menino está traçado: ele vai para o seminário. Fiquei comovido quando o personagem diz que. Seria o caso do personagem do livro? Bem poderia ser. o seu Noé despejara água pela fresta da porta (água ou coisa pior: o cheiro era meio suspeito).pessoas sem saber como elas são na realidade. Ou seja. A maior parte do Dom Casmurro fala do Bentinho menino. o Vitório. como a gente vê num diálogo entre a mãe dele. ficaria morando ali em troca dos serviços que prestasse. com um pequeno ordenado". Capitu o ama.e então casaram. Cheguei a lamentar o fato de conhecer o final: melhor seria terminar a leitura por ali. avisa José Dias. que ouve a conversa.. Pois é. Começa a lembrar detalhes da convivência entre ambos: "Capitu chamava-me às vezes bonito. um . "se eles pegam de namoro. francamente. Para dona Glória. a senhora terá muito que lutar para separá-los".]. se fosse varão. É assim que a garota . só agora entendia a emoção que me davam essas e outras confidencias". entre o Bentinho de quinze anos e o Dom Casmurro. Angelical Bentinho. uma grande dificuldade". "José Dias amava os superlativos". Não por causa da indiscrição de José Dias.. o filho e a garota "são dois criançolas". nada fazia supor a traição. o prazer que sentia quando ela me passava as mãos pelos cabelos. segundo suas palavras. um dever muito amargo. Então. e que. Mas para que esta promessa se cumpra. ou seja. prometendo.. Ele procura dona Glória para cumprir. o sexo escrachado! E que contraste. Dá-se conta de que o sentimento que o une a Capitu é exatamente isso. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras..pegou-se com Deus para que o segundo vingasse. aquele amor descrito nos livros em palavras tão eloqüentes. e tiveram muitos filhos. gente.. outras vezes pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. Não é o que pensa o José Dias. E nem seria Machado de Assis. metê-lo na igreja". a brutalidade.. Chama-se Capitu. E conclui: "Pois. que acabara de fazer quinze entra na história. "um dever amaríssimo". e Capitu a mim?". também. quase a mesma idade de Bentinho. Com a ajuda dos superlativos avisa dona Glória que Bentinho e Capitu andam sempre juntos.garota mesmo: tem quatorze anos. fica completamente perturbado.. ele ama Capitu. A grande dificuldade tem nome. E fiquei com um nó na garganta por causa da simplicidade. Então.. mocetão. Melhor seria se o Machado de repente dissesse: ". Mas aí o título não poderia ser Dom Casmurro. "em segredinhos". por outra razão: "Com que então eu amava Capitu. Bentinho. Confesso que fiquei com um nó na garganta lendo esta passagem. da ingenuidade do Bentinho.. e foram felizes para sempre". "pode haver uma dificuldade [. Como "uma dificuldade"..". assombrado. ele se pergunta. e explica: "Era um modo de dar feição monumental às idéias". santo Bentinho! Que contraste entre aquele menino e aquela menina do século XIX e as coisas que eu via todos os dias na tevê: a violência. diz o narrador. uma flor. entre o menino ingênuo e o velho amargurado! Aquela altura o livro parecia única e exclusivamente uma bela história de amor. Enfim. *** Tão absorvido eu estava na leitura que nem notei o tempo passar. Vitório me saudou com o entusiasmo habitual. Júlia. Eu não conseguia parar de ler. E o pessoal já estava no shopping me esperando. mas de qualquer modo eu podia me identificar com os personagens. era ali que nos encontrávamos depois da aula. Claro. na maior parte da narrativa os personagens são jovens. porém. com emoções parecidas às nossas. E. Lá pelas tantas mamãe bateu à porta: .escritor realista. tínhamos combinado uma reunião para ver o que faríamos em relação ao concurso. e até me perguntava a razão daquele fascínio. modesto. perguntando se você esqueceu do encontro. que eu não conseguisse deduzir pelo sentido da frase. nem havia Aids). e é. mesmo porque o romance fora escrito no século XIX. de vez em quando aparecia alguma palavra que eu não conhecia. agradável. E aí me dei conta: em primeiro lugar. numa mesa. para comer alguma coisa e bater papo. à narrativa água-comaçúcar. O fato era que o livro me mobilizava por completo. comparado aos das grandes cidades (mas deve ser dos poucos que tem uma loja de moda feminina chamada Capitu). entrei direto na pequena praça de alimentação e ali. Júlia sorriu . e como em outras cidades. Nanda. de qualquer maneira. Mais: jovens com sentimentos parecidos aos nossos. cada um estava com um exemplar do Dom Casmurro. por amarga que fosse. claro que naquela época não havia pílula anticoncepcional. quando não melancólico. sobretudo com O Bentinho. Um mundo novo que eu estava descobrindo. Nada. Nanda me acenou.Seus amigos estão ao telefone. Fui correndo até lá. de qualquer modo. cada página do Dom Casmurro era uma surpresa. O encontro! Claro. Jovens do século XIX. usando roupas diferentes das nossas roupas. mas jovens.aquele sorriso cujo significado eu nunca sabia interpretar . certo. O autor de O alienista preferia a realidade. uma boa surpresa. O shopping de Itaguaí era. os costumes não eram tão livres (também não se usava tanta droga. jovens que eu imaginava falando diferente da gente. De qualquer modo o texto fluía fácil. como se tivéssemos combinado . estava a turma: Vitório.e de certa maneira nós tínhamos combinado -. a quem admirávamos pela capacidade de organização. de desanimar o pessoal. A favor e contra Capitu. Vitório insistia em que era preciso lê-lo como um advogado lê os autos de um processo.Porque o livro é muito bom. Muito bem pensado. O outro objetivo é vencer o julgamento. como chegaríamos a um acordo. Mal pude interromper a leitura para vir aqui. óbvio. era fofoqueiro: sabia de tudo o que se passava na cidade. O pessoal estava conversando animadamente . mas àquela altura eu já estava me dando conta de uma coisa: a tarefa seria mais difícil do que imaginávamos.Abriu o caderno: . e continuava discutindo. a gente tem dois objetivos. Pois este meu conhecido já deu uma olhada nos tais resumos e me garantiu que não há nada . mas o que eu li me deixou entusiasmado. inclinou-se em nossa direção e cochichou: . Terceira etapa: conclusões. um cara veio até a nossa mesa. garoto baixinho. Nanda. a discussão. nenhum preconceito.direito.Conheço um fulano que está trabalhando na organização desse concurso. . Ponderei que aquilo seria muito difícil: . Quando a gente disse que sim. é fabulosa. claro. A gente vai ter de se planejar muito bem. Segunda etapa: depois de ler. naturalmente. o Dom Casmurro com opiniões contrárias quanto à suposta traição. que estava sempre rindo e por isso recebera o apelido de Graçola.sobre o livro. mas é assim: os concorrentes devem anexar um resumo da apresentação que vão fazer ao público. Puxei uma cadeira. ele olhou para os lados. O Graçola. ou um sinal de cumplicidade. Não sei se vocês sabem como a coisa funciona. Mas ler sem nenhuma opinião prévia. Primeira etapa: ler o livro até o fim. Vamos listar os pontos a favor das duas posições.ponderou Júlia. se era uma coisa formal. Perguntou se estávamos discutindo o assunto do julgamento de Capitu. lá em Santo Inácio.Até escrevi aqui. com pinta de safado.. . a um ponto de vista comum? Foi o que perguntei.Mas o Vitório não deixa de ter razão . Objetivo: responder à pergunta "traiu ou não?". que. São três etapas. é ganhar o prêmio. Era um colega de escola. o Alípio. Precisamos chegar a um consenso. Um é conhecer a obra do Machado de Assis.. pediu a palavra: .Eu tenho uma proposta. sentei. Eu não li tudo. um tanto receoso de bancar o desmancha-prazeres. Antes que alguém pudesse responder. pessoal. E este consenso será a base da nossa argumentação. Se muita gente discutira. além de risonho. gente. reconstruir a escola. -Na verdade. buscando provas a favor e provas contra. Tarefa complicada. Ele a abraçou carinhosamente. Não gostei daquilo. porque. daquela "mãozinha". Decidimos democraticamente. fácil. que precisava ler o livro. Se era para competir. gente. não tinha percebido minha contrariedade. então deveríamos competir de maneira honesta.Em linhas gerais estou de acordo . aquilo podia ser só uma manifestação de amizade. sem pedir ajuda a ninguém. Olhou-nos. Se não. os dois. que não me parecia muito limpa.. convidou-me para ir ao cinema do shopping. pensava a mesma coisa. Depois que o garoto se afastou. pelo jeito.excepcional. Não gostei nada daquela cena. tem muito que aprender. não era o momento para comentários azedos. Se todos estiverem de acordo.disse Júlia. Para dizer a verdade. Barbada. Acho até que vou indicar você como minha candidata nas próximas eleições para o grêmio estudantil.Você sabe das coisas. Mas então? Qual é mesmo o nosso plano? É esse que a Nanda expôs? .Mas quero propor uma modificação. Ou seja: vocês ganharão fácil. . sem obter informações confidenciais. Acho melhor fazer de outra maneira. encantado. não gostei. Talvez consenso seja difícil. afinal. tudo bem. Não gostei daquela cena. Riram.Legítima barbada. não traiu. porque agradeceu ao Graçola. se conseguirmos esse tal consenso. ele nos olhou. não gostei nada daquilo. mesmo no rosto? Não. e voltei para casa. Pelo menos encontraria consolo na leitura do Machado. Mas eu. Você diz que precisamos chegar a um consenso. Vitório. analisa a história. não estava a fim disso. dá sua opinião: traiu. Júlia. .. Os dois se abraçando. francamente. triunfante. sacudiu a cabeça: . . E que história era aquela de beijo. Aquilo tinha estragado o meu dia. Mas não disse nada. afinal as nossas cabeças não são todas iguais. Júlia. . votamos. o beijo. pelo jeito. Pareceu-me que Júlia correspondia ao abraço dele com mais entusiasmo do que devia.Esse cara tem muito que aprender. beijando-a no rosto. E tem mais: se vocês quiserem.concordou Vitório.. Cada um lê o livro. eu posso falar pro cara dar uma mãozinha pra gente: ele tem cinco amigos de confiança no júri. quando nos levantamos dali..Perfeito . Além disso. Aleguei que tinha trabalho para fazer. Nanda. dizendo que o nosso plano era outro. e repetiu: . muito menos a um cara metido. pensamos diferente em relação a um monte de coisas. ninguém entrara ali. já impaciente. papai e mamãe perceberam que a coisa estava decidida. De raça indefinida.6 . Quando lhe dei um nome. aparecera uns três anos antes no jardim de nossa casa e fora ficando. porque às vezes eu Ha no banheiro.advertia minha mãe. Mas ele não estava mais ali. essa cachorra nunca vai embora . No banheiro. meus irmãos não estavam em casa.A história faz a minha cabeça Logo que cheguei em casa fui direto para o quarto: tinha deixado o livro na mesa-de-cabeceira. Era a Sapeca. não. . só para sacanear. que não recomendava esse hábito. Não. um dos meus irmãos tinha chegado e. E o quarto estava como eu deixara. Mas quando eles voltavam sempre traziam uma maleta.Desse jeito. no banheiro o livro também não estava. a nossa cachorrinha. quando ouvi um latido. Agora: onde fora parar o danado do livro? Era a pergunta que eu me fazia. então? Sim. e eu não queria que ela fosse mesmo. sempre deixavam coisas jogadas. Só impuseram uma condição: . apesar das advertências do doutor Eustáquio. queria ficar com a pobrezinha. escondera o Dom Casmurro. pensei. inclusive e principalmente porque eu lhe dava comida. Uma idéia me ocorreu: vai ver. já a encontrava me esperando: queria que eu a levasse para passear. que culpa tinha? Se eu próprio sentia ciúmes. Sapeca. bati com vontade. com as pontas atadas uma à outra. . ganindo baixinho.O que . a cadelinha. tremendo. alta. olhos claros e grandes. sem fala. Sapeca.. tinha a boca fina e o queixo largo". forte e cheia. providenciar vacinas e remédios. dito e feito. Contrariado. porém. se eu prestava atenção àquela "coisa". A verdade. Dei-me conta então do que estava acontecendo.. inclusive meus irmãos. . meio desbotado. até telefonavam perguntando por ela. corri até a área de serviço e. Concordei. para dizer a verdade. rápida. num primeiro momento ela até ficou indecisa. com o Dom Casmurro entre as patas. Brincava com vários objetos da casa.Você é quem cuida dessa tal de Sapeca. como ela escaparia disso? Peguei-a no colo. Quando eu voltava para casa.É a história de Bentinho e Capitu. Uma história muito interessante.um comportamento que nunca tinha exibido antes. com aquele instinto que os bichos têm. E aí a cachorrinha teve uma reação inesperada. Avancei até ela. agarrando-a no colo. Movido por uma súbita suspeita. De fato. que ela externava atacando o Dom Casmurro. Ficou imóvel.disse mamãe. do Rio. De alguma maneira percebera. lá estava ela. à moda do tempo. que eu gostava muito do livro. como que a me desafiar . que. Você é que vai lhe dar banho. Pensei que com aquilo Sapeca também se tornaria uma fã do Machado. não podia prestar atenção a ela.Meu Deus . dei-lhe uns tapas. Pobre Sapeca. Sapeca não estivera brincando com o livro. Então minha raiva deu lugar à piedade. Com o que também procurava chamar minha atenção. é que a Sapeca acabou conquistando todo mundo. inclusive com aqueles com os quais não deveria brincar. Porque estava com ciúmes. feitos em duas trancas. A coitada se encolheu. me olhando e rosnando baixinho. acariciei-a.. Mas quando minha mãe chegou Sapeca correu para ela. ficou num canto. falei sobre o livro: . claro. Li também a cena em que os dois se beijam: "Capitu ergueu-se. Ora.. mordendo-o como se fosse um osso ou uma bola de borracha. Daí sua raiva. Morena. apertada em um vestido de chita. nariz reto e comprido.. Os cabelos grossos. e a descreve como uma garota "de quatorze anos. orelha em pé. Sapeca estivera demonstrando sua contrariedade.". desciam-lhe pelas costas. Então tive a idéia de ler aquele pedaço em que Bentinho fala da garota. Sapeca era muito brincalhona. vai levá-la para passear. arrebatei-lhe o livro. eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem. Dona Glória até já aceita a possibilidade de um casamento. e voltei para o quarto com o livro. eu prometi ficar atento ao telefone. estará livre para fazer outra coisa. Bentinho vai. completamente absorvido que estava no texto do Machado. do ponto de vista do Senhor. afinal. torna-se um próspero comerciante. *** Bentinho fica muito abalado ao saber que a mãe. Mal sabia eu que um novo Bentinho já estava surgindo . Capitu e Bentinho tentam. mas não quis rir. .em mim próprio. com um engenhoso argumento: Dona Glória prometera a Deus dar à Igreja um sacerdote. Escobar. o resultado. se dentro de dois anos o rapaz concluir que não tem mesmo vocação para o sacerdócio. Retomei a leitura e num minuto já tinha esquecido o incidente com a cachorra. mas antes da partida ele e Capitu juram que irão se casar. José Dias chega a sugerir uma viagem a Roma com o objetivo de pedir ao Papa a revogação da promessa. Bentinho leva-o para visitar a mãe e apresenta-o a Capitu. com a ajuda de José Dias inclusive. reafirmara a promessa: o filho deveria seguir carreira religiosa. Se ela adotar um órfão e lhe custear os estudos no seminário. Ela achou graça. fique lendo. Mamãe saiu. capaz . A mãe decide enviar Bentinho ao seminário. que agora freqüenta a casa: Dona Glória e ela ficaram amigas.aconteceu com essa cachorra? Contei o que tinha sucedido. Consultado. como mãe ela cumprira seu papel. que. enviando o rapaz para o seminário. Mas olhe lá: não vá me transformar essa cachorra num Bentinho. que também saíra do seminário. vai a São Paulo estudar e forma-se em Direito. contudo. hein? Achei a advertência exagerada. Sei que você está às voltas com o livro. se o filho chegará a ser padre. filho de um advogado de Curitiba. Sem êxito. No seminário Bentinho conhece Ezequiel de Sousa Escobar. colega e amiga de Capitu. será o mesmo. De novo: se o livro terminasse aí.Deixe que eu vou passear com ela. informada por José Dias do seu namoro com a Capitu. isto já não é seu problema. o bispo concorda. teríamos um final feliz. para não incomodar ainda mais a pobre Sapeca. Bento e Capitu também se casam. casa com Sancha. Mas quem resolve o problema é Escobar. mas este sacerdote não precisa ser necessariamente Bentinho. ou não. Os dois tornam-se amigos e confidentes. Bentinho deixa o seminário. mudar esta situação. prometendo. Em criança. . ou ainda: "Não gosto do jeito como você olha para aquela vizinha". na semana seguinte. Por que a literatura seria diferente? 