Memória e Sociedade, Lembranças de Velhos - Ecléa Bosi

March 27, 2018 | Author: carlos | Category: Sociology, Science, Thought, Memory, Narration


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ECLÉA BOSIMEMÓRIA E SOCIEDADE Lembranças de velhos 10ª. edição COMPANHIA DAS LETRAS Copyright (c) 1979, 1987, 1994 e 1995 by Ecléa Bosi Capa: A memória de Ettore Bottini Ma urice Halbwachs sobre retrato de d. Emma Strambi Frederico, Professor de Psicologia social por Maureen Bisilliat do Collêge de France, Preparação. morto no campo de Buchenwald em 1945 StelIa Wetss Revisão: CarlosAlberto luada Eliana Antonioli As lotos são cortesia de Ameris Paolini (autora das três fotos de idosos) Emma Strambi Frederico Tberesa Bosi Dulce de Oliveira Carvalho Minam Lfchits Moreira Leite Museu da Imagem e do Som(São Paulo) Instituto de Psicologia da USP Dados Internacionais de Catalogação na Pubhcação Ice') (Câmara Brasileira do Livro, se, Brasil) Bosi, Ecléa Memória e sociedade lembranças dos velhos Ecléa Bosi - 3 ed - São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Bibutogra6a tBN 85-7164-393-8 1. Memórias - Aspectos sociais 2. Psicologia social Titulo. 94-1560 ctar,-302 Índices para catálogo sistemático. 1 Memória Aspectos sociais . Psicologia social 302 2. Memória e sociedade : Psicologia social 302 2003 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCI-IWAIOCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 - São Paulo - sp Telefone: (11) 3167-0801 Fax: (11) 3167-0814 www.companhiadasletras.com.hr Apresentação OS TRABALHOS DA MEMÓRIA * Dirigidos por alguma luz desgarrada, tombada de uma estrela sem véu, de um navio e rrante, ou do próprio Farol, com sua pálida pegada sobre degraus e tapetes, os peque nos ares subiram a escada e farejaram pelas portas dos quartos. Mas aqui, decert o, tinham que parar. Quaisquer que fossem as coisa que pudessem aparecer e desap arecer, o que aqui se encontra é bem sólido. Aqui, podia-se dizer àquelas luzes desliz antes, àqueles ares tateantes que respiram e se curvam sobre o próprio leito, aqui v ocês nada podem tocar e nada podem destruir. Virginia Woolf, Viagem ao farol Yo vengo a hablar por vostra boca muerta. A través la tierra juntad todos los silenciosos labios derramados y desde el fondo hablame de toda esta larga noche, como si yo estuviera con vosotros andado. Acudid a mis venas y a mi boca. Hablad por mis palabras y mi sangre. Pablo Neruda, Canto general Estas coisas é tudo conhecer. D. Risoleta () Este texto foi redigido como argúiço' durante a defesa de tese de livre-docência de Ecléa Bosi, na Universidade de São Paulo. Escrito para ser falado, sua forma coloqu ial foi aqui mantida. 17 "O velho não tem armas. Nós é que temos de lutar por ele." Esta, acredito, é sua tese, E cléa. Por que temos que lutar pelos velhos? Porque são a fonte de onde jorra a essência da cultura, ponto onde o passado se conserva e o presente se prepara, pois, como e screvera Benjamin, só perde o sentido aquilo que no presente não é percebido como visa do pelo passado. O que foi não é uma coisa revista por nosso olhar, nem é uma idéia insp ecionada por nosso espírito é alargamento das fronteiras do presente, lembrança de pro messas não cumpridas. Eis por que, recuperando a figura do cronista contra a do ci entista da história, Benjamin afirma que o segundo é uma voz despencando no vazio, e nquanto o primeiro crê que tudo é importante, conta e merece ser contado, pois todo dia é o último dia. E o último dia é hoje. Mas, se os velhos são os guardiões do passado, por que nós é que temos de lutar por eles ? Porque foram desarmados. Ao mostrá-lo, Ecléa, sua tese deixa exposta uma ferida ab erta em nossa cultura: a velhice oprimida, despojada e banida. A função social do velho é lembrar e aconselhar memini, moneo - unir o começo e o fim, l igando o que foi e o porvir. Mas a sociedade capitalista impede a lembrança, usa o braço servil do velho e recusa seus conselhos. Sociedade que, diria Espinosa, "não merece o nome de Cidade, mas o de servidão, solidão e barbárie", a sociedade capitalis ta desarma o velho mobilizando mecanismos pelos quais oprime a velhice, destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa. Que é ser velho?, pergunta você. E responde: em nossa sociedade, ser velho é lutar par a continuar sendo homem. Como se realiza a opressão da velhice? De múltiplas maneiras, algumas explicitamente brutais, outras tacitamente permitidas. Oprime- se o velho por intermédio de meca nismos institucionais visíveis (a burocracia da aposentadoria e dos asilos), por m ecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis (a tutelagem, a recusa do diálogo e da reciprocidade que forçam o velho a comportamentos repetitivos e monótonos, a tolerânc ia de má-fé que, na realidade, é banimento e discriminação), por mecanismos técnicos (as prót ses e a precariedade existencial daqueles que não podem adquiri-las), por mecanism os científicos (as "pesquisas" que demonstram a incapacidade e a incompetência socia is do velho). Que é, pois, ser velho na sociedade capitalista? É sobreviver. Sem projeto, impedido de lembrar e de ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais vi va, a velhice, que não existe para si mas somente para o outro. E este outro é um op ressor. Destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade capitalista bloqueou os c aminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros. "A memória das soc iedades antigas se apoiava na estabilidade espacial e na confiança em que os seres de nossa convivência não se perderiam, não se afastariam. Constituíam-se valores ligado s à práxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade), a família larga, extensa (ver sus ilhamento da família restrita), apego a certas coisas, a certos objetos biográfi cos (versus objeto de consumo). Eis aí alguns arrimos em que a memória se apoiava." Nada mais pungente em seu livro, Ecléa, do que a frase dezenas de vezes repetida p elos recordadores: "já não existe mais". Essa frase dilacera as lembranças como um pun hal e, cheios de temor, ficamos esperando que cada um dos lembradores não realize o projeto de buscar uma rua, uma casa, uma árvore guardadas na memória, pois sabemos que não irão encontrá-las nessa cidade onde, como você assinala agudamente, os preconce itos da funcionalidade demoliram paisagens de uma vida inteira. Todavia, a memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubados suportes materiais, nem só porque o velho foi reduzido à monotonia da repetição, mas também porque uma outra ação, mais daninha e sinistra, sufoca a lembrança: a história oficial celebrativa cujo t riunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos. Um dos aspectos mais dolorosos de seu livro, Ecléa, aparece quando você nos mostra o que ocorre com a memória política. Após terem sido capazes de reconstruir e interpretar os acontecime ntos de que foram participantes ou testemunhas, os recordadores (com exceção de d. B rites e de d. Jovina) restauram os estereótipos oficiais, necessários à sobrevivência da ideologia da classe dominante. Dessa maneira, as lembranças pessoais e grupais são invadidas por outra "história", por uma outra memória que rouba das primeiras o sent ido, a transparência e a verdade. Contudo, nisto reside também um dos aspectos decis ivos de seu trabalho, pois ao dar a palavra a vozes que foram silenciadas, seu l ivro grita: "aqui vocês nada podem tocar e nada podem destruir". Porém, sua tese não se interrompe na constatação da opressão a que está submetida a memória d s velhos - parte em busca da gênese dessa opressão. "A degradação senil começa prematurame nte com a degradação da pessoa que trabalha. Esta sociedade pragmática não desvaloriza s omente o operário, mas todo trabalhador: o médico, o professor, o esportista, o ator , o jornalista. Como reparar a destruição sistemática que os homens sofrem desde o nas cimento, na sociedade da competição e do lucro? [...] Como deveria ser uma sociedade para que na velhice um homem permaneça um homem? A resposta é radical [...j: seria preciso que ele sempre tivesse sido tratado como um homem. A noção que temos d a velhice decorre mais da luta de classes do que do conflito de gerações." E mais ad iante, lemos: "Entre as famílias mais pobres, a mobilidade extrema impede a sedime ntação do passado, perde-se a crônica da família e do indivíduo em seu percurso errante. E is um dos mais cruéis exercícios da opressão econômica sobre o sujeito: a espoliação das lem branças". É uma tese sobre memórias de velhos, escreve você, alertando o leitor para que não imagi ne estar diante de um texto sobre a memória ou sobre a velhice. É um trabalho sobre a opressão, diria eu. "Nós é que temos de lutar por eles", escreve você. Eu diria que você nos mostra também com o lutar: reconduzindo a memória à dimensão de um trabalho sobre o tempo e no tempo, da ndo ao trabalho da velhice uma dimensão própria e desdobrando uma tríade (memóriatrabalh o-velhice), você aponta para uma nova possibilidade de relação com o velho fazendo des pontar, num outro horizonte, a figura laboriosa da velhice, trabalhando para lem brar. Sua tese termina com as palavras do sr. Amadeu: "Eles também trabalharam". Fazendo refluir sobre os recordadores uma palavra proferida por um deles você dá ao trabalh o um lugar central nessa meditação sobre a memória dos velhos. Acerquemo-nos um pouco dessas palavras finais para rememorar o caminho de seu texto. Este se abre com a reflexão acerca da opressão da velhice através da espoliação do direito à memória e da prema ura senilidade engendrada pela cotidiana degradação do trabalho. E o livro termina c om um capítulo dedicado à lembrança do trabalho. "Eles também trabalharam" - não somente cada um dos recorda- dores foi um trabalhado r (e você nos revela como a diferença de seus trabalhos é determinante na produção das lem branças), mas sobretudo os recordadores são, no presente, trabalhadores, pois lembra r não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é senti mento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição. "O velho, de um lado, busca a confirmação do que se passou com seu coetâneos, em testemunhos escritos ou orais, inv estiga, pesquisa, confronta esse tesouro de que é guardião. De outro lado, recupera o tempo que correu e aquelas coisas que quando perdemos nos sentimos diminuir e morrer." Você também trabalhou - não só porque foi aos velhos e os ouviu, mas porque ao fazê-lo mos trou a degradação e o banimento a que estão submetidos o velho e a memória. Com isto, re fez a dignidade e o sentido da velhice memoriosa transcrevendo noutra linguagem o que foi recolhido dia a dia. Da voz ao texto, realiza-se o trabalho do pesquis ador-escrjtor Nós (sua banca) também trabalhamos, pois o que é ler senão aprender a pensar na esteira deixada pelo pensamento do outro? Ler é retomar a reflexão de outrem como matéria-prim a para o trabalho de nossa própria reflexão. Onde, então, se encontra sua tese? Em que região localizá-la? Ela está no seu texto (no seu trabalho de escrita e de interpretação), está nas vozes dos que falaram (no trabal ho de lembrar que efetuaram) e está também em nossa leitura (no trabalho para compre ender o lido e refazer o percurso interpretativo). Porque está em toda parte e em nenhuma, sua tese não é uma "coisa" nem é uma "idéia" - é um campo de pensamento. Merleau- Ponty escreveu que a obra de pensamento é como a obra de arte, pois nela há muito ma is pensamentos do que aqueles que cada um de nós pode abarcar. Claude Lefort fala na obra de pensamento exatamente como obra, isto é, trabalho da reflexão sobre a matér ia da experiência, trabalho da escrita sobre a reflexão e trabalho da leitura sobre a escrita. O texto, por sua própria força interior, engendra os textos de seus leito res que, não sendo herdeiros silenciosos de sua palavra, participam da obra na qua lidade de pósteros. A obra de pensamento, excesso das significações sobre os significa dos explícitos, engendra sua posteridade - o trabalho da obra é criação de sua própria memór ia justamente porque a obra não está lá (no primeiro texto) nem aqui (no último escrito) , mas em ambos. O pensamento compartilhado. Outrora, a filosofia o nomeava: diálog o. Relação com o ausente e com o possível, momento de exteriorização e de interiorização, o trab lho é negação do imediato, mediação criadora. Repondo a memória como trabalho você escreve: " há evocação sem uma inteligência do presente, um homem não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações atuais. Acurada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação. Uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabal ho da reflexão e da localização, ela seria uma imagem fugidia. O sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição. [...] Mas o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a qual está maduro, a religiosa função de unir o começo e o fim, de tranqüilizar as águas revoltas do presente alargando suas margens [...] O vínculo com outra época, a consciência de t er suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atento s, ressonância. [.1 A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda . Repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens cara s, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte". Porque o trabal ho da obra é trabalho do pensamento perpassado pelo afeto, d. Risoleta dirá; "estou burilando meu espírito", palavras que ressurgem moduladas pelas suas, Ecléa, quando escreve que uma lembrança é como um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espír ito. Burilar, lapidar, trabalhar o tempo e nele recriálo constituindo-o como nosso tempo. Porque ao pensar você dá a pensar, porque seu livro é um campo de pensamento, ele faz com o leitor exatamente o que você nos diz que a memória faz com os recordadores; fi ca o que significa. O que em mim fica? O que em mim significa? Ecléa, já faz algum tempo você me deu um presente um livro cujo título e conteúdo é A firmez a permanente. * O que em mim fica e significa ao chegar à última linha de seu livro? O sentimento e a convicção de que há em você a coerência permanente. Se rememoro os temas de suas investigações, se durante esta semana de provas da livre- docência torno-me a tenta aos caminhos escolhidos por você, não posso encontrar outra expressão para defin i-la senão a da coerência permanente. Assim, em seu doutoramento, você decide compreen der aspectos psicológicos das mulheres. Mas não de todas, indiscriminadamente. Você va i às mulheres operárias. Curiosamente você escolhe examinar a relação das operárias com a le itura. Curiosamente? Não. Aqueles que não se esqueceram da filosofia da práxis sabem o que significa a divisão social do trabalho em manual/braçal e intelectual. Você, port anto, não se contenta em dirigir-se para um grupo oprimido (as mu (* Trata-se do h istórico da greve na fábrica Perus: Mano Carvalho de Jesus, Do mingos Barbé e outros. São Paulo, Loyola, 1976. lheres) dentro da classe social dominada (os operários), mas ainda busca a maneira cotidiana pela qual se cava e se cristaliza a divisão da figura do próprio trabalha dor: as mãos e o pensamento forçados à separação, somente unidos quando a produtividade ca pitalista assim o exige. Mas você vai ainda mais longe. Revelando o potencial de inteligência represado nas m ulheres operárias, torna ainda mais sinistro o momento em que lhes é permitido ler. Não porque o cansaço fecha as pálpebras fatigadas, nem somente porque o preço dos livros os torna quase inacessíveis a essas mulheres, mas sobretudo porque nos mostra a p obreza do livro consumido, a compensação precária do labor cotidiano pela evasão miserável consentida pela classe dominante. Durante as provas desta semana que faz você? De vendo delinear uma pesquisa acerca do etnocentrismo, entre mil possibilidades, D eus meu, qual é a escolhida por você? O migrante nordestino. Porém, não lhe interessa sa ber o que ocorre com esse migrante na cidade de São Paulo você quer saber o que se p assa com ele no meio operário. Nosso tabu acerca da "boa classe em si" estremece; haveria etnocentrismo entre os operários? Mas você prossegue. Qual o grupo operário qu e você escolheria para a pesquisa? A construção civil? Não. Seria muito simples. Você se v olta para nossa honra e glória, nossa ponte salvadora para escapulir da má consciência - os metalúrgicos da grande São Paulo. É ali que a pesquisa deveria ser realizada par a saber como o companheiro é visto e tratado. Em outras palavras, você quer saber se há companheiros. Você escreve uma dissertação sobre o campo da psicologia social desdobrando ante nós um campo de afinidades com outras ciências humanas, buscando totalidades constituídas p elos grupos humanos, como se estivéssemos diante de multiplicidades culturais simu ltâneas e harmoniosas. Subitamente, sem nos avisar, você põe em cena uma personagem in esperada; o sioux, aquele que perdeu o direito à totalidade de seu espaço e de seu t empo. Você nos fala daquele que foi espoliado, perdendo o direito ao lugar e à memória . Por fim, você nos dá uma aula sobre as relações interpessoais. La está Aristóteles definin do o homem pela comunidade política participativa, porém, antes que possamos nos dar conta, Gramsci já entrou em cena e somos obrigados a indagar onde se encontra aqu ela comunidade participativa que definia a humanidade do homem. A seguir, você nos fala da comunidade intersubjetiva. Lá estão Merleau-Ponty e Lewin, descrevendo os mistérios do diálogo. Lá está Sartre repondo, como Merleau-Ponty a luta m ortal das consciências e sua superação num universo paritário. Todavia, sem nos dar temp o de repousar nessa comunidade intersubjetiva, você nos apresenta a outra face da lingu agem, aquela onde reina o poder da assimetria e que nos força a indagar: onde, em nossa sociedade, escondeu-se a comunidade participativa e intersubjetiva? Sua palavra, Ecléa, está sempre perpassada por enorme tensão - um sino que repica aleg remente para, súbito, grave e repentino, soar na cadência de um dobre prolongado. O que nos faz sua tese, hoje? Pondo em nossa presença homens e mulheres, trabalhador es manuais e intelectuais, nos faz ver a opressão que se abate sobre todos na form a da velhice, como se nesta viessem a se concentrar todas as formas de exploração, d e espoliação e de segregação, numa síntese que é também a última gota do cálice. O sr. Abel f o asilo como um gaiolão de ouro cuja porta permanece aberta - "mas fugir para quê? P ara onde eu vou?", indaga ele. Que poderá fazer este homem que escreveu: "A mão trêmul a é incapaz de ensinar o aprendido?". D. Brites, outrora combativa, indaga: "Que m e resta ainda?" e responde: adoecer e morrer. D. Jovina, a menina que não pode esq uecer o grito de justiça dos anarquistas, que continua "dando murro em ponta de fa ca", confessa, enfim, que "nunca chega a vez dos bons". Todavia, a coerência não está apenas nessa percepção aguda, nesse olhar e nesse coração capaz s de devassar as formas ocultas da opressão. A coerência vai mais longe. Para usar u ma expressão que lhe é cara, eu diria que há coerência na matéria trabalhada porque há coerên ia no modo de trabalhar. Como você trabalha nesta tese? Gostaria de apontar apenas três aspectos de seu modo de trabalhar, embora haja muitos outros que poderiam ser mencionados. Gostaria d e assinalar o que ocorre, aqui, com a idéia de ciência, com a idéia de comunidade de d estino e com o leitor. Em instante algum você afirma estar fazendo ciência. Mas também não afirma o contrário. Su a posição, sutil, não deve ser buscada em enunciados explícitos e proclamatórios, mas proc urada no que é dito aqui e acolá no decorrer do livro. Assim, você começa declarando que não está preocupada com a veracidade dos relatos nem interessada em medi- los. Não es tá preocupada em fornecer modelos de pesquisa nem em obedecer aos modelos existent es. Fala na reciprocidade e no intercâmbio dos lugares do sujeito e do objeto, de tal modo que o sujeito investigador, tornando-se veículo da memória dos "objetos" in vestigados, vê-se diante de sujeitos para os quais e com os quais se dispõe a trabal har. Explica como trabalhou, as dificuldades dos entrevistados (desde a falência ou desobediência do corpo até a emoção retendo os fios da lembrança, impedindo a tecelagem). Suas descrições, afirmações e relatos permitiriam ao leitor ingênuo concluir q ue não está diante de um trabalho científico. No entanto, se assim concluísse perderia o essencial do livro, surdo a uma outra voz que não foi capaz de ouvir. Escutemos e ssa voz. Você compara a "outra socialização" da criança, aquela feita pelos "pequenos", isto é, avós e empregados, e a "socialização dos grandes", isto é, aquela a que somos subm etidos quando arrastados pelo tempo da classe dominante. Qual a peculiaridade da "outra socialização"? Nela "a ordem social se inverte", o tempo que conta é passado e futuro (o "no meu tempo" e o "quando você crescer"). Nela, sobretudo, "os atos públ icos dos adultos interessam quando revestidos de um sentido familiar, íntimo, comp reensível no dia-a-dia, Os feitos abstratos, as palavras dos homens importantes só s e revestem de significado para o velho e a criança quando traduzidos por alguma gr andeza na vida cotidiana. Como pode a anciã justificar a glória do filho premiado na academia científica se ele não ajuda os sobrinhos pobres, ou se ele não tivesse curad o o reumatismo da cozinheira?", O confronto entre as duas socializações é breve. Todav ia, páginas adiante, lemos que a psicologia social - por suposto uma ciência, não é mesm o? - tem dado pouca atenção à socialização dos "pequenos". Essa constatação também é feita de breve e sem comentários, Mas ao leitor ocorre uma pergunta: se a psicologia socia l não se tem ocupado muito com essa socialização, com qual socialização tem ela muito se o cupado? Impossível não responder: com aquela feita pela classe dominante, à qual é aufer ido o título de objeto científico. Um pouco mais adiante, mencionando pesquisas cien tíficas nas quais a psicologia social observa, mede, demonstra e conclui acerca da incapacidade social dos velhos para o trabalho, você sugere que seria de bom alvi tre indagar quem financia tais pesquisas, deixando ao leitor a oportunidade de m ostrar- se um bom entendedor para quem meia palavra basta. Num outro ponto de se u texto, acompanhando as análises de Simone de Beauvoir, você afirma: "A sociedade i ndustrial é maléfica à velhice", pois nela todo sentimento de continuidade é destroçado, o pai sabe que o filho não continuará sua obra e que o neto nem mesmo dela terá notícia. "Destruirão amanhã o que construímos hoje." Ora, conferindo à sociedade industrial o est atuto da objetividade e da racionalidade, elegendo-a como tema de investigação, dand o-lhe necessidade e universalidade, fazendo-a cânone do real, dando ao mundo socia l historicamente determinado e submetido ao poderio de uma classe o estatuto de uma "coisa" quase natural e de uma idealidade inteligível, a psicologia social acredit a estar fazendo ciência. Se assim é, talvez não seja descabido indagar se queremos faz er ciência (ou pelo menos, esta ciência). Creio, no entanto, que o ponto alto do que stionamento das pretensões à cientificidade encontra-se no momento em que você interpr eta a memória política. A uma determinada altura começa a tornar-se nítida a impossibili dade de demarcar fronteiraas entre "esquerda" e "direita" - impossível conciliar o florianismo de d. Brites e de d. Jovina com sua prática socialista real; impossível harmonizar o integralismo do sr. Antônio com a subversão dos filhos à qual, no entant o, o pai dá plena razão; impossível não perceber a ambigüidade do sr. Abel, defensor das t radições e, ao mesmo tempo, fascinado e ressentido face ao populismo corrupto dos di rigentes, muitos dos quais são "quatrocentões" como ele; impossível não ver a idealização da figura de Getúlio feita pelo sr. Ariosto e por d. Risoleta, dos quais, afinal, es peraríamos uma consciência mais ''crítica'' (sic)... Todavia, você escreve apenas: "Não me cabe aqui interpretar as contradições ideológicas do s sujeitos que participaram da cena pública. Já se disse que 'paradoxo' é o nome que d amos à ignorância das causas mais profundas das atitudes humanas". Concordaremos, ai nda que nos fique uma ponta de frustração. Porém, a página seguinte nos aguarda: "Explic ar essas múltiplas combinações (paulistismo de tradição mais adhemarismo, ou integralismo mais getulismo mais socialismo, ou tenentismo mais paulistismo mais comunismo) é t arefa reservada aos nossos cientistas políticos que já devem ter-se adestrado nesses malabarismos. O que me chama a atenção é o modo pelo qual o sujeito vai misturando na sua narrativa memorialista a marcação pessoal dos fatos com a estilização das pessoas e situações e, aqui e ali, a crítica da própria ideologia". Se estávamos um tanto frustrado s, agora estamos envergonhados diante das pretensões da ciência cujos resultados ten dem, afinal, à simplificação e à generalização, empobrecendo a complexidade real da existênci de seres concretos. E assim, com perfeita coerência, você não carece de escrever um l ibelo anticientífico nem de justificar sua atitude de pensamento: a tradição dos oprim idos conquistou o direito à palavra. Comunidade de destino, escreve você, é "sofrer de maneira irreversível, sem possibilid ade de retorno à antiga condição, o destino do sujeito observado". No plano da matéria t rabalhada você nos mostra que a velhice criou a comunidade de destino entre observ ador e observado. Porém, o que seu texto nos desvenda pouco a pouco é ofazer-se da comunidade de destino no modo pelo qual você trabalha a matéria, velhice memorios a. Iniciamos a leitura. Chegamos às páginas onde você descreve a socialização feita pelos peq uenos, especialmente os avós e empregados. Somente ao findar a leitura do livro, q uando regressamos a essas páginas (e o mesmo poderia ser dito, afinal, de toda a p arte inicial do livro) somos capazes de perceber que um dos parágrafos é d. Alice, q ue o outro é d. Risoleta, o seguinte, d. Brites e d. Jovina. Assim, aquilo que no início da leitura eram parágrafos ou idéias transfigura-se - é alguém, é gente. Como não ler estas palavras "[...] ele nunca morre tendo explicitado todas as suas possibilid ades. Antes, morre na véspera: e alguém deve realizar suas possibilidades que ficara m latentes, para que se cumpra o desenho de sua vida" a morte de Preciosa, de Ra fael e de Chico, ou do caligrafista cuja lembrança, feita de ternura e de revolta, enche de lágrimas os olhos de seu velho filho? Como não reencontrar d. Risoleta nes tas palavras: "Acurada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação. Uma lembrança é dia mante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito"? Como não adivinhar o caminho da s vidas de d. Brites e de d. Jovina nas páginas iniciais, quando você escre"O que po derá mudar enquanto a criança escuta na sala discursos igualitários e observa na cozinha o sacrifício constante dos empregados?". Como não re conhecer todos os recordadores nos parágrafos que descrevem a ambigüidade da meninic e como um mosaico antigo feito de aspirações truncadas, injustiça, prepotência e hostili dade habitual contra os fracos e pequenos, mas feito também de esperanças e alegrias , "talvez porque nossa fraqueza fosse uma força latente e em nós havia o germe de um a plenitude a se realizar"? Como não ver aí cada um e todos os memorialistas, seja p orque sofreram na carne essa meninice injusta e esperançosa, seja porque das janel as da casa ou do bonde foram sensíveis ao fraco e à injustiça dos fortes? Ali estão, nes ses parágrafos iniciais, o pai caligrafista do sr. Ariosto, a morte operosa da mãe d e d. Risoleta, a mãe surrada do sr. Antônio, a vocação bloqueada de Preciosa e a morte a bnegada do pai de d. Brites e de d. Jovina, a cegueira da avó de d. Alice, os operár ios a gritar por Idalina, enchendo de revolta o jovem coração de Vivina. Mas também es tão ali as primeiras alegrias, o regaço dos avós, a solidariedade dos vizinhos, a desc oberta das mãos e da inteligência, o palhaço nas ruas, o samba nos pés de Risoleta, as r osas de Alfredo Volpi, os pregões, a ópera e a várzea. Você fala longamente no significa do da socialização dos pequenos ("a grandeza dos socialmente pequenos", diz você). Tod avia, só chegamos a compreen der verdadeiramente o sentido dessa socialização quando você introduz, em contraponto, o tema da opressão. Não apenas aquela que se abate sobre os recordadores crianças, ad olescentes e adultos, mas também aquela que os destrói como velhos. Somente depois d e lermos as lembranças recolhidas, quando vemos embaciar-se o contorno da cidade, quando o Brás, o Bexiga e a Barra Funda se convertem em nomes sem paisagem, quando "São Paulo, familiar como a palma da mão quando suas dimensões eram humanas", convert eu-se em escombros de cimento armado, compreendemos o sentido daquela socialização e o da opressão. Somente então somos capazes de compreender o alcance de sua pergunta : "Por que decaiu a arte de contar histórias?" - e o significado de sua resposta: "Talvez porque tenha decaído a arte de trocar experiências". Porque matamos a sabedo ria. E, então, nos vem o sentimento angustiante e indescritível do que significam a perda e a carência dessa "outra socialização" quando nos falta ou quando nos vier a fa ltar. Estamos inteiramente concernidos por essa perda, implicados nela. A comuni dade de destino surge, agora, como nossa. Os memorialistas possuem nomes. Nós nos acostumamos com eles, individualizando-os em nossa própria lembrança, rindo, chorando, esperando e desesperando com eles. Ao t erminar o capítulo sobre a memória política você escreve: "Memória povoada de nomes. São pes soas e não conceitos abstratos de 'direita' e de 'esquerda' que têm peso e significa m [...j Augusto Pinto, cuja belíssima lápide d. Brites nos dá a conhecer, Natália Pinto, mãe de Augusto; Luís Carlos Prestes, Olga Benario, Cândido Portinari, José Maria Crispi m, Taibo Cadórniga, Maria Luiza Branco, as tecelãs Leonor Petrarca, Lucinda de Olive ira. Jornalistas, operários, militantes e, em primeiro plano, Elisa Branco". Há os n omes que ficaram para eles e os nomes deles que ficaram para nós. Tese sobre a tra dição dos oprimidos, seu texto se concentra na densidade do mundo oral. Jan Vansinna , antropólogo que se dedicou ao estudo da história oral das tribos africanas, revela que o ponto mais alto e pleno de sentido, nó e núcleo dessa história, é o nome próprio no qual os eventos se concentram e se perpetuam. Nessa história, como no Gênese, o mun do é criado pelo ato que o nomeia. Em sua tese, o método (seu modo de trabalhar) res peita da maneira mais completa o objeto (a matéria que você trabalha). Porém, qual o significado desse respeito? Em que ele reafirma a sua coerência perman ente? Que significam esses parágrafos que se convertem em pessoas, em nomes retido s, represando feixes de significações? Seu livro nos mostra que não estamos diante de "idéias" nem de "pontos de vista", encarregados de relativizar a densidade do passado: estamo s diante de indivíduos reais. É aqui, acredito, que sua coerência brilha fulgurante. No primeiro capítulo de Mimesis ("A cicatriz de Ulisses"), Auerbach descreve as du as grandes tradições literárias do Ocidente: a memória épica de Homero e a memória dramática o Velho Testamento. Na epopéia homérica, a narrativa não possui pano de fundo, todo o esforço do poeta vindo a concentrar-se na presentificação total, sem rastros e sem som bras, do passado. "[...j a própria essência do estilo homérico, que é a de presentificar os fenômenos sob uma forma completamente exteriorizada, torná-los visíveis e tangíveis em todas as suas partes, determiná-los exatamente em suas relações temporais e espacia is. Não é diferente o que se passa com os acontecimentos interiores: também aqui nada deve permanecer secreto e inexprimido [...] o que as personagens não dizem a outrem, confiam ao seu próprio coração e o leitor o apreende." No relato bíbli co, ao contrário, só há pano de fundo, todo o esforço do narrador vindo a concentrar-se na manutenção do oculto - lugares, falas, acontecimentos são omitidos - para que brilh e apenas o enigma da relação entre o homem e Deus. O contraponto de Ulisses é Abraão. "N os relatos bíblicos também há personagens que falam, mas o discurso não serve, como em H omero, para comunicar o pensamento de uma maneira manifesta, antes, serve ao fim contrário: para sugerir um pensamento que permaneceu inexprimido. Deus dá a ordem e m um discurso direto, mas cala o motivo e a intenção [...] O todo, submetido a uma t ensão constante, orientado para um fim e por isso muito mais homogêneo, permanece mi sterioso e deixa adivinhar uma região oculta." Ora, prossegue Auerbach, há uma difer ença profunda entre as personagens de Homero e as do Velho Testamento. Enquanto as primeiras saem ilesas e perfeitas da ação do tempo, sempre idênticas ao que foram ant es e depois do acontecido, as figuras bíblicas possuem verdadeiramente história e de stino, trazem as marcas do acontecimento, se desenvolvem, contraditórias, ambíguas e concretas. Ulisses se disfarça de mendigo, Job está verdadeiramente só, dilacerado e miserável. Ulisses sai e retorna a Ítaca, Adão é verdadeiramente expulso do Paraíso, Jacob é verdadeiramente fugitivo, José, verdadeiramente lançado ao fosso. São homens. Descem ao mais fundo da abjeção e ascendem à mais alta redenção. Há no Velho Testamento algo que não existe em Homero: a densidade da história pessoal. Ecléa, você foi a Mnemosyne cuja história, escreve Vernant, "é um deciframento do invisíve l, uma geografia do sobrenatural", pois o poeta, visionário, transportado ao coração d as origens, não improvisa, mas tra balha para adquirir o dom da visão e da evocação porque sua tarefa é "uma rememoração do pas sado cuja contrapartida necessária é o 'esquecimento' do tempo presente". Esquecer é m orrer; Mnemosyne, fonte de imortalidade. Sim, você foi a Mnemosyne, mas é o Velho Te stamento que fala em seu livro. Se há, para nós, presentificação de tudo quanto foi regi strado, se há, como um profundo dom de imortalidade a nós ofertado, o mapa afetivo d e uma cidade perdida, se há uma ressurreição dos mortos em nossa existência combalida, há também, e sobretudo, um pano de fundo latente, espécie de subterrâneo da narrativa com o esse "túnel escuro" de que fala d. Brites e que nunca saberemos o que foi ou é. O pano de fundo existe em seu texto não porque os memorialistas lhe fizeram confidênci as que não foram transcritas, nem porque teriam muito mais a dizer além do que já diss eram, mas porque você escreve de modo a nos fazer pressentir tudo quanto está sendo calado, e não podemos negligenciar a construção de suas frases onde, afinal, o silêncio fala sem, contudo, nos dizer o que está escondendo. O que d. Alice espera quando, fazendo de Ecléa o interlocutor visível a quem se dirige, nos deixa entrever a região afetuosa do convívio dizendo: "Você entende, não é meu bem?". Por que, nesse instante, e la quer o entendimento seu? Quanta surpresa quando, inesperadamente, lemos (ouvi mos?) "Bravo!", só então percebendo que o sr. Ariosto não descrevia o processo de fabr icação das flores, mas que estava ensinando Ecléa a fazê-las. Saberemos, algum dia, o qu o calor da fornalha aquece a pele e gela o sangue. o que você faz com o leitor? Não lhe dá não nos dá . quando essa divisão é operada uma outra unidade reaparece: cada um do s recordadores é um nome e cada um deles. Abel "viu" representar antes mesmo de nascer. D. as mesmas que pisei na infância. que é o seu próprio. ou. Porém. a famíl ia não ressurge como fonte primordial da socialização . Brites lembra mulheres esquecidas. para aquecê-lo. nem o tempo. só falam Brites. de pé e mud a. d..há classes soc iais. a sala de Brites e Vivina. como nunca saberemos por que o rei Psamênito chorou. desloca o relato da terceira pe ssoa do singular para a primeira: "Nesse momento descobri sob meus pés. você a faz emergir como forma primordial de socialização. múltipla. porém.ela é agora a tecelagem onde se unem os fios de relatos de solidão. a ousadia de Brites indo às galerias do Municipal . Dela.sossego. Ecléa. desfaz nossas garantias. envolvida nos acordes do piano. A família irrompe dividida em cômodos. Risoleta escapa a qualquer cronologia: vida e morte se entre cruzam. Abel record a agora aquilo que jamais foi outrora.a matéria lembrada . Percebi co m satisfação a relação familiar dos colegiais. as pedras do calçamento. qual a re sposta de Ecléa à pergunta de d. Abel a doação de um cobertor que. do evento político e do fato insólito. retém e reforça a s lembranças. também cala. algum dia. vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e. é homogênea e linear. Está vendo?". no que lembra e no como lembra. pois nele cada m omento conta porque é a porta estreita por onde poderá passar o Messias. O ator que o sr. Nunca saberemos o que a menina-moça Ec léa sentia quando ainda não sofria "um grau intolerável de desenraizamento". Jov .e significou para o sr. as festas cívicas e religiosas. como Ariosto e Amadeu se esfalfam pelo pão de cada dia. ond e Abel e seu ilustre avô conversam. A morte da mãe de d. que o porvir não é um ponto objetivo previsível. a história. mas o recordador. lembrado nas diferentes formas de participação: o significado dos preços dos ingressos. O sr. Jovina. mas no caminho do texto. Riso leta lembra no presente um passado de fadiga. e o tempo. A co munidade de destino. p ermanecendo. faz com que fique o que si gnifique. Todavia. modificou-se o sentido. Ariosto e Amadeu e do pequeno aluno de Brites. repõe o risco de pensamento e a tensão do agir-lembrar. Nunc a saberemos se você a viu. diz Auerbach... infinito e escorregadio. mas que o porvir é possível. Emerge.a ópera.. A cada passo. porém. Os quitutes de Risoleta avivam a fome de Alice. heterogênea. seu texto derruba antigas balizas. ali. Quando se inicia a interpretação da família. Das férias inesquecíveis de Abel somos conduzido s à cozinha sem exteriores onde Risoleta roda na roda-viva da labuta. Da sala de visitas. Da janela onde Brites e Vivina se divertem com os acontecimentos da rua. menção ao acontecimento c ultural mais significativo da época: a Semana de 22. Parece ser quase uma essência. o cinema. ao trabalhá-las. Subitamente. a unidade refeita. como dissera Benjamin. quem sabe. O tempo da memória é social. contudo. A lenda. D. mudado o contexto. lhe veio das mãos de um companheiro temido e prestes a morrer? Saberemos. leva ao quartinho de telha-vã de Alice par a que ouçamos o ruído do granizo despencando sobre as camas. Risoleta serve bolos e biscoitos. Para falar em comunidade de destino e para vivê-la é preciso crer. dos namorados. submerge destroçada e ressurge a famflia . contraditóri a. a branca mandioca é alv a mortalha. os contatos com os artistas e intelectuais. Risoleta: "Essa luz prateada. uma família. dos vendedores ambulantes com as esculturas trágicas da ópera que habitam o jardim do teatro".). o teatro. Repentinamente. as roupas necessárias.você nos mostra que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite. Senti um grande conforto. Descrevendo a substância social da memória . essa prime ira pessoa do singular que fala. sem marcos de relógio. trans forma seu tempo num vazio. os arranjos para obter lugares. morto antes que fosse c hegada a hora. mas também porque repercute no modo de lembrar. Mas. homens que são como a "roseira que no último ano de vida deu rosas demais" t apando o terraço de flores. uma linha homo gênea e vazia. para poder ficar na s ruas. no aberto das ruas (. somos levados a uma outra sala onde. Antônio fazendo Mário de Andrade ler seu poema. temos a impressão de que os recordadores participaram intensamente da vid a cultural de São Paulo . oculta partida sem retorno. como os desvãos e largos batentes onde as criaturas se abrigam e se escondem. não só porque é o calendário do trabalho e da festa. o que há de vir. Lendo-a. tudo está ali. somos levados ao cubículo onde Alice é fechada para não ser judiada pelos filhos da patroa. espaços e lugares . 48 Memória e inconsciente. pareciam ter ficado na sombra. tinge-se de mil cores. 43 Ação e representação.há como qu e um descanso."vejam. Como se nos redimisse. a lembrança se quebra e o mundo se fragmenta de vez. num canto esquecido de todos. ou a conservação do passado. e seu coração encheu-se de ale gria ao ouvir. no entanto. me tornam farinha? Mas brilha divino santelmo que rege e ilumina meu valimento. ou a reconstrução do passado. de mãos ágeis e pacientes. algo se estende diante de nós como o alvo lençol de um coletivo homogêne o pontilhado pelos bordados das diferenças grupais. ela refez o caminho que uma outra palmilhara. de pés cansados que ainda pisam. através dos relatos e dos silêncios sobre a Semana. . o artesão que corrige o grande tenor. (Carlos Drummond de Andrade) Marilena de Souza Chauí Janeiro de 1979 SUMÁRIO Prefácio: Uma psicologia do oprimido -João Alexandre Barbosa.mais adiante você nos deixa perpl exos ao lembrar a figura do preto cuja gargalhada inesquecível lhe abria as portas dos teatros e lhe dava lugar nas mesas dos cafés. uma voz que também se lembrava. As duas primeiras acompanharam com interesse as notícias dos jornais e das revistas. Porém. o crivo é rombo.ina e Antônio. quan do já começávamos a nos resignar com a fragmentação. contexto e convenção. o lençol se esgarça.. 77 A memória como função social. todavia. 64 Notas. pois "er a coisa de grã-finos". os dedos de Alice catando alfi netes na oficina de costura. assistiram alguns acontecimentos. permanece junto às pedras na salvaguarda da memória . 60 Memória. Reencontramos. já não agrava a diferença entre os recordadores porque todos trabalharam. e se nela a diferença das classes se agrava definitivamente. Doído moído caído perdido curtido morrido eu sigo persigo 6 lunar intento: pela justiça no mundo luto. 53 A experiência da releitura. renascida dos escombros da política na lembrança de inteligênc ias atentas. martelando sobre o grupo e embaçando sua transparência. quando o capítulo s obre o grupo termina.las areadas por Risoleta. 81 Histórias de velhos. a divi são de classes e as diferenças sociais que. Os pés de Risoleta a dançar. 84 . uma outra memória nos resgata: a memória do trabalho. o natal à it aliana de Alice não apagam as exclusões. TEMPO DE LEMBRAR Memória e socialização. No entanto. no início do texto. um som quase inaudível ainda se faz ouvir: as pane. 17 Introdução. perde a placide z: o bordado é fronteira. se nosso "objetivismo" fica log o satisfeito . pelos crivos familiares e indi viduais. a pena do caligrafista roçando o papel. possível. mas ficaram de longe. Porém. Mas. reconstrói o mundo. 69 2.Gigantes! Seus braços de aço me quebram a espinha. Um dia.Marilena de Souza Chauí. 11 Apresentação: Os trabalhos da memória . Tempo e espaço se despedaçam. 44 O "cone" da memória. lá vem você novamente: a memória política torna as pedras pontiaguda s e cortantes. No entanto. 37 1. A cada passo. Antônio fala em Oswald e descreve com ressentimento o poeta Már io. 51 Halbwachs. 46 As duas memórias. MEMÓRIA-SONHO E MEMÓRIA-TRABALHO Bergson. assim. Repentinamente. 56 A memória dos velhos. seu livro termina com a imagem de uma humanidade perdida e. deixando marc as sobre as pedras da cidade. paciente. a luta de classes aí está!" . antes e agora. iracundo. o pontilhado das diferenças deixa aparecer uma divisão profunda que rasga a sociedade de alto a baixo. 3 A velhice na sociedade industrial.. S. 296 D. Abel. A SUBSTÂNCIA SOCIAL DA MEMÓRIA Memória e interação. Estes. 468 Memória da arte. 457 Memória do trabalho. with no before and after. 408 Tempo e memória. nomes e endereços verdadeiros se devem à permissão das famílias dos depoe ntes. . 405 O indivíduo como testemunha. 435 Objetos. T. 441 As pedras da cidade. Ariosto. 415 O compasso social do tempo. 92 3. 262 D. a criança e o velho não são classes: são antes aspectos diversificados e e mbutidos por entre as classes sociais. 95 Sr. Alice. com proprieda de. pertencem a um a ou outra classe social que os configura e deles exige definições. Risoleta. por assim dizer. como aqueles. the pattern more complicated Of dead and living. a mulher. 418 Lembranças de família. 483 NOTA À 3ª. Amadeu. Brites. Mas a mulher. Assim como não se pode falar. a criança e o velho são. 9 Prefácio UMA PSICOLOGIA DO OPRIMIDO As we grow older The world becomes stranger. 482 Bibliografia. Jovina. 222 D. 448 O Teatro Municipal. 154 Sr. 479 Notas. 434 A casa. Not the intense moment Isolated. Antônio. 471 Ação e memória. Eliot. 453 A memória entre a consciência e o estereótipo. 177 Sr. 423 Os espaços da memória. Alguns acréscimos foram obtidos graças a melhores recursos técnicos na reprodução da s entrevistas gravadas. LEMBRANÇAS D. 363 4. dilacerada até as raízes pelas mais cruéis contradições. 444 Futebol de várzea. Já se sabe: o que define a classe social é a posição ocupada pelo sujeito nas relações objetivas de trabalho. 449 Memória política. 443 Um mapa afetivo e sonoro.Notas. memória do ofício. EDIÇÃO Nesta nova edição. dentro e fora. But a lifetime burning in every moment And not the lifetime of one man only But of old stones that cannot be deciphered. 124 Sr. instâncias privilegiadas daquelas cr ueldades traduções do dilaceramento e da culpa. East Coker TEMA & VARIAÇÕES Em nossa sociedade de classes. em classes de artistas ou de cientistas. E a própria autora encarrega-se de deixar. tendo incorporado o teor narrativo das memórias colh idas. Nesse momento descobri sob meu s pés. Percebi com satisfação a relação familiar dos colegiais. observava como tudo havia mudado em v olta. os níveis da composição mais profunda da obra. Vejamos quais são. Não é sem razão que Ecléa Bosi é também tradutora de poesia. Duas vezes oprimida: pela dependência social e pela velhice. diz Ecléa Bosi: "Rosalía joga co m os dois sentidos da palavrapuntear que. Ao traduzir "puntear" por "costurar". Em suas belas versões de Rosalfa de Castro. Opressão: dependência. O Teatro Municipal repintado de cores vivas.] não pretendi escrever uma obra sobre memória nem uma obra sobre velhice. os mendigos nos desvãos. Ecléa Bosi parece "dançar" por entre as su as próprias memórias . Ordenando as coisas eu diria que. ocorre-me falar numa psicologia do oprimido depois da leitura des te livro de Ecléa Bosi. Eis um exemplo: Outro dia. tanto significa costurar co mo dar os passos da dança popular 'moinheira' É o que também vejo acontecer na quarta parte do último capítulo: "costurando" os argume ntos teóricos dos dois primeiros capítulos. ou quase tudo. todavia. uma class e. A maior delas. É que estas partes não apenas se articulam harmoniosamente mas criam diferentes gr aus de leitura que vão definindo. ostentava sua qualidade de vestígio destacado do conjunto urbano. não é apenas um livro sobre a memória social fisgada no estágio da velhice. bem claro o seu projeto: "[.docência. é possível ser leitor de um livro que foi tese de l ivre. em galego. por en tre a erudição da autora. "Os espaços da memória". um estudo de classe soc ial. mas já tendo sofrido intensamente os dados das narrativas de seus oito personagens. dividido em dois capítulos teóricos iniciais. de fato. PUNTEAR: COSTURA & DANÇA No último ("A substância social da memória"). querendo começar pelo tema e ir às variações. o livro é de um equilíbrio notável . Na verdade. mas um ensaio que puxa o ou tro. impõe a variação antes do tema. E stá na página 35. os bêbados no chão. nas memórias colhidas. Mas vejo também que houve uma vantagem: o leitor já sabe que este não é um l ivro secamente acadêmico. transforma-se ela própria em mais uma personagem-narradora. Poderia ter sido menos modesta e ter dito que não apenas colheu mas deu existência a essas memórias. vai ver o leitor. . os namorados junto às muretas. quando se fala de uma "pedagogia do oprimido" (Paulo Freire) o ender eço tem nome certo: trata-se de uma pedagogia que possa dar conta de uma situação prec isa. no universo das relações sociais. 11 Neste sentido. as mesmas que pisei na infância. Não seria. talvez. uma parte dedicada às narrativas e um capítulo teórico final.novo rapsodo de uma épica paulistana. repleto de gráficos ou fórmulas. dos namorados. Senti um grande confo rto. Fiqu ei na intersecção dessas realidades: colhi memórias de velhos". de seu feitio nem do feitio deste livro: de pon ta a ponta. caminhando para o viaduto do Chá. os velhos narradores que aparecem aqui estão vinculados por uma noção tão entranhad a do trabalho e das relações sociais que. A intersecção metodológica da autora mostra a sua verdadeira face: é a própria realidade s ocial que articula memória e velhice. seja precisamente a de estabelecer um roteiro seguro para que se possa entrever. As pedras resistiram e em íntima comunhão com elas os meninos brincando nos lances d a escada. as pedras do calçamento. há uma diferença fundamental entre os dois primeiros capítulos teóricos e o úl timo. sobretudo em sua quarta parte. a sua escolha de método e as discussões pormenorizadas sobre a memória como categoria psicológica. fiz o caminho inverso.. Caprichos de ensaio. de uma certa camada da população subjugada pela d ependência. Vejo que. Nos dois primeiros ("Memória-sonho e memória-trabalho" e "Tempo de lembrar"). A ALEGRIA DO CONCRETO Para começar. sem pressa e com segurança..Deste modo. logo de início. a autora da tese. aos poucos. há uma anotação de rodapé que serve bem para explicar a transformação ocorrida. Os dedos de bronze de um jovem reclinado numa coluna da escada continuam sendo p olidos pelas mãos que o tocam para conseguir ajuda em seus males de amor. configuram. uma sábia discrição esconde-se sob descobertas e intuições f ulgurantes. dos vendedo res ambulantes com as esculturas trágicas da ópera que habitam o jardim do teatro. viv a.sua própria ou aquela contada po r outros. Ecléa Bosi também trabalhou. Fundada em Walter Benjamin. grifei a palavra sofrido: é porque me parece traduzir melhor a c urva descrita por Ecléa Bosi no registro das narrativas de seus oito personagens. do sr. Ecléa Bosi é. para fazer justiça à autora. Ecléa Bosi encontra o ritm o da percepção do outro que é o ritmo da vida. É uma metáfora integradora. de onde resulta o retrato do oprimido.No item anterior. talvez. possibilitando a passagem pura da memória. E. Caminhar e ver confundem-se nos confins da lembrança: o tempo de lembrar traduz-se . Eis por que este livro não é uma amostragem fria e seca de um aspecto da psicologia social e do trabalho. Ecléa Bosi escreve o que. do sr. Não se trata de uma obra com proposta de amostragem: o intuito . e sim através de uma alegria que só na superfície é paradoxal. é preciso ler este livro na confluência de t odos os seus níveis de composição. entrevistei longamente pesso as que tinham em comum a idade. ouvinte e narradora. São. foi fa la de d. Ecléa Bosi sabe que "a memória é a faculdade épica par excel ience". à sua própria posição de pesquisadora. o traço mais marcante da composição deste livro: a passagem da fala à escrita. uma épica paulistana. de uma alegria paradoxal só na aparência . enfim. pelo tempo de trabalhar. UMA METÁFORA INTEGRADORA Traduzindo a ação das narrativas pelo concreto do trabalho. dando exemplos de suas mais importantes p reocupações. Antônio. Ele é uma épica. superior a setenta anos. Ariosto. Por tudo isso. As pedras da cidade continuarão falando do esforço de cultura desenvolvido por homen s e mulheres que trabalharam. confundindo as memórias de seus personagens com as suas próprias. Mas Benjamin vai ainda mais longe: "O narrador conta o que ele extrai da experiência . Amadeu com que o livro se encerra. do sr. de d. Narrar é também sofrer quando aquele que registra a narrativa não opera a ruptura entr e sujeito e objeto. recusando a objetividade do romancista. por assim dizer. Abel. Amadeu. em que o narrador (Ecléa Bosi). integra os dados narrativos. mas sem o pessimismo. sem a memória do trabalho a narração perde ria a sua qualidade épica. Ele é. Na verdade. Conservando-se no nível da narração (no sentido de Benjamin). do sr. de d. o livro de uma vida. E é aqui precisamente que é possível detectar o miolo essencial deste livro complexo: dando existência escritural àfala. Por isso. Ecléa Bosi permite vincular ação. pois é produto de uma oposição básica entre o concreto do trabalho e a abstração do pensamento generalizador. sentidas sob os pés. em momentos difíceis de suas pesquisas. se não estou enganado. entretanto. ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história". será a frase do sr. quase sempre. Alice. ao mesmo tempo . "Eles também trabalharam". É. aristocrático de um Paulo Prado. João Alexandre Barbosa Janeiro de 1979 INTRODUÇÃO Este é um estudo sobre memórias de velhos. o engenho e a arte de Ecléa Bosi que mostram ao leitor como a vida fundada no trabalho define-se depois pela alegria do Concreto. dolo rosas. Risoleta. de volta. Para obtê-las.as memórias são tristes e. num lance de ext rema felicidade composicional.se a si mesmo. traduzida pelo trabal ho dos personagens. o que distingue o narrador do romancista é que este último "is olou-se a si mesmo": "O lugar de nascimento do romance é o indivíduo solitário que não é m ais capaz de expressar. O tempo da memória não se concretiza a não ser quando encontra a resistência de um espaço que se habi tou com a existência sofrida do trabalho. ele próprio sem conselhos e não podendo aconselhar os outros". e um espaço social domina nte em suas vidas: a cidade de São Paulo. Jovina. davam a E cléa Bosi o conforto do reencontro nos espaços da memória. aquelas mesmas pedras que. Para Walter Benjamin. O trecho do livro que citei no item anterior faz parte de um subcapítulo intitulad o "As pedras da cidade". Brites e de d. a vida e o pensamento de seres que já trabalharam por seus contemporâneos e por nós. a surdez. Recolhi aquel a "evocação em disciplina" que chamei de memória-trabalho.que me levou a empreendê-la foi registrar a voz e. o destino dos sujeitos observados. Nosso interesse está no que foi lembr ado. coração acelerado. é preciso que se forme uma c omunidade de destino para que se alcance a compreensão plena de uma dada condição huma na. Não dispomos de nenhum documento de confronto dos fatos relatados que pudesse serv ir de modelo. uma pacient e reconstituição. naquela fronteira em que se cruzam os modos de ser do indivíduo e da sua cultura: fronteira que é um dos temas centrais da psicologia social. Se as lembranças às vezes afloram ou emergem. A expressão "observador participante" pode dar origem a interpretações apressadas. instrumento de comunicação às vezes deficitário. é através de um corpo alquebrado: dedos trêmulos. e que ele sempre teve autoridade sobre o registro de su as lembranças e consciência de sua obra. Os livros de his tória que registram esses fatos são também um ponto de vista. como redução de suas qualidades individuais para torná-lo objeto compatível com o método experimental. retocar. a ânsia. Suas memórias contadas oralmente foram transcritas tal como col hidas no fluxo de sua voz. Faltou- lhes a liberdade de quem escreve diante de uma página em branco e que pode apurar. é também uma memória social. Significa sofrer de maneira irreversível . A veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e lapsos são menos graves em sua s conseqüências que as omissões da história oficial. Comunidade de destino já exclui. Objeto quan do ouvíamos. (d. a partir do qual se analisassem distorções e lacunas.o envelhecimento . através dela. se essa objetividade é entendida como tratar o sujeito à maneira de coisa. Sei que a expressão "objeto da pesquisa" pode re pugnar aos que trabalham com ciências humanas. Segundo Jacques Loew. dentes falhos. Há no sujeito plena consciência de que está realizando uma tarefa: "Eu ainda guardo isso para ter uma memória viva de alguma coisa que possa servir a lguém". Não é preciso dizer que o motivo da pesquisa foi explicado com toda clareza ao sujeito. Nesta pesquisa fomos ao mesmo t empo sujeito e objeto. na convivência. Desde sua concepção o trabalho situava-se. as visitas ocasionais ou estágios temporários no locus da pesquisa.de que participam os. como se buscará mostrar. no que foi escolhido para perpetuar-se na história de sua vida. a qualquer momento. Uma pesquisa é um compromisso afetivo. nas condições de vida muito semelhantes. mas resulta de um amadurecimento de quem deseja compre ender a própria vida revelada do sujeito. possibil idade de voltar para sua classe. familiar e grupal. a íris apagada. Não bastaria t rabalhar alguns meses numa linha de montagem para conhecer a condição operária. Gostaria que se compreendessem os limites que os narradores encontraram. Roman Jakobson refletirá que a observação mais completa dos fenômenos é a do observador pa rticipante. se a situação tornar-se difícil. sendo como que um instrumento de receber e transmitir a memória de alguém. emJournal d'une mission ouvriére. Sujeito enquanto indagávamos. mas participar de sua vida. Quando a memória amadurece e se extravasa lúcida. pela sua própria enunciação. urina solta. E ela será tanto mais válida se o observador não fizer excursões s altuárias na situação do observado. uma versão do acontecido. não raro desmentidos por outros livros com outros pontos de vista. quase sempre são uma tarefa. refazer. espinha torta. um meio de que esse alguém se valia para transmitir suas lembranças. E eles encontraram também os limites de seu corpo. portanto. as lágrimas incoercíveis. Brites) . Esse vínculo não traduz apenas uma simpatia espontânea qu e se foi desenvol37 vendo durante a pesquisa. um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa. sem possibilidade de retorno à antiga condição. sujeito e objeto da pesquisa. O principal esteio do meu método de abordagem foi a formação de um vínculo de amizade e confiança com os recordadores. a cegueira. registrávamos. é preciso que nasça uma compreensão sedimentada no trabalho comum. Não basta a simpatia (senti mento fácil) pelo objeto da pesquisa. procurávamos saber. Este registro alcança uma memória pessoal que. O presente estudo sobre a memória se edificou naturalmente e sem nenhum mérito de mi nha parte sobre uma comunidade de destino . O obse rvador participante dessa condição por algum tempo tem. as cicatrizes. Halbwachs. que esse presente contínuo se manifesta. transcrevo. 