Mithistória

March 18, 2018 | Author: kanon1314 | Category: Medusa, Odysseus


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Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarezMITHISTÓRIA Francisco Murari Pires Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz VENDAS LIVRARIA HUMANITAS -DISCURSO Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil Tel: 3818-3728 / 3818-3796 HUMANITAS – DISTRIBUIÇÃO Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil Telefax: 3818-4589 e-mail: [email protected] http://www.fflch.usp.br/humanitas FFLCH/ US P Humanitas FFLCH/USP – junho 2001 Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez ISBN 85-86087-68-8 MITHISTÓRIA Francisco Murari Pires PUBLICAÇÕES FFLCH/USP São Paulo, 1999 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez Copyright 1999 da Humanitas FFLCH/USP É proibida a reprodução parcial ou integral, sem autorização prévia dos detentores do copyright Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608 P744 Pires, Francisco Murari Mithistória /Francisco Murari Pires. – São Paulo: Humanitas Publicações / FFLCH / USP , 1999. 476 p. ISBN 85-86087-68-8 1. História antiga 2. Mitologia grega 3. Literatura grega 4. Historiografia 5. Tucídides I. Título CDD 930 907.2 HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USP e-mail: [email protected] Tel.: 818-4593 Editor Responsável Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento Coordenação editorial e capa M. Helena G. Rodrigues Diagramação Antonieta Caputo Revisão Mauro de Queiroz Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez Para Iliana, Paulo, Ivan e Adriana “Histórias duram mais que homens, pedras mais que histórias, estrelas mais que pedras. Mas mesmo as noites de nossas estrelas têm limites e com elas passará esta história modelo para uma terra há muito morta. ................................................... ser a história que eu conto àqueles com olhos para ver e compreensão para interpretar; despertá-la sempre e saber que nossa história jamais será interrompida, mas recontada a cada noite, enquanto homens e mulheres lerem as estrelas”. (John Barth, Quimera). Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez Francisco Murari Pires 6 Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez Mithistória Sumário Apresentação ---------------------------------------------------------------------9 I. As Graias: a vigia do acontecer e a história do acontecimento ---- 13 II. A condição humana, entre o Sputnik e Prometeu ------------------- 35 III. Ájax, Atena e os (des)caminhos da métis ----------------------------- 51 IV. O melhor dos aqueus ----------------------------------------------------- 79 V. Menelau, o Herói Segundo -------------------------------------------- 107 VI. Édipo e (o enigma d)a visão das idades ----------------------------- 129 VII. História e epopéia, os princípios da narrativa ---------------------- 147 1. Axiológico (a questão da grandeza)------------------------------- 151 2. Teleológico (a questão do valor-utilidade) ----------------------- 181 3. Onomasiológico (a questão do sujeito) -------------------------- 205 4. Metodológico (a questão da verdade) ---------------------------- 235 5. Arqueológico (a questão do início) e Etiológico (a questão da causa) ---------------------------------- 273 7 Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez Francisco Murari Pires VIII. A retórica do método (Tucídides I.22 e II.35) ---------------------- 277 IX. Memórias tucidideanas ------------------------------------------------- 293 Acasos e anomalias da guerra ---------------------------------------- 293 Péricles e Cleonte, democracia e demagogia ----------------------- 341 X. Leituras da Athenaíon Politeía ---------------------------------------- 385 Perda e redescoberta --------------------------------------------------- 385 Estruturalismos (J. J. Keaney) ----------------------------------------- 409 XI. Leões alados e círculos triangulares ---------------------------------- 433 Referências bibliográficas --------------------------------------------------- 464 8 Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez Mithistória Apresentação Mythhistoricus: assim Francis M. Cornford condensou, já no título, o sentido de sua obra acerca da historiografia tucidideana (Thucydides Mythhistoricus, 1907). Tucídides se dispusera a narrar a história da Guerra do Peloponeso, a relatar os acontecimentos bélicos em sua seqüência fatual. E mesmo teorizara, a melhor fundamentar as ambições de veracidade de seu relato, os princípios de método de sua apreensão reconstituidora pela narrativa. Conseqüentemente, pretendia inaugurar a história opondo-a à poesia épica, especialmente homérica, pela recusa do primado do mito de que ele agora denunciava as limitações de um deficiente (des)apego à verdade dos fatos. Todavia, prisioneiro de seu tempo, instruído por suas categorias e padrões de pensamento, sua obra fora vitimada por verdadeira peripécia irônica afim dos destinos trágicos, pois Tucídides, insciente mas inexoravelmente, acabou por conformar as proposições de sua história no e pelo quadro do pensamento mítico, mais especialmente herdado por meio de seu desdobramento dramático esquileano. Assim, da história da Guerra do Peloponeso, contada por meio dos episódios da campanha de Pilos, do diálogo de Melos e da expedição à Sicília, resultara uma tragédia de Atenas, de que se vislumbravam os desvios hibrísticos de ambições imperiais desmedidas, infladas em sua avidez de ganhos por golpes inesperados de sorte próspera, logo, entretanto, revirada em infortúnio conseqüente à perda de lucidez racional, porque agora a cidade errava em suas decisões. Por aquela apropriada invenção onomástica, com que fundira paradoxalmente história com mito, Cornford anunciava a intriga provocativa de sua obra, a qual respondia por uma teleologia hermenêutica precisa9 Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez Francisco Murari Pires mente circunscrita aos debates intelectuais de sua época. Integrante, junto com Gilbert Murray e Albert C. Cook, do grupo de helenistas, que posteriormente se convencionou denominar os Ritualistas de Cambridge, e que tinha em Jane E. Harrison seu pólo ordenador (a quem, aliás, o Mythhistoricus era dedicado), Cornford investia seu ataque contra a orientação hegemônica do helenismo erudito e acadêmico europeu, que celebrava exclusivamente as glórias racionais do classicismo grego. Tucídides, dado por uma de suas maiores expressões, revelava-se, pela leitura de Cornford, em sua face reversa por modos arcaicos, por raízes míticas, ainda persistentes de emotividades, quem sabe, irracionais. Tese, em 1907, se não atrevidamente herética, certamente de ousadia heterodoxa. Destino de ajuizamento crítico logo confirmado por variadas refutações e recusas do mundo acadêmico que, sucedendo-se pelo nosso século, decidiram desconsiderar seus vislumbres inovadores. O peso da autoridade historiográfica moderna, que identificava em Tucídides uma de suas colunas clássicas, persistia vigoroso. Só mais recentemente, ao passar do fluxo acelerado de mutações e avatares dos paradigmas epistemológicos de nossa época, retomaram-se as contribuições hermenêuticas dos Ritualistas de Cambridge, de modo a, agora, dispensar uma melhor consideração por que possamos apreciar o Mithhistoricus. A coletânea de ensaios que ora apresentamos presta homenagem a Cornford, tomando de sua criatividade a inspiração onomástica intituladora da obra. Assim apropriado o título, a obra investe em suas perspectivas de uma hermenêutica da historiografia grega clássica, antes situando suas significações contra e pelo horizonte de suas ambivalentes heranças míticas, mais especialmente homéricas, do que projetando-as contra e pela identificação das categorias do moderno pensamento historiográfico. Todavia, para nós, apropriação (des)provida de apenas frágil alcance teleológico, que não propriamente o de uma tese estruturada em encadeamentos de uma trama argumentativa como a de Cornford, a suceder seus desdobramentos à maneira do mito trágico, recomendado pela Poética aristotélica. Assim, coletânea de ensaios apenas justapostos, e 10 Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez Mithistória mesmo em ordem seqüencial antes arbitrária, a lembrar mais uma arquitetura labiríntica em que anexos se sucedem, se reformam e se interconectam (ou não) consoante às renovadas e ampliadas necessidades das voltas de uma trajetória histórica, todavia não terminada, em andamento. Por vezes os nexos de trânsito entre eles aparecem, mas não alinhavam um fio de Ariadne. Como no ciclo do mito das Graias, que o tampo de uma pyxis ateniense figura em disposição circular, e como na não menos bela (re)criação literária do mesmo por John Barth, projeta-se uma (inter)ação entre mito e história, em que a seqüência hermenêutica inaugurada pelo que se observa na visão do passado, comunicada pelo que se conta por meio da narrativa do presente e finalizada pelo que se sabe com a meditação do futuro, amolda-se à circularidade de modo a retomar o princípio pelo fim, o passado pelo futuro, e assim figurar um ponto presente no círculo. E interação que assim pretende reatualizar as imagens do passado no futuro de nosso presente histórico através do delicado artesanato historiográfico de sua (re)composição por cenas narrativas em que transparecem os focos de nitidez delimitados pelos alcances de nossa acuidade crítica contra os apagamentos e brancos dispostos pelas figurações memorizadas. Para essa trajetória investigativa, de que agora publicamos os primeiros resultados, contamos com os auxílios financeiros de Bolsas de Pesquisa com que o CNPq a tem acompanhado. A FAPESP proveu-nos os recursos para nossa estada de atualização bibliográfica junto à Fondation Hardt pour les Etudes Classiques (Genebra), entre maio e junho de 1997. Somos também gratos ao Museu Arqueológico Nacional de Atenas que nos concedeu a autorização de uso da cópia fotográfica que ilustra nossa capa na qual figura-se o encontro de Perseu com as Graias (inv. 1291). Haiganuch Sarian e Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes, por zelos amigos, viabilizaram a obtenção da foto. Nossas investigações em alguns destes ensaios, em estado de hibernação por volta de 1997, foram especialmente revitalizadas por fins do inverno e inícios da primavera (setembro) graças a um instigante curso de pós-graduação ministrado na Universidade de São Paulo, Departamento 11 Francisco Murari Pires de História, por François Hartog, a cujas preciosas reflexões hermenêuticas aliadas aos encantos de aprimorada arte narrativa certamente devemos o redespertar de nossos trabalhos. Jandira Albuquerque de Queiroz, Selma Mª. Consoli Jacintho e Maria Helena Gonçalves Rodrigues dispensaram os melhores cuidados por competentes esforços para que Mithistória fosse aprimorado em sua composição final, quer revisando o texto quer concebendo graficamente a obra. Iliana dedicou-se, como mais outra manifestação de amor, a pacientemente empreender a primeira revisão de todos os textos, zelando por sanar seus vícios maiores de redação e de problemática inteligibilidade, todavia por demais renitentes em suas impregnações tucidideanas mimetizantes. A ela esta obra é especialmente dedicada como pequeno géras de gratidão retributiva. 12 Mithistória I. As Graias: a vigia do acontecer e a história do acontecimento * Perseíada1 O tempo passara, duas décadas. O desgaste dos anos alcançara Perseu, já quarentão, gordo, inícios de calvície, juntas enferrujando. Terrível tédio de administrar um reino ordeiro, que se regia sozinho. Por máxima excitação de aventuras, as caçadas de coelhos! A existência, agora, reduzira-se a mesquinharias de convivência doméstica. Já rebeldia dos filhos. Mas, sobretudo, as mazelas do casamento. O atrito dos anos desgastara a paixão. Perseu e Andrômeda eram só brigas e desavenças, plenas de discussões e bate-bocas, provocações irritantes e mútuas desfeitas. Prisioneiro de sua obra heróica, Perseu usufruía a autoridade régia em apenas aprisionar, todas as noites, uma assistência cativa, a aborrecê-la com as histórias de sua vida. E, perdido nessa história, acossado pelas serpentes do passado, o herói estava se petrificando, destino de reversa ironia para quem decepara Medusa, assim passando, agora, de agente a vítima desse efeito. Então, novo percurso da antiga rota, repassando e refazendo os encontros da trajetória heróica original. Perseu e Andrômeda, náufragos rixentos agarrados à velha arca, revivem a exposição primeva. Em Sérifo, * 1 Primeiro publicado em Revista Brasileira de História, 15 (1995): 29-46. Remontagem abreviada do conto de John Barth, incluído na coletânea de Quimera. 13 Francisco Murari Pires as figuras se duplicam: Perseu é também novo Polidectes, Andrômeda é nova Dânae, e Dânao-Dictis, o novo Perseu. Duplicação que prossegue na estada em Samos, no templo de Atena, lugar das instruções da deusa: nova Medusa, de agora ação reversa, a transformar pedra em carne, em vez de vice-versa. Inicia-se a sedução, agora por Perseu, novo Posídon. Depois, entrevista com as Graias desarmadas, revertendo o estilo da ação, direta ao invés de indireta, mais passiva que ativa, com resultado também contrário, a recuperar e devolver o olho das Cinzentas Senhoras. E, por fim, não mais ir à busca de Medusa, mas, sim, ser por ela encontrado e, pelo encontro, inverter seu sentido, a agora efetivar mesmo o amante ao invés do destruidor. Então, reversão da obra decepadora, a desvendar a cabeça velada, selando união amorosa. Obra de reversão do heroísmo, despetrificadora, a terminar a segunda etapa de uma vida mortal, gerando novo homem! Então, fim bem realizado pela (i)mortalidade de destino estelar (in)finito. E, assim, (velho) Perseu, o herói é só memória, bem fixada sua história por cenas murais, painéis de templos marmóreos, que narram alabastralmente os vários capítulos de dourada juventude voadora, pleno obrar de desempenhos virtuosos. Um deles, o sexto, retratava sua visita às Graias: “Meu primeiro trabalho, então, claramente talhado no quarto painel, tinha sido apressar-me de Samos para o Monte Atlas, onde o trio caduco estava nos seus tronos, olhando para tudo em volta, de costas uma para a outra, ombro a ombro como num vil triângulo. A uma pequena distância do seu vértice mais próximo (que por acaso ficava entre a terrível Dino e Péfredo, a do ferrão), escondi-me atrás de uma moita de sarça para fazer um reconhecimento e logo deduzi, considerando o único olho e dente que partilhavam, seu modus normal de circulação. As coisas iam da direita para a esquerda, olho antes do dente antes de nada, num tipo de ritmo assim: Péfredo, digamos, cega e muda, ficava sentada com as mãos no colo enquanto Dino à sua direita, usava o olho o bastante para perscrutar seu setor e Ênio, à sua esquerda, o dente o suficiente para dizer ‘Nada’. Então 14 Mithistória com sua mão direita, Péfredo tomava o olho da mão esquerda de Dino, encaixava-o no lugar e esquadrinhava, enquanto Dino com sua direita tomava o dente da mão esquerda de Ênio, enfiava-o no lugar para dizer ‘Nada’ e passava-o para Péfredo, que passava o olho para Ênio, colocava o dente e dizia ‘Nada’. Assim o relatório se seguia à observação e a meditação ao relatório, exceto quando (conforme soube alguns momentos depois) ao menor alarme qualquer uma das encarquilhadas senhoras poderia, com um toque de ombro, pedir o que qualquer uma das outras estivesse usando. Então, depois de entender o ciclo, eu me aproximei num volteio cauteloso, mantendo sempre à ré o olho, no vértice entre o relator e o meditador; mas quando rocei um seixo com o pé, Ênio, no momento cego, sua mão direita estendida para pegar o olho de Péfredo, deu um tapa em Dino para dar a ré e apanhou o dente também! Joguei-me à sua direita, em Péfredireção no momento em que ela encaixava o órgão; quando estava com o dente para gritar ‘Alguma coisa’, Péfredo me ouvira a seus pés e com um tapinha pediu o olho a Dino, ao mesmo tempo estendendo a mão à direita para o dente-da-sua-vez. Dino, não podendo responder que já tinha devolvido o dente para Ênio, deu tapas nas duas direções; Ênio, recebendo dois tapas, se atrapalhou com as mãos, dando a Péfredo o olho e a Dino o dente; eu mergulhei sob os tronos para o centro; todas deram tapas em todas; olho e dente saltavam em torno, em contracírculos, mas não chegavam a ser colocados por nenhuma delas, pois eram duplamente exigidos antes. Enfiando com destreza, num certo momento, minha mão direita entre a idem de Dino e a esquerda de Ênio, eu interceptei a posse do olho; nenhum problema então, quando Péfredo tentou colocar o inflexível incisivo na gengiva, simplesmente passar por cima do seu ombro e extraí-lo. O painel mostrava-me segurando ambos triunfalmente no alto, enquanto as gritantes Gréias se debatiam, se esparramavam e grasnavam em vão, como garças aleijadas”.2 O ciclo das Graias Na recriação de Barth, o mito das Graias compõe um modo de disposição de vigia voltada para captar o instantâneo do acontecer, segun2 J. Barth. Quimera, p. 56-7. 15 Francisco Murari Pires do configuração sincrônica de ações perscrutantes a apreender essa fugaz realidade fenomênica. Assim, a disposição espacial de seus tronos e corpos, figurando vil triângulo, conforma uma vigia setorizada, a impor uma dependência de complementaridade, que bem abarque a totalidade do campo de manifestação do acontecer. Outra dependência de complementaridade também se impõe para essa vigia, agora suposta pela sua disposição instrumental: o único olho e dente que partilham em rodízio. Pelo olho, enquanto capacidade orgânica de percepção visual, operam a apreensão fenomênica do acontecimento. Pelo dente, enquanto capacidade orgânica de comunicação discursiva, operam seu relato enunciativo. De modo que tem-se três sujeitos a vigiarem o acontecer, mas apenas duas capacidades ativas de vigia – perceptiva e comunicativa –, a impor, necessariamente, um sujeito (in)ativo, o que configura, então, singular estado de (in)ação em (medit)ação. Tais dependências de complementaridade da vigia sincrônica implicam mais outra, disposta agora temporalmente, a conformar a vigia diacrônica, que apreende a realidade duradoura do acontecimento, historicamente memorizada. E assim, por tal norma de circulação da ação vigilante, ordena-se a história do acontecimento, bem dispondo: 1. O Princípio da Vigia, efetuado pela (ação de) visão, a fundar a realidade do acontecimento como percepção. De modo que a percepção inaugura o acontecimento e funda sua realidade. A prioridade, pois, de uma percepção o assinala, a determinar a História enquanto Passado; 2. O Meio da Vigia, efetuado pela (ação de) comunicação, publica a realidade do acontecimento como narrativa, de modo que esta, ao relatálo, disponibiliza sua realidade fatual. A derivação, pois, de uma narrativa o assinala, a determinar a História enquanto Presente; 3. O Fim da Vigia, efetuado pela (ação de) meditação, reflete a realidade do acontecimento como saber. Então, o saber finaliza o acontecimento, bem deliberando sua realidade e, conseqüentemente, orientando a 16 Mithistória ordem da ação seguinte. A prescrição, pois, de um Saber o assinala, a determinar a História enquanto Futuro. Então, concebido o ciclo da vigia do acontecer dotado de extensões temporais por ações que delimitam durações, tem-se a modalidade humana de historiar a realidade do acontecimento, ordenando seqüencialmente o ciclo de percepção, narrativa e saber em desdobramentos de Passado, Presente e Futuro. Então, concebido o ciclo da vigia do acontecer isento dos gravames da temporalidade, de modo a indissociar sincronia de diacronia, tem-se a modalidade divina de mitificar a realidade do acontecimento, a bem (con)fundir Fim com Princípio em Meio, e Futuro com Passado em Presente. A sentinela Agamêmnon, comovido às lágrimas, saudava regozijante seu regresso: nem bem tocara o solo descendo da nau, beijou o pátrio chão. “Mas, de sua vigia, a sentinela o viu, lá postada por ação de Egisto ardiloso, que lhe prometera salário de dois talentos de ouro. E guardava já por um ano, não viesse o que chegava escapar-lhe, e recordasse a valentia vigorosa. E correu ao palácio a noticiar ao pastor de povos. De imediato, Egisto meditou doloso recurso. Separou, dentre o povo, vinte homens, os melhores, armou emboscada, e do outro lado ordenou os preparativos do banquete. Depois, a chamar Agamêmnon, pastor de povos, ele foi com seu carro e cavalos, ofensas a maquinar”.3 3 Homero. Odisséia, IV.521-531 (grifos do autor). 17 Francisco Murari Pires Assim, já Homero diz a concepção tríptica de ações que seqüenciam a vigia do acontecer. As Graias Quem primeiro diz das Graias, as Velhas, é Hesíodo. Conhece duas, nomeadas Penfredo e Ênio. Ésquilo supõe três, sem nomeá-las. Ferecides, a quem provavelmente Apolodoro segue, menciona todas, dando também o nome da terceira: Dino. Já Ovídio diz apenas duas irmãs.4 Geradas da união de Fórcis e Ceto, prolífica em seres monstruosos, elas são chamadas Fórcides. Participam, então, da linhagem de Póntos (Mar), pois este, acasalado à própria mãe, gerara aqueles progenitores. Hesíodo adjetiva-lhes a aparência graciosa de encantos femininos: elas têm “belas faces”, atributo que qualifica igualmente a mãe, Ceto; Penfredo tem “véu perfeito”, e Ênio tem “véu açafrão”. Já Ésquilo concebe-as com “formas de cisne“, dotadas de um só olho comum e de um único dente. Deformidade esta que os relatos de Ferecides e de Apolodoro também consagram: as três tinham apenas um olho e um dente, cujo uso elas partilhavam em rodízio. Outros – Ovídio, Higino e Nonnos – falam somente do olho. Todos, “deuses imortais e homens caminhantes da terra”, diz Hesíodo, identificam-nas como Velhas: “grisalhas de nascença”. Ésquilo assim também as define, dizendo fórmula similar: vetustas virgens. As Graias habitam, diz Ésquilo, a “Gorgonéia Planície de Cistene”, a que se chega atravessando o mar e cruzando o fluxo limite dos continentes, lá onde “nem o sol contempla com seus raios, nem a noturna lua jamais. Perto delas estão as três irmãs aladas vestidas de serpentes, as Górgonas, aos mortais hediondas: homem nenhum que as vir terá alento”. E do sítio das Graias para o das Górgonas, diz Ovídio, caminham “sendas 4 Hesíodo. Teogonia, 270-3; Ésquilo. Prometeu Prisioneiro, 791-800; Apolodoro. Biblioteca, II.4.2; Ovídio. Metamorfoses, IV.774-9. 18 Mithistória ocultas e rotas secretas, por meio de rochedos eriçados de florestas escarpadas”. Então, região de confins do extremo ocidente, pela Líbia: ao sopé do Atlas, ou mesmo no Jardim das Hespérides, confundidas com elas, ou ainda junto ao lago Tritônio. Das tramas que tecem os mitos, as Graias participam daquelas que enredam na história de Perseu a figura de Medusa. Obra inaugural de seu percurso heróico: trazer a Polidectes, rei de Sérifo, a cabeça da Górgona mortal. Mas a direção dos deuses, a quem o herói é caro, favorece o empreendimento, quer guiando-lhe o percurso, quer dispondo-lhe os recursos, quer instruindo-lhe os modos da ação heróica. Atena entrega-lhe brônzeo escudo, polido como espelho, onde pudesse refletir a imagem da Górgona, assim evitando sua funesta mirada petrificante. Hermes cede-lhe foice adamantina, com que decepar a cabeça monstruosa. Mas, o herói teria ainda que munir-se de mais artefatos: sandálias aladas, para os vôos de tão longínqua viagem (de ida, a alcançar e, de volta, a fugir das Górgonas); um alforje especial – kíbisis –, em que guardar a horrenda cabeça; e o elmo da invisibilidade de Hades, a lhe resguardar a fuga, ocultando-a da perseguição das terríveis irmãs imortais de Medusa. Para ir defrontar-se com as Górgonas, Perseu teria antes que passar por suas irmãs, as Graias. Isto porque, diz Ferecides (e também Apolodoro), só elas conheciam os caminhos que levavam às Ninfas, de cuja posse estavam as sandálias, o alforje e o elmo necessitados pelo herói. Já Higino e Eratóstenes, remetendo-se ao que Ésquilo contara nas Fórcides, afirmam como a razão dessa passagem pelas Graias o fato de estas serem as guardas avançadas das Górgonas, sentinelas que vigiavam e defendiam as vias de acesso às suas horrendas irmãs. Assim, Perseu foi ter com as Graias. Ferecides e Apolodoro narram sucintamente o encontro. Perseu subtraiu-lhes o olho e o dente que entre elas circulavam. Elas, surpreendidas, suplicam sua devolução. O herói admite que os detém, mas só os restituiria caso elas lhe revelassem o caminho que conduzia às Ninfas. Elas o indicaram, e Perseu, devolvendo-lhes o olho e o dente, prosseguiu então para as Ninfas. 19 Francisco Murari Pires Já no relato de Eratóstenes, Perseu, quando encontra as Graias, está plenamente armado: obteve o elmo e as sandálias de Hermes e a foice adamantina de Hefesto (assim o dissera Ésquilo nas Fórcides). Mas, dominar as Velhas para livrar a passagem para as Górgonas exigia do herói inativar-lhes a ação de vigia e guarda, em apossando-se das defesas com que elas as realizavam: o olho e o dente comum por que as operavam em rodízio. Perseu assim o fez, recorrendo a manobras astuciosas. “Às escondidas, graças a um hábil ardil, no momento em que uma o transmitia à outra, substituindo sua mão pela mão estendida da Graia”, Perseu apoderou-se do olho, diz Ovídio. Ao rastejamento furtivo de doloso campeão, o qual embosca, com palma cava e punho ladrão, a captura do olho errante da Fórcide insone, alude Nonnos nas Dionisíacas5, assim menosprezando o feminino modo de combate de Perseu, o qual não se pode equiparar aos feitos de Bakchos, o herói por ele celebrado. Então, vencidas as Velhas, o herói atirou o olho ao lago Tritônio, prosseguindo agora para as Górgonas. Desarmadas, em aflitivo desespero, quedaram para sempre as Graias em cena fixada pelos ceramistas.6 E, das Graias, não se diz mais. Cenas figuradas em artefatos imaginaram instantes da trama mítica, delineando percepções da furtiva captura do olho das Graias por Perseu. Em um espelho etrusco comparecem duas Graias, nominalmente identificadas: Ênio, já de posse do dente em sua mão esquerda meio fechada e baixa junto ao joelho, estende a mão direita levantada passando o olho para Penfredo, ao passo que esta, também com o braço direito esticado e a palma da mão disposta para cima em concha, aguarda seu recebimento. Perseu aparece já trajado de recursos e armas: a foice segura pela mão esquerda, o kíbisis dobrado no mesmo braço, as sandálias aladas nos pés e um elmo de escalpo de lobo provido de asas. O herói, protegido por Atena que o guia pela retaguarda, projeta sua mão direita de permeio entre as das 5 6 Nonnos. Dionisíacas, XXV.61-65; XXXI.13-24. Oakley. 1988: 384. 20 Mithistória Velhas, pronto para interceptar a passagem do olho. Preenchem ainda a cena um tritão e um par de golfinhos a comporem a paisagem marítima.7 Uma pyxis ática de figuras vermelhas apresenta as três Graias sentadas em um local rochoso. Compõe-lhes, pelos cabelos negros, uma aparência mais juvenil. Todas portam um cetro. A Graia do meio, por um lado, avança a mão para passar o olho para a Graia da direita, a qual aguarda com o braço esticado, palma da mão para cima; pelo outro lado, ela volta a cabeça em direção da Graia da esquerda, a qual também lhe estende o braço, palma da mão para cima. Perseu – trajando gorro, túnicas e botas aladas, armado de duas lanças na mão esquerda – esgueira-se agachado, interpondo a mão direita no percurso de transmissão do olho entre as duas primeiras Graias. Completa essa primeira cena a presença do movimento de Atena, que vêm à esquerda da última Graia, segurando um elmo coríntio numa mão e uma lança na outra. Outra cena preenche o restante da pyxis, compondo três figuras: no meio Hermes, assinalado pelo caduceu seguro pela mão esquerda; ladeiam-no, sentado à esquerda, Fórcis, de cabelos alvos e portando um cetro, e de pé à direita, Posídon, assinalado pelo tridente; golfinhos saltam ao redor lembrando a paisagem marítima. Velhas Já sua denominação comum, Graíai, nomeia o aspecto que bem define o seu ser mítico: Velhas, Anciãs. Em Homero, graia e grays designam a figura da velha criada de prestimosos serviços e que goza da plena confiança de seus senhores. Assim, é sob a aparência daquela velha serva, que lhe preparava finas lãs, e de quem Helena muito gostava quando ainda se encontrava na Lacedemônia, que Afrodite se apresenta diante da amante de Páris: entendia a deusa que, graças a esta identidade de afeiçoada anciã, Helena confiar-seia a seus pedidos.8 7 8 Oakley. p.383-91; Beazley 1949: 8. Homero. Ilíada, III.383-389. 21 Francisco Murari Pires No retrato homérico da figura da velha criada destaca-se especialmente Euricléia, a solícita e fiel serva, primeiro de Laertes e depois de Odisseu, que dedicava valiosos préstimos aos senhores de Ítaca há longo tempo, desde que, ainda jovem, fora comprada ao pai pelo preço de vinte bois. Laertes mesmo a estimava igual à própria esposa, Anticléia. E esta, assim que acabara de dar à luz, confiou o filho, Odisseu, aos desvelados cuidados da serva. Euricléia, ama-de-leite do herói, o criou. Odisseu a tem afetuosa e respeitosamente como mãe, ao que ela corresponde tendo-o por filho meu. É ela ainda que cuida, também prestimosa, de Telêmaco desde criança, reproduzindo com este novo filho as mesmas atenções de dedicação materna, o que ele lhe retribui com iguais apegos de veneração filial. Criada diligente, fiel, sensata e digna de toda a confiança. Assim, quando Odisseu, ainda sob disfarces de mendigo, aceita que lhe banhem os pés, desde que o seja por uma velha mulher, de prudente discrição cultivada por sofrimentos de longa vivência, Penélope atende a seus reclamos destacando para aquele serviço Euricléia, uma anciã que, observa a fiel esposa, aloja ajuizados pensamentos em seu coração, e a quem, pois, ela podia plenamente confiar as reservas do banho do herói. Auras de afeto, respeito e virtuosidade envolvem a velha ama, senhora venerável, plena de sapiência prudente que a experiência idosa propicia.9 Então, a velhice, que a figura da graía homérica delineia, comporta aspectos benéficos associados a préstimos valiosos e a experiente sapiência. Já outras significações, posteriores, associam graía a certas manifestações, que figuram a velhice pela retração da pele que constitui a membrana superficial dos corpos. Assim, diz Aristóteles, chamam-se graíai (velhas) as crostas que se formam à superfície quando resfria a cevada cozida, fenômeno similar ao que ocorre com a pele humana que, comenta o filósofo, nada mais é do que carne superficial ressecada.10 9 10 Homero. Odisséia, I.425-444; XIX.335-360; 479-502; XXII.391-397. Aristóteles. Problemata, X.27.1; Geração dos Animais, II.6.26. 22 Mithistória Também graía (velha) é chamada a nata do leite, como aquela que repugnou a Menandro, recusando-se a bebê-lo quando, certa vez, ao buscar conforto junto a Glacira, esta lho ofereceu hospitaleira. Mas a cortesã, não satisfeita com a recusa, replicou-lhe que bastava soprá-la, podendo, então, usar o que ficava por baixo, em maliciosa alusão a que ele não se detivesse diante da aparência superficial desagradável da pele enrugada da velha – nata ou mulher –, pois o interior era ainda aproveitável.11 Graía, velha, diz-se ainda da pele humana de dobras formada em torno ao umbigo.12 Igual concepção de repugnância associada à velhice polariza o imaginário que compõe, de modo impiedosamente sarcástico, a caracterização da figura da mulher velha. Já é assim a Cleobule de Arquíloco. Graía é também aquela velha enrugada que, no Pluto de Aristófanes, sustentava generosamente o jovem amante em troca de gratos favores. Mas, o enriquecimento geral promovido pela divindade rompera esse laço aprisionador de amantes, pois o jovem, agora não mais premido pela imperiosa necessidade, desobrigara-se de seus antigos serviços. Outrora, valorosas eram as milésias, com a pobreza fazendo-lhe comer de tudo; mas agora, rico, não apreciava mais lentilhas, pelo contrário, desgostava-o a velha amiga, encanecida, cheia de rugas, por dentes tendo um molar só, borra bolorenta de vinho de que não mais beberia. E foi ela mesma, a velha, a incumbida de, no cortejo festivo que conduzia Pluto à acrópole, portar à cabeça o caldeirão de legumes cozidos. A visão da cena ensejou a Cremilo o jocoso comentário: ocorria a estes caldeirões bem o oposto que aos de outrora, quando a velha (graía: a crosta ressecada do cozido) lhes ficava por cima, pois que agora a tinham por baixo, que os levava. Então, por estas percepções pejorativas, associam-se à velhice que graía assinala aspectos repulsivos, sinais de degenerescência, especialmen11 12 Ateneu. Dipnosofistas, 585c. Bailly. s.v. graia. 23 Francisco Murari Pires te manifestos pela retração da pele que perdeu todo o viço da vida exuberante. Assim, por uma acepção, Graias, as Velhas, lembram Senhoras Venerandas, em que a velhice avançada em anos assinala préstimos valiosos, socorros benfazejos e sensata sapiência. Por outra acepção, Graias lembram Velhas Encarquilhadas, em que a velhice de rugoso definhamento assinala o anúncio da morte. Pela primeira acepção, velhice é objeto benévolo, em que se confia plenamente. Pela segunda acepção, velhice é manifestação maligna, que se evita repulsivamente. Por um lado, velhice acolhe e protege a vida, e por outro, antecipa e ameaça a morte. Fórcis Da velhice que define o ser das Graias, dizem já especialmente os mitos do pai, Fórcis. Hesíodo dá Fórcis como filho gerado por Póntos unido à mãe Gaia, o que o situa, portanto, na linhagem do Mar. E foi como divindade marinha que Fórcis ficou consagrado em todas as tradições antigas. Assim, lexicólogos e escoliastas tardios, associando sua figura mítica com o veloz fluxo das correntes oceânicas, buscavam em phéro e phorein (levar, transportar) a justificativa etimológica de seu nome; ou também propunham a sinonímia que identificava em phórkes um peixe do mar, charakes. Associações marinhas que, por um viés, percebiam o mar em aspectos benéficos para o humano, o que Opiano sintetizou ao se perguntar se não fora Fórcis quem ensinara aos homens a pesca e as demais lides do mar. Mas, um outro viés de associações supunha, antes, o mar percebido em aspectos maléficos, destruidores. Como na qualificação de odiosa água com que o distingue Fânocles. Assim, identificavam-se com o nome de Fórcis localidades rochosas, de recifes ou de encostas litorâneas, ruínas para navegantes que contra elas naufragavam. Era nas costas da Eubéia, 24 Mithistória entre escarpas ásperas e montes cavernosos, que Lícofron refere a morada de Fórcis, lá mesmo onde ressoavam, confundidos com os rugidos de rebentações que turbilhonantes refluxos arrastavam, quantos gemidos de aqueus regressantes de Tróia: Náuplio, o Destruidor, em raivosa vingança pela morte do filho, Palamedes, desencaminhara seus navios contra as rochas, guiando-os pelo engodo de um fogo sinaleiro.13 E, como se chamavam mesmo, à entrada do Bósforo, aquelas rochas caminhantes, que esmagavam em seu entrechoque os navegantes que por elas se aventurassem, as Simplégades? Diz Carístio que os homens as chamavam Ciáneas, mas os deuses, Portas de Fórcis. Divindade marinha, é pela velhice que bem se identifica Fórcis. Assim o afirma a sinonímia proposta por Hesíquio, a qual entende phorkón por leukón, polión, rysón: embranquecido, grisalho, enrugado. Então, a figura do Velho do Mar fornece a concepção com que os comentadores antigos glosavam o nome e explicavam o personagem mítico de Fórcis. Daí, as equivalências, por eles operadas, entre Fórcis e outras nomeações do Velho do Mar. Hesíquio, e também o parafraseador de Lícofron, o identificam com Nereu. O escoliasta de Apolônio Ródio o dá como Proteu, identificação esta também afirmada por Artemidoro ao dizer que ele tinha igualmente o dom da mutação, como Proteu e Tétis. Dionísio de Bizâncio comenta que o Velho do Mar é dito Nereu por uns, Fórcis por alguns, e Proteu por outros. Já Apolônio Ródio, narrando a passagem dos Argonautas pelo lago Tritônio, conta que os heróis, após serpentearem a Argo o dia todo errando pelo lago, propiciaram, súplices, a divindade das águas que, então, os tirou do impasse de sua viagem, conduzindo-os ao mar aberto. Mas esse deus, Jasão não sabia ao certo como nomear em sua prece: se Tríton, se Fórcis, ou se Nereu?14 Assim, Fórcis, Proteu, Nereu, tantos nomes do Velho do Mar. 13 14 Lícofron. Alexandra, 373-386. Apolônio Ródio. Argonáutica, IV.1537s. 25 Francisco Murari Pires Fórcis, em Homero, é uma vez referido como pai da ninfa Toosa, de quem Posídon gerou Polifemo, o mais poderoso dentre todos os ciclopes. Diz, então, que ele reina sobre o mar incansável.15 Depois, Fórcis nomeia a enseada onde ancoram os navios em Ítaca, lá mesmo onde os feácios desembarcaram Odisseu, consumando o regresso do herói ao lar, após longa errância de atribuladas aventuras. Dois promontórios escarpados projetam-se protetores, resguardando a enseada das ondas elevadas por ventos potentes, assim, separando do exterior de mar encapelado o interior de ancoragem abrigada. No topo, uma oliveira estende as folhagens. Perto, uma gruta adorável, sombria, consagrada às Ninfas, chamadas Náiades: provida de pétreas crateras e ânforas bialadas; de favos de abelhas; de alongados teares líteos, em que as ninfas trançam tecidos marinho-purpúreos; de fontes sempre fluentes; e de duas portas, uma para o lado de Bóreas, por onde entram os homens, e a outra, para o lado de Noto, reservada a deuses imortais. Paragens de natureza civilizada, onde o inóspito de penhascos escarpados atua como proteção de abrigo; onde disposições líteas conformam artefatos; onde púrpura marinha, mel e água dão-se inesgotáveis; e onde oliveira tudo encima. Lugar sagrado em que o humano contata o divino, por sacrifícios às Náiades ofertados. Aqui, Fórcis é dito, por Homero, Velho do Mar.16 Velho do Mar, em Homero, é também e plenamente Proteu. Ele aparece no episódio do retorno de Menelau, em que o herói encontrava-se retido na ilha de Faro, ao largo do Egito. No impasse da viagem, uma divindade o favorece: Idótea, comovida pela aflição do herói desejoso do regresso. Ela era filha de Proteu, o Velho do Mar. O pai, revela a deusa a Menelau, conhecia as profundezas do mar todo, e poderia, pois, dizer-lhe a via do retorno: rota e distância a percorrer, e como ir pelo mar piscoso. E poderia também inteirar-lhe de tudo que se passava em seu palácio desde que o herói partira, bem como revelar-lhe ainda o desagrado divino que causava a sua retenção naquele local. 15 16 Homero. Odisséia, I.72. Homero. Odisséia, XIII.96 e 345. 26 Mithistória Saber, portanto, mântico, pois ciente de todo acontecer, quer passado, presente ou futuro. Saber divino inalcançável pelo humano. Mas, o velho era sabido em manhas, perito em artes dolosas, e comprazia em esquivar-se às revelações de seu espírito por meio de ardis de inúmeras mutações, pelas quais assumia todas as formas, seja de quantos seres rastejam sobre a terra, seja da água, seja do fogo. Idótea, então, aconselhou o herói a ardilosamente emboscar-se e apanhar Proteu durante o sono, que ele costumava diariamente dormir em terra sob cavos antros. Haveria, então, que prendê-lo fortemente por todas as suas mutações, só o libertando quando ele se dispusesse a falar, retomando a figura original. Agora o interrogasse, pois ele lhe livraria as revelações que seu espírito guardava. E assim procede Menelau, e assim o saber de Proteu tirou o herói do impasse de sua viagem marítima. Aqui, várias identificações qualificam o Velho do Mar: egípcio, imortal e divino, potente e infalível.17 E ainda em Homero, Velho do Mar é também o pai de Tétis e suas irmãs Nereidas, que a seu lado habitam as profundezas.18 Nereu, implicitamente suposto pelo dizer homérico, nomeia expressamente o Velho do Mar em Hesíodo.19 Diz que ele é o mais idoso dos filhos de Póntos. Diz que ele é apseudés e alethés. Diz que o chamam Velho. E explica, dando a razão: porque “infalível e bom, nem os preceitos olvida, mas justos e bons desígnios conhece”. E diz, ainda, que ele é irrepreensível, ao lembrar suas filhas, as Nereidas, cinqüenta “virgens sábias de ações irrepreensíveis”. Nereu, então, como Velho do Mar, figura a essência da palavra de ação oracular.20 Manifestação de palavra inequívoca, antes mesmo indizível 17 18 19 20 Homero. Odisséia, IV.365s. Homero. Ilíada, I.358 e XVIII.36. Hesíodo. Teogonia, 233-236; 263-264 (tradução de Jaa Torrano). M. Detienne. 1967: 28. 27 Francisco Murari Pires em suas qualificações, pois se qualifica apenas pela negação e privação das (des)qualificações que limitam a palavra humana: a-lethés, a-pseudés, amýmon, ne-mertés (sem esquecimento ou ocultamento, sem logro ou engano, sem falha ou falta, sem erro ou equívoco, sem reparo ou repreensão). Nereu, ser e saber benevolente, sempre atualizando justiça. Nereu, Senhor da Verdade e Agente da Justiça, compõe a figura do Velho do Mar por modelares competências de benfazeja realeza, propícia em sua benignidade. De Nereu contam-se ainda os modos protéicos. Assim, ele comparece na narrativa do décimo primeiro trabalho de Héracles – a colheita das maçãs douradas das Hespérides –, registrada já por Ferecides e também fixada por Apolodoro.21 Diz-se que o herói, após cruzar o Equedoro, onde duelou com Cicno, e atravessar a Ilíria, encontrou-se com Nereu no sítio em que as Ninfas, filhas de Zeus e Têmis, lhe revelaram junto ao Erídano. Héracles, então, o agarrou à força enquanto ele dormia e, por mais que o deus se transmutasse em todo tipo de formas – Ferecides lembra a metamorfose em água e em fogo, como o Proteu de Homero –, não o soltou até que o Velho, retomando a aparência anciã, lhe ensinasse onde encontrar as Hespérides e suas maçãs de ouro. Tais são os aspectos da velhice que o dizer dos mitos compõe em figuras. Fórcis, o pai das Graias, é Velho do Mar, ancião valioso por sua sabedoria mântica, conhecedor dos recônditos dos caminhos marítimos, conhecimento este que desfaz impasses, livrando saídas ao percurso heróico. Figura, pois que guarda as secretas vias marinhas, por quem necessariamente passa o acesso do herói à realização de seu feito. Mas, êxito de passagem que supõe o domínio da velha figura de guarda, que só disponibiliza suas revelações se imobilizada em prisão de forte abraço, que não lhe permite escapar em suas várias mutações. Similarmente, as Graias, também Velhas, constituem, para a obra heróica de Perseu, a passagem do feito inaugural: ou, na concepção de Ferecides, porque elas guardam as revelações das vias que conduzem às 21 Apolodoro. Biblioteca, II.5.11. 28 Mithistória Ninfas, ou, na concepção de Higino e de Eratóstenes, porque, sentinelas avançadas das Górgonas, elas lhes defendem o acesso. E êxito de passagem que exige dominar as Graias, inativá-las, aprisionando suas capacidades de vigia e guarda, privando-as do olho e do dente por que as efetuam. E domínio que reclama os desempenhos astuciosos de emboscadas inesperadas, flanqueando sinuosamente os cuidados vigilantes da Velha Figura. Empreendimento, então, que envolve obstáculos, depara ameaças, enfrenta perigos, interpondo, assim, na trajetória do percurso heróico uma outra prova. O que remete para o aspecto negativo, destruidor, que o ser velho das Graias também anuncia: o risco da morte. Dos riscos da morte dizem bem os nomes das Graias. Nomes Os nomes das Graias enunciam seres negativos, destruidores, mortíferos. Já os comentadores antigos, uma vez que as Graias eram divindades marinhas, buscavam as etimologias de seus nomes em associações que imaginavam os perigos do mar. Derivavam Pephridó de phríssein (eriçar, arrepiar, estremecer), vendo em Penfredo os tremores medrosos dos navegantes em mares tempestuosos. De en-aúo (gritar, bradar) derivavam Ênio, a indicar a gritaria dos náufragos. E por dinos (torvelinho, redemoinho) entendiam em Dino os turbilhões marinhos. Ora, pemphredón, anota o escoliasta de Nicandro de Cólofon, é uma espécie de vespa, pouco maior do que uma formiga, porém menor do que uma abelha, preta e branca, aninhando em carvalhos ocos. Para deter as dores de sua venenosa ferroada, Nicandro receita óleo comum misturado com vinho, ou xarope misturado com neve.22 Ênio, em Homero, nomeia a divindade belicosa, destruidora de cidades, que ao lado de Ares comanda guerreiros, trazendo consigo o impu22 Nicandro. Alexipharmaca, 178-185; 537-550; Theriaca. 805-816. 29 Francisco Murari Pires dente Tumulto da Matança. Diz Ésquilo que, por ela, associada a Ares e a Derrota sanguinária, juram, mergulhando as mãos em sangue sacrificial, os campeões de Polinices, ao atacarem Tebas: ou a arrasariam, ou pereceriam regando o chão com seu próprio sangue.23 E Quinto de Esmirna a descreve a circular regozijante em meio aos combates, o suor medonho a escorrer-lhe pelos membros, com os ombros e mãos borrifados de dolorido sangue empoeirado: chama-a de “irmã da guerra”.24 Dino é a Terrível. Seres de negação e ruína, portadoras de morte, as Graias ocupam consentâneo espaço: a Gorgonéia Planície de Cistene, justamente além do fluxo limite dos continentes. A qualificação gorgonéia do lugar sela, de imediato, os sentidos de ameaça mortífera. Região trevosa, de permanente noite, privada de toda a luz, quer solar diurna, quer lunar noturna. Confins de extremo ocidente-poente que a corrente de Oceano cerca e limita, separando o espaço para cá, onde se confina a vida, do espaço para além, que sedia a morte. Lugar de morada próprio de Deusas por três modos afins das Górgonas: por filiação e linhagem, pois são irmãs, geradas de Fórcis e Ceto; por contigüidade, pois habitam perto; e por finalidade, pois as Graias guardam o acesso às Górgonas. Então, dos riscos da morte circundante dizem os nomes das Graias. Mortíferas divindades marinhas, as Graias bem pertencem à linhagem dos monstros do mar. Ceto Monstro do mar é especialmente Ceto, a mãe das Graias. Hesíodo tem Ceto por filha de Póntos e Gaia, como Fórcis, de quem ela, acasalada, gera variada prole de monstros: Graias, Górgonas, Cérbero, 23 24 Ésquilo. Sete contra Tebas, 45s. Quinto de Esmirna. Queda de Tróia, VIII.425s. 30 Mithistória Esfinge, Quimera...25. Todavia, o poeta épico, compondo seu verso hexâmetro, qualifica-a pelo epíteto de “belas faces”, atributo este com que Homero memoriza um dos aspectos da graciosa beleza feminina. Divindade marinha, o escoliasta glosa seu nome por “as funduras”. Ketos é o designativo dos monstros aquáticos em geral, seres enormes que vivem na água (baleia, crocodilo, hipopótamo ...). Assim, refere o monstro marinho que Posídon envia, junto com inundações, a devastar reinos de ímpios mandatários, contra eles furioso por terem ofendido as honras divinas. A ação mítica do cetáceo exige o sacrifício da filha do rei em exposição ao monstro, salva, entretanto, pela chegada providencial do herói. Tais são as histórias de Andrômeda e Perseu na Etiópia, e de Hesíone e Héracles em Ílion. Em particular, keto designa a foca, como no episódio do encontro de Menelau com Proteu, em que o Velho do Mar aparece protetoramente cercado em seu sono por um bando delas. Tidas por rebentos da bela deusa marinha, elas emergem do mar grisalho a exalar o acre odor das profundezas. Por este fedor – o mais funesto, terrivelmente opressor –, elas se constituem em companhia monstruosa, insuportável para o humano. Barreira de odores mortíferos que defende o sono de Proteu. Atravessar incólume tais ares pestilentos requer do herói o socorro divino: inalar o antídoto preparado com ambrosia imortal de bem doce fragrância.26 Então, ketos aplica-se comumente a tudo o que se refere aos peixes do mar que se distinguem pelo seu enorme tamanho, como a baleia e o atum. Essa, sua monstruosidade própria: a forma enorme, volume cavernoso e profundo, receptáculo ruinoso, precisamente como é dito o Cavalo de Tróia por Quinto de Esmirna: cavalo cetáceo.27 25 26 27 Hesíodo. Teogonia, 238s. Homero. Odisséia, IV.446s. Quinto de Esmirna. Queda de Tróia, XII.314. 31 Francisco Murari Pires Velhas de nascença Que monstruosidades distinguem as Graias? A descrição hesiódica, calcada no procedimento narrativo formular do epíteto épico, compõe a figura das Graias por aparências de formosura, graça e encantos femininos: “as belas faces” (como já Ceto, a mãe), “o véu perfeito” de Penfredo, e “o véu açafrão” de Ênio. Atrativos femininos sedutores, que contrastam com as figuras de monstruosidade que envolvem a descendência originada da união amorosa de Fórcis e Ceto, descendência esta que Hesíodo arrola bem em seguida à menção das Graias. Contraste de beleza e monstruosidade que a razão excludente do escoliasta recusou, dispondo-se à correção do texto hesiódico, de modo a restringir apenas a Ceto o atributo das “belas faces”. Mas, contraste comum ao épos mítico, que por ele também assim diz de Medusa. Em Ésquilo, domina já a concepção da monstruosidade. Monstruosidade implicada pelo hibridismo da forma císnea, se bem que, por tal forma mesma, as Graias ganhem também aspectos de graciosa, majestosa e elegante aparência. Auras de monstruosidade intensificadas pelas estreitas afinidades que aproximam as Graias de sua horrendas irmãs, as Górgonas. E monstruosidade especialmente marcada pela deformidade corpórea que singularmente as estigmatiza: o único olho e o único dente, de que as três são dotadas em comum. O cisne, pela tonalidade de sua plumagem, é dito grisalho, sendo, pois, signo de velhice. Também pelo canto o cisne lembra a morte, pois seu canto tem valor mântico, anuncia a aproximação da morte: seja porque, supõem os homens comuns, o cisne, quando chega sua hora, tomado de tristeza, entoa trenos lamentadores; seja porque, entende o filósofo, pelo contrário, então regozijante, antes saúda a morte, pois, sagrado servidor de Apolo, é presciente dos bens, que com a passagem para o Hades, advêm. Canto, portanto, de vate profético, que a figura mítica de Orfeu especialmente assinala: de cisne é a nova vida que sua alma escolhe no Hades, a manter os hábitos do viver anterior, 32 Mithistória em distintivo contraste com a escolha do vate rapsódico, Tamiras, que prefere a vida do rouxinol.28 O cisne lembra, também miticamente, a realeza. Cicno, Cisne, nomeia filhos de divindades (Apolo, Ares, Posídon), cujas mortes às mãos de heróis (Héracles, Aquiles) suas histórias memorizam. Assim compõem-se, nos mitos da realeza sagrada, os atos rituais de eliminação violenta do rei no combate ou confronto em que se disputa o poder régio, segundo o princípio mesmo que ordena o modo mítico de sucessão da realeza. Então, o canto do cisne anuncia e celebra a morte anual do rei sagrado, consoantemente metamorfoseado nessa ave mesma. Particularmente, as tradições da realeza espartana destacavam essa significação da figura do cisne: de Zeus-Cisne, que sob essa forma seduz Leda, mulher de Tíndaro, rei de Esparta, descendem Helena, Castor e Pólux. Então, pela velhice císnea associam-se às Graias lembranças da morte ritual da realeza. E, mais especialmente, a velhice monstruosa das Graias é composta pelo singular modo que bem as define: elas são as Velhas enquanto “grisalhas de nascença”. Nelas a velhice, que o encanecimento manifesta, provêm de, ou vêm com o nascimento. E, na fórmula similar de Ésquilo, elas são as Velhas enquanto “vetustas virgens”, de modo que a potência juvenil de virgindade procriadora é dada pelo definhamento vetusto infértil. Assim, o ser e a natureza monstruosa das Graias bem se define por essa singular velhice, justamente composta pela união de vida e morte, porque se (con)fundem, indissociados, o que é nascimento e, pois, princípio, com o que é morte e, pois, fim do existir humano. Da (con)fusão de Princípio (Passado) e Fim (Futuro), então referida à concepção de temporalidade composta pela História enquanto memória do existir humano, diz similarmente a recriação do mito das Graias por Barth. Platão. República, 619s. 33 28 Mithistória II. A condição humana, entre o Sputnik e Prometeu * Outubro de 1957, o Sputnik em órbita terrestre. Hannah Arendt, maravilhada pelo evento, apreende seu fascínio pela reflexão do discurso. O fascínio do evento: um marco de princípio, ato inaugural, início, começo de uma outra realidade da vida humana situando uma nova era: “O primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na Terra”.1 O lançamento do Sputnik dispara o movimento de projeção da vida humana no espaço. O que, enfocado em sua face reversa, implica a saída da Terra enquanto o lugar do viver humano. O homem, agora, liberta-se de uma de suas prisões, um de seus grilhões que, até então, constituía uma das condições necessárias do seu viver: o homem liberta-se da Terra enquanto o hábitat necessário da existência humana. O viver humano pode, assim, deixar de supor a Terra como seu lugar de existir. A Terra pode deixar de ser condição da humanidade. Mas a Terra sempre foi “a própria quintessência da condição humana, e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um hábitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício”.2 Projetar a vida humana no * Primeiro publicado em L.O. Felix e M. B. Goettems Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1989, p. 44-53. Hannah Arendt. A condição humana, p. 9. Idem, ibidem. p. 10. 35 1 2 Francisco Murari Pires espaço, isto é, para fora da Terra, implica, então, a necessidade de um outro homem, de um homem futuro, cuja, natureza de ser vivo, cuja constituição de organismo vivo, não fique mais circunscrita às condições (im)postas pela natureza terrena. Mas essa criação do homem futuro, essa produção de uma nova natureza humana constituindo uma outra modalidade de organismo humano vivo, já está também em curso graças a uma outra conquista da ciência moderna, graças a um outro feito libertador da tecnologia científica. Trata-se da artificialização da própria vida humana, esse feito tecnológico da engenharia genética: “Recentemente, a ciência vem se esforçando por tornar artificial a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes, a fim de produzir seres humanos superiores e alterar-lhes o tamanho, a forma e a função; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos”.3 A geração criadora de vida, esse último refúgio que a natureza ainda mantém no homem, esse último ponto de contato do homem com o mundo animal (o fato natural da reprodução sexuada), passa, agora, a ser um produto artificial: a vida não mais como algo que nos foi dado, propiciado, posto e imposto pela natureza, mas antes algo criado, produzido inaturalmente pelo homem. O homem é agora Deus: não mais somente agente reprodutor da vida humana dada naturalmente, mas agente gerador, criador de vida. E há, ainda, outra conquista do moderno saber científico, outro feito potencialmente libertador da moderna tecnologia científica: o advento da automação no âmbito da produção: 3 Idem, ibidem. p. 10. 36 Mithistória “Mais próximo e talvez igualmente decisivo é outro evento não menos ameaçador: o advento da automação, que dentro de algumas décadas provavelmente esvaziará as fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. Mais uma vez, trata-se de um aspecto fundamental da condição humana”.4 Com a automação da produção consumada pelo movimento de industrialização na modernidade, o trabalho humano, desenvolvendo ao máximo suas capacidades produtivas, termina por “negar-se a si mesmo, termina por abolir a sua própria necessidade”.5 Ora, mas os progressos da ciência moderna e seus feitos tecnológicos constituem um movimento de dupla face em termos da efetividade que ele pode produzir ou desencadear: trata-se de um movimento tanto potencialmente positivo quanto negativo. A ciência moderna tanto pode ser efetivada enquanto instância geradora de vida humana, enquanto instância criadora do homem novo, quanto, pelo contrário, igualmente “destruidora, aniquiladora de toda forma de vida orgânica da Terra”.6 Tal é o dado angustiante posto pela física atômica para o nosso viver quotidiano. O saber que a ciência moderna constitui pode, ainda, ser tanto agente de libertação do homem quanto, pelo contrário, instância aprisionadora, escravizadora do homem, que o oprime e nega enquanto agente determinante que comanda suas próprias ações, sua própria prática: “O problema tem a ver com o fato de que as verdades da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio...Ainda não sabemos se esta situação é definitiva; mas pode vir a suceder que nós, criaturas humanas que nos Idem. Entre o passado e o futuro, p. 12. Idem, ibidem. p. 45. Idem, ibidem. p. 11. 37 4 5 6 Francisco Murari Pires pusemos a agir como habitantes do universo, jamais cheguemos a compreender, isto é, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entanto, somos capazes de fazer. Neste caso, seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máquinas que pensassem e falassem por nós. Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de knowhow) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso knowhow, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja”.7 E ainda a ciência moderna pode tanto realizar, consumar, as aspirações mais arraigadas do viver humano, tornar realidade seus sonhos mais desejados – a libertação do trabalho – quanto, pelo contrário, esvaziar totalmente o sentido do viver humano, tornar a vida humana algo inócuo, frustrante, sem valor e sublimação: “A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chega num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena constituir essa liberdade...O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior”.8 Assim, o momento presente, atual, posto pela modernidade para o viver humano, é crucial: está em jogo o futuro da vida humana. E também momento angustiante, porque pólos exatamente opostos, mutuamente 7 8 Idem, ibidem. p. 11. Idem, ibidem. p. 12-13. 38 Mithistória negadores, descortinam-se para o homem do presente como alternativas igualmente possíveis de equacionar seu destino futuro: as opções de nossa decisão oscilam entre criação e geração do homem novo, ou destruição e aniquilação, desaparecimento total; entre libertação ou escravização do homem; e entre realização consumadora das mais sonhadas aspirações do viver humano, ou esvaziamento e frustração do sentido e valor desse viver. Mas, no decorrer da modernidade, a proposição de criação do absolutamente novo, de instauração de uma origem marcando um recomeço da história a efetivar uma nova era, essa proposição distingue uma particular modalidade de prática política: a revolução. Em Marx, no Dezoito Brumário, ela assume sua formulação talvez a mais radical: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada...A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar o seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos”.9 Mas, pergunta-se Hannah Arendt, qual é o ideal de sociedade de Marx que, produto da obra da revolução, “cria o que jamais existiu na história”: 9 K. Marx. Dezoito Brumário, p. 17-10. 39 Francisco Murari Pires “Na filosofia de Marx, que não virou Hegel de cabeça para baixo tanto assim, mas inverteu a tradicional hierarquia entre pensamento e ação, contemplação e trabalho, e Filosofia e Política, o início feito por Platão e Aristóteles demonstra sua vitalidade, ao conduzir Marx a afirmações flagrantemente contraditórias, principalmente na parte de seus ensinamentos usualmente chamada utópica. As mais importantes são suas predições de que, sob as condições de uma humanidade socializada, o Estado desaparecerá, e de que a produtividade do trabalho tornar-se-á tão grande que o trabalho, de alguma forma, abolirá a si mesmo...Essas afirmações, além de serem predições, evidentemente contêm o ideal de Marx da melhor forma de sociedade. Como tal, não são utópicas, reproduzindo antes as condições políticas e sociais da mesma cidade-estado ateniense que foi o modelo da experiência para Platão e Aristóteles e, portanto, o fundamento sobre o qual se alicerça a nossa tradição. A pólis ateniense funcionou sem uma divisão entre governantes e governados e não foi, assim, um Estado...Os cidadãos atenienses, além disso, eram cidadãos apenas na medida em que possuíssem tempo de lazer, em que tivessem aquela liberdade face ao trabalho que Marx prediz para o futuro”.10 Pois, que forma de estruturação político-social a pólis grega conceitualizou? A pólis, afirma Hannah Arendt, antes de mais nada fundase na dissociação entre público e privado. O domínio privado – a esfera da casa, da comunidade familiar – é definido como o campo da necessidade. O domínio privado destina-se, então, ao atendimento das coações que o mero viver, que a simples reprodução da vida, impõe: a manutenção e subsistência da vida individual e a garantia da sobrevivência da espécie (a produção alimentar, mais a reprodução sexuada). O domínio público, pelo contrário, é distinguido pela ausência da necessidade. O domínio público é o campo da liberdade. Espaço de interação de cidadãos, singularizados como homens livres pela sua condição de disponibilidade para a política, para o viver na pólis. O domínio público é que propriamente identifica e corporifica a pólis. Mais do que excluir o privado, o domínio público o supõe. A liberdade, enquanto fenômeno essencialmente político, só se efe10 H. Arendt. Entre o passado e o futuro, p. 45. 40 Mithistória tua e realiza no domínio público. Daí que a liberdade implica a liberação do trabalho. Mas, então, a liberdade impõe, como sua condição, o controle e o domínio da necessidade: é preciso, para ser livre politicamente, libertarse das coações que a necessidade instaura. Na forma que a pólis cria, essa libertação se realiza por meio da sujeição, ou seja, por meio da imposição do trabalho a outrem. De forma que a categoria dos livres constitui concomitantemente o seu reverso: os não livres. De modo que a liberdade assenta na dominação. Assim, a relação mando/obediência, que a dominação define instituindo a oposição senhor/escravo, é a relação constitutiva do âmbito privado. Portanto, na pólis a dominação situa-se anterior e exteriormente ao domínio público, à esfera da política. No âmbito público, na esfera da política, reina a liberdade e, com a liberdade, a igualdade, a isonomia, instituindo uma forma de organização política na qual os cidadãos convivem à margem de todo poder, sem uma divisão entre governantes e governados.11 Assim, o ideal de sociedade de Marx – a eliminação do Estado e a ausência do trabalho – foi historicamente realizado pela pólis grega. Desvanece-se, então, o fascínio inaugural que a tradição revolucionária, projetada por Marx, avocava para si enquanto proposta de criação do absolutamente novo na história. Trata-se de um equívoco, um equívoco de ignorância, ou seja, um equívoco que ignora a pólis. O que essa tradição revolucionária coloca como o fim da história, nada mais é do que o seu princípio. Pesou contra Marx, sentencia Hannah Arendt, “a vingança da tradição”, operante contra todos aqueles que, não só Marx mas também Kierkegaard e Nietzche, ousaram desafiar a tradição no século XIX. Pois, para inverter a hierarquia conceitual da tradição, para pôr Hegel de cabeça para baixo, o preço pago como tributo foi o ter que supor os próprios conceitos da tradição que se pretendia inverter. O desafio destruidor da tradição, ao operar a crítica da tradição, o faz, entretanto, no quadro das categorias e conceitos postos pela tradição. De modo que a crítica movida 11 H. Arendt. A condição humana, p. 36-37. 41 Francisco Murari Pires pelos agentes destruidores da tradição no século XIX, embora teça o fim da tradição, não rompe com ela, nem quebra sua existência, antes a prolonga e a faz perdurar na crítica e pela própria crítica. Daí o irônico paradoxo, verdadeira peripécia trágica que se teve como desfecho exatamente oposto ao pretendido pela crítica da tradição: a tradição vive, se reproduz, no corpo mesmo daqueles que a matam. A narrativa hesiódica do mito de Prometeu, presente na Teogonia 12, busca apreender a percepção grega da condição humana. Trata-se de um mito etiológico que explicita o princípio que dá a razão da distinção, da diferenciação da condição humana em oposição à divina e, concomitantemente, explica a origem da modalidade grega da prática dos sacrifícios em oferenda às divindades. O mito relata o episódio da disputa e confronto doloso, astucioso, trapaceiro, onde medem-se e confrontam-se as métis de Prometeu e de Zeus. Ambos os jogadores buscam, por meio de lances de intenções sinuosas, verdadeiras manobras de dissimulação trapaceira, ludibriar o adversário, almejando, dessa forma, ganhar vantagens e benefícios em detrimento do outro. Prometeu joga favorecendo a condição humana; Zeus resguarda a superioridade da condição divina. É Prometeu quem toma a iniciativa do primeiro lance do desafio. Ele partilha o boi em dois quinhões: um constituído pelas carnes e vísceras, o outro, pelos ossos; a seguir oculta a manifestação aparente desses quinhões, recobrindo-os por outra aparência, dissimuladora: as carnes e as entranhas com a pele e o ventre do boi; já os ossos com a brilhante banha. Propõe, então, a Zeus que escolha um dos dois quinhões, “aquele que nas entranhas te exorta o ânimo”.13 Pelos valores projetados pela ótica de quem propõe o jogo, ou seja, pelo olhar de Prometeu, que cuida de beneficiar o gênero humano, trata12 Para a análise do mito hesiódico vejam-se os estudos de Jaa Torrano. O sentido de Zeus, p. 43-50, e de Jean-Pierre Vernant. The cuisine of sacrifice..., p. 21s. Hesíodo. Teogonia, v. 549. Todas as traduções da Teogonia por nós citadas são de autoria de Jaa Torrano. 42 13 Mithistória se de uma partilha desigual, de uma divisão em porções desiguais, porque apreciadas, pelo e para o gênero humano, como compondo valores opostos: partes boas, superiores (carnes e entranhas), contra partes ruins, inferiores (ossos). Tal apreciação valorativa implicitamente supõe a valorização do boi enquanto alimento para o gênero humano, distinguindo entre o apropriado e o inaproveitável em termos comestíveis. Assim, no princípio do jogo doloso, é posta como princípio da condição humana a identificação da sua específica propriedade alimentar, todavia, produto resultante do desfecho do jogo. Portanto, princípio alimentar teleológico. Mas a decisão dessa divisão e distribuição das partes compete a Zeus, a quem Prometeu reconhece a autoridade que a sela. Daí o dolo perpetrado ao dissimular e enganar a aparência dos quinhões: a porção melhor (as carnes e vísceras), ou seja, a porção desejável, é dissimulada e desmentida pela aparência do que é pior, rejeitável (o ventre repugnante), enquanto que, pelo contrário, a porção pior, inaproveitável e indesejável (os ossos), é dissimulada e desmentida pela aparência do que é melhor, a agradável (a brilhante banha). Mas essa apreciação da desigualdade dos quinhões supõe a ótica do gênero humano, implicada pelo olhar de Prometeu. Daí que a apreciação valorativa dos quinhões seja ambivalente, pois há, em oposição ao olhar de Prometeu, o olhar de Zeus, a ótica do divino. As partes, então, são apreciadas como “melhores-superiores” ou, precisamente ao contrário, como “piores-inferiores”, dependendo da ótica de quem aprecia, da percepção do sujeito da valoração. Pois, pelo olhar de Zeus, que aprecia a partilha consoante à condição divina, os valores dos quinhões ficam invertidos: as carnes e vísceras, porque constituem a parte putrescível, cuja decomposição assinala a finitude temporalmente delimitada da existência, não condizem com a condição de imortalidade que distingue e define o divino, e são, portanto, pela ótica dos deuses, as partes piores, rejeitáveis, indesejáveis; já os ossos, porque constituem a parte imperecível (a existência marcada pela permanência inalterada), são apropriados para, queimados pelo fogo nos altares, agradavelmente alimentarem os deuses com os 43 Francisco Murari Pires odores da fumaça que ascende aos céus, constituindo, portanto, pela ótica dos deuses, as partes “melhores-agradáveis-desejáveis”. Assim, Zeus está ciente de que a partilha de Prometeu, pretensamente dolosa contra as divindades – pois tenciona reservar para elas o quinhão imprestável, ficando para os homens a porção valorosa –, resulta, pelo contrário, danosa para os humanos: estes, porque se alimentam da parte putrescível, ficam estigmatizados pelo fato da degenerescência, ficam assinalados pela condição de mortalidade. O atributo qualitativo do alimento determina, portanto, a condição por meio de uma contradição: o alimento que propicia e assegura a subsistência, e portanto mantém a vida, igualmente sela a degenerescência, e portanto destina à morte. Essa negação (de que a condição da vida é a morte) assinala a identidade humana (os mortais) por oposição à identidade divina (os imortais). Todo o sentido do mito de Prometeu, enquanto a obra dolosa que produz a discriminação de homens e deuses supõe, como e por princípio, a perspectiva que define a condição humana e a condição divina por mútua negação. Mas Zeus aceita o jogo e desafio da trama de dolos proposto por Prometeu. Escolhe uma das porções e, ao ver os alvos ossos ocultos sob a banha, “raivou nas entranhas, o rancor veio ao seu ânimo”.14 Zeus executa, então, seu lance em resposta ao de Prometeu: “Negou nos freixos a força do fogo infatigável aos homens mortais que sobre a terra habitam”.15 A efetividade do contralance de Zeus neutraliza a efetividade do lance de Prometeu, pois, sem o fogo, nenhum dos dois quinhões realiza seu valor alimentar potencial: nem as carnes e vísceras para os homens, porque exigem o cozimento (em uma concepção de homem civilizado); nem tampouco os ossos para os deuses, porque exigem a queima que os transforma nas fumaças odoríferas que alcançam os céus. O que leva, então, Prometeu a, por sua vez, neutralizar essa neutralização efetuada por Zeus: roubou o fogo às divindades, oculto em oca 14 15 Idem, ibidem. v. 554. Idem, ibidem. v. 563-4. 44 Mithistória férula. O que, então, obriga Zeus ao lance decisivo encerrando a disputa, pondo fim ao confronto doloso: “E criou já ao invés do fogo um mal aos homens”, Pandora, a mulher; “e após ter criado belo o mal em vez de um bem, levou-a lá onde eram outros deuses e homens, adornada pela de olhos glaucos e do pai forte; o espanto reteve deuses imortais e homens mortais ao verem íngreme incombatível ardil aos homens. Dela descende a geração das mulheres. Dela é a funesta geração e grei das mulheres, grande pena que habita entre homens mortais”.16 Esse o “dom” final de Zeus aos homens: a concessão do “mal” (a mulher) que compensa, contrabalança, a obtenção do bem (o fogo). Mas o que entender por essa afirmação de que a efetividade desse mal (a mulher) compense a efetividade daquele bem (o fogo)? Certamente que as formulações valorativas da narrativa mítica hesiódica expressam uma antropologia pessimista, especialmente amarga em sua negatividade no desconsiderar e desapreciar a mulher enquanto corporificação mesma da miserabilidade da existência humana. Mas o mito não compõe só essa resposta àquela questão. A interpretação, então, requer não só dizer o texto, mas também o contradizer. Contradizer o texto não implica asseverar que seu discurso é falso ou inverídico, mas antes almeja apreender um dizer contra o texto, dizer o que ele não diz expressamente, mas recalca. Dizer, pois, contra a memória que ele corporifica, pois a memorização, ao dizer, também cala; ao revelar, também oculta; ao declarar, também suprime; ao lembrar, também esquece. Então, nos Trabalhos e dias, Hesíodo afirma o preceito imposto pela ordem de Zeus: é o trabalho – a dedicação, as fadigas e o penar das atividades – e não as ociosas querelas jurídicas junto a juízes corruptos, que constitui o modo justo de derivação de propriedade, bens e riquezas. Esse preceito compõe uma lei natural, (im)posta na natureza terrena pela ordem de Zeus: “Oculto retém os deuses o vital para os homens”.17 16 17 Idem, ibidem. v.570; 585-592. Hesíodo. Trabalhos e dias, v. 42. Para os Érga valemo-nos da tradução de Mary Lafer. 45 Francisco Murari Pires Essa ordem natural de ocultamento dos meios de prover a subsistência humana advém como punição infligida por Zeus aos homens,por causa da ofensa cometida por Prometeu. Pois, anteriormente à obra de Prometeu, quando, pelo contrário, os meios de subsistência humana eram aparentes, diretamente presentes e, portanto, facilmente disponíveis, imediatamente acessíveis aos homens, então “vivia sobre a terra a grei dos humanos a recato dos males, dos difíceis trabalhos, das terríveis doenças que ao homem põem fim...uma raça de ouro dos homens mortais...que eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava; como deuses viviam, tendo despreocupado coração, apartados, longe de penas e misérias; nem temível velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos, alegravam-se em festins, os males todos afastados, morriam como por sono tomados; todos os bens eram para eles: espontânea a terra nutriz fruto trazia abundante e generoso e eles, contentes, tranqüilos nutriam-se de seus pródigos bens”.18 Mas Zeus, irado pelo roubo do fogo por Prometeu, concedeu para os homens a mulher. E com a mulher vieram todos os males, de forma que, declara Hesíodo, “antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça, mais cedo tivesse morrido ou nascido depois. Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia cessarão de labutar e de penar e nem à noite de se destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão”.19 Mas, nesse cosmos terreno, onde agora impera a necessidade do trabalho, qual a efetividade e qual o valor da presença da mulher para o homem? Em primeiro lugar, com a mulher e pela mulher, instaura-se uma nova modalidade de geração da vida humana, inaugura-se uma nova forma de reprodução do gênero humano: os homens agora não nascem mais diretamente da terra ou dos freixos, como os das raças anteriores, gerados espontaneamente da natureza e pela natureza; os homens, agora, geramse das mulheres e pelas mulheres por meio da prática do sexo, da gestação da mulher e do labor do parto, ou seja, por meio da obra humana. 18 19 Idem, ibidem, v. 90-92; 109-119. Idem, ibidem. v. 173-177. 46 Mithistória Mas o que mais, e ainda e também, a mulher efetiva e vale para o homem? A mulher efetiva para o homem a necessidade do trabalho, imposta pelo ocultamento do provimento da vida. Assim, pela obra de Prometeu, os homens ficam providos de três elementos: os alimentos comestíveis, o fogo e a mulher. Pela presença da mulher, enquanto lugar e meio da reprodução sexuada, a obra humana assegura a cláusula que atende à reprodução da vida humana no âmbito da espécie; e pela presença e ação complementares da composição dos três elementos – os alimentos, mais o fogo enquanto agente de cozimento, mais a mulher assinalando o trabalho enquanto agente de produção do alimento –, a obra humana assegura-se desses itens que atendem à reprodução da condição humana no âmbito da vida do indivíduo. Todos esses três itens e cláusulas da condição humana só de forma ambígua podem ser conceituados como “dons” das divindades, isto é, como dádivas espontâneas, de bom grado concedidas pelos deuses aos homens enquanto bens. Os alimentos e a mulher não são efetivamente dons porque, em não se tratando de “bens” pela avaliação de Zeus, constituem “dons” dolosos, que Zeus concede e anui aos homens (só nesse aspecto constituem dons divinos) para sedimentar a condição de inferioridade do viver humano face à existência divina. E o fogo também não é efetivamente dom de Zeus porque, embora seja conceituado como bem pela sua avaliação, não é concedido por Zeus aos homens, pelo contrário, foi dele suprimido para ser entregue aos homens. O fogo era, sim, um dom de Zeus aos homens antes, quando ele o concedia espontaneamente por meio dos incêndios provocados nas florestas pelo seu raio. Mas o que implica dizer que esses dons, porque ambíguos, não são efetivamente dons concedidos pelas divindades aos homens? Implica que a obtenção desses itens de reprodução da condição humana não estão mais na dependência da concessão e anuência divina. O homem, no que respeita ao atendimento de suas próprias condições de vida, constituiu, pela obra de Prometeu, autonomia em relação aos deuses: os homens, agora, geram-se a si mesmos, os homens, agora, produzem e cozem os 47 Francisco Murari Pires seus alimentos; ou seja, os homens se auto-reproduzem e perpetuam. O princípio da vida humana está agora localizado entre os homens, entre os mortais, não está mais nas mãos de Zeus. Então, tanto o fogo quanto a mulher, apreciados enquanto instâncias agentes de reprodução da vida humana, possuem, para o homem, a mesma efetividade e constituem o mesmo valor e bem: agentes de autonomização do homem perante as divindades no assegurar a reprodução de si mesmo. Mas, por que então a mulher é avaliada como mal que nega o bem do fogo? É significativo que o texto hesiódico corporifique (na Teogonia) a idéia desse mal pela representação de uma oposição da ordem natural da vida animal que opõe duas modalidades de viver consubstanciadas por um princípio masculino e um princípio feminino: “Tal quando na colméia recoberta abelhas nutrem zangões, emparelhados de malefício, elas todo o dia até o mergulho do sol diurnas fadigam-se e fazem os brancos favos, eles ficam no abrigo do enxame à espera e amontoam no seu ventre o esforço alheio, assim um mal igual fez aos homens mortais Zeus tonítruo: as mulheres, parelhas de obras ásperas, e em vez de um bem deu oposto mal”.20 Há aqui, nessa figuração metafórica de uma ordem natural da vida animal, uma oposição dos princípios masculino e feminino do viver, que o texto hesiódico apropria localizando, ainda obsessivamente, a fonte de todo o mal na mulher. Mas a metáfora a que ele recorre é enfática: a oposição mulher/homem, figurada pela oposição abelhas/zangãos, compõe, de um lado, trabalho contra ociosidade, de outro, provimento contra consumo de alimento, e ainda, esforço e fadiga contra desfrute e gozo. Então, na ordem terrena provocada pelo mal do trabalho, o gênero humano – não apreciado enquanto ser ou natureza, mas enquanto ação, enquanto práticas que consubstanciam o viver – não constitui mais uma unidade homogênea: o fato da dominação cinde o viver humano em um 20 Hesíodo. Teogonia, v. 594-602. 48 Mithistória princípio masculino contra um feminino, o que implica dizer que a raça férrea do gênero humano, a raça histórica, conhece e convive com a raça áurea, a raça divina, pois o que é o viver do zangão, o viver masculino, o viver do dominador – ociosidade, consumo, desfrute, gozo – senão o viver a ausência do trabalho que caracteriza a vida humana sob a realeza de Cronos? A ordem imposta por Zeus, assumida pelo texto hesiódico, afirma, portanto: porque o homem constitui autonomia relativamente aos deuses, impõe-se, como contrapartida dessa autonomia e para essa autonomia, a necessidade do trabalho. E a necessidade do trabalho, certamente apreciada como mal já que negação de liberdade, é elipticamente traduzida e assumida como necessidade da dominação. Tem-se, então, um mal bem e precisamente identificado, só que o mal, esse mal – a necessidade do trabalho – não é um mal para o homem enquanto tal, enquanto unidade homogênea constituída por oposição aos deuses. Esse mal – a necessidade do trabalho – é sim contra o homem enquanto princípio feminino do viver, ou seja, ele é contra o homem enquanto objeto da dominação; mas ele é, pelo contrário, a favor do homem enquanto princípio masculino do viver, ou seja, ele é a favor do homem enquanto sujeito da dominação. 49 Mithistória III. Ájax, Atena e os (des)caminhos da métis * A raiva de Atena No Ájax de Sófocles, logo no início, ainda no Prólogo, uma cena tem intrigado, senão perturbado mesmo, o zelo da crítica moderna em seu afã de melhor entender a trama trágica. Ela situa a intervenção direta de Atena nos episódios. A deusa, pela revelação de sua palavra especialmente propiciada a Odisseu, já desfizera o enigma do misterioso massacre dos rebanhos ocorrido naquela noite, bem e plenamente declarando ter sido Ájax quem o perpetrara. E, finalizando esse pronunciamento, dispôs-se ainda Atena a expor o próprio criminoso defronte à presença de Odisseu (presença esta de que Ájax, entretanto, não teria ciência), para que o herói, assim, se certificasse da realidade do fato que seu saber divino acabara de lhe revelar. A deusa, então, chama Ájax para fora da tenda, e põe-se a inquirir o herói sobre a obra de seu recente feito noturno, que a tivera por “aliada”. Assim, dolosamente, enseja sucessivas e exacerbadas manifestações de vanglória a um pretenso vitorioso que, vingativo, tripudia sobre a ruína dos inimigos supostamente por ele derrotados. Como, todavia, tudo não passa de uma ilusão demente de Ájax, ensandecido pela própria deusa, cuja intervenção o desviara da consecução mesma de seus intentos homicidas, o que se tem, de fato, é, pelo contrário, a ruína do próprio herói, ironica* Primeiro publicado em Classica, 7/8 (1994/1995): 195-209. 51 Francisco Murari Pires mente ludibriado pelo insidioso concurso daquela enganosa assistência divina. O vilipêndio contra a honra do herói, assim resultante de seu desvairado feito, é de tal ordem, e tanto o apequena e humilha, que mesmo Odisseu, apesar de seu inimigo ferrenho, compadece-se com seu infortúnio, pois se cientifica da fragilidade da condição humana e da conseqüente transitoriedade de sua fortuna, que num instante reverte o mais grandioso dos homens no mais ínfimo. Cena de impacto tão chocante para a (in)compreensão da crítica moderna que ela se vê imediatamente compelida a entender as razões que justifiquem, ou não, a ação da deusa. Seria justo e condizente aquele espezinhamento infligido contra o herói? Seria próprio e condigno da grandeza divina? Não teria havido exagero e desmedida da parte de Atena? Assim, logo aventaram-se razões mais propriamente subjetivas escavandose as falhas do caráter da deusa, mais particularmente atribuindo-se aqueles desmandos de sua punição vingativa contra o herói às mazelas de sua natureza feminina, até mesmo patologicamente sádica, a comprazer-se em torturar o adversário. E, assim, compuseram-se críticas indignadas a desqualificar a revoltante concepção do divino conformada pelo mito sofocleano.1 Em reação a tais enfoques distorcidos de (des)entendimento do texto, pesquisaram-se também razões mais objetivas, que, ao invés de ajuizar os atos da deusa aferindo-os por sensos éticos anacrônicos a projetarem valores de outras historicidades, alcançasse suas justificações apropriadamente históricas, pois fundamentadas pelos conteúdos dos sentimentos 1 Para as indicações bibliográficas respeitantes à tradição moderna de interpretação do texto sofocliano, confiram-se os acirrados comentários críticos de Flávio Ribeiro de Oliveira (Oliveira, 1994) em sua Dissertação de Mestrado, especialmente no capítulo I, em que desdobra as argumentações já desenvolvidas em um texto de B. Knox (Knox, 1979). Todas as citações em língua portuguesa da tragédia de Sófocles por nós feitas foram retiradas da primorosa tradução constitutiva desse Mestrado. 52 Mithistória religiosos helênicos e de seus valores civilizatórios mais gerais. Nesse sentido, a fundamental análise de B. Knox (Knox, 1979), valiosa por inúmeras contribuições interpretativas, veio a praticamente cristalizar um entendimento equacionador dessa questão, buscando identificar as ordens de razões que melhor compreendam, em sua historicidade própria, os desígnios de Atena ao obrar aquela intervenção por que ela leva Odisseu a defrontar-se com Ájax. A ação da deusa, assevera esse autor, conforma a mais plena realização daquele preceito ético de conduta heróica, arcaico mas ainda atual no século V, que proclama: “fazer o bem aos amigos, o mal aos inimigos”. Ájax, outrora, ofendera a honra de Atena, sendo, pois, seu inimigo. Ela, desde então irada, agora se vinga: arruina plenamente seu adversário, e assim vitoriosa, regozija-se em tripudiar sobre o derrotado. Vai rir de sua humilhação vergonhosa, escarnecer de seu infortúnio inglório, espezinhar seu destino desonroso. Então, convida seu protegido Odisseu, também inimigo de Ájax, a associar-se a ela nesse gozo próprio do triunfo, entregando-se às mais sarcásticas zombarias a vilipendiar o adversário vencido.2 A argumentar a fundamentação textual desse entendimento, a obra hermenêutica da crítica moderna articula a composição de dois pronunciamentos da trama trágica sofocleana. Um deles, mais adiante no desen2 O que, então, implica uma interpretação dissociadora dos posicionamentos dos personagens míticos conforme seu acolhimento, ou não, dos imperativos dessa ética: de um lado, Ájax e Atena, esta deusa por autonomia divina, aquele herói por grandiosidade distintiva, mais os Atridas, estes por mesquinharia egoísta de meros detentores do poder; e, de outro, Odisseu, cuja recusa configura a modernidade de superação dessa ética arcaizante. O que, por sua vez, instaura uma conformação paradoxal de representações do mito, pois a deusa assim age, por um lado, em consonância com a práxis do herói que ela, entretanto, arruina e, por outro lado, em divergência com a práxis do herói que ela, entretanto, favorece. Daí o corolário hermenêutico então reclamado: os deuses gregos se permitem o que, pelo contrário, interditam ao humano, mesmo que heróico. Nem sempre, pois, devem, pelos humanos, serem tomados como modelos, pois preceituam a estes o reverso do que fazem! (confira-se, por exemplo, o artigo de Knox, 1979, p. 129-31). 53 Francisco Murari Pires rolar da peça, é a palavra profética de Calcas. Por ela se desvenda a origem da ira de Atena para com Ájax. O fato ocorrera em meio aos combates troianos. Atena viera associar-se ao herói em seu empenho beligerante, “exortando-o e instando-o a contra os inimigos voltar mão cruel”. Mas Ájax, recusando o auxílio da deusa, retrucou-lhe esta “terrível e nefanda palavra” (vv. 774-5): “Soberana, perto dos outros argivos fica; por nossa linha jamais romperá a luta”. Essa é a razão original da raiva de Atena. O outro pronunciamento encontra-se imediatamente antes da referida cena: a sugestão com que Atena intenta induzir Odisseu a que este presencie sua entrevista com Ájax, então persuadindo a boa disposição do herói nesse sentido ao lhe interpelar interrogativamente: “Então o riso mais doce não é rir dos inimigos?” (v. 79) Assim, conjugando-se os alcances daquele pronunciamento de Calcas, revelador da ira de Atena, com o da sugestão desta proposta divina de que o riso mais doce é o rir do inimigo, bem se constrói a hermenêutica textual das razões que dão o sentido e a finalidade do tripúdio de Ájax por Atena, consumado por aquela cena inicial da exposição do mesmo perante Odisseu: certamente impiedoso, mas não menos justo, desafogo vingativo do ultraje recebido. Assim o teria concebido o desígnio tramado pela raiva da deusa. E entendimento hermenêutico este que, então, é similar ao determinado pela ótica mais subjetiva de compreensão do ocorrido, elaborada pelo herói mesmo, pois foi acusando-o como ato impiedoso da deusa colérica, de humilhante espezinhamento de sua honra, que Ájax lamentou seu desfecho, dele ressentido contra Atena, cujo ludibriante poder divino causara sua ruína (vv. 367; 401-2; 426-7; 450-6; 656). 54 Mithistória Entretanto, algumas interrogações ainda intrigam nosso entendimento. Pois, quando Atena mesma declara o propósito por ela vislumbrado para aquela exposição de Ájax defronte a Odisseu, a finalidade então expressamente alegada pela deusa enquanto sua razão de ser é outra, que não propriamente esse espezinhamento tripudiador do inimigo derrotado. Assim, ela diz a Odisseu apenas o seguinte (vv. 66-7): “Mostrarei também a ti, manifesta, essa doença, para que a vejas e proclames a todos os argivos”. Então, a finalidade e o sentido da cena da exposição de Ájax perante Odisseu, nos termos em que ela foi conformada pelo mito sofocleano, seria tão carente de sentido que, para bem compreendê-la, é preciso que nós, crítica moderna, além e sobre a alegação mesma de Atena, ainda tenhamos que (retro)projetar o sentido do fato da ira de Atena, todavia narrado por Sófocles só bem mais adiante no evoluir da trama trágica? Pois, só assim, ao sabermos do furor de Atena contra Ájax, causado pela desonra por este consumada contra ela (o que faria da deusa uma inimiga do herói), podemos apropriadamente entender como a finalidade determinante daquela proposta, a sobrepor-se às expressas alegações externadas por Atena mesma a Odisseu, ser um convite para que este se associe a ela no riso espezinhador de triunfantes com que ambos se regozijariam diante da derrota vergonhosa daquele seu inimigo comum? Então, o sentido da cena inicial só bem e plenamente se realiza graças a uma tal operação assim teleologicamente arquitetada? Ou essa hermenêutica teleológica é antes um fato da leitura do texto, e mais precisamente de seus malabarismos analíticos? E, se as proclamações hibrísticas de Ájax, a soberbamente dispensarem o concurso do favor divino para o êxito de seus empreendimentos heróicos, comportam, não só a ofensa pessoalmente dirigida contra Atena, mas também uma similar genérica abrangendo os deuses todos, por que é apenas o poder divino da ira de Atena que o persegue? E, se tais manifestações hibrísticas atualizam-se na história heróica de Ájax desde o seu prin55 Francisco Murari Pires cípio, por que razão o desencadeamento da ira de Atena, causa de sua ruína, só se efetiva por ocasião do episódio do Juízo das Armas, em (con)seqüência dele, e não já antes, em qualquer outra ocasião anterior, apenas (con)seqüente àquela transgressão injuriosa contra a honra da deusa? Poderia o mito da tragédia de Ájax ter também memorizado uma especial determinação do destino de sua história por meio de um significativo enredamento episódico, em que é a ação do herói que mobiliza tragicamente a atualização da raiva dessa deusa, justamente porque tal ação introduz o herói no âmbito precípuo de honra do poder de Atena? Então, retomemos a trama mítica desde o princípio. A métis de Ájax O herói fora desonrado e traído. Ájax, ele que, em Tróia, terrível braço guerreiro, fora sempre só ousadia, coragem e intrepidez de desempenho por devastadoras batalhas, a assim, êmulo heróico, reiterar os precedentes feitos gloriosos de seu pai, Télamon (vv. 364-5; 434-40). Ele, guerreiro como o qual Tróia não vira na tropa vinda da terra grega (vv. 423-5). E, todavia, os argivos, ao votarem a concessão das armas de Aquiles, dadas como prêmio ao melhor dos aqueus, o haviam preterido em favor de Odisseu, contemplando, na pessoa deste, a distintiva e superior excelência astuciosa reclamada para a devida finalização ruinosa da guerra troiana.3 Haviam dele, pois, arrebatado as armas cuja posse, por honra, a ele deveriam caber (vv. 98-100). Os dois reis, aqueles Atridas, entretanto, desdenharam seus triunfos, usurpando-as (vv. 441-6). E em favor de quem? De Odisseu, finória raposa, velhaco, o mais imundo biltre da tropa! (vv. 103; 379-82; 389). Assim Ájax, desonrado e traído por seus próprios companheiros, a quem ele sempre antes fora leal e solidário, ruminava furores rancorosos 3 Assim foi relatado nos poemas cíclicos, a Etiópida e a Pequena Ilíada. 56 Mithistória contra todos os argivos, mormente contra os Atridas, centros personificadores de poder e decisão régios na comunidade dos aqueus expedicionários contra Tróia; e, em especial, contra Odisseu, o adversário que o vencera naquela disputa, personificação emblemática da métis. Desonra e traição insuportáveis. Mas, ele se vingaria! Tramou o plano de um massacre, a exterminar tais agentes traiçoeiros de desonras e a, assim, anular suas disposições rapaces de armas (vv. 98-100; 449). Todavia, vingança que requeria empreendimento guerreiro formidável, de ingente envergadura heróica: nada menos do que, por uma só ação agressora, eliminar os chefes argivos mais suas tropas, todos eles magníficos e portentosos heróis, extremados em valor guerreiro! Como assegurar o êxito de uma, entretanto, tão arriscada e temerária façanha? Um cálculo equaciona a solução viabilizadora do sucesso do feito. Já outrora, imerso nos combates da guerra troiana, o herói claramente expressara esse entendimento. Travava-se então, terrível, a disputa em torno do cadáver de Pátroclo, e Zeus já assinalara a ocasional vitória troiana, velando o Ida de nuvens e troando forte por raio lançado a abalar o monte. Os aqueus partem em debandada. Ájax, ciente dos desígnios divinos, cuida, ainda assim, de salvar o corpo do companheiro. Mas a névoa turvadora recobre o campo e obsta o pleno desempenho de seu valor bélico. Então, o herói clama uma prece ao Cronida (Ilíada, XVII.645-7): “Zeus pai, mas tu livra de sob a neblina os filhos dos aqueus, e faça céu fulgente, e conceda-nos vermos com os olhos. Depois, em plena luz, arruine, visto que assim te agrada”. A Zeus pai queixa-se amargamente Ájax: como pode um guerreiro, por mais valoroso e corajoso que seja, combater heroicamente em meio a trevas? Como, então, bem se defender de um inimigo que agride oculto, cuja presença e ação ofensiva não se deteta nem se localiza? Na situação dessa desvantagem, a morte é certa! Que seja esta a determinação do desígnio divino, Ájax bem acata. Mas, então, que pelo menos lhe conceda 57 Francisco Murari Pires a morte gloriosa, viabilizando a atualização de seus valores heróicos, possibilitando-lhe defrontar agressores: assim, combater à luz do dia, condição de desempenho bélico valoroso de coragem e intrepidez. Esse, então, é o cálculo: agressor oculto, inviabilização de valor guerreiro de defesa, morte certa! Daí, o apropriado doloso plano: atacará os chefes argivos oculto sob as trevas de alta noite, quando nem mesmo ardem mais as vespertinas flamas, assim atacando indefesos adversários, surpreendendo-os na impotência guerreira de seu sono (vv. 15; 285-6; 291). Então, apropriada vingança: por métis os pune, ludibriante, contra o primado da métis – consagrada na vitória de Odisseu – porque o desonram. E, ainda, justa vingança: por traição os arruina, implacável, em contrapartida à traição porque o desgraçam. E executaria o feito reiterando o modo e princípio mesmo de seu agir heróico: sozinho! (vv. 47; 294; 467; 614; 796). Absolutamente só, dispensando toda e qualquer ajuda ou cooperação de companheiros. Tal era seu princípio heróico. Então, já alta noite, quando vespertinas flamas não mais ardiam, sai de sua tenda empunhando bigúmeo gládio, e precipita-se, sozinho, em sua empresa, investindo dolo assassino contra os chefes aqueus, agora por ele odiados como seus traiçoeiros inimigos (vv. 285-91). Alcança já as portas dos chefes Atridas. E, surpreendentemente, eis que ouve a voz de Atena a seu lado, a insuflar seu ânimo belicoso naquele empreendimento homicida. Inesperada assistência divina, pois nem então solicitada pelo herói! Logo se entrega ao furor da matança, assim excitado pela assistência da deusa a seu lado: brande contra aqueles dois a mão armada, e deixa-os mortos (vv. 49; 97-100); a seguir, afunda a espada na argiva tropa, e ainda liquida mais outros chefes; por fim, depois que descansou dessa cruentação, fez prisioneiros, levando-os atados para sua tenda (v. 95). Malévolo, cuida, em especial, de um cativo, Odisseu, a finória raposa, ini58 Mithistória migo mais odiado, preparando-lhe sorte maior: prende-o à coluna do teto de sua barraca, reservando-o para o suplício de um vergastamento prolongado até a morte, desde já castigando-o com o látego duplo de grande rédea eqüina, a seus sons sibilantes fazendo acompanhar insultos de palavras vis (vv. 56-65; 101-10; 239-44). E, orgulhoso, exulta com seu feito. Ironiza, sarcástico, os inimigos vencidos, já zombando dos chefes Atridas e seus injustos pendores rapaces de armas, desafiando-os, agora cadáveres, a reiterarem aqueles seus modos de governar (vv. 97-100). Também contra Odisseu dirige palavras de zombaria (vv. 103-6). E, por tal humor vitorioso, regozija-se em sua vingança, rindo às gargalhadas da desgraça dos inimigos, ato último de vilipêndio com que sela sua desonra de derrotados (vv. 301-4). Foi assim, por esses termos, que Ájax, já no dia seguinte ao massacre daquela noite, concebeu a memória daquele seu feito guerreiro, agora supostamente contando com o paradoxal favor do concurso divino de Atena, naquela ocasião sua inesperada aliada. Só que tudo não passava de ilusão da mente extraviada do herói, então atacada de demência por obra de Atena. A ciência de Atena Quando os aqueus despertaram daquela noite para mais outro dia de renovados combates no plaino de Tróia, depararam espetáculo catastrófico: todo o restante rebanho, butim acumulado de reiteradas incursões de saques e pilhagens por longos dez anos, fora destroçado; junto, também vítimas do massacre, os guardas mortos. Os modos do abate cruento indiciavam ação humana, não ataque exterminador de feras vorazes (Kamerbeek, 1963, p. 24, nota ao v. 8). Misterioso acontecimento: no furtivo da noite, oculto por suas trevas, alguém exterminara rebanhos e guardas, deixando as evidências do crime perpetrado, porém eliminando suas únicas testemunhas oculares. 59 Francisco Murari Pires Então, uma suspeita, imediata e consensual entre os aqueus todos, a aventar o malfeitor: Ájax, a quem atribuem o ato criminoso (v. 28). Supostamente, intrigante seqüela do Juízo das Armas, alguma desfeita estapafúrdia contra sua desdita recente, preterido que fora pelos aqueus na contemplação da honra da herança heróica de Aquiles. E suspeita logo alimentada por um testemunho: alguém afirmava ter avistado Ájax, sozinho, a saltar pelo prado, transitando, pois, suspeitamente pelo local do crime, espada recém-aspersa (em sangue) (vv. 29-31). Mas, testemunho que, embora de valor inculpatório, ainda frágil, insuficiente enquanto prova, pois testemunho apenas indireto, compondo simples ato declarativo de suspeita, sem implicar necessariamente Ájax como o executante daquele preciso ato de massacre. Então, a determinação heróica de Odisseu, movida pelo antagonismo que agora o opunha a este seu ferrenho inimigo, levou-o à iniciativa de realizar mais outro feito: encarregou-se do penoso trabalho de investigação daquele misterioso crime (vv. 1-2; 18-20; 24). Tencionava apreender a verdade do ocorrido, dissipando a nebulosidade que turvava sua compreensão e esclarecimento. Almejava por alcançar um conhecimento certo do fato, transparente em sua visão do ocorrido, que superasse aquela insegura errança cognitiva das suspeitas ainda incertas, conformando verdades apenas hipotéticas (vv. 21-4). Porém, feito investigatório de apuração da verdade singularmente dificultado, pois crime obscuro, de visão opaca, já que envolto por trevas de realização noturna e sem deixar testemunhos de olhos humanos que, justamente por tê-lo presenciado, pudessem relatar o ocorrido, bem o esclarecendo. Assim, pôs-se à caça investigatória daquele inimigo. Partiu dos vestígios deixados manifestos pelo ato perpetrado: impressões de pegadas no chão apontavam uma pista investigadora. Perícia nesta arte do rastreamento de um percurso de busca igualmente assinala uma excelência odisséica: compondo, como cadela lacônia (princípio híbrido de faro canino e manhas de raposa) (Kamerbeek, 1963, p. 20, nota 60 Mithistória ao v. 8), os recursos apropriados de discernimento perseguidor mais acuidade astuciosa, o herói pôs-se a segui-las, perfazendo sua trilha. Assim, reconstituiu o itinerário da ação perpetrada e, examinando os aspectos de sua efetividade impressora, avaliou a atualidade de pegadas recentes. Então descobriu itinerário inconfundível, conclusivamente certo de um só possível agente, Ájax, pois caminho finalizado por um único e singular alcance mais longínquo, atingindo o ponto extremo do acampamento das naus, precisamente onde aquele herói posicionara sua tenda pessoal (vv. 3-7). Itinerário, então, que indicia a suspeita presença de Ájax na tenda e, portanto, enseja vincular as condições desse seu estado lá presente às circunstâncias da ação última atualizada no princípio do percurso, de que elas seriam, pois, seus resultados conseqüentes (vv. 1-7). Mas, ainda e novamente, conhecimento impreciso, eivado de limitações, compondo tanto certezas quanto confusões, pois exame inconclusivo das pegadas, umas reconhecíveis, outras não, travando a plena e clara identificação de seu agente causador (vv. 31-3). Odisseu, em furtiva espreita, já se dispõe então a espionar o interior da tenda. Justamente nesse momento Atena intervêm, detendo a ação investigatória do herói. Intervenção que situa o limiar delimitador dos alcances precípuos do conhecimento desse fato: o humano operado pela investigação de Odisseu e o divino revelado pela ciência de Atena. Pelo conhecimento humano, excelentemente obrado pela investigação odisséica, a identificação de Ájax como o criminoso é praticamente segura. Aquela iminente visão do interior da tenda deste herói lhe ensejaria certificar-se de suas suspeitas iniciais, bem as corroborando, pois lá dentro se encontrava recolhido o herói, associado a tantos efeitos assinaladores do ato criminoso: homem com suor a gotejar do rosto e (sangue) das mãos assassinas, e barraca que era só espetáculo de cruenta carnificina, executada contra rebanhos de bois e ovelhas, todos já jugulados ou despedaçados, menos um animal, infortunado carneiro, ainda preso à coluna da 61 Francisco Murari Pires tenda, mas já supliciado por vergastamentos de açoites a aguardar ainda mais torturas até o suplício final (vv. 9-10; 63-5; 219-21; 235-44). Então, fim de uma obra investigatória de ato criminoso que indicia seu agente perpetrante, pois gotejamento de suores e aspersões de cruores animais, assim circunstanciados a tantos corpos das vítimas, fundam conjecturas retrospectivas de uma singular ação assassina de rebanhos. A soma de todos os indícios incriminatórios aponta a culpabilidade de Ájax. Tudo levava a crer que fora mesmo Ájax quem massacrara os rebanhos! O conhecimento humano desse fato, assim alcançado pela arte da investigação odisséica, percorre a via de apreensão de uma justa verdade fatual. Todavia, nesse êxito se detêm todo o alcance da obra humana de apreensão da verdade do fato ocorrido, demarcando, pois, o seu fim enquanto êxito apenas parcial, limitado. Duas ordens de razões assim a delimitam. Primeiro, essa obra investigadora, que infere conclusivamente ter sido Ájax quem cometera o crime, não pode, mesmo e apesar de estar bem fundada em razões de evidências comprobatórias, prover o conhecimento de uma certeza absoluta: ela, de fato, compõe conjecturas, que embora altamente plausíveis, referem verdades, entretanto, apenas hipotéticas. Não pode proclamar ter alcançado a luminosidade transparente da certeza absoluta dessa sua verdade. Pois, pelos humanos, este conhecimento de certeza plenamente verdadeira, enquanto percepção de clarividência transparente do fato mesmo, viabiliza-se apenas quando e porque derivada da realidade cognitiva de seu presenciamento (isto é: saber o ocorrido por ter presenciado sua manifestação fenomênica, por ter estado presente à sua ocorrência). Clarividência cognitiva, então, neste caso inviabilizada dada a morte dos guardas, suas únicas testemunhas humanas oculares. Mas, não é essa limitação a mais significativa e relevante, já que, quanto a apreender quem fosse o criminoso – Ájax –, tal obra humana de 62 Mithistória investigação indiciadora positiva conforma, de fato, uma via sucedânea de conhecimento da verdade desse aspecto de realidade do fato ocorrido. Só que, uma vez alcançada essa verdade – Ájax é o criminoso autor do massacre dos rebanhos –, o que mais, a partir dela, se poderia saber por essa rede de inferências indiciadas? Assim, que razões e motivos o criminoso tinha, pode-se ainda suspeitar circunstancialmente: é quase certo que se trate de alguma desfeita, ou mesmo vingança furiosa, daquele herói, em revolta indignada contra o resultado do Julgamento das Armas de Aquiles. Suspeita que, aliás, todos os gregos desde logo aventaram. Ora, mas por que, assim furioso, ele voltara sua sanha precisamente contra os rebanhos? Poderia haver algum sentido nesse ato a transcender o mero transtorno de comportamento causado por uma mente insana? Ou, antes, pelo contrário, apenas agira pelo despropósito e falta de razão mesma que define a loucura, esse extravazamento de atos quaisquer da demência extraviada? Aqui, a possibilidade da obra humana de conhecimento pleno da verdade desse fato detêm todo seu alcance, pois, a partir daqui suas conjecturas extraviam-se, perdem-se nas trevas mesmas projetadas pela loucura que já perdera e desencaminhara o próprio Ájax ao perpetrar seu ato criminoso sob a ação do ludíbrio de Atena! Mas, no limite onde termina o alcance da obra cognitiva humana, avança a revelação da palavra divina da ciência de Atena, que justamente, pelo contrário, o plenifica. Assim, imediatamente antes de Odisseu consumar aquela sua visão espreitadora do criminoso recolhido no interior de sua tenda, exatamente então, intervém a emissão da palavra de Atena, que encerra a ação cognitiva do herói em sua observação perscrutante. De imediato, o favor do concurso da revelação dessa palavra divina antecipa a realidade fenomênica que aquela visão espreitante do herói também alcançaria se fosse efetivada: Atena declara a Odisseu que, lá dentro da tenda, encontra-se mesmo o homem por ele procurado, faces gotejantes de suor e mãos apunhaladoras (vv. 9-11). E, a seguir, Atena proclama o princípio de uma palavra divina que, então, encerra o érgon do exame cognitivo empreendido pelo sujeito humano (vv. 11-3): 63 Francisco Murari Pires “E tu espiares para dentro desta porta já não é mister, mas sim relatares por que tal afã tens, para que de mim, que sei, aprendas”. Assim, a ação sucedânea da ciência da deusa finaliza, portanto, o conhecimento apreendido pela ação cognitiva do herói. É pelo concurso da ação da ciência divina de Atena, então principiado a favorecer o encargo heróico de Odisseu, que se superam tais limites da cognição humana. As revelações assim propiciadas pela deusa agora cientificam o herói, Odisseu, de todo o ocorrido. O que ele, corroborando-a por indícios assinaladores, conjecturava como suspeita, mas sem ter certeza absoluta, agora é asseverado como fato mesmo: sim, são de Ájax aqueles atos assassinos (v. 39). A causa que o mobilizara a perpetrar feito assim insensato também se confirma: propósitos de furor rancoroso conseqüente ao Juízo das Armas (v. 41). Então, e agora compondo já revelações insuspeitadas pelos argivos todos, e que mesmo a arte investigativa de Odisseu não indiciaria: ato que não comportava propriamente o extravazamento despropositado da demência furiosa, mas sim o projeto de uma causalidade precípua, que comportava a razão de uma finalidade maior, pois aquele crime não finalizava o massacre dos rebanhos mesmos, mas sim visava antes ao extermínio dos chefes aqueus.4 Assim, é pelas revelações da palavra de Atena, que o fato fica plenamente relatado por todas as tramas e modos de sua efetivação dolosa e de sua proposição criminosa, ainda esclarecidos, a seguir, os desvios de seu intento fracassado: fora ela, Atena, que transtornara a percepção do herói, 4 Ájax, 42-5. Já G. Méautis (Méautis, 1957, p. 24) chamou a atenção para este ponto. Também Knox (Knox, 1979, p. 129, nota 29, e p. 131) adverte para este fato; entretanto, ambiguamente (des)valoriza seu comentário, ao aqui enfatizar sua relevância por uma consideração cuja assertiva comporta valor antes tautológico, pois apenas declara a importância dramática do mesmo. 64 Mithistória fazendo-o confundir rebanhos por homens, desviando-o do alvo de seus propósitos assassinos (vv. 45-65). Agora é Odisseu plenamente inteirado do fato, apreendido seu conhecimento cristalino graças às revelações da ciência de Atena, que aprofundam a percepção da razão vingativa daquele crime, revelando inclusive sua hostilidade traidora contra a própria comunidade aquéia. E só assim dissipam-se as trevas com que a (in)compreensão da realidade da loucura de Ájax turvava e perdia a visão humana da verdade última daquele fato. Então, como ato final de consecução da transmissão dessa verdade da ciência divina a plenificar o conhecimento humano alcançado pelo herói, Atena declara (vv. 66-7): “Mostrarei também a ti, manifesta, essa doença, para que a vejas e proclames a todos os argivos”. Atena dispõe-se, agora, a produzir uma manifestação fenomênica que viabilizaria, para Odisseu, uma sucedânea visão humana (com)provadora da verdade daquele fato revelado por sua palavra divina – a demência de Ájax – em sua plena consumação final. Logo declara o fim a que essa visão pretende: o herói, assim cientificado da verdade daquele fato, poderia, então, proclamá-la à comunidade aquéia. Com o que esta, já historiada publicamente a realidade informativa do acontecimento, poderia, por sua vez, então reunida em assembléia, melhor deliberar sua decisão a esse respeito (vv. 719-34; 749-83). Assim, encerrar-se-ia, plenificados seus fins, a missão desse novo e específico encargo heróico encetado por Odisseu: descobrir a verdade do massacre dos rebanhos. E, a instruir Odisseu, Atena antecipa-lhe quais são os modos imperativos dele então reclamados para presenciar o defrontamento de Ájax. Primeiro, que o herói bem a ele se disponha, não se negue, antes mantenha sua presença por firme confiança. E melhor o tranqüilizando, adverte-o a que não sinta ameaça à sua pessoa, receando desgraça por sua presença diante 65 Francisco Murari Pires de Ájax. Pois, afirma a deusa, a realidade da percepção de sua presença por Ájax será por ela neutralizada, ao desviar do olhar deste a visão da figura odisséica. Assim, que o herói não tema e, pois, não recue.5 De imediato, então, a deusa põe-se a chamar a presença de Ájax para fora da tenda, diante das barracas, ali mesmo onde já se encontra Odisseu, para com este defrontá-lo. Todavia, então ocorre um impasse: eis que Odisseu se nega a participar do defrontamento! A cautela de Odisseu Aqui alcançamos a cena crucial investida pela crítica para o seu entendimento das razões da ação da deusa ao propor esse defrontamento de Ájax perante Odisseu, e predominantemente, por essa crítica mesma, apreciada então como tendo por finalidade a impiedosa vingança da deusa a vilipendiar seu inimigo derrotado que a desonrara, agora dele escarnecendo e ridicularizando em regozijo triunfante. Mas essa cena é toda ela conformada por uma intriga, pois o que Atena propõe – defrontar Ájax perante Odisseu –, é justamente ao que Odisseu, entretanto, se indispõe: o herói obstinadamente se recusa ao defrontamento. E, ainda, são justamente os modos contrários aos dele reclamados por Atena que o herói atualiza como reação ao defrontamento: recua, receia, teme desgraça! Pelo contrário, à precipitação dessa via o herói, em ação consoante com a areté de solerte prudência que o distingue, opõe contenções de acautelamento. Logo declara que de forma alguma irá se submeter a ele. E, assim, sua recusa obsta, inviabiliza a iniciativa da deusa (v. 74). Para dissuadir o herói desta sua atitude renitente, Atena recorre então a uma estratégia argumentativa que percorre vários passos sucessivos 5 “Confiante fica, e não como uma desgraça recebas o homem: pois, desviado, eu impedirei que o brilho de seus olhos veja tua figura” (Ájax, 68-70). 