7 . teríamos de fazer um bom estudo do livro. Mas será que isto existe? A eterna felicidade dos casais. tudo gente de Santo Inácio. fui para o pátio onde Vitório. Isto era a vida real. Com um suspiro. Avisou-me que no intervalo faríamos a nossa reunião e que eu não deveria faltar: decidiríamos coisas muito importantes.Preparando a briga A primeira pessoa que encontrei no salão paroquial. exemplar. essas discussões me impressionavam. foi o Vitório: . substituía a campainha do colégio). na casa paroquial. mas depois me dei conta de que aquilo fazia parte da vida deles. lá no fundo.Se é guerra o que eles querem. a coisa meio que vira guerra.. está na hora de botar um limite nisso". Júlia e Nanda já esperavam. essas brigas entre casais que sempre acontecem por razões variadas e não raro fúteis: "Você mexeu nas minhas coisas. sempre se metendo. obtendo algumas informações interessantes: .Então é guerra . Fomos sentar num banco. Sim. Mas eu já sabia que o livro não teria esse final feliz. o julgamento de Capitu. Nada sério. E nós temos de nos preparar muito bem. que se amavam apesar das divergências.foi logo anunciando. que todo mundo via como um casal harmônico. será que existe? Meu pai e minha mãe.. Bem que eu queria ver Bentinho e Capitu felizes para sempre.Tenho novidades . de Itaguaí. por exemplo. o que me dava muita pena. um amigo de papai não pôde deixar de comentar: "Vocês.de alegrar muitos leitores. é o que terão.eu disse. de vez em quando batiam boca. Confesso que fiquei preocupado: se outras pessoas vêem o julgamento desse jeito. ou então: "Você gasta demais no supermercado. cada um com suas anotações. No dia anterior estivera com o pai em Santo Inácio. eu já disse mil vezes que não gosto que mexam nas minhas coisas". Quando eu disse que nós também vamos concorrer. .Já estão com uns dez grupos inscritos. Aquilo me irritou: . Vocês são como o Alienista: acham que são melhores que todo mundo". Vitório concordou. Tão logo soou a sineta (que. Lá falara com várias pessoas sobre o grande assunto do momento. - Bem - disse Vitório -, vamos para os finalmentes. Acho que todos leram o livro, de modo que... - Eu ainda não terminei - interrompi. Júlia me olhou. Às vezes, ela tinha uma maneira de me olhar que me deixava muito irritado. Como se ela fosse um ser superior e eu uma espécie de subalterno. - Mas a gente tinha combinado... - começou ela. - Eu sei que a gente tinha combinado, Júlia - respondi, de modo brusco. - Eu sei, você não precisa me dizer. Mas não consegui terminar a leitura, pronto. Júlia, de início surpresa com a minha reação e logo contrariada, começou a dizer que eu era um irresponsável, que aquele era um trabalho de grupo e que, num trabalho de grupo, todos têm de cumprir com sua obrigação. Eu estava disposto a comprar a briga, mas Nanda, sempre sensata, não deixou: - Bom, o Queco não leu, então não adianta a gente ficar discutindo. Você acha que até amanhã vai ter lido, Queco? Eu disse que sim, e ela sorriu, conciliadora: - Viram como falando a gente se entende? Não há necessidade de brigar, pessoal. Nós somos um grupo, nós temos um objetivo: queremos ajudar a nossa escola. Portanto, vamos em frente, sem perder tempo com essas discussões que só nos desgastam e não produzem nada de bom. Eu proponho que amanhã a gente se reúna de novo. Aí o Queco vai ter lido o livro, e poderemos comparar nossas opiniões e decidir, como sugeriu o Vitório, se vamos entrar no julgamento para acusar ou defender a Capitu. Não é uma boa? Era uma boa, todos estávamos de acordo nisto. Vitório e Júlia aparentemente já tinham até esquecido o bate-boca: conversavam animadamente, comparando suas anotações. Eu estava magoado. Estava magoado por causa da discussão e estava magoado porque via Vitório e Júlia cada vez mais próximos. Nem consegui prestar atenção nas aulas seguintes. Voltei para casa contrariado e com dor de cabeça. Mas não me deixaria abater. Prometera terminar o livro até o dia seguinte e era o que faria. Em primeiro lugar porque não suportaria ser repreendido de novo, como um garoto relapso; mas, principalmente, porque eu queria, sim, concluir a leitura. A verdade é que a obra me fascinava; porque era uma grande narrativa, claro, a narrativa de um grande escritor, mas também porque mexia comigo. Chegando em casa encontrei a Sapeca, me olhando e abanando o rabo. Evidentemente estava esperando que eu a levasse para passear, mas fui logo avisando: - Nem pensar, minha cara. Tenho de terminar o livro. Acho que o meu tom foi categórico, porque Sapeca optou por meter o rabo entre as pernas e foi se refugiar no quarto de mamãe, que, quando chegasse, certamente sairia com ela. Quanto a mim, mergulhei no livro, que agora chegava à sua parte mais dramática. *** Bento estava tendo sucesso como advogado; a vida para ele e Capitu seria boa, mas havia um problema: não conseguiam ter filhos, e sentiam inveja de Escobar e Sancha, pais de uma filha cujo nome, Capitolina, homenageava Capitu. É então que Bentinho começa a ter ciúmes. E a primeira coisa que lhe dá ciúmes são os braços de Capitu: "Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade...". E continua: "Eram os mais belos da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas alheias". Nesse momento, Bentinho ainda está orgulhoso da beleza de Capitu. Num segundo baile a situação muda de figura. Agora ele vê os braços nus como uma forma de exibição, de provocação: "Quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido". Esta crise é interrompida pelo nascimento do filho tão esperado, Ezequiel. Ele cresce, e, menino vivo, curioso, inteligente, faz a alegria de Bentinho e Capitu. Por outro lado os dois casais convivem cada vez mais, até porque Escobar e Sancha agora moram perto. O sonho deles é que Ezequiel e Capituzinha (apelido da pequena Capitolina) venham a se casar. Tudo bem, aparentemente. Mas sobrevém a tragédia: Escobar, que era apaixonado pelo mar, ironicamente morre afogado. No enterro algo chama a atenção de Bento: o modo como sua mulher olha para Escobar morto. Tão perturbado fica que quase não consegue fazer o discurso fúnebre. Tempos depois, e é a própria Capitu que lhe chama a atenção para isso. Bento começa a perceber as semelhanças de Ezequiel com Escobar: é como se o amigo ressurgisse diante dele. Resultado: ciúmes (ou mais ciúmes). O mal-estar entre marido e mulher vai num crescendo. Pior, Bento já não suporta ver o filho, o qual, muito apegado ao pai, nada percebe. Por fim, o menino é mandado para um internato. Tão desesperado Bento está, que decide se suicidar. Chega a colocar veneno numa xícara de café. Salva-o a chegada de Ezequiel. Num momento que é verdadeiro clímax, pensa em matar o menino, oferecendo-lhe o café envenenado, mas recua e, num desabafo, diz a Ezequiel que não é seu pai. Capitu entra na sala; quer saber o que se passa. Bento reafirma: não é pai de Ezequiel. Capitu coloca-o contra a parede, interroga-o: qual a razão dessa suspeita? Bento, confuso, não consegue responder, e Capitu conclui: tudo resulta da semelhança casual entre o menino e o falecido Escobar. Decidem se separar, porém mantendo as aparências. Para isto, partem, com Ezequiel, para a Europa, de onde Bento retorna só. Nunca mais verá Capitu. O tempo passa, morrem D. Glória e José Dias. Capitu também morre e é enterrada na Europa. Bento agora vive só. Um dia vem visitá-lo o filho. Ressurgem as antigas suspeitas: Bento vê em Ezequiel o retrato de Escobar. Depois de permanecer no Brasil alguns dias, Ezequiel, que é apaixonado por arqueologia, parte para uma viagem de estudos científicos pelo Oriente Médio, onde vem a morrer. Sozinho, Bento resolve escrever um livro de memórias. E uma tentativa de, como ele diz, atar passado e presente, descobrir o sentido de sua vida. A tentativa revela-se fmstrada. E ele decide escrever um outro livro que será uma história dos subúrbios do Rio de Janeiro. Ou seja: melhor subúrbios que ciúmes. Meu Deus! Meu Deus! Eram três da manhã quanto terminei a leitura. Fechei o livro mergulhado num verdadeiro turbilhão de sentimentos contraditórios. Eu não sabia o que pensar, tantas eram as reflexões que me ocorriam. Uma coisa era certa: havia lido uma grande obra. Não, não era só isso. Eu tinha vivido uma grande experiência. Lá do passado, mestre Machado dera-me um grande presente. Que fantástico livro, o Dom Casmurro! Machado era mestre até em pequenos detalhes. Por exemplo: havia me chamado a atenção o fato de que grande parte dos sentimentos eram transmitidos através do olhar, e sobretudo através do olhar de Capitu. Para Bentinho os olhos da garota eram "olhos de ressaca": "Traziam não sei que fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca". Essa alusão ao mar ganha ainda mais sentido quando a gente pensa no modo como Escobar morreu, afogado. É o olhar de Capitu que faz nascer o ciúme em Bento: quando, por exemplo, os dois estão conversando à janela, um jovem passa, olha e Capitu retribui o olhar; ou quando, já casados. Capitu permanece com o olhar perdido no oceano. E tudo isso culmina com o olhar, que ela lança ao Escobar morto. Notável, sim. Notável, mas perturbador. O livro tinha mexido comigo. Eu não seria o mesmo depois de ter lido Dom Casmurro. O livro dava nome a algo que eu sentia mover-se perto de mim, uma espécie de polvo com mil tentáculos que se agitava, invisível, no escuro mar dos meus tumultuados sentimentos. Ciúme era o nome dessa ameaçadora criatura. Que se apossara de mim como se apossara do Bentinho. Sim, como ele, eu fazia parte da tribo dos ciumentos. Eu também tinha mil suspeitas em relação a Júlia. Suspeitas que me transtornavam, que não me deixavam em paz. Tão perturbado eu estava que não conseguia dormir. Levantei-me da cama. A porta do meu quarto estava a Sapeca, que me olhou, indecisa. Depois de um momento, contudo, pulou para meu colo. Parecia feliz; feliz, decerto por ter conseguido vencer seu ciúme, por ter conseguido se reconciliar comigo. Ah, se eu pudesse fazer a mesma coisa em relação a Júlia... Sentado na poltrona da leitura, retomei meus pensamentos, tentando entender o que lera (ou seja, tentando entender também o que se passava comigo). Bento não conseguira vencer o seu ciúme. Por quê? Porque Capitu de fato o traíra? Ou porque sua ilusão a respeito era demasiado forte? Diabos, Machado conseguira seu objetivo: deixava-me em dúvida, como em dúvida deixara milhões de outros leitores. E o fizera de maneira muito hábil. Para começar, tudo o que a gente podia saber era informado pelo próprio Bento. Um julgamento em que só o acusador falava - como chegar a um veredito, a uma conclusão? Eu prometera que levaria para o pessoal algumas notas escritas e até tentei colocar no papel umas idéias, mas não consegui escrever coisa alguma. Meus pensamentos estavam muito confusos para isso. Pelo menos tinha feito a minha parte, lera o livro. Talvez o grupo, como um todo, chegasse a uma conclusão. A verdade é que naquele momento eu não estava muito interessado no julgamento. Só conseguia pensar na minha relação com Júlia. E oscilava: num momento eu tentava convencer-me de que éramos, sim, namorados, e que eu teria de respeitar a instabilidade dela, aceitá-la como era; em outros momentos, achava que estava na hora de terminar tudo, de romper relações até. Cansado, deitei-me, e depois de rolar de um lado para outro por uma boa meia hora, finalmente adormeci. Sonhei com um tribunal, um tribunal muito estranho. O juiz era uma figura familiar: o próprio Machado de Assis, cuja foto figurava no livro que eu tinha lido. Ali estava ele, muito elegante nas suas roupas do século XIX, a barba, o pincenê -aqueles óculos presos ao nariz. Sentou-se à mesa, bateu com o martelo, dando por aberta a sessão. Entrou o promotor da acusação - que era o Machado de Assis. Entrou o advogado de defesa - que era o Machado de Assis. Entraram os jurados, todos clones do Machado de Assis. Só faltava o réu, que não aparecia. Assistindo à cena, eu ia fazer uma pergunta do tipo "Mas, senhor Machado, quem é o réu?", porém desisti. Não seria impossível que ele dissesse: - O réu, meu caro Queco, é você. Acordei tarde e com maus pressentimentos, que se agravaram quando olhei para fora e vi o céu carregado, tão carregado como estivera na véspera da chuvarada que havia resultado no desastre para o Zé Fernandes. A vontade que eu tinha era de virar para o outro lado e continuar dormindo. Mas não dá para fugir dos problemas da vida, né? Levantei, lavei-me, vesti-me, tomei café e segui para o salão paroquial. O pessoal já estava lá; Júlia mal me cumprimentou, o que só me deixou ainda mais chateado. Já Vitório mostrava-se animado como sempre: - Vamos nos reunir no intervalo, gente. Hoje vamos começar. Vamos dar a partida para a grande jornada. E isto complica bastante o raciocínio. traído. O que me parece muito . Bentinho? Não dá pra acreditar no Bentinho. não deve ter muita afinidade com esse personagem. Machado falou. a gente tá vendo isso todo dia. Conclusão: pra mim o Machado queria mostrar que o Bentinho estava meio biruta. disso eu tenho certeza. "A imaginação foi a companheira de toda a minha existência".Aí eu vou discordar de você . Mas. Mas não é dessa imaginação que o Bentinho está falando.Não traiu. que era de família meio classe alta. sabe que as pessoas mudam. Ele é um cara maduro. no pátio da casa paroquial. como o próprio Machado..Então eu começo . a gente vê. na imaginação do Bentinho. acho que o Machado pensava a mesma coisa quando escreveu o livro. crítico da sociedade.disse Nanda. A mulher do Jaime não o abandonou? E o Jaime não chiou. apressou-se em acrescentar: .Ele mesmo afirma que. Essas coisas acontecem. . Em algum momento ela mudou. Escritor tem de ter imaginação.. é o que ele diz. para minha surpresa. O Bentinho vê coisas que não existem. de jeito nenhum. Respirou fundo e pronunciou-se: .Aqui. a gentil Nanda... imaginação pode ser uma coisa muito boa. a suave Nanda. gente. E de imediato começou a listar seus argumentos: o Bentinho não passava de um paranóico. ter tido um caso com o Escobar. Respondi que sim. ele me pediu que desse minha opinião. sim. ela engravidou. tudo bem. inventor tem de ter muita imaginação. um cara que se julga perseguido. Folheou suas anotações.Não que eu ache isso um horror.No intervalo lá estávamos nós. discordando? E maior surpresa ainda foi a opinião dela: . Deixem-me ver as palavras exatas. mas eu quis ficar para o final. pela maneira como ele vê as coisas. enquanto a Capitu. não se desesperou. vinha de um meio pobre.. . Apaixonou-se pelo Escobar. O problema é que a gente só pode se guiar pelo que ele diz. compositor tem de ter imaginação. sentados no banco que o pessoal já considerava nosso. A Capitu mudou. A primeira coisa que Vitório