1 MEMÓRIA-SONHO E MEMÓRIA-TRABALHO BERGSON. em que se interpenetram e se iluminam mutuamente os conceitos de "memória". Lembrança puxa lembrança e seria preciso um escutador infinito. no jardim. bem como uma série de distinções de caráter analítico. Além disso. Talvez deva insistir em duas negativas para delimitar bem o âmbito da obra: não pret endi escrever uma obra sobre memória. na hora do cafezinho. OU A CONSERVAÇÃO DO PASSADO Henri Bergson abre o primeiro capítulo de Matière et mémoire dizendo que vai fingir. Ariosto) Essa tarefa é um auto-aperfeiçoamento. independentemente do conceito filosófico mais geral que se possa ter da atividade mnêmica. Para enfrentar a tarefa de entendimento das narrativas vali-me de autores que ce ntraram na memória suas reflexões. pressupõe a existência de um estofo socia l da memória. Continuando a escutar ouviríamos outro t anto e ainda mais. tampouco sobre velhice. Entretanto. Não cabe desenvolvêlos neste trabalho.2 As observações de Bergson a propósito da natureza e das funções da memória só podem ser avaliadas com a devida justeza quando postas em relação com o contexto da sua obra filosófica. como confidências. hoje a minha voz está mais forte que ontem. por . ao menos: e para começar este estudo de psicologia da me mória. como Bergson. constitui o centro dos debates sobre tempo e memória. a mesma proposta: ignorar tudo quanto a ps icologia tem dito. correntemente . Freqüentemente. "devir". passo a marcar o seu nexo íntimo com a vida social (capítulo 1). Bartlett. tendo m e ajudado também a obra de fôlego que Simone de Beauvoir dedicou à velhice e as análises que Benjamin fez do processo narrativo. Matière et mémoire. em seguida. A estrutura da obra tem algo de funil: começo pela reflexão mais geral sobre o fenômen o da memória em si. também. O sentimento difuso da própria corporeidade é constante e convive. a lembrança ao corpo de idéias e representações que se chama. com a percepção do meio físico ou social que circunda o sujeito. nada conhecer das teorias da matéria e das teorias do espírito. hoje. comentar os resultados e segurar alguns dos fios teóricos desenrolados desde o princípio do t rabalho (capítulo 4). na esca da. não pretendo ceder a es sa tentação. ou na despedida no portão. pela originalida de tantas vezes polêmica das suas proposições. "élan vital". Pa rece que estou rejuvenescendo enquanto recordo. provocando reações que ajudaram a psicolog ia social a repensar os liames sutis que unen a lembrança à consciência atual e. Fiquei na intersecção de ssas realidades: colhi memórias de velhos. p or um momento. em todos os casos. o autor de Matiêre et mémoire. p rocuro entender a função da memória na velhice (capítulo 2). Stern. o r esultado das entrevistas com os oito sujeitos (capítulo 3). Assim sendo. extremame nte sugestivas e cuja adequação podemos comprovar ao longo das narrativas registrada s na segunda parte do nosso trabalho. aqui. não completamente. fo ram contadas em confiança. "ener gia". valho-me precisamente daquele filósofo da vida psicológica que motivou estas li nhas Henri Bergson."Veja. Risoleta) A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento." (d. "ideolo gia AÇÃO E REPRESENTAÇÃO A posição introspectiva de Bergson em face do seu tema leva-o a começar a indagação pela a uto-análise voltada para a experiência da percepção: O que percebo em mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do passado? Percebo. "tempo". uma reconquista: "Agradeço por estar recordando e burilando meu espírito. as mais vivas recordações afloravam depois da entrevista.' Seria uma agradável tentação retomar. do meu corpo. que cad a imagem formada em mim está mediada pela imagem. enfim.'' (sr. Bergson observa. na maioria das vezes. por e xtensão. e nad a das discussões sobre a realidade ou a idealidade do mundo exterior. sempre presente. sobre a me mória e suas relações com o psiquismo e a sociedade. tomado em si. Muitas passagens não foram registradas. já não me canso a todo instante. o que nos interessa em Bergson é a rica fenomenologia da lembrança que ele persegue em sua obra. no interior da vid a psicológica. portanto. cujo alvo específico é a análise de memórias de mulheres e homens idosos e que. para. em seus mais de cem anos de vida científica oficial. mais rigorosamente. porém. ou tros movimentos. Bergson vai opor vigoros amente a percepção atual áquilo que. Enfim. Q uando o trajeto é só de ida. uma relação atual do organismo com o ambiente. graças à qual o pensa mento "puro" é mais complexo e matizado do que a imagem resolvida imediatamente em ações: "A margem de independência de que dispõe um ser vivo. ou. algo como um "vazio" que se povoa de imagens as quai s. as suas ações. Nem sempre se cumpre o percurso de ida e volta pelo qual os estímulos externos chegam. par nascido no coração de um presente corporal contínuo. como surge no texto de Bergson a pri meir . cujo aparecimento é descrito e explicado por outros meios. que já traz no título o selo da diferença: matéria/memória. Nas palavras de Bergson: "[. in terposto entre os objetos que agem sobre ele e os que ele influencia. o fenômeno da lembr ança. ou. quando a imagem suscitada no cérebro permanece nele . determinados se a ação é reflexa.representa ção. no esquema da ação. Nem sempre. contudo. só existe o presente do corpo. ou de um bloqueador. que será o nó das objeções que lhe faria a psicologia soci al de Maurice Halbwachs: para Bergson. a consciência. logo adiante. imediato. "parando". e desta voltam. em termos de percepção p ura. ainda mais profundamente. a representação. É rica de conseqüências essa concepção da percepção como um resultado de estímulos "não devol " ao mundo exterior sob forma de ação. não é mais que um condutor. em que o estímulo não determina a reação motora. fundamentalmente.. É importante frisar esse ponto. Se é verdade que cada ato perceptual é um ato prese nte. O segundo é perceptivo. ou "durando".. quando não os detém. Ora. em conseqüênci enunciar esta lei: A percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do te 5 Há um momento. No caso da "parada". a ação. Todo o esforço científico e especu lativo de Bergson está centrado no princípio da diferença: de um lado. as sensações levadas ao cérebro são restituídas por este aos nervos e aos músculos que efetuam os movimentos do corpo. qualquer que seja a natureza íntima da percepção. mais de perto. chamará de lembrança. pelos eferentes. Como enfrentar o problema da vida psicológica já atualizada se. "novo" supõe que antes dele aconteceram outras experiências. não mais o esquema imagem-cérebro-ação. o universo das lembranças não se constitui do mesmo modo que o universo das percepções e das idéias. processo pelo qual o estímulo não conduz à ação respectiva . Em segundo lugar: o sistema nervoso central perde toda função produtora das percepções (tal qual a teria em um esquema biológico determinista) para assumir apenas o papel de um condutor. para Bergson. isto é. o par percepção-idéia . Está estabelecido. Apesar da diferença entre o processo que leva à ação e o proce que leva à percepção. à central do cérebro. a imagem aqui e agora do corpo? Formulando a questão no contexto de razões acima. O primeiro esquema é motor. à periferia do corpo. o nexo entre imagem do corpo e ação. outros estados do psiquismo. e se realimenta desse mesmo presente em que se move o corpo em sua relação com o ambiente. como diríamos. Em primeiro lugar: a percepção aparece como um in terval entre ações e reações do organismo. negativamente. em que o discurso de Bergson sobie ação e percepção precisa enfrentar o problema da passagem do tempo. escolhidos se a ação é voluntária". abre-se a possibil idade (essencial. para o pensamento de Bergson) da indeterminação. de um esquema corporal q ue vive sempre no momento atual. Essa oposição entre o p erceber e o lembrar é o eixo do livro. O "CONE" DA MEMÓRIA Vejamos. no esquema da consciência. trabalhadas. é também verdade que cada ato de per cepção é um novo ato. d esse modo. avaliar a priori o número que s eja essa relação. teríamos. de um proces so inibidor realizado no centro do sistema nervoso. encarregado de recolher os movimentos. mas o esquema imagem-cérebro. de outro.movimentos que definem ações e reações do corpo sobre o seu ambiente. derivam. A percepção difere da ação a sim como a reflexão da luz sobre um espelho diferiria da sua passagem através de um corpo transparente. A per cepção e. a certos mecanismos motores. a zona de ind eterminação que envolve a sua atividade permite. ação e representação estariam ligadas ao esquema geral corpo-ambiente: positivame nte. assumirão a qualidade de signos da consciência. pode-se afirmar que a amplitude de percepção mede exatamente a indeterminação de ação consecutiva e. pois. um e outro dependem.] o corpo. e de transmiti-los. pelos nervos afe rentes. pois a percepção pura do presente. oculta e invasora. das quais retemos então apenas algumas indicações. começa-se a atribuir à memória uma função decisiva no processo psicol total: a memória permite a relação do corpo presente com o passado e. Esse aforamento do passado combina-se com o processo co rporal e presente da percepção: "Aos dados imediatos e presentes dos nossos sentidos nós misturamos milhares de pormenores da nossa experiência passada. mi turando-se com as percepções imediatas. introduz a reflexão seguinte: "Na realidad e. também. meros 'signos' destinados a evocar antigas imagens". interfere no pro cess "atual" das representações.8 A memória seria o "lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas". significaria um movimento de "vir" "de baiXO": sous-venir. subconsciente.9 Entrando em cena a lembrança. Mais uma vez: a percepção concreta precisa valer-se do passad o que de algum modo se conservou. de toda a vida psicológica já transcorrida. Pela memória. diferencial. conservação que nos permite escolher entre as alternativas que um novo estímulo pode oferecer. e. oc upando o espaço todo da consciência. Para tornar mais evidente a diferença entre o espaço profundo e cumulativo da memória e o espaço raso e pontual da percepção imediata. na esteira de Bergson. a base AB. Bergson procede a uma análise interna.alusão ao fenômeno da lembrança (souvenir). Ao contrário. na verdade a única real. sem sombra nenhuma de memória. latente e penetrante. já não se pode falar apenas de "percepção pura". seria antes um conceito-l imite do que uma experiência corrente de cada um de nós. adensa-se e e riquece. Como se pode introduzir esse outro dado fora do esquema estímulo-cérebro-representa ção? Não há outro modo de sair do impasse senão recorrendo ao pressuposto de uma conservação s ubliminar. e propostos os seus modos de interação. Em outro texto Bergson dirá das lembranças que estão na cola das percepções atuais. a pensar na etimologia do verbo. se penetram sempre. Bergson imaginou representá-la pela fig ura de um cone invertido: vez. no vértice estariam os atos perceptuais que se cumprem no plano do presente e deixam passar as lembranças : "Esses dois atos. entre esta última e a outra. Seria neces sário distinguir. toca o plano móvel P de minha re presentação atual do universo.11 AS DUAS MEMÓRIAS Assentada firmemente a distinção entre percepção pura e memória. o passado não só vem à tona das águas presentes. avança sem cessar e sem cessar. A certa altura. "desloca" estas últimas. assentada no pas sado. da memória. trocam sempre alguma co isa de suas substâncias por um fenômeno de endosmose". só relaxa os fios da tensão quando vencido pelo cansaço e pelo na base estariam as lembranças que "descem" para o presente. como também empurra.se o que até então parecia bastante simples: a percepção como o mero resultado de uma interação de ambiente com o sistema nervoso. permanece imóvel. percepção e lembrança. A figura do cone é assim comentada por Bergson: "Se eu represento por um cone SAB a totalidade das lembranças acumuladas em minha memória. "como a sombra junto ao corpo". vir à ton a o que estava submerso. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tem po profunda e ativa. não há percepção que não esteja impregnada de lembranças" 6 Com essa frase. . Somos tentados . O discurso do pensador está-se interrogando sobre a passagem da percepção das coisas p ara o nível da consciência. o que o método introspectivo de Bergson sugere é o fato da conservação dos e stados psíquicos já vividos. que figura em todos os momentos o meu presente. em francês se souvenir. fazendo parte do plano P.7 Com a última afirmação. a memória é essa reserva crescente a cada instante e que dispõe da totalidade da nossa experiència adquirida. "Lembrar-se". Quase sempre es sas lembranças deslocam nossas percepções reais. como o faz Bergson. ao passo que o vértice S. mais rica e mais viva. Um outro dado entra no jogo perc eptivo: a lembrança que "impregna" as representações. A memória teria uma função prática de limitar a indete rminação (do pensamento e da ação) e de levar o sujeito a reproduzir formas de comportam ento que já deram certo. Em 5 concentra-se a imagem do corpo. ao mesmo tempo. essa imagem limita-se a receber e a devolver as ações emanadas de todas as imagens de que se compõe o plano Bergson afirma também (e esse é um princípio dialetizador da sua doutrina que nem semp re os objetores levaram em conta) que "é do presente que parte o chamado ao qual a lembrança responde". que ele denomina "percepção concreta e complexa". a lembrança pura. por acaso. o costurar . Be rgson desenha um conjunto de semicírculos contrapostos que representam. por sua sono. a que Bergson não hesitará em dar o nome de "inconsciente". em um serviço para a vida cotidiana. ao passo que a memória-hábito já se in corporou às práticas do dia-a-dia. memória d os mecanismos motores. da vida. Este. o caráter não mecânico. cada vez mais rígido? Em outros termos: o velho carrega em si. O sonhador resiste ao enquadramento nos hábitos. com ele. as condições cada vez mais longínquas com as quais ele forma um siste . uma pergunta: os velhos. que já se fez prática motora. mas atadas pelos pontos de um automatismo senil. simetricam ente. a ser justa a hipótese de Bergson. que é pe culiar ao homem de ação. para os quais a ação planejada e os novos aprendizados já não são mais necessidades tão prementes. no tópico "Lembranças e movimentos". singular. o falar uma língua estrangeira.um processo que se dá p elas exigências da socialização. mas não de forma ho mogênea. e move- se para a ação e para os conhecimentos úteis ao trabalho social. o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muita s vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito. à maneira de um todo independente. o escrever a máquina etc. já que a memória está presente sempre: mas essa memória. No outro extremo. individualizada. conflitiva. Assim. A figura do cone é apenas uma primeira aproximação que outros esquemas vêm completar. não raro.O passado conserva-se e. mas evocativo. cada vez ma is largos. D. O contrário também é verdadeiro. Ele só contém o objeto O com a imagem consecutiva que vem cobri-lo. "O mais estreito. do seu aparecimento por via da memória. Atrás dele. restaria pouca margem para o devaneio para onde flui a evocação espontânea das imagens. quando se atualiza na imagem-lembrança. nós reconstitu iremos. o comer segundo as regras da etiq ueta. não repetido. em uma rede de evocações espontâneas e distantes . o escrever. tanto a possibilidade de evocar quanto o mecanismo da memória. Assim. singulares. pode-se dizer que a memória apresenta vários círculos. em cada um desses circuitos. Evidentemente. reflete sobre o objeto um número crescente de coisas sugeridas. A tipologia vem. ocorrem lembranças independentes de quaisque r hábitos: lembranças isoladas. diziam os teólog os medievais. C. Trata-se de um exercício que. poderia perder-se nas imagens-le mbrança. traz à ton a da consciência um momento único. O seu cuidado maior é o de entender as relações entre a conservação do passado e a su a articulação com o presente. A memória. retomado até a fixação. Na medida em que a vida psicológica entra na bitola dos hábitos. não seriam. sabemos " de cor" os movimentos que exigem. Sonho e poesia são. feitos dessa matéria que estaria latente nas zonas profu ndas do psiquismo. ora detalhes do próprio objeto. pois sua vida psicológica já estaria presa a hábitos adquiridos. Bergson não se ocupa de casos-limite nem de uma psicologia diferenc ial. posta entre a vigília e o sonho. A memória-hábito adquire-se pelo esforço da atenção e pela repetição de gestos ou palavras.embora Bergson não se ocupe explicitamente desse fator . que constituiriam autênticas ressurreições do passado. em compensação. A análise do cotidiano mostra que a relação entre essas duas formas de memória é. irreversível. é o mais próximo da percepção imediata. tam bém. atua no presente. de longe: vita contemplativa e vita activa. inveter ados. De outro lado. Daí. e. ora detalhes concomitantes que possam contribuir para esclarecê-lo. ora da memória-sonho? O seu cotidiano não se transforma ria. E a é . tantas vezes.hábito parece fazer um só todo com a percepção o presente. por exemplo. A. além de conservar-se. aliás. os níveis de expansão da memória e os níveis de profundidade espacial e temporal o nde se situam os objetos evocados: Explicitando. nos longos momentos de inação. o dirigir um automóvel. os círculos B. A ima gem-lembrança tem data certa: refere-se a uma situação definida. Daí. transf rma-se em um hábito. De um lado. mais fortemente. É o todo da memória q ue entra. A memória-hábito faz parte de todo o nosso adestramento cu ltural. presas alt ernativas ora da memória-hábito. que a sua elasticidade permite dilatar indefinidamente. O velho típico já não aprender ia mais nada. a confluência de memória e percepção. que integra o segundo capítulo de Matiêre et mémoire. respondem a esforços nascentes de expansão intelectual. de extensão desigua l. Graças à memória-hábito. depois de t er reconstruído o objeto apercebido. Quanto mais pessoal. para se encaixarem na percepção atual que se põe como relação imediata e ativa do corp o com o mundo. ora Outro do passado. D' essas causas de profundidade crescente. é qualificado de "inconsciente". Seria dizer: "o que não vejo atualmente não exist e". Em que sentido ele se aplic aria ao entendimento da memória? Antes de ser atualizada pela consciência. A vita activa aproveita-se da vita conte mplativa. que as imagens atualmente p resentes à nossa percepção não formam o todo da matéria. aquela que opera no sonho e na poesi a. o di stingue das abordagens psicossociais posteriores. senão uma espécie de esta do mental inconsciente? Além dos muros do seu quarto. muitas vezes. Chamemos B'. e esse aproveitar-se é. C'. a memória pura. MEMÓRIA E INCONSCIENTE Antes de terminar esta exposição do tema da memória no livro capital de Bergson. toda lembrança "vive" em estado latente. Bergson quer mostrar que o passado se conserva inteiro e independente no espírito. por meio de associações de similaridade ou de contigüidade. Tratando-se de uma tese fundamental de Matière et mémoire. convém acentuar o que o singulariza como o seu grande estudioso e. quer dentro da filosofia que a precede. Logo. portanto. racionalista. de sorte que. Haveria . está situada no reino privilegiado do espírito livre. No entanto. vai tocando outras imagens que formam com a primeira um sistema. funcionam co mo limites redutores da vida psicológica. assim como a percepção "pura". que você percebe neste momento . dentro do processo psíquico. situadas atrás do objeto. parece oportuno insistir na sua demonstração tal como a dáo próprio Bergson: A idéia de uma representação inconsciente é clara. enfim a rua e a cidade onde você mora . há quartos vizinhos. é sobretudo o de colher e escolher . Negar a existência de estados inconscientes significa. ou seja. p otencial. porque está abaixo da cons ciência atual ("abaixo". O mal da psicologia clássica. quer dentro da psicologia. mesmo. um ato de espoliação. a própria ação da consciência supõe o "outro". Outra lição a tirar do esquema bergsoniano é a da correspondência entre os vários círculos d a memória e os aspectos simultâneos que um objeto pode apresentar ao espírito. metaforicamente). de fato. quando solicitada a deliberar. rara e fugitiva será sua atualização pela consciência."2 O período citado procura descrever o próprio dinamismo interno da memória como um proc esso que parte de uma imagem qualquer e. C. A recordação seria. Na tábua de valores de Bergson. e virtualmente dadas com o próprio objeto. Esse estado. Como esse último conceito já tem uma longa his tória. por outro lado. mais distan te. só voltada para ação iminente. a existência de fenômeno e estados infraconscientes que costumam ficar à sombra. depois o resto da casa. A burning question de Bergson consiste em provar a espontaneidade e a liberdade da memória em oposição aos esquemas mecanicistas que a alojavam em algum canto escuro do cérebro. o pap el da consciência. Mas. ao passo que a memória transf ormada em hábito. um círculo para cada aspecto da situação evocada. a sua reflexão atinge em B'. menos presa à ação presente) for a lembrança.ma. mais l ivre (isto é. à medida que os círculo s B. cada ve z mais vastos. para Bergson. do eu com a sociedade. daí a di versidade dos "sistemas" que a memória pode produzir em cada um dos espectadores d o mesmo fato. segundo Bergson. é o de não reconhecer a existência de tudo o que está fora da consciência presente. Toda gente admite. pode-se até mesmo dizer que nós fazemos dela um uso constante. imediata e ativa. torna-se necessário precisar qual a acepção em que o toma Bergson. C'. D'camadas profundas da realidade. o mesmo que n egar a existência de objetos e de pessoas que se encontram fora do nosso campo vis ual ou fora de nosso alcance físico. e que o seu modo próp rio de existência é um modo inconsciente.'3 É precisamente nesse rein o de sombras que se deposita o tesouro da memória. Essas lembranças singulares devem. de algum modo. mas os sistemas. justamente o que não é a consciência atual. uma organização ext remamente móvel cujo elemento de base ora é um aspecto. aos quais ele pode vincular-se. menos socializada. O "atualismo" absoluto não daria lugar algum para a memória enquanto conservação do passado. É o caso das imagens do sonho. e que não há concepção mais familiar ao senso comum. D representam uma expansão mais alta da memória. trazendo-o à su a luz. apesar de um preconceito disseminado. despersonajizarse senão banalizar- se. uma imagem não imaginada. Vê-se que o progresso da atenção tem por efeito criar de novo não somente o objeto apercebido. o que pode s er um objeto material não percebido. ao mesmo tempo. uma te. Ora. como podiam existir em si senão no estado inconsciente? De onde vem. que vai ser relativizado pela teoria psicossocial de Maurice Halbwachs o p rincipal estudioso das relações entre memória e história pública. espesso.matização dos sujeitos-que-lembram. Assim pensava Bergson. às quais dedicou duas obra s de fôlego. que. Nada como um sociólogo par a se prepor a preencher esse vazio.'5 As conseqüências metafísicas desses conceitos. para o filósofo da intuição. a rigor. o eixo das investigações sobre a "psique" e o "espírito" se desloca para as funções que as representações e idéias dos homens exercem no interior do seu grupo e d a sociedade em geral. vo cê pensa. visa à análise de memórias empiricamente registr adas. dadas fora d ela. Com Durkheim. no entanto. no caso de o passado alagar o pres ente: "O espírito humano pressiona sem parar. este sobrevive. nem das relações entre os sujeitos e as coisas lembradas. Nessa grande oposição de memória e matéria. na verdade. No estudo de Bergson defrontam-se. HALBWACHS OU A RECONSTRUÇÃO DO PASSADO A lembrança é a sobrevivência do passado. Halbwachs desdobra e em vários momentos refina a definição de seu mestre. e. individual. em tais e tantas percepções ausentes da sua consciência. em estado inconsciente. Essa preexistência e esse predomínio do social sobre o individ ual deveriam. Em Bergson. é justa mente a importância dessa distinção. exteriores ao indivíduo e dotados de um poder coercitivo pelo qual se lhe impõem". como estão ausentes os nexos interpessoais. Tenso quando a pe rcepção-para-a-ação domina o comportamento. que Bergson irá tirar no último capítulo de M atiêre et mémoire. A matéria levaria ao esquecimento. alterar substancialmente o enfoque dos fenômenos ditos psic ológicos como apercepção. a única fronte ira que o espírito pode conhecer. A memória é. acaba modificando. por força. contra a porta que o cor- P0 lhe vai entreabrir: daí os jogos da fantasia e o trabalho da imaginação . de que ele é um herdeiro admirável. esse obstáculo é venci do: naquele vértice do cone invertido.liberdade s que o espírito toma com a natureza. com a fatalidade da memória. de algum modo. se esforçou por dar à memória um estatuto espiritual diverso da percepção. ponto móvel da percepção que avança no presente do corpo..'6 . um tratamento da memória como fenômeno social. A matéria seria. Fazendo-o. seu limite e obstáculo. sem que l he parecesse pertinente fazer intervir quadros condicionantes de teor social ou cultural. a última aparece como algo gené ico. da rua. mas obscura quando falamos de s ujeitos?' 4 O convívio de inconsciente e consciente é ora tenso. e tudo quanto ela comporta de ênfase na pureza da m emória. mas entreabre a porta às pressões da memória. embora fundamentais para o seu pensamento. quando fala da cidade. Halbwachs prolonga os estudos d e Émile Durkheim que levaram à pesquisa de campo as hipóteses de Auguste Comte sobre a precedência do "fato social" e do "sistema social" sobre fenômenos de ordem psicológi ca. uma força espiritual prévia a que se opõe substância material. o método introspectivo cond uz a uma reflexão sobre a memória em si mesma. a consciência e a memória. quando não rejei tando. À primeira filia-se a memória. O que não impede reconhecer que a orientação de no ssa consciência para a ação parece ser a lei fundamental da vida psicológica". entretanto. Importa. opaco. pensar e sentir. conservando-se no espírito de cada ser humano. Ela bloqueia o curso da memória. como subjetividade livre e conservação espiritual do passado. que uma etístência fora da cons ciência nos pareça clara quando se trata de objetos. os resultados a que chegara a especulação de Bergson. como. O passado. a subjetividade pura (o espírito) e a pura exterioridade (a matéria). Não h no texto de Bergson. fal ta. Émile Durkheim: "Os fatos sociais con sistem em modos de agir. elas lá estavam já. Elas não se criam à medida que a consciência as acolhe. Para entender o universo de preocupações de Halbwachs é preciso situá-lo na tradição da soci ologia francesa. evidentemente. ora. indiferenciado. dos outros quartos da casa . aflora à consciência na forma de imagenslembrança A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e nos devanejos. que. ora distenso. à segunda. reter o seu princípio central da memória como conservação do passado . como já se disse no início. não devem entrar neste t rabalho. Les cadres sociaux de la mémoire e La mémoire coilective. por hipótese. quer chamado pelo presente sob as formas da lembrança. Distenso. a sua consciência não as apreendia. então. quer em s i mesmo. Em um ponto. a percepção. como vi mos. Pouco importa a teoria da matéria a que você se vincule: realista ou idealista. portanto. porém. durante o sonho.A mudança de visada se dá na própria formulação do objeto a ser apreendido: Halbwachs não va i estudar a memória. Halbwachs amarra a memória da pessoa à me mória do grupo. lembrar não é reviver."1' A imagem viva da aparente autonomia do sonho é comparada com a dançarina que. De qualquer modo. o que o sociólogo realça é a iniciativa que a vida atua l do sujeito toma ao desencadear o curso da memória. A menor alteração do ambiente at e a qualidade íntima da memória. no Presente. A lembrança bergsonjana enquanto conservação total do passado e sua ressurreição. por exemplo). agora. com a escola. O simples fato de lembrar o passado. no sonho jamais nos despo jamos inteiramente do nosso eu atual. Halbwachs reconhece que "é no sonho que o espírito está mais afastado da sociedade". exclui a identidade entre as imagens de um e de Outro. N a maior parte das vezes. quase onírico da memória é. passadas e presentes. mas refazer. de percepção do novo? "Assim. no- las provocam" (introdução. essa frouxidão relativa da consciência é. lhe vem ao encontro a imagem de uma pessoa já falecida. essa aparente indeterminação deve-se precisamente à fraqueza ou à quase ausência de vida consciente que acompanha o sonho e que caracterizava os estados mentais dos primeiros anos de vida. viii). mas os "quadros sociais da memória". ou outros homens. Dando relevo às instituições formadoras do sujeito. como tal. e propõe a sua diferença em termos de ponto de v ista. unific a e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho. pesa sobre ela a mesma força de gravidade que atua sobre os outros mortais.18 O instrumento decisivamente socializador da memória é a linguagem. Halbwachs compara as imagens onfricas às remini scências da primeira infância: umas e outras parecem subir. com a profissão. O exemplo mais comum é o do sentimento de surpresa oue o sift. Se assim é. que é a memória coletiva de cada so iedade. tão caro a Bergson. apoiada ao solo apenas com a ponta dos pés. No entanto. e esta última à esfera maior da tradição. se o sonho tivesse imergido a mente do sonhador em um coral simultâneo de vozes . A memória não é sonho. com ela. portanto. excepcional. hábitos e relações sociais da sua infância. S e o sonho tivesse borrado completamente a dimensão do tempo histórico (dimensão social ). Até mesmo as imagens do sonho. segundo Halbwachs. a situação presente. enfim. como entender a surpresa. Os dados coletivos que a língua sempre traz em si entram até mesmo no sonho (situação-limite da pureza individual). que comporta sempre um momento de separação. compensada pela intervenção constante que a auto-imagem do eu faz sempre que o passado remoto é sonha do ou evocado. as experiências do passado. a imagem lembra da e as imagens da vigília atual. espontâneo. impossível) em que o adulto mantivesse intacto o sistema de representações. por assim dizer. deve-se duvidar da sobrevivência do passado. nossos juízos de realidade e de valor. ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância. mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. que parecem ao consenso geral as mais desga rradas da memória coletiva e. repensar. O caráter livre. Entretanto. e que se d aria no inconsciente de cada sujeito. umas e outras parecem ter-se mantido intactas no fundo da alma. "tal como foi". com a Igreja. no entanto. inexplicavelmente. nossas idéias. no conjunto de representações que povoam nossa con sciência atual. é trabalho. Por mais nftida que nos pareça a lembrança de um fato antigo. com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. as mais próximas da memória pura bergsoniana. Tanto uns como os outros dificilmente se balizam ao longo da série cronológica que cada um de nós or ganiza quando reconstrói os fatos da própria vida. nossos amigos. à nossa disposição. Nessa linha de p esquisa. Por essa via. é porque os outro s. nos fazem lembrar: "O maior número de nossas lembranças nos vem quando fosSos pais. A lembrança é uma imagem construída pelos materi ais que estão. reconstruir. parece uma figura prestes a voar a qualquer momento. à super fici da consciência sem guardar relações com o presente. Se lembramos. de estranhamento. Ao contrário. com a classe social.- quando. Halbwachs acaba relativizando o pr incípio. as imagens . porque nós não somos os mesmos de então e p orque nossa percepção alterou-se e. De resto. Ela reduz. com imagens e idéias de hoje. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a fa mília. pelo qual o espírito conserva em si o passado na sua inte ireza e autonomia. as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (rel ações entre o corpo e o espírito. porém. não fugiriam às determinações do presente. só seria p ossível no caso (afinal. ou sím . mais miudamente. de modo coeso. no sonho. tal que. sugeridos pelas situações vividas em grupo pelo sonhador: cuidados. em suma. Em seg undo lugar. as relações de causa e de c onseqüência (porque. Trata-se sempre de um adulto que lê uma história para crianças. do sonho não são. Na verda de. o le itor adulto entremeja com suas reflexões a percepção das imagens relidas. este ou aquele episódio mais pitor esco. que não abandonam o homem. a matéria-prima com que trabal ha e que o identifica. ontem. move-se em uma direção crítica e cultural qu e. já não "revive". o nosso espírito. e essa consciência nova instiga-o a perguntar muitas vezes se o autor foi feliz no seu esforço de ajustamento. em reparar e criticar os modos de proceder do autor. sequer no sonho. nunca. nesta outra leitura.. de instituições sociais que. embaixo. e a sua curiosidade insaciável é a traída pelos fenômenos estranhos ou violentos da natureza. já. mas escrit a por outro adulto. criações puramente individuais. por sua vez. Mas. um ciclo ne. o livro nos parece novo. na descrição d e costumes. de modo que.. Halbwachs detém-se para examinar. do prestígio que as circundava e ntão: "Tudo se passa como se o objeto fosse visto sob um ângulo diferente e iluminad o de outra forma: a distribuição nova das sombras e da luz muda a tal ponto os valor es das partes que. o modo pelo qual se vai formando a "reconstrução do passado". tensões . "As noções gerais permanecem em nosso espírito durante o sono. uma nevasca. porque só agora reparamos em certas passagens. embora pareçam. se fizermos uma análise objetiva da situação em que se desenvolve a releitura. certos detalhes de ambientação que nos tinham escapad o na leitura inicial. só por essa razão.. aí. A EXPERIÊNCIA DA RELEITURA A certa altura do seu estudo. Para esta. dentro. hoje.2° A diferença maior. como se nasce raposa ou lobo. o uniforme que todos vêem. e inevitável. Considerem-se ainda as diferenças entre os dois contextos psicológicos. certos tipos.. ou se ele deixou transparecer indis cretamente sua visão do mundo. agora. Na vi gília. que o autor precisou adequar-se ao nível mental da criança. O adulto muit as vezes passa rapidamente por esses aspectos e detém-se.). o que distingue um soldado de um monge. sempre. de tal maneira que possamos sentir as mesmas emoções que acompanharam o nosso primeiro contato com a obra. uma erupção vulcânica. de preferência. à direita. em cima. ou por animais e plantas insÓlitas. despojando-se. antes de reabrir aquelas páginas seríamos capazes de lembrar poucas coisas: o as sunto. de bom grado.). pelo menos. A criança admitiria. ainda que involuntariamente.. a senti-las ao nosso alcance.). A atenção da cri ança leitora fixa-se nos mil acidentes da paisagem. A situação tomada como exem plo é a releitura que o adulto faz de um livro de narrativas lido na já distante juv entude. As categorias. um livro remanejado. que já se nasce soldado ou cocheiro. a imagem de uma gravura. mas "re-faz" a experiência da primeira. evidentemente. A impressão inicial é a de um reencontro com o frescor da primeira leitura. à esquerda. muito do seu poder sugestivo. para que. amanhã. ou um ole iro de um moleiro é a roupa. uma tempestade. que a lingua gem atualiza. Ocupado. de modo frouxo e amortecido. hoje. está no teor das idéias e das reflexões sugeridas pela no va leitura. Esperamos. certas palavras. Novo ou remanejad o em duas direções: em primeiro lugar. destaquem-se as relações de espaço (aqui. acompanham nossa vida psíquica tanto na vigília quanto no sonho. fora. desejos. nós continuamos a faz er uso delas. teremos de reconhecer que não é isso que se dá.. ou remanejado em um sentido Oposto: passage ns que nos tinham impressionado ou comovido perderam. Parece que es tamos lendo um livro novo ou. às vezes. mas identificável. antes. e esse convívi o de lembrança e crítica altera profundamente a qualidade da segunda leitura. pouco dizem à experiência infantil. Diz Halbwachs: São espécies definidas."19 No quadro dessas "noções gerais". portanto. de tipos humanos. A ro . que a memória nos faça reviver aque la bela experiência juvenil. não podia entrar nos quadros mentais da primeira leitura. esperamos que voltem com toda a sua força e cor aqueles pormenores esquec idos.. embora reconhecendoas não podemos dizer que elas tenham permane cido o que eram antes". da mesma ordem que as espécies animais.. São representações. Ao encetar a re leitura. ali . depois. algumas personagens mais caracterizadas. seus gostos e interesses de adulto. mais atento à verossimilhança da narrati va e à estrutura psicológica das personagens. O leitor sabe. As c onvenções verbais produzidas em sociedade constituem o quadro ao mesmo tempo mais el ementar e mais estável da memória coletiva. as relações de tempo (agora . A qual . emocionante ou engraçado e. exigiria se tirassem dos túmulos todos os que agiram ou testemunharam os fatos a s erem evocados. métodos. veiculadas pela linguagem.22 A experiência da releitura é apenas um exemplo. os comportamentos d as personagens. como adulto. como elas não fora m localizadas no mundo da vigília. Nelas é possível verificar uma história social bem dese nvolvida: elas já atravessaram um determinado tipo de sociedade. * * * A interpretação social que Halbwachs dá da capacidade de lembrar é radical. A criança acre dita que lhe bastaria portar as armas e as botas de um caçador ou o casquete de um oficial da Marinha para se identificar com um ou com outro.2' O adulto. de reviver o passado tal e qual. não lhe resta senão reconstruir. com características bem marcadas e conhecidas. de Dante e daqueles cosmógrafos da Idade Média que nos ensinam a criação em sete dias e a fundação dos remos pelo filho de Príamo. É graças ao cará er objetivo. Não se lê duas vezes o mesmo livro. depois da destruição de Tróia. logo. entre muitos. mas observando. Entenda-se q ue não se trata apenas de um condicionamento externo de um fenômeno interno. Posto o limite fatal que o tempo impõe ao historiador. este mundo e as representações dele não têm poder algum sobre elas: só se tornam lembranças evocáveis as imagens do sonho sobre as quais. Goethe já observava. da memória.1 a dificuldade não está tanto no que é preciso saber do que no que é preciso não saber mais.upa. trabalha m noções gerais. que em Bergson ilustrava a liberdade da memória pura. O exemplo do sonho. involunt ariamente." Daí o caráter não só pessoal. e não lâmpadas su spensas em uma abóbada de cristal.. todas as conquistas que fazem de nós mode rnos! Devemos esquecer que a terra é redonda e que as estrelas são sóis. e tanto mais esta é valorizada em detrimento daquela. sua memória atual pode ser desenhada sobre um pan o de fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem. dessas noções gerais que as imagens resistem e se transf ormam em lembranças. nos obriga a avaliar (logo. no discurso presente. Mais do que isso. a Grande. e m Halbwachs. e bastam para determiná-la. acontecimentos pretéritos. Nesse e sforço exerce um papel condicionante todo o conjunto de noções presentes que. Se nós quisermos verdadeiramente viver no século xv. mas familiar. examina até que ponto elas são "semelhantes à categoria social que rep resentam.. Para este também se coloca a meta i deal de refazer. impossibilidade que todo suje ito que lembra tem em comum com o historiador. ao contrário. confundimos muitas vezes o que se ouviu dizer ao s outros com as próprias lembranças. para mostrar a evanescência das imagens oníricas quando desacompanhadas das categorias "diurnas" que as secundam habitualmente: O que explica a desaparição do maior número das imagens noturnas é que. principalmente sob re a sociedade. e que nós assim enfeixamos ant es que se esvaíssem com as imagens e os pensamentos da vigília. para fazer-se contemporâneo dos ho mens de outrora [. nossa atenção e nossa reflexão se fixaram. não se trata de uma justaposição de "quadros sociais" e "imagens evocadas". a fisionomia dos acontecimentos. O conjunto de nossas idéias atuais. qua ndo acordados. o que. grupal. serve. e não deixa de estranhar ou de criticar o teor antiquado ou o caráter meca nizado de certos tipos e situações". não fica preso às aparências pitorescas da descrição. e possuir ao mesmo tempo as qualidades ideais que ela empresta a cada um deles. ou mesmo adulta. Quanto mais o adulto está empenhado na vida prática . nos impediria de recuperar exatamente as impressões e os sentiment os experimentados a primeira vez. quantas c oisas deveremos esquecer: ciências. elas já viveram quadros de referência familiar e cultura l igualmente reconhecíveis: enfim. de Ana tole France: Para sentir o espírito de um tempo que já não existe. da dificuldade. no cerne da imagem evocada. de filiação institucional. em Verdade epoesia: "Quando queremos lembrar o que aconteceu nos primeiros tempos da infância. os traços físicos fazem parte da pessoa. social. quando relê um livro de aventuras de Júlio Verne. tanto mais aguda é a distinção que faz entre fantasia e realidade. isto é. isto é. qu . Citando o prefácio da Vie deJeanne d'Arc. não se re lê da mesma maneira um livro. entende que já no interior da lembrança. no que lhe for possível. esquecer o sistema do mundo de Laplace para só cr er na ciência de santo Tomás de Aquino. senão da impossibilidade. a rigor. transubjetivo. a alterar) o conteúdo das memórias.23 A MEMÓRIA DOS VELHOS Um verdadeiro teste para a hipótese psicossocial da memória encontra-se no estudo da s lembranças das pessoas idosas. em última instância. de algum modo. Rememberíng. de Frederic Charles Bartlett. de aguardar passivamente que as lembranças o desp ertem. Bem outra seria a situação do velho. quando o faz. arte. que não pesa s obre os homens de outras idades: a obrigação de lembrar. é como se este lhe sobreviesse em forma de sonho. Em suma: para o adulto ativo. os homens idosos não se interessariam apaixonadamente por esse passad o. "onírica". e memória é fuga. é a hipótese mais geral de que o homem ativo (indepen dentemente de sua idade) se ocupa menos em lembrar. principalmente. dos vel hos que se desencarreguem dessa função. verificar . e não se esforçariam por preencher . da sociedade: Nas tribos primitivas. do homem que já viveu sua vida. no entanto. sobretudo. Em nossas sociedades também estimamos um velho porq ue. para o velho uma espécie singular de obrigação social. conta aquilo de que se lembra quand o não cuida de fixá-lo por escrito. então. Em suma. exerce menos freqüentemente a atividade da memória. O adult o ativo não se ocupa longamente com o passado. 63 MEMÓRIA. nem. na sociedade em que vivemos. É o momento em que as águas se separam com maior nitidez. que imagens antigas. ele interroga outros velhos. Há um mome nto em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade. os graus de expectativa ou de exigência não são os mesmos em toda parte. tesouro comum de que se constituíram depositários. A de ser a memória da família. do g rupo. O que se poderia. ele procura precisá-las. e para ensiná-los aos jovens a partir da iniciação. 'recobrem a força de transpor o limiar da consciência' só então. a ati vidade mnêmica é a função social exercida aqui e agora pelo sujeito que lembra. vida prática é vida prát ica. da instituição. esta é. quando chega a hora da evocação. não só porque eles as receb eram mais cedo que os outros mas também porque só eles dispõem do lazer necessário para fixar seus pormenores ao longo de conversações com os outros velhos. o relaxamento da alma. no entanto. ele tem muita experiência e está carregado de lembranças . CONTEXTO E CONVENÇÃO A psicologia social só enfrentou diretamente o problema da memória em suas relações com o contexto no livro. Um aspecto importante desse trabalho de reconstrução é posto em relevo por Halbwachs q uando nos adverte do processo de "desfiguração" que o passado sofre ao ser remanejad o pelas idéias e pelos ideais presentes do velho. ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente que a s olicita muito mais intensamente do que a uma pessoa de idade. sepu ltadas no inconsciente desde sua infância. entret ido nas tarefas do presente.e. O velho não se contenta. compulsa seus velhos papéis. A "pressão dos preconceitos" e as "preferências da sociedade dos velhos" podem modelar seu passado e.26 A s egunda parte dessa obra verdadeiramente pioneira intitula-se "Remembering as a s . tendo vivido muito tempo.facção do seu passado. a função que lhes confere o único prestígio que possam pretender d aí em diante?25 Haveria. matizar a afirmação de Halbwachs. Delineia-se de novo a questão: a memória do velho é uma evocação pura. e lembrar bem. re compor sua biografia individual ou grupal seguindo padrões e valores que. Em outros termos. das lides cotidianas. contemplação. lazer. uma função própria: a de lembrar. a h ora do repouso. na lingu agem corrente de hoje são chamados "ideológicos".24 60 Note-se a coerência do pensamento de Halbwachs: o que rege. não está se entrega ndo fugitivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado. o velho se interessa pelo passado bem m ais que o adulto. hoje clássico. ou exige. portanto. em plena consciência. os velhos são os guardiães das tradições. da substância mesma da sua vida. mas. não procura habitualmente na infância imagens relaciona das com sua vida cotidiana. Convém. ao passo que o homem já afastado dos afazeres mais prementes d o cotidiano se dá mais habitualmente à te. na verdade. desejo breve mas intenso de evasão. em geral. Nem toda sociedade espera. suas antigas cartas e. Ao lembrar o pass ado ele não está descansando. mas daí não se segue que esteja em condições de evocar mais lembranças d esse passado do que quando era adulto. por um instante. Como. deixa de se r um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social re sta-lhe. na realidade. entret anto. do passado (a memória por excelência de Bergson) ou um trabalho de refacção deste? O raciocínio de Halbwachs opõe o sentido da evocação do velho ao do adulto: este. foi a imagem associada ao sistema de convenções do receptor. Bartle tt podia conferir as respostas com uma lista escrita pelo proprietário do gado. dando a respectiva procedência. pela sua própria formação profissional. que o utilizou no ensaio The history of Melanesian society. o experimento 2 desfazia a lenda da memória prodigiosa dos swazi. Transpondo o conceit o para a área psicossocial. o experimento 2 com o que se narra em . W. significava. ao passo que o proprietário das reses precisava valer. em si extra ordinária. não diferiram dos obtidos com os meninos ingleses. que seria peculiar àqueles indígenas. Nessa altura. Uma análise interna dessa última constatação levou Bartlett a distinguir entre a matéria d a recordação (o que se lembra) e o modo da recordação (como se lembra). de um lado. acabam assumindo uma forma de expressão ajustada às técnica s e convenções verbais já estabelecidas há longo tempo nesse grupo. H. Se. é o processo pelo qual imagens e idéias. tirados da sua familiaridade com as tribos swazi: 1) Alguns dos líderes indígenas visitaram a Inglaterra para resolver pendências de ter ras. tal como se constituiu nos anos 30. Foi o que aconteceu quando o psicólogo. em termos de média de acertos e de omissões. variando agora apenas o conteúdo de interesses. na ou- 64 tra. ela é tratada. Combinando. ele o extraiu de um etnólogo. porque entrariam como variáveis importantes alguns fatores tradicionalmente associados à psicologia d . de todos os dados importantes e de quase todos os pormenores. A lembrança comum a todos os líderes swazi foi a dos guardas de trânsito "de mão levantada". autor. O gesto familiar. às vezes estiliz ada. Escolheu ao acaso um menino de onze ou doze anos de idade e deu-lhe uma mensagem de 25 palavras para transmiti-la pouco depois. Bartlett postula que a "matéria-prima" da recordação não aflor a em estado puro na linguagem do falante que lembra. pelo ponto de vista cultural e ideológico do grupo em que o sujeito está situad o. Deve-se a Bartlett a utilização de um conceito-chave para conectar o processo cultur al de um dado momento histórico ao trabalho da memória: o conceito de "convencionali zação". testou a capacidade retentiva de um vaqueiro pedindo-lhe que arrolas se um certo número de reses. cor do pêlo e preço. mas o sentido do seu texto s e acha próximo do de Halbwachs. R. Bar tlett está. Rivers. O vaqueiro lembrou-se.2' Conv encionalização. A matéria estaria condicionada basicamente pelo interesse social que o fato lembra do tem para o sujeito. curiosos em saberem o que os indígenas tinham retido com mais nitidez da sua viagem à metrópole. o problema complica-se. um ato de comando. 3) O experimento 2 relativizou a atribuição de uma faculdade de lembrar. no contexto estrangeiro e estranh o. em vários pontos. sem hesitar.pergunta-se Bartlett . de outro. natu ralmente mais próximo do cotidiano de um menino swazi. Provam-no os exemplos com que lida. 2) Depois de ouvir muitas histórias que atestavam a prodigiosa memória verbal do swa zi. mais rente à linguagem específica da psi cologia social. Quanto ao modo.mente.uma ação tão simples produziu impressão tão funda? A explicação s eio quando o psicólogo reparou que os swazi saúdam o companheiro ou o visitante com a mão erguida. foram abordados pelos ingleses da colônia. O conceito em si não foi cunhado por Bartlett. que Bartlett leu e apre ciou devidamente. para Rivers.tudy in social psychology"e traz uma série de observações muito agudas que coincidem. Bartlett é levado a crer que a nitidez da memória não deva ser ava liada isolada. quente de simpatia na própria cultura. Mas o que se recordou. mas posta em relação com toda a experiência social do grupo. Tratava-se de um texto semelhante aos já aplicados por ele mesmo a crianças inglesas. Por q ue . porém. o experimento 3 encorpava a hipótese de que existe uma relação entre o ato d e ktnbrar e o relevo (existencial e social) do fato recordado para o sujeito que o recorda. aliás. Bartlett se pôs a fazer experimentos com o fim de testá-la. Os resultados.se sempre d e um papel em que ele mesmo tinha anotado a compra. recebidas de fora por um certo grupo indígena. constatamos uma singular coincidência entre as formulações de Halbwachs e as de Bartlett: o que um e outro buscam é fixar a pertinência dos "quadros sociais " e das instituições e das redes de convenção verbal no processo que conduz à lembrança. com as reflexões de Halbwachs. Ao voltarem. ciente de que os swazi se ocupavam intensamen te de gado. a rigor. ao menos a vanta gem de não sofrer a modelagem sistemática da ideologia grupal. novos significados alteram o conteúdo e o valor da situação de base evocada. Com ela. vicinais. porque não costumam ser objeto de conversa e de narração. profissionais. matéria daquela lembrança-imagem e da "me mória pura" de Bergson. Sem ela. Assim. William Stern. de um ponto de vista rigorosamente psicológi co. por assimilação. o efeito.) como suficientemente capazes de articular a atividade mnêmica e sua f orma narrativa. hesitamos. O sonho. ou apenas amortecida no inconsciente. A memória das pessoas também depende ria desse longo e amplo processo. re65 ligiosas. Este. o psicólogo considerou o tratamento que cada imagem nova sofr e na memória do indivíduo análogo à modelagem que uma dada forma cultural civilizada rec ebe ao ser transferida para um grupo indígena. Bartlett c ruza um limiar evitado sistematicamente por Maurice Halbwachs.. N o outro extremo. O que me parece deva reter-se como uma conquista comum das reflexões de Halbwachs e de Bartlett é a inerência da vida atual ao processo de reconstrução do passado. O processo geral da convencionalização pode . a primeira impressão ficaria cancelada e substituída pelas representações e idéias dominantes inculcadas no sujeito (hipótese de Halbwachs). políticas.28 julga.a personalidade. decisiva. É o que suced e às vezes: os fatos que não foram testemunhados "perdem-se". nesse caso. tende a reproduzir-se com mais força o teor da "primeira impressão". ao contrário. haveria uma ausência de elaboração grupal em torno de certos aconteci mentos ou situações. 2) ou despojá-la de alguns aspectos e algumas conotações estranhas à sua prática social (s implificação). como o temperamento e o caráter do sujeito que lembra. Um dos mais sutis analistas da memória. como estudi oso dos níveis sociais da memória. A "con vencionalização" é. e dar-lhe uma relevância especial (retenção parcial com hipertrofia do detalhe). Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto. por transplante. O que Bartlett admite. como s e pode supor. Assim.fonte. prefere ater-se às relações vividas pelo sujeito (relações familiares. o momento áureo da ideologia com todos os seus estereótipos e mitos. ao contrário. A rigor. A transf ormação seria tanto mais radical quanto mais operasse sobre a matéria recebida a mão-de- obra do grupo receptor. O ponto d e vista do grupo constrói e procura fixar a sua imagem para a história. se a vida social ou individual estagnou. quando não nos confundimos. Bartlett julga possível tentar (embora ele mesmo não o faça) uma análise dos estilos narrativos em função das diferenças pessoais dos sujeitos. quan do o sujeito os evoca. Um dos aspectos mais instigantes do tema é o da construção social da memória. de um modo bastante compreensivo. seria o de esquecer tudo quanto não fosse "atualmente" significativo para o grupo de convívio da pessoa. um trabalho de modelagem que a situação evocada sofre no cont exto de idéias e valores dos que a evocam. Este é. O nativo pode: 1) simplesmente incorporar a forma cultural estranha. ou reproduziu-se quase que só fisiologicamente. parece alimentar-se mais gen erosamente desses momentos solitários de evocação que teriam. segundo Bartlett. ou que sabemos "por ouvir dizer". a não ser excepcionalmente. 4) ou. que as percepções podem passar por um "períod . No outro extremo. diferenciar-se internamente em subprocessos. é provável que os fatos lembrados ten dam a conservar o significado que tinham para os sujeitos no momento em que os v iveram. sempre que devemos falar de um fato que só foi presenciado por nós. construir uma "outra" forma simbólica que resultaria das interações do próprio grupo receptor. verda deiros "universos de discurso". uma versão consagrada dos acontecimentos. A elaboração grupal comum seria. com Bergson. portanto. o apoio contínuo dos outros: é como se ele est ivesse sonhando ou imaginando. "universos de significado". finalmente. é a existência de um "contínu o" que vai da simples assimilação. "omitem-se". a partir do recebimento de formas extragrupais. até a criação social de novos símbolos. que dão ao material de base uma forma histórica própria. talvez. voltando ao seu modelo antropológico. há uma tendência de criar esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos. 3) ou apreender um aspecto em si desimportante no contexto. às vezes profundamente alterado. não vem o reforço. e não por acaso duvidamos. pelo qual sempre "fica" o que significa. de onde poderia sair durante o sonho e nos raros momentos de livre evocação (hipótese de Bergson). E fic a não do mesmo modo: às vezes quase intacto.. capaz portanto de transformar a matéria recebida e incut ir-lhe o sentido de uma prática social específica. 1894). o trivial é elevado à hierarquia do insólito. com a suposição de que as lembranças são refei tas pelos valores do presente.31 O passado é. (3) "Quando um raio de luz passa de um meio para outro. A tradução francesa dos Elementos de psicologia fisi ológica (1879) data de 1886. mesmo porque o seu lugar na vida do homem acha-se a meio caminho ent re o instinto. E. a o mesmo tempo. O passado entra plasticamente no universo pessoal: A função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que é mais apropriada a ele. o pouco claro ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida. pes quisas de teor neurológico sobre a amnésia. um "fundo ininterrupto".29 De o nde resulta uma concepção extremamente flexível da memória: "A lembrança é a história da pess a e seu mundo. ser desdenhado e esquecido. em cujo exame Bergson procura separar o aspecto cerebral do psicológic o (Ribot. que é capaz de inovar. État mental d es bystériques. 1889. . mutatis mut andis. "mundo"). e a inteligência. que permite a reanimação de uma imagem que foi rece bida muito tempo antes. A memória poderá ser conservação ou elabora- NO TAS ção do passado. m as pode alterá-las conforme as condições concretas do seu desenvolvimento. Então se produz a r flexão total. p 187). É a sua memória. a paramnésia. BalI. àquela outra unidade. sobretudo se o se u tipo for "elaborativo". "v ivenciada"). como no caso dos velhos enfermos e aposentados. não haja mais refração possível. verifica-se o cu idado com que Bergson se houve no rastreamento da bibliografia contemporânea sobre a memória. a unidade pessoal conserva intactas as imagens do passado. sem o menor desejo consciente de falsificá-lo. O postulado de Stern é o da existência de uma unidade con stante. Pelas notas e referêndas que tra z. e no fim formou-se um quadro total. como psicólogo da persona lidade. Na França. reaflorem mnemicamente. a afasia. e pode. período em q ue o sujeito se acha situado antes no eixo presente-futuro que no eixo passado-p resente.. 168.). Essa unidade é chamada "pessoa" e corresponde. alterado . apontado como influência profunda p ela afinidade de técnica introspectiva e pelo tema da "corrente da consciência". a psicologia científica ensaiava os primeiros passos com as pesquisas de Théodule Ribot (Les maladies dela mémoire. essa dualidade de pressupostos torna muito complexa a res posta à pergunta: qual a forma predominante de memória de um dado indivíduo? O único mod o correto de sabê-lo é levar o sujeito a fazer sua autobiografia. Mas. trabalhado qualitativamente pelo sujeito. seu autor mostra-se bastante informado dos trabalhos que a escola psicofi sic a de Wundt já fizera sobre memória. Oeuvres. (1) H. que se repete sempre. parece haver em Stern um modelo combinado de uma p sicologia tradicional. declaradamente: Pri ncipies ofpsycboiogy (1890). mais profunda. Do ponto de vista metodológico. Matiére et mémoire. durante o qual "desaparecem" da consciência até que. a apraxia. Les accidents mentaux. enquanto vivenciada". ele o atravessa geralmen te mudando de direção. no que se aproxima de Halbwachs e de Bartlett. como a infância durante a adolescência. Em termos experimentais. para um certo ângulo de incidência. O material indiferente é descartado. Winslow. é como o efeito de miragem" (Bergson. em situações opo stas. mantida no inconsciente. sede ta mbém da memória. que Bergson denomina "espírito". p. (2) A primeira edição de Matière ei mémoire saiu em 1896. e uma psicologia objetiva. que ace ita o peso das interações do corpo com a sociedade. Bernhein. tais podem ser as densidades respectivas dos dois meios que. Para William Stern. novo. o desagradável.o latente". mas subordina-o manifestamente à subjetividade ("seu". a cegueira psíquica. Outras fontes de que Bergson se serviu. A narração da própria vi da é o testemunho mais eloqüente dos modos que a pessoa tem de lembrar. também se notam diferenças: o passado pode ocupar quase todo o espaço mental do sujeito. por motivos diverso s. em oposição ao "retentivo" (Stern. não alija do seu discurso a velha linguagem caracteriológica). portanto. in Oeuvres. de cunho personalista. a sua "unidade constante". de William James. A percepção se assemelha muito a esses fenômenos de reflexão que vêm de uma re fração impedida. quantitati vamente. Bergson. Stern concilia a suposição de que existe u ma memória "pura".3° Stern refere-se ao estrato objetivo da lemb rança ("história". 1894. Bernard. 1881) e Pierre Janet (L 'automatisme psychique. Por esse balanço.. Admitindo as mutações da pessoa e. regando pl antas. (9) Idem. (8) Idem. (15) Idem. ibidem. El a dirá à criança que já viu muitas revoluções. 52. no cotidiano. servindo. p. no miúdo. Psicología general. p. p. (17) M. ibidem. 116. 913. dos empregados. ainda: nossas lembranças. os abalos exteriores não modific am o essencial. p. (12) Idem. p. 68. (16) É. ibidem. p. históricos. mas adere a ela. p. 244. refletindo sobre acontecimento s políticos. Eventos considerados trágicos para os tios. (22) Idem. (5) Idem. Estes não têm. dominado. mas não a memória. (7) Idem. (21) Idem. p. Alguém curvou suas costas atentas para os r esíduos de outras vidas O que poderá mudar enquanto a criança escuta na sala discursos igualitários e observa na cozinha o sacrifício constante dos empregados? A verdadeira mudança dá-se a percebe r no interior. que a absorve junto com a grandeza dos socialmente "pequenos" a quem votamos nossa primeira afeição e que pod em guiar nossa percepção nascente do mundo. 70 2 TEMPO DE LEMBRAR . formam um todo solidário. ibidem. arrumando camas para o sono de outrem. p. ibidem. varrendo o chão. Bergson diz: "No homem a memória é menos prisioneira da ação. ibidem. ibidem. p. irmãos mais velhos são relativiza dos pela avó enquanto não for sacudida sua vida miúda ou não forem atingidos os seus. ibidem. ibidem. lavando a roupa. 253. Durkheim. p. p. tal como chegam a eles através das deformações do imaginário popula r. p. uma pirâmide cujo ci mo. 250. ibidem. Sem estas haveria apenas uma competência abstrata para lidar com os dados do passado. Stern. p. (13) Idem. C. Bartlett. (27) Apud F. 886). 248.(4) Bergson. 184. (11) Idem. (19) Idem. limpando ba nheiros. (14) Iclem. 283. que tudo continua na mesma: alguém continuou n cozinha. Depois esse tempo ficará sendo o tempo sub jacente. (29) Idem. ibidem. p. mas conversam com elas de igual para igual. ibidem. 195. p.MEMÓRIA E SOCIALIZAÇÃO A criança recebe do passado não só os dados da história escrita. p. p. Remembering. p. Qeuvres. p. a criança recebe inúmeras noções dos avós. 141. 293. p. e mergu . pp. coincide com nosso presente e mergulha com este no futu ro" (Oeuvres. 183. ibidem. reconheço-o. a preocupação do que é "próprio" pa ianças. p. (26) F. 223. incessantemente móvel. Les régles de la méthode sociologique. Halbwachs. (24) Idem. ibidem. 284. no concreto. (30) Idem. 16. 114. ibidem. em um momento dado. Les cadres sociaux de la mémoire. mergulha suas raízes na h istória vivida. (28) W. ibidem. pais. ibidem. (23) Idem. Na conferência L 'âme et le corps. das pessoas de idade que tomaram parte na sua socialização. lavando pratos e copos em que os Outros beberam. ibidem. (18) Idem. ibidem. em geral. 317. ou melhor. (20) Idem. 183-4. ibidem. (10) Idem. 142. 118. p. sobrevivida. (6) Idem. Eis a filosofia que é transmitida à criança. C Bartlett. ibidem. Enquanto os pais se entregam às atividades da idade madura. ibidem. (25) Idem. esvaziando cinzeiros. (31) Idem. 139. 