66 Mithistória de dissuasão. Primeiro, compõe uma provocação insinuadora de suspeitas vergonhosas, que aventam como instância determinante da recusa de Odisseu uma falha de seu caráter: vergonhosa covardia, indigna de um ser heróico (v. 75). Odisseu afiança-lhe que não se trata de covardia, mas ainda assim persevera na recusa (v. 76). Então, insiste Atena, se não há covardia subjetiva a ancorar de princípio tal recusa, mesmo assim há temor objetivo, conseqüente às circunstâncias do fato, pois denuncia alguém receoso do que possa acontecer. Mas, objetivamente considerado o defrontamento em suas circunstâncias contextuais, por que temer defrontar Ájax? Ele é, agora como antes, apenas um homem! (v.77). Sim, retruca Odisseu, apenas um homem, antes e agora. Mas, de imediato, bem qualifica quem é esse homem: ainda seu inimigo (v. 78). Ambígua declaração! Por um lado, concorda com, e mais reforça, o argumento de Atena: por ser apenas um homem, não é Ájax para ser temido por Odisseu, tanto que não o temia nem antes, mesmo já então sendo seu inimigo. Isso não mudou: seu inimigo tanto antes quanto agora, não é por isso que agora o tema. Mas, por outro lado, declaração que também de Atena discorda: justamente porque ele é ainda seu inimigo, prolonga-se, como situação ainda não superada, uma potencial hostilidade a envolver aquele defrontamento. Assim, pode Odisseu aventar ainda algum temor por outra razão fundamentadora, algo que justamente tenha mudado, uma realidade nova, em vista do que ele ancora a perseverança de sua recusa. Mas Atena, rápido, investe agora nova réplica persuasiva, intentando apanhar em falso a argumentação do herói pela brecha nela descortinada: se Ájax é o inimigo de Odisseu, eis mesmo a razão, não para evitar o confronto com ele, mas, pelo contrário, justamente ainda outra vez querer vê-lo, pois, já o tendo vencido, boa oportunidade de consumar até o fim sua vitória, completando-a pelo prazer de selar o vilipêndio 67 Francisco Murari Pires desonroso contra o inimigo derrotado. Não é, então, o riso mais doce o rir dos inimigos?6 Mas Odisseu, de renitente cautela, não se deixa apanhar pela sedução desse prazer. Ainda temeroso do confronto, cujos receios até agora as declarações de Atena não dissiparam, o herói diz que se contenta antes por não gozá-lo, prefere apenas evitar o defrontamento. Insiste e persiste em que Ájax fique mesmo na barraca! (v. 80). Diante da consistente e resoluta determinação da recusa de Odisseu, incontornável pelas vias sinuosas da persuasão discursiva da deusa que não dissiparam as nuvens de seu temor que o acautelava contra o defrontamento, Atena concede-lhe a admissão da razão que funda e justifica essa resistência do herói: é a demência de Ájax o objeto de seus receios, a recomendar-lhe evitar deparar-se com aquele inimigo em tal estado de insanidade (vv. 81-2). Pois, essa é a mudança, a realidade nova: tem-se ainda um homem, ainda Ájax, ainda inimigo de Odisseu, mas agora louco. E qual loucura? Um Ájax tomado por essa singular mania furiosa de massacrar chefes argivos, a assim desafogar, vingativo, todo o ódio rancoroso que lhes votava, especialmente aos Atridas e a Odisseu, principais causadores de sua desonrosa privação das armas de Aquiles! Então, da parte de Odisseu, justa cautela de homem prudente, pois a que risco o induzia a via do defrontamento com Ájax, o insano inimigo, proposta por 6 Ájax, 79. A interrogação posta por Atena a Odisseu – “Então, o riso mais doce não é rir do inimigo?” – vale, assim, como expediente de argumentação persuasiva bem circunstanciada e determinada por um contexto específico de significação e alcance, atrelada mesmo à réplica do herói imediatamente antecedente. Ela não foi, portanto, formulada como se fosse uma declaração de princípio positivo asseverado pela deusa, no sentido de que ela, assim, partilharia, e ainda autorizaria, esse modo de conduta heróica. Pelo contrário, o princípio que, depois ao final da cena com Ájax, Atena expressamente consagra é bem o inverso, a negação desse princípio heróico (vv. 126-132). A argumentação de Atena, enquanto expediente de dissuasão retórica, vale, então, positivamente tanto quanto vale seu arrazoado anterior: afirmaria mesmo a deusa que Odisseu é covarde? 68 Mithistória Atena? Deparar-se, frente a frente, com tal inimigo agora tomado por essa singular mania assassina! É isso que a proposta de Atena enseja-lhe acontecer: Odisseu, o chefe argivo mais odiado por Ájax, postar-se, assim, diante do louco homicida! E, agora, não se trata mais, como na noite anterior, da ilusão ludibriadora de tomar gado por homem, pois é Odisseu mesmo que ele terá ao alcance de suas mãos assassinas! Não é, pois, à toa que Odisseu recuse a solução dessa via por que Atena intenta propiciar-lhe a comprovação cognitiva da verdade que finaliza sua missão heróica. Assim, o herói, renitentemente desconfiado, situa ainda o impasse, a entravar a ação do concurso da deusa que o favorece.7 7 Os comentaristas modernos, a aventarem as razões de Odisseu em sua recusa de defrontar-se com Ájax, parecem compor uma argumentação hermenêutica de operação teleológica, pela qual projetam para o momento próprio em que essa recusa é atualizada – o princípio da cena do defrontamento –, o sentido, entretanto, só plenamente efetivado por seu término e fim. Dão, pois, a elevada consciência odisséica da fragilidade da condição humana e sua condizente piedade pela sorte adversa de Ájax, como a razão de sua recusa em espezinhar daquele seu adversário, contra o que fora então propugnado por Atena (confiram-se, por exemplo, as considerações de Knox (Knox, 1979, p. 130) e de Meier (Meier, 1991, p. 231). Mas, quando Odisseu se recusa a participar do defrontamento com Ájax, antecedendo ao ato de exposição desse seu inimigo, ele não declara já que ele assim não o faz porque sinta piedade do outro; pelo contrário, ele sente piedade de Ájax justamente depois da exposição, e precisamente porque presenciou o extravio da loucura e a miserabilidade do estado a que aquele herói, outrora tão grandioso, fora reduzido, a bem tirar daí a lição conseqüente a essa contemplação: a fragilidade da condição humana manifesta pela ruína de Ájax, mas que, por ser também genericamente a dele mesmo, suscita sua compaixão. Então, Odisseu se apiada de Ájax porque contemplou sua ruína, e não se negou a contemplar sua ruína porque se apiada dele. De modo que o preceito então por sua conduta, assim consubstanciado, de não espezinhar e vilependiar triunfante sobre a desonra do adversário vencido, constitui, não o princípio consoante à sua recusa, mas sim o produto final de sapiência resultante da experiência a ele propiciada por Atena, fazendo conjugar ao princípio de prudência solerte do herói as instruções que sua ciência divina enseja. Para entedermos a recusa inicial de Odisseu bastam, pois, as razões por ele mesmo declaradas: os justos receios de expor-se aos extravios homicidas do inimigo ensandecido! 69 Francisco Murari Pires Atena, então, reconhecendo a justeza de tal temor, procura tranqüilizar o herói, afiançando-lhe que não precisa assim temer, pois Ájax não o verá, mesmo estando perto (v. 83). Enigmática, incompreensível, e ainda, para o bem prudente Odisseu, suspeita garantia, pois, acautela-se o sempre desconfiado herói: sim, o homem está louco, mas não está cego! (v. 84). Como, então, Ájax não o verá? Assim, pelo entrelaçamento da trama conseqüente do diálogo da ciência e do poder de Atena com a cautela prudente e solertemente desconfiada de Odisseu, conforma-se a solução que, superando as aporias do impasse circunstancial, plenamente viabiliza o favorecimento do concurso divino ao herói: Atena obscurecerá as pálpebras de Ájax, ainda que dotadas de visão! (v. 85). De fato, proclama Odisseu, os deuses tudo podem, até mesmo realizar o (humanamente) impossível (v. 86). Tal, assim, uma visão que não vê e, pois, uma presença oculta! O que bem desfaz o impasse. Pois, a obtenção por Odisseu da prova clara, manifesta, da singular demência consumada pelo agir de Ájax, que então a proclamaria junto a todos os argivos, bem arquitetada pelo favorecimento divino de Atena ao herói, supõe, como sua condição efetivadora, o defrontar-se de Odisseu com Ájax, para que assim ele testemunhe essa manifestação; mas, supõe também, por implicação necessária de realidade da condição humana, a presença de Odisseu diante de Ájax, cuja detecção por este é, entretanto, a situação que Odisseu acima de tudo pretende evitar. Daí, a solução divina: uma visão (por Ájax) que não vê (Odisseu) e, portanto, uma presença (de Odisseu) que presencia (Ájax), sem, todavia, ser ela mesma presenciada (por Ájax). Agora, então, Odisseu acede à solicitação de Atena, prestando-se ao defrontamento com Ájax. Mas, mesmo assim, quando não têm mais razões de temor para recusar o defrontamento, ainda então a prudência sempre alerta de Odisseu ainda lhe preceitua proclamar certa indisposição: declara que o faz e aceita, não porque seja do seu querer, seu desejo de fazê-lo; pelo contrário, se a decisão coubesse apenas ao seu querer, “gostaria de me encontrar longe daqui”, diz ele. O espetáculo que, pois, irá pre70 Mithistória senciar, não atende aos reclamos do seu melhor agrado, nem tampouco de sua mais precípua inclinação. Estes ânimos antes o indisporiam a defrontar-se com seu inimigo louco. Assim é superado o impasse por que Odisseu obstava a realização do defrontamento. E, assim, a deusa instruiu a consecução da confiança do herói, por aquela mesma via de solução que ela, Atena, desde o início, já antecipadamente lhe declarara: “Confiante fica, e não como uma desgraça recebas o homem: pois, desviado, eu impedirei que o brilho de seus olhos veja tua figura”.8 A métis de Atena Agora, livrada a via do defrontamento de Ájax perante Odisseu, o favor da deusa propicia a este a prova finalizadora daquela sua obra heróica de investigação do crime cometido por Ájax. A deusa, identificando-se ardilosamente como sua aliada, de modo a evocar-lhe exultante gratidão pelo pretenso favor de sua assistência na consecução do empreendimento daquela noite, instiga o herói a relembrar todos os desígnios dos atos por ele então perpetrados. Ele, inflado de orgulho por seu feito supostamente exitoso, proclama regozijante como massacrara a argiva tropa, como também eliminara os dois Atridas, e como, ainda, aprisionara Odisseu, arrastando-o para a tenda a fim de lá supliciálo até à morte (vv. 89-113). E, assim, insciente da presença de Odisseu, tudo revela e, pois, tudo então confessa. 8 Ájax, 68-70. Do verso 66 ao 89 conforma-se uma estrutura narrativa de composição em anel, de modo que os versos 89-90 retomam precisamente o ponto da ação posto pelos versos 71-3. 71 Francisco Murari Pires Pela obra, portanto, da métis de Atena, ao ludibriadoramente inquirir Ájax sobre os modos e as intenções de seu recente feito noturno, conforma-se em ato como que a acareação do criminoso, e é Ájax, assim enganado, levado a produzir plena e cabal confissão de culpa pelo crime cometido. E consecução de fim este justamente consoante com a efetividade própria de operação das manhas da arte astuciosa, pois, como, se não por ludíbrio, obter a revelação de um crime cujo segredo encontra-se totalmente encerrado no espírito do próprio criminoso, único agente humano a agora conhecê-lo? Revelação que, portanto, supõe o paradoxal concurso da cumplicidade de disposição de quem, entretanto, é justamente a ela adverso! A obtenção humana da prova jurídica do crime, bem efetivada pelo concurso da ciência e da métis de Atena prodigalizadas em favor de Odisseu, agora finaliza plenamente aquela sua singular ação heróica de uma investigação criminal. Então, a proposta, aparentemente sedutora, apresentada tão somente interrogativamente por Atena a Odisseu9, constitui antes um dos recursos argumentativos da retórica persuasiva da deusa, com que ela trama viabilizar a realização desse defrontamento por meio do qual sua ciência divina finaliza a missão cognitiva do herói. Via de persuasão retórica, entretanto, obstada pela recusa renitente da parte de Odisseu, que cautelosamente a descarta. Recusa e descarte cautelosos que, depois, já consumada a exposição de Ájax diante de seus olhos, finalizam-se por justa consciência piedosa, aprendida graças à obra de Atena que assim o levou a contemplar a miserabilidade da condição humana emblematicamente espelhada na figura de Ájax, herói outrora tão grandioso, agora não menos aviltado. E, assim, compaixão de Odisseu que a deusa mesma, então, devidamente reconhece como condizente ato piedoso do herói, que apropriadamente 9 Proposta então aventada pela crítica moderna como a finalidade a que atenderia o defrontamento dos dois heróis: a exposição de Ájax ao riso de seu inimigo associado a Atena. 72 Mithistória tem ciência da fragilidade da condição humana e a quem, portanto, os deuses justamente amam.10 Outra vez a obra heróica de Odisseu mais sua consciência sapiente compõem o produto da orientação divina do favor de Atena, que prodigamente o instrui e ensina. Bem o reconhecera o herói desde o início, ao saudar a vinda da deusa (vv. 34-5): “Oportunamente chegas: pois sempre, tanto outrora como no futuro, sou dirigido por tua mão”. E, também, desde o princípio o proclamara Atena, ao interpelar o herói (v. 13): “Para que de mim, que sei, aprendas”. Ao apelo sedutor aparente daquela proposta retoricamente interrogativa, Odisseu, graças à sua renitente desconfiança, resistiu, não se deixou apanhar, não enveredou por sua sedução. Ao, todavia, atribuirmos a Atena o desfrute desse mesmo riso sarcástico de vilipêndio como a finalidade a dar o sentido para aquele defrontamento dos dois heróis, pelo qual ela, então, “ter-se-ia exemplarmente vingado de seu inimigo” derrotado, não estaríamos nós, críticos modernos, a ingenuamente cair no engodo persuasivo que, entretanto, Odisseu não caiu? O fim de Ájax Mas, então, afasta-se a presença de Atena, e desfaz-se a demência do herói. Ájax recobra a razão, e constata os efeitos de sua obra assassina: 10 Ájax, 127-33. O que fecha o anel aberto pela declaração inaugural de Atena, nos versos 11-13: “E tu espiares para dentro desta porta já não é mister, mas sim relatares por que tal afã tens, para que de mim, que sei, aprendas”. 73 Francisco Murari Pires no interior da tenda depara apenas ruínas de mortos de ovina cruentação. Logo desespera-se, bate na cabeça e gane, arranca os cabelos. Depois, a perplexidade o paralisa, até que, retomando a capacidade da fala, indaga furioso a companheira que tudo assistira, ameaçando com terríveis palavras a que tudo lhe revele (vv. 306-16). Agora, ganha (cons)ciência dos atos perpetrados. A filha de Zeus, invencível deusa de torvo olhar, o enganara, depois de insuflar-lhe furiosa doença. Assim, tomado por loucura, subjugado por extravio nefasto, olhar e mente desencaminhados, trilhara a via sinistra por onde apenas barafustara insanidades: errara a ensangüentar as mãos no gado argivo, não em seus chefes! Irrisória empresa de, entretanto, outrora primoroso herói: ele, o ousado, o corajoso, o intrépido em devastadoras batalhas, agora atualizava seu valor a atacar feras imbeles! (vv. 59; 123; 182-6; 2067; 216; 337-8; 364-7; 447; 452-3). Assim, realizava pretensões de destino heróico de ironia ridicularizante, pois guerreava amigos, em vez de inimigos, e caçava, não feras selvagens, mas animais domésticos, próprios de criação civilizada.11 Obra negadora de um ser heróico. Quem clamava pela luz diurna como tempo próprio e condição de efetividade de sua presença heróica, e que combatia franca e lealmente a descoberto, agora realizava seu feito ardilosamente, ocultando sua presença sob trevas noturnas. Quem antes distinguia excelência heróica por superioridade de beligerância defensiva, figura de torre por sua pessoa e escudo protetor, agora intentava firmar primazia honorífica por ataques assassinos, atualizando areté dependente de espada maléfica e ruinosa. O herói, que antes primava pela previdência e discernimento de espírito, agora errava insane, mente desvairada. Planejara o êxito vitorioso, mas obtivera apenas desastre ruinoso. Quem bem intentara vangloriar-se insultante da desonra do inimigo vencido, era, pelo contrário, objeto, e não sujeito, de tal vilipêndio, pois o humor da vitória 11 Para algumas das contraposições aqui tecidas, conformando a crise trágica de reversão de situações do destino heróico, veja-se Segal (Segal, 1981, p 109-51). 74 Mithistória antes contra ele se voltava: já vê os Atridas a dele escarnecer, Odisseu a decerto gargalhar de prazer. Apreciara ter em Atena sua aliada, e todavia ela o maltratara até a perdição (vv. 363; 383; 454). Principiara por (re)afirmar, vingativo, sua honra, mas terminara desonrado. Buscara, como sempre, conquistar mais glórias, mas delas se via despojado. Então, obra infamante, a deslustrar sua história (vv. 143; 217; 191; 401-2; 426; 464-5). O leal e solidário companheiro de combate, sempre dedicado a salvar seus amigos e, pois, a deles merecer gratidão, agora empreendia matá-los, era deles inimigo e vil traidor, objeto de seu ódio e revolta (vv. 618-20; 1266-7). Ele, o herói civilizador, baluarte na defesa e promoção da comunidade aquéia, sua potência de fundação e salvação, era agora, pelo contrário, seu agressor homicida, símile humano de forças caóticas de catástrofes naturais – fogos cósmicos, mais tormentas e tempestades de que irrompem raios e relâmpagos –, princípio só de desastres, destruição e ruína. Assim, ao tempo do Juízo das Armas, que consagrava entre os aqueus o primado heróico da métis, finalizou-se o feito doloso de Ájax, desempenho frustrado de uma iniciativa de vingança pelo âmbito desse especial modo de ação inteligente, esfera de honra do poder divino de Atena. Conta-se que Ájax, bem no princípio de sua trajetória heróica, quando deixava sua casa para conquistar fama e glória nos campos troianos, desatinara ao negligenciar os conselhos paternos. O ancião, de prudente experiência, prodigalizando-lhe suas sábias instruções de despedida por conselhos de como piedosamente melhor deveria orientar seus atos, o advertira (vv. 762-5): “Filho, com lança pretende triunfar – mas triunfar sempre com um deus.” Ele, entretanto, já cheio de empáfia orgulhosa, ignorara o conselho paterno, imponderadamente lhe respondendo: 75 Francisco Murari Pires “Pai, com os deuses mesmo quem não é nada conquistaria o triunfo; mas eu, mesmo sem eles, creio que hei de arrebatar essa glória”.12 Assim, firmava o princípio de conduta, a norma ética, por que comandaria seu ser guerreiro e, pois, seu destino heróico. Depois, já em meio aos combates troianos, manifestara mais outra jactanciosa presunção, agora tão mais insensata quanto sacrílega, pois dirigira a uma deusa, a própria Atena, que bem viera associar-se a ele naquele empenho beligerante, “exortando-o e instando-o a contra os inimigos voltar mão cruel: esta terrível e nefanda palavra” (vv. 770-5): “Soberana, perto dos outros argivos fica; por nossa linha jamais romperá a luta”. Ájax, herói baluarte e torre, areté de capacidade guerreira defensiva , dispensa a ajuda de Atena: seu próprio valor guerreiro basta para suster a linha de defesa no ponto onde ele combate. E, assim, ele pode, por ambígua proclamação ambivalente, tanto de desprendimento generoso para com os companheiros quanto de altivez exacerbada para com a deusa, remeter a graça do favor divino para outros heróis. 13 Mas, já Homero dissera os modos desse princípio ético da heroicidade de Ájax, compondo-a por afinidade com os de Aquiles, o herói-extremo, e em contraposição ao de Odisseu, o herói-meio. Assim, igual a Aquiles, confiante em sua coragem e na força de seus braços, puxara seus navios a acampar em um dos dois pontos terminais da linha aquéia, irrelevando pre12 Ájax, 767-9. O arrazoado de Ájax opera um pressuposto – que os deuses podem favorecer os desprovidos de valor –, todavia errôneo, se bem apreciadas as assertivas da própria Atena a esse respeito; pois, diz ela: “os deuses amam os sensatos e abominam os vis” (Ájax, vv. 132-3). Abordaremos a questão do delineamento dos tópicos caracterizadores da areté de Ájax no próximo ensaio, “O melhor dos aqueus”. 13 76 Mithistória ocupações de conclamar as defesas de mais apoios vizinhos, como antes o fizera Odisseu, o qual situara sua tenda bem no meio do acampamento, posição privilegiada para que o chamado dos companheiros fosse por todos bem ouvido. Ájax, como Aquiles, é herói extremo! (Ilíada, VIII.220-6). Para Ájax, a melhor realização do valor heróico reclama a dispensa de todo concurso que eventualmente o minore, seja humano, a cooperação de companheiros, seja inclusive divino, a assistência de um deus. Contar com tal concurso de um outro valor em seu empreendimento guerreiro significa admitir, em si mesmo, falta desse valor, cuja carência, então, aquele outro justamente preenche. Não, pelo contrário, Ájax confia irrestrita e incondicionalmente na total suficiência de seu próprio valor guerreiro, pleno e autônomo, a dispensar, portanto, todo e qualquer auxílio. Ájax é herói extremo porque entende não lhe faltar qualquer valor guerreiro a necessitar suprimento por outros. E, assim, pois, sempre principiou todos seus atos heróicos, confiante na auto-suficiência da potência de sua precípua areté guerreira, e sempre então exitoso. E, assim, também principiou aquele feito vingador de sua honra ultrajada, agora excepcionalmente enveredando pelas vias sinuosas das artes da métis, adentrando, pois, o âmbito de honra do poder divino de Atena. Então, proclamações tão altivas de independência de princípio heróico quanto insensatas para quem quer que humano seja, mesmo que herói valoroso. Agora a história de Ájax, em seu resultado ruinoso conseqüente à própria atuação desse princípio heróico que ignora todo o concurso do favor divino, ensinava a lição da ciência de Atena para quem desonra seu poder, dele prescindindo a assistência na realização de obras no âmbito da métis. Pois, nessa história heróica, a graça do favor de Atena finaliza a prosperidade gloriosa de Odisseu, que a honra, enquanto arruina a de Ájax, que a dispensa. Quem quer que humano seja, ainda que herói, deve conhecer o limite que estigmatiza sua condição. Diz Alcmeón de Crotona que os ho77 Francisco Murari Pires mens morrem pelo fato de não poderem juntar o princípio com o fim. Assim principiou, e assim, ao reverso do almejado por esse princípio, finalizou o ser heróico de Ájax, tragicamente enredando seu próprio destino. 78 Mithistória IV. O melhor dos aqueus No célebre Catálogo das Naus, o aedo, Homero, conclama a Musa para que lhe declare quem, dentre os chefes aqueus combatentes em Tróia, era o melhor. A Deusa então distingue dois heróis, contemplados por tal fama: Aquiles, e depois de Aquiles, Ájax. Todavia, no episódio do Juízo das Armas de Aquiles, a serem concedidas como prêmio justamemte ao melhor dos aqueus, o herói agraciado é Odisseu, e não Ájax. Kirk (G. S. Kirk, 1985, p. 241), em seus comentários ao texto da Ilíada, não só não esclarece sua solução, como complica ainda mais a intriga assim equacionada, pois, quando Homero destaca Ájax como o melhor dos aqueus depois de Aquiles, o crítico moderno, interpelando o poeta, interroga: por que não Diomedes? Gregory Nagy (G. Nagy, 1986, p. 26-41) vislumbrou uma solução, ao que me parece, inversa, em seu alcance, à de Kirk. Em The Best of the Achaeans, sustenta a tese de que Aquiles é o melhor dos aqueus na tradição épica corporificada para nós pela Ilíada, e Odisseu o é pela tradição da Odisséia. Já Ájax, integrado à tradição da Ilíada, é apreciado como o segundo melhor dos aqueus. Solução hermenêutica no mínimo tautológica, pois informa como resposta o que são os dados mesmos postos pela pergunta. E, assim, permanecemos com a questão inaugural intrigada pelos antigos. Retornemos, então, às tramas narrativas dos textos mesmos. 79 Francisco Murari Pires A iníqua sentença Os eólios, estabelecidos na Tróade em tempos posteriores à ruína da cidadela heróica, contavam a seguinte história, registrada por Pausânias (Descrição da Grécia, I.35.4): quando Odisseu, regressante da guerra troiana, naufragou ao largo daquelas paragens, as armas de Aquiles, por ele ganhas no célebre episódio do Juízo, levadas pelas águas do mar foram dar na praia, arrastadas até junto à tumba de Ájax. A anedota compõe, assim, uma memória histórica daquele episódio mítico por velada denúncia contra a injustiça cometida pelos gregos. Mas, tanto mais comprometedora porquanto advertia que fora apenas graças à intervenção corretora da natureza a desfazer aquele imperdoável erro humano que a justiça triunfara. Platão, em um de seus diálogos (A Apologia de Sócrates, 41b), condensou similar memorização histórica em breve alusão ao mito de Ájax. Dentre outros dos argumentos com que Sócrates se declara disposto a acolher sua passagem para o Hades, ele lembra o ensejo de, nessa nova morada, não só usufruir a companhia de Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero, se for verdade que tal seja possível, como ainda deparar-se com mais outros entretenimentos maravilhosos, estes mais estreitamente afeitos à própria história de seu destino: quando viesse ele a encontrar Palamedes, Ájax Telamônio e outros antigos igualmente mortos por sentença iníqua, poderia então comparar seus próprios sofrimentos com os deles. Píndaro firmou também, em seus epinícios, denúncias a acusar a perversidade daquele juízo porque se encerrara “o funesto conflito” entre os dois heróis. Por essa decisão ajuizante os antigos, celebrados pelos mitos, haviam preterido “a valorosa honra guerreira do mais forte e bravo”, Ájax, nobre coração, primor de esforços bélicos, pela “astúcia pérfida” de Odisseu, antes exímio nas artes da “fala aduladora, companheira do discurso insidioso, obradora de ardis, peste malfeitora. Pois, os dânaos, por um voto secreto, favoreceram Odisseu, e Ájax, privado da armadura dourada, deparou-se com a morte”. As razões, entretanto paradoxais, da fama 80 Mithistória glorificante de um herói, Odisseu, por ato assim tão danoso e iníquo que, justamente finalizando a recompensa do mérito acabava antes por obliterar a virtude agraciando o vício, adverte o poeta, haveria que percebê-las tanto, por um lado, na malignidade mesma de cada indivíduo humano – “pois, a inveja cola no mérito, ela não conflita com a mediocridade” –, inveja individual ainda agravada por outra viciosidade, agora no âmbito da composição coletiva do agir humano – “a cegueira passional das massas que as faz perderem a verdade” –, quanto, por outro lado, responsabilizar também a potência própria da arte poética – pois, “a voz de belos poemas ressoa sempre, ela é imortal” –, e assim “o renome de Odisseu ultrapassou seus feitos, graças ao encanto de Homero, pois os mitos e a poesia de sublime vôo deram-lhe não sei qual prestígio” (Píndaro, VII Neméia, 20-31; VIII Neméia, 19-37; IV Ístmica, 51-69). Também Sófocles (Ájax, 1135-7), na composição de sua tragédia sobre o herói salamínio, retratou situações que memorizam suspeitas sobre a melhor lisura do julgamento e sua tortuosa sentença favorável a Odisseu. Assim, na cena em que Têucro alterca com os Atridas enfrentando suas ordens que lhe interditavam o sepultamento do irmão, o herói arqueiro chega mesmo a acusar manobras furtivas de Menelau a desencaminhar a votação ajuizante, assim fraudando seu justo resultado. O próprio Ájax, na mesma tragédia (Ájax, 445-6), similarmente denuncia, senão a ilegalidade fraudulenta dos procedimentos do tribunal, certamente o opróbrio moral de seu injusto veredito por que este desonrava, antes do que recompensava, o mérito da excelência heróica superior. Amargamente vitupera ele contra a ingratidão dos comandantes da expedição troiana, os dois Atridas, insultando-os por chefes “rapaces de armas”, eles que, ao concederem “em prol de um velhaco” aquelas armas, dele por direito guerreiro, as haviam “usurpado, desdenhando seus triunfos”. E, todavia, há, nessas várias instâncias de memorização histórica estigmatizadoras da injustiça do Juízo das Armas por que se vitimara a honra heróica de Ájax, uma intriga que perpassa e compromete o melhor alcance hermenêutico de suas apreciações. Esse sentido, por que todas 81 Francisco Murari Pires elas consagram a lembrança do episódio mítico, cristaliza na memória histórica a redutora parcialidade de um olhar indignado contra aquele ajuizamento, justamente porque esse olhar discerne valores e preceitos por diversas formas em consonância com a atualidade das tramas mesmas dos próprios intuitos e significações particulares que ensejam a produção de cada uma dessas singulares obras. Tal parcialidade de olhar é por demais evidente nas apreciações compostas pela tragédia sofocleana. Em seu texto elas conformam, por meio dos termos virulentos da revolta furiosa de Ájax, uma ótica acusatória certamente contaminada pelos desaforos mais estritamente pessoais de avaliação do fato, enviesada pelos ódios rancorosos de um sujeito que se sente supostamente vítima de alegada injustiça. Ótica que se reitera pela corroboração de sentimentos ajuizantes parciais de outros sujeitos, afins do herói. Assim Têucro, que justamente recorreu a similares diatribes desqualificadoras de uma tal injustiça como réplica argumentativa em meio à discussão querelenta com que se contrapôs à ordem dos Atridas, arguindo então de modo a invalidar o princípio de obediência ao comando político proclamado por Menelau. Pelos (des)entendimentos de Ájax e de Têucro, só se alcança uma compreensão do fato judicante em se vituperando contra as mazelas vergonhosas do exercício da autoridade instituída que o fundamenta e sela. Já naquelas outras instâncias de memorização da injustiça perpetrada pelo Juízo das Armas, parcialidades análogas, conformes os intuitos de significação próprios de suas respectivas obras, envolvem a preferência desse singular sentido porque elas lembram o acontecimento mítico, de maneira a exaltar o modo da heroicidade que distinguia nobremente Ájax daqueles logros mais vis personificados por Odisseu. Em Píndaro, além das proposições de princípio mais gerais que orientam seu pensamento poético, observe-se que dois daqueles poemas, a VII e a VIII Neméias, celebram nobres de Egina, o primeiro Sógenes, vencedor do pentatlo, o segundo, Dinis, vencedor do estádio. Então, glorificação do vitorioso, atleta e cidade, nos Jogos bem feliz na eleição alusiva de seus mitos modelares, a 82 Mithistória justamente exaltarem herói eácida.1 Já na notícia guardada por Pausânias, a melhor fama heróica de Ájax projeta também os reflexos de sua glória pelo país e cidadãos eólios que piedosamente acolhem e preservam seu túmulo. Por sua vez, a Apologia de Platão, nas malhas da ironia socrática com que se relembram as iniqüidades das sentenças de morte denunciadas no âmbito de antiqüíssimas histórias míticas, prendem-se também outros malfeitores de histórias bem mais recentes, pretensos juízes, a vitimarem agora com seus votos judicantes a pessoa do filósofo. Assim, obras de memorização histórica sedimentadoras de um sentido parcial de avaliação do fato mítico, a entendê-lo consoante as tramas subjetivas de seus individuais ensejos e intuitos de memorização mesma. Mas, também, assim igualmente instâncias de desentendimento do fato mítico porque sua parcialidade oblitera possíveis sentidos objetivos por ele realizados. Todavia, a questão ainda se complica porque, se as instâncias de memorização textual que sedimentam a acusação da iniqüidade do veredito comprometem assim, pela parcialidade eletiva do enviesamento de seus olhares, a mais plena apreciação do sentido consumado pelo episódio do Juízo das Armas, nem por isso se afasta ainda uma validade consistente de sua denúncia. Pois, mesmo que os gregos, quer os chefes Atridas quer a massa votante, não tivessem então descaído sua decisão por qualquer falcatrua menos digna, haviam errado ainda injustamente: afinal não era sim Ájax, dentre os heróis combatentes em Tróia, fora Aquiles, o melhor dos aqueus? Nas representações dispostas pelas narrativas míticas, por inúmeras vezes a memória helênica fixou essa apreciação em cenas com que o poeta glorificava Ájax com tal apanágio honorífico. Assim, nos episódios da Ilíada, em meio aos acirrados combates no plaino de Tróia, tanto companheiros 1 Confiram-se, em Heródoto (Histórias, VIII.64 e 121), as tradições com que os gregos assinalavam o prestígio heróico de suas vitórias nas guerras Medas, fazendo figurar nelas a presença do concurso de seus heróis eácidas. 83 Francisco Murari Pires quanto adversários reconheceram e proclamaram Ájax o melhor dos aqueus. Afirmou-o, dentre os gregos, Idomeneu (Ilíada, XIII.321-5), e dentre os troianos, seu maior adversário, Heitor, que com ele medira forças em duelo memorável (Ilíada, VII.289). E ainda também assim o exaltou a voz do próprio Odisseu, em cenas tramadas agora ou pela Odisséia homérica (Odisséia, XI.550), por ocasião da descida do herói ao Hades no monólogo com que interpelou a sombra do Telamônio, ou pelo Ájax sofocleano (Ájax, 1340-1), por ocasião do debate acerca das honras do sepultamento do herói suicida. Declarações de Odisseu a louvar Ájax como o “melhor dos aqueus” tanto mais intrigantes quanto formuladas justamente por quem fora, entretanto, em ocasião anterior, no Juízo das Armas, seu rival e ferrenho adversário, a disputar então com Ájax, e a lhe arrebatar, o apanágio de ser honrado justamente por tal distinção mesma com que ganhara a posse das armas de Aquiles. Intriga que os críticos modernos2 logo equacionam como prova cabal da injustiça daquele julgamento, pois quem fora favorecido por seu veredito, agora, todavia, asseverava que o melhor mesmo era o outro, seu adversário, entretanto preterido. Portanto, clamoroso erro judicante! Ilações hermenêuticas da crítica moderna, a meu ver, entretanto, equivocadas ao assim especularem que as proclamações de Odisseu, nos ensejos daquelas duas ocasiões, asseverem o reconhecimento da injustiça do Juízo das Armas, como se estivesse ele, então, admitindo que quem, por mérito de excelência superior, deveria mesmo ter sido contemplado com aquele prêmio honorífico fosse não ele, mas sim Ájax. É que as proclamações de Odisseu a louvar Ájax como “o melhor dos aqueus” atualizam-se em tempos e realidades precisas, em ocasiões outras que circunstanciam questões outras, que não são propriamente aquelas concernentes aos méritos heróicos enquanto critério de atribuição das armas de Aquiles como prêmio ao melhor dos aqueus. O tempo e realidade de apreciação 2 Confiram-se as indicações dadas por Winnington-Ingram, p.58, n.4; também Fisher (p. 312, n. 92) e Meier (p. 219). 84 Mithistória desta questão por avaliação judicante está já encerrado, finalizado. Aquelas proclamações de Odisseu não têm alcance retroativo a negar o fato consumado, elas não implicam questionamento de sua injustiça por veredito equivocado de aferição de excelências heróicas. Quer-me parecer que a disjunção de tempos e realidades conformadas pelas narrativas míticas não comportem razões para uma tal inferência de (con)fusão hermenêutica. Lá, no tempo e realidade do Juízo das Armas, em que a questão se atualiza propriamente, a ação de Odisseu é totalmente outra que a suposta pelas conjecturas da crítica moderna: Odisseu tanto mais entende ser ele “o melhor dos aqueus” a merecer aquele prêmio quanto justamente assim o proclama, postulando seus reclamos naquela disputa com e contra Ájax. Não nos consta que então tivesse arguido a justiça de sua concessão a favor de seu adversário! Mas, há ainda outro registro da memória poética que mais taxativamente proclama a excelência maior de Ájax na guerra troiana, pois singularmente a representou como fato mesmo dessa realidade mítica, assim formulada em nome da voz narrativa do próprio aedo, Homero, que no Catálogo das Naus externou expressamente tal juízo, declarando que, “depois de Aquiles, o melhor dos aqueus era Ájax Telamônio” (Ilíada, II.768-9).3 Então, já em Homero, obra de memorização a associar as figuras heróicas de Ájax e Aquiles, assim as apresentando como marcos supremos de realização de excelência, de areté guerreira, no cerco à cidadela troiana. Projeção paralela de valorações heróicas que a tradição mitográfica pós-homérica conformou em genealogia, aparentando os dois heróis: de Éaco, filho de Zeus, por Endeis, nasceram Peleu e Télamon, e destes, Aquiles e Ájax.4 Confiram-se também: Ilíada, XVII.279-80 e Odisséia, XXIV.17-18. Também Alceu ecoou essa formulação: “Da raça do rei Cronida, Ájax, o melhor após Aquiles”. Apolodoro. Biblioteca, III.12. Confiram-se as indicações e comentários de Frazer ao texto de Apolodoro (p. 57), bem como as considerações de Fleischer no Léxico de Roscher (s.v. Ájax). 85 3 4 Francisco Murari Pires Se então, fora Aquiles, Ájax era mesmo o melhor dos aqueus, por que no Juízo das Armas concederam os gregos tal título honorífico a Odisseu, e não ao Telamônio? Que razões objetivas fundantes da concepção heróica de excelência, areté, poderiam estar assim consagradas pela memória desse episódio? Ou, no vazio dessa falta de objetividade, apenas se pode ter do acontecimento o desentendimento com que aqueles olhares subjetivos o denunciaram como iníqua injustiça, negação de tais princípios fundantes da honra heróica, a estigmatizar para sempre o opróbrio do terrível erro helênico de sua decisão favorável a Odisseu? Retomemos, pois, do princípio, recompondo o que nos restou das memórias narrativas com que os helenos contaram os episódios constituintes desse fato mítico. Os jogos e as armas A encerrar as honras fúnebres celebrantes do magnífico herói, Aquiles, sua mãe, Tétis, proclamou a abertura dos jogos, depondo no meio da arena esplêndidos prêmios. Jogos e prêmios inigualáveis, consoantes à excelência máxima do herói então glorificado. Apenas desse excepcional maravilhamento de quem os assistiu – a alma de Agamêmnon, a relatá-los à de Aquiles, lá no Hades – diz a memória homérica dos mesmos.5 Já o mitógrafo posterior, Apolodoro, registrando-os pela crônica descarnada de uma esquemática narrativa episódica, guardou a lembrança de alguns vencedores: Eumelo na corrida de carros, Diomedes no estádio, Ájax no arremesso do disco e Têucro no disparo do arco.6 5 6 Homero. Odisséia, XXIV.85-97. Apolodoro. Epitome, V.5-6. 86 Mithistória Então, por fim, o prêmio maior: as armas do próprio Aquiles. Qual prova melhor decidiria o mérito de sua posse? Pelos contornos da memorização mítica desse episódio confunde-se uma duplicidade de razões. Por um lado, em justa conformidade com uma tal origem, aquelas armas caberiam, por precípua herança de sua identidade heróica, ao “melhor dos aqueus”. E, por outro, implicavam-se razões de direitos guerreiros, devendo justamente possuí-las quem já as ganhara em combate: qual dos aqueus as salvara de cair em mãos inimigas?; quem, em meio à ferrenha luta travada junto às Portas Céias, resgatara o cadáver de Aquiles, impedindo que os troianos o despojassem e aviltassem por múltiplos atos desonrosos? Dois estupendos heróis pleitearam os devidos reclamos por essa honra: Ájax e Odisseu. Mas, a qual dos dois, então, melhor cabia o mérito desse feito? Quem especialmente defendera o corpo de Aquiles, resgatando-o da confusão dos combates? A memória homérica desse resgate é indefinida em suas alusões. Em uma delas, a alma de Agamêmnon, em relato à de Aquiles no Hades, lembra apenas o lutuoso combate ao redor do cadáver, a consumir miríades de heróis de ambos os lados, e a preencher todo o dia, interminável em sua indecisão, até que Zeus o liquidou desencadeando tempestade inviabilizadora de lutas. Êxito vitorioso de defesa aquéia do corpo, então transportado para as naus, longe da peleja, a já reclamar honras fúnebres. Quem, pois, o salvou? Apenas um “nós”, a comunidade dos companheiros, é assim referida por Agamêmnon.7 Uma outra indicação homérica conforma-se pelas aflitivas lembranças de Odisseu. O herói vagava em sua jangada por dezoito dias, à vista já das montanhas feácias, quando a perseguição do deus irado, Posídon, o alcançou novamente, desdobrando-lhe outro padecimento: agitou contra o navegante solitário medonha tempestade, de turbulência caótica composta por todas as espécies de ventos. Então, consciência heróica do terrí7 Homero. Odisséia, XXIV.36-45. 87 Francisco Murari Pires vel perigo, receando antever o anúncio cósmico de uma morte inglória. À mente lhe vem a lembrança de outro episódio igualmente assim ameaçador: lá em Tróia, “quando inumeráveis troianos disparavam-lhe êneas lanças ao redor do Pelida morto”.8 Alusão que, por certo, apenas lembra a participação de Odisseu no episódio, não comportando senão inferências elípticas quanto a tudo o mais. Dois poemas cíclicos especialmente narraram o episódio. Segundo a Etiópida, conforme o resumo registrado por Proclo, é Ájax quem se apodera do cadáver subtraindo-o aos inimigos, e o transporta para as naus. Odisseu cobre sua retirada, rechaçando os troianos.9 Assim também o afirmava a Pequena Ilíada, pelo que se depreende do escoliasta que a mencionou a glosar uma passagem dos Cavaleiros de Aristófanes. E tradição narrativa similarmente fixada pelo relato do mitógrafo tardio, Apolodoro, que diz ter Ájax, após matar Glauco, despojado o cadáver de Aquiles de suas armas, logo as mandando para as naus; já o corpo mesmo, retirou-o da pugna em meio à saraivada de dardos com que o agrediam os troianos. A seu lado, Odisseu os combatia.10 Então, pela abordagem da razão desse feito guerreiro, prova insolúvel, travada pelo impasse de uma indecisão. Como Ájax e Odisseu dissentissem a disputar o primado acerca de suas respectivas excelências, a sapiência experiente de Nestor vislumbrou a via de saída do impasse. No conselho dos helenos propôs que se enviasse dentre eles escutas a surpreenderem, sob as muralhas de Tróia, que juízos trocavam os inimigos a respeito da bravura daqueles dois heróis.11 8 9 Odisséia, V.299-312. Um papiro (Oxirrinco, 2510), em estado bem fragmentário, talvez referente à Etiópida, sugere, porém não cabalmente, uma inversão no retrato das ações heróicas de Ájax e Odisseu: este teria carregado o cadáver aos ombros, enquanto aquele defendia sua retirada (Fragmentos de Épica Grega Arcaica, p. 147). Apolodoro. Epítome, V.3-4. Pequena Ilíada, 3 (escólia a Aristófanes, Cavaleiros, 1056). 88 10 11 Mithistória Assim, o ancião discernia o modo de alcançar uma decisão imparcial, pois não distorcida pelas preferências dos vínculos subjetivos dos ajuizantes, e objetiva, pois não direcionada pelos apelos circunstanciais implicados pelo reclamo da própria situação judicante. E os escutas ouviram uma discussão entre algumas jovens troianas que justamente desdobrava aquele debate. Uma delas discorria a favor de Ájax, “bem superior” a Odisseu, argumentando que fora ele quem “tomara o corpo do Pelida e o retirara” da pugna, o que Odisseu, pelo contrário, não se dispusera a fazer. Mas a outra troiana, “por premeditação de Atena”, não se convenceu, antes replicou-lhe que ela estava a proferir coisas absurdas e enganosas. Que impropriedades então falseavam aquele arrazoado da primeira troiana, esclarecem-se pelos versos aristofânicos justamente glosados pela escólia que os referia à disputa entre Ájax e Odisseu, outrora narrada na Pequena Ilíada, e supostamente atribuíveis à réplica da segunda troiana: “Mesmo uma mulher levaria a carga, se um homem lha depusesse; mas não combateria, pois desabaria se combatesse”.12 Assim, o salsicheiro, na disputa de pronunciamentos oraculares travada com o paflagônio pela obtenção do favorecimento, enquanto seu intendente, de Demos, desqualificava aos olhos deste qualquer mérito daquele, Cléon, que se pavoneava por ter trazido para Atenas aquela carga de prisioneiros, os lacedemônios sitiados em Esfactéria: feito de tanta coragem quanto a de uma mulher, afeita apenas a encargos servis, ente inútil nas lides guerreiras próprias de homens, pois quem de fato conquistara aquela vitória no campo de batalha fora Demóstenes, o comandante que chefiava os atenienses. E, assim, também argumentara a segunda troiana, a menosprezar as mesmas mazelas femininas do esforço de Ájax diante da viril virtude guerreira de Odisseu ao salvar o corpo de Aquiles. 12 Aristófanes. Cavaleiros, 1056-7. 89 Francisco Murari Pires Outra história, similar a essa, também aludia à intervenção do parecer dos troianos a encaminhar decisão favorável a Odisseu. Ao narrar o encontro do herói com a sombra de Ájax no Hades, Homero menciona a vitória do primeiro no Juízo das Armas de Aquiles, postas à disputa entre os aqueus como prêmio pela mãe venerável, Tétis. E afirma que assim o “ajuizaram os filhos dos troianos e Palas Atena”.13 Ao que o escoliasta aduzia a história explicativa. Fora Agamêmnon, para se livrar dos dissabores suscitados por aquele espinhoso julgamento, quem remetera a decisão a um tribunal especialmente composto por prisioneiros troianos, deles inquirindo qual daqueles dois heróis causara mais danos aos inimigos. E estes apontaram Odisseu. Assim, ajuizando a efetividade ruinosa da obra guerreira contra Tróia, decidiu-se pela eleição de Odisseu a disputa heróica pela posse das armas de Aquiles. Firmava-se agora que, na ausência e falta de Aquiles, Odisseu era assim “o melhor dos aqueus”. Ájax e Aquiles Mas, dos aqueus combatentes em Tróia, fora Aquiles, o melhor não era Ájax Telamônio? Pela ótica revoltada de Ájax, a apreciação desse resultado favorável a Odisseu queixa-se amargamente contra os dois Atridas mais os aqueus todos, que assim o haviam injustiçado ingrata e despudoradamente. Depois de Aquiles, era ele, Ájax, “o melhor dos aqueus”! Como, então, não o haviam assim consagrado os gregos por tal título heróico? Por que, na concessão das armas do Pelida, o haviam preterido em favor de um velhaco, finória raposa? Ótica acusatória certamente comprometida por contornos estritamente subjetivos de apreciação dos acontecimentos, pois virulentamente 13 Odisséia, XI.547. 90 Mithistória contaminada pelos rancores de uma pretensa vítima de suposta injustiça. E ótica que ainda se amplia pela corroboração de sentimentos ajuizantes de outros sujeitos, afins do herói, que similarmente (des)apreciaram o episódio: também como injustiça despudorada, Têucro, seu meio-irmão, vituperou contra aquela decisão aquéia.14 Todavia, ótica não apenas de representação subjetiva pessoal, como também inter-subjetiva, pois sua proclamação, ajuizando Ájax como “o melhor dos aqueus” após Aquiles, foi ecoada por outras vozes, agora de heróis desvinculados do círculo pessoal do Telamônio. Assim o afirmou não apenas Idomeneu15, mas ainda o próprio Odisseu, entretanto, justamente seu rival e ferrenho adversário naquele episódio mesmo do Juízo das Armas, a arrebatar-lhe então a precisa honra de ser como tal glorificado16. Também o inimigo troiano, Heitor, que com ele medira forças em duelo memorável, o reconheceu.17 E ainda, ótica que alcançou já foros de memorização histórica por formulação de representação objetiva, pois os poetas que narraram as histórias do mito a consignaram como fato mesmo em suas obras. Assim o afirmou expressamente o aedo, Homero.18 E, assim, o consagraram poetas posteriores: Alceu19 e Píndaro20. Depois, também o filósofo lembrou a iniquidade da sentença.21 E já em nossa era, o viajante grego registrou a memória de uma lenda que também aludia à injustiça sofrida pelo Telamônio: os eólios, posteriormente habitantes de Ílion, tinham-lhe contado 14 15 16 17 18 19 20 21 Confira-se o Ájax de Sófocles. Ilíada, XIII.321-5. Odisséia, XI.550; Sófocles. Ájax, 1340-1. Ilíada, VII.289. Ilíada, II.768-9; XVII.279-80; Odisséia, XXIV.17-18. “Da raça do rei Cronida, Ájax, o melhor após Aquiles” (fr. 83; Edmonds). Neméias, VII.26-27; VIII.17-37; Ístmicas, IV.35-42. Platão. Apologia, 41b. 91 Francisco Murari Pires que “quando Odisseu naufragou, as armas foram parar na praia junto à tumba de Ájax”.22 Assim, a cumplicidade da natureza maravilhosamente reparava o imperdoável erro humano. Pois, Ájax e Aquiles, marcos supremos de realização de excelência heróica, de areté guerreira, no cerco à cidadela troiana. Projeção paralela de valores heróicos que a tradição mitográfica pós-homérica conformou em genealogia, aparentando os dois heróis: de Éaco, filho de Zeus, por Endeis, nasceram Peleu e Télamon, e destes, Aquiles e Ájax.23 E equiparação e confronto de virtudes que ensejou ao erudito tardio, Libânio, ainda apegado às tradições dos clássicos helênicos pelo século IV de nossa era, desempenhos de exercício retórico a compor uma Comparação entre Ájax e Aquiles. Areté Mas o que, no plano das representações e conceituações míticas do modo heróico de existência humana, se entende pela qualificação de ser o melhor? Entre a existência humana e o ser divino, o estatuto da condição heróica situa modo ambíguo de ser, tão bem divino quão humano: humano porque estigmatizado pelo fato da mortalidade, e divino porque distinguido especialmente por honras privilegiadoras de grandeza excepcional. Heróis são os áristoi, categoria diferenciada de guerreiros avançados, os prómachoi, que combatem à dianteira, assim distinguidos e mesmo dissociados da massa dos meros combatentes anônimos, que compõem exército apenas pela realidade coletiva do número. Qualificações de me22 23 Pausânias. Descrição da Grécia, I.35.4. Apolodoro. Biblioteca, III.12.6 (confiram-se as indicações da nota de Frazer a Apolodoro, p. 57, bem como as considerações de Fleischer no Léxico de Roscher, s.v. Ájax). 92 Mithistória lhor e primeiro que definem a excepcionalidade da excelência, da areté, de sua dignidade guerreira. E o poeta, Homero, diz a areté distinguidora de cada nome heróico identificando dupla instância de determinação, por um lado circunstancial, por outro atributiva. Ser o melhor supõe a circunstância de uma dada e certa comunidade, um círculo demarcado de associação humana em que um indivíduo, bem nomeado, se distingue como o melhor de todos eles. E ser o melhor supõe também a especificação de um dado e certo atributo ou qualidade por cuja prática aquele indivíduo singular se distingue e prova superior. Assim, no país dos lícios, não havia melhor arqueiro do que Pândaro.24 Em sua comunidade, Mérope mais do que ninguém conhecia a arte profética.25 Já na sua, era Euridamante quem primava no domínio de tal competência de hermenêutica onírica.26 Como caçador, em sua terra, Escamândrio a todos superava, perito mateiro.27 Por artífice, o melhor de todos era Féreclo.28 Como coureiro, o mais exímio era Tíquio, quem justamente confeccionou o escudo-torre de Ájax.29 Na comunidade dos feácios, excelente aedo era Demódoco, e já em Ítaca, Fêmio, que como ninguém conhecia os cantos das gestas de heróis. Similarmente se concebem as precípuas excelências que distinguem individualmente cada herói congregado por essa singular comunidade dos guerreiros helênicos expedicionários contra Tróia. Por prudência sapiente de conselhos e deliberações, bem condizente com veneranda velhice, excelem os préstimos de Nestor.30 Por arte de arremesso do dardo, contavam os gregos com a perícia de Ájax Oileu, primoroso lanceiro, e ainda 24 25 26 27 28 29 30 Ilíada, V.171-3. Ilíada, II.831-2. Ilíada, V.149. Ilíada, V.49-54. Ilíada, V.60. Ilíada, VII.220-1. Odisséia, III.243-5; Ilíada, I.247-9. 93 Francisco Murari Pires velocista formidável. Destreza no manejo do arco destacava a figura de Têucro, sem que acarretasse prejuízo de valor guerreiro para o combate de perto.31 Em dignidade régia, rei maior em poderio, firmava Agamêmnon sua areté.32 Na ciência da disposição e arranjo dos carros de guerra ordenados em formação de combate, sobressaía-se o ateniense Menesteu, com quem só Nestor rivalizava.33 Por manhas e recursos astuciosos, Odisseu não tinha igual.34 E guerreiro maior, por força, bravura, coragem e demais qualidades de virilidade bélica, Aquiles. Mas também Ájax Telamônio lá estava, nos plainos troianos, enquanto guerreiro campeão. Então, que âmbito mais precípuo de realização de heroicidade bélica especialmente assinala a areté de Ájax? A torre Do alto dos muros de Tróia, Príamo interroga Helena acerca da identidade dos campeões aqueus. Bem reparara num deles, de nobre porte, cuja figura enorme se destacava proeminente entre todos os argivos, tanto pela altura quanto pelos largos ombros. Esse, respondeu a heroína, é Ájax, um colosso, baluarte dos aqueus.35 Figura gigantesca excepcional, Ájax tem consoante armamento distintivo: o escudo. Terrível arma de defesa, robusta, densa por sete camadas de couro taurino revestidas por oitava brônzea faiscante, obra monumental de lavor primoroso confeccionada por exímio artesão coureiro – Tíquio –, que resiste incólume, apenas reboando, ao portentoso tiro de ingente pedra 31 32 33 34 35 Ilíada, XIII.313-4. Ilíada, I.277-281. Ilíada, II.553-555. Ilíada, III.200-202; Odisséia, XIII.291-301. Ilíada, III.226-9. 94 Mithistória negra desferido por Heitor.36 Sua forma é especialmente singular: semelho a uma torre, ou bastião de uma muralha.37 Sob sua proteção se refugia Têucro, hábil arqueiro, quando em combate se associa ao irmão: espiona os adversários aproveitando os deslocamentos com que o move Ájax, e rápido alveja um, logo se recolhendo àquele abrigo como criança que afunda no regaço materno.38 Arma rara, inusitada, relíquia da memória poética.39 Pelo escudo bem se distingue e identifica Ájax.40 Então, pýrgos – torre, bastião – denomina tanto o escudo, quanto o guerreiro que o porta.41 Assim, pois, Homero diz do armamento e idiossincrasia de Ájax. Firmeza de manutenção de posicionamento e solidez de resistência guerreira que defronta e barra, inabalável, tenaz, jamais cediço ou fatigado, os avanços inimigos. Quando Idomeneu pondera junto a Meríones o ponto onde deveriam ambos adentrar o combate, que mais necessitado fosse de defesa face à furiosa arremetida troiana contra as naus aquéias, logo descarta aquele em que depara Ájax. E aprecia, então, a excelência guerreira que o distingue: 36 37 38 Ilíada, VII.219-24; 263-7. Ilíada, VII.219. Ilíada, VIII.266-72. Prudente modo de combate de um arqueiro, pois quando Têucro, animado pelo rol de adversários assim mortalmente feridos, delongou-se fora da proteção do escudo, falhando já por duas vezes em alvejar cobiçado inimigo, Heitor mesmo, e insistiu em um terceiro disparo, o adversário acertou-o primeiro com portentosa pedrada, baqueando-o por terra desarmado. Então, presa inerte do “cão raivoso”, ainda o salvou o irmão, resguardando-o pela proteção de seu escudo brandido ao redor (Ilíada, XI.330-1). O escudo-torre, retangular alongado a cobrir as pernas também joelho abaixo, é apenas atestado arqueologicamente por representações figuradas datáveis do século XVI a.C. (Courbin, Problèmes de la Guerre, p. 95). Cebríones, combatendo como cocheiro ao lado de Heitor, adverte-o da carga furiosa do avanço aqueu, logo apontando o guerreiro assassino que o comanda: “é Ájax Telamônio, bem o reconheço, pois largo em torno dos ombros tem o escudo” (Ilíada, XI.526-7). 95 39 40 Francisco Murari Pires “O grande Ájax Telamônio não recuaria diante de um homem que mortal fosse, que o fruto de Deméter comesse, e que pelo bronze ou por enormes pedras vulnerável fosse. Nem mesmo a Aquiles rompedor cederia no corpo a corpo; mas este, pela corrida, jamais teria rival”.42 Não há poder guerreiro, desde que humano, que mova Ájax a ceder sua defesa: não o conseguiria nem mesmo o maior herói, excelência suprema de potência guerreira ofensiva, Aquiles. Recuo de Ájax, a retroceder sua defesa guerreira, só é admissível se concebido por meio de expressa decisão divina. E é assim que Zeus o detém, infunde-lhe temor, e o obriga à retirada dando realização ao avanço troiano que acossa os aqueus junto às naus. Então ele retrocede, escudo lançado às costas, mas só bem vagarosamente, compassando volteios de furor apavorante com que contém seus perseguidores. Acata o retrocesso imperioso e, todavia, não é a saraivada de golpes com que o atingem que o força, a eles obstinadamente indiferente. Pelo contrário, é ele quem comanda os movimentos, que determina quando e quanto permite de avanço inimigo. Eis como, retrata Homero, Ájax recuava e, assim o fazendo, justamente “a todos impedia de se encaminharem para as céleres naus”.43 Ambígua concepção poética do retrocesso de um baluarte guerreiro que jamais, mesmo então, perde sua precípua potência de barragem. Ájax, pois, bem compõe paralelo heróico com Aquiles, marcando realizações extremas de excelência de potência guerreira no cerco de Tróia. Assim o figurou o aedo, ao expor a disposição das tendas dos heróis que alinhavam o acampamento aqueu: diz que eles ambos, “em sua coragem confiantes e na força de seus braços, puxaram suas naus para os extremos”.44 41 Odisseu precisamente assim qualifica a figura de Ájax: ele é a torre dos aqueus (Odisséia, XI.556). Ilíada, XIII.321-5. Ilíada, XIII.569. Ilíada, VIII.224-6. 96 42 43 44 Mithistória Postando-se como baluartes terminais da formação aquéia, cada um por si mesmo compondo a defesa daquelas posições singularmente diferenciadas por destacado perigo guerreiro, os dois heróis proclamam a primazia de suas excelências, ao afirmarem a autonomia da bravura precípua com que as fundam. Mas, simetria especular de excelência guerreira suprema45 por distintos princípios de eficácia beligerante: com Aquiles, furor de agressão ofensiva, com Ájax, baluarte de resistência defensiva. Suas armas distintivas simbolicamente os assinalam: a lança para Aquiles, o escudo para Ájax.46 A expedição troiana Então, a plêiade de heróis que compõe o corpo expedicionário grego contra Tróia configura mosaico completo de diversos recursos de competências beligerantes, todos configurados no nível da excelência heróica, cuja composição e soma é devidamente requerida e apropriada para o melhor êxito da campanha bélica. Cada areté assim reclamada destaca no empreendimento beligerante conjunto a presença e efetividade de uma precípua figura heróica, bem nomeada por consoante fama. Cada e todo herói, participante do esforço bélico contra Tróia, afirma justa excelência como condição de sua presença e, pois, como princípio guerreiro do êxito aqueu e como causa da ruína de Tróia. Plêiade de heróis, diz o mito, desde o princípio destinada para a guerra troiana, pois originariamente congregada como rol de pretendentes a disputarem a mão de Helena, tendo juramentado a obrigação de seu singular empenho guerreiro na defesa da união conjugal então consumada. Todos os heróis, menos um, Aquiles, naquela ocasião, diz o mito, ainda muito jovem para postular reclamos nupciais. Mas, assim que os aqueus decidiram mover guerra contra Tróia, Calcas, sábio profeta, bem os advertiu: que fos45 46 P . Masqueray. 1922, p. 3-4. G. Méautis. 1957, p. 14-15. 97 Francisco Murari Pires sem em busca também de Aquiles, pois, sem seu concurso guerreiro, a fortaleza jamais seria tomada.47 Então, assim completos, congregaram-se os heróis aqueus pelo empreendimento guerreiro contra Tróia. A chefiar inúmeras incursões fulminantes, Aquiles arrasa o país troiano, saqueia e pilha por todos os lados, multiplicando-se os nomes das cidades vencidas em terra e por mar, acumulando-se os bens e valores tomados como despojos. O próprio herói, na cena da embaixada em que argumenta denunciando a ingratidão de Agamêmnon no comando régio da expedição, realça o alcance devastador de sua potência guerreira: “Doze cidades dos homens com minhas naus devastei, e por terra afirmo que foram onze, na fértil Tróade”.48 De muitas incursões memorizou-se apenas o nome da cidade arruinada, cujo registro meramente acrescia marcas à fama de Aquiles, eversor de cidades. Assim, Lesbos, Focéia, Cólofon, Esmirna, Clazômenas, Cime, Egíalo, Tenos, As Cem Cidades, Adramiteo, Side, Êndion, Colone, Tebas Hipoplácia, Lirnesso, Antandro, e ainda várias outras que, entretanto, a memória helênica não guardou o nome.49 E, também os príncipes troianos, filhos de Príamo, tombaram pelas mãos de Aquiles. Assim, Troilo, de quem se diz que só nominalmente era seu filho, pois Hécuba o gerara de Apolo. Uma profecia prognosticava a invencibilidade de Tróia, caso esse príncipe chegasse aos vinte anos de idade. Mas Aquiles desfez as esperanças troianas, cortando-lhe antes o fio da vida.50 47 48 49 50 Apolodoro. Biblioteca, III.10; Hesíodo, Catálogos 68. Ilíada, IX.328-9. Apolodoro. Epítome, III.33. Confiram-se as indicações dadas por Frazer em suas notas ao texto de Apolodoro, v. 2, p. 202. 98 Mithistória E eram já decorridos dez anos de guerra incessante, plenos de devastações e mortes, sem que, nem assim, caísse a cidadela. Pois, o troiano, filho de Príamo, que primava por sua defesa era um não menos formidável herói, Heitor, de elmo flamejante, obstáculo inexpugnável a frustrar as pretensões aquéias.51 Mas as tramas dos desígnios divinos enredaram em um episódio os destinos dos dois magníficos heróis, antagônicos diante de Tróia, Heitor a defendê-la, e Aquiles a investi-la. Esse episódio, principiado apenas como mais uma das inúmeras partilhas de despojos troianos, mas que agora envolvia a honra do poder apolíneo por meio da figura de seu venerando sacerdote, Crises, então aviltado por Agamêmnon, desdobrou-se pela ira de Aquiles, desonrado por Agamêmnon que o privara de seu justo prêmio de guerra. O retiro de Aquiles Aquiles, alheio aos combates, isolado em sua tenda, em cisão contra os aqueus: paradoxal desenlace da opção de um destino guerreiro. Pois, após longos dez anos de extenuantes esforços belicosos, acumulando feitos e mais feitos a afirmar sua excelência heróica, obtinha Aquiles, como resultado desse primor de viver guerreiro, a desonra! O episódio, portanto, frustra a opção heróica de Aquiles, já que os esforços e riscos guerreiros valem pela contrapartida de honras que eles finalizam. Ora, Aquiles cum51 Estrabão (Geografia, XIII.1.27, 594c) conta uma anedota em que se dizia que quando Fímbria, o questor romano destacado para as operações na Ásia Menor por ocasião da Primeira Guerra Mitridática, tomou de assalto, após um cerco de dez dias, a cidade de Ilium, pôs-se exultante a gabar-se de seu feito, proclamando-o bem maior do que o de Agamêmnon, pois este, embora provido de milhares de navios mais tropas de toda a Grécia, levara dez anos para consumar com muitas dificuldades o que ele, pelo contrário, realizara em apenas dez dias. Mas um dos habitantes da cidade logo replicou: “Sim, pois o campeão da cidade não era Heitor”. 99 Francisco Murari Pires pre os trabalhos da guerra, mas deles não lhe advêm honras, pelo contrário, é delas privado. É essa negação do sentido próprio de seu singular destino, que ele, queixoso, lamenta perante sua mãe, Tétis: “Mãe, já que me gerastes, todavia para breve existência, honra, porém, a mim devia conceder o Olímpio, Zeus trovejante. Mas, agora não me honra nem um pouco, pois o Atrida Agamêmnon, poderoso senhor, me desonrou: tomou e detém minha recompensa, que ele mesmo tirou”.52 Na prece que dirige à mãe, Aquiles, lamentando os dissabores de seu destino guerreiro, queixa-se, não diretamente contra Agamêmnon, que o desonrou expropriando-o de seu prêmio honorífico, mas, sim, contra Zeus, dado como o princípio de determinação responsável pelo devido cumprimento desse destino enquanto plenificação de honras. O rogo de Aquiles fora, assim, muito bem endereçado. Pois não só reclamava distinções honoríficas da devida instância de poder divino a quem justamente competiam os favores de sua concessão, Zeus Olímpio, quanto, ainda, intermediava seu pedido pela pessoa de Tétis, a quem favores passados, prestados ao tempo em que Zeus firmava seu poder soberano, obrigavam o beneplácito do rei dos deuses. Assim formulado por Tétis e anuído por Zeus, viabilizou-se o modo pelo qual se realizaria o destino honorífico da existência guerreira de Aquiles. Ele, que só dissabores e desgostos colhia de seus empenhos guerreiros, retirava-se dos combates, inativo em sua tenda. Dada esta sua ausência guerreira, aguardava-se o êxito troiano a acrescer vitórias sobre vitórias, em avanço irresistível contra as naus aquéias. Os gregos, então, assim terrivelmente acossados pela derrota, a acumular-lhes mortes sobre mortes, ver-se-iam obrigados a admitir sua dependência para com a força guerreira de Aquiles, cujo retorno à atividade exigiria, agora, a plena satisfação de sua finalidade honorífica, a cumulá-lo de bens e distinções. 52 Ilíada, I.352-6. 100 Mithistória Então, a efetivação do sentido honorífico do destino guerreiro porque optara o viver de Aquiles conformava, agora por sua ausência da guerra, a mais profunda contradição: paradoxalmente, a honra do herói advém, não quando e porque ele guerreia, mas, sim, quando e porque se afasta dos combates, evita a guerra. E a decisão de Zeus, atendendo à súplica de Tétis, se realiza. A ausência de Aquiles enseja a reversão do sentido por que, até então, se direcionavam os esforços do confronto guerreiro: pela falta de Aquiles, cessa a agressão do cerco aqueu que acuava os troianos na cidadela, dando lugar ao avanço da defesa troiana, agora já configurada como ofensiva que rechaça mesmo os gregos contra suas naus acampadas na orla praiana, a ponto de ameaçar incendiá-las.53 Assim, os troianos avançam decididos, imbatíveis em sua investida, comandados e insuflados por Heitor, e os gregos, embora denodadamente heróicos, recuam, retrocedem no campo de batalha e são empurrados contra as naus. Tempo paradoxal de guerra em que, agora, os gregos sitiantes de Tróia são compelidos à defensiva, empurrados para o abrigo de seu acampamento, pelos sitiados, assim invertendo-se o sentido do cerco entre quais guerreiros compõem seu sujeito e quais seu objeto. E os gregos, agora, atualizam uma diversa comunidade guerreira associada diante de Tróia: sem o concurso da ação de Aquiles, entretanto inativo em sua tenda. Já os troianos, Heitor bem os comanda, insuflando furioso ataque. Então, pelo inter53 Ilíada, V.787-791 (vejam-se os comentários de M.E. Edwards, 1987, p. 86). Este, pois, décimo ano de guerra troiana situa o tempo heroicamente apropriado para a edificação do muro de defesa do acampamento aqueu, cuja necessidade bélica supõe a ameaça dos avanços agressores troianos em uma situação conjuntural de guerra que configura sua vitória a mesmo intentar expulsar a invasão aquéia. Tal conjuntura bélica, por sua vez, supõe, no âmbito humano, a ausência de Aquiles – como poderiam os troianos agredirem e vencerem em combate se os gregos têm Aquiles em suas fileiras? –, e no âmbito divino, a decisão de Zeus. Justamente, o episódio da ira de Aquiles no ano final da guerra consuma a conjunção dessas condições heróicas para a edificação do muro de defesa aqueu em Tróia. 101 Francisco Murari Pires regno desse tempo que a ira de Aquiles demarca, bem se realiza o primado do princípio heróico precípuo da areté de Ájax, baluarte gigantesco e jamais cediço de resistência defensiva, verdadeira torre a conter e deter as agressões comandadas por Heitor. E, assim, Ájax bem se distingue e prima, dentre os aqueus todos, por enfrentar Heitor: duela gloriosamente com o campeão troiano e, depois, mais do que todos defende as naus aquéias do iminente incêndio com que as ameaça o troiano. Pelo tempo da ausência de Aquiles, Ájax é certamente, dada a atualização desse justo sentido defensivo do empenho guerreiro helênico, “o melhor dos aqueus”. E assim claramente o consignou o poeta, ao catalogar a comunidade aquéia congregada no cerco, inquirindo a Musa a declarar-lhe justamente essa questão: “As éguas de longe melhores eram as Ferecíadas, que Eumelo dirigia, velozes como pássaros, de mesmo pêlo, mesma idade e com dorsos nivelados. Elas que, na Piéria, Apolo do arco argênteo criou, ambas fêmeas, portadoras do terror de Ares. Dentre os guerreiros, de longe melhor era Ájax Telamônio, enquanto Aquiles esteve irado; pois ele era bem superior, e também seus cavalos, condutores do irrepreensível Pelida. Mas, ele nos navios recurvos, cruza-mares, quedava, rancoroso contra Agamêmnon, pastor de povos, o Atrida; e os guerreiros junto ao quebrante das ondas divertiam-se com discos e com dardos a disparar, mais setas; e os cavalos, cada um junto a seus carros, a pastar o lótus e a salsa dos pântanos ficavam; e os carros, bem recobertos, permaneciam nas régias tendas; e eles, pelo comandante caro a Ares pesarosos erravam pra cá e pra lá, por meio do acampamento sem combater”.54 A Musa, assim interpelada pelo aedo a declarar-lhe quem era, dentre os heróis aqueus sitiantes de Tróia, o melhor, distingue dois tempos. Uma 54 Ilíada, II.763-79. 102 Mithistória ação demarca essa dissociação temporal: Aquiles em ira contra Agamêmnon. Aquiles irado, rancoroso contra Agamêmnon, insubordinado à chefia da expedição, situa precípua inação guerreira. Retirado dos combates, quedava sua potência bélica inerte no acampamento. Ao seu redor, polarizado solidariamente pela resolução régia soberana, o espaço demarcado pela comunidade dos Mirmídones é similarmente contaminado por anulação guerreira. Dos guerreiros, uns/ora, mais despreocupados, entretêm-se compondo os prazeres atléticos próprios da dignidade heróica do lazer guerreiro; já outros/ora, tomados de pesar, vagueiam errantes por esse espaço, traçando percursos inúteis, cuja única ação consiste em dissipar o tempo beligerante. Idêntico destino de inação guerreira alcança seus precípuos recursos e agentes de mobilidade bélica, condutores do irrepreensível Pelida: carros recolhidos, abrigados por cobertas protetoras; e cavalos que apenas pastam, prolongando contínuo o tempo que, entretanto, assim teria sentido só momentâneo, a alternar ações beligerantes enquanto revigoramento. Então, na atualidade desse tempo da ira de Aquiles, “o melhor dos aqueus” é Ájax Telamônio, pois então anula-se, nega-se a areté de Aquiles. Se não, “o melhor dos aqueus” é Aquiles, pois bem superior era. Odisseu Mas então, Pátroclo, o brioso companheiro de Aquiles, não mais resistiu à aflição angustiante de permanecer assim inativo, excluído das realizações guerreiras, especialmente quando sua atuação era mais reclamada. Rogou ao caro amigo que o liberasse para a luta. Aquiles, embora apreensivo, autorizou-o a retornar ao campo de batalha, e até mesmo lhe cedeu, emprestada, sua própria armadura. E a investida beligerante de Pátroclo foi brilhante, devastadora, a rechaçar o ataque troiano e, inclusive, a reverter a sorte da batalha. Mas foi, também, o fim de Pátroclo, que então tombou morto aos golpes de Heitor, a quem se associara o poder de Apolo. A ira de Aquiles, assim, paradoxal e tragicamente, finaliza a morte de Pátroclo. Agora o herói, furioso contra Heitor, assassino do querido amigo, 103 Francisco Murari Pires encerra o rancor contra Agamêmnon, termina o tempo da ira, e retorna aos combates. É o fim de Heitor. Mas, o fim de Heitor é também o princípio do fim de Aquiles. Então, morto Aquiles, novo tempo principia, atualizando diversa comunidade aquéia sitiante de Tróia: agora irremediavelmente privada de Aquiles. Ação beligerante de cerco a uma cidadela agora também diversamente solicitada em seu empenho: não há mais Heitor a combater, o guardião magnífico que obstava o empreendimento de sua tomada, afastando das muralhas as pretensões de investidas invasoras. Pois, agora, o princípio de areté firmado por Aquiles já o removera. Na atualidade bélica reclamada por este outro tempo, consubstanciado por essa precisa ação beligerante de invasão e tomada da fortaleza, quem é, agora, “o melhor dos aqueus?”. Ájax e Odisseu postam pretensões a tal honra heróica. Mas Ájax é areté guerreira de potência mais precipuamente defensiva55, bem apropriada para eficaz resistência contra avanços de forças inimigas, cujo empenho, entretanto, não é mais agora decisivamente reclamado. Ora, o que é agora então precipuamente reclamado como efetividade guerreira – penetrar cidadela, assim ultrapassando o obstáculo de tremendas muralhas intransponíveis, obra de confecção divina em que se associaram os trabalhos e poderes de Posídon e Apolo, a tornar inexpugnável a cidade por elas cercada56 –, requer recursos de excelência bélica que nem 55 S. Scully (Homer..., p. 120) comenta, de passagem, os limites com que a figura heróica de Ájax é retratada na Ilíada: “...diferentemente de Aquiles, ou mesmo de Diomedes, o fogo do agressor não queima dentro dele, e ele é o único herói aqueu sem uma aristéia”. A Ilíada refere-se, por duas vezes (VII.452-3 e XXI.441-57), a esse episódio dos trabalhos de construção das muralhas de Tróia por Posídon e Apolo assalariados por um ano a Laomedonte. Dualidade de ações divinas que fortalece a obra amuralhada consoante aos poderes precípuos das duas divindades, dotando-as Posídon de força e resistência física por obra maciça, colossal, enquanto Apolo, pelos poderes encantatórios de sua música, protege-as por auras de inviolabilidade mágica (confiram-se, nesse sentido, os comentários de S. Scully, Homer..., p. 32 e 51-2). 104 56 Mithistória força, nem coragem, nem bravura ou quaisquer outros modos de apenas virilidade guerreira suficiente e apropriadamente contemplam: mesmo o herói que, entretanto, era por essas virtudes supremo de excelência, Aquiles, não consumou tal feito militar, ainda que realizando desempenho guerreiro irrepreensível diante de Tróia. Após dez anos de extenuantes empenhos de sua, entretanto, terrível potência guerreira agressiva, permaneciam incólumes as muralhas, inviolado o interior citadino troiano.57 Onde nível de força descomunal é reclamado do herói, inalcançável mesmo para sua grandeza heróica, fica inviabilizada a força mesma como recurso de sua superação. Assim, adentar a cidadela supõe e requer tramas especiais, pois, para superar o adversário há que, paradoxalmente, contar com a própria cumplicidade da vítima a viabilizar sua derrota.58 O feito heróico exitoso supõe agora outra via: a ação da inteligência astuciosa, a obra de métis.59 Ao eleger Odisseu, agora, o melhor dos aqueus, em ajuizando a precípua efetividade ruinosa de seu princípio de excelência heróica para o 57 Assim também o entendeu a tradição mítica suposta pela glosa do escoliasta à passagem odisséica (VIII.73-82) alusiva a um dos cantos do aedo feácio, Demódoco, em que celebrava a história da dissenção querelenta por que se hostilizaram Aquiles e Odisseu, supostamente ocorrida após a morte de Heitor: disputavam então qual o modo de beligerância apropriado para a tomada da cidadela troiana, cada herói propugnando pelo primado honroso de seu respectivo domínio de excelência heróica: se a força e violência física defendida por Aquiles, se a inteligência engenhosa por Odisseu (confiram-se as indicações fornecidas por J. S. Clay, The Wrath of Athena). Estes mesmos modos de trama dolosa estão supostos no episódio do Ájax sofocleano na cena em que o herói, ludibriado pela métis de Atena, acaba por confessar seus atos criminosos contra os aqueus, assim fornecendo a Odisseu as provas que o incriminam decisivamente (confiram-se nosso comentários no ensaio Ájax, Atena e os (des)caminhos da Métis). Similarmente ocorre no episódio da disputa agonística da corrida de carros entre Menelau, e Antíloco (veja-se nosso outro ensaio Menelau, o Herói Segundo). Confiram-se os preceitos com que Nestor ensina seu filho, Antíloco, a alcançar a vitória quando em situação de inferioridade de bíe (Ilíada, XXIII.304-348). Na Odisséia, as aventuras do herói reiteradamente afirmam esse princípio heróico, exemplarmente assinalado pelo episódio de seu defrontamento com Polifemo. 105 58 59 Francisco Murari Pires destino da guerra, os aqueus reconheceram e consagraram a realidade da métis, da astúcia, como arte melhor apropriada para o êxito último de sua singular finalidade guerreira. Assim, ao tempo heróico do primado de Aquiles, apenas cindido pelo interregno do tempo heróico do primado de Ájax, sucede o tempo heróico do primado de Odisseu. É o tempo da efetividade astuciosa decisiva, emblematicamente atualizada pela métis do Cavalo de Pau. É o princípio último do fim de Tróia. Odisseu, realização heróica desse princípio, digno sucedâneo de Aquiles, é então bem justamente “o melhor dos aqueus”. 106 Mithistória V. Menelau, o Herói Segundo Quando jovens guerreiros partem de casa inaugurando trajetórias heróicas, ouvem as preleções paternas. Uma recomendação, em especial, lhes dita o princípio fundante da ação heróica: “sempre distinguir-se e a todos sobrepujar”.1 Assim falaram Peleu a Aquiles e Hipóloco a Glauco, quando eles foram combater nos plainos de Tróia. Heróis, indivíduos humanos que se distinguem no campo de batalha, compõem uma categoria diferenciada, um rol de guerreiros distinguidos, os prótoi, os primeiros, que combatem posicionados na dianteira, à frente do exército. Também ditos áristoi, os melhores. Então, como uma categoria diferenciada, os áristoi, guerreiros avançados (prómachoi) que combatem na dianteira, também nomeados de os primeiros (prõtoi), se distinguem bem dissociados da massa anônima que compõe o exército. A areté, marca de excelência que os define, funda sua superioridade distintiva, proclama sua dignidade heróica. Mas, o preceito de sempre se distinguir e a todos sobrepujar, princípio mesmo de toda ação heróica, reclama âmbitos de distinção que não apenas esse, próprio da pertinência à categoria dos áristoi, como, ainda, níveis de distinções individuais entre eles mesmos, a permanentemente rivalizarem, antagonizarem entre si, disputando a fama de ser o melhor, de ser o primeiro. Também Menelau é um herói. Que singular atributo virtuoso de excelência superlativa, a defini-lo como melhor, como primeiro, consagra a 1 Ilíada, VI.208; IX.785. 107 Francisco Murari Pires específica heroicidade de Menelau? O episódio da corrida de carros nos jogos fúnebres de Pátroclo nos dá uma pista. Abrindo os jogos fúnebres em honra de Pátroclo, Aquiles dispôs magníficos prêmios com que seduzia os aqueus a disputarem a primeira prova, a corrida de carros2: “uma mulher irrepreensível, perita trabalhadora, mais uma trípode alada de vinte e duas medidas para o primeiro colocado; uma égua de seis anos, indomada, prenhe de um mulo para o segundo; um caldeirão, de alvura ainda incólume ao fogo, belo, contendo quatro medidas para o terceiro; dois talentos de ouro para o quarto e uma vasilha bialada incólume ao fogo para o quinto”.3 Cinco prêmios ofertados, cinco heróis apresentam-se desejosos de ganhá-los. Levantam-se de seus lugares em ordem seqüencial de iniciativa que manifestava, dada a excelência respectiva de seus cavalos mais carro ajustado, a correspondente prontidão de confiança maior que cada um depositiva em sua vitória.4 O primeiro, Eumelo, filho amado de Admeto, primoroso na condução de carros, que justo por essa arte distinguia sua excelência heróica (areté)5. E contava com cavalos preciosos, “duas éguas velozes como pássaros, de mesmo pêlo, mesma idade e de dorsos nivelados”. Animais excepcionalmente providos de zelos divinos, pois “cuidadas por Apolo” nos domínios do rei de Feras quando o deus prestou seu ano de servidão tessália. 2 Para a interpretação deste episódio iliádico, vejam-se as análises de J. P . Vernant e M. Detienne inseridas na coletânea Les Ruses de l’Intelligence, Paris, 1975, p. 7-31. Valemo-nos igualmente das ricas indicações providas pelos comentários de N. Richardson ao texto iliádico. Ilíada, XXIII.262-270. Ilíada, XXIII.285-286. Ilíada, XXIII.289; 536. Pela memória poética iliádica, todo destaque da presença guerreira de Eumelo nos plainos de Tróia reduz-se apenas a este feito da disputa de carros nos jogos fúnebres de Pátroclo. 108 3 4 5 Mithistória Elas, as “Ferecíadas, eram de longe as melhores” dentre todos os corcéis gregos presentes em Tróia, tirante os cavalos de Aquiles.6 A seguir, Diomedes, de todos os cinco, herói superior.7 Concorria também com animais estupendos, pois possuía agora, ganhos em combate a Enéias8, os cavalos do troiano. Prole de raça divina, cria gerada do cruzamento das éguas de Anquises com aqueles corcéis da casa real troiana que originariamente Zeus dera de presente a Trós em contrapartida compensatória pela perda de seu filho Ganimedes, raptado para destino glorioso de copeiro celeste junto ao rei dos deuses. Uma excelência valia outra: pela beleza maior do filho dentre os mortais dava-lhe o Cronida “os melhores de todos os cavalos sob a aurora e o sol”.9 Depois, Menelau, também munido de excelente parelha, pois a Podargo, seu próprio garanhão, juntara Eta, a égua pertencente a Agamêmnon, fogosa corredora.10 O quarto competidor, Antíloco, que, embora jovem, conhecia bem a arte de condução do carro, mas inferiorizado por cavalos menos rápidos.11 6 7 8 Ilíada., II.763-767. Ilíada, XXIII.356-357. Ilíada, XXIII.290-292. Igualmente: Pausânias, Descrição da Grécia, 5.24.5 e Apolodoro, Biblioteca, 2.37. Ilíada, V.265-272 e XX.232-235. Assim, dos cavalos de Aquiles – Xanto e Bálio –, pelos de Eumelo até os de Diomedes configura-se um gradiente de excelência superior consoante ao grau de contato divino que distingue respectivamente o ser desses animais: imortais os primeiros (presenteados por Posídon a Peleu, quando de seu casamento com Tétis), que, crias da união da harpia Podarge com o Zéfiro em epifania eqüina, dos pais herdaram a conjunção de essências de velocidades superlativas, dele porque o mais rápido de todos os ventos, e dela porque funda em tal força e ímpeto de rajada ventosa as capacidades de sua ação raptora (Ilíada, XIX, 415-417 e XVI.149-152 com os comentários de Janko); de trato apolíneo os segundos, as éguas de Eumelo; e progênie cruzada de raça divina com mortal os terceiros, detidos por Diomedes. Ilíada, XXIII.293-299. Ilíada,XXIII.309-312 e 301-304. 109 9 10 11 Francisco Murari Pires E, por último, Meríones, não só, como Antíloco, desfavorecido por corredores “os mais lentos”, quanto ainda prejudicado por certa imperícia técnica nessa modalidade de competição.12 Conhecidos os competidores, um sorteio ordenou o alinhamento de partida: primeiro posicionou seu carro Antíloco, a seguir Eumelo, depois Menelau, e então Meríones, por fim Diomedes.13 O percurso, Aquiles o definiu apontando “a marca” de viragem e retorno, “ao longe na planície lisa”. Por lá se encontrava Fênix, venerável ancião, para que respondesse, como “observador”, pela “memória e relato verídico dos fatos da corrida” por ele presenciados.14 Então partiram, compelindo os corcéis a tomarem a dianteira por violentos estímulos físicos, em que se somavam efeitos similarmente complementares de golpes de rédeas sacudidas contra o pescoço dos cavalos mais gritos contundentes. Logo se manifesta, aos espectadores que ficam, lá na partida-chegada no aguardo do desfecho, apenas a confusão da corrida, por competidores velozmente mais afastados das naus ganhando a planície e visão então turvada por nuvens de poeira que pronto tomam a pista.15 E, ansiosos por antecipar a honra pessoal de conhecimento do resultado da prova, suscitam disputas de apostas, com Idomeneu externando surpresa ao parecer-lhe vislumbrar Diomedes à frente, contrariando os prognósticos que davam Eumelo como pleno favorito, ao passo que Ájax Oileu contestava os distúrbios desse seu discernimento, asseverando antes a normalidade previsível do resultado da corrida. Mas apostas inflamadas por trocas de desafios injuriantes, que por pouco não descambam em querelas mais violentas, não fosse a intervenção autoritária de Aquiles, que sabiamente as reprimiu.16 12 13 14 15 16 Ilíada, XXIII.530-531 e 351. Ilíada, XXIII.352-357. Ilíada, XXIII.358-361. Ilíada, XXIII.362-372. Ilíada, XXIII.448-498. 110 Mithistória Dessa confusão, por fim, surgiu distinta a figura de Diomedes a conduzir, incansável em seu ardor, furiosamente o carro, a quase voar pela pista, apenas deixando na areia tênue rastro indiciador de seus contatos. Depois, vislumbrou-se a acirrada disputa entre os carros de Antíloco e de Menelau, aquele à frente, mas este já praticamente o alcançando, quase tocando-lhe por trás: assim cruzaram a chegada. Mais distanciado – o alcance de um arremesso de dardo – chegou Meríones.17 E, surpreendentemente em último, o entretanto a princípio favorito, Eumelo, que voltava em lamentável estado indiciador de desastroso acidente, por contusões de cotovelos, boca e nariz esfolados, mais ferimentos na testa e ainda carro quebrado. É que os deuses contenderam também seus poderes – Apolo contra, mas Atena por, Diomedes – a decisivamente definir o resultado da disputa de sua acirrada perseguição ao carro de Eumelo, que tomara a dianteira: o deus, irado contra o filho de Tideu18, causara-lhe a queda do chicote a frustrar-lhe os desígnios de vitória, mas a deusa protegera seu favorito, não só restituindo-lhe o instrumento e insuflando ardor em seus cavalos, como ainda quebrando o jugo da atrelagem de seu adversário! Então, pela sobreposição determinante dos jogos honoríficos dos (des)afetos divinos para com os distintos heróis, viabilizouse a ultrapassagem de Eumelo por Diomedes, que agora disparando à frente ganhou a corrida.19 Apiedando-se pelo infortúnio do herói, Aquiles intentou reparar a aparente “injustiça” daquela reversão de resultado da prova, que relegava ao último lugar quem, entretanto, por fama de excelência nela seria antes o 17 18 Ilíada, XXIII.499-513 e 514-529. O desfavor de Diomedes junto a Apolo suscita a lembrança de desavenças em episódio anterior, quando o herói em perseguição a Enéias atrevera-se a acossar o deus que interviera a salvar o troiano da sanha assassina de seu adversário. Mas, também, a honra apolínea intriga-se ainda mais no desfecho da corrida, a projetar a vitória das éguas de Eumelo, objeto de seus cuidados divinos. Ilíada, XXIII.373-400 e 532-3 111 19 Francisco Murari Pires primeiro, propondo então conceder a Eumelo pelo menos o segundo prêmio: a égua cobiçada.20 Todavia, Antíloco, que ganhara este posto, protestou contrariado com aquela decisão, agora arrazoando objeções por que reclamava contra a indevida privação de honra de que assim seria vítima. Por um lado, sentenciou no acidente de Eumelo antes a “justiça” do desfavor divino para heróis que descuidam de conciliar por piedosas preces a proteção dos imortais para o melhor êxito de seus feitos. E, por outro, censurou ainda a decisão do líder Pelida, acusando a impropriedade daquele seu oferecimento, que então dispunha de um bem que já não era seu: a égua virtualmente pertencia agora às posses dele, Antíloco, pois fora por ele ganha, de modo que se Aquiles desejasse, por sentimentos pessoais de compaixão e predileção benévola, compensar Eumelo, que realizasse seu desejo mas às custas de seu próprio tesouro, acumulado de prendas várias e inúmeras em sua tenda guerreira, indo lá colher qualquer outro prêmio. Aquiles, então bem-humorado, acatou os protestos de Antíloco, destinando, pois, como prêmio a Eumelo valiosa couraça, que ele outrora arrebatara em combate a Asteropeu.21 Já Menelau, furioso, revoltou-se contra aquelas pretensões do filho de Nestor, decidido a contestar-lhe a suposta vitória. Pondo-se de pé, em meio a todos, provido do cetro pelo arauto, tomou solene a palavra. Primeiro estigmatizou, na obra desonrosa daquele pretenso feito que deslustrava a excelência heróica dele, Menelau, antes a perda da fama de sensatez até então prevalecente de seu jovem antagonista, ao assim ousar inverter a ordem dos devidos méritos em disputa naquela prova, pois dispunha de cavalos bem inferiores! Poderia, segundo logo aventou, fazer valer sua condição superior no quadro da chefia da expedição para impor, pura e 20 Richardson anota em seus comentários (p. 228) que o pronunciamento de Aquiles bem (cor)responde, pelo modo de concepção da honra heróica que sua figura mítica personifica, a buscar sempre firmar o primado do reconhecimento dos méritos da excelência (areté) superior a sobrepor-se contra as desordens ocasionadas fortuitamente. Ilíada, XXIII.533-565. 112 21 Mithistória simplesmente, por um ato de força – em tomando posse da égua – a reversão do resultado que marcaria o fato de sua vitória em razão da denúncia que então pronunciava. Mas, a este ato de violenta autoridade, que deixaria em suspenso a verdade do ocorrido por maldosa suspeita de qualquer trama mentirosa de sua parte, Menelau preferiu firmar a melhor justiça de suas reivindicações, obtendo igual objetivo por acatamento às suas devidas regras formais de procedimento judicante. Assim, proclamou ritualmente o ato acusatório finalizador de reta sentença: desafiou Antíloco a juízo, conclamando que, de pé diante dos animais e carro, portando o látego condutor e mão deposta sobre os cavalos, prestasse juramento sob o sacro poder de Posídon de “que não entravara voluntariamente e por dolo” a passagem de seu carro.22 Assim, Menelau denunciava a ilegitimidade de uma vitória suspeita, reclamando apropriada justiça por contenda judicante. Especialmente, alegava o prejuízo de que fora vítima por uma manobra dolosa da parte de Antíloco. Mas, afinal, o que se passara na corrida entre Antíloco e Menelau? Tudo começou ainda antes da partida, pelos conselhos com que Nestor instruiu seu filho para um melhor desempenho naquela disputa. Com apurado descortino, o ancião precisou qual era a singular dificuldade que a corrida antepunha a Antíloco. Não que este, embora jovem, ignorasse as técnicas de condução do carro, pois fora agraciado por dons educativos de Zeus e Posídon delas cientes. Sua grande desvantagem residia na lentidão dos cavalos de que dispunha, corredores bem menos velozes que os de seus adversários. Assim, em tal condição desvantajosa, inferiorizado nas relações de força precípua reclamada para a vitória, só lhe restava uma outra via de êxito: contrapor ao valor da força a ativação dos recursos da “inteligência astuciosa” (métis), a qual sabe atinar idéias apro22 Ilíada, XXIII.566-585. 113 Francisco Murari Pires priadas para superar as dificuldades antepostas ao sucesso do empreendimento. Esse, seu bom conselho: que o filho compusesse no espírito “engenhos variados”, modo por que finalizasse persistente o prêmio almejado! Pois, “Por engenho carpinteiro é bem melhor do que por força; Por engenho também piloto em mar vinhoso navio veloz sacudido por ventos direciona; e por engenho cocheiro sobrepuja cocheiro”.23 É que, ponderou Nestor, nas provas onde o emprego da força é atualizado, nem fica excluído o valor eficaz da idéia inteligente a governar esse emprego, como antes é pela superioridade desta capacidade mental que se afirma o predomínio na competição. Mesmo porque a superioridade apenas de força acaba por ter um efeito antes negativo, paradoxalmente também a diminuir as chances de vitória, já que, por demais confiante na vantagem de dispor dos melhores cavalos, o competidor descura a ação reflexiva, pela qual se domina tecnicamente a realização da prova, e então perde o controle de sua condução, desvia e erra pela pista, arruinando a vitória. Pelo contrário, quem parte em situação desvantajosa de força por dispor de cavalos inferiores, acrescenta valor inteligente a seu empenho na disputa, aumentando-lhe as chances. A ação astuciosa supõe, então, explorar inteligentemente todas as manhas com que tirar vantagem de quais situações a prova enseje. E destas situações e manhas, algumas são, já de princípio, conhecidas, previsivelmente dominadas pelas instruções do saber técnico precipuamente reclamado. Nestor prodigamente aconselhou-as a seu filho, avivando os preceitos de tal memória sapiente. Primeiro, na partida, ordenar o elã de avanço máximo dos cavalos, todavia regulado pela prioritária preservação do controle diretivo dos animais: um justo domínio do jogo das rédeas. 23 Ilíada, XXIII.315-318. 114 Mithistória Assim, o cocheiro minora o destino inicial de retaguarda imposto por cavalos inferiores. Então, dupla atenção: por um lado no antagonista à frente, de outro na marca de viragem. E esta segunda atenção, a decisiva. Nestor propicia, pois, ao filho todas as detalhadas indicações de manifestação visual por que claramente a reconhecesse, de modo que não escapasse à sua atenção perceptiva: “tronco seco, carvalho ou pinheiro, a uma braça acima do chão, ladeado por duas pedras brancas”.24 Por que de toda essa atenção vigilante com a marca? É que lá, adverte Nestor, acontece o grande momento da prova: a viragem! Entende o ancião que quem, com mestria de perito, executa à perfeição essa manobra em primeiro, não perde mais a corrida! Ali joga-se o domínio da vantagem decisiva, pois irreversível se define então a dianteira, toda perseguição agora ficando condenada à frustração de seu intuito, mesmo aquela dotada da excelência precipuamente eficaz de cavalos os mais velozes, de raça divina, quer o de Adrasto – Árion, cria de Posídon presenteada ao rei por Héracles – quer os de Laomedonte. Então, as instruções técnicas de um perfeito contorno: exploração máxima da proximidade estreitíssima da viragem junto à marca, regulável pela percepção de apenas aparente contato, o cubo da roda a roçá-la sem, entretanto, tocá-la; então, corpo ligeiramente penso à esquerda, desse lado jogando a contribuição do peso para o êxito da manobra; jogo dissimétrico das rédeas, mais frouxas para o cavalo de fora em maior avanço também incitado por golpes de gritos e aguilhão, mais tensas para o de dentro a frear algo. Manobra crucial, tênue limiar que arrisca perfeição contra ruína fatal de um toque desastroso na marca.25 Encetada a corrida, atualizam-se os destinos de dianteira e, de fato, Antíloco fica justo atrás de Menelau, que corria em segundo, pois Diomedes, favorecido pela arte de Atena, disparara à frente, com agora Eumelo já alijado 24 25 Ilíada, XXIII.326-333. Ilíada, XXIII.322-343. 115 Francisco Murari Pires da disputa por uma “sorte” infausta. E, como bem o percebeu o filho de Nestor, este fato antecipava já a glória do Tidida vencedor, não mais alcançável. Assim, tudo que Antíloco almejava era agora ultrapassar Menelau! Assim, manteve atenta perseguição a seu adversário, explorando ao máximo as possibilidades de avanço de seus cavalos, incitando-os à aproximação por todos os modos de estímulos acicatadores, quer de sua honra de corcéis ciosos da virilidade de machos, então ameaçada pela injúria de uma derrota para uma égua – Eta, guiada por Menelau –, quer de seus instintos mesmos de sobrevivência por advertências violentas de punição em caso de desfecho desonroso. Isso exigia ele de seus corcéis, que não perdessem contato com o carro de Menelau. De si mesmo, de sua arte e de sua reflexão, também tiraria todo proveito, atento permanentemente a aguardar o ensejo do momento propício de fazê-las valer: esperava algum eventual estreitamento da pista, ocasião que não deixaria escapar para deslizar à frente de seu adversário!26 E o kairós surgiu, pois à frente dos dois contendores eis que a pista apareceu estreitada por um desbarrancamento causado pela torrente das águas da chuva, que nela escavara uma fenda.27 Por lá enveredara já Menelau, cuidando por evitar o embate. De pronto, Antíloco, todavia tirando seus cavalos algo da estrada e inclinando de lado, emparelhou com o carro do Atrida, visando à ultrapassagem. Menelau, por medo acautelador contra o risco do choque, revoltou-se com a manobra do adversário, com ele gritando a que desistisse de seu intento, logo acusando seu desvario por (in)conseqüente desastre: “Antíloco, loucamente diriges; antes contém os cavalos; pois estreito o caminho, mas logo alargado para ultrapassagem. Não assim nós ambos arruines contra o carro chocando”.28 26 27 28 Ilíada, XXIII.401-416. Ilíada, XXIII.418-421. Ilíada, XXIII.426-428. 116 Mithistória Mas Antíloco, como que surdo àquelas reprimendas e advertência, não desistiu, pelo contrário, forçou, ainda mais decidido, a ultrapassagem. Então, por boa distância – alcance do arremesso de um disco por jovem vigoroso – persistiram emparelhados os dois corredores. Quem cedeu em freando seus cavalos, assim evitando o choque, mas assumindo ficar na traseira a permitir o avanço do adversário? Foi Menelau! E, todavia, não conteve sua revolta furiosa, primeiro injuriando Antíloco com vituperar-lhe a excelência antes em espírito pernicioso, agora desmentindo a anterior reputação de sensatez, e logo desafiando-o por duras ameaças com que lhe faria responder, sob juramento, por aquela manobra, garantindo frustrar-lhe a obtenção do prêmio finalizado por uma tal suspeita ultrapassagem!29 Mesmo assim, o denodado Menelau não desistiu da disputa, antes ainda mais incitou seus cavalos a empenharem a perseguição no alcance do adversário, pois contava com a maior resistência vigorosa de seus animais, não carentes de juventude como os de Antíloco. E pelo ardor excelente agora aumentado de sua égua, Eta de belas crinas, foi progressivamente encurtando a distância que os separava – de início igual à do arremesso de um disco –, justamente o alcançando a colar seus cavalos na traseira do carro do jovem no ponto de chegada, e mesmo o ultrapassaria, fosse pouco maior o percurso!30 Certamente, portanto, que a vitória consumada por Antíloco contra Menelau valera-se da obra de uma ação astuciosa, envolvendo golpe doloso desordenador das relações de superioridade dadas de início, como corretamente o acusou o Atrida por aquele desafio juramentado, com que contestou a obtenção do prêmio ambicionado pelo jovem filho de Nestor. E Antíloco não se dispôs ao juramento, antes dele desviou ponderando outras razões. Assim, reverente à autoridade de Menelau, respon29 30 Ilíada, XXIII.429-441. Ilíada, XXIII.442-447 e 514-527. 117 Francisco Murari Pires deu-lhe por, todavia, sensatas palavras conciliatórias, conformando justas satisfações a ressarcir a honra de seu antagonista por ele ofendida. Logo apelou a que Menelau revelasse melhor espírito compreensivo e coração paciente a dominar explosões de reações zangadas, apanágio de superioridade de homens maduros. Pois, justamente, todo o ocorrido não passara de inferiores arroubos de arrogância juvenil de sua parte. O jovem ousa impetuoso, mas, para tanto, seu espírito é precipitado e, então, a manha que concebe é frágil. Termos, pois, de uma proclamação restauradora da ordem hierárquica transgredida. Daí, completou Antíloco as demais satisfações dela ressarcidoras, não só restituindo de pronto o prêmio contestado, como ainda dispondo-se a reparar mais eventuais agravos por ele cometidos, assim pagando quais outros reclamos honoríficos Menelau pretendesse. À toda ambição de vitória, por mais imperiosa que fosse para a ostentação de sua honra heróica, o jovem filho de Nestor preferia declarar o primado da boa ordem, a ele valiosa pela preservação tanto do afeto humano do Atrida quanto de sua reputação divina de piedosa inocência.31 Assim, Antíloco conformou uma resposta de reta justiça e, todavia, plena de ambivalências, pois, em reconhecendo, mas apenas subliminarmente, os direitos reclamados por aquela acusação de insensatez e dolo fraudulento que lhe dirigira Menelau, igualmente dissipou estas razões mesmas, dando agora bem mostras de sua conduta, antes pautada pela melhor prudência e ética respeitosa! Ao que (cor)respondeu similarmente a magnanimidade generosa de Menelau, o espírito já abrandado pelas satisfações a ele concedidas. Rigor de praxe, reiterou a primazia de sua honra, pela lição alto e bom som preceituada ao jovem: “uma segunda vez evita enganar superiores”.32 Daí, também deu mostras de grato reconhecimento: pelos muitos penares e sofrimentos que não só ele mesmo, Antíloco, como ainda seu venerável pai, Nestor, mais seu irmão, enfrentavam, lá em Tróia, pela causa de sua honra, 31 32 Ilíada, XXIII.587-595. Ilíada, XXIII.605. 118 Mithistória Menelau proclamava que era ele quem, justo detentor do prêmio, o presenteava a Antíloco! E, solene, proclamou a razão virtuosa por que assim agia, firmando a melhor fama de sua figura heróica, imune à arrogância e à inflexibilidade. Da palavra passou ao ato, de modo que deu a égua a Antíloco, entregando-a nas mãos de seu companheiro Noémon; e, para si mesmo, tomou como prêmio o caldeirão reluzente.33 É que nesse jogo de concessão de dons, assim objetivamente tramado por meio do ritual jurídico de reconciliação entre os dois contendores heróicos, Menelau age novamente induzido pela manobra que a oferta de Antíloco implica. Pois, agora, o campo da disputa entre ambos deslocou-se do domínio competitivo dos jogos para o âmbito dos afetos da amizade que se regula consoante as normas de hospitalidade.34 O que situa a (re)ação de Menelau em um impasse, pois, se ele pretende (rea)firmar a superioridade hierárquica de sua condição suserana, cabe-lhe, pelo simbolismo honorífico dessa prática de concessão de dons, ser quem os dá, a marcar em quem os recebe o status de subordinado à sua generosidade régia. Assim, tudo se resolveu por ritos de boa justiça com que Antíloco vislumbrou dissolver os despropósitos intempestivos de um feito por ele mesmo reconhecido como eivado das viciosidades arrogantes próprias de sua natureza juvenil. E, todavia, uma tal obra juvenil não comporta, intrigada pela narrativa homérica das concepções valorativas do mundo heróico, apenas essa apreciação negativa, viciosa, mas também outra, positiva, virtuosa igualmente de heroicidade. Pois, consideremos ainda as implicações supostas pelo golpe de dolo astucioso praticado no curso da corrida por Antíloco contra Menelau. 33 34 Ilíada, XXIII.606-612. Vejam-se os comentários de Redfield, 1975, p. 208-209. 119 Francisco Murari Pires Quando Antíloco, em manobra espantosamente ousada, emparelhou seu carro por fora da pista estreitada com o de Menelau disputando a ultrapassagem, o Atrida, temeroso do entrechoque fatal, denunciou a loucura daquele ato de seu antagonista, reprovando-o aos gritos: “Antíloco, loucamente diriges; antes contém os cavalos; pois estreito o caminho, mas logo alargado para ultrapassagem. Não assim nós ambos arruines contra o carro chocando”.35 Nesses termos, Menelau intentara chamar Antíloco de volta à razão. Era desvairada a manobra, pois finalizaria pela ruína certa de ambos: aquele não era ponto de disputa de ultrapassagem, pois pista estreita a viabilizar antes o choque. Assim, também manobra num sentido desleal, senão fraudulenta, pois transgressora dos preceitos de boa conduta agonística, a recomendar tais disputas de ultrapassagem em trechos largos da pista. A sensatez mais a ética reclamadas pela prova condenavam tal manobra. E, todavia, consumada, impunha-se agora, como único modo de evitar o choque, que um dos disputantes freasse seus cavalos, cedesse passagem ao outro, postergando a ultrapassagem para local e ocasião apropriados. Quem foi então sensato, prudente a evitar o choque? Menelau! Antíloco, pelo contrário, atentou sua determinação apenas no ato da ultrapassagem, incondicionando-o por quaisquer outras considerações ajuizadoras de suas (in)conseqüências. Assim, portou-se justamente pelo que são os modos naturais de agir do jovem, o qual cuida apenas do que é presente, ignora as interações do momentâneo com a plena história do ato, as quais antes reclamam ponderá-lo pelos preceitos do saber passado memorizado e pelos vislumbres previsivos de desfecho futuro assim orientados.36 35 36 Ilíada, XXIII.426-428. J.P . Vernant, lembrando os termos de uma passagem da Ilíada (III.108-110), caracteriza os modos de procedimento que opõem a prudência da velhice ao estouvamento do jovem: “A experiência do ancião lhe propicia, pelo contrário, uma visão mais ampla. O espírito lastreado por todo o saber acumulado no curso dos anos, ele pode antecipada120 Mithistória E, todavia, que implicações teriam para Antíloco a alternativa da atuação sensata dele reclamada por Menelau? Este intentou persuadi-lo descortinando-lhe a possibilidade de ultrapassagem mais adiante! Mas seria mesmo esta uma possibilidade viável? Sua viabilização supunha então que os cavalos de Antíloco fossem mais velozes do que os de Menelau, a ultrapassá-los valendo-se apenas dessa capacidade precípua de corrida. Ora, mas quem dispunha de tais cavalos era ele, Menelau, e não Antíloco! De modo que a sensatez da ética postulada por Menelau é também um princípio de redundância na determinação da disputa: define como ordem vencedora de chegada o que é a ordem de partida, com Menelau à frente de Antíloco, por dispor de cavalos mais velozes, já que ambos eram igualmente dotados de perícia condutora! A oferta de vitória, assim descortinada e oferecida por Menelau a Antíloco, era objetivamente enganosa, ludibriadora, pois, induzindo-lhe o vislumbre da vitória, efetuaria antes sua derrota! Então, a única chance de vitória para Antíloco,chegando à frente de Menelau, consistia em efetuar a ultrapassagem naquele preciso ponto, pois teria que contar com a paradoxal cumplicidade de Menelau nesse sentido: que ele freasse, diminuísse sua velocidade, caso contrário, jamais o faria, pois como poderia o menos veloz ultrapassar em velocidade o mais veloz? Assim, a surdez (in)sensata de Antíloco às objeções de Menelau, não se deixando seduzir por suas aparentes razões, era o único recurso mesmo de viabilizar seu objetivo de vitória: requeria, portanto, jogar tudo na ultrapassagem naquele ponto, sem nem considerações de razões sensatas nem tampouco permitir medos por estas ensejados. Ou seja, a ação do jovem intempestivo. É essa ousadia, mesmo que temerária, que dá, paradoxalmente, a razão de seu ato, apesar de desvairado! E que a disputa se resolvia decisivamente justo naquele ponto é o que também chancelou a narrativa do poeta, pois imaginou a perseguição que Menelau moveu no encalço de Antíloco exatamente falta apenas de um mente explorar as vias múltiplas do futuro, pesar os prós e os contras, e decidir com conhecimento de causa” (Vernant, 1975, p. 24). 121 Francisco Murari Pires instante de corrida para ultrapassá-lo. Aquele, e só aquele, momento da corrida oferecia a Antíloco o ensejo do kairós da vitória! Objetivamente configura-se, assim, uma dupla vitória de Antíloco sobre Menelau. Primeiro no decurso mesmo da corrida, em que o jovem prima pelo desempenho preciso das artes da métis a superar a situação de força maior de seu adversário, assim invertendo, pois, a ordem de (des)vantagens disposta em princípio para a prova. Essa métis reclamou dele a (ir)racionalidade da juventude intempestiva. Depois, agora na já nas tramas da disputa judicante com Menelau, ao reconhecer manifestamente a inferioridade de sua condição juvenil perante a superioridade da condição madura de Menelau, assim ambiguamente firmando também sua sensatez e eticidade, novamente operou objetivamente outra ação astuciosa, pois sua magnanimidade generosa acabou por induzir a de Menelau em contrapartida, de modo que o prêmio mesmo para o vitorioso da prova ficou de posse de Antíloco! Já Menelau, ficou com o prêmio seguinte, o de quem fora superado, apesar de nominalmente, por ordem hierárquica, ser ele o melhor! Episódio heróico pleno de ambigüidades, em que por todas as manobras e disputas envolvidas configuram-se vias sinuosas de obrar desfechos reversos. Nas vicissitudes de tais contendas, então, Antíloco é reiteradamente primeiro e Menelau, segundo. Mas não seria justamente esse o singular destino que assinala distintivamente a heroicidade das histórias de Menelau: secundar feitos por que outros heróis primam? Assim, Menelau é também um Atrida e, por essa titulação, compartilha as atribuições e os apanágios da chefia da expedição troiana. Mas ele assim se situa enquanto chefe-segundo, recolhido e protegido à sombra de Agamêmnon. Nesse âmbito de comando régio, seus respectivos estatutos espelham-se pela hierarquia simbólica projetada nos mantos próprios que eles trajam em reunião noturna – Agamêmnon, a pele de leão e Menelau, a 122 Mithistória pele de leopardo –, consoante as relações de supremacia consagradas no reino animal.37 Justamente por sua costumeira subordinação, até omissa, foi Menelau alvo de duras reprimendas da parte de Nestor, o venerável ancião, que francamente as dirigiu a Agamêmnon, recriminando o herói por subtrair-se aos encargos precípuos do comando, quedando inerte e deixando só ao irmão a faina desses trabalhos. Sim, concordou então parcialmente Agamêmnon, Menelau freqüentemente era omisso e indisposto a esforços, mas não porque fosse indolente ou por falta de inteligência, antes porque era zeloso de respeito e reverência pela autoridade do irmão, solicitamente pronto sempre a aguardar primeiro o rumo de suas iniciativas, secundando-lhe então solícito as ordens.38 Censuras de Nestor a Menelau, e ambíguas escusas justificantes de Agamêmnon, compõem, na memória iliádica, incrível ironia poética! Pois, justo naquela ocasião, fora mesmo Menelau quem, insone de preocupações porque apreensivo com o destino guerreiro dos aqueus face à reversão dos esforços de combate, por si próprio tomara iniciativas, dirigindose, em meio às trevas noturnas, à tenda de seu irmão, tencionando despertálo e, mesmo que um tanto oblíqua e timidamente, solicitá-lo a que ordenasse uma expedição de espionagem ao acampamento troiano, o qual naquela noite, pela primeira vez ao longo dos já dez anos de guerra, ousadamente postara-se armado fora dos muros da cidade!39 É, então, quando Menelau mostra independência de ações de comando e por elas descortina objetivos bélicos, que o poeta lembra, todavia, a fama reversa que estigmatiza sua figura, antes marcada por tibiezas e passividades. Pobre Menelau, que naquela ocasião até atinara a idéia da empresa guerreira apropriada! Mas, os méritos e glórias do recomendável conselho, por que esta acabou sendo encetada, reiteraram novamente a fama de Nestor, que 37 Confiram-se as indicações dadas por J. S. Clay (The Wrath of Athena, p. 76) que remetem para o estudo de K. Reinhardt (Die Ilias und ihr Dichter). Ilíada, X.114-118 e 120-124. Ilíada, X.25-41. 123 38 39 Francisco Murari Pires a propôs cabalmente a seguir, a cuja sapiência, portanto, ainda outra vez se os creditou na narrativa poética daquele episódio da guerra troiana.40 Menelau figura honrosamente em empreendimentos de embaixada, ao lado de algum outro herói. Já quando da convocação dos aqueus para a guerra, foi ele ter junto a Nestor em Pilos41, a Odisseu em Ítaca42, a Aquiles em Ciros43, a Ciniras em Chipre44 ..., tendo estado inclusive na Arcádia45. Depois, é também ele quem, junto com Odisseu, é destacado para a missão da embaixada troiana, dirigida a Príamo no sentido de formalmente solicitar a restituição de Helena e demais tesouros roubados. A memória poética homérica guardou lembranças deste episódio, especialmente das cenas da assembléia troiana, que deliberou acerca da solicitação aquéia. É Antenor, o troiano que naquela ocasião os abrigou hospitaleiro em sua cidade, quem as narra. Primeiro diz, comparando as aparências corpóreas de ambos, como, estando os dois de pé, Menelau sobrepujava seu companheiro pelos largos ombros, ao passo que, sentados, destacava-se antes a imponência de Odisseu. Mas, diferença maior entre ambos logo se patenteou quando eles puseramse a discursar, finalizando persuadir a assistência. Não que faltasse competência retórica a Menelau: “ele discorria fluente, conciso, mas bem claro, pois não prolífico”. Assim, Menelau figura modelo heróico de estilo lacônico de fala. Todavia, quando chegou a vez de Odisseu, a impressão causada por 40 41 42 43 44 45 Ilíada, X.203-217. Cípria, fr. 1 (Proclo). Apolodoro. Epítome, III.7. Apolodoro. Biblioteca, III.13. Apolodoro. Epítome, III.9. Ainda à época de Pausânias (Descrição da Grécia, VIII.23) mostrava-se, junto à cidade de Cáfias, o plátano plantado por Menelau junto a uma fonte por ocasião de sua embaixada à Arcádia. 124 Mithistória sua arte retórica não foi apenas de correção e justeza, antes extravasou tais limites por efeitos de maravilhamento: “quando do peito emitia a forte voz mais palavras semelhas a flocos de neve no inverno, então nenhum outro mortal rivalizaria com Odisseu”. O episódio da embaixada, embora respeite à causa pessoal da honra de Menelau ofendida pelo rapto de Helena por Páris, ressalta então antes o feito heróico do desempenho oratório de Odisseu, para o que a figura de Menelau serve antes como contraste em segundo plano.46 Curiosamente, até as distinções caracterizadoras do cavalo de Menelau parecem compartilhar os estigmas do destino heróico de seu dono. Compõem a parelha de animais atrelada a seu carro quando da prova nos jogos de Pátroclo: Podargo, garanhão pertencente a ele, e Eta, égua fogosa de propriedade de seu irmão, Agamêmnon. Desde o princípio, entretanto, da narrativa homérica desse episódio agonístico, avulta a presença heróica de Eta contra a obliteração da de Podargo. A égua possui história: presente compensatório dado por Equépolo de Sicione a Agamêmnon, a saldar a falta de suas obrigações guerreiras para com o suserano na expedição troiana; já o garanhão é apenas um nome na memória iliádica.47 Quando, na corrida, Antíloco busca por instigações exaltadas acicatar os brios de seus cavalos intentando a ultrapassagem do carro de Menelau, as projeções de valor eqüino, então por ele assinaladas para a dianteira da parelha do adversário, atribuem exclusivamente o êxito à excelência de Eta. Certamente que tal projeção bem responde pela circunstancialidade de retórica apropriada, que assim estigmatiza a vergonha de uma derrota de machos, no entanto, superados por fêmea. Mas desequilíbrio radical de axiologias que alcança foros objetivos na narrativa homérica quando o aedo relata por que o carro de Menelau, estando agora ele na situação inversa na corrida em perseguição a 46 Similarmente, na embaixada a Odisseu o feito heróico celebrado é de Palamedes, e na embaixada a Aquiles, de Odisseu. Ilíada, XXIII.293-299. 