perguntou foi se eu tinha lido o livro. é um cara meio irônico. de tanto ciúme. fizeram amor. continuou vivendo a vida dele. Se Machado fosse o narrador. Embora ele fale em nome do Bentinho. ou achou que estava apaixonada pelo Escobar. Aliás. Diante da surpresa de Vitório.disse ele..Eu penso que a Capitu pode. O Machado. . que enchiam várias páginas do caderno: . Bom. tá falado. um sujeito que vive à mercê de suas fantasias. A imaginação dele é doentia. Matou dois coelhos com uma paulada.significativo. não minhas. um par de valsa. Júlia? Mas para mim a maior prova de que Ezequiel é filho de Escobar é a semelhança entre os dois. apresentando outras evidências: .E aquelas duas vezes em que Escobar visita Capitu em casa. hein? Palavras dele. na ausência de Bentinho? Você não acha isto suspeito. Nanda. Nanda! O Vitório tem razão: é completamente perturbado. meio gaiata. moço ou maduro. que pode estar vendo coisas. coisas que nem sabe se aconteceram ou não. Lá pelas tantas. minha amiga? Muita coincidência. Ou seja. Muita coincidência. o cara sabe que está confuso. o cara tem ciúmes até dos pensamentos da mulher. Já Júlia mal conseguia disfarçar a irritação. Vitório estava espantado: parecia estar descobrindo uma nova Nanda. Ela sabia que o cara era ciumento. Nanda. ele está inventando coisas. Consultou o caderno: . note. estava na cara que não concordava com a Nanda. E. O Machado mesmo diz que o cara está dominado por "um sentimento cruel e desconhecido. qualquer homem. Teve seu caso com o Escobar e engravidou. triunfante. me enchia de terror ou desconfiança". mas nem tudo é claro na vida ou nos livros". Tanto que a Capitu acaba contando ao Bentinho que Escobar veio visitá-la e diz que só não falou antes para que o marido não ficasse desconfiado. Essa não. não ficou grávida dele. Nada do que você falou aconteceu.As visitas não provam nada. ponto. Palavras do autor. A garota voltou à carga. mas não se dá por vencido: "Não é claro isto. Amizade à parte. E. Ele vai mais adiante e diz. de fato. o tal de Bentinho! Ele tem ciúmes "de tudo e de todos". Eu só quero lembrar aquela frase que o povo diz há muito tempo e que o livro aliás cita: "O filho é a cara do pai".Essa não. A Capitu não teve caso nenhum com o Escobar. Agora. palavras dele. meio cínica.Diz o seguinte: "Tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher. o puro ciúme".. não minhas. E também confessa: "Um vizinho. Por quê? Meu palpite: o Bentinho não conseguia engravidar a mulher. é claro que um cara que não confia nem na própria memória não pode confiar na mulher. Durante muito tempo ela e Bentinho não haviam tido filhos. Capitu não quis se privar da maternidade e foi em frente. E ciúme do Bentinho. não fora ou acima dela". Estava enganada.. Disse e sorriu. partiu para o ataque: . Agora Vitório entrava na discussão: . né. decerto achando que tinha liquidado os argumentos de Nanda. Também reconhece a sua "fraca memória". . pra mim ela tem outra por dentro. que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas.Qual argumento? . nós estávamos todos sentados. Claro. Não era só o olhar de parceiros numa disputa. tenho certeza. quero lhe lembrar que você ainda não disse nada sobre aquele argumento importante que eu usei. coisa muito suspeita. Prova disso é aquela parte em que ela aconselha o Bentinho sobre como lidar com o José Dias: "Mostre que há de vir ser dono da casa. numa boa. mas logo retomou a argumentação: . vem visitar a mulher. No velório do Escobar a Capitu. . . sem mais nem menos. Nada."Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas". hein?. Calou-se. A Capitu mente.Pode ser .. Aí o Bento fica se perguntando: por que. é de família humilde.. Está aqui.. você não choraria? Essa não. Mas Escobar. Tem muita gente que é parecida e não é nem parente. Consultou as anotações: . Interrompeu-se.".Semelhança não quer dizer nada. Pra fraquinha. era a desculpa que ela tinha dado. Ela aí está se revelando mandona. Só que.interveio Júlia. .. desamparada. Vitório olhoua. mesmo. Você choraria. . num banco do pátio.E na segunda visita? .Mas Escobar era amigo deles! . Mas eu anotei. E pobre. dá uma desculpa e se manda. a Capitu não dá.A semelhança entre o menino Ezequiel e Escobar. Mas aí Júlia se pôs de pé. querida. a Capitu não foi comigo ao teatro? Doença. já que você entrou na discussão. tão apaixonadamente fixa. . exaltada. Lembra do comentário do pai de Sancha? Lembra? Ah. vou ler a frase: "Olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa. na ausência do marido. numa boa.Tem mais uma prova. O próprio Machado admite isso quando fala da semelhança de Capitu com a mãe de Sancha. Aliás. Apareceu ali. que decerto já fez o que tinha de fazer.replicou Nanda. . não comenta nada e até insiste para que o amigo fique. Nanda. não lembra.Mas. Até aquele momento.. com uma expressão triunfante no rosto. Essa não. é o que ele diz. era um olhar cúmplice. mostre que quer e que pode". vê que a Capitu não parece doente coisa nenhuma. quando Bento entra. -Vou lembrar a você: Bento volta da ópera e encontra Escobar na sua própria casa.Nanda não se deixava convencer.Se morresse um amigo seu. ela olhou Vitório. ofegante. ele não é trouxa. E o olhar que trocaram me encheu de amargura. Bento. brava: . mas tem suas ambições. não sei se vocês me entendem. era mesmo dois contra dois. Naquele momento tive a clara. Mas não éramos: não havia ali voto decisivo. Claramente estava se referindo não a mim.E você? O que é que diz? Eu só podia responder com a primeira palavra que me veio à mente: .Se pelo menos fôssemos cinco. Pude notar que Vitório ficou perturbado. precário namoro. dona de seu nariz e de suas opiniões. O que me surpreendia. o próprio Bentinho teria resolvido seu problema com a Sancha. Faltava minha opinião. e talvez por causa do fato de ela ter decidido se assumir como pessoa. que no entanto parecia irredutível. Vitório tentou uma manobra conciliatória: .Ou quem sabe alguém muda de idéia. namorando). furiosa. com a maneira pela qual Júlia me tratava.E acrescentei. caso contrário. de modo brusco. Uma coisa era certa: eu não mudaria o voto. ainda que a sineta não tivesse soado. Começou a juntar suas coisas.. Eu. Não naquele instante. Portanto. ficava evidente. naquele momento. . ..E pode-se saber por que você pensa assim? . Vitório insistiu: . Mas.Traiu.Acho que não preciso dar explicações. como eu suspeitava. Vitório voltou-se para mim: . já levantaram todos os argumentos.. Nunca me chamara a atenção pela beleza. Senti-me como Bentinho: traído. pra eles. como se estivesse querendo ir para a aula. acostumado a disputas e debates. Sempre pensara nela como uma garota quietinha. que. E agora a via como uma jovem de vontade férrea. ora. Estávamos . mas à Nanda. Mas eu não estava a fim de flertar.Porque foi a conclusão a que eu cheguei. Vocês já falaram bastante.. Sabíamos que adiar a discussão não resolveria nada. tratou de disfarçar: . pelo menos. detalhe: bonita.Quem sabe a gente discute de novo amanhã? Ninguém disse nada. E. E um cara que se sente rejeitado não tem condições de começar um namoro novo imediatamente. estava definitivamente chegando a seu fim. indelicado. tímida até. Era a forma de demonstrar à Júlia o meu protesto (e também ao Vitório. dois de outro. já nem existia. Sentia-me deprimido com o que tinha acontecido. até: . porque claramente estávamos diante de um impasse: dois votos de um lado. Júlia nem sequer me olhava: bufava. .suspirou Vitório. caso estivessem. a dolorosa sensação de que nosso namoro. Saltei do banco. Corremos para o salão paroquial. berrar. num tom conciliador -. era o que eu ia dizer.. Vamos dizer que o primeiro tempo do jogo terminou empatado: tudo bem. acho que neste momento não chegaremos a uma conclusão.divididos. quem sabe com a ajuda de professores.disse Vitório. Não agüentei mais: as lágrimas corriam pelo meu rosto. de pessoas que a gente conhece. dois de outro. isto acontece. Felizmente confundiam-se com as gotas da chuva. E.Bem . Estamos todos de cabeça quente. Dizer não. ele e a Júlia. Berrar a plenos pulmões. dois de um lado. . gente: entramos nisso para conseguir grana para o colégio. Trocaram um olhar de novo. Ainda temos algum tempo até o julgamento. Mas não vamos esquecer uma coisa.Guerra é guerra . 8 .. e nesse momento a fúria me invadiu. não tínhamos como enfrentar os concorrentes de Santo Inácio ou de qualquer outro lugar. divididos. e naquele momento desabou a chuvarada. o colégio. "Tô fora". O que eu proponho é o seguinte: cada um de nós pensa de novo sobre o Dom Casmurro. Este é o nosso objetivo maior e temos de lutar por ele. Vamos tentar arranjar novos argumentos. a cidade. o mundo. de nossos pais. para que todo mundo soubesse que eu não aceitava aquela sacanagem. para que todo mundo ouvisse. E os ciúmes cresciam cada vez mais. mano. Eu era. com o arroz. Desde garota o plano dela era dominar o Bentinho.. mesmo porque os bifes que a mamãe faz. Decidi que manteria meu voto: Capitu tinha traído. Lembraria porque o episódio que eu acabara de vivenciar tinha me machucado demais. é sempre assim. Era eu quem tomava conta de você quando o papai e a mamãe saíam. a cópia xerox do Nestor: semelhança maior seria impossível. se a vida não tem mais graça? Levantava da mesa e ia para o quarto chorar em silêncio.Chegando em casa encontrei um dos meus irmãos. Queco? Tentei falar. Negativo. mais encontrava. mas não consegui: a emoção me embargava a voz. Animado. Sobretudo aquele olhar que o Vitório e a Júlia haviam trocado. Eu sabia quando você estava bem e quando não estava. a gente acha aquilo que busca. e não é gripe coisa nenhuma. Vamos lá. o feijão. sim. e pensava: para que comida. Ele se deu conta de que eu estava vivendo um momento difícil e deduziu que aquilo tinha a ver com a Júlia: sabia de nossas complicadas relações. disse que não era nada. E tinha conseguido.. Olhar de ressaca: grande expressão do Machado. o Nestor. eu concluía. Capitu era má. Tentou consolar-me como pôde. Numa das vezes perdi completamente a vontade de comer. estudante de Direito. pedindo que eu esquecesse aquilo. só uma gripe. A gente pensa que vai morrer. Depois me recuperei. Tentei sorrir. era fingida. são excelentes.E é sempre aquela tragédia. como o Bentinho.. que tinha vindo do Rio para passar o fim de semana em casa. O que é a ressaca? E o mar revolto. com a maior efusão possível.Conheço você desde o berço. dizendo que aquilo acontecia. cara. Eu lembraria. que não desse bola para a briga: .Você está com cara de velório. ele foi em frente. Já tinha mostrado quem era muito antes do casamento. O mar que não conhece o seu .Amanhã ou depois você nem vai lembrar desse momento ruim. não precisava nem perguntar. Eu me sentia enganado. Ele logo percebeu que alguma coisa tinha acontecido: . olhava a travessa com os bifes. O que aconteceu? Tentei desconversar. mas Nestor não se deixou enganar: . até mesmo pelo olhar. clara e óbvia traição. Tratei de reler o romance em busca de mais provas.. que ele mesmo já tinha brigado com várias namoradas: . Sentava à mesa. você sabe. claro. Abracei-o. Aquilo era traição. querendo invadir a terra. E agora estou vendo que você não está bem. Quanto mais procurava. como dizia meu pai. diga: o que o incomoda. enraivecido. Ela veria com quem estava lidando. Ele respondeu de maneira vaga. *** Eu passava por ela. mas depois de pensar muito decidi aceitar aquilo como fato consumado: seria melhor para todos. E um jogo que o Machado faz com os leitores. minha vida. Ficou um instante em silêncio. Foi um choque. que não sabe o seu lugar. Recebeu-me com o carinho de sempre. Agarrou-me o braço: . Capitu "traiu ou não traiu". Ele ainda estava em casa. sem me olhar. convalescendo dos problemas que tivera e dos quais se recuperava com alguma lentidão.Estou com saudades de você.Você sabe. mas evidentemente estava preocupado comigo e foi logo dizendo por quê: . E além disso desconfio que está na hora de a gente bater um papo. o nosso rompimento já era público. Você não quer me fazer uma visita? Fui. e que queria viver em sua companhia. hesitava em me dizer algo. ficava de nariz empinado. no fundo não tem muita importância. se vocês ganharem o prêmio e puderem arrumar a escola com o dinheiro. Até o Jaime ficou sabendo que eu não estava numa boa e ligou: . Essa discussão. A gente estava casado há cinco anos. Ah. Àquela altura. o que tem importância mesmo. Queco.Essa divergência no grupo de vocês já é uma coisa chata. mas comigo isso não aconteceria. mas penoso. Machado mostra como esse homem acabou sendo dominado pela suspeita. Perguntei como ficara sabendo do assunto. e amigos continuamos. Engoliu em seco e por fim foi em frente: . Agora. e que gostava dele. e a vida de minha . no salão paroquial. dizendo que o pessoal da escola tinha comentado a respeito. é o ciúme do Bentinho. será mais válido ainda. ela não perdia por esperar. Se eu tivesse me deixado dominar pelo ressentimento. Um dia ela me disse que tinha encontrado outro homem. Júlia não me dominaria. Nós nos separamos como ' amigos. Queco: você não pode romper com a sua namorada por causa de opiniões diferentes.Escute. Como tema de concurso pode até ser válido. um jogo ao qual o Brasil inteiro acabou aderindo. Se era uma briga para saber quem seria o primeiro a dar o braço a torcer. E a sua briga com a Júlia não ajuda em nada. algo que para ele era muito importante. e fingia não vê-la. Queco. que eu me separei de minha mulher. de pijama. ele estava achando que eu rompera com a Júlia depois da discussão sobre o livro. Ela fazia a mesma coisa.limite. Aparentemente. a vida dele passou a girar em torno disso. no livro. Na verdade. estava me traindo. tão veemente fora sua argumentação. Ela me abandonava. com maturidade. tinha uma coisa importante para me dizer. Muito embaraçada. Vendo que eu estava irredutível. E é isto que eu lhe peço. Naquele momento a enfermeira chegava para lhe fazer um curativo e aplicar uma injeção.Mas isto não é honesto. Como eu. Peço-lhe como seu professor. na nossa reunião inicial. me transformava na ovelha negra do grupo.Acredite. teriam se tornado um inferno. E como você. Jaime suspirou: . O meu voto era importante? Pois então eles não teriam o meu voto. Queco. ele estava enganado. só por birra.ex-mulher. não . Se isso arrebentasse nosso grupo. pediu que fosse à sua casa. ficara irritada ao ver Vitório e Júlia tão unidos na "absolvição" de Capitu e. eu estou mudando de idéia por convicção. . Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Queco. A mim pouco importava. resolvera adotar a posição oposta. Ela estava esperando na porta: . Porque. e apesar de suas boas intenções. eu ficara com a certeza de que a Nanda estava a meu lado. acho. Mas o dia não terminaria sem uma outra contrariedade. Eu achava era que a Júlia estava me sacaneando. Na verdade. Reli o livro e minha opinião agora é de que o Bento foi vítima de ciúmes. Além disso. Mas a gente tem de agir com equilíbrio. Queco. e levaria a vingança até o fim. contou que havia pensado bastante e que chegara a uma conclusão: não examinara a questão do "traiu ou não traiu" com a devida serenidade. não transfira para a sua vida particular os problemas que Bentinho teve com Capitu. Naquela mesma noite Nanda ligou. amigo mais velho. mas amigo. gostava muito dele. Minha bronca com a Júlia não se resumia a um debate sobre o Dom Casmurro. queria agradá-lo. ou sobre o que a Capitu tinha feito na realidade. ela disse. Por favor. Estava muito magoado para fazê-lo. Fui até lá.Não quero que meus pais e irmãos escutem a nossa conversa. azar. como seu amigo. mirando-me nos olhos: . menos aquilo. e dessa maneira competiria com a Júlia. Por que fazia isto? Uma explicação me ocorreu: ela estava querendo dar força ao Vitório. se isso se tornasse um obstáculo para o nosso trabalho. Promete? Não prometi. Como que adivinhando o meu pensamento. Queria me vingar.Veja lá o que você vai fazer . Gostava do Jaime. Agora ela simplesmente virava a casaca.disse. por isso fui embora. faria qualquer coisa que me pedisse. mas já pude reparar que vocês nem se cumprimentam. Nanda me olhava.disse. somos civilizados. Colocou as mãos nos meus ombros e falou. aquilo me tirou do sério. embora sejamos amigas. não desses que dizem ora uma coisa. Nem mesmo a questão da escola está pesando aí. Eu sei que vocês não estão numa boa. está? .Quem sabe você muda de idéia também. Queco. Ela não me falou nada. absolutamente só. o debate. comecei a dizer que eu era um cara coerente. vou fazer toda a força para isso. O importante é o que o grupo vai decidir.Não faça isto. meu voto não valia mais nada e tudo o que eu teria a dizer ao grupo. Afinal. E. .Você não está zangado comigo. . na próxima reunião. por fim. procuro ser coerente. Uma pausa. . Acho importante a gente ganhar esse concurso.. os olhos úmidos. assustada mesmo. e eu estava só. Voz alterada. o cara já estava vendo . e continuou: . Zangado? Eu? Por quê? Você mudou de idéia. E aquilo sim. mas antes de tudo procuro ser justa. Nanda. Não se deixe dominar pelo ciúme.perguntou ela.Acho que isso tem a ver com sua relação com a Júlia. visivelmente impressionada.estou querendo puxar o saco de ninguém. Minha posição é diferente..Eu? Zangado? De maneira alguma. . Veja o que aconteceu com o Bentinho. era se queria ou não continuar.insinuou ela. A votação agora estava desempatada. precisamos aprender a aceitar as diferenças de opinião. tudo bem: eu respeito. se não quisesse. não faria a menor diferença. tentando gracejar. no livro. mas não é por isso que vamos brigar. ora outra. essa coisa mexeu com você . procuro ser equilibrada. Era aquilo. É isso.Nossa. Tentei bancar o superior: . num tom que era quase de súplica: . No final. O ponto de vista predominante aqui no grupo . a mudança de posição de Nanda.É uma coisa que vocês nem podem imaginar.E não é a única traidora nesta história toda. nem me olhavam. Mas isto eu não faria. o Bentinho e eu. boquiabertos. caíra em cima de mim quase como a pedra sobre o telhado da escola.Está certo. previamente derrotado: neste segundo round minhas chances eram zero. Nem eu estava imaginando. Júlia e a vira-casaca Nanda. .A menos . esta é a posição que defenderemos no julgamento lá em Santo Inácio. eu iria mesmo a nocaute.perguntou Júlia. Nós. o defensor do Bentinho. Do outro lado. Bentinho terminava a sua história só. .. Não daria a eles esse prazer. . Vitório tentava levar as coisas numa boa: . esquecida de que já não falava comigo. .Qual fato novo? . a última novidade. Vitório. De um lado. E também não deixaria que me enfurecessem. seco. eu não sabia. O que fazer. claro. Um nocaute vergonhoso. Que começou tensa.é de que Capitu não traiu. falou.. outro do presente. reconhecer a derrota. Não havia dúvida: naquela história existiam dois vilões. 9 .que surja um fato novo. eu. Falei e de imediato calei-me. do começo ao fim. -Virei as costas e fui embora. Eu. mas nada que não se possa resolver numa discussão de gente educada. muito sérias. Portanto. Uma solução seria jogar a toalha. Pelo jeito. pelo visto. os defensores de Capitu. Fato novo? De onde é que eu tinha tirado aquilo? Não havia nenhum fato novo que me favorecesse. superior: .interrompi . um do passado. . Eu sorri.Fato novo Tudo indicava que a nossa próxima reunião seria uma briga só. também ficaria só.traição em qualquer gesto da pobre Capitu. no mês que vem. Mas queria ver onde nos levaria a conversa.. Mas a verdade é que a frase teve impacto: os três me olhavam.continuava Vitório . Nanda e Júlia. que me tirassem do sério. então? Para dizer a verdade.Capitu traiu . .eu disse.. pessoal. discordâncias podem existir entre nós. mas isso eu não podia dizer. Falou. Pelo contrário. assombrado com minhas próprias palavras. Só e derrotado. e voltou-se para mim: . Não é um julgamento? Pois então: julgamentos exigem provas. o intervalo está terminando. afinal . Mas Júlia não se deixava convencer: queria saber que tipo de prova eu apresentaria.É um documento. Nanda.Porque ainda me falta algo.É.O que você está dizendo.Júlia estava indignada. Dentro de alguns dias terei essa prova. .bradou Júlia -. ganhar o concurso. em vez de estar me . Ele insistiu: . .. Pelo que entendo você descobriu alguma coisa que acaba com a nossa argumentação.Certo . e faremos isso.Mas. seco. se anular nossos argumentos. Vitório veio em meu socorro: .É exatamente isso.Agora sentia-me completamente encurralado. Não soava nunca e eu já estava pensando em ir embora de qualquer maneira quando. que não perdia de vista o objetivo maior. Queco. Não posso negar que me agradava vê-la assim.. tratou de manter a calma.Por que não? .Gente.Ainda não. eu agora me sentia Vitorioso.Não . Só peço que você. colegas. e por pouco minha voz não tremeu naquela hora. Minha esperança era de que a sineta soasse. É um documento. zangada mas ao mesmo tempo ansiosa. não nos deixe esperando.eu disse. E uma coisa que vai revolucionar o estudo da literatura brasileira. . você nos traz essa prova. certo? . E resolvi tripudiar: . Eu descobri algo sobre Dom Casmurro que pouca gente sabe. teremos de revisar nossa posição. inesperadamente. provavelmente não agüentaria aquela pressão por mais cinco minutos. Porque a verdade é que. se mudar tudo. .respondi. pode-se saber que revelação tão espantosa é essa? . E aí minha posição será imbatível. também. Mas Vitório. É isso? Vacilei: -Bem. por favor. Nem o Jaime tinha conhecimento disso. Se for realmente importante. por muito pouco. Aquela altura eu já estava meio inseguro e por mim teria encerrado a desagradável discussão por ali mesmo.É isso? Acabaram-se nossos argumentos? Júlia me olhava. Ago que vai servir de prova. a doce Nanda. Pediu às garotas que se contivessem. como você diz. coisa assim? . Vamos fazer o seguinte: Queco. . Podem crer. é muito sério. Estirei-me na cama.O nosso Queco hoje não está com boa cara. . querendo falar comigo. Só que não tinha a menor idéia a respeito. isso não tem muita importância. a cabeça girando: meu Deus. mas não deixou de advertir que não lhe agradava mentir. onde tranquei a porta. preocupado mesmo. Mas aparentemente ninguém percebia minha perturbação. é um jogo que o Machado faz com os leitores". No fundo. uma malvadeza só explicável pelo ciúme): .Vocês podem confiar em mim . Talvez pudesse até ter me dado alguma dica capaz de me tirar do atoleiro. Não disse nada. aquele olhar que me enfurecia. . Um jogo que . em alguma solução. eu me sentia apreensivo: acabara de me meter numa enrascada e não sabia como sair dela. Eu agora lembrava a conversa que tivera com ele.Pelo jeito. . . Vitório e Júlia de novo trocaram um olhar. e fui para o meu quarto. Ela sacudiu a cabeça.disse Vitório. Tão preocupado. que vinha entrando. quem vai levar você pra passear sou eu. Voltei para casa muito aborrecido. Sapeca -comentou olhando para a cachorrinha. sobretudo em nome do filho. que mamãe notou. De modo que avisei: . Procurei tranqüilizá-los: . mesmo em nome do filho. Eu não disse nada. Precisava só ganhar tempo para pensar em alguma coisa.Mais do que eu pude confiar em vocês.garanti. Naquele momento o telefone tocou.sentindo vingado. Era o Jaime. E acrescentei (mas isto foi mesmo malvadeza de minha parte. Agora estava arrependido de não ter falado com Jaime ao telefone: certamente ele ligara porque estava querendo me ajudar. essa prova da qual estou falando. Não vá nos deixar na mão. e a tal prova que inventara seria o instrumento de minha vingança.Certo . e em particular quando mencionou: "Essa coisa de 'traiu ou não traiu'. Jaime. que confusão eu criara. transmitiu o recado e desligou. isso talvez demore um pouco. mal falei com meu irmão. daí em diante dedicaria cada minuto para descobrir o que fazer. Um jogo que Machado faz com os leitores. eu pensava.Pessoal. Fiz um sinal à mamãe de "não estou em casa". e procurei manter o sangue-frio.Mas lembre que temos prazo. mas aquilo reforçou minha convicção: precisava me vingar. e que para mim era prova da cumplicidade entre eles. 10 . acabaria de vez com todas as dúvidas. Machado de Assis.. Não há desculpa para a desonestidade. Eu. E me daria razão perante o grupo. Bota atrevimento nisso. mas escreveria. o autor do romance. Afinal de contas eu estava cogitando uma falcatrua histórica. como dá para ver. tinha de pôr mãos à obra. De repente detive-me: já sabia o que fazer. Só que. uma vez decidido. se existisse. vai se afundando cada vez mais no buraco que ele próprio cava. depois briga com outro. O Queco. Mas como. vocês dirão.. Você começa brigando com um. "O que é que deu nesse cara?". Boa pergunta. poderia Machado entrar na jogada? Nervoso. esse atrevimento refletia a medida do meu desespero. para dizer o mínimo. e por aí você vai. Machado não tinha escrito tal carta. de quem Ezequiel era filho. isto significava "apenas" escrever uma carta imitando o maior escritor brasileiro de todos os tempos. infelizmente. No meu caso. tentando encontrar uma resposta para essa questão. Desespero dá para aceitar. eu acho que é a resposta mais óbvia. Desonestidade. Um jogo! Machado! Pulei da cama como que impulsionado por uma mola. Porque desesperado eu estava. uma ofensa. depois inventa outra história para justificar a primeira. "O que é que deu nesse cara?" Desespero.. Uma carta.Machado “escreve” uma carta . e com outro. desconhecido). Capitu traíra Bentinho. que poderia representar a solução para o meu problema. estarrecidos com essa idéia que não era só meio louca: era um ultraje. não. De repente sentia aquilo como uma idéia inspirada. Um documento assim. E. Eu estava decidido. Eu escreveria uma carta em nome do Machado dizendo que. e inventa uma história. vocês devem estar indagando. a um leitor (que poderia até ser anônimo. Não tinha escrito. eu caminhava de um lado para outro. Mas. E quando o cara está desesperado ele vai fazendo uma bobagem atrás da outra. alguém escreveria por ele: o Francesco Formoso de Azevedo. Uma carta do Machado a alguém. exatamente. na opinião do autor.Machado faz com os leitores. A esta altura vocês devem estar atônitos. envolvendo ninguém menos que um grande escritor brasileiro. Capitu traíra Bentinho com Escobar. dizendo que para ele. para a safadeza.. O que é um absurdo. Melhor dizendo. isto não foi difícil. de papel muito velho. E onde arranjar papel da época? Por incrível que pareça. Onde conseguir esse material? Resolver esse problema já foi um pouco mais difícil. bem manchada e amarelada. todo mundo dormindo. conservado com orgulho por meu pai. várias páginas tinham ficado em branco . ele se dedicara a escrever um diário de suas primeiras impressões do Rio de Janeiro. Chegando ao Brasil. graças ao Francesco. eu tinha de arranjar papel da época do Machado. fui até lá e cuidadosamente cortei uma folha. Eu sabia disso porque o caderno. Um diário que ele não terminou. No caderno que comprara para isso (exatamente em 1899.Para começar. Nessa folha eu teria de escrever como o Machado: à mão e usando o material de escrita da época. "Em branco" era modo de dizer. já que exibiam uma coloração amarelada. Tive de ir à loja de um antiquário. Comprei uma delas. volta e meia era mostrado a vizinhos e visitantes. o meu tataravô. Não podia simplesmente pegar uma folha tamanho ofício e ali escrever as minhas mal-traçadas linhas. de modo que naquela mesma noite. Investimento não pequeno: metade de minhas economias. Eu sabia onde estava o tal caderno. e também um frasco de tinta de escrever. do dinheiro que eu vinha . ano da publicação de Dom Casmurro). que vendia canetas muito antigas. devo dizer. como aliás frequentemente acontece. porque o Jaime tinha nos contado. ir ao arquivo e examinar a caligrafia nas cartas dele ali guardadas. *** A etapa seguinte mostrava-se bem complicada. livros que reproduziam estes originais. ou seja. que a Academia conservava muita coisa de Machado. por exemplo. onde funciona a parte administrativa. Minha letra estava igual à dele. aproveitei um momento em que ninguém estava olhando e rapidamente tirei fotos das cartas.guardando havia meses e que seria destinado a uma bicicleta ultraequipada. comecei a treinar. eu tenho uma habilidade especial para esse tipo de coisas. conduzidos por uma professora de literatura. Agora. por ele fundada. na Avenida Presidente Wilson. e originais de suas obras. Eu levara comigo uma câmera. Um lugar muito bonito.). olhando-me fixamente. centro do Rio de Janeiro. Eu teria de imitar a letra de Machado. a sua mesa de trabalho. sim. Sozinho. na livraria. Mas o sacrifício valeria a pena. Subi os degraus e deparei-me com uma estátua em bronze de Machado de Assis. Agora: onde encontraria amostras da caligrafia do "Bruxo do Cosme Velho"? O apelido me deu uma dica: eu deveria ir ao Rio. meu jovem amigo?". escondida. Misturei-me a eles. A Academia fica no Rio de Janeiro. Eu sabia. mas de Itaguaí até a antiga capital federal a distância é pequena. Uma pergunta a que eu não saberia responder. Agora.. faltei à aula e fui até lá. havia uma turma de alunos visitando a Academia Brasileira de Letras. Também descobri. adeus bicicleta. a Academia Brasileira de Letras. Ali estavam também cartas escritas pelo próprio escritor. sentado. Segui direto para o endereço que tinham me dado. vinha a parte mais difícil. Alegando à Sandra que eu precisava consultar um médico (e precisava mesmo: um médico da cabeça. mesmo porque. mas a sorte me ajudou: naquela tarde. . Mas meu problema naquele momento não era responder a imaginárias perguntas do Machado e sim entrar na Academia. Lá pelas tantas eu poderia facilmente ter preenchido um cheque do escritor sem despertar a menor suspeita de seu banco. ao menos era o que eu esperava. aquela casa em estilo antigo ao lado do prédio mais moderno. eu não teria a menor chance de conseguir o que queria.. Ali estava ele. como se perguntasse: "Tens certeza do que vais fazer. um dos quais comprei. A verdade é que não era difícil imitar a letra de Machado. De volta a Itaguaí. fomos até o arquivo ver objetos de Machado de Assis. Mais precisamente à Casa de Machado. A carta. . Reli o que tinha escrito. E precisava achar que também para os outros a carta seria convincente.um bilhete curto. . tão sumária. Eu precisava achar que sim. que. será que aquilo passaria por uma carta do Machado de Assis? Do grande Machado de Assis. O rascunho pronto. mas isto até dava autenticidade ao documento. ao livro Dom Casmurro. do mestre da literatura brasileira? Achei que sim. Não achei muita coisa. por causa de uma briga com amigos e com minha namorada (seria mesmo?) eu estava falsificando a escrita do grande Machado de Assis. graças. Mas pior era a consciência culpada. tinha medo de estragar a pena da caríssima caneta. Deus. Depois. respirei fundo e fui em frente. exatamente. De repente eu me dava conta do que estava exatamente fazendo. aqui a tem: Capitu traiu". Fiz vários rascunhos da carta. Mais algumas considerações e logo aquela antiga fórmula com que as cartas terminavam: "Sem mais para o momento. Começava com o "Prezado amigo" já mencionado. Na biblioteca. mas o pouco que encontrei ajudou. eu não conseguia me controlar. não é mesmo? Não é difícil a pessoa iludir a si própria. aquilo foi muito difícil. eu agora precisava transcrevê-lo adequadamente para a velha folha de papel do caderno do meu antepassado. copiei as seis linhas do rascunho. procurei livros com a correspondência de escritores famosos do passado. fico. atenciosamente". Mas quando a gente precisa se convencer de alguma coisa a gente se convence. teria de usar uma linguagem do fim do século XIX .com a qual eu já estava um pouco familiarizado. Em primeiro lugar porque eu. o Machado resumisse sua opinião acerca de Dom Casmurro daquela maneira tão simples. Mas não fiquei só nisso. cordial mas não efusivo. que só usava caneta esferográfica. Uma ou outra letra um pouco tremida. respondendo meio apressadamente para um leitor qualquer. não estava familiarizado com o material de escrita. progride sozinho. Finalmente. até chegar à forma que queria . Gente. Num esforço monumental. Começaria simplesmente com um "Prezado amigo". Aquilo foi difícil. quando começa. Olhei o resultado: estava satisfatório.Para começar eu não dirigiria esta missiva a nenhuma pessoa em particular. E um processo que. agradecia o interesse desse "prezado amigo" pelo Dom Casmurro e respondia à pergunta supostamente formulada pelo imaginário missivista: "Se o amigo quer saber minha opinião de autor acerca do que aconteceu em Dom Casmurro. Era tamanho meu nervosismo que minha mão tremia. preocupado em enganar o grupo (e enganar a mim próprio). mas no momento. Agora. a carta com a caprichada caligrafia machadiana. o seu Sizenando. eu ajudara a cuidar dele. e o Jaime tinha até me elogiado em público pela dedicação a uma pessoa doente. A coisa estava feita. E me achava perfeitamente capaz de fazê-lo: agora que começara a mentir.Machado já não era jovem à época em que o teria escrito. o que ele. não pararia mais. Eu acrescentaria que. como se o velho tivesse adivinhado que um dia estaríamos metidos no julgamento de Capitu. Respirei fundo de novo. atrapalhava . 