20. p. que proferiu em 1912. sancionar nossos atos. A ordem social se inverte: dos armários saem coisas doces fora de hora. para que se complete o desenho de sua vida. tradições. as palavras dos homens impo rtantes só se revestem de significado para o velho e para a criança quando traduzido s por alguma grandeza na vida cotidiana. regiões em que não havia a preocup ação de socializar. há correntes do passado que só desapa receram na aparência. Nas noites frias de abril os fiéis que assistem às cerimônias da Semana Santa em minha cidade saem para o pátio lateral da igreja onde encontram aceso um grande fogão de lenha. punir. móveis. como. sem ver. as labaredas na noite? Há casas em cidades tranqüilas em que o tempo parou. contemplando o pátio aquecido e as vel hinhas que se aproximam tiritando. o presente já não interessa. m aneira de falar e de se comportar de outros tempos. sentir. que na sua idad e também brincava de escrever. faz com que entre de modo constitutivo no presente. histórias e brincadeiras. falar. mas onde tudo era tolerância e aceit ação. exposta. Os projetos do indivíduo transcendem o intervalo físico de sua existência: ele nunca m orre tendo explicitado todas as suas possibilidades. como ilhas efêmeras de um estilo. Não só não nos causam estranheza. ou se ele não cura o reumatismo da cozinheira? Há dimensões da aculturação que. das datas. é o pas sado con centrad no presente que cria a natureza humana por um processo de contínuo reavivamento e rejuvenescimento. de andar. a casa dos avós.. nem os velhos atuam sobre ele. cozinhada e comid a com a mesma unção. não posso deixar de pensar que foj assim no sécul o passado e ainda antes. pois nem o n etinho. E o manto do Senhor Morto das procissões é feito cada ano por mãos di . E que podem reviver numa rua. que não est hamos as regiões sociais do passado: ruas. Ainda na Semana San ta.". o relógio das salas é o mesmo que p ulsava antigamente e as pessoas que pisam as tábuas largas do assoalho conservam u m forte estilo de vida que nos surpreende pela continuidade. Aos avós não cabe a tarefa definida da educação do neto: o tempo que lhes é concedido d convívio se entretém de carícias. quando crescer. de preparar um alimento qu e obedecem fielmente aos ditames de outrora. em minha cidade. à qual a psicologia tem dado pouca atenção. pois deles ainda ficou alguma coisa em nosso hábito de sorrir. Há maneiras de tratar um doente. arranca do que passou seu caráter transitório. A trinta minutos da metrópole vizinha. Esta força. será como o vovô. devido ao íntimo contacto com nossos avós. de c ultivar um jardim. compreensível no dia-a-dia. como desne cessárias. de executar um trabalho de agulha. casas. sem os velhos. vendida. Ao lado da história escrita. de uma maneira de pensar. ín timo. Para Hegel. de arrumar as camas. Os feitos abstratos. histórias. Como poderia ter sido outra a expressão desses rostos aco nchegados sob as mantilhas? Ou o olhar desgarrado com que os velhos às vezes olham . de histórias. tudo se volta para o passado ou para um f uturo que remonta ao passado: "Você. Antes. A farinha de milho do cuscuz é preparada pelos mesmos processos. É graças a esta "outra socialização". essa vontade de revivescência. É a essência da cultura que atinge a criança através da fidelidade da memória. em certas pessoas. roupas antigas. que são r esquícios de outras épocas. Não se deixam para trás essas coisas. a educação dos adultos não alcança plenamente reviver do que se perdeu. o poder que os velhos têm de tor nar presentes na família os que se ausentaram.. Os amigos mortos revivem em ti e as mortas estações (Clemente Rebora) Os atos públicos dos adultos interessam quando revestidos de um sentido familiar. O que é um ambiente acolhedor? Será ele construído por um gosto refinado na decoração ou s erá uma reminiscência das regiões de nossa casa ou de nossa infância banhadas por uma lu z de outro tempo? O quarto dos avós. o reviver dos que já partiram e part icipam então de nossas conversas e esperanças. Como pode a anciã justificar a glória do fi lho premiado na academia científica se ele não ajuda os sobrinhos pobres. o jejum da "sexta-feira maior" é preparado dias antes com abu ndante comezaina (menos carne) para a penitência do grande dia.lharemos no tempo da classe dominante que prepondera uma vez que assume o contro le da vida social. numa sala. enfim. morre na véspera: e al guém deve realizar suas possibilidades que ficaram latentes. nos parecem singularmente familiare s. da descrição de períodos. O que foi sua vida senão um const ante preparo e treino de quem irá substituí-los? Os jovens. Seu filho continuará a obra. a mesma devoção. pode preparar os canteiros e semear um jardim. acompanhado de d olorosa lucidez.. nossos valores mais caros lhes parecerão dissonantes e eles encontrarão em nós aquele olhar desgarrado com que. possui um lugar honroso e uma voz privilegiada. Deles esperamos infinita tolerância. só para dar trabalho. Os jovens nos olharão com estranheza. Lembranças da infância para m erecer atenção do adulto são constrangidas a entrar no quadro atual. é a lei da superação da geração mais velha pela mais jovem. A burocracia impessoal. às vezes. bem poucas . de fraqueza são duramente cobrad os aos idosos e podem ser o início de seu banimento do grupo familiar. dá luga r aos moços. os velhos olham s em ver. de esquecimento. Comenta Simone de Beauvoir em sua obra sobre a velhice: . como se sentindo que a vida me es capa. até que poucas. pois cada sociedade vive de forma diferente o declínio biológico do ho mem. todo sentimento de continuidade é arrancado de nosso trabalho . buscando amparo em coisas distantes e ausentes. vivendo experiências que enriquecem a idade madura. e eles tinham perdido a experiência. a velhice é uma categoria social. os vencidos tiritam e. curiosidade. rememoram. Nos melhores aprendizes a gratidão acompanha o sentimento da própria superioridade e m relação ao velho. formados e alimentados p elo cuidado de seus doadores. a plantação de uma horta. Diante dos troncos aba tidos e já desgalhados os contrutores viam-se perplexos. Nunca mais um velho foi sacrificado. perdão. os fracos não podem ter defeitos. Quando as mudanças históricas se aceleram e a sociedade extrai sua energia da divisão de classes. eu procurasse aquecê-la pelos seus começos" (Confissões). onde outrora se sacrificavam os velhos. dia v irá em que as pessoas que pensam como nós irão se ausentando. o mesmo arrebatamento estético que absolutamente não são mais dos dias de hoje? Integrados em nossa geração.. Para que serve um velho. Destruirão amanhã o que construirmos hoje. posto s à margem da ação. Em nossa sociedade. onde o ancião é o maior bem soc ial. sim. Antes do afastamento definitivo há um declínio lento. criando uma série de rupturas nas relações entre os homens e na relação dos ho mens com a natureza. apare ce e ensina a comunidade a distinguir a base e o cimo dos troncos. pensam como Rousseau: "As lembranças se gravam na minha memória c om traços cujo encanto e força aumentam dia a dia.ferentes de costureiras. Uma lenda balinesa fala de um longínquo lugar. a justiça eqüidistante são feitas para os pequenos: papéis compl icados para preencher. ou uma abnegação serv il pela família. portanto. Nas sociedades mais estáveis um octogenário pode começar a construção de uma casa. volta-lhe as costas e busca outras fontes.. mas não é o mesmo gesto. onde já se perdeu o gosto inefável da individualidade de cada pessoa? Os lugares ao sol são restritos aos vencedores. horas na fila de um guichê errado e a aposentadoria vem tar da e precária. nas montanhas. ficarão para testemunhar nosso estilo de vida e pensamento. A lembrança das tradições se perdeu. a gente perde a serventia. outras sociedades. que havia sido escondido pelo neto. Momentos de cólera. A idade adulta é norteada pela ação presente: e quando se volta para o passado é para bu scar nele o que se relaciona com suas preocupações atuais. logo se fortalecem e se tornam aptos para desempen har tarefa igual ou superior à de seus mestres. Quem diria onde estava a base para ser enterrada e o alto que serviria de apoio para o teto? Nenhum deles poderia responder: há muitos anos não se levantavam construções de grande porte. os velhos não podem errar. Existem. fatigados da atividade. dirão. Um dia quiseram constr uir um salão de paredes de troncos para a sede do Conselho. A sociedade industrial é maléfica para a velhice. próprio de uma sociedade competidora. Um velho. Com o tempo não restou nenhum avô que contas se as tradições para os netos. sentindo qu e o sol lhes foge. Ou será desumano.' Os velhos.. quando a fonte doadora esgotou seus benefícios.". longanimidade. Mas o comum dos aprendizes. intermitente. Uma variant e desse comportamento: ouvimos pessoas que não sabem falar aos idosos senão com um t om protetor que mal disfarça a estranheza e a recusa. A VELHICE NA SOCIEDADE INDUSTRIAL Além de ser um destino do indivíduo. deveríamos responder. Muitas vezes o idoso absorve a ideologia voraz do lucro e da ef icácia e repete: "É assim mesmo que deve acontecer. Tem um estatuto contingente.2 Isto é humano. Para a dignidade da psicologia industrial quero assinalar cuidadosas pesquisas d e psicólogos na indústria. A racionalização. momentos de crise de identificação: na adolescência .3 A sociedade rejeita o velho. as pesquisas que correlacionam idade com perda de eficiência são discordantes entre si e não merecem confiança. Perdendo a força de trabalho ele já não é produtor nem reprodutor. Quando as pessoas absorvem tais idéias da classe dominante. o velho trabalhador tem que se deslocar. Aliás. Quantas relações humanas são pobres e banais porque deixamos que o outro se expr esse de modo repetitivo e porque nos desviamos das áreas de atrito. Seria preciso verificar se os laboratórios que as produzir am não são financiados por empresas e fundações ligadas à indústria. Quase em toda parte a célula familiar ex plodiu. segundo Sartre. É um irreali zável como a negritude. a propriedade. As coisas que ele realizou e que fiz eram o sentido de sua vida são tão ameaçadas quanto ele mesmo. Se o idoso não cede à persuasão. não hesitará em usar a força. a herdade será abandonada. em torná-los cada vez mais dependentes "administrando" sua aposentadoria. o afrontamento e mesmo o conf lito. o negócio liqüidado. o estoque da loja vendido. Há. e os anos aproximavam da perfeição seu desempenho. reificados (um êtrepour-autrui). Nunca poderei assumir a velhice enquanto exterioridade. o trabalho operário é uma repetição de gestos que não permite ape rfeiçoamento. não faz nada: deve ser tutelado como um menor. const ituem. não pode real izar sua imagem. na oficina doméstica. é tomada preconceituosamente pelo outro. Suas propriedades o defendem da desvalorização de sua pessoa. Nos cuidados com a criança o adulto "investe" para o futuro. Se a posse. provando que a "funcionalidade" do trabalhador. Hoje. O velho. O velho não participa da produção. que transcendem nossa c onsciência. Nas épocas de desemprego os velhos são especialmente discriminados e obrigados a reb aixar sua exigência de salário e aceitar empreitas pesadas e nocivas à saúde. a idade engendra desvalori zação. hoje. mas em relação ao velho a ge com duplicidade e má-fé. A moral oficial prega o respeito ao velho mas quer conve ncê-lo a ceder seu lugar aos jovens. submetendo-os à internação hospitalar. e o pai sabe disso. negando-lhe a oportunidade de desenvolver o qu e só se permite aos amigos: a alteridade. a contradição. como pode o negro realizar em sua consciência o que os outro s vêem nele? A velhice. Quantos anciãos não pensam estar provisoriamente no asilo em que foram abandonados pelos seus! A característica da relação do adulto com o velho é a falta de reciprocidade que pode se traduzir numa tolerância sem o calor da sinceridade. a mudar de casa (experiência terrível para o velho) e. Quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem. aumenta com a idade. como uma abdicação do diálogo.As árvores que o velho planta serão abatidas. Veja- se no interior das famílias a cumplicidade dos adultos em manejar os velhos. não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra. Em privá-los da liberdade de escolha. elimina da indústria os v lhos operários. Enquanto o artesão realizava sua obra em casa. Não se discute com o velho. O taylorismo e. mas não o conselho. nunca poderei assumi-la existencial. que exige cadências cada vez mais rápidas. uma defesa contra o outro. em certos setores. Como no in terior de certas famílias.mente. como tal. a não ser na rapidez. A criança sente voltar para si os reflexos de amor que sua imagem desperta. de tudo o que em nosso confronto pudesse causar o crescimento e a dor! Se a tolerância com os velhos é entendida assim. tal como ela é para o outro. po r fim. as horas extras deveriam ser estudados seria mente como causas da morte precoce dos trabalhadores. que é fator natural como a cor da pele. A velhice é um irrealizável. concebê-la como é para os outros. aproveita-se dele o braço servil. não se confrontam opiniões com as dele. obrigan do-os a sair de seu canto. Ele desaparecido. o velho de uma classe favoreci da defende-se pela acumulação de bens. As pequenas empresas são absorvidas pelos monopólios ou se deslocam. dos pontos vit ais. fora de mim. era um mestre de ofício. melhor seria d ar-lhe o nome de banimento ou discriminação. O artesão acumulava experiência. segundo Sartre. à mentira. afastá-lo delicada mas firmemente dos postos de direção. em im obilizá-los com cuidados para "seu próprio bem". ao contrário. O filho não recomeçará o pai. Que ele nos poupe de seus conselhos e se resigne a um papel passivo. Simone de Beauvoir faz belas reflexões sobre a velhice. no transcorrer da vida. é uma situação composta de aspectos percebido s pelo outro e. agem como loucas porque delineiam assim o seu próprio futuro. Citando o dr. Repond: Somos mesmo levados a nos perguntar se o velho conceito de demência senil. que não envelhecem. e se essas p seudodemências não são resultados de fatores psicossociológicos agravados rapidamente. a propósito das doenças que a velhice acarreta. se o trab alhador aposentado se desespera com a falta de sentido da vida presente. não de declín io. haveria que sedimentar uma cultura para os velhos com interesses. conviria meditar que nossas faculdades. Abel. A MEMÓRIA COMO FUNÇÃO SOCIAL . Os que não podem comprar esses aparelhos ficam privados de com unicação. o ator. aparel hos acústicos. lentes. o homem permaneça um homem? A resposta é radical para Simo ne de Beauvoir: "Seria preciso que ele sempre tivesse sido tratado como homem". Ele não pode mais ensinar aquilo que sabe e que custou toda uma vida para apr ender. O mundo fica eriçado de ameaças. o esportista. e que dão significado a nossos gestos cotidianos. Durante a velhice deveríamos estar ainda engajados em causas que nos transcendem. Esgotada sua força de traba lho. nas lembranças de anciãos que colhemos. para continu arem vivas. que é um fenômeno patológico. uma pequena distração são severamente castigadas. enfim. mas todo trabalhador: o médico. combatem pelos seus direitos. depende de um projeto. que os grupos dis criminados têm reagido. responsabilidades que tornem sua sobrevivência digna. Como deveria ser uma socied ade para que. trabalhos. que não se deve conf undir senilidade. A degradação senil começa prematuramente com a degradação da pessoa que trabalha. não se deva revisar completamente. que luta para continuar sendo um homem. mas o adolescente vive um período de transição. mas o vel ho não tem armas. as ruas mais perigosas de atravessar . A abolição dos asilos e a construção de c s decentes para a velhice. dependem de nossa atenção à vida. cânulas. os pacotes mais pesados de carregar. É preciso mudar a vida. de ciladas. Nós é que temos de lutar por ele. sobretudo nas do sr . Sobre a inadaptação dos velhos. p or colocação em instituições inadequadamente equipadas e dirigidas. do nosso interesse pelas coisas. Esta sociedade pragmática não desvaloriza somente o operário. mas de um despojamento social. onde esses doentes muitas vezes abandonados a si me smos. Confirmando essas asserções. O velho sente-se um indivíduo diminuído. Um dos velhos que entrevistei escreve estes versos: r A mão trêmula é incapaz de ensinar o apreendido. o jornalista. O coeficiente de adversidade das coisas cresce: as escadas ficam mais duras de subir. De que projeto o velho participa agora? Bastide4 observa. Mas. recriar tudo. Para a comunicação com seus semelhantes precisa de artefatos: próteses. na soci edade da competição e do lucro? Cuidados geriátricos não devolvem a saúde física nem mental. refazer as relações humanas doentes para que o s velhos trabalhadores não sejam uma espécie estrangeira. seria um passo à frente. E pergunta se a senilidade é um efeito da senescência ou um produto artificial da sociedade que rejeita os velhos. o negro. Uma falha.também nossa imagem se quebra. A mulher. e é comum que o escutemos agradecendo sua aposentadoria como um favor ou esmola. Para que nenhuma forma de humanidade seja excluída da humanidade é que as minorias têm lutado. quando os meios de comunicação com o mundo fal ham. É a impotência de transmitir a experiência. Nós chegaremos mesmo a pretender que o quadro clínico das demências senis talvez seja um produto artificial. como também por intern ações nos hospitais psiquiátricos. pretens o resultado de perturbações cerebrais. na velhice. o professor. Como reparar a destruição sistemática que os homens sofrem desde o nascimento. com senescência. que passou por hospital psiquiátrico e por asilo. as distâncias mais longas a percorrer. M as. separados de todo interesse vital. Talvez seja es se um remédio contra os danos do tempo. que é um estado normal do ciclo de vida. notaremos traços não de um d espojamento psíquico. sente-se um pária. não têm a esperar senão um fim que se convém em desejar rápido. é porque em todo o tempo o sentido de sua vida lhe foi roubado. privados de estímulos psíquicos necessários. pondera Simone de Beauvoir. devido o mais das vezes à carência de cuidados e de esforços de prevenção e reabilitação. não segregadas do mundo ativo. A noção que temos de velhice decorre mais da luta de classes que do conflito de gerações . treinou-o para reter dez nomes de cele bridades por semana. nos fecham o acesso pa ra a evocação. e uma outra que simplesment e revive o passado. em trad. nascem-me em dúvida os dias. e esta faculdade de relembrar exige um espírito desperto. versos. Não há evocação sem uma inteligência do presente. Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. sílabas. O velho. O vínculo co m outra época. de um lado.. nos fazem sentir diminuir e morrer. fala-se tanto em criatividade. pois o ancião se vê priv . E a vida atual só parece significar se ela recolher de outra época o alento. feita de hábitos. as reflexões seguem outra linha e se dobram so bre a quintessência do vivido. de reconhecer as lembranças e opô-las às imagens de agora. seria uma imagem fugidia. pesquisa. providenciar. Momentos desse mundo perdido podem ser compreen didos por quem não os viveu e até humanizar o presente. O sentimento também precisa aco mpanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo. mas. discutir motivos. ressonância. mais velho. empurrando-o para a margem. investiga. traz para o ancião alegria e uma ocasião de mostrar sua competência. a tradição. a religiosa função de unir o começo ao fim. p rever. é desalienadora. só a associação e a meditação a acrescem. a capacidade de não confund ir a vida atual com a que passou. revolta. de Manuel Bandeira) Ele. Se protestamos contra seus conselhos. Depois. parece ser esta a dos velhos. Sua vida ganha uma finalidad e se encontrar ouvidos atentos.É o momento de desempenhar a alta função da lembrança. a lembrança de tempos melhores se converte num sucedâneo da vida. busca a confirmação do que se passou com seus coetâneos. p ensamos que não se trata do exercício em si. Cresce a nitidez e o número das imagens de outrora. nas tribos antigas. os cantos e danças de outrora? Nas lembranças de velhos aparecem e nos surpreendem p ela sua riqueza. resignação pelo desfiguramento das paisagens caras. os jogos.. ou com v elhos jornais e cartas em nosso meio. A conversa evocativa de um v elho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia. Se tais atividades nos pressionam. Essa adaptação falha com freqüência. Para quem sabe ouvi-la. Holbrok. de tranqüilizar as águas revoltas do presente al argando suas margens: Meu dia outrora principiava alegre. Ele nos aborrece com o excesso de experiência que quer aconselhar.5 treinou um velho com exercício diário de duas horas (u ma pela manhã. confrontar com a opinião de amigos. o número da página de um livro. a recordação nos parecerá algo semelhan te ao sonho. quando as perdemos. mas findam sagrada. tem um lugar de honra como guardião do tesouro espiritual da comunidade. no entanto à noite eu chorava. pela desaparição de entes amados. o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a qual está maduro. Não porque tenha uma especial capacidade para isso: é seu in teresse que se volta para o passado que ele procura interrogar cada vez mais. da agradável sensação d ser ouvido que o estimulava a reter fatos tão insignificantes para ele. é semelhante a uma obra de arte. de Nova York. Hoje. Não porque as sensações se enfraquecem mas porque o interesse se desloca. (Hõlderlin. em testemunhos escritos ou orais. O dr. ao devaneio. onde estão as brincadeiras.. Se existe uma memória voltada para a ação. inibindo as imagens de outro tempo. Hoje. mas da atenção do outro. pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem cri ador de cultura com a mísera figura do consumidor atual. Esta repele a vi da contemplativa. recupera o tempo que correu e aquelas coisa s que. Aturada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação. Pobre velhinho ! Comenta WilliamJames: 'Tanta tortura e não vejo como teria melhorado sua memória". a consciência de ter suportado. No entanto. De outro lado. A tenacidade diminui com a idade.. Mas. serenamente. re ssuscitar detalhes. Quando a sociedade esvazia seu tempo de experiências significativas. compreendido muita coisa. confronta esse t esouro de que é guardião. mas uma reaparição. tanto contrasta com nossa vida ativa. outra à tarde) para que ele se lembrasse cada tarde dos acontecimento s do dia e ainda na manhã seguinte. Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode c hegar-nos pela memória dos velhos. já libertos das atividades profi ssionais e familiares. pode calar-se e talvez querer acert ar o passo com os mais jovens. um homem não sabe o que ele é se não for ca de sair das determinações atuais. Sem o trabalho da reflexão e da localização. a Burocracia. venham minhas esporas. Perdeu-se o tônus vital qu e permitia aquelas sensações. verde a árvore. a Tecnologia desmentem cada dia o bom senso do cidadão: ele se espanta com sua magia negra. tendo perdido o verde som dos hortos descer pelas ramagens nos silentes degraus. o ruído da chuva nas folhas nos desperta alguma coisa. Ao transmitir as lembranças de pessoas idosas que escutei. é sempre uma fo rça em expansão. cujo passado o habita. nem palavras exprimem o sentimento de diminuição que acompanha a impossibilidade. A percepção era uma aventur a. Ficou no adulto a nostalgia dos sentidos novos: Tendo perdido as ânforas da infância. brincávamos fora da jaula do estereótipo. infinito. ânforas que tomadas ou aspiradas derramavam no ar a substância de que as coisas bebiam inebriadas. tem o seu contorno: é uma evocação. quero expor o que pensa Walter Benjamin6 sobre a arte de narrar. Comparamos acaso nossos ideais antigos com os presentes? Examinamos as raízes desse desengano prog ressivo das relações sociais? A criança sofre. Sempre houve dois tipos de narrador: o que vem de fora e narra suas viagens. o adolescente sofre. quando . prepotência. a sensação pálida de agora é uma reminiscência da alegria de outrora. ainda vejo no sol posto o fruto ou flor fechada e rescendente. cumprir sua vocação mais verdadeira. Mas. A s ociedade perde com isso. E assim foi o primeiro encontro da criança com o mar. nosso diálogo com os seres era aberto. O narrador vence distâncias no espaço e volta para contar suas aventuras (acredito que é por isso que viajamos) num cantinho do mund o onde suas peripécias têm significação: Quando tudo no mundo é mocidade. Esta sombra tem algo parecido com a alegria. a velhice desgostada. Não havia ainda o constrangimento dos limites. moça a natureza. com a asa na luz. mas cala-se porque lhe é difícil explicar um Todo irracional. O velho é alguém que se retrai de seu lugar social e este encolhimento é uma perda e um empobrecimento para todos.. e cada rapariga uma princesa. então. Sonho com as espigas debulhadas em grãos que a luz unia ou separava para cobrir o chão de áureo tecido e meus pés afundavam na dureza macia desses grãos que me fugia sem que ouvisse no ar o seu gemido. e cada ganso te parece um cisne. aquela captação do mundo. como um animal descuidado. Se a criança ainda não ocupou nela seu lugar. Então. a hostilidade habitual contra os fracos. A Guerra. com girassol. Poucos de nós pudera m ver florescer seus talentos. HISTÓRIAS DE VELHOS Por que decaiu a arte de contar histórias? Talvez porque tenha decaído a arte de tro car experiências. Nas frias tardes da velhice. meu cavalo! Vou correr mundo em busca da alegria! O sangue moço quer correr. seus c onterrâneos. injustiças. e cada criatura quer seu dia. ágil demais para o seu passo lento. Não basta um esforço abstrato para recriar impressões passadas.. Se o adulto não dispõe de tempo ou desejo para reconstruir a infância. junto ao mesmo muro. A experiência que passa de boca em boca e que o mundo da técnica des orienta. Se examinarmos criticamente a meninice podemos encontrar nela aspirações truncadas. a saudade e a ternura pe los anos juvenis? Talvez porque nossa fraqueza fosse uma força latente e em nós houv esse o germe de uma plenitude a se realizar. Quando passamos na mesma calçada. torna-se uma ferida no grupo. o velho se curv a sobre ela como os gregos sobre a idade de ouro. ardente.ado de sua função e deve desempenhar uma nova. e o que ficou e conhece sua terra. ao retrair suas mãos cheias de dons. De onde nos vêm. Psamênito chorou porque o velho servidor. foi substituída pela opinião. Na época da informação. Mas. quando viu passar entre os prisioneiros u m dos seus servos. com certeza. a união de uma cantora com um esportista ocupa mais espaço que uma revolu ção. a busca da sabedoria perde as forças. O romance atesta a desorientação do vivente. como nos últimos versos do Fausto. permaneceu igualmente impassível. estão privadas do dom do conselho. que p oderá reproduzi-la à sua vontade. o prínc ipe poderia articular uma revolta e libertar sua mãe e irmãs. A informação pretende ser diferente das narrações dos antigos: atribui-se foros de verdade quando é tão inverificável quanto a lenda. suas falhas e lacunas. Ela não toca no m aravilhoso. Que diferente a narração! Não se cons uma. daí o narrado possuir uma amplitude de vibrações que fal ta à informação. O narrador tira o q ue narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o escutam. viu o filho conduzido à morte no cortejo . pois sua força está concentrada em limites como a da semente e se expandirá por t . trazendo um fardo de conhecimento do q ual tira o conselho. depois de ter assistido impassível ao aprisioname nto de seus entes mais caros. Os nex s psicológicos entre os eventos que a narração omite ficam por conta do ouvinte. A arte da narração não está confinada nos livros. aqueles de que esperaríamos lágrimas e nos desconcertam. sendo. se tudo é relativo e cada um fica com sua opinião? Isto também deriva das relações de produção que expulsaram o conselho do âmb to do falar vivo. Por que chora o narrador em certos momentos da história de sua vida? Esses momento s não são. em que todo desporto éjá cansaço. cansado e sem beleza: lá acharás o rosto que adoravas quando era jovem toda a natureza!7 Ou a aventura vence as distâncias no tempo. a personagem bate a cabeça so zinha. P samênito chorou porque a princesa poderia tramar nos bastidores a seu favor. Assim. um homem velho e empobrecido. Sendo uma pessoa gentilíssima. A riosto vai contar-nos seus primeiros anos rondados pela fome quase corporificada na narrativa. Ingurgitada de explicações. O sr. Po r que despregar com esforço a verdade das coisas. mas ele chora quando nos cont a que seu pai sustentava a família como mestre de caligra informação só nos interessa enquanto novidade e só tem valor no instante que surge. Ela se esgota no instante em que se dá e se deteriora. testemunha de sua infância e da existência de seus pais e avós. mas ao velho servidor já não restavam forças. Cervantes mostra como as ações de um dos seres mais nobres. Enquanto todos os egípcios elevavam prantos e gritos àquela visão. o herói sofre as vicissitudes do isolamento e. e toda a roda corre no declive. que não é pesada e medida pe o bom senso do leitor. este resolveu humilhá-lo. A narração exemplar foi substituída pela informação de imprensa. Seu arrastamento e prisão simbolizavam o esfacelamento da dinastia. portanto. a ruína. o magnânimo. vai. Heródoto conta uma pequena história da qual se pode aprender muito: Quando o rei egípcio Psamênito foi vencido e caiu prisioneiro do rei dos persas. Se essa expressão parece antiquada é porque diminuiu a comunica bilidade da experiência.8 A situação fica aberta à nossa interpretação. então golpeou a cabeça com as mãos e mostrou todos os sinais da mais profunda dor. só Psamênito permaneceu mudo e imóvel com os olho s pregados no chão. pouco depois. se quer plausível. Aqui. é porque ele mesmo está sem conselho e não pode dá-lo aos outros. Por que teria chorado o rei Psamênito? Penso e m possíveis respostas. era um elo que unia e confirmava a geração real. A arte de narrar vai decaindo com o triunfo da info rmação. nem para nós nem para os Outros. se não consegue expres sá-las de forma exemplar para nós. mesmo assim. não permite que o receptor tire dela alguma lição. "o insuficien te torna-se evento". No ro mance moderno. o audaz Dom Q uixote. e quando. No romance. seu veio épico é oral. a perda de seus parentes. especialmente a cisura indivíduo-comunidade. Ordenou que colocassem Psamênito na rua por onde pass aria o triunfo persa e fez com que o prisioneiro visse passar a filha em vestes de escrava enquanto se dirigia ao poço com um balde na mão. oh! volta à casa. Hoje não há mais conselhos. inútil e cruel sua humilhação. sua narração procura não abalar o ouvinte em momento algum. ele historia os seus desencontros. Cãmbi ses. Psamênito chorou porque a visão do velho servidor foi a gota d'ág ua que fez transbordar seu cálice.é parda toda a árvore que vive. busca o teu cantinho. á medida que o olhar se apaga. ela o tece até atingir uma forma boa. Eventos importantes em sua época eu havia relegado para um segundo plano. diz Benjamin. poeta infantil.floresce a narrativa. Leio a manchete de Oito anos atrás: A POLÍCIA EVACUOU O RECINTO DO TRIBUNAL PARA QUE AS ÚLTIMAS PALAVRAS DO RÉU NÃO FOSSEM O UVIDAS. Tendência comum dos narradores é começar com a exposição das circunstâncias em que assist iu ao episódio: "Certa vez. Investe sobre o objeto e o transform a. ia andando por um caminho quando.empo indefinido. onde morreram rodeados pelos seus. é a-hist por isso é que seu espectador perde o sentido da história. não se visitam moribundos. E eu as havia esquecido! Abro um jornal de agosto de 1973: AS MÃOS DE VICTORJARA FORAM CORTADAS NO ESTÁDIO CHILENO. to da a sabedoria do agonizante pode perpassar por seus lábios. acompanhá-lo ao ouvir os sinos plangerem.. E guardar o crucifixo onde imprimiu o último beijo. Autoridade que o mendigo possui ao morre r no chão da rua e que é a essência da narrativa.". A comunicação em mosaico reúne contrastes.seu horizonte é a morte . pois não há lenta mastigação e ass imilação.. No entanto. todo o vivido. os defuntos já não são contemplados. ENQUANTO SELS CARRASCOS O D ESAFIAVAM A TOCAR E CANTAR. a shortstory também se imprimiu e abreviou. tanto mais entrava nele a história. O leito de morte se transfo rmava em um trono de onde o moribundo ditava seus últimos desejos ante os familiar es e vizinhos que entravam pelas portas escancaradas para assistir ao ato solene . resistentes. Valéry lembra os tempos em que o tempo não contava. surpreendi-me com as manchetes que lia. Perdeu-se também a facul dade de escutar. Por que terá chorado o rei Psamênito? O receptor da comunicação de massa é um ser desmemoriado. Pesquisando jornais de alguns anos atrás. dispersou-se o grupo de escutadores. mártires. Quando os velhos se assentam à margem do tempo já sem pressa . Valéry reflete que quando diminui no espírito a idéia da eternidade cresce a aversão p elos trabalhos longos e pacientes. Era natural visitar um defunto. Como seria a vida de um mestre de caligrafia no início do século? Morre a arte da narrativa quando morre a retenção da legenda.. em que o artesão ia entalhando. quiebra tu reioj! fia. A mão se ergue para a última bênção sobre os vivos e.. Esquecerei esta notícia daqui a pouco anos? Bem nos adverte Garcia Lorca contra es se tempo atulhado de objetos sem sentido e despovoado de memória: Ay. filtrar o seu significado mais profundo e querer transmiti-lo em palavras entrecortadas cujo sentido todos se esforçam para adivinhar e interpretar .. onde jaz iam na sombra. A narração é uma forma artesanal de comunicação. Ela não visa a transmitir o "em si" do acon tecido. Os burgueses desinfetam as paredes da eternidade. episódios díspares sem Síntese. . Roubada à tradição oral. Isso quando o co nta como não diretamente vivido por ele. Ele pode examinar sua vida inteira. formando sobre ela a superpo sição de camadas sutis e transparentes com que os contadores retocam a história matriz . e a arte de narrar transmitia-s e quase naturalmente. Os agonizantes. Esta rede tecida em milênios se desfia de um lado e de outro . Quanto mais se esquecia de si o ouvinte. obtendo tonalidades novas com uma série de camadas sutis e transparentes. guerrilheiros . são jogados pelos herdeiros em sanatórios e hospitais. mais cresce a autoridade do que é transmitido. a pessoa que vai morrer é apartada. Desfilaram ante meus olhos pacifistas. es culpindo como se imitasse a paciente obra da natureza. Era natural dormir numa cama onde dormiram os avós. não permite mais que se conte e reconte. Recebe um excesso de informações que saturam sua fome de conhecer. incham sem nutrir. A civilização burguesa expulsou de si a morte.. O homem moderno não cultiva o que e le pode simplificar e abreviar. A morte vem sendo progressivame nte expulsa da percepção dos vivos. E ele cantou: Canto que mal me saies cuando tengo que cantar espanto! Espanto como ei que vivo como ei que muero espanto de verme entre tantos y tantos momentos dei infinito en que ei silencio y ei grito. como a revelação de um mistério. não o anula tampouco. diz ainda Lukács que o sujeito alcança "a uni dade de toda sua vida na corrente de vida passada concentrada na recordação [. descrevendo o ritual no oráculo de Lebadéia. Lembra Flavio Di Giorgi algumas noções sobre etimologia: A raiz bruta mn em seu grau 1 expressa o caso individual. coteja sempre a vi dência do futuro com a do passado. as revelações do que aconteceu outrora e do que ain da não é. passamos do côncavo de uma para outra mão. Na aurora da civilização grega ela era vidência e êxtase. "que dentro daquele bloco de pedra estava esse cavalo que você tirou". ou eu admoesto).. inexprimível da vida".] a visão que colhe esta unidade é a intuição e o pressentimento do significado não alcançado e. vida e morte. É uma forma de possessão e d o divinos. e esquecia sua vida humana. Vernant. A arte de narrar é uma relação alma. Em seu grau O a raiz mn entra no nível da atuação social: como moneo (eu advirto. o entusiasmo.1' Esse sentido precisa incluir o trabalho das mãos. de certa forma. * * * Mnemosyne. A história deve reproduzir. O pa ssado revelado desse modo não é o antecedente do presente. nômades. de um defunto. a vin da à luz do dia. na Mnemosyne. diz uma criança a um escultor. mas do passado em geral. como reza a fábula. Alma. portanto. a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza. de conotação posi tiva. Este grau pode permitir a formação de palav ras carregadas de ambigüidade cultural como "monitor" (conselheiro). faz uma sopa deliciosa da s pedras do chão.1° quando estuda os aspectos míticos da memória e do tempo. Não se pode perder. ordena o tempo. E a morte sela suas histórias com o selo do perdurável .. Do estudo de Vernant w sentimos a impossibilidade de separar a memória do conselho e da profecia. era a memória épica vencendo a morte em mil e uma noites.se de geração a ger ação. se não estão ainda mortos. cada episódio gerava em sua alma uma hi stória nova. é a sua fonte. Realiza uma evocação: o apelo dos vivos. É também a viagem que o oráculo pode faz er. como no conto da Carochinha. As histórias dos lábios que já não podem recontá-las tornam-se exemplares. Qual o poder de Mnemosyn e? Irmã de Cronos e de Okeanós. no deserto dos tempos. l ocaliza cronologicamente. ela preside à função poética que exige intervenção sobrenatural. do tempo antigo. era divindade no panteão grego. Mnemosyne dispensa a seus eleitos uma onisciência do tipo divinatório. puxados por outros dedos. olho . gerar muitas outras. a de seu nascimento. Entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação baseada no interesse comum em conserv ar o narrado que deve poder ser reproduzido. cujos fios se cruzem. de conotação negativa. do tempo e do oceano. Suas mãos. não de se u passado individual. Quando Scheerazade contava. para lembrar o que havia vis to no outro mundo. O privilégio pertence a todos aqueles cuja memória sa be discernir para além do presente o que está enterrado no mais profundo passado e a madurece em segredo para os tempos que virão.Todas as histórias contadas pelo narrador inscrevem-se dentro da sua história. O narrador está presente ao lado do ouvinte. A anamnesis (reminiscência) é uma espécie de iniciação. uma só gota da água irisada que. A vi os tempos antigos libera-o. descendo. E.9 O intérprete de Mnemosyne é possuído pelas musas assim como o profeta o é por Apolo. dos males de hoje. ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol. que dão asas aos fatos principiados pela sua voz. olho e mão entram em acordo para Valéry no narrador: é um artesão que torna visível o que está dentro das coisas: "Eu não sabia". fazem gestos que sustentam a história. Referindo-se ao romancista. ao país dos mortos para aprender a ver o que quer saber. por um momento. a recordadora. A memória é a faculdade épica por excelênci a. mãe das musas cujo coro conduz. Tira segredos e lições que estavam dentro das coisas. ser vivo. lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além. Qual a função da memór ia? Não reconstrói o tempo. experimentadas no trabalho. conta que antes de entrar no p aís dos mortos o consultante bebia de duas fontes: no Lethe. não vê mai s oposição entre a vida e a morte. prolongando o original. é porque vivem ainda hoje. "Dessa luta emergem as experiências francamente épicas do tempo: a esperança e a recor dação" (Lukács). como memini (eu me lem bro). Mas também "admoestador" (corregedor). Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado. Hoje. Quem guarda a memória no Hades transcende a condição mortal. Vernant. a natureza das coisas.. Seu talento de narrar lhe vem da experiência. in W. eram bonitas. que fica ali. aí remonta já mais um pouco. depois eles se separaram. Benjamin. Dessa casa. de fadas. Os nenês d'água. Ciryllo e d. (11) G. Eu era tratada como filha da casa e vestia u m avental engomado.. Eram histórias lindas. toda arcadinha. Carlos Ciryllo Junior. . não lembro. traduzido por Pepita (8) Heródoto. Kingsley. tiotado. Conheci uma casa grande. Machado de Assis escreveu sua v elhice O memorial de A ires. Tinha quem me levava e trazia do Colégio das Irmãs Vicentinas. os pais de d. James em Précis de psycho logie. esquina com a rua Rodrigo da Silva: hoje é um quartel. livro 111. Histoires.-P. Théorie du roman.. sua lição. Angelus Novus. o cabelo branco. 10 a 15. Sociologie des maladies mentales. Thomas Mann escreveu um romance de rememoração em plena juventude: Os Buddenbro ok. trabalhava na casa de um dos maiores advogados. como se dizia. (5) Holbrok. a da família Ferreira Alves. como um artífice.. Min ha mãe era empregada. copeiro. Com três anos de idade já estava aqui em São Paulo. Na casa do dr. materna e paterna. (4) R. depois de fabricar. mosaico e couro. pajem. Maria A mália Ciryilo. só conheci minhas duas avós. fiquei só com minha mãe. (1) Este constrangimento e empobrecimento da memória na idade adulta é puramente soc ial. chamava-se Brígida. (7) Esta balada está no livro de C. para os gregos. Maria Amália. Benjamin. eu era muito pequena. podiam ser encontrados no Ponte Vecchio. na velhice fazem obras -primas com madeira. nos Campos Elíseos. que. (6) W. La vieillesse. p. na juventude e maturidade. Vernant. 83. Vivi com meus pais até três anos. NO TAS em de Leão.. É o tempo de se entreg ar a uma experiência profunda. Ciryllo adorava ouvir as histórias de uma preta. o objeto em série. (9) A etimologia da palavra nos ensina que. Trabalhar a matéria-prima da experiência: os operários aposentados florentinos. de penetrar. 92 3 LEMBRANÇAS D. de Beauvoir. ALICE Nasci em Aparecida do Norte. "II narratore. sem medo. sua dignidade é a de contá-la até o fim. (2) Sobre a ingratidão em relação aos velhos doadores. há poucos anos. ele extraiu da própria dor. a vida humana. e mão: assim transforma o narrador sua matéria. in Historiens grecs. eles muda ram para a alameda Nothmann. Depois. Ficamos um bom tempo com dr. Lukács. Mito e pensamento entre os gregos. Foi pajem de duas crianças: de José e de Aicindo Ciryilo. (3) S. p. Fi cava na avenida Tiradentes. perto de Guaratinguetá. numa travessa da alameda Nothmann. How to strengthen the memory. naquela época. citado por W. uma porce lana. Considerazioni sull'opera di Nicola Leskov". Bastide. das moças da casa que ficavam muito à janela. sei que ficava mu ito tempo à noite ouvindo as histórias dela. "entusiasmo" signifi ca o estado de quem tem um deus dentro de si. O narrador é um mestre do ofício que conhece seu mister: ele tem o dom do conselho. A ele foi dado abranger uma vida inteira. caps.. Uma atmosfera sagrada circunda o narrador. quando eu era pequenina. na rua Martim Francisco. (10) J. Meus avós eram de Guaratinguetá. Nessa época meu único irmãozinho faleceu. 402. lembro de muita fartura: tinha cozinhei ra. Lembro de Ieié. príncipes encantad os. do estado de São Paulo: dr. Ela tomava conta da criançada porque minh a tia também trabalhava. Então minha mãe me trancava na despensa e levava minha comida para lá. como estou falando toda a verdade pra você. de "A canoa virou". aqueles jardins. de f eijão.. ficava com minha avó. que naquele tempo era residencial co mo. queria que cada um fizesse suas co isas mas nunca vi bater em ninguém. e aquele era o Natal. Uma noite uma vizinha precisou dormir conosco e chovia forte. Ela fazia por mim o que podia . andava com bata branca . Mariazinha?". Não dei preocupação para minha mãe. Eu não morava numa casa . quando ela trabalhav a. a mãe. Eu trabalhava. D. Brincávamos de "Senhora dona Sancha". Messias. trabalhar com uma cr iança de três anos. e dava tudo para a cozinheira. Pagávamos dez mil-réis por um quartinho d e telha-vã. r Outra. de lenço-atrás. puxavam o cabelo. Lembro que minha mãe trabalhou numa ca sa onde os meninos eram levados. A rua Conselheiro Nébias era uma marav ilha porque a gente brincava de amarelinha. ou mesmo maiorzinha. Nessa época minha mãe trabalhava no largo do Arouche. Aquele bairro ficou horrível. hoje. [bis] Vai de ramo em ramo. rolam lírios pelos montes. A gente ajudava. Vai de braço dado com seu lindo amor. vai de flor em flor. Ela era meio bravinha. minha mãe trabalha va. para encher o cantarinho. mas a vida era muito sofrida. Ouvimos o barulho de alguém que comia no escuro e minha mãe perguntou: "O que você está comendo. só catapora. E na hora de fazer o almoço a cozinheira ia chamar a dona d a casa. dá uma d or no coração. Minha mãe era carinhosa comigo. Linda flor desconhecida. mas dava. mas não podia fazer muito. Margarida vai à fonte. "Estou chupando as pedrinhas de gelo que caem na minha cama". Eu não tive pa i. preguinhas ..naquele tempo o nome era matinée . ali moravam condes em palacetes. aquela coisa. mas eu tinha carinho. de roda. como se diz. tendo pai. casada com um senhor . com uma bacia na mão.. deixa-te estar escondida nessa paz de teu viver.entremeada com rendas valencianas. aquelas ruas quietas. a cebola. meu aniversário passava desapercebido. pegador. me beliscavam. coitada. o Jardim América. muito carinhosa mes mo.. numa vila. vai à fonte e vem sozinha. podia atravessa r a rua correndo. quando passo por lá.posso fa lar? . portuguesa. O quarto em que morei não deve existir mais. eu não tive Natal na minha casa. aquilo com certeza já foi demolido. nunca fiquei do ente. De noite podia ficar até as oito horas brincando ali na calçada. Depois fomos morar na rua Conselheiro Nébias. Maricota. Minha mãe. Rolam lírios pelos montes. quando eram pequeninas: Vestidinho branco vai muito bem mas a menina Yvonne não quer ninguém. Ela abria a despensa e media as xícaras de arroz. mas era uma família muito distinta. Quando a gente se confessa tem que falar toda a verdade. ela respondeu. é difícil. como minha mãe. mas tendo sua casa. Trazia sempre as chaves da despensa no cós da saia.O doutor tinha os cabelos brancos e suíças. Lembro de uns vizinhos: d. Minha avó punha uma toalha na mesa com um bolo de fubá. Deixa-te estar escondida. ai. Fazia lições com o filho deles. linda flor desconhecida que o sol beija ao nascer. não lembro nem de ela ter-me batido. nem irmãos: a vida era de muito sacrifício. Então. Quando era pequena não tive as coisas que queria. ficava à vontade.de cor. Quero cantar uma música bem antiga que nós cantávamos na roda: Margarida vai à fonte. sempre dava uma mãozinha pra el a. mas minha mãe era muito carinhosa comigo. Eu sou pobre. era hábito. pobre.. é outra coisa.. vou fazer setenta e quatro anos. morava num quarto com minha mãe. A pessoa sendo simples. que eu cantava para minhas netas. da . uma mão-de-gato. Morei sempre com ela. Aquilo era maravilhoso. naqueles Campos Elíseos. . eu visitava esse casal. geografia e eu gostav a muito de história. No fim ela conseguiu segurar o rabo de uma vaca que arrastou ela um grande pedaço. antes de ir para a escola ela me preparava um lanche. chamava-se Wanda. seu Eugênio trouxe par a mim dois vestidos e um par de sapatos do Ao Bon Marché. Depois de lavar a loucinha do al moço ia brincar com uma menina de minha idade. não chores. mas adoro história. estudei até o terceiro ano. Eu gostava tanto dessa canção que mais tarde cantei também para minhas netas. mas canji ca sem leite não dá pé. ali. nem rádio. o bom era se tivesse leite". que era cega.minha idade. Maricota cantava para a menina dela. aí eu falei assim: "Olha Carmela. (do álbum de d. Tinha notas boas em tudo. Todas as pessoas daquela ruazinha sem saída trabalhavam na fábrica. Es sas pessoas talvez não existam mais. vai-se outra. enfim dezenas de p ombas vão-se. filhinho. meu amor. depoi s escrevi uma cartinha para ela. depois da ponte do Bom Retiro. ela me respondeu. Quando não passei para o quarto ano foi por causa de aritmética: eu chorei tanto quando soube que precisaram me levar para a sala do diretor. Carlota. Hoje não sei se tem outro nome. ma s minhas melhores notas eram sempre de história. Penso que ainda existe. Um dia. com sete. tinha uns nove anos. c omo se diz agora. E eu. "Nada. A gente sai por aí.. era uma senhora de pe le clara que usava óculos. Na aula de composição me lembro que a professora contava um a história. minha vida foi sempre assim. com caneca para ajudar a tirar o leite. Então minha amiga falou: "Ah. ela mandava recompor no quadro. mas o grupo existe. fiquei uma temporada em São Bernardo . a Irene. como sabia que eu. Almoçava lá. na casa de uma tia. filhinho. Eu ficava com minha avó. como eu disse pra você. de tecidos. em casa tinha canjica. No terceiro ano precisei sair do grupo. Lembro de uma poesia que decorei na escola: Vai-se a primeira pomba despertada. ainda depois de casada. não castigavam. Você tem uma corda aí?". andar de cá pra lá. As casas pertenciam à fábrica Pereira Inácio. e eu. Minha tia trabalhava na fábrica e as vizinhas também. As profes soras eram muito boas. mas não lembro de livros. Um di a.. Mais tarde.. isso aí não é problema. mas lembro das aulas de tabuada. não chores. e fazia o servicinho de casa para ela. mas q ue bobagem. O remédio foi voltar pra casa e comer a canjica com açúcar. oito anos. no campo tá cheio de vacas. catava uma flor.) Maria lavava. José estendia. eu s ei tirar leite. como até hoje. não tenho estudo nenhum. Entrei co m sete anos. Emma Strambi Frederico. Nós ficamos sem leite. eu adorava ela. Quero cantar uma canção que d. não tenho nem o primário completo. A gente saía ali no campo. Não chores.. d. mais outra. não dá para lembrar. Outra vez. Hoje. Não lembro dos coleguinhas. enquanto a mãe trabalhava. não guardo as coisas mas gosto de ler. que também tomava conta de seus irmãozi nhos. achei aquilo uma glória. Minha avó cega perguntou: "O que vocês estão falando?". Aprendi a ler no Grupo Escolar do Triunfo. que gosto de escrever. Só lembro da minha pro fessora do primeiro ano. Com menos i dade. Só lembro bem da época da Conselheiro Nébias para cá. apenas raia a madrugada. Com uns doze anos.." Quando saímos a Carmela foi correndo atrás das vacas e a criançada toda em volta dela: "Carmela! Quando a mamma vier eu vou contar!".. e o menino chorava do frio que fazia. quando era criança. quando ela era de colo: Ida Strambi. na alameda Cleveland. não chores. minha flor. jornais. ela falou: "Você quer saber como eu vou montar a cavalo? Eu mon .. correndo também. tem canjica. nós vamos dar uma volta. nós saímos. Lembro também da minha última professora. Essa família foi muito boa para mim. gosto de ler. a água de nossa tina estava uma pedra de gelo. mas era leva da. mas acabei quebrando o gelo da tina e puxando água do poço. uma mocinha mais velha que eu me ensinou uma modinha que não tem ma is ninguém que lembre. à sua bela imagem. "Mas como você vai montar a cavalo. foi a última vez qu e a vi. Naquele tempo. aquele gosto. és a minha paixão. Um dia fiquei com tanta raiva. E a cabeça enquanto rolava baixinho ainda murmurava: . Teve cas as em que morreram todos. és a minha paixão. Foi a primeira canção que escutei depois das cantigas de roda: Numa lenda do Norte. mas tinham medo que me fizesse mal. eu falei: "Posso tomar ali atrás da porta?". Talvez ainda ela exista. é condenado à morte. minha Carabô. Fiquei indecisa. no meio do capim.. Foi geral.Ó minha Carabôooo. Uma vez os irmãozinhos dela ficaram amolando muit o. Todos. Quem estava aqui em São Paulo. As famílias estendiam suas roupas na cerca. a suspirar assim. Com oito anos. Tenho uma v aga lembrança que a gripe espanhola foi depois. Como podia lavar a roupa no gelo? Tirar ág ua naquele frio era difícil também. menina. você precisa tomar aqui". mi nha tia e minha avó ficaram doentes: eu precisava dar um caldinho para eles. uma noite. d. disse que a gripe foi medonha: ouvi falar. Lá não havia água de torneira. minha Carabô. para mim só tu. dou-te o meu coração. Em São Ber nardo morreu muita gente. as roupas ficavam duras de geada. O pobre namorado. os de São Bernardo.. Quando meus tios levantaram eu fiquei doente. Eu acompanhava nas brincadeiras. vieram em todas as casas dois funcionários. eu não era tanto. Tinh a um cheiro horrível. a corrente do poço era muito velha. Um dia foi pedir a mão. No meu casamento ela foi me cumprimentar.to!. naquela época não davam água para a gente. chora enquanto ele diz: . dou-te o meu coração. Disseram: "Olha.. todos já estão falecidos. todos em São Bernardo tiveram que tomar. havia um poço. andava apaixonado pelas florestas negras sem fim. ficava uma. E me deram um vidro. Filom ena morreu e o filho dela morreu também" E vinha outra: "Sabe.. toda emendada com arames. que amava uma princesa.Ó minha Carabô. ela fechou todos no armário. para mim só tu. Não sei mais dela. Eu vivia assustada mas não se tomava nenhuma providência. lavar a roupa. (aqui preciso subir a escala. Ouviu-se um grito forte. Ela era muito levada. todos. pareciam um fantasma. Meu tio. entre a fábrica e a cerca de arame. as duas moças que mor avam lá? Morreram". Não me lembro se essa campanha foi antes ou depois da gripe espanhola. na frente. Carmela?" Pois ela montou sem o selim e a criançada correndo atrás dela. Só tomei c há e caldinho. porque é muito alto) Todos se conheciam naquele pedaço e de repente vinha alguém e dizia: "Sabe.. E a Carabô.. não sei se é certo. nunca vi uma coisa mais enjoativa que aquilo. Tive que tomar.". Gostava também de ouvir "A casinha pequenina" e: A casa branca da serra onde eu passava horas inteiras sob as esbeltas pal7neiras . não deu para fugir. Em outras casas. que levavam a gente que morria até em caminhão. aquele cheiro parece que não sai mais. Ó minha Carabô. contam com singeleza o amor de um guerreiro. mas no caminho encontrou uma tribo selvagem. Até hoje me lembro. Eu tinha sede e pedia água da mo ringa. duas pessoas. pobre infeliz. escreve ram o nome de todas as pessoas e marcaram o dia para dar óleo de Santa Maria. quando eu via que trazia presentes pra eles e não trazia para mim .. Em São Bernardo. pa rece que em tudo teve muita sorte!". Assim. Talvez quem vá ler essas linhas diga: "Mas esta senhora. Eu já chuleava.. fiquei toda content e de passear na caleche puxada a cavalos. Você veja que naquele tempo era calmo. Serpa Pinto. aí. sair. Dava umas voltas com a fantasia e quando ele voltava desmanchav a as bainhas depressa para ele usar à noite. Quan do estava em São Bernardo. Então o pai resolveu pedir um café e começou a chamar: "Marica. fazendo gregas de ponto à-jours ou pon to à-jours corrido. festas. Por que vai ficar até que horas sem jantar?". para vender a metro. com a bandeira do Divino e gente tocando atrás. homens ingratos" e "Coração Santo. não. uns quinhentos réis. Ganhava assim um pouquinho mais. nós duas. meu Deus?). ficava fazen do ponto à-jours.. que era uma s enhora de muita idade. Maricota falava para os filhos : "Agora é tempo de são Nicolau. venha jantar. Deus me livre! Não saí. O nome da prop rietária era La Battaglia. juntavam os alfinetes do chão. com certeza eu tinha já uma tendência pra isso.. na Barra Fund a. As serenatas. arrumavam as linhas nas caixas. dona da oficina. abri a janela para ver. Tinha muito mascarado na rua e fantasi as. E eu acreditava e ficava assim espantada. Com dez anos comecei a trabalhar numa oficina de costura. No céu. cambraia. alguém me fez uma serenata linda de morrer. Não dava pra passear com minha mãe. lá no Bom Retiro.". vocês andem direitinho.. Junto à Virgem Maria no céu triunfarei.". Não sei quem pôs uma bandeja na minha mão e outra na mão de minha prima e fomos. naquela época. ficava para ajudar minha mãe. Se um rapaz namorava. conversava mais com os pais do que com a meni na. aquele acanhamento. Uma vez fui com a família de d. Fiz minha primeira comunhão com treze anos na Igreja de Santo Antônio. Maricota passear d e caleche no Carnaval. como eu precisava ganhar mais um pouco. A senhora. comecei a trabalhar na oficina de costura na rua Duque de Caxias. Aí. Ainda não falei nas serenatas. D. tudo para ela foi bom. Eu não lembro de ter tido nunca um brinquedo. Ganhava cinco mil-réis por mês. nem vi.. Gostava muito de "Queremos Deus. minha avó achava ruim aquela cantoria que não tem mais fim. fazia uma bainha.. Aqui em São Paulo. vem aqui. Mas. com violão. usava muito tirar esmola para a festa do Divino. A senhora. Com doze anos. Na quele tempo não havia tantas máquinas de ponto à-jours. cavaquinho. Lembro das serenatas da rua Dr.. a pé. t inha rolos de nanzuque.contigo a conversar. mas a questão é que para usar o pierrô eu precisava dobrar a bainha da calça e da manga porque ele era m ais alto que eu. eu jantava. Eu era aspirante a Filha de Maria. fazia serão. talvez já falecida.. Minha mãe contava de uma prima que foi pedida em casamento Ela ficou no fundo da c asa e receberam o rapaz na sala. porque eu saía da rua José Paulino e ia até lá. e eu. Mas não sei quem foi. Tu reinarás".. Era muito bonito aquele tempo. eles iam andando.. . tirando esmola. na f rente da procissão. eu não apareci.. dizia então: "Você. ace itava a janta. Nós cantávamos: Com minha Mãe estarei na santa glória um dia. no céu com minha Mãe estarei [bisj Com minha Mãe estarei mas já que hei ofendido ao meu Jesus querido as culpas chorare i. é coisa americana.... só assisti em São Bernardo com procissõe s. (Ele ia dizer pra ela trazer um café. à noite eu fazia ponto à-jours e arrumava a cozinha. Ganhava uns dez m il-réis por mês. Ficava com pena e arrumava a cozinha para a mãe dela. As meninas varriam a s ala. Quando as moças saíam. Naquilu tempo a gente falava são Nicol au. Há pouco tempo fiz uma excursão e em Uberlândia ouvi passar uma serenata. Se ia visitar a namorada ficava conversando na sala com os pais e ela ficava lá pra dentro. lá na Santa Cecília. Mas eu preciso falar o que é. graças a Deus. Meu primo tinha um pierrô azul. fui uma pessoa de muita sorte neste mundo porq ue onde eu andei fui estimada. Papai Noel veio depois. era lindo. Era po uquíssimo.. As mães achavam ruim. andando e cantand o pela rua. Ele me emprestava a fantasia.. bandolim. tenho uma vaga lembrança desse passeio. para trabalhar desde as oito horas até as sete horas da noite. na rua Apa (onde fica. missa.. depois que as moças saíam. então. talvez mais tarde. la a pé até a rua Marquês de Itu. Sábado era o dia que mais se trabalhava. é. nunca. cuidar de meu quarto. a modo de dizer. Lia alguns romances quando podia: A rosa do adro. dizer que eu ia no cinema.." Como chegava tarde durante a semana.. el e vinte e dois. era o ordenado de uma ajudante boa. Maria. foi o meu primeiro namorado.. Todos eram amigos. e não ganhava extra. Quando eu saí da oficina estava ganhando 75 mil-réis. toma va um café com leite.. na rua Anhaia. e minha prima Mina. me levava para dançar no grêmio recreativo do Bom Retiro. entrava de manhã e não saía até sete e meia. depois. subia a José Paulino. Meu tio dizia "era ensaio". d. tiv e tanta felicidade! Naquele tempo mesmo. era um quarto.".. que me estimou m uito. se vestir com 105 mil-réis. era noi te. A minha vida era da Mar .. Meus tios. uma casa de couro muito antiga. Tenho que aju dar minha família. No nosso quarto não tinha luz. Mas pouco tempo durou. Quando meninota. de d. Um dia ele disse para minh a mãe: "Olha. meu casaco estava pingando. chovia. que se casou novinha. irmãos.. habanera. acendia lampião. nossa amizade continuou semp re. num quarto junto com minha mãe. O u vinha pela alameda Cleveland. As outras moças tinham pai. pois o que a gente é. oito horas. Eu ia de lá do Bom Retiro. por que precisa perguntar?". guardar se u trabalho bem dobradinho. um pedaço de pão. Nicota Aranha. Voltava sempre a pé. Era um a rua sossegada.. Não tinha. As festinhas com gramofone tinham acabado . quando eu costurava á noite. Até que eu chegasse em casa.. Com quinze anos trabalhei na rua General Osório com madame Vasques. das festinhas do gramofone . perto da Santa Casa . fomos à escola juntas. moravam perto. eu vou me retirar porque a Alice é muito nova. Minha mãe ganhava 45 mil-réis: tínhamos que pagar o q uarto. era longe! Nessa oficina. nem vou mentir para a senhora. podem guardar seu trabalho!". onde tinha uma casa muito antiga. minha madame pergunt ava diante das companheiras: "Ô Alice. isso com muita simplicid ade. O aluguel do quarto era quinze mil-réis.... Quando eu trabalhava. eu vou dizer para você. uma banana. e eu nunca almoçava. Comia um pedaço de pão com queijo. atravessava o Coração de Jesus. não encontro palavras. sempre a pé.. São coisas que já passaram. era Outro conforto e eu era. quem arrematasse dançava sozinho. eu guardava domingo para lavar minha roupa. mazurca. passava na estação. na José Paulino. ele achou que não valia a pena. por que você faltou ontem?". passava ali no largo General Osório. Eu morava na rua dos Italianos. cinco buquês de flores no salão e os pares que arrematavam as flores dançavam... não tinha con dição de vir. nove horas. nunca me queixei. "Eu não vim ontem. por enquanto é melhor a gente se separar. diziam cortiço. lá na Vila Buarque. eu tinha que pôr minha roupa em ordem para começar na segunda-feira. e tinha que dar! E a gente sempre fazendo serão na costura. Ele até entrava em casa. Conheci meu marido numa sociedade musical do Bom Retiro. meu vestido. a gente casa. "amanhã é dia de ensaio" e a gente brincava um pouco. não dava. Quanto tinha só um buquê. vela. Bom. onze horas. Quando faltava na oficina e chegava. Paulo e Virgínia. trânsito. quitandas.. Dançávamos polca. onde minha mãe trabalhava. que esperança! Esse meu tio. meu tio tinha um gramofone e uma vez por semana vinham amigos e a gente dançava. Não recebia nada pelos serões. que era u ma rua calma com sorveteria.. é a roupa que eu cuido no domingo.. E foi embora. mas sem ganhar nada nunca por isso. A escrava Isaura. Se mais tarde for desti no. Mas não acho que fui infeliz... Iracema.) Mas ela nem deixou o pai pedir e foi respondendo: "Mecê sabe que eu quero mesmo. molhou meu sapato. shots e valsa. a madame dizia : "Meninas. ele e eu. ficava até mei a-noite. Faziam quatro. não tinha nada: era minha mãe. Aí eu já ganhava um pouco mais. brincava lá na casa de minha avó. valsas bonitas como a dos Patinadores. Eu conto tudo pra você.. Não tenho mais do que a senhora me vê na of icina. Aí. Morei em tantas ruas lá no Bom Retiro. A madame servia um chá.. não tinha sala. Eu tinha treze anos. nem para o centro da cidade eu ia. quem sabe se haverá algum descendente que vai lembrar e também falar sobre ela. eu m e apeguei a ela como a uma irmã. assim. as festas eram agradáveis. ragtime. tínhamos que viver. A gente ia tirar o avental. a ge nte ficava com aquilo. Depois essa oficina mudou para a rua Marquês de Itu. porque aquele domingo pra m im. a mais simples de todas. primos. lamparina. em Santos. Quando chovia muito. a Barão de Itapetininga com as lojas finas. a Casa Alemã. O barbeiro onde ele ia. A família dela tinha chácara e vendia buquês de violeta na porta do Teatro Municipal. para visitar minha prima Mina. Hum berto soube que eu ia viajar. Depois que casei fui morar com minha sogra na rua Correa dos Santos. Os baleiros vendiam essas balas no largo. ali perto d o Colégio Santa Inês. A festa foi nesse sa lão. lembro até ho je. Você lembra ou ouviu falar das balas em saquinhos de recortes. fiquei em c asa fazendo meu enxoval. Fui. mas eu estava com ela. perto de minha casa. não conheço ninguém. filhos do irmão dele: "Essa aqui vai ser a tia Ali . ele não me via mais. chamado Palace Club. veja quanto que eu andava! Do largo da Sé. cantando e fazendo serenata. e ela e o marido foram c onosco. Meu casam ento não foi um casamento de luxo. gostei. em bandejas . E ela. um dia ela me chamou e disse: "Você quer fazer uma viagem comigo?". vi o mar de longe. Não é muitos anos que passei por lá.. aquelas moças atenciosas com a gente! Eu adorava a cidade. Ela se chamava Ida Malavoglia.. todo o viadut o fazia um passo bem curtinho. Era uma casa simples. os moços. Falei: "Não vou aceit ar as balas. mas foi muito bonito. todos rendados. no Bom Retiro. que a gente analisa mais. uma confeitaria com salão de baile em cima. Quando pu s o pé naquela casa. fez meu vestido de noiva. Me apresentaram. quando parti em viagem de lua-de-mel. ela era uma maravilha. eu já tinh a dezessete anos. passe avam nas ruas inundadas. muito feliz.quês de Itu para o Bom Retiro. A enche nte tomava conta de tudo.. As famílias todas tinham barco e. eles me receberam com todo amor. fiquei na sala da frente. da oficina. Um dia o baleiro chegou para m im e disse: "É para a senhorita essas balas. naquele tempo não é assim como agora. que era lá onde eu tomava o ôn ibus. aquele sossego! Eu toma va o ônibus. Madame Vasques me quis muito bem. lá do Bom Retiro. naquele tempo. a garoa caindo no meu rosto. Não demorou nem um ano o noivado. branco?. dona Ângela ". Nós fomos lá. Ele foi me esperar na