125 47 Francisco Murari Pires Antíloco, conseguira anular a dianteira daquele, quase que o ultrapassando na linha de chegada: “crescia ainda mais o ardor excelente da égua de Agamêmnon, Eta de bela crina”.48 Então, por Podargo e Eta, reitera-se a hierarquia de destinos heróicos que associa os dois Atridas: o cavalo de Menelau apenas secunda o primado de excelência que distingue a égua de Agamêmnon.49 Entretanto, há certamente um episódio heróico em que Menelau prima como vencedor, sobrepujando todos os seus antagonistas: foi ele o eleito, dentre os mais reputados heróis que postularam-se como pretendentes, para marido de Helena! A razão de excelência heróica, que então distinguiu sua preferência, contempla a realidade de seu poderio régio: ganhou “o belicoso Menelau porque a todos superara em presentes ofertados”50 Tal é o princípio da história heróica de Menelau, determinado justo por esse casamento, que o define como o marido de Helena! Desde e pelo princípio, portanto, configura-se o destino segundo de Menelau, pois ele deriva de outrem sua identidade consoante fórmula denominativa excepcionalmente invertida: não é a mulher que é identificada pela referência genitiva do homem que é seu esposo, mas o contrário! E destino segundo que igualmente determina o modo por que finaliza sua história mítica: conta-se que Menelau obteve dos deuses a benesse da imortalização, deslocado o fato de sua morte pelo translado para a sede paradisíaca dos Elíseos. Assim foi contemplado justamente porque era o marido de Hele48 49 Ilíada, XXIII.524-525. Na memória iliádica, também os cavalos de Aquiles, por um lado, e os de Nestor (utilizados por Antíloco na corrida), por outro, apresentam características próprias que ecoam as singularidades heróicas de seus donos: a velocidade de superlativa excelência para os primeiros (Ilíada, II.770; XVI.140-151; XIX.415-416; XXIII.277-8), a lentidão de animais já idosos para os segundos (Ilíada, XXIII.443-445, 309-310 e VIII.104). Hesíodo. Catálogos, 68.102-104. 126 50 Mithistória na, a ele estendendo-se então o privilégio propriamente concedido por mérito, de excelência à filha de Zeus.51 Justa compensação de uma existência heróica de delimitada honra secundária, que por reverente acatamento desse destino finaliza-o em permanente bem-aventurança divina. 51 Homero. Odisséia, IV.561-569. 127 Mithistória VI. Édipo e (o enigma d)a visão das idades O Prólogo do Édipo Rei de Sófocles parece colocar-nos um enigma hermenêutico. Ao longo de seu desdobramento, algumas alusões textuais (v. 9-10; 31-2; 58 e 147) sugerem a presença ativa de um só sacerdote em cena, o sacerdote de Zeus, que, justamente interpelado no início da peça por Édipo, lhe expõe os motivos do afluxo dos tebanos suplicantes reunidos junto aos altares do palácio. Entretanto, logo no começo desta sua exposição, o sacerdote de Zeus, direcionando o olhar de Édipo para a visão da comunidade ali presente diante dele, refere-se a sacerdotes, no plural! Tal é sua fala (v. 14-21): “Bem, ó soberano Édipo de meu país, vês-nos de que idades assentados junto a teus altares: uns ainda não a longe voar fortes, outros com a velhice pesados – sacerdotes, eu de Zeus –, e estes dos jovens seletos; já o resto do povo coroado nas praças assenta, junto ao de Palas duplos santuários e pelas de Ismeno oracular cinza”.1 1 “All’, o kratunon Oidipous choras emes, / horas men hemas helikoi prosemetha / bomoisi tois sois, hoi men oudepo makran / ptesthai sthenontes, hoi de sun gera bareis / hieres, ego men Zenos; hoi de t’etheon / lektoi; to d’allo phulon exestemmenon / agoraisi thakei, pros te Pallados diplois / naois, ep’Ismenou te manteia spodo”. 129 Francisco Murari Pires Já em 1816, Bentley, que justamente acusara o impasse do enigma, intentou superar essa aparente divergência propondo corrigir-se o texto do manuscrito: ao invés de hiereis, forma plural atestada no verso 18, adotou hiereus, singular. Mais outros críticos seguiram a via exegética assim solucionadora de um tal enigma supostamente disposto pela tradição manuscrita. Outros críticos, todavia, dissentiram, recusando encaminhar seu entendimento por essa vertente exegética e antes optaram por confirmar a lição do manuscrito mantendo a forma plural, agora decidida como hieres.2 Em 1925, Louis Roussel, reagindo contra a projeção, então já consagrada e difundida pelos comentadores modernos, que percebe nessa cena inaugural a presença de uma multidão de suplicantes/figurantes, reclamou a consideração do princípio hermenêutico por que dever-se-ia pautar a melhor apreciação crítica de um tal texto, dada sua precípua natureza teatral: o ajuizamento das significações operado também pelas implicações de figuração cênica da arte dramatúrgica.3 Em sua revisão, logo acolheu a correção proposta por Bentley, a identificar, pois, apenas um sacerdote em cena, o de Zeus. Daí, face ao contra-senso conseqüente a essa correção – hiereus, “sacerdote”, no singular, entretanto imediatamente antes aludido por bareis sun gera, “velhos”, no plural – entendeu este último como plural de majestade, a assim eliminar da cena também a pluralidade de anciães. E, para firmar a melhor consistência lógica do texto 4 – com tanto Édipo quanto o sacerdote referindo-se genericamente à coletividade dos suplicantes como “crianças” (paides, tekna) – haveria que identificar por esse único grupo etário a distin2 3 Vejam-se as indicações dadas por Bollack, Oedipe Roi, tomo 2, p. 17. “...a figuração da cena é bem diferente do que se imagina costumeiramente. Reveremos nossa opinião sobre muitos outros pontos além deste, caso desejarmos pensar especialmente, no estudo das peças gregas, nas exigências do ofício e da realidade, e nos lembrar que, para os dramaturgos gregos como para todos os dramaturgos, a figuração, tanto quanto a língua e a versificação, serve a fins exclusivamente artísticos” (Roussel, 1925, p. 170). “Os treze primeiros versos tornam-se, com efeito, bem mais lógicos” (Roussel, 1925, p. 168). 130 4 Mithistória ção dúplice por que o sacerdote inicialmente o descreve, ora dizendo-os “filhotes” (versos 16-17), ora “jovens seletos” (versos 18-19). A figuração cênica comportaria, então, para Roussel, uma reduzida composição bipolar de um velho sacerdote de Zeus mais um grupo de crianças, dualidade quiasticamente estruturada primeiro a destacar sua contraposição de idades (de um lado o muito idoso, de outro os bem jovens), depois sua distinção meritória (sacerdote eminente, filhos de nobres eleitos).5 Em decorrência, mais outras tantas precisões positivas de percepção e de entendimento da cena: Édipo qualifica seus súditos como “crianças” não porque seja um rei que se comporte paternalmente, mas simplesmente porque assim cabe a um homem de uns 45 anos tratar jovens adolescentes de 14; não é uma multidão, o populacho, que ousa dirigir-se ao rei, mas um grupo de elite; as crianças dispõem-se igualmente em torno dos dois altares palacianos, não muito grandes, provavelmente a comportar em cena apenas entre doze e vinte crianças mais ou menos. O que Roussel cuidara em condicionar como apenas uma proposta de versão francesa, equivalente em sentido à construção sintática dos versos 18-19: “Tout se passe comme dans de vers français qui seraient: Je suis un serviteur de Zeus; eux sont des fils de nobles”6 fixou-se, com a edição do Édipo sofocleano por Paul Mazon, em 1958, como fato mesmo de tradução: “O souverain de mon pays, Oedipe, tu vois l’âge de tous ces suppliants à genoux devant tes autels. Les uns n’ont pas encore la force de voler bien loin, les autres sont accablés par la vieillesse; je suis, moi, prêtre de Zeus; ils forment, eux, un choix de jeunes gens”.7 A solução hermenêutica, assim equacionada pelos estudos de Roussel e Mazon, veio a deparar-se, todavia, com as objeções levantadas por 5 A tradução dos versos 18-19 suporia (“Tout se passe comme dans des vers français qui seraient”) esta construção: “Je suis un serviteur de Zeus; eux sont des fils de nobles” (Roussel, 1925, p. 169; grifos meus). Roussel, 1925, p. 169. Mazon, 1958, p.23. 131 6 7 Francisco Murari Pires Kamerbeek. Em seu comentário global da tragédia sofocleana de 1967, Kamerbeek delineou uma refutação crítica à tese de Bentley, argumentando que esta, ao buscar resolver um problema concernente à melhor compreensão do texto, acaba intrigando outros, talvez ainda mais embaraçosos. E os assinalou pela simples leitura da tradução proposta por Mazon aos versos 16-19, que justamente adotara a correção de Bentley: “Les uns n’ont pas encore la force de voler bien loin, les autres sont accablés par la vieillesse; je suis, moi, prêtre de Zeus; ils forment, eux, un choix de jeunes gens”.8 Admitida tal tradução, arrazoa o crítico, como entender-se a referência ao sacerdote no singular, se a referência primeira aos velhos está no plural? Haveria que supor, como já o admitira Roussel, um plural de majestade para hoi bareis (os pesados pela velhice) do verso 17. E, por tal tradução ainda, complica-se outra questão: os ethéon lektoi (os jovens seletos), citados nos versos 19-20, referem a mesma classe de idade que a dos oudepo sthenontes (os que ainda não têm forças para longe voar), dos versos 17-18, como o supõem tanto a tradução de Mazon quanto as análises de Roussel, ou uma outra distinta? Agora, não se têm um problema só, mas pelo menos dois! Então, conclui Kamerbeek, é preferível simplesmente aceitar a tradição manuscrita e conviver com o enigma original – posto pela efetividade dramatúrgica da singular presença do sacerdote de Zeus, entretanto uma vez referida no plural –, bem empenhando-nos ao mesmo tempo por descobrir sua melhor compreensão no que estiver ao nosso alcance hermenêutico. A. D. Fitton Brown, em um texto de 1952, também levantou ressalvas contra o suposto entendimento do Prólogo sofocleano que realçasse a distinção de faixas etárias – little children, growing lads, and aged priests – na composição da comunidade dos tebanos suplicantes, argumentando, como já antes o fizera Roussel, contra a implausibilidade de se supor um valor de afetividade paternal no modo de tratamento edipiano da mesma como “crianças” (tekna), especialmente considerando agora a incoerência 8 Kamerbeek, 1967, p. 35. 132 Mithistória assim acarretada pela outra referenciação dessa mesma comunidade por Édipo, logo no verso inicial em que ele a destaca como nova: “Ó crianças, de Cadmo antigo nova trophe”. Tekna, crianças, deve ser entendido como implicando apenas a diferença de idade: the seniority of the speaker contraposta à juventude dos suplicantes. Assim, o agrupamento de suplicantes que se dirige a Édipo seria composto por uma delegação predominantemente jovem, com talvez três sacerdotes idosos. Então, bem se justificaria, sustenta Fitton Brown, a propriedade de sua referenciação edipiana tanto por tékna (crianças) quanto por néa (nova): Édipo assim os qualifica porque eles, em geral, são mais jovens do que ele. Alan S. Henry, em artigo datado de 1967, aprofundou o alcance da crítica à interpretação tradicional que percebe uma tal conformação etária tríplice na delegação suplicante: young children, aged priests and a chosen band of unmarried youths. Seus argumentos a divergir dessa interpretação reclamam agora precisamente contra a estranheza da inserção do terceiro grupo – etheoi, os jovens adolescentes – em uma tal cena de súplica. Assim, no restante do Prólogo, não se faz qualquer alusão à sua presença, pois paides, a denominação por que a comunidade suplicante é qualificada (versos 31-2 e 142-4), não pode recobrir tanto crianças quanto etheoi. Depois, etheoi, jovens não-casados, compõem membros apropriados a um contexto sacrificial, a requerer a pureza de seu status, como consistentemente ocorre nas Fenícias de Eurípides, nos versos 944-5, em que Meneceu é assim distinguido em oposição a Hemon. E ainda, admitida a existência desse terceiro grupo, o texto sofocleano seria falho em sua estruturação sintática, transgredindo a lei de articulação opositiva formulada pela construção de partículas men ... de, dado que o men de ego men Zenos, contrariamente à tese dos comentadores que seguem a análise de Jebb, não pode ser aqui particularmente entendido como um caso de men solitarium. Observada essa lei sintática, uma primeira articulação men...de contrapõe hoi men oudepo makran ptesthai sthenontes a hoi de sun gera bareis, e a seguinte articulação faz o segundo hoi de (t’eitheon) responder justamente a ego men Zenos. 133 Francisco Murari Pires A mais plena coerência lógica de inteligibilidade da cena, pelo arrazoado de Henry, impõe, então, uma exegese crítica mais drástica de tratamento textual da tradição manuscrita: suprima-se a menção aos etheoi, “livremo-nos destes inoportunos jovens”! Corrija-se, pois, o texto em: “hieres, ego men Zenos, hoi de ton theon, lektoi”.9 De modo que as correlações men...de operariam duas contraposições: crianças/velhos (sacerdotes) na primeira, eu (sacerdote) de Zeus/eles (sacerdotes) dos (outros) deuses pela segunda. Concluindo, compõem a delegação suplicante apenas crianças e sacerdotes, ambos esses grupos lektoi, seletos uns entre as crianças das mais nobres famílias, os outros entre os mais importantes sacerdotes. Arthur S. McDevitt, em artigo de 1973, corroborou a tese de Henry, ainda desdobrando outro argumento que mais autorizaria a emenda textual operada por este crítico a eliminar da cena a referência aos etheoi, os jovens adolescentes, não-casados. Assim, postulou o princípio exegético por que a mesma se recomendaria: os aspectos de qualidade visual da peça supostos pelas formulações imagéticas de sua narrativa atualizada segundo uma concepção cênica do espetáculo teatral. Na cena do Prólogo, Sófocles compõe uma imagem inicial da soberania de Édipo, em que o dramaturgo procura destacar o poderio e a autonomia da atuação régia, tanto mais realçados quanto, em contraste, dispõe também um grupo de suplicantes que é antes figurado por uma imagética de passividade e dependência, em estado tal de desamparo, por que melhor se comoveriam as diligências do rei em seu favor. Tal configuração inaugural da soberania edipiana, então, entende McDevitt, responderia pela teleologia de ironia trágica por que finaliza a peça sofocleana, a antes firmar a lição da enganosa ilusão desse poderio, apenas aparentemente autônomo e auto-suficiente. Por tais concepções imagéticas, bem se justificam as presenças quer dos 9 A uma tal cirurgia de amputação textual, a exegese de Henry faz seguir uma plástica filológica que intenta imaginar as possíveis deformações corruptoras da transmissão textual, que teriam desfigurado ton theon, primeiro em ten theon, depois em entheon, até virar eitheon, a reclamarem, então, sua devida correção restauradora. 134 Mithistória filhotes incapazes de voar longe quer dos anciães pesados com a idade, ambos desamparados e dependentes, uns por causa da infância, outros em razão da velhice. Pelo contrário, o que poderia fazer aqui, em meio a estes suplicantes assim tão frágeis, a presença de um bando de robustos jovens? Toda a perícia da arte dramática sofocleana, que justamente acabara de tramar, por esse contraste cuidadosamente elaborado, efeitos cênicos de teleologia trágica, ficaria, então, negada, caso aceita aquela inserção dos etheoi na cena do Prólogo. Já R. D. Dawe, em seus estudos sobre o texto de Sófocles de 1973, depois retomados nos comentários condensados de sua edição crítica do Édipo, de 1982, admitiu apenas a correção textual proposta por Bentley, consagrando, pois, a lição hiereus. E a melhor entender a passagem sofocleana, elaborou os termos da estruturação de pares polares, em que supostamente fora expressa a composição da delegação dos suplicantes, desdobrando, assim, uma idéia já presente no artigo de Roussel. Para Dawe, a delegação é descrita primeiro por uma oposição dual young children/old man, que compõe um par definido em termos de idade, e a seguir por uma outra oposição dual the priest of Zeus/young acolytes, que compõe outro par, agora definido em termos de função.10 Por outro lado, William Calder III, num artigo escrito em 1959, aventou nova alternativa para solucionar o enigma desencadeado pelas consi10 Nos estudos de 1973, Dawe tende antes a assimilar os dois pares: “Os dois emparelhamentos, por idade e depois por função, não referem necessariamente quatro categorias, mas apenas duas, cada uma considerada sob o aspecto primeiro de idade e depois de função” (Dawe, 1973, p. 206). Já nos comentários de 1982, pelo contrário, afirma antes sua dissociação: “dado que é bem implausível que os eitheon fossem considerados tão jovens de modo a poderem ser descritos como “ainda não fortes para voar longe”, segue-se que este par de hiereus e eitheon lektoi, distinguido por papel e status, provavelmente não é idêntico com o par distinguido por idade, em 16-17. Os jovens seletos provavelmente não foram mencionados no primeiro par porque estariam no palco, tão próximos ao sacerdote, de modo a formar um grupo singular oposto às crianças” (Dawe, 1982, p. 88). 135 Francisco Murari Pires derações críticas de Bentley. Assim, admitiu o problema cênico implicado pelo acolhimento da lição plural do manuscrito, sob a forma hieres, preferindo contornar diversamente os impasses argumentativos implicados pela suposta cena de “multidão” do Prólogo, especialmente complicada devido a seus desdobramentos conseqüentes à saída dessa “multidão” e concomitante entrada em cena do Coro no Párodo. Calder III propõe que toda a fala do sacerdote de Zeus, ao descrever a comunidade tebana suplicante diante de Édipo, vale-se da figuração constituída pela própria audiência teatral, então devidamente apontada gestualmente. Assim, para a referência alusiva aos sacerdotes (o controvertido hieres do verso 18), o ator recorreria facilmente ao gesto indicativo que os situaria pelas figuras dos sacerdotes sentados nas fileiras frontais do teatro de Dioniso. A composição do Prólogo dispensaria, pois, a inserção de uma “multidão” de figurantes: em cena estariam propriamente presentes, além de Édipo e o sacerdote de Zeus, apenas mais dois meninos “mudos”. A tese de Calder III postulando um tal recurso teatral de audience adress, entretanto, foi mais recentemente questionada, entre outros, por D. Bain, O. Taplin e D. Seale.11 Taplin, em particular, sugere que a problemática cena de “multidão” do Prólogo do Édipo Tirano seja equacionada por outro recurso de encenação, pelo qual sua entrada em cena se dê anteriormente ao início da peça, esta se abrindo com “o quadro” dessa multidão já configurado.12 Tese de que, todavia, Seale diverge, refutando um tal recurso de “cancelled entry”, antes asseverando que não se trata de um “tableau”, mas sim de uma entrada inicial conformada ritualmente como uma procissão mesma, a realçar seus aspectos suplicantes carentes e reclamantes de salvação. Mas, adverte ainda este último crítico, há que se ter cautela nesta ordem de apreciações, pois, a delegação suplicante não deve ser concebida numericamente exagerada: “certamente não é maior do que o tama- 11 12 Vejam-se as indicações anotadas por Seale, p. 215. Veja-se: Taplin, 1978, p. 109. 136 Mithistória nho do Coro, que a seguir é apresentado como corpo representativo do povo tebano”.13 Em 1990, Jean Bollack, por outro comentário monumental da tragédia sofocleana, corroborou a reflexão crítica já antes firmada por Kamerbeek, desdobrando mais razões para também refutar a tese de Bentley e seus partidários. Assim, articulou uma conjunção de três ordens de razões: primeiro, hoi bareis reclama a presença plural de velhos na cena; segundo, a faticidade da ocorrência textual de hieres; e, terceiro, a distinção entre sacerdote de Zeus e sacerdotes de outros deuses, implicada pela referenciação de hieres ego men Zenos (sacerdotes, eu de Zeus). Conseqüentemente, admitiu o plural hieres, entendendo distinguir os etheon lektoi dos oudepo sthenontes como duas classes etárias distintas. Todavia, nesse mesmo ano de 1990, outros críticos – Hugh LloydJones e N.G. Wilson – percorriam a outra vertente da bifurcação exegética ensejada para a solução desse singular enigma textual sofocleano. Assim, mantiveram a correção de Bentley, lendo, pois, hiereus no verso 18. Conseqüentemente, identificaram aqueles dois grupos de idade numa mesma classe, e admitiram, sem maiores problemas, que o plural hoi bareis refere, mesmo, apenas o singular sacerdote de Zeus! Ao longo desses quase dois séculos de exegese do enigma textual sofocleano, os críticos plenificaram, assim, atentos exames de questões filológicas várias. Acumulou-se todo um nexo emaranhado de argumentações que se, por um lado, bem discerniu todas as conseqüentes dificuldades que estorvam a mais plena inteligibilidade lógica da hermenêutica dessa passagem, por outro, complicou ainda mais o enredamento do enigma, obrando desfecho paradoxal de um ciclo reiterado de divergências para, entretanto, tão competentes esforços eruditos na busca de uma almejada solução decifradora. A reflexão crítica, assim conduzida, centrou seu olhar antes primeiramente sobre a figura sacerdotal – se singular ou plural – efetivamente pre13 Seale, 1982, p. 215 e notas 1 e 3 na p. 255. 137 Francisco Murari Pires sente na cena, de princípio encerrando sua visão por um pressuposto epistemológico, a saber, o de que há uma proposição de estrita coerência positiva a ordenar continuamente as significações do texto em sua linearidade constitutiva de referenciações, coerência esta determinada pelas imposições de identificação cênica precisa dos personagens distintamente definidos, que teriam sido criados pela arte dramatúrgica sofocleana. A seguir, a reflexão crítica ampliou naturalmente o campo de sua percepção, agora polarizando-a no sentindo de visualizar a (en)cena-(ção) teatral atualizadora da delegação dos tebanos suplicantes junto a seu rei Édipo. Visão assim, pois, deslocada, em termos da conceituação aristotélica, da ação trágica enquanto mito, para a ação trágica enquanto espetáculo. Gostaríamos, neste comentário, de desviar um tanto a mirada desse olhar crítico, situando-o não propriamente na nossa, da crítica moderna, visão da cena, mas sim orientando sua ótica antes para o foco mesmo sobre o qual o apelo do sacerdote de Zeus voltou a atenção da visão de Édipo: horas men hemas helikoi, tu nos vês de que idades assentados. Para o melhor discernimento dessa visão destacou o sacerdote de Zeus quais eram as imagens representativas da composição da comunidade tebana suplicante diante de seu rei, justamente figuradas por suas respectivas definições etárias. Assim distinguiu: 1. hoi men oudepo makran ptesthai sthenontes: os que ainda não são fortes para longe voar, os filhotes, as criancinhas; 2. hoi de sun gera bareis, hieres, ego men Zenos: os com a velhice pesados, sacerdotes, “eu” de Zeus, ou seja, os velhos (assim velhos, os) sacerdotes, (como tal, sacerdote) “eu” de Zeus; 3. hoi de t’etheon lektoi: os jovens seletos. Por uma primeira articulação narrativa de contraposição (hoi men oudepo makran ptesthai sthenontes, hoi de sun gera bareis) distingue duas classes de idade de definições opostas: uns, as crianças, a apontar para o princípio, outros, os velhos, a apontar para o fim da vida humana. Todavia, também os associou por similitude caracterizadora de limiar de vida, 138 Mithistória dizendo as limitações do alcance de suas precípuas capacidades locomotoras, justamente assinalada pelas metáforas respectivas com que as qualificou: para aqueles, a fragilidade de seres aos quais falta ainda a força dos membros; para estes, também a fraqueza, mas agora por morosidade, porque (a)gravada pelo peso dos anos. Em ambos marca o estado limiar, para uns inicial, para outros final, de impotência de ação. Depois, a estas duas classes juntou uma terceira, a dos jovens seletos, que, por sua condição própria de exuberante vigor distintivo, define-se em oposição às outras duas. Assim, caracteriza a idade limiar de ação, tempo privilegiado que demarca princípio de feitos heróicos. Então, se irrelevado o pressuposto epistemológico daquela ótica hermenêutica, que ambiciona preencher de indicações precisas e definidas os vazios e alusões que o texto mítico mesmo deixa ambiguamente indeterminados, poder-se-ia apreciar a composição sofocleana desta cena inaugural do desfecho trágico da história de Édipo antes pelo alcance próprio de suas significações metafóricas, concernentes aos estados da condição humana. Se assim discernirmos a cena por esta outra perspectiva, o apelo do sacerdote de Zeus, a (co)mover a atenção do olhar e a diligência do espírito de Édipo pela percepção da comunidade (tebana) humana suplicante diante dele, ter-se-ia, na trama narrativa sofocleana do mito de seu destino, uma alusiva reiteração da contemplação do enigma da Esfinge: as imagens do ser de quatro, três e dois pés!14 Consideração narrativa de um princípio enigmá14 Na bibliografia por nós consultada, encontramos uma menção a esta via de interpretação do texto, dada em nota de rodapé na edição e tradução das tragédias sofocleanas por Guido Paduano: “D’altro canto si è cercato di conferire significazione sistematica alla composizione di questo gruppo, leggendovi una criptica allusione all’indovinello della Sfinge e alle tre etá dell’uomo: non único caso in cui la presenza della Sfinge, funzione antropologicamente affascinante e forse determinante nella formazione del mito di Edipo, è stata introdota a forza in un sistema drammatico al quale é sostanzialmente estranea” (Paduano, 1982). Não tivemos condições, entretanto, de melhor identificar a(s) referência(s) anônima(s) a que o comentador assim alude. Quanto à problemática da integração da figura da Esfinge e do tema do enigma na tradição clássica do mito 139 Francisco Murari Pires tico de consecução desse destino, que novamente defrontaria a distintiva potência heróica de Édipo – a excelência de sua ciência visual – com o desafio de uma reiterada ação salvadora comunitária. E é justamente por um tom também de desafio da salvadora potência régia-intelectiva de Édipo, que o sacerdote de Zeus conforma o rogo suplicante da comunidade tebana a reclamar a intervenção de seu rei. Assim, retomemos do início a evolução do arrazoamento por que segue essa fala sacerdotal. Após o terrível flagelo, manifesto em Tebas pela presença monstruosa da Esfinge, outra desgraça dizimava novamente o país. Um mar de sangue inunda a cidade, nau adernante batida por rubras ondas, em já aflitivo esforço final de naufrágio, tão mais desesperado quanto impotente, por ainda erguer a cabeça acima, não submersa. Por todo o país alastra-se a morte. Tebas perece, pois não atualiza mais os princípios de restauração, renovação e geração de vida. A natureza toda, agora, é só esterilidade, impotencializada toda vida nascente. Fenece o alimento agrário, pois sementes e grãos ainda encapsulados, princípios recipientes de guarda de vida vegetal, não mais germinam fecundantes do ventre térreo, antes embotam e murcham sepultos no chão. Definham nos pastos os rebanhos, massas perdidas de alimento animal. E as mulheres abortam labores de parto, assim infrutíferos, ficando, pois, negado o princípio de natividade que as distingue. Contágio pestilento de generalizada esterilização mortífera, negação de todos os princípios de fertilidade e fecundidade natural, a impotencializar todos os modos de prolongamento e desdobramento de vida edipiano, veja-se a excelente obra de Jean Marc Moret, Oedipe, la Sphinx et les Thébains, Genève, 1984. Já R. Garland (The Greek Way of Life, p.5) entende não haver dúvidas de que a passagem sofocleana componha uma referência ao enigma da Esfinge: “Althoug there is no explicit allusion in the play to the riddle which the sphinx had put to Oedipus and whose solution earned him the kingship – ‘What animal goes on four legs in the morning, two at mid-day and three in the evening?’ – the priest’s words here (ll. 15-19) are surely intended to be reminiscent of it”. 140 Mithistória terrena. Peste odienta por ação de deus ignífero que abate, devasta, despovoa Tebas.15 Assim o olhar do sacerdote de Zeus diz a crise tebana. A comunidade de Tebas, face aos terríveis males com que os desígnios divinos a arruinam, duplica uma só reação de enfrentamento da crise: piedosas súplicas. Por um lado, o povo coroado congrega-se nas praças rogando auxílios a deuses tutelares e divindades mânticas, Palas e Ismeno. Por outro, uma delegação comunal alcança os altares do palácio dispondo-se ali todos assentados com suplicantes ramos coroados, a também buscar o socorro de seu rei, Édipo. Modos de reação comunitária que plenificam a cidade com a fumaça odorífera dos incensos e os sons de peãs e gemidos.16 Édipo, soberano zeloso de seu povo, de imediato corresponde paternalmente aos sofrimentos dos filhos comunais, já por esses modos manifestamente assinalados. Zelo extremado por que bem acolhe a delegação em pessoa, dispensando mensageiros que afastem o rei das vozes dos súditos. Logo intenta fortalecer a confiança da comunidade, lembrandolhe a fama universal do nome Édipo. Logo proclama plena disposição de socorro, prova de régio condoimento paterno. Então, interpela entre os presentes a pessoa do ancião, esta distinta figura que com propriedade pode por todos expor as razões de suas súplicas, neles anunciadas por aparências de pavores ou aflições.17 E o sacerdote de Zeus, a expor as razões inquiridas pelo rei, então apresenta, a (co)mover o olhar e o espírito de Édipo, a percepção da comunidade presente diante dele, representada pelas distintas idades que conformam o destino da condição humana por seres crianças, jovens e velhos. E reforça essa percepção patética do povo tebano expondo as cenas por que o contágio pestilento consome sua existência. A casa de Cadmo despovoa contra o negro Hades enriquecido por gemidos e lamentos. 15 16 17 Sófocles. Édipo Rei, 22-30. Ibid. 1-21. Ibid. 1-13. 141 Francisco Murari Pires Mas, ainda que mais razões, precipuamente face a tais desgraças, ensejariam à comunidade postar reverentes gestos suplicantes a seu rei nos altares palacianos? Ou, pelo contrário, assim se projetam impropriedades de confusão ímpia da figura régia com os modos da honra divina? Não, logo adverte o venerável ancião, eles não têm Édipo por igual aos deuses, antes o consideram o primeiro dos homens nas vicissitudes da vida e nos contatos divinos. Ponderação de entendimento sacerdotal que intenta deslindar o ambíguo paradoxo intrigado por aquela súplica à pessoa de Édipo: sim, ela situa reverência piedosa, comovendo-o como a um ser divino, e, todavia, nega-lhe tal estatuto.18 Assim, devidamente se reconhece o estatuto propriamente heróico do rei, ambiguamente situando seu valor pelo domínio do divino e pela esfera do humano. Por um lado, dizer Édipo não igual aos deuses afirma sua inferioridade em relação ao divino, dissocia-o da pertinência a este âmbito, posiciona-o fora e abaixo dele e, portanto, localiza-o em meio aos humanos. E, por outro, formulando contraposição adversativa, assevera também a apreciação de que sua inferioridade é apenas essa, para com o ser divino, nível absoluto de grandeza superior. Ao reconhecer Édipo como o primeiro dos homens, só inferior aos deuses, o entendimento sacerdotal também admite que a superioridade de Édipo é de tal monta entre os humanos que é a superioridade máxima por eles alcançável, a qual bem se aprecia medindoa pelo seu contraponto à superioridade divina. Pois, afirmar a inferioridade de Édipo para com o divino é verdade tautológica da condição humana, válida seja para Édipo, o primeiro dos homens, seja para qualquer outro, mesmo o mais insignificante, inferiormente último em valor. A comunidade de um destino mortal define a humanitude de Édipo. Já afirmar Édipo como o primeiro dos homens supõe a distinção de um só e único indivíduo, bem destacado acima de todos, 18 Ibid. 31-39. Para o comentário deste diálogo entre Édipo e o sacerdote de Zeus no Prólogo, vejam-se as análises de F . Marshall, 1996, cap. II (“Súplica e responsabilidade”), p. 58-93. 142 Mithistória singularizado por precípua superioridade de valor. Assim, se diferencia ambiguamente o hierárquico estatuto heróico de Édipo no e do âmbito humano: o herói nele se insere pelo fato genérico da condição mortal de seu ser, mas dele também, em certo sentido, se dissocia, pois é situado tão acima que se o projeta, agora pelo valor de suas ações, no seu limiar delimitador, quase fora dele, a tocar o divino. Dizer Édipo o primeiro dos homens apenas inferior aos deuses, ao lembrar a humanitude homogeneizadora de seu ser, assinala também a heroicidade diferenciadora da história de suas realizações. Édipo, o primeiro dos homens, situa superioridade humana de valor tal que bem se estima sua grandeza inferirorizando-a apenas porque não divina. A prova da Esfinge, aduz o sacerdote, firmara a fama da excelência heróica de Édipo. Por esse episódio bem se marca a contraposição que distingue a individualidade excepcional do herói perante a comunidade humana, genericamente referenciada na fala do sacerdote pelo nós e pelo todos que compõe Tebas. Naquela ocasião, nenhum dos cidadãos, mesmo vivenciando a crise e dispondo dos recursos informativos e demais instruções humanas presumivelmente respeitantes à questão interrogada pela Esfinge, decifrou seu enigma. Nas circunstâncias de sua chegada adventícia à cidade, a situação de Édipo diante da Esfinge era a mais precária, pois desprovida de todo e qualquer concurso de saber humano. E, todavia, apesar de tal desfavor circunstancial de sua situação humana, decifrou-o. Como entender razões que deslindem a intriga desse fato paradoxal? Tal façanha excepcional de decifração do enigma, reflete a fala sacerdotal, assinala talvez para Édipo a graça do favor divino, pois auxílio humano, qualquer um, certamente não foi: Édipo o enfrentou totalmente exterior, estranho, ao lugar humano que dele estava inteirado. Assim, pelo privilégio do favor divino, se concebe o êxito heróico edipiano. Tal é, pelo menos, o entendimento consensual da comunidade: é o que se diz, é o que se acredita.19 19 Ibid. 31-39 143 Francisco Murari Pires Então, justamente ecoando a antecedente lembrança alusiva da proclamação inicial de Édipo, também a voz da comunidade tebana reconhece a excelência heróica de seu rei consumada pelo episódio da Esfinge, assim celebrando a fama de seu poder salvador. Mas essa fama remonta a origem passada, feito encerrado. Agora, a atualidade presente reitera outra crise ruinosa em Tebas por contágio pestilento que igualmente a desgraça. O país necessita, outra vez, de um poder salvador que socorra seu povo em nova aflição. Daí, os imperativos exortativos com que a comunidade, pela fala sacerdotal, suplica a Édipo, o melhor dos mortais, para que reerga a cidade, livre-a dos males que a submergem. Se a pestilência maléfica, flagelo pavoroso, perde Tebas, então que seu justo poder salvador, o rei Édipo, a salve! Ambíguos rogos de súplica, pois tanto assim o sacerdote apela a seu poder salvador, reverenciando-o confiante por sua exitosa prova passada, quanto também assim supõe cobranças, reclamos à figura régia por suas responsabilidades de permanente benéfica atuação comunitária. Pois a crise manifesta a falha desse poder, agora carente de efetividade, assim pondo em suspenso sua fama.. Se a areté heróica dessa potência salvadora edipiana bem se proclama pela realização de seu feito pregresso exitoso diante da Esfinge, agora, assinalada sua falha, implicadamente se questiona, por recurso retórico de instigação acicatadora, a atualidade do poder salvador edipiano, desafiando-o à reiteração de um novo feito. Que Édipo, então, seja sempre igual, ainda poder salvador. Rogo e desafio do poder de Édipo a outra vez reerguer a cidade, salvar Tebas, dispondo benéfica ação comunal, é também concomitantemente, lembra o sacerdote, superar reiterada prova heróica a, agora, resguardar sua pessoal condição régia. Pois, sapiente advertência: se governarás esta terra, como dominas, com homens mais belo do que vazia é dominar, que nada é nem torre nem nau deserta de homens sem habitantes dentro. Assim, reclama-se da realeza a obrigação de seu dever precípuo de atuação, que precisamente institui e funda a autoridade de sua soberania: a promoção do bem comunal. Para a figura de poder que Édipo consuma, presente soberano de Tebas, a permanência futura de sua suserania agora 144 Mithistória depende da persistência atual de sua potência salvadora. Nova prova situa justa confirmação de poder régio por consoante reiteração de excelência virtuosa. A história do destino régio de Édipo e a condizente memória celebradora de sua fama heróica deparam, pela pestilência que desgraça Tebas, o tempo crítico em que se decide ou sua unicidade salvadora ou, pelo contrário, sua dualidade primeiro salvadora de comunidade ereta e depois ruinosa dela tombada.20 Assim concebida a trama narrativa sofocleana do princípio do desfecho trágico da história de Édipo, a alusiva metáfora da condição humana a lembrar o desafio da Esfinge situaria uma reiteração enigmática por que se move o destino do herói, por ele (con)fundindo os modos de concepção mítica de princípio e fim do poder real. 20 Ibid. 40-57. 145 Mithistória VII. História e epopéia: os princípios da narrativa * Já desde a abertura, conformada como prólogo, a historiografia helênica, nascente com Heródoto e Tucídides, assinala nexos que a vinculam tributária da composição épica, similarmente encetada por um proêmio.1 Dessa tradição (dis)posta pela epopéia, ela herda, pois, as convenções de exposição inicial que enunciam os tópicos declarativos de sua identidade de memória narrativa de acontecimentos passados.2 Especialmente com * O ensaio a seguir alinhava algumas orientações – quer por indicações textuais quer bibliográficas, todavia longe de exaustivas – que mapeiam um conjunto de problemáticas constitutivo de nosso projeto de pesquisa maior, assim parcialmente exposto respeitante à emergência da narrativa historiográfica grega a partir das modalidades míticas, especialmente épicas, de memorização. Vários estudos foram consagrados à análise dessa conexão; entre outros, vejam-se: J.L. Moles (Truth..., p. 90s), G. Nagy (Best...,p. 175), J. Marincola (Authority....p. 35), H. Lloyd-Jones (Justice..., p. 141), A.J. Woodman (Rhetoric..., p. 7-9) e D. Earl (PrologueForm..., p. 842). A questão foi já abordada por Romeo no que respeita à linhagem compositiva poética: “O proêmio é então o primeiro momento, ao mesmo tempo preparatório e sintético, de um canto composto kata\ moi/ran (Od VIII 496). Exórdio cerimonial, de rígida formularidade, o proêmio da Ilíada torna-se paradigma, cânone... ‘Legem prooemiorum non dico servavit, sed constituit’ (Quint. X.1.48): traçados os confins, eles delimitam o que se tornará, por costume, a tradição” (Romeo, 1985: 13). A também fundamentar sua apreciação, o crítico lembra o juízo dado por Quintiliano: “Nas poucas linhas com que ele (Homero) introduz ambos seus poemas épicos, não teria, não direi observado, 1 2 147 Francisco Murari Pires Tucídides, essa norma compositiva revela plenitude de formulação sistematizada, englobando e articulando, no corpo mesmo de um tal proêmio/ prólogo, toda a gama de fundamentos que dispõem os princípios ordenadores de sua constituição narrativa. Partindo da exposição do prólogo tucidideano identificamos quais sejam esses princípios, daí rastreando os passos intermediários de sua trajetória histórica a conformar o prólogo herodoteano, para, então, alcançar sua formulação originária no proêmio do épos homérico. Distinguem-se como princípios constitutivos da narrativa: 1. um princípio axiológico que, identificando o critério determinante da seletividade episódica da narrativa, apreende a dimensão de grandeza que a práxis humana comporta, especialmente relevando sua portentosidade trágica; 2. um princípio teleológico que, projetando valores a finalizar a consecução das ações humanas enquanto bens valiosos, distingue quais utilidades e valias a narrativa assim realiza, então especialmente enquadrando a disputa entre a futilidade de sua fruição prazerosa e a perenidade de sua memória celebrante; 3. um princípio onomasiológico que, dizendo da realidade do nome a referenciar o autor da narrativa enquanto obra singularizada, aborda a questão do sujeito; 4. um princípio metodológico que, arrazoando as concepções de realidade fatual do ocorrido, conforma os preceitos por meio dos quais se fundamenta a veracidade de sua composição narrativa; mas de fato estabelecido a lei que governaria a composição do exórdio? Pois, por sua invocação das deusas, que se acreditava presidirem a poesia, ele ganha a boa disposição do público, e por sua afirmação da grandeza de seus temas ele aviva sua atenção e os torna receptivos pela brevidade de seu sumário” (Instituições oratórias, X.1.48). Confiram-se ainda as indicações dadas por Kirk (p. 52) e por Heubeck (p. 68) em seus respectivos comentários aos proêmios iliádico e odisséico. 148 Mithistória 5. um princípio arqueológico que, bem demarcando o início fatual do episódio narrado, dá consentâneo começo à narrativa, de modo que a narrativa do início compõe o início da narrativa; 6. e um princípio etiológico que, desdobrando o princípio arqueológico, apreende o início fatual do episódio como origem de que advém seu desencadeamento e, pois, como causa que dá sua razão de ser. 149 Mithistória 1. Axiológico (a questão da grandeza) “Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses como eles combateram uns contra os outros. Começou imediatamente à sua eclosão na expectativa de que ela fosse grande e mais digna de relato do que as precedentes, pois verificava que, ao entrar em luta, ambos estavam no auge de todos os seus recursos, e observava também que o restante do mundo helênico compunha-se com um dos dois lados, uns de imediato, outros pelo menos em projeto. De fato, esta comoção foi a maior já ocorrida para os helenos e também para uma parcela dos bárbaros, podendose mesmo dizer, para a maioria da humanidade”.1 A declaração inaugural do Proêmio, concomitante à especificação da identidade de seu sujeito narrativo, enuncia também a especificação complementar identificadora do objeto abordado na obra: a guerra que opôs peloponésios e atenienses na contemporaneidade mesma de Tucídides. Fica, pois, contemplado o âmbito da guerra como aquela esfera da prática humana especialmente eleita pela narrativa da história. De imediato, Tucídides expõe também a razão fundamentadora de tal distinção narrativa em declarando o critério justificador de sua seletividade: ela fosse “grande” e “mais digna de relato” do que as precedentes (“mégan” te kaì “axiologótaton”). Então, pelo atributo da grandeza por ela efetivada, essa guerra constitui dignidade discursiva em grau superlativo. Pois, medida pelo confronto por que se a opõe aos conflitos bélicos precedentes, a guerra dos peloponésios e atenienses realiza a grandeza em tal expressão superior que reclama excepcionalmente ser contemplada com o privilégio honorífico de uma obra narrativa. 1 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1. 151 Francisco Murari Pires Mas, a eleição da prática da guerra enquanto tema privilegiado da narrativa da história, justamente porque esfera de realização da grandeza humana, fora posta já pelo Proêmio herodoteano: “Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nem as realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas e maravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros, fiquem sem fama; e, entre outras, também por que causa eles guerrearam uns contra os outros”.2 Para a história herodoteana, dois atributos circunscrevem, no amplo horizonte das realizações humanas, a qualidade do que é “memorável”: a “grandiosidade” e o “maravilhoso” (“megála” te kaì “thomastá”). Então, feitos humanos em geral, que bem comportem grandeza e maravilhamento, são “historiáveis”. Assim, por meio da exposição que os torna publicamente manifestos (apódexis héde)3 enquanto narrativa, assegurando-lhes memória e fama, a história herodoteana justamente reconhece e responde pela grandeza já pelos feitos mesmos fatualmente realizada (érga megála apodechthénta). Mas, nem bem acabou de declarar a grandeza das obras como constitutiva do objeto digno da memória histórica, Heródoto logo polariza o especial horizonte das ações humanas em que sua narrativa os busca: a guerra dos helenos contra os bárbaros.4 E, todavia, também o privilegiamento da guerra como campo temático especial da narrativa, a história herda da tradição épica.5 Épos e guerra, 2 3 Histórias, I.1. “O que nós chamamos as Histórias é a apresentação pública (historíes apódeixis), a mostra desta historíe” (F . Hartog. O espelho..., p. 17). Já J. L. Moles (1993: 92) destaca esse escalonamento da temática herodoteana – do mais genérico e universalizante para o mais específico – configurado em seu Proêmio. A fixação da temática da guerra na tradição historiográfica, enquanto herança da épica, é tratada por G. S. Shrimpton, History..., p. 98-99. 152 4 5 Mithistória associação imediata! Assim, Trigeu, personagem aristofânico ávido pela paz em plena Guerra do Peloponeso, não agüenta aquela criança que teimava em declamar versos épicos e constantemente a interrompe recriminando-a, pois não queria nem ouvir falar de guerra.6 Episódios da Guerra de Tróia compõem os temas dos cantos homéricos, desde logo declarados em seus versos inaugurais. Assim, na Ilíada: “A ira canta, Deusa, de Aquiles Pelíade... E similarmente na Odisséia: O homem diz-me, Musa, multívio7 que bem muito vagou, desde que de Tróia a sacra cidadela arrasou”. Épos Mas, o que declara o épos mesmo como objeto de seu canto? A bem cumprir a missão que lhe confiara Agamêmnon de uma embaixada junto à tenda de Aquiles a solicitar-lhe o retorno aos combates, a comitiva aquéia alcança a tenda do herói.8 Os visitantes encontraram-no a deleitar a alma e encantar o coração com cantos acompanhados aos toques sonoros da lira. Diante dele, só Pátroclo, sentado, ouvindo silente, a aguardar que o dileto amigo encerrasse sua canção. E o que canta o herói – Aquiles – em sua tenda, entediado inativo no acampamento aqueu diante dos plainos de Tróia? Canta “kléa andron”, as “famas dos homens”.9 Pelos 6 7 8 Aristófanes. Paz, 1282ss. Adotamos a solução dada por Jaa Torrano para a tradução de polytropos por “multívio”. Comitiva de dois/três integrantes – Ájax, Odisseu, Fênix – compõe o insolúvel dilema da hermenêutica dessa cena iliádica; confiram-se nossos comentários no ensaio final desta coletânea, Leões alados e círculos triangulares. Ilíada, IX.182-192. Confiram-se também: Odisséia, VIII.73; Hino homérico a Selene, XXII.18. 9 153 Francisco Murari Pires paradoxos desse retiro, pálida realização substitutiva para um destino heróico de honra beligerante! Em meio às festivas reuniões palacianas, alternando com tantos outros ensejos prazerosos que deleitam os convivas (iguarias, danças, jogos), chega a vez dos cantos do aedo. Todos sentados ouvem-no em silêncio. Ele toma nas mãos a esplêndida lira, de límpido som, e põe-se a preludiar um belo canto. E o que cantam os aedos – Demódoco em Esquéria, Fêmio em Ítaca – nas festivas reuniões palacianas de seus reis? Cantam “os feitos dos homens e dos deuses”.10 “Episódios de feitos divinos” por vezes pontuam a narrativa dos poemas homéricos. Assim, por Demódoco contam-se os amores furtivos de Ares e Afrodite, amantes surpreendidos por Hefesto, o marido enganado, tão perito nas artes dos laços e cadeias que aprisionam, quão objeto de riso e divertimento entre os deuses.11 Assim, Hefesto alude à sua queda dos céus, de lá arremessado por Zeus sobre Lemnos quando, em impotente defesa da mãe, interpôs-se em uma das tantas rusgas com que se desentendiam os amores do casal celeste.12 Assim, Agamêmnon refere a queda de Áte (Erronia13), arremessada por Zeus da convivência divina dos céus para o âmbito terreno dos mortais, quando o pai dos deuses reagiu furioso contra o poder desencaminhador de desígnios dessa odiosa figura.14 Mitos exemplares de episódios das histórias divinas, por desígnios etiológicos15, que especialmente dizem dos princípios e fundamentos originários da ordem (im)posta pelo poder de Zeus. 10 11 12 13 14 15 Odisséia, I.153-155; 325-328; VIII.266. Odisséia, VIII.266-367. Ilíada, I.590-594. Adotamos a tradução para o português indicada por Jaa Torrano. Ilíada, XIX.91-133. J. Redfield (1975: 31). 154 Mithistória Especialmente os hinos teogônicos narram tais mitos a gloriar os entes divinos. Os hinos que compõem o épos cantam os deuses. Assim, as Musas, precipitando-se do ápice do Hélicon em procissões noturnas, hineiam Zeus, Hera, Atena, Apolo, Ártemis, Posídon...16. Associados pela tradição ao nome de Homero, preservaram-se trinta e três. Por seus hinos, diz Hesíodo, as Musas gloriam “o sagrado ser dos imortais sempre vivos”.17 Contando o evento de seus nascimentos e narrando suas demais ações18, dizem da essência de seus seres divinos e, pois, delineiam os âmbitos precípuos de seus poderes. Especialmente, então, hineiam Zeus, “o mais forte dos deuses e o maior em poder”.19 A gloriar Zeus, o hino narra a história de seu poder: como venceu o pai Cronos.20 E como, reinando no céu, instaura a ordem sagrada de seu poder: aos imortais bem distribui e indica cada honra.21 Partilha das honras que justamente define as singulares essências de seus modos divinos de existência.22 E, assim, gloria o sagrado ser dos imortais sempre vivos. Tal é a Teogonia hesiódica. Elegendo a existência divina como tema de seu canto, os hinos épicos dizem acerca do poder, da soberania concebida como a grandeza absoluta. Em conjunção com os feitos divinos, o épos canta também feitos humanos. Feitos que são ações extraordinárias, façanhas singulares, acontecimentos admiráveis a comporem histórias famosas. Histórias grandiosas dotadas de kléos, cujas tramas bem se contam e ouvem reiteradamente por todos os lugares, a projetar a rede de sua fama em toda a extensão do espa16 17 18 19 20 21 22 Teogonia, 9-21. Teogonia, 105 (para a Teogonia usamos a tradução de Jaa Torrano). Thalmann (1984: 154). Teogonia, 49. Teogonia, 73. Teogonia, 73-4. Teogonia, 66-7. 155 Francisco Murari Pires ço, alcançando as alturas celestes, espalhando-se pelo horizonte como a luz da aurora, difusão esta de fama que dá a justa medida de sua excepcionalidade gloriosa.23 Narrando histórias famosas, o épos celebra, ao lado da existência divina, também a condição humana: “as famas dos antigos” e os venturosos Deuses que têm o Olimpo compõem os hinos do cantor servo das Musas.24 Mas canta a condição humana apreciada pelo estatuto de sua “grandeza heróica”. Assim, saudando em despedida a Deusa, Selene, por ele primeiro celebrada em hino, o bardo anuncia então seu seqüente desígnio, a agora cantar as famas de mortais semidivinos, cujos feitos os aedos, servos das Musas, gloriam por vozes adoráveis.25 Por hinos divinos mais humanas sagas heróicas transitam os cantos épicos.26 A retratar a grandeza heróica, a Ilíada homérica enuncia o episódio guerreiro distinguido por sua narrativa: “A ira canta, deusa, de Aquiles Pelíade, funesta, que inúmeros sofrimentos aos aqueus dispôs, e muitas almas potentes ao Hades lançou de heróis, deles fazendo presas de cães e de aves todos – cumpria-se o conselho de Zeus – desde que primeiro se apartaram brigados o Atrida, rei de homens, e o divino Aquiles”. 27 23 Odisséia, VIII.74; Ilíada, VII.451; VIII.192. Para o conceito de kléos e sua tradução por “fama” veja-se J. Redfield, Nature..., p.30-5. Já G. Nagy (Best..., p. 16), baseando-se na análise da etimologia indo-européia (cognatos índico, sravas e eslavo, slava), opta pela tradução por “glória”. Teogonia, 99-101 (tradução de Jaa Torrano, todavia adotando “fama” para kléos, como proposto por James Redfield). Hino homérico a Selene, XXXII.17-20. J.S. Clay (1997: 20s). Ilíada, 1-7. 156 24 25 26 27 Mithistória Similarmente o declara o Proêmio da Odisséia: “O homem diz-me, Musa, multívio que bem muito vagou, depois que de Tróia a sacra cidadela arrasou; de muitos homens viu as cidades e as concepções conheceu, e muitas dores no mar sofreu em seu coração batendo-se por sua vida e pelo retorno dos companheiros; mas nem assim os companheiros salvou, mesmo querendo-o, pois por estultícias deles mesmos pereceram, néscios, que os bois de Hélio Hiperiônio bem devoravam, mas ele os privou do dia do regresso. De algum ponto, deusa, filha de Zeus, diz-nos também”.28 Da Ilíada para a Odisséia, por seus respectivos temas de canto – a ira de Aquiles Pelíade, na primeira, o homem multívio, Odisseu, na segunda –, a axiologia épica opera um deslocamento em sua agonística heróica.29 Já o próprio Homero diz dessa conceituação contrapositiva de heroicidades ao configurar as disposições das naus dos heróis aqueus acampados no litoral troiano: enquanto Aquiles e Ájax fixaram suas tendas nos pontos extremos, lugar de maior risco e vulnerabilidade, Odisseu preferiu 28 29 Odisséia, I.1-9. “Está claro, desde a Antigüidade, que as primeiras palavras dos dois proêmios, menin e andra, definem uma ampla oposição de conteúdo e de ethos, e está claro hoje que este contraste é articulado por toda a construção dos dois poemas. A oposição refere primeiramente o tema: o objeto da Ilíada é a ira de Aquiles, um acontecimento fatal em seu destino guerreiro, ao passo que o da Odisséia é um homem, um caráter, um bios. Todavia, dado que a ira é um aspecto convencional, mesmo profissional do guerreiro heróico, e a ira de Aquiles se torna o ponto de inflexão em seu destino guerreiro, está claro que menin e andra contrastam duas espécies diferentes de heróis ... Por outro lado, o termo ‘ira’ no verso inicial da Ilíada é usado no poema apenas para os deuses e para Aquiles. Conseqüentemente, uma espécie de atitude divina é atribuída a Aquiles, ao mesmo tempo que o texto menciona seu nome e o nome de seu pai humano. Os versos iniciais dos dois poemas compõem uma antítese e um quiasmo: a ira divina de um homem e um homem possuindo poderes divinos” (P . Pucci, Song..., 12 e 23). 157 Francisco Murari Pires situar a sua bem no meio, local mais protegido e seguro. Assim fizeram, aqueles dois primeiros heróis, porque, confiantes na plena suficiência de sua valia guerreira, a dispensar todo concurso de auxílio de companheiros que lhe acusasse a falta; já Odisseu, usufruindo que dali melhor se podia fazer ouvir pelos demais os apelos de chamados para o esforço guerreiro.30 Aquiles, herói extremo, configura, por sua ira, o paroxismo de uma identidade heróica de contigüidade divina. O herói aparece tão destacado e isolado em sua potência furiosa que assoma a estatura por demais sobre-humana, de modos afins aos divinos.31 Então, quando ele decide vingar a morte de Pátroclo pela de Heitor, o herói excepcionalmente pode até mesmo dispensar a necessidade dos alimentos, todavia, item imprescindível que a condição humana impõe para a reiteração de renovado vigor exigido para os empenhos beligerantes: nessa hora ele (com)partilha os efeitos das virtudes divinas da ambrosia e néctar que Atena, por ordem de Zeus a promover sempre a melhor consecução de seu destino heróico, espalha por seu peito.32 Na matança furiosa a que ele se entrega em perseguição assassina contra odiosos troianos a macular as águas do Escamandro, o herói atinge o limiar desse paroxismo de potência agressiva33, apenas então contida pela força maior do Deus Rio, que ameaça reverter contra ele tal destino infausto, sendo deste apenas salvo graças ao concurso de outra potestade divina, Hefesto. Aquiles bem combate só em meio a deuses. E, assim, também conduz suas participações deliberantes em Tróia aos ensejos de sua ira, pois firma as pretensões de sua superioridade por renitente recusa em admitir valores heróicos maiores do que o seu, primeiro contra Agamêmnon, depois contra Heitor. O herói atende a conselhos e se submete, sim, a pedidos, mas antes por ordens e preceitos 30 31 Confiram-se nossas indicações dadas no ensaio “O melhor dos aqueus”. Vejam-se, entre outros: Austin, Archery..., p. 109; Thalmann, Convention..., p. 181; Edwards, Homer..., p. 6; Finley Jr., Homer’s..., p. 49. Ilíada, XIX.338-355. Confiram-se os comentários de Scully (1990: 116-119). 158 32 33 Mithistória que emanam direto de Zeus, ou por intervenção mediadora de Atena ou de Tétis, sua prestimosa mãe. Paroxismo de pretensões da ira de um herói que, pelo aviltamento injuriante do cadáver de Heitor, arrisca mesmo desvios hibrísticos, logo advertidos por Apolo.34 Já Odisseu assinala uma heroicidade que especialmente prima pela excelência de sua métis. Assim o proclamam não só ele próprio em altiva identificação pessoal a Alcino35, como também Helena em informe a Príamo36, e ainda mesmo Atena nele reconhecendo similar heróico de sua essência divina37. Herói de figura física por compleição antes propriamente humana, não excepcional, que pouco impressiona por uma portentosidade e beleza maior de estatura, mas que justamente por isso vale também como um seu outro modo/recurso de ser astucioso, a induzir em engano os que, menosprezando sua aparência, são assim por ela ruinosamente ludibriados, como bem duramente o aprendeu o ciclope Polifemo.38 É também um episódio da Guerra de Tróia que o poeta canta: o retorno (nóstos) de Odisseu, sua viagem de volta à pátria após a destruição da cidadela troiana. Um atributo bem qualifica o herói de que trata a narrativa: multívio (polýtropos). Epíteto polêmico, cuja significação intrigou as discussões dos comentadores antigos. Justamente, epíteto ambivalente, pois diz das múltiplas vias do percurso odisséico de retorno, sejam as vias enquanto as inúmeras erranças e desvios de um reiterado episódio de viagens, sejam as vias enquanto os variados modos de recursos e expedientes astuciosos de transitar por essas erranças, a delas interminavelmente sair e 34 35 36 37 38 J.S. Clay (1997: 67). Odisséia, IX.19-20. Ilíada, III.200-202. Odisséia, XIII.291-299. Odisséia, IX.507-516. Também no episódio iliádico, em que o troiano Antenor descreve a compleição física de Odisseu, sugere-se a virtude dessa aparência enganosa que não indicia, antes dissimula enganosamente, um, todavia assim, estupendo e maravilhoso primor de competência retórica. 159 Francisco Murari Pires entrar.39 Desse herói, a Odisséia lembra pelos destaques de seu Proêmio, as erranças da viagem de retorno por múltiplos desvios por que ele constitui sua sabedoria e conhecimento, entretanto auferidos aos ensejos de tantos mais sofrimentos padecidos em seu coração. Herói, então, também especialmente assinalado por modo humano de (onis)ciência limitada, aos ensejos de longa e variada experiência de vida, conhecendo as vicissitudes de múltiplas realidades.40 Odisseu, também heróico porque homem excepcionalmente sofrido. E herói também que singularmente evita, por cautelas de piedosa prudência, ecoar eventuais proclamações de uma superioridade extrema, perigoso limiar hibrístico porque o humano arrisca pretensões de rivalização divina.41 A heroicidade odisséica, assim, aponta para um para39 40 Vejam-se os comentários de Torrano, O sentido de Zeus, p. 95-6. Aristóteles na Retórica (III.3.4.1406b) refere o dito de Alcidamas de que a “Odisséia era belo espelho da vida humana”. Similarmente o reiteraram S. Schein (“...a Odisséia trata do que significa ser humano”: Reading the Odyssey, p. 5) e P . Vidal-Naquet (“A Odisséia no seu todo é em certo sentido o retorno de Odisseu à normalidade, sua deliberada aceitação da condição humana”: Land ..., p. 38-39). Confira-se o cuidado com que Odisseu encerra a declaração rasgadamente elogiosa que lhe dirige Diomedes (“como poderei esquecer o divino Odisseu, que possui, no mais alto grau o coração zeloso e a alma viril em todas as provações, e a quem ama Palas Atena? Com ele, até das chamas regressaríamos ambos, pois sabe pensar melhor do que todos”: Ilíada, X.243-247) ao selecioná-lo para seu companheiro na missão de espionagem noturna junto ao acampamento troiano: “Filho de Tideu, não me louves tanto, nem me censures. Eles já sabem isso, os argivos a quem te diriges”: Ilíada, X.249-250; ambas as traduções de Cascais Franco). G. Nagy (Best..., p. 34) entende que a resposta de Odisseu, integrada à tradição épica da Ilíada, compõe o reconhecimento de que, neste horizonte compositivo, Odisseu não pode pretender a um tal título de melhor dos aqueus. Parecenos, entretanto, que a réplica do herói soa antes como cautela preceituada por sapiência prudente e piedosa de quem é consciente da implicância hibrística de uma tal modalidade de proclamação de ser heróico superlativo, assim referenciada, no entanto, a um humano. A recusa odisséica seria, então, análoga à que distingue o sábio piedoso ao afastar de sua pessoa as proclamações de uma tal pretensão, quer pela história da trípode que teria circulado entre os Sete Sábios como prêmio ao maior de todos, quer pela história da entrevista de Sólon com Creso a definir quem fosse o mais próspero e feliz. Odisseu, assim, se indispõe a tais proclamações, ambiguamente aparentando situar-se 160 41 Mithistória doxal paroxismo de antes humanitude a marcar os modos de sua excelência distintiva como meio e não extremo.42 Os dois poemas contrapõem também distintos desfechos por que vislumbram os destinos dos heróis por eles celebrados. Na Ilíada, pela heroicidade de Aquiles, antevêm-se os sombrios passamentos de heróis valorosos, todavia tombados em terra estrangeira, a não mais rever o solo pátrio. Na Odisséia, pela heroicidade de Odisseu, alude-se, pelo contrário, ao singular êxito do retorno do rei de Ítaca ao lar. Princípio e fim de uma trajetória heróica de contraste opositivo aos que definem a história de Aquiles, o herói jovem tombado em terras estrangeiras, obtendo fama imortal em contrapartida à perda do regresso. Já para o destino heróico de Odisseu, kléos e nóstos, fama e regresso, não foram tramados por imposições de um princípio excludente, em que a afirmação de um requer a negação do outro. Nessa trajetória heróica, a permanência do tino inteligente de Odisseu, enfrentando reiteradas vicissitudes de morte, finaliza sempre a preservação da vida.43 como que fora da disputa por um tal título de ser o melhor, não porque esteja convicto de que sua valia heróica seja inferior à de Aquiles ou à de Ájax, mas porque, por prudência piedosa, deixa outros insensatamente usufruírem o suposto gozo desse apanágio, sobre eles consoantemente desviando-se os riscos de sua correspondente pretensão hibrística. 42 “O propriamente humano na Odisséia – e isto significa em grande medida Odisseu e Ítaca a que ele se empenha por retornar – define-se em oposição a ambos, o subhumano e o sobre-humano. Ele aceita a necessidade da labuta, do sofrimento e da mortalidade, mas também oferece a possibilidade da resistência, do heroísmo e também da justiça. O Odisseu de Homero...dá mostras de ser não apenas o melhor dos Gregos. Ele finalmente incorpora as melhores possibilidades do humano em sua precária posição entre deus e fera” (J. S. Clay, Wrath..., p. 132). “...a alternativa mais sombria apresentada na Ilíada: a de nenhum retorno. Esta é a alternativa escolhida por Aquiles, e dá o fundamento de seu kleos imortal, sua glória. Como seria de esperar, a Odisséia faz de uma radical diferença de orientação a base de seu confronto deliberado com a Ilíada. ... Os dois textos confrontam-se um contra o outro como se suas orientações para com o retorno e o kleos constituíssem a chave 161 43 Francisco Murari Pires Odisséia e Ilíada, ao mesmo tempo em que firmam uma comunhão de identidade épica emblematizada pelo nome de seu mesmo aedo, Homero, também configuram contraposição agonística.44 Pelas metáforas45 de herói jovem que parte de casa para a guerra, contra herói maduro que dela retorna ao lar, a axiologia épica da Ilíada é contrastada pela da Odisséia: enquanto aquela aponta o princípio da história do heróico, esta aponta o fim.46 E como, para os antigos, pelos atos se depreende o caráter de quem os pratica, a metáfora transpõe-se também confundida na figura da suposta pessoa do aedo, sujeito humano de tais composições. Assim, para temática para suas diferentes metafísicas, e de fato a noção de retorno envolve uma diferente economia de vida/morte em cada poema” (P . Pucci, Odysseus..., p. 129). “O contraste entre a angústia de Aquiles, que está sempre a arriscar sua vida, e a angústia de Odisseu, em salvar sua vida, constitui a diferença existencial entre os dois poemas e não necessita ser comentado. A Ilíada é o poema da total dissipação de vida e a Odisséia é o poema de uma economia controlada de vida” (P . Pucci, Song..., p. 15). “A mais importante posse e bem, sua vida, Odisseu não perde, apesar de perder no nóstos todos os demais bens. Assim, a narrativa de Odisseu e seu discurso de métis traz à luz o sucesso mesmo de sua sobrevivência, os modos de ele ser para sua sobrevivência, sua desconfiança, seu isolamento, seu tom específico de resignação e paciência. O triunfo da inteligência sobre o poder sombrio da morte (P . Pucci, Odysseus..., p. 142). Vejam-se ainda os comentários de S. Schein (Reading ..., p. 8). 44 “O confronto entre Aquiles e Odisseu vincula um confronto entre a Ilíada e a Odisséia. Se a épica pode ser definida como poesia de louvor, então o louvor de Odisseu na Odisséia rivaliza com o louvor de Aquiles na Ilíada. Ao dispor seu herói como um igual – se não superior – a Aquiles, o poeta da Odisséia firma o mais elevado reclamo da excelência de seu próprio poema” (J. S. Clay, Wrath..., p. 106). No que respeita a esta formulação da metáfora das idades na apreciação interpretativa dos dois poemas, vejam-se as análises de John H. Finley Jr., Homer’s Odyssey, p. 46-53. A tese de que a Odisséia, pela história do nóstos do herói, marca o fim da Idade Heróica que assinala igualmente o de sua tradição poética, está já formulada nas reflexões de P . Pucci, Song..., p. 173-175. 162 45 46 Mithistória Longino, no Tratado do Sublime47, a Ilíada é a concepção épica do heroísmo (cor)respondente à permanência do vigor juvenil de Homero, ao passo que a da Odisséia o é de sua velhice. * Porém, também a axiologia épica, que conjuga em seus cantos histórias de deuses e de homens, reitera a devida hierarquia que os distingue, opondo a excelência da existência divina contra as misérias da condição humana. No congraçamento do círculo dos deuses na morada olímpica de Zeus, a presença de Apolo enceta de imediato o ensejo regozijante da lira e do canto, e as Musas, alternando vozes, “Hineiam dos deuses os dons infindáveis e dos homens os padecimentos, quantos lhes advêm pelos deuses imortais, a viverem insensatos e indefesos, incapazes de descobrir cura para a morte e recurso contra a velhice”.48 Dos sofrimentos heróicos, diz o Proêmio da Ilíada: “A ira canta, deusa, de Aquiles Pelíade, funesta, que inúmeras dores aos aqueus dispôs, e muitas almas potentes ao Hades lançou de heróis, deles fazendo presas de cães e de aves todos – cumpria-se o conselho de Zeus, desde que primeiro se apartaram brigados o Atrida, rei de homens, e o divino Aquiles”. 49 A Ilíada elege como tema de seu canto um episódio da Guerra de Tróia: a Ira de Aquiles. A ira, ménis, entendida como “concepção objeti47 48 49 Longino. Do sublime, 9.11-14. Hino homérico a Apolo, III.190-193. Ilíada, 1-7. 163 Francisco Murari Pires vante” de uma manifestação raivosa apropriadamente divina, a qual reage a “um atentado contra a ordem” de Zeus por “um seu vínculo rompido, uma sua hierarquia arruinada”, liberando, assim, conseqüente “poder cósmico” de modo a prontamente restaurá-la.50 Ménis que é, assim, pela Ilíada excepcionalmente estendida à figura de Aquiles, cujo destino heróico alcança similitude de potência divina. A essa especificação conceitual de identidade temática, o poema logo aduz o atributo determinativo de sua relevância fatual: a ira funesta. Assim, ressalta sua efetividade precípua dizendo da obra ruinosa que com ela advém: princípio de males, desencadeamento de infortúnios. E o diz avaliando plenamente o episódio enquanto portento ruinoso: seja pela extensão multiplicada de seu alcance destrutivo, a miríade de dores sofridas pelos aqueus51; seja também pelos paradoxos manifestados por seu desfecho, quer a impotência, diante do destino de morte, de heróis, entretanto, potentes52, quer o modo vergonhoso dessa morte, pois selada pela profanação dos cadáveres a macular a honra de suas identidades heróicas. Então, episódio espantosamente ruinoso, de âmbito trágico.53 Também dos sofrimentos heróicos, diz o Proêmio da Odisséia: 50 51 J. Redfield, Proem..., p. 97-98. Hermann Fränkel (Early..., p. 14-15) sublinha como, na definição do material temático recomendável para celebração pelo canto épico, conjugam-se os requisitos de uma identidade pesarosa de infortúnios e sofrimentos – “somente o que é pesaroso é digno de preservação pela epopéia” – com os de sua expressão de abundância multiplicada. Na seqüência imediata do desencadeamento da ira de Aquiles perecem, em meio aos combates, Glauco, Sarpédon e Heitor entre os troianos, Pátroclo entre os aqueus; mas depois, ainda o próprio Aquiles, Antíloco e, por fim, Ájax. Nesse sentido, confiram-se os comentários de Thalmann, Convention..., p. 45. “O primeiro verso da Ilíada qualifica o herói em termos de sua raiva divina e de seu pai humano, e assim situa o herói entre a divindade e os homens. Este estatuto ambíguo constitui a fonte de sua tragédia” (James Redfield, Proem..., p. 98). 164 52 53 Mithistória “O homem diz-me, Musa, multívio que bem muito vagou, desde que de Tróia a sacra cidadela arrasou; de muitos homens viu as cidades e as concepções conheceu, e muitas dores no mar sofreu em seu coração batendo-se por sua vida e pelo retorno dos companheiros; mas nem assim os companheiros salvou, mesmo querendo-o, pois por estultícias deles mesmos pereceram, néscios, que os bois de Hélio Hiperiônio bem devoravam, mas ele os privou do dia do regresso”.54 E é igualmente o aspecto lutuoso dos múltiplos sofrimentos pelas mortes experienciadas que melhor aprecia a significância fatual da narrativa. Similarmente marca-se também o paradoxo da impotência heróica face a tais destinos ruinosos, pois efetivados apesar de todo o valoroso empreendimento ético do herói – dedicado chefe a zelar pela sorte de seus companheiros – o qual almejava justamente o desfecho contrário, de pleno salvamento. Em episódio nesse sentido exemplar55, atingindo níveis de paroxismo patético, Homero descreve o estado de impotência do herói, surpreendido pela captura de seis companheiros pelos assaltos de voracidade assassina de Cila: totalmente pasmo, ele apenas contemplou o destino de vôo desgraçado por sobre o navio daqueles homens, pés e mãos a agitarem-se convulsivamente e mais tantos gritos desesperados de apelo chamando pelo nome do chefe, última esperança de que, assim, atualizassem a potência heróica que os livrasse daquele desfecho ruinoso.56 As aflições pela perda dos companheiros, entretanto, compuseram a única (re)ação do herói, todavia bela54 55 Odisséia, I.1-9. Odisséia, XII.234-258. Confiram-se os primorosos comentários tecidos por K. Rheinhardt sobre esse episódio odisséico (Adventures..., p. 74s). Confiram-se os comentários de C. Higbie (Heroes’ names, p. 17) sobre a concepção que associa atualização de poder ao ato de nomeação, assim ironicamente configurada por essa passagem odisséica. 165 56 Francisco Murari Pires mente aureolando sua impotência por zelo extremoso de comandante afeito a seus companheiros. A grandeza humana, realizada em sua dimensão heróica, é conseqüentemente trágica. A consecução dos feitos grandiosos que distingue os heróis, demarcando o domínio de honras adstrito à esfera de seu poder, comporta, entretanto, paralelamente a multiplicidade de males e sofrimentos conexos a tais feitos. A axiologia épica, assim, logo assinala, pelas lembranças inaugurais de seus Proêmios, seu enviezamento trágico57, destacando o duplo aspecto portentoso que define a moira da grandeza heróica. Por um lado, então, o épos gloria a potência superlativa dos heróis, de aspiração divina, a fundar-lhe seu destino privilegiado de honras distintivas, mas também, por outro, firma igualmente a humanidade de sua condição pela impotência em evitar os males e sofrimentos com que os desígnios dos deuses determinam as vicissitudes desses feitos.58 Grandeza ambiguamente divina e humana, confluência de glórias e ruínas, princípio de nexo trágico que caracteriza a moira do poder heróico. História/Heródoto “Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nem as realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas e maravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros, fiquem sem fama; e, entre outras, também por que causa eles guerrearam uns contra os outros”.59 57 Assim, já o assevera o comentário do escoliasta: “o poeta concebeu um proêmio trágico para sua tragédias” (citado por Griffin, Homer..., p. 118, cujas análises enfatizam justamente a apreciação dessa definição trágica da épica iliádica em particular). Confira-se Edwards. Homer’s..., p. 175. Histórias, I.1. 166 58 59 Mithistória Se a axiologia do épos transita suas histórias, ou pelas obras divinas ou pelas sagas heróicas, a axiologia da história herodoteana, completando o deslocamento que já a Odisséia aponta em relação à Ilíada, situa as suas exclusivamente pela esfera dos homens: memoriza as realizações humanas. Assim, em consonância com o enunciado pelo Proêmio, Heródoto declara: “Com efeito, até onde vai meu conhecimento Polícrates foi o primeiro dos helenos a aspirar ao domínio dos mares – deixando de lado Minos de Cnossos e outros quaisquer que antes dele exerceram esse domínio –, o primeiro, ao menos, da chamada raça dos homens”. 60 A grandeza humana demarca a axiologia narrativa da história. A história herodoteana diz apenas as realidades grandiosas precípuas do tempo dos homens, dela, pois, exteriorizando-se quais outras ordens de grandiosidades que respeitem antes a uma (con)fusão com o divino por temporalidades míticas primordiais. Nem sagas de heróis nem obras de deuses, mas realizações humanas.61 Pelo horizonte dessa axiologia humana, dois atributos definem a qualidade do historicamente memorável: o grandioso e o maravilhoso (megála te kaì thomastá). 60 61 Heródoto. Histórias, III.122 (tradução de Mário da Gama Kury). “As Histórias desistem da teologia. O mundo divino não pode ser objeto da inquirição, diferentemente do dos homens. Situado na continuidade do primeiro, o mundo dos homens tornou-se-lhe heterogêneo, tanto que um mesmo discurso não pode dizer os dois ... A inquirição recusa-se a ver nos deuses um objeto de estudo. Ela se detém na linha divisória entre o tempo dos deuses e o dos homens. Ela não remonta além. Esta linha é traçada pelo silêncio que recobre o período antecedente e pelo uso de discursos transpostos no estilo indireto para retratar as aventuras divinas ou heróicas, quando estas se revelam indispensáveis à economia de um testemunho. A inquirição não se interessa tampouco pelos cultos místicos nos quais os deuses arrancam os homens da ordem humana e conturbam mais ou menos essa ordem. Os deuses determinam negativamente a natureza do objeto da inquirição: a raça dos homens enquanto não é a dos deuses” (C. Darbo-Pechanski, p. 38 e 97). 167 Francisco Murari Pires Porque as guerras medas compõem especialmente o objeto digno de sua celebração memorizadora, a história herodoteana realça as famas dos feitos bélicos de melhor dignidade, honra e valia. Catálogos nomeadores de guerreiros de ambos os lados ressoam ecos homéricos iliádicos, mas com os cenários de Tróia agora deslocados pelos de Maratona, Termópilas, Salamina, Platéias e Micale.62 Similarmente às queixas por que Helena lamenta os modos denigridores de suas histórias memorizadas pelos aedos para a fruição dos homens vindouros, também pela memorização da obra herodoteana diz-se da infâmia guerreira do ato desonroso e indigno de Efialtes.63 Também maravilhas são memoráveis, pois assinalam fatos e realidades excepcionais, singularidades extraordinárias, coisas raras, que assim escapam ao horizonte nivelador comum do que é desprovido de grandeza distintiva. Histórias que são também relatos de viagens64 ressoam ecos homéricos odisséicos. E não apenas o “qualitativamente extraordinário, mas também o quantitativamente notável”65, configura o thomastá consagrado pelas histórias herodoteanas. Logo, o monumental situa um cerne do histórico memorável, 62 Confiram-se: VI.109-117; VII.96-99; 224-232; VIII.85-9; IX.71-75. No horizonte dessa axiologia histórica de ambivalentes heranças heróicas emerge paralelamente a glorificação do coletivo especialmente apreciado por sua forma políade, como o lembra F . Hartog (Espelho..., p. 19): “Muda a façanha, notadamente guerreira: a excelência torna-se coletiva. A ordem da cidade e a lei da falange impõem-se. É belo morrer, não mais na primeira fila, mas na sua própria fileira”. “O narrador erige em seu lógos como que uma estela de infâmia que responde às inscrições gravadas em honra dos heróis tombados junto com Leônidas para a defesa do desfiladeiro” (F . Hartog, Miroir..., p. 294). Confiram-se igualmente os comentários de Immerwahr, Ergon..., p. 270. “O relato de viagem, se ele se pretende registro fiel, deve comportar uma rubrica: thoma, maravilhas, curiosidades. ... Bem grande beleza, excessiva raridade, são os constituintes do thoma. ...O thoma apresenta-se como uma tradução da diferença: ele é uma transcrição possível da diferença” (F . Hartog, Miroir..., p.243-244). “Mais freqüentemente o thoma exprime-se segundo a quantidade e a medida: ele se transcreve diretamente em números e medidas, como se o número e a medida constituíssem o ser do thoma. ...A grandeza é agora mensurável” (F . Hartog, Miroir..., p. 248). 168 63 64 65 Mithistória sucedendo-se em Heródoto freqüentes descrições de monumentos grandiosos, que glorificam especialmente os nomes das potestades régias a eles associados.66 Obras portentosas, marcas estupendas no mundo terreno manifestadoras da história de monarcas maiores, cujo poderio superior os leva a beirar limiares hibrísticos por pretensões de equiparação divinizante. Ao, assim, celebrar as realizações da grandeza humana assegurandolhes memorização de fama permanente, as Histórias herodoteanas apresentam-se como sucedâneas da epopéia, por agonística narrativa de ambivalente comprometimento por que desdobra/desloca seus valores instituintes. Pois, agora é uma guerra maior que o historiador narra, pelo que se depreende do, assim dito, segundo Prefácio (VII.20-21) das Histórias, no qual o autor ajuíza uma espécie de confronto agonístico em que contrapõe a grandeza maior da guerra por ele narrada – mais especificamente, a expedição de Xerxes contra a Hélade – a superar todas antecedentes: quer logo antes a de Dario contra os citas; quer ainda antes a dos citas a perseguir os cimérios Média adentro, à qual a de Dario respondera punitivo; quer ainda as mais antigas, de tempos primevos, como a guerra liderada pelos Atridas contra Tróia ou ainda antes a invasão da Europa pelos mísios e têucros a subjugar os trácios. Por este arrazoado, o historiador decide a palma da vitória, ganha pela história herodoteana contra à epopéia homérica, que a detinha pela fama gloriosa da Guerra de Tróia: 66 Vejam-se, entre outras, as seguintes passagens: as estátuas de pedra de Sesóstris (II.110); os propileus do santuário de Hefesto, edificados por Rampsinito (II.121); o Labirinto dos Doze Reis junto ao Lago Moeris (II.148); as crateras de ouro de Giges (I.14); os canais e diques da Babilônia (II.185); o canal do Monte Atos por Xerxes (VII.24). Nesse sentido, confiram-se os comentários de Immerwahr (Ergon..., p. 265-266): “A celebração, pela História de Heródoto, dos érga que são monumentos, reverbera a glorificação do nome a ele associado, manifestando, por meio de suas dimensões monumentais, a grandeza da realização desse indivíduo. O monumento figura um padrão de medida da grandeza da potestade, que é responsável por sua edificação, no sentido de que assim manifesta dimensionada a grandeza, entretanto, incomensurável dessa pessoa, grandeza então aqui especialmente concebida por poderio e riqueza”. 169 Francisco Murari Pires “Com efeito, essa foi de longe a expedição mais importante entre todas de que temos conhecimento, ... Todas essas expedições e quaisquer outras realizadas além dessas não merecem ser comparadas com esta única. De fato, que povo Xerxes não trouxe consigo da Ásia contra a Hélade? Que curso d’água, à exceção dos grandes rios, os soldados sedentos não exauriram durante essa expedição? Uns povos forneciam naus, outros tinham sido incumbidos de contribuir com tropas de infantaria; a uns tinham sido pedidos contingentes de cavalaria; a outros, além de sua presença na expedição, naus para o transporte de cavalos; alguns tinham recebido ordens para fornecer naus longas destinadas à construção de pontes; outros, provisões e naus”.67 Aspectos de relevância trágica, enquanto princípio seletivo dos temas contemplados pela narrativa, ressoam difusos nas declarações do Proêmio da obra herodoteana. Assim, a ecoar justamente aqueles versos inaugurais da Odisséia, as Histórias proclamam também os variados percursos da inquirição historiante: “E prosseguirei em frente meu discurso, percorrendo igualmente sejam as pequenas sejam as grandes cidades dos homens. Pois, aquelas que eram outrora grandes, em sua maioria pequenas ficaram; já aquelas que eram em minha época grandes, pequenas foram. Ciente de que a prosperidade humana jamais permanece fixa, dedicarei menção a ambas igualmente.”68 A narrativa das Histórias, declara Heródoto, não se deixa comandar pelas manifestações atuais de grandeza, apresentadas pelas obras humanas, a ponto de as tomar como critério de relevância exclusiva. Cônscio da instabilidade da prosperidade humana, permanentemente sujeita às vicissitudes e reviravoltas da fortuna, como bem o ensina o relato da estada de Sólon na corte de Creso, o historiador interessa-se igualmente pela sorte de ambas, quer as grandiosas mesmas, quer também as modestas, mesmo porque também estas já foram grandes e aquelas pequenas. Então, por esse modo retórico de expressão, bem enfatiza que a História cuida não apenas de retratar a 67 Heródoto. Histórias, VII.20-21 (tradução de Mário da Gama Kury ). 170 Mithistória grandeza humana, mas também, mais ainda, de atentar para o fato da sua fragilidade trágica. Mas essa grandeza maior do objeto narrado pelas Histórias herodoteanas assinala, dado seu caráter trágico, também a suprema portentosidade ruinosa associada ao confronto bélico. Pois, assim o comenta o historiador ao ensejo da menção do terremoto de Delos, ocorrido logo quando da passagem por lá da frota de Datis em direção à Hélade: “Delos foi sacudida por um terremoto, primeiro e último, ao que dizem os délios, anteriormente ao meu tempo. Este portento foi enviado pelos céus, ao que suponho, como um presságio dos males que adviriam ao mundo. Pois, em três gerações, ou seja, na época de Dario, filho de Histaspes, de Xerxes, filho de Dario e de Artaxerxes, filho de Xerxes, sobrevieram à Hélade mais males do que nas vinte gerações antes de Dario; alguns provenientes dos persas, alguns das guerras por preeminência entre os líderes das nações mesmas. Assim, não foi nada extraordinário que ocorresse um terremoto em Delos quando não houvera nenhum antes. Também existia um oráculo concernente a Delos em que estava escrito: ‘Eu sacudirei Delos, embora estável antes’ ”.69 História/Tucídides E se Heródoto rivaliza já com Homero pela história da Guerra de Xerxes que supera em grandeza a de Tróia, Tucídides, por sua vez, amarra ainda outro elo a esse encadeamento de agonística narrativa, agora almejando ofuscar pela grandeza superlativa da guerra dos peloponésios e atenienses as pretensões axiológicas em que, tanto a história herodoteana com as guerras medas quanto a epopéia homérica com a Guerra de Tróia, firmavam as respectivas primazias de suas obras comemorativas.70 68 69 70 Histórias, I.5. Histórias, VI.98 (pela tradução inglesa da Loeb). Confiram-se, por exemplo, os comentário de J. L. Moles (Truth and Untruth..., p. 99100): “Tucídides, por certos modos, está seguindo nas pegadas de Heródoto, bem como 171 Francisco Murari Pires Pois, logo na abertura de seu Proêmio, Tucídides já reclama para sua obra o primado no âmbito da narrativa: porque a guerra dos peloponésios e atenienses supera em grandeza todas as anteriores, ela se torna digna do registro discursivo em grau superlativo (axiologótaton). Como já antes o fizera Heródoto para sua história, também Tucídides busca ancorar as pretensões de sua axiologia pelas razões do domínio do lógos, atendendo à exigência de seu princípio constituinte, que impõe um arrazoado argumentativo como prova de suas declarações assertivas. Assim, à proclamação da excelência maior da guerra dos peloponésios e atenienses, faz seguir de imediato as razões que a fundamentam: “Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses como eles combateram uns contra os outros. Começou imediatamente à sua eclosão na expectativa de que ela fosse grande e mais digna de relato do que as precedentes, pois verificava que, ao entrar em luta, ambos estavam no auge de todos os seus recursos, e observava também que o restante do mundo helênico compunha-se com um dos dois lados, uns de imediato, outros pelo menos em projeto. De fato, esta comoção foi a maior já ocorrida para os helenos e também para uma parcela dos bárbaros, podendo-se mesmo dizer, para a maioria da humanidade”.71 Uma primeira reflexão infere a grandeza da guerra presente, considerando o tempo de sua efetivação: momento de culminação, ápice, da história estatal de concentração de recursos bélicos por ambas as cidades contendoras. Tempo, pois, de potencialidade máxima para a atualização do fenômeno guerreiro. Uma segunda reflexão argumenta essa grandeza constatando já a escala ou amplitude de sua manifestação: guerra que envolve no conflito beligerante não apenas peloponésios e atenienses, mas mesmo a totalidade do Heródoto, por certos modos, seguira nas de Homero. Mas a insistência tucidideana acerca da grandeza suprema de seu tema – seus superlativos tomam nossos ouvidos – implicitamente refuta Heródoto, justo como Heródoto refutara Homero”. 71 Tucídides. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1. 172 Mithistória mundo grego, devido às filiações de alianças com um ou outro lado, e ainda além, extravasando por áreas bárbaras. Assim, sua dimensão espacial de ocorrência engloba o domínio todo dos virtuais agentes da prática guerreira: a humanidade mesma, pois a guerra é fenômeno precipuamente humano. Então, máxima potencialidade de efetivação mais escala máxima de atualização, a grandeza da guerra dos peloponésios e atenienses é suprema porque alcança o nível máximo de realização em termos absolutos. Grandeza absolutamente máxima, porém, ainda não necessariamente superlativa, pois, se assim é afirmado que guerras maiores certamente não houveram, não implica, todavia, que guerras equiparáveis em grandeza não tivessem já antes ocorrido. Há, então, que argumentar ainda que estas guerras, anteriores, comportaram menor grandeza, enquanto fenômeno guerreiro, do que a presente. E, assim, o primeiro movimento argumentativo da prova, que afirma positivamente a grandeza máxima da guerra presente, solicita e desdobra-se em um segundo movimento, complementar e agora negativo, a negar nível equivalente de grandeza às guerras anteriores, do passado. É este segundo movimento argumentativo do discurso tucidideano do Proêmio que compõe a unidade textual (capítulos 2 a 19 do livro I), tradicionalmente denominada de “Arqueologia” pela crítica moderna. E a “Arqueologia”, enquanto arrazoado discursivo reclamado pela axiologia tucidideana, finaliza provar a grandeza superior da Guerra do Peloponeso em argumentando as grandezas a ela inferiores dos tempos antecedentes da Hélade, quer da Guerra de Tróia cantada por Homero quer das guerras medas historiadas por Heródoto, com Tucídides assim pontuando as obras e autores rivais contra quem mede a excelência narrativa de sua história. É próprio da poesia, afirma Tucídides, celebrar a grandeza superior dos acontecimentos e feitos por ela narrados, o que torna seu relato suspeito e, em princípio inconfiável: “Não é, portanto, plausível assim duvidar-se e nem preferentemente considerar as aparências das cidades aos seus poderios, mas sim entender 173 Francisco Murari Pires que, se aquela expedição foi a maior dentre as anteriores, é entretanto inferior às de hoje, caso se deva também aqui dar algum crédito à poesia de Homero, a qual, como é natural por ser ele poeta, foi adornada em vista do engrandecimento; e, entretanto, também assim ela pareceria mais pobre ainda”.72 A memória poética acerca da Guerra de Tróia, diz Tucídides, peca por seus efeitos engrandecedores do episódio. Essa guerra não pode comportar uma grandeza tal qual a que os poetas disseram. Antes de tudo, pelo fato mesmo de ser memória poética, cuja proposição narrativa está comprometida com uma precípua apresentação laudatória de engrandecimento. Qualquer avaliação, portanto, da grandeza daquela guerra a partir de seu relato poético, deve advertir, já de antemão, essa relativização que denuncia o empobrecimento a ser considerado quanto à imagem dela construída. Consagrada a advertência, Tucídides põe-se a considerar o exame do relato homérico a nele indiciar antes sua portentosidade bélica inferior: “De fato, ele [Homero] dá, dentre os 1.200 navios, como sendo de 120 tripulantes os dos beócios, e de 50 os de Filoctetes, revelando assim, ao que me parece, quais eram os maiores e os menores; quanto aos outros, em todo caso, não fez menção a respeito de seus portes no catálogo das naus. Mas que todos eram remeiros e combatentes, revelou-o quanto aos navios de Filoctetes, pois deu como arqueiros todos os que manejavam remos; já quanto a passageiros, não é verossímil que houvesse muitos a bordo, exceto os reis e os altos dignitários, principalmente porque iam atravessar o mar com seus equipamentos bélicos e nem dispunham de naus providas de convés, mas sim à maneira antiga, construídas mais como as dos piratas. Considerando, portanto, um termo médio entre as naus maiores e as menores, não parece que eles partiram em grande número, dado que compunham uma expedição em comum vinda de toda a Hélade. A causa foi não tanto a escassez de homens quanto a falta de recursos. Com efeito, por carência de provisões, levaram um exército inferior, limitando-o ao que con72 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.10.3. 174 Mithistória tavam sustentar por lá mesmo guerreando; mas, uma vez desembarcados e vencido o combate (o que é evidente, pois, caso contrário, não teriam levantado a murada de defesa do acampamento), vê-se que nem então valeramse de todo seu poderio, antes dedicaram-se a cultivar o Quersoneso e à pirataria devido à carência de provisões. Tanto mais que os troianos, devido à dispersão daqueles, resistiram firmemente por dez anos, equalizados contra os que sempre eram lá deixados. Mas se tivessem vindo com reservas de provisões, e se, ficando reunidos, por não se ocuparem de pirataria ou de cultivo, conduzissem ininterruptamente a guerra, por serem superiores em combate, facilmente tomariam a cidade, eles que, mesmo não reunidos, resistiam com apenas aquela fração que sempre lá permanecia. Já caso se tivessem instalado para o assédio, teriam tomado Tróia em tempo menor e menos penosamente. Mas, se por falta de recursos, as empresas anteriores a esta foram insignificantes, também essa mesma, embora mais renomada do que as ocorridas anteriormente, revela-se pelos fatos como sendo inferior ao que proclama sua fama e a tradição firmada atualmente acerca dela por meio dos poetas”.73 Tucídides expõe seu entendimento das razões que limitaram as dimensões daquele empreendimento bélico. Pela leitura de Homero, Tucídides infere, dos informes da Ilíada que memorizavam as incursões marginais dos aqueus pela Tróade, as situações circunstanciais que determinaram o esforço de guerra grego no assédio contra Tróia. Certamente que não se tratou de um empenho ininterrupto por tomar aquela fortaleza, antes entrecortado por desvios bélicos a postergarem o pleno cumprimento do que era sua proposição guerreira mesma. Além desse informe das excursões paralelas, Tucídides leu também no texto homérico que os combatentes viram-se ainda, em parte, obrigados a dedicarem-se a atividades de cultivo pela região do Quersoneso. Então, da conjunção desses informes apreendidos por sua leitura indiciadora, deduz a razão que explica os extravios guerreiros dos aqueus na campanha contra Tróia: eles careciam de provisões para bem sustentar as tropas na operação de cerco. 73 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.11. 175 Francisco Murari Pires E, a melhor afirmar a plausibilidade de sua inferência assertiva, argumenta dando esse fato como sendo a causa mesma do prolongamento decenal do cerco. Pois, caso contrário, tivessem vindo os gregos com provisões suficientes para se dedicarem ininterrupta e exclusivamente ao assédio de Tróia, dado que eles eram superiores em combate, facilmente a teriam tomado: em tempo menor e menos penosamente. De modo que, pela singular trama das inferências do indiciamento operado pela leitura tucidideana do texto homérico, o dado que poderia ser afirmado como uma manifestação da grandeza daquela guerra – sua duração, estendendo-se por não menos de dez anos –, torna-se, ao contrário, sinal de sua pobreza e limitações mesmas enquanto empreendimento guerreiro: falta de provisões, carência de recursos. Pelo outro pólo de sua agonística narrativa, Tucídides rivaliza com Heródoto. Rivalidade narrativa justamente finalizada com o encerramento do seu Prólogo, em transição já para a exposição do princípio da guerra mesma enquanto início e causa: “Por duas batalhas no mar em em terra, a [guerra] meda teve rápida decisão. Já esta guerra alcançou dimensões enormes, e comportou, em seu decorrer, sofrimentos para a Hélade como não houve outros em tempo igual”.74 A indiciar a grandeza bem inferior da guerra meda relativamente à do Peloponeso, Tucídides assinala suas estritamente limitadas dimensões enquanto fenômeno guerreiro, cujos embates reduziram-se a poucas batalhas – duas por mar e duas por terra – e, todavia, de rápida definição. É antes com a Guerra do Peloponeso que se multiplicam e proliferam os sofrimentos de que os homens são objeto em tempo de guerra. Se a portentosidade ruinosa advinda para a Hélade com as guerras medas, assinalada como dado da grandeza maior do objeto narrativo herodoteano, 74 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.23. 176 Mithistória superava a dos tempos anteriores porque nem vinte gerações destes acumularam tantos males e desastres quanto apenas gerações três daquelas, Tucídides reverte, então, contra Heródoto seu próprio argumento: tudo agora se passa no intervalo de apenas uma geração! Veladamente a reflexão argumentativa tucidideana, a arrazoar a grandeza superior da Guerra do Peloponeso relativamente à de Tróia e às persas, intriga também razões políticas a explicar o fato: antes, tempos passados, foram guerras a envolver helenos contra bárbaros – entidades nacionais de competência guerreira desiguais, estes últimos facilmente batidos por aqueles –; agora, tempo presente, a guerra supõe equilíbrio de contendores, o que tanto mais a delonga. Com Tucídides, as impregnações axiológicas do mundo da pólis chancelam a história. Mas, também o Proêmio da História tucidideana proclama grandiloqüente a relevância da presença do aspecto ruinoso associado à grandiosidade da singular guerra distinguida por sua narrativa: “Já esta guerra alcançou dimensões enormes, e comportou, em seu decorrer, sofrimentos para a Hélade como não houve outros em tempo igual. Sim, jamais tantas cidades foram tomadas e despovoadas, sejam pelos bárbaros, sejam pelos beligerantes mesmos, havendo até aquelas que, capturadas, trocaram de habitantes; e jamais tantos exílios e massacres, uns em conformidade com o fato mesmo da guerra, já outros em razão dos conflitos de facções. Também aquelas coisas que outrora se falava por conta da tradição, mas que bem raramente se realizavam de fato, perderam a incredulidade: assim os terremotos, que ao mesmo tempo atingiram a maioria das regiões e foram os mais violentos; os eclipses solares que ocorreram mais freqüentes em relação àqueles de que se tinha memória dos tempos anteriores; grandes secas em certas regiões, mais a fome delas decorrente, e ainda – o que foi causa de dano não menor e, em parte, de destruição – o flagelo da peste. De fato, todas essas coisas se deflagraram conjuntamente no decorrer desta guerra”.75 75 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.23.1-3. 177 Francisco Murari Pires Já na abertura de seu Proêmio, Tucídides, ao afirmar a grandeza máxima, em termos de extensão de poderio e escala, alcançada pela guerra dos peloponésios e atenienses, aludira vagamente ao aspecto pateticamente ruinoso especialmente associado ao fenômeno guerreiro: esta foi a “maior comoção” já ocorrida para os helenos.76 Comoção (kínesis) anuncia já por qual foco de apreciação a obra tucidideana percebe privilegiadamente o fenômeno da guerra: interessam-lhe sobremaneira “os distúrbios e sublevações, tantos efeitos destrutivos e desagregadores, quer em termos materiais quer psicológicos”, próprios de uma sua sintomatologia. Razão por que sua “obra tem sido descrita como uma narrativa de desastres”.77 Agora, no final do Proêmio, a encerrar a argumentação justamente afirmadora dessa grandeza superlativa da guerra por ele narrada, retoma a abordagem do aspecto patético, listando todo o rol de desastres e sofrimentos que conjugaram suas efetividades ruinosas na temporalidade mesma da guerra. Então, associa como itens componentes de tal temporalidade bélica ruinosa uma seqüência de desastres e males de duas ordens: humanos e naturais. Das ações dos homens, em sua consecução destrutiva, dizem: as perdas das cidades apreciadas em termos da identidade de seus contingentes humanos, e as perdas dos homens apreciadas sejam em termos de sua identidade cidadã, sejam em termos absolutos de existência mesma. Das calamidades da natureza dizem: terremotos, eclipses, secas desdobradas em carestias, mais o flagelo da peste. Catálogo de memorização de infortúnios e desgraças em tempos de guerra por tantos abalos da ordem cósmica, quer nos domínios da natureza quer nos da sociedade humana. Vislumbres lutuosos de uma história trágica.78 Destacando a associação de males a causar múltiplos sofrimentos que com a guerra advêm, o Proêmio da História ecoa lembranças épicas, especial76 77 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1. Para estas considerações respeitantes à concepção tucidideana de kínesis, vejam-se os comentários de T. J. Luce (The greek historians, p. 70). Na esteira da célebre interpretação de F . M. Cornford (Thucydides Mythistoricus, 1907) 178 78 Mithistória mente da Ilíada, cujo canto principia justamente singularizando o fato dessa conjunção. Bem o expressa a fala de Aquiles dirigida a Agamêmnon, na abertura da assembléia precipuamente convocada para deliberar essa questão: “Atrida, creio que agora vamos, repelidos, retornar para casa, caso escapemos à morte, se assim a guerra e a peste dizimam os aqueus”.79 * Então, os proêmios da história nascente com Heródoto e Tucídides, reiterando as convenções originariamente (im)postas pelo “épos” homérico, reafirmam o princípio axiológico que determina a eleição do episódio historiado dada a sua grandeza trágica. Pela derivação axiológica porque define seu objeto, a história nascente é herdeira da tradição épica, particularmente homérica, especialmente iliádica. Mas tal nexo, que assim vincula a história como desdobramento da epopéia, dispõe também um enviesamento conflitivo de rivalidade narrativa, consoante a proclamada dignidade hierárquica superior da guerra precipuamente celebrada. Pela contraposição agonística que a Odisséia marca em relação à Ilíada, a axiologia narrativa de memorização dos fatos da grandeza aponta uma transição que leva do excepcional estatuto do heróico para o da comunidade da condição humana. Por Heródoto, concebida já a heterogeneidade dos tempos – primordial dos deuses, seqüente dos homens –, a axiologia da história prende-se às realizações humanas, antes obliterando que apreende na narrativa historiográfica tucidideana um padrão trágico de percepção e ordenação compositiva dos acontecimentos, em especial a assim entender o destino de Atenas na guerra, constitui-se uma tradição hermenêutica de abordagem desse tópico temático. Assim, confiram-se as indicações dadas por, entre outros: T. J. Luce (The greek historians, p. 92s); T. Rood (Thucydides narrative and explanation, p. 8-9). 79 Ilíada, I.59-61. 179 Francisco Murari Pires quer as divinas quer as heróicas agora relegadas ao mítico. Por Tucídides, essa axiologia restringe ainda mais seu horizonte, agora afeito exclusivamente ao mundo da pólis. 180 Mithistória 2. Teleológico (a questão do valor-utilidade) Tucídides assim pondera por que fins de valor e utilidade responde o saber histórico que sua narrativa da guerra de peloponésios e atenienses constitui: “E para o auditório talvez o seu caráter não mítico parecerá menos atraente; mas a quantos forem desejosos de observar o que há de claro nos acontecimentos ocorridos como também nos futuros, que algum dia de novo, em conformidade com a realidade humana, ocorrerão símiles ou análogos, julgarem tais coisas úteis, será o bastante. Constituem uma aquisição para sempre antes do que uma peça para um auditório do momento”.1 A proposição de um saber respeitante às ações humanas, que bem apreenda as persistências temporais desse agir, dada essa sua precípua realidade, privilegiado pela clarividência resultante de seus procedimentos constitutivos, é o que a narrativa da história finaliza. A memória projetada por esse saber que a narrativa da história decanta institui a aquisição preciosa, valor duradouro – (ktema es aiei) – que define o seu fim (télos) enquanto bem. Porque esse saber permanece por meio da temporalidade das ações humanas, alcança foros imortalizadores. Nesses termos, Tucídides define o princípio teleológico da narrativa. 1 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.4. 181 Francisco Murari Pires E, ao fazê-lo, denuncia também os equívocos antes perpetrados pelas narrativas acerca das ações humanas, quer por poetas quer por logógrafos: “Assim negligenciada é a investigação da verdade pela maioria das pessoas que se inclinam antes para a versão corrente. Com base nos indícios que foram enunciados, não erraria quem julgasse os fatos, de modo geral, assim tais como eu os considerei, e não confiasse nem no que a seu respeito os poetas celebraram tendo antes em vista adornos engrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseram tendo em vista antes o que é mais do agrado do auditório ao que é mais verdadeiro, dado que eles são incomprováveis e, na sua maioria submetidos ao tempo, inconfiáveis em razão do caráter mítico adquirido”.2 Mas já Heródoto dispusera a imortalização pela memória como a finalidade mesma de proposição da narrativa da história: “Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nem as realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas e maravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros, fiquem sem fama”.3 E, todavia, esse télos de fama imortalizadora principia mesmo com o épos homérico. Pois ele canta os kléa andron, os feitos famosos dos heróis, como celebração imortalizadora de seus nomes, já que constituem tanto o objeto temático do canto quanto a finalidade de sua memória narrativa. Épos Entre o humano e o divino, o estatuto heróico situa uma ambigüidade, pois o herói tanto se distingue e diferencia como um indivíduo destaca- 2 3 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.1. Histórias, I.1. 182 Mithistória do, e mesmo dissociado, da comunidade humana, quanto igualmente se identifica como um membro pertinente a esse gênero, já que compartilha o fato humano universal da mortalidade. Pois, em meio aos humanos, como se identifica a figura do herói? É pela excelência de valor de seus atos e pela superioridade de sua condição, por sempre distinguir-se e sobrepujar os demais, que se define a heroicidade. O conceito de areté, então, expressa essa realidade heróica. Por sua excelência o herói situa-se em plano superior, destacado, em relação ao dos homens comuns. O herói é quem, por determinada excelência, se distingue, se diferencia, se singulariza e, pois, se dissocia da massa homogênea e indistinta dos homens comuns, todos iguais uns aos outros. A determinação de um nome, que a memória dos aedos celebra, assinala tal identidade individual diferenciada. Mas se, por um lado, o herói se situa, por sua excelência, acima e dissociado do plano meramente humano, por outro, por sua condição mesma de mortalidade, o herói compartilha o destino comum definidor do fato humano genérico, o qual indiferencia todos os homens. O herói, porque humano, é mortal, e tem no termo da morte seu fim necessário, inevitável, inescapável. Precisamente porque são bem conscientes dessa sua comunidade de condição mortal, que os associa inelutavelmente ao gênero humano, os heróis optam pelo viver guerreiro, por esse modo de existência buscando incansavelmente diferenciar-se, distinguir sua individualidade singular pela excelência de seus atos, a sempre afirmar sua superioridade. Assim incisivamente o diz, em meio aos acirrados combates troianos, Sarpédon ao conclamar Glauco, que com ele compartilhava a realeza dual entre os lícios, a um renovado esforço guerreiro: “Glauco, por que somos ambos honrados especialmente com lugares, porções de carne e taças repletas na Lícia, e todos nos contemplam como deuses, 183 Francisco Murari Pires e possuímos às margens do Xanto um grande domínio, belo de pomares e de campos férteis de trigo? Agora é preciso que, dispostos entre os primeiros lícios, nos apresentemos a enfrentar acesa batalha, para que assim diga um dos lícios bem couraçados: não é sem fama que a Lícia governam nossos reis, por alimentos tendo gordos carneiros e melífluos vinhos selecionados; mas também seu vigor é excelente, pois combatem entre os primeiros lícios. Ah!, amigo, se de fato livres desta guerra para sempre sem velhice e imortais viéssemos a ficar, nem eu próprio combateria entre os primeiros, e nem te levaria ao combate glorioso. Mas, agora, pois de todo modo os destinos de morte sobrevêm inúmeros, tais que um mortal não pode fugir nem evitar, vamos, ou a um glória daremos, ou ele a nós”.4 A figura social da realeza distingue-se, afirma Sarpédon, por uma série de privilégios e prerrogativas de apanágios e primazias honoríficas: detenção, junto às terras da comunidade, de domínios pessoais valorizados pela exploração agrária (pomares e campos de trigo) e pastoril; quotas de carne e taças de vinho, mais lugares privilegiados, enquanto dignidades de primazias distintivas de sua condição régia. Em sua fala a Glauco, inquire então o herói, qual é a razão fundamentadora que torna socialmente legítima essa ordem hierárquica pela qual a comunidade conforma-se obediente ao privilégio de dominação de seus reis? Duas ordens de considerações equacionam as razões. Uma, de teor genérico, é apenas aludida por Sarpédon: o estatuto divinizante da realeza, pois a comunidade assimila seus reis a deuses. A outra, mais específica e enfatizada, argumenta a identidade essencialmente guerreira dos encargos sociais da realeza: é o fato da excelência guerreira dos reis que mais decididamente fundamenta a primazia senhorial que a define. 4 Homero. Ilíada, XII.310-328. 184 Mithistória Num sentido mais imediato, posto por esta última consideração, entende Sarpédon que é pelo fato de os reis serem guerreiros excelentes que detêm seus privilégios distintivos. Assim, é o mérito da capacidade guerreira que justifica a primazia social do rei. De modo que, para ser rei, é preciso ser herói. Mas, noutro sentido, pode-se igualmente entender na fala de Sarpédon que é justamente dos reis que se reclama ser guerreiro heróico. Combater entre os primeiros é encargo social precípuo da realeza, configurando, portanto, uma sua outra honra distintiva. E honras todas justamente concedidas, pois o fato de assim postar-se à dianteira, argumenta ainda Sarpédon, bem (com)prova o valor guerreiro dos reis, sendo tanto sua manifestação quanto sua condição mesma. Então, como bem o assinalou J. P . Vernant, se para ser rei é preciso provar-se heróico, também para realizar-se heroicamente é preciso ter nascido rei.5 De modo que o mérito da excelência guerreira é tanto condição quanto atributo da realeza. Então, privilégios de dominação régia e excelência guerreira heróica supõem-se mutuamente, de maneira que usufruir aquela dignidade requer a opção por esta modalidade de existência. Pois, argumenta ainda a reflexão de Sarpédon, a o que se reduz a potência humana em termos de opções de conformação de sua existência? Há algo, de imediato admitido, para o que o homem é radicalmente impotente: escapar ao fato da morte. A existência permanente, isenta de velhice e imortal, não está dada para o humano. Tal é o apanágio da condição divina. Não há, portanto, sentido, para o viver humano, em evitar os riscos mortais que envolvem a existência guerreira, já que sobre todos os homens, fujam eles ou não às guerras, sobrepairam as divindades funestas do destino, igualmente impende a morte. Só se fosse possível ao humano alcançar as benesses próprias do divino – a ausência de velhice e a imortalidade – teria sentido paradoxalmente recear a morte, e valeria a pena evitar arriscá-la na guerra. 5 J. P . Vernant. Bela morte..., p. 39. 185 Francisco Murari Pires Mas, já que os destinos de morte sobrepairam, inúmeros e inarredáveis, pela trajetória de todos, coloca-se, para os mortais, a decisão que lhes compete enquanto opção de existência: o modo de viver com e pela honra, o ser rei guerreiro, ou seja, herói. O que é um modo, ou o modo humano, do viver divino. Pois, os reis heróis vivem e existem na comunidade como deuses, assim admirados e honrados por condizentes benesses. Então, o usufruir as honras próprias do poder divino compensa o guerreiro por seu permanente arriscar a vida na guerra. Como os deuses, também os heróis são devidamente honrados. * Em Esquéria, na corte de Alcino, em Ítaca, na de Odisseu, ou em Esparta, na de Menelau, os homens que usufruem os privilégios da convivência palaciana passam o dia todo entregues a prazeres, encadeando várias de suas modalidades, de modo a compor uma verdadeira jornada prazerosa. Assim, sucedem-se e alternam-se banquetes que associam os prazeres da mesa aos deleites dos cantos, e espetáculos de jogos e danças, por vezes também compostos com outros tantos cantos. Entre uns prazeres e outros, entremeiam-se banhos quentes e trocas de roupa. Só o cair da imperiosa noite escura, que obriga todos ao sono, encerra essa ininterrupta fruição prazerosa. O que, então, de certo modo, a torna infindável, pois só se encerra finalizando mais outros prazeres, aqueles que o leito bem enseja: desejos amorosos, mais o doce sono repousante. Mesmo a (in)ação do dormir é ação prazerosa. Em pleno festim olímpico, está a ponto de estourar mais outra das odientas rixas de marido e mulher entre Zeus e Hera, agora suscitada pela atenção que o deus dera ao pedido de Tétis, mãe prestimosa a cuidar da satisfação das honras devidas a seu filho, Aquiles. Ciumenta como sempre, a deusa ralhara com o marido. Este, logo furioso, ameaçou empregar já a violência: arremessaria a deusa céu abaixo, e assim livrar-se-ia do incômodo de uma esposa querelenta. 