11 . Agora. Olhei o papel amarelado na minha frente. preciosidade que deveria estar num museu ou na Academia Brasileira de Letras. para o Bem ou para o Mal .palavras proféticas. o ancião resolvera me dar um presente: aquela carta. então. cheia de riscos. não poderia fazer. fazendo compras para a casa. Pois bem. cruzou o rio Rubicão. Dizem que um momento decisivo na história da humanidade ocorreu na Roma antiga quando Júlio César. O pessoal da escola sabia disso. um velhinho muito culto. era enfrentar. eu contaria que. O fato de o seu Sizenando ter morrido ajudava e atrapalhava. ajudando-o a se locomover. Pronto. na verdade. eu não me dava conta disso. agora que dominava a arte da trapaça. de acordo com a legislação romana. Pois bem. de início. e concluí: a sorte estava mesmo lançada. uma história digna de Machado de Assis. era como César: vencer ou morrer. Primeiro pensei em dizer que eu a tinha recebido de presente do meu vizinho. A história. Ajudava porque ele não poderia contestar a história. Assinei: Machado de Assis. nem quisera receber um documento tão valioso. naquele momento eu tinha cruzado o Rubicão. em retribuição. "Cruzar o Rubicão" ficou como sinônimo de uma decisão ousada. grande leitor. uma decisão sem volta. A história de como a carta chegara às minhas mãos.A farsa segue em frente Meu problema agora era inventar uma história plausível sobre a carta. dizendo que um dia aquilo seria muito importante para mim . uma história muito bem bolada. a pedido de mamãe. encontrada em um velho livro na biblioteca que pertencera a seu pai. Ele havia falecido poucos dias antes e nas últimas semanas de sua vida. mas seu Sizenando insistira.mais para o Mal. à frente de suas tropas. intrigado. que pudesse dar seu testemunho. Cúmplice involuntário.Mas é uma carta do Machado de Assis! Que coisa fantástica! Uma carta do Machado de Assis! E eu. certo? Ele me olhou sem entender. seu Godofredo: quando a gente compra um livro aqui. Livros antiquíssimos. um deles datando do começo do século XX. alguns datando do século XIX. Ele pegou-a. e atulhada de livros velhos. Depois de matutar muito. felicitou-me: . mas então dei meia-volta: .porque não poderia confirmar esta mesma história. roubavam livros e saíam correndo. que nunca descobri essa carta! Estava impressionado . paguei (não foi pouco. Uma livraria pequena. E mostrei-lhe a carta. e agora era tarde para reclamar. mas disse que sim. leu. de fato. naquelas prateleiras do fundo. E eu precisava de alguém que corroborasse a minha narrativa. ficava atrás da caixa registradora. Meu pai dizia que nem o próprio Godofredo sabia quantos livros havia ali. o que provavelmente era verdade. Precisava de alguém que estivesse vivo. O desligado Godofredo seria o meu cúmplice. Perguntei onde estavam as obras de Machado de Assis. . Fui até o caixa. cheirando a mofo. Havia. alguns antigos livros do Machado ali. Com a "carta do Machado" escondida no blusão. Fingi que ia sair. em pilhas no chão. não se dera conta disso. E o seu Godofredo não dava muita bola para a loja.Diga-me uma coisa. Resultado: os livros acumulavam-se em prateleiras. Dentro desse coloquei a carta. mas também porque eu já tinha estado no sebo algumas vezes. Cada vez que alguém queria se desfazer de uma biblioteca. não só porque em Itaguaí todo mundo mais ou menos se conhece. incluindo vários exemplares do Dom Casmurro. rapaz. Seu Godofredo me viu entrar.Por ali. tudo que estivesse no livro passaria a ser do comprador. e aproveitando suas frequentes distrações. e nem sequer tentava fiscalizar os rapazes que. . era a Godofredo que recorria. volta e meia. compra tudo o que tem dentro. o restante de minhas economias).continuei . cheguei à pessoa: o seu Godofredo.e chateado: tivera uma preciosidade em sua livraria por muito tempo. Era o dono de um sebo que ficava no centro de Itaguaí. em cestos. fui até lá. atrás de uns livros recomendados pelo Jaime.Neste caso . mas cúmplice.acho que sou dono disso aqui. arregalou os olhos: . cumprimentou-me: ele me conhecia. lendo o jornal. Ele não sabia bem: . Fazendo força para manter o chamado espírito esportivo.Uma carta de Machado deve valer um bom dinheiro. "Bem feito". impressionado: . Capitu traiu. em quem se podia confiar.Então. estamos diante de um fato consumado." Mas ela não deixou de levantar uma suspeita: . e o olhar de Nanda. no qual eu via. quis que fosse eu. E temos de aceitar essa nova .Não . evidências da mentira. Pediu para ler a carta mais uma vez. Os três se aproximaram e miraram atentamente o conteúdo do envelope. enfrentava o olhar de Júlia. em meu rosto. não as encontrava.Admitindo que esta carta seja verdadeira. ao exibir esse envelope ao pessoal. e. muita raiva. Não seria difícil para ele me desmascarar. Mais do que todos os livros deste sebo juntos. Vitório me olhou.Não é coincidência. naqueles poucos dias. Mas vejam a força do desespero: eu precisava sustentar o olhar ante o dele e era o que eu fazia. mostrei a carta ao pessoal. em meus olhos. Se não fosse eu. Quem diria. como se ele precisasse ser cuidadosamente protegido. Enfrentava o olhar dele. aprendera a desenvolver a técnica da simulação. pedi a eles o maior cuidado. teria sido um outro. "Você me sacaneou? Agora pague o preço. Estávamos todos tensos. E não as encontrava em primeiro lugar porque eu. Mas. sabia que não raro eu inventava histórias. ou quase. devo dizer.repliquei. . E. principalmente. para falar como o Vitório. Mas o Destino. no dia seguinte. sacudiu a cabeça. muito tensos. e também porque os invisíveis canais de comunicação que se haviam formado entre nós ao longo de muito tempo de convivência agora estavam desfeitos. Encontrei a carta porque tive a curiosidade de olhar uma edição antiga do Dom Casmurro. eu pensava. Ele sabia do meu passado de colador. Eu disse que não tinha dúvida quanto àquilo e perguntei-lhe se poderia contar com seu testemunho para narrar o que acontecera.Admitindo que a carta é mesmo do Machado de Assis -disse -. Ele disse que sim: afinal. Era eu de um lado. para o Machado. Queco. A suposta carta claramente me separava do restante do grupo. Devo dizer que preparei cuidadosamente a encenação: coloquei o papel num envelope plástico. além de desconfiança. Esta foi a história que contei. eu era uma pessoa conhecida. Ela procurava. Vitório preferiu ignorar a provocação: . claramente desconfiado. do fingimento. quando. para seu desgosto (desgosto que eu adivinhava e que. eles do outro.Mais do que qualquer dos livros que tenho por aqui. não é muita coincidência o fato de você tê-la encontrado logo agora? . me dava imenso prazer). Ele está em você. . achando talvez que tinha convencido Vitório e Nanda. você mostrou essa carta para gente que entende. Agora. Tem especialistas na caligrafia dele. Vitório suspirou: . um bicho pousado em suas costas. E de fato ela se virou para mim. Li o livro.bradou Júlia. Um autor pode se enganar quanto ao trabalho dele. as cartas do Machado. olhos baixos. ainda mais prova escrita. .. não pode? E a mesma coisa que você ter. Isso não quer dizer que você vê o bicho melhor do que os outros.A carta existe. fitou-me. que o Machado de Assis pense diferente de nós. Queco. podemos prosseguir com nossa argumentação.. Se o segredo ficar entre nós. que você guarde esta carta por mais uns dias. em nome de nossa amizade..situação... . para um pessoal da Academia Brasileira de Letras. .Como? . Vitório. O que nós temos de fazer agora. Ele pode esperar que o julgamento termine.que o nosso amigo Queco é obrigado a mostrar a carta agora.. Os nossos argumentos perdem completamente a força. A propósito. Nanda. Disse isso e se calou.disse Júlia. Mas isto não significa que tenhamos de mudar nossa argumentação.. seco -. Foi isso que a gente concluiu. sim. A gente tinha chegado à conclusão de que esse tal de Bentinho é um ciumento doente.prosseguiu ela . Esse pessoal confirmou: a letra é do Machado. .Ninguém diz . . Queco? Faz? Dizem que a vingança é um prato que a gente come frio..Então . ele está mais perto de você do que de qualquer outra pessoa. Júlia. pelo menos.Talvez você tenha razão. os olhos úmidos: . a dúvida está liquidada. não dizia nada. e como a Nanda leu. com as nossas conclusões.Vitório não estava entendendo. Ali tem pessoas que passam o dia estudando a obra do Machado. penso assim. Não tinha. Agora vem o Queco com uma tal de carta. O grupo achava que Capitu não traiu. Uma carta do Machado. A pobre da Capitu pagou o pato.. como você leu.Mostrei. Tá bom. pode ser que a carta seja verdadeira. eu fico com a nossa análise. Li o livro. Mas prova é prova. Eu lhe peço. ao contrário. .arrematou Vitório.O grupo "achava"? Não: o grupo "acha" que Capitu não traiu.Um momento .. Senti que estávamos chegando a um momento decisivo. A mim pouco importa.Um momento .Eu lhe peço.. por exemplo. até num olhar. depois . Eu.. desses que vêem traição em tudo. e àquela altura era incrível a facilidade com que eu mentia. Vitório. e não vejo nenhuma razão pra gente mudar de idéia. ofegante. Você faz isto por mim. .menti. Queco.Claro . Queco? . tendo minha desforra. isto é. estava gelado. Vitório suspirou.Não. Olheia firme: . forçado: . absolutamente transtornada. Mas não disse nada. o rei na barriga. olhou-me: . E vocês devem achar que eu ia triunfante.É sua palavra final. Não vou fazer isto. Proponho que o Queco vá no nosso lugar e que defenda a sua idéia. e quero até lhe dar antecipadamente os parabéns. Precisamos do dinheiro para a escola. Se a carta é verdadeira como você diz. enfim. Para mim você já ganhou. pessoal? Mas o que importa é o Colégio Zé Fernandes.É. trata-se de uma prova imbatível. Mas não seria por isso que eu deixaria de saboreá-lo. Bem . . claramente abalada. teremos um final feliz. Depois das aulas fui para casa. Sorriu. né. Em primeiro lugar: vamos continuar com o projeto de entrar no julgamento lá em Santo Inácio. Só que devemos participar de forma diferente.que passou o calor da briga. A verdade tem de ser revelada. . e o colégio sairá Vitorioso desta.Acho que a gente não imaginava que as coisas iam acontecer assim. Queco. Nem precisava dizer. Fez-se um silêncio tenso. O prato de minha vingança não estava só frio. não podemos voltar atrás. neste caso temos de mudar os planos. Queco? . Ela empalideceu. a expressão amargurada de seu rosto para mim já era suficiente: eu estava. Júlia. custe o que custar. Portanto. nem me olhava.disse Vitório -. pesado. a idéia de que Capitu traiu o Bentinho. E não esqueça: você terá de anexar o resumo da apresentação que pretende fazer. engoli o orgulho e falei-lhe do que estava sentindo. Dormi e sonhei.Reta final Vitório orientou-me sobre como deveria proceder em relação à inscrição para o julgamento. em caráter excepcional". Mas. documento a que este candidato teve acesso. já não me dava satisfação. era uma exigência complicada. chorei. um cara repugnante. Em meus sonhos eu via um homem vestido à moda antiga. Que me olhava sem dizer nada. mas tinha certeza de que ele era o Bentinho. este resumo. falsificando. O próprio Vitório foi comigo até Santo Inácio. Rei na barriga. nossa arma secreta. atireime na cama e chorei. 12 . Eu não o conhecia. certamente. mesmo sendo um resumo. que estava me traindo com minha namorada (agora exnamorada)? Na volta. não deveríamos falar da carta. a tal carta. e você nem sequer me agradece?". Assim. Eu me sentia o último dos mortais. não sabia seu nome. a frase final do resumo dizia: "Estes argumentos são confirmados pelo recente achado de um importante documento. e nisto Vitório e eu estávamos de acordo. aquele era o cara que estava me sacaneando. não. Bem. a escola em que você estuda. até adormecer. me dava um grande sentimento de culpa. ao mesmo tempo. Triunfante. o nome de seus pais. outros fariam. nojento. sem a carta. que era. Ele se limitou a sacudir a cabeça e desapareceu. no ônibus. De repente eu me dava conta do enorme fosso que se abrira entre nós. Frase de Vitório. Tranquei-me no quarto. Então. tudo o que poderíamos fazer era listar os habituais argumentos sustentando que Capitu traíra Bentinho.Não. que aliás era um excelente redator (hoje ele é editor-chefe de um grande jornal).Você terá de preencher uma ficha. de autoria do próprio Machado de Assis. qual seria o diferencial em meu resumo? Chegamos à conclusão de que seria preciso mencionar. por assim dizer. mentindo. mesmo que vagamente. . um fosso cavado por mim. Isto. Coisa simples: perguntam seu nome. Tão desgostoso estava comigo próprio que não pude sequer almoçar. para me ajudar na inscrição. Ele ficou em silêncio um instante e depois disse: . porque. O que me deixou indignado: "Eu aqui me sacrificando por você. O que era gratificante e. também não. De repente as coisas tinham mudado. E aquilo já não me alegrava. nosso dever é educá-lo. Eu tenho certeza de que você descobrirá a verdade.E . argumentos não adiantam. . Quando o cara está com ciúmes.Verdade.Escute. .Olhe. Machista. à mesa de jantar. como quem não quer nada: . nervosa. Porque. Não seria a única.continuou mamãe. Só espero que quando descobrir não seja tarde demais. mesmo que essa verdade pareça desagradável.Não preciso dizer . é dizer a ele a verdade. e continuou: . Aquilo soara como uma reprovação? Claro que sim.Não.