oficina. coitada. depois foi mudando tu do. estava grávida.. para Santos. A praça do Patriarca não mudou muito. d ela que pedi que ela fosse comigo. tomav a a rua Direita.. não sei se você já ouviu falar. foi a p rimeira vez que eu fui. do Patriarca entrava na Barão de Itapeti ninga. tanto.. achava uma delícia. Eu não entendo a cidade. com iluminação nas barcas. aos domingos. azul. que era bem grande. . e marcar o casamento" . A turma foi.. Casei na Igreja de Nossa Sra. mas quem vai para lá diz que agora está uma coisa feia. Tinha. da Barão de Itapetininga saía na praça da República. que é falecida já há muito tempo. Eu não fui viajar. Eu gostava tanto. Vou contar uma passagem que não precisava contar. quando o Tietê transbordava. aquilo era uma alegria. viu? Eu casei em abril. era bonito sim! As mulheres andavam de chapéu e luv a na cidade. quando estava tudo arrumado. que se tinha casado. e disse: "Está bom. podia ficar noiva: "Vou falar com sua mãe. Se você entrava na Casa Sloper . para mim não tinha a cidade. Uma colega muito amiga. perto da avenida T iradentes. num piquenique do Mappin. eu andando bem devagarinho. Não aceitei as balas. Auxiliadora. com dezoito anos. a gente vinha. A igreja ainda está lá. O centro da cidade era bonito. Mais tarde. Gostei dele. não posso dizer por que. mas a rua Direi ta de hoje não é nem a sombra da que foi naquele tempo. durante a noite. descia no largo da Sé. A madame Vasques um dia me convidou para ver o mar.. atendeu o meu pedido. ele que comprava e eu que bordava todo o meu enxoval. arrumei um chapéu de organdi para poder ir para Santos. sabe?! e fiquei de longe. os sobrinhos do meu marido. deve ter contado para ele. já se tinha casado. tomando aquela garoa. D eixei de trabalhar. É romance a vida. cor -de-rosa. a casa ainda exi ste. nem cheguei perto. A chácara dos Malavoglia era no fim da rua dos Italianos. o Fulano mandou". ai. A madame tratou uma professora de inglês. Planejou uma viagem para os Estados Unidos. Par a nós. como num passeio. minha mãe era uma pessoa muito simples. Fiquei toda cont ente. Depois de casada fui muito. Às vezes a gente ia passear no largo Coração de Jesus. fiquei acanhada.. Gostava da volta. Não sei por que gostei dele. de presente. nunca conversei com ninguém aqui". naquele jardim dos Campos Elíseos. quando conhe ci a cidade. minha s ogra ficou com a parte de trás. a rua Direita com a Sloper. a baixada do Bom Retiro ficava a Veneza brasileira. foi minha mãe que falou com madame Vasques que e u tinha desistido de ir para o estrangeiro. atravessava o Patriarca. . ia conversar. era hábito. agradável. E ia no Jardim da Luz. A Gloria Swanson es tá com 78 anos. lá na oficina.. Ali. Naquele tempo não era gorda assim. A Wanda. Ela era uma artista. gostei mu ito de Laportatrice dei pane. Eram itali anos.. Rigoletto. compreensivo: quando casei tive roupas. queriam também escutar as histórias do rádio. Fazíamos corso na avenida Paulista. era uma rua estreita. Ainda fui com meu marido nos bailes de Carnaval da praça da República. tenho uma fotografia de quando ele completou cinqüenta anos de fábrica. eram como se fossem minhas irmãs. iam desfilando de tarde. fazia aquel a comida adorável: um feijão com arroz que não é qualquer brasileiro que faz. o Marconi. a gente descia do carro. naquela avenida grande. Ia s empre com minha sogra entregar suas costuras na rua Formosa. Levávamos sacos de confete dentr o do carro e as serpentinas precisavam tirar do meio do caminho. com o vestido rodado. e muito bem. fazia enxovais para as famflia s mais antigas de São Paulo. Essa família Razo.. que lá por 1922-1923. Todos os sábados. muito amor dessa família. Meu sogro não trabalhava mas cozinhava. cantávamos: "Ó Margarida. Apesar de ser de uma família estritamente brasileira. Toda a semana íamos a um cinema que tinha no Bom Retiro. conforto na medid a em que ele pôde me dar. E eu. Pa gliacci. a capota foi arriando devagarinho. Aos domingos.. as famílias podiam passear. depois do almoço. fui me entrosando tão bem. Meu marido foi um home m muito bom. Nós recebíamos em casa o jornal Fanfuila e eu lia os romances em folhetim. Fui sentada na ca pota do carro. morava lá no teatro. Toda vida trabalhou nessa fábrica. todos. tinha co rso. Mais tarde. E o pessoal ficava na calçada.. Depois tinha o c orso lá na avenida Rangel Pestana. minha sogra. ver os filmes da Pola Negri. já na minha casa do Cambuci. meu sogro. Quando minha filha tinha seis meses mudei para o Cambuci. Gloria Swanson. E as operetas. o jornaleiro entregava o folhetim separado toda semana: e ram proezas de antigos cavaleiros italianos. papai. no meio da rua Rego Freitas. e mesmo personalidad es. O Humberto estava sentado na frente com o chofer. com Rodolfo Valentino. Ele era gravador em metal. Íamos todos fantasiados. Recebi muito carinho. Quando a menina . íamos passear no Jardim da Luz. penso que assisti todas as óperas. as cunhadas que eu tinha. fazer brincadei ras com os outros. e o carro t eve que voltar para trás para me apanhar. Teda Bara. "Pirulito que bate.. que era uma beleza. perto do largo do Arouche. p asseando. quase em frente à fábrica onde o Humberto trabalhava. fui com um vestido amarelo de babadinhos. Gostávamos da Mary Pickfo rd e do casal que cantava: Janette MacDonald e Nelson Eddie. foi uma família maravilhosa. Assisti a Tosca. que era linda naquele tempo. Quando vinham as grandes companhias itali anas de ópera. na rua São Bento. minha filha. desde a fundação da oficina. com aquela língua. quando meus filhos eram pequenos. Gostei muito de Sangue e areia. senão os carros não podiam andar. os carros andavam devagarinho com aquelas moças bonitas. O primeiro fil me falado que assisti foi no Cine Rosário. Suas duas filhas s eguiram a profissão: foram contramestres da grande fábrica da alameda Nothmann. Eles beijaram minha mão e por muitos e muitos anos. meus sobrinhos. A gente dizia: "Vamos da r uma volta lá no jardim?". no Parque Antarctica. Meu marido trabalhava no Cambuci. qua ndo eles me viam beijavam minha mão.. de casas baixinhas. era casado com uma senhora que trabalhava n o Teatro Municipal. Minha sogra costurava. eu choro. fui caindo devagarinho e sentei. quando você acabava de dar uma volta já era madrugada. era uma casa modesta.. Todos. com as famílias amigas. quem queria escutar punha o fone no ouvido. Quando o Humberto olhou para trás eu já não estava. Ia com meu marido e uma vizinha. O corso era muito bonito. tudo muito bem tratado. mas não dava porque nosso rádio tinha só dois fones.. ainda em forma. cadê a mamãe?". Aida. uma fa lecida só há dois anos. rua dos Alpes. ela ia quase lá na Penha. em capítulos. excelências. e da Greta Garbo na Dama das camélias. Mas não me machuquei não. por que está tão triste?". eu ajudava minha sogra na costura. onde eu entrei. que tinha cinco anos. bate". eram lindas as óperas. alguns já eram casados. em casa. eles sempre ofereciam lugares. Ninotchka. no últi mo corso que eu fiz. na Masucci. Petracco e Nicoli.ce". também já falecida. como vejo nos filmes da TV. Um amigo de meu marido. falava: "Papai. na avenida Paulista. Íamos a piqueniques na Cantareira. "Um pierrô apaix onado". passeios. Todos. como todas as famílias ital ianas. o bacalhau. No Natal. deve ter morr ido no combate. eu estava entrançando o cabelo e prendend o com grampos. Macarrão. precisando. alguém bateu em todas as portas da rua dos Alpes: "Vai explodir o depósito de pólvora lá do Hospício". acho que todas as pessoas são assim. carroça. Eu queria levar os brin qu edo de minha filha. depois que as crianças subiam par a dormir. Põe uma camada de bacalha u. o trabalho não diminuiu. bonecas. Fomos para a casa de um amigo e à tarde.) Imagine crianças. No dia seguinte disse: "Vou embora. Ela cozinhava no f ogão de lenha. eu ia me agüentando e ficando mais um pouco.. E cozinhava. e todo o mundo subindo como uma romaria. Agora. salsinhas.. Durante a noite. Toda a vida fui eu que cozinhei. a avenida Lins de Vasconcelos. Da batata também... onde havia uma calçadinha e andava até o Alto da Lapa . meus filhos não querem que faça nada e dizem: "Mãe. corta fatias regulares. Cortaram as luzes e de noite os tiros sacudiam a casa. cebola. sempre com o tomate no meio. Fica muito gostoso. naquela madrugada. Depois de casada. era a revolução. regando com azeite. como na terra dela. naquela procissão. Por cima as nozes moídas e então põe no forno. completou um ano. pois não existe outro como ele. Minha mãe chego u e disse: "A cidade está cheia de soldados de carabina embalada. Foi a Revolução do Isidor o Dias Lopes. vendo tudo sossegado. Muita gente morreu. limpava-se o chão com cera e escovão. Mas quando foi um dia. naquele tempo. A casa pertencia à Petracco e Nicoli. fomos pela rua dos Alpes. mulheres com bebê. Páscoa. a família se reunia. A gente nunca quer sair da casa da gente pra ir pra nenhum lugar. nunca deixei de reunir a família no Natal e de feste jar o aniversário das crianças. Ernes tina. Sempre. Mas era de verdade a revolução. (Esse Hospício devia ser lá na rua Tabatingüera onde tinha um quartel. De fato. quando saíam na rua. alho. Sempre costurei para minha família. Quando meus filhos cresceram. bichinhos. Fui para o Alto da Lapa. minha casa tinha sinais de bala na parede. para que ficasse armado. é claro. os estrondos. trabalhei muito fazendo arranjos de flores artific . Você quer que eu fale a receita? Pica tomate. Depois que meu marido morreu.. Mais tarde. as famílias vinham de longe para ficar reunidas na cas a da mãe. Vinha pelo mesmo caminho. eu lavava a roupa. num tabuleiro. era o dia 4 de julho. você já trabalhou muito". Outras casas foram saqueadas. outra de batata... porque ia ao teatro à noite. na casa. quando mudei para uma casa maior.. era na minha casa que se r euniam todos. atravessamos o l argo do Cambuci. o serviço era pra va ler. só quando já não pod e ficar mais. na cozi- nha. e pediu o favor que viessem me busc ar com a menina. minha mãe. todos os meus amigos daquele tempo ainda falam do macarrão de d. Então minha mãe veio morar comigo. só feito em casa. a menina. mas vou sair daq ui". O Humberto não acreditou. ouvimos os tir os de canhão. ainda faço o serviço da casa. na porta de uns amigos. e o barul ho do canhão. Na vigília de Natal. Meu marido ficou em casa: para me ver. passávamos com minha sogra. Afinal juntei um pouquinho de roupa necessár ia e com Humberto. Quando voltei.. lá em baixo na rua Tabatingüera. entra va na margem do rio Tamanduateí. na casa de uma cunhada. lavava tudo à noite. Uma comida que ela gostava de fazer n essas festas era capeiletti no caldo. fim de ano.. Quando saía fora de casa via o clarão.. a oficina em que meu marido tr abalhava. velhos doentes que não podiam andar. Era uma delícia. voltamos pra casa. co m toda família de meu marido e a minha. Minha sogra me mandava. vou de carro de boi. onde ficou até morrer. Às vezes eu encerava o chão. ela fazia um pimentão recheado com miolo de pão. no depósito de pólvora. vai ter uma revo lução". Os carros. festejava também o meu aniversário. o tiroteio se cruzava entre os soldados na Igreja da Glória e os outros. Tira todos os espinhos e corta umas lascas gran des de bacalhau. Na véspera do Natal ela fazia roscas com mel e um prato especial: bacalhau com nozes. Meu marido viu um carro parado em nossa rua. pelas duas horas de madrugada. Uns primos meus acompanharam os revoltosos e um deles desapareceu. u vas passas. Eu só tinha medo de morrer no escuro. Minha mãe foi pa ra Nova Odessa.. o recheio de galinha se cortava em fatias como um bolo. De manhã estava tudo limpo. Durante o dia. Não havia enceradeira. queijo. ficou de molho. os soldados pegavam. No Natal. Eu morava no meio. foi aquel a alegria e ela: "É um maschio. Fui para a casa de uma cunhada. As moças eram acanhadas.. Custei a sarar. Foi um dos trabalhos bonitos que eu fiz. antes de saber se v iria um netinho ou netinha. não sofro não por ca usa dessas coisas que vou lembrando. Yv onne. o m ais lindo que vi. a Natalina. a madeira. c omo nascia uma criança e perguntei para duas amigas que foram me visitar e que rir am muito de mim. Estava com pielite e no fim da gr avidez. quando eu não jantava. um frango. com saúde. pondo na mesa o que tinha de melho r. seu M oisés foi muito bom para mim. mas tive uma moreninha. la casa deile tre ragazze!". Meu marido foi muito bom. e mostrou um berço austríaco de colunas torneadas. de Santos. que morreu com dois anos. Imagine como era v ivaz: meu tio de São Bernardo veio trabalhar aqui em São Paulo. ela vinha todo dia vis itar e dar banho na criança até que caísse o umbigo. Algu ns dias de- pois ela morreu com uremia. Fo i uma alegria a vinda da terceira filha. com o Humberto. como era o costume das famílias italianas. Quando a parteira chegava a gente costumava arrumar a mesa para o lanche dela. mais tarde. A senhora me respondeu: "Faça como eu disse porque meu neto que vai nascer será me nino". Antes de completar dois anos ela ficou com crupe. uma jarra de vinho. nada!". Dormia no quarto com ela e as crianças dela e passav a a noite mudando de cama em cama porque queimava de febre. A dieta era de 40 a 41 dias e a primeira saída da criança com os pais era a visita a Nossa Senhora da Penha. ces tinhos forrados de renda e de seda. Foi a segunda filha.. Nunca a Yvonne se esqu ecia de fazer um pacotinho de jornal e entregar para o tio explicando que era a merenda e ele fazia questão de levar também. Sabe que recordando os serões em que trabalhava em criança. Meus filhos nasceram com a parteira Paulina Bellone. um garfo repuxando meus rins. Humberto. tomam cuidado comigo. Ernestina. O médico vinha me ver todo dia. Uma senhora veio me procurar: "Quero levar a senhora para ver o berço de meu neto. meu marido é que ia levar meus trabalhos lá. nunca ouvi meu marido dizer um palavrão em casa (na fábrica não sei). Essa casa tinha dois dormitórios. nesses casos a gente fazia em branco ou amarelinho . escovinha. Tenho aqui o retratinho dela. na sala. construiu uma casa num terreno que tinha na rua Jerônimo d e Albuquerque.. e u me sentia mal. gosto de ficar recordando. quando terminei. quando nasceu o menino. Só o caldo.iais para vender. Ele escolheu desde o tronco da árvore. vidros.comecei a esperar minha primeira filha. Trabalhei para a Casa Moisés. gostaria de poder fazer aqueles comentários. Fiz muitos trabalhos.. parece que estou contando para uma pessoa mui to querida.) Mas depois. mulher de um farmacêutico no B om Retiro. Meus filhos foram criados na cadeira de balanço. e eu costumava fazer a merenda para ele levar na fábrica. Agor a. mas a criança nasceu normal. Até hoje adivinham o que eu quero. um bom banheiro. Ela me levou de carr o até Higienópolis. o tagliarini de d. meu marido desen hou a mobília* do gosto dele. sei lá. na casa dela. nunca fui ao médico e uma parteira me aten deu. conto com todo prazer.. é um maschio!". É falta de modéstia. nem bacalhau. Quando ele nascer eu quero que esteja pronto". Forrei com tule azul. Minha mãe não me deixava f azer o menor esforço e dizia: "Depois dos 41 dias você pode até arrastar o armário.. Depois de cinco meses de casada e já achei que era muito tempo . Tivemos que entregar a casa em que morávamos e mudar. A parteira brincava: "1h! Sr. sr. naquele embalo de cantar. Meu marido. na indústria Matarazzo . nem arroz. A sala em cima tinha uma barra de . As p inturas ficaram lindas: na parede da sala de jantar havia painéis formando quadros . cantar. Os três são louros. que era especial. Humberto. aqu eles pedaços do princípio de minha vida. um queijo. de olhos azuis. E eu fui com o Humberto e nossa filhinha. Perguntei por que ela exigia o forro azul. Chamamos um médico alemão que quis operar a menina em casa.. maçãs. No quarto mês de gravidez ainda não sabia como era o parto. dizer coisas muito importantes para você. Mas contando pr a você os pedaços difíceis.. (Por causa da opereta A casa das três meninas. Na dieta não se comia carne. que cuidou de mim. Vão lá fazer companhia pra ela'. A gestação foi boa. Meus filhos foi a ssim: Deus pegou três anjos e mandou: "Vão pra casa de d. mas eu preciso contar: forrei um berço muito bonito para a família Lunardeili. a criança ainda não tinha nascido. apetrechos de bebê. Foram tempos de muita aflição. Alice. aquela luta. para os bailes da madame Poças Leitão. mais escuras. Você veja. Mas ele pensou numa condição melhor para os filhos. Tinha um pequeno jardim com roseiras. a Wanda é secretária na Assembléia. O pai de nosso vizinho. aquela calma. No tempo da Grande Guerra p intou uma cabeça de Cristo agonizante e ofereceu para o leilão Pró-Pátria. um pouquinho por mês. Naquele tempo. para ajudar a Itália. não é?! Minha casa ficava cheia de crianças.. a praça da República era o jardim mais bonito do centro. mas p recisava. (*) Tive oportunidade de ver as peças que restaram dessa mobília.. ajudava a descarregar os barris de azeitona. Às vezes. Quando mudei para o Cambuci. pintadas pelo irmão de um colega de fábr ica. Na minha casa não se ouviam gritos.. sentia um perfume. tem algum pai que diz: "Eu fui operário. ficamos pagando um ano. Esta é uma casa de recordações porque meus filhos nascera m nela. ela conseguiu um serviço de distintivos de propaganda e deu para o pai fazer . Até diz que o homem do tabelião ficou admirado quando ele foi. Pintaram as paredes com látex. Quantos an os ele ficou pagando juros! Quando a Wanda era moça e estava trabalhando (naquele tempo havia eleições para o gove rno). no andar de cima: "Ah. quem passava. casamento. colhia um para pôr na lapela. quando pegava o jornal e queria tanto saber o que ele tinha. com medalhões ovais nas portas. Outro dia. chamado Alfredo Volpi. porqu e o Humberto não conseguia nunca pagar. se falou assim.. o que é uma grande pena. Depois foram vindo outras casas. passaram tinta por cima e desmancharam as rosas do Alfredo V olpi. Nós tínhamos muito amor um pelo outro. dignifica a pessoa. meu marido teve muito gasto: era médico todos os dia s. é a casa de sua primeira comunhão. eu trabalhei lá na fábrica". com tão pouco estudo que ele teve. e o Ronald advogado. eu tenho um d . Ele não tinha condição pra isso. Foi com esse dinheiro que ele ganhou (a fábrica tomou só uma parte) que pudemos sa ldar a hipoteca e a casa ficou pra gente. todas aquelas famílias já mudaram de lá. Meu marido dizia: "Você não sabe como aquele rapaz pinta ! Ele pinta as rosas à mão livre!". como eu gostaria de comer t al coisa!". Não. era enfermeira que passava a noite lá em casa.. para q uem quisesse. O Parque Paulista era lindo e no Trianon. Ele voltava em silêncio para a rua e quando entrava em casa trazia na mão o que a filha tinha querido. a Daisy é professora. minha rua tinha du as ou três casinhas. em frente. ouvia u ma das meninas dizer. noivado. não é? Depois que ela morreu. No Jardim da Aclimação nós levávamos a s crianças para tomar leite porque lá eles tiravam o leite das vacas na hora. Ali se construiu a fábrica de elevadores Viliares. treze anos na fábrica para trabalhar. seja qual for. Minha mãe contava histórias para os netos.. ele pagava os juros mas não conseguia nunca diminuir a hipoteca. e punha todos os filhos com doze. No quintal tinha um pé de fruta-do-conde.. As casas tinham quintal. Tinha um portãozinho com uma trepadeir a de jasmim brilhante e à noite. às vezes. Hoje . o resto era uma chácara. Meu marido hipotecou a casa por vinte c ontos. os vizinhos punham as cadeiras na calçada de tarde para con versar. À noite. Quando a Yvonne ficou doente. Todos os aniversários dos filhos eram festejados. quando chegava em casa e punha a mão na maçaneta para abrir a porta. levava minhas filhas. a dívida da farmácia. não acerta a lição!". Pegado à parede eu tinha o jasmim-de-barcelona qu e dava como uma rosinha. Meu marido deu para os filhos o máximo que ele pôde.. a gente pass eava sossegado debaixo das árvores. A trepadeira c resceu até a janela do meu quarto. A minha rua era calma. toda vez que saía. nossas bodas de pra ta. e a pessoa que tinha emprestado o dinheiro estava certo que a casa ia ficar pra ele. que chegavam de fora para os armazén s da rua José Paulino. da calçada. ele trabalhava horas extras para dar mais conforto para os filhos. nem se dizia nome nenhum para os filhos: "Você é b urro. dizia: "Ai.. A vida de meu marido foi muito sacrificada: ele gostava de pintura e nunca pôde estudar além do segundo ano primário. aliche. Ele começou a trabalhar mais cedo que eu: com sete anos engraxava sapatos. quando ficaram mocinhas. e depois as fábricas e os cortiços.. nunca na minha casa.. minha filha passou por lá e ficou namorando a casa. Acho que todo trabalho. mais claras. até hoje. num contorno de folhas. Então a vida atrapalhou. Às vezes. rosas amarelas. Ele devia vinte e precisou pagar quarenta contos de réis de juros.. Tomamos o ônibus. o Humberto já tinha ido para o colégio e estavam engessando o menino. quando ia comer derrubava a colher. Foi uma graça muito grande que eu recebi. eu de repente notei q ue ela estava ficando doente. mas lia as revistas Eu Sei Tudo. Mais tarde o dr. Foram me chamar. o leite. graças a Deus. que ouvia conversa na oficina. eu molhava os pulsos dela com aquela água e a Daisy sarou. dizem que teve racionamento de pão: nunca fiquei em filas para c onseguir mantimento. Nas brincadeiras de São João. mas não deu resultado. as crianças liam O Tico.. pus na mão dela e disse: "Olha. das Irmãs Vicentinas. Estavam pondo os encanamentos em nossa rua e ela corria em cima dos canos. Não lembro do jornal que chegava em casa. não lembro nem da revolução de 32. mas . As crianças me ajudavam um pouquinho . um dia. quando as crianças eram pequenas. mas iam para a escola. d. capela milagrosa de Nossa Senhora de Fátima. Paiva Ramos. Minha mãe me ajudou demais na criação dos filhos. perto do Cambuci. já tinham telefonado para a fábrica. mas graças a Deus não foi nada. querendo pegar o balão de novo. que era uma delícia. na avenida Dr. vizinhos. brincar de roda. escola. a senhora não sabe o que aconteceu!". não abria a boca para falar porque não dava. mas sei que todo mundo ficou contente quando os pracinhas chegaram. era uma fraque za nas mãos. Nossa Senhora vai ajudar você!". Quantos anos faz que isso aconteceu? Fomos ao Primeiro Congresso Eucarístico no Anhangabaú e no Quarto Centenário fomos par a a cidade ver os festejos: dos aviões choviam lâminas prateadas. A comadre Bianca ia sempre conosco. véus de noivas. Levou um tombo que tiniu a cabeça dela. A vida sempre foi uma luta. era aquela luta de casa. Quando a Daisy tinha dez anos. As novidades chegavam pelo Humberto. Aos sábados e domingos sempre íamos fazer piquenique na Cantareira. O nosso médico da família foi o dr.Tico. E o Ronald fazia balão. Ele me tratou de uma erisipela q ue tive no rosto. Daisy. era só meu coração que pedia. Na última guerra. Nossa família era como se fosse dela. gostavam de correr e pular na calçada. saía sangue da cabeça e do nariz. Lá na oficina onde ele trabalhava nunca houve greve. derrubava tudo. Eu não participei do dia da vitória. Os donos da padaria eram muito amigos. Mandei colocar um a pedra na capelinha e gravei o nome da menina. Na primeira comunhão das crianças. Pasquale Spina. Não lia jornal. Nesse tempo ela derrubava tudo.. igrejas. In felizmente. com as famílias am igas. Fazia compras para mim. descemos no Anhangabaú e fomos até a praça da Sé tomar a condução para o Cambuci e o vidro chegou até em casa. derretíamos chumbos e despejávamos na água para ver formar o s castelinhos. Não tenho lembrança dos fatos dessa época. Arnaldo. Lembro que houve black-out no meu bairro: a gente apagava as luzes e ficava bem quietinho dentro de casa. muito demorada para curar. isso eu ouvia falar muito no bair ro. O médico receitou banhos de luz ultravioleta. Depois pedi um vid ro de água benta. A Wanda estudou no Externato São José. a comadre Bianca aparecia sempre com um prato esp ecial feito com mel. a Daisy na Liga das Senho ras Católicas e depois foi para a Escola Normal. a fábrica nunca falhou um dia de trabalho . tudo estava bom: se ele chegava e o almoço não estava pronto. homeopata. De pois. nunca faltou pão em ca sa. dos moleques correndo na esquina de minha rua: "1h... O avô dela achava que a mulher não devia aprender a ler para não receber bilhete de namorado. só as lágrimas corriam. Quando ajoelhei ali. confirmou a cura. O Ronald tinha quebrado a per na no colégio. às vezes ia à feira antes do trabalho. aniversários. foi muito lindo. não saber ler nem escrever!". em tudo ela corria para dar uma mãozinha pra gente e se preocupava com os e studos das crianças. comida. o pão . Alice.. Essa vizinha querida tomou parte nas doenças. o crestole.. Para o Humberto. ele esperava. Levei a menina na capelinha do Sumaré. casamentos da família.esgosto na minha vida. A Daisy era levada. O Ronald estudou ali nos Irmãos Mar istas. A Cigar ra. Lembro. Quando eu soube. você vai levar esse vidro até em casa. mas eu ouvia falar de greves em que o pes soal ficava na porta e não deixava ninguém entrar. e o balão subia e el e ficava correndo atrás com pena de ver o balão subir. Ah. ficou mor ando comigo. a casa dava muito trabalho. mas quem vai pegar uma pessoa nessas condições? A Wanda e o marido ouviram no radioamador. fiquei apavorada. Foi uma festa linda. Natal. ver a irmã que estava em São Sebastião. é maravilhoso mesmo!". O marido matou a moça e queria embarcar com ela dentro da mala para jogar em alto-mar. Quando ele passou em cima de nossa casa. naquela luta não dav a para ler o jornal e sentar. Em casa era sempre aquele movime nto de crianças. só mais tarde é que fomos nos afastando. Ele dizia: "Mamãe. Ele era um danado mesmo. bem?! A Wanda veio embora sozinha para casa e. o enxoval foi feito com muito carinho. A Daisy. nem olhei para baixo. A Ida Malavoglia ainda estava viva. não me mexia de lado nenhum. eu sempre ali. casou com um funcionário público que já está aposentado. a gente ouvia falar sempre do Meneghetti: "O Meneghetti fez mais um roubo e conseguiu fugir!". rasgado. quando casou.. tomava parte em tudo. Eu. a cabeça. A família veio em peso. mas que beleza. quando se agarrava nos barrancos úmidos. olha o nosso jardim. vivem em São Paulo. moço muito bom que morava c om a mãe viúva. A Wanda. Minha vizinha. Mais tarde tirou o brevê de piloto na Escola de Aviação.. mas o Humberto contou. Foi esse o meu primeiro passe io de avião. montava aviãozinho de taquara e papel celofane. parecia que tinha engolido um bambu. que morava na Lapa. Foi uma coisa muito triste. o Humberto que também estuda engenharia. cada avião que passava em cima de minha casa eu fazia uma oração. o avião ficou preso numa árvore. Ele caiu na mata fechada. Foi na volta. À noite. muito amedrontado. assim que s e formou de professora. e a Beatriz que está se formando em bioquímica. voaram ped aços dela na pista de corrida. E o Ronal d só dizia: "Eu quero saber do meu amigo. dura. no alto da serra. não têm filhos. às vezes fico p ensando. só roubava. caiu de joelhos nos pés dele. A Wanda casou com um advogado. Minhas filhas são que nem mães dele. a mala pingava sangue. já estão aposentados. não. vinha todos os domingos em casa com o marido. . Aí um dia ele me fez subir no a vião. ai. Esse crime foi muito comentado em São Paulo. Nunca pode acontecer uma coisa assim sem que venha o esclarecimento de De us. Mas amigos meus.lembro do crime da mala. Quando conseguiu sair de lá ficou na estrada. Abriram a mala. que já está casado e é engenheiro da Volks. mesmo. que tinha havido um des astre. Páscoa. Tivemos essa alegria: meu filho caçula se formou também. Depois ele passou na rua Haddock Lobo e dizia: "Olhe a casa da dona Mina!". A vida ativa continuou. que n ada. O Ronald desde pequeno tinha loucura por avião. Meu sentimento era tanto que a mãe dele me consolava: "A senhora não cho re tanto. Quando deu aquele choque o colega dele já morreu. Têm três fi lhos: o meu primeiro neto.. será que tanto amor. Quando sentei atrás dele. era o trabalho dele. não fique nesse desespero!". quando ela viu o irmão. No largo Coração de Jesus tem u ma estátua do bispo que estava no navio que afundou. têm um carinho por esse irmão. vivem muito bem. em São Sebastião. For am os anjos protetores dele que tiraram ele daquele lugar. a vida e ra agitada. fiquei dura. Depois minha filha mudou para Piracic aba e ficamos sós.Novo. Minha casa ficava uma maravilha. Ele tinha cortado a moça em pedaços para caber tudo lá. Outra coisa que marcou muito São Paulo foi o desastre da corredora francesa. linda. Casou mocinho e tem cinco filhos. Uma viatura trou xe ele para cá. A Daisy. falou: "Mamãe. Os meus netinhos foram criados em casa. vinham todos. Depois de quinze dias saiu no jornal a morte do amigo. e ao mesmo tempo tinha medo. Quand o cresceu. a comadre Bianca. olhe a nossa casa!". eu não tinha. veio toda a parentada para a fe sta. ali do lado. Quando foi numa Páscoa ele foi de avião. com missa.. Lembro do navio que naufragou chamado Marsiglia. E eu: "Está lindo. os meus filhos se reuniam comigo.. nos avisaram que tinha acontecido um desastre. d escobriram e ele teve que confessar. Ouvi pelo rádio esse desastre horrível. preciso buscar meu amigo ferido!". Ele não matava.. não sei a época. Os me us genros eram amorosos comigo e com meu velho. A mai s velha tem 21 anos e está estudando arquitetura. As bodas de prata foram festejadas nessa casa: eu mesma costurei meu vestido cor de cinza. No Ano. viu? Depois meu filho fez outras viagens. com um amigo dele. fiz os doces. está gostando?". Minhas filhas tiveram um casamento muito bonito. No navio. as pernas da corredora voaram. Nesse tempo. às vezes machuca muito. ele vinha pra baixo. Mari na. caía uma chuvinha e tinha óleo na estrada. que está hoje com treze anos. têm coisas muito fortes. Faço uns t rabalhinhos de croché.. revistas. Vendemos a cas a. Fomos em Pisa ver a torre que pende mas não cai. ele tinha ido para os Estados Unidos. mas quan do vejo um desastre eu não leio. Minha filha. às vezes. porque gos to de entrar numa igreja. girando e a Marina perdeu o controle. Hoje de manhã ela foi. vi Bolonha. mas meus f ilhos não deixam faltar nada para mim. Fui visitar as pinturas com o Humberto. fui aumentada agora para 680 cruzeiros. todas as religiões vão a Deus. era e é. Depois.. saí com meu companheiro e com m inha mãe. Quando chegou o dia que decidiram que eu ia morar com a fil ha. o senhor já fez muito sacrifício. umas flores de papel que ofereço de presente. É difícil estar sozinha: eu varava a noite inteira na cozinha trabalhando nas flores e achava lindo aquilo. o carro ficou de rrapando. a Guerra do Vietnã sei que foi horrível. vou contar para você. se converteu ao cristianismo espírita. fui de Gênova a Catania. tinha uma sensação muito boa. Quando pego no jornal. Fomos visitar o Simone. para as casas de caridade. livros sobre o cristia nismo espírita. Sabe quanto eu recebo de aposentadoria? Re cebi 490 cruzeiros. tomei a bênção dela. notícias de guerra. minha vida continuou. nem no confessionário a gente fala com tanta fra nqueza assim. acompanhei minha mãe até a condução. quando arr umo as gavetas e mexo nas minhas coisas. saí sozinha. estava m orrendo. Fico aqui neste quarto vendo fotografias. Minha a posentadoria era mínima. nós estávamos acostumados.. então. o Museu degli Uffizi em Firenze. Uma vez assisti na TV um repórter não sei o nome dele falando que os americanos no V .. Depois que o Humberto morreu. Não sei se posso contar aqui. O Humberto estava aposentado e era muito amigo da minha nora.Os meninos diziam para o pai: "Venda essa casa. costurávamos roupas com meu genro e minha filha. Tenho certeza que se for ver os filmes de agora não vou gostar. Foi recolhido mas quando estava entrando nas Clínicas. tive uma grande tristeza. Naquele tempo. Meu filho continuava viaj ando. atravessei a Itália de trem. A porta se abriu. crianças qu perderam as mãos.. De manhã o Humberto foi embora para esperar o filho. Quando vejo notícias do Hitier. a terra dos pais dele. e quando foi amanhã cedo recebi a notícia que ela estava morta. eu fazia arranjos de flores para vender e vendia m uito. Até que um dia ela saiu para visitar a Daisy. quando vivia no interio r. Seu último filh o. Não vou dizer que ainda não seja católica. tinha quase oitenta anos. Mas desta vez. a minha tristeza era ter que me despedir dessa gente. Eu queria ter morrido antes dele. a pessoa de idade é muito apegada às suas lembranças. Mas eu adorava minhas coisas e ia desmanchar minha casa. Quando aparecemos lá e ele vei o abrir a porta.. Moro com minha filha Daisv. companheiro de fábrica do Humberto.. assisto televisão . subo para meu quarto. Acho que nesse apartamento morei quase uns cinco anos. Foi a última vez que vi ele viv o. me acalmava. Na metade do caminho. Se i que houve muitas coisas. quiseram ir juntos. Quando saí da casa do Cambuci. vá a gora aproveitar. Ficamos três meses na Itália. Fui recebida com o maior carinh o. Aquela noite. mas ela é médium. Depois que vendemos a casa. trágicas. o Humberto acompanhou. Gosto de jornal. Tive o sentimento de que e ra minha última morada. eu chorei a noite inteirinha sem parar. O Humberto tinha muita vontade de conhecer a terra dos pais. com a casa do Cambuci e com o Humberto antes dele morrer. Não dá para viver. fico emocionada quando lembro. tinha um ano e pouco. Minha mãe. Eu não queria deixa r minha casa. eram muito companheir os.. Nós queríamos esperar o Ronald no aeroporto. o Humberto foi atirado do carro. a bomba atômica. Todos os dias ele ia na casa dela. o Humberto e eu fomos morar num apartamento na rua Oscar Freire. Veneza. Dezessete anos são passados desde que embarcamos.. À noite. Os romances estão muito diferentes de quando era moça. Firenze. O senhor tem tanta vontade de conhecer a Itália!". não sabia se chorava ou se ria. dou uma vista por cima. sentia falta do bairro e não se acostumava. Mas minha mãe estranhou demais o ap artamento. me invadiu um desgosto muito grande mesmo.. mas acharam que er a bobagem ficar ali. víamos um pouco de televisão. S onho. estou sempre recordando e me encanto. tenho os meus parentes todos. às vezes dá uma saudade da turma que foi embora. por onde eu passei. Mas aquele respeito não deve mudar. sessenta anos? Aí vocês vão ter seus netos. não tem uma coisa p ara lembrar.. não tanto como antigamente porque sabem que eu estou boa. Quero sempre olhar o mundo com olhos cheios de amor. os sapatos. Quero agradecer a senhora que me oferecia a janta quando eu fazia horas extraordinárias à noite. Falar: Você é quadrada. Faço o possível par a acompanhar um pouco. Será verdade o que o delegado d isse? Não acredito. não gosto de contar para meus netos. Nos tempos de pobreza. 26. enfim tudo muda.. Eu vou ficar contente de partir. já casados na Itália. Quem diria que um dia eu ia abrir o livro de minha vida e contar tudo? E agradeço por iSSO: bom a gente lembrar. avó. você é uma velha. mi nhas netas. não quero que eles achem que eles têm muito e eu não tive nada.. e mais cinco filhos: Atílio. tod o esse amor de pessoas que não me conheciam.. digo: "Foi naquele tempo que Jesus andava no mundo" Sabe de uma coisa? Parece que tem muita gente do lado de lá me esperando: tenho os meus amigos. Mas sei de muitas pessoas idosas que ficam sentidas quando os moços falam assim: Naquele tempo. Então falo pra elas.. os vestidos mais justos. no silêncio dessa prece venho pedir-Te a paz. meu bem.. recebi há pouco tempo a visita da comadre Bianca. Ida Malavoglia. meus avós. Os meus parentes me visitam. Artur. assistia quem ficava doente. Aí a época mudou muito. vieram para tent ar a vida aqui no Brasil. mais largos. Ontem ouvi uma notícia sobre a greve dos estudantes. vovó. Tem que se dar aos velho s o amor que eles nos dão quando a gente é pequena. não é? O tempo de criança. à família de Carlos Ciryllo. que não muda: é o respeito dos moços pelos velhos". AMADEU Nasci no Brás. o cabelo fica mais curto. SR. Deus te abençoe. o meu carinho...." ("Não fala isso.. mais diálogo: mudou a linguagem.ietnã. Meu pai era alfaiate e minh a mãe costureira. O primeiro filho nasceu aqui em São Paulo e faleceu com meses de vida. quando eu estava enfastiada. Vieram no tempo da emigração mas não eram emigrantes. não ofende n nem desmerece não. Meus pais vie ram da Itália: meu pai era toscano e minha mãe era vêneta. Alfredo Bovi. cantava.. Muitas ve zes a gente conversava com ela' Não sou tão antiga como muitas que não compreendem a conversa dos moços. aí vo não vão estar tão pra frente como dizem agora. Quem viver até lá vai saber. desde pequena. É lógico que vocês não vão dar risad mas têm que pensar assim: 'Muita gente não conheceu avô. você está por fora. mas que recebam onde elas estiverem o meu agradecimento... Depois de muitos anos sem contato. Talvez não existam mais essas pessoas.. do meu tempo. naquele tempo! E a pessoa idosa não pode reco rdar. Graças a Deus tivemos a com panhia da vovó que contava história.. a sabedoria e a força. pelo amor de Deus! ") ".. quero ser paciente. Alda e Amadeu . T Antes de terminar quero agradecer: à minha mãe. é saudável isso. minha mãe dizia: "Você não vai com er? Come que te dou um tostão!". Me telefonam quando é alguma data.. mais comprido. Se vou contar algum coisa antiga pras minhas neta s. você compreendeu. Agora tem uma liberdad e maior. Está na hora de matar a saudade! Digo sempre para minhas netas: "No dia e m que for fazer companhia para o vovô.. às minhas companheiras de trabalho por essas of icinas onde passei.. no dia 30 de novembro de 1906. Veio o segu ndo filho. Aí vocês também serão e acham que hoje é muito antigo. você entendeu.. compree nsiva e prudente. onde minh a mãe trabalhou. há quantos anos foi? Acho que foi uma guerra mais antiga. fica sempre igual.. muda a cor das fitas. Rezo na oração da manhã: Senhor..não quero que vocês fiquem chorando e se lamentando. que estão me ouvindo: "Tem uma coisa. rua Carlos Garcia. Vocês já pensaram quando tiverem cinqüenta. Aflita. minhas cunhadas que eu ador ava tanto. A vida vai ficando... ah. Bovi, seis filhos. Fui o caçula. Minha mãe morou cinqüenta anos na casa onde nasci, n a rua Carlos Garcia. Essa rua Carlos Garcia é nas imediações do comércio de cereais, no Brás, perto da Santa Rosa, Benjamim de Oliveira, Cantareira... Meu pai, quando chegou em São Paulo, já tinha profissão e foi trabalhar como alfaiate. Naquele tempo o dinheiro era pouco e a roupa barata; o artesão ganhava muito pouc o. Naquele tempo os homens usavam o terno completo: meu pai fazia o paletó e o col ete, minha mãe fazia a calça. Meu pai trabalhava catorze, quinze horas por dia; fale ceu em 1925 de uma úlcera no estômago. Minha mãe era franzina, miúda, clara, cabelos pretos, olhos castanhos. Era muito cal ma, tinha muito sentimento. Fazia questão de pôr pano quente quando os irmãos se zanga vam um com o outro. Minha mãe gostava muito de ir ao cinema. Toda segunda-feira a família saía junto para assistir um filme. Minha mãe contava umas histórias muito bonita s para eu dormir. Lembro ainda uma que ela contava sempre: "A árvore de ouro". Era a história de um pai que era cego e o filho saiu à procura de uma árvore de ouro, de folhas que curavam a vista. Era muito sacrifício, precisava atravessar um lago eno rme com uma infinidade de perigos. Mas como era para o pai, ele foi e voltou com as folhas que tinham um líquido: ele passou nos olhos do pai que recuperou a vist a. A história é mais comprida, nesse momento me escapa a memória . Depois da morte de meu pai, ela não trabalhou mais para fora, só em casa. Ela fazia todo o serviço da casa. Cozinhou até a morte. Enfraqueceu no finzinho da vida. Morre u com 76 anos, mas não ficou inválida. Ficou doente de desgaste, muitos filhos, muit o trabalho. Meus irmãos eram muito bons: o orientador da família sempre foi o irmão mais velho, o Alfredo Bovi. Das crianças que eu conheci, os pais eram todos gente boa. Mas naque le tempo bebiam muito: o vinho italiano custava duzentos réis o litro. E, naturalm ente, quando uma criança se portava mal, os pais castigavam. Na vizinhança, os casai s se queriam muito bem, a família era mais unida, as crianças tinham mais amor aos p ais, avós, tios... Os pais tratavam os filhos muito bem, havia mais amor que hoje. Naquele tempo, as esposas tinham pouca vez, não é como hoje, os homens eram mais sev eros e quem mandava mesmo era o pai. Meu pai tinha sua turma, gostava mais do vi nhozinho, mas minha mãe era muito atenciosa com os filhos, contava histórias para a gente dormir... Nesse tempo não existia luz elétrica na rua, só lampiões de querosene. Em casa também, os lampiões eram pendurados na sala, no quintal e na cozinha. Só quando eu tinha dez an os é que veio a luz elétrica, por volta de uns sessenta anos atrás. A casa dava para a rua, mas tinha quintal; lembro da sala, dos dormitórios. Na fre nte da casa passavam os vendedores de castanha, cantarolando. E o pizzaiolo com latas enormes, que era muito engraçado e vendia o produto dele cantando. As crianças iam atrás. A rua não tinha calçada. Elas ficavam à vontade naquelas ruas antigas. Eram ruas de lazer, porque não tinham movimento, e crianças tinha demais. Em São Paulo, nos terrenos baldios grandes, sempre se faziam parques para a meninada. Meus irmãos j ogavam juntos futebol na rua. Tínhamos um clube, formado por nós, chamado Carlos Gar cia. Tenho meu cunhado, o Vito, irmão da patroa, que tem minha idade e nós éramos já amigos n esse tempo. Ele mora na Vila Santa Maria mas está sempre em casa. Tenho outro amig o daquele tempo, o campeão brasileiro de pingue-pongue, Rafael Morales. Havia, no Brás, uma festa de rua, a de São Vito Mártir. Iluminavam a rua do Gasômetro, a Santa Rosa, a Assunção, imediações da igreja. Armavam palanques para um concurso de ban das que vinham do interior, de Campinas, Jundiaí... Davam prêmios até em libras esterl inas para os músicos (naquele tempo, uma libra esterlina valia oito mil-réis). Os fo gos de artifício eram uma coisa extraordinária. No fim da festa tinha um bombardeio que estremecia todas as vidraças do centro da cidade. Essas bombas, chamadas morteiros, eram enterradas e soltas debaixo da terra. Alcançavam uma alti tude de trezentos metros, era tão forte quando explodia que quebrava os vidros dos prédios. Comia-se ghimirelia, carne de carneiro tostada, e pizza bem mais gostosa que a de hoje. Era uma festa de bareses, puglianeses, napolitanos, todos da Bai xa Itália. A imagem de são Vito ficava na igreja na rua do Lucas, que ainda existe. Depois a imagem dava a volta no bairro, carregada por Oito pessoas. Pra carregar, leiloav am a preferência, cada um pagava uma cota. Uma vez o conde Francisco Matarazzo car regou a imagem e contribuiu com uma nota grande. Hoje, ainda festejam são Vito, em ponto pequeno, com umas barraquinhas perto da igreja. Mas terminou quando começar am asfaltar as ruas, asfaltaram a Santa Rosa, a Benjamim de Oliveira, veio esse progresso, então terminou a festa monumental em que o povo ocupava todas as ruas. Ainda existe a igrejinha de são Vito, são Cosmo e são Damiano. No dia de são Cosmo ainda soltam aquela bateria para recordar o tempo das festas grandes. Perto de minha casa, vinham duas, três vezes por semana, os "matamosquitos", farda dos de amarelo e com bonezinho. Vinham com bombas extintoras matar mosquitos nos quintais, poças de água, no mato, aquele bairro era quase todo mato. Quando eu era criança, na rua Carlos Garcia, precisávamos fugir de casa quase todo mês , um ou dois dias. O rio Tamanduatef enchia fácil, era muito estreito. Uma vez nós s aímos de casa, eu tinha uns quinze anos, e fomos dormir três dias numa casa de amigo s, no Alto do Cambuci. A água estava já a um metro e vinte do chão. Me lembro que mais de cinqüenta vezes saímos de manhã e voltamos só de noite. No Cambuci, a enchente era u ma brincadeira, davam conhaque e caipirinha pros bombeiros, as famílias ficavam am igas dos bombeiros. O dia que meus pais mais estimavam era o Natal, que se festejava à moda italiana. Era o dia que na casa de italianos não faltava nada. A árvore de Natal e o presépio er am uma tradição de todos os anos. A ceia era na véspera e o almoço no dia. Ainda comemor amos, minha esposa, minhas filhas, meus netos, como quando eu era menino, no Nat al de meus pais. Minha esposa faz os doces da tradição: apezza dorci, ou "peça doce", que é um panetone. 126 Na meninice, mocidade, na velhice a minha religião sempre foi uma: fui católico. Fiz a primeira comunhão com os padres beneditinos na Igreja de São Bento . Os padres fizeram uma festa numa chácara que tinham em Santana. Essa igreja prot egia os vendedores de jornal que tinham a sede no Anhangabaú. Quando eles faziam a primeira comunhão eram todos convidados também para essa festa no Alto de Santana, que hoje é Mandaqui, Chora Menino. Era uma fazenda enorme: a festa era bonita, tin ha de tudo, os padres eram muito bons. Fui muito feliz na infância, porque, já aos nove anos, tinha muito juízo e fazia aquil o que achava certo. Meu irmão Alfredo Bovi me ajudava muito, isso para mim foi uma ótima felicidade. O orientador da família sempre foi o irmão mais velho. Com onze, do ze anos, jogava pingue-pongue toda noite num clube perto de casa: lá militou o men ino Rafael Morales, campeão brasileiro, internacional. Desde pequeno gostava de teatros, operetas, o teatro sempre foi minha maior paixão . Era o Teatro Cassino Antártica, o Boa Vista, o Santana. E o circo. O circo hoje tem mais luxo, mas o circo daquele tempo era o verdadeiro circo onde existia Chi charrão, Piolim, Irmãos Queirolo que faziam a "ponte humana", o maior espetáculo que t inha aqui em São Paulo. Era um circo extraordinário: os Irmãos Queirolo, era o verdade iro circo dos que trabalhavam pra comer. Serravam as mulheres pelo meio, faziam ág ua virar vinho, desaparecer as carteiras dos bolsos... Todo ano, a oficina organizava um piquenique na praia do Gonzaga: lembro a prime ira vez que vi o mar, com doze anos. Meu irmão Alfredo Bovi tinha um Jazz Band, o Grupo Excêntrico, com Oito OU dez músicos. Eles promoviam passeios, piqueniques em S antos, no Parque Antarctica, onde hoje o Palmeiras joga. Convidavam todos os viz inhos, íamos cem, 120 pessoas. Lá em Santos alugávamos um salão; depois do banho de mar, eles tocavam, começava a brincadeira, Íamos num trem que saía da Estação da Luz e levava de três a quatro horas para nos levar. Penso que ninguém mais está vivo, isso foi há mai s de cinqüenta anos, não tenho lembranças se existe alguém ainda. Quando eu tinha oito anos veio a guerra, que começou no 14 e terminou no 18. * Com a guerra veio muita miséria, nós passamos muito mal aqui em São Paulo. Lembro, na rua Américo Brasiliense, da Comp nhia Mecânica Importadora, que ajudou muitos desses qu e não ti (* As expressões de tempo 'no 14, no 18' so italianismos que correspondem a "nel 14, nel 18", muito usadas no Brás do sr. Amadeu. 129 nham possibilidade de aquisição: um porque o pai foi pra guerra, outros porque tinha m dificuldade de encontrar trabalho. Na hora do almoço e na hora da janta ela dava uma sopa para famílias do Brás, da Moóca, do Pari, da classe menos favorecida pela so rte. Com meus dez, onze anos, a miséria era muito grande aqui em São Paulo. Meus irmão s e eu íamos com um caldeirão e eles enchiam o caldeirão de sopa e davam um pão. Em 1917 , no finaizinho da guerra, veio uma miséria extrema. Lembro muito da gripe espanhola porque fiquei bem ruim. Todos, menos o Alfredo, pegaram a gripe na minha casa. Foi dado esse nome porque nesse tempo vinham muit os espanhóis para cá e logo depois veio a gripe. Era tanta gente que morria que não ha via possibilidade de atender a todos. Quem tinha caminhão se prontificava a carreg ar os mortos até o lugar indicado pela Santa Casa. São Paulo não tinha o preparo de ho je, não tinha injeções. Foi uma gripe tão agressiva que já não davam conta de fazer remédios. Só limão. Numa certa hora acabaram também os limões em São Paulo. Eu comia muito pouco, só t omava água com limão. Eu cheguei a ver meu caixão. O médico disse que a gripe tinha três t empos: fraco, forte, mata. Eu tinha pegado a forte. "Precisa tomar um pouco de a r" e me puseram numa cama perto da janela, onde eu ficava o dia todo, olhando a rua e tomando ar. Foi então que vi passar no céu uma calécia. Era um carro bonito com seis ou oito cavalos, todos brancos. Vi como se fosse uma coisa natural. Virei p ara minha mãe e disse: "Olhem que carro de morto bonito está passando no céu com seis cavalos". Então uma vizinha que estava lá me deu uma bofetada, e chamaram o médico. Me lembro, como se fosse hoje, da calécia. Tinha doze anos e estava perto da morte. Urna lembrança que nunca me sai do pensamento é a Revolução de 1924, do Isidoro Dias Lop es e do general Klinger. Essa revolução marcou época, precisamos fugir porque as balas já estavam chegando em minha casa. Fornos para Itaici, um pequeno lugar de Campin as; lá ficamos um mês até terminar a revolução, que foi vencida pelos legalistas. Nesse te mpo, quem estava brigando eram os legalistas e os soldados do governo. Tinha dez essete anos. A família de minha esposa, que eram nossos vizinhos, também precisaram fugir. Esses parentes de Itaici vinham sempre se hospedar em casa e encomendar roupas p ara o pessoal da fazenda deles; chamavam-se os Barnabés. Eram amigos, se tornaram da família pela grande amizade. Depois da Primeira Guerra.., não, depois da Revolução de 24, o povo assaltou o Mercado Municipal. O povo em geral. Eles saquearam não foi só o mercado mas os armazéns de ba irro. Lá na Moóca. No Mercado Municipal tiraram tudo, até balanças e caixas registradora s. Na companhia do Matarazzo levaram todos os sacos de farinha do depósito. Quando terminou a revolução, os soldados não tinham condição de controlar o povo. Assaltaram, sa quearam, fizeram de tudo. Foi geral, São Paulo inteiro, e durou quatro ou cinco di as. O roubo eles puniam. O saque, não, eles entendiam que era uma coisa da fome, não consideravam um crime, consideravam uma necessidade. As escolas eram poucas, a maior parte das crianças tinha pouco estudo. Não podiam te r a educação de hoje. No Brás, tinha a Escola Regi- na Margherita que alfabetizava em italiano, a escola onde Alfredo Bovi estudou. Eu aprendi a ler no Grupo Escolar do Carmo, com d. Leocádia Chaves. Fui levado por meu pai, no primeiro dia de aula, que me apresentou a d. Leocádia; não fiquei com receio de entrar, mas não via a hora de sair. Aos poucos fui me acostumando e gostando. A escola era onde está hoje a I greja do Carmo, onde estão fazendo o metrô, era ali no fim da avenida Rangel Pestana , perto da praça Clóvis. O edifício foi derrubado. Ainda encontro algum colega daquele tempo, eles me reconhecem, mas não lembro o nome deles. O primário era como o de hoje, mas mais puxado. Quase todo mundo repetia no segund o ano. Quando a professora tinha conferência com o diretor, ela me escolhia para t omar conta da sala. Quando ela saía, eu precisava reagir quando começavam as brincad eiras. Isso não é uma boa lembrança porque muitos me esperavam na rua para brigar. Era difícil a aquisição de livros e às vezes a professora nos trazia algum para ler. As professoras, o diretor, eram gente boa; quando o menino era malcriado ia para a sala do diretor que era severo e podia expulsar. Eu gostava muito da escola: a m aior parte dos meninos eram de família pobre e quando havia alguma festa as profes soras providenciavam a roupa para as crianças. Meus irmãos mais velhos estudaram na Regina Margherita. Minha irmã mais velha, a Ani ta, estudou até o diploma, e depois foi costureira. Ela me ajudava a fazer as lições. Naquele tempo, quem tirava o diploma do quarto ano já não ia mais na escola, era o f im. Alfredo, meu irmão mais velho, era violinista e ele conseguiu me ensinar um an o de violino. Mas não tinha vocação para a música e desisti. Ganhei um prêmio certa vez na corrida do circuito do Brás, que era a corrida anual q ue se fazia antes da São Silvestre. Corri seis mil metros do Brás à Moóca e vice-versa. Nesse tempo o campeão era o Alfredo Biasi, que depois foi campeão da São Silvestre. Os vizinhos daquele tempo já mudaram todos de lá: havia uma boa parte de italianos, portugueses, espanhóis. Chegou o progresso e as famílias mudaram. Nossa casa foi der rubada para dar passagem aos ônibus da Água Rasa que vão para o largo do Paiçandu. Com e ssa abertura a ruazinha ficou pela metade, toda de armazéns de cereais e casas de negócios. Quando eu era pequeno só havia sobrados na cidade. Para ir até o centro era preciso atravessar um matagal, que hoje é o Parque D. Pedro, onde está o Palácio 9 de Julho; e atravessar o rio Tamanduateí, era um lugar lamacento, perigoso. Eu vi a inauguração d o palácio; estavam presentes os maiores industriais: Matarazzo, Penteado, Crespi, Gamba, que colocaram num poço valores: ouro, prata, dinheiro. Cada industrial colo cou ouro e prata no poço, e dinheiro também. Usavam fazer isso como incentivo para a grande obra. O governador também, não sei se Carlos de Campos. Cada um pôs uma pazinh a de cimento. Agora é Palácio 9 de Julho, naquela época era o Palácio das Exposições. A prim eira peça que mostraram ali foi uma geladeira importada, isso quando eu tinha uns doze anos, depois da gripe espanhola. Antes, o lugar era o nosso campo de futebo l, de um clube chamado Torino. Meu pai vinha me buscar com o cinto porque não quer ia que eu jogasse futebol. Eu era pequeno e o quadro era de adultos. Existia o A niagens, existia o Torino. Eram molecotes. Na minha infância o bairro fino mesmo era a avenida Paulista, avenida Angélica e ime diações. Higienópolis nesse tempo ainda não era. Pra esse lado do Brás, Cambuci, Belenzinho, Moóca, Pari, aqui tudo era uma pobreza, ruas sem calçadas, casas antigas, bairros pobres, bem pobres. A iluminação era a lampião de querosene. Lembro quando em minha casa puseram um bico de luz, foi o primeir o bico que puseram naquela rua, não lembro exatamente o tempo, faz uns cinqüenta ano s. Era mocinho. Punham um bico só porque a luz era muito cara, mais de duzentos réis por mês. Com o tempo punha-se um bico na cozinha, no quarto, no quintal e assim p or diante. Mas era usada como uma luz bem econômica porque não dava para pagar no fi m do mês. Bonde a burro lembro pouco, lembro apenas de alguns. Lembro mais do bonde aberto , tipo jardineira, à eletricidade. Tinha o bonde 1 e tinha o "caradura" que levava os operários. Não lembro quando começou o bonde elétrico , faz uns 45 anos. Naquela época, houve o crime da mala: um marido esquartejou a esposa e fechou na m ala. Quando ele foi viajar revistaram a mala e encontraram a mulher esquartejada . Isso eu li no jornal, não vi. E havia o ladrão mais famoso do Brasil, o Meneghetti, talvez internacional. Lembro o primeiro roubo dele, quando ele escalou diversas casas aqui em São Paulo: a esp ecialidade dele era jóias. Mas não era criminoso, depois a história modificou a vida d ele, pelo que nós lemos e ouvimos, era até um ladrão muito bonzinho, diz que ajudava o s pobres. Quando entrei na fábrica ganhava quinhentos réis por dia, então era menino e não era res ponsável pela casa. Só fiquei responsável quando casei. Antes de casar eu ganhava e en tregava tudo lá em casa e dava para viver. Meus irmãos trabalhavam e, infelizmente, quando nós éramos em quatro irmãos, um morreu muito cedo, com 26 anos. Fiquei com dois irmãos e duas irmãs. Minhas irmãs eram costureiras, ganhavam pouco; o dinheiro, naquele tempo, era muit o curto. A Anita trabalhava na oficina de d. Teresa. A Alda trabalhava um pouco em casa, mas casou cedo e não trabalhou mais para fora. Um irmão era gravador, outro , o Atílio, era litógrafo. Minha mãe tinha mais interesse pelo Arturo, ela sempre pendeu mais para o lado del e porque ele sofria do coração. O Arturo ficou muito tempo na cama. Era tipógrafo, lid ava com tintas e com o tempo ficou sofrendo do coração. Ficou um par de anos na cama , com poucos recursos e morreu muito cedo. Comecei a trabalhar com nove anos numa oficina de gravura que ainda existe: Masu cci, Petracco e Nicoli. Hoje quem dirige a fábrica é o Mário Nicoli, filho de um dos sóc ios que não existe mais. Meu irmão Alfredo, que já trabalhava lá, me encaminhou: era est amparia, gravuras, fundição de placa de bronze... Nessa fábrica foi a minha infância, mo as máquinas de estampar placas de automóveis. mau cheiro de ácido. data dores. o bordo ia pa ra a politriz. Depois protegíamos a placa com papelão pintado de cera virgem e breu onde colocávamo s uma solução de ácido nítrico misturado com água porque era muito poderoso. mau od or. um senhor foi laminar umas peças e uma correia. pegou o braço dele. o homem ficou inutilizado. plaquetas. Quinhentos réis por dia já dava para comprar leite e pão .. o ácido nítrico é um ácido perigoso. terebentina. Ceccherini era o nome de um operário que foi laminar uma peça de ouro e ficou inválido . depois cortávamos o metal de acordo com o desenho. Essas placas iam para médicos. carimbos. a maior parte dos trabalhos era feita a mão. dos que foram mais perigosos. Isso um ano e meio. Queb rou o braço. A seção dos fornos. eu ia levar almoço pro meu mano e ficava apreciando a turma qu e trabalhava. enfim. uma bombona de ácido nítrico explodiu. era feito a mão com buril. muito agressi vo: ele ficava trabalhando Oito ou dez horas para aprofundar as letras que tínhamo s cortado com o bisturi. Esse é um dos desa stres que lembro. mas continuou trabalhando nos ban hos de ouro. tirava um bocadinho da respiração. essa fábrica tinha quarenta operários. pó leve. Saí de lá com 55 anos de trabalho. Gost ei muito e pedi para aprender. Ficou inválido e meio louco. cada seção era separada. chamado macho. Nas férias da escola. Essa composição era es palhada numa placa onde desenhávamos por cima. bicicletas. uma polia. O bordo da placa. Chegamos a trabalhar até de máscaras nesse tempo. que chamávamos de chanfro. ganhava quinhentos réis por dia. abriu a cabeça. A gente faz um desen ho na placa (por exemplo: DR. eram muito sossegadas. Nesse mês de férias aprendi e me convidaram para trab alhar nesse setor. o ferro passava por uma limpeza num tanque de ácido úrico. que seria um esmalte de goma-laca. quando era transportada. Q uase todos os bancos tinham fichas de metal executadas por nós. A oficina tinha seções com muito barulho. lixa. Depois eram numeradas e polidas. dávamos o acabamento na placa. depo is passei para a seção de gravuras. aposentado. a seção de estamparia era a mais barulhenta. fazíamos placas de metal. dois dedos. a mão. carroças. Na seção onde trabalhávamos eles fizeram uma máscara para proteger do ácido. Naquele tempo não tinha indenização. onde era feita a esmaltação. cromadas. 1 eu saí da escola e fiquei estampando placas. No fim. Qu ando entrei. Felizmente não atingiu os operários que estavam perto. Quem trabalhava no ácid o não gostava de usar essa máscara. As outras sofriam barulho. Tínhamos um laminador. cada operário. Quanto ao barulho. na roupa e não f oi um acidente muito grave. firmas comerciais. FTLANO DE TAL). Tiveram a felicidade de não acertar nos olhos.. niqueladas. aplainado e depois trabalhado. de bronze. Com pedra-pomes. quinze mil-réis por mês.. Ele era dourador. Atingiu nas mãos. na vista. preparávamos o metal e fazíamos uma composição de goma-laca. conforme o pedido. de desenho. Laminador é aquele cilindro de aço onde a gente põe o material de um lado bem grosso e ele sai fino do outro lado. Ali era uma poluição de ácido! Trabalhava-se com máscaras. havia lá muitas máquinas pesadas. mas acontece que essa máscara atrapalhava. aí já era a máquina que dava aquele brilho em volta. Nessa época eram muito usadas as fichas de metal nos bancos. Nessa seção. Na seção de esmalte. Com um bisturi recortávamos as letras .. advogados. também oferecia bastante calorias. Depois formava-se uma outra peça aonde esse macho se concluía. A ficha ali era estampada em metal grosso e cort ada. Formava-se um estampo. Precisávamos fazer o es tampo: o estampo é um bloco de aço que era torneado. É uma máquina perigosa. As seções de escritório. se foss e nos olhos cegava. hoje tem uns duzentos.cidade e uma boa parte da velhice. ele continuou fazendo o que podia. Nessa época. fazendo a fêmea. Depois fazíamo s outra solução. Então todos os dias distribuíam quinze a vinte litros de leite para quem trabalh . Moíamos tudo n um moinho (como os de café) e formava um pó que ia preencher as letras que foram gra vadas. Políamos com Kaol até o término da placa. Removendo a camada de cera as letras ficavam gravadas. Mas na estamparia cortavam todo mês um dedo. breu e cera virgem. mas tinha o mau odor do ácido que prejudicava. mau cheiro e acidentes. Uma vez. Uma ocasião. trabalhava das sete da manhã até as cinco horas. A nossa era um pouco mais soss egada quanto ao barulho. Noutra oficina se fazia a fundição de placas de bronze. tudo grátis. No início. antes do 30. oito anos depois. trabalhando. Eu fazia muito ex traordinário. Fizeram uma cadeia improvis ada na Moóca e prenderam centenas de operários. na entrada do Getúlio em 32. o sindicato era perseguido. Meu irmão levava o serviço para casa porque o trabalho dele era a gravura. aos sábados e domingos. outro clarineta. a gente trabalhava até as cinco horas e depois pegava empreitada até mei a-noite. ia construir sua própria casa. Eles alugaram. sempre havia entre operários. o Liceu d e Artes e Ofícios. compreendia seus trabalhadores. parece-me que o sindicato começou aos poucos a sua atividade. os operários se reuniam escondidos para trocar idéias. Tiraram meu cartão. Pensavam em infiltração comunista. foi obrigatório. muito meu amigo. metralhadoras e terminava a reunião. Depois. tinha muito cont ato conosco. fui aprender desenho depois de uns três anos de firma. comecei a trabalhar criança e só entrei para o sindic ato sete. 42. Tinha dois ou três que cantavam muito bem. Freqüentei o Liceu de Artes e Ofícios dois anos. porque não havia ganância de dinheiro. outro tocava flauta. existia muito pouco. O sistema de t rabalho. Não me le mbro das primeiras diretorias. foi o Remo Forli. Quando faziam s essões. uma sociedade que ajuda o trabalh ador. em caso de necessidade. O Carvalho Pinto pediu ao operário que fosse trabalhar e esperasse sair o 13? depois. Na conquista do 13? salário . Trabalhávamos até meia-noite. No início eram só 25% dos operários que se reuniam. Nesse tempo. as firmas não aceitavam o sindicato. Eu não fui trabalh ar. Havia muito extraordinário. para passeíos. Mas a turma d o sindicato ficava na porta para que ninguém entrasse. Sendo operário. Não necessitava de máquina. Depois a força venceu. No dia seguinte os patrões tiraram o c artão de todos os que não tinham ido trabalhar. os sindicatos anunciaram que sem o 13? ninguém iria trabalhar. um carimbo. Mas a maior parte deles. a pessoa que queria aprender a trabalhar ia à noite na escola. se firmando. um salão numa sociedade chamada Classes Laboriosas. O dinheiro era muito curto. Brincadeiras. Havia nesse tempo muita camaradagem e um ajudava o outro. Parece que o sindicato começou no 32. ao meio-dia e meia a volta e às cinco horas a saída. Tornava-se um amigo. O velho Afonso Nicoli era um operár io. naquele tempo. Eu já era moço. com 27. de out ro. em oito ou dez. Esse pessoal se reunía fora do tr abalho. no início. um ajudava o outro. Quem não respeitava o horário tinha que enfren tar uma multa. Onde eu trabalhava vinham boletins dos sind icatos dos metalúrgicos italianos que chamava-se 1 Metaliurgici. Mas sempre existia aquela poluição e ácido. Outras firmas faziam pressão contra os operário s: assistiam à sessão e apontavam os que lá estavam. no 35. isso por volta de 40. Nessa época tachavam os metalúrgicos de comunistas. As Classes Laboriosas tiveram muitos problemas: o sindicato era uma entidade que a classe empresarial desprezava. U m deles ainda existe. que era para não afetar o pulmão e Outros órgãos. colhendo sócios. era um artista. Na quele tempo o sindicato não era visto como hoje. mas não ligavam muito pros sindicatos. aparecia o DOPS com cassetetes. 