186 Mithistória Então, Hefesto, aflito com a briga dos pais, cuidou para que ela não perturbasse o prazer do festim divino. Aconselhou a mãe a que cedesse à vontade de Zeus, lembrando-lhe a força superior do pai dos deuses e dos homens. Depois, afoito e um tanto desajeitado, pôs-se Hefesto a servir aos demais deuses taças de néctar, para que logo todos retomassem os prazeres próprios da festa, do banquete convivial. Uma só foi a reação de todos os que assistiam a cena: “E gargalhadas rebentaram entre os deuses venturosos, ao verem Hefesto desvelar-se por meio do salão”.6 Em meio à mais perfeita plenitude de beleza física composta pelas divindades olímpias, a figura de Hefesto diverge excepcionalmente por sua deformidade. Os epítetos que qualificam seu nome bem assinalam esse atributo caracterizador de sua identidade pessoal: Hefesto é dito coxo (cholós)7, cambaio ou pés tortos (kyllopodíon),8 enfermo ou frágil (epedanós)9 e ainda amphigyéeis, que os antigos entendiam como significando “ambas pernas tortas”.10 Assim, quando recebe Tétis em sua morada olímpia, o deus vai ao seu encontro amparando seus passos claudicantes por duas daquelas estátuas maravilhosas, prodígios que sua perícia artesanal dotava de vida.11 Mitos que contam a formidável queda dos céus sofrida pelo deus historiavam a etiologia dessa deformidade. Homero refere-a, ambiguamente, como mal congênito, enfermidade de nascença.12 E conta a história de 6 7 8 9 10 11 12 Ilíada, I.599-600. Ilíada, XVIII.397; Odisséia, VIII.308. Ilíada, XVIII.371. Odisséia, VIII.311. Odisséia, VIII.300; Ilíada, I.607. Ilíada, XVIII.410ss. Odisséia, VIII.311. 187 Francisco Murari Pires uma sua longa queda, atravessando toda a lonjura que separa o céu do mar e dando-a como causada pela mãe, Hera, ao assim conceber um modo de ocultamento do filho disforme.13 E conta também outra história de igualmente prolongada queda do deus, durando o dia todo até o pôrdo-sol: quando ele, em mais outra briga dos pais, se interpusera em defesa da mãe, Zeus despencou-o céu abaixo por portentoso arremesso, indo então parar em Lemnos, onde os síntios o recolheram.14 O destino de aleijão estigmatiza o ser de Hefesto. Teorias interpretativas o explicam. Assim, lembram-se os episódios míticos constitutivos da história da figura régia, com o recém-nascido – marcado por uma deformidade supostamente maléfica – sendo dissociado do domínio palaciano em que fora gerado, exposto a (e recolhido pela) natureza cósmica, a assim ser submetido à prova iniciática por que principia a trajetória de seu destino. E, assim, também destaca-se que a mutilação física do coxo emblematiza a excelência do artesão ferreiro, metalúrgico, principiada mesmo pela tortura iniciática que a causa enquanto arte mágica e xamânica.15 E figura disforme de aleijão que enseja sua ridicularização cômica. Naquela cena do convivial banquete das divindades olímpias, ao invés do belo escanção (ou Ganimedes ou Hebe), pleno de vigor juvenil, a graciosa e firmemente servir a nectárea bebida dos deuses, tem-se toda a azáfama desajeitada e periclitante de sua distribuição problemática de quedas por um afoito aleijão de passos cambaios. Espetáculo de riso a bem aliviar as indevidas tensões que ameaçavam a serenidade do festim divino. Pois, tal é um dos apanágios da superioridade da existência dos deuses olímpios: a permanente fruição de bens que deleitam o viver. Sua convivência no Olimpo comporta dons e privilégios intermináveis, realiza apenas prazeres todos os dias. Assim, saboreiam as deliciosas iguarias divinas, néctar 13 14 15 Ilíada, XVIII.394ss. Ilíada I.590ss e XV.18-24; Apolodoro (Biblioteca, I.3.5). Vejam-se as considerações de Mircea Eliade (História das crenças..., p. 98) referindo os estudos de M. Delcourt. 188 Mithistória e ambrosia; assim, regozijam o coração com os cantos das Musas acompanhados à lira apolínea e, assim terminam sua jornada festiva, subindo a seus leitos para, tendo, ao lado a consorte divina, usufruírem, por fim, o repouso do doce sono.16 Então, os banquetes palacianos em que se integram os cantos do aedo realizam, no âmbito da condição humana, o modo prazeroso de convivência, próprio da existência divina. Por seus prazeres associados, os homens, então esquecidos dos pesares e das aflições que compõem sua existência,17 alcançam, mesmo que apenas por efêmeros intervalos em seu penoso viver, status de divindades. Desse modo, bem se define uma “teleologia do épos”. Vários de seus personagens mesmos o reconhecem e asseveram. Assim, Alcino, ao convocar pelo arauto a presença do aedo no banquete palaciano, proclama a proposição precipuamente hedonista a que o seu canto finaliza: “Demódoco, a quem, pois, especialmente a divindade deu o canto para deleitar, seja como o espírito o incite a cantar”.18 Assim, também o afirma Telêmaco, ao repreender a inopinada intervenção de Penélope no salão dos banquetes, quando ela lá viera a solicitar a interrupção do canto do aedo, para ela, todavia, pesaroso: “Minha mãe, por que recusas que o leal cantor deleite como lhe mobiliza o espírito?”19 E ainda Eumeu, ao replicar a censura que o pretendente Antino lhe dirigira de estar a trazer ociosos inúteis ao palácio, igualmente assevera que 16 17 18 19 Ilíada, I.601-11. Teogonia, 96-103. Odisséia, VIII.44-5. Odisséia, I.346-7. 189 Francisco Murari Pires deleitar com seus cantos bem define o valor que o aedo realiza para a comunidade.20 Por fim, Odisseu mesmo, a quem, entretanto, já por duas vezes os cantos de Demódoco levaram ao choro aflitivo, resolutamente o afirmou perante Alcino: “Poderoso Alcino, notável dentre todos os homens, é, de fato, algo belo ouvir um cantor qual este é, símile aos deuses pela voz. Pois eu digo que não há qualquer realização mais agradável do que quando o regozijo toma todo o povo, e os convivas nos salões põem-se a ouvir o cantor, sentados como convêm e tendo ao lado mesas repletas de pão e carnes, e o vinho que da vasilha retira o escanção, a levá-lo e vertê-lo pelas taças. Isso, no meu entender, é belíssimo de se contemplar”.21 A fruição da convivência prazerosa, estado de alegre regozijo, que toma plena e totalmente a assistência, bem define uma finalidade, o télos, a que canto do aedo atende. * Já ciente da morte de Pátroclo e nem bem conscientizara a inutilidade pessoal de sua opção heróica, obcecada pela satisfação da honra, Aquiles, longe de repudiar esse modo de seu destino guerreiro, atende, mais uma vez e novamente, a seus reclamos, para ele sempre verdadeiros imperativos. A morte de Pátroclo, mais a perda de sua armadura, igualmente o desonram. Pela ofensa cometida, então, Heitor deverá ressarci-la honorificamente por sua própria morte, a assim afirmar-se o primado heróico de Aquiles. 20 21 Odisséia, XVII.385. Odisséia, IX.2-11. 190 Mithistória Mas a mãe, Tétis, como último apelo aflito tencionando poupar mais infortúnios ao filho querido, outra vez o advertiu. Caso Aquiles persistisse em seu intento declarado de matar Heitor, seria também sua própria ruína, pois a sucessão dos destinos fatais estava já delineada: à morte de Heitor, seguir-se-ia a sua própria. Aquiles, entretanto, não se deixou abalar, assim ponderando, perante sua mãe, a reflexão por que fundamentava a opção heróica de sua existência: “Mas agora irei à busca do assassino da cara pessoa, Heitor. Já eu, o funesto, então aceitarei quando Zeus quiser finalizá-lo, bem como os deuses imortais. Pois nem mesmo a força de Héracles escapou ao funesto, embora fosse o mais querido pelo rei Zeus Cronida; e, todavia, o destino o domou, mais o rancor terrível de Hera. Assim, eu também, se me está preparado símile destino, jazerei ao morrer. Mas, agora, que eu nobre fama obtenha, e alguma das troianas e dardânias de funda cintura, com ambas as mãos as tenras faces a enxugar e a gemer longamente eu ponha, e saiba assim como eu há muito a guerra deixara. Embora me ames, não me retires da batalha: não me dissuadirás”.22 Ao mortal, sentencia Aquiles, não compete projetar o término de sua existência. Tal determinação do destino humano escapa aos homens, pois compõe um dos atributos do poder de Zeus e sua ordem divina. O humano, pelo contrário, é impotente face à inevitabilidade da morte. Não há potência humana, mesmo a heróica máxima – Héracles –, que fosse capaz de evitar o advento da morte. Então, que a decisão efetivadora dessa ocasião permaneça com Zeus. A ele, Aquiles, competem outras deliberações e desígnios. Pois, se o herói não sabe quando e como morre, tem certeza, no entanto, do por que e como vive: sob o imperioso primado da honra. Esta agora, neste 22 Ilíada, XVIII.114-126. 191 Francisco Murari Pires momento e situação precisa, dita-lhe qual é a ação condizente: o retorno aos combates a dar morte a Heitor. E esse modo de existência – o herói guerreiro – define o destino de Aquiles. Para o herói, só a existência plenificada pela honra assegura a conquista da fama, do kléos. E, pelo kléos que sua história irradia universalmente, o herói inscreve seu nome na memória que o épos atualiza.23 A imperiosa consecução de feitos gloriosos, a permanentemente (com)provar sua superioridade distintiva pela excelência por eles consagrada e, assim, (con)firmar a primazia de sua honra, conforma a teleologia da existência do guerreiro heróico. E, por essa teleologia, o heróico viabiliza o modo humano de ser divino. Primeiro, diviniza-se pelos modos de sua vida terrena, auferindo as honrarias que reconhecem socialmente seu domínio senhorial. Depois, diviniza-se por certa existência pós-morte, pois a fama de seu nome persiste inscrito para sempre na memória que celebra os feitos de sua história. Para essas divinizações, o épos contribui decisivamente, tanto por uma teleologia ao modo efêmero, porque integrado como item de entretenimentos da vida prazerosa24, quanto por uma teleologia ao modo permanente, porque instituído como registro de memória histórica sob modalidade poética. Pelas honras que a teleologia épica consagra, heróis são assim divinizados. Mas as honras que eles então alcançam como se fossem deuses ficam, entretanto, estigmatizadas por uma diferença. Para os deuses, honras sob a forma de bens constituem itens de sua existência fácil, plenamente 23 “Por meio do louvor glorificante, indefinidamente repetido, o épos assegura, para uma pequena minoria de eleitos (que assim se distingue da massa ordinária dos mortais definida como a multidão dos anônimos), a pemanência de seu nome, de sua fama e dos feitos que ele realizou” (J. P . Vernant, Death..., p. 55). Ver na Odisséia, XXII.34-9, a súplica de Fêmio a Odisseu, entre outras razões arguindo que quando o herói está a usufruir seus cantos é como um deus. 192 24 Mithistória prazerosa. Já para os heróis, porque humanos, honras advêm imersas em, e como produto de, trabalhos, esforços, penares. Assim, bem se conforma a ambiguidade heróica. O herói participa da condição humana, já que vivencia dores e sofrimentos, penares e trabalhos. Partilha, pois, do lote de males. Mas o herói, também partilha do lote de bens pelas honrarias com que se o distingue. O épos, ao narrar as histórias de seus feitos, celebra o kléos imortal dos heróis, mas lembra consoantemente seus sofrimentos e trabalhos. Ora, mas também as histórias dos feitos heróicos recentes configura uma predileção dos gostos épicos, como o adverte Telêmaco a Penélope25. Tal (con)junção de tempos – feito heróico e narrativa do épos – não deixa de intrigar os modos da teleologia épica. Nas cenas da Odisséia em que se representam os cantos e histórias heróicas por que também se alegram os banquetes palacianos, o fato circunstancial da subjetividade pessoal (de Odisseu, ou de Penélope, ou de Telêmaco, ou de Pisístrato, ou de Menelau) implicada pelos acontecimentos da história narrada nos cantos do aedo dissocia, relativamente ao público ouvinte objetivo, uma excepcional reação face aos cantos do aedo: bem ao contrário do agradável regozijo que anseia a perpetuidade prazerosa pelo reiterado prosseguimento do canto, têm-se os choros aflitivos e angustiados que não suportam as dores provocadas e, antes, reclamam seu cessar. Mas essa aparente anomalia da teleologia propriamente hedonista, que define um valor do canto, advém daquela (con)fusão de situações representada pelas histórias da Odisséia, como, aliás, bem o equacionou a sapiente reflexão com que Alcino tencionou acalmar o espírito conturbado e sofrido de seu hóspede. Dirigiu-lhe, então, palavras consoladoras, entendendo que os sofrimentos, as desgraças, os trabalhos e os penares humanos constituem mesmo a norma temática do canto dos aedos, segundo os desígnios divinos. Pois, assim, ele inquiriu o herói naquela ocasião: 25 Odisséia, I.351-2. 193 Francisco Murari Pires “Diga por que choras e gemes no fundo âmago, ao ouvires os infortúnios dos argivos dânaos diante de Ílion. Isso os deuses obraram, que teceram a ruína aos homens, para que haja também aos vindouros um canto”.26 De modo que, pela trama divina dos destinos humanos, os infortúnios passados dos tempos heróicos finalizam-se pelos prazeres presentes dos cantos do aedo. Então, por este princípio hedonista de sua teleologia, o épos preceitua uma axiologia trágica que bem lembra, em insistente paradoxo contra as aspirações divinizantes dos heróis, as misérias de sua condição humana. História/Heródoto “Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nem as realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas e maravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos, sejam pelos bárbaros, fiquem sem fama”.27 As declarações do Proêmio herodoteano afirmam os valores que instituem a obra narrativa da história. Esta efetua-se como um relato: ela conta, ela diz aqueles feitos e obras humanas dignos de serem assim discursados expositivamente. E esse discurso se propõe como memória: a efetividade que ele almeja é evitar o cumprimento da efetividade do tempo contra as criações humanas. As realidades devidas aos homens – seus feitos, obras, palavras e ações – estigmatizam-se pela futilidade e efemeridade de seu ser, constituindo o que de mais perecível há no mundo.28 As obras humanas são presas do tempo, passam com ele: a efetividade deste produz o seu esquecimento, desvanece a sua lembrança, esvai a sua existência. 26 27 28 Odisséia, VIII.577-80. Histórias, I.1. Para estas considerações, vejam-se os comentários de Hannah Arendt em seu ensaio sobre “O conceito de história, antigo e moderno” (Entre o passado e o futuro, p. 69s) 194 Mithistória Então, o discurso narrativo que memoriza as obras e os feitos humanos constrói o monumento que, ao resgatá-los da ação do tempo por dissociálos de sua eficácia deletéria, assegura-lhes permanência, desdobra um modo de sua existência e, assim, os imortaliza.29 Mas as famas assim projetadas na memória histórica pelas Histórias herodoteanas – consoante a dialética de destinos ou brilhantemente gloriosos ou funestamente negros dos feitos heróicos, consagrada desde a axiologia épica e já conscientizada pelos queixumes de Helena a esse respeito – ensejaram uma assimetria de apologias contra denegrimentos no horizonte das cidades helênicas. Pois, nos empenhos beligerantes das guerras medas sob a ameaça da escravização persa, Atenas era ressaltada magnificamente como a salvadora da Grécia, a campeã de sua liberdade. Já as póleis medizantes tinham a memória de suas participações obnubiladas por tons mais ou menos carregados de infâmia. Sobre Argos pairavam nuvens de suspeitas. Sobre Corinto, os atenienses acusavam abertamente covardia pela fuga de sua esquadra em Salamina. Sobre Tebas mormente a mácula alcançava o paroxismo por histórias exemplares de manifestações persas que 29 Explorando a formulação literal do Proêmio herodoteano, F . Hartog (Espelho..., p. 19) nuança a diferença que a teleologia das Histórias assinala em relação à da epopéia: “Enquanto o aedo, com a segurança de um mestre do kléos que a Musa inspira, promete uma glória que não se consome (áphthiton), o historiador, circunscrito num tempo que é o dos homens, falando de coisas humanas, com seu saber e seu nome, entende que apenas luta contra o esquecimento. Por meio da exibição de sua historíe, ele quer que todas as marcas do fazer dos homens não se tornem privadas de kléos (akléa), não passem (exítela) como uma pintura que, pouco a pouco, o tempo apaga. No eco entre kléos e akléa, bem como na distância instaurada entre os dois, parece que, de Homero a Heródoto, a promessa de imortalidade não mais se pode enunciar a não ser de modo negativo: em suma, sem ilusão”. Assim, o alcance aparentemente mais modesto da teleologia histórica herodoteana, face à imortalidade que o épos descortina, não responderia também pela formulação piedosa do primeiro historiador, que em sua obra circunscrita ao humano se apresenta como sucedâneo da piedade heróica odisséica, que jamais aventa qualquer enunciação declarativa de equiparação divinizante? 195 Francisco Murari Pires menosprezavam, a tal ponto, o servilismo de seus cúmplices tebanos que estigmatizava neles, gregos, o destino histórico de escravos por natureza.30 Paralela a essa teleologia de memória imortalizadora, também a fruição de entretenimento prazeroso envolve por seus fins efêmeros a atualização histórica das Histórias herodoteanas. Contam-se anedotas dizendo das récitas públicas a que a composição das Histórias ensejara. Em Atenas, especialmente: lá, no ano de 445/4 (pelas projeções inferidas da cronologia de Eusébio), o Conselho concedera a Heródoto um prêmio pela leitura de sua obra. Diilo, um historiador ateniense do século IV, de boa reputação pelo que informa a notícia dada por Plutarco, dissera que o prêmio montava a dez talentos, tendo sido Anito quem propusera o decreto. Plutarco, no tratado por ele composto com o propósito precípuo de denunciar as maledicências das Histórias, assinala toda a infâmia do episódio, pois a vultosa recompensa em dinheiro desse prêmio (cor)respondia (in)justamente aos desígnios de seu texto, antes aduladores das vaidades atenienses. Inversamente, memorizaram-se também histórias de malfadadas récitas públicas herodoteanas, agora pelas cidades por ele supostamente denegridas. Assim, diz-se que Heródoto reclamara contra a falta de pagamentos de sua leitura por Corinto. Também Tebas recusara-se a pagar-lhe tais emolumentos, tendo-o ainda proibido de lá entrevistar-se e debater com os jovens cidadãos, decisão esta que ambiguamente respondia tanto pelos zelos de evitar os efeitos corruptores das Histórias quanto pelas mazelas de uma identidade tebana, antes rústica e avessa a realizações culturais. Já Luciano imaginou uma outra história que compunha o teor dessas anedotas pela perspectiva do panhelenismo que as guerras Medas herodoteanas também faziam aflorar: aos eventuais estorvos delongados e tediosos de reiteradas leituras por várias cidades da Grécia – ora em Atenas, ora em Corinto, ora em Argos, ora na Lacedemônia –, Heródoto planejara uma única récita pública, a realizarse no centro e ocasião panhelênica por excelência, a celebração dos Jogos 30 Para estas histórias confiram-se:VII.152; VIII.94 e VII.233. 196 Mithistória Olímpicos. E lá teria, a tal ponto, encantado sua audiência que se o consagrou como discípulo das Musas, atribuindo-se a cada um dos nove livros das Histórias o nome de uma das filhas de Mnemosine. Tradições anedóticas lembram ainda que, em meio ao público assim empolgado com a história herodoteana, encontrava-se um jovem ateniense, então comovido às lágrimas: ninguém menos do que seu sucedâneo historiográfico, Tucídides! Mas, irônica anedota que, se assim assinalava uma suposta incipiente vocação historiográfica tucidideana, o fazia em termos de um entusiasmo juvenil pela récita pública herodoteana, a qual, entretanto, seria, na maturidade, justamente o objeto de sua crítica aos logógrafos: por ela descuravam a verdade em prol do divertimento de seus auditórios. História/Tucídides Em suas reflexões metodológicas, Tucídides adverte: “As pessoas acolhem as tradições acerca das coisas passadas, mesmo no caso em que elas sejam de sua própria terra, igualmente sem exame a quando as acolhem junto a outros”.31 E logo desqualifica acerbamente a falta por que assim o fazem, em totalmente descuidando a apurada comprovação que, pelo contrário, deveria comandar sua aceitação seletiva: “Assim desleixada é a investigação da verdade pela maioria das pessoas que se inclina de preferência para a versão corrente”.32 As pessoas, adverte Tucídides, adotaram modos de lidar com as tradições dos tempos passados que pecam pela negligência do desleixo: não se dão a qualquer trabalho, não empenham quaisquer esforços, em bem 31 32 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.1. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.3. 197 Francisco Murari Pires averiguar a verdade do que elas dizem (atalaíporos). Antes, optam pela fácil solução de dar-lhes acolhimento imediato, aceitando-as como elas vêm dadas, já prontas e disponíveis (tà hetoima). Certamente que há dificuldades inerentes a um tal exame apurador da verdade das coisas ditas e afirmadas sobre os tempos passados, e que, pois, poderiam ensejar a automaticidade desse acolhimento generalizado. Nem sempre se dispõe de informes mais ou menos familiares que melhor ou pior o (in)viabilizem. E, todavia, argumenta Tucídides, não é bem esse o caso em consideração. Pois o fenômeno parece independer de uma tal proximidade/facilidade, ou pelo contrário estranheza/dificuldade, das pessoas para com as tradições acolhidas. Elas, assim, agem sempre indiferenciadamente descuidosas, tanto quando as tradições lhes são familiares já que locais, respeitantes à sua própria terra, quanto estranhas, recebidas de outros povos. Não se trata, portanto, aqui de um impedimento objetivo da realidade mesma, que torne o exame da verdade, em si mesmo, fácil ou difícil, mas, sim, de uma falta subjetiva, própria da pessoalidade humana. Tal é, por exemplo, bem o caso dos atenienses, cuja “Massa do povo acredita que Hiparco era tirano quando foi morto por Harmódio e Aristogíton. Eles não sabem que era Hípias quem, por ser o filho mais velho de Pisístrato, detinha o poder, ao passo que Hiparco e Téssalo eram seus irmãos”.33 E essa atitude de descuidos e desleixos das pessoas, quanto à aceitação de verdades não verificadas acerca das coisas antigas, é tão arraigada, prossegue Tucídides, que opera mesmo quando elas escaparam a toda ação destrutiva do tempo: “E acerca de muitas outras coisas, ainda mesmo atualmente vigentes e não deslembradas pelo tempo, também os demais helenos não concebem corretamente, tal como a idéia de que os reis lacedemônios não dispõem 33 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.2. 198 Mithistória de um voto cada um, mas de dois, ou a de que entre eles há um batalhão de Pitane, o qual nunca jamais existiu”.34 E, pelo que nós modernos podemos saber, dadas as lembranças e esquecimentos seletivos da memória histórica, pelo menos a obra de Heródoto ficava assim implicada por essa denúncia tucidideana. Pois, ao indicar em sua narrativa os privilégios e prerrogativas com que eram distinguidos os reis lacedemônios, conta o historiador que eles, tendo assento nas reuniões da Gerúsia, dispunham excepcionalmente do direito a dois votos nas mesmas.35 Igualmente, Heródoto refere-se à existência do batalhão espartano do aldeamento de Pitane, atestando sua presença na batalha de Platéia (479 a.C.).36 De modo que, mesmo quando não imperam as dificuldades maiores, a inviabilizarem a averiguação da verdade das coisas antigas, e sim, pelo contrário, quando estão dadas as possibilidades da inquirição informativa (seja pela familiaridade de origem local seja de contemporaneidade), mesmo então as pessoas, argumenta Tucídides, desleixam o exame reclamado, preterindo-o pela mera aceitação das versões correntes. A total ausência, pois, de espírito crítico averiguador da verdade das tradições só pode ser primeiramente entendido como decorrente dessa propensão humana mais geral de evitar esforços, recusar trabalhos, sempre que se lhe abre a via fácil que os dispensa. Fica, portanto, nelas acusada a leviandade da indolência como modalidade consagrada de transmissão das tradições antigas. Mas, há também uma outra razão que permite entender essa generalizada atitude de acolhimento acrítico das tradições antigas, tendo agora a ver com uma outra disposição dos seres humanos: a atração pelo fabuloso. Pois, diz Tucídides encerrando seu arrazoado acerca dos tempos passados: 34 35 36 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.3. Histórias, VI.57.5. Histórias, IX.53. 199 Francisco Murari Pires “Com base nos indícios enunciados, não se equivocaria quem julgasse os fatos, de modo geral, assim tais como eu abordei, e não confiasse antes nem no que a seu respeito os poetas celebraram tendo em vista adornos engrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseram tendo antes em vista o que é mais do agrado do auditório ao que é mais verdadeiro”.37 Eis como são as práticas dos poetas e dos logógrafos, agentes de transmissão das tradições antigas entre as pessoas a quem se as dirige: bem sabem e atendem ao que é do agrado delas. Ambos, quer poetas quer logógrafos, preterem os reclamos da questão da verdade acerca do que contam e afirmam as tradições por eles narradas. Não é um tal propósito de compor um saber distinguido pela primazia da verdade que finaliza, enquanto princípio teleológico, a consecução de suas obras. Elas buscam realizar outros fins: os prazeres dos entretenimentos de suas respectivas audiências. Assim, os poetas conformam embelezamentos engrandecedores, a revestir de dignidade heróica a realidade dos acontecimentos celebrados em seus cantos. E os logógrafos bem narram o que é do agrado do auditório. Por ambos, poetas e logógrafos, o fabuloso (mythõdes) adere às coisas antigas. Assim, as aporias respeitantes ao melhor conhecimento do passado têm, aqui, a ver com a sobreposição do fabuloso (epì tò mythõdes eknenikekóta)38 por que as tradições o memorizam e transmitem ao presente. Então, as modalidades instituídas, tradicionais, de estabelecimento de conhecimento sobre o passado revelam uma norma generalizada de seu procedimento constitutivo: “recolhem, de forma indiferenciadamente acrítica, as tradições transmitidas”.39 Meramente aceitam-se os relatos (dis)postos pelas tradições, sem que se comprove, sem que se aprecie, a verdade por elas 37 38 39 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.1. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.1. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.1. 200 Mithistória afirmada. Tais procedimentos, inerentes às práticas de poetas e de logógrafos, acolhem como verdade as versões dadas. O crédito que se dá a tais verdades consiste, portanto, meramente de crença: é crédito imanente e imediatamente cedido de princípio, e não constituído por qualquer operação mediadora de averiguação argumentadora de sua veracidade. Assim, denuncia Tucídides, para a ingenuidade negligente e para a futilidade hedonística, não há maiores dificuldades em se promover o conhecimento do passado, pois este é situado, não no campo da razão, mas no da crença afeita ao fabuloso. Mas, completa Tucídides, a que ganho e valor preciso responde um saber clarividente porque respeitante ao presente? De imediato, o historiador revela a precípua utilidade que ele projeta para a História, enquanto obra narrativa escrita: “A quantos desejarem observar com clareza os acontecimentos ocorridos, e também os futuros que então novamente, conforme o que é humano, ocorrerão tais ou símiles, julgarem essas coisas úteis, será o bastante. Constituem uma aquisição para sempre, antes do que uma peça para o auditório do momento”.40 De modo que a História, enquanto obra narrativa, ao dissociar sua finalidade e seu valor daquela convencional proposição de atender aos prazeres efêmeros de fruição por um auditório ocasional, a que justamente poetas e logógrafos submetiam as suas, pretende, sim, alcançar os foros imortalizadores com que estes as proclamavam. Pois, as obras de poetas e de logógrafos – o épos homérico a narrar a Guerra de Tróia, e a História herodoteana a narrar as guerras medas –, constituídas enquanto memória das coisas antigas, afirmavam também seu valor pela efetividade imortalizadora que a memória propicia. Mas, precisamente porque privilegiam o mítico, consagram a oralidade de sua manifestação narrativa: a declamação ou 40 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.4. 201 Francisco Murari Pires récita do aedo, a leitura pública do logógrafo. Portanto, manifestação leviana e fútil por que consuma seu valor no e pelo momentâneo de sua fruição prazerosa por um auditório. Já a História tucidideana, deslocando tais valores efêmeros próprios da axiologia e teleologia da narrativa mítica, realiza seu valor precipuamente enquanto obra escrita, a compor um saber que, primando pela clareza de sua objetivação, destina-se à fruição futura, que transcende o meramente momentâneo graças ao saber que sua narrativa dos acontecimentos decanta. A teleologia de um saber que prime pela certeza clarividente na apreensão dos fatos da história humana, assim altivamente proclamada por Tucídides para sua obra narrativa da guerra de peloponésios e atenienses, desloca a teleologia disposta pela tradição da epopéia ainda desdobrada pela da história herodoteana, a qual sacrificava a expressão da verdade pelos desígnios ou apologéticos de engrandecimentos heróicos ou fúteis de entretenimentos de auditórios ocasionais. Com Tucídides, o primado da verdade no conhecimento dos acontecimentos humanos é plenamente instituído como imperativo absoluto da história, seu signo distintivo.41 41 Confiram-se, nesse sentido, os comentários de J. L. Moles (Truth..., p. 91-93 e 102): “Por um lado, ambos escritores [Heródoto e Tucídides] vêem-se como herdeiros da tradição da narrativa épica, especialmente como ela é expressa por Homero na comemoração de uma grande guerra na Ilíada. ...Por outro lado, ambos escritores também se vêem empenhados em um projeto que é distinto do da tradição poética em sua tentativa de estabelecer a verdade factual e distingui-la da mentira ou falsidade factual. ...Tucídides é mais explícito acerca da natureza e metodologia deste projeto do que Heródoto, e também acerca do tipo de história (isto é, primordialmente, história recente) em que este projeto pode ser levado a cabo efetivamente. De fato, especialmente a este respeito, ele se apresenta como um crítico, e rival, de Heródoto bem como seu sucessor. ...Há uma implicação geral de que ele [Heródoto] têm em consideração a questão da verdade ... mas ele não enfatiza a verdade, o que constitui um contraste marcante com seu predecessor imediato, Hecateu...A obra de Heródoto possui um valor comemorativo (um reclamo historiográfico padronizado) mas a expressão evitar que os grandes feitos fiquem sem glória ecoa uma passagem famosa da Ilíada...Assim, o tema de Heródoto é a grandeza épica, e seu próprio papel é, talvez, correspondentemente heróico...Diferentemente de Heródoto há em Tucídides uma renovada insistên202 Mithistória Para essa realização teleológica, todavia, o primado da verdade factual na consecução da narrativa impõe a condição cognitiva da presença aos acontecimentos como instância de derivação de seus informes e relatos. Por quais modos, assim, se dá, impõe considerar a questão do sujeito da narrativa, a definir seu princípio onomasiológico. cia de que a história busca a verdade, verdade aqui claramente implicando verdade factual”. Todavia, há que se considerar também a intriga de retórica agonística que as fomulações do proêmio tucidideano supõem, pois já Heródoto, ao anunciar seu relato da história de Ciro (Histórias, I.95), opera uma similar proclamação de imperativo da verdade narrativa contra desvios apologéticos. 203 Mithistória 3. Onomasiológico (a questão do sujeito) “Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses como eles combateram uns contra os outros”.1 A História, pelas declarações inaugurais do Proêmio, propõe-se como obra discursiva: composição de um texto (syggrápho). Então, a declinação de um nome, bem determinado pela qualificação da cidadania, abre o dizer da obra. Por esse modo, a obra declara a primeira especificação de sua identidade ao referir o sujeito que é o autor de seu discurso constitutivo. A realidade suposta, pois, por um nome singulariza um certo indivíduo humano: Tucídides de Atenas, que compôs a guerra dos peloponésios e atenienses, Por esse modo mesmo de declaração inicial, a obra tucidideana reitera a fórmula inaugural firmada já antes por Heródoto e por Hecateu. Assim, nas Histórias de Heródoto tem-se: “Heródoto de Túrio dá aqui a exposição de sua inquirição”.2 E nas Genealogias de Hecateu lia-se: “Hecateu de Mileto narra o seguinte”.3 Mas, no princípio mesmo da memória narrativa helênica com o épos, a tradição poética fixara já a original fórmula enunciativa da obra, à qual a da História apenas responde. Assim, o verso inaugural da Ilíada homérica diz: Tucídides. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1. Heródoto. Histórias, I.1. Jacoby, FGrH 1 F 1. 205 1 2 3 Francisco Murari Pires “A ira canta, Deusa, de Aquiles Pelíade.4 E igualmente o da Odisséia: O homem dize-me, Musa, multívio”.5 Também nos poemas hesiódicos, é essa formular invocação às Musas que abre o canto. Assim, tem-se nos Érga: “Musas Piérias, que gloriais com vossos cantos, vinde, dizei Zeus, vosso pai, hineando”.6 Também na Teogonia a encontramos, deslocada poema adentro7, uma vez encerrada o louvor inicial que o aedo dirige a essas deusas mesmas, as Musas: “Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto, gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos”.8 Fórmula inaugural do canto que também os hinos homéricos contemplaram: “Hermes hineia, Musa, de Zeus e Maia filho;9 Musa, dize-me as obras da mui-dourada Afrodite;10 Ártemis hineia, Musa, irmã do Alveja-longe”.11 4 5 6 7 Ilíada, I.1. Odisséia, I.1. Trabalhos e dias, 1-2 (tradução de Mary Neves Lafer). Indicações respeitantes à maior complexidade da estruturação narrativa do Proêmio da Teogonia em sua interação onomasiológica aedo/Hesíodo/Musas são apontadas por F . Hartog (Espelho..., p. 25-26). Teogonia, 104-5 (tradução de Jaa Torrano) Hino a Hermes, IV.1. Hino a Afrodite, V.1. Hino a Ártemis, IX.1. 206 8 9 10 11 Mithistória Então, a declinação do nome que abre a narrativa da história (corresponde à invocação das Musas que enceta a narrativa do épos. Pelo nome, assim proclamado, define-se o sujeito a quem a narrativa mesma refere a consecução do seu dizer. Nome genérico de uma categoria divina – Deusa, Musa, Musas –, quase que alusivamente “anônimo”, no âmbito do épos, a praticamente diluir a questão da autoria. Nome individual e humano – Tucídides de Atenas, Heródoto de Túrio – a precisamente circunscrevê-la na da história. Épos Súbita, a voz do aedo rompe o silêncio, e irrompe em palavras e música um canto destinado a celebrar as obras dos deuses e os feitos heróicos dos homens de outrora. Assim, disposto a atualizar uma dessas histórias na ambiência humana de uma dada comunidade de ouvintes, o bardo logo ativa o contato com o ente divino de que provém seu conhecimento: um rogo, “pura prece” de apelo direto e autônomo graças a um excepcional relacionamento íntimo com a divindade12, é dirigido à(s) Deusa(s), nomeada(s) Musa(s), filha(s) de Zeus e Mnemosine (Memória). Sob o modo de uma interpelação formulada em termos imperativos13, o aedo reclama a revelação presentificada do saber divino interrogado pelo teor do canto que ele então atualiza entre os humanos.14 Na referenciação, portanto, do sujeito de sua narrativa, o épos formula um nexo entre aedo e Musa.15 Pelas representações que o épos dá 12 13 J. S. Clay. Wrath..., p. 9. Imperativo, aliás, a causar estranheza entre os antigos, pois como pode um humano dar ordens a um ser divino? (G. Kirk, Commentaries..., p. 52). Vejam-se as considerações apontadas no estudo de W. Minton (Homer’s..., p. 293): “...todas as invocações são essencialmente questões, apelos à Musa por informação específica para a qual o poeta espera claramente uma resposta”. Calame. Craft..., p. 53. 207 14 15 Francisco Murari Pires acerca de seus próprios modos de emissão narrativa, elide-se a figura individual singular do aedo, sua voz (con)fundida com o dizer da Deusa, sendo ele antes concebido como mera instância humana de mediação instrumental comunicativa com a esfera da ciência divina dos cantos.16 Pois, o canto constitui dom divino, bem concedido pela divindade a agraciar aquele mortal que é particularmente distinguido como aedo.17 O aedo, pois, é discípulo da Musa: é ela, filha de Zeus, quem lhe ensina os cantos.18 A excepcionalidade de uma conexão divina com as Musas então bem distingue um indivíduo assim privilegiado para a arte do canto, que a domina por autodidata, pois não a aprende de qualquer outro humano, já que discípulo apenas das Musas. Justo assim o assinalou, a dramática súplica que Fêmio dirigiu a Odisseu quando da matança dos pretendentes, rogando-lhe que poupasse sua vida: “Abraço-te os joelhos, Odisseu, tu respeita-me e compadece-te de mim; a ti mesmo mais tarde o remorso virá, se um cantor matas, que aos deuses e homens eu canto, autodidata sou, a divindade em meu coração récitas variadas fez nascer, e pareces-me ao cantar diante de ti como um deus”.19 16 Idem, ibidem, p. 10. Confira-se, ainda, C. Calame (Craft..., p. 77): “a enunciação é caracterizada pela projeção do ‘eu’ do narrador em uma autoridade superior, a figura das Musas, autoridade dotada de poder e conhecimento poético. As Musas aparecem como garantia da competência do poeta, que meramente empresta sua voz para o exercício de sua onisciência”. Assim também Romeo: o aedo figura, no mundo humano em que é comunicado o canto, uma entidade singularizada, indivíduo que constitui “o meio narrativo entre a Musa e os ouvintes, a afirmar implicitamente uma prioridade de competência e a sublinhar o caráter privilegiado e técnico de seu próprio papel” (Proemio..., p. 14). Odisséia, VIII.44; Odisséia, VIII.64: “a Musa deu-lhe agradável canto”; Odisséia, VIII.498: “que a mercê de um deus te proveu o divino canto”. Odisséia, VIII.481: “a ele a Musa ensinou récitas e ama a tribo dos cantores”; Odisséia, VIII.488: “ou a Musa filha de Zeus ou Apolo te ensinou”. Odisséia, XXII.344-349 (tradução de Cascaes Franco). Ch. Segal (Singer..., p. 138139) analisa esta cena especialmente sublinhando que “quando Fêmio se denomina 208 17 18 19 Mithistória Súplica de apropriada retórica persuasiva ao seduzir o interesse de Odisseu em poupá-lo, pois arrazoava o valor inestimável de sua pessoa para o palácio: aedo autodidata, sem igual, insubstituível por algum outro que pudesse ser formado por ensino de mestre humano; aedo assim excepcionalmente privilegiado por dom divino, discípulo das Musas.20 A confluência de ambos os reclamos – autodidata e discípulo das Musas – obram concordantes e complementares implicações significativas de uma estratégia persuasiva: Fêmio é tão singular e único por sua excelência poética devido a essas duas razões que, se não for poupado por Odisseu, jamais este conseguirá outro aedo que, como ele, por seus cantos desdobrados diante do herói, propicie-lhe regozijos de experiência divinizante. Assim, o aedo, ao encetar seu canto, então invoca essa presença divina, conclamando-a a atualizar-lhe seu saber: “Dizei-me agora, Musas, que tendes as moradas olímpias, pois vós sois deusas, presenciais, vistes tudo, mas nós a fama só ouvimos e não vimos nada: quem eram os comandantes e os soberanos dos dânaos; já a multidão eu não narraria e nem nomearia, nem se tivesse dez línguas, dez bocas, voz incessante e contivesse peito brônzeo, caso não as Musas Olimpíades, de Zeus egífero filhas, memoriassem quantos sob Ílion vieram. Os comandantes das naus, então, digo, e as naus todas”.21 autodidata, ele quer significar que aprendeu as canções por si mesmo, ou seja, que ele não está apenas repetindo o que ele adquiriu de um específico mestre ou modelo humano, mas é capaz de acrescer e aperfeiçoar elementos tradicionais. E, todavia, o termo não exclui a assistência divina: há um crescente consenso entre os críticos de que ser autodidata e usufruir inspiração divina não são mutuamente excludentes”. 20 Confira-se igualmente a atribuição de nexo divino ao poder sapiencial de Édipo, o primeiro dos homens, por que o sacerdote de Zeus entende a excepcionalidade de seu feito heróico ao decifrar o enigma da Esfinge (Édipo e o enigma da visão das idades). Ilíada, II.484-493. 209 21 Francisco Murari Pires A presença atuante da Musa no espírito do aedo define, portanto, o princípio que move seu canto.22 Princípio constitutivo do canto com que a divindade instrui o aedo em sua plenitude: canto, aoidé, indistintamente concebido quer como a competência da arte ou ofício (téchne), quer como uma específica composição, quer como repertório de histórias famosas.23 22 Odisséia, VIII.73: “a Musa então o cantor moveu a cantar as famas dos homens”. Odisséia, VIII.44-45: “a quem, pois, bem a divindade deu o canto a deleitar, seja como o espírito o incite a cantar”. Odisséia, VIII.499: “Assim disse, e ele impelido pelo deus começou e fez ouvir o canto”. Confiram-se igualmente os comentários de P . Pucci (Song..., p. 40): “A cada ocasião que o poeta começa a cantar, as Musas dizem ou ensinam-lhe, ou por fim liberam-lhe sua canção, assim como os deuses soltam o ménos do herói no calor da batalha. ... A cada performance o poeta se sente conectado com as Musas...O texto da invocação também sugere que o canto das Musas ressoa no interior do poeta: dize-me agora”. “Quando os deuses fazem dos homens cantores, como Homero descreve o processo, eles lhes dão aoidé, canção, indiferentemente o produto da composição ou a competência de cantar; entre um e outro não há estágios intermediários que possam ser distinguidos. Quando Demódoco perde a vista e recebe aoidé como compensação, ele parece receber a habilidade do cantor, uma arte ocupacional, mas quando ele executa uma canção acerca da tomada de Tróia, aoidé representa uma peça particular em seu repertório. Estes dois aspectos de aoidé fundem-se a produzir um terceiro em um outro relato do dom das Musas: o repertório de contos do poeta (oimai) é o que lhe confere honra e constitui sua competência; aoidé é uma coleção de cantos dentre os quais o cantor escolhe uma canção quando recita. Em qualquer caso, sua habilidade é melhor descrita por, e talvez não deva ser distinguida de, seus produtos, pois pode-se dizer que uma canção existe sem um cantor” (Walsh, Varieties..., p. 9-10). Igualmente, Romeo: “A deusa dá o saber mas também o modo do canto, que é unívoco com o tema cantado. ... a modalidade do canto, além de seu conteúdo, a técnica poética, a habilidade de execução, são sinais de uma sapiência especial. ... O dom do canto é, por isto, unívoco com a técnica. O saber poético revela-se na expressão total do canto”(Proemio..., p. 910); ou, ainda, Thalmann: “As Musas concedem, em primeiro lugar, a habilidade de cantar. Mas o auxílio das Musas apenas começa assim. Tendo dado a um homem a capacidade de cantar, elas precisam ainda ajudá-lo a pô-la em prática a cada ocasião, dando-lhe conhecimento do particular tema que ele deve tratar. Seria tentador diferenciar-se...o alcançado humanamente e o inspirado divinamente como aspectos da arte 210 23 Mithistória Tantos aspectos solidários do canto das Musas que o configuram pelo nexo com a pessoa do aedo como memória.24 Vínculo privilegiado do aedo com as Musas, fundamento divino de sua precípua excelência (poética), pelo qual ele alcança auras de sacralidade,25 e que assim o integra no horizonte de valores e honras do mundo heróico por consoante nível hierárquico, como bem o assinalou o gesto de Odisseu por que reconheceu elogioso a distinção honorífica da areté do aedo: “Demódoco, louvo-te acima de todos os mortais: ou a Musa, filha de Zeus, ou Apolo te ensinou, pois bem ordenado cantas o infortúnio dos aqueus, quanto realizaram, o que sofreram e quanto suportaram os aqueus, como se tivesses presenciado, ou de um outro o ouvisses. Mas, vamos, muda e canta a trama do cavalo de pau, que Epeio construiu com Atena, e que então o divino Odisseu, doloso, levou para a fortaleza, preenchendo-o de guerreiros que Ílion saquearam. poética...de modo que ao primeiro correspondesse a habilidade técnica, assim o domínio das fórmulas...ao passo que a contribuição das Musas, por outro lado, fosse o conhecimento das estórias, oimai. É, entretanto, duvidoso que a absorção da técnica formular pelos poetas fosse um processo bem consciente de modo a permitir uma distinção entre forma e conteúdo”(Conventions..., p. 126). 24 “E a memória especial do aedo, como fundamental recurso de ofício, na sua prática virtuosística faz parte do dom do canto: a função do canto se identifica mesmo com o recordar os feitos gloriosos dos heróis: lembrar, comemorar e cantar constitui um todo unívoco na mentalidade arcaica” (Romeo, Proemio..., p. 11). “O deus que provê Fêmio de suas canções é a fluência própria do poeta oral exercida pelo meio tradicional (a linguagem dactílica com suas fórmulas ou padrões formulares). Fêmio não consegue ver claramente esta tradição porque ele sente mais vivamente o que ele mesmo faz. Ele não consegue ver claramente a si mesmo como distinto de seu mestre divino porque ele não percebe sua tradição. Ela obra dentro dele onde não pode ser observada, uma força mágica que garante que as palavras que ele escolhe serão sempre corretas” (Walsh, Varieties..., p. 13). “O que torna theion (Odisséia, VIII.43) o cantor”, observa Romeo (Proemio..., p. 8-9). 211 25 Francisco Murari Pires Se isso me discorreres com propriedade, logo declararei a todos os homens, que a mercê de um deus bem te concedeu o divino canto”.26 Por tal excelência distintiva de predileção divina cabia-lhe, pois, usufruir honras heróicas, e assim condignamente o consagrou Odisseu: “Então ao arauto dirigiu-se o multiastuto Odisseu, após trinchar o lombo, mas uma parte maior reservando, de porco de dentes brancos, que tinha abundante gordura de ambos os lados”. “Arauto, toma, leva esta carne para que coma a Demódoco; também eu o saudarei, embora aflito, pois entre todos os homens que andam sobre a terra, os cantores são participantes de honra e de respeito, porque justamente a ele a Musa ensinou récitas e ama a tribo dos cantores”.27 O apanágio de um nexo divino que propicia excelência heróica assegura ao aedo participações em prerrogativas honoríficas e condizentes demonstrações de saudação respeitosa. Ele, assim, integra-se no festim palaciano, gozando iguarias tais como os nobres convivas que compõem o círculo aristocrático da realeza. Tanto mais que esta sua inserção se dá consoante a uma correspondente ordem hierárquica, bem assinalada pelo gesto de Odisseu que, atento às propriedades distintivas dessa estratificação, distribuiu desiguais valores emblemáticos pelos nacos de carne que então trinchou, oferecendo bela posta para o aedo, mas reservando para si uma maior. É que, diversamente dos aristocratas presentes ao festim a usufruírem ociosamente suas benesses, o aedo recolhe as suas como contrapartida do serviço que então presta ao alegrar e entreter todos com seus cantos. É, assim, pelos trabalhos que disponibiliza para a comunidade que justamente 26 27 Odisséia, VIII.486-98. Odisséia, VIII.474-481. 212 Mithistória também se define sua valia, então associado, junto com arautos, médicos e outros à categoria dos demiurgos.28 Ele ali se encontra, pois, por dupla determinação de inserção heróica, que o define ambiguamente tanto como conviva quanto como servidor, a usufruir prazeres contra trabalhos. Mas, também a Ilíada e a Odisséia, cantos de que o sujeito são as Musas, implicam a associação tradicional com um nome, Homero, a individuar o aedo humano, agente presente que os atualiza. Homero, nome de aedo, similar a Demódoco e Fêmio. Com uma diferença: nome a que a tradição atribui todo um nexo de circunstâncias biográficas, a projetar-lhe identidade pessoal. Tradições, todavia, de cunho marcadamente lendário, antes derivações de aspectos compositivos dos poemas espelhados etiologicamente por situações e vicissitudes pessoais de uma suposta figura autoral.29 E nome deslocado, exterior aos poemas, por eles obliterado justamente por meio dessa representação daquela entidade mítica denominada Musas, a quem se remete a formulação narrativa dos mesmos. Pois, pelos versos formulares de que se vale a epopéia homérica, a invocação à(s) Musa(s) declara ou só a referência a esta(s) figura(s) divina(s), “A ira canta, deusa, de Aquiles Pelíade”30, ou também já expressamente 28 Odisséia, XVII.380-397. Seguimos aqui o entendimento de W. Thalmann (Conventions..., p. 131-132 e 145-146) que analisa a figura social do aedo pela confluência das significações por que Demódoco é distinguido em Ítaca, com as de sua categorização como demiurgo na réplica que Eumeu dá a Antino nesta passagem da Odisséia. Diversamente o analisa Segal (Singer..., p. 144 a 162) que dissocia tais figuras, tendendo antes a aproximar a posição do aedo da do mendigo, o que, entretanto, é justamente contestado pela declaração de Eumeu. Alguns críticos tendem a referenciar a historicidade desse nome Homero ao fato da transcrição dos poemas épicos orais em texto viabilizada pelo ressurgimento da escrita na Grécia por meados do século VIII. Assim C. Calame, para quem tal transcrição atenderia antes a “desígnios rituais de consagração do texto em recinto sagrado do que de sua real publicação” (Craft..., p. 29). Ilíada, I.1; cf. Hino Hermes, I.1 e Hino Ártemis, I.1. 213 29 30 Francisco Murari Pires alude à pessoa do aedo, destinatário humano a quem o canto/hino é primeiro passado, “O homem dize-me, Musa, multívio”31. Mas pessoa do aedo que é ambiguamente referenciada, a supor uma e nenhuma individualidade humana, tanto figura subjetiva quanto objetiva de memorização do canto32. Pois, o “eu” do aedo por essa formulação convencional aparece desprovido de nome próprio, de modo que pode ser adotado por qualquer um deles que, em tempos seqüentes, recite o poema.33 De modo que as vozes que emitem os episódios do canto odisséico (con)fundem Demódoco ou Fêmio por Homero. A cada récita num presente atualiza-se essa memória de um tempo mítico há muito passado, um outrora falto de cronologia que só a consciência histórica inaugura34, essencialmente definido pela sua qualidade extraordinária, mundo de (ir)realidades excepcionais, tempo de realização de grandeza superior – divina e heróica –, em oposição a esses atuais presentes de uma 31 Odisséia, I.1. Similarmente: Ilíada II.484 (“Dizei-me agora, Musas, que tendes as moradas olímpias”; também em XI.218, XIV.508 e XVI.112); Ilíada, II.760-1 (“Esses então eram os comandantes e os soberanos dos dânaos. Quem deles então era bem o melhor, dize-me tu, Musa”); e Hino Afrodite, I.1 (“Musa, dize-me as obras da mui dourada Afrodite”). “Um ser puramente fictício, a Musa representa uma espécie de duplo do ‘eu’, uma projeção não-subjetiva de uma pessoa subjetiva, para usar os termos de Benveniste” (C. Calame, Craft..., p. 53). Calame, Craft..., p. 91. Confira-se igualmente o comentário de P . Pucci: “que a Odisséia ostente um ‘eu’ de autoria, um senhor subjetivo do texto, é evidente: ... E, todavia, esta subjetividade, enquanto presença de intenções de autoria, é ela mesma textual, ou seja, um momento do código textual, este ‘eu’ sendo o ‘eu’ de intermináveis preformances literárias. Este ‘eu’ é uma inscrição no texto, antes do que um agente único e singular criando um texto exteriormente” (Odysseus..., p. 113). “A narrativa humana ... refere-se ao que pessoas reais fazem ou fizeram em um enquadramento de tempo medido por gerações ou outras cronologias humanas, distintamente de um outro período, mais primevo ou ‘um era uma vez’ atemporal” (Edmunds, Practice..., p. 13). Também M. Finley chamara a atenção para esse fato: “Mas em Hesíodo não se encontra a mínima indicação de data ou de duração, assim como Homero acerca da Guerra de Tróia não dá outras indicações além do: era uma vez” (O mundo..., p.33). 214 32 33 34 Mithistória realidade meramente humana35. Figuração de um nexo aedo/Musas, filhas de Zeus e Mnemosine (Memória), denomina, por paradoxal anonimato de categorias genéricas, o fato social da memória poética que associa canto com música e dança36, saber objetivo por que se resolve a ambígua subjetividade de sua comunicação por meio da pessoa de um indivíduo humano.37 Pelo encadeamento de récitas, assim transmissoras dos informes de um saber prodigioso38, pela memória reiterada que os cantos atualizam, relíquias de (ir)realidades de tempos históricos diversos amalgamam-se (con)fundidos pela representação épica de um passado heróico que os condensa. Por essa dialética de (con)fusão de figuras de sujeito narrativo entre aedo e Musas, ensejada pelo anonimato da memória épica, cumplicia-se confusão de temporalidades, com os tempos míticos das origens divinas e dos feitos heróicos presentificados por essa modalidade mítica39 de memorização de um passado heróico reiteradamente atualizado a cada performance poética. 35 M. Edwards (Homer..., p. 61) lembra a similitude que as epopéias antigas mantém, nesse sentido, com a moderna ficção científica: em oposição ao tempo histórico presente que delineia os modos da realidade possível, porque comum e ordinária, o tempo do heróico extraordinário que se passa em (impossível/irreal) mundo do fantasioso e maravilhoso é situado no não-presente, seja o passado primevo pela epopéia antiga seja o futuro vislumbrado pela ficção científica. Para esta associação confira-se: Ch. Segal, Singer..., p. 117. “É a memória que sustenta o saber especial do aedo: memória dos fatos sugerida pela Musa e memória também da arte de transmiti-los” (Romeo, Proemio..., p. 10). Igualmente, P . Pucci: “...o canto das Musas é em si mesmo rememoração, mneme. Obviamente esta rememoração implica repetição, mas devemos assumir que é uma repetição direta e imediata do que as Musas viram ou vêem” (Song..., p. 40). Já apontado por Eustácio em seus comentários à passagem homérica da Ilíada (II.484: confira-se a indicação de W. Minton, Homer’s..., p. 293), e antes parodiado ironicamente por Platão (Eutidemo 275d). Confiram-se os comentários de P . Pucci: “A repetição, enquanto matriz da poesia épica, conforma não apenas as frases mas também a ideologia e as concepções poéticas. ... a noção de memória está intrinsicamente vinculada ao processo de repetição. A memória-mneme das Musas é impensável sem a qualidade repetitiva, fixada, da linguagem 215 36 37 38 39 Francisco Murari Pires Pelas realizações da epopéia hesiódica configura-se a transição inovadora40, pois já na Teogonia um nome próprio aparece inscrito no proêmio do canto, emerge à superfície do texto, a identificar pessoalmente o aedo que o recebe das Musas e comunica aos humanos: “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas Musas Olimpíades, virgens de Zeus porta-égide: ‘Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações’. Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas, por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado, impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por último sempre cantar. Mas por que me vem isto de carvalho e pedra?”41 É, ainda, a voz do cantor em sua performance presente que atualiza o dizer das Musas, que veicula seu saber divino: “cópia humana do arquétipo divino da canção com que as Musas regozijam Zeus”.42 épica. O efeito de memória causado pela redundância do estilo épico é a verdadeira Musa do épos. O texto épico menciona a mneme das Musas como origem e fonte do seu canto, assim elevando a memória (repetição e reciclagem) da linguagem épica a um princípio metafísico: a qualidade divina da mneme. Ao localizar a fonte do canto épico na memória-voz original das Musas, a concepção épica facilmente explica o longo processo de elaboração poética tradicional por uma origem simples e singular. Este modo de explicação das coisas é a quintessência do mito” (Odysseus..., p. 19-20). 40 41 42 O ponto é destacado por C. Calame, Craft..., p. 66. Teogonia, 22-35 (tradução de Jaa Torrano). “...a canão que as Musas capacitam Hesíodo a cantar é a mesma com que elas regozijam Zeus; e isto significa que a performance de Hesíodo, que se tornará a Teogonia mesma, é 216 Mithistória Certas circunstâncias e elementos identificadores, formulados em ambígua confluência de generalidade conceitual e especificidade singular, delineiam a figura individual de uma pessoa humana, nomeada Hesíodo, pastor pelos vales do Hélicon na Beócia, também sede consagrada às Musas, por quem ele é eleito cantor de seu canto divino. Só, pois, quem dentre os humanos responde por esse nome assim situado o canta. Também os Érga, outro poema épico associado ao nome de Hesíodo, incorporam, nos dizeres de seu canto, referenciações denominadoras que circunscrevem situações de comunicação43 singularmente localizadas como sua destinação mesma. Assim, no proêmio desse poema aparece inscrito um outro nome, Perses, o da singular figura interpelada pelo aedo: “Musas Piérias que gloriais com vossos cantos, vinde! Dizei Zeus vosso pai hineando. Por ele mortais igualmente desafamados e afamados, notos e ignotos são, por graça do grande Zeus. Pois fácil torna forte e fácil o forte enfraquece, fácil o brilhante obscurece e o obscuro abrilhanta, fácil o oblíquo apruma e o arrogante verga Zeus altissonante que altíssimos palácios habita. Ouve, vê, compreende e com justiça endireita sentenças Tu! Eu a Perses verdades quero contar”.44 O canto permanece atribuído à entidade mítica das Musas como seu sujeito: elas dizem o poder de Zeus em hinos. Dizer do canto que logo assia cópia humana do arquétipo divino sempre-repetido. ... O dom das Musas ao poeta mortal, a própria Teogonia, é a realização humana da canção divina” (W. Thalmann, Conventions..., p. 136 e 139). 43 Derivamos esta formulação conceitual do estudo de C. Calame (Craft..., p. 70-71), por cujas reflexões orientamos nosso entendimento nesta questão. Érga, 1-10 (para a tradução do texto dos Érga, versos 1 a 382, seguimos o trabalho de Mary Neves Lafer). 217 44 Francisco Murari Pires nala os modos desse poder: desconhece limites, todavia intransponíveis para humanos, pois obra, por atributo divino de facilidade de realização, a reversão de destinos antes impossível para esforços, mesmo os mais ingentes, de sujeitos humanos que apenas os sofrem. A atualização do canto então reclama especialmente a efetividade justiceira desse poder que, por sua ciência das injustiças praticadas entre os homens, consoantemente as reverte em justiça que endireita sentenças tortas. A invocação das Musas a induzir a atualização da efetividade do poder de Zeus responde, assim, às circunstâncias de uma situação presente, a qual contrapõe o poeta a Perses, a quem ele dirige, firmando agora já em seu nome, a condizente lição das verdades que o canto propicia. Situação, pois, de um conflito judicante a opor o poeta contra Perses, por vaga alusão denunciando as mazelas de sua suposta resolução faltosa de melhor observância daquela justiça que fora (dis)posta pelo poder de Zeus aos humanos. Então, ensinada a verdade do mito da dupla Éris (Luta), o poeta adverte Perses por condizente preceito: “Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a Luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na ágora e a elas dar ouvidos. Pois pouco interesse há em disputas e discursos para quem em casa abundante sustento não tem armazenado na sua estação: o que a terra traz, o trigo de Deméter. Fartado disto, fazer disputas e controvérsias contra bens alheios poderias. Mas não haverá segunda vez para assim agires. Decidamos aqui nossa disputa com retas sentenças, que, de Zeus, são as melhores. Já dividimos a herança e tu de muito mais te apoderando levaste roubando e o fizeste também para seduzir reis comedores-de-presentes, que este litígio querem julgar. Néscios, não sabem quanto a metade vale mais que o todo nem quanto proveito há na malva e no asfódelo”.45 45 Érga, 27-41. 218 Mithistória As circunstâncias do conflito jurídico agora precisam-se mais: uma disputa de bens concernente à partilha de uma herança, a pois indiciar o poeta e Perses como (supostamente) irmãos. Partilha cuja insatisfação é, então, denunciada pelo poeta, tanto por velada reclamação de sua parte nela dada por prejudicada quanto, especialmente, a acusar a ganância desmedida de Perses, pois este, por ela injustamente beneficiado por meio de apropriações indébitas, almeja consolidar tais ganhos desdobrando outras injustiças ao aliciar e cumpliciar nessa expropriação também a cobiça de juízes corruptos, aliás assim vislumbrada pelos desígnios rapaces de seus escusos interesses na partilha mesma. Contra a via contaminada da (in)justiça, praticada por reis corruptos nas querelas e debates da ágora propugnada interesseiramente por Perses, o poeta reclama antes a resolução da disputa pelos preceitos da justiça reparadora de Zeus – bem melhor por retas sentenças – contra as tortas decisões daqueles reis que dela se afastam. Assim, nova lição de verdades ensinadas a Perses, a agora adverti-lo contra as ilusões da via injusta por que se pretende acumular bens e riquezas expropriando-as em detrimento de outros: um dos itens constitutivos da condição humana, consoante a ordem cósmica imposta pelo poder de Zeus, afirma a necessidade do trabalho enquanto a via justa para a vida próspera. Então, dois mitos são contados a ilustrar e ensinar o preceito, primeiro o de Prometeu e Pandora, a seguir o das raças humanas. E ainda por outro mito – a fábula do gavião com o rouxinol –, corolário dos anteriores, o poeta proclama mais verdades a ensinar os fautores de injustiças, primeiro expressamente as dirigindo por lição aos reis juízes, mas logo depois também novamente a Perses, sempre recomendando a observância da justiça de Zeus contra o desvio de pretensões hibrísticas: “Tu, ó Perses, escuta a Justiça e o Excesso não amplies! O Excesso é mal ao homem fraco e nem o poderoso facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona quando em desgraça cai; a rota a seguir pelo outro lado 219 Francisco Murari Pires é preferível: leva ao justo; Justiça sobrepõe-se a Excesso quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo”.46 Então, alinhavando conseqüentes preceitos por que um homem deve obrar por essa via justa com que almeja vida próspera, sentencia contra o desvio do ócio: “Se nas entranhas riquezas desejar teu ânimo, assim faze: trabalho sobre trabalho trabalha”.47 Que trabalhos compõem essa via, diuturnos ao longo dos anos, então diz e revela didaticamente até encerrar o poema. Em meio à recomendação dos trabalhos apropriados segundo as estações e tempos anuais, ao tratar das atividades concernentes às lides da navegação pelos mares, extravasa mais confissões pessoais em seu canto: “Tu mesmo espera até que chegue a estação da navegação, e então puxa teu navio veloz para o mar e acondiciona conveniente carregamento nele, de modo que possas trazer ganhos para casa, assim como teu pai e meu, tolo Perses, costumava navegar a bordo porque faltava-lhe suficiência de viveres. E um dia veio ter neste mesmo lugar por travessia de boa parte do mar; ele deixou a Cime eólia fugindo, não de riquezas e propriedades, mas da miserável pobreza que Zeus dispõe aos homens, e ele se estabeleceu junto ao Hélicon numa miserável aldeia, Ascra, péssima no inverno, sufocante no verão, em tempo algum propícia”. 48 A relação familiar de irmãos entre o poeta e Perses, que antes fora apenas vagamente aludida por suposição de direitos de partilha de herança, agora é firmada expressamente pelo canto, que então declara a história do 46 47 48 Érga, 213-218. Érga, 381-382. Érga, 630-640 (a partir da tradução inglesa de H. G. Evelyn-White para as edições Loeb). 220 Mithistória pai, originário de Cime, dado ao comércio marítimo, porque veio estabelecer-se em Ascra, aldeia junto ao Hélicon, de onde agora este canto emite a voz do poeta. Então, aedo inspirado pelas Musas, que têm sua sede no Hélicon divino, em estreita similaridade com o Hesíodo nomeado cantor humano da Teogonia. Similaridade que logo a seguir implica identificação, pois então o poeta, a tecer os ensinamentos das lides do comércio marítimo, faz uma ressalva por outra declaração pessoal a agora confessar sua mínima (in)familiaridade com essa ordem de trabalhos: “Eu te mostrarei as medidas do mar ressoante, embora eu não seja habilitado na navegação pelos mares nem nos navios; pois jamais até agora eu velejei em navio por sobre o amplo mar, mas apenas a Eubéia desde Áulis onde os aqueus certa vez estacionaram devido a mau tempo quando se reuniram em grande exército da divina Hélade para Tróia, país de belas mulheres. Então eu atravessei para Cálcis, aos jogos do sábio Anfidamas, onde os filhos do herói magnânimo proclamaram e dispuseram prêmios. E lá gabo-me de ter ganho a vitória com uma canção, e levei uma trípode alada que dediquei às Musas do Hélicon, no lugar em que elas primeiro me colocaram na via do canto cristalino. Tal é toda minha experiência dos navios multicavilhados; todavia, eu te direi o desígnio de Zeus egífero; pois as Musas ensinaram-me a cantar maravilhosos cantos”. 49 Seção de instruções respeitantes às lides marítimas, a aproveitar o bom proprietário as oportunidades de ganhos mercantis abertas na apropriada estação, de tempo livre das fainas agrárias e pastoris. Do conhecimento assim reclamado, o poeta confessa sua inexperiência pessoal, lembrando seu único contato com a travessia do mar. Viagem antes de ecos heróicos, desde a partida em Áulis, pelos concursos poéticos das cerimônias fúnebres do nobre de Cálcis então celebrado, à proclamação altiva da vitória obtida por que devidamente reconheceu a graça de sua predileção divina junto às Musas do Hélicon. Ambígua intervenção textual biográfica por que o mundo da vivência pessoal 49 Idem, ibidem. v. 648-662. 221 Francisco Murari Pires do poeta é lembrado apenas para melhor contrapor a derivação divina das instruções então reveladas, ainda outra vez canto das Musas. O “eu” do aedo que canta os Érga então se identifica com o Hesíodo nomeado cantor da Teogonia. E, se o canto premiado nos jogos de Anfidamas compor alusão à Teogonia, como o sugere argumentativamente C. Calame50, a situação de comunicação do poema épico alcança ainda mais definições de singularidade episódica determinando um unívoco presente histórico cronologizável por que se atualizam os cantos hesiódicos. Movimento de afirmação do sujeito humano da obra discursiva que caminha paralelo ao encadeamento de vínculos de rivalização crítica, com cada nova obra reclamando superar a antecedente contra a qual ela mede sua excelência narrativa. E assim ocorre já desde os inícios por consoante contextualização agonística com que esse encadeamento de rivalizações se inaugura. Então, Hesíodo diz nos Trabalhos e dias acerca da competição poética de que participou nos festivais fúnebres em honra de Anfidamas. E o Hino homérico a Apolo guarda a lembrança do rogo do poeta ao auditório, a solicitar-lhe a palma da vitória nos festivais jônios de Delos. Passagens da figura de um sujeito por onomasiologia transcendente, divina, para outra de imanente humanitude firmada pela marca de um nome individual que assume a responsabilização pelo dizer discursivo, assomam múltiplas nas manifestações criativas por que se dá a evolução do helenismo arcaico para o clássico51: na lírica pela convenção da sphragis a chancelar a 50 “Esta nova consciência das condições objetivas da confissão do poeta encontra nos Érga uma descrição completa da ocasião em que a Teogonia foi provavelmente recitada: a competição nos funerais de Anfidamas em que ele cantou seu hino, usualmente identificado com a Teogonia.. ...Executado o hino nas cerimônias fúnebres de Anfidamas, herói provavelmente morto na Guerra Lelantina (entretanto, provavelmente ritual), teríamos então uma precisa condição temporal para o hino. Assim, a situação de comunicação da Teogonia é não apenas completamente assumida pelo ‘eu’ como ela é situada em um passado antes histórico do que lendário” (C. Calame, Craft..., p. 71). Entre outros, analisa a emergência do ego autoral na tradição literária grega, dos inícios arcaicos à maturação clássica do século V, G. E. R. Lloyd (Revolutions..., p. 54s). 222 51 Mithistória autoria do poema; nas artes visuais pela assinatura do pintor inscrita nas cenas por ele figuradas nos vasos de cerâmica; na filosofia emergente, quer com Xenófanes e Heráclito quer com Empédocles e Parmênides, estes ainda ecoando as representações épicas figuradas pela invocação às Musas52; e ainda na música, nos tratados hipocráticos...e também na história por Heródoto e Tucídides. História/Heródoto O proêmio das Genealogias assim professa sua proposição historiante: “Hecateu de Mileto assim narra: isto redijo como me parece que seja verdade, pois as histórias dos helenos são, no meu entender, múltiplas e ridículas”.53 Pelo nome firmado logo de início como sphragis que sela a obra identificando-a por propriedade narrativa de um indivíduo precisamente qualificado por sua cidadania, a história iniciante proclama a autonomia de seu sujeito humano em alcançar a verdade (alethea) das histórias que entre os helenos se contam. Estas pecam por faltas de multiplicidade divergente e de leviandade inconsistente por que perdem a via una e grave de acesso à verdade. A ganhar esta rota, o historiador então corrige os desvios do percurso constitutivo do lógos: à multiplicidade anônima das histórias vigentes descuidosas da expressão da verdade, Hecateu a alcança fundando-a pelas razões apreciadoras de um parecer pessoal. A obra do pronunciamento subjetivo singularmente nomeado produz a história ao decidir a verdade unívoca como produto do ajuizamento de sua razão analítica.54 52 53 54 Confiram-se especialmente as considerações de G .E. R. Lloyd, (Revolutions..., p. 59-60). FGrH 1 F 1. C. Brillante (History..., p. 96) aprecia o alcance do fragmento de Hecateu, atribuindolhe o significado de “nascimento da univocidade e seu conseqüente reclamo de racio223 Francisco Murari Pires * Também o proêmio das Histórias abre-se declarando o nome de seu sujeito: “Heródoto de Túrio dá esta exposição de sua inquirição a fim de que nem as realizações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas e maravilhosas obras, realizadas sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros, fiquem sem fama; e, entre outras, também por que causa eles guerrearam uns contra os outros”.55 O nome do indivíduo humano, autor da obra, novamente inaugura a narrativa. Porém, comparada à finalidade pretendida por Hecateu, a história herodoteana silencia aqui o imperativo da verdade por que este último a concebera, antes apenas dizendo de sua teleologia celebrante de memória perene. Heródoto, pelo contrário, defrontado com a problemática de relatos múltiplos que apresentam versões divergentes dos fatos, expõe em sua obra a indecisão da verdade, subtraindo, assim, o pronunciamento de um parecer pessoal que a resolvesse, adotando como seu dever historiante antes a exposição das múltiplas divergências mesmas, predominantemente duais.56 nalidade”, que no seu entender, apoiando-se nos estudos de Jack Goody, deve-se à facilitação da crítica das contradições dos mitos, ensejada pelo advento da escrita. 55 56 Histórias, I.1. Nesse sentido, confiram-se os comentários de G. Shrimpton (“Heródoto parece repudiar a auto-importância de Hecateu, quando ele declara como seu dever reportar o que as pessoas dizem, implicitamente suprimindo sua própria opinião, seja ou não que ele acredite nelas”; History..., p. 169-170) e de C. Darbo-Pechanski (“As Histórias abandonaram o artigo essencial do método de Hecateu, na abertura das Genealogias de que o indagador deve confiar em sua íntima convicção como um meio de separar o verídico do falso. Nenhuma declaração deste tipo em Heródoto, e somente dois casos de opinião de veracidade, o que é muito pouco para fazer desta um instrumento metodológico importante. A doxa e a gnome desempenham um papel essencial na indagação, mas que não é o de guiar no direcionamento da verdade. A opinião situa-se bem aquém da verdade. O indagador não reivindica o poder de dizer a verdade”; Dis224 Mithistória A história é obra de sujeito humano individual, produto de sua atividade inquiridora, e, todavia, Heródoto mantém em suspenso ou reticente a proclamação autoral da verdade, assim racionalmente (in)alcançada. Pruridos de reservas comedidas que, para o humano, condizem com o espírito de piedade religiosa zeloso em evitar declarações de pretensões hibrísticas, pois só à competência do saber divino cabe apropriadamente (a)firmar a verdade.57 Contraposição agonística com Hecateu acerca da excelência de uma obra historiante que aproxima Heródoto dos modos odisséicos de heroicização, assim similarmente plenos de prudência cautelosa em declarar-se publicamente como o melhor dos aqueus.58 E assim o fazendo, reverte contra Hecateu os termos de suas pretensões historiantes. Por duas vezes o menciona expressamente59 nas Histórias. Primeiro, no lógos egípcio: cours..., p. 169) Para as indicações concernentes a esta problemática, vejam-se as considerações da análise do princípio metodológico a seguir. 57 “A Heródoto repugna manifestar sem restrições que ele detém a verdade, e traduz sua reserva apresentando seu julgamento como uma opinião ou atenuando cuidadosamente o vigor de sua expressão. ... Se o pesquisador não pode alcançar a alethéia por seus próprios meios de pesquisa, há seres que nisso detém plena e quase que exclusivamente o acesso: os deuses. ... Assim, ao passo que Hecateu situa a verdade ao alcance da opinião, confiando a esta a enorme tarefa de depurar as tradições gregas de seus aspectos ridículos e racionalizá-las, Heródoto sublinha a distância que separa as duas. Ele não se refere à verdade a não ser com a maior prudência” (C. Darbo-Pechanski, Discours..., p. 169-170 e 187). Confiram-se nossos comentários no capítulo respeitante ao princípio axiológico. Recentemente tanto F. Hartog (Premières figures de l’Historien en grèce: Historicité et Histoire) quanto John Marincola (Odysseus and the historians) exploram a aproximação entre a emergência da figura do historiador com a de herói-aedo odisséica, o que já fora antes aventado por Hannah Arendt em seu ensaio sobre “O conceito de história, antigo e moderno” (Entre o passado e o futuro, p. 74-75. Outras possíveis referências herodoteanas às obras de Hecateu talvez se encontrem na alusão aos “jônios” nas passagens do lógos egípcio em que o historiador denuncia seus erros geográficos (G. Shrimpton, History..., p. 172 e 174-5). 225 58 59 Francisco Murari Pires “O historiador Hecateu esteve antes de mim em Tebas, onde traçou para si mesmo uma genealogia que vinculava sua linhagem a um deus na décima sexta geração de seus antepassados. Mas os sacerdotes de Zeus fizeram para ele o mesmo que fizeram para mim, que não lhes havia apresentado a minha genealogia. Eles me levaram ao grande pátio interno do templo e lá me mostraram estátuas colossais de madeira, contando-as até o número que já me haviam dado, pois cada sumo-sacerdote deixa lá enquanto vivo uma estátua sua; contando-as e apontando para elas, os sacerdotes mostraram que cada um deles herdou a função sacerdotal de seu pai, e começando pela estátua do último sacerdote eles me fizeram passar diante de todas as estátuas. Então, quando Hecateu traçou sua genealogia e reivindicou para seu décimo-sexto antepassado a condição de um deus, os sacerdotes também traçaram uma genealogia de acordo com o seu método de computação, pois não se deixaram convencer da possibilidade de um homem descender de um deus; eles traçam a genealogia ao longo da fileira completa de trezentos e quarenta e cinco estátuas colossais, chamando-as Píromis, filho de Píromis, mas sem associálas com qualquer antepassado, deus ou herói (píromis em língua helênica significa ‘apenas um homem bom’). Assim eles mostraram que todas aquelas pessoas cujas estátuas se alinhavam lá haviam sido homens bons, mas estavam muito longe de ser deuses. Antes desses homens, disseram os sacerdotes, os governantes do Egito eram deuses, mas nenhum deles havia sido contemporâneo dos sacerdotes, e o poder supremo pertencia sempre a um dos deuses; o último destes a governar o país foi Horus filhos de Osiris, chamado pelos helenos de Apolo. Ele destronou Tífon e foi o último dos deuses a reinar sobre o Egito. Osiris é Dioniso na língua da Hélade”.60 Hecateu historiador, como muitos outros gregos ávidos de conhecimentos, viajara também ao Egito, país fascinante, terra de sabedoria.61 Lá visitara Tebas, entrevistara-se com os sacerdotes de Zeus (Amon). Altivo, 60 61 Histórias, II.143-144 (tradução de M.G. Kury). Entende J. Marincola (Authority..., p. 67) que as (supostas) viagens de Hecateu a auferir conhecimento integram-se no mesmo espírito inquiridor (talvez já antes dele também presente em Scylax de Carianda) que a seguir Heródoto tornaria célebre conceituandoo como história. 226 Mithistória apresentara-lhes sua genealogia de arroubos heróicos: remontando à décima sexta geração de seus antepassados, um deus por ascendente original. Mas os sacerdotes desmentiram sua história por maravilhoso modo de demonstração replicante porque, elegante mas contundentemente, ensinaram a implausibilidade da mesma. Mostraram-lhe a genealogia deles mesmos, lá concretamente presente na sala do templo pelo enfileiramento das estátuas que cada um deles consagrava em memória de seu ofício: Píramis, filho de ... Píramis, filho de ...Píramis, filho de ....Píramis, com o que percorreram 345 deles, todos homens, filhos de homens, assim justamente denominados! Para alcançar deuses, só antes, tanto assim por 345 gerações distanciados. Era muito mais remoto, portanto, o tempo das origens em que deuses atuavam diretamente a perfazer todos os modos do mundo. E jamais homens nascidos de deuses! Obras originais de deuses e histórias dos homens supõem esferas de tempos de (atu)ações separadas.62 Para a reputação de Hecateu, com nome firmado no proêmio de suas Genealogias como fundamento pessoal de ajuizamento humano da verdade contra as “histórias múltiplas e ridículas dos gregos”, lição de atroz ironia ao assim parodiar63 as pretensões de seu “conhecimento” por denúncia da falsidade que ridicularizava a genealogia que mais lhe era familiar, a sua própria! Depois, uma outra citação nas Histórias também nomeia Hecateu: “Milcíades, filho de Címon, se tinha apoderado de Lemnos nas seguintes circunstâncias: os pelasgos tinham sido expulsos da Ática pelos atenienses, justamente ou injustamente, não posso ser categórico quanto a esse aspecto; posso apenas relatar o que se conta: Hecateu filho de Hegesandro, em suas Histórias, diz que foi injustamente. Quando os atenienses, diz Hecateu, viram o território situado no sopé do Monte Himeto, dado por eles aos pelasgos para habitá-lo, em pagamento pela construção das muralhas ou62 63 Confiram-se os comentários de C. Darbo-Pechanski (Discours..., p. 26). “Certamente parece ser melhor ler esta passagem como uma anedota visando a colocar o presunçoso Hecateu em seu lugar, antes do que uma descrição sóbria de um suposto acontecimento. Trata-se de uma caracterização humorada das Genealogias de Hecateu mais do que uma menção séria à mesma” (G. Shrimpton, History..., p. 169). 227 Francisco Murari Pires trora existentes em torno da acrópole, quando – repetimos – os atenienses viram bem cultivado aquele território, anteriormente em más condições, passaram a cobiçá-lo e a querer recuperar aquelas terras; seus sentimentos, então, levaram-nos a expulsar de lá os pelasgos sem apresentar qualquer outra razão. Mas, segundo dizem os próprios atenienses, eles os teriam expulso justamente, pois os pelasgos, uma vez estabelecidos no sopé do Himeto, vinham de lá para ofendê-los, da maneira exposta a seguir: as filhas dos atenienses iam freqüentemente buscar água nas Nove Fontes (naquela época eles ainda não tinham escravos, nem eles nem os outros helenos); todas as vezes que elas iam, os pelasgos as ultrajavam insolente e desdenhosamente. Como essa má conduta não bastasse, depois de algum tempo eles tramaram um ataque à cidade, mas foram surpreendidos em flagrante. Nessa ocasião, os próprios atenienses se teriam comportado como homens muito mais generosos que os pelasgos; de fato, tendo o direito de matá-los, pois estes tinham sido surpreendidos em plena conspiração, os atenienses não o fizeram e apenas os intimaram a sair de seu território. Depois de sair assim da Ática os pelasgos ocuparam vários lugares, entre os quais Lemnos. As primeiras são as palavras de Hecateu e estas são as dos atenienses”.64 Para o nome de Hecateu, que proclamara nas Genealogias firmar pessoalmente a verdade una de sua história a superar as divergências múltiplas de relatos dos gregos, nova ironia herodoteana: sua história (versão) da expulsão dos pelasgos da Ática era tão verdade (mentira) quanto mentira (verdade) é a versão (história) dos atenienses que, entretanto, a contradita! História/Tucídides A firma de um nome também abre a história tucidideana: “Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses, como eles combateram uns contra os outros. Começou imediatamente à sua eclosão na expectativa de que ela fosse grande e mais digna de relato do que as precedentes, pois verificava que, ao entrar em luta, ambos estavam 64 Histórias, VI.137 (tradução de Mário da Gama Kury). 228 Mithistória no auge de todos os seus recursos, e observava também que o restante do mundo helênico compunha-se com um dos dois lados: uns de imediato, outros pelo menos em projeto. De fato, esta comoção foi a maior já ocorrida para os helenos e também para uma parcela dos bárbaros, podendose mesmo dizer para a maioria da humanidade”.65 A confluência de figuras proposta em uma equação declarativa enuncia a obra. Por um membro dessa equação, ela afirma a subjetividade de uma composição discursiva bem identificando o indivíduo humano que é seu autor, Tucídides de Atenas. Por outro proclama, entretanto, que é narração objetiva, a expor os acontecimentos mesmos: nela se fixa textualmente a guerra entre peloponésios e atenienses como eles combateram uns contra os outros. Então, assim Tucídides postula para sua obra a qualidade de espelhamento dos acontecimentos sob forma discursiva, de modo que nesta se apreende por palavras as imagens da visão daqueles. Atributo de objetividade especular que a obra adquire ao ensejo de sua contemporaneidade dos fatos mesmos por ela narrados, a assim viabilizar seu fundamento na realidade da presença cognitiva. Pois, a ação que historia a guerra principia junto com a própria manifestação dessa guerra, de modo que a consecução da obra do historiador segue paralela ao desenrolar dos fatos, assim demarcando um coincidentemente unívoco presente. A denominada “Arqueologia”, plenamente realizando a proposição do princípio axiológico a recomendar o atributo da grandeza para a consagração narrativa, abre-se pela proclamação de uma tese pessoal, bem demarcada e assinalada como pronunciamento do sujeito singular que compõe a obra: “De fato, era impossível apreender com clareza as realidades anteriores e as ainda mais antigas devido à extensão temporal; mas, pelos indícios a partir dos quais cheguei a uma convicção em um profundo exame, considero que elas não foram grandes, nem quanto às guerras, nem quanto ao demais”.66 65 66 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2. 229 Francisco Murari Pires As marcas dessa subjetividade, do “eu” ajuizante do historiador, fecham igualmente a argumentação: “Então, tais foram os tempos antigos como os apreendi, dadas as dificuldades que eles apresentam de se confiar em toda série de indícios. Pois as pessoas acolhem as tradições acerca dos acontecimentos passados, mesmo no caso em que elas sejam de sua própria terra, igualmente sem exame a quando as acolhem junto a outros. ... Assim negligenciada é a investigação da verdade pela maioria das pessoas que se inclinam antes para a versão corrente. Com base nos indícios que foram enunciados, não erraria quem julgasse os fatos, de modo geral, assim tais como eu os considerei, e não confiasse nem no que a seu respeito os poetas celebraram, tendo antes em vista adornos engrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseram tendo em vista antes o que é mais do agrado do auditório ao que é mais verdadeiro, dado que eles são incomprováveis e, na sua maioria, submetidos ao tempo, inconfiáveis em razão do caráter mítico adquirido. Entendo, todavia, com base no que são os sinais mais evidentes, em se tratando dos tempos antigos, que foi suficientemente bem determinado”.67 E o estigma desta presença enunciativa do sujeito da obra pontua sistematicamente a exposição da “Arqueologia”, de tempos em tempos circunscrevendo suas proposições assertivas por meio de reiteradas expressões de manifestação de entendimento pessoal: ao que me parece (dokei de moi ou hos emoì dokei)68, cheguei a uma convicção (moi pisteúsai xymbaínei)69, julgo (nomízo)70 e penso (oimai)71. A afirmação, portanto, de uma subjetividade última delimita todo o alcance assertivo da verdade apreensível concernente aos tempos passados. As convicções, as conjecturas, os entendimentos, as apreciações conclusivas de um sujeito singular, bem fundadas racionalmente pela logicidade de seus 67 68 69 70 71 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20-21. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.3.2; 3.3; 9.1; 9.3; 10.4. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.10.2. 230 Mithistória arrazoados argumentativos, circunscrevem a possibilidade de um discurso cognitivo acerca do passado, assim apreendendo o que a esse historiador é o parecer de veracidade. Para o domínio do passado, a história tucidideana, então, realiza o que Hecateu propugnara, assim antagonizando contra a onomasiologia herodoteana. Quando, entretanto, uma vez encerradas as considerações sobre os tempos antigos, a inviabilizarem a constituição de um saber que prime pela clarividência e certeza de suas verdades, a reflexão tucidideana se volta para o tempo presente, tencionando igualmente por ele apreciar a questão da grandeza bélica, são bem outras, antitéticas mesmo, as conclusões a que chega o historiador: “Já quanto a esta guerra, se bem que as pessoas sempre julguem como a maior aquela em que presentemente combatem, mas, com o seu término, admirem sobretudo as do passado, ela se revelará, para quem observa a partir dos fatos mesmos, como sendo superior àquelas”.72 É comum, banal mesmo, reconhece Tucídides, que as pessoas apreciem de forma meramente subjetiva e passional a magnitude das guerras. Assim, são levadas sempre a considerar como a maior a guerra do presente, justamente porque nela estão envolvidas, a experienciar suas vicissitudes e sofrimentos. Mas, uma vez aliviada dessa carga de passionalidade subjetiva com o término mesmo da guerra, a volubilidade de uma tal apreciação inverte suas preferências, e passa, então, a admirar sobretudo as do passado. Ora, a conclusão, a que Tucídides chega, acaba caminhando no mesmo sentido, pois afirma também a superioridade da magnitude da guerra presente, por ele justamente experienciada, relativamente às guerras antigas. Reclama, entretanto, o historiador, que esta sua particular apreciação não decorre desse extravasar banal de impressões subjetivas momentâneas, apenas circunstanciais ao tempo de efetivação das guerras. Pelo contrário, postula Tucídides que sua afirmação se respalda por uma constatação objetiva: imperando a observação dos acontecimentos mesmos (ap’ autõn tõn 72 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.2. 231 Francisco Murari Pires érgon skopousi), é a própria guerra quem evidencia (delóo) a sua grandeza maior. Esta grandeza, afirma o historiador, é atributo da guerra, não porque resulte de uma subjetiva apreciação atribuidora, mas sim, pelo contrário, porque é uma manifestação imanente aos seus próprios acontecimentos constitutivos: eles portam reveladoramente a grandeza que transparece em sua manifestação evidente. Apreender essa grandeza decorre, apenas e exclusivamente, do observar a evidência dos acontecimentos, considerá-los em si mesmos, não supõe nem deriva de um julgamento pessoal. Assim, a proposição da História, enquanto um saber clarividente de certezas, privilegia a temporalidade presente como objeto de sua narrativa, justamente porque esta temporalidade não só atende aos reclamos do princípio axiológico da grandeza distintiva, como sobretudo, ao viabilizar a condição da presença cognitiva que observa os acontecimentos em sua manifestação mesma, enseja-lhe estatuto de objetividade. Então, para o domínio de saber respeitante aos fatos humanos do presente, a história tucidideana antagoniza sua excelência contra as histórias de seus antecessores. Contra a herodoteana especialmente, porque ela assim diz da possibilidade de firmar a apreensão da verdade dos acontecimentos em âmbito de cognição humana, a qual alcança a univocidade do fato apesar da dialética conflitante de seus informes múltiplos, ao passo que a de Heródoto, rivalizando contra a história propugnada por Hecateu, deixava retoricamente em suspenso essa resolução historiante da verdade, antes expondo como dever do historiador a sua indecisão que expõe a multiplicidade de versões divergentes. Ao reverter a tese herodoteana, a história de Tucídides aproxima-se da de Hecateu contraditada por seu antecessor, mas também a supera, porque a verdade assim alcançável pelo saber histórico, já que concerne ao presente e não ao passado, não fica estigmatizada pela referenciação de um parecer subjetivo que a personaliza73, antes pode afirmar-se como a expressão narrativa da verdade transparente dos fatos. 73 “E Tucídides rejeita o individualismo de Hecateu explicitamente no livro I (22.2), onde ele diz que reportou as coisas não por um ‘informante de passagem’ e ‘certamente não como me pareceram certas’ ” (G. Shrimpton, History..., p. 170). 232 Mithistória Por seu desígnio teleológico, de um saber que prime pela verdade clarividente, igualmente ao já disposto por seu princípio axiológico de superioridade de grandeza do fato bélico, tempo da narrativa e tempo dos acontecimentos são coincidentemente paralelos, e o historiador é contemporâneo dos fatos, integrada sua presença nessa unívoca temporalidade mesma. Então, proximidade temporal entre acontecimentos e relatos que os narram acaba por intrigar, como aliás já o indiciara a Odisséia, outras circunstâncias, justamente implicadas pelos envolvimentos das subjetividades pessoais respeitantes aos relatos que informam os acontecimentos. Por quais modos, então, tais aporias solicitam arrazoar os preceitos de uma reconstituição fatual dos acontecimentos, que alcance a certeza da verdade dos fatos, todavia imersa na dialética das parcialidades de seus informes, define agora o princípio metodológico a viabilizar uma sua narração objetiva, conforme o proclamara a declaração inaugural da história tucidideana. 233 Mithistória 4. Metodológico (a questão da verdade) Logo na abertura do Proêmio, Tucídides reclama para sua obra o primado no âmbito da narrativa: porque a guerra dos peloponésios e atenienses supera em grandeza todas as anteriores, ela se torna digna da honra do registro discursivo em grau superlativo. E, a justamente integrar essa obra no domínio do lógos – o que reclama, como princípio constituinte, o arrazoado argumentativo de fundamentação de suas declarações assertivas –, expõe de imediato essas razões: “Tucídides de Atenas compôs a guerra dos peloponésios e atenienses como eles combateram uns contra os outros. Começou imediatamente à sua eclosão na expectativa de que ela seria grande e mais digna de relato do que as precedentes, pois verificava que, ao entrar em luta, ambos estavam no auge de todos os seus recursos, e observava também que o restante do mundo helênico compunha-se com um dos dois lados: uns de imediato, outros pelo menos em projeto. De fato, esta comoção foi a maior já ocorrida para os helenos e, pode-se mesmo dizer, para a maioria da humanidade”. Mas, uma tal demonstração argumentativa da inferioridade de grandeza das guerras anteriores à do presente entre peloponésios e atenienses, impõe para a obra tucidideana considerar a oposição que dissocia as duas categorias da temporalidade assim implicadas: “De fato, era impossível apreender, com clarividência, os acontecimentos anteriores e os ainda mais antigos devido à sua densidade temporal; mas, 235 Francisco Murari Pires pelos indícios de cujo extenso exame cheguei a uma convicção, julgo que eles não foram grandes, nem quanto às guerras, nem quanto ao demais”.1 Dinstinguem-se duas temporalidades: há o tempo atual, constituído pelas ações que efetivam a guerra presente entre peloponésios e atenienses. Daí, demarcam-se os tempos antigos, referidos às ações constitutivas das guerras precedentes. De modo que o presente demarca o passado. Dada essa dicotomia da temporalidade, a justa apreciação da grandeza do fenômeno guerreiro impõe, então, a questão de examinarem-se as condições de possibilidade cognitiva dos acontecimentos respeitantes a essas distintas categorias. Já antecipadamente advertindo a aporia particularmente colocada para o conhecimento das realidades dos tempos antigos, Tucídides enuncia, assim implicado pelas exigências discursivas da razão argumentativa do lógos, a instituição do princípio metodológico, o qual é então plenamente exposto ao encerrar-se a denominada “Arqueologia”: “Então, tais foram os tempos antigos como os apreendi, dadas as dificuldades que eles apresentam de se confiar em toda série de indícios. Pois as pessoas acolhem as tradições acerca dos acontecimentos passados, mesmo no caso em que elas sejam de sua própria terra, igualmente sem exame a quando as acolhem junto a outros. Assim, a massa dos atenienses acredita que Hiparco era tirano quando foi morto por Harmódio e Aristogíton. Eles não sabem que era Hípias quem, por ser o filho mais velho de Pisístrato, detinha o poder, ao passo que Hiparco e Téssalo eram seus irmãos. Ora, Harmódio e Aristogíton, tendo suspeitado que algo, naquele mesmo dia à última hora, fora revelado pelos conspiradores ao próprio Hípias, dele se apartaram por recearem-no previnido. Mas, desejosos de realizar algo antes de serem presos, mesmo que arriscado, mataram Hiparco, que se encontrava junto ao denominado Leocórion a organizar a procissão das Panatenéias. Já acerca de muitos outros fatos, ainda vigentes e não apagados pelo tempo, os outros helenos também fazem suposições incorretas, tal como a de que cada um dos reis lacedemônios dispõe não de um voto, mas de dois; e a de que entre eles há um batalhão de 1 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2. 236 Mithistória Pitane, o qual nunca jamais existiu. Assim negligenciada é a investigação da verdade pela maioria das pessoas que se inclinam antes para a versão corrente. Com base nos indícios que foram enunciados, não erraria quem julgasse os fatos, de modo geral, assim tais como eu os considerei, e não confiasse nem no que a seu respeito os poetas celebraram tendo antes em vista adornos engrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseram, tendo em vista antes o que é mais do agrado do auditório ao que é mais verdadeiro, dado que eles são incomprováveis e, na sua maioria submetidos ao tempo, inconfiáveis em razão do caráter mítico adquirido. Entendo, todavia, com base no que são os sinais mais evidentes em se tratando dos tempos antigos, que foi suficientemente bem determinado. Já quanto a esta guerra, se bem que as pessoas sempre julguem como a maior aquela em que presentemente combatem, mas com o seu término admirem sobretudo as do passado, para quem observa a partir dos fatos mesmos ela se revelará como sendo superior àquelas. Quanto respeita aos discursos que cada um dos lados pronunciou, quer nas vésperas da guerra quer já no seu decorrer, era difícil relembrar a exatidão mesma das suas palavras, tanto para mim quando os ouvira pessoalmente quanto para os outros quando eles me transmitiam os que eles tinham ouvido; então, foi assim como me pareceu quais seriam as coisas mais apropriadas que cada um deles falaria acerca das situações presentes, mas procurando manter-me o mais próximo da proposição global das falas emitidas, que eu os formulei. Já no que respeita às ações praticadas durante a guerra, preferi registrar não com base no que me fora informado por qualquer um ocasionalmente, e nem como me parecia, mas sim por meio dos fatos que eu próprio presenciara, como também junto a outros pesquisando com quão possível exatidão acerca de cada um deles. Penosamente os determinei, pela razão de que as pessoas presentes a cada um dos acontecimentos não diziam as mesmas coisas acerca deles, mas sim as diziam conforme a sua simpatia para com alguma das duas partes ou a memória que tinham. E para o auditório talvez o seu caráter não mítico parecerá menos atraente; mas a quantos forem desejosos de observar o que há de claro nos acontecimentos ocorridos como também nos futuros, que algum dia de novo, em conformidade com a realidade humana, ocorrerão similares ou análogos, julgarem tais coisas úteis, será o bastante. Constituem uma aquisição para sempre antes do que uma peça para um auditório do momento”.2 2 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20-2. 237 Francisco Murari Pires É, pois, acerca das condições de possibilidade, dos preceitos e procedimentos, de estabelecimento de uma narrativa dos acontecimentos que prime pelo saber verdadeiro que discorre a metodologia. Assim (im)posta a questão da verdade, condiciona-se a possibilidade de uma tal narrativa ao fato da presença. Nas Histórias herodoteanas fora posto já o reclamo da questão da verdade do relato. Não plena e expressamente formulado em sua sistematicidade mesma, como em Tucídides, mas apenas dispersamente aludido ao longo da narrativa por variados pronunciamentos.3 Assim, reiteradamente o historiador assinala, ao longo de seu percurso inquiritivo, as fontes de derivação informativa com que ancora as realidades de seu relato na condição da presença cognitiva, bem declarando ou que ele mesmo as viu, ou que reproduz o que contam outros que as viram. E a expressamente advertir a questão da confiabilidade ou credibilidade quanto à verdade de seus relatos, insere vários modos de pronunciamento pessoal, assim externando graus diversos de asserção opinativa. Assim, por vezes, simplesmente declara sua descrença, denunciando a implausibilidade do informe, como quando narra o que os caldeus lhe haviam contado a respeito do templo de Zeus Belo, na Babilônia: que lá, no ápice da última torre sobreposta em uma cadeia de oito, ficava o recinto a que apenas uma mortal tinha acesso, eleita do deus que com ela ali se deitava por uma noite.4 Por vezes, assim também se 3 Vários autores analisam os princípios metodológicos da historiografia herodoteana, seja por exame apenas de compêndio sintético – assim C. Calame (Craft..., p.83-86) – seja por extensiva análise detalhada. Especialmente F . Hartog, em Le miroir d’Hérodote, explorou a lógica retórica por que Heródoto, por meio de marcas de enunciação que assinalam a intromissão do historiador na narrativa, constrói a persuasão da veracidade de seus relatos. Histórias, I.182.1. Para indicações mais completas respeitantes a este e demais casos apontados a seguir veja-se a obra de F . Hartog, citada na nota anterior. 238 4 Mithistória pronuncia contra histórias inverossímeis, mas agora arrazoando argumentos que fundamentam seu parecer, como quando rechaça a acusação infamante da traição medizante dos Alcmeônidas por ocasião da Batalha de Maratona.5 Outras vezes, deixa em suspenso a credibilidade dos informes, abstendo-se de emitir seu parecer de veracidade, antes limitando-se a transcrever os relatos em sua obra e remetendo sua apreciação para o juízo do leitor. Um dos mais significativos pronunciamentos neste sentido encerra o lógos egípcio: “Façam bom uso dessas histórias egípcias as pessoas que acreditam nelas. Quanto a mim, meu objetivo ao longo de toda a obra é registrar tudo o que me foi dito tal como o ouvi de cada informante”.6 Outro, igualmente significativo, encerra seu relato concernente à postura assumida por Argos face à invasão da Hélade por Xerxes: “Não posso dizer com certeza se Xerxes enviou realmente a Argos um arauto que teria dito as palavras mencionadas por mim, nem se delegados argivos teriam ido até Susa para interrogar Artaxerxes sobre a aliança, e não sustento aqui a respeito do curso dos acontecimentos qualquer opinião oposta à versão dos próprios argivos...Em verdade, minha obrigação é expor o que se diz, mas não sou obrigado a acreditar em tudo (essa expressão deve aplicar-se a toda a minha obra)”.7 E, todavia, as mesmas questões estavam já supostas pelo épos. Assim o declara cabalmente Homero ao encetar a narrativa catalogadora das forças aquéias e troianas na Ilíada: 5 6 7 Histórias, VI.121-124. Histórias, II.123. Histórias, VII.152 (tradução de Mário da Gama Kury). 239 Francisco Murari Pires “Dizei-me agora, Musas, que tendes a morada olímpia, pois vós sois deusas, presenciais, vistes tudo, mas nós, só a fama ouvimos, nada sabemos: quais eram os chefes e soberanos dos dânaos. Já a multidão eu não narraria e nem nomearia, nem que tivesse dez línguas, dez bocas, voz incessante e contivesse pulmão brônzeo, caso não as Musas Olimpíades, de Zeus egífero filhas, memoriassem quantos sob Ílion vieram. Os comandantes das naus, então, digo, e as naus todas”.8 Também sobre a questão da verdade expressou-se exemplarmente a Teogonia hesiódica, logo nos inícios de seu Proêmio: “Elas um dia ensinaram a Hesíodo um belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas Musas Olimpíades, virgens de Zeus porta-égide: ‘Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações’. Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas, por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado, impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por último sempre cantar. Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?”9 8 9 Ilíada, II.484-93. Teogonia, 22-35 (tradução de Jaa Torrano). 240 Mithistória Épos Procedimentos extraordinários, situados além do alcance dos atributos cognitivos meramente humanos, privilegiam a figura do aedo. Assim, bem o afirma o elogio que Odisseu dirigiu a Demódoco. “Demódoco, louvo-te acima de todos os mortais: ou a Musa, filha de Zeus, ou Apolo te ensinou, pois bem em ordem cantas o infortúnios dos aqueus, quanto realizaram, o que sofreram e quanto suportaram os aqueus, como se tivesses presenciado, ou de um outro o ouvisses. Mas, vamos, muda e canta a trama do cavalo de pau, que Epeio construiu com Atena, e que então o divino Odisseu, doloso, levou para a fortaleza, preenchendo-o de guerreiros que Ílion saquearam. Se isso me discorreres com propriedade, logo declararei a todos os homens, que a mercê de um deus bem te concedeu o divino canto”.10 Odisseu, por apropriada retórica com que exorta Demódoco a um novo canto, proclama a excelência do aedo tecendo-lhe justo louvor. Afirma o herói que seu relato poético dos feitos cometidos e dos infortúnios sofridos pelos aqueus diante de Ílion, prima pela conformação em ordem (katà kósmon) com que os reproduziu na narrativa. Capacidade narrativa de correção, justeza e adequação ordenada e apropriada no relato de acontecimentos passados que, no âmbito do humano, exige a condição da presença cognitiva: poder expor os fatos ou por têlos pessoalmente presenciado, ou por estar deles inteirado pelo informe de um outro que os presenciou. E, a condição da presença às manifestações consubstanciadoras do acontecimento, assim definida como requisito de sua derivação narrativa, impõe-se igualmente como critério de sua avaliação e aferição de justeza e adequação: porque ele, Odisseu, pessoalmente realiza esta exigência verificadora ao aludir ter participado daqueles episódios, pode, 10 Odisséia, VIII.486-98. 241 Francisco Murari Pires então, asseverar, para o canto de Demódoco, a propriedade do fato daquela presença. É assim, supõe a proclamação de Odisseu, que se constitui o modo humano de apreensão e conhecimento dos fatos passados. E, todavia, bem o deu a entender Odisseu, não era precisamente esse o caso de Demódoco. Não só o aedo era cego como, bem o sabia o herói, não estivera presente lá nos plainos de Tróia, na campanha aquéia de que ele mesmo participara. Então, se o primor de seu relato dos acontecimentos não derivava dessa possibilidade humana da presença cognitiva, uma inferência logo se impunha: ele os soube pelos deuses, seja a Musa seja Apolo quem lhe tenha ensinado o canto. Um modo excepcional de acesso e participação na ciência divina distingue a excelência do aedo entre os mortais. Assim, o saber que o aedo detém acerca dos fatos passados é constituído por meios e vias extraordinárias, que não as comuns, ordinárias, da percepção humana que, antes, privilegiam o alcance da visão física, enquanto modo de apreensão da realidade fenomênica. Pelo contrário, é mesmo a negação desta capacidade física visual, a cegueira, que marca a figura do aedo. É o que a Odisséia registra na pessoa de Demódoco: “A quem, dentre todos, a Musa amou, e deu-lhe bem e mal: dos olhos privou-o, mas concedeu-lhe agradável canto”.11 Aos mortais as divindades concedem, no máximo, bens misturados, associados a males, como um dos aspectos constitutivos de sua condição humana, em oposição aos modos da existência divina, única a usufruir o privilégio da exclusividade de bens e prazeres. Assim se passa com o aedo: dentre os mortais eles é caro aos deuses, que o agraciam especialmente com o dom do canto. Esse o bem por que ele é singularmente contemplado pela graça divina. Mas, porque mortal, a fortuna do bem se dá tendo como contrapartida o infortúnio que igualmente é próprio de sua singularidade: a privação de visão física. 11 Odisséia, VIII.63-4. 242 Mithistória E, assim, se representa que a potência poética do cantar independe da capacidade humana da visão física, pois se constitui sem ela, apesar de sua falta, não obstante sua privação. Então, o dom do canto pela contrapartida da cegueira física compõe a justa partilha definidora do destino ambiguamente heróico, precípuo da figura piedosa12 do bardo, sua moira. Também a tradição firmada pelo nome de Homero consagrou essa representação da cegueira do cantor13, provavelmente derivada daquela mesma memória odisséica, caracterizadora da persona de Demódoco.14 O domínio de um saber propriamente divino, definido por oposição ao modo precipuamente humano de constituir conhecimento privilegiadamente derivado da visão física, distingue a figura do aedo. Ele, tal qual o profeta – assim mormente Tirésias, mas também Finéias –, define-se como “visionário”, em quem a perda daquela capacidade orgânica se dá contra o dom da vidência intelectiva, a ponto mesmo de sua superação, precisamente porque apreende realidades inalcançáveis por aquela: “Cegos à luz, eles vêem o invisível...as realidades que escapam ao olhar humano...o que ocorreu outrora, o que ainda não adveio”.15 Pelas representações mesmas que o épos tece, o aedo é, então, apresentado como o depositário humano de um saber que é originariamente divino, o saber das Musas. Assim, se por um lado do equacionamento afirmado pelo elogio de Odisseu a Demódoco, a justeza e correção da narrativa do aedo implica a atribuição de sua participação no divino, por Negativamente o diz o mito de Tamiris, que por hybris de pretensões equiparadoras de seu canto com a arte divina, foi exemplarmente punido ao reverso do que constitui o dom das Musas: nele a cegueira emblematiza a punição que ressarce a devida ordem, de modo que o ganho do dom do canto para ele reverte em perda, pois sua cegueira é justo privação canora. Hino homérico a Apolo, 172. J. S. Clay. Wrath..., p. 11; Stanford. Commentaries..., p. 332. J. P . Vernant. Mito e pensamento..., p. 304s. 243 12 13 14 15 Francisco Murari Pires outro, é este reconhecimento de seu estatuto privilegiado que lhe enseja aqueles atributos respeitantes à veracidade de seu canto. Pois, justamente porque esse saber é constituído pela divindade, é um saber que pode, embora situado no âmbito do humano por meio da figura do aedo, alegar estar ainda ancorado no fato da presença, mesmo para aquelas temporalidades negadoras do tempo presente, os tempos passados, entretanto inalcançáveis pela atualidade do estar presente suposto pelas limitações da condição humana. Assim, bem o proclamou Homero, ao encetar a narrativa do Catálogo das Naus, na Ilíada: “Dizei-me agora, Musas, que tendes as moradas olímpias, pois vós sois deusas, presenciais, vistes tudo, mas nós a fama só ouvimos e não vimos nada: quem eram os comandantes e os soberanos dos dânaos; já a multidão eu não narraria e nem nomearia, nem se tivesse dez línguas, dez bocas, voz incessante e contivesse peito brônzeo, caso não as Musas Olimpíades, de Zeus egífero filhas, memoriassem quantos sob Ílion vieram. Os comandantes das naus, então, digo, e as naus todas”.16 A narrativa solicita do aedo o conhecimento do fato passado: quem eram os soberanos comandantes das forças aquéias beligerantes contra Tróia? Mas também a potência cognitiva, entende o poeta, dissocia homens e deuses. Os homens, porque situados e circunscritos ao tempo presente por sua própria condição de mortalidade, não tendo presenciado os acontecimentos de outrora, quase nada sabem acerca deles, pois apenas a difusão atualizadora de sua notícia no tempo presente alcança seus ouvi16 Ilíada, II.484-493. 244 Mithistória dos, notícia assim ambiguamente entendida como rumores espalhados anonimamente e como proclamações da fama que os celebra.17 Por compartilhar genericamente essa ignorância, o aedo reconhece que pertence à comunidade humana, sublinhada pelo nós porque a referencia em seus versos. Já os deuses distinguem seu modo de existência também pelo fato da presença transcendente.18 E onipresentes, onividentes, oniscientes. Pelo privilégio do nexo por que ele contata as Musas, o aedo distingue sua excepcionalidade heróica em meios aos humanos ao ensejo de um acesso à ciência divina do dizer poético. Ao, pois, ecoar o dizer das Musas, o canto emitido pelo aedo atualiza a memória, que dispõe em palavras a direta e imediata percepção visual dos acontecimentos. Emblematicamente, essa singularidade distintiva do cantor é representada pelo estigma da cegueira, privação de visão orgânica, por metáfora paradoxalmente negativa de formulação de um saber que supera esse modo humano de cognição (de)limitado às manifestações fenomênicas do tempo presente. Então, contraposta a sapiência divina à ignorância humana, as representações afirmadas pela invocação às Musas revestem o canto de uma aura de sacralidade, que confere autoridade à narrativa do aedo. A referenciação do sujeito da narrativa, pelo nexo do aedo com a figura das Musas, avaliza, garante, a verdade do relato dos fatos passados, mesmo que inapreensíveis 17 “Na linguagem homérica kléos têm o sentido neutro de ‘o que é ouvido, rumor’, e o sentido marcado de ‘reputação, fama, glória’. kléos, pois, implica: 1) mero ouvir dizer, fontes de ignorância; 2) fala repetida acerca de algo, fonte de fama e, então, glória; 3) no plural, feitos de canções épicas. Todos os sentidos de kléos são aqui válidos em princípio, mas o texto introduz indicadores que sustentam, contraditoriamente, ambos os sentidos de kléos como mero rumor humano e como fama divinamente inspirada” (P . Pucci, Song..., p. 37). “Aquele que pode discorrer sobre o mundo, sobre deuses e sobre o passado e o futuro possui uma linguagem especial, memória, inspiração e poder. Todas estas posses podem ser sumarizadas em uma palavra: presença. Pois, graças às Musas, o poeta ganha acesso às coisas mesmas em sua totalidade”(P . Pucci, Song..., p. 36). 