é verdade também que você vai defender a tese de que a Capitu traiu o Bentinho? .. querida.Mamãe.Passe os bifes . . você não acha este assunto meio indigesto para ser discutido no jantar? .O Queco é nosso filho.que você não conta com meu apoio..respondi. Mais tarde. naquele dia. sim. não acho.. não vou dizer nada a você.Verdade . mamãe comentou. . E verdade? ..interrompeu meu pai. A história de Capitu e do Bentinho é um exemplo típico de como.ela a custo continha a contrariedade .. Queco. .Ouvi dizer que você se inscreveu neste julgamento simulado que vai ser feito em Santo Inácio e que vai representar a escola. Sou das pessoas que lutam pelos direitos das mulheres. tentando mostrar despreocupação. e não gostaria de ver meu filho sustentando uma posição machista como é a do Bentinho. . servindo-se de salada . E isto me doía.É isso que você tinha pra me dizer? . de um orelhão.. e eu percebi que ela estava soluçando. . . perguntou: . no meu modo de ver. a mãe do Bentinho. Não só Júlia me traíra. Levantei-me. Interrompeu-se. Ju. . Sua voz. do noticiário da tevê. Apesar de tudo. Deus..Ela está magoada com você. Não sei o que exatamente você está pensando ou imaginando. me sugasse.Pois então ouça. A Júlia. mas tenho de lhe dizer isso.. Porque. que acredita nos seus ideais. ela tem razão. Mesma tática. Queco. A Júlia. a voz embargada: .Pode ter pintado. Ela me ouvia. Porque.Desculpe. ao contrário de você que. eu amo você. Não quis ouvir o resto. Um cara entusiasmado. Oh. Eu queria que aquele orelhão me engolisse..A Júlia me disse. gentil. Queco. . Tudo que pude fazer foi dizer. da novela. Queco. Durante uma hora vagueei pelas ruas de Itaguaí. mesma sacanagem. Nada que você pensa ou imagina aconteceu. àquela hora: hora do jantar. E. Queco. como ainda fazia intrigas com minha família! Bota safadeza nisso! Finalmente. desertas. Júlia procurava se aproximar de mamãe. Admito: pode ter pintado.eu..O quê!? Você está querendo me dizer que não pintou nada entre você e o Vitório? . Queco. Atendeu-me a própria Júlia. Sempre me tratou bem. mas vinha me tratando mal. não mostrava reprovação (nem receptividade).. inteligente. me fizesse sumir da face da terra. não acontece? O Vitório é um cara legal. . De imediato comecei a repreendê-la: "Você não tem respeito. liguei para a casa dela.. e saí de casa. volta e meia dá uma de arrogante. E você vinha me tratando mal. Você pode não ter percebido isso. Depois que desabafei. você não tem qualquer consideração por mim. furioso. Assim como Capitu se tornara amiga de dona Glória.. Eu estava absolutamente transtornado. entendeu? Completamente fora da realidade. em silêncio. me desculpe.Eu vou aí. mas de uma coisa pode ter certeza: você está fora da realidade.. Estava explicado. mamãe . Isso acontece.É isso . Deus. mas posso perguntar como é que você sabe que eu vou participar do julgamento? . você fica aí fazendo fofoca sobre minha pessoa". Vou à sua casa agora mesmo. Queco.Eu amo você. batendo a porta.agora era eu quem a interrompia -. ainda ofegante. num tom neutro. Meu Deus. Espero que não se arrependa.Esse tal de documento que você vai apresentar como prova. . Queco. Mas não era nisso que ele estava interessado. brigando com meus amigos. Ele ficou um instante em silêncio. Fiquei ali parado.. Não venha.. Mas não era tudo. tensa pausa.É. que o tal do Bentinho mandou pra Europa. Porque eu não quero. era em outra coisa: . e desligou. o que é que eu tinha feito? O que eu estava fazendo? Eu estava numa situação cada vez mais difícil. lentamente. imóvel.Uma carta de quem. Que documento é esse? .Do Machado. me deixara alarmado. ultratensa pausa..Uma carta do Machado. E espero que você não se meta em complicações.respondi. .. Aquilo. . o telefone na mão. Uma carta do Machado de Assis. angustiadíssimo. num tom seco. medindo as palavras: . Só quero que saiba que está fazendo uma tremenda bobagem.Mas por quê? . ora. e agora levando o maior fora da garota que eu amava. Quando.Não.perguntei. Obviamente ele já sabia que eu estava inscrito no julgamento da Capitu. mas um documento destes . onde a coitada veio a morrer. Queco.É uma carta . seguramente abismado com o que tinha ouvido. Você não faz comigo o que você quer. Era como se o mundo de repente tivesse acabado.Porque não. Confuso e alarmado: . voltei para casa.Não sei se você se dá conta.. posso perguntar? .Por que você diz isso? . . já sabia qual era a posição que eu iria defender. mentindo. agora. Ele disse.Você deve saber melhor do que eu . Não sou como a Capitu. você disse? Do Machado de Assis? . recebi um telefonema do Jaime. Não estou à sua disposição. Nova pausa.respondeu. finalmente. tentando manter o sangue-frio (mas a minha voz inevitavelmente tremia um pouco). enigmático. Se é como você diz. está tudo certo com a carta e comigo. Mais que a dor das fraturas. decerto. pode ficar seguro.Que problemas? . . na sala.Mas mostrei para uns caras que entendem. Avancei para ela. depois de uma triagem inicial feita pelo próprio júri. E eu fiquei ali.tem importância imensa. Eu vou vencer o julgamento.Inesperada repercussão Teoricamente. mal podia falar.Eu.. nem que fosse uma cachorrinha. fugiu. onde todo mundo comenta a vida de todo mundo. Eu sei que nada tenho a ver com isso. completamente só.cedeu ele. Avalie bem a situação. me olhando fixo. com medo.. segundo a qual Machado criou propositadamente um enigma que cabe ao leitor resolver. Queco: um dia você vai descobrir que poucas coisas são tão importantes na vida como o amor. .Com seus amigos. . só. e eles me disseram que a carta é mesmo do Machado. Mas não se esqueça dos outros problemas que você tem. E ali estava a Sapeca.Aquela conversa já estava me deixando nervoso. Deixe que eu lhe diga isso. Você não vai participar de um julgamento? Pois comece julgando. Não jogue isso fora. Portanto não se preocupe. Ele muda a idéia que todos tinham. a amizade. logo ficamos sabendo que. . e de modo bem imparcial. Mas só teoricamente. os seus próprios atos. Tenho certeza de que vai mudar muita coisa. Queco: você tem certeza de que esta carta é autêntica? Sim. dos meus ataques de fúria. Agradeci o conselho. 13 . mas você sabe que eu gosto de vocês e que estas brigas me doem muito.Diga-me uma coisa. duas cidades relativamente pequenas. as chances são mesmo grandes . . Santo Inácio e Itaguaí são. que doem bastante. . Eu precisava abraçar alguém. eu sei que você a encontrou num livro antigo. a inscrição para o julgamento simulado deveria ser sigilosa.Não tenho dúvidas a este respeito. Eu estava com um nó na garganta.Sei disso. quando se encerraram as inscrições. E fico contente. Assim. agora escolhendo cuidadosamente as palavras: . Mas a Sapeca. cara. Afinal. fazendo toda força para mostrar despreocupação. Jaime. Mas isto não garante a autenticidade do documento. . Esta carta será uma verdadeira revolução.. com esse dinheirão poderemos reconstruir a escola.. . Pigarreou e voltou à carga. Com sua namorada. despedi-me. sempre cauteloso. Que boato? . Até jornalista já sabia da história. Ramão Oswaldo. mas explicou: . Que vai apresentar um documento capaz de mudar tudo o que se sabe a respeito desse livro do Machado de Assis. não perdia por esperar: para mim. Fiz-me de desentendido. inscrevera-se sozinho. Era o Josué. em segundo lugar. somos o principal jornal de Itaguaí. acabou aceitando em troca de uma promessa: logo depois do julgamento eu lhe daria a tal entrevista exclusiva. Gelei. e quero exclusividade. Expliquei ao Josué que me comprometera a manter sigilo. Um deles. Que tal essa? Eu agora estava francamente alarmado. Se eu já estava preocupado.Por que. o Ernesto Gonçalves. E insistiu: . o que ele. e que eu conhecia de vista. surpreso.Está correndo um boato a seu respeito por aí. repórter do Diário Itaguaiense.Dizem que você tem uma carta na manga. o que seria um desastre: os organizadores do concurso certamente me eliminariam de imediato. Como Jaime e como .Falam que você tem um trunfo secreto. ainda que relutante.Não sei o quê. ele riu. e alarmado. Afinal. hein? Até esse dia você não pode falar com ninguém da mídia.Veja lá. Pois eu quero entrevistar você sobre este assunto. o Colégio Santo Inácio. raios. Estamos torcendo por você. era tão conhecido pela inteligência como pela esperteza e pelo mau caráter. nós apoiamos você no julgamento. Queria falar comigo com urgência: . sabia falar bem e contava com o apoio de um grupo forte.Eu. O outro. tem tanto jornalista ligando? Em que confusão você se meteu.haviam sido selecionados para a disputa final três candidatos.Este cara vai aprontar . sabia escrever. tinha uma cultura imensa. nada menos que doze colegas de sua escola. . o que não poderia ter acontecido. desagradáveis surpresas estariam reservadas. A advertência tinha razão de ser: já naquele mesmo dia fui procurado por jornalistas de duas rádios e de uma tevê. O que deixou meu pai intrigado: . mas é toma-lá-dá-cá: você nos dá essa informação em primeira mão. Não por acaso.resmungou Vitório. Queco? Acabei contando a história do documento. . esta do Rio. Em primeiro lugar pelo fato de a informação ter vazado. . Dois dias antes de começar o julgamento recebi um telefonema. disse que não sabia do que se tratava. de sua terra. . matreiro. o Fuinha. mas ele vai aprontar. era conhecido em Santo Inácio como "Gênio". pela possibilidade de o documento aparecer em jornal. a raiva me invadia: eu precisava.Desculpe ser brusco.É sobre a carta do Machado. meu nome não vem ao caso. posso dizer. se eu fosse você.respondeu uma voz grave.Fui procurado por um adversário seu nesse julgamento. disse. amigo Francesco. *** Naquela mesma noite o telefone tocou mais uma vez.Desculpe. num tom intrigante. Por favor.e.. pela caligrafia. O homem prosseguiu: . Pode lhe poupar um grande aborrecimento. . Mas.Sobre essa tal de carta do Machado. meu amigo. estou ouvindo. Isto certamente lhe interessa. Só vou lhe dizer minha profissão: sou grafologista.Comparando dois textos manuscritos. .. E investigar o assunto. se são de uma mesma pessoa ou não. de modo que ele explicou: . Aquilo não era brincadeira. Se a carta é falsa. O problema é que seu adversário quer me . Atendi e já fui dizendo: . ouviu minha explicação com um ar suspeitoso: . E.Vê lá o que você está fazendo. sim. Jaime e papai tinham razão: a chance de complicações era grande. ganhar aquele julgamento. Seria a minha vingança. na hora do jantar. mas ele sabe que você vai apresentar como prova uma carta que teria sido escrita pelo próprio Machado de Assis. eu não terei a menor dificuldade em prová-lo: é só comparar a caligrafia. O nome. ele imediatamente ficou desconfiado.Vitório. não se meta em confusões. Mamãe atendeu: é pra você. Respirei fundo: . . também ela estava farta de tantas ligações. Você sabe do que estou falando? Eu tinha uma vaga noção do que se tratava. obviamente. Fez várias perguntas a respeito. Decidi que daí por diante não falaria com mais ninguém sobre a suposta carta.. Àquela altura eu já estava meio arrependido. Queco. meio irônico. meio ameaçador. agora aquela coisa me interessava. Ouviria até o fim o que eu tenho pra lhe dizer. muita gente vai se interessar pelo assunto. Esse tipo de coisa não é brincadeira. Infelizmente. Fale.Você não me conhece . e se você quer. cada vez que lembrava o olhar que Júlia trocara com Vitório.prosseguiu o homem . coisa que sei fazer como ninguém.. precisava esfregar o dinheiro do prêmio na cara dela. não desligaria. não vou lhe dizer. não é? Interessava-me. de momento. e muito. mas que levaria a coisa até o fim. num óbvio tom de censura. perito em escrita manual. mas se é sobre a carta do Machado. Francesco . que outros chamariam de indecorosa.pagar muito pouco para fazer isso. Dou-lhe vinte e quatro horas para pensar. Mesmo porque o julgamento está se aproximando. talvez não. Mas. amigo Francesco? Está? Ah. o que me diz dessa proposta? O que dizer? Eu não sabia. considerando a minha difícil situação financeira. Eu simplesmente não sabia o que dizer. estou disposto a levar adiante. e se fosse mesmo um perito? Quem teria entrado em contato com ele? Só poderia ser o Fuinha. Deu-me um número de telefone e desligou. mas que. tão embaralhados estavam meus pensamentos. A sensação que se apossava de mim agora era a de que eu estava num pântano. Então. você não precisa resolver agora. Então eu pensei em fazer a você uma proposta. atestar por escrito que a carta é verdadeira. de alguma maneira. O que fazer? Pra começar. Amanhã. eu pensei até que a ligação tinha caído. Desliguei também. alguém que. e que cada vez afundava mais. bom. para isso. estarei esperando sua ligação. se você topar.Bem. ainda aturdido. como dizia.Alô! Está aí. quero metade do valor do prêmio. Bem poderia ser um vigarista. num terreno de areia movediça. descobrira o segredo da carta e agora queria tirar proveito da situação. eu nem sabia se o homem era mesmo um perito em escrita manual. Ele voltou à carga: . Talvez sim. Posso. certo? Pense bem na proposta que lhe fiz. Ele deu-se conta disso: . Mas. concluí. Mas mesmo para um mau caráter como o Fuinha . a essa hora. Para estar com os filhos nos momentos difíceis e nos momentos de glória. No mesmo ônibus iriam Jaime e Sandra. 14 . mas filho é filho. Para fazê-lo. Mas eles disseram que queriam estar a meu lado: . Um a mais não faria diferença.Os pais são para isso . Eu não ligaria de volta. com toda a certeza o momento difícil vai dar lugar ao momento de glória. quando isso acontecer. o que.Você sabe que eu não estou de acordo com sua posição acrescentou mamãe -. De qualquer modo tratava-se de uma situação potencialmente perigosa. Ou seja: dúvidas e mais dúvidas. e vários.O julgamento Chegou o dia. o cinema é um lugar de dramas. era aguentar tudo sozinho.disse papai. mesmo que isso representasse um risco. E era isto justamente o que viveríamos naquela . Os colegas de escola tinham alugado um ônibus que levaria uns quarenta deles. E. como dissera papai? Não era o que eu antecipava. E. que pareciam crescer a cada minuto. a Capitu que me perdoe. aliás. . de comédias. pareceu-me um lugar mais do que apropriado.aquele seria um jeito muito drástico de eliminar um adversário. O julgamento seria realizado no Cine-Teatro Astor. Até joguei o papel com o número do telefone no vaso sanitário e dei descarga. um velho cinema no centro de Santo Inácio. Por fim. os leitores eram informados de que "o jovem Francesco Formoso de Azevedo representará a nossa cidade numa das disputas culturais mais interessantes dos últimos tempos". entre parênteses. também estarei torcendo por você. dizia a manchete da notícia que o Diário Itaguaiense trazia com certo destaque. Afinal. portanto. Obviamente. Resolveram me acompanhar. apesar de meus pedidos para que eles não fossem. Mas isso não resolvia meus problemas. . riscos eu já estava correndo. Como era sábado. portanto. No seu caso. e eu não sabia o que fazer. Nela. Momento de glória. papai e mamãe não trabalhavam. eu não tinha a quem pedir auxílio. um vexame grande demais. Afinal. era a primeira vez que Jaime estava saindo de casa após o acidente. E. Eu me sentia como a vítima que está sendo entregue ao carrasco. O jeito. Não só meus pais me acompanhariam. teria de confessar minha desonestidade. estaremos lá pra aplaudir. seria a desmoralização total. Fomos. "E hoje". pior. eu estava com maus pressentimentos. decidi ignorar o telefonema. segundo ele próprio me disse.. também já está a postos. está tudo pronto. vinha acompanhado por membros de sua equipe. dois rapazes e uma menina. Explicou-me como seria o julgamento: . Enfim. Fomos recebidos pela Valéria. Colocamos urnas na sala para que o público possa votar