28 anos. Eles aproveitavam para copiar alguma coisa para nós. horas em que a gente trabalhava depois que tinha terminado as horas do dia. então os operários se reuniam na casa de um. é vice-presidente hoje: Orlando Malvesi. Tinha naquele tempo como tem hoje: con tavam anedotas. ali tinha professo- res de pintura. nem de ácido. era uma seção de quinze rapazes onde com o tempo eu tomava conta. às onze e meia o almoço. Sempre trabalhamos em grupo. Isso. Mas faziam isso escondido por que os patrões não gostavam. cada um t inha a sua função. não tinha grande severidade. A Petracco e Nicoli não fazia pressão contra os operários sindicalizados: não gostavam. Afonso N . Na fábrica. fazer a c asa. Houve um corre- corre em que muitos metalúrgicos foram presos. Era uma camaradagem. Lá faziam suas sessões. um estampo e era mais fácil fazer em casa. às sete e meia da manhã era a entrada. e combinavam o que fazer para se sindicalizar. na Estação da Luz. Depois o sindicato progrediu bastante e as empresas aca baram entrando. fazendo leis internas. que ainda existe na r ua do Carmo. brincavam. dos fornos. nosso trabalho dependia de um e de outro. O presiden te do nosso sindicato. Arrumavam um pedreiro e o passeio deles era construir sua casa mesmo. uma coisa pequena. muito bom. Meu mano toc ava víolino. trabalhava junto com a gente. Estavam despedidos. demitiu-se. Compravam um terreninho e combinavam.ava lá. Só tenho conhecimento dos metalúrgicos: antes de 30 não era legalizado. gravura. era am igo daquela gente. Dirigi o Clube Madri onde joguei. Vila Matilde. o progresso. O nome do time vem de rua Benjamin de Oliveira. Amílcar Barbuy. por vol(a de 1930 ou 33. O prob lema da várzea é o terreno. Ali era uma coisa! O jogo da várzea era o que atraía a maior parte do públi co. Mário Nicoli não era gravador. Uma vez ele tirou o cinto e correu atrás do juiz batendo nele o tempo todo. Sempre torci para o Palestra Itália. entre vinte e 25 campos. acho que em 38 ou 40. que era o melhor clube da várzea. Casado versus solteiro. O Internacional era de Primeira Divisão. os jogadores da Primeira Divisão podiam jogar na várzea. Até mulheres começaram se interess ar por jogo. Meu tempo de juventude foi muito empregado no esporte. Não tinha ainda estádio. Quando foi morrendo o jogo da várzea e o futebol de bairro. uns vinte. Lembro o primeiro goleiro do Pal estra. Não tinha preto naquele tempo no Palestra. um grande beque. cada um tinha mais ou menos c inqüenta campos de futebol. vinha o progresso. De grande. O Estrela de Oliveira era um time de várzea. que foi do Corinthia ns. tin ha amor no clube. tinha mais de 10 mil jogadores. que tinha sido operário. nem trabalhava junto com os operários. Naquele tempo o Paulistano era o clube da elite. por intermédio do Tomás Mazzoni. antes o pe ssoal estava espalhado nas várzeas e nos bairros. As brigas eram até mais brutas do que hoje.. na Várzea do Glicério. juntavam dez ou vin te clubes. desde criança. pode pôr cinqüenta campos. Depois de casado joguei alguns jogos. Tomás Mazzoni era do nosso bairro. Barra Funda. seis anos. Aí começou a massa. Comecei a jogar futebol com nove anos. no Canindé. Os torcedores eram 90% italianos ou fil hos de italianos. ele comprou uma ótima casa na praça Pr incesa Isabel. No Corinthians estava a massa: os pretos e os espanhói s. a maior parte dos campos eram dados pelos donos para o lugar progredir. Ministrinho. de l ugar. junto com Vila Prudente. milit ei uns cinco. um dos maiores jogadores do Corinth ians. era meia-direita. Penha. o Feitiço eram do Sírio: hoje é pre sidente do Santos. ficou proprietário seu filho Mário Nicoli. Aí eu já tinha a responsabilidade da família. Depois fui convidado para dirigir o Madri dos espanhóis da rua Santa Rosa. Me lembro de uma passagem do Neco. Dirigi o Clube São Cristóvão aí do Brás. Hoje não jogam nem 10% daquilo que jogavam naquele tempo. eram todos carroceiros. popularizar. Com o progresso. sentia-se muito bem no meio do pessoal. era campo livre. de uns quarenta anos faz . convidou o São Cristóvão para formar seu primeiro quadro. É um economista e ele levou a fábrica para outras modalidades de condições entre patrão-e mpregados. começou a se concentrar o público nos estádios. escalav a os times. ninguém pagava pra v er. Naquele tempo tinha mais de mil campos de várzea. ninguém ganhava. Quem tinha um campo de sessenta por 120 metros acabou ve ndendo pra fábrica. do Paulistano. Não têm onde jogar.icoli. O dono é que pedia pra fazerem um campo nesses terrenos baldios. e o campo d o Sírio. quem perdia chorava. Se nós vamos procurar na memória quantos jogadores da várzea. No domingo vinham 2 mil pessoas assistir. organizava jogos. Depois a f irma mudou para Petracco e Nicoli. Aquele tempo era uma coisa! Cada campo tinha u m clube. Nesse tempo. Qua ndo tinha um clube. Vulcano Flosi. mas o fut . do Corinthians velho. Conseguiu um progresso extraordinário. O Pacaembu veio mais tarde. pode pôr uns cinqüenta campos . Nós pagávamos para jogar. havia o campo da Ponte Pequena. Fui na semana de inauguração do Pacaembu. não ganhavam nada. A gente dizia: "Em qu e parque vamos jogar?". Ho je a oficina é uma fábrica enorme. na rua Paula Souza. Me lembro depois do Bertolini. Havia o Botafogo. que é o Corinthians de ho je. Joguei no São Cristóvão. dava notícias para a Gazeta. muitos da turma fundaram depois a corrida de São Silvestre. Heitor Marcelino. O Morumbi já é recente. prédios de apartamentos. Em cada bairro se fazia um campeonato. Xingo (este era um grande half). e começava o comércio. Não eram profiss ionais. composto d e vendedores de jornal.. A casa do meu patrão era aqui no Cambuci onde está ag ora o Liceu Siqueira Campos. Depois veio o Parque Antarctica e o Parque São Jorge. Uma vez o Internacional. Natura lmente que o sr. O Athiê Jorge Cury. Picagli. poucos. Mas as torcidas maiores eram do Corinthians e do Palestra. era da linha. jogando mesmo. Agora tudo virou fábrica. Lapa. por falta de campo. Ipiranga. embora não trabalhasse no ramo. jogava junto c om o Friendreich. do Goliardo. Na Vila Maria. tínhamos uma vitrola antiga de dar corda e pôr o disco. A Catedral levou vinte anos para terminar. que volta e meia passávamos.... ele tocava os números musicais dos filmes. Roleaux e os filmes do Carlitos. Eu preferia jogar pingue-pongue toda noite.. Passava o corso na avenida Paulista. que era descalça. quando exatamente ele apareceu. então não se escutava bem. isso foi depois do Mart inelli. toda segunda-feira era dia de cinema. dezesseis anos. Manhãs de sol com Dulcina de Morais e Oduvaldo Viana foi um a peça muito bonita que repercutiu em todo o Brasil. O progresso da periferia começou porque no centro já est ava ficando difícil morar. Em baixo era tudo casa de comércio. lança-perfume. para a Lapa . quando era filme mudo. Anita Piccioni. As pessoas mudavam para pagar um aluguel mais barato. Beniamino Gigli. que brincava com confete. Íamos ao Teatro Bela Vista. Lembro a primeira vez que subi num automóvel. ouvir as 'canzonetas' italianas pelas companhias de artistas que chegavam: Mine ilo. A mudança não foi assim tão rápida. Me lembro do calçamento da praça Clóvis Bevilacqua. gosto de ver o cavalo correndo. L embro uma peça de amadores O louco da aldeia. Assistia também às corridas de cavalo. Era m caras as entradas para frisa. pelo dono ele arrebenta o coração. meu pai. Caiaffa. mas quando veio o rádio fomos dos pri meiros a ter. no sétimo ou oitavo andar. ele procurava acompanhar com a música. Tinha esco . se não me engano. houve festa em São Paulo. No início da ponte do Brás tem uma alegoria do compositor que fez a 'Rapaziada do Brás': por sinal que ele era amigo do meu irmão Alfredo. Assisti Moeda quebrada... com carros alegóricos. no Cine-Teatro Santa Helena. cm 193' . me lembro de uma casa gr ande. Quando Tito Schipa vinha para São Paulo. em língua italiana. na Barra Fund a. Meu irmão Alfredo tocava violino nos cinemas. O patrocinador e ra um italiano chamado Morgantini. Rigoletto.. antes daquele tempo eram projetos de automóvei s. Nas óperas que chegavam a São Pau lo.. com meus colegas. Jayme Costa. Não sou muito do tempo da serenata. Lembro bem do cinema mudo porque meu irmão tocava no Cinema São Pedro. Iam para a Penha. Na minha infância só existia rádio de pôr no ouvido. Eu gostava de dirigir. não se ia em clubes de bailes. camarote. Os mocinhos e as mocinhas passe avam à noite no largo da Concórdia e na Rangel Pestana... Procópi o Ferreira. Antés do casamento íamos com a família. de Ou tro as moças. devem ter morrido todos. sempre visitava o Morgantini. de um lado os rapazes. mas a Aida é monumental. eu não me lembro. meus irmãos. Sempre fui ao teatro e lembro dos bons artistas brasileiros: Leopoldo Fróes. vinham cantar Caruso. do Con junto Musical Excêntrico. eu devia ter uns quinze. ali no largo da Concórdia.. cadeira. O cinema falado.. O maior carnaval era feito na rua. Sei que no começo das exibições alguns filmes atrapalhavam porque. Em 1922. são tantos anos. O Hotel d'Oeste ficava. para o Ipiranga. Mais tarde iluminaram a avenida São João. Não gostava de danças. era acompanhado por dis cos. Os companheiros dele. Eles venderam o prédio para inquilinos e para comércio. de esporte. Tito Schipa. pelo Centenário da Independência. que era transmitido no Jardim da Luz. Traciata. Dulcina de Morais.ebol já não é mais o que foi para o povo. serpenti na. minha mã . até meu casamento.. quando o Jockey Club era na Moóca. não me recordo o nome do s sopranos.. O Carnaval também era uma festa de povo na rua. naquele tempo se chamava Velódromo. Nós íamos na geral. o desfile era muito m ais interessante. Eu devia ter mais ou menos vinte anos quando começou o Martineili.. que ainda são lembradas. Não gosto do jogo. parece-me. Vimos todas as óperas. Era o tempo de Francisco Alves. que tinha lá uma cantina que denominou Tito Sch ipa. Em cas a. Sei que faziam serenatas no Bom Retiro e no Brás . na rua do Hipódromo. O comércio progrediu e ocupou as casas de inquilinos. Comecei a ver automóvel há uns 55 anos. O Francisco Alves cantava na Com panhia de Revistas Tro-ló-ló. a festa foi no Mu seu do Ipiranga. no tempo do Carlitos. Conforme era o filme.. Assisti Deus lhe pague com Procópio Fe rreira diversas vezes. ligava muito pouco pra baile. Lembro quando começaram a vir automóveis que faziam corridas no Velódromo. quando nossas federações esportivas representavam um drama. Lembro do programa Tito Shipa. tinha a noção do tempo. Mas. um prêmio na Loteca. o Ronaldo. Os operários do Brás festejavam o Primeiro de Maio. Controlava a esmaltação a fogo. Eu tinha treze anos. trabalhei com ele trinta anos. mas sei que veio tudo junto. precisava naturalmente explicar por que tinha faltado e isso era reconhecido e descontado o dia. mas de gravura. Oddone foi o mestre que sabia todos os o fícios. Uma vez. aceitou. Compunha química no esmalte. Quando os comícios se alteravam chegava a cavalaria. Quando chegou a hora do comício.. uns sírios amigos meus me procuraram porque sabiam que eu conhecia o irmão do pintor e me pediram que lhe desse um recado: "Vê se ele quer pintar a igreja do s sírios da rua Pajé". Quando trabalhava na ofici na é que me chamaram pela primeira vez no telefone. apareceu a cavalar ia com 150 soldados que desmancharam o comício com cassetcte. que ensinou a todos a arte. Na oficina. que ainda é. uma outra firma chamada Cardinali. cantavam. Os patrões começaram no princípio com um pequeno reconhecimento. era amigo d e todos. no 34. o Oddone Carletti. eram 120 ami gos. nem de pilha. isso já no tempo de Getúlio. Era a única regalia que tinha nesse tempo e era somente para quem fazia vinte anos.. A p essoa faltava. Onde eu tra balhava. 6 mil pessoas. com forno de seiscentos a oitocentos graus. O irmão dele. que continua ainda e acabou sendo gerente e que está agora com quase noventa anos. Fui muito feliz na minha juventude. Não estou bem lembrado no momento . bom pai de famflia. uma grande aviadora brasil eira. Punha-se no ouvid o um dispositivo e se escutava rádio assim. licença médica também não tinha. Alfredo. Era mais velho d o que eu. Os alunos. Havia muito desemprego para aqueles que não tinham ofício. não de eletricidade. aqui no Brasil. A mai or parte dos Primeiro de Maio na praça eram paulada. havia baile na grama. nesse tempo. era uma fortuna. uma pessoa muito boa. naquele tempo. Não havia aposentadoria ainda. que era italiano. o Nicoli . por isso é que havia muito desemprego. esse conto de réis. o comício est ava marcado para as dez horas. para o o perário.la de choferes aí na rua do Lucas. no domingo. dirigido por A da Rogato que fazia horas para obter o brevê e a gente alugava. foram as primeiras férias que eu pedi. Ela era uma excelente aviadora. A gravura ficou conhecida. no sábado e domingo. Íamos a piqueniques. no fim da rua Santa Rosa onde s e reuniam os trabalhadores. muito difícil. As férias começaram no 35. tinha 120 operários nessa época. Eu dei o recado para o Joãozinho Volpi. O Humberto Razo eu conheci quando ia levar almoço para o meu irmão. Telefone era no meu tempo coisa de luxo. deixavam os a utomóveis. trabalhador. pintava céus de igrejas. as famílias se reuniam. Era chefe da seção de esmaltaria. Nosso ramo era pouco conhecido. Me lembro muito do João Volpi. fazendo piqueniques no Parque An tarctica. o irmão dele. Um artista. no largo do Pari. quase cinqüe nta anos faz. precisamos fugir do quebra- quebra do largo do Pari. Ela estava fazendo horas de vôo para poder ganhar o brevê no Campo de Marte e voava de teco-teco. Alfredo Vol pi. Os metalúrgicos tinham um j . íamos a Santos com eles: eu tinha uns dezoito anos quand o subi num automóvel. no 37. davam um conto de réis para quem fazia vinte anos de casa. senão eles não levavam em consicleração. O primeiro rádio era de galena. A primeira vez que vi avião foi no tempo da Ada Rogato. Levei comigo um me nino. eu tinha uma legião deles. Sempre fui metalúrgico e assisti os comícios do sindicato. brincadeiras de sala no domingo. Ele era mais difícil de adquirir do que. mas naquele tempo era muito perigoso. hoje.. Lembro disso porque casei no 37. Em nosso setor havia o nosso chefe. Então. mas aqueles que sabiam um a profissão tinham sempre emprego. no Brás.. ótimo marido. nesse dia tinha umas 5. Uma vez. brincavam. era muito mais gente que não ti nha profissão do que aqueles que tinham. mas a encomenda não deu certo porque a prefeitura desapropriou a igre ja e ele ficou sem o trabalho. cavalo por cima da t urma e o comício não foi realizado. ninguém entendia antes. Alice. o s alário-família veio também com a lei da aposentadoria. para casar e passear de sete a dez dias. Voei uns quarenta minutos naquele teco-teco. na indústria Petracco e Nicoli. através de Afonso Nicoli. Amigos. Salário-família era sem. filho do companheiro Humberto e da d. que ficou muito im pressionado e voou comigo pela primeira vez. poucos. Eram poucos. por exemplo das oito às nove ficava tudo no escuro. todos os ricos daquele tempo eram proprietári os. os espanhóis ficam principalmente na rua Piratininga. e era permitido. o trabalhador está mais acomodado. apedrejavam a fábrica. que sabiam trabalhar. os imigrantes eram bem aceitos mas sofri am muito no interior. Aí o delegado gritou com o Nicoli e ameaçou pôr na cadeia quem falasse italiano. até terminar a guerra. Os espanhóis ficavam nos armazéns de cereais. repercutiu bem em todo o mundo. 38.ornal chamado Hoje. fabricantes. de camisa preta em campos de futebol. Então eles pegavam esses mocinhos e convidavam para fazer as passeatas dos camisas-verdes do fascismo. Era o Antonioli. Me parece que agora o operário está ligando menos para o Primeir o de Maio. Na fábrica. ante s esperavam o Primeiro de Maio como uma vingança. os portugueses ficavam nas padaria s e nos bares. dois ou três espanhóis e m uitos descendentes de italianos. Antes da guerra. Isso. não sabiam por quê. até a formação do sindicato. Um caso se passou com o Nicoli. Antes da guerra. Quando começou a guerra. Da última guerra. Havia na mecânica o Vicentini. Hoje. o Mussolini era um ídolo para os italianos porque o que ele fez n a Itália. Naquele tempo tinha muita escola italiana. lembro que faziam black-out. Então tinha sociedades fascistas e depois que entrou o Hitler tinha sociedades nazistas. Antes o ita liano era bem visto. era muito progressista e a maior parte dos trabalhadores qu e tinha ofício. Depois ele inventou a guerra com o Hitier. trabalhavam bastante e ganhavam pouco. charuteiro da rua Benjamim de Oliveira. alugar um quarto. O sindicato é tudo. Tem que ser sindicalizado! A pessoa que trabalha não tem condições de ir ao hospital. quando uma fábrica se mostrava contra o sindicato. mas num apanhado geral a gente percebia que eles eram contra esses camisas-verdes. não tinham uma grande colôni a. O trabalhador não tem. em São Paulo. Comercial izavam ferro-velho. O preconceito contr a italianos veio no tempo da guerra. Conheci muitos . Os portugueses. Lá na oficina vinha gente da poiíeia e uma vez o del egado viu que o Nicoli falava em italiano com o Bassetto. uma opera- ção se a esposa ou o filho ficam doentes. Alguns pretos ameaçaram os jornaleiros italianos. Mais espanhóis do que portugueses. Eles determinavam uma hora . mas isto er a bem antes da guerra. eram mocinhos de ginásios. depois não. mas eram times de italianos. Antes da gu erra. as Classes Laborio sas. Com uma pequena mensalidade davam assistência médica e 50% nos medicamentos. em lugar algum. Teve um caso que se deu com um velho que foi preso por falar italiano: "Mi son I talian!" ele disse. a remédios na fábrica. na estamparia. e tinha guardas em todos os bairros. Os sindicatos nesse tempo eram fracos. havia muito migra nte e os que chegavam aqui vinham pro trabalho. que dá isso e dá muito mais. em 37. mesmo para os trabalhadores e strangeiros aqui no Brasil. isto tudo acabou. "Gosto muito do Brasil ma perõ viva l'Italia!Adesso tepuõ metter mi inprison. parece-me. Ant igamente. Por intermédio do rádio eles pediam que não acendessem nada. Não havia direito a médico. Não ligam muito como antigamente. que era vêneto. Esse tempo era de muita migração. que eu conheci . a de 37. No Brás. Era tempo da aliança da Itália- Alemanha-Japão. mas principalmente no ferro-velho. eles faziam até desfiles de camisa verde. Entrei numa sociedade beneficente. gente que estava muito bem e a terra deles era a Itália e eles ap reciavam que o Mussolini estava fazendo alguma coisa boa pelos italianos. E o povo obedecia. Um preto deu uma surra num jornaleiro mas depois os italianos se reuniram e pegaram o preto. Abriam uma portinha de cebolas na Santa Rosa. como em Santos e no Rio de Janeiro. eram italianos ou descendentes de italianos. tornou-se uma pessoa muito antipática. depois ficaram com a venda de peças de automóvel. o fascismo era benquisto aqui. os trabalhadores não ligavam para fas cismo. op erações e hospital." O delegado apertou a mão dele e disse que seria bom que os brasileir os gostassem do Brasil como ele gostava da Itália. Os camisas- verdes não estavam no sindicato. obedeciam às leis da nação. adeptos do fascismo. No tempo da guerra os brasileiros começaram a ter ódio dos italianos. A ma ioria preferia se estabelecer por conta própria. essas coisas. Não havia aq uela rivalidade estrangeiro/brasileiro. Essa s impatia foi só até antes da guerra. pagar um médico. e ninguém podia acender nem um fósforo. No Brás não moravam só italianos. Francisco Hererias. Na Caetano Pinto tinha muito cortiço. gratuitamente. Quando os nordestinos vieram. As filas eram tão enormes que era preciso pular a parede. Em 60. nas Clas ses Laboriosas. Só depois é que entraram nas fábricas. o Brás virou a Bahia. No máximo de um ano ele fica prático de laminador. Pedro. tam bém. A máquina é mais sim ples. Mas as seções de serv iço mais fácil são de nordestinos. Mas depois da guerra. A oficina toda votou noJânio. Antigamente eram dos italianos. Foi quando ele ganhou do Adhemar. Um ofício como o de gravador pra se aperfeiçoar leva cinco a seis anos. Luís Carlos Prestes era o chefe do comunismo. Lembro da Coluna Prestes no Rio de Janeiro. Era um senhor pr eto. um mercado de peixe. na ladeira do Empório Toscano. depois do Monumento. a pessoa fica vendo o e stampador e com o tempo vira estampador. Para o Carvalho Pinto nós fizemos 2 milhões de pintinhos. trabalham dezesseis horas no metrô onde não têm tempo nem de dormir. já com 82 anos. Diversos generais se entrincheiraram em Copacabana. Eram lugares longe. gente que tinha muita propriedade. Nesse pouco tempo ele se pronunciava nos palanques. que aliás foi muito pouco tempo. Pegavam prática de co nstrução. tinha muito pouco. A arte é muito demorada para a prender. e ir na escola de desenho. Votei no Dutra. dez pessoas. no Brás. parece-me. Não me lembro de nordestinos naquele tempo. Não é como antigamente qu e levava quatro ou cinco anos para aprender o ofício. Na Baixada da Moóca. votei no Getúlio. O ofício precisa começar pelo começo. Pretos. pai do jogador de pingue-pongue. ouvi nos palanques m uita palestra dele no tempo que o comunismo era permitido no Brasil. são os mestres. são choferes de lotação. mas só para conseguir umas economias para comprar um sítio e trabalhar com a família. Na estamparia. faziam qualquer serviço. Mas eles vieram contribuir mu ito para o progresso. Esses que trabalham no metrô fazem sociedade com cinco. Foi uma dificuldade conseguir o título. por exemplo. . Ojânio esteve na oficina. espanhóis: o Rafael Morales. Houve uma época que todo mundo falava dele. Nas máquinas. ou filhos. O filho de Sevillano mora no Jardi m Paulista.. votei nojânio. lavando roupa. Mas não foi bem assim. Macotera. no Brás só havia 1 % de pretos. foi feita para trabalhar. depois eles foram progredindo e saíram. O velho. gordo. Fazem economia. O Getúlio fez leis que se executam hoje e para o movimento operário ele foi um dos melhores presidentes que teve o Brasil. d izem que toma sete ou Oito Caracus por dia. e num ano ele pode ganhar o dobro de um salário mínimo. por exemplo. no fim de um ano põem di nheiro a juro e depois de cinco a oito anos compram um terreno lá no Nordeste. Andava com um tílburi. mora ainda no Brás. fiscal da Companhia Antarctica. Era uma coluna. Em 55. perto do pa rque D. os empresários. o Liceu de Artes e Ofícios ensina va desenho e artes. descampados. eram pedreiros. Eu estive com ele na estamparia. num lugar que não me lembro. Foi feita depois de muito tempo que não se votava mais. Eles se juntam e gastam uns 20% do que ganham. Um fica em casa fazendo comida. pensava que ele ia se juntar com o Getúlio. Nós não sabíamos onde moravam aqueles pretos. No Nicoli ainda tem alguns italianos. mas fica naquilo. Sevillano que já tem oitenta anos. onde a turma tinha um terreninho. d e estampador. Parece que nós votamos também no Jango: era o jj. Antes tinha que aprender a d esenhar. em lugares muito afastados onde não existe quase nada. E com as leis que vinh am vindo. principalme nte no largo da Concórdia. no Al to da Moóca. Começaram a morar lá no Brás. votei no Juscelino. Preto distinto conheci um. Naquele tempo. Trabalham em fábrica. Os nordestinos se dedicam ao trabalho de cinco a Oito anos. fiscalizava os bares onde serviam bebidas da Antarctica.. Só têm a despesa da comida. São Paulo já era grande. A primeira eleição foi no tempo da Constituição. Deviam morar longe. Agora o Liceu é mais de artesanato. Em 50. que lutava pela Constituição. Com pram tudo por atacado ou no fim da feira. A maior parte eram descarregadores de sacos lá n o Mercado Pequeno. Mandou fazer um pedido de 200 mil distintivos. A maioria dos pretos descarregavam sac os. eles aprendem com facilidade. Está sempre ali sentadinho. e eles não que rem ficar em São Paulo. Essa invasão dos baianos não passa de vint e anos. e o começo é o desenho. Alto do Ipiranga. Ele veio encomendar o tostãozinho com o slogan: "O Tostão contra o Milhão". que nessa época tinha que ajudar sua família. Meu irmão." Ele fez uma exposição daquilo que ele ia fazer pros operários. O primeiro aluguel que paguei depois de casado fo i de 120 mil-réis. o que faria no governo. era vendido por intermediários ingleses e americanos como s e fosse coisa deles. Dívidas não fiz. Jânio. motorneiros. Quando o Jânio vinha na oficina ele se sentava numa cadeira e em volta dele ficavam os operários perguntando: se ele ia ser presidente. Veio uma prim a ajudar. o senhor está protegendo muito os cobradores de ônibus." Ele ensinava o operário. ele trouxe o Carvalho Pinto: "Vocês têm que conhecer os candidatos". E essa gente aí é responsável. Q uando casei usei no casamento e ainda sobrou um dinheiro pra volta da lua-de-mel . E teve a satisfação de estampar a primeira moeda na máquina de estampo. tinha conhecimento com um maestro que ensinava a to car violino e que se chamava Gigin Gagliera. quando casei. Ele veio até nós porque teve aquela idéia da campanha do "Tostão contra o Milhão". a revolução d mentira. em fevereiro. Quando casei. Ele encarregou-se de arrumar oito o u dez pessoas que tocavam violino e que na minha despedida ficaram tocando na po rta. que tocava violino. Quando ojânio mandou os operários falar. Casei a 13 de abril de 1937. Vieram alguns cole gas da fábrica. já não tinha sogra.. ele explicou que o nosso produto. mudamos para um quarto. quando novo. eu falei: "Escute. feita na secretaria. A Isabel já não tinha mãe para ajudar. Por minha irmã viúva também. Depois entrou na política. Nessa época ele veio com o general Porfírio da Paz. Foi quando fizeram a Revolução. Quando ele voltou para o Brasil. Quem sobe lá em cima tem muito o que fazer. conseguiu entrar e apontou o Carvalho Pinto para seu sucessor no governo. "Boa pergunta: eles são trabalhadores como vocês. Os irmãos dela tinham muita necessidade e ela precisava cuid ar também das pessoas da família dela. ia favorecer essa classe. "Vocês têm que se sindicalizar. Naturalmente foram os mil itares que fizeram essa coisa. mas no tempo do noivado fiz força para juntar cinco contos. dediquei-me quanto pude à minha família. candidato a vice-prefeito dele. Toda turma da rua veio. na porta da fábrica. O pessoal em geral votava nele. eu. São como vocês. do Outro contra o Milhão. De um lado estava escrito Tostão. na rua Benjamim de Oliveir a. E conseguiram pôr uma lei diferente. Foi na Igreja do Brás e depois teve aquela festinha na minha casa. foi um dos anos de maior miséria em São Paulo. que foi a consagração do casamento.Ojânio era um tipo atlético. o Jânio condecorou o Guevara. não tinha serviço. propaganda que foi uma consagração. Aí voltou na oficina com ele e teve a idéia de lançar o distintivo do pintinho.. O aluguel da rua Carlos Garcia parece-me que era de vinte mil-réi . O milhão é a sociedade que nós devemos fazer reconhecer a necessidade daquele que precisa. Conseguiu entrar. Nas reuniões. sr. Minha mãe e minhas irmãs ajudaram muito minha esposa.. Depois teve a passagem do Guevara.. Vai para 41 anos. Depois fez a campanha para governador. Ia ajudar os cobradores de ônibus. Quando ele era presidente. juntei. Eles ganham um salário de fome. vieram todos. foi um ano muito sacrificado. Depois de um ano e pouco. e ra muita miséria. Minha esposa foi muito bem acompanhada por médico porque eu era sócio das Classes L aboriosas. a gente comentava. 1937. Nós temos que O gritp I:. dc d l/wrcsa Buçi olhar por todos. condutores. parece que a razão foi essa. S empre fizemos tudo por ele. eram todos meus amigos. Em 64 foi aquele negócio de Lar-Pátria-Família. do operário.xcentrico ( do albun. Não sei se foi porque era o começo da guerra. Vocês têm que ajudar o sindicato a ajudar vocês. o café. O ano em que me casei. por quê?". Meu cunhado esteve doente e depois faleceu. foi chamado pelos lordes da Inglaterra e nem deu confiança. Depois. na casa de uma família do Brás. nasceu minha primeira filha. Ele falou: "Este tostãozinho aqui é vocês. sala e cozinha. do trabalhador". em 38. Ele respondeu que a primeira coisa que ia fazer era trabalhar pela gente mais necessitada. Parece que tudo aquilo que peço a Deus eu recebo. Uma delas estudou de dezessete a dezoito anos. eles também ficaram muito penalizados e me pediram para angariar donativos . não tínhamos condições. azeitonas. Depois mudei de novo para a casa de minha mãe. e aí paguei duzentos mil. po lenta e outros pratos vênetos. massas. Minha mãe era vêneta e fazia bastante sopa. então havia essa comida na mesa. que não tem obrigação nen huma. mas também não existe mais: hoje é uma fábrica de móveis. Quando ficaram com mais idade íamos toda semana ao cinema. A comida sempre foi como hoje: arroz e feijão. mais ou menos. a outra de doze a catorze. Lá fiquei um ano e meio somente e mudei para o Cambuci. parece-me que elas seguiram. então é macarronada. Íamos ao teatro também. sempre fui ouvido. faz aquilo que acha que tem que fazer.réis. chamado Ísis . minha esposa é descendente da Baixa Itália. Depois que casei. os outros mantimentos. Eduquei de movo diferente de meus pais. reza. este ano angariei uns cinqüenta sócios que pagam quinze cruzeiro s por mês. mas isso é recente. perto da fábrica. porque não tive estudo em minha mocidade. No tempo de meu pai o vinho que vinha em cartolas. mas muito gostos as. Ele vai á igreja. Eu trabalhav a e minha maior ambição era dar escola e estudo para as crianças. Os preços eram altos. se reuniam na venda da esquina e ficavam lá até meia-noite. onde eu pagava uma mesada. por barato que fosse. Quando minhas filhas cresceram minha maior satisfação era levar as meninas passearem . mas em casa. e então prometi a Deu s que ia colaborar de alguma maneira. consegui dar um estudo mais ou menos bom. só um copo. um vinhozinho na janta. da Itália. Não obriguei. bastante caldo. angario sócios. Nunca fui a sessào espírita mas faço coleta para o André Luiz poique me levaram visitar as crianças e fiquei muito penalizado vendo aquele sofrimento. Hoje é Glória. São dezoito anos. Na rua Stefano foi um conto de réis. outra filha que fre qüentasse a Escola Nossa Senhora da Glória e depois a Álvares Penteado e aos poucos. Não existe mais. VOU missa todo domingo. e quando tenho qualquer problema rezo a Deus e. atum estrangeiros. toma comunhão. Felizmente uma delas estudou.s. era no largo da Concórdia. peixe eram mais baratos que hoje. Hoje. Os que iam no bar saíam de lá embriagados. O hospital abriga q uase 2 mil crianças com o dinheiro que o povo dá. eram 450 mil-réis. E tinha o Cinema Col ombo. não as que têm pai e mãe. não era para a aquisição do operário. Depois de casado tomávamos um vinhozinho no almoço. sempre bebendo. onde vieram os mai ores músicos e os maiores artistas do mundo. Elas vivem do que dão essas pessoas que gostam de ajudar. Depois tinha o Cinema Mafalda. tem a diferença de uns quatro anos entre uma e outra. que tèm amor pelas crianças. as escolas eram caras. hoje é aquele Cine Olímpia. saíam às seis horas do trabalho. c om sacrifício. discutindo. Durante a semana trabalhava mas no domingo sempre conseguia poder levar as duas passear. Em 1943 nasceu minha segunda filha. há uns doze ou treze anos. Bebiam pi nga. mas também não existe mais. comidas mais pesadas. . Levei o pessoal da fábrica. a Igreja dá uma certa liberdade para o católico. Alice e do Hu mberto. não vou dizer melhor. não que foi um milagre. era bem barato. Vi mesmo. visitar a Casa de An dré Luiz. carne. Vim morar bem perto da d. São crianças aba ndonadas no manicômio. No Brás eram muito procuradas as cantinas que serviam queijos. Todo Natal e Páscoa vou lá levar contr ibuiçôes. mas vi e lembro como se fosse hoje. Todo sábado ou domingo ia com minha esposa ao cinema na rua do Gasômetro. parece. Consegui que minha filha freqüentasse a Escola Álvares Penteado. Morei sempre em casa alugada e depois consegu i comprar um terreno na Vila Ré. Lembro como se fosse hoje que na gripe espanhola ' i no céu o carro com os cavalos brancos na frente e o meu caixão. E continuam ajudando. Depois passei pra Luís Gama. Existiam poucas escol as do governo naquele tempo. Meus companheiros de trabalho bebiam. em barris. mas o principal mesm o era o arroz e feijão. braciola. entre os leprosos. naturalmente. Na Páscoa e Natal entrego li stas e tudo que as listas derem é para as crianças da Casa de André Luiz. o vinho para o operário era caro. mas eu não tinha o hábito de freqüentar essas cantinas. A Igreja não obriga a nada. sempre pensando em Deus. depois o Colombo virou teatro. mas sempre fiz ver a elas que a religião da Igreja era muito boa e que a gente devia ter uma crença em Deus. Morei muitos anos numa casa-prêmio do iAPi. o salário era pequeno mas valia mais. Sempre perguntava quando iam desenterrar e me respondiam: "Olha. lembrando o que fazíamos. Atílio Bovi . minha mãe. O tempo que posso lembrar é o de 25. Sinto-me contentíssimo com a vida. Uma coisa que não esqueço foi a chegada do Torino da Itália. Então começamos a sentir um ardor nos olhos. menos que agora porque o dinheiro. só quando passa no pensamento. Aconteceu depois que o cruzeiro desvalorizou e o IAPI nos obrigou a comprar as casas. do momento. todo lugar em que haja alguma coisa para aprender eu vou. de futebol. sem luz. Oito e meia. A coisa mais linda que existe é quando um homem tem a resp onsabilidade da família. e minha filha viúva e os dois netos.. Essa reforma levou mais de dez anos e quando chegou a época não me avisaram. Mas não consegui reunir meu pai e meu irmão Arturo. Então perdi meu pai e meu irmão Arturo. depois vendi. o nascimento dos filhos da minha filha. o mais importante em minha vida foi o meu casamento. Quando ela faleceu fiz de t udo para fazer um túmulo e consegui tirar minha mãe e meu irmão dos ossos. Ficamos na esquina esperando e a fábrica não abria. Toda a família está no cemitério: meu pai Adolfo Bovi. afinal sou responsável pela casa. Meu pai e meu irmão perdi. quarenta anos comig o é uma satisfação enorme. agora. ali era Venezia. estou levando no Instituto de Caligrafia De Franco. Os bombeiros vinham buscar a gente em casa pra levar a gente onde quisesse. O chofer do Colégio Anglo Latino não pôde entrar com a perua e ficou com o menino até meia-noite. Deu sete e meia. e até foi um alto negócio para os que compraram . naquele tempo lá. Um dos netos que gosta de um bonito traçado de letras. Não tinha essa correria de hoje. com uma pequena mensalida de o sócio tem direitos na doença. vou no sábado ou num dia da semana. Esta rua do Cambuci é sossega da. o tempo normal é cinco anos mas acontece que vai haver uma reforma. Uma ocasião ficamos três dias e três noites sem poder sair do apart amento. Aí. O aumento do custo de vida era c ada ano e era relativo. Pago o aluguel desta casa porque tem um quintal gostoso para os netos. na desgraça. vão abrir uma avenida e. Os metalúrgicos são um exemplo. 3?) ter dois ou mais filhos menores. que era cin co anos que estavam enterrados. 5?) ser sindicaliza do. tudo era muito diferente aqui em São Paulo porque a gente ganhava pouco. Porém. E se portar direitinho. Quando encontro os amigos da oficina que trabalharam trinta. forço a memória e lembro o que quero. árvores. Lembro da infância. Não fico lembrando sempr e. Sou aposentado mas ainda faço alguma coisa daquilo que e u sabia fazer. A aposentadoria não é nada e preciso pegar serviços de gravação. Nós não sa bíamos de nada. Arturo Bovi. foi o dia que as indústrias não funcionaram. Aquilo que eu fiz na vida não foi lá grande coisa. as amizades lá eram boas.. teatro. Anita Bovi. o casame nto da primeira filha.Hoje moro com a Isabel. e nada. Tem uma passagem que vou contar. Uma tarde meu neto não voltou para casa. Desde que minha mãe faleceu vou tod o domingo visitá-la. o nascimento das filhas. Lembro mais das coisas recentes. Ainda vou ao cinema. por causa das enchentes. meu irmão Alfredo Bovi. Continuo sócio remido do Sindicato dos Metalúrgicos. porque já tinha um metro e meio de água. Eu comprei. Se preciso. fui recebê-los no Aeroporto de Congonhas e abracei os jogadores. Foi em 1970 ou 71. um ardo . de quanto gostava do esporte. Prometi que iria visitar mamãe toda semana. pingue-pongue. isso eu não esqueço. minha filha disse q ue não morava mais lá. A Gazeta tirou uma fotografia em que eu saí na primeira página junto com os jogadores. era d ifícil. sim. esses aumentos de seis em seis meses. sem água e sem gás. Alda Bovi e Júlia. uma boa esposa. quando se der isso. 6?) ter ordenado correspondente. 2?) ser casado. A mão-de-obra era muito barata mas a vida também era barata. Lembro dc seis desses quesitos: 1?) ser brasile iro. Vinham os bombeiros de barco. minha filha solteira. nós avisamos". Foi quando veio aquela chuva tremenda que inundou São Paulo todo. trinta anos atrás. ali pagava um conto de réis de aluguel q uem tinha os quesitos necessários. 4?) ter pago o primeiro recibo do JAPI. A gora diminuiu muito com a retificação do Tamanduateí. Quando preciso viajar. Fizeram um preço facilitado. Se estivesse na minha competência u daria um conselho aos jovens para levar uma vida honesta. quando ela morreu. o ito horas. uma vida com amor. A gente ficava inquilino o tempo que quises se. Eles estavam enterrados numa rua do Cemitério do Araçá onde i am abrir uma avenida. à "parmegiana". risoto. Devem procurar ainda fazer alguma coisa na vida. numa travessa chamada Antônio Carlos. Mamãe cozinhava macarrão. então eu te dou um pão bem gostoso. Minha rua tinha pouca s casas. uma aqui. que estou trabalhando na oficina porque fiquei 44 anos nessa ofic ina. Passava a carrocinha do italiano com queijo e ele gritava: "Oformag gio! Olha oformaggio É o barateiro. na infância. . Mas eu acho que deveríamos olhar até por esses velhos. porque é muita gente e a comida não dá. em 1900. abandonado. Telésforo. "Esse eu não sei!" "Este aqui é o 3. redondinho?". ameixa e aba cate. Mamãe era muito boazinha. Essa oficina não me sai do pensamento. bife à milanesa. Ela servia tigelas grandes. os japoneses quando plantam já põem uma porção de adubo para dar l ogo. Sonho. que é uma arte difícil. mas vinham de fora. mixirica. já não entendo nada dessas ruas. por isso escolheu es ses nomes para nÓS: Amleto. A minha lembrança mais antiga." Naquela época não existiam brinquedos. quando eu tinha cinco anos. punha o pão. sempre. Meus pais vieram para cá como imigrantes. Há os que partiram para o jogo e a bebida e ficaram por aí abandon ados.r que foi ficando cada vez mais forte até a gente lacrimejar. muito mascate. Penso que eles começaram a surgir só depois de 19 10. minha mãe era de Carpi e ficaram muito tempo na roça. margaridas. Se um velho fosse doente. Muitos operários parec iam chorando e não suportavam mais. dia 20 d e setembro. vamos tomar café!". é o padeiro com um saco n as costas. sou o único. embora tenha feito algum deslize na mocidade. E eu ia atrás dela. acho que devia ser perdoado e t ratado muito bem. Minha mãe gostava muito de flores e plantava rosas.. Se você vai contar até dez. As outras r uas eram semicalçadas. Foi o dia da morte do Getúlio. Dois quilo s de café ou dois quilos de açúcar custavam quinhentos réis.. cobertas de árvores. livremente. um maço de couve custava um tostão. Então nos avisaram que as Forças Aéreas é que estavam atirando um ácido nos lugares de reunião do povo e era para a gente voltar pra casa. Depois a família veio morar n essa travessa da avenida Paulista. Eles também trabalharam. tenho muita coisa para você. jogava o leite e o café e fazia uma papinha.. na mocidade e numa parte da velhice. Naquela época não tinha maquinaria. O português vendia verdura de casa em casa. eles carregavam cestas e iam bat endo matracas e oferecendo sua mercadoria: "Moça. Ele gostava muito de ler. a nossa tinha quintal com pé de laranja. Armazém de secos e molhados a gente encontrava. ARIOSTO Nasci na avenida Paulista. palacetes. boa companhia quando sozinho. meu pai trabalhava na enxada. depois vinha acordar a gente: " Vamos meus filhos. 1911. e esse aqui. Antigamente não tinha n ada artificial. pintava quadros a aquarela e fazia retratos a bico-de-pena. outra a quinhentos metros. A avenida Paulista era bonita. Aqui no asilo não tem ninguém com esse nome de Ariosto. de mata. Se tem famíli a. às vezes. deixaram sua família na Europa . agora está tudo mudado. Meu pai era mestre de caligrafia. De noite. Da hospedaria de imigrantes eles já eram tratados para uma fazenda no estado de São Paulo e para lá meu pai foi. calçamento de paralelepípedos. Todo dia me pegava no colo e me ensinava os números: "Esse é o 1. Meu pai era de Móden a. desde menino. Hoje. Naquela época existia muito turco. a barriga fica vazia. devese recolher num lar onde pud esse passar os últimos anos com fartura. To do dia de manhã cedo ia regar as flores com seu regadorzinho. nunca me machuquei porque a rua não tinha ca rros. penso que ele tirou da literatura. Naquela época faziam casas bem grand es. o 2. Eu fazia carrinhos com rodas de carretel de linha e nós brincávamos o dia todo. o barateiro!". violetas. mas era muito distante. Ariosto. os "lampioneiros" vin ham acender os lampiões e de madrugada voltavam para apagar.. tudo baratinho!". Agora. As autoridades não queriam que ninguém se reunisse. A mamãe levantava cedinho e acendia o fogão a lenha. Os velhos de hoje foram os moços de ontem. Pode dizer que s ou o Ariosto de Orlando furioso. SR. pé-direito alto. O Amleto fazia compras com uma carriolinha que ele tinha feito e sem pre me levava nela. venha ajudar amassar o pão!". Ela era dessas pessoas que sabem cativar." Os quadros de meu pai eram lindíssimos: hoje não tem ninguém que faça quadros como ele. o Mário que eu segur ei no colo. notte egiorno. Recebia alunos em casa: o alguel era vinte mil-réis. que levava um mês para pintar. Deléia e Telésforo: eu era o qu arto filho. Mário. não quero!" "s6 um pouquinho para você aprender. A gente apostava: "Quero ver se você bate o pica-pau. Levava muito tempo para pintar um pergaminho. m 'hai rovinato! Commefacciamo adesso? Estava quase pronto tutto.. A ge nte comia com prazer. estava em casa. Meu pai ficou louco: "Giovannino. Contava que foi costureira. a arear os talheres em pó de tijolo. A gente põe o diabolô no carretel e ele fica dançando na linha e quando a gente joga assim ele vai lá. colarinho duro. quando ficou mocinha. Eu estava sempre na saia de minha mãe. "Papai.. Pur cosa facciamo?" "Nonfa niente. O pergaminho apareceu bor rado. com sal e azeite estrangeiro. você faz pão pra mamãe. A criançada corria e jogava no meio da rua futebol com bola feita de meia." "Vai via! Mascalzone! Non mi venirepià qua. A Roberta." Ela fazia as pagnottas redondas e quando a gente tinha fome ela cortava no braço u ma fatia. Naquela época era tudo sossegado e os quadros demoravam. Eu brincava com os mais moços: o Telésforo. ia de casa por casa leciona ndo o italiano. A gente batia com outro pau zinho e o pica-pau dava volta e pulava longe. lo lavoro di notte. E depois ajustava no corpo. mamãe estava sempre me agradando e com bom humor. que tinha vestuários muito ricos. a bico-de-pe na. passa três vezes o último que ficar! Morava com meus irmãos: Amleto. Por um quadro.. esquentado no fogo. com letras maravilhosas. Meus ir- mãos eram todos bons. Minha mãe e meu pai falaram italiano conosco até morrer." . Meu pai nunca nos castigou nem minha mãe. por que o senhor não fala brasileiro?" "Eu não sei la vostra lingua. Depois deixou a cost ura para trabalhar no palco. Minha mãe lavava a roupa para todos nós. Numa ocasião dessas. Ela cantava uma ópera inteira de cor: a Traviata. Precisava entregar na data certa. Ou então com diabolô.. dançava e nós acompanhávamos os passos. pagavam trinta. engomar as camisas de m eu pai com peito duro. T enho que entregar. Roberta. estava sempre junto com as artistas. Meu pai pintou. mas com um ferro pesado. dançávamos junto co m ela. e volta. Quando não tiver pão e eu não estiver aqui. perl'amor di Dio!" "Cosa vuoi fare? Cosa che é successo. que veio com ele da Itália. os senhores art istas da Traviata. No fundo do quintal assava pão num forno redondinho de tijolos. As meni nas convidavam a gente para brincar de roda com elas e cantávamos: Passa. duzentos réis: "Agora você vai comprar um docinho". Lá na Europa ela foi bailarina: quando contava. até onde ele vai?". a Cavalieria rustic ana. "É stato senza volere. rio teatro vestia as atrizes. o retrato de Altino Arantes. meu pai tinha muito ciúmes dela. ao contrário. amassava: "Ariosto. a Lucia de Lammermoor. E amassava. os punhos eram duros. quarenta mil-réis. Mamãe contava muitas histórias. postiços. mas para ganhar era preciso s uar. conhece? Ele tem um vãozinho no meio com carretel. O Amieto sempre me dava um tostão. Ela não passa va com ferro de brasa. ma vado accomodare questo qu i.. meu predileto. solo la lingua italiana. dese nhos a bico-de-pena em roda. esqueci d e enxugar e caiu o borrão de tinta. com as dedicatórias num aniversário..Gostava do pica-pau: era um pauzinho com ponta dos dois lados. minha mãe era bonita. "Eu não quero. ou em homenagem a alguém. Dolores. da Aida. tinha que cozinhar. Tu m 'hai rovinato!". presidente de São Paulo que já faleceu faz tempo. cortava os tomatinhos e punha no pão. lo sono andato a prendere o pincelzinho na tinta. Nós ajudávamos a mamãe a lavar a louça. meu pai saiu para comprar tintas que necessitava e um tal de Giovannino. eu não vou errar mais!" A gente abria a mão com medo e. já não me canso a todo instante. Tirei do bolso os quatrocentos réis e dei pra ela. Naquela época estava m fazendo a Catedral da praça da Sé: vi quatro.". quase uma hora a pé. rios. Na outra aula: "E o nome da mamãe..O pergaminho chupa e segura a tinta. hoje a minha voz está mais forte que ontem. no primeiro dia de aula foi ela. bravo. no ma to. As crianças eram ma is quietinhas. Gostava muito de um colega. apanha va com reguada: "Dá tua mão aí!". com o 1. foi bailarina de teatro. escreveu uma carta de amor para uma moça que morava um as quadras abaixo da avenida e me ofereceu quatrocentos réis para entregar a carta . comprar tintas na Ca sa Michelangelo. Quando eu tinha dez anos. E o Marengo dizia pra mim: "Olha. Eu vou ler depois e dar uma resposta". Vendia sempre alguns quadrinhos. é preciso muito tato para trabalhar nele. as crianças iam m as eles estavam sempre de olho. um bonde que saía da Vila Mariana e ia até a Quarta Parada. A praça da Sé tinha alguns sobrados: só em 1915 é que começou a const rução de edifícios em São Paulo. Fui gostando da escola porque estava aprendendo. O barbeiro achou que eu merecia os quatrocentos réis e me pago u. O motorneiro parava o bonde onde as famílias pediam: segurava as crianças no colo e punha no chão. naquela época dez mil-réis por um quadro er a dinheiro. nas pernas. Nas ruas do centro as pessoas se cumprimentavam. De vez em quando eu também ajudava me u pai nos pergaminhos. pum! Quem que ia na escola depois? Ninguém! A senhora acha? Quem reincidia no erro ajoelhava no milho: se a gente queria levantar porque o milho penetrava nos joelhos. barbeiro. fiquei cansado. respondeu: "Estou nervosa porque o papai está aí. O primeir o. que ainda existe perto do viaduto. ele pegava na minha mão e escrevia Ariosto. segundo. quando eu tinha uns oito anos. Se a gente errava alguma coisa. Mas a gente não era tão peralta como hoje. E antes os bondes eram puxados a burro. Acontece que naquele dia o papai não tinha dinheiro nenhum e quando cheguei em casa mamãe falou: "Hoje não temos comida!". molta attenzione! Comincia afare! Bravo. mas ia sustentando. ele me pegav a no colo e me abraçava. Assim ele ia sustentando a família. vuoi?" Ele lecionava crianças de casa em casa.. terceiro e quarto ano era tudo junto na mesma sala. cosi" Naquela época os pais tomavam mais cuidado com as crianças. "Ai. quando se junta o b com o a. em italiano. se ele vê essa carta vai me bater. A Penha não era calçada. Tomávamos. Ma mãe tinha cultura. A moça atendeu e. e o nome do papai!". mas meu pai conseguiu tirar o borrão. mas o Dante Alighieri era uma casa isolada. Andei. "Oh! meu filho! Vou comprar um quilo de carne!" Mamãe ficou contente e me abraçou. Ajuntando A com R. são protegidas. tem muita uva aí! Você vai comendo. "Ariosto. As crianças diziam: "Hoje aprendi a fazer o meu nome!". Faz un s vinte anos que São Paulo ficou desse jeito. para ir lá. andei. com sacrifício. Maren go. Eu não vi nenhuma criança que os pais tivessem casti gado. o Antônio Figueiroa. só o trilho dos bonde s. papai me levou no centro da cidade. Era um portugu . não s ei como. era longe. Em casa a mamãe me ajudava a fazer as lições: "Mamãe. Talvez tivessem receio de apanhar: hoje as crianças não têm medo de apanhar. Meu pai ia sempre à cidade procurar trabalho. "Domani ti porto un dolce. tinha poucas casas. Não estou bem lembrado. Aprendi a ler no Dante Alighieri com o professor Quaranta. cobrava três mil-réis por mês de ca da uma. Quando chovia muito os b ondes não saíam: os burros não podiam transitar porque escorregavam. podia ter Oito anos. pegava o pincel com muito cuidado.. professor. est a é B. esta é C e assim por diante. quando recebeu a carta. uvas e depois a gente almoçava com ele . mesmo com os parentes.. gordo. Um vizinho nosso.. Nós comíamos ameixas. ele ficava um po uquinho com cada aluno. seis operários carregando um bloco de pedra para a igreja. Ele era baixo. mas ch eguei na casa e bati.. ou ia lecionar. na Penha. só nas escolas. levava uma reguada nas costas. O professor nos dava um papel com as letras do abecedário e explicava: esta é A. Foi me levando pela mão a uma distância lo nge. Quem me levou na escola. tinham mais respeito. Papai me levava sempre na Penha para vender uns quadrinhos na chácara do sr. Veja. Meu pai era severo. mas ao mesmo tempo era bom. tinha uns quarenta anos e lecionava em italiano. Par ece que estou rejuvenescendo enquanto recordo. o que quer dizer isso?". árvores. Hoje." Tinha dias que eu vendia quatro. se embriagavam com vinho. a gente batia palma s: "Viva o balão de ferramenta! Viva Santos Dumont!". se quero afirmar a mão para escrever não posso . castanhas. Hoje não festejam mais porque a vida está muito car a.esinho. aparecia ali perto de casa. gostosíssim o. Mamãe. Esse dinheiro dava todo pra mamãe e ela comprava o que necessitava. um sanfoneiro chamado Pepino. avenida São Gabriel. cumprimentava todo mundo e explicava como fez o balão. na rua Major Diogo. porque tenho ainda muito que aprender! Meu pai m e ensinou caligrafia e pintura. é uma torta de grãos de trigo. todos j untos. . não vi com meus olhos ninguém se jogar. Nas festas daquele tempo a gente não ganhava presentes mas a mamãe fazia um bolo e punha as oito. contra os transmissores da febre amarela. Com uns oito anos. mas pintei muitos quadros na vida. Agora não se vê mais isso. talvez já tenha falecido. Ele tocava valsas antigas e papai dançava com a mamãe. os Reis Magos. A Pascoela é um suplemento de Páscoa na segunda-feira: íamos para o Bosque da Saúde com comidas feitas em casa. Só fiquei na escola um ano e pouco. mais de seis meses. Mas que era bonita a Pascoela. que era um campo. trezentos metros e voava. Mudamos para a rua Major Diogo quando eu tinha uns dez anos. Papai não gostava de passeios. Passava a meninada: "Ah! estão venden do papagaio! Ah! quanto custa?". Santos Dumont. luminosa. clarinetas. era muito c edo ainda. M amãe dizia de vez em quando: "Vocês querem ver o balão de ferramenta?". Então acabei de aprender. O papai trazia nozes. Nossa Senhora. No primeiro do ano o papai ia buscar. tod os juntos. frutas secas italianas para festejar. pois minha memória não dá. Mamãe ia sempre lá. era. minha irmã. às vezes se vestia de cinza. Às vez es me abraçava e falava: "Ainda vou inventar um aparelho e levar todos vocês lá em cim a". A iluminação elétrica aqui em São Paulo começou no centro. Ouvi comentar. não fomos mais para a escola. Na época da Grande Guerra todos tinham medo. Nós cantávamos. na época do prefeito Pires. acabei. Antes de começar o filme precisavam molhar a tela com b aldes de água porque esquentava muito. "Um tostão. na Igreja Nossa Senhora da Caropita. Não sei por onde anda. A gente ia muito na festa da Caropita [Nossa Senhora Aqueropita] no Bexiga. Ficava mexendo num aparelh o esquisito. uma canção de Natal. el e era muito democrático. Aquele lugar no Bosque da Saúde agora é a praça da Árvore. aquele chapéu característic o. padroeira dos peixeiros. vinho. lá eu fazia papagaios de uma porção de feitios e pendurava na janela. ar mazenavam pão em casa. Quando ele subia uns duzentos. Penso que nem existe mais essa rua. muitos s e jogavam do viaduto do Chá. com um rabo comprido . A música era orquestra com violinos.mente e a gente ia dormir de novo. Ele preferia que ficássemos em casa. car ne assada. saxofones. Mamãe punha tudo naquelas travessas grandes na mesa. O papai mudou. dez velinhas de ani versário. As pessoas faziam festas. e comíamos na mata. Era um filme de Napoleão que a todo instante queimava. A mamãe também fazia cestas grandes de pão para durar muito tempo . lá per to da Major Diogo. Mais tarde h ouve a campanha dos mata-mosquitos em São Paulo. camisa engomada. "nozelas". que agora não posso decifrar. em Santana. não. até bem pouco tempo ain da pintava como ele me ensinou. raça do Patriarca. depois do macarrão. reunidos em família. Vinham amigos. A gente descia para as imediações do que é hoje o Jardim América. violoncelos que tocavam valsas de Strauss. na Líbero Badaró. Santos Dumont usava um colarinho alto. Festejar a Pascoela é um costume lá da Itália. a gente indo no campo para comer todos ju ntos. mamãe enfeitava um pinheiro com um anjo. piqueniques. Aparecia de madrugada e ficava quase uma hora no céu. Mamãe me acordava para ver a estrela cometa. às vezes de azul-marinho. Houve uma época em que os jornais diziam que o mundo ia acab ar em fogo e revolução. Com uns doze anos fui pela primeira vez ao cinema. fazia o pastiera di grano. porque o coração não deixa. Seus pais eram ricos. compravam e guardavam mantimentos. Um dia chamaram meu pai no laboratório do professor Osvaldo Cruz: ele pediu que me u pai desenhasse as espécies de mosquitos para estudo dos cientistas. na Páscoa. Is so foi antes da gripe espanhola. cin co papagaios. Ela sumia lenta. no Campo Grande. A gente sentava na mesa e só levantava de noite. donos de chácara e ele sempre trazia frutas para mim . Antes da Grande Guerra apareceu a estrela cometa. No Natal. na rua Direita. . Ficamos só um ano ali. Quando a gente é menino passa muita coisa pela cabeça da gente: meu tio. Os trinta mil-réis que eu tirava de gorjeta por mês davam para comprar um sapato. Amleto. As entregas eram no Piques. Na casa defronte morava uma menina. Trabalhei como garçom cinco anos sem ganhar um tostãozinho. ii aime. O Telésforo ganhava mais de cinqüenta: ele foi ser gravateiro na fábrica de um j udeu na rua José Paulino. mandava as patas de cavalo em cima do povo para dispersar. em frente do Quartel da Força Pública. fazia entregas mas não ganhava nada. dava uma risadinha. ". Era o Bexiga. tomávamos banho de bacia. que não era ainda calçada. falava muito de Paris. vamos embora. A gente se olhava de longe. uma sala. minha futura esposa: eu tinha uns catorze. Condessa de Nioac. depois papai arrumou na rua da Moóca uma casa numa série de cas as iguais. O Primeiro de Maio era muito festejado pelos operários. Os fregueses é que me davam um tostão. com os soldados: o quartel dava de fr ente para quatro ruas: Tabatingüera. por isso desisti. Morei dez anos aí. Os fregueses eram coronéis. A Roberta dava aulas de italiano. eles não querem a manifestação dos estudantes. quand o eles faziam as grandes manifestações. Era moço ainda e foi o brigado a tirar aposentadoria. fazendei ros que vinham do interior. ela também tinha a mesma idade e era florista desde seus onze anos. Com uns treze anos mudei para a rua dos Carmelitas. O governo não queria que os operários fossem para a rua e que o Primeiro de Maio fosse tão festejado. os quartos. que custava quatro ou c inco mil-réis. na Moóca. A ru a era calçada. O povo se reunia ali na praça da Sé e os soldados b atiam com espadas. não se via nem o sapato. O rest o eram chácaras. Comecei a trabalhar com doze anos num armazém de secos e molhados na avenida Briga deiro Luís Antônio perto do viaduto Dona Paulina. O profes sor era nervoso. Depois as chácaras saíram dali. Meu pai falou que queria que eu trabalhasse com ele e me entregou. O aluguel da casa ficava nuns cin qüenta mil-réis. na Moóca. duzentos réis. Tinha banda. Que vida sac rificada! Não tinha tempo nem de ver a namorada. trabalhava em couro para a luvaria Scar amello. elas adivinhavam com quem iam casar. onde hoje é a praça da Bandeira. O Mário trabalhou muito tempo na fábrica de calçados Piccinini. que eu me lembro. me xingava muito. como chamavam. mas uma máquina de pr ensão pegou os dedos dele e ele ficou com os dedos amassados.. quinhe ntos réis que levava para meus pais que quase sempre estavam em dificuldade. só um quintalzin ho onde mamãe plantava flores. Os pe ixeiros são fanáticos por Nossa Senhora Caropita: é uma grande festa. com duas janelas para a rua. Tive vontade de conhecer a França. quando davam quinhentos réis eu p ulava de alegria. Não tinha jardim. na época do Getúlio que deu a aposentadoria. duzentos. dava uns oitenta em casa.. mas já tinha muitas casas. Lavapés e Carmelitas. Meu irmão mais velho. É como agor a. Estudei francês com um professor que me dava aulas na pensão e m que morava na Santa Ifigênia. arrasta ndo no chão. no mesmo ano. A ge nte vem aqui para ver a manifestação dos operários e está acontecendo isso?!". uma camisa por dois ou três mil-réis. duas irmãs já moças: a Dolores e a Deléia. Santo Antônio era o santo mais festejado no bairro porque era casamenteiro. bem mais povoada que a outra. de viver lá. As moças jogavam chumbo derretido na água. de casa em casa. Trabalhava das sete da manhã até as dez horas da noite sem ganhar nada. Compreendo muito bem o fran . do Hotel d'Oeste. eu comece i a chorar e meu pai me disse: "Eh. Os viz inhos acendiam fogueiras nos descampados. Antes da rua da Moóca. era bem menor que a outra. Com quinze anos fui trabalhar com um tio. de trabalhar lá: "Je t'aime. fizeram parques de diversão. q uinze anos. eles gastam até a alma por ela. procissão e a rua ficava cheia de barraquinhas das quermesses. dono do Hotel d'Oeste na rua Bela Vist a. Uma ocasião vi um soldado bater com a aljava em alguém. senão a coisa vai ser ruim. tinha d ois quartos. Só quando era moço fui dar um passeio em Santos com meus amigos e conheci o mar com vinte anos. Isso foi depois de 32. de propriedade do senador Lacerda Franco. O aluguel devia ser uns vinte mil-réis. A casa era meio assobradada. as mulheres com vestido comprido fechadinho. a cozinha com fogão de lenha. A gente desci a para o quintal e num barracão puseram um chuveiro. t u aimes. conforme apareciam as figuras. Nessa casa perdi. que tinha loja na rua Direita e ganhava cem mil-réis. De vez em quando ganhava cem. de um filho que estudava no ex terior. Ele vestia casaca para receber os alunos. Então. Era dessas casas que quando se abre a porta se vê tudo. tomates. E os folhetins do Fanfuila. Raul Soares. O rádio só veio a existir em 1926. por aumento de salário. seiscentos mil-réis. jo gando lança-perfume. Eu dançava num salão n a rua Florêncio de Abreu. vi gente morren do na rua. vouz aimez. bonitão. jantar em casa e meus pais recebiam muito bem nossos amigos. A única estação era a Rádio Cultura. Os portugueses davam dinhe iro. uns duzentos metros de al tura. Meus colegas vinham almoçar. O rei da Bélgica veio na époc a do Centenário. Quando ele chegou fui ver: passou no largo de São Bento. quando acontecia um fato desses todo mu ndo corria. hannofatto una rivol uzione in Russia. Vi alg umas na fábrica Moinho Santista. palhaços. se hospedou no Hotel Terminus. Eu fui atingido. houve a grande festa de 1922. que vinham todos os dias em capítulos." Nessa época lia muito a revista de cinema A Cena Muda. cavalos bonitos. a revista Mambembe. passava baixinho. Depuseram o czar que esbanjava o dinheiro d o po v e fazia muita babilônia. quem guiava era o próprio dono. na Moóca: uns tocavam pistão. ele voava baixo. Antes púnhamos os fones no ouvido. em carroças. Uma grande festa aqui em São Paulo foi a chegada do avião que atravessou pela primei ra vez o Atlântico. a Páscoa. na rua Rangel Pestana. pierrôs. a farda c heia de medalhas. o engenheiro Zeppelin. Não era rádio como hoje. como "II fiacre". para agradece . faz tantos anos! "Nous aimons. eles corriam. O corso era no Brás. os músicos iam atrás toc ando. Nós assistíamos sempre às revistas do Oscarito. ils aiment. o Amlet o tocava flauta e bandolim e acompanhava mamãe no Sole mio. No tempo em que eu trabalhava no Hotel d'Oeste. na Moóca. cumprimentando de perto as pessoas. Os vizinhos é que tocavam. Em 1918 eu via gente andando e de repente caía. amigo de meu pai. que levava os mortos n um carro dourado. lembro Mulheres nervosas. Veio de carruagem da rua Florêncio de Abreu. Se. por aí. Os artistas do Teatro Bela Vista almoçavam sempre no Hotel d'Oeste que ficava em f rente do teatro. no teatro do Anhangabaú. vindo da Estação da Lu z. davam cheques em branco para os aviadores porem a quantia que quisessem. cheguei a comprar um. só que não falo. que estava começando mas já era um grande artista. outro tocava violino. com dança. De vez em quando a gente ouvia que ia haver greve. uma quitanda. Perto de casa. começaram a jogar os mortos um por cima do Outro. festejávamos sempre em família. com o rosto encoberto. Rio de Janeiro". Son gli partiti!". a pé. no Centenário da Independência. Lembro de uma peregrinação que fiz à Penha para pagar a promessa de uma mocinha que ti nha alcançado uma cura. se não me engano. a Rússia ficou vermelha! No Brasil também houve uma revolta comunista. Ela tinha medo de ir sozinha e me convidou para acompanhar sua peregrinação: saímos de madrugada da praça da Sé e fomos até a Penha a pé. Perdi de vista esses amigos. tinha o Rodovalho. Mas Natal . O Zeppelin passou na Moóca três ou quatro vezes. mas de fone. o drama Deus lhe pague com o P rocópio mocinho. sei que fuzilaram muita gente. O limão de um tostão passou a quinhentos réis. Meus pais procuravam. quando abria uma venda. atrás do Teatro Muni cipal.cês.bastião Arruda. do Matarazzo. não sei mas penso que ainda agora existe. Em 1930 v ieram os primeiros rádios estrangeiros. papai não permitia porque era muito ciumento dela. caminhões. que abafaram. Em 1928 com prei um gramofone: antes de começar a música o disco anunciava: "Casa Edson. estava tu do fechado. Íamos pescar lambaris no rio Tamanduateí. de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. o povo carregava eles na rua. muito bonitas. mas m uito fraco. Naquela época. Os passag eiros olhavam a gente das janelinhas. em 22. por isso entrou a revolução. A mamãe cantava em casa. era o rádio de galena que custava uns quinhentos. mas festas. e nos davam entrada para as comédi as. quando começou o Monumento do Ipiranga: quem fez o monum ento foi o escultor espanholJimenez. acinzentado. oval. com cocheiro e ajudante. porque me aconselharam a chupar limão. Nunca mais apareceu depois esse tal de Zeppelin. Eu Sei Tudo. Mas como não davam mais conta. ele era bonito. um homem barbudo. Meu pai lia sempre o Fanfuila e trazia notícias para nós: "Guarda. Era a g ripe espanhola. mas a polícia não deixava. que já tinha alguns pedaços de rua calçados. As pessoas caíam que nem moscas. No Carnaval os mascarados saíam de dominós. guarda. Só pagam aluguel. disparavam os canhões nas travessas da rua da Moóca. fugindo para Outros bairros. enrolou num pano e fechou na mala. o italiano Pintacuda. que deu muito trabalho para a polícia. mas ainda fazia caligrafia para viver. a Nossa Senhora. Sab e por quê? O governo aumentou muito os aluguéis de casa e as pessoas não têm meios mais de comprar mantimentos. o Matarazzo. consegui um emprego no largo de São Bento. os caminhões que vêm de fora: as pessoas saqueiam batata. ela ficou em pedaços. 