245 18 Francisco Murari Pires pela atual visão humana.19 A inabalável justeza do canto épico advém, pois, do princípio de que o seu dizer é o dizer das Musas. Verdade da narrativa e participação divina do aedo mutuamente se determinam, constituindo princípio metodológico da narrativa mítica. E porque a narrativa do aedo é apenas a transmissão humana mediadora dessa palavra divina das Musas, sua verdade é inquestionável, seu saber autônomo20, como bem o teriam advertido elas mesmas, as Musas, a Hesíodo: “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Esta palavra primeiro disseram-me as deusas Musas Olimpíades, virgens de Zeus porta-égide: ‘Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações’ ”.21 Para os humanos, grosseiras e rudes criaturas, voltadas somente para a resolução das necessidades mais elementares do viver, quais sejam as preocupações alimentares da subsistência, a fala das Musas requer vôos de 19 A. Sauge (Épopée..., p. 255), que lembra os versos iniciais do Hino homérico a Selene: Musas...avalizadoras (da verdade) do canto (XXXII.1-2). Confiram-se igualmente os comentários de P . Pucci (Song..., p. 36): “As Musas sabem e controlam todas as coisas, passadas, presentes e futuras, tanto afastadas quanto próximas; sua canção, consoantemente, manifesta as coisas como elas são, em sua verdade. A canção épica celebra deuses e heróis em narrando a absoluta verdade sobre eles. Embora nem na Ilíada nem na Odisséia encontremos uma afirmação explícita de que a canção das Musas é verdade, ninguém pode pôr em dúvida a canção das Musas que vêem e sabem tudo”. J. S. Clay. Wrath..., p. 10. Teogonia, 22-8 (tradução de Jaa Torrano). 246 20 21 Mithistória elevação e sutileza espiritual inalcançáveis. A fala das Musas, para o elementar viver humano, constitui o ambíguo e ambivalente trânsito ou bloqueio, de acesso ou distanciamento, das revelações ou das mentiras símeis aos fatos. Trânsito e/ou bloqueio, acesso e/ou desvio, revelações e/ou mentiras, tudo depende do arbítrio das Musas, tudo depende de sua concessão, de seu ato de querer, bem decidido como exercício de poder, a conformar, assim, o princípio de dominação, que o modo mítico da memória efetua. Se queremos, advertem as Musas, concedemos aléthea, revelações, verdades. Mas, também se queremos, prosseguem elas, pelo contrário, iludimos inelutavelmente, pois então damos pseudéa, mentiras, só que não mentiras identificáveis enquanto tais, pois não as damos como mentiras, mas, sim, como mentiras semelhantes aos fatos, às realidades. Então, por causa da similitude aparente, pode o humano tomar como revelação verídica o que, pelo contrário, é mentira. As Musas, se elas assim o querem, e essa decisão encerra-se plenamente em seu desígnio, bem ocultam a verdade ao humano quando a revelam nas manifestações aparentes de mentiras símeis aos fatos. Não há, pois, para o humano, forma ou meio de poder distinguir revelação de ocultamento no dizer das Musas, de modo a discernir verdades ou mentiras. Precisamente porque uma tal capacidade de discernimento supõe, para o humano, a condição da presença cognitiva. E, todavia, o canto do aedo constitui-se como e enquanto memória de feitos e acontecimentos para os quais toda capacidade humana possibilitadora da presença está já totalmente excluída.22 Então, pelo discurso do mito das Musas, só há uma possibilidade aberta para a certeza do saber humano delas derivado enquanto memória: confiar que as Musas, por sua magnânima superioridade, quiseram revelar verdades, por esse justo desígnio de 22 “Tendo o canto por objeto algo que ultrapassa a finitude humana – a saber, os desígnios e as ações dos Deuses e a vida e os feitos dos heróis que outrora conviveram com os Deuses –, o segundo aspecto da dupla finalidade da invocação inicial é a garantia da verdade do canto” (Jaa Torrano. O que é mito..., p. 371). 247 Francisco Murari Pires comunicação de sua ciência aos humanos definindo-se a teleologia de sua singular existência olímpica. A verdade do mito, porque transcendentalmente derivada como o dizer das Musas, constitui-se, assim, como atributo imanente a seu discurso narrativo. Aqui, na narrativa composta pelo mito das Musas, a verdade é (in)questionada. Alcino, dirigindo-se ao herói Odisseu, que justamente acabara de contar várias aventuras passadas na viagem errante que o levara à ilha dos feácios, tece apropriados comentários a louvar a excelência narrativa de seu hóspede: “Odisseu, contemplando-te, certamente não julgamos, que semelho a algum impostor e larápio sejas, desses muitos homens de todos os lugares que a terra negra nutre, artífices de mentiras, de que ninguém mesmo percebe. Tu externas beleza nas palavras, e concebes nobres pensamentos. Uma história, como se fosses cantor perito, contastes, com os teus mesmos pesarosos infortúnios e os de todos os argivos. Mas, vamos, diga-me isto, e verídico discorras, se alguns dos divinos companheiros vistes, que junto contigo para Ílion foram e seu destino alcançaram. A noite será bem longa, inimaginável, e nem são horas de ir dormir no palácio; antes, conte-me os maravilhosos feitos. E mesmo até à diurna aurora eu agüentaria, enquanto a mim te dispusesses no salão a narrar teus pesares”.23 A mais costumeira prudência bem recomenda, pondera Alcino, a desconfiança perante desconhecidos: por todos os lugares da terra vicejam inúmeros impostores e larápios, artífices de mentiras. E princípio de suspeita tanto mais necessário, dada a precariedade da situação de suas eventuais 23 Odisséia, XI.363-76. 248 Mithistória vítimas: as mentiras que tais desqualificados contam não são detetáveis por quem as ouve. Todavia, excepcionalmente outro, assevera com firmeza Alcino, é o caso de Odisseu. Já pela consideração do que sua pessoa mesma manifesta aparente assegura-se tal certeza de conhecimento: especialmente por suas ações, bem se conciliam as virtudes da apropriada conformação discursiva com as da devida nobreza de espírito. E a certeza deste conhecimento Alcino firmara, permanentemente, ao longo de todo o tempo e de toda a presença atuante de seu hóspede. A confiança que depositava na honorabilidade de sua pessoa advinha pela execelência de todos os seus atos, manifestação cabal da nobreza de sua condição aristocrática, certamente um dos áristoi que se distinguem superiormente entre os homens. E, confiança tão plena da apreciação de sua nobreza, que se dispusera a comprometer vínculos familiares, oferecendolhe mesmo a mão de sua filha. Conhecimento da qualidade excepcional de Odisseu não apenas restrito a Alcino, mas igualmente partilhado também por Arete, que igualmente externara já perante os nobres feácios sua melhor apreciação quanto à boa figura física e virtuosidade de espírito de seu hóspede. E, conhecimento ainda também amplamente difundido pela comunidade feácia, seja no nível superior de suas autoridades conselheiras partícipes da vida palaciana, nível este bem reapresentado pelas intervenções do ancião Equeneu, seja no âmbito mais genérico do povo, enquanto assistência de assembléias. Assim, desde o princípio, gozava Odisseu da mais favoravelmente receptiva disposição dos feácios todos. Precisamente, tal era a obra da graça que Atena concedia à presença do herói em Ítaca. Obra da predileção do favor divino, que justamente finalizava propiciar-lhe a conquista das devidas mercês honoríficas com que os feácios o agraciariam. E, assim, o respeito reverente destes pela honra do herói ensejaria também igual respeito reverente da parte dos itacenses ao seu exitoso rei regressante. Agora, ainda por esta outra ação – a narrativa de suas histórias –, dava igualmente Odisseu manifestação de suas excelências, pois revelava 249 Francisco Murari Pires dominar com mestria também a ciência a ela apropriada: a arte dos aedos. Quando, então, Alcino comenta elogiosamente a excelência do desempenho narrativo do hóspede ao contar as histórias de sua viagem, a confiança na veracidade de suas palavras estava dada já desde o princípio. Suas razões confluem e condensam-se pela progressiva consciência afirmadora da condição aristocrática e identidade heróica do estrangeiro: este princípio afiança aquela qualidade discursiva. A certeza do pronunciamento de Alcino não advém, então, unilateralmente como descoberta de inferência especificamente respeitante à sua perícia narrativa. Há, aqui, que nuançar as magníficas interpretações de Walsh.24 Pois, diversamente do que supõe a argumentação deste crítico, não é absolutamente imperativo interpretar-se as colocações feitas por Alcino no sentido de que sua afirmação da veracidade do relato de Odisseu derive, exclusiva e necessariamente, porque só assim se explica, da excelência de sua performance narrativa. Ora, não só Alcino, como ainda toda a comunidade feácia, dispunha, sim, de um certo conhecimento aparente da pessoa do estrangeiro, constituído por meio da apreciação do caráter sapiencial que suas ações revelavam, e conhecimento que bem ensejava projetar confiança na veracidade de seus relatos. Então, a assertiva que afirma esta veracidade é também produto da apreciação de sua excelência narrativa justamente porque é sua condição mesma. Advém, tanto resultando singularmente desta excelência, quanto, por princípio e genericamente, da excepcionalidade heróica global da apreciação da figura de Odisseu. Uma questão, todavia, permanece ainda elidida por tais considerações analíticas: a disposição pessoal do herói comprometida com a veracidade de seu relato. Assim, sempre que Alcino o solicitou ao herói, bem o advertiu a observar esse condigno preceito.25 E, novamente agora, nem bem acabara de elogiar sua excelência narrativa, mais uma vez o reiterou, 24 25 G. B. Walsh. Varieties..., p.7s. Odisséia, VIII.388; 548. 250 Mithistória ao reclamar-lhe o prosseguimento de suas histórias: “Mas, vamos, diga-me isto e veridicamente discorras”.26 Ter-se-ia Odisseu disposto a narrar a verdade? Que imperativos o comprometiam a um tal dever de dignidade honorífica reclamado por Alcino? Pelo que bem insistem as advertências de Alcino, ficavam implicados os imperativos de dever requeridos pela reciprocidade dos nexos da hospitalidade. O acolhimento hospitaleiro que Alcino dispensa ao herói prima pela magnanimidade generosa. Assim, então, igualmente a reclama do hóspede. Tal magnanimidade de disposição benévola ao firmar vínculos de hospitalidade compõe também a honorabilidade dos que são áristoi, quer Alcino, quer Odisseu. E, todavia, esse reclamo objetivo posto pelos deveres dos nexos hospitaleiros supõe a subjetividade com que ambos os seus pólos estimam e decidem o modo por que atualizam sua benevolência. Assim, admitem também a mentira, como tal benesse apreciada. É bem o que fez Odisseu ao assumir nobremente para si a reprimenda com que Alcino censurara a filha, por não ter devidamente cumprido seu dever de hospitalidade. Em última instância, a questão da verdade da história narrada no âmbito do discurso mítico, aqui apreciada enquanto narrativa do herói, remete para o arbítrio do sujeito que a narra, em conformidade com a ordem total de seus deveres de honorabilidade nobilitadora. O ser aparente, manifestado pelas ações de Odisseu, afirma Alcino, compõe, em geral, a forma apropriada das palavras externadas com a nobreza devida dos pensamentos por ele concebidos.27 Assim, também, em sua performance narrativa: 26 27 Odisséia, XI.370. Confiram-se os comentários de N. Austin (Archery..., p.199-200) a esta passagem odisséica: “Alcino igualmente cumprimenta o poeta substituto, e a ênfase é posta novamente tanto no espírito interior quanto na aparência física exterior: não és um daqueles furtivos embusteiros que costuram mentiras. Há em tuas palavras uma forma (morphe: compare-se o dito mesmo de Odisseu sobre a capacidade das palavras de conferirem morphe: VIII.170) 251 Francisco Murari Pires “Uma história, como se fosses cantor perito, contastes, com os teus mesmos pesarosos infortúnios e os de todos os argivos”. O relato de Odisseu é similar, por suas virtudes, aos cantos narrativos dos aedos: dotado igualmente de perita ciência, epistamenós.28 Assim, comenta Walsh, se “descreve a competência do cantor: narra com conhecimento porque diz a verdade, e com perícia porque a diz com perceptível beleza”.29 A duplicidade de denotações que epistamenós supõe, então, bem qualifica apropriadamente a excelência narrativa do cantor: a arte formal da composição poética, mais a veracidade do conhecimento factual. E tanto mais que esta ciência do fato narrado, no caso do aedo, não deriva da sua presença cognitiva.30 De modo que o aedo, embora não presente aos acontecimentos, bem os conhece, como o herói que deles participa e, por isso mesmo bem pode afiançar sua veracidade. E, assim, o aedo, dispondo também do conhecimento que é próprio do herói, compõe ambas aquelas virtudes. Na Odisséia, os relatos das histórias contadas pelo próprio personagem heróico – Odisseu – comparecem (e se atualizam poeticamente) identificados com as narrações do canto do aedo, de modo que as vozes de uma figura se tomam (e confundem) pelas da outra.31 Odisseu, figura em e teus phrenes interiormente são bons”. O mesmo autor lembra ainda que, similarmente a esse louvor da figura de Odisseu, enquanto contador de histórias, por que se harmonizam em plena congruência a beleza da forma exterior das palavras com a correção moral de seus pensamentos e desígnios interiores, também Arete assim tece loas ao herói, por sua vez apontando essa mesma congruência harmônica de sua beleza física exterior com a moralidade de seu espírito interior: XI.336. Além de Alcino na presente passagem, também Eumeu louva a excelência poética das histórias odisséicas, equiparando o herói pela competência do aedo: confiram-se XVII.518 e XXI.404. 29 Walsh. Varieties..., p. 7. 28 30 31 Vejam-se os comentários respeitantes ao elogio que Odisseu dirige a Demódoco. Stanford, em seus comentários ao elogio de Odisseu por Alcino (à p. 395), sugere que “Homero pode ter pretendido aqui dar um toque de furtivo humor, pois que é de fato ele, um aedo, que está contando a história de Odisseu”. 252 Mithistória que se enfeixam herói-ação e narrador-memória da Odisséia, é também aedo de sua história.32 Transferida, entretanto, esta apreciação do aedo para Odisseu, uma diferença de imediato se afirma: necessariamente tem ele ciência do fato narrado, justamente porque a ele presente enquanto seu participante. Pois, o que o herói “conta são os seus mesmos pesarosos infortúnios”. De modo que a possibilidade da narrativa verídica está dada por princípio para o relato do herói. Então, mais especialmente, elogia Alcino na excelência narrativa de Odisseu a virtude que é antes singularmente própria do aedo, a arte formal da composição poética. E, assim, o herói, dispondo também da arte que é própria do aedo, compõe ambas aquelas virtudes. Então, no enfático louvor que Alcino tece das récitas de Odisseu ao asseverar a verdade de suas histórias, o rei tanto mais aprecia a excelência 32 Observa H. Fränkel (Poetry..., p. 9-10), tendo por referência a cena da embaixada a Aquiles, quando os enviados de Agamêmnon encontram Aquiles a cantar em sua tenda as famas dos heróis, que na Ilíada os aedos nunca são mencionados, e são os próprios heróis que contam as histórias de seus feitos ou dos de seus antepassados, o que de certa forma indicaria que tais relatos ou narrativas teriam constituído como que os estágios preliminares da canção épica. De certa forma, a Ilíada retrataria essa temporalidade antiga, onde a categoria do aedo ainda não se constituíra socialmente. Por um lado, é bem certo que a figuração do herói que conta (e vangloria-se pelas) as histórias de seus feitos é consoante com um modo de fundamentação afirmativa de sua identidade, a assim proclamar distintiva excelência superior. Por outro lado, a temática encenada pela Ilíada não parece ensejar as lembranças da figura do aedo, como pelo contrário o propicia a Odisséia. Pois, o que faria um aedo em um contexto de acampamento de guerra? Outras categorias demiúrgicas ainda comparecem nesse cenário beligerante, pelos reclamos precípuos de seus serviços especiais, tais como os médicos, os profetas-áugures, os arautos ... e mesmo peritos carpinteiros (não seria tal Epeio que com Atena construiu o cavalo de pau?) Nos cenários e situações supostas pela Ilíada ainda se projeta a imagem, ou aparência (dis)simulada, de um profeta – Calcas (Posídon) – a combater como guerreiro, mesmo assim ambiguamente apreciada essa sua presença no campo de combate porque totalmente paradoxal e inusitada. Mas seria assim similarmente concebível lá situar um aedo, tanto mais cego? 253 Francisco Murari Pires do herói quanto este a consuma verídica apesar dos ensejos usuais daquela situação narrativa por que indivíduos inescrupulosos as exploram disseminando antes só falsidades: “Odisseu, contemplando-te, certamente não julgamos que semelho a algum impostor e larápio sejas, desses muitos homens de todos os lugares que a terra negra nutre, artífices de mentiras, de que ninguém mesmo percebe”. Se irrelevada por um momento a contextualização ética por que Alcino concebe esse ajuizamento, não há como assinalarem-se melhor as ambíguas ironias de uma memória poética odisséica tanto mais intrigantes porquanto se trata de herói distinguido precisamente pelo primor da excelência astuciosa, de que a composição de histórias mentirosas compõe um dos recursos ludibriadores. Um herói que bem perpetra mentiras por irônicas declarações afiançadoras de verdades.33 Um herói de quem o poeta, por vezes, assevera mesmo que, quando já de retorno a Ítaca, a por em ações dissimuladas os desígnios de sua reconquista régia, mente quando conta histórias falsas de suas viagens.34 Odisseu, aedo de suas histórias, compõe palavra poética similar ao dizer das Musas, ambígua e ambivalentemente revelando/ocultando verdades e/ou mentiras. 33 Vejam-se os comentários de Higbie (Heroes’..., p. 72): “Odisseu mente mesmo quando assegura a seu ouvinte que ele está-lhe dizendo tudo: por exemplo a Eumeu (14.192), a Laertes (24.303). Compare-se a asserção de verdade que a deusa Demeter utiliza quando ela se dá um nome e história falsos ao ser interrogada em Elêusis (Hino 120134). Também Hermes reclama não saber como contar mentiras em um discurso a Zeus (Hino 368-9; confira-se Higbie, Heroes’ 103, n. 12). Vejam-se a fala e história contada por Odisseu quando de seu desembarque em Ítaca (13.254), mais as mentiras/verdades odisséicas especialmente na história cretense contada a Penélope com os comentários de Higbie (Heroes’..., p. 72 e 83). 254 34 Mithistória História Estobeu, nos Florilégios35, guardou uma máxima anedótica atribuída a Tales de Mileto, em que o filósofo, inquirido sobre qual era a distância existente entre a verdade e a mentira, teria respondido: “Tão grande quanto a distância entre o olho e o ouvido”. Máxima de formulação evidentemente ambígua36, pois, se aparentemente figura tal distância como fisicamente mínima, dada a proximidade facial entre olhos e ouvidos, afirma, efetivamente, essa distância como epistemologicamente máxima, ao opor radicalmente esses dois órgãos agentes da percepção humana enquanto fontes alternativas constituidoras de conhecimento: o desvio mínimo na opção e identificação de uma dessas fontes – a preterição do ver pelo ouvir –, acarreta, abre o abismo que perde inelutavelmente a verdade, afastada precisamente por sua negação, a mentira. A máxima anedótica aponta, assim, a confiança epistemológica do lógos helênico na percepção visual da manifestação fenomênica captada pelo olhar, contra a desconfiança na transmissão memorizada recebida pelo ouvir, enquanto fonte de derivação do saber, e o saber autorizado pelo atributo da verdade. Contra a intervenção de um outrem implicada pelo ouvir – o que submete a verdade do relato ao arbítrio dessa mediação, e delimita a passividade da operação de constituição do conhecimento –, a máxima de Tales reage, consagrando a plena autonomia do sujeito que apreende a verdade como ação: pela e na imediatez de sua própria manifestação fenomênica, captada pela ação visual perceptiva do sujeito. Máxima que define uma constante epistemológica do lógos helênico. Assim, em Xenófanes de Cólofon, ao asseverar que “para saber é preciso ter visto”, afirma-se a percepção visual como condição necessária para a 35 36 III.12.14. Hartog. Le miroir d’ Hérodote, p. 273. 255 Francisco Murari Pires derivação do conhecimento. Igualmente em Heráclito de Éfeso, quando sentencia que “os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos”. E máxima que alcança formulação axiomática pela filosofia aristotélica, ao abrir-se a Metafísica: “Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal disso é o prazer que nos proporcionam os nossos sentidos ... e, acima de todos os outros, o sentido da visão. Com efeito, não só com o intento de agir, mas até quando não nos propomos fazer nada, pode-se dizer que preferimos ver a tudo o mais. O motivo disto é que, entre todos os sentidos, é a visão que põe em evidência e nos leva a conhecer maior número de diferenças entre as coisas”.37 História/Tucídides A obra da história tucidideana, ao compor sua narrativa finalizando alcançar um saber sobre as ações humanas, depara-se, de imediato, com uma oposição que distingue duas categorias temporais: há o presente, consubstanciado pelas ações que efetivam a guerra atual, a opor peloponésios e atenienses; e, por ele conseqüentemente demarcado, há também o passado, que comporta, portanto, toda a anterioridade temporal suposta pelo presente da guerra. Ora, o passado é, por essência, o domínio do tempo, que nele se condensa. E o passado comporta diferenciações temporais conforme sua longevidade, sua extensão de anterioridade: há realidades que são meramente anteriores às do presente, e há realidades que são ainda mais antigas. Que razão precisa, entretanto, melhor fundamenta essa afirmação tucidideana acerca do impedimento de constituição de um saber clarividente que pesa sobre tais realidades passadas, o estilo elíptico de sua escrita não revela expressamente. Uma primeira razão, todavia, fica já implicada pelas 37 Metafísica, I.1.980a. 256 Mithistória declarações antecedentes, logo na abertura do Proêmio, as quais vinculam o presente da guerra dos peloponésios e atenienses à contemporaneidade pessoal do sujeito da narrativa, Tucídides de Atenas: ele a começou logo à sua eclosão. De modo que o presente bem se define pela condição da presença: o poder estar presente e, pois, presenciar os fatos. O passado, então, pelo contrário, fica estigmatizado justamente pela inviabilidade dessa presença cognitiva e, pois, pela impossibilidade de derivar seu saber a partir de uma visão direta, transparente, iluminada pela clareza mesma da manifestação fenomênica dos acontecimentos. Um tal impedimento cognitivo é, portanto, intrínseco ao passado, o domínio temporal demarcado pela impossibilidade da presença. Mas, dada a sugestão daquela significação cumulativa a contrastar tempos anteriores e tempos ainda mais antigos, é especialmente pela sobrecarga de temporalidade deposta sobre as realidades passadas, que melhor se compreende outra razão a ampliar o alcance de uma tal assertiva acerca do impedimento de constituição de um seu conhecimento cristalino, que prime pela clarividência de suas certezas. Acerca dos tempos passados, esse domínio da inviabilidade cognitiva fundada na condição atual da presença experienciadora, sabe-se apenas pelas tradições (akoaí) que os memorizam: histórias populares que bem se ouvem e contam, a difundir seu conhecimento pela sucessão das gerações humanas, em cadeia de transmissão que alcança o tempo presente. Então, singulares dificuldades cercam, e comprometem, o conhecimento do passado. Antes de tudo, tal fato tem a ver com a intrínseca efetividade deletéria do tempo, cuja ação prejudica a percepção dos tempos passados, similarmente ao modo como ela também desbasta as formas das coisas antigas, apagando seus contornos e traços figuradores, desfazendo a precisa identidade de suas imagens. Diz Heródoto que as obras dos homens, suas ações e feitos, realidades consumadas em tempos passados, tornam-se esmaecidas 257 Francisco Murari Pires com o tempo (tõ chróno exítela génetai).38 Obnubila-se sua concepção na medida em que se esvai, desvanece, a lembrança de sua manifestação. Por essa razão mesma, a obra da História herodoteana propõe-se, justamente, como aquela modalidade de memória, monumento público, que finaliza superar tal adversidade. Também Tucídides reconhece a fragilidade da memória humana. E de suas limitações e impotências no âmbito da capacidade mnemônica individual, ele as diz já mesmo no que respeita às realidades presentes, recémocorridas e presenciadas. Assim, bem admite as dificuldades de reconstituir em sua narrativa as ações consumadas na guerra contemporânea – quer os discursos pronunciados, quer os atos praticados –, pois, em princípio, dependentes da memória das pessoas que as presenciaram.39 Todavia, não é propriamente por este aspecto das razões limitadoras de uma (in)capacidade mnemônica, que Tucídides alerta as aporias especialmente pendentes sobre o conhecimento do passado. Mesmo porque estas o cercam igualmente quando as coisas do passado têm ainda atualidade e não tiveram sua memória apagada pela ação do tempo.40 A questão tem, aqui, bem mais a ver com os modos positivos de sua memorização, do que com as vicissitudes negativas de seu esquecimento, antes com as significações que com o tempo se aderem à memória, do que com as perdas que por ele advém. Ou melhor, tem, aqui, a ver com esta negatividade apenas enquanto condição daquela positividade. Logo na abertura da denominada “Arqueologia”, Tucídides começou por advertir a impossibilidade de constituição de um saber sobre os fatos do passado que primasse pela clareza e certeza de suas verdades: “De fato, era impossível apreender com clareza as realidades anteriores e as ainda mais antigas”.41 38 39 40 41 Histórias, I.1. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.3. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2. 258 Mithistória Ao encerrar essa mesma “Arqueologia” apontou agora as dificuldades que, se não inviabilizam a consecução narrativa desse saber, pelo menos o desaconselham: “Então, tais foram os tempos antigos como eu os apreendi, dadas as dificuldades que eles apresentam de confiar-se em todo seqüente indício. ... Com base nos indícios enunciados, não se equivocaria quem julgasse os fatos de modo geral, assim tais como eu os abordei, e não confiasse antes nem no que a seu respeito os poetas celebraram tendo em vista adornos engrandecedores, e nem no que os logógrafos compuseram tendo antes em vista o que é mais do agrado do auditório ao que é mais verdadeiro, dado que eles são incomprováveis e a maioria deles, sob a ação do tempo, não sendo de se confiar em vista do caráter fabuloso por eles ganho; entretanto, penso que ficou suficientemente apreendido a partir do que são os sinais mais evidentes em se tratando das coisas antigas”.42 A emissão de um pronunciamento pessoal delimita, pois, a possibilidade de um discurso cognitivo que pretenda apreender o passado. Essa apreensão não pode almejar a certeza de verdade da visão transparente. Seu poder de afirmação consiste de convicção: ato de atribuição de crédito, de confiança (pisteúo). A convicção, por sua vez, não é arbitrária nem constitui crença, pois se sustenta e deriva da mediação de um exame arrazoador operado por indiciamentos (tekmería). Mas o passado, porque domínio do tempo, reveste-se de fabuloso (mythõdes), o que o torna inerentemente in-confiável, não merecedor de crédito (á-pistos). O passado é in-comprovável (an-exélegkta). Sobre o passado, campo de negatividades, emitem-se entendimentos de julgamento pessoal (nomízo), tecem-se pronunciamentos alicerçados em operações indiciadoras da verdade. Constituindo-as, então, sucedaneamente como provas, na medida possível de evidência que os tempos antigos permitem (ek tõn epiphanestáton semeíon hos palaià einai), define-se individualmen42 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.1-.21.1. 259 Francisco Murari Pires te, como manifestação do “eu” referenciador do sujeito do discurso cognitivo do passado, uma decisão, um pronunciamento declarativo de sua verdade confiável. Então, porque o saber possível sobre o passado aspira no máximo à convicção, é preferível confiar na razão, do que meramente instaurar crenças. É preferível, afirma expressamente Tucídides, fiar-se única e exclusivamente nos pronunciamentos singulares, por ele mesmo emitidos sobre o passado, afiançados pelos ditames da razão apuradora da verdade, a acreditar nas histórias fabulosas transmitidas por poetas e logógrafos. Porque estas não passam de crenças. O hinear dos poetas atende à preocupação laudatória do engrandecimento heroicizante. A narrativa dos logógrafos contempla apenas o propósito hedonístico de entretenimento ditado por seu auditório. A seus respectivos propósitos, ambos, quer poetas quer logógrafos, sacrificam a expressão da verdade, deslocando-a e tomando-a pelo fabuloso. Pelo contrário, o julgamento tucidideano distingue sua diferença firmando seu comprometimento com a investigação averiguadora da verdade (he zétesis tes aletheías). Toda a fonte e dependência de confiabilidade desse julgamento consiste da constituição desse campo de racionalidade argumentativa estendido sobre o passado. Mas uma tal rede de racionalidade projetada sobre o passado tece pronunciamentos singulares que, justamente, encerram a investigação dessa temporalidade, estimando a sua suficiência (heuresthai dè hegesámenos ek tõn epiphanestáton semeíon hos palaià einai apochróntos): eles abrangem e fecham todo o conhecimento racionalmente confiável possível sobre o passado. De modo que a “Arqueologia”, antes do que propor o princípio de um saber respeitante ao passado, tenciona, pelo contrário, demarcar o seu fim.43 Logo na abertura da denominada “Arqueologia”, Tucídides advertira as aporias que pesam sobre o conhecimento do passado: 43 F . Hartog (Miroir..., p. 276) comenta o irônico paradoxo instaurado pelo resgate das concepções metodológicas tucidideanas pela historiografia moderna: “Thucydide, pour 260 Mithistória “De fato, era impossível apreender com clareza os tempos anteriores e os ainda mais antigos devido à extensão temporal; mas, pelos indícios a partir dos quais cheguei a uma convicção em um profundo exame, considero que eles não foram grandes, nem quanto às guerras nem quanto aos demais”.44 O passado é, por essência, o domínio do tempo. Então, porque a plenitude temporal o singulariza inviabilizando a condição da presença cognitiva, pesa uma aporia sobre o seu conhecimento: é impossível a apreensão cristalina, transparente de clareza (saphõs heurein). A percepção do passado fica, portanto, limitada à intervenção de um julgamento (nomízo) por decisão de um entendimento pessoal, expressão das considerações do exame argumentativo do sujeito investigador. Assim, a emissão de um pronunciamento pessoal delimita a possibilidade de um discurso que tencione apreender o passado. Essa apreensão não pode almejar a certeza da visão transparente. Seu poder de afirmação consiste de convicção: ato de atribuição de crédito, de confiança (pisteúo). Assim, se sobre as realidades passadas não é possível alcançar um saber cristalino de certezas, abre-se, entretanto, substitutivamente para o sujeito da narrativa, a possibilidade de firmar convicções, tecer entendimentos, que se qualificam antes pela confiabilidade (pisteusai). E, como não se dispõe dos fatos derivados da presença, parte-se substitutivamente de outros elementos: os indícios (tekméria) a essas realidades respeitantes. Por eles, então, o sujeito da narrativa fundamenta as convicções de seus específicos pronunciamentos assertivos. O que requer, de sua parte, uma extensa operação examinadora (epì makrótaton skopounti). qui seule l’histoire contemporaine esta faisable, va, de manière paradoxale, être promu au tout premier rang des historiens de l’Antiquité (au XIXe siècle), par des hommes, pour qui l’histoire ne peut se faire qu’au passé: Thucydide historien du present devient un modèle pour des gens, les historiens positivistes, qui, par histoire, entendent histoire du passé”. 44 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2. 261 Francisco Murari Pires Quando denuncia as faltas, próprias aos modos tradicionais de memorização do passado, um conceito bem expressa, por suas significações metafóricas, o escopo dos reclamos metodológicos tucidideanos: (a)basanístos. Assim, se para que o ouro metálico revele a (im)pureza de sua composição, há que testá-lo por sua pedra-de-toque, o basalto (básanos), e se, para que o escravo mentiroso confesse a verdade, há que se submetê-lo à tortura imperiosa, também para que as tradições sobre os tempos passados firmem suas verdades, há que se cuidar da investigação que, bem as indiciando por meio de um exame apurado, possa obrigar seus pronunciamentos mesmos a delatarem suas próprias falsidades. Só as tradições que passam e resistem a uma tal averiguação indiciadora das verdades por elas proclamadas podem ser acolhidas como genuíno conhecimento. Então, para a História, concebida como modalidade narrativa das ações humanas comandada pelos reclamos da verdade do relato, a justa apreciação dos tempos antigos requer, assevera Tucídides, a mediação de um exame investigador, a apurar e depurar as tradições que os memorizam. Um tal exame compõe-se essencialmente de operações de indiciamento, constituição de indícios (tekméria): “Mas pelos indícios a partir dos quais cheguei a uma convicção em um profundo exame, considero ... ;45 então, tais foram os tempos antigos como eu os apreendi, dadas as dificuldades de se confiar em todo seqüente indício46; com base nos indícios enunciados não se equivocaria quem julgasse os fatos, de modo geral, assim tais como eu abordei”.47 A proclamar a grandeza superior da Guerra do Peloponeso relativamente às anteriores, Tucídides postula a objetividade de um tal pro45 46 47 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.1.2. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20.1. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21.1. 262 Mithistória nunciamento: ele advém determinado não pelas subjetividades com que as pessoas apreciam a magnitude das guerras, mas, sim, pelas evidências do mero exame observador dos acontecimentos mesmos.48 Daí, a melhor informar o que entende por um tal exame a partir da observação dos acontecimentos mesmos, Tucídides expõe os princípios do método por que os reconstituiu em sua narrativa. Distingue, então, duas modalidades de acontecimentos: os discursos pronunciados e as ações praticadas. Bipolaridade esta, contrastiva e complementar, de palavras e ações, enquanto categorização permanente do pensamento helênico, que enseja a Tucídides ordenar quiasticamente a trama de suas considerações metodológicas49, bem compondo figuras discursivas de antítese e inversão. Começa pelos discursos: “E quanto aos discursos que cada uma das partes pronunciou, quer às vésperas da guerra, quer já no seu decorrer, era difícil rememorar a exatidão mesma das coisas ditas, tanto para mim, quando os ouvira pessoalmente, quanto para os que, por sua vez, me informavam. Foi assim como me pareceu quais seriam as coisas especialmente apropriadas que cada uma das partes discorreria acerca de cada uma das situações presentes, que os formulei, mantendo-me o mais próximo da proposição total das coisas efetivamente ditas”.50 Ponto inicial das considerações, uma constatação objetiva: a dificuldade da reprodução memorizada dos discursos, se regulada pela exigência da exatidão (chalepòn tèn akríbeian autèn tõn lechthénton diamnemoneusai). Objetiva porque genérica, ocorrendo com todas as pessoas que, tendo escutado os discursos, poderiam reproduzi-los de memória: seja o historiador, 48 49 50 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.21. A. L. A. Prado, p. 18ss. A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.1. 263 Francisco Murari Pires para os discursos a que ele mesmo esteve presente, sejam seus informantes, para aqueles discursos que, dada sua ausência, junto a aqueles, que os presenciaram, se inteirara. Assim, se por um lado, o princípio fundante da presença cognitiva enquanto fonte derivadora do informe do ocorrido é plenamente atendido, por outro, o preceito da reprodução exata das coisas ditas não pode ser acolhido, dadas as limitações da capacidade mnemônica humana. O relato mesmo dos discursos fica, portanto, prescindido enquanto procedimento de sua reconstituição narrativa, dado tal impedimento de exatidão de sua memória. Então, “perda” de objetividade na performance narrativa tucidideana que a crítica moderna, projetando a identidade da excelência de sua autoridade historiográfica, reluta em admitir.51 Uns, praticamente ignorando o que Tucídides mesmo literalmente expressara (ater-se-ia próximo apenas da proposição geral efetivamente pronunciada), apegaram-se à tese de que ele, em sua reconstituição dos discursos, buscara, e mesmo empenhara-se, em reproduzir mais ou menos exatamente os discursos do modo mesmo como tinham sido efetivamente pronunciados, a ponto, inclusive, de tomálos como fatos empíricos da história por ele narrada.52 Já outros, algo mais concessivos às evidências críticas mais contundentes do texto tucidideano, tentaram salvar pelos menos algum grau maior de reprodução original presente na narrativa do historiador, provavelmente os argumentos mesmos empregues pelos oradores em seus discursos, assim eliminando concomitantemente outro grau de extensão narrativa de extravazamento criativo do autor.53 51 52 Para estas considerações, confiram-se os comentários de Woodman, Rhetoric .... p. 11ss. Woodman (p. 11) refere-se às interpretações de Gomme e de Dover e, em especial menção, aos trabalhos de D. Kagan. Confiram-se as referências de Woodman (p. 12 e nota 59 à p. 53), sobretudo no que respeita à posição sustentada por Dover. Essa mesma preocupação em salvar a objetividade da performance narrativa tucidideana em sua reconstituição dos discursos transparece nítida e enfaticamente no artigo de Swain (p. 42ss); a mesma inquietação move também as análises de Proctor (pp. l50ss), polarizadas em firmar uma outra lição 264 53 Mithistória Mas preocupação esta de salvar a “objetividade” historiográfica tucidideana que parece entender por tal categoria a elisão da presença e da ação do sujeito em sua narrativa. Tese algo ingrata de ser defendida na medida mesma em que o expresso pronunciamento tucidideano afirma a objetividade reclamada como produto da ação intelectiva do singular sujeito da obra, Tucídides de Atenas, que na reconstituição dos discursos valeu-se do entendimento tecido por seu particular parecer. Os supostos ancoradores, e mesmo aprisionadores, dessa relutância da crítica moderna em admitir a narrativa dos discursos como criação tucidideana, foram bem apontados por Woodman: a reprodução do discurso literal comporia seu ideal historiográfico de reconstituição narrativa e, pois, definiria seu padrão de objetividade concernente a essa modalidade de acontecimento. E que se trata de um suposto arraigado na crítica moderna, e condicionado por suas concepções de objetividade, pode ainda ser apreciado pelo fato de que, para os antigos, a perspectiva do elemento de criação tucidideana não causava maior espanto ou rejeição, pelo contrário, entendendo mesmo a história como gênero literário, cabalmente afirmavam os discursos tucidideanos como “invenções”. Assim, Dionísio de Halicarnasso, em seu tratado crítico sobre Tucídides. Mas, pergunta-se ainda Woodman, seria mesmo esse o ideal de exatidão dos historiadores antigos? Quantos deles consagraram, em suas narrativas de caráter historiográfico, as reproduções, literais e completas, dos discursos historiados? Deteta, apenas, o caso de Catão que, nas Origens, inseriu cópias de seus próprios discursos. Exceção altamente significativa, dada a excepcionalidade de suas condições possibilitadoras. Assim, conclui Woodman, “discursos literais e historiografia clássica são termos contraditórios”.54 E, todavia, mesmo que não constituísse propriamente seu ideal de reconstituição narrativa historiográfica, a questão, senão o reclamo, da rede leitura do manuscrito tucidideano (tõn alethõs “legónton” em vez de tõn alethõs “lechthénton”). 54 Woodman. Rhetoric..., p. 13. 265 Francisco Murari Pires produção exata do discurso efetivamente pronunciado colocava-se, de princípio, para a história de Tucídides, pois ele faz partir suas considerações a esse respeito justamente da impossibilidade de realizá-lo. De alguma instância, e de algum sujeito, o reclamo era postulado. Assim, os preceitos das teorizações retóricas da sofística contemporânea, com Antifonte mesmo, mestre admirado e exaltado por Tucídides, o proclamam.55 E já Heródoto, ao introduzir sua exposição narrativa dos discursos dos três persas que debateram, à sucessão de Cambises após o massacre dos magos usurpadores, o melhor regime político a ser adotado, reclama enfaticamente a realidade fatual dos mesmos, apesar da incredulidade de alguns helenos.56 Seja como for, ideal ou não, a história tucidideana prescindiu um tal modo de reconstituição narrativa dos discursos. Porque era insuperável a dificuldade posta pelo impedimento das limitações da capacidade mnemônica humana, Tucídides descortina um modo outro de reconstituição dos discursos que a contorna e, assim, sela, desde o início para a historiografia antiga, a sua dissociação desse reclamo de objetividade. Pelo modo proposto por Tucídides, permanece a condição fundante da presença cognitiva que informa o ocorrido. Permanece também o preceito, porém não o ditame, da precisão de reprodução das coisas efetivamente ditas nos discursos, só que, agora, reduzido apenas ao âmbito de sua proposição discursiva global em termos de máxima proximidade possível. Assim, enquanto dados de informe para a reconstituição narrativa, o historiador dispõe do que foram, para cada e todos os discursos presenciados, suas precípuas proposições gerais, formuladas pelo discurso como um todo, em sua globalidade discursiva (tes xympáses gnómes tõn alethõs lechthénton).57 55 56 57 Confira-se Antilogias, IV.1. Histórias, III.80. Para o entendimento de “tes xympáses gnómes” vejam-se: os comentários de Woodman, referindo as análises de De Ste Croix, às p. 11ss; e as críticas a essas mesmas análises por Swain (p.42ss) e por Proctor (p.151ss.). 266 Mithistória A partir dessa supostamente dada proposição ou desígnio geral de cada particular performance discursiva (gnóme), o historiador, então, irá compor um parecer (dokeúo), pelo qual aprecia quais seriam as coisas especialmente apropriadas que cada uma das partes discorreria acerca de cada uma das situações presentes, mantendo-se o mais próximo da proposição total das coisas efetivamente ditas. Assim, a composição tucidideana desse parecer (re)constitui, então, em sua história, sucedaneamente o discurso efetivamente pronunciado. Mas, o que entender por as coisas especialmente apropriadas (tà déonta málist’ eipein) para uma dada performance discursiva? John Finley Jr., em um de seus estudos sobre o historiador58, formula o entendimento de que as concepções tucidideanas respeitantes à reconstituição dos discursos, efetivadas em sua narrativa, estejam impregnadas pelas orientações político-retóricas da prática discursiva sofística. Particularmente, assevera que tà déonta admite uma especial conotação, imbricadamente política e retórica: dá conta da estimativa e avaliação conjectural que o orador particular, proponente de uma singular moção política individual por meio de uma dada performance discursiva, deve tecer do quadro contextual circunstanciado – forças e elementos sociais e individuais em jogo, princípios e orientações políticas em confronto, caracteres e comportamentos humanos envolvidos –, o qual bem circunscreve o campo fatual objetivo de determinação histórica dessa proposição política individual. Assim, o orador, concatenando esse exame conjectural do específico contexto político-retórico em que se insere e integra seu discurso, tenciona conformar sua força argumentativa segundo os melhores preceitos de êxito persuasório. É esse desígnio que o saber sofístico contempla: a retórica como instrumento de atualização de um pensamento analítico, embasador de uma política individual. Então, na prática oratória sofística, a composição do discurso, enquanto formulação discursivo-persuasória de uma definida proposição política (gnóme) individual, deriva conformativamente desse exame analítico 58 Finley Jr. (l947), p. 95-102. 267 Francisco Murari Pires apreciador das coisas por sua situação contextual reclamadas, apropriadas, de serem ditas (tà déonta), tendo justamente em vista finalizar aquela proposição. De modo que, em princípio, esta singular gnóme de uma política individual bem responda pela apreciação analítica daquelas déonta. Ora, a (re)constituição tucidideana dos discursos apresentados em sua narrativa parece supor essa mesma concepção sofística, apenas apresentando-a no seu sentido inverso de derivação, como, de resto, bem cabe à sua específica condição de reconstituição discursiva: dada a gnóme efetivada pelo discurso particular pronunciado, o que circunscreve uma certa proposição política individual bem definida (tal orador em tal ocasião), estimar, por uma análise retórica conjectural, os reclamos discursivos apropriados às suas circunstâncias contextuais, ou seja, as déonta a que aquela gnóme responde. Assim, deslindadas as interações que determinam a gnóme, dada e posta pelo discurso particular enquanto produto das déonta inferidas analiticamente, a narrativa do historiador (re)constitui as falas do discurso que potencialmente atualizam tais interações. Poder-se-ia, então, entender que o modo tucidideano de (re)cons-tituição dos discursos opera por meio de uma conformação de similaridade de situação discursiva, em que o historiador projeta o análogo movimento analítico de composição do discurso pelo orador original. Assim, ambos, quer orador quer historiador, dispõem do que seja a particular e subjetiva proposição política (gnóme) que o discurso almeja configurar retoricamente. Ambos, igualmente, tecem uma percepção analítica do que seriam as condições objetivas do contexto político específico a que essa proposição responde. Daí, definido o fim ou propósito político do discurso, e determinadas suas condições de propriedade discursiva, o lógos retórico enquadra quais são as formulações de linguagem que a consecução daquele fim exige pelo nexo destas condições.59 É, portanto, no horizonte de uma apreciação analítica destas interações entre a subjetividade de cada proposição política discursiva singular e a ob59 Confira-se, igualmente, a expressiva interpretação dada por Jaa Torrano para esta questão: O sentido de Zeus, p. 160. 268 Mithistória jetividade de sua determinação contextual precípua, que Tucídides situa seu princípio metodológico de reconstituição narrativa dessa particular modalidade de acontecimento fatual. A seguir, passa ao exame da reconstituição das ações: “Já quanto às ações praticadas na guerra, preferi registrar não a partir de informações casuais, e nem por minha apreciação, mas sim aquelas que eu próprio presenciara e também junto aos outros inquirindo a respeito de cada uma com a exatidão que fosse possível. As apreendi penosamente porque os que estiverem presentes a cada um dos acontecimentos não diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim conforme fosse sua inclinação por cada um dos lados, ou a sua memória”.60 A reconstituição narrativa das ações praticadas reclama, entende Tucídides, uma decisão axiológica (exíosa gráphein) que define a preferência do procedimento adotado. Há procedimentos que são, de imediato, descartados, recusados. Por um lado, não consagrou o imediato acolhimento de notícias ou informes casuais vindos de quaisquer outros, que alcançam o narrador ao sabor do acaso (ouk ek tou paratychóntos pynthanómenos). E, por outro, não recorreu também à composição de um seu parecer pessoal (hos emoì edókei). Antes, derivou as informações por duas vias, como aliás já o fizera também para a reconstituição dos discursos. Por um lado, para os acontecimentos por ele mesmo presenciados (hois te autòs paren), dispôs de sua observação direta. Por outro, para aqueles a que não esteve presente, buscou, inquiriu,61 junto a outros (parà tõn állon epexelthón), que os haviam presenciado, seus relatos. 60 61 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.2-3. Tucídides expressa essa sua ação de inteirar-se dos informes pelo verbo epexérchomai, assim dotando-a da conotação, tanto própria do contexto guerreiro quanto judiciário, de “ir em perseguição”, daí nossa tradução por “inquirir”. 269 Francisco Murari Pires De modo que, também para a reconstituição narrativa das ações, similarmente à reconstituição dos discursos, afirma Tucídides o princípio do primado da presença cognitiva: o provimento dos informes é condicionado ao imperativo desse critério fundante. Mas, nem bem afirmado o princípio fundante da reconstituição narrativa, logo decorre uma aporia resultante do reclamo da exatidão, enquanto atributo qualificador dos relatos acolhidos. Primeira questão: sobre quais informes incide tal reclamo? Alguns críticos entendem que, sobre todos, tanto os relatos de outros quanto as observações dele mesmo, Tucídides.62 Tese esta, entretanto, cuja melhor propriedade interpretativa solicita a correção do texto: hekatéron por hekástou; e ainda desfavorecida porque afrouxa a estreita conexão quiástica articuladora da reflexão tucidideana.63 Assim, reclamo antes incidente sobre os relatos de outros, como de resto bem o circunscreve o campo mesmo da expressão tucidideana (kaì parà tõn állon hóson dynatòn akribeía perì hekástou epexelthón). Segunda questão: qual o conteúdo desse reclamo, que modalidade de precisão instaura? Uns supõem tratarem-se apenas de vagos imperativos subjetivos, antes respeitantes aos zelos de acuidade informativa do historiador, sempre preocupado com a questão da verdade.64 Outros já afirmam a vigência do preceito de exatidão fatual, o mesmo antes reclamado no exame das tradições antigas ou no da reconstituição dos discursos.65 E outros ainda, imaginam operações detalhadas de “checagem informativa dos relatos, ponto por ponto, testando-os” pelas mais variadas realidades do conhecimento tucidideano.66 62 63 64 65 66 Vejam-se: Gomme, p. 142-3; Swain, p. 41. J. de Romilly, p. 15, nota 1; Woodman, p. 52. Vejam-se os comentários de Woodman, p. 13. Veja-se Edmunds, p. 156. Veja-se Connor, p. 28. 270 Mithistória Todavia, Tucídides mesmo revela apenas, não as soluções propostas, mas, antes, as dificuldades encontradas.67 Assim, logo afirma a restrição limitadora com que se depara tal reclamo de precisão informativa: inquiriu a respeito de cada ação junto a outros com a exatidão que fosse possível. Há limites de possibilidade a circunscrever o atendimento dessa exigência. E, a melhor consubstanciar esse reconhecimento das dificuldades, expõe a particular aporia implicada: os que estiveram presentes a cada um dos acontecimentos não diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas, sim, conforme fosse a sua inclinação por cada um dos dois lados, ou a sua memória. Tucídides aponta como aporia informativa básica o fato da diversidade discordante de relatos concernentes a uma unicidade fatual: sobre os mesmos fatos, pessoas diferentes apresentam relatos divergentes. Para esse fenômeno deteta duas razões limitadoras da precisão informativa. Uma limitação tem a ver com as disparidades de capacidade mnemônica das pessoas informantes dos acontecimentos, vicissitude a que já aludira também no que respeita à reprodução memorizada dos discursos, e insuficiência genérica, própria da condição humana. Já a outra limitação advém, mais intrinsicamente, do fato mesmo da presença cognitiva, imposta como condição informativa. Pois as pessoas que presenciaram os acontecimentos, os presenciaram porque deles participavam. E deles participavam porque compunham um dos dois lados envolvidos no conflito bélico. Assim, viram os acontecimentos segundo as precípuas inclinações definidas por essa participação. Então, sua percepção e relato dos mesmos são determinados por essa parcialidade comprometedora, não apenas enquanto subjetividades diversas, mas, sobretudo, porque inerentemente divergentes, conflitantes em sua visão dos fatos. Defrontado pelas aporias implicadas pelo princípio da presença cognitiva, no que respeita à reconstituição narrativa das ações praticadas na 67 Já Woodman, p. 16, chamou a atenção para este entendimento do texto. 271 Francisco Murari Pires guerra, o historiador, de nome Tucídides, declara tê-las superado: “penosamente as apreendi”. Como as superou, por quais procedimentos e operações analíticas, Tucídides não diz. Aqui, mais do que tudo, imperam os silêncios do estilo elíptico tucidideano. Mas, tal é mesmo a intriga tramada pela arquitetura de linguagem e pensamento desta sua reflexão metodológica, toda ela comandada por uma formulacão quiástica. Para a reconstituição dos discursos, principiara declarando a dificuldade, posta pelo reclamo da exatidão, para que pudesse acolher o procedimento da reprodução dos informes dos relatos. Então, contornou-a, firmando nominalmente a composição dos mesmos, segundo seu parecer pessoal. Passando à reconstituição das ações, inverteu os procedimentos. Agora, dispensou este justo ato nominal de emissão de parecer pessoal, preferindo, ao invés, acolher os relatos. E bem os acolhendo, firmou agora o reclamo da exatidão. Daí, terminou por declarar as dificuldades.68 68 Esta problemática será retomada no ensaio seguinte “A retórica do método”. 272 Mithistória 5. Arqueológico (a questão do início) e Etiológico (a questão da causa) “Começaram-na atenienses e peloponésios com o rompimento do Tratado dos Trinta Anos, por eles firmado após a captura da Eubéia. A expor por que razão o romperam, discorro antecipadamente em primeiro lugar sobre as causas e as divergências, de modo que não venha alguém a investigar de onde surgiu uma tal guerra para os helenos. Pois, entendo que a causa mais verdadeira, embora menos manifesta nas declarações, foi que os atenienses, tornando-se poderosos, inspiraram temor aos lacedemônios forçando-os à guerra. Mas são as seguintes as causas manifestamente declaradas pelos dois lados, a partir das quais eles romperam o tratado e realizaram a guerra”.1 A obra da História tucidideana, uma vez seletivamente distinguido o fato que define seu objeto temático – a guerra dos peloponésios e atenienses –, bem fundamentado em seus princípios axiológicos, e já também arrazoados os princípios metodológicos que firmam a sua verdade a atender aos princípios teleológicos, pode então ser mesmo iniciada pelo autor em seu desempenho propriamente narrativo. Por onde começar? Pelo começo mesmo. Iniciemos do princípio, dirão depois os filósofos a formular o início de suas obras. De modo que o início da narrativa do fato é posto pela narrativa do início fatual que o principia. Assim se determina a arché da narrativa a formular o princípio arqueológico. Mas, posta a questão do início do fato, enquanto as ações que manifestam seu principiar, de imediato impõe-se a narrativa da sua causa (aitía) 1 A guerra dos peloponésios e atenienses, I.23.4. 273 Francisco Murari Pires de determinação: aquele princípio fatual a partir do qual, e pelo qual, se desencadeia a efetivação do fato. Então, o princípio arqueológico implicadamente desdobra-se no princípio etiológico, de modo que a narrativa principia, antes de tudo e em primeiro lugar, narrando a questão da causa. Assim também o consagrou o Proêmio herodoteano das Histórias: “Heródoto de Túrio faz esta exposição de sua inquirição a fim de que nem as criações humanas se desvaneçam com o tempo, e nem grandiosas e maravilhosas obras realizadas, sejam pelos helenos sejam pelos bárbaros, fiquem sem fama; e, entre outras, também por que causa eles guerrearam uns contra os outros”.2 Mas, ainda uma vez, fora também já o épos que inaugurara a imposição narrativa de tais princípios, como bem o revela a Ilíada: “A ira canta, deusa, de Aquiles Pelíade, funesta, que inumeráveis sofrimentos aos aqueus trouxe, e muitas almas potentes ao Hades precipitou de heróis, deles fazendo presas de cães e de aves todos, e cumpriu-se o conselho de Zeus, desde que primeiro se apartaram brigados o Atrida, rei de homens, e o divino Aquiles. Quem então dos deuses mesmos em discórdia os moveu a contender? O filho de Zeus e Leto. Pois, ele, com o rei irado, maligna pestilência no exército lançou, e pereciam os guerreiros porque a Crises, o sacerdote, desonrara o Atrida”.3 Uma vez identificado, pela devida Invocação à Musa, o fato a ser narrado por seu canto – a Ira de Aquiles –, o aedo especifica também o início episódico por que esse fato começa: a dissensão querelenta entre Agamêmnon e Aquiles. Assim se demarca o princípio arqueológico que determina a 2 3 Histórias, I.1. Ilíada, I.1-12. 274 Mithistória arché do canto, de modo que o início da narrativa é composto pela narrativa do início. Mas logo o poeta se interroga por nomear qual intervenção divina desencadeou os acontecimentos, movendo aqueles heróis à ação? Essa intervenção foi o grassar da peste apolínea a dizimar as hostes aquéias. Manifestação fenomênica da ira divina que, por sua vez, tem sua causa originadora em outro episódio: fora a desonra cometida por Agamêmnon contra Crises, seu sacerdote, que mobilizara o furor colérico de Apolo contra os gregos sitiantes de Tróia. Assim, o Proêmio da Ilíada, por suas declarações enunciativas, tece um encadeamento regressivo de acontecimentos a alcançar a origem do fato a ser narrado por seu canto singular: a Ira de Aquiles começa pela dissensão entre o Pelida e Agamêmnon, episódio este desencadeado pela peste de Apolo, por sua vez originada pela desonra de Crises pelo Atrida. De modo que, então, o princípio arqueológico, ao dizer a arché enquanto início da narrativa, implica e se desdobra em princípio etiológico, a também dizer a aitía enquanto causa que identifica sua origem fatual. Alcançada a origem por tal encadeamento regressivo tecido pelo Proêmio, este termina e pode bem começar a narrativa mesma, segundo a progressiva sucessão dos acontecimentos que compõe o fato narrado. E, assim, Homero conta como Crises veio ter ao acampamento aqueu a resgatar sua filha; como foi ultrajantemente rechaçado por Agamêmnon; como então suplicou o sacerdote a Apolo, reclamando a vingança divina; como a ira do Deus atendeu às suas súplicas, fazendo por suas setas grassar a peste entre os aqueus; como Hera, preocupada com a causa helênica, moveu Aquiles a convocar a assembléia dos aqueus; e como, então, lá dissentiram em discórdia o Pelida Aquiles e o Atrida Agamêmnon, a conflitarem quanto à devida afirmação da honra heróica, consoante à preeminência ou primado de suas respectivas figuras régias. E, ao assim narrar o princípio arqueológico, que diz a arché enquanto origem e causa, o poeta discorre sobre a questão da arché enquanto poder, 275 Francisco Murari Pires imbricação conceitual que similarmente o Proêmio tucidideano consagra ao narrar a causa original da guerra entre peloponésios e atenienses como o advento do império de Atenas. 276 Mithistória VIII. A retórica do método * (Tucídides I.22 e II.35) Ao encerrar, no Proêmio de sua obra histórica, aquelas declarações de princípios narrativos que, nós modernos, entendemos tradicionalmente por “metodológicas”1, Tucídides tece uma reflexão final de alcance um tanto intrigante. Como já o fizera logo antes, no tocante à reconstituição dos discursos pronunciados durante a guerra, também para as ações praticadas o historiador firmou a autópsia 2 como princípio de derivação e, pois, fundamentação, informativa de sua história. Ora, mas justamente o fato da presença aos acontecimentos, assim imposta como condição informativa de seu relato, implicou um impasse para a devida reconstituição dos mesmos pelo historiador, pois: * Originariamente publicado em português na Revista de História, 138 (1998): 9-16; uma versão em inglês publicada por The ancient history bulletin, 12.3 (1998): 106-112. A abordagem mais sistemática dos princípios da narrativa – onomasiológico (a questão do sujeito), axiológico (a questão da grandeza), metodológico (a questão da verdade), teleológico (a questão da utilidade), arqueológico (a questão do início) e etiológico (a questão da causa) –, que as histórias herodoteana e tucidideana ambivalentemente herdam da epopéia homérica, tanto os desdobrando quanto deslocando em sua obras, encontra-se em Murari Pires (1995, p. 6-20). Para a problemática da autópsia, como princípio de fundamentação informativa da historiografia grega, vejam-se o artigo de Nenci e, mais recentemente, a obra de Schepens e dois ensaios de F . Hartog (L ’ oeil de Thucydide e o prefácio da edição de 1991 do Miroir d’Hérodote), todos citados na bibliografia. 277 1 2 Francisco Murari Pires “Os que estiveram presentes a cada um dos acontecimentos não diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim conforme fosse ou a sua inclinação por um dos lados ou a sua memória” (A guerra dos peloponésios e atenienses, I.22.3). O historiador acusa, aqui, como aporia informativa básica para a sua narração dos acontecimentos bélicos, o dilema posto pela diversidade discordante de relatos entretanto concernentes a uma unicidade fatual: sobre os mesmos fatos, distintos observadores dão informes divergentes3. O impasse maior, assim detetado, é propriamente inerente às determinações da situação mesma de presença cognitiva à ocorrência dos acontecimentos. Pois, as pessoas que presenciaram os acontecimentos, os presenciaram porque participavam de suas ações. E eram partícipes porque engajados por algum dos lados, diversamente envolvidos nas disputas do conflito beligerante. Então, ao ensejo determinante dessa sua participação, viram os fatos (pre)dispostos por suas inclinações pessoais e, assim, consoante a ótica contaminada de seu engajamento. De modo que sua percepção dos fatos, e seu condizente relato, compromete-se por essa parcialidade de seu olhar, não apenas e tanto, porque se tratem de subjetividades diversas, mas, sobretudo, porque, devido a engajamentos antagônicos, respeitam a enfoques inerentemente conflitantes de constatação informativa dos acontecimentos presenciados. E, todavia, assim advertidos, nós leitores, de tais aporias e impasses, constatamos – um tanto perplexos, algo decepcionados, ou por vezes mesmo incrédulos, senão desconfiados4 – que pouco, se quantificado pelo total da obra, dessa dialética dos informes fatuais comparece expressamente inscrito na narrativa tucidideana dos eventos bélicos, não mais que uma dezena de passagens. 3 4 Veja-se Parry, 1988, p. 103. Confiram-se: Westlake, 1977, p. 34; Woodman, 1988, p.16; Hornblower, 1987, p. 22; Cogan, 1981, p. 12-13. 278 Mithistória Assim, por duas vezes, Tucídides adverte a existência de relatos conflitantes dos acontecimentos então narrados. Há o registro (Ibid., II.5) da dicotomia de versões – dos tebanos, de um lado, e dos platenses, de outro – quanto aos termos que uns e outros alegavam ter acertado entre si para a soltura dos guerreiros aprisionados pelos últimos – entretanto por eles no fim massacrados –, com aqueles acusando a transgressão do juramento comprometido pelos platenses, contra estes negando terminantemente que tivessem prometido libertá-los de imediato e mesmo que o tivessem formalmente prestado. Há o apontamento (Ibid., VIII.87) da dificuldade de conhecer-se o verdadeiro motivo do deslocamento de Tissafernes a Aspendo, face aos comprometimentos bélicos de sua aliança com os lacedemônios: supostamente lá ele reuniria a frota fenícia para utilizá-la, compondo o esforço de guerra espartano, propósito, todavia, assim não consumado naquela ocasião! Por um lado, conheciam-se as razões declarativas atribuídas ao próprio Tissafernes, mas, de outro, denunciava-se a falsidade das mesmas, segundo algumas versões que especulavam diversamente seus reais intuitos. Mais algumas outras vezes, Tucídides declara não poder precisar a plena reconstituição do acontecimento narrado, ou porque provido apenas por dados suspeitos ou mesmo porque deles carente. Há a admissão (Ibid., V.68) do desconhecimento dos montantes numéricos exatos dos contingentes que se enfrentaram na Batalha de Mantinéia, falha informativa aqui devida a que, por um lado, os próprios lacedemônios ocultavam os seus, justamente porque antes obnubilavam os segredos de suas realidades institucionais; já, de outro, ocorria o inverso, por dados fornecidos suspeitos, com a gabolice dos homens exagerando as coisas que lhes diziam respeito. Conseqüentemente, Tucídides (Ibid., V.74) aponta ainda a dificuldade de verdadeiramente precisar o número de espartanos mortos naquele combate, atendo-se, pois, ao montante de baixas de que então se falava. 279 Francisco Murari Pires Há a censura crítica tucidideana (Ibid., III.113), que recusou informar o número de ambraciotas mortos na campanha de Anfilóquia, assim afastando de sua obra tais suspeitas de relato inverídico, pois era totalmente inacreditável o montante que lhe fora apresentado, se avaliado contra a população total da cidade. Há a alegação tucidideana (Ibid., VII.44) da dificuldade de discernir as vicissitudes do assalto desastroso, cometido pelos atenienses contra as fortificações siracusanas das Epípolas, nem as tropas agressoras nem as defensoras podendo relatá-las com clareza, justamente porque turvada sua visão pelas trevas noturnas do combate. Há a confissão tucidideana (Ibid., VI.60) da ignorância generalizada quanto aos verdadeiros culpados da mutilação dos Hermas de Atenas às vésperas da expedição siracusana, pois, pelo processo mesmo que ajuizara o caso, não se pudera ter certeza de que as revelações, então obtidas pelas denúncias de um dos próprios acusados, fossem verídicas ou, pelo contrário, falsas. Há a observação tucidideana (Ibid., VII.87) da dificuldade de precisar o total de atenienses que caiu prisioneiro, em Siracusa, o historiador podendo apenas afirmar que não fora inferior a sete mil. E há a constatação tucidideana (Ibid., III.87) do desconhecimento do número de atenienses – que não hoplitas ou cavaleiros – abatidos pelo recrudescimento do surto de peste na cidade no terceiro ano da guerra. Diversamente de Heródoto5, a narrativa historiográfica tucidideana não faz aflorar a dialética de suas fontes informativas, e tampouco revela os 5 “...ao passo que Heródoto associa freqüentemente o leitor a suas investigações, lhe desvenda as origens e lhe dá a conhecer sua próprias reflexões e arrazoados, Tucídides limita-se, manifestamente, a descrever de uma vez por todas seu método históricocrítico, e a expor, para o restante, o resultado de suas pesquisas” (Schepens, 1980, p. 96). “...Tucídides difere de Heródoto ainda a outro respeito. Heródoto freqüentemente nos informa sobre as versões conflitantes de suas fontes. Nós podemos ver os dilemas que ele enfrentou ao escolher entre elas e os critérios que ele adotou ao ajuizar seu 280 Mithistória procedimentos de sua metodologia crítica porque derivou a reconstituição dos fatos consagrados na redação de sua história.6 “Na narração propriamente dita”, observa Butti de Lima (1996, p. 96), “o historiador, enquanto historiador, está ausente”, e nela deparamos antes “a apresentação direta dos fatos”. O discurso narrativo tucidideano é predominantemente, senão avassaladoramente, composto por impressões de apenas resultados fatuais, quaisquer que sejam as identificações dos informantes e quaisquer que sejam as operações analíticas de uma sua suposta crítica averiguadora de veracidade.7 Perpassa, assim, pela obra um certo silêncio metodológico operado por um ocultamento do historiador8, o qual, antes do que integrar a dialética valor. Ocasionalmente, ele confessa dúvidas pessoais quanto à verdade de um ato ou de uma história. Outras vezes, ele deixa o leitor decidir no que acreditar, dispondo-se apenas a um papel de repórter. O método de Tucídides é bem diferente. O que Tucídides apresenta são as conclusões que ele alcançou. Ele, raramente, sequer identifica suas fontes ou especifica pontos em que elas concordavam ou discordavam; nem expõe os critérios que ele usou para ajuizar a verdade ou para expressar quaisquer dúvidas que possa ter tido (uma passagem como 8.44 é incomum). ... O resultado, então, é que Tucídides nos apresenta a fachada de um edifício tão completamente acabado que nós podemos apenas conjecturar em que alicerces ele se apóia e qual é a estrutura interior que suporta o exterior por nós visto” (T. J. Luce, Greek..., p. 71). 6 Razão por que, mais recentemente, as projeções da crítica moderna de reconhecimento de sua identidade historiográfica nos historiadores antigos andaram saudando a “melhor cientificidade metodológica” herodoteana, em prejuízo da mais afamada tucidideana, veleidade esta de ajuizamento, entretanto, não imune a certos percalços, pois, nem sempre “os princípios que levaram Heródoto a indicar suas fontes correspondem certamente àqueles que hoje se definem como científicos” (Butti de Lima, 1996, p. 102). “A fórmula sucinta do diz-se que (légetai) basta para transpor a narração do nível dos fatos ao da história” (Butti de Lima, 1996. p. 96). “Mas, quando a história se torna pesquisa da verdade, o narrador não tem outra coisa a fazer que retirar-se ... Ele é este narrador ausente, que deixa falar os fatos: objetivo” (Hartog, 1982, p. 26). Orwin (1994, p. 5) lembra, em epígrafe à sua obra, o elogio que Rousseau dirige a Tucídides no Emílio: “Longe de interpor-se entre os acontecimentos e seus leitores, ele se oculta. O leitor não mais acredita que lê; ele acredita que vê”. 281 7 8 Francisco Murari Pires de sua heurística, a oblitera, e antes do que expor quais sejam as determinadas regras e preceitos de sua crítica, dá esta apenas por pressuposta e realizada. Pois, tudo o que Tucídides revela nesse sentido reduz-se à mínima declaração programática de seu dito capítulo “metodológico”: na reconstitução dos acontecimentos o historiador almejou sempre alcançar a precisão, acribia9. Diante de uma tal idiossincrasia de silêncio metodológico, podemos – nós, crítica moderna –, envidar esforços pela (re)descoberta dessa metodologia tucidideana não bem revelada e, entretanto, consumada por sua obra historiográfica, assim melhor identificando por quais regras e preceitos, ou que demais critérios, de crítica de veracidade Tucídides analiticamente operou o ajuizamento dos relatos informativos, então coletados de modo a superar os impasses que, para tanto, haviam sido pelo historiador expressamente denunciados.10 Podemos, então, assinalar que Tucídides, muito provavelmente polemizando contra Helânico11, propugna por um item fundamental da consciência metodológica historiográfica (pelo menos, certamente para nós 9 Para a questão do entendimento da concepção tucidideana de acribia como precisão veja-se, por último, o minucioso estudo de Crane, 1996, p. 50-65. As reflexões de G. S. Shrimpton, todavia, advertem contra a (con)fusão de conceitos, que também nesta questão pode estar operando a crítica moderna: “Direi que os olhos de um historiador antigo não são os de um empirista que experiencia, testa e verifica, mas os de uma testemunha que viu e lembra. Os historiadores antigos preservavam a memória antes do que praticavam a história como ela é feita hoje em dia. Assim, eles não mensuravam a precisão histórica por padrões empíricos” (History..., p. 52). Confira-se, por fim, o recente artigo deste último crítico na The ancient history bulletin, 1998,3 (Accuracy in Thucydides). Nesse sentido veja-se, por último e sempre, apuradamente equilibrado em suas apreciações críticas, o estudo de Butti de Lima, L ’ inchiesta e la prova, 1996. As passagens tucidideanas que referenciam a problemática cronológica, e nela indiciam a polêmica com Helânico, são: 1.97 e 5.20. Nesse sentido, confira-se o estudo de J. D. Smart citado na bibliografia; S. Hornblower (1994: 25), todavia, insiste em que também neste caso a crítica de Tucídides visa às imprecisões da historiografia herodoteana. 282 10 11 Mithistória modernos) ao ordenar sua narrativa por meio de um sistema cronológico que, no seu entender, melhor atende aos reclamos de precisão, já que situa a seqüência dos acontecimentos consoante os ritmos temporais impostos pelas realidades dos fatos mesmos: as estações precípuas das campanhas bélicas cindidas por verões e invernos.12 Podemos, ainda, imaginar o historiador Tucídides a, zelosa e persistentemente, colher mesmo os relatos divergentes, de ambos os lados, para confrontá-los, visando a alcançar sua veracidade fatual unitária.13 Podemos, ainda, projetar que também para a reconstituição dos acontecimentos do tempo presente da Guerra do Peloponeso, Tucídides fez valer os mesmos preceitos de crítica fatual, já antes por ele mesmo reclamados para o exame das tradições antigas, dos tempos passados.14 Neste caso, em especial, toda a reconstituição fatual da obra tucidideana responderia 12 No âmbito dessa problemática confiram-se as considerações de Virginia Hunter (Past and process in Herodotus and Thucydides, p. 36-38; 43-49; 222-225; 237-258; 316319) a respeito da concepção tucidideana, alertando especialmente que a mesma implica categorias de temporalidade e noções de acontecimento histórico, que não são idênticos aos supostos pela moderna reflexão historiográfica. E, embora por seu reclamo de maior precisão, o sistema tucidideano desloque o tradicional, que cronologiza os acontecimentos pela identificação do ano oficial (arcontado, eforato etc.), é antes este último que melhor se adequa à ordenação dos dados pela nossa moderna referenciação cronologizante dos fatos históricos antigos. Por outro lado, parece que a cronologia tucidideana, a qual opera pela distinção das categorias temporais de verões/invernos, dado que tais são os tempos mesmos que definem os ritmos de efetivação das ações beligerantes (campanha contra inatividade), lembra antes a “cronologia” suposta pela Ilíada homérica de dias/noites a ritmar a sucessão dos enfrentamentos bélicos troianos. Ainda sobre a problemática do sistema cronológico tucidideano, veja-se a proposta interpretativa de G.S. Shrimpton (Time, memory and narrative in Thucydides), enquadrando-o em termos de uma história memorativa. Confira-se Proctor, 1980, p. 16. Confiram-se: Connor, 1984, p. 27-28; Plant, 1988, p. 202; Loraux, 1984, p. 148 e 152; Edmunds, 1975, p. 156; Butti de Lima, 1996 p. 116 e p. 127-170 (especialmente, p. 148-151). 283 13 14 Francisco Murari Pires pelos procedimentos de crítica de veracidade demonstrados pelo historiador quando entendeu precisar a melhor correção do conhecimento histórico dos fatos da tirania dos Pisistrátidas em Atenas, primeiro aludidos na dita seção metodológica (1.20) e depois, mais detalhadamente, expostos na narrativa dos episódios inaugurais da expedição ateniense à Sicília (6.5459). E podemos, ainda, especular operações detalhadas de verdadeiras checagens informativas dos relatos, ponto por ponto, testando-os por meio das mais variadas ordens de realidades englobadas pelo conhecimento tucidideano.15 E, todavia, por todas estas três vias de entendimento, de uma (re)descoberta da metodologia historiográfica tucidideana de reconstituição fatual, não estaríamos antes assim projetando-lhe a nossa moderna? Gordon S. Shrimpton situou primorosamente essa intriga epistemológica: “Os teóricos modernos enfatizam a coleta, a verificação e a análise das evidências documentais. Os antigos concentravam-se no estilo e nas idéias gerais em torno das quais a narrativa histórica era organizada. Isso pode ser tomado como uma evidência prima facie de que faltava-lhes qualquer noção de investigação histórica no sentido moderno. O problema é que Dionísio Halicarnássio, Cícero e suas fontes podem não ter entendido Tucídides. Seria possível que Tucídides tenha sido não meramente um gênio, mas um ‘super-cérebro’ incompreendido por todos os antigos que o leram, um inventor de um verdadeiro método histórico, um espírito moderno em todos os seus aspectos, muito avançado em relação a seu tempo para que suas realizações fossem entendidas por ou que tivessem algum efeito nos pensadores de sua época? A maioria dos leitores contemporâneos corre diretamente para as famosas considerações de I.22, uma passagem que é, geralmente, considerada como uma revelação consciente dos procedimentos de investigação do historiador. Minha argumentação será no sentido de que isto não é o estabelecimento de um método de investigação, mas a descrição tucidideana de seus métodos e objetivos literários...As afirmações de Tucídides soam como as do moderno racionalismo, mas o racio- 15 Confiram-se: Connor, 1984, p. 27-28; Cogan, 1981, p. 12-13. 284 Mithistória nalismo de Tucídides não deve nos levar a pensar nele como um teórico do método histórico, um pesquisador de documentos moderno, um Leopold Ranke antes de seu tempo. Considero Tucídides um historiador memorativo, e não um historiador empírico científico, apesar da aparente modernidade de seu estilo e apresentação”.16 Nos fluxos e refluxos desses estudos, assim, mais ou menos diversamente, tendo por pano de fundo as vicissitudes das projeções modernas de identificação da obra discursiva tucidideana bipolarizada pela contraposição de categorias “ciência” versus “arte”17, delineia-se, mais recentemente, uma certa tendência interpretativa que envida ressaltar no “silêncio metodológico” tucidideano respeitante à reconstituição dos acontecimentos bélicos a eficácia de uma retórica da objetividade.18 E, todavia, assim resgatando dos silêncios da obra o método por ela suposto, desviamos os ajuizamentos de nossa avaliação, de modo que acabamos antes por tomar em consideração justamente aqueles argumentos que não são os expressamente declarados pelo próprio Tucídides para a apreciação daquelas aporias destacadas por sua reflexão de crítica metodológica. Assim, lembramos a proposta do sistema cronológico tucidideano, que certamente atende a um reclamo de acribia narrativa, porém não é essa proclamada virtude historiográfica de sua obra que Tucídides mesmo então alega. Ou, assim, projetamos para a temporalidade do presente a metodologia crítica que Tucídides, entretanto, avoca expressamente para o exame do tempo passado, de cuja reconstituição sua história antes se G. S. Shrimpton. History..., p. 42 e 46. Vejam-se os apontamentos gerais dados por Connor, 1984, p. 4-6, mais Dover, 1983, T. J. Luce (Greek..., p. 80) e também por Orwin, 1994, p. 7-8. Vejam-se, por exemplo: Hartog, Oeil..., 1982, p. 26; Loraux, 1984; Woodman, 1988, p. 23; Crane, 1996, p. 27-29; Butti de Lima, 1996, p. 97-98 e 126. Tendência, entretanto, que suscita já algumas advertências críticas: Butti de Lima, 1996, p. 116s e 126-128; Desideri, 1996, p. 973-974. 285 16 17 18 Francisco Murari Pires dissocia. Então, por tais argüições nós, críticos modernos, por um lado, ou irrelevamos ou preterimos certas declarações por que Tucídides mesmo expressamente diz quais são suas advertências de crítica metodológica, firmando-as no lugar de arrazoado discursivo, assim precipuamente por ele consagrado (1.20-22); para, por outro lado, buscarmos preencher os vazios, assim decorrentes, com considerações outras que essa reflexão metodológica, entretanto, ou apenas diz antes exteriormente à sua precípua argumentação discursiva ou até mesmo contraria. Pois, Tucídides mesmo, em seu texto, revela apenas e tão somente, não as soluções por ele precipuamente alcançadas, mas antes as dificuldades por ele “metodologicamente” advertidas. Como as superou, por quais eventuais procedimentos e operações analíticas, Tucídides não diz. Aqui, mais do que tudo, imperam os silêncios do estilo elíptico tucidideano. Não haveria, então, ainda lugar para interrogarmos também justamente outras razões desse silêncio, e inquirir por algum seu sentido na trama mesma do discurso “metodológico” tucidideano? Pois, tal silêncio e elisão não é tanto algo a ser estranhado, pelo contrário, eles condizem mesmo com a intriga tecida pela própria arquitetura retórica de formulação de pensamento dessa sua reflexão metodológica, toda ela comandada por uma ordenação de natureza quiástica, plena de figuras de antíteses e de reversões assertivas.19 Pois, inicialmente, quando tratava da reconstituição dos discursos, Tucídides principiou suas considerações declarando quais eram as dificuldades, justamente postas por um reclamo de acribia, dificuldades estas de tal monta que inviabilizaram o procedimento narrativo de simples reprodução dos relatos recolhidos junto aos informantes. Então, postas tais dificuldades, o historiador contornou esse primeiro impasse firmando que ele mesmo, 19 Para T. J. Luce “a antítese é o aspecto mais característico da escrita tucidideana” (Greek..., p. 72). Nesse sentido, entre outros, vejam-se os estudos de Hammond, 1952; Ellis, 1991; Woodman, 1988; Almeida Prado, 1972; e Murari Pires, 1995. 286 Mithistória nominalmente, apreenderia, por seu parecer, a realidade dos discursos, fundando-a a partir da gnóme efetivada por cada um e pautando-se pela acribia possível de aproximação do que fora realmente dito. Depois, passando agora à questão da reconstituição das ações, ou seja, dessa categoria de acontecimentos contrapositiva aos discursos, Tucídides reverteu os procedimentos adotados. Agora, ao revés do que fez para os discursos, dispensou seu ato nominal de emissão de um parecer pessoal enquanto sujeito da narrativa, preferindo, ao invés, acolher os relatos dos informantes, justamente dispensados no caso dos discursos. E, assim, bem os acolhendo, lembrou novamente, como para os discursos, que também sobre eles imperava o reclamo da acribia. Daí, terminou por declarar quais eram então as dificuldades.20 Em síntese, para os discursos aludiu às dificuldades para apresentar as soluções; já para as ações, aludiu às soluções para bem realçar, pelo contrário, as dificuldades. Ora, mas uma análoga intriga retórica tramada pela obra narrativa tucidideana encontra-se também no Proêmio do célebre “Discurso Fúnebre”, atribuído a Péricles.21 Nesse seu pronunciamento de abertura, o discurso marca, em relação à própria prática institutional da Oração Fúnebre em honra dos guerreiros que tombaram pela cidade, uma reivindicação de originalidade crítica22. Assim, ele começa contestando e, pois, por princípio, divergindo frontalmente do que se declara ser a praxe de iniciar a Oração Fúnebre tecendo louvores ao legislador que instituiu tal prática: “A maioria dos oradores que me precedeu neste lugar louva aquele que introduziu esta alocução no cerimonial de costume, considerando como 20 Já Woodman chamou a atenção para este ponto: “Observe-se que a ênfase é totalmente colocada sobre a dificuldade do processo antes do que sobre os resultados alcançados” (1988, p. 16). Entre outros, vejam-se os comentários de Gaiser, 1975, p. 24-27; Parry, 1981, p. 160 e, especialmente, de Loraux, 1981, p. 232-241. Já destacado por Orwin, 1994, p. 16. 287 21 22 Francisco Murari Pires belo que, no momento de seu enterro, as vítimas da guerra sejam assim celebradas. De meu lado, estimaria suficiente que, para homens cujo valor traduziu-se em atos, fossem prestadas homenagens igualmente por atos, como vedes que se faz hoje nas medidas oficiais aqui tomadas para seu sepultamento. Os méritos de todo um grupo não dependeriam de um único indivíduo, cujo talento maior ou menor lhes coloca em causa o crédito. Pois é difícil adotar um tom justo, num assunto em que a simples apreciação da verdade encontra penosamente bases seguras: bem informado e bem disposto, o ouvinte pode muito bem julgar a exposição inferior ao que ele deseja ou sabe; mal informado, pode, por inveja, estimá-lo exagerado, quando aquilo que ele ouve ultrapassa suas próprias capacidades; pois não se tolera ilimitadamente elogios pronunciados a respeito de um terceiro, cada um o fazendo na medida em que se acredita capaz de realizar, ele mesmo, os feitos que ouve relatar; além disto, com a inveja, nasce a incredulidade.23 O discurso inaugura-se, pois, contestando por princípio a praxe que, pelo louvor que ela presta ao instituidor da oração fúnebre, aceita inquestionadamente a propriedade da mesma. Ele, pelo contrário, assinala sua singularidade denunciando-a duplamente. Antes de mais nada, a instituição é não só desnecessária quanto equivocada. Desnecessária porque bastam os próprios atos constituintes do cerimonial de sepultamento para manifestar o reconhecimento do valor das ações e feitos dos guerreiros mortos. E equivocada porque, ao colocar esse reconhecimento do valor guerreiro consumado em atos na dependência do talento retórico do orador que os celebra, corre-se o risco de, paradoxalmente, não se reconhecer tal valor, mas sim colocá-lo sob suspeição. E, mais ainda, a instituição é totalmente inadequada por si mesma, dada a aporia insolúvel, própria do empreendimento que ela, todavia, se propõe, pois a arte da fala, a techné discursiva, não comporta habilidade suficiente para superá-la: qual o tom justo a ser empregado enquanto elogio, de forma que este elogio seja apreciado como a adequada manifestação discursiva de reconhecimento daquele valor consumado em feitos? Como 23 II.35.1-2. A partir da tradução francesa de Jacqueline de Romilly, 1962, p. 2 288 Mithistória encontrar a medida de elogio que responde com justeza pelo valor dos feitos cumpridos? Ora, descortina-se um horizonte de possibilidades alternativas para o orador que são antes impossibilidades, pois o coloca num impasse, dado que ele fica inelutavelmente condenado a desagradar seus ouvintes: ou se acusa a insuficiência do elogio, quando este desgosta aqueles que, justamente conhecedores dos feitos guerreiros realizados, dispõem-se e esperam que o discurso não inferiorize seu valor; ou, pelo contrário, se acusa o exagero do elogio, quando este desgosta aqueles que, exatamente por desconhecerem os feitos, medem a plausibilidade destes segundo e por sua própria (in)capacidade de realizá-los. De modo que, neste caso, por inveja, estimam exagerada a apreciação que refere feitos que os ultrapassam, astuciosamente escamoteando na verdade os seus limites pessoais. E o resultado, então, é que sempre o orador será desacreditado por seu público, quer acusado de errar por falta quer, pelo contrário, por excesso laudatório.24 E, assim, a apresentação do “Discurso Fúnebre” pericleano principia desqualificando totalmente a prática mesma de modalidade discursiva em que ele, entretanto, se integra. E de forma aparentemente radical, pois denuncia qual é a sua inconsistência intrínseca: a apreciação que descortina suas possibilidades alternativas a projeta antes como impossível! E, todavia, o “Discurso Fúnebre” de Péricles a desacredita, e, entretanto, paradoxalmente, logo a seguir, antes a enceta e cumpre, efetivando-a enquanto tal. Daí, um seu preciso sentido e finalidade retórica embutido por este seu procedimento convencional de captatio benevolentiae 25: se ele realiza o, toda24 Considere-se, paralelamente, a similar intriga retórica figurada pelo discurso de Otanes, no célebre “Debate Persa” herodoteano (III.80), ao denunciar a irracionalidade da inveja, e inconseqüência das calúnias, da figura do tirano nas relações com seus súditos, o qual nas cortesias moderadas que estes lhe dirigem acusa falta de adulação, mas nas adulações exageradas, vil bajulamento. Vejam-se as obras citadas logo acima de Gaiser e de Loraux; por outro lado, considerem-se as justas advertências ponderadas por Hornblower (1987, p. 101s) acerca do alcance dos ajuizamentos que apontam para as relações entre a obra discursiva tucidideana e a sistematização teorizante da arte retórica. 289 25 Francisco Murari Pires via, impossível enquanto proposição discursiva, algo que não há fórmula retórica que viabilize, tanto melhor se pode apreciar a excelência e o mérito singularmente excepcional do orador que, assim mesmo e todavia, o realizou! E, para realizar essa modalidade discursiva de elogio, não há qualquer solução determinada, imperam apenas as impossibilidades postas pelas dificuldades, pelas aporias claramente afirmadas. Ora, mas ocorre, com esta projeção tucidideana da excelência retórica pericleana, consagrada por esse seu suposto desempenho ao iniciar-se a Guerra do Peloponeso, algo similar ao que se passa, no texto da Odisséia, com os elogios firmadores da excelência no domínio das artes do canto e narração das gestas heróicas, quer aquele com que Odisseu distingue Demódoco, quer o outro em que é Alcino quem antes assim honra o herói mesmo26: os ecos de ambos alcançam e ressoam sua projeção valorativa na figura do sujeito poético que os memorizou, tradicionalmente representado pelo nome de Homero. Igualmente, o modo discursivo por que o historiador reconhece, e consagra na memória histórica, a perícia retórica de Péricles, proclama, pela sutil inteligência de um mesmo belo silenciamento de si mesmo, antes a sua própria, pessoal, arte retórica, deste sujeito historiante da guerra, cujo nome chancela o texto desde sua abertura: Tucídides de Atenas! E, não poderíamos ainda reconhecer homólogos procedimentos de arrazoado retórico nesse outro Proêmio discursivo da obra tucidideana, o qual insere no seu bojo a apreciação da suposta questão metodológica de reconstituição dos acontecimentos bélicos? Aqui também, Tucídides aponta incontestáveis dificuldades de realização, porém não tendo por finalidade fundamentar uma argumentação de sua desistência e renúncia, pois ele obra justamente o contrário27, consumando, a seguir, a realização narrativa que, 26 27 Odisséia, VIII.486-498 e XI.363-376. Uma similar reflexão metodológica, que opera por retórica ambivalente, comparece também na crítica tucidideana respeitante à veracidade dos fatos do passado, em que o 290 Mithistória paradoxalmente, as supera. E as supera justamente aparentando apenas pressupor uma solução determinada, mesmo porque solução assim sugerida como indeterminável. A finalidade retórica é apenas firmar as dificuldades, e não anunciar suas soluções. Assim, tanto mais se aprecia a capacidade historiográfica de quem, entretanto, transpõe, não regras metodológicas descobertas, mas sim, pela obra narrativa de fato consumada, os impasses então declarados, pois, das dificuldades e aporias, a guerra dos peloponésios e atenienses não revela mais os traços, a não ser por algumas ínfimas alusões esparsas. E capacidade historiográfica por tal excelência distintiva que configura a autoridade de seu sujeito humano em padrões heroicizantes.28 Examinada, então, esta problemática no âmbito da convencionalmente intitulada seção metodológica da obra tucidideana, dada sua intrínseca conformação retórica ordenadora, a questão dos procedimentos analíticos de objetivação dos relatos na reconstituição das ações praticadas na guerra, não tenha, nem seja para ter, solução, quer apenas não declarada, quer nem historiador tanto firma categoricamente um princípio metodológico, denunciador da inconfiabilidade de certos informes (as narrativas poéticas e as tradições orais), quanto, todavia, a seguir deles se vale (das narrativas homéricas na dita “Arqueologia”, das tradições orais nas correções acerca da tirania dos Pisistratidas) para compor o arrazoado comprovador de suas teses. Devemos em particular a lembrança destas considerações (além de outras) aos apontamentos críticos por que nosso artigo foi ajuizado pelo corpo editoral da The ancient history bulletin. 28 Por aquela figuração retórica da apreensão da verdade do fato, elipticamente projetada como um justo meio pelo “Discurso Fúnebre” poder-se-ia, então, delimitar os parâmetros da reflexão “metodológica” tucidideana como questão da excelência distintiva de um sujeito que o define como “autoridade”, aproximando-a contrastivamente, por um lado, da categoria do “homem prudente” aristotélico nos termos de sua análise por P . Aubenque (La prudence..., p. 33-53) e, por outro, da categoria do “histor” homérico e herodoteano nos termos de sua análise por A. Sauge (De l’epopée..., p. 101-113) e seu desdobramento por F . Hartog (Espelho..., p. 21-26). O horizonte heróico de delineamento da obra historiográfica também se assinala pela ambiguidade por que assim se situa essa obra pela projeção de uma excelência tal que a aproxima de foros divinizantes contra o estigma de sua penosa consecução a lembrar o fato de sua humanitude: (as ações praticadas no curso da guerra), “penosamente as apreendi” (I.22.3). 291 Francisco Murari Pires mesmo determinada, ou, quem sabe, sequer almejada. Então, a suposta problemática dos vazios do “silêncio metodológico” tucidideano, considerada no âmbito mais precípuo de sua formulação no Proêmio (capítulo 22 do livro I), não poderia ser também apreciada pela solução que Aristóteles deu ao equívoco enigma da realidade histórica da Atlântida? Pois, pondera o filósofo, ocorre com a Atlântida o mesmo que com o muro de defesa edificado pelos gregos em Tróia: o poeta que o construiu foi também quem igualmente o destruiu, fazendo-o desaparecer da história para sempre. 292 Mithistória IX. Memórias tucidideanas ACASOS E ANOMALIAS DA GUERRA Pilos e Esfactéria Nos sucessos da campanha de Pilos, Tucídides assinala especialmente a obra do acaso.1 Desde o princípio. Assim, até mesmo que houvesse uma campanha em Pilos, fora a interferência do acaso que decidira. Pois, a frota de quarenta navios expedida de Atenas partira com destino bem definido: a Sicília. Atenas atendia a uma solicitação de reforços da parte de seus aliados naquela ilha em confronto com Siracusa. No comando da mesma iam os estrategos regularmente nomeados – Eurimedonte e Sófocles – os quais juntar-se-iam a Pitodoro, que os precedera e já lá se encontrava. Como missão, a aproveitar sua passagem por Corcira, estava prevista uma intervenção das forças atenienses nas lutas que assolavam esta ilha em auxílio da facção da cidade, a qual se via fustigada pelas investidas de seus adversários acantonados nas montanhas. Aliás, a situação ali agravara-se para os partidários de Atenas, pois, além da fome, já grassando pela cidade, tinha-se a informação de que 1 O mérito, no âmbito da tradição historiográfica moderna, por destacar na narrativa tucidideana a relevância da interferência do acaso nos acontecimentos da campanha de Pilos remonta ao estudo de Cornford, Thucydides mythistoricus (1907), a quem se tributa condizente homenagem. 293 Francisco Murari Pires uma frota peloponésia de sessenta navios dirigia-se para lá em auxílio da facção oligárquica. Tal era, pelo que relata Tucídides, a destinação de princípio declarada para a frota, que então deixava Atenas.2 A essa destinação clara e precisa, o informe tucidideano acresce ainda um outro propósito descortinado para a expedição, aludindo a uma eventual possibilidade de emprego da frota, apenas vaga e indefinidamente prevista pela decisão da assembléia de Atenas. Demóstenes que, lembra Tucídides, “não detinha qualquer cargo desde seu retorno da Acarnânia”3, fora, a seu próprio pedido, integrado ao comando com a expressa autorização de “dispor da frota como bem entendesse durante o percurso de contorno do Peloponeso”.4 Ora, quando a frota ateniense navegava ao largo da Lacônia5 foram informados de que a frota peloponésia já se encontrava em Corcira. Sófocles e Eurimedonte pressionavam por que se dirigissem para lá o mais rápido possível. Demóstenes, porém, ordenava: 2 3 A guerra dos peloponésios e atenienses, IV.2 e III.115. O texto grego diz literalmente “Demosthénei dè ónti idióthe” (“Demóstenes que era um cidadão particular...”), comumente entendido como “desprovido de cargo oficial” (vejam-se os comentários de Gomme, 1956: 437-8; Hornblower, 1996: 152). Gomme (1956: 470) lembra que, também para Cleonte, quando da segunda assembléia que decidiu o envio do reforço ateniense a Pilos, a participação no comando não parece supor definição institucional como estratego. Assim, os zelos da crítica historiográfica moderna em precisar positivamente a definição dessas questões, particularmente no que respeita ao estatuto oficial da participação de Demóstenes na campanha de Pilos (se estratego eleito e desde que momento atuando sob essa autoridade), supõem projeções de reclamos de rigidez de modos constitucionais a que a assembléia de Atenas mesma não observava tão sistematicamente. IV.2.4. Assim o informa literalmente o texto tucidideano. Wilson (1979: 47), entretanto, ambicionando derivar dos informes tucidideanos todas as determinações precisas de (ir)realidades históricas do acontecimento, reclama que Lacônia deve ser entendido, aqui, no sentido político, e não estritamente geográfico, a incluir, portanto, a Messênia. Mas, o enigma maior aqui intrigado pelo relato tucidideano respeita antes ao como e de quem a frota ateniense, em plena viagem, obteve aquela notícia? 294 4 5 Mithistória “Que, primeiro, eles se detivessem em Pilos e, realizadas as (tarefas) que lhes cumpriam, então prosseguissem com a expedição”.6 Os dois estrategos, entretanto, objetaram. Foi nesse preciso momento que, continua Tucídides, o acaso resolveu o impasse no comando: “Por acaso sobreveio uma tempestade que arrastou as naus para Pilos”.7 Já aportados em Pilos, desdobraram-se mais dissidências a paralisarem o comando da expedição. Demóstenes instava por fortificar-se de imediato o local, pois fora por isso que ele se associara à frota. E intentava persuadir os estrategos, apontando as inúmeras facilidades que teriam: disponibilidade plena de madeiras e pedras, local naturalmente fortificado, e área deserta (não só aquele ponto mesmo, como também grande parte da região). Aliás, esta última característica do lugar, logo esclarecida pela observação tucidideana, a precisar em quatrocentos estádios a distância que separava Pilos de Esparta, parecia constituir uma razão vantajosa de sua escolha.8 Mas os estrategos relutavam, agora procurando desqualificar os (des)propósitos daquele empreendimento, ironicamente denunciando sua total inutilidade e inconveniência. Disseram a Demóstenes que não faltavam promontórios desertos no Peloponeso, caso ele desejasse, por uma ocupação, que a cidade tivesse despesas.9 Objeção argumentativa que obriIV.3.1. IV.3.1. IV.3.2. A razão dada para a renitente recusa dos estrategos em encampar o projeto de empreendimento guerreiro vislumbrado por Demóstenes, nos termos em que a memorizou Tucídides (“...que a cidade tivesse despesas...”; as atribulações financeiras do Estado ateniense por ocasião da campanha de Pilos, são análisadas por D. M. Lewis, 1992, p. 385 e 420), lembra as reações de inibição preventiva dos estrategos atenienses em campanha, por vezes temerosos dos furores punitivos da assembléia popular suscitados pelos revezes bélicos devido às inciativas temerárias de seus mandatários. A essa 295 6 7 8 9 Francisco Murari Pires gou Demóstenes a revelar mais claramente quais eram seus desígnios, já apontando as particularidades que distinguiam especialmente Pilos como base estratégica de operações: “Um porto próximo, mais o fato de que os messênios, familiarizados com a região desde tempos primevos e falando o mesmo dialeto dos lacedemônios, poderiam causar graves danos tomando-a como base, e ainda serem seus guardiães confiáveis”.10 O plano de Demóstenes supunha, portanto, a ocupação permanente de Pilos como base de incursões contra os domínios lacedemônios na área, visando, assim, gerar distúrbios para o Estado espartano, em desestabilizando uma de suas fontes básicas de sustentação material: as terras agrárias e os contingentes hilotas da Messênia. Para tanto, Demóstenes projetava uma composição com elementos messênios, certamente hostis à dominação lacedemônia. Desdobrando, pois, o alcance da estratégia pericleana de enfrentamento de Esparta, Demóstenes procurava alicerçar a contrapartida ateniense à política lacedemônia de pilhagens sistemáticas ao território da Ática, sendo de notar que sua iniciativa coincidia precisamente, e praticamente respondia à renovação anual dessas incursões espartanas.11 O empenho argumentativo de Demóstenes, todavia, não conseguiu persuadir o assentimento dos estrategos, nem tampouco o encampamento de seu projeto pela tropa em geral.12 De modo que, assim neutralizada a postura de uma passividade militar de prudência pessoal se contrapõem, as virtudes de audácia inovadora e consoante autonomia de operações, que a figura demostênica de comando sugere. 10 11 IV.3.3. Para as questões concernentes aos aspectos da estratégia guerreira de enfrentamento de Esparta, inicialmente previstos por Péricles, e seu desdobramento efetivado no episódio de Pilos agora supondo o epiteichismos, vejam-se: D. M. Lewis (1992: 381 e 386-388) e J. Roisman (1993: 34). A frase tucidideana (“hós dè ouk épeithen oúte toùs strategoùs oúte toùs stratiótas hústeron kaì tois taxiárchois koinósas”: “como não persuadia nem os estrategos nem os solda296 12 Mithistória atuação de Demóstenes, permaneciam todos inativos em Pilos, pois impossibilitados de prosseguirem a navegação. Foi então, diz Tucídides, que: “Os próprios soldados ociosos impulsivamente dispuseram-se a circundar o local com uma muralha e, pondo mãos à obra, levantaram-na. Não dispunham de ferramentas para talhar as pedras, recolhendo as mais apropriadas e rejuntando-as da melhor maneira possível. Quando tinham de usar argamassa, por falta de recipientes, a carregavam às costas, curvando-se para que a carga se mantivesse tanto quanto possível no lugar, e cruzando os braços para trás a fim de impedi-la de escorregar”.13 Assim, por um lado devido à interferência ocasional de uma tempestade e, por outro, em razão da não menos desconcertante iniciativa decisória, tão súbita quanto impulsiva, da massa dos comandados – só porque tediosos –, determinou-se levar a cabo a fortificação ateniense em Pilos. Empresa bélica, pois, carente de melhor planejamento previsivo, como o revelam os trabalhos mesmos de fortificação, totalmente eivados de predos, e posteriormente tendo também se comunicado com os taxiarcas”; IV.4.1) ensejou intrincada exegese filológica e hermenêutica, alguns críticos suspeitando corrupção do texto a reclamar emenda (assim Gomme, 1956: 440), já outros imaginando especulações que preservem sua integridade (ver: R. Weil, 1988), sem que nenhuma das alternativas de soluções vislumbradas pelos modernos tenha, entretanto, se imposto peremptoriamente (confiram-se, por um lado, os comentários de Wilson, 1979, p. 62-64, e de Roisman, 1993, p. 34-35; por outro, os de Hornblower, 1996, p. 155-6). O dilema supõe, entre outras aporias, resolver também que plausibilidade pode haver em Demóstenes envidar persuadir ou os taxiarcas ou os guerreiros ordinários no sentido de viabilizar a execução de seu plano, como que, assim subversivamente, intentando uma espécie de rebelião contra o comando oficial! E, todavia, a intriga desse incidente contribui também para a fixação do sentido do episódio como obra determinante do acaso, pois, por ele, a narrativa situa o total isolamento (e, assim, impedimento) de Demóstenes enquanto o único sujeito a planejar e desejar a consecução daquele empreendimento bélico. 13 IV.4.1-2. Gomme (1956: 439) lembra, em contraponto, “os cuidadosos preparativos tomados para a expedição contra Mégara, logo a seguir à campanha de Pilos” (IV.69.2). 297 Francisco Murari Pires cariedade e despreparo. Então, acontecimento marcado pelo caráter fortuito, imprevisto. Por essa percepção narrativa decorre singular paradoxo, pois ela apresenta Demóstenes desprovido de qualquer poder decisório enquanto sujeito determinante dos rumos da expedição14, os quais, entretanto, realizam-se de fato segundo os objetivos mesmos previamente concebidos em seus planos: a ocupação e a fortificação de Pilos. De modo que o acontecimento efetivado é justamente o previsto e planejado pelo agente que, todavia, é dado como desprovido de poder de decisão, contrariamente ao que dispusera a ordem da assembléia ateniense. Assim, pelo jogo de paradoxos composto pela narrativa, a determinação dos acontecimentos aparece dissociada do campo da direção previsiva e deposta na obra imprevisível do acaso. Uma outra conjunção de acontecimentos fortuitos favoreceu igualmente a ocupação ateniense de Pilos, pois, observa Tucídides, retardou o reforço lacedemônio em defesa do local. Informa o historiador que os atenienses empenhavam-se por concluir o mais rapidamente possível os trabalhos de fortificação, preocupados que estavam com a eventualidade de os mesmos serem prejudicados pela chegada dos lacedemônios. Estes, todavia, não partiram imediatamente em socorro de Pilos. Pois, narra Tucídides, aconteceu desse episódio coincidir precisamente com a celebração de um festival em Esparta, então não interrompido.15 Além do mais, eles pouco se afligiram com a notícia da ocupação ateniense, pois estavam confiantes em, assim que entrassem em campanha, poderem facilmente desalojar os invasores. Também, em certa medida, acrescenta ainda Em descompasso, portanto, com as ordens decididas pela assembléia, que dispunham o emprego da frota por Demóstenes “como ele bem entendesse durante o percurso de contorno do Peloponeso”. Qual fosse precisamente, não se sabe. Hornblower (1996, p. 156) aventa não tratar-se de um festival de maior importância e duração, pois não impedira a realização da campanha guerreira de invasão da Ática daquele ano. Assim, igualmente o entendem Holladay e Goodmann (1986: 159). 298 14 15 Mithistória Tucídides, contribuiu o fato de seu exército encontrar-se, naquela ocasião, na Ática, em sua campanha anual de devastação das terras inimigas. Todos esses fatores somados retiveram os lacedemônios, que não intervieram assim com a prontidão que tanto preocupava os atenienses.16 Desse modo, a narrativa tucidideana apreende outras explicações para o acontecimento, agora circunscrevendo o horizonte conjuntural de sua determinação. Duas ordens de realidades o compõem: as razões que expressam propriamente os motivos e os interesses inerentes à atuação dos agentes participantes do acontecimento, mais as circunstâncias ocasionais que constituem o momento de sua efetivação. As determinações de ambas essas ordens de realidade se somam, pois direcionam o acontecimento para um mesmo fim, no caso, o retardamento da intervenção lacedemônia em defesa de Pilos. Tanto contribuiu a desconsideração e irrelevância com que a ótica lacedemônia teria tratado a ocupação de Pilos17, quanto influíram as imposições que a interferência do acaso dispõe imprevisivelmente em jogo. De modo que, conta o historiador, os trabalhos da fortificação duraram seis dias sem quaisquer estorvos lacedemônios, dando-se então a partida do grosso da frota ateniense, que retomava agora o rumo de Corcira e da Sicília, deixando Demóstenes com cinco navios de guarda no local. 16 17 IV.4.3-5.1. Transparece aqui o tema da fama do exército espartano: força guerreira que, por ser tal a confiança depositada em seu poderio, não se apressou em impedir, ou nem mesmo em logo dificultar, a ocupação do local, pois acreditava que de lá desalojaria os invasores assim que a isso se dispusesse. Bastaria que se encerrassem as festividades que então os ocupavam prioritariamente – a desimportância do ataque ateniense não reclamava sua interrupção –, ou quando muito bastaria que aguardassem a volta das forças estacionadas na Ática, pois, uma vez em marcha para lá, ou já os próprios atenienses apavorados abandonariam a fortificação, ou, senão, eles facilmente a tomariam de assalto. Confiança de um poder de tal superioridade a tornar fácil qualquer sua empresa que raia por pretensões de apanágios divinos, em representações conceituais trágicas que antes dizem do erro de cegueira (áte) de uma visão assim ofuscada em sua presunção de força superlativa! 299 Francisco Murari Pires Todavia, logo a seguir na narrativa, Tucídides informa quais foram os procedimentos espartanos então adotados para a defesa de Pilos. O exército lacedemônio que se encontrava estacionado na Ática, nem bem fora notificado da ocupação, retornou velozmente para o Peloponeso, pois: “Os lacedemônios, com seu rei Ágis, consideravam que o episódio de Pilos lhes concernia particularmente. Tanto mais que, como a invasão fora prematura, com o trigo ainda verde, faltavam alimentos para a maioria; e sobreveio um frio extremo, excepcional para a estação, que oprimiu o exército. De forma que ocorreram vários fatores a apressarem a sua retirada, com esta invasão tornando-se a mais curta de todas, pois permaneceram na Ática por quinze dias”.18 Tucídides opera aqui o mesmo esquema narrativo de explicar o acontecimento pela identificação do leque de suas instâncias de determinação, o qual compõe em sua trama as motivações deliberadas dos agentes entrelaçadas com a interferência de fatores objetivos ocasionais e circunstanciais. Agora Tucídides lembra a ocorrência de um frio extemporâneo, mais as dificuldades de alimentação devido à incursão prematura, ambos estes fatores pesando para a desistência lacedemônia. E, assim, a composição narrativa atenua a percepção da gravidade com que Ágis e os lacedemônios consideraram o episódio, pois, tomados de viva inquietação, decidiram o pronto regresso ao Peloponeso. Mas, pelas implicações indiciadas pelos informes do próprio texto tucidideano, depreende-se que Esparta preocupou-se seriamente com aquela investida ateniense contra seus domínios, pois tomou várias medidas em contrapartida. Não só chamou de volta o exército em campanha na Ática, quanto despachou de imediato as forças espartanas mais os contingentes periecos vizinhos19 para Pilos, ao passo que os demais lacedemônios demo18 19 IV.6.1-2. Hornblower (1996, p. 158) ajuíza que “periecos vizinhos” deve ser entendido como referência, não aos de Esparta, mas aos das cercanias de Pilos, provavelmente os de Methone e Kyparissia. 300 Mithistória raram um pouco mais a pôr-se em marcha, dado que estavam acabando de voltar de uma outra campanha. E ainda, Esparta difundiu convocações por todo o Peloponeso no sentido de que se enviassem socorros a Pilos o mais rápido possível, além de ordenar o envio, também para lá, da frota peloponésia de sessenta navios, ancorada em Corcira.20 A frota peloponésia retornou então em direção a Pilos, atravessando em sua rota pelo diolkos do estreito de Lêucade, e passando despercebida à frota ateniense estacionada em Zacinto.21 Demóstenes, de seu lado, despachara duas naus a enviar uma mensagem a Eurimedonte, no comando da frota estacionada em Zacinto: “que eles se apresentassem, dado que a praça corria perigo. As naus, assim, navegavam velozmente, em conformidade com as ordens de Demóstenes”.22 Por aqui, então, ficamos sabendo que a frota ateniense não fora para Corcira, que seria seu destino precípuo, como o dissera inicialmente o relato tucidideano. Não, detivera-se em Zacinto!23 E, desta altura em diante, a narrativa tucidideana da campanha de Pilos configura inequivocamente o comando absoluto de Demóstenes, sem mais quaisquer traços daquela apresentação de seu confronto de autoridade com os dois 20 21 IV.8.1-2. Das, todavia elípticas, informações dadas por Tucídides, Wilson (1979, p. 67-69) conjectura uma reconstituição da rota marítima pela qual a frota peloponésia teria tido sucesso em esquivar-se à vigilância da frota ateniense que, sediada em Zacinto, lá dispusera-se a interceptar sua passagem (veja-se, logo abaixo, a nota 21). Mas, os silêncios informativos que a narrativa tucidideana deixa não poderiam mais uma vez estar compondo a sugestão de outra vicissitude do acaso nesse episódio? IV.8.2-4. Parada que não parece ter sido meramente ocasional, segundo as análises de Wilson (Pylos, p. 67-69), estimando que desde sua partida de Pilos, até a chegada das duas naus mensageiras, ter-se-iam decorrido pelo menos cinco dias, ao passo que bastariam dois, no máximo três dias, para que elas cobrissem a distância que separa Zacinto de Pilos (cerca de 70 milhas). Assim, entende este crítico, a estada da frota em Zacinto respondia por um objetivo tático da campanha: exercer a vigilância contra o retorno da frota peloponésia em socorro de Pilos. 