também. o doutor Jesuíno Fontes. magrinho. onde eu deveria aguardar até a hora de início. Os jurados vão levar em conta esses votos na decisão final.. O Gênio me cumprimentou efusivamente. teremos um advogado muito conhecido aqui em Santo Inácio. já havia uma fila enorme de gente esperando para entrar. que aliás já leu Dom Casmurro seis vezes. um lugar confortável.Agora só depende de vocês. mesmo. ou as duas coisas. com óculos de grossas lentes. Naquele momento entravam no camarim meus dois adversários. mas o olhar que o Fuinha me lançou não . o Gênio. O júri. material para escrever e uma mesa com biscoitos e suco de laranja. de bicho desagradável. com doze pessoas. Sorriu: . como você sabe. com poltronas. um drama. fazia jus ao apeUdo. era um garoto baixinho. e aparentemente certos da vitória. relações públicas da empresa promotora do evento. todos radiantes. uma comédia.tarde.No papel de juiz. Ernesto Gonçalves. Uma moça muito simpática: estaria à minha disposição para ajudar em tudo. Quando chegamos ao local. Levou-me para uma espécie de camarim. Quanto ao Fuinha. tinha uma cara de fuinha. estavam sentados em cadeiras numa lateral do palco. gritos. a professora Sandra. e ele. e aquela ausência chegava a me provocar uma dor física. Ocorreu-me . Enquanto ele falava. cabeleira e barba brancas. doze. Valéria veio dizer que o público estava impaciente: já eram duas e meia. O que só fazia aumentar minha ansiedade. mas Júlia eu não estava enxergando. O doutor Fontes tomou assento à mesa principal. Havia vários fotógrafos. eu olhava para a platéia. sim. inclusive. de baixa estatura. Era um homem já de idade. O doutor Fontes abriu os trabalhos. Precisava desesperadamente. Que eu trouxera numa pasta de cartolina. "que termine de uma vez. Finalmente o júri e as pessoas presentes no "tribunal" votariam. quem sabe ela adoecera. mas porte majestoso. A pasta. Nanda. o que me deu um frio na barriga: eu tinha certeza de que estavam ali por causa da carta. Entrou o juiz. Eu não precisava mais da Ju? Precisava. Teria ela se recusado a vir? E o que significaria essa recusa? Seria o rompimento definitivo? A possibilidade me angustiava.. O cinema estava cheio. Os jurados. rostos conhecidos: meus pais. Pediu ao público que prestasse atenção e que participasse votando. Primeiro. Não era verdade. e também uma equipe de tevê. e o início havia sido marcado para as duas. era muito sujeita a dores de cabeça. que fique com seu amado Vitório.antecipava nada de bom. De repente vi. daria o veredito. estava úmida: eu suava abundantemente.. A platéia. quem sabe tinha acontecido alguma coisa. aliás. graças ao patrocínio da fábrica de sabonetes. o professor Jaime. não preciso mais dela". nós três ficamos numa mesa ao lado. fez um resumo de Dom Casmurro e falou sobre a polêmica que o livro sempre suscitara. Tentei tranqüilizar-me. um homem de óculos escuros e cara impassível. o juiz. Por alguma razão aquela figura estranha me deixou inquieto. Na platéia. assobios. nos recebeu com palmas. entusiasmada. Fomos para o palco. mas acabou me dando raiva: "Se ela quer terminar". pensei. teríamos ali em Santo Inácio um julgamento original em que "três talentosos jovens" (palavras dele) defenderiam seus pontos de vista. junto com o texto da acusação a Capitu. Eu a amava. sentado na primeira fila. Não. Saudou-nos afavelmente e passou a explicar as regras do julgamento: cada um de nós teria trinta minutos para apresentar nossos argumentos a favor ou contra a suposta traição de Capitu. Vitório. com gente em pé. que parecia me mirar atentamente. Depois haveria um período em que responderíamos a perguntas e debateríamos entre nós. o doutor Jesuíno Fontes. a seguir disse que. para minha surpresa. mas a apresentação não passou do convencional.. olharia a carta e proclamaria para o público: "A suposta prova que o senhor Francesco nos traz. Tinha uma voz fanhosa.. Seus argumentos eram bons . Era uma apresentação que eu esperava com muito receio. Não podia haver dúvida: era o candidato preferencial do pessoal de Santo Inácio.afinal.que poderia ser o tal do perito. . E aí o homem rapidamente viria (não por acaso estava sentado na primeira fila). Nanda e eu. Ao contrário do Gênio. Quando terminou. Eu já estava imaginando aquele homem se levantando e dizendo: "Meritíssimo Juiz. "O que será que este cara está aprontando?". desejo contestar a prova que está sendo apresentada pelo senhor Francesco Formoso de Azevedo. Aquele sorriso me deixou com a pulga atrás da orelha. Júlia. Um golpe espetacular. Vitório. Começaram as apresentações. como eu imaginava. falava sem qualquer convicção. Será que o cara não estava aprontando alguma? E será que não teria algo a ver com a minha própria apresentação. O primeiro foi o Gênio. eu me perguntava. A todo instante era interrompido por aplausos. não era bom orador. e quem sabe até a vitória no julgamento. Se ele fosse o perito. por alguma razão havia sido selecionado -. eu estava bem arranjado. não passa de uma fraude!". e se tivesse se acertado com o Fuinha. pronto para se vingar de mim. A suposta carta do Machado de Assis. monótona. Mas ele os apresentou de forma lógica. O jeito era vencer o medo e ir em frente. E aí veio o Fuinha. sorrindo sempre. que chamava a atenção do público para a limitação de tempo. Fazendo jus ao apelido. Defendeu a idéia de que Capitu traíra. que poderia inclusive valer ao Fuinha muitos votos do júri e do público. hoje é um advogado bem-sucedido). Meritíssimo. com a carta que eu iria mostrar? Eu olhava o homem de óculos escuros na primeira fila. mais. recebeu alguns aplausos e sentou-se. Seria uma vergonha. aqueles mesmos que tinham surgido na conversa que havíamos tido no salão paroquial. mostrou-se brilhante. seria o meu fim. Já podia vê-lo pedindo licença ao juiz para chamar ao palco alguém capaz de avaliar a autenticidade da prova que eu apresentava. Meritíssimo. apesar das advertências do juiz. Fuinha não tinha nenhum truque preparado. não passa de uma fraude!". Os argumentos que listou para provar que Capitu não traíra Bentinho eram os clássicos. numa linguagem refinada. Mas agora era tarde para tomar qualquer providência. Mas. sim. era um orador nato (pelo que sei. . O juiz me chamou: . Júlia nunca me olhara assim. Mentindo? Sim. em silêncio. Olhava-me: tranquila. sentou-se no chão e ali ficou a me olhar. cometer uma fraude. em meio ao silêncio tumular . E aí.. de veracidade. minha angústia. e agora tinha plena consciência disso. por favor. Vinha caminhando pelo corredor do cinema.Tudo aquilo podia ser fantasia minha. senhoras e senhores! É o próprio Machado que nos diz. Mais uma pausa. e agora me dava conta do tremendo problema que criara para mim mesmo. a pasta de cartolina nas mãos geladas. E uma voz que vem ecoando desde um passado longínquo. diante do microfone. em minha direção. serena. a última. em passos firmes. Nova pausa e eu diria: "Mas há um argumento ainda mais forte que esses. a voz que traz consigo a autoridade do grande mestre. verdadeiro.O senhor Francesco Formoso de Azevedo. fez um gracejo com o nome Formoso e pediu que eu tomasse o meu lugar na tribuna. pensei. Júlia veio vindo. eu deveria começar com uma frase de efeito: "Capitu traiu". dessem impressão de sinceridade. terminaria mentindo. Só esperava que meu desespero. Sim: amorosa. palmas. Mas meu sofrimento era autêntico. Júlia. Há uma voz mais convincente do que a minha. Segundo meus planos. Mas a verdade é que eu ia. nesta carta até hoje inédita. Respirei fundo. "A sorte está lançada". Eu agora tinha tanta certeza do seu amor. na maior expectativa. e eu concluiria com voz tronitoante. do autor de Dom Casmurro. Lembrou-me de novo o tempo de que eu dispunha. nunca. úmidas de suor. e aplausos. claro. senhores e senhoras. a que ponto eu tinha sido levado pelo ciúme! Em matéria de ciumeira. como tinha certeza de estar vivo. eu era muito pior que o Bentinho. brandindo a folha de papel: "Sim. mesmo. prestes a desmaiar. minha amargura. tonto. Diante de mim a imensa platéia. Faria uma pausa. E ali estava eu. era como se tivesse guardado todo seu sentimento para mostrá-lo naquele instante decisivo. Chegou a uns cinco metros do palco. e as luzes das câmeras. As lágrimas me corriam pelo rosto. Amorosa. O meu pânico era tanto que chegava a me sentir mal.. que Capitu traiu!". sempre segundo minha expectativa. Eu estaria mentindo. Deus. Eu iniciara mentindo. listaria meus argumentos. A voz de ninguém menos do que Machado de Assis!". E então avistei-a. e assobios. e gritos. senhores e senhoras. Deus. e os flashes brilhando. como se costuma dizer. o Bentinho. Mas a carta é uma fraude. Prefiro admitir meu erro. tirei dali a carta. senhoras e senhores. E esta carta traz a assinatura do próprio autor do livro. como um monstro de mil tentáculos. estragou a vida dele e prejudicou todas as pessoas a seu redor. senhor juiz. mas então. por Ernesto Gonçalves. senhores e senhoras. com certeza. tive de arranjar papel.Esta carta. Interrompi-me. neste salão. tinta e caneta daquela época. Bentinho. eu não usaria aquilo. minha gente. diz que. Até aí estaríamos em terreno conhecido. é uma doença . como vocês sabem. e eu não posso pagar o preço que este dinheiro custa. Mas ganhar o dinheiro assim não dá. há uma garota que eu amo e que. Uma garota que me prefere derrotado a mentiroso. E eu não vou apresentá-la. esta carta. O ciúme. listando argumentos que são de todos conhecidos e que foram agora há pouco expostos por meu adversário Ramão Oswaldo. e com brilhantismo. Fechei a pasta de cartolina. não posso mentir. Júlia olhava-me. Não. Dinheiro também tem preço. Fiz força. uma sobrecarga que eu não podia agüentar. foi quase destruída por uma avalanche. Eu não sei o que se passou entre Capitu e Escobar. E sabem por que decidi isso? Porque aqui. Voz embargada pela emoção. do Colégio Zé Fernandes. tiraria da manga a carta oculta. . Mas então. mostrei-a ao público. abri a pasta de cartolina. Eu mostraria a vocês uma carta de Machado de Assis. conhecida como Capitu. sim. aprisionou Bentinho. gente. agora eu estou seguro disso. fazendo um enorme esforço. Eu a acusaria de ter traído seu marido Bento de Albuquerque Santiago. mas então. Simplesmente não dá. é que Bentinho foi vítima dessa doença . aquilo era demais para mim. Prefiro ser derrotado. E eu faria isto. Deu trabalho: tive de estudar a caligrafia de Machado de Assis. Para nós. Essa carta foi escrita por mim. Capitu traiu. seria muito importante vencer. esta pasta contém a acusação que eu faria a Capitolina Pádua.chamada ciúme. me ama também. precisamos do dinheiro para reconstruir nossa escola que. eu.que baixara sobre o cinema.Decidi não levar adiante a farsa. para o autor do livro. Então eu recorreria a meu secreto trunfo. prossegui: .porque. Abria a pasta de cartolina.Senhoras e senhores.Só que esta carta infelizmente é falsa. senhores jurados. de Machado de Assis. continuei: . Argumentos estes previamente refutados. . Mas. Mostrei a pasta ao público: . Enxuguei os olhos. meus senhores e senhoras. e o resultado não foi ruim... gente. as lágrimas correndo por seu rosto. O que eu sei. inventei esta história toda. como aquele desastre que atingiu a nossa escola. da garota que eu amo. soltas. esta mentira da carta do Machado. Mas agora. Respirei fundo e continuei. no caso do ciúme. vivi o ciúme de maneira intensa. o desastre é o resultado de fantasias. Orgulhosos estavam também os meus professores. enquanto o público simplesmente delirava. Papai e mamãe olhavam-me. é um desastre. . fazendo o "V" da vitória. . O ciúme bagunça a nossa cabeça. Agora as palavras brotavam de dentro de mim. Ju. eu peço perdão a ela. Só que. Cheguei a brigar com ela. Aprendi muito com o livro dele. gente. meus amigos de Santo Inácio e de Itaguaí. Vocês vão me perguntar: e como é que você sabe? Você não é o Machado de Assis.Detive-me. parecia impressionado. quero dizer a você: eu te amo! Eu te amo.Ciúme é doença. faz com que a gente veja coisas que não existem. metro e tanto de altura. Minha mãe soluçava. Ciúme. evidentemente orgulhosos do filho que tinham criado. mas agora já não tinha mais dificuldade de falar. Ele me ajudou a ver o que se passava comigo mesmo. e corri para abraçá-la. o pessoal de Santo Inácio. Eu cheguei a suspeitar da minha namorada. Meus colegas estavam prontos para saltar da cadeira e me aplaudir. Não. saltei do palco. não sou o Machado. e na frente de vocês todos. de conflitos. Ju querida! Saí de trás da tribuna. livres. fiz um papelão. na frente dela.. O Jaime chegou a me acenar. E até o pessoal que não torcia por nós. Jaime e Sandra.. meu pai e Vitório sorriam. mas não sou o Machado. E ali ficamos abraçados. para as pessoas. Olhei a platéia: estava verdadeiramente arrebatada. completamente desligados do que se passava a nosso redor. como o Bentinho. Porque. como peço perdão a vocês todos. ofegante. . E. quando aqui cheguei. acho que fiz um bom trabalho e. inscrevi-me para ganhar esta competição e preparei-me para isto. antes de mais nada. mas a intenção existiu. Portanto. meus colegas. absoluto: . Uma enorme agitação apossou-se do público. "por tudo aquilo que vocês viram": . meus amigos. não foi convincente. Por causa disso. proponho que o candidato Francesco Formoso de Azevedo seja eliminado da competição. preparou uma prova falsa com a qual pretendia nos enganar. Francesco Formoso de . convenhamos. E mudei de idéia por causa da apresentação do Francesco Formoso de Azevedo. acho que só dois candidatos devem ser avaliados. Modéstia à parte. as regras não foram exatamente seguidas. mobilizar seus leitores. Um dos concorrentes. silêncio completo. Coloco. protestavam indignados. por exemplo. não seguiu exatamente as regras. Ou seja. Fuinha deu um passo à frente: .Teoricamente. pelo menos. Durante meses li e discuti com meus colegas o romance de Machado de Assis. fazer com que vivam intensamente a história que está sendo narrada. Em contraste com sua medíocre apresentação. fez diferente: ele deu seu testemunho pessoal.Naturalmente . proponho que transformemos este julgamento num debate.Resultado surpreendente Chegava o momento da decisão. Começou dizendo que o julgamento tomara um rumo completamente inesperado. ele não convenceu. agora mostrava-se bem articulado: . e como ele próprio confessou. Fezse então silêncio.Eu quero falar. Ele mostrou como havia se identificado com o personagem Bentinho. Não chegou a esse extremo. E falou mesmo. e em comum acordo com os nossos jurados.Meu adversário Francesco Formoso de Azevedo foi muito sincero. acho que assim correspondeu ao sonho de todo escritor que quer. tinha a convicção de que venceria a disputa. ele descreveu os sentimentos e as emoções que Dom Casmurro provocou nele. deveríamos comparar argumentos e eventuais provas. Mas agora mudei de idéia. A mim. Mais do que isto. em busca de conclusões e de provas que apoiassem essas conclusões.15 . contudo. seguido de uma votação final. E aí o Gênio pediu a palavra. Nós todos agora sentados. mas. portanto. Por último. eu próprio e meu colega Ernesto Gonçalves.começou ele -. e como disse o senhor juiz. a palavra à disposição de quem dela queira fazer uso. Ele não disse o que achava do livro. o doutor Jesuíno pegou o microfone. Por causa disso. Meus amigos. Sei que existem urnas à disposição. braços brancos. O juiz a custo tentava acalmar o público. já ouvimos argumentos de parte a parte. as mãos. morenos. os senhores jurados e eu. .. A franqueza dele foi impressionante e mostra como se