82. Depois a polícia foi de casa por casa buscar os mantimentos. Afinal. Na minha opinião ele se revoltou porque foi acusado de um roubo que não fez. que a alta sociedade fr eqüentava. sendo muita a miséria. Os revoltosos do Isidoro Dias Lopes e do tenente Cabanas atiravam do quartel da rua Tabatingüera. subia nas (*) Como o sr. Um crime que ficou famoso foi o de um turco. Ganhei nesse dia uma ba ndeja de doces da Confeitaria Fasoli. Os aviadores tiveram ordem de jogar bombas no Brás. então começaram a saquear o Moinho Santista. Ouvi falar que ele roubava dos r icos e dava pros pobres. uma personagem de Pirandelio (L 'uomo dalfiore in bocca) . p ara comer. Belenzinho. minha aposentadoria é de 540 cruzeiros. no asilo de indigentes. arroz. dep ois com fitilho e amarravam no fitilho um pauzinho para a gente segurar. Ele morreu com 106 anos e não usava óculos. O povo do Brás fugiu para onde pôde fugir: Penha. Chegav a a atender trinta. ele nun ca foi um assassino. Depois da revolução o povo sentiu-se com fome. Lapa. Quando veio a Revolução de 24. Lemb ro que todos os vizinhos rodeavam o tenente Cabanas. pulava de uma casa para outra. queria atravessar o mar. detém-se nas vitrinas e observa longamente como os paco tes eram feitos. sem doming . O povo andava escondido. o desastre da corredora francesa que competia com um corre dor sírio. derrubam as carr oças de mantimento. E a polícia atrás dele: ele con seguia fugir mas tornavam a pegar. as ordens do tenente Cabanas. Ele saltava de vinte metros de altura.. ou iam levar seu abraço.. naquela época. Minha mãe morreu com 96 anos. Li também. Ele não tinha culpa nenhuma. Meu pai estava velho. Vivia com meus pa is.. Foi lá que fiz minha primeira comunhão. Quando saí do Hotel d'Oeste fui para a Confeitaria Fasoli. as pernas cansavam mas eu u sava sapatos leves. Traziam sacos de farinha nas costas e levavam para os seus. Até armazéns eles saquearam. escrito "Confeitaria Fasoli". tomava o bonde na Moóca e em quinze minutos chegava no largo do Tesouro de onde seguia a pé. 164 paredes como um gato. o barulho era infernal. Naquela época. que sabe que vai morrer. le vavam comida para os soldados. As pessoas queriam ver o Meneghetti na prisão. Nas igrejas davam mantimentos. aqui. não somos saquea dores" Mas quem saqueava é porque tinha fome. e a comida? Eu não posso alugar um quart o. Meu irmão Amleto. A devoção era tão grande que a igreja foi reconstruída três vezes para c onter o número de fiéis. eu sei dizer que no correr ela distraiu-se e o ca rro dela virou e incendiou. Trabalhava das sete da manhã até nove horas da noite. Fazem quase sessenta anos. e meu pai: "Aqui não tem nada.. que matou a mulher. É exatamente por isso que estou aqui. era muito difícil arranjar emprego. era engraçado. na Igreja do Cambuci os soldados do governo acamparam e disparava m. como os caixeiros os envolviam com o barbante. É como está acontecendo agora. Ficamos na rua da Moóca. se uniu aos revoltosos e partiu. Farah. quarenta pessoas ao mesmo tempo. O Fanfulia sempre noticiava essas novidades. Depois fi quei desempregado dois anos. As fábri cas pararam muito tempo e os operários não tinham mais mantimento. Ariosto. os lanches eram acompanhados com música de violino e clarineta. da rua Direita. Até lá em casa bateram e quiseram entrar. mas foi preso e condenado a trinta ou mais anos de cadeia. depois de uma discussão com papai. os soldados correndo. diziam que a italianada estava a favor da revolução. que era muito destemido. Estou lendo e analisando. não tinham nada nas suas casas. Eles recuperaram os sacos de farinha para os moinhos. Nós víamos os petardos atraves sarem as ruas. E lia também os desastres da Central do Brasil em que se perdia muita gente. o Fasoli fazia os pacotes assim: enrolavam com papel a bandeijinha de papelão. * Quando eu era moço houve um ladrão famoso. durante a noite ouvia o tiroteio. está acontecendo a mesma coisa. para trabalhar. aposentadoria.fox-trot. sobre um caçador que se perdeu na mata. Lembro quando a C asa Alemã na rua Direita pegou fogo. Ia assistir lá em cima os grandes espetáculos. Tito Sch ipa. marcha.o. que Deus o abençoe! Ele lutou contra a clas se patronal. Aquele dia choveu tanto. Só depois que veio o Getúlio. foi para a rua da Consolação. Em 1928 fui convidado para ser garçom-gerente do bar e restaurante do Teatro Munic ipal. Chegava exausto em casa. Comecei a namorar minha esposa na rua da Moóca. Marlene Dietrich. Con seguimos o dia de folga. dir eito nenhum. Não perdia um filme do Carlitos. ela tinha a mesma idade. Naquela época ninguém podia falar nada. ela morava numa casa defronte da m inha. lá pelos lado s de Santana. Foi difícil conseguir o dia de folga: era como agora. Eram as claques. shots. a Cavaleria rusticana. Diziam que era felicidade. tinha cultura e convenceu os Outros a lutar contra . na igreja do Brás. O ba rbeiro de Sevilha: "Figaro qui. talvez porque um freguês reclamava que estava esperando quando entrava muita gente de uma vez. dava umas voltas na avenida São João. no Brás. Quando trabalhava na Confeitaria Fasoli. Muitos ano s depois. mas não recebíamos ordenado.. olhei da janela de casa e... A primeira vez que conversei com ela fiquei emocionado. Mas tínhamos esse danado do Armando Scarpelli. a s moças eram muito mais tímidas.". mas todo mundo compreendeu que a chuva tinha alagado nossa rua. Os homens iam de casaca e as mulheres com vestuários lindos. À noite. pagava-se oitocentos réis a entrada. Eu praticava remo no Clube Espéria. fazer limpeza. Não vi mais essa menina. alemães. tão magrinha. A platéia quase desabava de bater palmas quando os russos dançavam O lago dos cisnes . A gente se via de longe. levaram muito tempo p ara secar as minas de água. que era vivo. mas a fundação estava difícil porque ali minava muita água. que é sempre assim: o pobre que está pisado embaixo dela t em que se assujeitar. Havia fregue ses estrangeiros. Quando o teatro não estava muito cheio deixavam entrar essas pessoas nas galerias e os que estavam bem vestidos s entavam em lugar melhor. cha mava-se Cine Congresso. a gente pra dar um beijo custava. Eu tinha 26 anos. por causa das roupas é que nunca pude trazer a mamãe para ver os espetáculos. os patrões nunca cedem. não conseguia falar de alegria. existia na praça João Mendes um cinema. Depois das nove horas tudo ficava morto.. havia voltado para a casa defronte. licença médica. A Elvira entrou de vestido branco . Nós nos casamos em 1929. Eles nos despediam. um salão grande com música. eram analfabetos e iam para a cozin ha descascar batatas. o barítono Tito Ruffo. Nas ruas do centro as pessoas se cumprimentavam: 'Bom dia! Boa tarde!''. Muita gente se apresentava to do dia para assistir as óperas. . não passava mais nin guém. Não se podi a ficar servindo todo mundo. O namoro foi bem diferente dos dias de hoje. onde servi artistas como Beniamino Gigli. mas não podia pagar. sem aviso prévio. Essas pesso as sabiam quando deviam bater palmas. somente para bater palmas. Em vez de chegar na igreja às c inco chegamos às sete horas da noite. Os portugueses vinham de Portugal já tratados para o emprego. tive até vergonha de falar. Gostava de ver Ipagliacci. a grinalda de laranjeira. figaro là. conheciam os trechos bonitos e a platéia aco mpanhava quando gritavam: "Bravo. chapéu da Borsalino. estavam querendo construir o Prédio Marti nelli. era falta de consciência nos despedirem. quando ia aos bailes do Alme ida Garrett. que alegria. a água subiu meio metro na rua da Moóca. maestro!".o despotismo. Vi também construir o prédio do Correio. estão sempre pisando. não precisava tirar as meninas que elas mesmas me tiravam. americanos. Depois de um cer t tempo ela mudou de lá. Lembro do primeiro filme n acional que assisti. gostava de Joan Crawford. Os garçons eram na maioria filhos de italiano s. ai. Um companheiro reuniu o grupo e lutou para que os garçons pu dessem ver a luz do dia. que m andavam embora.como se diz? . Dançáva mos valsa. sem dia de Natal. Usava gravata borboleta. Os garçons eram unidos. as florzinhas brancas que ela mesma fazi a. capitalista. Não tínhamos direito a férias. meu Deus. as óperas de companhias italianas que chegavam. ela estava ali. Um terno de casimira estrangeira na Preço Fixo da praça do Patriarca custava oitocen tos réis. voltou para a casa dele. ele não permitia as manifestações do Primeiro de Maio. Penso que o presidente Washington Luís não gos tava dos trabalhadores. os gaúchos entravam de bota e bombacha e gritavam: "Bota aí uma garrafa de vinho! Vocês paulistas não prestam. Nós íamos vivendo e trabalhando. Se houvesse alguma coisa punha os cavalos por cima. A Itália já tinha ganh o a Abissínia. cozinhava. Ficamos parados. mas as lojas suspenderam as encomenda s porque a moda das flores tinha caído. mas o povo italiano não quis compreender. Eu não acredito que ele se su icidou. Os alemães tinham entrado na Rússia. Foi aí que alguns fregueses me convidar am para me alistar nas tropas a favor do governo.. Em 30 requisitavam soldados de casa em casa. Lia o F anfuila e achava que a Itália e a Alemanha iam ganhar a guerra. um dos capangas que viviam em roda deu uns tiros nele. se ele resistisse.. perguntando se os moços queriam aderi r à revolução contra o Getúlio. por iss o o Getúlio ganhou estourado aqui em São Paulo. A gente trabalhava. Dei um beijinho nela e assim começamos a nossa vida. os italianos que eram contra o governo. na s corridas de cavalo toda a féria que fazíamos na semana. na rua da Quitanda perto da praça do Patriarca. Depois que acabou a festa de casamento nós fomos embor a. todo mundo ficou triste. se não fosse assim não teríamos nada disso. sem salário. a Lúcia. a aposentadoria por meio do Getúlio. sábado. E o danado não morreu. Depois votei para o Juscelino que passo u a capital para Brasília e também não aumentou muito o preço das coisas. nem tomei conhecimento das coisas porque era casado há pouco tempo. Resolvemos traba lhar só em flores. na rua França Pinto. era poderosa. Não queri a que se fizesse nada. é claro. No Brasil. Quando votei n o Jânio me enganei muito: ele deu nossa maior comenda para o irmão do Fidel Castro. vendemos as margaridas. quando chegou no início da escada segurei no colo a minha noiva e levei até nosso quarto. oiticentos réis. Não quis ir.Fomos morar perto da casa de nossos pais. cercaram e mataram ele. que repartiam o aluguel conosco. servia os fregueses. quase em frente à casa em que ela morava . e para a Casa Alemã. Minha mulher tinha doze irmãs: fui morar com uma cunhada e o mar ido. às vezes precisava ficar na fila para comprar pão . E ra aqui. na esquina da praça de São Bento. um frango. Quando soube da morte do Getúlio. Até hoje os t rabalhadores vivem falando nele. não ganhava nada: minha mulher e eu fazíamos flores para a Casa Ferrão. porque e m 24 ele mandou bombardear o Brás. Em 1932. Quando houve eleição para presidente da República. Depois votei no Getúlio. Ele foi obrigado a isso. a bana na. Ninguém votou no brigadeiro. quando ganharam a revolução. Desde aí a vida ficou muito cara e o povo anda triste. compramos um estampo para cortar margaridas. mas meu sócio jogava. Todos eram contra os alemães. a gent e ia na feira com dez mil-réis: a laranja-baía custava quatrocentos réis a dúzia. Enco ntrei um emprego de garçom no largo São Bento. fui sócio do proprietário. que seguramos no colo. A vida tinha encarecido. um tostão. O Mussolini aceitou o Hitler pelo povo italiano. Tem certos regimes que cansam o povo. vocês deviam ser fuzilados!". um amigo me aconselhou a votar no m arechal Dutra. Antes da guerra havia muita simpatia pelo Mussolini e meu pai era fã dele. estava pagando oitenta mil-réis de aluguel e vivia de gor jetas. onde está a Casa Fretin. veio o salário mínimo . Mas eu tinha esperança que a situação melhorasse. juntamos um dinheiri . com cartões de racionamento. que queríamos muito bem. Um dia jogou uma quantia g rande e perdeu. Eu tinha idéia que o Getúlio ajudava mais os pobres e foi justamente o que aconteceu. Voltei para o bar. Quando eu servia no bar. conseguiu se salvar. precisando trabalho. mas o frio matava os soldados que começaram a recuar. Era uma casa assobradada. Ele não aumentou o preço de nada. pegou num re vólve e deu-se um tiro no ouvido. Sei que os rio-grande nses pisaram muito São Paulo. ch amava-se Tangará. Francamente naquela época não vi nada. Eu tive um restaurante. havia leis do trabalho. especialmente os operários. Ele estava melhorando o país. Mas quem corta uma margarida com tesoura? Ninguém pode. A mai oria dos que trabalhavam era a favor dele. na rua Líbero Badaró. Fechamos o restaurante e nunca mais o vi. Os militares não gostaram e chutaram ele. fiquei muito triste. Hitler invadia a Itália também. A gente já estava ganhando o salário. racionaram o óleo e o açúcar. Cheguei a ganhar mais ou menos bem. mas com amizade sempre se arrumava. Ela era florista como a Elvira e tinha uma filhinha. Veja o caule. meu filho?". às vezes precisei usar máscara. Ela era o meu anjo da guarda. antes de armar passavam pelos boleadores. Sentávamos em volta de uma mesa grande. no fundo do quintal. mas tinha muito rato no porão e mudamos para a rua Rego Freitas. cortávamos as pétala s e mergulhávamos na anilina. um ficava adorando o outro. Exportamos flores para a França e os Estados Unidos. c . Minha mulher era um anjo. Bravo! Agora enrole este sozinha. Uma noite sonhei que Ele saiu do quadro. Hoje não se vê mais p adres. Festejamos as bodas de prata na casa de uma sobrinha na Vila Pompéia. são de anilina roxa. que davam dor de cabeça. que era gran de. vermute. Depois que as moças saíam. dep ois em sentido contrário. Íamos passear de mãos dadas. quando secavam. separávamos por tonali dade. os padres confessavam o povo nas ruas do cen tro da cidade: na rua da Consolação. Algumas me abraçavam para felicitar. mais claras . eu mesmo gostava de arrumar a mesa com noz es. A os domingos. Depois de violetas. a gente está sempre alegre. as meninas da oficina. morro contente. Só eu que mexia nas anilinas. Eu preferia fazer margaridas e rosas. Vivi 44 an os com ela. Era como se fosse um a família. como se fosse uma festa e a mesa ficava posta até o fim do ano. No Natal. em dégradé. Cada mocinha ganhava 150 mil-réis. As pétalas eram lisas. No meu aniversário ela preparava uma surpresa: chamava toda a família. em frente à Santa Casa. O estampo é uma f erramenta que aperta uma pilha de fazenda com uma prensa e quando a gente aciona corta de uma vez. O caule. na Moóca. Essas violetas. por 47 contos de réis. que corresponde ao salário de hoje. quando eu derretia o pó da anil ina no álcool. As pétalas iam secar num tabuleiro. nem nunca fiz. na rua Direita. Nós lutamos bastante mas cheguei a ter automóveis. A Casa Sloper nos comprava toda a produção. mas eu nunca saí fora do sério. em frente ao Colégio Sion. camélias. veja. Pagava 150 mil-réis de al uguel.. mais fortes. com a mão direita. Se é margarida branca não precisa pintar. embalando as flores em caixinhas. graças a Deus.. Dei para a Elvira u m anel chuveiro de brilhantes. vieram umas trezentas pessoas. enfeitada com flores naturais. numa casa térrea. Convidamos muitos amigos. estão tudo à paisana. passar o dia com a família. "Assim. até os últimos dias." "Então... recebi uma graça de Deus: nós tínhamos um quadro do Coração de Jesus sobre a cama que estava olhando sempre pra gente. Depois trez entos. feliz. enquanto a esquerda v ai enrolando a tira verde. primeiro no centro. não faço mal a ninguém. em São Paulo. O horário de trabalho era das oito da manhã às seis e meia da tarde. dia bonito é todo dia. víamos como era a rosa. minha mulher e eu ficávamos trabalhando até duas horas da madrugada. castanhas. quatrocentos cruzeiros." Se um di a precisar fazer flores. para festejar meu an iversário. Chegamos a reunir vinte moças para trabalh ar conosco. Na frente plantei marga ridas. cada um com sua almofadinha para bolear co m a espiriteira na frente. Não tivemos filhos: o médico examinou minha patroa e disse que ela não podia. rosas. não tínhamos filhos. Tínhamos uma menina prodígio que conseguia armar 120 rosas por hora. que são umas bolas que a gente esquenta no fogo para encurvar a pétala. você reze três padre-nossos e três ave-marias. é bom que aprenda direito. minha mulher tinha um pouco de ciúme. Quando a gente vive bem." 172 Em 1953. Preparar as tonalidades do dégradé para as pétalas era um segredo. casa de qu intal grande. mas o miolo é recheado de algodão e coberto de veludo amarelo. A rosa tem uma porção de cores. na praça da Sé. nós enrolávamos torcendo assim. Acabei comprando uma casa na rua Natal. mas esses tons di ferentes consegui segurando a ponta das pétalas com a mão para que não mergulhassem no roxo. No Congresso Eucarístico. pouco tempo. Nós dois trabalhávamos também sábado e domingo. seu padre. fazíamos de arame recoberto. Eu me confessei na rua: "Tem algum pecado. íamos almoçar. A Elvira e eu ensinávamos: pegávamos uma rosa natural. "Nenhum pecado. uma perua para entr egar as caixas de flores. Foi um casamento feliz. numa oficina que chamamos A Multicor. Tinha muito cuidado comigo e eu com ela.nho e compramos um estampo de rosas. que em 1953 era bastante dinheiro. sábado era meio dia . nas bordas. Outras armavam e faziam o caule. Morei na rua Santa Isabel. se vou morre r. Depois fui para a rua Caio Prado. onde criei pombos. . Durmo um pouco de dia. Ele mesmo faz a comida e dá p ara ela. quando eu comia um bolinho que mamãe fazia. batatas assadas. ela caiu mort a de bruços. do Brás. Se não dá o número que ela diz naquela semana. Ela é ocupada e não pode vir toda semana mas quando ela vem fico contente por um mês. não se vê mais ninguém com flores e agora. O primeiro mês foi uma maravilha. Às vezes de ixa de fazer a vontade da minha irmã porque não tem dinheiro. Eu também não queria que ela sofresse. eu disse para ela: "Meu benzinho. mas Deus não quis. Um dia o coração parou de bater de desgosto. Ela respondeu: "Eu desço ". Estou recebendo de aposentadoria 540 cruzeiros por mês e gasto uma part e em remédios para o coração. com pena. pediu emprestado mil c ruzeiros a juros para um nosso amigo. Minha irmã é vidente. Ela gosta muito de que ijo e quando vê queijo fica com vontade e pede: "Oformaggio!". caindo. sempre atormentado desde o dia que ela morreu. vou morar com meu irmão e trabalhar. meses. Achei um péssimo negócio. À tarde. acho que ela mor reu de desgosto. antes de descer. Minha mulher me queria como se quer uma criança. Nunca pensei que viesse um Getúlio Vargas proteger os trabalhadores. quis fazer uma surpresa para ela. você desce.. Qu ando em 31 de março de 1964 derrubaram o presidente Jango não gostei. logo tod o mundo saiu correndo. Ela se machucou tanto. quando queria ser engenheiro. A comida aqui parece de cachorro: misturam o macarrão que sobrou de ontem com arroz. porque a loja era no fundo d e uma galeria. nem uma violetinha. eu s ei de um asilo. "Não tenho. Só vendi a ca sa depois da morte da Elvira. de 74. Quando voltei fiz um frango as sado. porque as cois as encareceram muito. ainda posso faz er flores. seu Ariosto?". senão levo o almoço aí para você". À noite não durmo por causa do mau cheiro d o dormitório. Voltei para o hospital." Eu vim pra cá e aqui estou. gerente de banco. vou comprar coisas para o almoço. E foi caindo. Veio a falência. em frente ao Cine Majestic na rua Au gusta. Disse: "Se você pode descer. Dos meus parentes. O Telésforo também recebe uma aposentadoria que não dá. Pagava trez entos cruzeiros por mês. Um dia vou deixar este asilo. toma conta da Roberta de quase noventa anos. Até hoje. não consideravam a gente e trabalhávam os de graça. Tinha dias. carrascos. Meu irmão Telésforo. num domingo de manhã. A assistente social me pergun tou: "O senhor não tem aonde ir. não pareceu porque cobrimos o corpo de flores. Ainda sonho com a escola. nem um macinho de rosas. feijão. depois de q uatro meses os médicos me dispensaram. mas pensamos que fazendo força. O povo anda . Enchemos a loja de flores. salada." "Bom.. e Mário vivem com suas famílias. Pega a velhinha no colo porque não pode mais andar e vive numa cadeira. Hoje recordo mais os tempos de criança. depois começou a entrar pouca gente. não estava aqui. de noventa anos. Me levaram para o hospital. Tinha pago dois meses adiantados para a sen horia como reserva do quarto. que e stá chegando o inverno. Em certas épocas. nem um cravo. ficou um mês no Hospita l São José.. levamos o senhor. . Meus irmãos Amieto. à noite.. Tem épocas que as flores caem da moda: pode-se oferecer até uma flor de ouro que nin guém quer. Anos depois. E do tempo em que casei com esse anjo. dá na outra.hegou perto de mim e pós a mão na minha cabeça e na cabeça da Elvira. as pessoas deveriam usar ao menos uma camélia no ombro. A Elvira tinha 72 anos: veio um enfarte mas ela se salvou. daria. mas enquanto estive no hospital ela alugou para ou tro e eu não tinha aonde ir. Chamava-se Le Viliage. De vez em quando o Telésforo joga no bicho e ela sabe quando vai ganhar e quando não vai. as mulheres não querem usar flor nenhuma no vestido. Esse sonho foi o momento maior da minha vida. dona Jurema. quem me visita é a sobrinha que morou conosco quando pequena. logo. Só anda alegre os que vão assistir futebol. Minha mulher tentou salvar a situação. não lembro esse ge sto sem chorar. não era para menos. Aí eu fiquei louco. Deu en trada para alugar uma loja quase na cidade. escondido de mim. fico triste quando recordo: se eu fosse receber o que já trabalhei. Voltou para casa e um mês depois. Vendi barato meu es toque de flores. que não vendia nad a. E ele não pode compra r. Comecei a despedir as moças. fui morar num quarto na avenida Lins de Vasconcelos. que não está mais aqui. E qual foi a surpresa? A surpresa do almoço é que. Você vai descansar porque não p ode ficar sempre levantando e descendo a escada". tem que comprar remédios. a Lúcia. Quando era moço os patrões eram ruins. Já não vinham mais pedidos. elas chora vam quando iam embora. bala de coco. Ormindo". é branquinho. Com dois anos eu já me lembro de Q uerubim. M amãe. "Ah.triste. Então eu passei a mamar. ele e o dr. Eu mamava. ia haver uma procissão. Eu fiquei danado da vida. o leite e viu que era extraordinariamente sã. mamava. Carlos de Campos e o dr. Mas eu não gosto de passar esse tem po. SR. convidadas do asilo. Ninguém gosta de velho. eu já falava tudo. Aí ela dizia: "Você. El a baixava. leio jornal que o barbeiro traz. Quando fazem festa no asilo tem sanduíche de pão e queijo. tirou cinco mil-réis do bolso e deu pra ele. bonito homem de uma valentia extraordinária. e agradam a gente: "Vovô. domingo. E beijam a gente. O condutor esperou que todo mundo desces se e não parou. um pretinho que vendia bala de leite branca. ABEL Eu nasci no largo da Sé onde ainda existe a Casa Baruel. dizia: "Zinho (meu nome.. enquanto o irmão de leite ficava esperando. eu gosto do senhor!". Sábado. e dizia: "Olha. Quem me criou foi meu avô. então o bim da Inácia é preto ou não é?". Nasci em 27 de setembro d e 1903. mamava. O condutor disse: "O senhor quer brigar?". pediria que não maltratem os velhos. Eu me lembro de coisas de quando eu tinha um ano! Eu me lembro que co m um ano eu comecei a aprender a rezar com minha avó: ela me punha ajoelhado numa banqueta estofada e começou a me ensinar a rezar a ave-maria em latim e depois o Pater Noster qui es in coelis. porque se você perd er esses velhos perdeu tudo. chamava-se Ormindo. Meu avô. Antôn io Rodrigues Lopes. força hercúlea. suspendeu-o com sua força hercúlea no ar. o que é que o senhor precisa? Come mais um pouquinho!". Emilio Ribas. uma can tora. eu era Abelzinho). Libra. que foi o saneador. me dava o peito. branquinho!" Minha memória é extraordinária. Se eu pudesse pedir alguma coisa.. mandou examinar o sangu e. pediria que tenham mais compaixão das pessoas. um corpo privilegiado. Custava o pa cote cinqüenta réis. bom!" Então desceu. meu avô mandou alugar uma escrava. me fez subir lá em cima e me deu um beijo besuntado. Roberto Duarte Ribas. Eu me lembro de que uma vez nós ía mos de bonde e ele deu sinal pra parar. fico conversando com os outros velhinhos e assim vai passando o tempo. Maria Inácia. e eu tinha um irmão de leite. Acho que deviam ouvir as necessidades dos velhos. descul pe!". E ele me deu um bilhete e e u o levei ao palco. Então. E só então é que ele mamava. Era de saúde muito fraca e. Com dois ano s. eu quero o bim preto.. Não maltratem os seus pais. eu achava que aquilo era pra mulher e não pra homem. Meu avô passou a mão n o homem. Ele podia descer andando. sofreu uma hemoptise. Mas é só dia de f esta. Era um santo! Ele dizia pra mim: "Meu filho! Eu não tenho pecado. no dia 27 de setembro. foi o principal criador. bolo. Meu avô. tratar com mais carinho as pes soas de idade. é quando a gente pass a bem. E chego até a me transportar para o passado mais remoto como a precognidizer o futuro. E era para uma mulher conhecidíssima na época. "É preto nada. Tem duas meninas que quando se despedem abraçam um por um: "Vovô. mas era teimoso também. estava espçrando a mim. Eu dormia na própria cama de meu avô até três anos de idade. teve um estouro no pulmão e morreu. Eu tinha três anos e tanto. que nasci sete dias depois da morte dele. filho do dr. Meu pai dava muitas lições de humanidades no Rio de Janeiro. quero o bim preto". Meu avô era uma pessoa extraordinária. Eu tenho um pecado SÓ: a carne". Eu me lembro que numa época fomos a um. não desceu e chamou às falas o condutor. coronel. Com quatro anos ele separou . Eu mamava naquele seio preto. e não houve que m me fizesse vestir aquela roupinha com asinha. E minha avó fez uma roupinha de anjinho pra mim.. No dia-a-dia deviam ter mais tolerância conosco.. Minha mãe teve eclâmpsia e ficou dois anos sem me con hecer. vindo para São Paulo. Ela pegou o bilhete. nesse tempo. fundador e acionista do Ba nco de Crédito Real do Estado de São Paulo. Eu devia ter uns doze anos somente. Este era meu avô. Vêm algumas meninas. Tanto eu me lembro de coisas recentes quanto as do pas sado.. e ele: "Desculpe. lá em cima. era um cabaré. que achava interessante aquele momento. cabelo gri salho. Ele estudou muito. Porque meu avô sabia todas as línguas. eu não dormia enquanto ele não chegava. santo Antônio. usava cachinhos como menina). Na falência do banco. já melhor. e só vim a me reencontrar na rua Duque de Caxias. cunhada da dona Sinhá Baruel. Mas a Sylvia de Campos. Lembro-me muito bem dessa casa. "Trouxe ostra recheada pra você. que eu então interpretava naquele tempo como cheio de cachos (eu era pequeno. façam com que você cresça. ele senta va e então eu ouvia o choro dele. eu só conheci um ano e pouco. E ele chorava. número 63. Na Ba rão de Campinas morava a irmã de minha mãe. Ainda sei. do Filho e do Espír ito Santo. Nós íamos a um bar. mas lutava com dificuldades. me dava um mil-réis para cada fio de cabelo branco que eu tirasse dele. por que o senhor joga tanto?". Muit o mais tarde. vovô. com saúde e inteligência.. Glorinha. o portão era gradeado. A profissão de meu avô era humanidades. muito inteligente. que estava começando a ficar grisalho. santos da tua devoção. que também sei todas as línguas. Aí ele ia me fazer dormir. Era de tijolinho vermelho. Em nome do Pai. Aos cinco anos mudamos para a rua General Jardim.eu fechava os olhos e fingia que estava dormindo. ficava cheio o copo. ficou na miséria. tudo o que eu estou fazendo é pra você. Não quero nada para mim". era gostoso e não fazia m . Nasci naquela Casa Baruel. seja feliz. esperando a fortuna toda do presidente do estado. Q uando eu ouvia o barulho do sapato dele . mas eu não dormia que não fosse no quarto dele. bem antigo. E existia uma igreja chamada São Pedro da Pedra. um sanduíche de anchovas e uma gua raná. que te amparem e te protejam. Às vezes eu esperava até meia-noite. que era minha tia também. e o anjo da guarda esteja sempre com você para que nada te aconteça. com o acervo. porque ia sempre a Santos tomar banhos de mar. santa Rosa. muito. Muitos sócios ficaram com alguma coisa. De título mesmo. o que o senhor trouxe?". Tenho fotos deixadas pelo meu bisavô Emílio Ribas. Mas não lembro a reza. mas não chegou a terminar porque ele já sabia mais do que os próprios mestres. Sem isso eu não dormia. Já sabe o que era né? O cafezinho era uma pinguinha. uma hora. existia um largo. Isso em 1925. Me ninava. Mas Carlos de Campos. mas era um homem santo. a dona da chácara Baruel. perdeu tudo. Belíssima criatura. o dr. que era a Niseica Ribas Galvão Bueno. ao mesmo tempo que era um dos seus principais acionistas. Subia-se a escada de márm ore. Agora. A casa da Duque de Caxias era pequena: éramos eu. plop . Dizia: "Durma com Deus. acabou auxiliar minha no departamento. Naquela poltrona meu avô. mas no fund o ele foi um autodidata. saúde tinha: ele comia muito bem e tomava dois dedos de caninha: botava quatro ou cinco colheres de açúcar. e ele transferiu o s aber para mim. Minha avó.. não tinha mais chave. depois me perdi no tempo e no espaço. E olhe que e le tomava todo dia. amém". são Benedito. caracte rística de meu avô. Me lembro dela me ensinando a rezar em latim. o resto era limão. com duas janel as. Ele dis se: "Meu filho. as camas. Uma vez perguntei: "Vovô. quando fui trabalhar num departamento das Caixas Econômicas. Nossa Senhora da Penha. num acolchoado. mamãe. Carlos de Campos. contente. plop. O nome dela era Maria da Glória Rib as. santa Ifigênia. Eu ia na casa de amigos italianos e comia o pão quenrinho. alta. E nunca vi meu avô nem alegre. E humanidades ele aprendeu. homem correto. porém. e a em pregada. Olhando-se com uma lente se via perfeitamente meu avô com um chapeuzinho-coco. Onde hoje é o fundo da Caixa Econômica Federal. E ele então aproveitava pras duas coisas: tirava o cabelo branco e dormia. minha a uxiliar chamava-se Sylvia de Campos.plop. E er a este homem que me fazia dormir. Era ele. bebia muito." Eu tomava aquilo com muito prazer. muito. Eu tomava uma Sissi. Antônio Rodr igues Lopes e o dr. eu tenho aqui ainda os convites para a reunião dos d iretores pra ver o que é que se faria com o acervo. filha de Sylvio de Campos. Todos os móveis eram de palhinha a ntigos. fundaram a Companhia Agrícola Paulista. Carlos de Campos tocava piano. a Virgem Maria. tomava a pinguinha dele. O Sylvio de Campos era meio boêmio. Lá estive até treze anos. E ele dizia: "Pra mim um cafezinho". depois havia um cabide e a sala de visita. Ele era contador oficial do banco. como já lhe contei. Na foto tinha um tílburi na porta e uma pessoa. Depois eu perguntava: "Vô. Ele jogava muito. a ti a Sinhá. ele só tinha o de contador. padre Claret. " E não era verdade. inclusive tios. quando se dava a mão pra ele. depoi s outro quarto. Ele pediu a mão da mamãe para o vovô. ele não aceitava. Amâncio. Então vovô. Vovô sim. a 1300 metros. lá embaixo. hein.. Ela f oi namorada e noiva do Martinelli. daquelas framboesas brancas com qu e faziam um licor muito gostoso. Amâncio fumavam o Ponta de Ouro. nós tomamos um trem até Pindamonhangaba. O Lotário emprestava o Feitiço só pra mim. o Caldas era um doente muito instruído e tão precavido que. contava. casa fininha com sete metros de frente. E a Débora era a mulher dele. de medo de passar a tuberculose pra gente. onde meu avô mandava a criançada pegar cai apiá pra pôr na pinga. meu tio Sinhozinho. a Débora foi-se juntar ao Caldas. Lá estavam a mamãe e o dr. Era muito moça e eu não deixei ela casar. mas 150 de fundo. salvos do quê?". quando e le descia do cavalo.. Os negros queriam cant ar e a sinhazinha não deixava. vovô disse: "Eu sou protegido de Nossa Senhora da Penha.. que tinha o complexo de Electra. Eu ficava embaixo pra espiar e mamãe e o dr. imagine. Nem meu avô nem minha mãe casaram de novo. pom . Embora ele passasse pela rua com aquele lindíssimo cavalo branco . que dava para um ribeirão. mandou um telegrama. Onde eu estiver não aco ntece nada. e o vovô consentiu. O Bazin era lá em cima. pom. E mamãe começou a namorar o dr. Mas eu estrague i também. nunca tive me . Meu avô não queria que eu comesse pão italiano: "Aquela porcaria. Foram as primeiras vezes.e me jogasse uma prata de dois mil-réis. é hora do urutau au au. Um desastre enorme. caiu tudo d o trem. "Mas. o trem caiu. mamãe não!". Mas houe um desastre de trem. mais ninguém". amas sou todas as empadas. Minha mãe não me contava histórias antes de dormir. logo que chegou a Pindamonhangaba. Campos era diferente: existia só a Abernéssia.. eu: "Mamãe não. Então ela levou um susto. ninguém mais mont ava. torrei morire efarti un 'altra volta. o Ezio Martinelli que fez o prédio. Depois calçou-se a rua e mudou de n ome. ia primeiro lavar bem a mão com sabão e depois dava a mão. Lá tinha um cavalinho chamado Feitiço. Batuque na cozinha queimei meu pé. minha tia Zinha. "Eu e Zinho saltos". é hora da mula-sem-cabeça botando fogo pelos olhos. angel divino. sabe onde é? Era a avenida An gélica. Depois ele largou da Débora. agora é hora da meia-noite. Amâncio. Eu tinha seis anos e era ciumento como o diabo. embaixo. eu já tinha desmanchado o outro. e bem lá em cima. E eu tinha um pacote de empadas na mão. Ele cantava pra mamãe. mamãe ficou louc a da vida. Mas eu. me mudei para a rua Itatiaia. Depois dizia: "Pois é. não deixava ele nem chegar perto. e eu a prendi a fumar. Fiquei nessa casa até o s doze anos. e o dono do Feitiço era o Lotário. Ela não sabia nada do desastre ainda. Até hoje eu rezo por ele. Caiapiá é uma raiz ardida que se põe na pinga. meu filho !". perto do Baú. Segurei até o fim! Nessa época eu tinha oito anos. Tudo isso ele contava pra mim e eu não tinha medo. no morro. De Pinda a gente subia. nós todos saímos de lá e fomos atender os outros. E não conseguiu. Ele era do tempo da escravatura. "Isso não pode doutor. só o maquinista queb rou a perna. minha mãe! Ela é noiva do dono do Martineili. é hora do sac i fazer trancinha e embaraçar cabelo de cavalo. o trem rolou pela ribanceira. três quartos. me lembro do mato. ele sumiu de vergonha. mas ela foi pra lá também. Lembro que ele fa lava muito dos escravos. até que nós v oltássemos.". naquele tempo não havia rádio.. Mamãe tinha o cabelo negro. uma sala de jantar grande onde se reunia toda a família. Ele cantava: Vorrei baciare i tuoi capelli neri le labbra tue e gli occhi tuoi severi. mas um desastre grave. Em Campos do Jordão nós fomos nos hospedar no Baz in. tal o escrúpulo desse homem. Angélica. Gosto muito de lembrar minha primeira ida a Campos do Jordão. A primeira vez que fui lá com meu avô. que até agora sei de cor. Com doze. a Pensão Inglesa. depois a cozinha. E lá foram as primeras fumadas que eu dei. A nossa casa era o 138. a Vila Jaguaribe. do cheiro. Tinha o palacete de d. vorrei morire per te. E ntão. Com o solavanco eu caí sentado.. Então eles cantavam: Batuque na cozinha Sinhá não quê. Então ele começou a nsinar à mamãe o italiano e eu aprendi todas as rimas de Stecchetti.pom. lá no fundão. A casa não tinha jardim: tinha sala. Minha mãe era chamada a "Viúva Alegre". negro. Mais nada.al nenhum. Lembro-me perfeit amente de tudo. O vendeiro me disse: "Olhe. qu e era pra durar uma semana inteirinha." E era uma delícia! Eu comia todo dia e engorde i. estou cansado. iiiiinnnho. E o Antoninho e a Délia não acreditavam que se pudesse conversar a distância.". esper ando.do. que dormia o dia inteiro e dava plantão à noite.. quando foi me busca r. Meu avô.. Comprei todo o e stoque de leite condensado da vendinha. Eu me 1cm- bro. você não pega nisto aqui. l evou um tempo danado. Quando o senhor for c om seu avô pra São Paulo. o senhor não vê? Aquilo é figo. Um dia ele jogou na loteria. que ele vai morrer do coração. Eram italianos vindo s de uma região perto da Suíça.. quis saber o que eu comia. era de manhãzinha. eu não sabia o que era. Ela chamava-se Délia e ele Antoninho. Dep ois pagava. Pantojo. "Aquilo. na casa da rua Mi nas Gerais. mesmo sem dinheiro. Quando me viu. quando foi. Eles eram tão xucros que nunca tinham ouvido falar de elevador! "O quê? Um qua rtinho fechado onde a gente entra. e que sobe sozinho? Não acredito. "Olha. olha o agasalho. Estou m al. e aí? Estou firme aqui. jogava. parado. três dias pra ferver. morava Raul Pederneiras.. Lembro que eu engordei muito em Pantojo. Na casa vivia um casal. e quando os convidou a entrar num ele vador. Eu me envolvia na capa de borracha e ia a panhando chuva catando vagalumes. Mas eu via que a d. trabalhando. Mas o tempo não passa.. bem cedo.. me traz uma tintura?"." Mas ele desobedeceu. e eu tinha ido buscar o pão e o leite. nem deixa molhar.. em São Paulo. Depois ele me levou pra Pantojo. é um veneno. E perguntei: "O que é isso?". O pão. tan-tantan-tan tan. o coronel está aí?". foi o maior escândalo. levou dois dias para raspar. escrevia em jornais. quando ele apareceu de manhã.. jogava. Meu avô me deixou lá e. "Feijão com serralha.. Délia fazia uma sopa gostosa. nós é que estamos passando pelo tempo.. E ele: "Seu Zinho. Po rque ele passava o lápis no bigode e olhava no espelho. o tempo é estático.. comprou um lápis d e nitrato de prata e trouxe pra ele. Eu pegava um saco e ia para Mairinque comprar pão. A gente subiu e desceu e eles ficaram embaixo. nós n s desgastamos no tempo. que e ra de manipulador: tan-tantan-tan tan. Uma vez fui à vendinha. Lá meu avô jogava muito. qu e é a avenida Angélica. Ela dizia. iiiiiisssso?". com seu papo de c hio. Ao lado. Já são quase sete horas da manhã e eu vou dorm ir". o Mendonça." Enchi o s aco de figo e fui pra casa. o bigode e a cara. depois dei uma gilete pra cada um e raspei a pele. eu gostava. não pode fazer aquilo. Foi um grande escrito r. o tempo é." E uma vez meu avô levou a gente pra São Paulo. não gostava disso. Ele mandou com prar um colchão pra mim e começou a chuva. E disse aos caipiras : "Mas vocês não comem aquilo?". Lavei todas as latas e comi todo o leite condensado que já estava cozido pelo tempo. foi logo dizendo: "Zinho. eu estava muito mimado por minha mãe. até nós sairmos d e lá." "Pois olha aqui. Pois eu não comia feijão. pelo telég rafo. Um dia eu saí passear a cavalo e deparei com um mato de figo. O banqueiro era um tal de La Scalea. deu uma l ata de figo em calda delicioso. as latas já estavam com bolor.. quando vejo o La Scalea na porta de casa. amareladas pelo tempo. minha mãe diz ia: "Não pode fazer isso. a única de Pantojo. E ele conversava co m os outros lugares: "Tudo bem aí? Aqui está chovendo. eu vou fazer isso pra você. me dá um saco. Depois fui morar na rua Itatiaia. Não pode ser.. Eu vivia lá. ficou inteirinho preto. No dia seguinte. telegrafista. era uma vez por semana. era o Grande Prêmio Anual Santa Catarina. eu tenho um bigode vermelho muito feio.. como não via nada. Não quiseram entrar de jeito nenhum. jogava. não conservei a amizade deles. um papo enorme: "Seu Zinho. gente de cabelo vermelho. o resultado foi que. em frente da casa tinha a estação e o Manuel. Aprendi o telégrafo. foi uma gargalhada geral. e lá tinha uma prateleira enorme de lei te condensado. molhava o lápis no copo e ia molhando sempre na língua. não gostava d aquilo. deu pra compreender? Em frente à minha casa. ''Está.'' "Então. não vai avisar. o senhor come isso. Mas depois se afastaram. mais adiante os Pathiot. foi n uma árvore dessas que Judas se enforcou. você me dá duzentos réis e eu lhe vendo tudo isso aí". Ele estava com o rosto todo preto." . O tempo passou e o leite cozeu. e depois foi o melhor tempo da minha vida. já tá na hora de dormir. Olha a pipoca. que era o neto do Jacki e Lonson. No meu tempo tinha muitos pregões pela rua: Batata assada alfurn Batata assada ai furn O italiano tinha um baú de ferro de onde tirava umas batatas enormes que vendia a duzentos réis cada uma. acertou no queixo do Passarinho. sorvete. survetón.. ele vivia co m um pirezinho. Mas eu então er a o manager deles. Lutavam sempre o Ítalo Ugo e o Passarinho de Santa Helena. E foi lá. o Ítalo Ugo era o nosso campeão. pois se uma casa valia doze contos!. Ele punha a mão em concha na orelha e ca ntava em macarrônico O celeste Aida e ia cantando pelo bairro de Higienópolis. Os primeiros que vieram ensinar boxe em São Paulo. e o Passarinho caiu." "Então.. quem não tem o dez tostão não toma sorvete não. Ele dava um assobio de um fôlego só no quarteirão. na minha casa. Enquanto ele dava vin te socos. dois pra . afinal. E quantos tipos eu lembro! E tinha a "vovó do pito". porque nós guardávamos as cadeiras sem cobrar. um bolo. mas vamos dormir primeiro. par ado. essa era terrível. Tá torradinho. E perdi muito dinheiro com o Manecão Lacerda Franco. uma baianona. Nesse dia. Uma nota Só: fiiiiií / até chegar a outro quarteirão. Eu passei a treinar com o Jacques Tigre. Meu avô cobri a tudo aquilo de colchão. Depois tinha: Pipoca. Tinh a o assobiador. e eu não quis mais saber. tem um homem na porta. a aleijadinha. ia já! Depois nós tínhamos o bobo. que era um empresário de boxe. Era conhecidíssima como a "vovó do pito". só pitava. ninguém sabia o que era. eram de dez onças. o Peter L onson estava ganhando por pontos até o último assalto.. mas numa daquelas em que o Ítal o Ugo foi para as cordas e voltou com a força que vinha das cordas e com o impacto do soco que ia dar. depois a gente pensa nisso. Foram eles que ensinaram no São Paulo Boxing Club. Não. O punching-ball. Mas não era galinheiro: servia para guardar as cadeiras do cinema familiar.. vamos dormir: seu avô ganhou cem contos. Aí ele mudava de tom: piiiiií \ . iaiá. treinava as suas lutas. E ti- nha a mulata do bonde. teve um derrame. O ru gby nós não sabíamos o que era. em todas as reuniões pugilísticas. eles trouxeram. fechado. naturalmente. pitava. Ela ven dia jornais e descia do bonde de costas. chamado de Passarinho de Santa Helena. saia-balão e não f azia nada. Naquela época estavam completando cinqüenta an os da imigração italiana e sessenta da japonesa. campeão brasileiro e su l-americano durante muitos anos.. a cavalo. Lá no porão de minha casa. subia e descia do bonde andando. o nosso magrinho."Mas por quê?" "Ele tirou os cem contos. que era o salão de boxe. não tinha quintal. survetinho de limón. tinha um soco que era um coice de mula.. mas não acert ava o Peter Lonson." "Que é que ele está fazendo aí?" 'É que aconteceu uma coisa. o Peter Lonson ia dando uma porção de soquinhos dele. de dez por dez talvez. era o Peter Lonson. foram Adriano Bellore i e Rui Bertagnoli. Em São Paulo havia muitos italianos.. que andava numa cadeirinha de palha vendendo bilhetes. Então eu assistia cinema de graça. Eu cheguei com todo o cuidado e disse: "Vovô. ficou abobado e.. com portões vermelhos no fundo. pedindo esmola. E os condutores então? "Tin-tin. eles puseram em jogo o título. e não acertava nenhum. Pipoca. demais. Depois vinha o sorvete: Survetinho. depois. ou não é? Ah! Esqueci uma coisa interessante! Essa casa. Era duas um tostão. Mas tinha um galinheiro enorme. e não resolviam. lá em casa. pitava. Lá que o Jacques Tigre. a despeito de ser muito grande. e a final ele arrebentou um vaso do meu nariz." Era o maior prêmio que existia. E aquilo comia a família inteira.. As lu vas. Até que. Depois. O bobo era célebre. Depoi s vinha um salão enorme.. que andava com um turbante na cabeça. sabe?" "Não é a voz do La Scalea?" "E." É extraordinário. que se começou a lutar boxe em São Pa ulo. Amendoim torrado. Chamava-se São Paulo Boxing Club. Maria Messiaçu. 4. meu pai. Pinto Guimarães. quatro contos e quinhentos. que é meu bisavô. ele foi até lá e deu uns três ou quatro socos na cara dele e deixou-o estendid o no chão. e há ainda. sem uma compensação. me empresta a chave". Usava roupa d e última moda. Na ponta de cá." "Preso? Eu sou o coronel Ribas. com uma flecha. Lá existia a Cervejaria Bavária. Ele usava cartola e claque." "Coronel Ribas. Disse eu: achei. da Guard a Nacional. e eu troquei com o dr. quando ele morreu. E terminava no Paraíso. o senhor. com um castão de prata com a cara de um cachorro. Meus primos irmãos e meus tios de ram ao Hervê Cordovil. isso há 450 anos. tinha um colete muito bonito e uma corrente de ouro e platina e um relógio Patek de 22 linhas que. todos sabem. Saiu aquele monstrengo feito pelo Zadic. de um alemão. O guarda gritou: "Que foi? O senhor matou o ho mem?". Mas a Albion não deixava sair o dinheiro de lá. ficou pra mim. E de fato era verdade. Caramuru. não matei. hoje desembargador. Quando viu uma carroça e o sujeito com chicote batendo no focinho do animal. ele mandou aval iar e naquela época valia. "Ma s que retrato. a rua Caetano Pinto. Claque a senhora nunca ouviu falar. Ele tinha também uma bengala de ébano muito bonita. E depois f ez as garrafas. Um dia. pai!" Eu dei. Ainda está tudo pendente: eram cinqüenta milhões de libras esterlinas. "Não. e os burros fazendo aquela força da nada! Isso quando vovô não estava. escondida. pôs o chapéu grande. mas como houve 2 mil pretendentes. por um Chevrolet canadense. foi meu primeiro automóvel. que é Pinto da Cunha também. lisa. Então apareceu um Pinto Flo res da Cunha que se disse herdeiro direto do barão de Cocais. estavam Ceci e Peri. eu até g anhei uma caneta de ouro numa festa daquelas. mais ninguém. ele foi direitinho na parede. tinha o que chamávamos de monstrengo: Olavo Bilac sa indo de dentro de uma pedra. No Brás ha via. Eu sou herdeiro do barão de Coca is. a Vidraria Santa Marina: quantos meninos ficaram tuberculosos so prando a areia para virar vidro! Na Rangel Pestana. Ali começava a avenida Paulista. o Matarazzo que dava bailes. pra cá. meu filho (esse meu filho que morreu há dois m eses) me disse: "Pai. Light e um pra mim. Por sinal que aconteceram coisas h orrorosas lá. destrancou o cofre e me trouxe a bengala com a cara do cachorro. que mais tarde fez o Monumento do Ipiranga. Na Paulista moravam o Marcelino de Carvalho. que antigamente se chamava rua do Colégio. abriu. mais forte. coisa horrorosa! E quem pôs o lançamento da primeira pe dra foi um malandro. que mora naquela casa?! Mas o senhor é da Guarda Naciona l!" Quando ele morreu. de feltro cinza.500 cruzeir os. "pá" com o chicote. escrevi o m eu nome numa pedra e fecharam.. o relógio com a corrente de ouro e platina. só dei uma lição nele.) "Me dá a ch ave. Ele era um dos fundadores da Sociedade Protetora dos Animais. O Matarazzo começou vendendo banha. não é? Claque era uma cartola grande que quando batia ficava pequenininha. Depois latas de banha. Como era diferente a avenida Paulista daquele tempo! Ela tinha dois quilômetros de ponta a ponta. quero ver o retrato do cachorro. Ficaram com 25 milhões de libras e as outras 25 doaram ao Brasi . andava sempre chique. o banco parou de distribuir. porque naquela casa a parede era lisa. "pá" com o chicote. revirado na ponta." E o bonde a burro subindo até a praça Doutor Antônio Prado chapinhando no lameiro? E o boleeiro. E veio vindo pra cá. p ra cá e encontrei meu avô. O bigodínho era branco. este malandro que está aqui. Olha o Pinto aí. pelo amor de Deus?" (Eu sabia que ele não sabia de nada. No meio da av enida. Eu então mandei fazer minha árvore genealógica e descobri que sou descendente de uma índia. Soube que um cíaauffeur engraçou-se de uma mulher da família e houve morte . procuração para ir à Inglaterra e reivin dicar a herança. que era João Antônio Coe lho Pinto da Cunha. branca. depois uma Diana. e minha própria mulher não s oube. Essa bengala ficou guardada. Depois pensei: meu avô foi casado com Maria da G lória Pinto Ribas. Aí meu avô pegou um apito (naquele tempo precisava de licença para portar api to) e prrrriiii. meto a cara em tudo. que deixou uma fortuna proveniente da venda de minas aos ingl eses. em frente ao Trianon. existia o marco da m eia légua." "Mas então o senhor está preso. mas tinha um risquinho que eu sabia e meu avô. Daí se ia para a Penha. chamou o guarda.. Ele era muito elegante. pré. o pequenino Portugal. lotearam tudo aquilo. e ia bem sentadinho lá junto com as frutas e as verduras.. Higienópolis. A rua Itatiaia. Foi a única coisa que vovô recebeu da falência do banco. A fazenda. 5. Brás. São João. pré. se molhando e fazendo tudo pra eu não me molhar. Não. Barra Funda. Ipiranga. o Abelzinho. gostava da chuva. Tenho a cartinha guardada aí até hoje.. apenas a Fazenda do Chá. Aquilo era a Fazenda do Chá de meu avô. Um dia mandaram uma cartinha pra mim para eu ir até lá: quando cheguei. Foi a maior festa de foguetório que houve. Eu e ra casado de pouco e tinha um filho de três anos. Ouvia faiar da crise. branca. passo u do acervo do banco para a Companhia Agrícola Paulista. 10. pra morrer.. Avenida. 11.. enquanto Portuga i.ple pie pie pie ple.. encontrei meu avô já morto. Havia um bo mbardeio de um navio para o outro.. porque ela tinha o cabelo preto. e d izia: "Deixa eu me molhar". 8.doca tinha uma inveja danada de minha mãe. e a mulher dele. é assim mesmo". e que o vovô c hamava de anjinho louro. E era de morteiro. meu rosto. branca. Na Segunda Guerra. Meu avô nasceu em 1849. Lembro que fui com minha mãe. Mas tudo quanto tinha Pinto apareceu para re ivindicar a herança e o juiz sustou a distribuição.l. ficava contente. Esses 25 vieram pra cá. Eram os "caradura". o pára-quedinhas que ia e voltava uma porção de vezes. Mas os alemães puseram a pique dois de nossos navios e o Getúlio precisou entrar. contente. Uma tia dos Bosisio. Moóca. e a chuva de prata. Carro aberto. nossos amigos. e uma caiu na cabeça de um velho de cartola e varou a cabeça e matou o coitado. Tinha a capelinha. um italiano . Eu não... o final: o morteiro ben. Ele. Não recebi nada até hoje. Um acertava no outro: bam! bam! Depois. era uma rua lamacenta. era o Posto Zootécnico. E muito desastre houve. Marcolino Barreto deram ao vovô. nos l evou de carro à Festa do Centenário. e levou meu avô para a rua Cmcinato Braga.. mas nos últimos anos aconteceu uma coisa triste. na verdade. que era polaca. preto. de minha mãe.. é o Jardim Leonor. Depois. que. linda a capelinha! E depois uma porção de bombinhas de todas as cores pré. coi tada.fiuuunnn e caía lá embaixo. O raio era deste tamanho. Penha. branca. E quando acabava. em 1922. Da Primeira Guerra pouco me lembro. 40 mil homens. não tinha.. as grandes jazidas de Ouro Preto. depois avenida Angélica. 14.. Ela pôs óculos e echarpe. Então. tinha só onze anos. filho do meu casamento legítimo.. à Fe sta do Centenário. para ele não ficar na miséria .dato a meu avô. Sabe o Power. 12. e minha mãe. tinha o cabelo vermelho. ben. a cedeu em como. que ficou com um metro e noventa de altura. Ah. Mas só conseguiu arrebanhar. o mercadinho da rua do Carmo. de carro de boi. cris e de dinheiro. o segundo não foi legítimo... Nós tínhamos. Mas quem não queria gastar os duzentos réis da passagem. não tinha.. Eu fui uma vez lá. 7. o que ele fez? Tio Vidoca se aproveitou porque meu avô se queix ou para ele dizendo que eu não estava fazendo muito o que ele queria. aí o rojão que subia . a cujos dividendos nós tínhamos direito. H oje. lá embaixo. Mas cinco anos depois ficou preta de novo. diz ia minha mãe). 4. Barra Funda. 13. com quase oitenta anos tinha a ca beça branca. não devi a entrar. Sempre morei com meu avô. pagava só um tostão no "caradura". Depois. 9. que aquelas varas caíram na cabeça do pessoal. preto ("Você pinta o cabelo de preto?" "Não. branca. que tinha feito aquilo. morreu com 85 anos. Lembro também o primeiro automóvel. o final: centenas e cente nas e centenas de varas partindo ao mesmo tempo para todas as direções . O C arlos de Campos e o dr. 2. que deu nome aos bondes? Bond era a ação da Companhia Light and A Fazenda do Chá era nossa. As va ras de rojão tinham bombas reais deste tamanho! Depois que acabava. 6. dos primeiros. com o trilho do bonde no meio.. mandou 200 mil! A Alemanha tinha um exército de 12 milhões . além disso. de m adeira. o coronel Roberto Duarte Pinto Ribas. não! 14 era o Vila Buarque! Conhece a história do "caradura"? Era o bonde que ficava atrás e que servia para levar as verduras no mercado. Ia de Pinheiros até Santo Amaro. pré. passando pelo Morumbi. o que se comentava é que o Brasil não tinha nada com isso. só se ouvia o ro nco: hooooooonnnn.. A cor. e me lembro de um ninho de morcego s que saía do cofre de ferro enorme que tinha no porão. Higienópolis. 3. de carro aberto. no final. vermelha. Era no tempo do Kaiser alemão. Moóca via Bresser.. Havia o bonde 1. Meu tio Vi.. uma coisa horrorosa. por sua vez. Chovia pra burro. em todo o país. que era um cantor de operetas. Mas subiu de maca. irmão do Pedro Siqueira Campos. descobriu-se que não era tuberculoso. E ntão minha mãe disse: "Você não inventa moda mais. elas bebiam mesmo. e nunca pegou. no quarto de uma moça. uma dentadura perfeita. Um dia. veio para mo rrer. o Instituto São Geraldo." Na volta começou o tiroteio.de homens! A nossa FEB era comandada pelo coronel Mascarenhas de Moraes. tivemos no Brasii uma rebelião. Mamãe me mandou para São José dos Campos. mas eu gostaria de que alguém me desse um beijo". ele estav a lá era fugido. muito espertos. O s parentes proibiam que se desse dinheiro para as moças tuberculosas. de água). grande. que era um dos hóspedes. Até a empregada caiu de gripe. era quase noivo naquele tem po. porque elas compravam bebida com esse dinheiro. você a bre e pode ir embora. Quando eu tinha Oito anos. e minha mãe mandava bolinhos e café para os revolucionários. guardava debaixo da cama a quele garrafão e bebia o álcool! De tão desesperadas. A comida que eu comia lá era a mesma dos tuberculosos do sanatório. Havia uma trincheira perto de minha casa. suba. Mas lá eu encontrei um preto alto. mas namorava e queria trabalhar na Light. casado com minha prima. que ninguém entendeu. Me puseram uma faixa amarela que eu conservo até hoje. que tinha trabalhado pro meu avô lá na cas a da General Jardim. De Campos dojordão eu tenho uma lembrança nítida. Os alemães comiam só o Ersatz. debaixo da cama . dava cada beijo nela e não peguei nada. para o Corpo de Bombeiros . aprendi a fazer de tudo. não sai mais de casa!". O Alfredo Luís vê passar um caminhão cheio de soldados do Isidoro.* Foi o último a ficar no Forte. O que fez a Alemanha perde r a guerra foi o frio da Rússia. Fui pra Light e vi as fileiras dos soldados e tive que pular as trincheiras. o Siqueira Campos. até cozinhar. "Posso passar? Vou trabalhar. Foi então que chegou a Campos u m jovem alto. ninguém gosta de mim. Abelzinho. Era filho do armador Mateus Ferreira. "Guarda Munici pal. Eu estava ainda sem emprego . do Jaú. O Cabral Velho. Alfredo Luís Kamin ski." Eu fui. a despeit o do Ersatz. forte. fui passa r uns tempos lá com minha prima." E nos levaram presos. tinha dado um desfalque no Banco Noroeste. "Oi. com o pretexto de tomar banho de álcool (os tube rculosos naquele tempo não tomavam banho comum. que era chefe da polícia. Eu tinha quinze an os nesse tempo. a Nadir Galvão Bueno. achei uma garrafa de álcool. que era o substituto da comida. tinha 21 anos. E acabavam mo rrendo. do Rio de Janeiro. Subiu para morrer . me deu um lug ar de guarda municipal. porque me disseram qu e lá pagavam dois meses adiantados de ordenado. uma bolacha de soja. a mim e ao Kaminski. Fiquei sozinho num hospital de tuberculosos. A tuberculose não pega. Os Dezoito queriam a revolução. Fazia a ronda de um quarteirão. devagarzinho. Ela." "Pode. que foi meu chefe no Instituto Brasileiro do Café. E e u fazia a ronda de noite e aproveitava para namorar. Eu não apanhei a gripe de 18. Os Estados Unidos. cabelos bastos negros. uma beleza sem defeito. Em 24 foi a revolução do Isidoro." "Você abre esta porta aqui e na segunda porta à direita. que eles não agüentavam. na rua Minas Gerais. o que é que há com você?" "Nada. tanto que comecei a namorar com uma tuberculosa. Diziam que eram comunistas por causa do Sique ira Campos. O Isidoro veio de Santa Catari na pra atacar. que era do Jaime Ferreira. O Huygnens.. companheiro de João Ribeiro d e Barros." E lhe dei um beijo de desentupir pia. Ela tinha sido casada com Fosco Candini. Depois da Grande Guerra. eu sou tuberculosa. "Então. Os Dezoito do Forte de Co pacabana tiveram um grande homem. O último que se rendeu foi o Negrão de Lima. Mas não v amos arrotar grandeza: só 40 mil homens em todo o Brasil. ficaram olhand o do aito e vendendo armas como a bomba V-2. em companhia de um meu amigo. abri a porta e peguei um carreirão até a rua Minas Gerais. E uma moça que sabia que ia morrer. me disse: "Seu Abeizinho. Mas o que acabou com os alemães. disseram que Guarda Municipal andou matando revolucionário e me prenderam e me trouxeram aqui. venha cá. E lembro agora uma história de família. lá no fundo do corredor.. foi o frio da Rússia. Eu fugi da gripe . e com isso conseguiam andar o dia todo. o homem mais bonito que eu conheci. . a primeira pensão de tuberculosos.. eu regi a música i . gelo e emetina Bruneau. No entanto é uma rima vã deixando afera acuada em seu dil. Mas eu não aprendi. Eles faziam hé. O sol pode fazer aumentar a infecção e aí a parece a "vermelhinha". o que h ouve?" Era aquela sangueira no chão.. o sr. Quanta moça bonita! "Moça. Pois olhe. desceram ele e a mulher pra São José dos Campos e montaram lá o Instituto São Geraldo. Só esperar aquele estrebucho e d eixar passar.. Por isso deixou de existir lá a peste branca. Meu primo pedia: "Você não quer atender pra mim". Eu não tive dúvida s. ficou d ois ou três meses em Campos dojordão. Deu um tiro no ouvido. pá. isso por causa da situação de São José dos Campos. hé. hé. No fim de uma semana.. quando um doente passava mal acendia uma luzinha vermelha. E a vermelhinha era a febre acompa nhada de sangue quando eles cuspiam. azuizinha. pê. médico da família. não por causa da chuva. Mamãe. Não é a altura.. São Geraldo é o pr otetor dos tuberculosos. Eu tocava piano. pá. Mas ainda chego lá. a gente mandava ele correr pra casa porque era certo que v inha o ataque epiléptico. Tocava e lá ia eu atender a moça. no quatrocentão'. O prelúdio.. cuspiam lá dentro e depois guardavam no bolso. eram o tamanho das cavernas que eles tinham no pulmão. fazer repouso e tomar cuidado com o sol. Os tuberculosos tinham características interessantes. Era uma hemoptise violenta. Celestino Bourrou l. que nos foi dado pelo dr... o que era uma judiação. Cheguei perto do primeiro violino e perguntei: "Qual é a peça?". O tuberculoso pode fazer tudo.. Então eu sapecava a emetina Bruneau. Muitas se salvaram. morreram.. Vitorinha Pimenta queria me ensinar a clave de so l e a clave de fá. Mas depois descobriu-se que não er a necessário usar as escarradeiras fora do sanatório. No sanatório.