301 22 23 Francisco Murari Pires estrategos, antes ressaltado no início do texto. Agora, pois, em total consonância com o informe tucidideano acerca da decisão mesma da assembléia ateniense que ordenara a campanha: concedera plenos poderes a Demóstenes para dispor da frota como bem entendesse. A seguir, Tucídides passa a expor os planos de ação de ambos os lados, primeiro o do ataque lacedemônio à fortificação de Pilos, e depois o de sua defesa, concebido por Demóstenes. Os lacedemônios, em uma ação combinada das forças terrestres e navais, concentrariam seus esforços decididamente no sentido de desalojar os atenienses da fortificação. Observa Tucídides que eles confiavam consegui-lo com certa facilidade, pois tratava-se de uma construção feita às pressas e contando com poucos defensores. Porém, caso não tivessem êxito antes da chegada do reforço da frota ateniense de Zacinto, previram como neutralizá-la, de forma a que ela não viesse a prejudicar o prosseguimento do cerco contra Pilos: “Eles tencionavam barrar as entradas do porto, a fim de impedir que os atenienses nele abordassem”.24 O que, explica Tucídides, era perfeitamente factível, pois a Ilha de Esfactéria protege toda a extensão do porto, deixando apenas duas estreitas entradas em suas extremidades: “Por uma, do lado da fortificação ateniense e de Pilos, passam dois navios; pela outra, na direção da parte restante do continente, oito ou nove”.25 24 25 IV.8.5. IV.8.6. A crítica moderna entregou-se aqui a uma insolúvel polêmica, que dura já mais de um século e meio, a arguir a melhor veracidade dos informes de medidas dados por Tucídides. As tentativas dos críticos de encontrar nas imediações de Pilos um outro cenário topográfico, que não propriamente a moderna Baía de Navarino, que melhor se ajustasse aos “erros/acertos” da descrição tucidideana, foram descartadas pelas críticas de W. Kendrick Pritchett (1994: 150). Confiram-se ainda nossos comentários externados no ensaio final desta coletânea, “Leões alados e círculos triangulares”. 302 Mithistória Assim, os lacedemônios tencionavam bloquear totalmente o acesso naval a Pilos, perfilando compactamente suas naus junto às entradas do porto, com as proas voltadas contra o inimigo. E, como medida complementar, além de postar guerreiros pela orla continental do porto fariam a ocupação da ilha fronteiriça, Esfactéria, pois eles “receavam não viessem os atenienses a guerreá-los tomando-a por base”.26 O plano lacedemônio previa, portanto, um cerco cerrado à fortificação ateniense de Pilos, isolando-a completamente de sua frota, de forma que esta, comenta Tucídides, “veria contra si tanto a ilha quanto o continente” e, assim, não teria nem mesmo onde “abordar, pois a área de Pilos que fica para além da entrada, do lado do mar, era desprovida de portos”.27 A prudência estratégica do plano lacedemônio residia, portanto, em evitar o enfrentamento com o poderio naval ateniense. Assim, estima Tucídides, “os lacedemônios, sem combate naval nem riscos, provavelmente reduziriam a praça pelo cerco, estando ela desprovida de víveres e ocupada sem maiores preparativos”.28 Tal era o plano lacedemônio, pelo que relata Tucídides. E, de imediato, guarneceram Esfactéria com um contingente hoplita, constituído por guerreiros sorteados dentre todas as companhias, os quais assim revezavam-se nesse encargo. Demóstenes, de seu lado, planejou a defesa de Pilos minuciosamente. Antes de tudo, recolheu as trirremes que tinham permanecido com ele, protegendo-as junto à fortificação.29 Armou precariamente sua tripulação: 26 27 28 29 IV.8.7-8. IV.8.8. IV.8.8. Wilson (1979, p. 57-58) aborda detalhadamente os intrincados problemas da precisa identificação desta manobra, bem como das demais disposições de defesa tomadas por Demóstenes, consoante aquela epistemologia de determinismo de inspiração positivista, que conforma uma vertente de tradição historiográfica da Antigüidade Clássica. 303 Francisco Murari Pires “Com escudos ridículos, a maior parte de vime, pois não havia como prover armas numa região deserta. E mesmo essas, obtiveram-nas de uma nau pirata de trinta remos e de uma embarcação leve, (naus) de messênios que ocasionalmente (por lá) apareceram, nas quais havia cerca de quarenta hoplitas, (então) empregues junto com os demais”.30 A narrativa tucidideana marca, assim novamente, como a precariedade e o despreparo da expedição ateniense foram, entretanto, bem favorecidos pela obra do acaso. Demóstenes dispôs, a seguir, suas forças, de modo a enfrentar o ataque lacedemônio em suas duas frentes, terrestre e naval. Colocou a maior parte delas nos pontos melhor fortificados e seguros, a fim de repelir as investidas da parte do continente. Quanto ao ataque marítimo, concentrou a defesa num ponto único – fora das muralhas, junto ao mar –, onde conjecturava que o mesmo se efetuaria. E logo Tucídides expõe as razões que levavam Demóstenes a esse prognóstico: “Era um terreno difícil e rochoso, que dava para o mar aberto, mas como lá a muralha era mais fraca, ele achava que eles seriam tentados a atacar ali. Com efeito, os atenienses sequer esperavam que fossem ficar inferiorizados no mar, não amuralhando fortemente esse ponto. E, caso o inimigo forçasse o desembarque, o local seria facilmente tomado”.31 Então, descendo com suas tropas – sessenta hoplitas selecionados mais alguns arqueiros – à beira-mar, Demóstenes exortou-as ao combate pronunciando um discurso, o qual a narrativa tucidideana (re)constitui, projetando quais fossem as considerações e pronunciamentos que mais 30 IV.9.1. Tanto esta, como as demais notas tucidideanas respeitantes à participação de messênios nos acontecimentos de Pilos, são apreciadas pela crítica moderna como previamente planejadas por Demóstenes, antes do que ocasionais e fortuitas como o assevera Tucídides. IV.9.2-3. 304 31 Mithistória apropriadamente respondiam por aquela situação, segundo o supõem seus próprios princípios metodológicos.32 Seu discurso inicia por uma forte advertência, fundada na consideração e exame da situação crítica em que se encontravam as forças atenienses: “Soldados que compartilhais os presentes riscos, que nenhum de vós, no imperioso desta situação, queira dar mostras de inteligente, calculando tudo que nos envolve de temível, em vez de lançar-se decididamente esperançoso contra o inimigo, de modo que, mesmo nestas circunstâncias, haja salvação”.33 A fala ajuíza a situação em que se deparam os atenienses: é tão arriscada, periclitante e temerosa que é desesperadora, não propiciando ela mesma qualquer ânimo esperançoso de salvação. Esta, então, só pode provir de sua própria cegueira, da mais total ignorância de qualquer consciência analítica; pelo contrário, uma tal análise fica inclusive interditada. Pois, apotegmatiza a fala de Demóstenes, sempre que a necessidade se impõe, como agora, não se permitem absolutamente cálculos, exige-se arriscar tudo na hora. O movimento seguinte da peroração demostênica, entretanto, elabora justamente a reflexão analítica que sua advertência aos comandados acabara de dissuadir.34 Num exercício sofístico de reverter o lado inferior do 32 Confiram-se as formulações do dito capítulo metodológico tucidideano, particularmente no que respeita à reconstituição dos discursos (I.22.1). Se tais discursos exortativos, com que comandantes insuflam ardor belicoso em suas tropas, referem fatos mesmos (como o supõe a maioria dos estudiosos) ou antes apenas ficções compositivas tucidideanas (tese de V. Hansen, todavia recusada pelos críticos; confiram-se os comentários de Hornblower, Commentary, 1996, p. 82-83), não importa considerar aqui, e sim que realidade de percepção do panorama militar da batalha eles figuram no âmbito da trama narrativa por que Tucídides projeta sua inteligibilidade do fato. IV.10.1. Sobre tais idiossincrasias de uma retórica ambivalente de afirmações de teor negativo a inviabilizar procedimentos discursivos, entretanto logo revertidas pelo discurso então 305 33 34 Francisco Murari Pires exame da questão no superior, e vice-versa, Demóstenes procura convencer seus guerreiros das vantagens que a situação oferecia mais a eles do que aos adversários. Para tanto, exigia-se dos atenienses duas condições de postura: a firme e inquebrantável resolução de manter seu posicionamento, evitando o desembarque dos lacedemônios, mais o não se deixar impressionar e amedrontar pela superioridade numérica dos adversários. Assim agindo, disporiam de duas vantagens. Primeiro, o próprio local, dada a sua inacessibilidade: mantendo-nos firmes, ele será nosso aliado. Mas, a firmeza de um posicionamento não cediço é condição indispensável, essencial, pois é ela, e não a inacessibilidade em si, que torna-lhes o local vantajoso, já que, pelo contrário, em caso de recuo, se bem que fosse penoso, (o local) não apresentará dificuldades se ninguém o obstruir. Portanto, conjectura Demóstenes, se for permitido o desembarque e avanço espartano, o jogo de (des)vantagens se inverte, pois, seriam agora os adversários que usufruiriam tal vantagem, oferecida pela inacessibilidade do local desde que eles sim mantivessem a firmeza de sua posição: tendo o local impérvio à retaguarda, o combatente torna-se mais temível, pois sabe que por ele a retirada não é fácil. Toda vantagem ateniense advém, portanto, da manutenção do posicionamento, pois em seus navios é fácil rechaçá-los, porém, se desembarcarem, a vantagem desaparece, e a igualdade se instaura.35 Segundo, a superioridade numérica dos adversários, por outro lado, não constituía propriamente uma vantagem, dado que, argumenta o discurso de Demóstenes, eles combateriam em pequenos grupos por vez, devido às dificuldades da abordagem. Desde que os atenienses mantivessem firmemente sua posição, impedindo o desembarque dos lacedemônios, estes combateriam em situação desvantajosa – sobre seus navios, na dependência de uma série de fatores favoráveis –, enconsumado, vejam-se as considerações lembradas no ensaio “A retórica do método”. Mas que a massa dos soldados comuns não deva tecer uma tal análise intelectiva, antes apropriada para o sujeito que detém o comando, compõe suposto ideológico de condizente retórica. 35 IV.9.2-3. 306 Mithistória frentando todas as dificuldades próprias de um desembarque diante do inimigo.36 E, assim, a narrativa tucidideana, pela exposição que traça dos planos de combate de ambos os contendores, projeta uma percepção de suas respectivas situações, estimando conseqüentemente as perspectivas de sucesso de cada lado. Do lado lacedemônio, ela distingue certeza e segurança: previsão de facilidade de efetuar o cerco à fortificação ateniense dada a precariedade da mesma, ancorada ainda em estratégia complementar que assegurava o prosseguimento do cerco até mesmo com a chegada da frota ateniense. Já do lado ateniense, percebe riscos, perigos e desesperança, além de despreparo, precariedade e imprevistos: fortificação feita às pressas e sem os recursos necessários, armamentos medíocres, e posição ainda vulnerável porque equivocara-se em sua previsão de que não fossem ficar inferiorizados no mar, o que obriga a correr riscos totais como sua única possibilidade de sucesso. A descrição tucidideana do ataque lançado pelos lacedemônios a Pilos vem, entretanto, confirmar singularmente as conjecturas calculadas por Demóstenes, tanto no que diz respeito ao provável local onde aqueles tentariam o desembarque, quanto acerca do fracionamento das forças inimigas face às dificuldades que o local lhes oporia: “Trasimélidas, o navarca espartano, lançou o ataque contra o ponto precisamente esperado por Demóstenes. Os atenienses resistiam em ambas as frentes, em terra e no mar. Os lacedemônios dividiram seus navios em pequenos grupos – porque não lhes era possível abordar em maior número –, os quais avançavam e se detinham por turnos”.37 E, por mais outro paradoxo dos tantos com que Tucídides narrou a campanha de Pilos, aqui na descrição do combate, são os lacedemônios que aparecem enfrentando mais duramente as dificuldades impostas pelo local, e vendo-se na situação de ter que arriscar tudo. Pois essa foi a exorta36 37 IV.10.4-5. IV.9.2-3. 307 Francisco Murari Pires ção que, em reprimenda, Brásidas dirigiu à frota peloponésia, quando acusou a hesitação de seus trierarcas e pilotos, os quais, receando arruinar seus navios, não punham todo o empenho em tentar o desembarque: “Ele gritava que era inadmissível que, para poupar pranchas38, ficassem a contemplar os inimigos a fortificarem o local e, pelo contrário, ordenavalhes que destruíssem seus navios, forçando o desembarque; quanto aos aliados, nada de hesitações: em retribuição a tantos benefícios, que eles sacrificassem suas naus pelos lacedemônios nessa ocasião, aportando-as e por todos os meios efetuando o desembarque, a fim de apoderarem-se dos homens e do local”.39 E Brásidas mesmo dava o exemplo fazendo avançar seu navio, já preparando-se para o desembarque. Porém, foram em vão a diligência e a bravura heróica do espartano, pois, “rechaçado e bem ferido pelos atenienses, perdeu os sentidos e tombou junto à toleteira40, enquanto o escudo se soltava de seus braços e caía no mar”.41 E ineficazes foram todos os avanços dos lacedemônios, pois, apesar de todo o seu ardor, “não lhes foi possível de38 A exortação, assim, dita, conformada em figura de metonímia – pranchas por naus –, ressalta a excepcionalidade da bravura de Brásidas, por modos guerreiros que rompem as estritas normas de comportamento tipicamente espartano: dado o alto custo de construção das naus que exigiam madeiras próprias, e o fato de que fosse rara a existência de uma frota espartana (confiram-se os comentários de Hornblower, Commentary, 1996, p. 164-165), entende-se a cautela maior com que os outros trierarcas cuidassem por não destruí-las na abordagem. IV.11.4. O entendimento de parexeiresía por toleteira é precisado por Hornblower em seus comentários (1996, p. 165-166): “a estrutura construída a projetar-se para fora da trirreme destinada a ajustar os toletes da fileira superior de remadores”. Pelo retrato heróico, com ecos de linguajar homéricos (Hornblower, Commentary, 1996, p. 43-47), que a narrativa tucidideana dá do feito valoroso de Brásidas, que apenas (não) cede quando alijado do combate por “ferimentos inúmeros mais desmaio”, diz-se ainda que o escudo do espartano, arrastado até a praia, foi depois recolhido pelos atenienses, que dele se valeram para erigir seu troféu de vitória (IV.12.1). A figuração heroicizante de Brásidas, a lembrar os modelos homéricos, fixou-se enfaticamente na 308 39 40 41 Mithistória sembarcar por causa das dificuldades do local, e porque os atenienses mantinham-se firmes sem recuar”.42 E, no remate final da descrição da investida peloponésia, Tucídides apresenta um novo traço caracterizador do episódio de Pilos, a também compor o quadro de inteligibilidade de sua percepção do mesmo: o máximo de um paradoxo totalmente inusitado. Novamente, produto da obra do acaso: “O acaso assim invertera as situações que, enquanto os atenienses, em terra e país lacônio, rechaçavam aqueles que avançavam por mar, os lacedemônios, de seus navios, tentavam desembarcar em sua própria terra, que lhes era inimiga; com efeito, o que mais do que tudo constituía sua fama nessa ocasião era, para uns, serem eles continentais, poderosos por seus exércitos terrestres, e para os outros, serem marítimos, superiores sobretudo por sua frota naval”.43 Em Pilos, pelos jogos retóricos antitéticos caros à narrativa tucidideana, os acontecimentos levaram a situações tão inusitadas a ponto de operarse uma total inversão das disposições. Atenas combatia como Esparta: a defesa, por exército terrestre, de área lacônia. E Esparta guerreava como Atenas: o ataque, por frota naval, de um ponto peloponésio. O que, considerando a fama guerreira de ambos naquela ocasião, negava-lhes as respectivas identidades, tanto a continental lacedemônia que primava pela defesa por poderio terrestre, quanto a marítima ateniense que se distinguia pela agressão por força naval. Todas as investidas lacedemônias, ao longo daquele dia mais parte do seguinte, foram infrutíferas. Resolveram, então, inverter a estratégia de seu ataque, pretendendo agora lançá-lo contra o ponto que estimavam estar memória grega, pelo que o assinala uma passagem de um diálogo platônico (Banquete, 221c) em que Alcibíades elege Brásidas como padrão de heroicidade guerreira contra o qual mede a excelência de Aquiles! 42 43 IV.12.1-2. IV.12.3. 309 Francisco Murari Pires melhor defendido, porém cuja área de desembarque não oferecia maiores dificuldades. Para isso, enviaram navios a Asine em busca de madeiras com que construir máquinas de assédio.44 Nesse meio tempo, surge a frota ateniense, composta, informa Tucídides, por quarenta navios, agora reforçada por naus guardiãs de Naupacto mais quatro navios de Quios45. Mas os atenienses não encontraram ponto onde ancorar, pois o porto estava dominado pela frota adversária, e tanto o continente como Esfactéria estavam guarnecidos com hoplitas inimigos. Foram, então, nesse dia aportar em Prote, uma ilhota a pequena distância dali. Retornaram no dia seguinte, decididos ao combate, fosse em mar aberto, caso os lacedemônios o aceitassem, fosse, caso contrário, no próprio porto, quando tomariam a iniciativa do ataque. Os lacedemônios, de seu lado, não se dispuseram a enfrentar a frota ateniense em mar aberto e, estranhamente pelo que dá a entender a narrativa tucidideana, não executaram também a medida planejada para impedir a entrada da frota inimiga no porto. Eles simplesmente não tomaram qualquer iniciativa: 44 Provavelmente algo de rudimentar, aríetes e escadas de assalto, ao que conjecturam os comentadores modernos (Gomme, 1956, p. 450; Hornblower, 1996, p. 167). IV.13.2. “Quarenta” é a leitura dada pelos manuscritos. Os críticos modernos (Gomme, 1956, p. 450; de Romilly, p. 20 e 177-178; Hornblower, 1996, p. 167) acusam um erro de transmissão do texto, pois tal montante da frota ateniense contradiz o conjunto dos demais dados tucidideanos a esse respeito. Assim, pelo que informa o historiador, da frota inicial que partira de Atenas – quarenta navios –, descontados os três remanescentes com Demóstenes (os cinco originais menos os dois mensageiros a Zacinto), mas somados os reforços agregados pelas naus guardiãs de Naupacto mais os quatro de Quios, obtem-se um total superior a quarenta e um! Como, mais adiante, Tucídides diz que a frota ateniense, incluídos já os reforços de vinte navios vindos posteriormente (IV.23.2), montava a setenta navios, optou-se por corrigir o texto, assim nele lendo cinqüenta ao invés de quarenta. Wilson (1979, p. 93), entretanto, arrazoa outras conjecturas a defender a plausibilidade do informe tucidideano, mantendo, portanto, a leitura original. 310 45 Mithistória “Eles não se antepuseram no mar, nem aconteceu de bloquearem as entradas, como haviam planejado. Contentaram-se com tripular e preparar as naus, (estacionadas) em terra, e caso algum (navio ateniense) adentrasse, travariam combate no porto, que não era pequeno”.46 A não execução do bloqueio do porto aparece, assim, na narrativa tucidideana como um acontecimento um tanto enigmático: algo imprevisto, inesperado, que contrariava a estratégia planejada, não se atinando com clareza as razões que o justificariam.47 A narrativa lembra sucintamente a alegação de terem os lacedemônios reconhecido haver espaço suficiente no próprio porto para lá mesmo travarem o combate, caso as naus atenienses o adentrassem. Ora, mas esta consideração acerca da largura do porto não invalidava aquela estratégia inicial de bloqueio do mesmo, de forma a recomendar sua desistência. Ela não fora planejada prevendo o enfrentamento naval das forças atenienses. Pelo contrário, isso era o que ela justamente se propunha evitar por meio do bloqueio das entradas. E, estratégia esta de boa prudência, pois, comentara-o já Tucídides, por ela os espartanos evita46 47 IV.13.4. Seria falacioso o informe mesmo da existência do plano? Ou os espartanos teriam sido surpreendidos por uma manobra de diligência rápida da frota adversária? Ou deram-se os espartanos conta de sua inviabilidade, face aos equívocos quanto à suposta estreiteza das passagens, especialmente a meridional? Ou os espartanos ter-se-iam enganado quanto à retirada da frota ateniense que tomara o mar largo ao constatar que eles dominavam os locais de aportagem, assim entendendo que não era mais necessária aquela manobra de barragem face à desistência do ataque inimigo? E, neste caso, não teria havido uma dissimulação astuciosa da parte da frota ateniense nessa sua retirada do porto em direção a Prote? Assim, os comentadores modernos (vejam-se, entre outros, as minuciosas discussões encetadas por Wilson, p. 75-84) interrogam-se especulando soluções para esse enigma histórico informado pela narrativa tucidideana. Mas, preencher de (nossas) razões os vazios dos silêncios tucidideanos, além de extraviar a análise por certa viciosidade de hermenêutica perfunctória já acusada especialmente por W. Kendrick Pritchett para os estudos tucidideanos de Westlake (1994: 146) ou em termos mais genéricos por D. M. Lewis (1992: 380), contraria justo a teleologia da trama narrativa, cujo sentido enfatiza mesmo as irracionalidades que tomaram o desenrolar dos acontecimentos da campanha de Pilos. 311 Francisco Murari Pires vam os riscos de se defrontarem com o superior poderio naval de seu adversário. Quer dizer, pela apreensão com que Tucídides narra a não execução do bloqueio pelos lacedemônios, ele surge como um acontecimento inexplicável, ou melhor, que somente pode ser entendido como meramente um acontecimento: simplesmente ocorreu isso, os lacedemônios não executaram a estratégia previamente arquitetada! O quão sabiamente prudente era aquela supostamente alegada estratégia, e o quão desastrosa se revelou a sua não execução, é induzido pela narrativa a seguir. O ataque da frota ateniense foi fulminante. Pôs em fuga a maior parte da frota inimiga que ganhara as águas para enfrentá-la e, aproveitando a curta distância do local, perseguiu-a causando estragos em vários de seus navios e apossando-se de cinco, dos quais um com toda a sua tripulação. Quanto às naus que ainda se encontravam em terra, umas eles destruíram, e outras rebocaram vazias após a fuga de suas tripulações.48 Os lacedemônios agora foram tomados por aflições desesperadas, pois vislumbravam já o alcance do desastre: a perda da frota isolava seus companheiros em Esfactéria. Assim, empenharam-se furiosamente em salvar as naus que ainda lhes restavam, travando-se junto às mesmas uma tumultuada disputa: “Adentrando armados no mar, atracavam-se às naus e puxavam, com cada homem achando que o combate emperrava onde ele mesmo não estivesse presente.49 Instaurou-se uma enorme confusão, invertendo-se, na disputa pelas naus, os modos (de combate) de ambos. Com efeito, os lacedemônios, por ardor aterrorizado, como que travavam, por assim dizer, um verdadeiro combate naval no solo, enquanto os atenienses, superiores e desejosos de explorar ao máximo o acaso das circunstâncias, travavam um combate terrestre do alto dos navios”.50 48 49 50 IV.14.1. Adotamos aqui o entendimento de tradução proposto por Hornblower (1996, p. 168). IV.14.2-3. Gomme (1956, p. 452) acusa a artificialidade forçada do retrato tucidideano, que ressalta a inversão dos modos de combate de infantaria espartano com a naval 312 Mithistória E a percepção e inteligibilidade dos acontecimentos de Pilos, assim construídos pela narrativa tucidideana, projetam mais uma vez a interferência da obra do acaso, que agora novamente se efetiva por essa anômala e esdrúxula inversão das formas tradicionais de combate de ambos os contendores. Esparta, que sempre se apresentava no campo de guerra confiante na fama de sua falange hoplita, agora tirava seu ardor do pânico que a tomava, pondo todo seu desesperado empenho em salvar sua frota, e numa posição altamente desfavorável, pois como que travava um combate naval em terra. Atenas, ao contrário, explorava ao máximo a ocasional superioridade de sua posição vitoriosa, entregando-se a um combate terrestre do alto de seus navios. Ambos os lados, termina Tucídides, sofreram danos consideráveis. E, embora os lacedemônios alcançassem êxito em seu intento de salvar as naus que lhes restavam, foram os atenienses que bem proclamaram a vitória, elevando um troféu. De imediato, iniciaram o cerco naval de Esfactéria, cruzando com seus navios ao redor da ilha. E, assim, esse excepcionalmente inusitado combate naval, pleno de acontecimentos fortuitos e paradoxais, acabou por definir o destino singularmente inesperado que selou a campanha de Pilos: as forças espartanas, que vieram para render pelo cerco a fortificação ateniense em seu território, viam-se agora na situação exatamente inversa, isoladas e cercadas na Ilha de Esfactéria pela frota inimiga. ateniense, ajuizando que o episódio nada tinha de excepcional, antes supunha a maneira trivial porque, em águas junto à praia, guerreiros tentam tomar as naus dos inimigos delas expulsos, enquanto estes lutam ainda desesperadamente por impedi-los! E, assim, apontadas suas razões, o crítico desqualifica a tal ponto a narrativa tucidideana, que preferiria não tivesse ela tal identidade denominadora (“I should be glad to believe that Thucydides did not write this”). Sem enveredar pela discussão de tal ajuizamento da realidade factual episódica, assim suposta pela crítica de Gomme (e, todavia, veja-se, nesse sentido, a réplica observada por J. de Romilly em nota à sua tradução desta passagem, p. 10), o sentido maior da composição narrativa tucidideana melhor se aprecia pelo teor geral da singular inteligibilidade que mais esse retrato projeta em sua percepção da campanha de Pilos. Então, ganha relevo o contraste dramaticamente irônico de uma cena em que soldados espartanos aferram-se a salvar navios quando, pouco antes, Brásidas a todos exortara no sentido contrário de que se os sacrificasse, gritando-lhes que não se apegassem a meras pranchas! 313 Francisco Murari Pires Assim que, em Esparta, as autoridades foram notificadas dos episódios de Pilos, resolveram, estimando a gravidade desastrosa dos mesmos, ir examinar no próprio local a situação dos lacedemônios, para melhor decidir a respeito. Esta avaliação, informa Tucídides, não foi nem um pouco animadora: “Percebendo que era impossível socorrer os guerreiros, e não querendo correr riscos – ou que eles padecessem pela fome, ou que fossem forçados a submeter-se por (uma tropa mais) numerosa –, decidiram propor aos estrategos atenienses, caso estes acedessem, a conclusão de uma trégua respeitante a Pilos, e enviar embaixadores a Atenas tendo em vista um tratado, esforçando-se, assim, por resgatar os seus companheiros o mais rápido possível”.51 O armistício foi concluído nas seguintes condições, todas arroladas por Tucídides. Os lacedemônios entregariam a sua frota em penhor aos atenienses, tanto as naus com que haviam combatido em Pilos quanto as que estivessem na Lacônia, comprometendo-se ainda a não atacar a fortificação ateniense, nem por terra nem por mar. Em troca, os atenienses permitiriam que fosse enviada aos guerreiros isolados em Esfactéria uma quantia estipulada de “massa de pão: duas quênices áticas de farinha de cevada por 51 IV.15.2. Westlake (citado por Hornblower, 1996, p. 168) aponta a inconsistência desta apreciação desastrosa com que os oficiais avaliaram o panorama bélico lacedemônio em Pilos, entendendo-a não condizente com o que a narrativa tucidideana informara imediatamente antes (capítulo 14), a qual não ensejaria nem permitiria tal extremo de pessimismo, como se a frota peloponésia tivesse sido virtualmente aniquilada. Já Wilson e Beardsworth (igualmente citados por Hornblower) ponderam no sentido contrário, considerando que de fato as chances espartanas de furar o bloqueio fossem baixas, a acautelar-lhes contra qualquer empreendimento de maior risco, como o relata Tucídides. Todavia, divergências polemizantes estas que supõem antes vícios de laivos críticos da tradição erudita moderna entregue a jogos especulativos de imaginações hipotéticas, a conjecturar eventuais razões que supostamente teriam mobilizado os atos dos personagens históricos (veja-se, por exemplo, o estudo que Wilson, Pylos, 1979, p. 91-92, consagra a essa “problemática”). 314 Mithistória guerreiro, mais dois cótilos de vinho e carne (para os auxiliares, a metade desses montantes)”.52 Ficava também acertado que tais envios far-se-iam sob inspeção dos atenienses, ficando os espartanos comprometidos a não remetê-los às ocultas. Os atenienses, de seu lado, comprometiam-se a não operar nenhum desembarque na ilha, nem dirigir qualquer ataque contra o acampamento lacedemônio, seja por terra seja por mar. O acordo previa, finalmente, que quaisquer que fossem as infrações cometidas contra esses termos, a trégua estaria rompida. Ela estender-se-ia, complementa ainda o informe tucidideano, até o retorno dos embaixadores espartanos, quando então os atenienses restituiriam os navios lacedemônios.53 Entretanto, prossegue Tucídides, fracassadas as negociações de paz em Atenas54, encerra-se a trégua. Os lacedemônios reclamam já a restituição de sua frota naval, entregue aos atenienses em Pilos como garantia avalizadora do armistício. Porém, estes recusam-se a fazê-lo, alegando não terem aqueles respeitado cláusulas estipuladas para a trégua: um suposto ataque lacedemônio contra a fortificação, mais outras transgressões menores. Fundamentando-se no termo do acordo que previa, no caso de violação da trégua por um lado, que o outro ficava desobrigado de seu cumprimento, os atenienses retiveram a posse das naus lacedemônias. Foram inúteis os protestos espartanos acusando a injustiça do procedimento ateniense.55 52 É o próprio texto dado por Tucídides que consagra a incoerência verbal apondo, além de álphita (farinha de cevada), também vinho e carne como itens subsumidos por siton memagménon (farinha amassada). Nesse sentido, confiram-se os comentários de Gomme (1956, p. 453), que avalia a ração diária de alimentos, assim dispensada aos guerreiros espartanos como consideravelmente generosa, se comparada com as similares concedidas às refeições palacianas dos reis espartanos quando ausentes das sissítias – “duas quênices de farinha de cevada mais um cótilo de vinho” (Heródoto, VI.57) –, ou com as usuais reclamadas minimamente para a subsistência de guerreiros ordinários em campanha – “uma quênice de trigo” (Heródoto, VII.187). IV.16.1-2. A análise da narrativa das assembléias atenienses concernentes à campanha de Pilos será objeto de nosso ensaio seguinte “Péricles e Cleonte, democracia e demagogia”. IV.23.1. 315 53 54 55 Francisco Murari Pires Ambos os lados retomaram, então, as hostilidades. Os atenienses concentraram seus esforços na vigilância do cerco naval a Esfactéria, agora reforçado pela chegada de mais vinte navios vindos de Atenas, perfazendo assim setenta. Permanentemente, durante o dia, duas naus percorriam, em sentido contrário, seu contorno. À noite, a frota, na sua totalidade, ancorava ao redor da ilha, evitando somente o lado do mar aberto quando havia vento. Já os lacedemônios limitavam-se a ataques contra a fortificação ateniense em Pilos, aguardando uma oportunidade para tentar salvar o contingente isolado em Esfactéria.56 Quando Tucídides retoma a narrativa dos acontecimentos de Pilos, secionada pelo relato dos eventos simultâneos da Sicília57, o cerco de Esfactéria estendia-se já por um bom tempo. Numa frase tensamente condensada, Tucídides marca o cenário inalterado do empenho bélico: de um lado, persistia o bloqueio da ilha pelos atenienses e, de outro, os lacedemônios permaneciam ocupando suas posições no continente. A idéia de prolongamento inconcludente do cerco que a frase compõe dá início ao retrato do panorama de perplexidade que esse prolongamento suscita. Tucídides passa, então, a examinar circunstanciadamente o quadro contextual do desenrolar dos acontecimentos em Pilos nesse lapso de tempo, assim intentando explicar por quais razões assim se passara. Ocorrera uma inversão total nas situações de (des)favorecimento ocasional no jogo de forças entre os exércitos em confronto. Pois, por ocasião da embaixada espartana que viera a Atenas solicitar a paz, era Esparta quem se encontrava em posição extremamente delicada, senão crítica. As autoridades lacedemônias que, naquela oportunidade, haviam examinado a situação em Pilos, não vislumbraram qualquer possibilidade de represálias que lhes propiciasse o resgate do destacamento isolado em Esfactéria. A sorte deste, por sua vez, era sombria, devido à gravidade com que se colocava a questão de sua subsistência: o local era desabitado, não oferecia recursos 56 57 IV.23.2. IV.24-25. 316 Mithistória alimentares, e era precário o suprimento de água, dado existir lá somente uma fonte salobra. Os riscos do prosseguimento do cerco, estimados pelas autoridades lacedemônias, eram altíssimos: ou as agruras e infortúnios da fome, ou a rendição. Foi precisamente por reconhecer a situação crítica deparada por suas forças em Esfactéria que Esparta viera a Atenas solicitar a paz, sujeitando-se, inclusive, a uma trégua acertada em termos altamente desfavoráveis a ela.58 Agora, com o prolongamento inconcludente do cerco, não só não se arruinara a sorte do contingente lacedemônio, inicialmente conjecturada, como ainda, pelo contrário, a situação se revertera contra Atenas. Era ela quem agora estava às voltas com a premência de suprimento de alimentos. É que, esclarece Tucídides, as mesmas circunstâncias altamente desfavoráveis e precárias de campanha naquela região, que de início oprimiram os espartanos em Esfactéria, operavam agora também contra os atenienses em Pilos. Havia dificuldades de aprovisionamento de víveres, sendo especialmente angustiante o abastecimento de água: “A única fonte existente, na própria acrópole de Pilos, não era copiosa, tendo assim a maioria que escavar os pedregulhos na praia para beber algo que se assemelhasse a água”.59 Somavam-se ainda as desvantagens que o local da fortificação ateniense em Pilos apresentava: estreiteza da área de acampamento, mais a falta de boas aportagens. O que lhes causava transtornos, levando a tripulação da frota a parceladamente alternar-se em terra para a alimentação, permanecendo o restante ancorada ao largo. Assim, a narrativa tucidideana compõe o retrato da nova peripécia que a aventura de Pilos reservara: a reversão das situações agora atingia os atenienses que se viam nessa paradoxal posição muito mais de sitiados do que de sitiantes. 58 59 Confiram-se os comentários de Hornblower (1996, p. 170). IV.26.2. 317 Francisco Murari Pires E essa peripécia frustrava agora as expectativas dos atenienses, quando antes frustrara as dos lacedemônios. Estes, ao iniciarem o cerco à fortificação ateniense de Pilos, esperavam terminá-lo rapidamente. Também os atenienses, observa Tucídides, alimentavam tais esperanças quando bloquearam Esfactéria: “Eles presumiam que o cerco duraria poucos dias, (por ser) em uma ilha deserta e onde os guerreiros disporiam somente de água salobra”.60 E, todavia, o cerco se prolongava, contrariando os cálculos previstos. Tanto maior o desânimo dos atenienses que não conseguiam atinar como que os lacedemônios, nas precárias condições em que se encontravam, resistiam ao bloqueio? Especialmente, como conseguiam eles prover sua subsistência por todo esse tempo de duração do cerco? O enigma, assim tecido pela narrativa, é então desfeito pelas informações etiológicas de que o historiador dispõe. Os lacedemônios, dá a entender o relato tucidideano, valeram-se de medidas excepcionais, de operações espetaculares de elevadíssimo risco, por manobras mirabolantes, para prover de gêneros o contingente bloqueado em Esfactéria. Antes de tudo, Esparta, como que reconhecendo as dificuldades extraordinárias do empreendimento, tentou sua realização por meio de consideráveis atrativos: ofereceu, em proclamação aos voluntários que se arriscassem a transportar provisões (trigo moído, vinho, queijo e outros) para a ilha, boas recompensas em dinheiro, assim como a liberdade para o caso de hilotas se candidatarem. Os riscos e perigos eram de tal monta, que era particularmente pela condição inferior destes últimos que se ousava assumi-los. De duas maneiras conseguiam eles fazer chegar os gêneros. Ou navegando à noite, sendo obrigados a aguardar que soprasse o vento do lado do mar aberto, o que tornava impraticável a vigilância ateniense ao redor de Esfactéria. Mas, eram tão dificultosas e arriscadas as operações dessa nave60 IV.26.4. 318 Mithistória gação, que os hilotas, não tendo como aportar com segurança na ilha, arremessavam suas naus contra a costa, não receando perdê-las, tendo os lacedemônios se comprometido a ressarcir-lhes os prejuízos. E que essa era a única maneira dos navios hilotas alcançarem Esfactéria, prova-o o fato de que aqueles que se aventuraram em tempo calmo foram capturados. Ou, segunda possibilidade, “mergulhadores submersos” atravessavam o porto ”a nado, rebocando por uma corda alimentos condicionados em sacos de couro (sementes de papoula embebidas em mel e sementes de linho piladas)”.61 Os procedimentos e os meios de que os lacedemônios assim se valeram para enfrentar a situação crítica do abastecimento de seus companheiros isolados em Esfactéria, lembram o aforisma expresso por Demóstenes quando se vira em situação igualmente precária: quando todas as circunstâncias são desfavoráveis a ponto de não admitir o cálculo analítico-previsivo dos acontecimentos, exige-se a extrema ousadia de quem tudo cegamente arrisca sem pestanejar. E, todavia, as informações que Tucídides acolhe para desfazer o enigma são tão ou mais enigmáticas do que o enigma por elas desfeito. Pois foram incríveis, mirabolantes mesmo, os esforços e expedientes de que se valeram os espartanos para prover a subsistência de seus companheiros. O cometimento exigia nada menos do que atravessar a nado o porto por uma extensão de cerca de 6,5 km, e ainda submersos e rebocando o recipiente com alimentos! Outra aporia, já na dependência de soprarem os ventos favoráveis à noite, exigia, por sua vez, navios para efetuar a travessia. A frota lacedemônia, naquele momento, pelo que se depreende das informações tucidideanas, estava de posse dos atenienses. E foram, todavia, hilotas quem dispuseram de seus próprios navios! E dispor plenamente, pois a aportagem em Esfactéria exigia o sacrifício dos mesmos. Tucídides esclarece que Esparta comprometera-se a ressarcir-lhes o valor antecipadamente estipulado. Não explica, entretanto, como conseguiriam eles retornar da ilha, já que não po61 IV.26.5-8. 319 Francisco Murari Pires diam contar mais com suas naus? Ou permaneciam eles na ilha, agravando ainda mais o problema da carência de alimentos?62 E, em ambas aporias, tinham ainda que vencer a vigilância da frota ateniense, por permanente vigia de duas naus, das setenta que a compunham, dedicada exclusivamente a essa tarefa! Todavia, foi graças a esses mirabolantes expedientes clandestinos que, segundo o narra Tucídides, o contingente lacedemônio conseguiu resolver suas dificuldades alimentares por um longo período de quase dois meses63! 62 63 Esta interrogação é levantada já por Gomme em seus comentários (1956, p. 467). Os aspectos informativos do relato tucidideano lembram antes modos conceituais mitificantes de memorização de acontecimentos. A solução da travessia a nado submerso compõe a única (in)viabilidade solucionadora intrigada pelos impasses da situação. Assim, similarmente se concebe, ao modo reverso, a resolução inteligente da fuga de Dédalo da aporia de sua prisão em Creta por duplo cerco, não apenas a pelo dos recintos amuralhados palacianos mas também pelo da frota minóica que guardava as costas litorâneas: para escapar restava apenas a única espacialidade de via disponível, o vôo pelos ares! Já o despacho dos hoplitas sugere mais ritos desesperados de sacrifícios propiciatórios de uma crise insuperável por outros modos, assim apropriadamente situada pela figura dessa categoria social no Estado espartano. Também, os itens alimentares sugerem determinações conceituais. As sementes de papoula embebidas em mel mais as sementes piladas de linho, por seus efeitos de virtudes precípuas, parecem dizer que “alimentos” são os mais apropriados para suportar as agruras da fome e da sede, antes do que prover mesmo sua subsistência! Assim, o esclareceu a nota do escoliasta: “a papoula é uma espécie de erva de que a seiva, ao que se diz, é letal, mas a polpa é dulcíssima e capaz de, misturada com mel, afastar a fome; a semente pilada de linho cura a sede por um pouco tempo, razão por que é ministrada aos febris pelos médicos” (confira-se o texto em Gomme, 1954: 467). Similarmente, os mitos dizem da suspensão temporária de consciência do estado penoso por efeito de torpor ou de sono (o atendimento que os deuses deram à prece de Odisseu na Ilha de Hélios), ou de bebida (vinho, oblívio de males), ou de droga (nepenthes de Helena). Os aspectos constitutivos da (ir)realidade do acontecimento, espécie de limiar factual em que faceiam plausibilidade e implausibilidade a compor sua (ir)realidade extraordinária, sugerem os modos trágicos de composição das ações míticas teorizados por Aristóteles na Poética: a caracterização de suas determinações deriva dos atos praticados por consoantes nexos porque o caráter do agente determina a ação. 320 Mithistória E o impasse do cerco ateniense a Esfactéria permanecia sem qualquer perspectiva de solução, até que ainda uma vez ocorreu outra interferência de um acaso providencial! Ao que narra Tucídides, Demóstenes, em Pilos, estava agora firmemente resolvido a desfechar o ataque contra Esfactéria.64 Duas ordens de razões, cujos efeitos se somam, impeliam-no a tal decisão. Primeiro, a própria disposição dos guerreiros que, já impacientes e incomodados com aquela situação antes de cercados do que de sitiadores, pressionavam-no a arriscar o ataque. E, segundo, mais outro fortuito golpe do acaso dos tantos da campanha de Pilos: acidentalmente alastrou-se um incêndio que destruiu a cobertura de matas de Esfactéria. Aconteceu, com efeito, que, quando um destacamento ateniense vira-se obrigado a ancorar na ilha para realizar suas refeições, um de seus soldados “ateou acidentalmente fogo a um pequeno trecho de bosque e, vindo depois a soprar um vento, o incêndio tomou a maior parte da mata sem que fosse percebido”.65 Mais uma vez a narrativa tucidideana ressalta a interferência decisiva que teve o acaso na determinação dos sucessos da campanha de Pilos. Pois, explica o historiador, Demóstenes, que já tinha experienciado em sua derrota anterior na Etólia66 os empecilhos inviabilizadores de ataques militares em 64 Roisman (1993: 33) supõe que o retardamento da execução do plano de Demóstenes, em efetuar o ataque contra o contingente lacedemônio em Esfactéria, era devido também em parte a cautelosos receios de incidir nas desastrosas perdas de combatentes atenienses, já por ele experienciadas na campanha da Etólia face a similares riscos de incursões em áreas florestais. IV.30.2. Confira-se III.97-98. George Cawkwell (1977: 73-74) é cético quanto à suposta experiência militar de Demóstenes para incursões em áreas de floresta, especialmente referencida ao plano de ataque ao contingente espartano em Esfactéria, assim intentando desacreditar a descrição tucidideana que projeta naquele general ateniense virtudes de capacidade estratégica previsiva. Tal, entretanto, não é o entendimento de Joseph Roisman, que examinou criticamente todos os episódios guerreiros de sua trajetória histó321 65 66 Francisco Murari Pires áreas florestais, não se animava a empreendê-lo. Ele avaliava que a mata, associada à ausência de caminhos, pois a ilha era inabitada, favorecia os ocupantes contra os invasores. De um lado, porque ela ocultaria sejam as disposições sejam os deslocamentos dos primeiros, de modo que os segundos, incapazes de localizar os adversários, ficariam à mercê de suas iniciativas indetectáveis. De outro, porque, caso ele forçasse o ataque na mata, a própria superioridade numérica67 de suas tropas reverter-se-ia em desvantagem, devido à natureza intransitável do terreno: ela entravaria a movimentação conjunta do exército grande, ao passo que a tropa menor ainda viabilizaria seu avanço porque, já familiarizada com a área, criaria seus próprios caminhos. E o incêndio ainda, prossegue Tucídides, propiciou a Demóstenes mais outro favor, ensejando-lhe a justa apreciação do contingente numérico lacedemônio: “era superior, já que ele inicialmente suspeitara que o número de soldados para os quais eram mandados víveres fosse menor que o declarado”.68 rica como comandante narrados por Tucídides, assim apreciando, com melhor ponderação, tanto os primores (“engenhosidade, habilidade tática, acuidade diplomática, discernimento previsivo planejador”) quanto os limites (humanos) da areté de inteligência estrategista demostênica. Suas ponderações delineiam, então, com melhor precisão o alcance da experiência militar de Demóstenes, especialmente no que concerne às possibilidades de seu planejamento do desembarque em Esfactéria (confiram-se suas análises às páginas 38-39). 67 Para as estimativas dos totais de contingentes guerreiros ateniense (800 hoplitas, 800 arqueiros, 800 peltastas e cerca de 500 messênios e outros combatentes, além de 8.030 tripulantes dos navios) e lacedemônio (cerca de 1.000 combatentes, dos quais 420 hoplitas) nos combates finais em Esfactéria vejam-se as análises de Wilson (1979: 105106). IV.30.3. Wilson (1979: 100) insiste ainda em outro ponto, não expressamente destacado pela narrativa tucidideana: agora Demóstenes podia descortinar qual era a disposição estratégica de defesa das tropas espartanas, sediadas em três pontos de guarnição, pela qual ele ordenaria a tática de sua investida invasora. Assim também o entende Roisman (1993: 39). 322 68 Mithistória Assim, o incêndio na mata de Esfactéria, memorizado como acidente fortuito pela narrativa tucidideana, foi providencial para viabilizar o ataque ateniense. E tanto mais que esse incidente reverteu maravilhosamente o jogo de vantagens contra entraves que a topografia de Esfactéria disponibilizava para o enfrentamento dos dois exércitos. Sob o ocultamento da cobertura boscosa eram as tropas lacedemônias que contavam com sua dupla ordem de favores: de um lado, a capacidade de iniciativa bélica agressora contra o desnorteamento de um adversário apenas reduzido a mero alvo; de outro, a melhor exploração do terreno intransitável que inviabilizava a movimentação conjunta do exército em avanço agressor. Justamente essas duas ordens de vantagens militares, uma vez destruída a capa de mata, viriam a atuar decisivamente instrumentalizando a vitória campal ateniense!69 Então, consoante com o teor geral do relato tucidideano da campanha de Pilos (des)entendida como obra do acaso, a efetividade deste modo de acontecimento consuma justamente a teleologia guerreira almejada pela empresa bélica ateniense, de modo a ensejar iniciativas militares de Demóstenes tais como se ele mesmo as tivesse planejado intencionalmente! Bela história de uma ocorrência fatual conformada, ao que diria Aristóteles, em termos narrativos pelos melhores padrões de tragicidade poética! Já para nós, historiadores modernos, afeitos a um senso crítico incrédulo, sempre desconfiado contra inverdades textuais, resta-nos apenas suspeitar o acúmulo de tais coincidências fortuitas70, pois prisioneiros da teia de (des)informações de sua memorização tucidideana exclusiva. Principiado ao ensejo do fogo acidental, o desembarque ateniense em Esfactéria, dando início à resolução do cerco, prosseguiu então com a 69 Veja-se, logo a seguir, a descrição narrativa do combate junto ao posto central de defesa lacedemônio em Esfactéria. Vejam-se, nesse sentido, os dilemas inconcludentes postos pelos comentários especulativos de Wilson (1979, p. 103), e as reticências de Hornblower (1996, p. 189). 70 323 Francisco Murari Pires batalha campal, lá travada contra as forças lacedemônias. Também esta compõe derradeira anomalia, agora vitimando a fama guerreira espartana. A fama espartana Tucídides finaliza sua narrativa da campanha de Pilos apontando a perplexidade geral que tomou conta dos gregos face a seu desfecho: “Dos eventos da guerra, esse foi, ao ver dos gregos, o mais inesperado”.71 Até Esfactéria, Esparta gozava fama guerreira impoluta entre os gregos, a qual projetava em sua falange hoplita a aura de força imbatível. Fama imperante ao abrir-se a Guerra do Peloponeso. Assim, a estratégia pericleana contra Esparta tinha por princípio evitar cabalmente qualquer enfrentamento campal em que tivesse de medir forças com a falange hoplita lacedemônia. Fama atuante no desenrolar dos episódios mesmos da campanha de Pilos. Assim, nas deliberações da assembléia que conferiu a Cleonte o comando da expedição de reforço às tropas atenienses acantonadas em Pilos, essa fama guerreira foi presumivelmente explorada (pelo que dá a supor o estilo elíptico da narrativa tucidideana) como argumento dissuasivo do prosseguimento daquele esforço bélico pelos interesses inclinados a promoverem a paz com Esparta, tanto que Cleonte, mobilizado no sentido contrário, teve que desafiá-la para viabilizar o êxito de sua proposição bélica agressiva: afirmou, como uma de suas bravatas estigmatizadas pelo texto de Tucídides, que não temia os espartanos.72 E fama aterrorizadora que os atenienses, no combate decisivo em Esfactéria, tiveram que superar, o que só se deu já durante o desenrolar do 71 72 IV.40.1. IV.28.4. 324 Mithistória mesmo, quando os atenienses ganharam confiança devido ao ocasional fracasso da temida potência ofensiva do exército espartano. Pois, conta Tucídides, de início as forças atenienses restringiram-se a fustigar de longe a falange lacedemônia. Só depois ousaram avançar seu ataque, agora encorajados, não tanto por sua superioridade numérica, quanto especialmente porque: “Já se haviam habituado mais a que o inimigo não lhes parecesse tão temível, pois este não lhes infligira os danos que esperavam sofrer (inicialmente, quando desembarcaram, a idéia de ter de combater os lacedemônios os paralisava)”.73 Fama alicerçada na excelência da consecução espartana da modalidade de combate da falange hoplita, comprovada nos campos de batalha já no decorrer do século VI e ao longo do V.74 Surpreendentemente em Esfactéria, contrariando a expectativa de todos fundada na fama distinguidora do combatente espartano, estes tinhamse rendido. O impossível ocorrera. Pois, como bem proclamava essa fama, a dignidade guerreira de Esparta jamais admitia, mesmo nas situações mais forçosas (nem fome, nem qualquer outra necessidade) a entrega das armas ao inimigo. Antes, o espartano preferia a morte como horizonte admissível para a derrota: com seu escudo, ou sobre ele, tal era o preceito exigido de seu retorno do campo de batalha.75 Eis que agora, resultado bélico desse 73 74 75 IV.34.1. Confiram-se as indicações de Cartledge (1977: 11). Assim uma mãe espartana (Plutarco. Moralia, 241F16), sucedânea lacedemônia da figura homérica do pai conselheiro, que recomenda os preceitos de areté guerreira a seu filho quando este parte de casa inaugurando sua história heróica (“sempre distinguir-se e a todos sobrepujar”; cf. Ilíada VI.208 e IX.785), teria recomendado ao seu, agora hoplita. Areté homérica que firma heroicidade individual, de campeão guerreiro de distinção superior singular, precisamente assinalada por nomes pessoais (Aquiles, Glauco), agora transposta para o anonimato do valor coletivista homegeneizado do hoplita espartano indiferenciado por sua generalidade mesma. E de Arquíloco, poeta que can325 Francisco Murari Pires episódio, Atenas passava a exibir os troféus de sua vitória sobre a falange de Esparta, a assinalar as máculas de sua desonra. Lá estavam em Atenas os hoplitas epartíatas vivos, prisioneiros por rendição! Lá estavam também, altivamente consagrados em exposição na Stoa Poikile, os signos dessa humilhação guerreira do tradicional adversário: escudos de bronze – untados de pez para melhor assegurar pela eternidade aquela glória em os preservando contra os efeitos deletérios do tempo e corrosão – que, diziam os atenienses, tinham sido tomados aos espartanos aprisionados em Esfactéria! Pausânias ainda lá os viu por meados do século II de nossa era.76 E fama gloriosa de não rendição dos hoplitas espartanos, apenas imposta sob morte, que especialmente a memória histórica das Termópilas sedimentara, então recentemente avivada pela narrativa herodoteana contemporânea dos inícios da Guerra do Peloponeso. Mas também esta memória ficava agora ofuscada em seu brilho por aquele revés espartano. Justamente Tucídides, ao relatar a rendição do destacamento lacedemônio em Esfactéria, entendeu assinalar o paralelismo deste evento para com o episódio das Termópilas. Conta o historiador que as forças lacedemônias, desnorteadas e totalmente acuadas no enfrentamento ocorrido junto ao posto central de defesa, por eles armado na ilha, cerraram suas fileiras e, recuando do campo de batalha, conseguiram ganhar o último de tais postos. Lá puderam, então, defender-se com relativa facilidade, dada a vantajosa localização natural de sua fortificação, a qual tornava impraticáveis as investidas tara zombeteiro uma outra eticidade guerreira não tão zelosa desse preceito – “Meu escudo compraz algum saio, bela arma que abandonei junto à moita, mas a vida salvei. Que me importa aquele escudo? Que se vá; um outro adquiro não pior” –, conta-se uma anedota de que, nem bem pusera os pés em território lacedemônio em certa ocasião, de imediato foi de lá expulso (Plutarco. Moralia 239B34). 76 Descrição da Grécia, I.15.4. Até nós chegou um desses espécimes, que não se sabe ao certo como fora parar numa cisterna por volta de 300 a.C., portando a inscrição: “Os atenienses (tomaram) dos lacedemônios de Pilos”. 326 Mithistória atenienses que tencionassem galgá-la lateralmente, ficando eles assim reduzidos ao ataque frontal. Todos os esforços dos atenienses empreendidos nesse sentido foram infrutíferos, tendo sido rechaçados todos os seus ataques.77 Foi então que o comandante messênio78, cujas forças auxiliavam os atenienses, argumentou com Cleonte e Demóstenes ser perda de tempo a insistência naquelas investidas frontais, conseguindo, assim, autorização e tropas para encontrar algum caminho por onde surpreender os espartanos pela retaguarda. E, embora não sem grandes dificuldades e esforços, realizou seu intento sem ser percebido, pois os lacedemônios, confiantes na defesa natural daquele lado do forte, não se preocuparam em guarnecê-lo.79 O episódio chamava o paralelismo com as Termópilas. E Tucídides assim o lembrou: “Os lacedemônios, alvejados agora de ambos os lados, encontravam-se na mesma situação desesperada que nas Termópilas, considerando no que o acontecimento menor se assemelha ao maior, pois, lá eles foram exterminados quando os persas os contornaram graças a uma trilha; aqui eles igualmente encontravam-se circundados, sem ter mais como resistir: antes, como eram poucos lutando contra muitos, e fisicamente debilitados devido à falta de víveres, cederam terreno”.80 Com as forças atenienses já senhoras dos acessos à fortificação lacedemônia, Cleonte e Demóstenes suspenderam o ataque a fim de evitar o extermínio do contingente espartano, que eles, ao contrário, desejavam 77 78 IV.35. Pausânias (Descrição da Grécia, IV.26.2) acresce ao informe tucidideano o nome desse comandante messênio – Cómon –, dele narrando a história posterior ao fim da Guerra do Peloponeso (a migração para as costas líbias, os sonhos oraculares e o retorno à Messênia, quando da restauração promovida por Epaminondas após Lêuctra). IV.36.1-3. IV.36.3. 327 79 80 Francisco Murari Pires levar vivo a Atenas. Proclamaram, então, pelo arauto, a que se rendessem entregando suas armas aos atenienses, os quais decidiriam de sua sorte.81 Como a maioria dos lacedemônios se mostrasse favorável, concluiuse uma trégua e iniciaram-se entendimentos visando à rendição. Estifonte – sobre quem recaíra agora o comando da tropa lacedemônia (Epitadas morrera, e o segundo na ordem de chefia, Hipagretas, fora dado como morto)82 – reclamou ter de consultar os espartanos no continente quanto à decisão a ser tomada. Esta era extremamente delicada, tanto que, após duas ou três consultas, a resposta daqueles mandatários definiu, com certeza cristalina, apenas e tão somente a sua desresponsabilização pela mesma: “Os lacedemônios conclamam-vos a decidirdes vós mesmos a vosso próprio respeito, sem que façais nada de desonroso”.83 Por um lado, a resposta à consulta circunscrevia a decisão ao âmbito de arbítrio dos próprios guerreiros, como que, suposta e presumivelmente, reconhecendo-a como direito que justamente lhes cabia, pois respeitante a suas próprias pessoas e sortes. Por esse viés, a decisão era-lhes colocada como opção em aberto. Mas, por outro lado, a recomendação de advertência por que ela terminava – que tal decisão não colidisse com nem arranhasse a fama da honra espartana – retirava-lhes uma tal opção de direito pessoal de indivíduos, definindo-a, pelo contrário, como dever, como obrigação: o que, pela preservação da honra de Esparta, lhes competia fazer. Mas isto, de certa forma, era ainda ambíguo. Pois, o que recomendava substantivamente esta honra? A resolução da ambiguidade reclamava alusivamente a atualização da memória daquela identidade espartana. E esta exigia a submissão do 81 82 83 IV.37.1-2. IV.38.1. IV.38.3. 328 Mithistória particular e pessoal ao coletivo, com a afirmação da pólis Esparta exigindo até mesmo a negação da individualidade cidadã. E, apreciada ainda a fama distinguidora de sua honra guerreira – o espartano opõe a morte à rendição –, aquela suposta ordem dos mandatários induzia o sacrifício dos guerreiros vencidos em Esfactéria. Por essa ótica, assim traduzida sua proposta pelas conotações da honra e fama guerreira espartana, a definição da sorte daqueles espartíatas estava já fechada desde o princípio, pois que, difusa e ambiguamente, formulada por aquela espécie de pronunciamento oracular ditado por seus mandatários precipuamente consultados. E, todavia, uma tal decisão de sacrifício não era nem um pouco simples, nem fácil, nem tranqüila, tanto assim que não tiveram firmeza resoluta nem mesmo as autoridades que a sugeriram. Não a emitiram como ordem direta, sem abrir aquele suposto campo de opção a ensejar a decisão no sentido contrário. Antes, preferiram contornar sua responsabilidade por meio daquele expediente oracular de sua indução indireta. Não ousaram, pois, assumir os comprometimentos implicados por essa decisão, o que justamente lhes era reclamado pela solicitação de Estifonte. Tal jogo de desresponsabilização pelo destino do contingente espartano cercado em Esfactéria, assim encetado por seus comandantes e mandatários, indicia já a gravidade dessa decisão, pois implicava a baixa crítica de um montante significativo de força guerreira no quadro militar espartano. Pode-se certamente entender que o desenrolar de ambos os acontecimentos bélicos – Termópilas e Esfactéria – comportasse incidentes precisos a ensejar a identificação de situações, com justeza apontados pela narrativa tucidideana: um contingente espartano, isolado por forças inimigas em local de difícil acesso e naturalmente fortificado, defende-se com êxito, sendo, todavia, vencido porque é envolvido pela retaguarda graças à inesperada, porém decisiva, utilização de uma trilha que viabiliza a investida que toma o ponto fortificado. Assim, a intervenção de Cómon em Esfactéria corresponde exatamente à de Efialtes nas Termópilas. Porém, essa identificação circunstancial termina aí, consiste somente desse incidente. O que o paralelismo operado por Tucídides, todavia, não 329 Francisco Murari Pires lembra, é a diferença crucial que dissocia as duas situações. Lá, nas Termópilas, o contingente espartano foi efetivamente massacrado, lutando valorosamente até à morte ao que proclamava sua fama, sem se render. Entretanto, nessa ocasião, não lhe foi oferecida esta alternativa opcional de rendição, o que, bem pelo contrário, marcou o episódio de Esfactéria. E, no campo aberto por esta opção, o que estava em jogo para a decisão – ou de sacrifício ou de rendição –, não era só, de um lado, a fama e honra guerreira espartanas contra, de outro, a sorte pessoal e individual de cada combatente. Agora, algo especialmente grave e crítico impendia sobre tal decisão, dada a especificidade histórica do contexto bélico espartano implicado por todo o episódio de Pilos: haveria que considerar a relevância da preservação daquela expressão de força militar que o contingente hoplita, cercado em Esfactéria, representava para Esparta.84 Mas Tucídides, na perspectiva global de sua narrativa, conformou a percepção do acontecimento – a rendição espartana em Esfactéria, assim encerrando a campanha de Pilos – pelos parâmetros da ótica da preservação da fama guerreira de Esparta. Pois, mais ainda do que surpresa e estupefação, prossegue Tucídides, o sucesso da iniciativa de Cleonte suscitou até mesmo incredulidade. De fato, o impossível ocorrera em Pilos: Esparta conhecera a derrota campal e, todavia, seus hoplitas permaneciam vivos, capturados pelos atenienses! Chegou-se então a pôr sob suspeição o valor dos guerreiros capturados: possuíam mesmo eles, “que haviam cedido suas armas, a qualidade de seus companheiros mortos?”85. Estes haviam afirmado aquela fama consagrada, ao passo que aqueles a negaram. E, assim, a comprovar estas suas considerações finais, Tucídides relata uma anedota, procedimento bem pouco usual em sua narrativa86, de cuja leitura apreendeu justamente a reação de incredulidade a que supostamente o êxito de Cleonte levara: 84 85 86 Confiram-se os comentários de Hornblower (1996: 194). IV.40.2. Veja-se o comentário de Gomme (1956: 480). 330 Mithistória “Posteriormente, quando alguém, dentre os aliados de Atenas, perguntou maldosamente a um dos capturados na ilha se seus companheiros mortos eram bravos e valorosos, o outro retrucou-lhe que seria inestimável esse fuso (querendo referir a flecha) caso distinguisse os bravos, desejando manifestar que as pedras e setas matavam aqueles que elas ao acaso atingiam”.87 A pergunta do aliado ateniense era bem venenosa. Capciosamente interrogava o valor guerreiro espartano, ironicamente localizando sua suspeição só nos combatentes mortos, sucumbidos no combate. Mas a resposta do espartano bem atinou a perspicácia enviesada dos alvos visados: o quanto ela atingia em cheio igualmente a honra deles mesmos, que haviam sido capturados vivos. A contraposição que pergunta e resposta compunham, a opor guerreiro tombado em combate e guerreiro que se rendera, supunha aquela fama distinguidora do espartano, aliás aludida pelo comentário tucidideano. Pois, porque Tucídides entende a anedota pela ótica dessa precípua fama guerreira de Esparta, ele apreende nela a prova da suspeita incrédula quanto ao valor dos guerreiros capturados vivos. E, assim, percebido o êxito do empreendimento de Cleonte pelos horizontes dessa ótica, ele se torna (in)compreensível, pois, para ser entendido e assimilado é preciso recusar-se a acreditar em seu próprio feito: não, Cleonte não pode ter derrotado e aprisionado verdadeiros espartanos! Mas, afinal, por quais modos se desenrolou o combate decisivo em Esfactéria, assim menosprezados pelo dito anedótico do guerreiro espartano? Os espartanos haviam guarnecido três pontos da ilha: um, pelo extremo sul, com uns trinta hoplitas; outro, central, com o grosso do contingente sob o comando de Epitadas, que defendia a fonte de suprimento de água; e o último, na extremidade setentrional para o lado de Pilos, que ocupava 87 IV.40.2. 331 Francisco Murari Pires uma antiga fortificação naturalmente protegida, prevista como refúgio em caso de retirada.88 O primeiro ataque voltou-se contra o posto meridional. Nele foram envolvidas todas as forças hoplitas atenienses, num total de cerca de 800 guerreiros. A bem dissimular sua investida, o ataque foi realizado ainda noite, com toda a tropa sendo embarcada em poucos navios, a aparentar que se tratava de mais uma das costumeiras ancoragens noturnas atenienses. Assalto fulminante, posto espartano pego de surpresa, massacre total!89 Depois, já dia, Demóstenes reuniu todas as suas tropas para a investida contra o posto central. Seu plano previa uma estratégia de combate polarizada pelo emprego das forças ligeiras. Primeiro, ele posicionou destacamentos de uns duzentos homens, alguns mais outros menos, todos artilheiros armados de pedras, a ocupar os pontos elevados do terreno, de forma a que desnorteassem os lacedemônios, assim circundados, quanto às frentes de combate que lhes eram oferecidas, pois, caso estes se decidissem a “atacar aos da frente, fossem alvejados pelos detrás, e se aos dos flancos, pelos dispostos do outro lado”.90 Conjugada a esse desnorteamento de falsas frentes de batalha, Demóstenes previa uma estratégia de ataques de escaramuças pelas tropas ligeiras, sempre a fustigar os espartanos pela retaguarda, conformando, assim, verdadeiro paradoxo de uma frente de batalha todavia reversa, agredindo por trás! Aqui, comenta o historiador, residia a dificuldade maior para o exército hoplita espartano, pois como combater forças que agrediam sempre à distância por projéteis arremessados (setas, dardos, pedras e fundas) e que, ligeiras por excelência, graças a seus arma88 89 IV.31.2. IV.31-32.1. Tanto Gomme (1956, p. 473) quanto Hornblower (1966, p. 189) apontam a similaridade dessa manobra de ataque de surpresa com a da investida astuciosa empregue por Demóstenes na campanha da Etólia (III.112.3), em que a frente de combatentes messênios obra a dissimulação dolosa do ataque ateniense. IV.32.3. Wilson (1979, p. 113) lembra a vulnerabilidade da falange espartana face a ataques de artilharia pelos flancos e retaguarda, toda a proteção defensiva de seus armamentos sendo adequada a agressões frontais. 332 90 Mithistória mentos leves, jamais se prestavam ao entrechoque almejado pelo pesado exército lacedemônio, antes dele sempre escapavam por momentânea fuga, quando o adversário avançava, para então, quando este se retraía, novamente o fustigarem?91 O plano estratégico arquitetado por Demóstenes associava, portanto, a atuação dos corpos de tropas que funcionavam como artilharia – seu objetivo resumia-se primordialmente em paralisar os ataques inimigos, desnorteando e inibindo suas movimentações pelo escamoteamento das frentes de combate antepostas – com as movimentações de escaramuças rápidas das tropas ligeiras que, alternando cargas e recuos fugazes, atacariam sempre à distância. Quer dizer, Demóstenes concebera um modo de combate contra o exército hoplita espartano em que suas forças monopolizariam todas as iniciativas de agressão, ficando os adversários totalmente acuados e praticamente indefesos contra seus ataques a distância!92 Narrativa tucidideana que expõe o plano estratégico de Demóstenes, e seqüente relato da batalha mesma, praticamente reiteram-se, a menos de alguns detalhamentos, todavia significativos. Os espartanos haviam disposto suas tropas segundo a boa ordem de formação cerrada da tática de combate da falange hoplita: posicionaramnas defronte ao contingente hoplita ateniense, contra o qual pretendiam avançar.93 Mas, logo que se puseram em marcha, viram frustrados os seus intentos e neutralizada toda sua excelência nessa modalidade de combate. Por um lado, porque Demóstenes lá postara os seus hoplitas somente para ludibriar os adversários por uma falsa frente de luta, dado que aquele contingente não correspondeu à iniciativa de avanço encetada pelos espartanos, antes permaneceu inerte. De outro lado, porque foram só as tropas ligeiras 91 92 IV.32.3-4. Remetemo-nos às considerações feitas acima em que apontamos a reversão miraculosa no jogo de vantagens contra entraves, suscitada pelo acidente fortuito do incêndio da mata. Gomme (1956, p. 475) chama a atenção para a similaridade relativamente à estratégia de combate arquitetada por Brásidas no enfrentamento de Mégara (IV.73.1-3). 333 93 Francisco Murari Pires atenienses que entraram em ação, fustigando o exército lacedemônio por disparos de ambos os lados, como que paralisando-o imantado a apenas defender-se ao ritmo das repetidas investidas e recuos daquelas, sem sequer poder persegui-las em suas manobras de fuga. A movimentação do exército espartano se complicara sobremaneira porque Demóstenes explorou magnificamente as dificuldades e entraves que o terreno lhe apresentava, bem acidentado naturalmente, o que agravava especialmente o ataque em bloco da falange hoplita. Era um combate totalmente inusitado: a falange espartana era enfrentada em terra, porém em um terreno impróprio, a inviabilizar a eficácia da tática hoplita. Um combate em que toda a ordem de valores, normas mais preceitos militares supostos pela modalidade de guerra hoplita eram desrespeitados. O campo em que ele se travava não elegera área plana, de amplo trânsito desimpedido, adequada ao avanço do bloco coeso da falange, como os locais férteis de planície, para a defesa e domínio dos quais essa tática de combate se constituíra historicamente.94 Em suas investidas, os atenienses valiam-se de todos os tipos de recursos de agressão guerreira, semeando confusão e pânico entre os espartanos. Saraivadas de setas, dardos, pedras e que mais projéteis lhes caíam nas mãos, eram acompanhados por gritaria medonha. A tudo somavam-se ainda nuvens de pó de cinzas do recente incêndio a turvar qualquer discernimento dos ataques agressores, com os lacedemônios, assim, tornados alvos indefesos. E defesas agora já inúteis, pois não só desmontada a formação de sua falange, porque a gritaria dos adversários ensurdecia as ordens de comando do movimento organizado, como ainda começava a revelar-se a inadequação de seus elmos de feltro95, que falhavam na prote94 95 IV.33.1-2. Há dúvidas entre os comentadores quanto à precisa identificação do que fossem os piloi mencionados pelo texto tucidideano, uns entendendo que se tratem de couraças, outros de capacetes (ou de aço, segundo Gomme, 1956, p. 475, ou de feltro, segundo Wilson, 1979, p.114, corroborado por Hornblower, 1996, p. 190), dado que o escoliasta a esta passagem informa essa dupla possibilidade. 334 Mithistória ção contra tais projéteis. Peripécias de um combate hoplita inusitado que progrediu sempre a aterrorizar e fragilizar os lacedemônios na medida mesma em que encorajava e fortalecia os atenienses, agora cada vez mais confiantes em uma, a princípio inacreditável, vitória contra a temida falange espartana! Então os lacedemônios, envoltos por perigos de todos os lados, agruparam-se em retirada a buscar refúgio na fortificação do último posto por eles guarnecido em Esfactéria, deixando pelo caminho algumas perdas de guerreiros atingidos pelos atenienses que os perseguiam.96 Os paradoxos que esse inusitado e desordenado combate revela pela narrativa tucidideana advém da ótica hoplita de sua percepção, que os apreende subordinado ao horizonte dos valores e preceitos dessa modalidade guerreira.97 O que, aliás, aquela anedota com que Tucídides encerra sua narrativa, respeitante ao guerreiro espartano capturado em Esfactéria, expressa cristalinamente: “Posteriormente, quando alguém, dentre os Aliados de Atenas, perguntou maldosamente a um dos capturados na ilha se seus companheiros mortos eram bravos e valorosos, o outro retrucou-lhe que seria inestimável esse fuso (querendo referir a flecha) caso distinguisse os bravos, desejando manifestar que as pedras e setas matavam aqueles que ao acaso atingiam”.98 A leitura tucidideana da anedota, mais o entendimento que por ela constrói em sua narrativa, apreendeu, como vimos, seu significado enviesando aquela ótica da fama guerreira espartana – que preceituava o interdito da rendição – por meio de uma singular apreciação desacreditadora das capacidades da figura de Cleonte, o demagogo. Entendimento, toda96 97 IV.34-35. Assim o entenderam já Gomme (1956, p. 475), Wilson (1979, p. 108) e Hornblower (1996, p. 190). IV.40.2. 335 98 Francisco Murari Pires via, extremamente redutor, dada a riqueza de significações que a anedota condensa. Assim, a referência à malignidade do aliado ateniense comporta ambiguidade de sentido, em conformidade com o entendimento da conotação da referência feita à Aliança de Atenas.99 Se esta supõe a animosidade do aliado para com a dominação ateniense, a frustração de sua expectativa em relação à campanha de Pilos, desejosa da derrota de Atenas, manifesta mais fortemente aquela malignidade como descarga de amargor e raiva, contra aqueles que ela particularmente responsabiliza pela derrota de Esparta. Se a pergunta do aliado não for marcada pelo peso dessa conotação específica, aquela malignidade se manifesta mais propriamente como escárnio e zombaria. E, neste caso, o sentido da anedota se enriquece particularmente, pois ganha intensidade a contraposição ateniense/espartano na agonística pela fama de valor guerreiro. É precisamente por esta última via de entendimento que caminha a resposta do prisioneiro. Pois ela reafirma altivamente o valor guerreiro espartano (tanto dos mortos em combate quanto dos capturados vivos) pelo menosprezo com que nega o mérito militar da vitória ateniense. Pois, interrogada pela sua (des)apreciação, de que modalidade de combate se valera Atenas para alcançá-la? Empregou armas que mais parecem coisas de mulheres, essas flechas-fusos, antes instrumentos próprios de tecelãs do que de guerreiros.100 E o que assinala essa forma ateniense de guerrear, prossegue a resposta do espartano, é a cegueira (e, portanto, a nulidade) 99 Já Gomme (1956: 480) explora a dualidade de significações que a anedota registrada por Tucídides comporta. Já na memória poética iliádica (XI.368-400), ao narrar o episódio do ferimento de Diomedes, alvejado por seta disparada por Páris, fixa-se uma imagem altamente denigridora da modalidade de (pretenso) combatente que o arqueiro representa. Ali, à vanglória com que o troiano tencionava assinalar seu feito glorioso, o filho de Tideu, altivamente impávido, replicou por uma pletora de insultos desaforados com que vilependiou seu adversário, desqualificando seus modos guerreiros: estes assinalam apenas covardia de quem antes evita e se recusa à luta, agredindo à distância, e não bravura 336 100 Mithistória valorativa de sua eficácia: indistingue bravos de covardes, pois seus projéteis atingem indiscriminadamente tanto uns quanto outros. Daí que o combate em Esfactéria, (des)apreciado pela ótica do hoplita, não só não discrimina o valor dos guerreiros espartanos de modo a arruinar a sua fama, como também não expressa qualquer valor militar da parte dos atenienses, pois estes, pela forma com que combateram, valem na guerra tanto quanto mulheres!101 de quem corajosamente se atraca no corpo a corpo com o inimigo; ser desprovido de qualquer valentia, aparência mentirosa de homem, cujos atos guerreiros o revelam denunciando antes sua natureza feminina. Delineamento de traços de modalidades e tipos de guerreiro diversamente apreciados por valorações heróicas, que se desdobram sedimentadas pela oposição que a emergência da figura do hoplita instaura na memória histórica da pólis clássica, especialmente figurado em textos trágicos (confiram-se as indicações dadas por Lissarrague, L ’autre guerrier, 1990, p. 13-34). E oposição hoplita/ arqueiro, assim polarizada pelas valorações da ótica do primeiro, que, em particular, destaca a identidade guerreira espartíata como modelo de excelência nesse modo de combate. Nesse sentido, a anedota memorizada por Tucídides é ecoada por outra, esta a nós guardada por Plutarco, que a conta por duas vezes (Moralia 234e; Vida de Aristides, 17): de Calicrates, em sua época tido como o mais belo espartíata, conta-se, a celebrar seu único (ambíguo) feito heróico digno de memória, que, alvejado mortalmente por uma seta dos persas ainda antes mesmo de iniciar-se o combate em Platéia, teria proclamado que o infortúnio que então afligia sua consciência última de vida não era o fato da morte, mesmo porque esse destino definia a teleologia guerreira espartana, mas sim porque morte inglória que inviabilizava-lhe a fama de um feito heróico maior. Ambíguo modo porque, em reconhecendo a desvalia de sua heroicidade, todavia a realizou positivamente pelo dito que a negava. E sinonímia entre excelência guerreira hoplita e identidade espartíata que outra memória celebrou (Xenofonte. Memoráveis, III.9.2) ao lembrar a reflexão socrática que afirmava ambiguamente ser a coragem virtude passível de aprendizado e instrução, pois, se por um lado ela se fortalecia pela exercitação e prática, todavia ficava condicionada à específica natureza guerreira em causa, pois, jamais um cita ou um trácio, todavia bem armados de arco ou de pelta, teria coragem com que ousasse enfrentar lacedemônios em combate de escudo e lança. 101 Mas essas mesmas memórias helênicas, que assim negam toda valia guerreira ao arqueiro, dizem também recessivamente o contrário, deixando entrever-se a realidade de seu valor e eficácia guerreira, já desde o retrato do episódio homérico do confronto 337 Francisco Murari Pires Ora, a recusa implicada por esse desacreditar operado pela narrativa tucidideana é consoante com o teor similarmente negativo de uma formulação antecedente: o descrédito com que ela compõe o traço essencial de seu retrato da participação de Cleonte nesse episódio. No horizonte desta percepção, o êxito da iniciativa de Cleonte torna-se tanto mais (in)compreensível, porque seu entendimento fica já amarrado pela depreciação que Tucídides tece da própria promessa com que Cleonte descortinara e planejara seu empreendimento desde o princípio, durante as deliberações da assembléia que o discutiu. No entender do historiador, essa promessa era totalmente insensata, estapafúrdia mesmo: “Os atenienses e os peloponésios com suas tropas deixaram então Pilos, cada lado retornando às suas casas. E a promessa de Cleonte, se bem que maluca, realizou-se: no prazo de vinte dias ele trouxe os homens, como prometera”.102 Por um lado, a narrativa tucidideana expressamente afirma a realização da promessa de Cleonte, e nos termos precisos em que este a formulara. Mas, por outro, ela continua a marcar a irracionalidade da mesma: sim, a promessa foi cumprida, mas era maluca! Quer dizer, nem pelo fato de ter-se realizado, deixou de ser o que inelutavelmente era desde o nascedouro: insensata, estapafúrdia. De modo que, num sentido, a narrativa tucidideana entre Diomedes e Páris: foi a seta disparada pela figura menosprezada deste “guerreiro-mulher”, que deteve a aristéia entretanto incontida do filho de Tideu, levando-o, vencido agora pelas dores atrozes desse ferimento, a abandonar o campo de combate. Concepção da memória poética heróica com que o aedo resolve o impasse de imaginar como um guerreiro de excelência heróica superior pode, todavia, ser vencido em combate sem que sua retirada implique minoração de seu valor guerreiro: vítima da covardia traiçoeira de vil e desprezível arqueiro, simulacro de guerreiro. Assim, se concebem as possibilidades dos retratos heróicos da morte de heróis maiores, padrões de grandeza superlativa, como Aquiles letalmente ferido pela seta de Páris, ou similarmente Héracles, desgraçado por outro modo de agressão astuciosa de cumplicidade feminina. 102 IV.39.3. 338 Mithistória rende-se à evidência do acontecido. E, todavia por outro, nem por isso reconhece e admite seu resultado como feito de Cleonte, como produto de seu mérito. É que esta apreciação negativa da promessa de Cleonte fora já previamente elaborada pela narrativa tucidideana. Ela estava dada de antemão, independia da consideração do resultado e desfecho daquele empreendimento, encetado graças às suas iniciativas. Pela percepção construída pelo relato de Tucídides, a identidade (des)qualificadora dessa promessa cristalizara-se já desde seu princípio, assim que o demagogo a pronunciou na assembléia: ela era tão ridícula e leviana que provocou a hilariedade geral.103 Então, o mérito de Cleonte, apreciado como a instância responsável e determinante do feito (e, portanto, igualmente como instância de inteligibilidade e compreensão do acontecimento), é a visada interditada pela composição dessa percepção tucidideana daquele líder ateniense. Apreendido o acontecimento pelo estigma da irracionalidade da promessa, ele se torna (in)compreensível, (in)inteligível, suscita (in)credulidade, enquanto coisa estapafúrdia mesmo.104 103 Abordaremos esta questão no ensaio seguinte, particularmente em “As reviravoltas da demagogia”. Os comentadores modernos tendem a assinalar, não sem certa dose de ambigüidade, a parcialidade porque Tucídides distorce seu ajuizamento da atuação de Cleonte na campanha de Pilos, especialmente ao acusar que sua iniciativa guerreira, apesar de exitosa, era mesmo maluca (maniódes). Assim, tanto Gomme (1956, p. 478-479) quanto Hornblower (1996, p. 194) intentam harmonizar um melhor entendimento interpretativo do comentário ajuizante tucidideano que, se não salvar o crédito de excelência objetiva de sua fama de competência historiográfica, pelo menos minore a incidência com que esta parcialidade distorcedora de sua narrativa a compromete. Gomme procura ressalvar a justeza do ajuizamento tucidideano apontando que, de fato mesmo, lá no âmbito da assembléia, pelas promessas estapafúrdias feitas por Cleonte, ela era maluca! E Hornblower (apoiando-se em teses de Schneider e de Howie) procura nuançar a implicância intrigada pelo ajuizamento tucidideano entendendo que maniódes comporta o sentido de parecer maluco: “It would have been fairer to Thucydides to say that the 339 104 Francisco Murari Pires Mas uma tal inteligibilidade do fato construída pela percepção tucidideana, a enfatizar o estigma da irracionalidade que define o sentido da seqüência dos acontecimentos singulares decanta-se globalmente ao narrar assim, por um lado, o episódio de Pilos-Esfactéria como obra do acaso plena de anomalias, e, também por outro, as assembléias que deliberaram os episódios como dominadas pelos desvarios passionais das práticas da demagogia, a outra instância de irracionalidades estigmatizadoras desse fato da Guerra do Peloponeso. promise seemed mad, and it is possible that with the suffix –wdhj the word has this nuance (‘like madness’). Quer-nos parecer que, ainda aqui, por tais comentários busquem os críticos modernos conciliar padrões de excelência historiográfica todavia divergentes, o antigo tucidideano e o moderno cientificista, pois toda a inteligibilidade minuciosa e permanentemente empenhada pela narrativa tucidideana é a de apontar factualmente que a campanha de Pilos, em todos os seus aspectos factuais, escapou mesmo a toda possibilidade de direcionamento racional previsivo, esteve fora do campo de determinação, agenciado pela razão humana. Nesse sentido, buscar uma melhor justiça historiográfica de seu ajuizamento de Cleonte requer entendê-lo no sentido de uma interpretação contraditória com esse sentido geral de inteligibilidade da narrativa. 340 PÉRICLES E CLEONTE, DEMOCRACIA E DEMAGOGIA Os modos da liderança O primado do domínio público preconizado pela pólis define, em Atenas, a assembléia como lugar privilegiado de decisão política. Na prática da assembléia constitui-se, como sua instância determinante, a resolução do querer coletivo da cidadania. A elaboração persuasiva desse querer dá-se pelo diálogo que com ele tecem as ações discursivas da cidadania individualmente destacada. Assim, definem-se que ações e que sujeitos conformam a prática política: de um lado, o querer coletivo da cidadania pela prerrogativa de decisão da assembléia; de outro, os discursos individuais da cidadania pela capacidade retórico-persuasiva dos líderes. Acerca precisamente desse diálogo do coletivo com o individual conformador do processo institucional de decisão política, que ensinamentos o saber tramado pela narrativa tucidideana retira da trajetória (e do destino histórico) de Atenas na guerra contra Esparta? Essa questão é implicada pela narrativa assim que ela acabou de referir a morte de Péricles.1 Tecendo uma apreciação sobre as qualidades da liderança política pericleana, Tucídides elabora também uma reflexão que apreende as razões da derrota de Atenas. Identifica pelo menos duas razões interdependentes associadas às reversões causadas em Atenas pelos líderes que se sucederam a Péricles: a perda da dissociação público/privado na 1 A guerra dos peloponésios e atenienses, II.65. Todas as indicações textuais que se seguem, a não ser expressamente referidas em caso contrário, remetem para o texto da guerra dos peloponésios e atenienses. Francisco Murari Pires determinação da prática política; e a perda do comando da razão no domínio da assembléia. Perdas, portanto, de princípios que fundam o conceito de pólis. Assim, a reflexão de Tucídides, pelo saber político que a sua narrativa dos acontecimentos da guerra sedimenta ao explicar as razões da derrota de Atenas, tece na memória histórica o tema da ruína da pólis, distinguindo e opondo duas modalidades de liderança política, cujas respectivas atuações constroem os dois tempos da pólis: Atenas sob a liderança pericleana ou o comando da razão, tempo da grandeza da pólis; e Atenas sob a liderança de seus sucessores ou o império das paixões, tempo da ruína da pólis. Polarizam a narrativa tucidideana duas elaborações conceituais que respondem respectivamente por essa dupla modalidade de liderança política: democracia, para a liderança pericleana, e demagogia, para a de seus sucessores. Que princípios de conformação e que modos de atuação política definem um e outro conceito? A célebre passagem do “Discurso Fúnebre” coloca a questão da democracia: “Desfrutamos um regime político que nada inveja as leis de nossos vizinhos; antes somos nós mesmos muito mais modelo para uns do que imitamos outros. Pelo nome, em razão da administração estar voltada não para poucos mas para a maioria, chama-se democracia; agora, pelo que cabe efetivamente a cada cidadão: em conformidade com as leis, há igualdade para todos no tocante aos litígios privados; mas, em conformidade com o apreço, na medida em que cada um obtenha boa reputação por algo, não é pela classe mais do que por mérito que se dá preferência para os cargos públicos, e nem, inversamente, pela pobreza que alguém, entretanto capaz de fazer algo de bom para a cidade, é impedido pela obscuridade de sua condição”.2 O “Discurso Fúnebre”, afirma especialmente sua originalidade contestadora proclamando expor esclarecimentos e tecer ensinamentos so2 II.37. 342 Mithistória bre os princípios fundadores da forma de regime – democracia – consagrada em Atenas pela liderança pericleana. Primeiro tópico a esclarecer sobre a democracia: que entendimentos de seu conteúdo ela própria, enquanto denominação, designa? O “Discurso” não propõe como tal o entendimento imediato, propriamente literal, posto pela mera composição dos conceitos constituintes da denominação: democracia não é, pelo ”Discurso”, afirmada como o krátos do demos, como a forma que consagra o exercício do poder pelo povo. Esse, o primeiro equívoco a desfazer: Péricles entendia como conteúdo designado por democracia, não a afirmação do poder popular, mas somente a consecução da administração pública voltada para a maioria, e não para poucos. A denominação de democracia, pelo discurso pericleano, assevera que, nessa forma de politeía, “demos aparece sim como beneficiário, e não como soberano”3. Esse o conteúdo de democracia que o entendimento do discurso pericleano afirma em termos da própria denominação. O entendimento se amplia e precisa, apreendido agora em termos do que a prática da democracia efetivamente consolida como direitos com que ela contempla cada cidadão. De pronto, coloca-se a questão da igualdade. E o “Discurso” concede: há igualdade na democracia. Porém, a ressalva restritiva: no âmbito do privado, em que as leis conferem um tratamento indistinto, indiferenciado, a todos os cidadãos no tocante a seus litígios particulares. Assim, o “Discurso” como que “rechaça a eficácia dos nómoi no instituir a igualdade para o domínio do privado, retirando toda a significação à noção de isonomia, tornada irreconhecível e caduca”4. Mas a igualdade afirmada pela democracia pára aí. No domínio público, no que concerne aos princípios que definem os privilégios para o acesso à direção da coisa pública, a democracia afirma plenamente o império da desigualdade. Aqui, a instância que determina tais princípios é a axíosis: o apreço, a consideração social atribuída a cada cidadão pela coletividade, na 3 4 N. Loraux. L ’ invention d’Athènes, p. 185. N. Loraux. L ’ invention d’Athènes, p. 186-187. 343 Francisco Murari Pires medida mesma em que cada cidadão se distingue, se diferencia dos demais pela boa reputação que o seu viver político constrói. O que implica privilegiar a excelência, a areté, como princípio definidor do acesso à direção estatal. Ou seja, na democracia predomina, para a definição da direção estatal, a identidade qualitativa que diferencia singularmente cada indivíduo, não podendo, pois, a identidade da pertinência à categoria social sobrepor-se a ela. Assim, desde que satisfeito o requisito que aprecia a participação do cidadão como benéfica para a cidade, não é a pobreza que impede, pela obscuridade mesma dessa condição social, tal acesso. Mas isto implica também dizer, como a outra face da mesma afirmação, que também não é a riqueza que o assegura, pois, se o ser pobre, por si, não impede nem desqualifica, também o ser rico, por si, não garante nem recomenda. Assim, a narrativa tucidideana dissolve o conceito de democracia, implicando, por essa operação de dissolução, novamente a questão da liderança e suas relações com o querer coletivo da cidadania. Mas também para Tucídides, as manifestações desse querer coletivo da multidão cidadã situam a presença e o estigma da irracionalidade. Porque o ímpeto das paixões as comanda, as resoluções do querer coletivo perdem a direção da razão previsiva que planeja a política. Perdida a consciência da razão diretora, apagada da memória pelo assalto das paixões circunstanciais, uma singular anomalia de reversão tipifica a miopia da percepção política da multidão. Diz Tucídides: “Quando ele [Péricles] percebia-os despropositadamente confiantes pela arrogância, sua fala abalava-os tendo em vista amedrontá-los, e quando irracionalmente temerosos, opunha-se-lhes novamente tendo em vista torná-los confiantes”.5 A irracionalidade (alógos) e o despropósito (parà kairón) que dominam as manifestações da multidão deformam, por reversão, sua percep5 II.65.9. 344 Mithistória ção política, pois enxergam tudo às avessas: quando a situação recomenda prudência, extravasam arrogância; quando, pelo contrário, a confiança se faz necessária, paralisam-se de medo. Mas não só as marcas da volubilidade inconsistente e do despropósito estigmatizam a irracionalidade da atuação passional das massas, no entender de Tucídides. A negação do portar-se racional manifesta-se também no modo político, de herança mítica, com que a multidão reage face às crises em que se depara. Assim, os atenienses, exaltados com a visão de seus campos devastados pelas tropas peloponésias, voltaram sua cólera contra Péricles, acusandoo como o agente responsável por aquele estado de coisas, pois, sendo estratego, deixava-os inativos, não os conduzia ao combate, encargo precípuo da estrategia. Apreciação de motivo justificador que nada mais é, dá a entender Tucídides, do que a manifestação catártica dos infortúnios populares que localiza assim na figura do comando e no exercício da arché a causa geral de seus males.6 Igualmente quando se viram vitimados pela conjunção das calamidades de nova incursão devastadora dos peloponésios e do grassar da peste em Atenas, a mesma patologia típica da reação coletiva diante de adversidades veio à tona: furiosos, passaram a atacar Péricles, entendendo que, por sua causa – ele que os persuadira à guerra –, desgraças lhes abatiam. Justificação de seu proceder acusatório que responde mais uma vez, observa Tucídides, pela descarga catártica dos infortúnios populares contra um bode-expiatório.7 As cóleras das convulsões populares que os infortúnios coletivos suscitam detectam nos distúrbios a crise que implica a culpa do comando e, portanto, a falha do agente identificado com o poder, com a arché, instância supostamente produtora e asseguradora da boa ordem.8 Perante a negação da razão, que o portar-se político das massas situa, a narrativa tucidideana identifica dois modos opostos de lidar com as 6 7 8 II.21. II.59. Confiram-se nossos comentários ao texto sofocleano do Édipo Rei no ensaio “Édipo e (o enigma d)a visão das idades”. 345 Francisco Murari Pires paixões populares, definindo duas modalidades de comando político: de um lado, o promovido e personificado por Péricles; de outro, o inaugurado e tipificado por seus sucessores: “Péricles, poderoso pela reputação e pela inteligência, e mais do que todos de uma integridade translúcida em questões de dinheiro, detinha as massas com liberdade, e antes do que ser conduzido por elas, ele as conduzia, pela razão de que, não derivando o poder que possuía de recursos impróprios, não discorria tendo em vista o que as agradava, pelo contrário, detendo-o pela reputação, antepunha-se contra sua cólera. Quando ele os percebia despropositadamente confiantes pela arrogância, sua fala abalava-os tendo em vista amedrontá-los, e quando irracionalmente temerosos, opunha-se-lhes novamente tendo em vista torná-los confiantes. Era, pelo nome, democracia, mas, pelas ações, o comando pelo primeiro dos cidadãos. Já aqueles que vieram depois, antes iguais uns aos outros, mas ansiosos cada um deles por tornar-se o primeiro, dispuseram-se a conceder os cometimentos ao agrado popular”.9 Além de dois modos de caráter público – o espírito público (philópolis) e a probidade (a resistência ao dinheiro: chremáton kreisson) –, duas modalidades de capacidade intelectiva compõem a figura de liderança pericleana: a inteligência de percepção política (gnóme), mais o entendimento discursivo (hermeneusai).10 A modalidade de liderança pericleana consagra o comando da razão: a inteligência perceptiva que atina as ações apropriadas às necessidades do momento, e a inteligência previsiva que dirige a política pelas determinações do cálculo. A lógica, então, do comando da razão na atuação da liderança reclama a inversão das proposições emanadas da multidão, o que supõe a reversão das disposições de ânimo das massas. O posicionamento político da liderança é, pois, univocamente conformado como a ação que se dá contra as disposições das paixões populares, que as enfrenta, dobra e abala. O domínio da po9 10 II.65.8-9. II.60.5. 346 Mithistória lítica pelo comando da razão dá-se pela ação da liderança que contraria o querer da multidão. Já na modalidade de liderança tipificada pelos sucessores de Péricles, a carência de autoridade que o total vazio de excelência, mas a cabal ambição pessoal de destaque, suscita, promove uma atuação da liderança concessiva ao agrado popular: a direção da política torna-se subserviência ao querer das massas, acolhimento e satisfação de suas inclinações. Aqui, o domínio da política pelo império das paixões dá-se pela ação da liderança que favorece o querer da multidão. É especialmente a narrativa tucidideana da campanha de Pilos, por suas duas assembléias – a primeira que debateu a proposta de paz lacedemônia, e especialmente a segunda que deliberou o prosseguimento do cerco ao contingente espartano isolado em Esfactéria –, que constrói uma tal percepção conceitual da demagogia como essa modalidade de liderança política que se define pela remessa da direção política à multidão, com o demagogo aparecendo como o servo obediente que se curva ao seu querer. Em todo o seu relato do episódio, desde o estabelecimento da fortificação ateniense em Pilos até seu desfecho final com o aprisionamento dos guerreiros espartanos, Tucídides marca as determinações das irracionalidades que comandam a efetivação dos acontecimentos. Reviravoltas da demagogia Assim que terminou de expor quais eram os termos da trégua, então firmada pelos comandantes atenienses e lacedemônios em Pilos11, Tucídides desloca o cenário de sua narrativa do local de campanha para Atenas, passando a relatar a sessão da assembléia que discutiu a proposta de paz lacedemônia. Terminada a reconstituição do longo discurso pronunciado pelos legados (todavia espartanos), Tucídides aponta quais as razões em 11 Confira-se o ensaio antecedente. 347 Francisco Murari Pires que eles baseavam sua expectativa de acolhimento favorável para sua proposta: “Como outrora os atenienses desejavam concluir o tratado, e não o conseguiram porque os espartanos se opuseram, estes presumiam que, fosse-lhes oferecida a paz, de bom grado a acolheriam e entregariam os guerreiros.12 Mas a assembléia contrariou as expectativas lacedemônias. Ela não se contentou, comenta Tucídides, com a oferta de paz, pois entendia que agora, com o cerco do contingente espartano em Esfactéria, Atenas detinha um importante trunfo em suas mãos, o que colocava a conclusão da paz à disposição de seu exclusivo arbítrio. Ela agora ambicionava mais. E, por trás dessa ambição dos atenienses, Tucídides discerne a persuasão diretora do demagogo: “Quem sobretudo conduziu a assembléia foi Cleonte, filho de Cleêneto, um indivíduo demagogo naquela época, sendo também quem mais persuasão desfrutava junto às massas”.13 Assim, Tucídides identifica conceitualmente a prática política de Cleonte: demagogia, a condução das massas na assembléia. Mais ainda, Cleonte personifica singularmente a excelência dessa prática: a persuasão superlativa junto a elas. E, na ocasião, a demagogia de Cleonte fomenta a ambição dos atenienses. E é precisamente essa ambição que Tucídides responsabilizará, mais adiante na narrativa, pela recusa ateniense da conclusão de paz solicitada por Esparta. E, por fim, como é que a narrativa tucidideana constrói as percepções do erro da demagogia que fomentara a ambição dos atenienses, memorizando-a como a instância responsável pelo fracasso das negociações com 12 13 IV.21.1. IV.21.3. 348 Mithistória Esparta? Percepção essa que supõe memorizar esse fracasso como a recusa da paz por Atenas. Ao referir inicialmente as expectativas dos lacedemônios em que baseavam o êxito da atual proposta de paz, a narrativa lembra que outrora Atenas manifestara disposição favorável nesse sentido, tanto que solicitara a paz com Esparta, não a tendo concluído somente porque esta se opusera. Assim, a consideração, pela narrativa, dessas expectativas lacedemônias projeta a permanência dessa disposição de Atenas do momento anterior para o de agora, o da situação presente dos acontecimentos de Pilos. Assim, instaura-se na narrativa a percepção que configura o tratado de paz como objeto das solicitações de Atenas, como expressão do seu querer, como seu ganho nas negociações. Então, o fato de os atenienses não se contentarem com o ganho da paz ao exigirem condições para firmá-la, pode, por sua vez, ser percebido, e denunciado, como ganho a mais, como expressão de ambição. Quer dizer, a ambição das massas, insuflada pela demagogia, não tem medidas: ela não se satisfaz com os ganhos que elas mesmas almejam, antes quer sempre mais. Mas, que ocasião foi essa, anterior a Pilos, em que Atenas desejou a conclusão da paz com Esparta, tendo esta recusado? É provável que a alusão tucidideana refira-se aos episódios ocorridos em Atenas em decorrência da segunda incursão lacedemônia de devastação da Ática, o que daria, então, cinco anos antes de Pilos. Nessa ocasião, conta Tucídides, operaram uma daquelas suas costumeiras inversões de disposição: vítimas tanto das devastações lacedemônias quanto da peste que então grassava em Atenas, mudaram de ânimo. Localizando a responsabilidade de seus infortúnios na política pericleana de guerra contra Esparta, passaram a ansiosamente desejar um tratado de paz com os lacedemônios, chegando inclusive a enviarlhes emissários com esse propósito. Porém, nada obtiveram.14 Assim, é claro, naquela ocasião de inícios da guerra, marcada pela situação crítica em que Atenas se defrontava, o tratado de paz com Esparta 14 II.59. 349 Francisco Murari Pires constituía efetivamente o interesse dos atenienses que o solicitavam, ensejando, pois, sua percepção como ganho de Atenas. Porém, agora, no novo contexto bélico, marcado pela inversão no jogo de forças da guerra (é Esparta quem se encontra inferiorizada e, por isso, solicita a paz), o tratado não responde mais pelo interesse primeiro de Atenas, e sim pelo de Esparta: por ele, esta busca salvar o contingente de suas forças cercadas em Esfactéria. Esse o ganho de Esparta: o resgate de suas tropas. Mas, e o ganho de Atenas? Pela proposta espartana, é a própria conclusão da paz que é apresentada como a contrapartida de ganho por Atenas. Mas, entendem os atenienses e com eles Cleonte, a conclusão da paz em si não configura o objeto que define o ganho de Atenas, pois, para tanto, seria preciso que isso fosse o que Esparta lhe ofertasse como sua concessão efetiva. Ora, mas o trunfo do decidir a conclusão da paz e, portanto, ofertar o tratado como concessão, não está mais nas mãos de Esparta, e sim nas de Atenas. Pela conclusão da paz em si, os atenienses, liderados por Cleonte, entendem que nada ganham de Esparta, na medida mesma em que isso eles já detêm. Atenas atuava, assim, segundo uma lógica própria à realidade beligerante, a qual concebe a guerra como jogo em que os ganhos e perdas são correspondentemente unilaterais, um constituindo necessariamente a contrapartida do outro. Atenas pretendia, pois, auferir os ganhos ensejados pelas circunstâncias de superioridade que o contexto bélico lhe propiciava. Ditou, então, para Esparta, quais eram os seus termos para a conclusão da paz. Tais termos, que pela ótica da memória configurada na narrativa tucidideana são apreendidos como a recusa da paz por Atenas, constituem, no horizonte dessa lógica de concepção da guerra, as condições atenienses de aceitação da paz. Mas, afinal, que termos eram esses? Foi Cleonte quem, prossegue Tucídides, aconselhou os atenienses quanto às exigências a serem feitas aos lacedemônios. Antes de mais nada, eles deveriam aceder à rendição do contingente espartano em Esfactéria aos atenienses, os quais o trariam para Atenas. Contra a restituição dos mesmos seria firmado o tratado que defini350 Mithistória ria, como contrapartida, a devolução pelos lacedemônios de Niséia, Pegas, Trezena e Acaia em proveito de Atenas. Certamente, os termos atenienses do acordo não eram amenos para Esparta. Consistiam de duas ordens de exigências. A primeira: que Esparta desse por fato consumado sua derrota em Esfactéria, quando esta efetivamente ainda não tivera seu desfecho, e era só uma virtualidade. Quer dizer, Esparta tinha que publicamente admitir e reconhecer sua condição de derrotada pela rendição do destacamento em Esfactéria. Seguramente um duro golpe a abalar sua consagrada fama guerreira, que tanto aterrorizava seus contendores e que tão viva se mostrava no decorrer da guerra: a invencibilidade de Esparta, aureolada pela inadmissibilidade da rendição. Segunda exigência: as restituições territoriais. Quanto a estas, Tucídides esclarece que não se tratavam de posses espartanas adquiridas na presente guerra, mas sim de áreas cedidas por Atenas anteriormente, devido a um tratado que ela firmara com Esparta face a circunstâncias ruinosas em que, naquela outra ocasião, se encontrava, o que lhe tornava, então, imperiosa a conclusão da paz. Os legados espartanos, prossegue o relato de Tucídides, evitaram comprometer uma decisão acerca dessa proposta ateniense, dispondo-se, todavia, a entabular negociações quanto a todos os pontos da mesma, solicitando, pois, da parte de Atenas, a constituição de uma comissão específica nesse sentido. Porém, mais uma vez, adverte Tucídides, Cleonte opôs-se às pretensões lacedemônias: “Ele afirmava que já se dera conta antes de nada terem de justo as intenções dos espartanos; mas agora isso se tornava patente, entre outras coisas pelo fato de eles se recusarem a debater diante da multidão, pretendendo antes fazê-lo por meio de uma comissão de poucos membros. Fossem honestas suas intenções, interpelou-os, que as expusessem a todos”.15 15 IV.22.2 351 Francisco Murari Pires À contra-argumentação de Cleonte, que indignadamente denunciava e desqualificava a sugestão lacedemônia, Tucídides contrapõe quais teriam sido as razões que, para os espartanos, não recomendavam o tratamento público da questão: “Eles não podiam debater diante da multidão, pois mesmo no caso em que, face a seu infortúnio, se dispusessem a alguma concessão e, em debatendo, não obtivessem êxito, ver-se-iam mal com seus aliados. E, por outro lado, os lacedemônios percebiam também que os atenienses não se pautariam com moderação quanto ao que eles lhes propunham”.16 Diante desse impasse, termina Tucídides, os espartanos deixaram Atenas, sem qualquer resultado. Assim, a narrativa tucidideana compõe uma percepção do desentendimento das negociações de paz entre Esparta e Atenas, ressaltando dois aspectos. Primeiro, ela opõe, à disposição lacedemônia às negociações, a rígida intransigência do posicionamento de Cleonte que emperra, entrava, o andamento das mesmas. Segundo, aspecto este que se soma complementarmente ao primeiro, ela novamente acusa na ambição, ou imoderação, dos atenienses o obstáculo que impede a conclusão da paz. Por esta ótica da (i)moderação, amarram-se os fatos e percepções que memorizam a (ir)responsabilidade da demagogia, personificada em Cleonte, como instância determinante da recusa da paz. Ora, mas a própria narrativa tucidideana aponta elementos que permitem, pelo contrário, vislumbrar que a determinação do impasse e insucesso das negociações não é assim tão unilateral e localizada quanto ela expressamente apreende. Assim, tanto lacedemônios, de um lado, quanto Cleonte, de outro, identificavam (in)conveniências quanto à forma de encaminhamento das negociações, para a qual o lugar institucional de sua efetivação constituiria a 16 IV.22.3. 352 Mithistória instância determinante. Os lacedemônios propõem a comissão como o lugar adequado, deslocando as negociações do campo da assembléia. Cleonte, pelo contrário, senão receia, seguramente não deseja confiar o encaminhamento da questão à deliberação da comissão, preferindo forçar sua efetivação na assembléia. A argumentação com que, então, responde à sugestão lacedemônia, fundamenta-se no princípio de que é o público que confere legitimidade ao lugar de deliberação, donde esta só deve ser admissível no espaço configurado pela assembléia, que precisamente o concretiza. Se a proposta lacedemônia evita o lugar público, assevera Cleonte, fica de imediato desqualificada, porque denunciam-se interesses que negam o interesse geral instituído pela e na assembléia. Assim, o princípio alegado pela argumentação de Cleonte acusa, na transposição do público da assembléia para o secreto da comissão pretendida pelos lacedemônios, o prejuízo do interesse comum pelo particular. E o princípio comporta forte apelo popular, porque nomeia e identifica a multidão como expressão desse interesse público, opondo-o à promoção de interesses privados que a comissão oculta e camufla. E a narrativa tucidideana, quando revela as razões lacedemônias que recomendavam tal transposição, admite plenamente que o encaminhamento da questão pela via da comissão opera efetivamente um ocultamento. Não se trata propriamente do ocultamento denunciado por Cleonte, pois este opõe, pelas técnicas discursivas de persuasão da assembléia, público e privado pelo ângulo dos interesses das massas atenienses. Já naquelas razões, é o ângulo dos interesses de Esparta que é propriamente referido. No campo das razões deste ângulo, o secreto da comissão resguardaria, contra o público da assembléia, um específico interesse de Esparta: sua posição no âmbito da Simaquia do Peloponeso. É que, imposta a deliberação na assembléia, efetiva-se uma dissociação entre um interesse particular de Esparta – o resgate do contingente lacedemônio em Esfactéria – e seu outro interesse na composição da Simaquia do Peloponeso. Então, o que as condições e exigências atenienses de conclusão da paz supunham era circunscrever o horizonte da opção espartana pelo primeiro interesse por meio da 353 Francisco Murari Pires preterição do segundo: o ganho do resgate era colocado contra a perda na Simaquia. E a proposta ateniense trabalhava em um campo fértil, o da brecha que o episódio de Pilos abria entre Esparta e seus aliados. A própria narrativa tucidideana vislumbra a latência dessa brecha em vários momentos: quando da notificação do exército peloponésio de que ocorrera a ocupação ateniense de Pilos, quando da convocação das forças peloponésias para que socorressem Pilos, ou quando da investida naval contra o local não fortificado da ocupação ateniense. Em todos esses momentos, a narrativa tucidideana dá a entender que o episódio de Pilos era uma questão mais particularmente espartana, como que lhe concernia exclusivamente, com seus aliados não se animando em arriscar por ela a Simaquia. Assim, o alcance das exigências atenienses é captado por Esparta: o comprometimento da hegemonia lacedemônia no Peloponeso. Mas, ao interesse da hegemonia, Esparta não se dispõe a ceder. Prefere arriscar a sorte do contingente em Esfactéria. Mas então, cerca de um mês depois do fracasso das negociações de paz, mensageiros vindos de Pilos traziam a Atenas notícias da campanha: “chegam alimentos ao contingente espartano bloqueado na ilha e o exército ateniense enfrenta adversidades”.17 O anúncio dessas novas, diz Tucídides, desencadeou na assembléia uma progressão de reações e estados de ânimo. Primeiro, perplexidade: os atenienses ficaram atônitos com o prolongamento inconcluso do cerco a Esfactéria, totalmente fora de suas expectativas. Logo foram tomados de receios de que, com a chegada do inverno a surpreender as tropas ainda presas à mera vigilância naval da ilha, a campanha de Pilos estivesse ruinosamente comprometida, dado que o agrava17 IV.27. 