identificou com o autor.. Não havia dúvida.. rumo ao salão paroquial.. mas como. o senhor Francesco Formoso de Azevedo! O cinema quase veio abaixo com os aplausos. aqueles que votam no senhor Francesco Formoso de Azevedo. braços jovens e braços maduros. De Santo Inácio fomos para Itaguaí. pois... só temos dois candidatos. Levantem. Agora temos de decidir. Um aplauso ensurdecedor tomou o local. Braços masculinos e braços femininos. negros. Já na semana seguinte a escola começou a ser reconstruída. Por fim. O juiz pôs-se de pé: Proclamo vencedor.Azevedo dirigiu-se a nós como se estivesse falando de dentro do romance. Por causa disso eu renuncio à competição em favor de meu colega Francesco. que esta será uma forma mais democrática. acho que podemos fazer a escolha pelo simples método de levantar os braços. Ali uma festança foi improvisada e estendeu-se até meia-noite. O . na prática. Uma pausa dramática. Uma verdadeira floresta de braços ergueu-se. como se a trama do livro e sua própria vida fossem uma coisa só. vamos atribuir tal decisão ao público que aqui está: achamos.. conseguiu fazer-se ouvir: . Como eu disse antes. Júlia e eu fomos carregados em triunfo porta afora. emoldurada. aprendemos com prazer e emoção. *** Como eu disse. :::: F I M :::: . não decidiram ainda "juntar os trapinhos". Vitório e Nanda saem com a gente. E. Jaime agora nos falava sobre Machado de Assis numa sala bonita. A gente aprendeu muita coisa com obras como Dom Casmurro. dos livros que já lemos um dia . todos os quatro da velha turma. na parede do fundo. e temos um filho.livros que. mas. apesar de nossos esforços. Vitório é jornalista. o Ezequiel. mas conseguimos terminar a obra e em um mês a escola estava funcionando de novo. Estamos formados. muito importante. e é um lindo garoto. Ju é socióloga. Nanda é psicóloga. Quando nos reunimos. eu sou engenheiro. garanto a vocês. muita coisa que vem nos ajudando pela vida afora. bem iluminada. e não há semana em que a gente não se reúna. mas continuamos amigos. Acho que Machado assinaria embaixo dessa frase. Livro bom é aquele que se confunde com a nossa própria vida. fizeram nossa cabeça. a carta que me proclamava vencedor do concurso realizado em Santo Inácio. Sem que ninguém precisasse imitar a assinatura dele.estrago havia sido tão grande que o dinheiro foi justamente a conta. que ensina através da emoção e do prazer. para usar uma expressão antiga ainda comum em Itaguaí. Nós dois estamos casados. doze anos se passaram. que está com seis meses. Como dizia o professor Jaime: livro bom é aquele que emociona. invariavelmente falamos dos livros que estamos lendo. Moacyr Scliar Bastidores da criação Machado de Assis é o grande guru dos escritores brasileiros. E. como às vezes acontece com ciumentos. como Bentinho. Em tudo isto há uma lição importante: precisamos conhecer a nós mesmos. às voltas com o ciúme. E uma história que tem basicamente quatro personagens. vemos o resultado: ele acaba sozinho. na juventude. pela qual todos passamos em algum momento de nossas vidas: o ciúme. Aos poucos a história foi surgindo da minha cabeça. mas com personagens da atualidade. Ora. . e que se constitui numa homenagem aos jovens leitores e ao grande Machado de Assis. Dom Casmurro é sem dúvida o mais popular dos seus livros. Em primeiro lugar fala de uma coisa universal. comovente e muito brasileira . deixando o final em aberto: Capitu traiu ou não traiu? É uma dúvida que até hoje provoca muita discussão. o Queco. Finalmente temos o jogo que o autor estabelece com o leitor. É a mensagem que tentei transmitir.Machado retrata com perfeição a sociedade de seu tempo. ele perde o controle sobre suas próprias emoções. Mais: um deles. concursos em colégios é coisa comum e debates sobre Dom Casmurro acontecem a todo instante. E o faz por meio de uma história realista. também se vê. envolvendo-se numa grande confusão. só que agora se trata de estudantes. Eu queria escrever uma obra inspirada em Dom Casmurro. Isso não é bom para ninguém. Uma lição que a gente deve aprender muito cedo. E foi exatamente essa dúvida que me serviu de ponto de partida para o livro. Isso foi o que aconteceu com Bentinho e. no livro de Machado. na infância. como o próprio livro do Machado. gente como os jovens leitores com quem frequentemente converso em escolas. Precisamos saber quando estamos agindo de maneira racional e quando somos movidos por impulsos que não conseguimos controlar. em especial os jovens. Scliar gosta de lembrar que em sua família de imigrantes do Leste europeu todos eram bons contadores de história. Formado em Medicina. Foi sua mãe. Tanto que uma de suas . Mas um humor diferente. que o alfabetizou e despertou no futuro escritor o amor pela literatura. do ensaio à literatura infantil. do romance à crônica. sem dúvida: o coroamento de uma vida inteira dedicada a entreter e a encantar leitores de todas as idades. Uma grande honra. premiado muitas vezes e com leitores em países como Suécia. Estados Unidos. A obra de Scliar conta com mais de setenta títulos. em 2003. E. Israel. E em quase todos os gêneros. E bota "mundo" nisso. personagens irreverentes e muito humor. no final da década de i960. Tantos e tão variados títulos fizeram de Scliar um dos autores mais respeitados no Brasil e no exterior. meio estranho. Scliar começou na literatura com um volume intitulado Histórias de um médico em formação. o escritor ingressou na Academia Brasileira de Letras. Nesta obra. França e Japão. 1937. começou chamar a atenção do público com os contos de O carnaval dos animais. uma professora primária. E essa alegria em compartilhar experiências de vida e causos foi decisiva para conduzi-lo ao mundo dos livros. Alguns anos depois. incomum.Biografia Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre. iriam aparecer aquelas características que marcariam para sempre os livros do autor: enredos fantásticos. Apesar de estar sempre viajando pelo mundo. há apenas dez anos o Brasil se tornara República e há onze a escravidão fora abolida. era também um autor que apreciava histórias de humor.maiores influências sempre foi o escritor checo Franz Kafka (18831924). por incrível que pareça. de volta para a Europa. o fotógrafo Beto. Por dentro da história O Brasil se torna República Quando Dom Casmurro foi publicado. A família real portuguesa foi mandada embora do Brasil. em 15 de novembro de 1889. que escreveu A metamorfose (a famosa história do caixeiroviajante que acorda transformado num inseto gigantesco) e. a imaginação de ScHar também tem um passaporte cheio de carimbos: ele é um autor universal. que se achava intimamente vinculado à Igreja. em 1899. e com o filho. Judith. E em Porto Alegre que ele vive com sua mulher. O que não quer dizer que apenas a capital gaúcha seja o cenário de suas obras. neste e em outros volumes da coleção. A primeira constituição destes novos tempos foi aprovada e . Como você poderá conferir. O Estado. Scliar continua morando em sua cidade natal. ocorreram mudanças substanciais na conjuntura sociopolítica do país. se separou dela. Com a proclamação da República. de 13 de maio de 1888. Duas décadas depois. . era decretada a extinção do tráfico negreiro. em 24 de setembro de 1871. a escravidão já se encaminhava para seu fim quando foi definitivamente proibida. Litografia a partir de desenho de Johann Moritz Rugendas. Negros no fundo do porão. determinada pela Lei Áurea. a chamada Lei do Ventre Livre. O fim da escravidão Com a abolição da escravatura. Em 1850. quando já não existia mais escravidão no mundo. todos os brasileiros se tornaram homens livres. Ela estabelecia o presidencialismo e o federalismo como sistema e forma de governo. O terreno para que isso acontecesse já vinha sendo preparado fazia algum tempo. Assim.promulgada em 24 de novembro de 1891. foi aprovada a lei que libertava os filhos das mulheres escravas. não era mais possível obter novos escravos. Com essas duas medidas. 1835. por pressão internacional. O regime monárquico virava história do passado. que deve favores aos Santiago. durante a década de 1870. enquanto Bentinho faz parte da elite. Trabalhou como tipógrafo e.Machado de Assis: neto de escravos Foi neste contexto histórico que Joaquim Maria Machado de Assis (18391908) escreveu seus contos e romances. junto à seção que se responsabilizava por colocar em prática a Lei do Ventre Livre. é de família mais pobre. estão expressas em seus livros. que Machado de Assis viveu de perto. Sua mulher. No entanto. à distância de classe existente entre ambos. O que comprova que o ciúme não é apenas um dado atemporal da . a qual ajudou a fundar. é proprietário de terras e de escravos. O jovem Machado e seus O jovem Machado de Assis. Machado de Assis foi criado entre a pobreza da casa dos pais e a riqueza da chácara da madrinha. Bento Santiago. Machado de Assis nasceu mulato num país escravista. que fora madrinha do escritor. Capitu. portanto. É por esta moça menos abastada que ele sentirá um ciúme doentio. Em 1897. Em função disso. Em Dom Casmurro. o narrador da história. pais contavam com a em foto de Álvaro Pacheco. cuja ação se passa entre 1857 e 1871. Ela representa. proteção de uma rica proprietária de terras. assumiu a primeira presidência da Academia Brasileira de Letras. foi funcionário público no Ministério da Agricultura. uma classe mais baixa. Dom Casmurro: ciúme e organização social As relações entre as diferentes classes sociais. teve uma vida atípica em vista de sua condição social. Neto de escravos e filho de um pintor de paredes negro com uma lavadeira portuguesa. Algo nem sempre evidente à primeira leitura é que as dúvidas de Bentinho quanto à fidelidade da esposa estão em parte relacionadas a esse desnível social. Recebeu educação e aprendeu línguas. natureza humana. O ciúme (1896). ligado a determinadas condições de organização familiar e social. litografia do pintor e gravador norueguês Edvard Munch (1863-1944). . mas um sentimento enraizado na história. Machado de Assis lança mão do mesmo expediente. Em Dom Casmurro. ajudando sua escola a se reerguer. refletir um pouco mais sobre o livro. E que história era aquela de beijo. compreendeu que sentimento era aquele que se apossava dele e. o autor determina que os fatos sejam transmitidos ao leitor a partir de um único ponto de vista. aquilo podia ser só uma manifestação de amizade. aquele do narrador. "Pareceu-me que Júlia correspondia ao abraço dele com mais entusiasmo do que devia." . de Moacyr Scliar Nome ______________________________________________ Série ____________________ Ensino ____________________ Estabelecimento ______________________________________ Francesco só teve a ganhar com a leitura de Dom Casmurro. Vamos. Agora. agora. talvez nunca houvesse dúvida sobre sua fidelidade a Queco. Mas não disse nada. tente reescrever o trecho abaixo a partir do ponto de vista de dois outros personagens da história. mesmo no rosto? Não. de lambuja. Você deve ter percebido que a história de Ciumento de Carteirinha é narrada na primeira pessoa do singular. afinal. Dessa maneira. Por meio da história de Machado de Assis. não gostei. arrebatou o prêmio do concurso. Se Júlia narrasse a história.Suplemento de leitura Ciumento de Carteirinha. A Atenção à linguagem 1. Ciumento de carteirinha se constrói a partir de uma sucessão de acontecimentos.________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ 2. ( ) Francesco ganha o concurso. Como você compreende essa expressão? ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ B Entrando na história 4. tirar o corpo fora c. o autor lança mão de uma série de expressões a fim de qualificar as atitudes e personagens. em que se simulará o julgamento da personagem Capitu. Francesco se dá conta de que é o olhar de Capitu que faz brotar o ciúme em Bentinho. os olhos da garota eram "olhos de ressaca". rei na barriga b. Vitório. ( ) Francesco. Ao longo da história. ( ) O teto da escola cai sobre o professor Jaime. ( ) Vitório e Júlia declaram acreditar que Capitu não traiu Bentinho. Júlia e Nanda se mobilizam para ler Dom Casmurro. . Vamos tentar ordenar os fatos da história? Enumere os eventos a seguir conforme a ordem em que aparecem no livro. vira-casaca d. Para este último. ( ) Vitório descobre que há um concurso na cidade vizinha. time ou opinião 3. orgulhoso ( ) livrar-se de alguma situação ou compromisso ( ) ir morar junto. Ao ler Dom Casmurro. ( ) Francesco é chantageado por um grafologista. com prêmio em dinheiro. de Dom Casmurro. ( ) Francesco diz que tem um documento que prova a traição de Capitu. Relacione as expressões listadas abaixo com seus respectivos significados. a. de Machado de Assis. como casal ( ) aquele que muda de partido. juntar os trapinhos ( ) triunfante. ( ) Francesco forja uma carta escrita por Machado de Assis. Por que Francesco é tentado a cometer tamanha fraude? Marque a(s) alternativa(s) que considerar correta(s). Francesco alega ter um documento que comprovaria definitivamente o adultério de Capitu. O livro de Moacyr Scliar apresenta vários casos paralelos de traição ou de ciúme. tente responder às perguntas que seguem. gira em torno da maior dúvida que o romance Dom Casmurro suscita em seus leitores: Capitu traiu ou não traiu seu marido Bentinho? É esta questão que deve ser respondida durante a encenação do julgamento. ( ) Francesco desconfia que Júlia o está traindo com Vitório. na qual o autor incrimina essa personagem. Você lembra que casos são esses? Marque verdadeiro (V) ou falso (F) nas alternativas abaixo. supostamente escrita pelo próprio Machado de Assis. Qual a opinião dos amigos de Francesco no que se refere à fidelidade de Capitu? ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ b. defende que Capitu traiu. Tendo isso em mente. ( ) Porque ele sente ciúme de Júlia com Vitório. ( ) Poucos meses antes do acidente na escola. ele forja uma carta.5. 6. cujo prêmio em dinheiro pode ajudar a reconstruir a escola. O concurso. ( ) Os pais de Francesco sempre brigam por ciúme. por isso. ( ) A cachorrinha Sapeca demonstra ter ciúme do livro que Francesco lê. Como se trata de um blefe. a. . ( ) A professora Sandra traía o marido com o professor Jaime. ( ) Porque ele quer ganhar o concurso a qualquer custo. Por que Francesco decide acusar Capitu? Ele acredita mesmo na culpa dela? ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________ 7. ( ) Nanda sente ciúme de Vitório e. a esposa do professor Jaime o trocara por outro homem. ( ) Porque ele quer se opor aos amigos. vimos Francesco cometer loucuras por causa do ciúme que sentia em relação a Júlia. . Você já passou por alguma situação parecida? Relate essa experiência ou tente imaginar como uma pessoa transfigurada pelo ciúme poderia agir. que defendem a inocência de Capitu. C O escritor é você 8. Boa sorte e mãos à obra! ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ FIM.( ) Porque ele quer enganar os amigos. Em Ciumento de carteirinha. o Expresso Literário é nosso grupo de compartilhamento de ebooks. portanto distribua este livro livremente. de maneira totalmente gratuita. Se gostou do trabalho e quer encontrar outros títulos nos visite em http://groups. Dessa forma. a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. .com/group/expresso_literario/.google.Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar. pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição. Será um prazer recebê-los. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original.