* Uma vez o maestro Belardi ia dar um concerto. pá. Era muito amigo do Paulo de Carvalho e vivia na casa da Guiomar Novaes de Carvalho. mas aos seis anos teve um ataque epiléptico." O tostão.. tudo de cabeça. E ela acabou casando com ele.. quem tratava dele já não era a enfermeira. porque ao ar livre os raios ultravioleta em quinze minutos eliminam o bacilo. tocava tr anqüilamente como se fosse uma vitrola. a vermelhinha eu já estou com ela. se encontravam no caminho da casa do João de Castro. Com sete anos. Quando ele começava a gaguejar. era andar sempre de guarda-chuva. não agüentava mai s viver. a maior pianista do mundo. Eles moravam na rua Maria Antônia.ã. D. Mas eu não queria saber nada por música." "Então vamos tocar. um negócio horroroso. E a vermelhinha?' Bom. menos vir para São Paulo. sem nada. chamava-se Pesares. mas para não tomar sol. Tiveram um filho que até os cinco anos era uma beleza de menino. Esse meu parente era tube rculoso dos dois pulmões. A tuberculose é curável: é só comer bastante. Eu não. pê. que deu concerto até 89 anos de id ade. Jaime Ferreira não morreu. mas anunciou que ia chegar meia ho ra depois. torto e morreu. só dentro. tocava de ouvido. E não há remédio para este mal. n o dia seguinte. naquele tempo. Outras.. o duzentão. fez uma toracoplastia. E o povo esperando essa meia hora. mas tem raios ultravioleta. 192 Quando as fadas do ostracismo embrulhadas num lençol cantavam em si bemol as trovas do paroxismo. Na min ha casa tinha um piano muito antigo. era essa minha pr ima..." E sem partitura. . gelo na boca e ficava esperando. tinha só um tostão e já estou agora com duzentão. Todo mundo achou que era loucura casar com um homem que estava para morrer. tou as costas e pôs duas bolinhas de pingue-pongue no lugar das cavernas.. Era um piano Nardelli. é a situação da cidade Paulo tem 670 e São José 674 metros de altura. pouco mais que a de São Paulo. Deixava toda a aparelhagem ali: algodão. ao contrário. depois ele se sentia feliz e descansado. Eles brincavam uns com os outros: "Eu estou ficando rico . surgiu do fundo do abismo o fantasma de alabastro que arvorou no grande mastro quatro panos de toicinho. cor- (*)Jaú foi o primeiro avião com um piloto brasileiro a cruzar o Atlântico. "Cavalleria rust icana. eu fiz a minha primeira composição. Mais tar de veio para São Paulo magro. Uma delas era usar uma escar radeira pequenina de bolso. A característica do tuberculoso. " De fato. Becker . posso entrá?". não me peça. tinha dezoito anos e eu 22. enOo em voga nos salões 195 "Pode. têm medo que eu seja tube rculoso. se o senhor me der licença. Agora. Passava um pobre. eu olhava. com um saco nas costas: "A bença. tanta coisa na biblioteca do Paulo Setúbal! Num dos Ele ficava na porta.'' E ficamos amigos. Aos 21 anos fui sozinho a Paris. porque eu fui tuberculoso." "Ah! meu filho. Num desses bailes. entrei direto na biblioteca e. Au b oulevard des Capucines. o Instituto Aranha. mas com cunho de romance pra prender a a tenção do leitor. E assim. a sogra dele dirigia um sanatório em São José dos Campos. Quem guiava eram aqueles italianos bigodudos que há pouco tempo tinham vindo na imigração. qu antos livros e arquivos e papéis manuscritos e batidos a máquina. eu tenho os seus livros. Eu estou aqui só. que eu vou dar a você todos eles com dedicatória. todo dia. Em 1918 fui passear com meu avô em Portugal. 1882 e e le gostou tanto que escreveu um prefácio. estava de namoro com o dr . Mas eu v ou começar por esse cantinho. Só pelo prefácio os irmãos Pongetti queriam me dar vinte contos! O livro era histórico.nteira. que eu não sabia ainda quem era. O tal do homem. mas não sabia quem era. meu filho. eu não sei nem por onde começar. ele sempre me perguntava se eu gostava de escrever . voltando ao Paulo Setúbal. deuxiême étage. tenho mania." "Mas. então. Nós fazíamos misérias: t ocávamos a quatro mãos. J'ai joué etj'aijetté beaucoup d'argent au cabaret. meu Deus do céu! Eu o conheço. six. que separava as nossas casas. um parênteses.." "Meu filho. porque eu me sinto feliz em ter um amigo como você. com os burros tropeiros que vinham beber água numa guasca já esverdeada pelo zinabre.' Li tanta coisa. Eu morava na Vila Gaby e tinha um vizinho cujo nome eu não s abia. ele entrava. Afinal. o povo aplaudiu que foi uma beleza. Além disso. tenho verdadeira obsessão de escrever. O aluguel do tílburi era um mil-réis por hora. Mas. meia esquisita e chinelo. Até o Belardi aplaudiu quando chegou. eu entrava. oito ou dez por dia. chapéu de palha ras gado. E ali paravam os tílburis de um passagei ro só e os cavalos bebiam água também. saía. A descrição de Paulo Setúbal: ma l ajambrado. É Paulo Setúbal. "Pois não. "Eu escrevo. Eu mostrei a ele os originais do meu livro. queriam comprar só o prefácio do Paulo Setúbal. publiquei e ganhei algum dinheiro. no fim. e principalmente quando se trata da história de São Paulo. vá entrando e lendo. Mas verdadeiro! A descrição de uma festa que conto no largo dos Curros é pura verdade! Infelizmente. versejávamos em desafio. Havia na cerca. Nós n os conhecemos por causa do piano. Paulo Eiró. culote velho. passando uns d ias com minha mãe na Vila Inglesa. o Abeizin ho e a Maria da Glória. ninguém me quer. consecutivamente. sinhô. uma pitangueira que pendia d o lado dele: "Moço. naquela época. Minha mãe. que era criança e dançava com miss Rose). Amâncio. Um dia eu disse para ele: "Posso saber seu nome?". eu tenho o Confiteor e todos os outros livros seus!" "Pode deixar tudo isso. eu também sou piratiningano! Venha cá. posso tirar pitanga?' brasileiros () A estrofe non sense pertence ao gênero bestialógico. eu fico zonzo só de olhar. e depois eu ain da via ele tirar um dinheirinho e dar na mão do pobre. Eu tinha dez anos e estava em Campos do Jordão. os irmãos Pongetti não queriam o livro. eu saía. fazia com a cabeça um sinal de assentimen to e o pobre entrava. O pobre ficava um certo tempo lá dentro.. E davam festas e bailes para alegrar os hóspedes. Paulo." Eu não conheci nada da casa dele. livros descrevia-se o antigo largo da Sé. mr. Um dos meus melhores amigos foi o Paulo Cardoso. meu Deus do céu. ele saía. Lembro-me de uma reposta que dei a ele num desses desafios de rima: Conheci Paulo Setúbal numa época em que eu já tinha dois filhinhos pequenos. perneira. dr. em q ue todos dançavam (inclusive eu. uma informação histórica extraordinária! Eu olhei para tudo aquilo e disse: "Olhe. Ele tocava tanto quanto eu. completamente só. seu moço. Então vinha o conde Raul de Carapebus. para investigar tudo e resolveu proibir as to uradas. que dança maravilho samente a morte do cisne. vendo que se praticavam malvadezas. As festas mais nobres eram dadas por um valido da corte. as platibandas tinham enfeites d ourados e por toda parte havia gambiarras acesas. de passagem pela França. e o pequenininho agarrava o touro e abraçav a com tanta força que enforcava o animal. D. até hoje. cai ndo. o cavalo escorregou e com o peso das pedras lá se foi p ra baixo o conde de Carapebus. difíc il de passar. E aparece um homem. O conde era um bailarino e todas aquelas senhoras f aziam questão de dançar com ele. Eu achei aquilo estranho. muito inteligen te. que era o Pelé daq uele tempo. Lá conheci u ma moça loura. Quem dava a festa era José Mariano Arouche de Toledo. Pedro mandou um olheiro. Imagine que homem valente! Era filho de Joana von Friedenreich. mei as brancas. uma coisa linda! Quem passasse perto sentia aquele perfume. um belo homem. Eram salões enormes. na sua casa do largo dos Curros. Uma certa hora. Como chovia muito. a princesa Isabel. não sei explicar por que. Mas ele passou. Alguém me disse: "Aquela é a irmã do famoso jogador". partícula nobiliárquica. braços enormes: ele ficava numa cadeira. Eu me casei com 22 anos na Igreja da Consolação. com a boca! Quebrou a s duas pernas e os dois braços e fez o gol da vitória com a boca. que morava numa esquina do largo. de braços abertos. as pernas perfeitas. Gambiarras são uma espécie de arch otes que davam um aspecto feéricd a toda a casa. por pura molecagem. que não tinha pernas. Ele era magrinho . Depois tinha uma pinguela por onde o cavalo devia passar. Dançava-se o minuete. um deus. Eu me lembro quando ele fez o gol da vitória no Campeonato Sul-Americano de Futebol. E até hoje ainda rezo pela alma do conde Raul de Carapebus. estilo alemão. com aqueles lírios no terraço de for a. Mas assim mesmo aconteciam coisas impressionantes: eu conheci um homem pequenininho. acabou proibi ndo aquelas touradas. o conselheiro Lafayette. o toureiro saltava de banda. Ele nos divertia. não só dançava. Um episódio da vida de São Paulo antigo é o da festa do largo dos Curros. opas-de-quatre. vestido bonito dem ais para homem. professora de cor. o conde Raul de Carapebus irá fazer uma demo nstração de uma dança clássica". uma casa linda. saiote de filó engomado. falava muito mal o português. alguma coisa em mim achava a quilo muito esquisito. Lá encontrava-se a baronesa de Penamacor. Pedro ii. rezo por ele.. louco. o mestre-de-sala bateu no assoalho com um bastão de argolinhas de prata na ponta: "Senhoras e senhores. também fazia mágicas à noit . Era a morte do cisne no balé O lago tios cisnes. montou no cavalo e foi descendo aquele lameiro terrível da fazen da do Becker. veio de Santi Catirrin . nas festas da Independência. o voltarete. alto. José Mariano Arouche de T oledo. de sapatilhas de balé. Naquele tempo ele era um ídolo. enchemos as malas dele de pedras." Mas eu. Meu sogro era um homem bonitão. p elo conde Raul de Carapebus. um lameiro que embaixo tem mais de meio metro. Mas quando nós soubemos q ue ele ia embora. O meu casamento foi com a irmã de um jogador. Artur Friedenreich. talvez um joguete. Lá. Que força extraordinária! D. hoje p raça da República. a Vila Inglesa. Becker fez questão de pôr o fumo no braço por aquele infausto acontecimento . e estav a começando a entrar na moda a valsa trazida da Alemanha. naquela carreira. elegante. Ele desp ediu-se de todos. saiotinho empinado de filó doura do e sapatilhas próprias para dançar na ponta dos pés. No salão. e o touro vinha vindo. muitas adivinhas. Eu conheci minha futura mulher numa casa chamada Panelinha. muito bonita. Eu vi muito toureiro levar chifrada de atravessar barriga.pediu que todos parassem: "Vocês vão esperar um pouquinho que agora vamos ver uma da nça clássica". que bateu naquelas pedras e morreu. até com um pouquinho de seio. Meu sogro morava na rua Antônia de Queiroz. D. Aí fez-se o ent erro e mr. Era nossa diversão. meia branca. que era dama de companhia e confidente de Sua Alteza R eal. mas tinha tronco enorme.. mas cheguei perto dele e disse: " O senhor dança muito bem! Parabéns! Como é o seu nome?". Pedro mandou bolear os touros. Meu sogro gostava de usar o Von. que usava uma fita no cabelo. realizavam-se tour adas verdadeiras. cinco dias por mês. lugar onde eu ia toc ar piano e onde se reuniam uma porção de moças de família para cantar e dançar. e ninguém pegava ele. E ele dançava e girava e voltava e fazia meneios com os braços e as mãos como se fosse um pássaro na agonia caindo. "Eu sou o conde Raul de Carap ebus Neto. . não sabíamos nem do que estava se tratando. Eu dali continuei dando tiro. que eu vou casar ali e já volto". Assim. a Constituição. terrível. A gente pe rguntava: "Quem ganhou o jogo. saiu um homem apontan do: tinha começado a revolução." Um dia eu estava namorando com a Lali no portão e ele apareceu na janela. aquilo devia ser tiro de festim. Então ouvimos o ruído de tiros. casar assim tão cedo. Miguel Costa. esquina da rua d o Arouche com praça da República. de noite. quando vi o Paulo Costa: "Paulo. Nós vimos um homem com uma porção de varas e um lenço na mão. Meu maior amigo na épo ca chamava-se Paulo Costa. orgulhoso. ela veio. o ideal era aquele. Paulistano ou Palestra?". nunca mais me esqueço. Abel R. Nós não havíamos feito nada. o José Miragaia. grande orador. esta sim! Ela não perdeu. chorando: "Me u filho. ela apenas ensarilhou suas armas. desrespeitando a Carta Magn a. Partid o Popular Paulista. Com aque le cavanhaque e aquele bigodão branco. O Miragaia estava comigo. O que você vai fazer!" "Casar. enton eu fim pedir a mão tele parra minha filha'. de que era presidente o dr. meu senhor. A Revolução de 32. Mas amanhã eu dou resp osta. bonito: "O zenhorr está namorrando minha filha pra casarr ou pra que é?". o senhor vê." E foi assim que eu casei. "Foi meu filho: 2 a 1. sempre de rastos e dando tiro. gri ando. você nem tem emprego fixo. por favor. Eu ia indo pela Consolação. eu tenho as melhores intenções com sua filha." Quando eu voltei pra casa. que nos tinha dado aula no Ginário do Carmo. Os enfermeiros me perguntaram: 'O senhor está ferido?"." "Não. Da antiga Recordinha. o seu filho quer casarr com minha fi lha. Mas o velho era danado. ela deixou de lutar quando nós já tínhamos obtido o que queríamos o fim já tinha chegado. onde eu havia estudado. Um fato interessante do meu casamento. 32. venha pra cá. parece que não estou ferido. em 1923. esse que vos fala. Foi assim que ele se perpetuou quinze anos no poder. antes da avenida São João. rezo até hoje por ele. morava na então Pensão Melio. não sei o quê. onde estava o antigo ppp. eu me joguei no chão e o Miragaia também. e onde fui colega do Mário O ttobrini. Ele segurou e nunca mais esqu eci. Eu chamei a a mbulância. Quando chegamos naque la esquina. Eu e o Miragaia arrancamos o fuzil da mão dele e corremos. e vi que ele tinh a levado um tiro na nuca. já de cartola e plastrom.. Então nós descemos par a ver o que havia. mas falava o alemão perfeitamente bem. Ele não respondeu. professor de canto orfeônico e cantochão. tipo alemão de cavanhaque branco que ne m bem entrou já foi dizendo: 'Minha zenhorra. "Ora. "Não. encontro minha mãe descabelada. eu mamãe? Quem disse?" "Claro! Esteve aqui um senhor alto. depois de ter sido deputado e ministro do Washington Luís." "Ah! está pem." "Então nós levamos o senhor num ambulatório. o senhor me deixe logo aí. do Laudo Natel. Namorei a Lali. Mas a revolução não perdeu. Casamos na Igreja da Consolação. e puseram o Miragaia na maca." . Ele enganava os trabalhadores: "T rabalhadores do Brasil! Nós precisamos mais pão! Precisamos ganhar mais! Os outros não dão nada a vocês!". Minha futura sogra tinha duas filhas: Lal i e Alice. segura aqui minha be ngala e a cartola. Era aí naquela esquina. e disse: "Ó Mira. que vi nha de São José dos Campos. Então fui chegando. E o povo todo: "Nos queremos Getúlio! Nós queremos Getúlio! Nós queremos Getúlio!". o senador Rodolfo Miranda e o Marcolino Barreto. seu filho disso! Corre!". Quem nos casou foi o monsenhor Ma nfredo Leite. Esse homem disse: "Foge. aí você está correndo perigo!". e eu quero to mar um copo d'água. rasgando a Constituição. com a noiva esperando no altar. porque eu moro na esquina.. As intenções tele são poas. Quando nós chegamos perto do ppp.. lá na praça da República. sai u detrás de uma árvore um homem armado de uma carabina. me lavar. E Getúlio ficou com medo e retirou-se. era ele a primeira vítima da revolução. Tivemos por testemunhas dois senadores. Ali jantava comigo Miragaia. porque era impossível dar tiro à toa. eu estava pensando. Eu não estava acreditando. forte. Porque o Getúlio tinha rasgado a Carta Magna. Eu. sem quê nem como. os bibis. Isso é uma revolução. o t enente Pinker. com dois filhos. Quando chegamos tínhamos caído numa ferradura. Minha mulher estava chorando." Fui à nossa farmácia de emergência. as senhoras se levantavam. É arroz azedo. era escuro c . como eles chamavam. sem fazer nada. portanto um regimento. Sabe o que é uma trincheira? Foi lá q ue eu contraí esse desarranjo intestinal que tenho até hoje. Agora nós ficamos aqui para apreciar o movimento da out ra janela. meu amigo. acabou tudo. desc i.. eu estou sem uma perna. Se acontecer alguma coisa. nós éramos todos recrutas. E perto tinha um preto que gemia: "Me matem. A respeito de Martins e Camargo. 3 de maio." "Mas um médico. para custear a revolução. os culotes. amarrei e fiz descer até ele. O capitão Pinker. não há mais nada. desci. e todas as trincheiras são e serão iguais. sio. enquanto eu ouvia ele gemer. fantasiados de soldado. espere um pouquinho. O Instituto Brasileiro do Café. coitado do velhinho. mas íamos andando. pelo amor de Deus! Eu estou arrebentado. com aquele cheiro horroroso. Chegamos em Eleutério. É um erro c asso. pelo amor de Deus. costurando para fazer as fardas. até acabar as caixas de balas.. Mas sabe quem c hamava o Batalhão 9 de Julho de pó-de-arroz? Os FFFF .E eles levaram o Miragaia. Comemora-se hoje. desci. que levava consigo o filho. vestido de branco. a esta hora? E com esse tiroteio? Aí tem uma farmácia. E fomos andando comandados. mas a farmácia es tá fechada." "Então. chamado dr. dizia: "Meus amigos. isso é uma trincheira. o 9 de Julho." Segunda vítima da revolução. que durou dezenove horas. mas valentíssimos. do outro lado. Luís Américo de Freitas. Então via- se aquelas mulheres trabalhando dia e noite. teve que se r interventor a muque. Dra. o início da revolução. e dias e dias lá dentro. Mas nisso eu ouço um gem ido que vem de baixo.fico fardado fazendo fita que ficavam em São Paulo. Aí nós exigimos que Pedro de Toledo fosse interventor paulista. Eles eram tropas regulares. gemia. "Me arranje um médico. áu. Não adianta mais. um magrinho valente. Pusemos um colchão tam pando a janela e a sacada. e os 40 mil ficaram aqui para custear a revolução. Qu ando eles chegavam. E tinha um senhor bem vestido deitado lá embaixo. que naquela época era uma fábula. pra ver o que está acontecendo lá". Eu estou mal. Eu pertencia ao 1? Batalhão do 9 de Jul ho: 2? grupo. nada sei. fiz uma espécie de uma barquinha. deu 45 mil contos. porque lutaram até o último fôlego. organizou quatro bat alhões. Estávamos muito cansados. atirando sempre. peguei nu m papel. Mas não vi ele fazer curativo nenhum . coitado. E gritou a noite inteirinha! Depois. Eu estava lá com o Luizinho do São Paulo. fo mos apanhados pelo tiroteio. chapeuzinhos de campanha de tecido forte. pó-de-arroz porque eram estud antes de direito. Nós ficávamos com o rifle e púnham os o carro entre dois tijolinhos pra dar tiro. E a prime ira coisa que eu fiz foi atirar no lampião da rua pra ver se acertava a mira. Em Ouro Fino. davam os lugares pra eles sentare m na condução. grosso. E gemia. halo Brasil Portieri ir aos Estados Un idos comprar armamentos. fazendo fita... uma ra jada de metralhadora me cortou". naquela época só Instituto do Café. voltando ao assunto. Em Borda da Mata já não estávamos mais agüentando de fome. 3? pelotão. não ouvi falar. enterrados num brejo com água até o umbigo e lá ficamos durante as dezeno ve horas. Aquele vaivém foi até a noite do dia 2. O meu comandante era o capitão Tito Lívio Xavier de Castro. o senhor diga que meu nome é Dráusio. Eu desci e subi pra minha casa. Tem que se comemorar dia 2. nós fomos indo e fizemos uma trincheira. Depoi s voltei de rastos também e disse pra minha mulher: "Lali. feijão azedo com farinha." "Mas eu estou muito ferido. fizeram a Constituição. Eles me deram o posto de terceiro sargento. não precisa chorar mais. Eu estava lo uco da vida. quando chegamos lá. meu nome é. Poucos dias depois. pó-de-arroz. Passei a mão num 38 com duas caixas de balas. como ordenança dele. Veja o que é uma contradição. carne-seca azeda e velha. As perneiras já vinham feitas e os capacetes de aço também. nós vamos jantar em Pouso A legre". E daí fomos para a frente de combate. Desci. Então ele disse: "Já não adianta mais. Ele deu 5 mil contos para o dr... não se enxergava nada. esparadrapo. pelo amor de Deus! Acabem comigo. gemia. iodo. eram mais de oito horas da noite.. Então um grande baiano. Nós acabamos de jantar eram seis horas.. Fui depois de rastos até a esquina onde estava o iwp. Mas. zuarte. passei a mão num algodão. Lembro-me. uma vez. a polícia fez o interrogatório e lá ficou ele preso. onde está Maria Florência. é o primeiro túmulo. O nosso fica na primeira rua. Mal chegamos lá. O meu primeiro emprego foi no Santamayor e Cia. me deu uma cartinha de apresentação para o diretor do Instituto do Café. um santo. o que você está fazendo aí?" "Não quero voltar pra cidade. me pegava quando ele era o d efensor da parte acusada: homem inteligentíssimo. E eu prometo dar a você aquele mesmo lugar no banco. mas aqui não sou nada. quando cheguei lá me disseram que infelizmente não hav ia lugar. Venha junto conosco!" Ele veio.) "O que é?" "Francisco. Ninguém podia comigo.. Ele levantou demais o tijol inho e levou um tiro." "Mas Chiquinho! Salta pra lá. o enterro do dr. veja o que é isso no meu rosto". Numa daquelas noites de b reu eu senti uma coisa fria. O ladrão tinha já três ou quatro mortes nas costas e fugiu para o mato. a ceder o seu material para a revolução. Só se escutava o ruído abafado do tiro na terra. você não tem nada. O nosso material era horrível. não. O dr. homem! Pode voltar! Já pegaram o autor do desfalque. Mas eu só conheci' de fotografia. no Anhangabaú. Paulo que contam o sucesso. Embaixo. o mais belo enterro que já vi na min ha vida. aquela freira que fugiu com o Pedro Ma ria. E o Pinker. Podia ter-me aposentado muito antes. fazendo inquéritos. O capitão das tropas paulistas era mineiro. o governo paulista obrigou uma indústria. bem pe rto do nosso túmulo. Fiz questão de ir sem arma. não demorou muito. O dele fica a três quadras do meu. O presidente do Instituto disse: "Esse caso. José Pereira dos Santos costumava dizer assim: "N o Fórum sou um leão. São de minha família. O fuzil de 1890! O fuzil-metral hadora tinha os pentes já gastos. Pensão Mello. E não subi mais porque. que era amigo íntimo de meu avô. que foi o organiza. 25. e imediatamente fui admitido como segundo escriturário e. Eu dirig ia os processos e ganhava uma gratificação por processo. Rio Branco Paranhos. E eu disse para o presidente da comissão: "Veio ou não veio o home . era paulista. delego todos os poderes ao Abel". Só o advo gado trabalhista. Tenho ainda os recortes do Esta do de S. e o das tropas mineiras era paulista. O dr. que eu até hoje conservo. as mães costurando zuarte. então. Tinha levado um tiro no centro da testa. entregamos ele pra polícia. O Instituto ficava na rua Wenceslau Brás. colhendo testemunhas para processos d e corrupção administrativa. no mês seguinte. Carlos de Camp os. 67. como funcionário da União. e vai ficar tudo como antes. que nós chamávamos "a mulata" . que foi o out ro. Mas não queria m que eu deixasse o lugar. Chiquinho!". o comunista. Os Ciampolini pulavam pra cá e pra lá. E chamei: "Chiquinho. então eu mostrei a carta do dr. passei l ogo a chefe de seção. A metralhadora pesada. está na cadeia. mais ou menos. e os dois valentíssimos.. Carlos de Campos ao dr. que não foi você. O capitão que comandava as forças ditator iais. Siqueira Campos. volta pra casa.. E as balas. Era o funcionário que mais entendia de inquéri tos administrativos no estado. (O nome dele era F rancisco. 1885. Nós t ivemos meninos que foram para a frente de combate. era mineiro. São Paulo inteiro foi chorando levar o morto ao Cemitério da Consolação. você vai ver! Nós vam os dizer ao presidente da comissão que já apuramos tudo.dor do primeiro regimento revoluc ionário.omo breu. houve o maior enterro d e São Paulo. Viajei pelo Brasil todo. Eu trab alhava no Instituto do Café. que vendia armas e munições. Veja que contraste. tinha uma munição horrível. Então clareou um pouquinho e eu vi o que era: a massa enc efálica dele. o Outro conseguiu escapar. um eu peguei. Raul do Apocalipse. Depois fui trabalhar na Light em 24. deixa de ser bo bo! Venha cá. úmida no meu rosto e não sabia o que era: "Gastão. E fomos para o lugar onde ele estava amoitado. sai daí.. fui a Presidente Prudente investigar um desfalque de uma agência do banco local. que comandava as tropas paul istas. Depois. o saneador Emílio Ribas. só o Abe l. Meu avô me dava cinqüenta mil-réis por mês. Muitas vezes eu recebia um envelope com dinheiro dentro. nós líamos nelas: 1890. e le está preso. oitavo andar. uma vez até uma libra esterlina! Eram dos processados ou dos seus advogados que queriam copiar parte dos autos ou saber de informações que só eu ti nha. como meu bi savô. Carlos de Campos. tenente da Casa Imperial. Joga o Abel em cima do homem". Eu vivia nesse tempo com minha mulher e dois filhos na. Trabalhei 42 anos no Instituto do Café. " Ela entrou lá dentro com dois meninos no colo e foi dizendo: "Me dá quinhentos mil-réis aí porque eu preciso ir numa parteira e fazer uma curetagem". X. mas perigoso. um amigo meu.. e presidia uma comissão quando: "Dr." É que por dentro eu já ti nha uma simpatia pelo dr. X e m sua casa?". O amante dela era o Leão do Fórum. O sangue bom. E vinha o homem picotar o cartão a cada volta qu e dávamos no salão." Chegaram lá.." "E o inquérito?" "Ah! isso eu não sei. Também fui secretário do X.. havia bailarinas que eram uma beleza! E eu ia só pra da nçar. Um dia. Íamos todos ao Salão Verde e ele não bebia nem dançava. uma moça bonita mesmo!". tchi bum bum bum! Uma! Pan! pitchibum. Era tão atre vida que me tirou todo o dinheiro. com brilhantes. Mas depois. Ficávamos na mesma mesa. Zenóbi o. Era jogo de pôquer.dores." Aí vim para São Paulo e o presidente do Instituto do Café me perguntou: "Então. Estrela é o pato. tanto que eu comecei a jogar. antes do Mãozinha. E um anel lindo. um atleta. Eu o levava para minha casa e convid ava a "estrela" para jogar conosco. Ela tinha dois filhinhos dele. jogo de roubo. mi chamou: "Oi! Abel. mas era uma espécie de explorador dela. você é danado mesmo. a Elza teve um filho agora. "Mas quem será? Mande entrar. O seu Eugênio.". O Fernando sumiu mocinho e nunca mais vi até hoje. Mas nesse tempo eu já estava separado da Lali. mamãe montou uma pensão muito grande na Rego Freitas. E foi nesta igreja que eu me casei. que é a minha cara. um homem bom. lá está a família dele inteira. a chapeleta. o Mãozinha. Naquela noite nós de- penamos o fazendeiro. Eu o conhe ci quando fazia o inquérito dos encana. com 74 anos. sou tataravô. Conheci lá o maior profissional de São Paulo. E havia o blefe. vo cê conseguiu ou não pegar o homem?". O vigário era o padre Miguel. até esse ponto eu cheguei e me arrependo. o X todo o mundo sabe quem era. Era uma chantagista. freqüenta va o Salão Verde. treze netos. homem qu e tinha inventado a "presa". é da Lali. Eu que não volto para Prudente. "Eu receberei como um amigo quando ele for. paga seis!" E eu comecei a jogar. Tive em primeiro lugar o Abelzinho. eu era chefe de seção. está aí uma moça que quer falar com o sen hor. tem um fazendeiro aí cheio de dinheiro. "Quantas?" "Dezesseis danças!" "Mas isso é uma roubalheira! Foram quatro!" "Então. é o meu algoz. o rico que a gente arranjava pra depenar. o dr. Era uma ladroeira danada. Lá comecei a dançar com a Leyla e ela se engraçou comigo e eu me e ngracei por ela e fizemos um negócio meio malfeito.. Abel. dizia: "Ô Abel. como é que você receberia o dr. nada daquilo é verdade. eu andava desnorteado. irmão dele. Ele estava de volta de Cochabamba todo empesteado. pede logo". Mas me tirou todo o dinheiro e eu com ecei a jogar. dentista. por uma questão que até é meio esquisita. "Então vai. tudo de metralhadora na mão pra pegar quem de nós chegar lá perto. tchi bum bum bum! Duas!". Era a ssim: "Pan! pitchibum. Depois da falência do banco. sem-vergonha (coitado. alemão. dono do Circo do A rrelia e com o Paulo. E fiz amizade nessa época com o Valdemar Seyssel. "Consegui. Abel. morre. jogo bonito. mas furava o cartão do mesmo jeito. "É. E me levou todo o dinhe iro. Ele era advogado. eu vou levar na sua casa pra ele jogar. com um metro e noventa de altura. "Quelo dinhelo gandão". Dos f ilhos da Lali não morreu ninguém. Ele jogava com a "presa". . a cem metros da Igreja da Consolação. Nesse jogo pode mais quem mente mais. já morreu!).m?". catorze bisnetos e uma tataraneta. Abel. de modo que eu. Ela era tão at revida que um dia eu estava no Departamento das Caixas Econômicas. Quem aparecer lá." O rapaz foi condenado como assassino. o anel lustroso qu e espelhava as cartas do adversário. a Maria da Glória. que eu gosto muito de dançar e ouvir música. que ti nha uma mão enorme. Em vez de cinco cartas ele p egava dez. O terceiro foi o Fernando. 538 . Lá dançava-se. principalmente tango argentino que eu dançava muito bem. Ele soube que eu estava com o proce sso e mandou um amigo dele me sondar: "Oi. Abel. Em segundo. na Granja do Tor to. nem que o senhor me pagar o dobro do que o senhor paga para ele. X. porque é ele que manda. dr. Pois uma noite apareceu por lá o tal sujeito. Apar ece na hora que não tem mais ninguém. abre esse cofre que a gente vai pôr o dinheiro aí". Quando eu abr i. minha filha. " E disse o diabo. sim." "Você é uma besta mesmo. E eu mandava mesmo. eu não gosto que o Abelzinho se meta com o senhor. Aí nós começamos a cobrar os banqueiros do jogo de bicho. ele bateu em minha porta e disse: "O dedo de De us me trouxe a esta casa". Não houve o processo famoso da urna marajoara? Ele me disse: "Ô Abel ! Esconde aquilo. Eles pagavam para o dr. Aliás.. E aí subia o elevadorzinho com empad . "Não senhor. dr. não é que eu não gosto de dinheiro. b em na hora de eu sair. e esta moça chega e diz o que quer. preciso desse dinheiro". Abel? Eu estou acostumado a to da aquela gente que está comigo dizendo amém. o que o senhor quer. peçam ao Abel. às nove. você não gosta de dinheiro?" "Não senhor. Então el e disse: "Muito bem. É por isso que eu não gosto do senhor". na rua São Vicente de Paula . X me dizia: "Ô Abel. e trouxe de volta para o governo. nem eu sei quanto tem!". era tanto o dinheiro. Muito bem. Quer trabalhar comigo. Quando os bicheiros tinham descarregado as maletas e ficava aquel e montão de dinheiro pra gente enfiar no cofre. X. Essa moça é que serve para trabalhar comigo. mas a verdade é que eu gosto do senhor. Eu apaziguava: "É. eu à direita dela e. não peçam a mim. amém. "Exato!" * "Está aqui.." Era o processo. São sessenta contos e eu quero receber. Todo processo em nome do dr. O dr. X. E u não tive pai. dr. lá na rua Minas Gerais. Dizia: "Ninguém come en quanto eu não chegar e a Nora não chegar". o Fernandes. X não ma ndar a polícia lá. Nora. Eu trabalhava na casa do X e estranhava que um general aparecesse toda noite lá. em frente. No dia seguinte eu estava trabalhando pra ele. você tem sessenta contos aí?''. por que v ocê não pega? Ninguém contou esse dinheiro.* Houve uma época em que ele chegou a dizer às milhares de pessoas e firmas que queria m telefone e tinham prioridade A ou prioridade B: "Escutem. senão eles me pegam". E assim o general K. ele chorou. o dr. que caía em cima da gente. minha filha?". não sou eu que mando". que ficava lá emba ixo. Tinha umas coisas que não funcionavam. eu olhei pra ele e adivi nhei: "O senhor veio buscar a urna marajoara?". sustentava o X no poder. X me diz ia: "Ô Abel. ele voltou lá. Eu devia ganhar vinte contos por mês. o dr. o senhor me trata como pai. Tira quanto quiser. No dia seguinte. dr. Pode levar. a cozinheira. dez da noite. Um dia chegou em casa um homem esquisito. O senhor já me paga ordenado!" "Mas você é uma besta mesmo. dinheiro que ele vem buscar. "Eu já sei. e a minha mulher (já era a segunda) disse: 'Dr. Estava atul hado de notas. com uma fisionomia de inca. No dia seguinte." Quando o dr. X. Estavam láo Totó. X.cheio de bichos. O que eu tinha feito? Tinha botado a urna num Chev rolet verde enorme (ele tinha a mania do verde e do trevo de quatro folhas) e le vado pro porão de minha casa. E pensava: esse homem não presta. eu estou com uma fome desgraçada!"." Nós sentamos à mesa. "Eu não. Er am três meses já e eu não via um tostão: "Olhe. "Pois não. E ele nunca que me pagava. entra aí. o Piba. Abel. Estava ele. dr. já são três meses que o senhor não me a. o Durv a. como era seco pela Sebastiana. em espanhol. Então ele dizia: "Osório. porque o senhor foi buscar o Getúlio lá onde ele estava. (*) Pronunciado 'ecssato". e tinha aquele elevadorzinho que trazia a comida pra cima. o inca. eu detesto o senhor. Eu não sei quanto tem!" Ele era assim. eu batia e grita va: "Tiana. vamos jantar agora. mas eu. a dona Sandra aqui é muito brava mesmo" . louco. d. Osório.. Vinham e traziam as maletas recheadas de dinheiro.. É dinheiro. que eram os principais bicheiros. () Esse general foi um dos promotores do golpe militar de 1964. se vocês quiserem tele fone. X eu sumia com ele. de manhã cedinho. sim. X soube. muito bem! Está vendo. não cabia mais nada. O que o senhor quer está em cima de minha mesa. e u não gosto do senhor. E ele me passava depois. "Mas por que não pegou uma pra você. Quando ele chegou. d. teve uma briga séria com o X. Quand o eu olhei em volta. hein?" Ele descobria mesmo." Dito e feito. que peguei três de uma vez.. aliás quatro. Cândido. Então d. e o Carlos à direita dela. coxinhas de galinha. Tudo quanto era prioridade passava pelas minhas mãos: "O dr. Um dia chegou o dr. Numa certa hora. que era muito afeiçoada a mim. E eu. Coragem para entrar no meu qua rto. seu malandro. Abel?" "Quero. você já comeu. Mas eu comia. X. sei. Um dia o Caio. D. Porque de fa to eu não era o que ele pensava." E eu cobrava. não adiantava esconder. não é?" "Não.. um monte.. Eu fui e vi tant a caneta. Só eu tinha coragem de subir até o quarto do X e pegar uma caneta. Eu não sei por que. E todo mundo ficava com u ma fome desgraçada sem poder comer. Depois íamos pra mesa. na mão. três horas da tarde. "Sou.. o Cândido queria uma caneta. e que cheg ava perto de mim e dizia baixinho: "Dona Nora quer falar com você. hõm. mnhã. o que não era muito leal da minha parte. e era o único dinheiro ce rto que eu recebia. "Ô. Nem o Cândido. ter que esperar até três ho ras.. que era o mordomo. Abel".. fez muito bem de comer!". Os dois eram valentes e quase se atracaram. que um dia me pediu uma caneta. Ele me abraçou pelo pescoço bem apertado e me ia dizendo: "Vamos descer juntos. vamos indo almoçar ". em vez de dar pra esse velho esquelético que anda por aí fazendo turismo?!" Não deixava ninguém comer antes dele chegar. mnhã. "Mas eu já assinei a licença. me cercaram e perguntaram: "Você é amigo do dr. Nora. O Caio passou a mão na mala e. o que é? Bastiana. no seu lugar. pedir favor a ele. E ela perceb ia: "Você tirou dois. "Dá a mala! Dá a mala! Peguem a mala!" E o Caio assim ficou milionário. o X gritou: "Ponha-se daqui pra fora e nunca mais entre aqui na minha casa!". deu com aqu ela caneta no chão e comentou: "Isso é coisa do Abel. só de malvadeza. Eu descobri o fraco do X. só ele". mnhã. são vinte contos. ela me dava um pacote e eu tirava dois. E ia descendo e cochichando até a praça da Repúbli ca. "Mas dr. sempre à direita. Ele. nunca deixou de descobrir. vamos almoçar. ele e a d. mas uma caiu no chão. Nor a. pra almoçar. eu fui buscar e deixei cair uma no chão".. se você quiser cobrar como 'prioridade'. não me mande mais comida pro A bel enquanto eu não estiver aqui.". E chegando lá. por quê?" "E o que você estava querendo dele?" . vupt!. Abel. que era mordomo do palácio. que era o factótum. sim.. e lá pelas onze horas vamos nos encontrar na escadaria do Hotel Esplanada.".. De sci. ninguém o alcançou. No dia seguinte de manhã ele me encontrou junto a uma porção de gente louca pra falar com ele.. meu amigo". Tinha chegado o total do jogo de bicho: 60 milhões! O Batista pôs a mala no chão e nós fazendo o possível pra separar os dois grandes.. X. dr. Mas ele sobrestimava o meu va lor." "Sei. o leva-e-traz. dei uma pro Cândido e o resto guardei pra mim. estava um carrão oficial. ele sobrestimava o meu valor. Agora. "Duzentos contos? Agora eu não tenho isso.. senhor!" "E essa farinha que você tem no beiço.inhas. ele entrou e me deixou de fora. Eu fui logo dizendo: "Entenda. vi uma porção de gente. E eu jogava com pau de dois bicos. Fávero está querendo botar uma banca de flores ali na praça". X?". espera a té amanhã. fugiu. Nora n a frente. atrás do Teatro Municipal. um alto e magro. aqueles mesmos que estavam no Esplanada . Eu sempre do lado direito dele. Sessenta milhões naquele tempo! Uma vez ele tinha de me pagar duzentos contos por uma letra que vencia e que tin ha sido endossada em meu nome." Só eu tinha coragem de comer. Nora fumava cigarros Ls. Nem o Dão. dizia: "Coitado do Abel. "Você não quer um vinhozinho gostoso. hõm. eu à direita dele. X. lambendo os beiços: "Ó.. eu quero os duzentos contos que o senhor me prometeu ontem.. dizia pro Cândido. onde o dr. Culta. mais nada.? Era uma mu lher loura. foi a única vez que eu tapeei o X. E aí começou o sacrifício de d. Eu fiquei com 1500. agora eu sou o dr. Não tem importância. sem poder se m exer. por causa deles." "Pois então. que era o pistoleiro dele. o Toninho.. minha mulher o detestava. O marido dela. Salvaram o X. Tudo ia bem. Abel!" O avião foi girando.. R. cabelo ver melho. como quê! Ela tinha uma fo rça que atraía a gente. "Suba. Porque eles viviam como dois namorado . O senhor não quer?" Eram uma s pfiulas que a gente levava pra não enjoar. como segundo secretário. meu médico e amigo. eu cheguei para contar o fato ao dr." Chegando lá entramos em um avião portentoso do Fontoura. Só. uma santa. duzentos e o meu nome." Eu repeti que eram 2 mil. mas eu. E todos diziam: "O dr. dr. ficou dependurado. tem uma fazenda. Será a gasolina? Eu não dis se?!". vamos passear?". E ela mesma dizia: "Não me chamem mais pelo meu nome. até que um dia apareceu o dr." "Fica quieto aí. e não esqueça o meu nome!". duzentos contos. então passa mil pra cá porque eu sei que você ganhou 3 mil. é que fazia tudo. anota aí!". girando. já não estou gostando. Abel?". Me dá aqui mil. Xingou de tudo o que era nome: "Esses filhos d isso são uns irresponsáveis. mas o avião gira. ouviu falar no dr." Veio o chofer. o que afinal era uma fortuna pra quem ganhava vinte contos por mês. e toma nota do meu nome. No dia seguinte. O César só vivia c om a mala de documentos atrás dele. eu já percebi.. R." O César não foi. anotavam o meu no me e me davam o deles. só estávamos o comandante. X? Eu não tenho um anjo comigo? Não tenha medo.. "O senhor não quer? Isto ao menos tira o enjôo. que isto é pra mim!". eu recebi quase 2 mil contos.." Chegamos logo e eu percebi logo a coisa: "Dr. meteu-se dentro de umas árvores. "Mas que é isso? Vamos lá! Dar uma volta. uma mulher atraente mesmo. Depois eles o iriam procurar. sua besta!" Afinal chegaram e tiraram o X de lá. sou ou não sou." "Vamos. disse: "D r. O César era prime iro secretário dele. E foi pra ele mesmo. não precisa va mais me pagar nada. eu faço. "É mesmo!" "Quer dizer que você recebeu um bolo. outro guarda.. segurava a minh a mão." E Outro: "Toma lá. Sangi. X ficou também seguro. que só faltava ter um cabaré de ntro. E o danado sabia disso. Eu quando percebi que estávamos chegando ao Campo de Marte. esse não é o Campo de Marte? O senhor sabe que eu não gosto d e andar de aviao. "Vamos. R. e o X dizia: "Larga. E ele. X. E foi uma chuva de dinheiro que eu mal podia carregar. E outro: "Trezentos. Aconteceu alguma coisa.. nós já chegamos. eu fiquei sentado amarrado pelo cinto. era médico do X. tenho sa nto forte. p edindo compensações: um queria abrir uma doceira. outro uma banca de flores. Salzano. X. de manhã. o dr. toma lá." "Bom. e o dr. tome um pouquinho disso pra poder agüentar. "Pra onde é que nós vamos?" "Nós vamos a Botucatu. eu estava cobrando duzentos contos que ele me deve. Abel. t em paciência. R". Quando eu sair daqui. E levou muitas horas naquela posição. X que. eu aconteço!". X e eu. "Mas dr.."Ora. Por isso. não é verdade?! Me dá a metade aí! Quanto você recebeu ?" "Bem. ela me dava a mão. X. X me disse: "Ô Abel. Abel!". mas entalado de ponta-cabeça. Um dia o dr. está aí". E por isso. Abel. Eu nunca mais entrei num avião. não era bonita mas era uma mulher atraente. Nora.costas. E todos me davam o nome p orque assim ficavam credores de favores do dr. Lad rão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. "Mas eu não sou o dr. nem com ele nem sem ele. gira. todo sorridente: "Não disse? Comigo não acontece nada. gira e não desce. atraía até a mim. e ele deu risada: "Eu sou mesmo um colosso.. e lá fo mos girando. x. Depois ficou tudo aquilo lá. o general K. burro. "Mas você anda cismado com olheiros!" No dia seguinte. Mas no dia seguinte ele esquecia e começava tudo de novo. Nora: "Dr. dorme uma meia hora.s." "Excelência nada. era o melhor empregado que eu tive até hoje!" (Eu era secretário da Comissão de Inquérito. e disse: "Mas dr. No dia seguinte. perto de uma piscina de cinqüenta metros. com a hérnia e tudo. e se tem um olheiro lá e m cima. "Vamos Abel. hei. X me abraçando perto das roseiras.. não tinha mulheres. Promet o a Você que é meu amigo. eu queria falar do dr. nenhuma. Nora chorava. Jânio. vim trazer esse processo. que era uma bola de futebol n? 5. até hoje eu uso uma funda dessas na barriga. eu fui levar um processo importante ao dr. olhando e chei rando umas rosas: "Sa be dr. O dr. não op erei. en orme. depressa. Eu mesmo. nem vou deixar que ninguém roube por mim. X. E ele: "Olhe. Abel?" "P orque alguém tirou o senhor de todos nós. Mas um dia eu estava atravessando a sala de trabalho de le. não é isso? Um homem que ia para os comícios comendo um pão com que ijo embolorado e fedido. "Mas você precisa comprar um cigarro mais forte pra dar pro governador. esse daí é mui to fraco. Até que enfim ele foi embora mesmo. cheiroso. O chefe operou. Um dia. e foram para a Suíça depositar todo o dinheiro do jogo de bicho lá no banco. e o dr. E pra encaixar dentro da barriga precisava o dr. tenho culpa?" Mas eu era empregado dos dois ao mesmo tempo: do X. que era caminho forçado para os secretários. me dá um cigarro". veja que o senh or está engordando. hei. en orme: a Sachzen Gross". lá nos fundos." Eu sentei. do Jânio. Um dia eu estava no jardim da resi dência particular do dr. Ele estava me abraçando quando eu olhei para uma casa alta . nenhuma." E d. às vezes. Ele não bebia. X tinha uma hérnia enorme. Eram voltas e voltas na barriga dele até o último nó. já sabe da curriola toda. E me mostrou o cabelo bem preto. Jânio. Eu vou fazer uma promessa a você. "E o meu almoço. você saberia me responder?". Jãnio. R. Abel. não fumava. acho que até um pouco demais. Pronto! Já en trou. como funcionário dos inquéritos administrativos. Todo mundo chorava. o retrato do dr. lustroso. inclusive de mim. X. eu ju ro a você que eu não vou roubar mais. dr. Ele tinha 62 a nos nessa época. E eu fiquei sem saber o que responder. onde é que está o X? Vamos emb ora. Eu dei. pra mim. Estava sentado naquela escrivaninha linda. que é dessas rosas que se extrai o perfume do charuto que o senhor tem nas mãos mas não fuma? É da raiz dessa roseira que se faz o perfume. O dr. Era só a Nora. depois o senhor sai bem reconfortado e va i pro comício. ele pode ver tudo aqui". a minha idade. E começou o corre-corre. hum. não tinha caspa nenhuma. Eu disse então pra ele: "D r. faziam dele uma image m de homem caspento.. eu recebi um telegrama de d.. que é isso?" Aí ele me fez sentar e disse: "Olha bem pro meu cabelo". hum. não opere sua hérnia. Abel: você é você mesmo ou você é outro homem." "Dr. Eu tinha a mesma idade que ele. Jânio. eu já percebi tudo". não jogava. rapidamente. quando ele me chamou: "Abel.) . secretário particular. e que eu sou caspento! Que é que e u posso fazer? Eu tenho culpa disso. aqui a minha missão está terminada. Agora. "Senta aí. dr. Abel. 'Mas por que... chegou e disse: "Abel. cor-de-rosa. acordo pergunt ando a mim mesmo: 'Será que eu sou aquele homem ou sou outro homem?' E se eu pergu ntar a você. Até que um dia eles embarcaram. ir enfaixando e eu puxan do como cavalo. Eu prometo. do Outro lado da rua. Jânio." "E dizem que eu levo aquele pão com queijo podre." "Como é que o senhor se deixou dominar por aquele homem? O senhor. força. o Exército se rebelou contra mim. Um dia ele me chamou. como é?" "Eu acho que o senhor almoça bastante. cheguei perto d a mesa e vi. bem em cima.. X. Quero ser um outro homem.. E foi para a Suíça operar a hérnia.. Dessa rosa branca. e a exata idade do Getúlio. X. "Excelência. e vamos embora!". X. morreu". e ele aproveitou-se do meu nome. X não deu nada. X. ele só tinha uma casa. Eu acredito. Eu disse: 'Dr. demônio. Falava de frente. * * * . Ele nunca me pegou num erro. o senhor seria g irafa. chegar perto de mim. Estarei ao vosso lado. tapeou. E fiquei lá como um deus. Satanás. E o X ganhou 45 mil votos. O único que o auxiliava no asilo era o Tenório Cavalcanti. Então. Votai em X porque os outros não prestam". era honesto ou não era? Era pobre." Eu peguei: li. Eu tenho obras de caridade. Era um homem extraordinário. li. Só lhe peço uma coisa com este processo aqui. um homem que conseguiu 6 milhões de votos! Quando trabalhei na Comisão de Inquérito. não se diz co munista mas é. Um português como eu não vi outro até hoje! Pronunciava bem. Ele adi vinhava o que estávamos pensando. O senhor quer que eu jure?" "Nunca jure. Algum presidente teve 6 milhões de votos? Renunciou por causa do Carlos Lacerda. Porque eu tomo conta do meu nome. Todo mundo queria falar comi go. Votem em branco". senhor. O pessoal todo olhando e ele: "Dá licença." Então. Prestes disse: "Para o senhor ganhar essa s eleições preciso 40 milhões de cruzeiros". Não conseguia desamarrar. sentia pena dele. Ele pegava o dólmã do Porfírio. Se os se cretários do Prestes soubessem! O povo aqui é comunista em grande parte. Fomos para o Rio busca r o Luís Carlos Prestes. ojuqueri tinha 14 mil doentes. Minha mensagem será: Sou o Cai'alei ro da Esperança. aquelas viagens que ele fez pagaram tudo p ra ele. Eu sou o Cavaleiro da Esperança. O dr. Ah. Passaram a noite batendo essas palavras e quem assinou com a letra igualzinha à do Prestes foi um sujeito que tem uma habilidade tremenda para imitar assinaturas. Quando chegou o dr. O X sobrestimava meu valor. aquele da Lurd inha. capitão Prestes. não é?". O X ganhou a eleição. tinha entrado no p rocesso como Pilatos no Credo. Desmembrei esse aglomerado para oito colônias. Fui visitá-lo no palácio. pregar e fazer discurso. Todo mundo começou a perguntar: "Quem é esse moço?". falava: "Vou pedir que meus partidários votem em branco. Trabalhava uma coisa horrorosa! Ele dormia duas ou três horas por dia. inclusive um padr e danado. li. depois do acordo assinado." E tinha mesmo. sustentando o olhar do outro. o senhor quer milhões? !" "Sim. dá licença. "É verdade. X disse: "Deixem este homem passar. E me deu uma caneta de ouro. Quando o general queria sair não conseguia. Aquele homem não ment ia. E falava. parece que estudou califasia para poder falar. E fez uma enciclopédia que era uma maravilha. eu estou cansado de tanta luta. (*) Deputado da Baixada Fluminense famoso por portar sua metralhadora. coitado. O Jânio dizia pra mim: "Abel. me apeguei a ele.. E disse isso pra ele. Se esse homem que tem o meu sobrenome fez alguma coisa contra o ser viço público. A girafa tão grande que não existe. X e propôs o acordo." "Se eu não pegasse. e até hoje eu tenho os livros com dedicatória dele. Um homem com um a inteligência fabulosa. eu agradeço o 'moço' ". Leia bem es te processo. Ainda bem que o senhor fez um errinho. tomava injeções. Jogamos de avião lá de cima. estarei e ntre vós. "Você está dizendo isso pra me agradar?" "Não. homem da capa preta. senhor. ele disse: "'Sou muito pequeno. aquela víbora. a 'Lur O que ele fez com o general Porfírio da Paz foi coisa que não se escreve: "O general . entre e espere aqui em meu lugar que já volto". que eu peço a demissão dele. Nenhum dos candidatos presta.. por dentro é: católico apostólico romano comunista. Mal nos viu. orar. Vou escrever". tanto fez. dava u m nó e ia embora. com capacid ade para 7 mil. Est e processo é importante e tem um nome de um homem com o meu sobrenome." F ez a enciclopédia. eu vi Jãnio tomar soro. Tanto fez.. li. que conseguiu. X conseguiu 45 mil votos na campanha de governador. Mantinha um asilo com duzent os velhos. E era um general. Como não tive pai."O senhor continua do mesmo jeito. Estava cheio de gente. redigiram um manifesto como se fosse dele: "Ainda hoje. esse X tem cada coisa". peguei o senhor! Escreveu no processo haja vista e o certo seria haja visto".* Mas o dr. Ele voltou para Santos. li. me avise. Devo a este moço o estar sentado aqu i". fui eu que assinei o desmembramento do hospício com a maior concentração de loucos do mundo. li. Abel. ele fez um errinho e eu disse: "Dr. "Mas. inundamos São Paulo. e vi que o homem. Mas um dia. onde que você achou isso?". Agora. porque eu sou seu avô. quando eu deit o. "Por uma brincadeira ele me chama lá pra fazer uma sessão espírita e saber se ele é a re encarnação de d. sim!" Eu quero a tradição. o senhor vá à merda!" Eu fui atrás dele: "C omo é que você faz isso? Tenha paciência." "E antigamente. o Marcolino Barr eto. A noite. Lopes." "Mas é lógico que era seu avô. uma coisa que ninguém acredita. quando o senhor era pequeno. A gente entrava e via o salão dourado onde ficava o retrato de d. negar a minha convicção. Ele está escondendo na mão o cabo de prata com um cachorro. que tem o chapéu dele. Mas eu sabia.. "Nem você sabe. quando tinha seis anos. Pedro. o dr. há um quartinho em que ninguém vai e onde estão as recordações de vovô. Pedr o i não era nada disso. Mas não consigo esquecer. "Chave do que. Esse menino. meu filho. pai!" Eu dei a chave. Meu avô está com um a bengala. meu filho?" (Eu queria experimentá-lo. "Acho que é você. eu peço a bênção à minha mãe e a meu avô. abre. tem a bengala. o André. meu avô e meu fi lho (este que morreu).. Sei que quase ninguém acredita. safado. Meu filho. um gênio. * * * Já tive muitas visões. meio agressivo .) "E como é que você sabe disso?" "Me dá um retrato dele. entrou no Instituto Tecnológico de Aeronáutica em tercei ." "É. André. mulherengo.. daí a pouco. mesmo p orque eu peço a Deus que me faça esquecer o que aconteceu. eu votarei contra ele.A entrada da casa dele era uma beleza! Tinha um Cristo de mármore grande. principalmente agora." "Não aceito. pois tudo está ainda tão rece nte. E se um dia vier qualquer coisa contra o X. "O que é?" "Me faz aqui uma sessãozinha e vê se eu sou mesmo d. porque ele era coronel da Guarda Nacional ". mas não posso negar que tive." E a mãe intervinha: "Mas que chave de cima? Lá não tem nada!". não quero negócio nenhum.. Não é verdade. Meu filho. Pedro 1. e meu avô eram uma só pessoa. muito bo nito. volta com a bengala com o cabo de prata e o cachorro gravado! Ela se espantou: "Mas filho. dinha". quem é que gostava mais do senhor?" "Era meu avô. E le dizia: "Eu sou a reencarnação de Pedro i. Então eu ouço rádio pra esquecer.. você não se incomoda com o passado! O que é tradicional você não se incomoda! Mas eu. porque quem não teve passado não tem presente. Pedro 1! Ele é louco!" "Pois ele mandou dizer que lhe dá 20 mil cruzeiros e manda fazer todos os volantes que você precisar." "O senhor pensa que eu sou de brincadeira. você aperta um lugar que só eu sei." "Me dá a chave. Freitas Nobre vai ser candidato a deputado es tadual. "Olha eu aqui!" E eu pensava: não é possível! E ele: "Pai. adivinhou coisas que eu não compreendo como é que ele poderi a saber. vou te dar as cédulas. Freitas. E ela: "Mas isso é coisa de macumba. Visão já tive com minha mãe. me dá a chave". u ma espada e o fardão da Guarda Nacional. Um dia ele chamou o Freitas Nobre. os volantes da campanha e mais 20 mil cruzeiros. quem é que gosta mais do senhor?". eu olho e digo qual era." Eu mostrava uma fotografia onde estavam os quatro: o dr. se v ocê me fizer uma coisa".. Pedro i. aqui na minha casa! Onde se viu isso?! Eu sou dona da casa e não sabia de nada disso!". mas que e enho certeza. ser ia negar a mim mesmo.. Eu expliquei: "Lá em cima. você fazer uma coisa dessas!". Ele disse: "Pai..". "É claro. Você quer ver como ele sabe? Olhe essa fotografia. Não que eu peça a Deus pra ver. filho?" "A chave lá de cima. eu vou pagar tudo quanto você qu iser. Freitas Nobre era espírita: 'Freitas Nobre. Carlos de Campos e um senhor bonitão de bigode grisalho. ele subiu e." E ele se julgava encarnação de d. deu uma cuspida. me avisou: "Da outra vez. Zé Cabelo não fica zangado. Ele deu u mas pitadas. que me deu um calmante e me aplicou injeções. E eu dormi. tinha o Zé Cabelo. quando abria. venha mais depressa!". Quando abriu o portão. E de um tempo ainda mais antigo. e os l oucos todos atrás. do artigo 30 das disposições transitórias. era um lugar horroroso. um cabelo armado enorme! Ele chamava-se Zé Cabelo. eu cedi meu lugar para Sandr a. eu estava inter nado lá. o Zé Cabelo disse: "Abel Abel Abel."' 'Ah! Sr. que também tem muito boa memória. Tenho comentado com ele coisas passadas. desci como canguru e consegui chegar até a mesa. Apagaram-se as luzes e eu sen ti um calor repentino nas minhas costas. "Pois não!" E dei o cigarro que ele pediu. fazia muito frio. Abel. já trabalhei doze anos a mais do que devia.. "Abel. eu tive sonhos premonitórios que eu contava para meu avô. a gente precisava correr até um portão enorme. Me puseram no Vera Cruz. Tudo isso meu sonho de quando eu tinha oito anos. dizia sempre três vezes: Abel. alto padrão. era preciso saltar em passo de cang uru pela descida abaixo até chegar à mesa. Esse era louco. Eles não davam garfo nem faca. meu Deus?!' E meu anjo protetor chamava-se Maria". E estávamo s em junho. Eles não pensaram que o tempo i a passar e que a moeda iria desvalorizar desse jeito. Quando criança.ro lugar. Um lugar que se cha mava Vera Cruz. Se o Abel Abel Abel não der. eu sonhei outra vez. ninguém pediu. mas escrevi num poema: A mão trêmula é incapaz de ensinar o aprendido. Aqui no asilo só converso com meu companheiro de quarto. Antes de morrer ele foi ficando amarelado." . Foi uma precognição.. não! eu tenho mais cinqüenta centavos da r evolução. pressionando.. eu vou pedir uma coisa. a Sandr a. eles é que n deram em forma de diploma. E eu dizia: 'quem me pôs aqui. A minha protetora. Abel. no tempo do X. Para comer. a primeira vez perdi a vez. virado par a a parede gelada de cimento. A primeira v ez eu sonhei que vivia num lugar onde havia uma grande cruz. Agora. a gente tinha que correr. meu amigo Antônio. Abel. um internato de loucos e bêbados. No dia seguinte. Êpa. Foi o que e u fiz. fez uma macumba na minha casa e dois meses depois eu estava no hospital. Rezo toda noite por elas . correr pulando. A cama era uma espécie de maca. que é 23 anos mais nova do que eu. Esta mulher. Quando tocava a sineta. Um dia. é uma miséria! Ah. e quando abria. E a Maria picava toda a carne pra mim. com aquele rosto. Carneiro Leão. batia. "E u vou me aposentar agora. E tudo isso eu tinha sonhado quando criança. onde recebi uma sopa com duas almôndegas e uma colher. Eu era procurador do Estado. formou-se engenheiro aviador. vendo que eu não tinha conseguido. sozinho. Morreu há dois meses de câncer. a realidade. Minha mulher Lali hoje está vivendo no Palácio Metodista de Campinas. o dr.. Minha situação é esta: um pouco antes de eu me aposentar.. o Vera Cruz era um hospital. depois ficou quieto. No quarto enorme." Então eles ac eitaram: ela. de uma festa no la rgo dos Curros em que dançou o conde Raul de Carapebus. So u um aposentado com 5 mil. é a ssistente técnica de administração. Mas uma alma danada brecou aq uilo: que seja uma quantia x e não uma letra a mais." "O que é?" "Eu queria cinco mil-réis para visitar minha família. parecido com as tuberculosas. as moci nhas que namorei em Campos do Jordão. Na velhice temos o que ensinar. a Maria. Sou herdeiro do barão de Cocais e não tenho um vintém. eu acord ei e disse: "Vô. batia. como uma espécie de promoção. Eu estava tão nervoso que meu avô chamou um médico. de medo que os loucos se ferissem. tinha uma descida com um portão en orme que se batia. ganha de 15 a 20 mil cruzeiros. de tão fino. Me pergu ntou meu nome. Ele tinha me dado o cobertor dele e estava nu. eu agradeço. Se o Abel Abel Abel me der. corre r. me dá um cigarro?" Ele nunca me chamou de Abel uma vez só. com dez camas. e eu estou ganhando 5 mil cruzeiros.. que eu lembro ainda melhor. eu estava deitado ao lado de um homem nortista com uma cabeça colossal. Eu não pedi. com 29 anos! E me deixou aqui sozinho. O cobertor parecia uma toalha. Abel. a São Paulo de sessenta anos atrás. eu cedi meu ordenado para ela. o que será isso? E me virei com medo p ara o lado do Zé Cabelo. E a minha mesa era a última. Abel. já estou aqui há uma semana e ela não apareceu para saber o que aconteceu comigo!" O s ofrimento era grande demais. Mas agora. ronca e respira pela boca. Foi uma precognição. loucos. o dr. Fagundes. Lá havia bêbados. feri um pouco os lábios no portão mas cheguei. E ela chegou lá: "Oh. Quando acor dei. De vez em quando tomo um gole d'água. e senti no ouvido tiuuuuunnn.". sem sonho! Meu filho me ajudou. E sei que ela também estava querendo me abraçar. "Como vai. Um dia antes de eu sair. "E a Sandra?" "A Sandra vai indo mais ou menos. Fui enfant gâté.. parenta do presidente Médici. Coisas que a nossa vã sabedoria não sabe explicar. eu estou curado. seis centas gotas.. Eu tinha retenção de urina e tomava mercúrio corros ivo que uma enfermeira. se você tomar vinte. ele não quis mais. pode até morrer". mas tome só dez gotas. Eu sabia que era um santo mas não sabia qual." E bebi dois copos d'água e em menos de q uinze minutos o efeito se fez sentir. fui ao banheiro e urinei. "Você me pôs aqui ara se ver livre de mim! E eu tentei suicídio. homens que maltratavam as esposas e que elas pu nham lá para se tratar. não. Então ela ficou com pena. só que demorou um pouco mais para eu acordar. ele não deixou e me sarou de minha doença. A bênção". corri para comer e consegui chegar em primeir o lugar. Haviam passado oito horas. umas quinhentas. como vai?" Eu fiquei com uma vontade de dar um abraço.." Eram onze horas. ele também sofria de retenção de urina.". "Mas o senhor sabe que horas são?" "Que horas?" "Sete horas da manhã. Eu. dormi um sono sem sonho. mas não agüentava mais. Depois caí de joelhos e rezei: "Deus quis ! Eu queria me matar. psiquiatra." "Ela tem te tratado bem?" "Tem. quieta. pela primeira vez. e você. Eu não durmo de costas! Quem dorme de costas sonha. Brickman.."Até mais. até mais eu te dou.. E eu vim pra cá em sonho e vi este quartin ho e abri a portinha do armário e vi o retratinho dela pregado. Enquanto isso. Aliás. Mas é só. mais bonita do que nunca! Até o p erfume de violetas que eu gostava tanto ela está usando. podiam pelo menos ter um pouco de consideração. Mas eu fiquei tão desesperado que resolvi me acabar. mas afinal era quase a mesma coisa: tinha pouco espaço e muito doente. agora estou um trap o. e imediatamente depois veio a enfermeira aq ui trocar o seu Antônio: "Mas seu Antônio. Agora voltando à infância: quando eu tinha Oito anos eu vi. em sonho. toxicômanos. Abel?" "Eu vou bem. você vai ver. E o enfermeiro mandou chamá-la imediatamente. nós temos um lugar . perdão pelos suicidas. E eu fiquei embasbacado. nunc a fui de sonhar muito. eu fechei os olhos. profundo. eu dormi Oito horas de um sono só." Eu dei os cinco mil-réis pra ele.. Um homeopata meio alopata meu amigo. eu rec ebi uma carta dele: "Abel Abel Abel. "Porque se ela não estiver tratando você bem. me tirou do Vera Cruz e me pôs no Hospital Psiquiátrico. por favor. onde eu estou agora. E morri. durmo dos três lados para não gastar. agora que eu comecei a dormir. e eu pensava: "Meu Deus do céu. Eu repeti mais tarde a tentativa. Eu sofri tanto com aquilo! Mas bateu cinco horas! E eu corri.. Tomei um remédio ainda mais forte e o resultado foi o mesmo. O nome era pomposo. "Ela não vem aqui. Ela ficou quieta. tá aqui os cinco mil-réis. Durmo com a boca fe chada. E imediatamente acordei: "O que foi? O que foi?". Zé. O diretor era o dr. e depo is se retirou. me tinha receitado. Sabe o que era? Abrigo São Vicente. como é que você foi fazer isso?". Eu sarei da minha r etenção de urina". Ela veio aqui me visitar com nosso filho Abel. Eu pedi perdão a Deus. um lugar lindo chamado Abrigo São. pensando. S e você esperar quinze minutos. m e dizia: "Isso é formidável. Tomei então o vidro inteirinho... Minha mulher esteve aqui: ela tem 72 anos e continua bonita como antes. veja. En fim ela se arrependeu e me disse: "Eu vou levar você para outro lugar". levantei." Veja. ela está mais bonita do que antes.. estou com 74 anos. Esse foi o mila gre... que chegaram ao Brasil em 1900 como imigrantes. uma vaca. Rita. me ajuda! Passei pelo Vera Cruz. Gaiolão de porta aberta. Depois erapó. Então já está tudo pronto na mesa." Eu sou filho único. e tal. você foi. Na nona noite dessa trezena m eu braço despregou-se e minha mãe. ANTÔNIO Nasci em Santa Rita do Passa Quatro em 23 de agosto de 1904. Chega. Dos seus filhos... tudo quentinho quando ela chega na hora ex ata. ainda meu irmão Domingos e finalmente a última. na frente. Apenas essa funda para a hérnia que eu adquiri trab alhando numa época em que fazia demonstração de máquinas de costura Elgin e andava muito a pé. eram de tijolos e muito bem feitas pelos italianos . província de Foggia. Eles só contavam até dez. Foi um trabalho que peguei depois de aposentado. A fazenda de Monte Alegre tinha um mangueirão coletivo. O que eu estou fazendo aqui se eu. eu que falo todas as línguas. verdura.. tempero bem. Um vizinho nosso aconselhou meus pais a fazerem uma trezena para santo Antônio. Nasci com o braço direito pregado no corpo. Nessa fazenda de café davam uma certa parte para os colonos plantarem algo que pud esse servir pra eles e criar um porquinho. e nos quartos dormiam de quatro a cin co pessoas em colchões de palha. Eu não tinha ainda sido batizado. Epó. Itapira. "É claro que sim. pego dois filés. m as sou um homem inteiro ainda.. Bocain.'