354 Mithistória mento das condições de navegação agora inviabilizariam tanto o envio dos suprimentos reclamados pela frota – problemáticos desde o início, pois a região era inabitada, o que os tornava totalmente dependentes dos comboios navais que circundavam o Peloponeso, aliás já insuficientes inclusive no verão – quanto a persistência do bloqueio mesmo naquela região desprovida de portos. Vislumbravam já o fracasso do empreendimento de PilosEsfactéria, frustradas suas ambições de aprisionar os espartanos, os quais certamente escapariam da ilha de um modo ou de outro, seja devido ao afrouxamento da vigilância ateniense seja porque aproveitassem uma “oportunidade de fuga utilizando as embarcações que clandestinamente lhes traziam vívere”.18 Medos desdobrados em um alarmado sentimento de insegurança ao conjecturarem o destino da guerra: presumiam que, se os espartanos não mais lhes enviavam legações (a propor a paz), era porque tinham alguma razão de fortalecimento. E essa progressão negativa e desalentadora por que seguiu o ânimo da assembléia dos atenienses redundou finalmente em arrependimento por não terem concluído a paz com Esparta, quando esta a solicitara cerca de um mês antes. Fecha-se aqui um andamento da narrativa tucidideana. Da primeira assembléia, suscitada pelos episódios da campanha de Pilos, para esta segunda, a inversão fora total: agora, era Atenas quem se encontrava em situação crítica e delicada, e quem, insegura e receosa, desejava a paz. Pelo contrário, Esparta agora dava mostras de firmeza e confiança. Reconstituído o clima popular que dominara a abertura da assembléia, Tucídides põe logo em cena a atuação do demagogo: 18 Confira-se a tradução do texto tucidideano (A guerra dos peloponésios e atenienses, IV.27-28), acompanhada de comentários analíticos de seu entendimento, por J. B. Wilson, 1979, p. 27s e 96s. 355 Francisco Murari Pires “Cleonte, apreendendo a suspeição dos atenienses para com ele em virtude de sua obstrução ao tratado, declarou que o relato dos mensageiros não era verídico”.19 Pelo arrependimento, as massas reconhecem o erro de sua decisão anterior. De imediato, porém, elas identificam e localizam o culpado que responsabilizam por ter incorrido em tal erro: Cleonte, que impedira a conclusão do tratado. Contra ele, então, dirigem sua desconfiança e voltam sua animosidade. O demagogo, de seu lado, é sensível no captar as inclinações momentâneas dos ânimos populares. Ele percebe, de pronto, o desfavor de sua posição perante as massas: elas estão agastadas com ele. Procura safar-se. Toma imediatamente a ofensiva como estratégia de desvio do rumo pessoal adverso que os debates iam tomando. Desloca, assim, sua posição de acuado, assumindo a de acusador: denuncia inverdades no relato dos mensageiros que informava o estado de coisas em Pilos. Os mensageiros, atingidos pela manobra desse contra-ataque, são reduzidos à defesa: sugerem que, caso não se confiasse neles, fossem enviados alguns observadores, a fim de se apurar a verdade de seu relato. A assembléia acolhe tal proposta, e decide já indicando os observadores: o próprio Cleonte mais Teágenes20. Dessa proposta, encampada pela assembléia, resulta novamente a reversão do jogo de acusação e defesa que lá se trava: outra vez é Cleonte quem está acuado. A decisão volta contra ele sua própria astúcia: ele é pego por sua própria armadilha, vítima de sua própria artimanha. Pois: 19 20 IV.27.3. Há dúvidas quanto à precisa leitura do nome: ou Teágenes (adotado por Gomme, p. 468) ou Teógenes (adotado por Hornblower, p. 186), provavelmente o mesmo que aparece como um dos atenienses signatários do Tratado de Paz de Nícias, em 421 (V.19.2). 356 Mithistória “Cleonte, compreendendo que seria forçado ou a confirmar a fala dos que ele caluniava ou revelar-se um mentiroso em os contradizendo, exortou os atenienses, já percebendo neles uma disposição algo mais propensa a uma expedição: se lhes parecessem verdadeiras as notícias, não se devia enviar observadores e nem delongar mais a perder a ocasião, mas despachar uma frota contra os adversários”.21 O demagogo prontamente compreende a enrascada em que se meteu, pois o apurar a verdade é fatal para sua forma de atuação política: ela a revela ou como pura calúnia ou pura mentira! Mas, astúcias de desvencilhamento e faro popular apurado é o que não lhe faltam. Rapidamente, Cleonte opera a articulação eficiente dessas capacidades. Já captou a alteração dos ventos que sopram da multidão, e arma sua nova proposta nessa direção. Sustenta, agora, o envio imediato de reforços bélicos a Pilos. Assim, a reconstituição tucidideana dos debates inaugurais da assembléia tece o retrato com que desqualifica a atuação do demagogo, denunciando sua particular inconsistência: opera essencialmente recorrendo a calúnias mentirosas e infundadas. Para Tucídides, não pairam dúvidas: a suspeição da verdade do relato dos mensageiros, que Cleonte lhes assacara, não tem qualquer fundamento, não passa de estratagema inventado pelo demagogo para safar-se da situação mal parada em que se encontrava. E a certeza dessa apreciação de que a conduta política do demagogo consiste de mentiras infundadas (e, assim, caluniosas), é fundamental para consolidar a percepção historiográfica de que são exclusivamente interesses pessoais – sua própria sorte – que mobilizam os atos do demagogo. Mas, prossegue a narrativa tucidideana, a estratégia com que Cleonte buscava escapar aos enroscos em que sua própria astúcia o colocava, continua a valer-se do mesmo recurso de, em adotando uma postura de ataque acusatório, localizar em outros sujeitos a incômoda posição de acuado: 21 IV.27.4. 357 Francisco Murari Pires “E, numa alusão a Nícias, filho de Nicérato, então estratego e seu inimigo, recriminava que, apenas fossem homens os estrategos, seria fácil com tropas embarcar e capturar os (guerreiros) na ilha; ele mesmo, estivesse no comando, o faria”.22 Portanto, sugere Tucídides, estratégia imbuída de maligno interesse, pois o alvo por ela escolhido – Nícias, naquela ocasião estratego – era seu adversário político. E novamente o procedimento de acusação do demagogo é o mesmo: joga no ar uma denúncia infamante a acusar na covardia dos estrategos o fracasso da empresa bélica. Então, aleivosia de uma proposta de desdobramento do esforço guerreiro de finalização do cerco a Esfactéria, pois conformada pela retórica de um desafio totalmente inconseqüente: assevera o demagogo que o empreendimento não apresentava qualquer dificuldade, bastando que os atenienses preparassem uma expedição com tropas de reforço para facilmente levá-la a cabo. E as leviandades que estigmatizam as maneiras demagógicas atingem por fim as raias da mais ridícula jactância: Cleonte firmava pessoalmente a consistência de sua proposta, dando como garantia sua própria capacidade de comando militar para realizar o empreendimento desafiado. A assembléia, então algo tumultuada pela bazófia do demagogo, volta contra ele seu vozerio: “porque não embarcava imediatamente, já que lhe parecia fácil”.23 Mais uma vez a intervenção das massas resulta no enredamento do demagogo nas malhas de sua própria artimanha: ela a desarma, devolvendo-lhe seu próprio desafio. Movimento da assembléia que Nícias, o principal alvo da provocação de Cleonte, alimenta, armando concomitante sua própria defesa. Falando em nome dos estrategos, colocou em cheque o desafio de Cleonte, ao dispor-se a liberar-lhe o comando das forças que ele bem pretendesse: 22 23 IV.27.5. IV.28.1. 358 Mithistória “Nícias, ao perceber-se assim recriminado, incitou-o a tomar as forças que quisesse, pois, no que dependesse deles, que realizasse ele o empreendimento.24 Cleonte, de início, imaginando que tal oferta não passasse de retórica, mostrou-se disposto. Assim, porém, que se deu conta do equívoco, ao compreender que se tratava de uma concessão de fato, prontamente recuou, alegando que não era ele o estratego, e sim Nícias. Mas este voltou à carga: agora, já tomando a assembléia como testemunha, dispôs-se a entregar seu comando de Pilos, novamente incitando Cleonte a assumi-lo. Na verdade, observa ainda Tucídides em apontando as razões interiores que supostamente afligiam Cleonte, a última argumentação do demagogo dissimulava tão só o medo que dele já se apossara, pois toda a segurança de sua vanglória repousava unicamente numa aposta na inefetividade do oferecimento de Nícias: ele supunha que este jamais ousaria ceder a ele o comando. Assim, dá a entender a narrativa tucidideana, uma vez efetivada no domínio da assembléia a conseqüência concreta da atuação política do demagogo, desfaz-se de imediato toda sua (in)segurança e (in)consistência, cuja bazófia consiste unicamente em blefe. A essa altura, a proposta de Nícias ganhou intensa acolhida da assembléia, e isto, ironiza Tucídides, devido àquela malignidade de atuação que caracteriza as massas, seu modo predileto de portar-se em assembléia: “Quanto mais Cleonte esquivava-se da expedição e recuava de sua proposta, tanto mais eles pressionavam Nícias a ceder seu cargo, berrando com Cleonte que embarcasse”.25 A vanglória pedante de Cleonte, sugere a narrativa tucidideana, exasperou a assembléia. Sua indignação para com a audácia do demagogo desrecalcou-se pelo prazer de enredá-lo em sua própria armadilha. Então, esgotada sua astúcia e irremediavelmente acuado, o demagogo não tem 24 25 IV.28.1. IV.28.3. 359 Francisco Murari Pires mais saídas: sem ter como desvencilhar-se de sua proposta, assumiu a expedição. Avançando perante a assembléia, emitiu este pronunciamento: “Não temia os lacedemônios. Embarcaria, sem tomar ninguém da cidade, e sim os lêmnios e os ímbrios que lá se encontravam, mais os peltastas auxiliares, vindos de Enos, e quatrocentos arqueiros de outros lugares. Dispondo dessas tropas, junto às que estavam em Pilos, afirmou que dentro de vinte dias ou traria os lacedemônios vivos, ou os exterminaria”.26 E, assim, continuam as gabolices do demagogo. Outra não podia ser a reação da assembléia: desatou a rir com tais leviandades. E não foi só a multidão que se divertiu. A estapafúrdia proposta de Cleonte provocou, igualmente, “contentamentos nos cidadãos sensatos, pois eles calculavam que ocorreria uma ou outra de duas boas coisas: ou se livrariam de Cleonte (com o que mais contavam), ou então, frustradas essas expectativas, teriam os lacedemônios em suas mãos”.27 Na caracterização tucidideana das atuações que efetivam a assembléia, distinguem-se três sujeitos: a multidão, o demagogo e os seus antagonistas. Estes últimos – a fala dos mensageiros inicialmente, Nícias em nome dos estrategos a seguir – aparecem apenas em segundo plano, um tanto à sombra das ações dos outros. Em contraposição aos comportamentos dos dois primeiros sujeitos, a participação dos opositores do demagogo é marcada pela sobriedade e justeza de suas colocações. Ambos aparecem como vítimas das acusações caluniosas do demagogo, a cujas provocações suas intervenções e propostas meramente respondem. De forma que a narrativa apreende uma percepção da assembléia a compor duas imagens. Uma que capta a assembléia conformada às práticas dos tribunais populares, empolgando-se a multidão por sua definição de juiz diante do jogo de acusação e defesa que os dois outros protagonistas tecem. A outra imagem enfoca o 26 27 IV.28.4. IV.28.5. 360 Mithistória movimento ativo e determinante do direcionamento da assembléia, no diálogo que se trava entre a multidão e o demagogo. Na atuação da multidão, a narrativa desnuda a irracionalidade das paixões impulsivas que a comandam. Daí, a volubilidade que marca suas decisões, sujeitas às reviravoltas do ânimo popular. Segundo os caprichos dos momentos, ora manifestam uma propensão (almejam a paz), ora inclinam-se pelo oposto (promovem a guerra). Ora, confiantes e decididas, exultam com uma decisão, ora, confusas e receosas, arrependem-se da mesma, reconhecendo-a errônea. Irresponsáveis, as massas não admitem o erro como decisão sua, antes, de imediato identificam o culpado e contra ele voltam sua animosidade catártica: o demagogo que as induziu ao erro. Então, irritadas e agastadas, dão vazão à descompostura tumultuada de seu vozerio e berros. Mas, para elas, a assembléia é também divertimento, em que o demagogo é seu palhaço: compraz-se em encurralá-lo, hilaria-se com suas gabolices. O pólo complementar das massas, o demagogo. Mobiliza-o exclusivamente seu horizonte de interesses pessoais, sua promoção individual é a única preocupação de sua participação. Não pauta sua conduta por qualquer ética: inescrupuloso, a mentira e a calúnia constituem seu modo habitual de debate. Porque orienta-se exclusivamente por sua promoção pessoal, não pondera e reflete suas propostas. Estas são levianas, inconseqüentes, estapafúrdias, carentes de toda moderação. A audácia de suas assertivas nada mais é do que jactância inconsistente e vazia, que desmorona em medo assim que, frustrada sua manobra de blefe, elas ganham realidade efetiva. Palhaço e bobo das massas, adula e satisfaz seus caprichos, pois suas propostas não resultam de sua iniciativa própria e autônoma, mas simplesmente ecoam as inclinações impulsivas da multidão. A memorização tucidideana dos modos e procedimentos que caracterizam o desempenho político demagógico de Cleonte na assembléia ateniense lembra uma similar cena poética, pela qual Homero compõe a figura de Tersites, fazendo-o intervir na ágora aquéia congregada diante de Tróia para deliberar a resolução do cerco à cidadela de Príamo. 361 Francisco Murari Pires Por esse nome – Tersites, figuração da temeridade – o poeta estigmatizou o que seja o extremo negativo, o mais baixo e vil, de pretensão política da parte de um agente que intenta participar do processo comunal de decisão deliberativa. Antes de tudo, já por suas maneiras de desempenho oratório, “falador desmedido, a vociferar só injúrias por berros estridentes”28, manifesta-se sua descompostura, seu desregramento, a ignorar os modos formais da melhor dignidade discursiva. Suas intervenções compõem sempre o mesmo unívoco sentido rixento contra os superiores, reis e comandantes. Contra eles querela palavras de desordem, ou porque intente assim agradar o povo aqueu, valendo-se de tudo o que entendesse servir para motivar-lhes risos e divertimentos às custas daqueles, ou porque, ainda servil ao agrado das disposições populares, ecoa furioso seus atuais ressentimentos e cóleras contra os chefes.29 Ser tão injuriento a desfazer os méritos e valores dos heróis quanto pretensioso em declarações de guerreiro de feitos primorosos, jactando-se como se fosse Aquiles, porém apenas por mimetismo discursivo da linguagem do Pelida, mero arremedo de grotesca paródia heróica.30 Fala pomposa, todavia, que não passa de peroração falaz, a dissimular, pelo contrário, sua natureza covarde, a aproveitar qualquer ensejo para fugir aos encargos guerreiros porque primam heróis.31 28 Homero. Ilíada, II.212-216 (para todas estas passagens do texto iliádico valemo-nos da tradução de Cascaes Franco). Este fora justamente o caso da intervenção memorizada pela Ilíada homérica, pois nessa ocasião “era contra o divino Agamêmnon que, numa voz aguda, ele expelia injúrias; era, na verdade, pelo seu chefe que os aqueus sentiam extrema aversão, bastante irritados em seu peito”. Assim proclama, ufano de si mesmo, Tersites: “As tuas barracas estão cheias de bronze; também muitas mulheres se acham dentro delas, mulheres seletas que nós os aqueus, te damos, a ti antes de qualquer outro, quando conquistamos uma cidade. Queres ainda o ouro que talvez te traga algum troiano domador de cavalos, de Ílion, como resgate do seu filho, amarrado e conduzido para aqui por mim ou por outro aqueu?”. É assim que Odisseu desmascarou a manobra capciosa da intervenção de Tersites: “Tersites, palrador inconsiderado, se bem que sejas orador de voz clara, retém-te, e não 362 29 30 31 Mithistória Em Tersites, natureza de caráter e de aparência se reiteram. Viciosidades e vilezas de um modo indigno de atuação deliberativa espelham-se por imagem monstruosa de sua figura física, síntese de defeituosidades corpóreas: “Ele era o mais feio dos homens que tinham vindo postar-se em frente de Ílion: vesgo, coxo de uma perna, peito encovado entre ombros arqueados; em cima uma cabeça bicuda, onde vegetava rala penugem”.32 Natureza assim deformada de ser humano que indicia exaustivamente baixeza. Nome identificador de individualidade apenas para assinalar realização negativa de paradoxal excelência: Tersites denomina um indivíduo que se distingue da massa anônima (a, portanto, assegurar um nome na memória poética) por contraditória areté de inferioridade, reverso antitético de virtuosidades heróicas que dele fazem o superlativo da baixeza, em tudo e por tudo, o mais inferior dos aqueus. Então, Tersites homérico figura o conceito mnemônico do bufão, enquanto ser abjeto no âmbito da política. As similaridades confluentes de seus traços constitutivos aparecem, assim, igualmente na caracterização tucidideana do demagogo ateniense33, a projetar um análogo padrão de inteligipretendas, sozinho, envolver-te em querela com os reis. Não há, afirmo-o eu, pior mortal do que tu, entre todos os que vieram a Ílion com o Atrida. Poderias, assim, evitar andar sempre com o nome dos reis na boca, proferir contra eles ultrajes, só pensar no regresso! Pois tal fora a proposta então assacada por Tersites, outra vez a papaguear Aquiles: Ó seres moles, vis objetos de opróbrios, aquéias e já não aqueus, voltemos, pois, a nossas casas com as nossas naus, e deixemos este homem aqui, na Tróade, a saborear as suas recompensas, a fim de que ele veja se lhe somos de alguma utilidade ou não”. 32 33 Ilíada, II.216-220. A (des)caracterização da baixa extração social de Cleonte, silenciada pela narrativa tucidideana, compõe o estigma do personagem na representação cômica dos Cavaleiros de Aristófanes. Pois, na comédia, sentencia Aristóteles, imitam-se ações de seres inferiores, por modos de agir e figuras de caráter que mutuamente se determinam. O caráter (e o pensamento), teoriza o filósofo, compõe uma causa natural determinante das ações, precisamente porque é segundo as diferenças de caráter (e pensamento) 363 Francisco Murari Pires bilidade de sua narrativa do acontecimento histórico, de modo a desqualificar os propósitos e fins da intervenção de Cleonte na assembléia, privandoa de todo e qualquer mérito, antes nela acusando apenas vícios, mazelas e demais descomposturas injuriosas. Os paradoxos da narrativa e os registros da memória E todavia, esta percepção do demagogo como marionete manipulada ao ritmo dos ímpetos de ira ou de divertimento das massas e que simplesmente propõe o que os desejos destas descortinam, nega a própria conceituação tucidideana de demagogia: o demagogo como agente de persuasão e condução das massas.34 Assim, na narrativa da primeira assembléia, instaurada para a discussão da proposta de paz lacedemônia, as práticas então efetivadas por Cleonte afirmam justamente aquelas que são subsumidas pelo conceito: as massas decidem convencidas pela orientação política exortada pelo demagogo. Já no relato da segunda assembléia, a interação demagogo-massas aparece invertida: são as paixões das massas que criam a proposta política, o demagogo meramente as expressa enquanto tal, e só que se qualificam as ações. Assim, nas comédias imitam-se ações baixas e vis, porque praticadas por agentes de caráter inferior. Mas, acresce ainda Aristóteles, na mímesis dramática “não agem os personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações”. Então, na e para a efetivação fenomênica de cada ação, prima o aspecto em que o caráter aparece como determinante da ação; já na e para a efetivação mimética, na composição do mito poético, prima o aspecto em que a ação determina o caráter, na medida em que a composição deste deriva da composição daquela. Para uma análise crítica na abordagem dessa problemática e de seus ecoamentos temáticos na memorização historiográfica moderna veja-se o trabalho de Luís Otávio de Magalhães. Curtumeiros e salsicheiros. A representação cômica da demagogia em Cavaleiros de Aristófanes. USP , 1996. 34 Vejam-se, nesse sentido, já os comentários de Gomme, 1956, à p. 468: There was no question of Kleon’s leading the people or opposing them; he observed which way the wind was blowing before making his proposal. 364 Mithistória efetivamente a assume por imposição das massas quando, totalmente acuado por elas, não tem mais por onde fugir e desobrigar-se. É significativo observar-se que essas duas assembléias configuram, na apreciação com que as avalia a narrativa tucidideana, decisões de alcance inverso na condução da política ateniense: a decisão da primeira foi memorizada como erro de que as próprias massas depois se arrependeram, ao passo que a decisão da segunda, que embora levasse ao êxito do empreendimento de Cleonte, foi memorizada como maluca. Assim, a narrativa da primeira assembléia, a qual afirma o estatuto de sujeito diretor do demagogo na prática deliberante da assembléia, aprecia negativamente a figura de Cleonte, porque capta a sua atuação nessa assembléia pela ótica trabalhada pelos debates da assembléia seguinte, a segunda, a qual memoriza a responsabilidade do demagogo como agente determinante do erro cometido na primeira. Já a narrativa da segunda assembléia aprecia igualmente de forma negativa a figura de Cleonte, iluminando agora antes o estatuto do demagogo como objeto manipulado pelas paixões populares, cuja participação na decisão da assembléia não pode ser creditada pelo mérito do sucesso do empreendimento dela resultante, mesmo porque apreciada essa empresa como inconseqüência das leviandades estapafúrdias porque age o demagogo. Mas, se os dissociarmos por um momento (analítico) do horizonte de inteligibilidade das concepções da demagogia, em que a historiografia tucidideana os circunscreve e (des)entende, que tópicos constituíam a proposta firmada pessoalmente por Cleonte na assembléia? Seu pronunciamento começa, pelo relato que dele dá Tucídides, por uma declaração de destemor, de impavidez – não temia os lacedemônios –, a qual, pelo conteúdo de sua referência à fama guerreira aterrorizadora dos espartanos, é um tanto inesperada, desconexa, considerando-se o contexto da evolução dos debates exposto pela própria narrativa tucidideana. Referência que, entretanto, ganha melhor sentido se entendida no quadro da 365 Francisco Murari Pires divisão de orientações políticas em debate naquela assembléia, e já atuante desde o princípio da campanha de Pilos. Pois, desde então, a campanha contou com oposições entre os próprios atenienses, mais especificamente na esfera do seu comando, a entravar sua consecução. No horizonte desse contexto de divisão política, a aparentemente desconexa proclamação de destemor firmada pessoalmente por Cleonte, ganharia inteligibilidade como réplica a argumentos retóricos de dissuasão do empenho guerreiro de Atenas em PilosEsfactéria, os quais atuavam no curso dos debates dessa campanha, sempre basicamente infundindo desalento e temores no ânimo popular. A seguir, Cleonte define qual seria a composição das tropas de reforço ao exército ateniense sediado em Pilos: ela opera uma dissociação entre contingentes guerreiros cidadãos, poupados ou excluídos da convocação, e contingentes guerreiros de procedência não-ateniense (de Ímbros, Lemnos, Enos e outros lugares). O móbil que enseja a convocação de uns – lêmnios e ímbrios – parece ser sua ocasional presença em Atenas (os lêmnios e os ímbrios que lá se encontravam). Já a convocação de outros – Enos e demais – obedece a critérios seletivos respeitantes à sua funcionalidade guerreira: peltastas e arqueiros. E o pronunciamento termina pela promessa que estipulava o prazo em que Cleonte, de uma forma ou de outra, levaria a cabo o cerco, aliás condizente com a argumentação de urgência por ele então arrazoada: dentro de vinte dias, ou traria os lacedemônios vivos, ou os exterminaria. Por último, Cleonte, finalizando a assembléia que votara nele para o comando da expedição, decidiu associar a si, dentre os estrategos destacados para a campanha de Pilos, apenas Demóstenes, pois, acresce o relato tucidideano, ele estava inteirado de que este planejava um desembarque imediato na ilha a atacar o contingente lacedemônio. Então, preparou urgente sua partida.35 Aqui, neste relato do desfecho da assembléia, transparecem, se bem que ofuscados pela figuração contrária dominante no corpo maior do tex35 IV.29.1-2. 366 Mithistória to tucidideano, relances de um Cleonte surpreendente: antes audaz do que temeroso, resoluto do que esquivo, informado do que leviano, ciente do que inconseqüente, e diligente do que passivo. Então, como o atesta o relato da batalha final em Esfactéria, foi precisamente aquela inusitada (como o apreende a narrativa tucidideana polarizada por essa ótica hoplita de percepção do fato) composição de tipos guerreiros, estranha aos modos de combate próprios da tática de falange, que definiu o fator decisivo da vitória ateniense.36 Mais ainda, essa composição supunha uma estratégia de combate definida previamente por Demóstenes, cujo conhecimento das vantagens e eficácia ele já experienciara em suas campanhas anteriores. De modo que, paradoxalmente, a proposição de Cleonte, no sentido de enviar aquela singular composição de guerreiros objetivando a conclusão do cerco de Esfactéria, entretanto desqualificada como estapafúrdia e maluca pela narrativa tucidideana37, coadunava-se perfeitamente com os planos traçados por Demóstenes justo nesse sentido, alcançando inclusive a vitória graças a uma apropriada exploração das condições de combate terrestre no local de Esfactéria. Que não se trata, portanto, de proposição inconseqüente e desvairada de um demagogo leviano como o dá a (des)entender o relato de Tucídides, ainda melhor se indicia pelo detalhe de que o próprio historiador diz que Cleonte estava inteirado dos propósitos de Demóstenes de efetuar o desembarque e dar combate aos hoplitas espartanos.38 36 37 Confiram-se os comentários de ensaio anterior. Nesse sentido, a desqualificação da loucura da proposta de Cleonte, ecoada por Tucídides em sua narrativa, conforma-se com o teor de desespero derrotista daquela nebulosa ótica, que já na assembléia mesma projetava as “razões” da inviabilidade do prosseguimento da campanha. Confira-se o informe dado em IV.29.2. E, dada a ambigüidade de formulação de uma outra passagem tucidideana (IV.30.4: “Cleonte enviara um mensageiro a Demóstenes para anunciar sua chegada, e agora alcançava Pilos com as forças que ele originariamente requisitara)”, em que o sujeito aludido como quem requisita as tropas de reforço à campanha de Pilos pode referir seja Cleonte seja Demóstenes (vejam-se os comentários de Hornblower), a proposição feita por Cleonte na assembléia poderia então res367 38 Francisco Murari Pires Vencida a batalha e terminado com êxito o cerco da fortificação última em que se recolhera o contingente lacedemônio, então aprisionado, Cleonte retornou a Atenas esplendidamente triunfante, trazendo consigo os troféus de sua campanha vitoriosa: os escudos tomados ao inimigo39, mais os guerreiros capturados vivos, num total de 292, dos quais cerca de 120 espartíatas. Cumprira, pois, o que prometera na assembléia, tendo, no prazo estipulado dos vinte dias, trazido capturados os tão temidos espartanos! Então, o paradoxo, senão a contradição, implicada pela narrativa tucidideana consiste precisamente no fato de que: o desfecho da participação do demagogo na assembléia – a ordem de comandar por aquela estratégia de combate o renovado esforço bélico de Atenas –, que a narrativa tucidideana apresenta como o cometimento que Cleonte envidou todos os esforços no sentido de dele desobrigar-se, só o tendo assumido a contragosto por obediência às imposições da multidão, é justamente não só o meio eficaz quanto o resultado precípuo de proposição política que se coaduna perfeitamente com a sua linha característica de atuação e liderança no Estado ateniense.40 De forma que a atuação do demagogo na assembléia aparece pela narrativa tucidideana como o ato de submissão ao querer das massas, o qual, todavia, atende precisamente o que as iniciativas da política do demagogo previamente almeja! Poder-se-ia, assim, equacionar tais paradoxos entendendo que, oculta recessivamente sob a memória dominante41 do fenômeno da demagogia, ponder pela solicitação feita por Demóstenes a partir de sua avaliação estratégica das condições de combate em Esfactéria. Sobre essa questão confiram-se os comentários de Gomme (p. 469, p. 471 e p. 473) e Hornblower (p. 188-189). 39 40 Vejam-se os apontamentos feitos em nosso ensaio anterior. Connor (1971: 134) sintetiza os tópicos centrais da linha de atuação política de Cleonte em Atenas: “mão forte sobre o império, nenhuma concessão aos peloponésios e democracia popular em Atenas”. Derivamos, livremente e sem maior rigor epistemológico, as idéias de memória dominante/recessiva das reflexões trabalhadas por Paul-Laurent Assoun em Marx e a repetição histórica. 368 41 Mithistória destacada pela narrativa tucidideana da assembléia, que o representa como bufonaria das massas, ter-se-ia um outro registro de memorização que antes o supõe como obra da inteligência astuciosa, pelos gregos conceituada como métis. Então, mais propriamente do que o querer das massas criar autonomamente, segundo os caprichos de seus ímpetos passionais momentâneos, os (des)propósitos da política, não seria antes a multidão que é inoculada pelos temas e orientações inteligentemente disseminados na assembléia pela atuação dissimuladora do demagogo, que operaria por uma lógica de declarações negativas que dá por seus posicionamentos o reverso do que eles de fato são? A astúcia da demagogia não consistiria justamente da singular habilidade de transferir para o seio da multidão as sementes de uma sua proposição política que, por contrariar os ânimos inicialmente exaltados da multidão revoltada, que nela projeta a causa de seus males atuais, poucas chances teria de vingar como decisão da assembléia se encaminhada pelo demagogo no contexto primeiro dessa animosidade hostil para com ele? De modo que, quando esta proposição manifestamente se constituir na assembléia, ela possa aparecer antes como a expressão do querer das massas, já diluída a percepção de seu sujeito proponente?42 Assim, a atuação do demagogo na assembléia, antes do que ser conduzida ao sabor das vicissitudes da irracionalidade das paixões populares, 42 No paralelo shakespeareano do célebre “Discurso Fúnebre” de Marco Antônio em honra de César toda a manobra de reversão das (in)disposições furiosas da plebe é conduzida por reiteradas declarações em que o orador assevera não se dispor a fazer o que fato efetivamente faz: (não) elogiar César, (não) contestar a honorabilidade de Bruto, (não) contraditar a acusação conspiratória acerca da ambição de César, (não) comover a afeição popular por César, (não) pretender rebelar a plebe, espicaçando-a contra os conspiradores, (não) ler o testamento de César. Por este último passo, respeitante à leitura do testamento, de poder sedutor especialmente irresistível uma vez que desperta na plebe o apelo de seus interesses materiais mais imediatos, o círculo do jogo dissimulante do orador se fecha, pois agora é por insistente e inflamada solicitação, ordem mesmo, da plebe que se autoriza o demagogo a consumar aqueles atos, aos quais ele protestava se indispor de início, agora só os perpetrando por estrita obediência às manifestações imperativas do querer da plebe. 369 Francisco Murari Pires conduziria o movimento destas por essa modalidade de ação inteligente, conceituada como métis. Nesses termos, poder-se-ia, então, entender ainda na operação astuciosa com que o demagogo, Cleonte, conduz a reversão dos ânimos da assembléia, a eficácia de uma manobra dolosa.43 A lógica que comanda tal modo de ação inteligente opera pela criação de aparência dissimuladora, em que a intenção que se dá na ação, a intenção que é apresentada como tal, realiza a identidade oposta do que originalmente é sua identidade mesma. A eficácia dolosa da operação de métis dá-se, então, por essa ação de produção de aparência dissimuladora que oculta a sua identidade pela e na ação mesma de desvendar-se. De modo que o outro desse jogo doloso no caso da demagogia, ou seja, a multidão congregada em assembléia, atua iludida pela aparência simuladora da ação demagógica, sem se dar conta do engano, do engodo, de que foi efetivamente objeto, antes do que sujeito. E por esse jogo doloso da métis demagógica fecha-se, no movimento mesmo das decisões da assembléia, o ciclo da total irresponsabilidade da política assim conformada: não há agentes responsáveis, ou seja, que respondam pelas decisões adotadas. De um lado porque, quando uma decisão da assembléia é reconhecida como errônea, a multidão não a assume como responsabilidade sua, descomprometendo-se pelo proceder acusatório que inculpa o agente de persuasão – o demagogo – que a induziu ao erro no processo deliberativo de tomada de decisão. Mas, também do outro lado, do lado do demagogo, fica ambíguo imputar-lhe a responsabilidade pelas decisões tomadas, porque ele antecipadamente, no processo mesmo dos debates, já se descomprometera dela ao atuar de modo a aparecer como quem obedece às ordens que a multidão dita como decisão da assembléia. Fecha-se, assim, o ciclo da total irresponsa43 O entendimento dos vínculos conceituais que articulam métis e dólos encontra-se na análise de Jaa Torrano, O sentido de Zeus, especialmente no capítulo “O doloso sentido de dólos”, p. 95-103. 370 Mithistória bilidade política que marca a demagogia: a atuação do demagogo na assembléia a constitui antecipadamente em seu princípio, ao passo que a atuação da multidão a sela retroativamente em seu fim. Então, pela inteligência da métis dolosa, a modalidade de liderança demagógica operada por Cleonte, como a modalidade de liderança democrática, consagrada pela narrativa tucidideana na figura de Péricles, reverte as disposições de ânimo da multidão, só que pelo modo oposto de atuação: não pela contraposição e enfrentamento positivo e declarado, como na representação da liderança pericleana, mas sim pelo acolhimento e favorecimento negativamente aparentado. De modo que, a modalidade de liderança política que a demagogia constitui, só aparece como expressão do império das paixões pela percepção dominante que a obra da memória histórica tucidideana decanta, a qual, entretanto, assim se constitui porque elide, oculta como recessiva, a percepção que nela aprecia a ação da razão astuciosa. E, todavia, mesmo essa percepção do desenrolar dos acontecimentos na assembléia, pela inteligibilidade projetada pelo conceito de métis dolosa, não alcança ainda um outro registro de memorização presente no relato tucidideano tanto mais recessivo. Pois, nem tudo na ação demagógica de Cleonte é necessariamente (dis)simulação de aparência enganosa. Pelo contrário, suas réplicas aos antagonistas primam pela logicidade positiva de justa argumentação arrazoadora, com que ele então desfaz e liquida as objeções que colocam em impasse o encaminhamento de sua proposta política no curso da deliberação. Assim, a acusação que ele dirige contra os estrategos, segundo o entendimento que dela constrói a narrativa tucidideana, visava especialmente a atingir Nícias, sendo, pois, dotada de malignidade política interessada em arruinar a autoridade de seu adversário. Mas, mesmo que tivesse ela esse alcance especioso, nem por isso é desprovida de consistência argumentativa, pois, de fato, o estratego naquela ocasião era mesmo Nícias, a quem, portanto, competia regular e oficialmente, os deveres do encargo de coman371 Francisco Murari Pires do militar então reclamados para a expedição.44 Assim, a acusação que Cleonte dirige aos estrategos estabelece o nexo que identifica nestes um foco promotor daquele clima de desânimo e desistência, a desrecomendar quaisquer esforços de prosseguimento da campanha bélica, e antes induzir a assembléia até mesmo no sentido de concluir já a paz com Esparta. Assim, quando os mensageiros vindos de Pilos propuseram o envio de uma delegação de observadores a averiguar a veracidade de seu relato, a contra-proposta descortinada por Cleonte primou pelo tirocínio justo e perspicaz de suas razões, as quais voltaram contra aquela proposta dos mensageiros os elementos de sua própria argumentação. Pois, em sua réplica, Cleonte deslocou o debate do campo em que a proposta dos mensageiros o fixara – a verdade/mentira do relato –, para situá-lo no da questão maior porque se solucionaria o cerco de Esfactéria. Para tanto, Cleonte acedeu que se admitisse hipoteticamente a verdade das notícias transmitidas, a supor-se que as forças atenienses deparassem mesmo adversidades para terminar o cerco e concluir a campanha. Só que, a partir daí, inverteu, contra aquela percepção negativa e desalentadora que de início tomara conta das projeções deliberantes da assembléia que a induziam à desistência do cerco, sua própria lógica fundamentadora: nesse caso de situação, assim tão criticamente grave, impor-se-ia ainda mais urgentemente intensificar o esforço bélico de Atenas no sentido de concluir o cerco o quanto antes, e não – o que Cleonte denunciava como decorrência intrigada pela proposta dos mensageiros – delongá-lo ainda mais, prolongando-o a estender-se inverno adentro, decidindo-se apenas pelo envio de observadores! Mas a narrativa tucidideana, porque enquadra a contra-proposta de Cleonte pelo ângulo desqualificador da demagogia leviana e apenas diligente, em termos de seus interesses pessoais, turva a percepção do alcance certeiro e incisivo do tiro desferido pela argumentação de Cleonte. Aqui, mesmo a percepção da inteligência astuciosa da manobra do demagogo perde a transparência de sua racionalidade positiva. 44 Confira-se já o comentário de Gomme (1956: 468). 372 Mithistória Mais ainda, a argumentação de Cleonte implicitamente acusa um movimento de persuasão da assembléia no sentido de levá-la a desistir do cerco. Tal movimento aparece na narrativa tucidideana registrado como uma progressiva cadeia de reações negativas, suscitadas no ânimo da assembléia em decorrência de projeções tiradas das notícias transmitidas pelos mensageiros: confusão e perplexidade que dão lugar a preocupações e incertezas quanto às perspectivas de prosseguimento do cerco, cujo êxito se acredita já irremediavelmente comprometido, antevendo-se mesmo seu fracasso, de forma a gerar receios e inseguranças tais que terminam em arrependimento, logo desafogado em hostilidade contra a política bélica agressiva propugnada pela liderança de Cleonte. Ora, no contexto mesmo da percepção apreendida dominantemente pela narrativa tucidideana, é paradoxal o aparecimento totalmente inesperado de uma disposição de ânimo já belicoso na assembléia, à qual a proposta de Cleonte, nesse sentido apenas ecoaria, pois fôra até então exatamente o seu oposto o clima popular que dominara na assembléia desde o princípio. Como, e por quais razões, operou-se essa mutação no querer da assembléia, que agora passava a dispor os atenienses já no sentido favorável à continuação do esforço bélico reclamado pela campanha de Pilos, o texto de Tucídides silencia um tanto enigmaticamente. Fica-se com a impressão de tratar-se de mais outra das costumeiras reviravoltas que, no entender do historiador, tipificam o comportamento passionalmente ocasional das massas: num momento propendem numa direção, no momento seguinte decidem o inverso! Ora, mas é intrigante que essa nova propensão da assembléia responda exatamente pela teleologia de orientação beligerante e postura agressiva, que distinguem as iniciativas da linha de atuação política promovida por Cleonte no cenário ateniense da guerra arquidâmica. Para tal desencadeamento do pânico pessimista porque principiou a deliberação da assembléia a desembocar em sua animosidade irada contra Cleonte, o relato dos mensageiros foi peça fundamental em termos de sua razão fundamentadora. Pelo que dá a entender a narrativa tucidideana, não há dúvidas de que esse relato fosse verídico, pois ela declaradamente de373 Francisco Murari Pires nuncia como calúnia infundada a acusação de Cleonte que o desqualificava como mentiroso! Para a memorização historiográfica conformada pela narrativa tucidideana, trata-se mesmo de um fato: a situação militar real vigente em Pilos! Ora, mas como a narrativa tucidideana constrói essa sua certeza? Ressaltam dois momentos do texto. O primeiro é constituído pelo quadro que o historiador traça do desenrolar do cerco de Pilos-Esfactéria, referindo os acontecimentos passados após o fracasso das negociações de paz. E a composição desse quadro antecede, na narrativa, imediatamente o relato da sessão da assembléia. Fica-se, assim, desde esse momento, inteirado de que a guarnição lacedemônia na ilha sustentava sua posição (conhecimento este ancorado na exposição dos expedientes empregues pelos espartanos no sentido de remeter-lhes os alimentos), como também fica-se inteirado de que as forças atenienses enfrentavam dificuldades. E o relato da sessão da assembléia, por sua vez, abre-se precisamente pelo registro desse duplo conhecimento fatual, apresentado pelas notícias trazidas pelos mensageiros vindos de Pilos: “chegam alimentos ao contingente espartano bloqueado na ilha e o exército ateniense enfrenta adversidades”.45 Portanto, antes mesmo de iniciar a narrativa do relato dos mensageiros na assembléia, a veracidade de seu conteúdo está antecipadamente assegurada pelas asseverações do historiador então, apresentadas como fatos. Sua verdade é posta de princípio. O segundo momento do texto, em que Tucídides afirma a certeza da verdade do relato dos mensageiros, denuncia expressamente, pelo contrário, a mentira de Cleonte. E por um artifício narrativo. Pois o historiador tece, então, um comentário em que apreende as razões motivadoras da manobra do demagogo, como que perscrutando o diálogo mudo que se travava na consciência deste.46 E esse diálogo dissipa persuasivamente quaisquer incer45 46 IV.27.1. Os comentadores modernos acusam uma certa impropriedade no procedimento tucidideano de assim projetar as motivações secretas dos pensamentos de Cleonte, que 374 Mithistória tezas, pois por ele se dá que Cleonte tem a mais absoluta ciência de que está mentindo! Então, pelo primeiro momento da narrativa, é o tempo posterior de sua composição pelo historiador que constrói a certeza de sua apreciação denunciadora da mentira de Cleonte, alicerçando-a pela lógica da trama dos fatos e informes que a compõe. Pelo segundo momento, e graças àquele artifício narrativo, essa certeza é ancorada (retroativamente projetada) no tempo mesmo da assembléia. Mas, por um lado, o debate que se seguiu na assembléia ao relato dos mensageiros e que antecedeu a intervenção de Cleonte, compunha, baseado no duplo conteúdo de seus informes, um retrato altamente negativo, todo pessimista, quanto ao prosseguimento do cerco, retrato este, todavia, no mínimo questionável. Pois um de seus pontos básicos – o receio de que o o historiador jamais poderia ter conhecido (confiram-se as observações de Hornblower, 1987: 78). O historiador antigo, entretanto, não raro opera a dialética dos nexos de determinações entre a composição da figura de caráter e os atos praticados por um dado personagem, como uma espécie de instância de mútua veracidade, como bem o aponta G. S. Shrimpton (“a caracterização, seja de povos ou de políticos e estadistas individuais, compunha uma justificação para a escrita da história – em muitos casos – e bem regularmente uma fonte de verificação para a narrativa. Isto implica que a narrativa tendia a constituir um argumento para a caracterização, que por sua vez verificava a narrativa”; History..., p. 22; confiram-se igualmente as considerações externadas na p. 115: “os historiadores desde Tucídides usavam o caráter éthos em suas narrativas para verificá-las. O êxito do lógos construído tendo por base o éthos retroage positivamente sobre o éthos. Assim, lógos e éthos existem paralelamente em uma relação de mútua confirmação”). Assim, Heródoto (Histórias, VI.123) recusa a verdade da história que denunciava o medismo dos Alcmeônidas por ocasião de Maratona, figurando a identidade de sua defesa da causa da liberdade por permanente combate à tirania. Assim, Aristóteles (Athenaíon Politeía, VI.3) igualmente denuncia a falsidade da história que acusava o envolvimento pessoal de Sólon na falcatrua tramada por seu círculo de amigos a explorar os benefícios da sisactia. E, assim, ainda Aristóteles compõe as figuras de caráter dos Pisistrátidas memorizadas consoante a fama de seus atos (Athenaíon Politeía, XVIII.1-2; confiram-se nossos comentários ao texto aristotélico, p. 189-190, nota 2). 375 Francisco Murari Pires inverno viesse a surpreendê-los, agravando ainda mais as dificuldades de aprovisionamento de víveres das forças atenienses – especulava com a vinda da má estação quando havia ainda três meses de época normal de campanha, sendo que um mês e meio de verão!47 E, por outro lado, o tempo da assembléia é o tempo da indeterminação. Lá, a fala dos mensageiros é questionada na sua veracidade. Ora, nesse lugar institucional das práticas da assembléia, como pode uma fala firmar a certeza de sua verdade? Na assembléia, dá a entender o próprio Tucídides, a (in)definição da verdade fica submetida à confiança e convencimento momentâneos da multidão, persuadida pelas falas em debate. Ambos, mensageiros e Cleonte, reconhecem-no expressamente. Os primeiros, quando admitem que a assembléia coloque em suspensão (e, portanto, sob suspeição) a verdade de seu relato, caso não depositasse confiança neles. O segundo, quando concede que a assembléia possa, pelo contrário, acolher tal relato, caso lhe parecesse verdadeiro. Aqui, no tempo da assembléia, verdade ou mentira do relato não é tanto uma questão de fato em si, mas de manobra política porque se persuade ou dissuade tal ou qual proposição deliberativa. Pode, lá, ficar mesmo irrelevantemente em suspenso ou sob suspeição. Assim, a manobra de Cleonte, que acusava a inveracidade do relato dos mensageiros, é politicamente tão (in)consistente no âmbito das práticas da assembléia quanto a dos mensageiros que asseverava, pelo contrário, sua veracidade. Se apreciada apenas como manobra astuciosamente caluniosa, como o faz Tucídides, perde-se outra vez a percepção de sua coerência de racionalidade positiva. * Foi especialmente com a obra de Francis M. Cornford – Thucydides mythhistoricus, datada de 1907 – que se firmou na tradição historiográfica moderna a consciência da obra do acaso na determinação dos acontecimentos da campanha de Pilos-Esfactéria. Concebida nos horizontes episte47 Confiram-se as estimativas calculadas por Gomme (1956: 478). 376 Mithistória mológicos do círculo que se convencionou denominar os “Ritualistas de Cambridge”, a leitura tucidideana de Cornford fazia emergir a persistência dos componentes de irracionalidade no âmbito do pensamento clássico helênico, e mesmo em um de seus supostamente expoentes máximos de identidade historiográfica racionalizante, Tucídides. A crise dos paradigmas epistemológicos da historiografia cientificista no decorrer do nosso século, especialmente por seu ideal de alcançar uma objetividade analítica que desse conta da expressão dos acontecimentos históricos em sua pura realidade fatual, tendeu, por sua vez, a reverter o sentido dos ajuizamentos hermenêuticos da historiografia tucidideana: onde antes primava a figura do historiador antigo de máxima competência científica, acuradamente objetivo e preciso, a dominar a verdade dos fatos da Guerra do Peloponeso, começou a ganhar vulto antes seu fantasma reverso, a agora destacar-se, ou inclusive acusar-se, suas imprecisões, seus erros, suas falhas e até suas subjetividades narrativas, mesmo as mais passionalmente comprometedoras no caso de sua apreciação histórica das atuações de Cleonte, a ponto de, por ela, prejudicar sua perspectiva de toda a campanha de Pilos. Por uma espécie de tendência pendular da crítica moderna, onde Tucídides firmara na narrativa dos acontecimentos a interferência imprevisiva do acaso, agora passaram-se a corrigir tais equívocos resgatando antes as projeções de racionalidade previsiva da inteligência humana planejadora dos acontecimentos que teria sido obliterada pela análise tucidideana.48 Assim, por exemplo, o concurso da presença dos messênios nessa campanha: Demóstenes a integrara antecipadamente em seus planos ao ensejo de seus contatos anteriores com os messênios de Naupacto, de modo que aquele inesperado aparecimento dos barcos messênios pelas águas de Pilos teria sido previamente concertado pelo comandante ateniense. Ou, assim, o incêndio da mata de Esfactéria, ateado não acidentalmente por um guerreiro negligente, mas tam48 “Em grande parte porque Tucídides superestima o papel da sorte em seu relato da campanha de Pilos, os críticos reagiram dispondo que muito do que acontecera em Esfactéria fora o resultado de cuidadoso planejamento” (Roisman, 1993: 40). 377 Francisco Murari Pires bém planejado racionalmente por Demóstenes, como mais outro de seus inteligentes recursos de estratégia militar, especialmente aprendidos nas campanhas pela Etólia e Acarnânia, no ano anterior. E, todavia, como aponta judiciosamente Joseph Roisman, em seu estudo – The general Demosthenes and his use of military surprise (1993) – um tal resgate a universalizar os aspectos de determinação dos acontecimentos pela obra da razão humana previsiva acarreta, por sua vez, a necessidade de obliterar os aspectos fatuais, informados por Tucídides, que a ela não se adequam. Pois, se Demóstenes antecipadamente acertara a vinda dos messênios a Pilos, assim planejando sua participação, fica ainda mais estarrecedor que ele não tivesse confiado seus planos também aos estrategos da frota, Eurimedonte e Sófocles: porque teria ele então sido zeloso no sigilo receando quebras junto a estes seus colegas, mas não da parte daqueles seus assistentes messênios?49 E se preparara ele o favor desse concurso, por que não previra também mais outros preparativos que facilitassem o empreendimento, antes entregando-se às vicissitudes daquelas precárias e inusitadas obras de fortificação de Pilos? A reversão interpretativa, respeitante ao episódio do incêndio na mata de Esfactéria, assim tramada pela leitura da crítica moderna, igualmente acusada pela análise de Roisman que aponta as diferenças estratégicas do mesmo em relação ao similar incêndio da mata nas campanhas da Acarnânia50, adquire também implicações surpreendentemente enigmáticas. Pois, pelo que conta Tucídides, para que o incêndio favorecesse a execução do plano de desembarque de Demóstenes fora fundamental não só o ato de que tivesse sido ateado, mas mais ainda que coincidisse com um forte vento, então soprado, que o alastrara por toda a ilha! Assim, Demóstenes teria então que ter também previsto esta manifestação atmos49 Confiram-se as objeções de Roisman (1993: 34) às conjecturas de Strassler acerca de um suposto receio demostênico de quebra do sigilo de seu plano de operações em Pilos, como razão explicativa para a ignorância do mesmo pelos estrategos oficiais. Roisman (1993: 38). 378 50 Mithistória férica coincidente com a hora da refeição daquele grupo de guerreiros atenienses!51 Se, pela leitura tucidideana, predomina a impressão da obra do acaso na determinação fatual dos acontecimentos de Pilos assim obliterando o alcance da razão previsiva humana, por esta reversão hermenêutica por parte da crítica moderna maximiza-se a tal ponto essa capacidade de inteligência humana previsiva, obliterando o alcance do acaso, que antes se a assemelha a virtudes de potências divinas.52 Se a razão historiográfica tucidideana deslocara a presença do divino pela categoria do acaso, a da crítica moderna, agora desloca a do acaso por uma razão humana de representação antes divinizante. 51 Na batalha naval travada nas águas do golfo de Corinto, logo no segundo ano de guerra, Fórmion, o comandante da frota ateniense, explorou inteligentemente, em prol de sua tática de combate, a previsão da ocorrência de um vento que acabou por arruinar a formação da frota peloponésia e, conseqüentemente, ensejar sua própria vitória. Pelo que informa Tucídides, tal fora possível porque aquele vento soprava regularmente, sempre provindo do golfo e ao romper da aurora. No caso do vento de Esfactéria, entretanto, o historiador assinala antes a manifestação ocasional do vento que soprou pela ilha. A especular-se, pelo contrário, que Tucídides assim desconhecia uma regularidade no regime de ventos no local, o que então poderia ter ensejado a Demóstenes uma previsão similar à de que se valera Fórmion, incorre-se, todavia, em uma interpretação inconsistente, pois neste caso tal suposição conflita com o fato de que o empreendimento do desembarque ateniense em Esfactéria tivesse se retardado por cerca de um mês, dado que aquela suposta regularidade, e sua ciência previsiva por Demóstenes, o ensejasse mais imediatamente (remetemo-nos aqui às considerações que faremos em nosso ensaio final – “Leões alados e círculos triangulares” – no que concerne a tais hipóteses especulativas tendentes a acertar os erros ou as inconsistências que arrazoamos detetar nos textos antigos). “Mas afirmar que Demóstenes podia prever todos estes desenvolvimentos é dotar-lhes de poderes sobre-humanos de pronoia” (Roisman, 1993: 35). Ainda, Roisman dá a entender a operação de uma certa teleologia hermenêutica da crítica moderna, nessa sua inclinação por identificar plenitude previsiva em todos os movimentos do comandante ateniense na campanha de Pilos: “Quando não se assume que os resultados devam espelhar intenções, ou que Demóstenes fosse um mestre planejador, permanece a possibilidade de que ele tivesse sorte” (p. 38). 379 52 Francisco Murari Pires Para a apreciação hermenêutica da atuação demagógica de Cleonte o mesmo nexo de categorias atua no jogo das projeções figurativas que os registros de memorização ensejam. Pela memória dominante do texto tucidideano, o demagogo aparece como o bobo das massas, marionete manipulada ao (des)compasso de seus caprichos e divertimentos, papel a que ele mesmo se presta acumpliciado em vista da inescrupulosidade de suas exclusivas motivações pessoais interesseiras. Então, à futilidade dos propósitos das massas na assembléia ele (cor)responde pela leviandade de sua atuação política. Por esta memorização, a métis do demagogo aparece rebaixada a seu nível ínfimo de esperteza a mais rudimentar, assim confinando com a sua caracterização já caricata, presente nas comédias aristofânicas em que se a degrada por tons exacerbados de escárnio aviltador. A essa memória pode-se contrapor a figuração recessiva, que igualmente transparece como leitura possível da narrativa tucidideana, especialmente se apreciada à luz da inspiração shakespeariana. Aqui, inverte-se a dialética do jogo astucioso entre massas e demagogo, esses ambíguos parceiros e disputantes que a demagogia articula. Pois, a figura caricata de estupidez palerma, vítima grosseiramente insciente de ludíbrios e engodos, fica agora concentrada nas massas, o demagogo sendo antes apreciado pela inteligência mais refinada de sua arte astuciosa que opera pela dissimulação discursiva, formulada por negação de identidade. Mas, apreensão esta da métis dolosa do demagogo que, se levada ao alcance extremo de sua explanação dos fatos de modo a entender a totalidade das manobras do demagogo como atos de dissimulação dolosa, implicaria supor em sua pessoa virtudes de planejamento de razão previsiva por domínio pleno do desenrolar dos acontecimentos, especialmente dos modos de reação tanto das massas quanto de seus oponentes na assembléia, que beira as projeções da representação dos poderes dos entes divinos. E sobre ela paira a nebulosidade de uma teleologia hermenêutica na operação de nossa leitura, pois não estaríamos caindo, então, na figuração sarcástica denunciada já por um antigo comediógrafo, anonimamente referido por Luciano, ao dar, da suposta 380 Mithistória métis de Cleonte, a seguinte definição por paradoxal ironia: “um Prometeu após os acontecimentos”.53 A essas memorizações que (con)figuram a métis do demagogo, seja em seus registros mais rebaixados de esperteza seja nos mais elevados de primorosa inteligência, contrapõe-se o terceiro registro, também recessivo no texto tucidideano, que apreende antes a atuação de Cleonte determinada pela soluções que a lógica da razão positiva descortina consoante às circunstâncias, também imponderáveis, do jogo a cada momento atualizado pela evolução dos debates na assembléia.54 Intentar dirimir, na figuração da demagogia de Cleonte, a (ir)realidade dessas distintas contraposições perceptivas enreda-nos, então, nas teias emaranhadas de seus registros de memorização, com efeitos especialmente ruinosos se ou as ajuizarmos pelos reclamos de um princípio de criteriosidade mutuamente excludente a impor a positividade homogeneizante da razão e sentido exclusivo de um deles contra a eliminação das razões e sentidos dos outros ou os compusermos em uma pretensa interpretação unívoca, que amalgame consistentemente suas razões e sentidos.55 53 54 Confiram-se as indicações dadas por Gomme (1956: 479). Deparamo-nos com uma problemática similar a esta no que respeita às memorizações históricas da figura de liderança política de Terâmenes no cenário político ateniense, igualmente oscilando entre sua percepção pelos delineamentos ou da atuação astuciosa dissimiladora, como na comédia aristofânica, ou da conduta pautada por princípios positivos de legalidade cívica, como na narrativa aristotélica da Athenaíon Politeía (confiram-se os comentários nesse sentido tecidos na nota 9 do capítulo XXVIII de nossa tradução desta obra). Talvez se possa aproximar esta problemática epistemológica respeitante aos registros alternativos da memorização tucidideana da demagogia de Cleonte dos delineamentos da categoria de complementaridade, propostos no âmbito filosófico das teorias da Mecânica Quântica, mormente elaborada por Niels Bohr. Confira-se, nesse sentido, a análise interpretativa dessa categoria por Max Jammer (The philosophy..., p. 104), que dela propôs esta axiomatização caracterizadora: “uma dada teoria admite uma interpretação de complementaridade se as seguintes condições forem satisfeitas: 1) a teoria contém (pelo menos) duas descrições do objeto em questão; 2) essas descrições referem-se 55 381 Francisco Murari Pires Tanto mais que, nessas obras de memorização histórica da demagogia de Cleonte, o jogo das interpretações oscila também por um sutil deslocamento conceitual, este registrado por uma tradição comentada por Plutarco na coletânea de seus tratados éticos, intitulada Moralia: “Cleonte, quando primeiro decidiu participar da vida política, reuniu seus amigos e renunciou à sua amizade como algo que freqüentemente enfraquece e perverte o que é a alternativa correta e justa de orientação na vida política. Mas ele teria feito melhor se tivesse banido de sua alma a cobiça e o pendor querelento e se purificado da inveja e da malignidade; pois a cidade necessita não de homens que não tenham amigos ou companheiros, mas homens valiosos e sensatos. Do modo que se deu, ele afastou seus amigos. Mas um bando de serpentes aduladoras enrolou-se nele, como diz o poeta cômico; e ao ser áspero e duro para com os notáveis, por sua vez sujeitou-se à multidão a fim de ganhar seu favor – o gerontagogo, doador de salários reiterados – que fez dos mais despretensiosos e medíocres seus associados contra os melhores cidadãos”.56 O princípio de teleologia política, consagrado pelo gesto de renúncia de Cleonte em relação a seu círculo de amizades, firma-se em termos do primado de uma ética de correção e justiça formulada em sua universalidade e autonomia de propósitos, a precisamente desvencilhá-lo dos comprometimentos arruinadores que os nexos da philia pessoal implicava. Lampejos dessa postura aparecem na memorização do texto tucidideano, quer nas austeras denúncias com que Cleonte liquida a proposta espartana de remeao mesmo universo de discurso; 3) nem uma nem outra dessas descrições, se considerada isoladamente, dá conta exaustivamente de todos os fenômenos desse universo; 4) essas descrições são mutuamente exclusivas no sentido de que sua combinação em uma descrição singular levaria a contradições lógicas”. E a referendar sua análise, lembrou então Jammer, entre outros, os ditos do próprio Bohr (“na Física Quântica, a evidência acerca dos objetos atômicos por meio de diferentes arranjos experimentais...manifesta-se contraditório quando se tenta uma combinação em uma apresentação singular”) mais o de Born que neste termos sintetizou a questão: “não há uma imagem única de nosso mundo total de experiência”. 56 Plutarco. Moralia, 806F-807A, segundo a tradução proposta por Connor (1971: 93). 382 Mithistória ter a discussão do tratado de paz para o âmbito secreto de uma comissão, quer naquelas argumentadas contra a postergação ou mesmo desistência do cerco de Esfactéria. De imediato, entretanto, Plutarco desloca essa conceitualização preterindo-a por uma sua face reversa, a qual a (des)entende pela implicância de uma opção contrária a sujeitar o demagogo aos comprometimentos dos agrados populares. O que aparenta ser uma implicância tão sutil quanto óbvia, pois uma tal ética que reclama imparcialidade de posicionamentos a exigir o rompimento dos vínculos e nexos sociais que antes os comprometeriam, bem pode firmar, ou (com)provar, essa sua imparcialidade, induzido a defender o lado oposto a esse círculo de amizades!57 E, todavia, o que o princípio ético de Cleonte reclamava era antes a independência de vinculações deformadoras de sua conduta política, o que exigia dele romper os laços que pessoalmente o implicavam, no caso, seu círculo de amizades entre os cidadãos prestigiosos. Não supunha necessariamente, portanto, a definição comprometedora “populista” a que não só Plutarco, mas igualmente já Tucídides e Aristófanes, estigmatizam. A independência de conduta, firmada pela universalidade de um princípio de justiça e correção, enseja então a Cleonte igualmente aparecer como quem confronta também as massas na assembléia, e mesmo as critica, assim denunciando inclusive os equívocos de suas afeições pelos espetáculos sofísticos, lá na assembléia insidiosamente tramados pelos opositores da democracia.58 57 Confiram-se os similares reclamos da ética historiográfica preceituada por Políbio (I.14.45): “Em outras espécies de relacionamento na vida talvez não devamos excluir totalmente esse tipo de favoritismo, pois um homem bom deve amar seus amigos e sua pátria, e deve compartilhar as aversões e as simpatias dos amigos; mas quem se reveste do caráter de historiador deve ignorar tudo isso, e muitas vezes, se for compelido pelas ações de seus inimigos, deve falar bem deles e distingui-los com os maiores elogios, enquanto lhe compete criticar e até condenar severamente seus amigos mais íntimos, se seus erros de conduta lhe impõem esse dever” (tradução de Mário da Gama Kury). Enveredamos aqui pelas implicações historiográficas da análise do célebre discurso tucidideano, que figura a atuação de Cleonte no episódio da revolta de Mitilene, o que reclamaria um outro estudo (nesse sentido, veja-se o artigo de James A. Andrews. Cleon’s ethopoetics, The classical quarterly, 44, 1994: 26-39). 383 58 X. Leituras da Athenaíon Politeía PERDA E REDESCOBERTA Politeíai em fragmentos Finalizando as reflexões que compõem o tratado por nós conhecido sob o título de Ética Nicomaquéia (X.1179b31-1181b22), Aristóteles tece considerações adicionais que, desdobrando a ética em política, anunciam como que um programa de estudos voltados para o exame das questões concernentes à ação legisladora (nomothesía), empreendimento este, observa o filósofo, que fora deixado inexplorado pelos antecessores. Tal exame, associado em termos mais gerais à abordagem dos tópicos e problemas respeitantes à estruturação do regime político da cidade (politeía), distingue e prevê dois momentos de operações analíticas diferenciadas. Em primeiro lugar, haveria que passar em revista tudo o que de valioso já fora colocado pelos que, precedentemente, se tinham dedicado a essas questões. E depois, já anunciando as proposições finais do novo estudo, haveria que buscar a apreensão teórica (theoresai) de quais coisas preservam e quais arruinam as cidades, bem como cada um de seus distintos regimes, mais a apreensão teórica de por quais causas umas são bem governadas e outras não. Tal programa de estudos do Liceu, como é bem sabido, compõe boa parte da obra por nós conhecida como Política. Mas este segundo momento, pondera o filósofo, derivaria (da consideração) dos regimes colecionados (ek ton synegmenon politeion). Francisco Murari Pires Tais são as colocações com que o próprio Aristóteles enuncia a existência de um repertório de textos dando conta dos diversos regimes já efetivamente experienciados, repertório este destinado a dispor as informações que melhor fundamentariam as teorias políticas do Liceu. Nas Listas de Obras atribuídas na Antigüidade à autoria de Aristóteles consigna-se um item respeitante justamente a uma coletânea de Politeíai. Diógenes Laércio, mais Hesíquio, referem um total de 158, de que se aproxima o testemunho de 171, presente na versão árabe de Usaibia.1 Já outros textos aludem a 250, dentre eles passagens de Amônio, Olimpiodoro e Elias, bem como de algumas Vitae Aristotelis (Vulgata e Latina).2 Informe este, entretanto, equivocadamente exagerado, pelo que argumentam as análises exegéticas dos críticos modernos, antes corroborando unânimes aquele primeiro montante.3 Nessa coletânea incluíam-se as exposições dos regimes políticos de inúmeras cidades e povos helênicos (Atenas, Egina, Delfos, Samos, Siracusa, Corinto, Lacedemônios, Etólios, Acarnânios, Tessálios, ... 4) e ao que parece também de alguns bárbaros, pois assim o diz não apenas o testemunho de Cícero – (De Fin 5.4.11) –, mas também o de Fócio, que se refere a uma Politeía dos Lícios, sendo ainda plausível admitir-se que o exame da Politeía de Cartago, constante da Política, derivasse de um tratado similar.5 E vários autores antigos, já helenísticos mas de forma mais decisiva a partir de meados do séc. I antes da nossa era, ancoram muitas vezes os relatos de suas narrativas por informes alegadamente retirados dos textos das Politeíai de Aristóteles. Assim, Políbio, bem como presumivelmente Timeu por ele justamente criticado, deve ter-se valido da Politeía da Lócrida Epizeféria, pois baseia1 2 3 4 5 Diógenes Laércio. Vida dos filósofos, V.27; Hesíquio, 135; Usaibia, 86. P . J. Rhodes. Historical commentary..., p. 2. J. E. Sandys. Aristotle’s..., p. 26; R. Weil. Aristote..., p. 98; Rhodes, idem, p. 2. Lista completa em Sandys, obra citada, 27. Ver a discussão de R. Weil a esses respeito em Aristote et l’histoire, p. 100. 386 Mithistória se em informes aristotélicos para melhor fundamentar essa sua crítica ao historiador siciliano.6 Estrabão, por inícios da era cristã, refere-se a pelo menos quatro delas: a dos Acarnanianos, a dos Opúntios, a dos Megarenses e a dos Leucádios. Plutarco, já em fins do séc. I da nossa era, por várias vezes cita Aristóteles como sua fonte a fundamentar informações respeitantes a várias figuras da história ateniense (Teseu, Sólon, Temístocles, Címon, Péricles e Nícias). Zenóbio, sofista grego que viveu no reinado de Adriano na primeira metade do séc. II, faz também referência a várias delas, mencionando tanto as de Corcira, Samos, Delfos e Metone, quanto ainda a de Atenas. Já Ateneu, por inícios do séc. III, cita outras tantas. Também Clemente de Alexandria, panegirista cristão da primeira metade do séc. III, menciona algumas Politeíai. Harpocrácion, gramático grego de Alexandria, talvez do séc. II ou mais provavelmente do IV7, atribui não menos de cinqüenta passagens do seu léxico a informações retiradas da Politeía dos atenienses, de Aristóteles. Hesíquio, lexicógrafo de Alexandria emfins do séc. IV, referencia ainda seus verbetes a informes derivados desses textos aristotélicos. Sopater, sofista de Apamea, provavelmente identificável com o retórico que por volta do ano 500 d.C. compôs o Comentário de Hermógenes, inclui excertos das Politeíai no livro XII de suas Coletâneas Históricas.8 Fócion, o patriarca de Constantinopla, que orientou o renascimento bizantino em fins do séc. IX com uma renovação do interesse pelos tratados de Aristóteles, faz expressa menção à Politeía dos atenienses. Pselo, teólogo e estadista bizantino de meados do séc. XI, que liderou a reversão contra a crescente predominância do pensamento aristotélico 6 A análise primorosa de Sandys (p. 28 a 39) passa em revista os testemunhos que atestam o conhecimento das Politeíai, e em particular da AP , entre os autores antigos. Sandys, p. 36. Sandys, p. 37. 387 7 8 Francisco Murari Pires em favor do platônico, parece igualmente ter conhecido esta obra de Aristóteles. Já no séc. XII, Tzetzes, poeta e erudito bizantino, e Eustáquio, arcebispo de Tessalonica, atestam ainda algum conhecimento das Politeíai aristotélicas. Assim, as memórias do conhecimento antigo das Politeíai de Aristóteles seguem uma trajetória histórica que parece deslocá-las de seu centro cultural romano, por meados do séc. I a C., localizando-as intermediariamente em Alexandria com o declínio do Império do Ocidente, e as depositando em Bizâncio, já avançados os tempos medievais. Na medievalidade cristã ocidental, seu conhecimento recai para a marginalidade anônima dos escólios, a glosarem antigüidades aludidas nos manuscritos dos autores clássicos, especialmente nos de Aristófanes.9 Nessa trajetória, entretanto, os textos mesmos constitutivos das Politeíai acabam finalmente por desaparecer, perdidos com o decorrer do próprio tempo em que se formava a tradição do corpus aristotélico.10 Ao encerrar-se a Idade Média, desses textos subsistiam apenas os fragmentos recolhidos por outros manuscritos. Ainda em pleno Renascimento na Itália, Francesco Patrizzi, se bem que animado por sentimentos hostis contra a autoridade aristotélica, passa já a investigar as fontes de informação antigas sobre as obras perdidas de Aristóteles, tendo mesmo publicado, em Veneza, em 1571, suas Discussiones peripateticae, nas quais pela primeira vez tentava reunir os restos fragmentários dessas obras. Mas foi especialmente a dedicação antiquária dos eruditos do séc. XIX que se entregou mais eficazmente a esse laborioso empreendimento de 9 10 Sandys, p. 38. Uma narrativa primorosa de acompanhamento indiciador das trajetórias históricas pelas quais se perderam/redescobriram os textos aristotélicos (e, pois, a Athenaíon Politeía) encontra-se na obra de Luciano Canfora, A biblioteca desaparecida. 388 Mithistória coletar em obra tais fragmentos. Em 1827, C. F . Neumann reunia já 59 fragmentos da Ateniense, que aumentaram para 74 com a publicação de Carl Müller, em 1848, chegando a 91 na terceira edição de Valentine Rose, datável de 1886. Então, tais eram as obras do zelo apaixonado da erudição clássica que consumavam, no dizer de Sir John Edwin Sandys apropriadamente reproduzindo versos de Milton, a dedicação incansável daqueles “amigos da verdade” a desse modo atualizarem “a cuidadosa procura que Ísis encetara pelo corpo mutilado de Osíris, indo e vindo a reunir membro, a membro como pudessem eles ainda encontrá-los”. Assim, por volta de 1890, o que mais de perto se aproximava de um conhecimento acerca do texto da Athenaíon Politeía provinha indiretamente de manuscritos que registravam uma certa Epítome de Heraclides acerca dos regimes políticos. Do texto mesmo, restava agora somente um magro conjunto de fragmentos excepcionalmente salvos por um papiro, proveniente do Fayum e adquirido pelo Museu Egípcio de Berlim, em 1879, inicialmente publicados por F . Blaas e, ao longo da década, identificados como derivados do texto da Athenaíon Politeía (em primeiro lugar por T. Bergk). Nele incluíam-se versos de um poema de Sólon, uma passagem sobre o arcontado de Damásias, um relato das Reformas de Clístenes, referência aos ostracismos de Mégacles e de Xantipo, além de uma menção às minas de Maronéia.11 Por aquela época, entretanto, manifestara-se uma consciência dolorosa da perda do corpo do texto que apenas se cicatrizava dissimulada na severa assertiva de um daqueles “amigos da verdade” a que se refere Sandys, Emil Heitz, que, ainda em 1865, denunciara a loucura de manter qualquer esperança de recuperá-lo na sua íntegra.12 11 12 Sandys, p. 41-43 ; Rhodes, p. 2-3. Sandys, p. 43. 389 Francisco Murari Pires O papiro Na manhã de uma segunda-feira, 19 de janeiro de 1891, os leitores do afamado jornal londrino The Times foram surpreendidos por uma agradável notícia: dentre as recentes aquisições feitas pelo Museu Britânico em uma certa localidade do Egito – cuja mais precisa identificação ficava preservada pela tradição da elegante discrição britânica – “a source in Egypt which, for obvious reasons, it is not expedient to specify too particularly” –, os especialistas daquela prestigiosa instituição haviam se deparado com alguns rolos de papiro contendo, no seu abalizado entendimento, uma cópia do tratado atribuído pelos antigos a Aristóteles, sob o título de Athenaíon Politeía. Onze dias depois, a 30 de janeiro, Sir Frederic G. Kenyon editorava a primeira publicação do texto. O papiro consistia, originalmente de quatro rolos, revelando as mãos de, pelos menos, quatro escribas diferentes. Na sua face frontal fora utilizado para registrar as contas de receitas e despesas de uma propriedade privada referentes ao décimo-primeiro ano de Vespasiano (agosto de 78 a junho de 79 d.C.). Passada a utilidade precípua desse registro, foi reaproveitado em sua face reversa para a transcrição do argumento de um discurso de Demóstenes, o Contra Mídias. Mas, depois, esta transcrição foi riscada, o papiro revirado de cabeça para baixo, e copiado um novo texto, nele preservado em bom estado de conservação, apresentando falhas maiores apenas em suas partes inicial e final. A data desta cópia não seria muito posterior ao do registro das contas, pois nela se reconhece o modo pessoal de escrita, já empregado naquele (formas das letras e abreviações). A cópia do texto dataria, assim, de fins do séc. I ou início do II da nossa era.13 Cotejado seu conteúdo com os dos fragmentos das Politeíai, atribuídas na Antigüidade a Aristóteles, resulta: dos 56 fragmentos em que a 13 The classical review, 1891, p. 71. 390 Mithistória Athenaíon Politeía é expressamente mencionada, 53 comparecem no manuscrito, e dos três restantes um deve ter pertencido à parte inicial perdida, um à final mutilada, e um revela-se, por seus desacordos com o manuscrito, uma transcrição imprecisa; dos 35 fragmentos em que Aristóteles é nomeado, mas não a obra, 25 comparecem no manuscrito; dos restantes fragmentos, três devem ter pertencido ao início perdido, sete provavelmente não derivam da Athenaíon Politeía, um pode, possivelmente, provir da parte final mutilada e um trata-se de citação equivocada do texto.14 Agora, resgatado de seu oblívio milenar pelas diligências eruditas do zelo clássico britânico, ressurgia à luz o texto da Athenaíon Politeía aristotélica. Positivismos A notícia da obtenção do manuscrito, e sua imediata publicação por Kenyon, causou o maior alvoroço entre os homens letrados, tanto mais agradavelmente excitante quanto seu regozijo fosse plenamente justificável, senão invejável mesmo: experienciava-se em 1891 a ventura antes própria de um homem do Renascimento, a (re)descoberta da Antigüidade. E, excepcionalmente, fortuna ainda maior, proclamava Newman15, pois eles agora conheciam um texto antigo, entretanto “inédito”, há bons séculos perdido na sua íntegra, apenas memorizado em míseros fragmentos. Assim, bem se justificava o júbilo reverente da acolhida daquela quase que miraculosa epifania erudita, como a saudaram Kaibel e Wilamowitz em sua edição berlinense do texto: “O que ninguém poderia aguardar nem ousava esperar acaba de se realizar pelo mais afortunado dos acasos: viuse voltar à luz e sair das trevas da sepultura o que julgávamos perdido para sempre, a obra de Aristóteles sobre a Constituição de Atenas, tão notável pela importância do assunto quanto recomendada pelo ilustre nome de 14 15 Sandys, p. 64-65 The classical review, V (1891), p. 155. 391 Francisco Murari Pires seu autor”.16 Nesses primeiros tempos, comenta Mathieu17, parecia haver uma unânime concordância regozijante com a afortunada revelação. E esse entusiasmo febril, que empolgou o mundo erudito europeu, nasceu sob o estigma do antiquário. Munidos pelo instrumental das regras da crítica metodológica de inspiração positivista, cujos preceitos de boa diligência recomendavam uma postura prévia de atenta desconfiança para não se deixar enganar pelas inverdades do texto, os eruditos-antiquários passaram a submeter a obra a uma intensa leitura exegética, ansiosos que estavam por confrontar as informações históricas transmitidas pelo texto com as suas correlatas já conhecidas por intermédio de outras fontes antigas, e assim determinar as condições de aceitação/recusa das mesmas. O documento começou, então, a ser submetido a uma verdadeira autópsia analítica, que dissecava seu corpo textual em órgãos e átomos históricos fatuais. Logo nos primeiros meses uma onda de artigos inundou o universo letrado europeu. Com a publicação do fac-símile do manuscrito, procedeuse de imediato à uma acirrada crítica filológica, e não apenas no âmbito dos periódicos especializados no estudo da Antigüidade Clássica, como também na esfera mais ampla dos jornais diários: proliferaram notas de correções e emendas a aprimorar a leitura do texto, exploraram-se conjecturas a suprir as lacunas de seus estragos e perdas, confrontaram-se seus informes com os conhecimentos já constituídos de outras fontes antigas, e assim desencadeou-se verdadeira avalanche exegética de estudos, de que se pode ter uma boa idéia compulsando os números da Classical review, desse mesmo ano de 1891. Entusiasmo tanto mais produtivo porquanto ensejou rápida sucessão de novas edições e traduções, a disponibilizar o conhecimento do texto por vários países e línguas européias, contando-se já em 1891 não menos de duas dezenas. Só a editio princeps de Kenyon, primeiro publicada em 16 17 Apud Mathieu, 1915 p. I. Mathieu, 1915: I. 392 Mithistória março de 1891, logo conheceu mais três outras reedições, a segunda ainda nesse mesmo ano, a terceira em 1892, e a quarta em 1893.18 Principiara, pois, sobre o manuscrito a obra da crítica erudita. E esta, já então segura de seus métodos de análise, próprios da postura hipercrítica de inspiração positivista, bem preceituava calibrar a justa empolgação heurística por solerte atenção, sempre desconfiada contra eventuais falseamentos de sua melhor identidade documental histórica. Nesse sentido, Newman19 recomendou qual era a boa prudência para aquela acolhida: “Quando a Constituição de Atenas aparece revisitando ‘os olhares da lua’, devemos recebê-la com a mesma mistura de curiosidade e respeito com que o Fantasma foi recebido em Hamlet. Devemos colocar-lhe as questões que, sabemos de suas próprias páginas, eram colocadas ao arconte novo em Atenas: quem é teu pai e de que demos, e quem é tua mãe?”. Mas, suspeitas de fraude maior a forjar o próprio documento logo foram afastadas. Por certo que seriam cabíveis, dado que o papiro fora apresentado aos peritos sem se revelar nem qual era sua declarada procedência, a não ser por aquela vaga e imprecisa alusão à uma localidade egípcia, cuja identificação, por razões óbvias, não convinha expor muito detalhadamente. Por um lado, a autoridade institucional do Museu Britânico bem respaldava a melhor seriedade do caso, e todos corporativamente compreenderam e aceitaram as boas razões de seu silêncio, cujos segredos de comprometimento de interesses ficavam apropriadamente salvaguardados.20 E, por outro lado, a primeira acareação de seu conteúdo pelos confronto dos testemunhos dos fragmentos reconhecidos da obra atestava tratar-se mesmo de texto autêntico, certamente aquele que os autores antigos referiam como a Athenaíon Politeía, por eles associada ao nome de Aristóteles. 18 Confira-se a listagem fornecida por Rhodes, p. 739s, bem como as indicações selecionadas por Montanari (Cresci-Piccirilli 1993, p. 3). Classical Review, 1891, p. 157. Vejam-se, por exemplo, os comentários feitos nesse sentido pelas resenhas de Newman para a Classical review e de Bérard para a Révue historique. 393 19 20 Francisco Murari Pires As suspeitas começaram, todavia, a ganhar corpo por outras razões, antes afloradas paradoxalmente pelas novidades mesmas que o texto então revelava, algumas um tanto desconcertantes, outras até incômodas, senão perturbadoras, pois envolviam a fama do nome de seu suposto autor, Aristóteles. Eis que a obra dizia de realidades históricas totalmente estranhas aos conhecimentos firmados pela Política aristotélica. Neste tratado teórico, o filósofo asseverara que Sólon, ao estruturar sua proposição de regime político em Atenas, não alterara o modo de nomeação dos oficiais, então definido por eleição, preservando-o inalterado. Já o novo texto dizia que fora ele quem instituíra o método do sorteio, a partir de uma eleição prévia de candidatos! Também na Política Aristóteles distinguira dois casos de atuação legisladora caso comportassem ou não a conformação de uma politeía, citando expressamente neste último a obra de Drácon em Atenas, de alcance apenas codificador. Mas o novo texto incluía, em seu capítulo IV, uma Politeía Draconiana! Ainda na Política, o filósofo identificara Efialtes e Péricles como os agentes responsáveis pela reforma institucional que reduzira os poderes do Areópago após as guerras medas, transferindo-os em parte para a assembléia, em parte para o Conselho. Agora, no novo texto, emerge a figura de Temístocles como o companheiro de Efialtes nessa empresa política! As suspeitas foram de imediato dirigidas contra o novo texto, pois eram flagrantes suas incorreções, senão mesmo suas contradições. Ele incidia em erros históricos até grosseiros. Assim, quando Efialtes promoveu sua reforma democrática, Temístocles nem mesmo se encontrava em Atenas, exilado há já mais de dez anos. A pretensa Politeía Draconiana da época arcaica vinha, entretanto, eivada de anacronismos, a denunciá-la antes como documento panfletário comprometido com as orientações oligárquicas nas disputas políticas que tumultuaram Atenas dois séculos mais tarde, por fins do V. Erros ainda mais calamitosos porquanto associados a anomalias narrativas igualmente graves. Assim, ao arrolar em síntese, no capítulo XLI, a sucessão das mutações de regime político operadas em Atenas ao longo de sua história, afirmava-as expressamente em número de onze, mas incluía 394 Mithistória doze, pois enunciava também a draconiana, sem, entretanto, enumerá-la. E, ao narrar a história das vicissitudes do estabelecimento da tirania de Pisístrato em Atenas, primeiro – capítulos XIV e XV – implicara que ele esteve afastado em exílio por 21 anos (11 do primeiro mais 10 do segundo), mas, depois (capítulo XVII), deu a entender que foram só 14, pois agora afirmava que ele, dos seus 33 anos de vida desde o estabelecimento da tirania, passara no poder efetivamente só 19, estando exilado os restantes. Poderiam mesmo ser de Aristóteles tais erros? Os críticos, de início, recusaram-se a admiti-lo. Fr. Cauer desapontouse com os desempenhos altamente deficientes daquele autor, especialmente no domínio dos princípios do método de crítica historiográfica, acusando na obra a falta dos procedimentos que seriam de esperar de um historiador de primeira ordem, nela encontrando-se antes defeitos reveladores de indivíduos de inferior capacidade.21 Assim, também se pronunciou Th. Reinach, a quem três passagens da obra em particular escandalizaram a apreciação crítica: a Politeía Draconiana do capítulo 4, o Sistema eleitoral Soloniano do capítulo 8 e a Atuação de Temístocles no ataque aos poderes do Areópago no 25. Então, foi categórico: “É fácil demonstrar que nenhum destes três trechos é conforme com a verdade histórica e que nenhum pode ter saído da pena de Aristóteles”.22 Haveria que buscar outro personagem para a autoria de tais despropósitos históricos, passível de descambar por parcialidades e falsificações assim tão monstruosas. E Reinach o encontrou na figura de Crítias, o líder máximo do golpe oligárquico de 404, em Atenas: “Crítias não era um historiador imparcial à maneira de Tucídides e de Aristóteles, apegado à verdade, escrevendo sine ira et studio”.23 Então, Reinach expurgou da Athenaíon Politeía, supostamente de Aristóteles, tais escórias que, por pouco honrar seu senso crítico, maculavam 21 22 23 Apud Kenyon. Classical review, 1891, 332. Reinach. Révue des études grecques, 1981, 143. Reinach. Révue des études grecques, 1891, 157. 395 Francisco Murari Pires a melhor fama e prestígio de seu nome: não eram passagens devido às reflexões do renomado filósofo, e sim interpolações indevidamente enxertadas em sua obra, derivadas, pois, de algum panfleto partidário lançado por aquele inescrupuloso político de fins do séc. V. Já outros intérpretes optaram por condenar a obra toda, apenas aceitando suas patentes inferioridades se deslocada a autoria da obra para os descuidos de uma mente consoantemente assim incapacitada, provavelmente algum discípulo do grande filósofo. Assim, se pronunciaram Whibley, Cauer e Rühl.24 Para as pretensas soluções da problemática da autoria, assim aventadas, fazia efeito ainda, na obra da crítica, a persistência do pressuposto dogmático da autoridade aristotélica, de velha herança escolástica medieval, a postular a infalibilidade do filósofo, mente superior estranha a erros e equívocos mais grosseiros de desempenho intelectivo. Descontados os destemperos mais intempestivos das reações primeiras, assim estupefatas pelas embaraçosas novidades, nada positivas, que o texto comportava, desdobrou-se a análise da problemática, então suscitada por abordagens todavia mais serenas de ajuizamento analítico. Desde o início a crítica empenhara-se em atacar a questão da autoria. Inventários de termos e frases “não-aristotélicas” consignados no texto, assim detetadas pelo que se podia depreender do cotejo com o léxico consagrado no corpus reconhecido, chamavam a atenção para o problema, alimentando as desconfianças.25 Paralelamente a tais meras constatações lexicais, investigou-se insistentemente a questão do estilo narrativo, também confrontando-o com o das obras reconhecidas de Aristóteles constantes do corpus tradicional. Newman entendia que o exame do estilo era inconclusivo para determinar a questão da autoria. Pois, as divergências assim constatadas – aliás 24 25 Apud Mathieu 1915, II. Classical review, 1891: p. 122-3 e 184-5. 396 Mithistória de modo surpreendentemente positivo, pois o estilo do novo texto era atraente e agradável, claro e preciso, embora despojado, livre das formulações ambíguas e irregulares que usualmente entravam os relatos do corpus – provavelmente eram devidas à diversa proposição da obra, antes voltada para a divulgação externa ao Liceu do que ao seu ensino interno, a reclamar, portanto, os cuidados mais aprimorados no uso da linguagem, tais como uma marcada preocupação em evitar o hiato. Já a apreciação do inventário lexical poderia levar a resultados mais definidos, a negar a autoria aristotélica, dado que termos de emprego comum presentes neste texto são estranhos ao corpus.26 Whibley aventou a mesma conclusão de Newman, igualmente postulando a recusa da autoria aristotélica, mas por uma argumentação todavia contraditória com a daquele primeiro crítico, inclusive por ele citado, pois, na sua opinião, “o estilo era tão diferente do das outras obras atribuídas a Aristóteles, que, como afirma Mr. Newman, ‘há muitas chances contra o parecer de que o tratado seja de sua pena’ ”.27 Já Headlam, embora concordando integralmente com Newman na apreciação do estilo cuidado da narrativa – de que a evitação do hiato era a melhor prova, assim concebido para fins de publicação a zelar pela reputação de seu autor –, daí tirava a conclusão oposta, sendo de parecer que no texto “havia evidências bem consideráveis de que ele fosse devido à mão do próprio Aristóteles, pois o uso a este respeito era bem aproximadamente o mesmo do de algumas de suas obras de melhor autenticidade”.28 Gomperz, por seu lado, discordou frontalmente de seus colegas britânicos, cuidosos de negarem a autoria aristotélica pelo exame dos aspectos da linguagem (estilo e vocabulário) consignados no texto, a ponto, inclusive, de acusar a insensatez de seus arrazoados. Crítica, entretanto, logo replicada por Richards, solidariamente intentando preservar a validade e 26 27 28 Classical review, 1891: 161. Classical review, 1891: 223. Classical review, 1891: 271. 397 Francisco Murari Pires consistência da abordagem de exegese lingüística para a resolução dessa problemática. Reiteração metodológica de análise, todavia, já mitigada em suas convicções, pois agora levando apenas a conclusões antes hipotéticas que assertivas: “Não concluo, portanto, que é certo que Aristóteles não é o autor por tal argumentação acerca do estilo, como também não o faço exclusivamente a partir do exame do emprego dos termos e frases; mas uma dúvida considerável é assim ensejada quanto à autoria”.29 Paralelamente, abordou-se também a problemática da crítica de determinação da autoria pelo cotejo do ideário político, suposto pelo texto com o firmado na Política aristotélica. Newman logo chamara a atenção para divergências nesse âmbito, detetando na Athenaíon Politeía um autor declaradamente adverso à democracia, a censurá-la abertamente, bem distinto, pois, nesse sentido, daquele Aristóteles mais prudente e reservado da Política30, reticente a declarar-se opositor do regime político consagrado na cidade em que vivia como meteco estagirita. Diferenças de postura política tanto mais incompreensivelmente surpreendentes, a assim fundar suspeitas, pois seria de esperar-se o posicionamento inverso, que aconselharia reservas na exposição do tratado destinado ao público ateniense em geral e firmar convicções antes no texto esotérico do Liceu perante o círculo restrito dos alunos de confiança. Por essa via analítica seguiu também a crítica de Fr. Cauer, todavia arrazoando a interpretação reversa da de Newman. A coloração política de ambos os textos era certamente divergente, mas justamente porque o autor da Athenaíon Politeía se revelava um panegirista da democracia ateniense, a louvar a excelência de suas disposições institucionais, especialmente no tocante à determinação dos tribunais populares como órgão estatal hegemônico, superior aos colegiados oligárquicos, que por sua composição restrita os 29 30 Classical review, 1891, 333-4. Newman exclui aqui de sua apreciação o capítulo final do livro II que justamente consigna críticas à democracia ateniense, naquela época sob suspeita de atribuição aristotélica. 398 Mithistória tornava precipuamente corruptíveis, tese esta que o capítulo XLI do novo tratado avalizava irrefutavelmente.31 Este outro enfoque de abordagem, entretanto, descaiu pelos mesmos desvios de reduções subjetivas de arrazoamentos apenas redutoramente embasados em leituras fragmentadas de passagens distintas do texto, também patentes já na apreciação da problemática da linguagem e do estilo. G. Mathieu o denunciou exemplarmente ao apontar a incrível diversidade, por vezes mesmo contraditória, das teses interpretativas dos críticos modernos nessa sua pretensão de identificar a tendência política firmada pela Athenaíon Politeía. Assim, para Wilamowitz, a obra, era “um manifesto a favor das idéias moderadamente conservadoras de “Isócrates”; para Diels, “nitidamente aristocrática”; para Nissen, “contra a política particularista de Demóstenes”; para Cauer e Reinach, “prudentemente” democrática respondendo às reações democráticas seguintes ao episódio de Harpalo”.32 Em meio aos fluxos e refluxos desorientadores desse inconstante mar hermenêutico por que se fazia navegar a leitura da Athenaíon Politeía, a obra de Sir John Edward Sandys, Aristotle’s Constitution of Athens33, publicada já em 1893, primorosa de rigor e acuidade erudita exemplares por variados tópicos de estudo textual, projetou horizontes bem mais comedidos de interpretação, sem perder o rumo desnorteado por aquele dogmatismo da autoridade aristotélica infalível. Retomou, para argüir detida e profundamente, arrazoando com ponderação equilibrada as teses alternativas, o exame da consistência e do alcance de suas precípuas proposições analíticas, averiguando a problemática da determinação da autoria ajuizada tanto pela abordagem do ideário quanto da linguagem, aristotélicos ou não, consumados pelo novo texto. 31 Referimos as teses de Cauer apenas por conhecimento indireto, a partir das críticas de outros autores: Kenyon (CR 1891, 132) e Mathieu 1915, III-VII). Mathieu 1915, III-VII. Londres, 1893; 2. ed. em 1912. 399 32 33 Francisco Murari Pires O campo de análise da questão foi balizado com propriedade. A memória histórica da Antigüidade fôra unânime em assumir a autoria aristotélica, e o texto ora descoberto revelava essa precisa contemporaneidade, situando realidades dos últimos anos de vida do filósofo. Então, ajuizou Sandys, “devemos necessariamente aceitar a obra como de Aristóteles, a menos que a evidência interna seja conclusiva no sentido contrário. A consideração desta evidência volta-se em parte para questões de estilo, em parte para as relações subsistentes entre a Athenaíon Politeía e a Política”.34 Começou abordando a problemática do cotejo das formulações elaboradas em ambas essas obras, por ele constatando que, apesar da existência de aparentes discrepâncias de pensamento, que alguns críticos denunciavam a implicar a diversidade de autoria (a politeía draconiana, a cronologia da tirania pisistrátida, a atuação de Temístocles na redução dos poderes do Areópago), predominam na Athenaíon Politeía passagens que “seja pelo pensamento seja pela linguagem eram tão estreitamente paralelas às da Política de modo a sugerir sua autoria comum”. Assim, as coincidências mais gerais de pensamento: a mesma inclinação política avalizadora antes da forma aristocrática de regime; exposições das obras de Pisístrato e de Terâmenes na AP harmônicas com os conhecimentos expostos na Política, o mesmo ocorrendo com a descrição da instituição do ostracismo em ambas as obras; e, ainda mais decisivamente significativo, um notável exemplo de identidade de pensamento e linguagem nas duas obras, a saber, a reflexão sobre a política do tirano, Pisístrato, no compor o modo apropriado de, em favorecendo as empresas agrárias da população, dispersar pela área rural as potenciais ameaças de animosidade política contra o regime.35 Na apreciação da problemática da linguagem, logo descartou a consideração das singularidades e estranhezas “não-aristotélicas” denunciadas no vocabulário consagrado pela AP, argumentando a impropriedade de suas razões para decidir a recusa de uma tal autoria. Tais idiossincrasias lexicais eram plenamente compreensíveis e aceitáveis, dado que muitas referem 34 35 Sandys, p. 50. Sandys, p. 50-57. 400 Mithistória expressões técnicas ou termos reclamados pela matéria dos assuntos tratados, outras derivam das fontes de documentação que informam o texto, e mais outras divergências seriam antes cabíveis, do que impróprias, pois consoantes à diversidade da proposição precípua da AP, composta por linguagem melhor trabalhada em vista de divulgação ao público em geral. Também a averiguação do estilo é inconclusiva, pois mesmo sua formulação aprimorada não é irreconciliável com a autoria aristotélica, como já o afirmava a memória da Antigüidade a esse respeito: Sandys lembra aqui uma apreciação exarada por Simplício que chama justamente a atenção para a lucidez do estilo de Aristóteles em suas genuínas Politeíai, bem como nos Topica e nos Meteorologica. E ainda mais inócua é a consideração lingüística do preceito de evitação do hiato, pois tanto, por um lado, ela bem pode ser justificada por sua devida apropriação ao caráter singular da obra, quanto, por outro, ser igualmente arrazoada inconclusivamente seja a favor seja contra a autoria aristotélica.36 Não há como nem por que negar, conclui Sandys em sua avaliação crítica, que o texto da AP comporte certas particularidades de desempenho intelectivo divergentes do que seria de se esperar do prestígio impecável de uma autoria aristotélica: há negligências de tratamento historiográfico, especialmente no tocante à cronologia, e há mesmo por vezes uma certa falta de força e vigor intelectual. Certamente que se pode atribuir tais deficiências antes a mentes inferiores que não a do grande filósofo, talvez algum discípulo menos dotado intelectualmente, compondo o presente texto com ou sem a orientação do mestre. Mas, que alcance maior se pode tirar de tal operação que desloca a autoria de Aristóteles para o âmbito mais amplo e anônimo do Liceu, pergunta-se Sandys? Mesmo para as obras inquestionavelmente aceitas como de Aristóteles é extremamente difícil determinar o quanto elas foram, de fato, compostas por ele na forma em que chegaram até nós, quanto elas são meramente apontamentos de seus ensinamentos orais. 36 Sandys, 57-60. 401 Francisco Murari Pires E quanto às anomalias e erros, de ordem vária, incidentes na obra, não há porque conferir-lhes maior implicância no tocante à autoria, dado que por sua própria natureza propositiva, compondo na narração uma miscelânea de conteúdos continuamente em aberto para a melhor ou pior integração de novos informes, o texto era peculiarmente passível de interpolações e alterações, quer aristotélicas mesmas ou não. E, admitidos e reconhecidos tais equívocos e inconsistências narrativas, é apenas o acolhimento pela crítica do imperativo dogmático da infalibilidade aristotélica que assim os desentende pela recusa de sua atribuição a Aristóteles. Pois, a alternativa justamente inversa de ajuizamento da questão é igualmente possível, como o assevera Sandys, lembrando o parecer já firmado antes por J. H. Wright: “colocados entre as duas alternativas, dever-se-ia preferir modificar as concepções acerca de Aristóteles do que rejeitar o seu tratado”.37 Em síntese, as evidências de crítica textual interna, assim reexaminadas detida e ponderadamente por Sandys, não permitem ajuizar taxativamente que o texto não seja de Aristóteles, entendendo-se por este nome não apenas a exclusiva figura de uma pessoa individual, mas nele também presente o complexo de realidades compositivas próprio das práticas de ensino filosófico do Liceu similarmente pressuposto pelas demais obras constituintes do corpus tradicional. A questão da autoria aristotélica da AP é, pois, insolúvel se almejarmos implicar nela, pelo nome de Aristóteles, a figura de uma pessoa enquanto sujeito unívoco dessa obra. Por que, então, assim obsessivamente buscar descartar a memória da tradição antiga da autoria aristotélica das Politeíai, ensejando em seu lugar uma discussão sem fim que só falsamente se resolve por operações de teses subjetivas redutoras, comportando boa dose de arbitrariedade? E que o texto a nós redescoberto da Athenaíon Politeía seja mesmo o que essa memória histórica sedimentou sob a fama do nome de Aristóteles, é justamente a única tese inquestionável, objetivamente irrefutável de toda essa história de exegese crítica. E foi lembrando a realidade desse fato, claramente manifesta no cotejo das passagens do texto 37 Sandys, 62-64. 402 Mithistória com as dos fragmentos de sua referenciação pelos autores antigos, que Sandys brilhantemente concluiu sua perspicaz e competente análise da malfadada problemática da autoria, aristotélica ou não, da Athenaíon Politeía. Quando, pela segunda década do presente século, G. Mathieu apresenta os resultados de seu estudo sobre a Athenaíon Politeía – primeiro sob a forma de uma tese específica, Aristote, Constitution d’Athènes. Essai sur la méthode suivie par Aristote dans la discussion de textes, depois sintetizada em sua introdução à edição do texto pela Belles Lettres em 1922 –, havia já algum tempo que o mar acalmara. O dogma, de herança escolástica medieval, da infalibilidade aristotélica fora dado por definitivamente sepultado, podendo o crítico agora conviver com e refletir sobre a confluência de erros, deficiências e equívocos entretanto transmitidos e atribuídos ao prestigioso nome do afamado filósofo. A reação ante o nome de Aristóteles não era mais, registra Mathieu, a da devoção supersticiosa, e a equivocada suspeita denunciadora da autoria era já inquietação do passado, totalmente superada, pois agora “unanimemente reconhecida a origem aristotélica da Athenaion Politeía”.38 A crítica livrava, assim, seu olhar das viseiras que a impediam de melhor apreciar a realidade dessa singular obra aristotélica. E a questão que agora Mathieu se colocava era mesmo entender as razões das falhas de Aristóteles, bem identificando os procedimentos e operações por que errara a composição de sua narrativa. Como trabalhara ele os informes derivados de suas fontes, por quais razões assim os selecionara, como confrontara seus 38 Mathieu 1915, 3. Confira-se, igualmente, no texto de 1922 (p. 3): “De même le texte semble nous avoir áté transmis dans état assez pur: nous ne rejetons plus comme interpolés tous les passages embarrasants; et, tandis qu’en 1891 M. Th. Reinach croyait à l’intrusion dans le texte primitif de développements très longs, nous considérons qu’Aristote a pu nous transmettre une tradition différente des autres historiens, ou même des renseignements erronés. L ’éxamen de l’oeuvre ne nous révèle rien qui ne puisse avoir été écrit par lui, et ce sont précisément ces nouveautés qui en font en partie le caractère original et intéressant”. 403 Francisco Murari Pires testemunhos superando suas divergências, e por quais princípios os compusera asseverando-as como verdades em seu relato? Em suma, qual fora seu método histórico de discussão documental? Mas, que fontes eram essas, de que documentos dispunha Aristóteles? Duas situações documentais distintas, argumenta Mathieu, haveriam que ser consideradas: de um lado, a precariedade, senão mesmo falta, deles para os períodos mais primitivos da história ateniense, de épocas pré-solonianas aos tempos míticos da realeza; de outro, uma relativa abundância para os tempos históricos solonianos e seguintes, vindo até a contemporaneidade do filósofo. Para a primeira situação, um método se impôs quase que obrigatoriamente, sem maior possibilidade de escolha para Aristóteles: reconstituir as realidades institucionais primitivas do Estado ateniense, inferindo-as a partir de suas subsistências históricas posteriores, assim valorizadas como indícios (tekméria), ou testemunhos (marturia) ou provas (semeia) daquela sua realidade passada.39 Embora, por vezes, assim incidindo em inferências errôneas, método louvável, entende Mathieu, imbuído do melhor propósito cognitivo: “Aristóteles tentara assim inaugurar uma pesquisa verdadeiramente científica da evolução política de Atenas”.40 Já para a narração a partir da obra soloniana, a situação se invertia, dispondo agora Aristóteles de uma relativa abundância de fontes documentais. Em parte mesmo abundância devido aos zelos de seu empenho heurístico, preocupado em fundamentar seu relato apoiando-o em informes derivados de documentos originais. Assim, refletiu sobre a obra soloniana baseando-se nos textos de seus poemas; por vezes, integrou na narrativa passagens de decretos e leis; e, ainda, deu guarida em sua obra a descrições de configurações históricas da politeía ateniense que justamente mereceram sua confiança por aparentarem documentos oficiais, insciente de que eram de fato falsificações de panfletagem política (a politeía draconiana e as politéias 39 40 Mathieu 1915, 2; 1922, 9. Mathieu 1922, 9. 404 Mithistória oligárquicas de 411).41 Peripécias trágicas da inauguração de bom preceito do método historiográfico, todavia ainda incerto de alcance crítico: “Tais são, portanto, os erros mesmos de Aristóteles que nos testemunham seu apego à documentação precisa em detrimento da tradição autêntica”.42 Mas, perante a multiplicidade de fontes documentais provendo distintos e variados informes, Aristóteles, na maioria dos casos não dispondo de elementos de crítica que melhor lhe possibilitasse ajuizar suas precípuas veracidades, adotou sistematicamente a resolução de compor, e mesmo conciliar, todos os dados assim acolhidos. E novamente, assim decidiu imbuído dos mais recomendáveis propósitos de metodologia historiográfica: “É que, utilizando panfletos políticos, percebeu sua parcialidade e desconfiou deles; viu que cada um deles procurava explorar a história de Atenas para maior glória de seu partido e, influenciado talvez por sua doutrina do ‘justo meio’, acreditou encontrar em cada um uma parte de verdade, deformada pelo espírito sectário, mas que ele esperava, entretanto, poder recuperar.43 Dessa operação metodológica, insistentemente efetivada para reconstituir a evolução histórica da politeía ateniense, resultou, todavia e paradoxalmente, a maior parte dos erros, disparates, contradições e equívocos perpetrados pelo texto da AP, precisamente ocasionados pela contaminação de materiais provenientes de fontes heterogêneas. Excepcionalmente tais impropriedades metodológicas de reconstituição histórica foram parcialmente amenizadas por um trabalho das fontes mais habilidoso e crítico da parte de Aristóteles, como no caso da abordagem da obra soloniana, para a apreciação da qual Aristóteles dispunha de uma orientação balizadora, pois elaborara uma percepção pessoal ajuizante de seu significado político, assim a entendendo pela ótica conceitual da moderação, bem corroborada pela devida consideração dos próprios poemas solonianos.44 41 42 43 44 Mathieu 1922, 6-9. Mathieu 1922, 9. Mathieu 1922, 9-10. Mathieu 1915, 27. 405 Francisco Murari Pires No geral, entretanto, a operação desse método compositivo levou antes a resultados mais ou menos desastrosos, especialmente na narração da história da tirania de Pisístrato e seus filhos em Atenas. Assim, embora nesses capítulos Aristóteles tenha dado nítidas mostras de uma devida preocupação em precisar as datas dos eventos históricos por ele relatados, a contaminação de dados de fontes distintas – aqui Heródoto, de um lado, que lhe forneceu a duração do segundo exílio de Pisístrato (dez anos), e uma Atthis, de outro, que lhe municiou as demais datas – operada por sua metodologia acabou conformando uma cronologia não apenas divergente da tradição suposta pela Política como ainda incoerente em si mesma45 e de significações resultantes desvirtuadas por interferência das confusões de informes assim causada.46 Paradoxalmente, dá a entender a análise de Mathieu, as melhores preocupações e cuidados de acerto historiográfico acabaram levando Aristóteles, entretanto, a cometer erros e falhas gritantes. Assim, trágica peripécia de uma metodologia de composição documental que, justamente imbuída de zelo imparcial altamente louvável ao preferir fundir teorias diversas a confiar em apenas uma, foi igualmente consumadora de equívocos e contradições ao intentar somar como fatos históricos informes de fontes entretanto inconciliáveis, mesmo porque contaminadas por colorações políticas adversas, oligárquicas e democráticas. Metodologia de efetividade tanto mais catastrófica quanto arruinou não apenas a consistência propriamente histórica de suas assertivas, quanto ainda prejudicou fortemente a coerência de suas próprias expressões, dando azo a formulações narrativas canhestras por lacunas espantosas, por implicações contraditórias em corroborando teses que intentava combater, e por abusivas extrapolações de sentidos de uma versão dos fatos imprópria para as significações da outra.47 45 Ora a AP admite a soma de 21 anos dos dois exílios de Pisístrato (capítulos 14 e 15), ora implica apenas 14 da diferença entre o total de anos de reinado (33) menos os 19 de exercício efetivo do poder (capítulo 17). Mathieu 1915, 29-33. Mathieu 1915, 124. 406 46 47 Mithistória Descartada a falsa solução de atribuir tais incompetências e falhas recorrendo ao expediente que rechaça a autoria do texto para a obra de um discípulo menos qualificado intelectivamente, Mathieu encontra outra saída alternativa para os impasses desse paradoxo de uma obra de inferior qualidade de realização historiográfica, entretanto produto de metodologia imbuída dos melhores preceitos e associada a filósofo tão reconhecidamente superior. Como os dados internos do texto revelam datas da década final de vida de Aristóteles, talvez mesmo, acredita Mathieu, apontando para os anos entre 325 e 322, este autor supõe que se trata de uma obra inacabada, cuja elaboração última o filósofo não tivera tempo suficiente para revisar de modo a sanar todas os seus defeitos. A morte o surpreendera antes que tivesse podido aperfeiçoar devidamente mais outro de seus textos pelos padrões de sua notória competência.48 48 Mathieu 1915, 126-7. Igualmente, no texto de 1922 (p. 13): “Podemos, portanto, julgar que Aristóteles, após ter dirigido o trabalho de documentação de seus discípulos e após ter feito uma primeira redação de sua obra, foi interrompido em sua revisão última da parte histórica por seu exílio em Cálcis, e depois pela morte”. 407 Estruturalismos (J. J. Keaney) 1963 A autoridade de Wilamowitz, desde cedo, sentenciara: “Aristóteles não era um historiador”. À negatividade desta apreciação já Jacoby respondera, ao apontar o equivocado deslocamento de identidade que a ensejava, pois Aristóteles, sendo um “filósofo, poucas intenções tinha de ser um historiador”.1 Todavia, proclama Keaney, é esta cisão mesma, que dissocia um Aristóteles filósofo de um Aristóteles historiador, a limitação a ser superada. Pois, já na elaboração da Política, Aristóteles, embora realizando então uma obra primordialmente filosófica de teoria política, fôra também historiador, não só porque lidara com fatos históricos, mas ainda porque fundamentara seus pensamentos em uma pesquisa histórica. Assim, a História está presente em sua Filosofia Política. Por que, então, pergunta Keaney, não estaria também a Filosofia presente em sua História Política, nas Politeíai? Tanto mais que, pela declaração expressa da Ética Nicomaquéia, é a consecução daquela Filosofia Política que define o fim e o sentido investigador que move o trabalho de coletânea das Politeíai. Aristóteles, que já “por cerca de trinta anos vinha operando com os princípios e métodos da Filosofia antes de dar início a seus esforços de composição histórica”, só muito inverossimilmente poderia ter-se divorciado desses “seus modos filosóficos de pensamento” para e porque agora viesse a empreender um trabalho de historiador.2 Então, a apreensão da plena inteligibilidade do sentido precípuo da Athenaíon Politeía enquanto uma obra discursiva singular reclama, asseve1 2 Keaney, 1963: 116. Keaney, 1963: 115-6. Francisco Murari Pires ra Keaney, enfocar a determinação de sua composição a partir da ótica do pensamento filosófico aristotélico que mais especialmente a polariza. Que teoria filosófica aristotélica, em especial, informa e conforma a composição da Athenaíon Politeía? O que com Wilamowitz fora apenas alusão metafórica, e o que com Jacoby era já sugestão propositiva de entendimento3, agora, com a obra de Keaney, adquiria alcance analítico: uma percepção teleológica, familiar à filosofia aristotélica, orienta a sua investigação histórica sobre a politeía ateniense e, assim, ordena a estruturação discursiva da AP. Pois, Aristóteles não era um historiador cronista como os Atidógrafos, que compunham meros relatos analísticos, cujo único princípio de ordenação e composição narrativa era o simples registro dos fatos em seu seqüenciamento cronológico. A compreensão da realidade da politeía, como de todo objeto histórico, supõe discernir qual foi seu processo de constituição progressiva, de modo a entendender essa realidade como o resultado final, como télos, desse processo mesmo. A filosofia aristotélica reclama, pois, perceber a teleologia da politeía ateniense. Então, pela teleologia conforma-se o princípio narrativo de composição da AP.4 3 Confiram-se as citações que Keaney faz à nota 15, p. 142, começando por Jacoby (“esse filósofo, de acordo com a natureza geral de seu pensamento, reconhecera que a descrição da forma existente de um Estado nada nos ensina a menos que seja mostrado ao mesmo tempo como a forma do Estado em questão atingiu a sua phýsis, por assim dizer”), e concluindo com Wilamowitz (“a eschate demokratía cada vez mais realizou sua phýsis, para o expressarmos na linguagem da Política”). “Como veremos, Aristóteles consentaneamente concebeu sua tarefa não apenas como sendo dar uma descrição factual dos vários desenvolvimentos históricos da constituição de Atenas, à maneira dos Atidógrafos, mas ir além de seus relatos analísticos e interpretar os fatos da história constitucional ateniense por referência à democracia contemporânea: traçar uma espécie de gráfico da progressão, com eventuais regressões, da constituição de Atenas em direção à sua culminação na democracia radical de fins do século V e do século IV. Assim, ele tinha que explicar como esta última forma de governo veio a se constituir, e ele enquadrou este desenvolvimento por uma esquematização teleológica” (Keaney, 1963: 117). 410 4 Mithistória Esse modo aristotélico teleológico de pensamento filosófico, por sua vez, conforma um certo padrão genérico de progressão, o qual distingue três tempos: “um início bastante modesto, ínfimo e sem importância, mas profícuo em sua potencialidade; um longo e gradual desenvolvimento e expansão; e, como seu fim resultante, a consecução de algo de significativa grandeza”.5 Primeiro bem se define o télos, o estágio final resultante da progressão histórica de constituição da politeía ateniense: a democracia vigente em Atenas à época mesma de composição da AP (último terço do séc. IV). Logo se identifica conceitualmente que espécie de politeía era essa: democracia radical, aquela forma de estruturação política em que os órgãos de decisão popular, especialmente os tribunais, alcançam tal ampliação de poderes que se definem como instância dominante de governo.6 Assim se conforma uma primeira seção ou unidade estrutural da AP, especificamente dedicada à exposição sistemática, descritiva, dessa politeía. E assim, consentaneamente com sua identidade política conceitualizada, se ordena o modo mesmo dessa descrição: “Tomando por base estes fatos, podemos já ver o efeito que o uso do padrão teve na estrutura da AthPol. Refiro-me aos capítulos de conclusão da obra, 63-69, os quais dão uma descrição detalhada do modo de operação dos tribunais. Tanto o posicionamento destes capítulos no final do tratado, e sua exposição particularmente detalhada, que não tem paralelo no resto da AthPol, sugere que Aristóteles despendeu mais tempo e esforço nestes capítulos do que em qualquer outro. A explicação para esta exposição detalhada deve seguramente residir no fato de que se trata de uma derivação necessária da lógica do padrão. (...) Para Aristóteles os tribunais representavam o elemento fundamental, e a força, da democracia ateniense. Como Aristóteles, via o desenvolvimento total da democra5 Keaney adota basicamente o esquema originariamente proposto e reconstituído por G. Else em seu estudo sobre a Poética aristotélica. Keaney refere por democracia radical a formulação proposta por Aristóteles na Política, IV.4.1292a29ss, e pressuposta pelo comentário exarado na AP, 41.2. 411 6 Francisco Murari Pires cia ateniense em termos do crescimento do poder dos tribunais populares, na medida mesma em que considerava a história constitucional ateniense em seu todo em termos do desenvolvimento da democracia, não é surpreendente que ele tenha devotado uma parte importante de seu tratado à descrição destes tribunais”.7 Identificado o télos, então demarca-se a arché, o princípio. E o princípio dessa democracia radical, em seu télos definido de primado dos tribunais populares na direção do Estado ateniense, pode ser localizado na obra de instituição e origem histórica dos mesmos com Sólon, “o fundador acidental da democracia”.8 Deste princípio, apenas acidental e ínfimo, então resultou aquele fim, para o qual se direcionou a progressão histórica das transformações constitucionais passadas pela politeía ateniense desde Sólon até à restauração democrática (de fins do séc. V), quando aquele primado passa a se cristalizar definitivamente conformando a democracia radical contemporânea de Aristóteles. Assim, se determina uma outra unidade estrutural conformando a composição narrativa da AP, a qual se propõe retratar essa progressão histórica da politeía ateniense demarcada por tais princípio e fim. Distinguindo, e concomitantemente conectando, esta segunda unidade estrutural com aquela outra – conceitualmente primeira, que descreve a democracia radical –, temse um capítulo de transição, o XLI, tanto compêndio resumidor a concluir a narrativa da progressão histórica quanto anúncio a iniciar a descrição sistemática do seu télos resultante.9 7 8 Keaney, 1963: 121-2. “Dado que, dos três aspectos das reformas de Sólon que eram os mais populares, Aristóteles conferiu posição de maior importância lógica ao terceiro e último, que foi mencionado acima, podemos corretamente ver nas reformas dos tribunais por Sólon o que Aristóteles concebia como sendo a característica não apenas a mais significativa da democracia evoluída, mas também o germe daquele elemento que deveria ser a sua conditio sine qua non” (Keaney, 1963: 121). “Podemos distinguir duas seções distintas e auto-coerentes da AthPol: a primeira, na qual o padrão esquemático é mais aparente, que cobre a evolução da democracia 9 412 Mithistória A lógica imposta por tal modo teleológico de pensamento, então, derivou a elaboração discursiva da parte narrativa por determinação da parte descritiva. Assim, assevera Keaney, Aristóteles não apenas “iniciou a composição da sua obra pela parte sistemática – a descrição da constituição do séc. IV – e daí voltou para trabalhar a parte histórica”10, como ainda empregou-a inclusive como critério de relevância fatual, a selecionar que acontecimentos e realidades institucionais seriam contemplados na reconstituição narrativa de sua progressão histórica.11 Daí, a apreciação do regime soloniano tecida pelo filósofo, destacando a instituição dos tribunais populares como sua reforma de cunho mais democrático. E daí, também, a razão mesma de ser do capítulo imediatamente antecedente à narrativa do regime soloniano, o III. Como, com o regime soloniano tem-se o princípio da progressão democrática do Estado ateniense, justamente viabilizado pela contemplação de um espaço institucional de atuação popular no processo de decisão estatal, haveria que bem caracterizar, por contrapartida, o regime imediatamente antecedente a esse princípio incipiente da democracia. Tal é o regime pré-soloniano, oligárquico, descrito no cap. 3, que justamente se caracteriza pela total desconsideração desde o seu início germinal com Sólon até à sua estabilização final po fins do séc. V e termina com um breve sumário desta evolução; a segunda constitui um relato da democracia em sua forma final e conclui com uma descrição detalhada do elemento singular mais poderoso na democracia, os tribunais populares” (Keaney, 1963: 129). 10 11 Keaney, 1963: 117. “Fiz menção ao fato de que o método aristotélico de enfoque em seu estudo da constituição ateniense, de ir amarrando a história de Atenas por meio do fio democrático, não determinou apenas o modo como ele interpretou os fatos dessa história, mas também – o que constitui só um outro aspecto do mesmo processo – determinou também que fatos ele selecionou e enfatizou como relevantes. Vimos como ele enfatizou a importância dos tribunais, mas devemos ainda continuar por esta mesma linha e investigar como outras áreas do tratado foram também afetadas pelo padrão. Por este enfoque arguirei que Aristóteles realmente selecionou apenas certos fatos para discussão, e que este princípio de seleção é consistente com a lógica do padrão” (Keaney, 1963: 122). 413 Francisco Murari Pires de qualquer participação popular, a compor assim uma das razões dos reclamos dirigidos pela massa dos excluídos, que, acusavam o revoltante estado de subjugação por esse regime consagrado. Então, por similaridade estilística de composição discursiva e em conformidade com a lógica do padrão teleológico de abordagem da politeía ateniense, o cap. III configura, do mesmo modo que o cap. XLI, um resumo, texto de transição que tanto distingue quanto ao mesmo tempo interconecta duas unidades estruturais, uma narrando a progressão da definição democrática do regime ateniense a partir de seu princípio com Sólon, e a outra agora subsumindo a evolução política antecedente a esse princípio, de época pré-soloniana. Assim, projetando retrospectivamente a logicidade do modo de pensamento aristotélico determinante da composição da AP, Keaney propõe inclusive qual seja o sentido até mesmo da parte inicial do texto, entretanto, perdida, não preservada, para nós pelo manuscrito de Londres: esse início compõe uma espécie de “introdução, seja às reformas de Sólon, seja ao surgimento da democracia”.12 Mais ainda, seguindo estritamente a definição dessa logicidade como critério seletivo de relevância fatual, Aristóteles teria justamente composto o conteúdo informativo que caracteriza esse regime oligárquico, deliberadamente reduzindo-o apenas à descrição das atribuições judiciárias dos arcontes.13 12 “Uma vez que a cisão deliberada entre estas duas partes foi modelada por meio de um capítulo de resumo, era estilisticamente apropriado que o mesmo dispositivo fosse usado para assinalar o início de uma nova seção do tratado com as reformas de Sólon, com o que a democracia realmente começa. Aristóteles usou este dispositivo no cap. 3, e as duas – talvez três – referências explícitas a Sólon nos cap. 2 e 3 autorizam-nos a considerar o início da AthPol ou uma introdução às reformas de Sólon ou uma introdução ao surgimento da democracia” (Keaney, 1963: 129). “Em seu aspecto estático, também, Aristóteles assim dispôs o cap. 3 de modo a que tivesse alguma relevância para com seu padrão. Lembre-se que, no seu entender, o principal fator no desenvolvimento da democracia era a gradual aquisição pelo demos de funções judiciárias no Estado: a democracia se desenvolve pari-passo com os pode414 13 Mithistória Bem demarcados o princípio e o fim para o qual se orienta a progressão democrática delineada pelas mutações da politeía ateniense, então melhor se apreende o significado histórico preciso, essencialmente político, dessa progressão mesma: “O demos, à medida que alcança o poder, só pode fazê-lo apropriando-se de funções originariamente desempenhadas por outros elementos no estado. Os três órgãos cuja autoridade o demos tem que sobrepujar são respectivamente o colégio dos arcontes, o Areópago, e o Conselho dos Quinhentos”.14 O que configura, conclui Keaney, na conformação estrutural da AP a definição do elemento médio de sua composição discursiva: o tratamento dado por Aristóteles ao Areópago, especialmente centralizado no período dos dezessete anos seguintes, às guerras medas, que marca, o predomínio de sua liderança na direção do Estado ateniense.15 Esse tratamento combina os dois aspectos inversos da aplicação do padrão: um positivo, caracterizando o crescimento e expansão do demos, firmando-se agora estavelmente sua atuação no âmbito governamental, e o outro negativo, caracterizando o declínio gradual da influência, mais especialmente então, do Areópago, que com as reformas de Efialtes veio a perder seus poderes e atribuições para outros órgãos estatais, em parte para o Conselho dos Quinhentos e em parte para os Tribunais populares. res sempre crescentes ganhos pelos tribunais. À vista disto, não é de se admirar que Aristóteles, no cap. 3, mencione uma e apenas uma função dos arcontes, e essa seja especificamente a judiciária. (...) Dado que Aristóteles distingue explicitamente entre esta função dos arcontes como ela era anteriormente a Sólon e no período de desenvolvimento da democracia, parece que foi deliberado de sua parte mencionar apenas esta função judiciária” (Keaney, 1963: 129). 14 15 Keaney, 1963: 130-1. “Com o tratamento aristotélico do Areópago, chegamos aos elementos médios do padrão e à sua aplicação na AthPol” (Keaney, 1963: 131). 415 Francisco Murari Pires A centralidade composicional desse elemento médio do padrão foi a tal ponto deliberada da parte de Aristóteles, que o filósofo a teria inclusive graficamente consagrado pela estruturação de uma simetria textual, por três modos assinalada na redação da AP: “Os elementos médios do padrão estão centrados em torno do Areópago; o Areópago é o segundo dos três órgãos – arcontes, Areópago, boule – que opõem-se ao demos; no cap. 41, o estágio constitucional representado pela liderança do Areópago posiciona-se no meio da série, com cinco metabolaí o precedendo e cinco o seguindo. Aristóteles emprega aqui ainda um outro dispositivo estilístico. Fora seu uso técnico, méchri ocorre apenas três vezes, e cada vez esse termo é usado para assinalar o tratamento de um tópico importante: méchri Sólonos (2.2), antes da discussão de Sólon; méchri toútou (23.1), antes da discussão do Areópago; e méchri tes nyn (41.2), antes da discussão da constituição contemporânea”.16 Assim, entende Keaney, resulta na composição aristotélica da AP uma conformação textual que a estrutura em três unidades distintas: “A AthPol de Aristóteles está dividida em três seções maiores, que tratam respectivamente do período pré-soloniano, do período desde Sólon até o estabelecimento final da democracia radical por fins do séc. V, e, finalmente, da descrição sistemática desta democracia tal como ela existia no séc. IV”.17 E, todavia, há algo que não vai bem com a teleologia da AP. Já sua formulação por Keaney apresenta uma certa duplicidade, senão ambiguidade mesmo, na medida em que comporte, ou não, o pleno alcance filosófico que tal conceitualização aristotélica implica. Assim, seu propositor logo adverte que o padrão teleológico por ele discernido na composição da obra é mais certamente estilístico do que propriamente filosófico: 16 17 Keaney, 1963: 145, nota 36. Keaney, 1963: 136. 416 Mithistória “Mal seria necessário dizer que, no que respeita à AthPol, não há evidências de um verdadeiro processo teleológico; nada tal como uma força natural constituindo-se em direção de um resultado determinado pela natureza. Como ele é aqui usado por Aristóteles, o padrão é tão literário quanto mental. Mas o processo mental que subjaz à esquematização literária, embora influenciada pelas concepções teleológicas de Aristóteles, é, antes, retrospectiva e analítica em sua operação. É algo mais próximo da phýsis entendida como fim ou como pleno desenvolvimento (Phys. II.1.193a30), do que dela concebida como o processo de desenvolvimento (193b12)”.18 Não se trata, então, efetivamente da teoria teleológica que Aristóteles formulou acerca da natureza, mas sim, antes, de “uma concepção de um desenvolvimento em direção a um fim que está de algum modo com ela vinculada”.19 Este padrão presente na AP é mais, e somente, um modo de pensamento e expressão que ordena sua operação de investigação analítica, quase propriamente uma sua viciosidade, condicionada por aquela teoria básica de sua filosofia.20 O nó que enlaça a duplicidade do enquadramento teleológico proposto por Keaney para o melhor entendimento da AP, tanto presente em seu texto quanto dele ausente, assim veiculando uma certa indecisão ao identificar sua composição ora como mais plenamente comandada por uma proposição filosófica, ora apenas como literária e estilisticamente conformada em seu padrão estrutural, reside essencialmente na questão da implicação, ou não, do desenvolvimento da democracia ateniense ordenado pela AP ser pensado em termos do conceito aristotélico de physis. Daí que, fechando essas suas advertências conceituais, Keaney chegue a uma formulação conclusiva que antes retorna ao ponto de partida de sua reflexão, ao mencionar os comentários de Jacoby e, ainda antes, de 18 19 20 Keaney, 1963: 119. Keaney, 1963: 119. Keaney, 1963: 119-20. 417 Francisco Murari Pires Wilamowitz21, os quais já haviam prenunciado, e mesmo sugerido, tal entendimento teleológico da AP: “Embora seja necessário usarmos várias vias de enfoque a fim de adequadamente visualizarmos o padrão em operação, pode ser aconselhavel iniciarmos novamente focalizando a linguagem de Aristóteles. Em 404/3 a.C., quando, para Aristóteles, a democracia ateniense ésche tèn hautes phýsin, por assim dizer ...”.22 Então, parece sugerir Keaney, se a AP, em sua estrutura discursiva, não chega propriamente a ser formulada expressamente por Aristóteles em termos de sua filosofia teleológica, certamente, pelo menos, assim o foi enquanto pré-concepção literário-estilística subjacente a esse especial modo de pensamento aristotélico. 1992 Em um artigo publicado em 196923, Keaney retoma e desdobra as proposições inaugurais de sua leitura da AP. A questão da teleologia ainda permanece: constitui o princípio ordenador da estruturação narrativa da obra no seu todo, conforme à argumentação já desenvolvida no texto de 1963. Porém, agora, ela fica mais marcada como procedimento literário de narração, como padrão estilístico, e passa para segundo plano. O crítico, que ainda acusa as limitações de apreciação redutora causadas pelo império do enfoque historiográfico, já não reclama mais, como em 1963, a falta, que causa a falha na leitura, do enfoque filosófico. Ou, antes, foi este enfoque filosófico subsumido – e, pois, elidido – pelo reclamo do enfoque literário.24 21 22 23 Vejam-se nossas considerações a p. 218, especialmente na nota 3. Keaney, 120. Ring composition in Aristotle’s “Athenaíon Politeía”. American Journal of Philology, XC.4 (1969): 406-23. “Desde a publicação do papiro de Londres, em 1891, a AthPol de Aristóteles tem sido enfocada primordialmente como uma fonte documental para os historiadores das cons418 24 Mithistória Keaney volta então todo o cuidado de seu olhar analítico para destacar a percepção de um outro padrão estilístico que igualmente conforma a composição narrativa da AP, o qual combina um duplo procedimento de narração: a repetição e a composição em anel. Este padrão, entende Keaney, enseja a Aristóteles arquitetar amarrações mais parciais, conectando seções discretas do texto, de modo a melhor marcar o alcance e o sentido preciso que “cada etapa do desenvolvimento histórico da politeía ateniense teve enquanto contribuição para a progressiva constituição da democracia radical”.25 Assim, o olhar atento de Keaney visualiza os laços e as malhas textuais que desenham a rede tramada por um tal padrão estilístico, devidamente arrolando-os em seu artigo. Percebido agora o texto aristotélico sob as lentes da composição em anel, começamos a enxergar na AP a técnica narrativa de seu autor, e a melhor apreciar o teor artístico, a qualidade literária da obra. Por não a terem percebido, os críticos anteriores – inclusive, dentre eles, Kaibel mesmo, entretanto um solitário precursor do enfoque estilístico – equivocadamente acusaram como falhas, deficiências, de Aristóteles, o que, de fato, uma vez corrigida essa miopia do enfoque não-literário do texto, são antes os recursos de sua arte narrativa.26 A orientação que ganhara relevância no artigo de 1969, agora, no livro de 199227, impera avassaladora, operando sua proposição analítica já tituições. Esta ênfase é bastante natural, mas ela foi, acredito, parcialmente responsável por um relativo negligenciamento de outros aspectos da obra, em particular de um ponto de vista literário” (Keaney, 1969: 406). 25 26 Keaney, 1969: 422-3. “Muitas das deficiências estilísticas discutidas por Kaibel e por outros são mais aparentes do que reais. Em alguns casos, uma suspeita desnecessária para com o texto e julgamentos equivocados acerca das capacidades de Aristóteles enquanto historiador foram devidos a uma falha em perceber que Aristóteles usa a repetição, particularmente sob a forma da composição em anel, como um dispositivo estrutural maior tanto na parte histórica (cap. 1-41) quanto na parte sistemática da AthPol” (Keaney, 1969: 406). The composition of Aristotle’s “Athenaíon Politeía”. Observation and Explanation. Nova Iorque / Oxford: Oxford University Press, 1992. 419 27 Francisco Murari Pires liberada dos entraves das outras abordagens mais tradicionalmente consagradas de leitura da AP, sejam historiográficas sejam filosóficas, que distorciam a devida apreciação do sentido e do valor dessa composição aristotélica. A justificação erudita que instiga a leitura, de aspirações inovadoras, se não revolucionárias, de Keaney, retoma o mesmo ponto de partida de seu percurso inaugural, trinta anos antes: a recusa da leitura pelo enfoque historiográfico, que trata a obra redutoramente como documentação histórica, aferindo sua dimensão de fonte textual para a reconstituição da história fatual do Estado ateniense, mais particularmente de sua evolução institucional. Da projeção desse enfoque de leitura da AP, e mais especialmente do desencanto com o desempenho historiográfico de seu autor a denunciar a sua incompetência nesse domínio, resulta o repúdio do reconhecimento da autoria aristotélica, assim (des)apreciada como indigna de figurar sob o prestígio desse nome. Crítica da insuficiência do enfoque historiográfico que Keaney estende para o seu corolário, o não enfoque filosófico. Pois, se os historiadores, que reconheceram a AP como texto especialmente pertinente ao seu objeto de estudos, a ele dedicando intensos e amplos esforços analíticos, os filósofos, pelo contrário, dele descuidaram, o negligenciaram mesmo, irrelevando-lhe qualquer alcance filosófico.28 Por ambos os lados, quer da História quer da Filosofia, e por modos aparentemente reversos, a AP é assim dissociada do nome de Aristóteles, em razão, entretanto, de uma similar desapreciação de sua qualidade precípua, seja como historiografia seja como reflexão filosófica. 28 “A Athenaíon Politeía de Aristóteles, desde a sua descoberta há um século atrás, tem sido tratada como um documento histórico e muito utilizada por estudantes de história antiga. Este enfoque continua a criar dificuldades. Alguns acharam a obra tão pobre enquanto história que ela deve ter sido o produto de uma mente inferior à de Aristóteles; uma outra versão desta crença é que a obra é tão diferente do restante subsistente da volumosa produção de Aristóteles, o corpus Aristotelicum, que ela deve ter sido composta por outra pessoa. Pelo menos em parte por causa da dominância do enfoque ‘histórico’, a obra tem sido amplamente ignorada pelos estudiosos da filosofia antiga”. (Keaney, 1992: XI). 420 Mithistória Mas, o retoma apenas em parte, pois a propugnação da leitura pelo enfoque da filosofia aristotélica, expressamente reclamada em 1963, agora, em 1992, é também desrecomendada paralelamente ao enfoque historiográfico. Firma-se, na leitura de Keaney, o primado exclusivo do enfoque literário. O sentido e o valor da obra determina-se, não pela projeção de uma identidade exteriormente derivada, seja historiográfica seja filosófica, carreando indevidas desqualificações da obra porque associada ao nome de Aristóteles, mas determina-se, sim, interiormente a ela mesma, enquanto unidade discursiva diferenciada e autônoma, a conformar uma estruturação singular e específica de entendimento.29 Então, das teorias particulares da filosofia aristotélica, enquanto enfoque teórico que comande o sentido composicional da AP, não há mais traço na abordagem de Keaney. A teleologia, em especial, é expressamente afastada, bem se advertindo a impropriedade de equacionar a evolução histórica de progressão da constituição ateniense, entretanto direcionada para a consecução do fim específico da forma de governo que consagra a soberania dos órgãos populares, como um processo natural.30 Da filosofia aristotélica 29 “Está claro que não é ilegítimo usar a AthPol como fonte histórica – por vezes trata-se da fons unicus – nem ninguém negaria que ela e outras politeiai tenham alguma conexão necessária com a filosofia política de Aristóteles, mas tirar conclusões acerca da autoria ou acerca da natureza da obra baseando-se em critérios da historiografia grega ou da filosofia de Aristóteles é ignorar uma terceira possibilidade, a saber, que a AthPol não tenha sido projetada nem como uma peça de escrita histórica nem tenha sido plenamente concebida como um suporte para outras obras, seja a Política ou algum outro projeto. Eu antes proporia examinar-se a obra em si e por si mesma, sem o estorvo destes óculos acadêmicos, por meio de um enfoque literário”. (Keaney, 1992: XI). “Já foi observado em um outro contexto que os termos phýsis e télos em seu significado teleológico estão ausentes da AthPol. E, todavia, Wilamowitz afirmou ‘die eschate demokratía erfülte immer mehr ihre phýsis in der sprache der Politik zu reden’ (a democracia final cada vez mais realizou sua phýsis, para falarmos a linguagem da Política). A afirmação é equivocada por mais de uma razão. Para Aristóteles, democracia é uma parékbasis ou uma politeía parekbebekuia, uma forma desviada. Embora possa ser dito que toda sociedade advêm e existe por natureza, phýsei, isto não é verdade para toda 30 421 Francisco Murari Pires resta agora, ainda presente na leitura de Keaney, apenas um tímido traço, de relevância ínfima, em alusão à teoria da distinção das modalidades de causas, com o corpus documental de informações históricas dispondo a causa material de composição da obra que têm na politeía sua causa formal.31 Já ao padrão de concepção do desenvolvimento histórico por uma progressão que distingue três estágios – começo ínfimo, crescimento e expansão e fim portentoso –, originariamente proposto por Else em seu estudo da Poética, Keaney permanece fiel. Mas, agora, ele deixa de ser considerado como um modo filosófico precipuamente aristotélico de pensamento, para configurar antes a essência distintiva de uma espécie do gênero da História Cultural, qual seja, a politeía.32 Assim, o gênero estaria também representado em duas outras obras do contexto peripatético mais imediatamente próximo de Aristóteles, similarmente conformadas em sua composição em consonância com os tópicos definidores daquele padrão. É o caso tanto de Dicearco, que em sua Bíos Héllados traça os estágios históricos do desenvolvimento da civilização humana a partir de seu estado natural, passando pelo pastoreio, depois criando a agricultura, até alcançar atualidade civilizatória, quanto de Teofrasto, que no tratado Perì Eusebeías distingue a progressão dos modos de configuração dos sacrifícios religiosos, sociedade que se caracterize por uma particular ordenação política. Na medida em que as formas políticas possam ser boas (realeza, aristocracia, politeía) ou más (tirania, oligarquia, democracia), apenas as três primeiras são katà phýsin em termos do horizonte moral de Aristóteles; as três últimas são parà phýsin. (Keaney, 1992: 24). 31 “Para usarmos uma analogia, são os dados históricos mediados por meio de fontes secundárias que formam a matéria ou causa material de que a politeía escrita é a forma ou a causa formal. Se for verdade que termos como estes foram explorados por Aristóteles, isto faz com que os conteúdos da AthPol tomem um aspecto bem diferente do que teriam caso se restringissem ao enfoque básico da historiografia”. (Keaney, 1992: 4-5). “Há uma outra abordagem da questão do gênero que consiste em tratar a AthPol como uma espécie de Kulturgeschichte. A justificação inicial para esta abordagem será o uso de uma linguagem similar nas obras de Aristóteles e em outras obras que mais claramente pertencem ao gênero da história cultural”. (Keaney, 1992: 20). 422 32 Mithistória inicialmente dedicando como oferendas a relva-capim, depois as folhas, então a cevada etc. E o padrão tanto mais permanece quanto se complica, a ponto de (Keaney) imaginar a operação de tramas um tanto intrincadas de manobras composicionais, supostamente aristotélicas. Primeiro, porque não se trata mais do desenvolvimento histórico de um fenômeno singular, concernente a uma única e distinta entidade, como o era a constituição ateniense ou a democracia radical, assim retratada na leitura de 1963. Agora têm-se três entidades: a democracia, a pólis e a multidão (plethos). E tampouco se trata de um processo de desenvolvimento uno em sua homogeneidade, mas antes de um processo heteróclito em que os estágios são (um tanto nebulosamente) referidos diversamente a cada entidade, de modo que no princípio trata-se da democracia, depois na expansão trata-se da pólis e da democracia e depois (ainda?) na expansão da multidão.33 Complexidade ainda mais acentuada porque entrecruzam-se também no processo dois aspectos evolutivos, um que compõe um movimento progressivo (forward), entretanto interrompido, e outro antes regressivo (backward). Por fim, verdadeiras fórmulas de linguagem – katà mikrón, auxán e éti kaì nyn –, precipuamente assim concebidas pela composição da AP, apõem conectivos estruturais especialmente dotados de funcionalidade semântica. Então, para Keaney uma estruturação, não mais tríplice como no texto de 1963, mas quadripartite conforma a composição da AP, em precisa correspondência com o processo progressivo de constituição do primado político dos órgãos populares, especialmente os tribunais, na definição do Estado ateniense: 33 Como não temos melhor certeza de termos bem compreendido a obscura formulação do pensamento de Keaney, aqui o citaremos em sua expressão original: “The language shows that Else’s pattern is operative, but it will be seen that Aristotle has manipulated it in various and unique ways. First, the phenomenon of development is not applied to a single, a separable entity but, in order, to demokratía (arché), pólis and demokratía (aúxesis) and plethos (aúxesis)”. Logo adiante Keaney conceitualiza sua formulação dizendo: “the shifting referents of the pattern” (os referentes deslocantes/moventes do padrão?) (Keaney, 1992: 22-3). 423 Francisco Murari Pires – a I parte, desde o início (perdido) da obra até o cap. 3, retratando a redução dos poderes do colegiado dos arcontes; – a II parte, do cap. 5 ao 41, enfocando a perda dos poderes do Areópago; – a III parte, desde o cap. 42 até o 62, caracterizando a redução dos poderes do Conselho dos Quinhentos; – a IV parte, do cap. 62 até o fim, descrevendo os modos de operação dos tribunais populares.34 O que configura, certamente, uma interpretação heterodoxa no âmbito das vertentes modernas de leitura da AP, rompendo com aquele entendimento tradicional, desde o princípio consagrado (e, ainda, expressamente formulado pelo próprio texto aristotélico no cap. 41), que identifica antes uma estruturação dúplice da obra, com uma primeira parte de narrativa histórica traçando a progressão da politeía ateniense, e uma segunda propriamente descritiva de sua morfologia institucional à época de Aristóteles. Esta dualidade, argumenta Keaney, embora presente no texto, respeita apenas a uma sua mais simplista ordenação narrativa em termos cronológicos, ao passo que é aquela estruturação quadripartite, de maior complexidade, que melhor expressa a concepção mais precisa com que Aristóteles apreciara a evolução da Constituição Ateniense.35 34 Há uma ligeira divergência entre a segmentação proposta por Keaney para identificar tal estrutura quadripartite na p. 44 relativamente à inicialmente apresentada na p. 12: a I parte estende-se apenas até o cap. 1, e não até o 3, e a II parte começa no cap. 2, e não no 5. “É uma concepção tradicional de que a AthPol comporta uma divisão básica em duas partes, com os capítulos 1 a 41 contendo uma história narrativa da constituição de Atenas, e os capítulos 42 a 69 descrevendo a constituição na forma existente quando Aristóteles redigiu a obra por volta de 334-1. A simplicidade desta concepção possui uma satisfação abstrata, e é uma concepção que apresenta algum ligeiro suporte textual. Todavia, tanto a linguagem quanto à estrutura da obra sugerem uma interpretação mais complexa, a saber, de que esta divisão da obra é quase que inteiramente cronológica, e de que a relação mais importante entre as partes da obra é propriamente de 424 35 Mithistória E, todavia, reconhece o próprio Keaney, uma tal estruturação mais complexa de composição narrativa não é expressamente declarada por Aristóteles em seu texto mesmo. Ela antes nele subjaz/sobrepaira por meio alusões e de verdadeiros artifícios conectivos de uma metodologia estrutural.36 Um princípio básico fundamenta essa metodologia estrutural: romper com a tradicional hermenêutica da contextualidade imediata, que não discerne o sentido maior do texto e nem, pois, a mais relevante intencionalidade de seu autor, devido à miopia mesma do enfoque redutor por ela privilegiado, em prol da inter/supracontextualidade, que justamente alcança tais sentidos e intenções atentando para a imantação semântica das conexões tramadas pela obra.37 Aqui, afirma Keaney, o artifício narrativo que conexão antes do que de divisão. (...) Esta interpretação de parte do capítulo 41 tenciona fundamentar a sugestão de que os segmentos estruturais maiores da AP devem ser vistos como mutuamente integrados antes do que como nitidamente demarcados um do outro. Esta consideração estrutural reflete a concepção de Aristóteles – inferida do modo pelo qual ele conformou seu material – no sentido de que, embora a história da constituição de Atenas possa ser dividida em segmentos discretos para proposições de análise, essa história constitui ao mesmo tempo o registro de um processo de continuidade. Neste capítulo, proponho a argumentação de que a divisão mais precisa da obra é quadripartite, I (do início perdido ao capítulo 1), II (2-41), III (42-62), e IV (63-69)” (Keaney, 1992: 43-4). 36 “Sobrepondo-se e controlando todos estes textos está uma tese, a saber, de que a história da política ateniense é o desenvolvimento da constituição em direção à democracia do século IV, e de que este desenvolvimento constitui a história do demos de Atenas alcançando o poder em se apropriando de funções que originariamente pertenciam a outros órgãos da sociedade. Aristóteles nunca articula esta tese seja em termos gerais seja em pontos específicos, mas ele a desenvolve progressivamente. Aspectos importantes de seu método são as alusões verbais, como já vimos, e a estrutura” (Keaney, 1992: 47). “(...) um princípio básico de interpretação pode ser-lhes aplicado, a saber, de que enfocálos apenas em seu contexto inicial e imediato constitui uma abordagem limitada, e limitante, e que não responde adequadamente pelas intenções de Aristóteles” (Keaney, 1992: 50). 425 37 Francisco Murari Pires opera a trama referencial de construção do sentido (e, pois, de decantação das intenções do autor) é essencialmente “a repetição, seja formal, por meio de estrutura, seja em termos de conteúdo, por meio de padrão ou tema”.38 Então, a formulação teorizante que sintetiza a idiossincrasia metodológica, de pretensões revolucionárias, vislumbrada pela (trans)visão hermenêutica de Keaney: “Meu emprego de termos tais como padrão, tema/temático, e, em poucas palavras, subtexto e paratexto provém de um modo diferente de enfocar o texto em relação àquele que tem sido seguido em praticamente quase todos os tratamentos anteriores da obra. Esta interpretação tenciona sugerir que um importante método de comunicação na obra se efetiva pelo que pode ser chamado de extra-referencialidade. Utilizo este termo horroroso para expressar uma noção relativamente simples, a saber, de que muitas colocações na AthPol não são para serem lidas nelas e por elas mesmas em seu contexto imediato, mas estão relacionadas e mais plenamente compreendidas à luz de outras passagens, seja interiormente seja exteriormente à obra. Esta noção envolve três dispositivos de composição: I. estrutura, que discuto no próximo capítulo; II. fórmula, padrão, e tema, que discuto ao longo da obra; e III. subtexto e paratexto”.39 Por subtexto, Keaney designa a presença ou interferência discursiva da manipulação aristotélica no emprego das fontes textuais que informaram a composição de sua narrativa, assim carreando para a AP, mais ou menos elíptica e subliminarmente, seus precípuos sentidos e proposições originais. Por paratexto, designa as interações entre passagens textuais, expressamente tramadas na narrativa por suas marcas de repetição, quer de linguagem quer de conteúdo temático, com a finalidade de melhor clarificá-las. Como dispositivos narrativos de estruturação composicional Keaney discerne, ao longo de todo o texto da AP, duas modalidades. Um, a composição em anel, comportando tipos simples e complexos, por vezes apre38 39 Keaney, 1992: 51. Keaney, 1992: 56 426 Mithistória sentando variantes, a arquitetar sua estrutura vertical. O outro, o chiasmus, a dispor sua estrutura horizontal.40 E, por fórmulas Keaney distingue algumas expressões idiomáticas, verdadeiras idiossincrasias lingüísticas, compostas precipuamente por Aristóteles para e pela narrativa da AP. Assim, tem-se, por exemplo, uma fórmula dokein que, veiculando a oposição entre aparência e realidade, apresenta a função de tecer na narrativa apreciações de figuras de relevância na história constitucional ateniense em consonância com as respectivas reputações prévias que as mesmas gozavam no cenário político da cidade. Em última instância, essa fórmula está polarizada pela preocupação aristotélica de bem resguardar o prestígio e a fama política da liderança terameniana.41 Ou, outro exemplo, a dita fórmula constitucional, cujo emprego implica na narrativa a sobreposição de uma ironia aristotélica, pois a fórmula afirma que os casos de instituição de regimes não-democráticos na história ateniense resultaram, paradoxalmente, de processos institucionais mais caracteristicamente democráticos.42 E, ainda, uma fórmula compósita, nela confluindo justamente essas duas outras: oudeni dogmati, assim configurando em dogmati “um soberbo exemplo de paranomásia”.43 Paradoxos Agora, justamente desvendada pela investigação analítica de Keaney, emerge toda a arte composicional conformadora do texto da AP. Recursos estilísticos a dotam admiravelmente em termos literários, indo desde simples repetições e ecoamentos verbais, por vezes compondo já verdadeiras fórmulas de linguagem idiossincrásicas; passando por jogos de paralelos tex40 Confiram-se, respectivamente, os capítulos 8 (Vertical structure: ring composition) e 9 (Horizontal structure: chiasmus). Confira-se o capítulo 11 (The dokein formula). Confira-se o capítulo 12 (A constitutional formula). Keaney, 1992: 124. 427 41 42 43 Francisco Murari Pires tuais, por vezes de longo alcance discursivo, a deslindarem os sentidos maiores das assertivas da obra por meio de uma verdadeira rede de interferências semânticas intercontextuais meticulosamente tramadas; e incluindo até estruturações mais elaboradas de exposição discursiva, empregando dispositivos tais como as composições em anel e os quiasmos, ora mais simples ora mais complexos, por vezes arquitetando articulações estruturais altamente intrincadas. E recursos técnico-artísticos de composição discursiva que veiculam comunicativamente as intenções e proposições maiores do autor, estruturando a exposição de seu pensamento consoante suas razões de coerência e consistência. A AP, assim, não é obra menor, inferior, eivada de erros e estigmatizada por supostas inconsistências: tais pretensas falhas denunciam, proclama Keaney, não a incompetência de seu autor, mas antes a miopia de seus leitores modernos, deformada pelos padrões redutores de sua ótica historiográfica positivista. Repetições, fórmulas, padrões, e estruturas, bem categorizadas como subtextos, paratextos, anéis, quiasmos, interreferencialidades, paranomásias... , revelam a metodologia do autor. Este autor, de uma tal obra assim artisticamente elaborada, a conformar um pensamento sistematicamente coerente, é bem condizente com o prestígio filosófico implicado pelo nome de Aristóteles. A AP expressa, pois, a obra de um Aristóteles estruturalista! Mas, o Aristóteles estruturalista da AP é descoberta individual exclusiva de Keaney, mais de dois milênios depois de sua composição, e após quase um século de esforços hermenêuticos modernos de seu melhor entendimento. E descoberta apenas plenamente configurada só ao final de não menos de três décadas de intensos e minuciosos estudos de investigação das verdades do texto, a manipulá-lo e revirá-lo por múltiplos e intrincados percursos de leitura, tão sutis quanto labirínticos. Por toda essa longa história milenar, a revelação da identidade estrutural da obra permaneceu ignorada. E, entretanto, era ela, entende Keaney, que Aristóteles antes tencionava significar e comunicar em, e por, seu texto mesmo! Paradoxal modo de comunicação textual, que antes oculta cifradas suas significações, do que manifestamente as declara; e que antes se expres428 Mithistória sa, não propriamente pelo que cabalmente diz e afirma sua redação efetiva, mas sim pelo que, pelo contrário, não diz taxativamente, mas apenas projeta, espécies de auras ou de icebergs textuais, ambos igualmente invisíveis, por meio de subtextos ou paratextos, padrões e estruturas, inter-referencialidades e paranomásias. Comunicação textual, pois, antes incomunicada a todos, menos a Keaney! E, talvez, até mesmo incomunicável, inclusive por Keaney: das obscuridades, das argumentações fragmentadas, elípticas, e desconjuntadas, e das especulações tão mirabolantes e intrincadas quanto frágeis, já outros críticos falaram.44 E falaram também do artificialismo das interpretações, de seu exagero e mesmo de sua desnecessidade hermenêutica, como ainda da viciosidade metodológica de sua tese. Pela ótica do Aristóteles estruturalista de Keaney, muito mais sua criação do que descoberta, a inteligibilidade histórica da AP assim antes se trava aprisionada em um tal emaranhado labiríntico de explanações dos ziguezagues de suas mensagens textuais, supostamente decifradas por um (des)entendimento que mais a hermetiza do que a desvenda. Espécie de quebra-cabeças de jogo de montagem antes reversa, que opera desmontando a unidade de seu sentido textual, entretanto já inicialmente dada, para recortar peças fragmentárias a serem (des)ordenadas em (re)configurações de outras mensagens, todavia não ditas. Recriação monstruosa do texto, por hibridismo composicional de membros heteróclitos desconectados de sua original conformação orgânica. Na construção dessa sua ótica estrutural de percepção da AP, Keaney segue firme e resoluto a via hermenêutica por ele descortinada. E a segue, não só dissociando-se da tradição de quase um século de leituras da obra, apenas escassamente presente em sua bibliografia. A proposição de sua interpretação alcança mesmo pretensões revolucionárias, já devidamente apontadas pelos críticos, a discordar, questionar e reverter os enfoques tradicionais. O principal deles, que denunciando a incompetência historio44 Confiram-se as resenhas de S. C. Todd na Classical review, XLIV.1 (1994): 24-5, e de R.W. Wallace no Americam Journal of Philology. 429 Francisco Murari Pires gráfica de seu autor, recusava à AP a admissão da autoria aristotélica, relegando sua composição antes a um discípulo menor, menos intelectualmente bem dotado do que o grande mestre. Keaney, pelo contrário, afirma plenamente sua identidade aristotélica, agora não mais apenas a dando como fato admitido de princípio (como no seu texto inicial, de 1963), mas cuidando de argumentar sua verdade, assim configurando uma tese de sua obra analítica, desde logo exarada já em seu primeiro capítulo.45 De todo o texto da AP, então, Keaney expurga apenas como nãoaristotélico o célebre capítulo IV, descritivo do regime draconiano, que desde o início mesmo das leituras da crítica moderna já fora denunciado como uma interpolação de data posterior. Também não-aristotélicos seriam aqueles mínimos ajustes redacionais no corpo do texto que pretensamente finalizavam nele harmonizar o dado intruso acarretado por essa interpolação.46 Em última instância, um pré-conceito sustenta esta condenação da determinação espúria da politeía draconiana no caso de Keaney: se a inserção da politeía draconiana no texto da AP for de algum modo admitida como aristotélica, sua anômala integração arruina catastroficamente toda a tese keaneyana de uma obra meticulosamente planejada em sua arquitetura estrutural de pensamento e reflexão. A politeía draconiana indiciaria, e denunciaria, a incompetência de estruturalista do autor da AP.47 Assim, para Keaney, 45 46 “The origin and authorship of the Politeiai”, p. 3-19. “Admito duas suposições acerca de questões controversas, reservando discussões maiores para outra ocasião: (a) que o cap. 4, a Constituição de Drácon, junto com as suas referências textuais, 3.1, 7.3 e 41.2, constitui uma interpolação não perpetrada por Aristóteles; (b) que Pol. II.12 foi redigida antes da AP, e Pol IV-VI depois dela (Keaney, 1963: 141, nota 1). Drerup argumenta que Aristóteles fez certas adições e nota marginais em seu texto e que estas foram canhestramente inseridas no texto por um editor tardio. Sua argumentação baseia-se amplamente em AP 4, a constituição de Drácon: poucos negariam que se trata de uma interpolação (embora eu negaria que Aristóteles fosse o responsável por ela) e que sua inserção causou outras inserções a serem feitas no texto (3.1, 7.3 e 41.2)” (Keaney, 1970: 327, nota 8). Confira-se a nota 4 à p. 155, onde Keaney argumenta a favor da tese de que o cap. 4 seja uma interpolação: “No que respeita a (b), provar que o capítulo 4 constitui uma 430 47 Mithistória não pode ser de Aristóteles, que dominava magistralmente a arte da linguagem arquitetonicamente trabalhada em estruturas de pensamento. Ora, mas não é esta modalidade de procedimento expurgativo que justamente caracteriza a tradição inaugural de interpretação da AP, de formação historiográfica positivista, obcecada em dela depurar intrusões nãoaristotélicas? Agora, com Keaney, o mesmo pressuposto analítico reaparece, só que operando ao inverso: projeção de excelente qualidade literária e de mestria de pensamento, confirmam que se trata de Aristóteles mesmo. Ao revolucionar a tradição, buscando reverter suas proposições e verdades, a obra de Keaney não teria sido vítima do que já Hannah Arendt, dialogando com autores de maior envergadura filosófica como Nietzche, Kierkegaard e Marx, sugeriu como sendo a vingança da tradição. É que, para reverter as assertivas da tradição, o revolucionário acaba por operar sua argumentação nos e pelos quadros conceituais dessa mesma tradição, assim, acabando por antes os reproduzir do que definitivamente os liquidar.48 interpolação, não há necessidade de nos voltarmos para a falta de valor histórico de seus conteúdos: referências à estrutura e à tradição são suficientes. Quanto à primeira, o posicionamento do capítulo é incompatível com a estrutura em anel dos capítulos 2, 3 e 5 ...” (Keaney, 1992: 155). 48 Hannah Arendt. “A Tradição e a época moderna”. Entre o passado e o futuro, 1972, (1954), p. 43-68. 431 Francisco Murari Pires 432 Mithistória XI. Leões alados e círculos triangulares Sopesadas as sortes guerreiras de aqueus e de troianos, a destes ascendera ao alto contra a daqueles baixada a tocar as regiões inferiores. Assim, o avanço vencedor troiano ameaça as naus e acampamento aqueu, agora já ao alcance de sua agressão incendiária. Os aqueus, apenas poupados naquele dia pelo cair da noite encerrando a jornada de combates, afligem-se quase desesperados por tal reversão a frustrar sua obra heróica. Conscientizam a urgência do retorno de Aquiles, única potência capaz de livrá-los daquelas ameaças, então ausente do confronto bélico porque irado contra Agamêmnon e seus comandados. O próprio Agamêmnon reconhece os erros de sua ofensa que causara a ira do herói salvador, e se dispõe, agora, a ressarcir devidamente a honra do Pelida, oferecendo-lhe irrepreensível acúmulo de presentes régios em reparação. Cumpria-se o desígnio de Zeus Então, Nestor, aplaudindo a principesca recompensa com que tentariam persuadir o retorno salvador de Aquiles aos combates, aconselhou todos os modos de conformar aquela embaixada ao herói. Assim, logo designou quem seriam os apropriados emissários para os desempenhos que se reclamavam de uma tal missão: “Fênix primeiro, amado de Zeus; ele que conduza a embaixada; depois o grande Ájax e o divino Odisseu; e entre os arautos, sejam Ódio e Euríbates a acompanhá-los”.1 1 Homero. Ilíada, IX.168-170 (tradução de Cascais Franco). 433 Francisco Murari Pires Portanto, três emissários (além dos dois arautos), distintamente nomeados: Fênix, Ájax e Odisseu, sob a condução do primeiro. E lá se foi a embaixada a caminho da tenda do Pelida, então lá retirado ausente da guerra troiana! Todavia, ao prosseguir Homero seu relato do episódio, eis que começam a surgir na narrativa formas duais de referenciação aos enviados! Pois, logo, ao descrever a marcha em caminho para o acampamento guerreiro de Aquiles, diz o poeta que “eles dois seguiam ao longo da beira do mar ressoante” 2, a dirigir preces a Posídon, a fim que o deus lhes viabilizasse dons persuasivos para aquela sua fala à alma orgulhosa do Pelida. Depois, a narrar agora a chegada à tenda do irado herói, o poeta vale-se novamente do emprego da forma dual: “Os dois avançaram, primeiro o divino Odisseu, e detiveram-se diante dele”.3 E ainda a dizer os termos da saudação em cumprimento que lhes dirigiu Aquiles: “Salve; sois decerto bem-vindos. Sem dúvida que vos traz uma necessidade. Apesar de minha ira, sois os aqueus que eu mais estimo”.4 Agora, então, a formulação poética da narrativa enseja antes uma memorização que diz também de um grupo destacado de apenas dois emissários, assim anonimamente referidos pela forma dual. Afinal, quantos enviados compõem a embaixada: dois ou três? Não há incoerência ou contradição no texto homérico? Seriam, quem sabe, 2 3 4 Ilíada, IX.182. Ilíada, IX.192-193. Ilíada, IX.197-198. 434 Mithistória resquícios de versões diferentes do mesmo episódio, assim canhestramente mescladas, ou indevidamente interpoladas, pela singular performance poética que, registrada em texto escrito, compôs a tradição a nós transmitida da Ilíada homérica?5 Gregory Nagy, em sua importante obra The best of the achaeans6, certamente de aportes e contribuições altamente renovadores, além de exemplar por suas análises textuais de acuidade formal minuciosa, retomou a abordagem dessa já clássica questão homérica, de persistência pelo menos secular na tradição da crítica filológica moderna, propondo uma sua nova resolução, cuja trama argumentativa agora passamos a expor, reproduzindo-a quase que na íntegra, modo mesmo porque intentamos reconhecer desde já a inteligência de sua consecução crítica. De início, Nagy constata, já no informe inicial a identificar nominalmente a composição da embaixada que Nestor indicara, o registro de uma primeira formulação temática, pela qual o poeta apresenta Fênix, o venerando ancião tão caro a Aquiles, no papel de destaque, a liderar a condução da mesma junto à tenda do irado herói.7 Todavia, logo a seguir na narrativa, e agora divergindo dessa primeira proposição, a Ilíada envereda por outra variante temática, marcando antes nitidamente o primado odisséico na atualização desse papel de liderança. E já assim o faz, ao mencionar o modo por que, em despedida aos enviados, o próprio Nestor induzira-lhes a recomendação no sentido de empenharem M. Edwards (Homer..., p. 219) lista as principais teses interpretativas que intentaram solucionar esse dilema textual. G. Nagy. The best of the achaeans. Baltimore/London: Johns Hopkins University Press, 1979, p. 42-58. Confira-se igualmente o texto de Nagy (Mythological exemplum in Homer) incluído na coletânea Innovations of Antiquity, editada por R. Hexter e D. Selden, p. 311-331, agora já respondendo a algumas críticas recebidas. Ilíada, IX.167-170. 435 5 6 7 Francisco Murari Pires seu melhor zelo naquela missão persuasiva: “a dar sinais com os olhos a cada um, especialmente a Odisseu”.8 Primado que se desdobra por mais outros atos de Odisseu, o qual assume todas as iniciativas na execução da embaixada, postando-se à frente de seus companheiros já na marcha de ida9, e também depois, agora encerrada a refeição com que hospitaleiro os brindou o Pelida, ao tomar a palavra encetando o discurso por que comunicou a mensagem da oferta magnífica de presentes feita por Agamêmnon a Aquiles, quando Ájax, entretanto, dera silencioso sinal a Fênix para que este assim o fizesse!10 E primado de uma liderança odisséica ainda completado pela descrição final do episódio: é ele, Odisseu, quem, com a retenção de Fênix junto a Aquiles uma vez frustrada a embaixada, comanda também a volta, encarregando-se da fala em que expôs aos chefes aqueus a recusa de Aquiles.11 Assim se configura, pelo desdobramento narrativo do episódio na Ilíada, um padrão temático que assinala a “auto-afirmação heróica de Odisseu”, o qual, entende Nagy, é “o reflexo em particular de um de seus muitos papéis, o de trickster”.12 Pois, prossegue Nagy, é pela eficácia astuciosa dessa sua singularmente distintiva modalidade de excelência heróica que Odisseu assume o encargo de obrar a persuasão discursiva com que intenta seduzir o retorno de Aquiles aos combates. Então, a melhor efetuar um tal desempenho de competência astuciosa, Odisseu opera um ajuste significativo de modo a manipular a formulação original da mensagem dita por Agamêmnon. Pois nesta, o Atrida fizera expressa questão de que, a encerrar todo o informe dos tantos e esplêndidos presentes por ele agora ofertados como repara8 9 10 11 12 Ilíada, IX.179-181. Ilíada, IX.192. Ilíada, IX.223-225. Ilíada, IX.656-657 e 673s. “This pattern of self-assertion on the part of Odysseus reflects in particular on one of his many traditional roles, that of the trickster” (p. 51). 436 Mithistória ção honorífica pela ofensa antes por ele cometida, fosse dito também a Aquiles que “se submetesse a ele, Agamêmnon, na medida mesma em que era mais rei do que Aquiles, e na medida em que gabava-se de ser o mais velho”.13 Assim, Agamêmnon reiterava sua superioridade pessoal absoluta no campo aqueu, a cuja suserania inconteste Aquiles deveria submeter-se. Já Odisseu, ao reproduzir esta mensagem, obliterou, suprimiu, este seu recado final. Ora, argumenta Nagy em parte corroborando um comentário de Cedric Whitman, caso Odisseu tivesse tido êxito em, por tal expediente discursivo astucioso, obter a anuência de Aquiles no sentido de que ele retomasse os esforços bélicos, então “este herói teria sua estatura abortada na Ilíada, de modo a que o herói malograria em sua própria épica”.14 Mas Aquiles, comenta Nagy, não se deixou suadir, pelo contrário, suspeitoso, replicou duros, porém não menos justos, termos com que “peremptório rejeitou o discurso de Odisseu”: “pois a mim é tão odioso quanto os portais do Hades quem oculta uma coisa em seus pensamentos e diz outra”.15 E já antes, em outra passagem, acredita Nagy, a Ilíada dera a entender como as reações de Aquiles supõem essa sua animosidade contra a figura de Odisseu, a considerá-lo odioso, inimigo (ekhthrós). Pois, argumenta o crítico, em que termos saudara ele a vinda dos enviados, assim que os discerniu a aproximarem-se de sua tenda? Eis a tradução de Nagy (todavia vertida um tanto literalmente em português): “Salve vós dois: vós viestes como amigos, eu bem vos necessito, vós dois que sois os mais caros a mim 13 14 Ilíada, IX.160-161. “...the acceptance of such compromised terms by Achilles would thus have aborted his heroic stature in the Iliad. The success of Odysseus in the Embassy would have entailed the failure of Achilles in his own epic” (Best..., p. 51-52). E, no texto posterior: “It may be argued further that the potential ulterior motive of Odysseus, to undermine the heroic stature of Achilles, is understood by Achilles” (Mythological..., p. 324). Ilíada, IX.312-313. 437 15 Francisco Murari Pires dentre os aqueus, ainda agora quando estou zangado”.16 Pelas fórmulas duais compostas na saudação em cumprimento feita por Aquiles, quem seriam então os apenas dois enviados assim aludidos? Ora, o herói confessa serem eles “os mais queridos” à sua pessoa dentre os aqueus todos. Se, depois na réplica ao discurso, Odisseu é, pelo contrário, claramente definido por Aquiles mesmo como odioso, segundo termos violentos que bem se aplicam “ao comportamento épico” do herói falso por excelência em suas declarações “a continuamente dizer uma coisa para significar outra”, então há que se concluir que, por tais referências duais, sejam Ájax e Fênix os amigos assim referidos, na saudação, portanto, dela ficando excluído o aqueu que lhe é antes odioso inimigo, Odisseu! Eis, pois, a chave da interpretação descoberta por Nagy: os duais supõem a indicação mais precisa que identifica as figuras associadas de Ájax e Fênix como sendo os grandes afetos de amizade aquéia de Aquiles, contra Odisseu, personagem épico do “consumado hipócrita”17, a ele odioso pela métis de ludíbrios dissimulantes de pensamento de suas falas. A atualização formal de linguagem, assim implicada na composição poética do episódio pelo emprego da fórmula dual, ao que conjectura Nagy, supõe, então, uma disjunção de duas configurações temáticas constantes do repertório de conteúdos disponíveis na memória da tradição épica homérica. Uma contava a Embaixada de Ájax e Fênix a Aquiles. Outra lembrava histórias de uma inimizade entre Odisseu e Aquiles, mormente registradas por uma passagem da Odisséia que diz da rivalidade conflituosa, querelenta, entre esses dois heróis aqueus na campanha troiana como sendo um dos temas componentes do repertório épico do aedo, ali figurado pelo nome do feácio Demódoco.18 É a tradição do primeiro tema que comporta propriamente o recurso às formas duais, enquanto o segundo 16 “Hail to the two of you: you have come as friends. I need you very much, you two who are the dearest to me among the Achaeans, even now whwn I am angry” (p. 52). Best..., p. 58. Odisséia, VIII.72-82. 438 17 18 Mithistória importa para dar ao episódio uma concepção artística inovadora, consumada por verdadeiro “golpe de mestre do poeta”, nele integrando a problemática da rivalidade tradicional implicada pelos (des)encontros daqueles dois heróis.19 Então, finaliza a artesanal crítica textual de Nagy, “a cena da Embaixada, no estado em que a dispomos, não é um canhestro remendo de textos mutuamente irreconciliáveis, mas antes uma orquestração artística de variantes de tradições narrativas”.20 E, todavia, mesmo esta, assim (re)descoberta, refinada arte homérica de composição poética do episódio, nos termos em que a desvenda a exegese crítica de Nagy, não deixa de apresentar, ela mesma, implicações paradoxais, senão mesmo contraditórias, em sua teleologia hermenêutica. Assim, se “a suspeita de Aquiles ao ouvir o discurso de Odisseu parece justificada”, com o Pelida o rejeitando peremptoriamente em duros termos acusatórios contra sua falsidade astuciosa, e se esta manobra astuciosa 19 “If, in turn, the insertion of Odysseus into the Embassy story carries with it the traditional theme of an enmity between him and Achilles, then the narrative of Iliad IX may allow the retention of duals referring to the pair of Ajax and Phoinix when the time comes fos Achilles to greet the Embassy. For an audience familiar with another version of the story where Achilles had only two emissaries to greet, the retention of the dual greeting when Odysseus is included in the Embassy surely amounts to an artistic masterstroke in the narrative” (p. 54). Best..., p. 49. Um similar projeto de crítica epistemológica, a reverter o sentido das teses da abordagem mais tradicional de inspiração positivista, finalizando revelar as cuidadosas, e mesmo primorosamente intrincadas, arquiteturas de composição artística elaborada naquelas passagens dos textos antigos, em que justamente aqueles primeiros críticos acusavam antes contradições e demais anomalias compositivas de uma sua elaboração assim primária, senão grosseira, de erros, pode ser constatado ainda como uma tendência hermenêutica na apreensão crítica quer do texto tucidideano – veja-se especialmente a obra de Hunter R. Rawlings III, The structure of Thucydides’ History, de 1981, quer do aristotélico da Athenaíon Politeía, especialmente na trajetória analítica porque seguiu a obra de John J. Keaney (confira-se nosso ensaio antecedente). 439 20 Francisco Murari Pires odisséica é especialmente operada no discurso pela manipulação com que o herói ajustou os termos da mensagem de Agamêmnon, eliminando sua parte final, então a denúncia de odiosidade pronunciada por Aquiles contra quem oculta seus reais pensamentos a expor falsos propósitos – assim derivada consoantemente como resposta conseqüente que Aquiles dá aos termos da proposta, que lhe acabara de ser comunicada por Odisseu – só em segundo plano poderia se reportar à figura de Odisseu, pobre vítima expiatória de sua missão transmissora de notícias odiosas. Pois, Aquiles desconhece qual era o teor da fala e mensagem original completa de Agamêmnon, sendo dela apenas inteirado como tal pela formulação apresentada por Odisseu, já obliterada de sua parte final! Se a astúcia, que é o objeto da denúncia de odiosidade que lhe vota Aquiles, é a manobra obliterante operada no corpo da mensagem veiculadora da proposta, então o alvo dessa odiosidade tem que ser voltada mormente contra Agamêmnon como seu sujeito proponente (ao que a Aquiles é dado entender21), antes do que contra Odisseu, que aparece diante do Pelida apenas como seu mensageiro portador. De modo que a projeção, operada pelo crítico moderno, de mais determinações hermenêuticas com que ele intenta harmonizar os sentidos do texto superando certas anomalias acaba, todavia, por desencadear outras, tanto ou mais contraditórias que as primeiras! Ainda mais, pelo arrazoado de Nagy opera-se uma irônica peripécia contra sua trama aferidora da inteligência artística homérica. Se a tradição épica, então atualizada por Homero na consecução inovadora do episódio da Embaixada, comporta a integração do sentido da violenta animosidade entre Aquiles e Odisseu, seria então consistente que o poeta assim concebesse ser Odisseu, entretanto inimigo odioso a Aquiles, um apropriado agente persuasivo para induzir, por sua presença pessoal na embaixada, os melhores apelos com que se viabilizaria o retorno do herói aos combates, acalman21 Justamente como tal o acusa Aquiles mais adiante (v. 375-6); quanto à particpação de Odisseu no episódio, considere-se também sua correlata atitude no canto XIX (v. 172183), em contrapartida às acusações que Aquiles levanta na cena da Embaixada. 440 Mithistória do sua ira furiosamente agastada justo contra os aqueus sectários de Agamêmnon? E assim o poeta o teria concebido como tendo sido uma iniciativa apropriada para os desempenhos de sempre prudente e perspicaz conselho do exemplarmente sábio Nestor? Excluir Odisseu do círculo dos aqueus mais caros a Aquiles, almejando desse modo solucionar a anomalia textual da forma dual iliádica, não se faz sem percalços, pois conserta-se um equívoco às custas de outro, e salva-se a arte do poeta arruinando-a! * Sétimo ano da Guerra do Peloponeso (425/4 a.C.), primavera, algo antes do pleno amadurecimento do trigo, quando os espartanos iniciavam mais outra campanha anual de devastação dos campos da Ática, eis que os atenienses ocuparam a localidade de Pilos, um promontório ao norte das costas da Messênia, ali estabelecendo uma fortificação. Esparta, reconhecendo a gravidade do ocorrido que ameaçava desestabilizar uma área de fundamental importância para o Estado lacedemônio – sede de exploração de terras agrárias e suprimento de trabalho servil hilota –, dispôs-se a obstar aquele empreendimento bélico. Armou uma expedição visando a desalojar os invasores. Para tanto, haveria que impedir o eventual reforço que a frota ateniense, reconhecidamente superior à peloponésia, pudesse prestar aos incômodos ocupantes. Defronte ao promontório de Pilos, estendendo-se ao longo de toda a área de porto que se abria ao sul, ficava a Ilha de Esfactéria, dispondo como que uma barreira natural que reduzia os acessos navais a apenas duas entradas, uma ao norte outra ao sul, pelos canais formados entre os extremos da ilha e as costas continentais. Os espartanos tencionavam bloquear, por meio de um enfileiramento cerrado de seus navios com as proas voltadas para o mar largo, essas duas passagens, obstando assim a aproximação da frota ateniense. O projeto bélico, diz Tucídides, era plenamente factível, dada a estreiteza daquelas duas únicas passagens, pois, pela norte não cruzavam mais do que dois navios, e pela sul no máximo oito ou nove (IV.8). 441 Francisco Murari Pires Por toda a Antigüidade jamais se conscientizou qualquer advertência crítica que apontasse, no relato tucidideano, algum tipo de erro ou equívoco cometido pelo célebre historiador. Em particular, mesmo os geógrafos antigos que descreveram os locais que foram cenário daquele episódio bélico, nada registraram a contestar os informes dados por Tucídides. 22 Bem, a ilha ainda por lá se encontra, ao que se supõe exatamente no mesmo lugar, não constando da tradição clássica que Esfactéria fosse uma dessas ilhas maravilhosas de que falam mitos e lendas, a flutuar vagantes daqui para lá sem ancorar-se em ponto fixo. E lá estão também os dois canais, norte e sul. Ora, por inícios do século XIX, os viajantes modernos que examinaram a topografia das costas da Moréia em missões militares – assim o coronel Leake a serviço de sua Majestade britânica pela primeira década desse século –, também imbuídos do melhor espírito antiquário crítico, não descuidaram em ajuizar a melhor precisão historiográfica do relato tucidideano. Então, efetuadas as medidas das duas passagens, constatou-se que ambos os canais são mais largos do que o suposto pelo informe do historiador: pelos cerca de 137 metros do norte passam mais do que duas naus antigas, e pelos 1.280 metros do sul, mais do que oito ou nove.23 Tucídides se equivocara! Erro de imprecisão no informe de realidade fatual imperdoável para historiador cujo preceito metodológico maior, justamente celebrado, era o exame de acribia a que submetera seus dados historiográficos. Arruina-se, então, a fama secular de sua competência, modelar de objetividade e precisão fatual. Ou, talvez, ainda não! Pois, a salvar o melhor crédito do historiador antigo pode-se conjecturar uma correção em seu texto de modo a conciliar a positividade do relato: leia-se, referenciado naquela sua passagem, não navios, mas sim estádios. Adotando-se para 22 Assim, confiram-se as indicações dadas por W. Kendrick Pritchett (1994: 158) respeitantes aos relatos de Estrabão e de Pausânias; igualmente já o apontara Gomme (1956: 486). Confiram-se as indicações dadas por S. Hornblower (A commentary on Thucydides. V. 2, Clarendon Press, 1996, p. 159-160). 442 23 Mithistória este padrão de medida seus valores mínimos, entre 130 a 150 metros, harmonizam-se ambas as ordens de realidades – constatações de medidas empíricas modernas e informes historiográficos tucidideanos –, pois dois estádios para o canal norte dá entre 260 a 300 metros, contra os 137 metros medidos, e oito e nove para o sul dá entre 1.040 a 1.200 metros, contra os 1.280 metros medidos.24 E, todavia, por essa zelosa intervenção da crítica moderna, em seu afan de depurar as inconsistências do texto tucidideano, compõe-se irônica peripécia a produzir resultado justamente contrário ao desígnio almejado. Pois, assim entendendo que Tucídides teria referido estádios e não navios, a hermenêutica daquela passagem diria que o célebre historiador, querendo significar que era pela estreiteza daquelas duas únicas passagens que se viabilizava a consecução do plano espartano de sua barragem, o fazia, entretanto, especificando-a por referenciação às medidas mais largas. Em suma, o célebre historiador, pretendendo afirmar a estreiteza, informava a largueza! Ao tentarmos, assim, salvar a consistência positiva dos dados por que prima a competência historiográfica de Tucídides, arruinamos, em contrapartida, sua melhor inteligência. * 24 A emenda no texto tucidideano a incluir a leitura stadíon referenciada especialmente à passagem meridional foi proposta por um artigo de R. A. Bauslaugh, a seguir acolhido como “solução” para o impasse do assumir-se o “erro topográfico” tucidideano por W. Kendrick Pritchett (1994: 167-176) e por S. Hornblower (1996: 159-160). Assim se pronunciou Pritchett: “R. A. Bauslaugh, The Text of Thucydides IV 8.6 and the South Channel at Pylos, JHS 99 (1979) 1-6, offered a solution which seems to us highly preferable to anu assumption that the historian erred in na account so detailed and one bespeaking autopsy” (p. 167). E assim Honrblower: “R. A. Bauslaugh...offers an ingenious solution which would save Th.’s credit: he suggests that the text is at fault and the word “stadíon” has dropped out after oktò è ennéa. That is, what Th. meant was that the distance across the south channel was ‘eight or nine stades’. Bauslaugh’s theory was endorsed by Pritchett in 1994, EGH 167-175, and I accept it as the best way out” (p. 159). 443 Francisco Murari Pires Já Robert B. Strassler propôs uma reconstituição das etapas iniciais da Campanha de Pilos, precisando-a por operações de crítica textual próprias da metodologia historiográfica a que submeteu a narrativa tucidideana, deslindando assim toda a trama dos planejamentos militares que enredaram a factualidade histórica desse episódio da Guerra do Peloponeso. Por boas razões de ordem militar (segurança mais efeito surpresa), Demóstenes, que planejara o estabelecimento da fortificação ateniense em Pilos, intentou manter secreto o empreendimento, não o revelando nem mesmo aos estrategos que iam no comando da frota ateniense, Sófocles e Eurimedonte. E levou a tal extremo seu intento que acabou por inviabilizar o comprometimento destes no mesmo. A prioridade da missão, objetaram eles contra a proposta de Demóstenes, era levar o quanto antes socorro aos partidários atenienses em Corcira, o que era tanto mais urgente porquanto acabavam de saber que a frota peloponésia já lá se encontrava a sustentar a facção adversária. Mas então adveio a tempestade, a frota ateniense foi arrastada a abrigar-se justo em Pilos, o mau tempo a obrigando a ali demorar uns dias. Demóstenes voltou à carga, agora já descortinando a que objetivos estratégicos respondia aquela fortificação, de modo a assim melhor persuadir a anuência dos dois estrategos. Tudo em vão, pois estes permaneceram firmes em sua decisão anterior, a recusar qualquer iniciativa de construção do forte que arruinasse a urgência de sua missão junto a Corcira. Nem mesmo os guerreiros comuns da frota, para os quais voltou-se então Demóstenes em sua manobra persuasora de cumpliciamento com aquela empresa, dispuseram-se a seu lado. Mas persistia o mau tempo, os guerreiros entendiavam-se com tal inatividade, e então puseram mãos à obra, e construíram o forte, mesmo que precário, em seis dias! Mas, inquire Strassler, seria esta uma descrição ou explanação plausível dos fatos, ao assim asseverar que a tropa de guerreiros atuara como sujeito, e o tédio da inatividade como instância mobilizadora, determinan444 Mithistória te do acontecimento? Há aqui, aponta o crítico, algumas inconsistências, senão mesmo contradições no relato tucidideano. Pois, “se os estrategos haviam recusado o plano de Demóstenes de fortificação de Pilos por meio de importantes considerações políticas e militares, dificilmente poderiam agora, pouco depois, permitir que um capricho ou impulso de guerreiros comuns passasse por cima de sua decisão”. A não ser que se tratasse de um motim revoltoso da tropa guerreira contra a autoridade de seus comandantes, hipótese esta, entretanto, implausível, seja porque assim concebe acontecimento todavia inédito na “história militar ateniense”, seja porque é contradito pela posterior cooperação que aqueles estrategos viriam a dar ao desdobramento do plano da fortificação ateniense. Não, conclui Strassler, a decisão que consumou os trabalhos de fortificação não veio da tropa, mas sim do comando mesmo, dos dois estrategos! Uma tal primeira conclusão então supõe mais outra, conseqüente, pois, se eles eram de início peremptoriamente contrários àquela fortificação, devem ter depois mudado de opinião, assim alterando sua decisão primeira que era de recusa. E o fato, pelos esclarecimentos do arrazoado crítico que vai assim ajuizando a (in)consistência da narrativa tucidideana, começa a ganhar maiores precisões por acréscimos de determinações positivas de sua configuração. Assim, argumenta Strassler, pode-se entender que os estrategos não eram lá tão incondiconal e absolutamente contrários à empresa planejada por Demóstenes. Na réplica que eles então dirigiram a este último – não faltavam promontórios desertos no Peloponeso, caso ele desejasse por uma ocupação que a cidade tivesse despesas – percebe o crítico, irrelevada a ironia aludida pelos “gastos inúteis”, uma velada promessa da parte dos estrategos de, após o retorno da frota uma vez cumprida sua missão em Corcira, realizarem o plano demostênico de estabelecimento de uma base fortificada ateniense no Peloponeso. E a melhor fundamentar esta sua interpretação um tanto heterodoxa da frase tucidideana, Strassler arrazoa os seguintes argumentos: 445 Francisco Murari Pires “A recusa dos estrategos em permitir o início dos trabalhos de fortificação enquanto a tempestade os mantinha parados em Pilos é usualmente entendido como uma indicação de sua oposição ao plano de Demóstenes, mas pode também ser visto como consistente com a intenção da parte deles de posteriormente retornar e fortificar Pilos. Eles sabiam que os espartanos reconheceriam as intenções de Demóstenes tão logo as fortificações começassem, e poderiam atacar a estrutura antes de que ela estivesse completada e fosse defensável. Estava claro, portanto, que uma vez iniciados os trabalhos de fortificação eles teriam que ser completados o mais rápido possível. Mas esta exigência óbvia conflitava com a própria determinação deles de navegar para Corcira assim que o tempo permitisse. Se os trabalhos de fortificação fossem interrompidos pela partida da frota para Corcira, o plano de Demóstenes estaria irremediavelmente arruinado, porque os espartanos, então alertados, jamais permitiriam que os atenienses retornassem para completar e ocupar as obras sem oposição. De fato, a única via de reconciliar a prioridade de Corcira com uma futura possibilidade de fortificação de Pilos era no sentido de que os atenienses postergassem a construção até que ela pudesse ser completada sem interrupção, e evitar todas as demais ações que pudessem prematuramente revelar o projeto ao inimigo”. Por tal arrazoado, então conclui: “This is sound military logic”.25 E, todavia, não fica muito claro por qual imposição lógica toda esta projeção reconstitutiva do pretenso arrazoado por que os dois estrategos teriam supostamente embasado aquela sua recusa ao projeto demostênico de imediata fortificação de Pilos, assim dada por Strassler como válida para o momento da ida da frota para Corcira, não o fosse similarmente também para desrecomendá-lo igualmente na volta porque inviabilizado pelas mesmas razões que o teria sido na ida? Por que então não atuariam os mesmos fatores de avaliação da logicidade militar problemática da empresa suposta25 R.B. Strassler. The opening of the Pylos campaign. Journal of Hellenic Studies, XC (1990): 110-125. 446 Mithistória mente apontados pelo crítico? Pois, também depois quando estivessem de volta de Corcira, pode-se entender que “os espartanos reconheceriam as intenções de Demóstenes tão logo as fortificações começassem, e poderiam atacar a estrutura antes de que ela estivesse completada e fosse defensável. Estava claro, portanto, que uma vez iniciados os trabalhos de fortificação eles teriam que ser completados o mais rápido possível”. Por qual misteriosa razão só na volta poderiam “evitar todas as demais ações que pudessem prematuramente revelar o projeto ao inimigo”? Então, para supostamente sanar a inconsistência de sua interpretação, Strassler é levado a fazer novas conjecturas hermenêuticas, a agora aventar uma cadeia de mensagens que teria alcançado a frota ateniense estacionada em Pilos. Assim, por que razão, entende Strassler, teriam os estrategos mudado de opinião, de modo a autorizar, ainda antes da partida para Corcira, o início da fortificação de Pilos? Eis como o crítico imagina o que então se passara: “Concluo, portanto, que foram os estrategos que mudaram de opinião e ordenaram o início da fortificação de Pilos, mas isto não em razão de qualquer argumentação da parte de Demóstenes. Talvez nunca possamos saber o que os levou a esta reviravolta, mas há uma possibilidade que é a mais simples e defensável: se os atenienses em Pilos ficaram sabendo que a frota peloponésia deixara Corcira, esta informação teria removido a ameaça e/ou a oportunidade que motivara a decisão dos estrategos de navegar diretamente para lá, e os teria deixado sem outra razão para retardar mais ainda a construção do forte. Em IV.8, Tucídides diz que os espartanos haviam já mandado uma mensagem chamando de volta a frota em Corcira quando Ágis e seus exércitos chegaram da Ática. Obviamente, se a frota deixou Corcira a tempo de que notícias de sua partida fossem levadas a Pilos e lá disparassem a decisão de construir o forte ali, então os espartanos devem tê-la chamado de volta em resposta a uma outra ocorrência bem anterior. O único acontecimento anterior que poderia possivelmente ter causado que os espartanos chamassem de volta sua frota é a partida mesma do Pireu da expedição ateniense para a Sicília. A distância de Atenas 447 Francisco Murari Pires a Corcira via Corinto e Patras é de aproximadamente de 300 milhas. Trirremes e postos de muda de mensageiros a cavalo podiam provavelmente cobrir 100 milhas em doze horas diurnas e ainda mais caso viajassem à noite. Sinais luminosos de fogo podem provavelmente transmitir mensagens simples, previamente definidas, a 50 milhas por hora. Assim as notícias da partida da frota ateniense teriam certamente alcançado Corcira em dois ou no máximo três dias, a tempo de permitir a retirada segura da frota peloponésia de Corcira para Cilene, o mais próximo porto peloponésio. Assim que os espartanos em Corcira ficaram sabendo da vinda da frota ateniense, sua conduta a mais conservadora e característica teria sido navegar de volta para casa o mais breve possível. Sua partida teria sido rapidamente seguida por aquela de um segundo barco de mensagem (o primeiro fora despachado por agentes atenienses em Corcira anunciando à frota ateniense cruzando pela altura da Lacônia a chegada dos navios peloponésios (4.3) em Corcira. Mais informações acerca dos movimentos da frota inimiga podem ter vindo de agentes pro-atenienses em vigília nas costas peloponésias junto à saída do golfo de Patras que podem ter observado a frota peloponésia quando ela navegava para o sul desde Lêucade, despachando então um barco para levar a notícia do que vira a Zacinto e de lá a Pilos........”26. E, todavia, o que diz Tucídides a esse respeito é que os estrategos, quando foram detidos pela tempestade em Pilos, haviam acabado de ser informados, pouco antes quando a frota navegava à altura da Lacônia, justamente da notícia contrária à aventada por Strassler, ou seja, de que a esquadra peloponésia já se encontrava em Corcira! Então, Strassler tem que supor, para manter a coerência lógica de sua crítica, que uma outra mensagem tivesse então alcançado os atenienses em Pilos, a qual agora informava que a frota peloponésia já deixara Corcira! Outra (in)conseqüência intrigante da interpretação especulativa de Strassler: como é que esta notícia da partida da frota peloponésia de volta de Corcira chegara aos atenienses em Pilos27 antes do que a frota peloponésia 26 27 Idem, p. 114-116. Assim, ensejando aos estrategos atenienses mudarem de opinião de modo a agora autorizarem a fortificação, pois passara a urgência da missão em Corcira. 448 Mithistória mesmo, que de lá partira certamente antes do que partira a mensagem aos atenienses? O que supõe, para Strassler, aventar outras conjecturas. De modo que uma primeira pretensa solução de um suposto problema de crítica textual de determinação fatual arrazoada por Strassler desencadeia, entretanto, já alguns outros a, por sua vez, reclamarem outras tantas especulações, as quais visam a agora harmonizar soluções outras, proliferando então mais e mais encadeamentos de conjecturas, tanto de dados informativos todavia silenciados pelo texto tucidideano quanto de projeções hermenêuticas a desvendar os dados últimos de realidade fatual. Assim, o crítico desanda a estimar quer velocidades de trirremes quer dias gastos de viagens por determinados percursos de modo a conciliar uma ordenação cronológica condizente para o seqüenciamento de todos os episódios, o que requer, por sua vez, mais outras conjecturas e suposições sincronizadoras, a agora fazer (supostamente) a tempestade chover sobre Pilos por pelo menos quatro dias até que chegasse aquela notícia e os estrategos mudassem de opinião; e a fazer (supostamente) desviar o destino da frota peloponésia de volta de Corcira, imaginando que ela não fosse ela de imediato em socorro de Pilos a impedir os trabalhos da fortificação ateniense, mas sim para Cilene; e a conceber um curioso mecanismo de transmissão de ordens do Estado, quer espartano quer ateniense, em que as mesmas não advêm nem passam por seu centro institucional de decisão, mas comunicam-se diretamente entre os diversos palcos de guerra; e a imaginar a existência de redes de agentes, pró-atenienses e pró-peloponésios, espalhadas por vários locais a agilizar um sistema de transmissão de informações que mais lembra a Guerra Fria do que a do Peloponeso! Certa vez Karl Rheinhardt, deparando-se com similares procedimentos de análise crítica da Odisséia, apontou primorosamente as mazelas de tais tipos de concertos exegéticos: “as pessoas recusam insetos apenas para acolher elefantes em suas reconstruções épicas”.28 28 “People balk at insects only to accept elephants in reconstructed epics” (The adventures..., p. 111. Confira-se uma similar crítica a certos desvios de hermenêutica exegética apon449 Francisco Murari Pires * Por ensejos narrativos vários Tucídides incorpora em sua obra inúmeros dados de medidas de distâncias: de Olinto a Potidéia, 60 estádios (1.63.2); de Pilos a Esparta, 400 (4.3.2); de Colono a Atenas, 10 (8.67), de Cromion a Corinto, 120 (4.45.1), de Mégara a Niséia, 8. Seriam precisos tais informes recolhidos pelo célebre historiador antigo, interroga-se Simon Hornblower29, um de seus mais recentes comentaristas críticos, tencionando assim ajuizar os méritos do prestígio excepcional projetado, desde o século XIX, para a competência historiográfica tucidideana, a alcançar mesmo foros de cientificidade metodológica modelar por seus princípios de crítica fatual? Seriam, portanto, consoantemente precisos àqueles dados de realidade histórica tucidideanos? Correspondem, com boa exatidão, os valores numéricos de suas medidas em estádios aos valores empíricos das respectivas medidas modernas em metros? Se admitirmos que Tucídides, por coerência com seu ideal de precisão/akribia, enquanto princípio de depuração de realidade fatual, ordenasse sua narrativa supondo um valor fixo ou padrão unívoco de estádio, qual era ele? O mais usual, tradicional para os tempos antigos, em particular o dos geógrafos, de cerca de 185 metros, pelo que revelam as estimativas dos estudos críticos modernos? Se assim for, feitas as verificações comparativas, resulta que os dados numéricos de seus informes são, por maiores ou menores desvios da exata medida moderna, se não errôneos mesmo, certamente imprecisos. Mas, pondera Hornblower, as verificações apresentam resultados tão díspares que melhor se os ajuíza admitindo, pelo contrário, que o relato tucidideano não tenha suposto um tal padrão de valor fixo, unívoco, e tados por Christine Sourvinou-Inwood (Reading greek death, p. 13): “There is no evidence whatsoever in favour of such hypotheses, which are simply projections of what appears to some scholars to be the logical way of making sense of frgamentary data, a perception inevitably dependent on culturally determined implicit assumptions”. 29 S. Hornblower (ed.). Greek historiography. Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 26-27. 450 Mithistória sim, antes, tenha apenas reproduzido as diversas medidas informadas em consonância com padrões de valor flutuante, talvez de uso regional, implicitamente canalizados para sua obra pelas notícias de seus informantes. Mas, admitida agora esta hipótese, resultam, todavia, padrões de estádio de valores tão divergentes que “causaria enjôo nos crentes fundamentalistas” da renomada competência historiográfica tucidideana, com o célebre historiador jamais empregando, para informar seus dados de medida, duas vezes sequer o mesmo valor de sua unidade padrão! Bem, podemos ainda, prossegue Hornblower, preservar aquela fama, e deslocar tal acusação desqualificadora de falta ou negligência de precisão crítica do nome de Tucídides para o anonimato de seus informantes: era o estádio destes que variava, e não o conhecido por ele, propriamente tucidideano. Mas, neste caso, teria ele então aceito tais dados imprecisos sem verificação, sem ajuizar sua veracidade por testes de argüição crítica? E o círculo de impasses se fecha: ou a metodologia crítica tucidideana falha porque ignore padrões precisos de aferição de dados que melhor a qualificaria enquanto tal, ou porque negligencie seu, entretanto, princípio maior de exame de veracidade fatual. E, todavia, um tal arrazoado argumentativo do crítico moderno a outra vez apontar as inconsistências, ou mesmo os defeitos, da metodologia tucidideana, não peca, ele mesmo, por certa viciosidade tautológica de seu procedimento hermenêutico? Pois, no ponto de partida dessa discussão situa-se a projeção sobre a competência historiográfica tucidideana de um moderno ideal de precisão disposto pelo nosso espírito de cientificidade, consoante aos nossos métodos de mensuração, os quais justamente supõem um padrão de medida linear fixo, de aspiração universal e de extrema precisão, apurado progressivamente a incertezas historicamente cada vez mais infinitesimais. Assim se conclui, então, ser imprecisa a prática historiográfica – ou informativa ou crítica – tucidideana porque falta de padrões de precisão propriamente modernos, supondo-se que os devesse ter de princípio, todavia ele, historiador antigo. Mas quem atribui que assim os devesse ter é a crítica moderna, em conformidade com os padrões de seu espírito de 451 Francisco Murari Pires cientificidade, o qual justamente elege um tal padrão de medida como requisito de precisão empírica de dados. Na compreensão da suposta metodologia tucidideana, alcançamos, assim, um melhor entendimento de sua concepção do preceito de akribia, reduzido aos termos de nossa categoria de precisão empírica? * Segundo ano de guerra, logo no início do verão, poucos dias seguintes à incursão do exército peloponésio para sua campanha anual de devastação do país, Atenas foi atingida também por outra calamidade, uma irrupção de pestilência terrível, que vinda de bem mais longe – originária da Etiópia, de onde inicialmente se propagara pelo Egito, Líbia e reino persa – adentrara pelo porto do Pireu indo então alcançar a cidade. O historiador Tucídides, que se dispusera a narrar o fato, logo descarta cuidar do exame especulativo que atinasse a causalidade do fenômeno, preocupado antes por relatar os sintomas mesmos de sua manifestação portentosa, atenção descritiva esta com que almejava legar aos vindouros o conhecimento informativo que lhes capacitasse reconhecer no futuro um eventual novo surto daquela desgraça que atrozmente surpreendera seus contemporâneos. Relato de autoridade cognitiva tanto melhor fundamentada na experiência observadora, porque não só ele mesmo fora uma sua vítima como contemplara os efeitos em seus conterrâneos. Assim, diz que ela irrompia subitamente por calores febris violentos na cabeça, vermelhidão e inflamação dos olhos e logo abaixo sanguinolência e bafo fétido que tomavam garganta e língua. Daí, sucediam-se ataques de espirros e rouquidão, após o que as dores alcançavam o peito com forte tosse. Tomado o coração, desarranjos por defluxos de bile (de todos os tipos conhecidos pelos médicos) acompanhados de intenso sofrimento, a que se seguiam, na maioria dos casos, anseios de vômito inconclusos, mas causando violentos espasmos durando mais ou menos dias. Externamente, o corpo não aparentava estar muito quente ao toque, nem palidez, antes avermelhado 452 Mithistória com irrupções de pequenas pústulas e úlceras. Porém, internamente, a sensação de abrasamento era tal que não se suportava sobre o corpo qualquer veste por mais leve que fosse, a mesmo ficarem nus, e a desejarem apenas atirarem-se em tanques de água fria em suas agonias de uma sede, todavia, inextinguível. Desconfortos e sofrimentos que assim atormentavam continuamente sem qualquer alívio de repouso ou sono. No ápice dessas crises abrasadoras internas, sucumbia-se, em geral, em sete ou oito dias, sem, contudo, terem-se dissipado ainda todo os vigores do corpo. Mas, caso superassem esse estágio e a doença descesse para os intestinos, úlceras violentas acompanhadas de fortes diarréias causavam uma fraqueza agora fatal. Pois que os distúrbios primeiro se localizavam na cabeça, daí percorriam por todo o corpo, e mesmo quando não letais, deixavam suas marcas nas extremidades – partes pudendas, dedos e artelhos – com muitos escapando da morte mas privados de seu uso, alguns mesmo dos olhos; já outros eram tomados de amnésia (II.48-49). Por tal complexo sintomático de manifestações corpóreas, Tucídides pretendeu orientar os prognósticos que reconhecessem as eventuais reincidências futuras da peste de Atenas. Entretanto, por tanto mais enigmática ironia a frustrar os propósitos do célebre historiador, desse quadro de pestilência tucidideano não se teve mais notícia na História, excetuadas as lembranças de composições literárias que por ele antes modelavam suas descrições de outras irrupções de epidemias pestilentas. Há já cinco séculos que os críticos modernos intentam decifrar o enigma da peste tucidideana, nesse período sucedendo-se mais de 200 artigos e livros por centenas de eruditos, a proporem não menos do que umas 30 doenças diferentes.30 Especialmente no último meio século, contando agora com os progressos acumulados do conhecimento científico dos fatos epidêmicos, médicos e filólogos associaram esforços por resolver o mistério da identificação da peste de Atenas por meio do catálogo de suas categorias 30 Morens e Littman, 1992: 271. 453 Francisco Murari Pires modernas. Na roda das conjecturas a dança evoluiu de sarampo (Shrewsbery 1950 e Page 1953) para tifo (MacArthur 1954 e Gomme 1956), ergotismo (Salway e Dell 1955), peste bubônica (Williams 1957 e Hooker 1958), mormo (Eby e Evjen 1962), catapora (Littman e Littman 1969), leptospirose ou tulaeremia (Wylie e Stubbs 1983), influenza (Langmuir e outros 1985), febre de Rift Valley (Morens e Chu 1986), Marburg-Ebola (Scarrow 1988), catapora (Sallares 1991), tifo ou catapora (Morens e Littman 1992), febre Lassa (Hopper 1992), e ebola (Olson e outros 1996). Todavia, cadeia inconclusa de especulações alternativas, apenas parcialmente enquadrando identificações de alguns sintomas contra, entretanto, a arbitrariedade da desconsideração de outros divergentes. E, ainda, projeções viciosas de identificação, a por vezes derivar, já pelos dados patológicos modernos de identificação das epidemias, as traduções dos, entretanto, “imprecisos” termos dos complexos sintomáticos presentes no texto tucidideano. Assim, que “phluktainais refira ou pústulas ou manchas-urticárias, implicando doença exantematosa por lesões de pele ou rasas ou intumescidas”, antes advém da projeção identificadora a privilegiar, “se pústula, a escarlatina, ou, se lesões, as glândulas inflamadas de peste bubônica”31. Já deslocando-se o valor semântico médio-passivo de steriskomenoi (ser privado de, perder o uso de) pelo valor ativo (secionar, cortar), (des)entende-se a inutilização do órgão (ficar cego) como amputação (ter o olho tirado fora), a agora privilegiar a identificação por doenças gangrenosas, tais tifo ou ergotismo, ou influenza com agravamento de infecção estafilocócica.32 Deparamo-nos aqui, adverte Morgan33, com uma dissociação de quadros conceituais de teorias médicas – o antigo e o moderno – que, por suas 31 32 Morgan 1994: 202-203. Idem, ibidem, 203. Considerem-se, similarmente, as análises de Hooker [1958] a intentar razões por que a referenciação do texto tucidideano – hélke – devesse ser equacionado por boubón. Também já antes teceram advertências a acusar a inviabilidade de tais projeções identificadoras da epidemia antiga pelas modernas Poole e Holladay (1979), Morgans e Littman (1992) e Pearcy (1992). Confira-se também o artigo de Bellemore e Plant, 1994. 454 33 Mithistória diferenças de padrões de precisão na definição de seus termos denominadores dos sintomas patológicos, inviabiliza a identificação de um pelo outro. Tanto mais que (cor)respondem, um e outro, a teleologias cognitivas díspares, a medicina científica moderna de fundamentação ontológica ou patofisiológica, ao passo que a antiga hipocrática orienta-se antes pelo princípio do desequilíbrio-desbalanceamento dos humores corporais como etiologia da doença. Assim, advertiram já Poole e Holladay, nessa nossa busca talvez estejamos a perseguir um fogo-fátuo!34 Morgan acresce ainda outra observação a fornecer mais razões para o fracasso das ambições modernas de projeções de identificação categórica da peste ateniense. Lembra ele, que é fato ordinário nas tradições do aprendizado médico que o estudante neófito, defrontado com a tarefa de complicados problemas de diagnósticos, preocupe-se com atenção desdobrada em apresentar a seu instrutor um relatório o mais detalhado e completo dos sintomas levantados, assim precavendo-se contra eventuais falhas e omissões comprometedoras. Assim, “a fim de não perder nada e organizar os sintomas e sinais coerentemente, o estudante recorre a um catálogo de sintomas da cabeça aos dedos dos pés”, pelo qual apresenta seu relatório. Seja ou não precisamente esse procedimento de formação médica que determine também especificamente os modos da descrição-relatório tucidideano, ele aponta para uma consideração relevante: os padrões conceituais de ordenação dos modos de memorização da percepção e descrição do corpo, claramente sobrepondo um esquema de olhar direcionado verticalmente de cima para baixo, do alto da cabeça aos dedos dos pés. Tucídides assim procede em sua narrativa, falando primeiro dos sintomas da cabeça pelos olhos para a língua e garganta, passando ao peito e daí coração, descendo depois aos intestinos, e mesmo terminando essa sua descrição a assinalar esse eixo do percurso corpóreo dos sintomas: “pois os distúrbios estabeleciam-se primeiro na cabeça e daí percorriam todo o corpo, e mesmo quando não eram fatais, deixavam ainda suas marcas nas extremi34 Poole e Holladay 1984: 485. 455 Francisco Murari Pires dades, estabelecendo-se nas partes pudendas, nos dedos e nos artelhos, sendo que muitos escapavam com a perda destes, e alguns também com as dos olhos”.35 Mas talvez esse não seja o único padrão conceitual de ordenação da memorização narrativa tucidideana. Uma outra aproximação textual pode contribuir para o encaminhamento da questão. Pois, também as tradições históricas que noticiaram a morte de Alexandre Magno suscitaram similares embaraços às iniciativas de análise da crítica moderna que almejavam identificar sua etiologia patológica. Pelo que contam os informes derivados das Efemérides do rei macedônio, Alexandre fora vitimado por um quadro febril de degenerescência progressiva que o levou à morte em dez dias de evolução. As alternativas etiológicas, especuladas aqui, foram de crise violenta de paludismo, ou de malária ou de alguma outra doença tropical, talvez contraída quando de uma inspeção dos canais de irrigação da Babilônia, até, quem sabe, mesmo envenenamento por estriquinina ou por arsênico em estado natural.36 Não é a resolução desta identificação de uma realidade positiva que aqui nos interessa especialmente, mas antes o princípio narrativo que ordena sua memorização histórica naqueles registros das Efemérides, que chegaram até nós por meio especialmente da obra de Arriano e de Plutarco. Pelo retrato evolutivo da febre, que esses registros traçam, a doença foi paralisando em sucessão gradativa de etapas todas as capacidades ativas do rei. De início, ele não podia mais andar, tendo que ser transportado em algum leito para que cumprisse ainda seus encargos régios, num primeiro momento ainda transferido para uma liteira, mas depois no colchão mesmo, já não podendo mais nem mesmo ser sequer deslocado deste colchão para aquela liteira de transporte; a seguir, agora já quedando para sempre no leito, primeiro ainda tomava decisões, mas depois sua fala foi afetada, e já então não emitia nem mesmo instruções a seus comandados, agora já reduzido a ape35 A guerra dos peloponésios e atenienses, II.49 (a partir da tradução inglesa de P . J. Rhodes). “A causa da morte de Alexandre permanece um mistério” (W. Heckel, 1997: 283). 456 36 Mithistória nas manifestar alguns sinais de consciência ainda por olhares e meneios de cabeça, ações de movimentos mínimos de bem reduzido alcance comunicativo por que reconhecia grato e saudava em despedida seus oficiais enfileirados para vê-lo pela última vez; no fim, com o agravamento desesperador por que desistia-se já dos recursos a uma terapia piedosa de apelo de cura divina no templo de Serápis, ao entardecer do dia deu o último suspiro, cessando agora essa mais ínfima dose de energia ou vigor por que ainda se mantém o derradeiro resquício de vida. Assim, os sintomas ordenam-se seqüencialmente pela gradação crescente do processo de incapacitação das atividades físicas, em consoante ritmo de exaurimento dos vigores e alentos vitais até seu termo final absoluto. Ora, na narrativa tucidideana um tanto obliquamente se alude à interferência de também esse padrão de ordenação do relatório dos sintomas37, pelo qual Tucídides distingue basicamente dois estágios de evolução da doença: no primeiro, sediada ainda no peito e coração, as inflamações internas abrasadoras causam já a morte em sete ou oito dias, sem todavia exaurir totalmente as forças vitais da vítima; já no segundo, superada a primeira crise e descendo a infecção para os intestinos, atacam-se e consomem-se aquelas derradeiras reservas de energia vital. Mesmo para as vítimas não fatais da doença, que escapam à morte, o término da patologia parece refletir similar padrão conceitual de incapacitação física pelas seqüelas que deixa nas extremidades do corpo, quer inutilizando ações dos membros, sejam sexuais sejam de manipulação ou de locomoção, quer atingindo os órgãos de ação visual ou de capacidade mnemônica. * Na hermenêutica do texto historiográfico tucidideano, ou talvez mesmo na dos autores clássicos em geral, a apreciação das intervenções críticas 37 G. E. R. Lloyd (Revolution..., p. 22-3), comentando os relatos hipocráticos da sintomatologia da loucura, constata que os mesmos supõem um padrão epidemiológico homogêneo de descrição consoante eixos de gradação contínua a ordenar a sucessão das manifestações patológicas. 457 Francisco Murari Pires do intérprete moderno, almejando esclarecer e precisar ou seus informes de realidade ou seus princípios e regras de metodologia crítica, quer concertando seus erros quer plenificando suas ambigüidades, termina, todavia, por intrigar outras imprecisões, senão mesmo acarretar outras incoerências tanto mais danosas à melhor inteligência da obra.38 Já outros analistas advertiram contra “os abusos”39 dessa transferência de conceitos e práticas, a confundir as realizações historiográficas antigas pelas modernas, cobrando das formulações de crítica daquelas os imperativos reclamados destas. Nicole Loraux sentenciou: “Thucydide n’est pas un collègue”. Claude Calame, desdobrando o alcance dessa advertência, que denuncia ainda as miopias de hermenêuticas burocráticas rotuladoras de fragmentações do saber em impérios de disciplinas setorizadas por seus distintos conceitos e métodos – história, filosofia, crítica literária, drama, ... – ponderou como, na narrativa historiográfica herodoteana, o fato histórico Batalha de Maratona não responde propriamente por uma descrição de referenciação empírica das realidades fatuais do acontecimento, mas antes o faz enquanto o percebe e memoriza conceitualmente como ordem de batalha hoplita conformada por “coreografia ao modo épico de movimentos bem equilibrados, dignos das mais belas performances de coros trágicos na Orquestra do Teatro de Atenas”40. 38 Considerem-se também, por exemplo, as indicações dadas em nosso ensaio anterior sobre “Édipo e (o enigma d)a visão das idades”. A expressão foi por nós derivada das reflexões de Heisenberg respeitantes às implicações das relações de incerteza: “De um ponto de vista muito geral, não há maneira alguma de se descrever o que acontece entre duas observações consecutivas. É, certamente, tentador dizer-se que o elétron deve ter estado em algum lugar, no intervalo de tempo entre essas duas observações e que, portanto, o elétron deveria ter descrito algum tipo de trajetória ou órbita, mesmo que seja impossível saber-se qual. Esse seria um argumento razoável em física clássica. Em teoria quântica, porém, teria sido um abuso de linguagem que, como veremos depois, não pode ser justificado” (Física e Filosofia, p. 21) C. Calame. The craft os poetic speech in ancient greece. Ithaca/London: Cornell University Press, 1995, p. 94-95. 458 39 40 Mithistória Em termos mais gerais, Gordon S. Shrimpton41 advertiu contra os desvios epistemológicos da crítica historiográfica moderna em relação à sua similar antiga, ao projetar na avaliação desta os paradigmas e padrões de cientificidade, já agora obsoletos, de um princípio de objetividade estruturado por pobre imitação do empirismo de Francis Bacon e do experimentalismo de Robert Boyle. Buscar na narrativa historiográfica conceitualizada dos antigos as precisões realistas daquela descrição empírica desvirtua a inteligibilidade do texto por afans de crítica tanto mais inócuos em seus esforços identificadores quanto tanto mais reiteradas suas empresas assim eternamente inconclusivas. Hannah Arendt, logo no prólogo de A condição humana42, situa como um dos dilemas sobrepostos para o homem moderno um certo descompasso de linguagens com que ele se defronta face aos feitos e êxitos do saber científico realizado por tantas, e vertiginosas, conquistas tecnológicas: “Embora tais possibilidades pertençam ainda a um futuro muito remoto, os primeiros efeitos colaterais dos grandes triunfos da ciência já se fizeram sentir sob a forma de uma crise dentro das próprias ciências naturais. O problema tem a ver com o fato de que as verdades da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio. Quem quer que procure falar conceitual e coerentemente dessas verdades, emitirá frases que serão talvez não tão desprovidas de significado como um círculo triangular, mas muito mais absurdas que um leão alado” (Erwin Schrödinger). E desse descompasso de inteligibilidade conseqüente a confusões de linguagens conceituais e consoantes formas de pensamento diz tam41 Confiram-se suas considerações em History and memory in ancient greece nas p. 7-8; 19-20; 41-42; 50-52 e 80. H. Arendt. A condição humana. Trad. R. Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 11. 459 42 Francisco Murari Pires bém outras advertências epistemológicas, agora emergentes no âmbito das teorias inaugurais da Mecânica Quântica. Uma fórmula matemática bem simples define o Princípio da Incerteza, primeiramente formulado por Werner Heisenberg em 1927: ∆x.∆p h/2π Assim, exposta pela apenas aridez de sua mera formulação matemática, o Princípio afirma que o produto da incerteza na determinação da posição de uma partícula pela incerteza na determinação de seu momento conjugado (e, pois, velocidade) é sempre igual ou maior do que o valor de uma dada razão da constante de Planck. Implica, portanto, que ao se aumentar indefinidamente a precisão ou certeza na determinação do conhecimento de uma dessas duas quantidades ou variáveis, explode de incerteza e imprecisão a determinação do conhecimento da outra. O Princípio interdita, pois, a determinação precisa do conhecimento de ambas as variáveis simultaneamente, um deles atualizando-se apenas às custas do outro. Henrique Fleming, em um aparentemente despretensioso artigo de divulgação desse mesmo Princípio43, desvendou, entretanto, toda a beleza epistemológica magnificamente condensada naquilo que aparentava não ser muito mais do que uma fórmula matemática, aliás das mais simples. Pois, aquela interdição comportava uma intrigante implicância: no âmbito atômico, concebendo-se como movimentos de suas partículas constituintes, “era impossível calcular a trajetória pela razão de que não existia trajetória!”. Sim, porque apesar de estarmos a discorrer acerca seja da posição seja da velocidade (momento conjugado) de uma tal partícula, não podemos determinar com precisão o conhecimento de ambos simultanemaente, de modo que fica inviabilizada qualquer aspiração de apreender-se sua trajetória, essa percepção espacialmente visualizada que interconecta continuamente os estados sucessivos de seu movimento. Então, na Mecâ43 O Estado de S. Paulo. Suplemento Cultural. Ano II, n. 68, p. 6. 460 Mithistória nica Quântica, elabora-se um discurso cognitivo teórico de uma cinemática das partículas onde, entretanto, não tem apropriado e justo sentido pensála, em termos de um de seus conceitos básicos, trajetória! A inteligibilidade dessa outra cinemática supõe, assim, o deslocamento, quem sabe mesmo a inutilização, de modalidades conceituais clássicas de descrição do movimento, agora não propriamente operacionáveis em termos de visualização de trajetórias. Exigia-se, aqui, na Mecânica Quântica, uma outra “sensatez”, que não propriamente aquela vislumbrada pela Mecânica Clássica, a assumir como “natural tentar obter os espectros atômicos sem falar em trajetórias, nem mesmo, na verdade, supor a existência de trajetórias”. O impasse cognitivo, portanto, vinha disposto pelas pré-suposições, pré-conceitos, transferidos de outros domínios do saber, que, por mais óbvios, intuitivos, evidentes e consagrados que fossem neste, não se impunham naquele.44 Então, dentre outras implicações filosóficas suscitadas pelo Princípio – ou epistemológicas (a asseverar “a impossibilidade de se ignorar a interação obervador-sistema observado...uma vez que o distúrbio causado pela observação é comparável aos próprios fenômenos que estão sendo observados”) ou até metafísicas (a almejar saber “se a Natureza é inerentemente indeterminista, ou se o determinismo é rompido pelo ato de observação”) –, tam44 R. Omnès (Quantum Philosophy, p. 152), ao assinalar esta implicância de que “não há trajetória” assim impossibilitando a visualização do fenômeno atômico concebido como movimento de partícula, alude de passagem à crise de racionalidade acarretada no paradigma cognitivo herdado dos gregos antigos, e especialmente fundamentado na filosofia aristotélica de que o conhecimento humano principia pela fixação na mente do que a visão apreende: “The apparent irrationality of atoms may be told with some clumsy couplet, such as: formal science makes blind, unreal with a fool’s mind”. É a concepção de partícula e sua noções conceituais associadas, assim supostas para os fenômenos atômicos, lembra ainda R. Omnès (Understanding Quantum Mechanics, p. 47-48), que se torna problemática: “The most important consequence of the uncertainty relations for interpretation is their incompatibility with an intuitive representation of a particle as being a point in space. The idea of a space trajectory is also excluded because it woul mean simultaneously precise values for position and velocity. The ‘concept’ of particle becomes obviously much poorer”. 461 Francisco Murari Pires bém uma de, para nós críticos clássicos, sugestiva advertência diretiva na consecução do saber humano: “...não faz sentido penetrar em uma escala muito mais profunda do que a do elétron...e realmente há um domínio além dessa escala...que o homem, com suas presentes limitações, não está em condições de penetrar”. Estaríamos nós, críticos modernos, em nossos afãs de investigar criticamente os sentidos dos textos antigos, imbuídos de algum paradigma de precisão positiva em nossa pretensão de apreender a plena realidade histórica por esses textos referenciada?45 Ao ou “acertar” ou “concertar” os supostos “erros” que as razões de nossa crítica neles contesta a inadmissibilidade, não estaríamos justamente a impor-lhes padrões de inteligibilidade que, se por um lado propiciam supostamente maior precisão no conhecimento de certos aspectos ou itens dessa realidade, por outro, explodem em indeterminações de tantas mais incongruências cumulativas deles decorrentes? E, dado que a investigação cognitiva opera por esse nexo em que interagem sujeito e objeto, haveria naquela escala do que é pequeno em termos de precisão e certeza nos objetos cognitivos da textualidade clássica antiga algum ponto de “justo meio” de sua abordagem, com que se idealizasse os aportes hermenêuticos projetados por ambos esses pólos, ou que pelo menos minorasse os excessos dos distúrbios subjetivos da análise mas que também não recaísse nas faltas de uma leitura objetivante supostamente inerte ou passiva? 45 C. Sourvinou-Inwood, que sistematicamente adverte em sua obra contra a interferência de pressupostos culturalmente determinados enviesando as interpretações do crítico moderno, tece algumas considerações em sua reflexão conclusiva acerca dos parâmetros constitutivos do conceito de physis contextualizado em sua existência no Hades registrados pelos poemas homéricos que se aproximam das questões aqui por nós levantadas: “Thus, we conclude that in the assumptions that shaped the parameters determining the poet’s creativity there was probably some uncertainty and ambivalence as to the precise nature of the shades” (Reading greek death, p. 83). 462 Mithistória Todavia, o ponto preciso do “justo meio”, para nós humanos, talvez seja objetivo inalcançável! Assim, pelo menos, o entende a história bíblica do Êxodo que, ao narrar o episódio da travessia do deserto pelo povo de Israel libertado do cativeiro egípcio, a ele alude como prerrogativa da transcendente sapiência divina. Pois Jeová instrui-lhe devidamente como ele o alimentaria: “Eis o que o Senhor vos mandou: ‘recolhei a quantia que cada um de vós necessita para comer, quatro litros e meio por cabeça, de acordo com o número de pessoas; cada um recolherá para os que moram em sua tenda’. Assim fizeram os israelitas, recolhendo uns mais, outros menos. Mas ao medirem depois as quantias, não sobrava a quem tinha recolhido mais, nem faltava a quem tinha recolhido menos”. 46 46 Êxodo, 16.16-18 (tradução por Ludovico Garmus). Bíblia Sagrada. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 98-99. 463 Francisco Murari Pires Referências bibliográficas ALMEIDA PRADO, A. L. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso I. São Paulo, FFLCH-USP , 1972. ANDREWS, J. A. Cleon’s Ethopoetics. The Classical Quarterly, 44.1 (1994): 26-39. APOLLODORUS. The library. With an english translation by J. G. Frazer. London/ Cambridge: William Heinemann/Harvard University Press, 1954 [1921]. ARENDT, H. A condição humana. Tradução de R. Raposo. 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