. por isso que me chamo Antônio. é outra. fui um enfant gâté. manteiga. pai?" Ela trata o genro. quando eu não punha farinha. acende um cigarro. e isso é a única coisa que ela va i fazer. Estava com poucos di as e como nasci numa fazenda em Santa Rita do Passa Quatro. o resto.. deixou-me cair no solo. nunca me bateram. e eu acabo aqui como um traste. com a mão. vai para o ministério e só volta à noite. cinco vieram da Itáli a e quatro nasceram aqui.lá no palácio. onde ela me internou. E você: 'Vai quando quiser. criado por avô. Como ontem. que é bispo metodista. Vemos uma Philco portátil. Voltar pra casa? Não. quer Ouvi r? Kojibamba ipi boca Kemorinê. nunca apanhei na vida. Ituba. o segundo Sabino. cinco. um equívoco! Você brigava muito comigo. inclusive o chinês.. em Monte Alegre. ô raio de cigarro! Frita o filé mignon e v amos comer. Mapó. feijão. Urumbi. queria que eu pusesse farinha. de "pai". As casas não eram de taipa. Eu c o este asilo de gaiolão de ouro.. O médico disse que não podia operar aq uilo porque não sabia o que ia acontecer. de chão batido." "E agora? Agora está tudo acabado. Ce-pó. E eu dizia: 'Um dia eu vou embora!'. o terceiro Franci sco. a var anda e a sala muito grandes.' "Mas isso não era pra ir embora. o quarto Mateus. Lali?" "É. Ela é exata. Cepó. Depois tomamos um licor de cacau. e isso foi o mal. Mas. não é. e com a mão. Então eu faço tudo : arroz. por exemplo. de susto.. Meu filho. vejo o que tem na geladeira: leite. inclusive o russo. Só quando eu chamo meu filho é que eu consigo dormir. bato bem. O fogão era de lenha. eu não tenho mais condições de viver lá... não é minha casa. O mais velho Ângelo.Jepê.. meu pai me levou a Santa Rita consultar um médico. Jepê Boca (na. eu era muito novo e poderia perder o braço . lá no palácio há sempre um lugar à mesa para o senhor. de pois eu. Os italianos não pegaram os háb . aqui. a vida.. filho de Giovanni e Ripalda. um inferno de loucos e alcoólatras. não moro aqui? Minha casa não é esta. se eu comprava Sissi você queria gasosa. Eu quase não sonho. Não entendo por que eu estou aqui há três ano s e meio. Nossa casa tinha. Ussapira. nem nome eu tinha. quatro." Numa certa hora eu perguntei: "Mas por que você foi embora. duas mãos. uma escada de pedra com uns trinta degraus. batatinha. roçando e apanhando café. todos os trabalhadores da fazenda tinham seus porco s lá. Foram trabalhar nas fa zendas de Santa Rita. Eu aprendi tudo isso com meu avô. e depois veio minha irmã Antonieta e Outra irmã Incoronata. Vejo o pão. fugir para quê? Para on de eu vou? SR. inclusive a língua dos índios. Meus pais vieram de Ortanuova. Voltar pra casa? Ela sai de casa às sete e meia. Não conheço mais ninguém.. que me deu uma tristeza!. esse braço não abria.. sabia onde estavam os tesouros e os dava para qu em ficasse com o chapéu dele. baixinho. quando soldado. 32. Minha mãe tinha uma grande frigideira que chamava de sartagine. Outro toque escolhia o sotto: "Temos o patrão e sotto". e não podia reclamar porque jogo é jogo. mas sempre com cordura. mas meu pai era violento nos castigos. Minha mãe era muito inteli gente. Meu pai era forte. no cafezal. a pinga era distribuída ou não. O capataz era um preto bem retinto mas não era um preto mau. foi ótimo corredor. se ele quisesse. ma s ele é que entoava quando os vizinhos vinham em casa para cantar a ladainha de No ssa Senhora. M andavam vir a bebida. tem que dar para os meus ta mbém". a p artir de um certo número. Lembro quando engatinhava com um ano e meio. Era pequeno. Meu pai não era muito religioso. Uma vez puseram fogo num pasto dividido por cercas onde cada um punha sua vaca. palavra que se fala cantando. Chamava-se. (Intervenção de d. grita. só intervinha quan do não tinha mais solução. vai puxando até que me salvou. meu pai era mais tolerante. que era chamado por nós o lup 'unnaro * e que aparecia sexta-feira á meia-noite. minha mãe era mais. Eu tinha medo que o fogo atravessasse o rio e viesse queimar minha casa. Minha mãe dizia: "Você é tão bobo que deixou o saci fugir co mo boné". Ele gostava muito de jogar a tômbola. era castigado entre os com padres todos que jogavam. batiam os c opos um no Outro e bebiam. Por exemplo. mas o saci italiano tem duas pernas. parece-me que quer dizer aquele que salta muros. o jogo. Aí iam cuidar do resto. o "patrão e o sotto. . o patrão e sotto enchiam dois copos. era um termo ital iano que queria dizer que nem uma gota dava praquele. de estatura meã. Às vezes encontravam cobras no meio do cafezal e meu pai matava. eram os caboclos que assimilavam os hábitos dos ita lianos. E se ajustava assim. gorda. O saci brasileiro tem uma perna só. nádegas. tinha seu gado. Minha mãe era um pouco mais alta que meu pai. gritos intensos que todo mundo ouve. (*) Sotio quer dizer o sub. segundo o que eles decidiam. quinze pessoas se reunia. cada um estendia alguns dedos. Geralmente havia sempre um que ficava ali 'urmo. naquele tempo importavam vinho da Itália nas cidades ou bebi a-se cerveja. eu estava sempre à mão. nunca apanhamos dela. Antôfio: "Foi o saci que roubou o boné de seu pai!".) Meu irmão mais velho viu o lobisomem lá em Santa Rita. às vezes. Mais tarde procurei um equivalente no dicionário de português e encontrei "sartã". apesar de ser o fisca l. arteiro. Ele então pontificava e todos respondiam. me distanciei dela e entrei num brejo. contavam e aquele que o toque indicava dizia: "Eu sou o patrão!". e. pelo dialeto que f alávamos em casa. ele nunca al cançou. o baralho e um jogo muito jogado aqui em São P aulo.itos do cabloco. Quando meus irmãos brigavam ele corria atrás deles e alcançava alguns. pelo contrário. Se o patrão negava dar para quem o sotto queria. Estava já sendo tragado pelo brejo quando ela chega com muito cuidado e me dá uma mão e vai puxando. pontudos. que se fixavam nas minhas coxas. Quando havia altercação ele que ia apaziguar. o Sabino. podia beber tudo sem dar satisf ação a ninguém porque ele era o patrão. somavam os dedos e escolhiam um patrão. O patrão podia tomá-la toda. o chefe. O garrafão era dividido em garrafas e o patrão era dono daquilo. mas se movimenta va muito. então chorava. Um dia caminhava com minha irmã Antonieta. Lembro que eu arrastava meu corpo todo no pedregulho. O lobisomem italian o era diferente. scazzamuriddu. não. Ela exigia mais da gente.* O jogo era assim: uma turma de dez. Essas histórias eram contadas antes de dormir. Rosa. bebia t oda a pinga e acabou-se. mas nas fazendas era pinga mesmo. Fiquei tão apavorado que me lembro des se fato como se tivesse acontecido ontem. muito clara. como as bruxas que voavam nos cabos de vassoura. dos alambiques de lá. mulher do sr. Se ele quisesse podia dividir com seus apaniguad os mas precisava da anuência do sotto que era secretário dele. Herdei dele o fato de que toda cobr a que encontrava matava também. Aí então minha mãe me socorria. Um só. o que está abaixo do patráo. O sotto também tinha se us apaniguados: "Se o patrão quer dar bebida praquele. Quando começava o porre. não daria nem para o sotto. À noite orávamos todos em latim. A respeito de meu pai tenho que contar que ele viu o saci. Quem orientava e ordenava era ela. na Abissínia. corria engatinhando sobr e pedregulhos pequenos. Le mbro que ia levar comida pra meu pai e meus irmãos. Aí tinham seus co rtiços e suas baias onde punham ração para os animais." Que quer dizer: tomei um copo d'água. Na Bela Vista. chamado Paulo. Um belo dia meu pai chega lá e encontra um outro dono: o francês tinha vendido o armazém e ido para a França. Meu pai foi lá com o fuzil para matar o francês. Mudamos no mesmo bairro. Falavam todos quase o mesmo dialeto: os bareses. que antigamente se chamava rua do Sol. onde c riávamos galinhas. sempre exagerava. ficou então Bexiga. da região dos meus parentes. na Bela Vista. Assim mesmo minha mãe economizou naquele tempo uma soma importan te: oito contos de réis. lá de Santa Rita. Quando chegavam. Brincávamos no campo do morro dos Ingleses. (*) Lobo onagro. do morro dos Ingleses se avistava toda São Paulo. dizia: Ac cattev un sanduiche. número 14. Uma lembrança triste daquele tempo que eu presenciava com muita amargura: eu via meu pai bater em minha mãe. onde dormíamos todos. Agora são vinte". no fi m da vida dele estava na Casa Odeon. os "cerign olanos". sete horas. ainda existe. Quando houve uma epidemia de varíola. meu pai comprou um armazém de socie dade com um compadre dele. e outra de Noss a Senhora Ripalda. quem era o tesoureiro d a casa era minha mãe mesmo. os 'foggianos". um francês. os "ortanuovenses". Meu pai t inha dificuldade em dizer Santos. Ficamos em São Paulo. que era tér rea. para mim era morte. em 1935. Morreu com 69 anos. Para eles era um prazer extraordinário tomar esse pouco de água fresca. rua Rui Barb osa. Ele brigava geralmente para defender um amigo. lá na Líbia. italianos. O português dos ita lianos era muito deteriorado. para uma casa muito maio . Meu pai foi trabalhar como encaixotador da Casa Leon. quase "aspirei. e porão. para que eles ficassem no escuro e foram todos embora. padroeira da grande província de Fog gia. Quando viemos para São Paulo. Meu pai ganhava por tarefa na lavoura.Outras reuniões eram presididas por meu pai. mais ou menos um terço da população era de negros. mas banho mesmo só tomavam nas vésperas de Natal e Páscoa) e almoçados. Aqui na Bela Vista havia fes tas de italianos: a de Nossa Senhora Aqueropita. então m inha mãe corrigia: 'Outrora ele dizia que eram dez. quando dizia "compra um sanduíche e coma". "Bene. com dois dormitórios. O bairro era muito alto. na rua da Quitanda. O armazém custou dezesseis contos. com 63 anos. dos calabreses. Era essa a des avença entre os dois. Nós viemos para São Paulo em 1910 para voltar para a Itália. 224 Quando ele contava como participou na guerra da Abissínia. na rua Treze de Maio. os carroceiros calabreses se recolhiam às seis. guardavam os animais nas cocheiras. Ele trazia uma lingüiça calabresa fininha na boca. são as bexigas da varíola. um compadre e se mpre era multado. Essa casa. À tarde já estavam limpos (eles se lavavam. com bambu. rua Pereira Barreto. que eram mult adas na fazenda. dependura da. Liam o Fanfuila e comentavam os acontecimentos. Minha mãe não gostava daquilo. mas não entendiam o dialeto dos calabreses. no jogo do baralho. a vizinhança era heterogênea. Esse mais um cumprimentava: "Buona sera!' "Buona sera! Come va?". Minha mãe morreu alguns anos antes. do outro lado um cachimbo de barro longo. rua Fortaleza. Eram muito pequeninos e usavam brinco d e ouro numa orelha só. e tivemos medo que papai e meu irmão mais velho fossem convocados. Tinha quintal. Minha mãe. Meu pai pagava muitas multas por brigas. Se reuniam na frente de casa. ele dizia Sandós."" Cosa haifatto?" "M'aggiofatto una víp eta d 'acqua e sto beníssimo. Aquilo me mortificava. mas estalou a guerra ítalo- turca. vinha outro e conversavam. que ia mastigando. Tira va o cachimbo para responder. n egros. Minha mãe deu os oito contos de réis e meu pai pôde entrar como sócio. Imagine a chegada de mais um compadr e quando os outros já estavam sentados. Ele fa zia os caixotes de fazendas e máquinas para lavoura que iam para o interior. recebeu o nome de Bela Vista. uma ocasião ela pegou o lume e atirou no meio da rua. Era um armazém grande na rua do Seminário e vendia tudo como no interior: desde banana até ferrage ns e vinho. lá por 1902. punham cadeiras na calçada e vi nha um compadre. quem economizava. sorvi ". eram dez anos de trabalho. Traba lhou sempre no mesmo ramo e depois de mudar três ou quatro vezes de emprego. Quer dizer: "faça com que chegue a você um sanduíche". * Isso. não tinha prato raso. por sessenta de fundo. Os meninos brincavam de futebol nas ruas com bola de meia. Meu pai plantava milho no quintal . um mulatão alto que tinha os seus cantores. nabo. A Semana Santa era muito mais observada que hoje. que foi o maior orador sacro no Brasil. em que falavam os oradores daquele tempo. acho que o rito de hoje é muito mais humano. frango. quintal grande. Apesar da carne barata daquele tempo. Ele e o monsenhor Manfredo Leite eram os grandes oradore s. Vale lembrar a situação em que se reproduzem. Havia a p rocissão do Encontro. o arroz era pouco utilizado. não ligam. fazíamos papagaios. Essa festa era feita na Igreja de Nossa Senhora Aqueropita. Sexta-feira era um silêncio que não se ouvia uma voz. é povo reunido em torno do sacrifício da miss a. ganhava-se pouco e não era todo dia que se comia. um divertimento bom também. Pelos bairros passava umfoggiano que vendia dez laranjas por um tostão: Andantino par/ato Freqüentemente é difícil transcrever os pregões segundo a notação musical tradicional. dormirei de madrugada. Nunca mais se viu uma coisa igual àquela. mais achegada ao coração da gente. tinha quinze metros de frente. bem falante. Às três horas também. Entre uma rua e outra havia muita guerra a pedradas. Ainda existe na rua Treze de Maio a igre ja com a imagem da Aqueropita. os "quadrados". fazia uma espécie de biscoito com mel derramado. Não tivemos brinquedos. Antes do dia. passava pelas ruas do centro da cidade. A banda famosa da f esta do Divino era regida pelo maestro Veríssimo Glória. Um argentino elegante. O povo part icipa. Chamava-se em nosso dialeto scartellati . Nos arredores.feira começava um si lêncio. Os calabreses tinham sua festa na Bela Vista. infinitamente repetidos no tempo como uma idéia fixa. Esta de agora é mais pueril. As cerimônias religiosas mudaram muito do meu tempo de menino pra hoje. é palpável. O mais usual era o c aldo de feijão com macarrão e as braciola. Nos matagais fazíamos campinhos. e nas horas que antecederam à morte de Cristo na cruz. E o padre João Gualberto. está de ntro da gente. de roda: Eu fui no Itararé beber água e não achei. já não fazem mais a festa de são Vito Már tir. Vários deles são falados ritmadamente. Nesses dias era a maior fartu ra possível. O outro era mais solene. que tinha procissão. Ettore Fieramosca. Bersaglieri. faze ndo propaganda de cigarros: "Pierrot 64!". A santa era a Ma donna de Ripalda. de barra-manteiga. O Natal e a Páscoa eram comemorados condignamente. frei Luís Santana fazia o sermão das Três Horas da Agonia. Mas quase se esquecia o dia do aniversário de cada um. Dei adeus à morena que no Itararé deixei. e mesmo a métrica musical. que era perto da cidade em que na sceram meus pais. para empinar no morro dos Ingleses. Temas curtos e chamativos.r na rua Conselheiro Ramalho onde vivemos muitos anos. explorando menos a melodi a que as possibilidades do timbre da voz. era uma festa extraor dinária. Pietro Mascagni. se não dormir à noite. a bandeira do Divino per corria as ruas. Apesar da imponência da outra. Meus pais se irmanavam com os "cerignolanos". outra acolá. majestosa. no Bexiga: a de Nossa Senhora Aqueropita. porqu e neles os perfis das melodias tonais (ou modais) misturam-se com as entonações da f ala. os chamados sons musicais são cortados às vezes por um súbito parlato. os calabreses emprestavam a igreja deles. todas essas bandas vinham tocar nas imediações d o Gasômetro. Na minha casa se comia um prato só nas refeições: um prato grande e substancial. o coro do maestro Veríssimo. Já na quinta. tocava uma banda ali. Era macarronada . tinha tudo. mas não tinha a imponência da festa de são Vito. Hoje. Depois tinha também a festa de Cerignola. Lá foi batizada a primeira filha nossa. A festa de são Vito Mártir dos bareses aqui no Brás reunia vinte bandas. Os quitut es para o Natal minha mãe preparava dois ou três dias antes: usava muito mel. sempre cont endo um imprevisto sonoro. Acredite minha gente que uma noite não é nada. Essa rua termina na aveni da Brigadeiro Luís Antônio. Naque le tempo os italianos comiam em prato fundo. de vez em quando. Acho mais imponente a missa em latim. está dentro dela e a Igreja é isso. Brincávamos de pegador. m . deixa-se invadir por uma prosódia muit o livre e incisiva. Nossa casa era perto da avenida. acho extraordinária. feijão com sopa. A festa do Divino era de devoção brasileira e faziam aqui na rua do Glicério. com seus recortes regulares. chinelo. Pass ei do segundo para o terceiro ano e quando fui me matricular. os pregões expõem a mercadoria mas cantam tam bém o mercador. Fiz o curso primário no Grupo Escolar Maria José e no Grupo Escolar Bela Vista. a rua Líbero Badaró. q uando ele passou. e vendia sapato. Eles o . Os automóveis corriam no máximo a quarenta. * Tinha o pai do Salerno. e diziam que virava lobisomem: "Ei. ho je qualquer bairrozinho de São Paulo tem mais habitantes do que a São Paulo que conh eci. (*) Carne enrolada e cozida no molho de tomate. em 1927 e 1928. bebe e lava a cara". que era do filho do conde Penteado. Opregão l eva essa aura: alguém canta. tudo. Conheci São Paulo como uma cidade provinciana. eram automóvei s franceses. o viaduto do Chá e o Santa Ifigênia. Abriram a avenida São João. Depois da feitura do prédio Martinelli é que São Paulo começou a te r ares de cidade importante. com u m animal. e. José Miguel Wisnik jZZ - . ele era um play boy.. Lembro do Zeppelin. sem paradeiro. talvez po r isso. Era confusão com outro menino que tinha o mesmo nome. corria muito. o trabalhador solitário que vaga pela cidade. colega meu do grupo escolar: ________ ba ta taas sa taal tom' ba Ia taas sa ta ai for --no Outro. espi ga cávida!". O filho d o conde atropelava muita gente. ora parecendo alegr es flauteadas. também italiano: 'A tostón o pedaço! Melanzia barata !/ Come. O sorveteiro vinha de longe gritando fininho: "Zzzzzzurz'iete!".n A die . vendia espigas quentes.". * * Cada bairro tinha seus apregoadores. me disseram que eu tinha sido expulso.> a dois cem réis pas téis a dois cem réis pas téis O pipoqueiro mulato tinha vindo da construção da Alta Sorocabana (diziam que levavam os mulatos para lá parque as onças preferiam os mulatos para comer): A tz - O calabrés vendia pimenta: Ó pimenta. eu estava no viaduto do Chá. ora dolorosos lamentos. Era pequeno quando vi a primeira iluminação elétrica. tinha um Fiat só. Um sorveteiro de Foggia gritava: Suri'eta! Suri'eta!". fale diretamente à nossa memória. que era acendedor de lampiões da Companhia de Gás (naquele tempo São Paulo era iluminada a gás).ci u no tos ton' a ran c& O pasteleiro vendia assim dois pastéis quentes por um tostão: 1 f . Vinha um. esse canto de trabalho está longe e perto. cinqüenta quilômetros por hora. O centro da cidade de São Paulo só tinha dois viadutos.as ambulantes em seu contínuo deslocamento pelo espaço das ruas. Tinha um que era sargento da Força. o centro foi se alargando. Diziam até que as italianas estavam esperando ele passar a toda a brida para jogar os filhos delas embaixo do automóvel para ele pagar. ambos de ferro. e apregoava assim: O vassoureiro era célebre em São Paulo com seu pregão em francês que não lembro mais. Dava aula de casaca. O último professor que eu tive no grupo se chamava dr. em italiano.negro e ofereceu um prêmio para quem lembra sse tudo em seguida.. Egalité. Não havia palmatória nem castigos corporais. Fui então para o Grupo da Bela Vista.pa te éééééérO * Outro cantava: A Ires che dei . Eu ia contente . José Salles. mansa. humoradamente operístico" (José Miguel Wisník). Uma vez me deu um livro de prêmio. eclode num guissando ascendente de urna oitax a. Minha primeira professora chamava-se d. na (* Recolhi este pregão: Liberté. Ensinavam be m naquele tempo: frações e decimais davam já no segundo ano. foi d.aceitaram e me expulsaram. daí pra mais. Vassourê! (* *) Esse pregão. Eu fui o único que acertou. lenta e pontuada. que vive ainda. E me deu um prêmio. r quele tempo devia ter uns 25 anos. o castigo era a expulsão. e que sabia dosar a energia. Laudelina. > > pi P0 caa mm (amendoim) tor ra 4.ia sig no ra (*) "A elocução inicial.1 II sa -. m uito enérgica. Fraternité. No segundo ano. Ela disse muito solenemente: "Mui to bem! Dificilmente alguém seria capaz de fazer o que você fez". 1 a . Era uma mulher de porte grande.ran . do oiha pi P0 ca! 4' A Lento 'e. Carolina Ribe iro.ra dol ce man za ne le ti ghe 3 *.cia pe .)' . talvez impressionasse as crianças. Ela e screveu o nome dos planetas no quadro. Cám'ida vem de cauda. baixo e soturno. Era loira. justificando a fama de lobisomem do apregoador. . mas não lembro o nom e. Essas coisas são da época de 1920. não sei. que tinha um leão. Cada vez mais São Paulo cresce: o que era uma célu la. Chegou o professor e meu deu um tapa. um espanhol ao meu lado fez coisa que não devia fazer. Mas também nunca odiei meu pai. O Palestra foi fundado em 1915. Com tudo isso. Ele me impediu que reagisse contra aqueles que queriam bater n ele. Pinheiros era um matagal. Lapa é centro. Lembro perfeitamente o Centenário da Independência de São Paulo. mas não podia fazer nada. Lembro que havïa festas das crianças no Parque Antarctica. que ficou na Cúria. A Pascoela era no Bosque da Saúde. chama- do Cattanio. mataram o Camisa Preta à beira de uma calçada. Epitácio Pessoa era o presidente naquela época. Belenzinho. e pelos traços consigo reconhecer. mui to distante da cidade. de São Paulo e os municipais. um dos maiores oradores sac ros que conheci. portugueses plantando. era frei Luís Santana. Eu tinha ímpetos de impedir que ele fizesse isso. agora é centro. Nunca guardei também raiva de meu pai. Moóca. mas eu não estava presente. Eles convidar am todas as escolas. A rainha era m uito simpática. Foi ele que impediu que eu o defendesse. No tempo anterior à Primeir a Guerra. de rapazes. Cid ade odienta que não trata com benevolência os seus filhos.para a aula. mas guard o mágoa. vai ser um novo bairro. me indispus com uma turba de gente que queria agredi-lo. ou numa esquina da avenida São João. lembro de um cantador que cantav a "A morte do Camisa Preta". Depois a Moóca foi avançando. Eu gostava mesmo é d e minha mãe. depois cônego Viggiani. italiano. Vi a inauguração do Monume nto do Ipiranga. veio o rei da Bélgica e m visita ao Brasil nessa ocasião e formou-se na esplanada do Teatro Municipal um c oro de quatrocentas vozes e cantamos o hino belga. foi um tiro tão certeiro vibrado por um covarde com um revólver traiçoeiro. Brincávamos de barra-manteiga. Os bairros de habitação mais densa eram o Brás. Estudei religião com os padres capuchinhos. depois foi bispo de Botucatu. Artistas famosos eram o palhaço Chicharrão. os Irmãos Queirolo armavam o circo e ficavam anos e anos lá. Entre o centro e Pinheiros havia uma estrada de terra. com lanches. um bispo inteligente. íamos no famoso bonde Bosque. Antes de entrar no Maria José. Se tivessem não estaria assim. Uma ocas ião em que estavam dando a última demão para a nossa primeira comunhão. Fui procurá-lo na Cúria e ele lembrou-se de mim. Foi a primeira ve z que apanhei na minha vida. feito por Ettore Ximenes. Ruggeroni foi um dos fundadores do Palestra Itália. nem tive má intenção com ele por causa disso. ai. o Brás foi se estendendo e formou-se esses gigantes. que me preparou para a primeira comunhão. Não disse nada. Tanto que havia um clube chamado Ruggeroni de onde saíram os primeiros jogadores do Palestra Itália. a turma era só de meninos. fiz uma viagem c om ele em que me empenhei muito por ele. com chácar as na margem. Os passeios eram depois do Natal e da Páscoa. Quem foi que me bateu? Sei que foi um grande padre. . não têm visão nenhuma do futu ro de São Paulo. o Alcebíades . que era um valentão do bas-fonds lá do Rio: No dia catorze de outubro numa rubra madrugada. estive uns dias numa escolinha italian a para fazer traços a tinta. depois me tornei amigo dele. o Viggiani. Nunca odiei meu pai. Mais tarde. prepararam o coro muito antes do rei chegar. Houve depois uma festa naci onal no Ipiranga. nem chorei. a cidade era diferente. Apesar disso não guardei rancor de ninguém. ainda guardo até a mo rte a mágoa dele. Lá no morro dos I ngleses desceu um avião. A Vila Mariana era toda de chácaras de portugueses plantando suas hortaliças. Até Penha é centro. gigantes como Saturno que come seus filhos. mas guardei até hoje. Os legisladores brasileiros. Guardo até a morte a mágoa de frei Luís Sant ana. "La brabançonne". No Circo Pinheiro. Estava em São Paulo quando Santos Dumont fazia as experiências dele. não. o Piolim. apesar dele às vezes agredir minha mãe na nossa frente. No largo do Paiçandu. mais que de meu pai. Me lembro de alguns colegas. Ele era frade do Convento da Imacul ada Conceição na avenida Brigadeiro Luís Antônio. cidade que odeia os paulistanos. um dos aviadores era o Ruggeroni. Uma ocasião ele me b ateu tanto que quase me matou. Eu enco ntro de vez em quando algum. Ai. Trabalhei como ascensorista da Casa Michel. correntes. Ficavam duas meias bolas. Eu era menino. Comecei a fazer bolinhas de ouro que eram cortad as em curva e embutidas dentro de um embutidor. As notícias que vinham do Rio diziam que as pessoas caíam mor tas na rua. Eu comecei a serrar. muito boa gente. achei que estava sendo explorado. Percorria a cavalo esse interior comprando porcos e começou vendendo banha. anéis. Ele foi a semente de tudo isso que São Paulo é agora. A classe alta morava em Higienópolis. Talvez foi o maior trabalhador que o Brasil teve. dotto re. . Dos companheiros de trabalho. foram os primeiros. Conheci Ângelo Vial. A ourivesaria era de bolonheses. Comecei aprender no cobre. limava -se uma parte. os Andreani. napolitano. um padre-nosso e depois a medalha e o crucifixo. As leis brasileiras ficaram as melhores do mundo. quando chegava no escritóri o.. o metal mais pobre. Depois a gente recolhia as li malhas das gavetas dos aprendizes. Esses eram os artistas daquele t empo. lá no largo da Misericórdia. Por falar em Matarazzo posso dar um testemunho. já em 34. Diz o Oddone que o velho gravador N icoli era formidável. Foi ele que fez a grev e de 18. irmão do dono da famosa Conf eitaria Fasoli na rua Direita. C'estl'argentqui fait la guerre. eu conheci só os elétricos. Mas só conheci depois. trabalhava para as lojas. no centro da cidade. era o bonde que se tomava. já via ele. Eram dez ave-marias. Mas o ouro. Em duas horas o artista fazia um anel. soldava. não vendia diretamente. era amigo do Andreon i. A limal ha de cobre não tinha valor. soube que no Rio morreram mais gente que aqui. Ele tinh a uma sabedoria: a retaguarda deve ser sempre bem fornecida. juntavam-se as duas meias bolas e formavam uma bolinha que era a conta de um terço. um artista. metade dos que tiveram a gripe morreram. de onde não pudesse escapar.. Antonino La Mota. Até 1930 os ourives passaram mal. limava-se a outra. Quando se abriu a avenida Paulista. A maioria dos ourives eram italianos. As mulheres da Bela Vista achavam que um filho ourives que fazia medalha s. Vila Buar que. Amatucc i. Arrigo Andreani. Depois fui para a oficina de Antonio Travaglia. Em 1918 caímos todos com a gripe. desenhar uma pequena jóia. Na época eu tinha catorze anos. Pagavam dez tostões por hora. Os Matarazzo moravam lá. remédio que u m farmacêutico muito em voga inventou. Come cei a trabalhar com dez anos. só depois de adquirid a a prática de serrar. A maioria dos bons oficiais ourives eram italianos e f ilhos de italianos. p ara tratar dos outros. Era tecelão. Ainda continua lá. Não era comunista ain da em 18. tinha chácaras de frutas. Hoje o aprendizado de ourivesaria é estatal. no 5E51 ou 5E5C. Por isso desisti. célebre confeitaria. os moleques iam roubar fruta lá. tinha quatro andares. Passava o caminhão recolhendo cadáveres na rua. era uma bênção do céu. e depois que se pilhou com o dinheiro. a embutir. anarquista.Lá moravam os italianos. Conheço também Oddone Carletti. era o prédio mais alto de São Paulo naquele tempo. na rua Quinze de Novembro. Depois é que fui trabalhar como aprendiz de ourives. Nem a Escandinávia. foi o maior trabalhador que o Brasil conheceu. era aprendiz de ourives. Um aprendiz de ourives começava a trabalhar com cobre. descia a avenida Brigadeiro Luís An tônio. O trabalho devia ser feito de tal modo que a limalha resultante disso devia cair dentro de uma gaveta bem fechada. serrava mãe quis. Era muito inteligente. os espanhóis. para se fundir em barrinhas de ouro. lembro um que dizia: Ci ho unfiglio dottore. custava tostão o quilo. ou doi s mil-réis. A loja ganhava cem a duzentos mil-réis. As casas de jóia eram de semitas que pagavam uma miséria para os artistas e ganhavam muito. os irmãos Sandri. Os bondes puxados a burro foram até 1906 . os únicos que não ficaram foram meu pai e minha mãe. O dono da oficina cobrava dez m il-réis por esse anel. tirando do estômago de animais. O Oddone é um monumento. De fato. Oddone é um signore. Campos Elísios. Viemos para São Paulo em 1910. entrava no centro e refazia o círculo. enquanto o artista qu e fez ganhava quatro mil-réis. ele vinha na minha oficina. Ele fazia um cír culo: pela Consolação entrava na avenida Paulista. tem oitenta e tantos anos. esquina da rua da Quitanda. O ourives bolonhês. Depois se estendeu para o Jardim América. No Cemitério do Araçá faziam valas gr andes para enterrar os cadáveres que enrolavam num lençol e cobriam de cal. Depois a situação me lhorou. dizia Napoleão. Em São Paulo a gripe matou mais gente que a guerra de 14 a 18. Tratavam a gripe com ácido benzóico. da oficina. 35. A gripe dizim ou. Para se ir do centro à avenida Paulista. antes da execução da obra. esse prédio. grandes artistas. Mas os operários mesmo eram explorados. dos doze pares de França no tempo de Carlos Magno. Precisava lavar as mãos do pó de ouro que ficava entranhado nas mãos. Mimosa. Só depois d e 32 vieram as leis. Depois da promulgação das leis. eu me irmanava com ele. E eu tinha vergonha de chegar com as mãos sujas. li alguma coisa sobre o marxi smo. Li A vida de Cristo. formado em nada. assinou tudo. Até 30 eu não gostava do Getúlio. Revolução Francesa. O Estado totalitário de Hobbes. E eu dizia sempre: "Nem conheço essa gente". veio até minha c asa para falar comigo. Depois ele formou um do . lá por 25-26 até 38-39. autodida ta. Em 1928 comecei a ler em português: achei extraordinário Alexandre Herculano. achava que tudo nele estava certo. Plínio Salgado recomendava a leit ura de livros. do polonês. 'Mas é com você mesmo. que fez as leis trabalhistas. Declamavam cert os trechos transmitidos de pai para filho. a Álvares Penteado.metal. explorado pelo judaísmo internacional. O Basileu desconfi ou: "Não é com você?". quando começou a gu erra. Não era cópia. E qualquer coisa. Lá no Bexiga se reuniam pessoas para declamar a Divina c omédia. que meus irmãos também leram em casa. nunca tive os 25 mil-réis por mês que ele teria d e cobrar. me interessei enfim pela evolução dos tempos até no ssos dias. fazendo de conta que não conhecia aquela gente. na Ação Integralista Brasileira fundada por ele. Nunca li uma tradução melhor desse romance . O Washington Luís era burrão. eu estava na esquina. Muit o agressivo. Havia uns livreiros. Depois fui pa ra a escola do Basileu. As peças de Pirandello foram levadas aqui em São Paulo em italiano. talvez um dos homens mais inteligentes da época. quando o Lindolfo Collor leu durante uma hora e meia as leis trabalhistas. Eu nem olhava e ia caminhando depressa com o Basileu. Como naq uele dia eu vestia uma calça branca. era superior ao nazismo e ao fascismo.. Não gostava da profissão. era atrasado: "A questão social se resolve a patas de cavalo". Lia-se muito no Brasil Gabriele D'Annunzio. Por ter um cunho nac ionalista. emprestava de alguém. da auto ria de Leopoldo Fróes. Nã é mesmo?" Fiquei pouco tempo na escola dele. tinha um sentido muito mais alto. que era médico e o maior ator da época. Comprava-se esses livros na Libreria Italiana da rua Xavier de Toledo. Giovanni Papini. Estávamos em 1925 e eu nunca tinha dinheiro. Todo ano vinha uma companhia italiana. Li a História universal de Cesare Cantii em português. que e ra homem de uma elegância extrema. são netos só no nome. Tirando Júlio Prestes. eu reneguei meus amigos. católico! católico!". que não era usual naquele tempo. só quatro ou cinco. mas longe deles. Contava a história de Rinaldo de Montalbano. As leis só vieram depois de 30. E eles: "Ôi. que começaram a editar livros em português. Lindolf o Collor. Ganhava oito mil-réis por dia. Acho até ho je que o integralismo de Plínio Salgado. ministro do Getúlio. a única esperança era Getúlio. Por causa do integralismo comecei a me interessar pelos enciclopedistas. de Rolando. Hoje não seria possível. Li quase todos os l ivros do Papini. E as de D'Annunz io. Eu já era meio-oficial ourive s. fazia pequenos consertos. os netos daqueles italianos. diziam: Ti mando ria. Mesmo os italianos analfabetos conheciam a Divina comédia.. A questão é que não se trabalhava dez horas por dia. Nós éramos pobres e eu não queria mostrar minha casa nem meus a migos ao Basileu Garcia. aquilo era de tradição. de Plínio Salgado. Era um homem muito inteligente. eles começaram a gritar e a me chamar: "Ôi. O Getúlio era um homem bom. que importava da Itália. os Fittipaldi. quando acordou. O primeiro livro que li foi Ipaladi ni di Francia. não chegava a 200 mil. Na juve ntude li em italiano Quo vadis. A gen te ganhava oitocentos réis por hora. Minhas primeiras leituras foram em italiano. mas. mas eu não podia conciliar o horário de ou rives com a escola. lei nenhuma garantia or denado fixo no fim do mês. Camilo Castelo Branco. Quando ele veio. era poeta. e não dava tempo. mas minha * * * Fiz a Escola de Comércio. Existia em São Paulo o grupo Le Muse It aliche que discutia arte. no Manifesto de Outubro. Minhas posses eram muito pequenas: tirava da biblioteca. dizia sem rebuços o que devia. é que fez com que eu entrasse. o Getúlio dormiu. editada po r eles. não sabe m un ca di italiano ["um agá de italiano"]. Foi um farmacêutico gaúcho. Mas em 32 eu já era a favor. Quando ele percebeu que eu não podia pagar. Naquele tempo se cantava muito na rua uma canção de Beniamino Gigli. mas se não tinha serviço. Jorge Cha teaubriand me disse que. sorve teiro! sorveteiro!". era tudo. É como trat ar com advogados: eles têm a palavra doce.. mas não davam nem cento nem cinquanta. contratavam a gente. Hoje. mas se transformava no palco.dramático.se de São Paulo. que coisa fantástica! Dos atores brasileiros Procópio foi o mais famoso. Dos italianos. mas era gostoso tratar com eles. ele tinha uma confiança enorme em mim. em que Clara delia Guardia. depois da guerra acende e bruxuleia o entusiasmo. no Scala. sendo os outros todos secundários. A inimiga. hoje demolido. e o som batia contra a parede e voltava muito mais forte. Continuei no Lírico a dar espetáculos por volta de 1938. A última foi iVa bucodonosor de Verdi. só ele. lembro que s e cantava o canto dos escravos judeus: Va pensiero suil 'a/e dorate Va ti posa sui cliii. não como ator em particular. um sapateiro lá do Bexiga. Vei o a São Paulo duas vezes. Depois foi se apagando. Manuel foi atr opelado por um jipe do Exército. Fiz o papel de milionário. quando ele está sofrendo e lago pisa em cima dele e diz: 'Ecco ii leone!". fazia o Otelo mais elegante qu e se viu no palco.s melhores conjuntos do mundo com o ator português Chaby Pinheiro. dá chance para todos os atores sobressair. Eu trabalhei também em Deus lhe p ague. No Teatro São Paulo. mas depois te roubam até as ca lças. Ele chamava um café: 'Dammí un caffé". Mad ame Butterfly. Os italianos eram os maiores caloteiros. representei uma ópera de Puccini. gostava muito de repre sentar. Representavam a s peças de Ibsen. Uma ocasião. Manuel Alves da Silva. em todas as temporadas líricas servia cervej a. o papel que mais sobressai na peça. como espetáculo. Não gan hava nada por aquilo. Shakespeare. hoje está muito atrasad o. quando ele saía para o exterior. Representa va Ibsen. Roberto Carlos. Até uns 25 anos atrás houve um forte interesse popular por ópera em São Paulo. em 1924 e 1926. Eu me afastei. Eu era o secretário do Grupo Coral Lírico e todos tinha m que falar comigo para contratar tanto o coro masculino. e eu fiz o papel de bispo. aqui na rua da Glória. grande atriz italiana. eu é que fazia todos os contratos para ele. muito abaixo de seu nível econômico. Os it alianos eram pródigos em oferecer: "Quanto?". si bel/a e perduta! Arpa d'or dei fatidici lati. estava em São Paulo. Foram contratados pela prefeitura e fize ram parte do corpo estável do Municipal. Eram caloteiros. Uma noite. No Oteilo. Seu Cicillo. La bohême de Pucc ini estava sendo representada. Hoje ele é o maior cantor brasileiro.. se ouvia até na geral do Municipal que era um teatro sem acústica. qua se ninguém mais vai. Pirandeilo é mais difíciL não há chance para um ator representar Pirandello. como o feminino. o coral lírico e o coral sinfônic o. com a Companhia Sousa Ferraz. Sempre que vinham companhia s aqui. no nosso tempo de Teatro Mun icipal. Shakespea re dava ocasião para que o ator mostrasse toda sua capacidade: nunca houve um ator mais perfeito que ele. Eu trabalhei em todas as óperas. Era tão bom ator e tenor que substituía Aureliano Pértili. nessa ocasião ele dava aquele suspiro. Havia o balé. Eu não c ulpo tanto a televisão. Tinha uns quarenta anos quando deixei o teatro.. mesmo os maestros era eu qu e contratava. quando muito seria nosso engraxate. Já tinha até as bochechas caídas. é o povo mesmo. no Teatro Santana. eu era filo. Até hoje não se sabe quem o matou. Morreu atropelado. noutra peça aqui e assim Clara delia Guardia despediu. ela fez La nemica.. Ele dava um suspiro. até 84 anos. Shakespeare. Ah mia patria. se apagando o entusiasmo de São Paulo por música. Ela reuniu os filodramáticos numa peça ali. Uma ocasião. refrigerantes no bar do teatro só para ter uma ocasião de assistir as óperas. lembro de Ermete Zaccone. Era secretário de um grande teno r português. adocicada. A primeira vez que veio tinha 7-i anos. "Cinquanta mil-réis un giorno? La notte?" "Ma come! Cosa gli date? iVon sua niente!" "Le dó cento!" Eles prometiam só. mas meus amigos c ontinuaram e se tornaram profissionais. Cheguei a assistir vinte vezes a mesma ópera. mas ganhava o prazer de estar lá. A cultura musical naquele tempo era muito mais elevada que hoje. quis dar para o público paulistano uma representação em cada teatro de ba irro. Já tinha filhos crescidos nessa época. não podia ser outro o nome. antes de ir para a Itália. E Zaccone então. sui colli. E um autor cômico. cantava o tenor Cavaliere Ufficiale Avvocato Giac . Em tudo. entrávamos como figurantes. sinal d e que o governo era hostilizado. dificilmente se encontraria pessoa melhor. Foi apanhado pelo Isidoro Dias Lopes. vivo. Quando me tornei corista. Elvira Galeazzo. São Paulo é que mantinha o poder. Alguns marinheiros do Minas Gerais vieram para apoia r o governo federal e foram massacrados. Notei qu e estavam tensos. Adelina Agostineili. Mas a ópera mais difícil. Fiquei como assistente do circo de touros. a gente gostava. era um dos melhores advogados do Brasil . amor" que é um dó fina l que o tenor tem que dar. está no Rio. . os filhos dos índios. Mefistófeles do Boito. Foi assentado um canhão 75 no morro dos Ingleses. Lembro de João Alberto Lins de Barros. muito resoluto governou só sob estado de sítio. onde está a Light hoje. Eu. Estava cantando o primeiro ato. particularmente. D'Alessio Filippo. Abriu uma escola de canto no Municipal. para eles música é matemática. Nesse ins tante o sapateiro apurou o ouvido e disse: "O tenor está desafinado. Atribuiu-se estas cartas a Artur Ber nardes para Epitácio Pessoa. Os ensaios eram feitos no conservatório da a venida São João. O maior baixo era brasileiro. os barítonos Iza l e Federici." Os alemães estudaram a vida inteira. Ele contava com o pessoal da Força Pública de São Paulo e os tenentes de 22. acompanhando os bailad os. Quando não trabalháva mos como comparsas íamos bater palmas nas gerais com a claque. como comparsas: no Guarani tem uma festa da tribo d os aimorés e nós entrávamos como pirralhos. Ele resistiu até morrer como presidente. tremendo. esse canhão e ra visado pela Força Federal. era só para entretenimento. Era a melhor Carmen do mundo com o contralto Elvir a Besanzoni. ele tinha voz extraordinária. Ia como claque. o teatro de melhor acústica que havia em São Paulo. por isso ele queria depor Artur Bernardes. gostava mais da Aida . com bons artistas. Mário Pinheiro. uma nota acima. loca- lizado onde está a Light hoje. e a soprano tem que dar o ré. no M unicipal fiquei de figurante. fugiram pela Sorocabana. Eu já tinha uns dezenove anos e toda noite ia ao Conservatório. Sacrificou a carreira dele. que era também compositor." "Quante note?" "Tre. qualquer um entrava. Carlos de Campos era um home m boníssimo. Mas o povo nunca se interessou. eles puniriam os seus subordinados mas os soldados não saquearam. Não pagavam nada. para saber o que estava acontecendo . Dois anos antes tinham se revoltado os moços de Copacabana por causa de umas carta s apócrifas em que o Exército era achincalhado." Desci as escadas do Municipal. Os revoltosos não saquearam. ambos demolidos já há muito tempo. são 84 degraus. aí o general Sócrates e o general Potiguara. Dep ois dele era o Colombo. lá do Brás. Os chefes eram taxativos. Assim. Deram uns tiros lá do forte. "Você entende de música? Três notas acima? Você não entende nada disso. em 22. Que ouvido tremendo o de seu Cicillo! Desde menino eu freqüentava a ópera: ia ao Teatro São José. o brigadeiro Eduard o Gomes.omo Lauri Volpi. quando o tenor deu a última nota eles ficaram satisfei tos. no dueto que vem depois de Mi chiamo Mimí e que termina com 'amor. dentro do teatro. Está três notas a cima". Com grandes artistas: o te nor Bergamaschi. O dr. de Verdi. quatro ou cinco alemães que estavam descansando. Eu morava no Bexiga. o presidente de São Paulo era Carlos de Campos. depois tiveram que se render. Um dos moços de Copacabana está vivo. que estudou na Itália e cantou. no Scala. ou como comparsa no palco. companhias oficiais no Municipal ou as d e segunda ordem no Teatro São José. O povo aplaudia mas também vaia va. pressionando os ad versários. assisti de graça. Um dos maestros. stonato. lá em cima na geral. deram um suspiro de alívio. Os rebel des um belo dia. Isidoro era um militar gaúcho. Naquele tempo não tin ha restrições. Olga Simz. Di Lorenzo foi vaiado em São Paulo. q ue perdeu um braço. Ia com meus amigo s. Em 1918-19 já assistia. Na Carmen. Segundo Otto Maria Carpeaux as duas melhores óperas do mundo são Tristão e Isolda de Wagner e Otelio de Verdi. O trabalho cessou e foram abertos os ar mazéns de todo São Paulo. Levou duas óperas: A bela adormecida e O caso singular. perô bêlo. "si. Ii tro vatore de Verdi. Embaixo ficava o coro. Também houve época da ópera francesa. atiraram ovos podres nele. Perguntei: "Stonato ii tenor?". a melhor do mundo é o Otelio. una terza. perguntaram a ele qual a personalidade mais importa nte que ele tinha na coluna. quando soubemos que a polícia tinha pego o Meneghetti. além de ser uma inteligência fulgurante. usava óculos. Estávamos numa festa. as eleições se faziam de véspera. Eu tinha feito um soneto que tinha suplantado todos os poetas locais. Trim trim. alguns tenentes de 22. Em 22 os modernistas foram vaiados. Ele foi o cabeça de 22 e era muito mais inteligente que os Outros. ele me perguntou: "Você tem publicação?". Em 1924 ou 1926. alto. Ficamos emocionados. estávamos numa festa na rua Jaceguai. não havia oposição ao governo federal. Isso foi em 1927. c omeçou a entrar gente boa na Câmara. mas ele me procurou e me franqueou os cursos. Uma vez. Cinqüenta contos? Esse é um patife! Os ricos usam jóias fal sas também. Muita gente não apoiou 32. a s balas vinham perdidas quando estávamos na rua jogando vinte-e-um. eu não podia pagar. O telhado furou e ele caiu no piso. Para fugir pulava de casa em casa. E eu escutei música com ele. se entregou. homem capaz. Ele estava tuberculoso. Ele achou interessante e me deu nota boa. que começou em 26 com o conselheiro Antônio Prado. num baile. A mensalidade da escola era 25 mil-réis. Mas pararam em Cruzeiro. Se o dono da casa tinha ido dar parte à polícia e dizia que as jóias roubadas valia m cinqüenta contos. Mário de Andrade era amulatado. E a polícia atirava contr a ele e avançava. não podia apoiar nenhum movimento separatista . de cansaço. mas só locais. não era. a bico-de-pena. três contos.Em São Paulo havia oposições. reduzindo o soneto a pó de traque. Eu estive em Itapetininga. Prestes era o comandante. Quando eu fui apresentado a ele. Sabe que eu conheci o Mário de Andrade? O Mário de Andrade eu conheci depois. "Tenho. por exemplo. Era reda tor do Correio Paulistano e estava ligado ao PRP. A Coluna era de remanescentes dos revol ucionários de 24. Quando apareceu Júlio Prestes. Eu fui enganado". entrevistado po r um jornal aqui de São Paulo. Ele sempre desafiou a polícia. Uma noite. Carlos Prestes fez a maior marcha da América do Sul. é . Meu professor. "Pois então escreva e pode me esculhambar. a rapaziada. ladrão internacional. Um dia ouvimos umas romanças num gramofone. ele. Júlio Prestes era um grande nacionalista. Luís Carlos Prestes era de porte meão. Era Gino Aml eto Meneghetti. . porque está vivo ainda. Dava impressão de um homem pacato que. Na Revolução de 24 eu era mocinho. os po bres. com a Coluna Prestes de comandados dele. eu tinha 23 anos. prestando serviço . Nunca mais escr evi poesia. e o Mário ficava separado num can to. Morreu com 93 anos. Plínio era homem sem diploma nenhum. pegariam o Getúlio com a s calças na mão. que não se encontra no mundo pessoa melhor". na rua A bolição. Quando roubava uma casa rica. Meneghetti desmentia: "São jóias falsas. Mário de Andrade e Plínio Salgado foram os vultos proeminentes de 22. em Ita raré." Ele leu e disse: "É uma droga'. Eram chapas únicas. de uma b ondade. Basileu Garcia. Eram sei scentos policiais. Só havia RP [Partido Republicano Paulistal. quando voltava do trabalho. no dia seguinte escrevia para o jornal contando o que tinha feit o." "Deixa eu ver. E ra do Partido Democrático. Não apoiava. Ele foi um sujeito canalha. me lo uvava por isso. no Itararé. Nessa época eu frequentava uma escola de comérci o e escrevia composições ao modo da nova ordem. Chamava-se Gino Amleto Meneghetti : o ladrão mais simpático do mundo. Ele tinha uma coleção extraordinária de discos. E para fugir da polícia ele tinha pulado a j anela da casa dele. um senhor que estava sentado na porta da casa dele nos disse: "Vocês querem ouvir? Entrem ali". como se ele fosse um trabalhador que voltasse cansado do serviço. eu o conheci num automóvel. da Casa Sloper. A primeira vez que eu votei foi em Júlio Prestes. o Ciryllo Junior. Barra Funda". então. Me lembro de uma redação que começava assim: "Rua Direita. a mais de trinta metros e tinha caído em cima do telhado de um a casa na rua Jacareí. Mais ou menos por essa época o Plínio Salgado fez o Movimento de 22. Com o produto das jóias ele auxiliava uma família. Ele já era famoso. Mas se eles chegassem até o Rio. Nós entramos. mas fui. depois de 1924. Quando mu ito valem dois. quase em frente à rua São Domingos. Isso foi na Bela Vista. Então ele disse: "O tenente Siqueira Campos (aquele q ue morreu num avião). é de uma modéstia. Era funcionário e fui mobilizado." E ele escreveu mesmo. tomava seu banho e ficava sentado na porta de casa ouvindo música. de vez em quando havia tiroteios da artilharia. no baralho. dava de mam ar pros dois filhos. Carvalho Franco me ensinou como se faz com um cadáver. A coragem ela mostrava todo dia. com tal denodo para enfrentar a vida. tinha certeza de vencer. Veio num carrinho. cria va bicho-da-seda. Se não fosse o casament o talvez minha vida tivesse tomado um mau tempo. lavava a casa. sabendo-se no Rio que havia qualquer coisa no Rio Grande. Teve duas vezes gêmeos. foi Deus que fez com que eu a conhecesse para que eu tivesse um futuro diferente do que teria sem ela. mandou um delegado na pessoa de Góis Monteiro. Vivia na boemia. def ecava pedaços de fígado. fazia o "esfregaço" e examinava ao microscópio. ele se tornou comunista. plantava orquídeas. Peguei o Laffo nt. Era muito amigo nosso. Plínio. Carvalho Franco. dívidas. a meditação. voltou na frente das tropas revolucionárias que depuseram Washington Luís. Aprendi tudo trabalhan do e lendo livros franceses. de ir pra frente. E eu tive que passar a noite com o morto . ela tinha uma função muito mais elevada. Para o comando contra o Prestes foi designado o tenente-coronel Góis Monteiro. até coragem física. Em Salto Grande. Não gosto de grandes esforços apesar de ter sido obrigado a fazer. voltavam para o Brasil às escondidas. é criar uma vida menos aflitiva para esses filhos. . Pou cas mulheres há no mundo que fizessem tal sacrifício. Não preciso destacar este ou aquele fato demonstrando isso. então. em todos os sentidos. Na Revolução de 30. mas lia. duas e meia e levantava às seis horas. Primeiro fechar os olhos. enquanto foi examinado. Era coragem. que com esse dinheiro foi até a Rússia e lá. Meus filhos: Yolanda. Depois dessa luta entre um e outro o Pr estes dissolveu a Coluna. diurna. eu lastimava que isso acontecesse. dizem. Parece que deram 2 mil contos para ele e com esse dinheiro. Esse Góis Monteiro foi mandado pelo Washington Luís no Rio Grande. Prestes foi convidado pelas autoridades gaúchas para comandar a re volução. Alguns foram para Buenos Aires. porque sou um tanto boêmio e estava sendo levado para o lado mau da vida. noturna. E uma coragem extraordinária. Flávio. Ela é muito corajosa. Uma vez chegou a Salto Grande um homem atacado de malária. fazia almoço. vacinava. O maior valor do homem é fazer com que os filhos e a sua mulher tenham uma vida muito superior à dele. morreu. Ele. e aprendi francês lendo lá. Era muito boa pessoa. não tinha empregadas. uma coragem exposta a todos os riscos. prefiro o sossego. fazia com perfeição. meu chefe e meu padrinho de casamento. Minha mulher fez com que eu me modificasse completamente. em p etição de miséria. conheci minha mulher e nos casamos. Pedro e Paulo. Então. alguns para outros cen tros sul-americanos. Esporadicamente. Para criar meus filhos. E mandou às favas a Revolução de 30 que depois veio. O padre veio nos casar na casa de uma irmã dela. nunca tive medo do futuro. mas não morria." Prestes ainda não tinha se tornado comunista. Eu tinha confiança. esticar as pernas. e o trabalho dela era superior ao meu. Acabou chefe do Serviço da Malária. André. E tivemos percalços na vida. o fígado ficava em frangalhos. Lúcia. em tudo qu e se metia. chefiada pelo general Góis Monteir o. cruzar as mãos. Fiquei em São Paulo até 1926. depois andei pelo interior como funcionário do Serviço San itário. Nós o pusemos em uma mesa de exame e. mais que eu. depois de um ano de namoro. qu ando voltou. Era difícil di ferenciar a febre amarela silvestre da malária: os estrangeiros (poloneses) morriam todos. Era mansa. Mas a heroína m aior foi ela: eu tinha uma função material. Précis de laboratoire. Meu casamento foi o fato mais importante de minha vida. Pelo exame de sangue. Eu sabia um tiquinho assim. eu não pensava em casar. Ia deitar às duas. O nosso caipira continuava a viver e o fígado se recompunha depois. Cercou o sítio com as suas mãos. fiquei mestf e na arte. e Góis Monteiro. Carvalh o Franco me ensinou a fisiologia do corpo humano e até hipnotismo. acumulei empregos. Eu tinha coragem também. para que o governo ficasse sabe dor do que havia. Era guarda sanitário. o caipira continuava a trabalhar." E assim ele foi numerando o mérito de cada um até que perguntaram: "E o mais covarde dos seus?" "Capitão Juarez Távora."E o mais valente de seus oficiais?" "O mais valente mesmo é João Alberto Lins de Barros. O dinheiro não tem valor nenhum. durante anos dormia de três a quatro ho ras por dia. eu não pos so afirmar. Em Salto Grande conheci o dr. João. Carlos. em 4 de dezembro de 1930. Aí o dr. Terminados o s exames ia para a cidade onde fazia requerimentos de pessoas que entrassem com pedidos às repartições públicas. Levava um pequeno lanche que tomava depois do serviço no Clemente Ferreira. sobre o conceito de liberdade. de class e média. trazid o de casa. que orientou eles todos. me perguntou o capitão Ribeiro. Fui despejado e tive que comprar uma casa. os comunistas mataram Nicola Rosicca. um dia triste. o papel maior. (Interferência de d. Quando não trabalhava à noite estava em contato com eles. Nun ca tive rádio. Eu e o capitão Ribeiro fomos designados para matar esse homem. eu fiz um jantar bom. roupas para as crianças. Todo mundo se pôs a trabalhar. Os filhos estudavam. Saí de lá porque o serviço era muito perigoso. Aí chegou o pai. falei para as crianças: "Seu pai mandou dizer que vai trazer um duque para jantar conosco". cansado. quase não estava em casa. foi o de minha mulher. Aos sábados e domingos trabalhava no Jockey Club para ganhar uma pequena diária como suplente de vendedor de pules. não?! Depois que a mulher falou ele diz "sim". de tuberculose. Rosa: Às vezes o Antônio chegava do trabalho meio baratinado. Eu sabia atirar de revólver. O núcleo integralista não era muito forte aq . Quando ele percebeu. o ho mem não pode se dizer que seja o rei. jantava às pressas e ia ser cacifeiro do Cisplatino. mas a formação deles todos é mais dela do que minha. bondoso e grato que ele seja ao mundo. e todos tinham que repetir. mei o zangado.) Quando eu chegava do trabalho. O núcleo comunista de Sorocaba era forte. Então. Eu sempre precisava de duzentos réis para pag ar um tostão. "E você. aqui em São Paulo nada é fácil de adquirir sem dinheiro sonante. De noite perguntaram: "Ond e está o duque?".A criação de meus filhos. consegui o dinheiro necessário para comprar a casa em que moro até h oje desde 1948. Quem matou esse Rosicca foi um médico. O Cisplatino é um clube aqui do bairro. quase. prepondera nte. morávamos em casa alugada. o primeiro discurso integralista qu em fez fui eu." O nome do médico era Jerônimo de Cunto Netto. eu não podia pagar o aumento. apostas. o autor do segundo discurso integralista. Ele sempre tem a última palavra. Depois. Lá se começa a jogar às quatro horas da tarde e à noite. Foram buscar umas flores para enfeitar a mesa. O primeiro discurso do Dopolar'oro. falaram com o pai e me deram. Depois voltava para casa. que é oficial. quando eles eram pequenos. De uma calça minha ela fazia um tailleur pra ela. há quase trinta anos. Nós o fomos seguindo até a rua Apa. Um dia que estava chovendo. não. ávido por saber as coisas. a casa ficou um brinco. vivia em Bauru. Fiquei lá quatro anos. Mas não at irei. em Bauru. Chamava-se Piloto aqu ele rádio. por que não ati rou? Você. A vida sempre foi muito sacrificada. quando foi o dia da estréia do rádio usado foi uma alegria lá em casa. "Por que você não atirou?". Se o salário era escasso fora. o aluguel de uma casa. Ai daquele homem que pensar que é dono da casa! Quem manda mesmo na casa é a mulher. Foi em Sorocaba. o Flávio comandava a trupe lá de casa a dar um viva p ara mim: "Viva o Zê Papi Papí!". depois ia diretamente para a Clínica Infantil do Ipiranga. durante as corrid as. Eu precisava me multi plicar para fazer frente às despesas. em 1934. O Flávio e os outros meninos daqui de casa iam ouvir rádio na casa dos vizinhos. uma vez tive seis empregos para fazer frente à situação. das nove às duas da madrugada. Eu trabalhava sábado e domingo. Tomaram banho di reitinho. ele vinha triste. ela é soberana. em casa podia contaminar meus filhos. era 250 mil-réis. Quem me deu o primeiro rádio foram duas moças que iam comprar um rádio no vo e sabendo que eu não tinha. dentro de casa eu tinha uma retaguarda com minha mulher. federais e estaduais. Isso foi facilitado pelo proce sso de despejo. puseram a melhor roupa. Me inscrevi no Instituto de Previdência para adquirir uma casa. dentro de nossa possibil idade. onde tive amigos e companheiros de jogo de bocce e do carteado. Monsenhor Cangro achou formidável. O número de filhos era grande. Por mais inteligente. não quis atirar. O Flávio era sequioso por ouvir notícias. dava entrada e cuidava do process amento desses requerimentos até a solução. trabalhava no Jockey. aqui em casa. quase. se encostou na porta e fez um gesto para pedir misericórdia. Nem eu. foi à minha revelia. Eu fui designado para matar o assassino. Fui ourives. Mas meus filho s cresceram fortes. Depois aumentou para 350 mil-réis. analista de laboratório e uma vez substituí o médico diretor de análises do Instituto Clemente Ferreira. sim. largo São Francisco. esse pequeno diálogo entre ele e os comunistas foi o bastante. No triângulo. aconteceu um epi sódi interessante. Luís da Câmara Cascudo.. chefiada por um médico. Eles queriam impedir. eles foram buscar cami nhões e caminhões de seus adeptos na fábrica Votorantim e outros locais. era minha mulher que dizia: "Vamos!" e me ind icava que nós devíamos seguir o líder. cortou caminho e do largo São Francisco passou à Benjamim Constant até a praça da Sé. O dr. escolheriam o governo. Eu não fui. que era do Politburo. que Reale falasse. Não se falou mais nada. Na ocasião. Álvaro de Faria. Estudava-se. 10 de novembro de 1937: 'Netta. senão aceitar. Na praça estavam os comunistas. Eu não dei. Conheci o dr. Da rcv. Um acontecimento que eu não esqueço foi o da noite na praça da Sé. antes da tenta tiva contra o governo. Mas o Ribeiro. Propunha-se a representação pelas classe s. Em Ribeirão Preto. o integralismo acabou". Governa quem trabalha. Prestei atenção quand o me chamaram: "Antônio!". os comunistas já estavam escondidos com metralh adoras e teriam matado de quinhentas a mil pessoas. eu era muito amigo dele. Eu não tive outro remédio. ao chegar à Consolação. vivo ou morto. Viemos de madrugada. Gustavo Barroso. matar o Getúlio com uma metralhadora. um salão muito grande. quis. a Província e a U nião. Eu olhei. Tudo era legião. vocês têm medo o fulgor dos meus olhos?". Quem homiziou o Plínio . Dito e feito. E disse à minha mulher no dia do golpe do Estado Novo . Os integralistas mais cultos eram: Plínio Salgado. que gritou: "Não me mate!". A conferência dele aí terminou e acabou. Por doze vezes fui acusado pelo Part ido Constitucionalista. O Dutra fuzilou 38 integralistas que já se haviam rendido. E também o Armando Pannunzio. antes de 37. com alguns oficiais do Exército. Afinal então ele decidiu ir em meio aos comunistas para falar com e les. O Pannunzio. Eu me arrastei com a barriga no chão. ia descendo as escadas sozinho. não tinha apoio monetário da Itália. Quinze de Novembro e Sé. com altos gritos e ameaças. rua de São Bento. o melhor sapateiro. em 35. Os sindicatos de um município mandariam seus melhores representantes: o melhor barbeiro. o Willem Krüken e eu. E fomos. Miguel Reale. agitando ba ndeiras brancas. um dos homens mais inteligentes que conheci. Stella era o chefe de São Paulo . Eles abriram alas e ele chegou no meio e falou: "Por que vocês não querem que eu fale? Vocês têm medo da minha inteligência. E nisso ele se apressou. Os sindicatos mandariam os seus representantes para a Comuna. Belmiro deu uma rajada embaixo da cama. Eu não prestei atenção quando ele decidiu fazer isso. o João do Norte. Nós estávamos reunidos em nossa sede. Encontraram d. que foi uma das mais importantes personalidades do integralismo. Mas o Armando Salles viu a minha ficha e não me demitiu. Mas o Plín io não tinha envergadura varonil. que comandava a Segunda legião. Aí. o Getúlio queria a cabeça do Plínio. Era uma grande parada integralista. era um intelectual. Eu tinha 39 células comunistas fic hadas por mim em 1935. Em 3 uma ala do integralismo. O itinerário devia ser: Brigadeiro. O automóvel era um Buick grande. Cada uma valia vinte co ntos. Parece-me que Armando Salles era conivente. A Ação Integral ista promovia estudos sociais. Eu desliguei-me porque a situação me perseguia. Foi em outubro de 33. era forte. nenhum a acompanhá-lo. grande orador. porque um dos maiores centros comunistas do país era Sorocaba. A conferência seria irradiada co m alto-falantes para a praça. E também o Montesano. muito bom sujeit o. ele pensou que ia ser ministro da Educação e levou os integra listas para o Rio.. Os comunistas e a Guarda Civ il estavam mancomunados na praça da Sé: atiraram e mataram quatro integralistas. Por diversas vezes ele tentou falar mas grita vam e vaiavam. Então fomos à praça da Sé e houve um desfile desde a Brigadeiro até a Pau lista: o Plínio ia passar em revista as legiões. matou um burro. Por ocasião da vinda a Sorocaba do Miguel Reale. Santiago Dantas (estava com ele na praça da Sé). o Filinto Müller mandou me oferecer duzentos contos pela lista de células. duzentos a trezentos integralistas à espera da conferência dele. Helder Câmara (estava no Ceará) e Gofredo da Silva Telies. O Manifesto de Outubro foi uma coisa fora do comum. mas não acredito. no automóvel do Antônio Saiem. ele enfrentou a massa comunista. e com Almeida Salles. Eu formava na Segunda legião. Dizem que quem o escreveu foi o João Carlos Fairbanks . aluno da Faculdad e de Direito. Belmiro Valverde. O Plínio me dispensou de usar a camisa verde. ia sozinho. Logo depois.ui em São Paulo. Quando houve a intentona comunista. pe rcebendo o horário atrasado. O pessoal estava esperando na praça d a Sé. quase mat ou o Getúlio. não era um político. praça Antôn io Prado. O movimento era nacional. canalha. Ele. Os bacilos circulam pelo sangue e de semana a semana se instalam nos órgãos internos . mesmo que seja uma coisa pequenina. Olhava para a pessoa e sabia fazer o diagnóstico antes de fazer as reações de sangue. sacudiu a faca no meu rosto. Depois da hemorragia. Nós somos ingratos pra todo mundo. o Plínio foi para Portugal e lá ficou amigo do Salazar. interventor em 38. malária. A repressão sempre foi absurda. como os italianos estavam mais radicados aqui. Mas depois que comeu pouco mai s de uma dúzia. Você precisa me arranjar uma taça de café com leite e um pão". o leite. Já tinha m dado extrema-unção para a Rosa. e gargarejo da fossa ilíaca. cão. Esse rapaz. levei-a para o hospital e ela foi operada sem anestesia. que confirmavam ou não o tifo. ele morreu. Há um caso interessante: trabalhei com dr. Nós somos ingratos. Ele desapareceu e voltou dez minutos depois trazendo o leite e o pão. Mas quando fazem a u m filho. o açúcar eram racionados. nas férias foi convidado po r uns amigos para conhecer o Clube de Regatas da Ponte Grande. Depois de 38. que não cessava. O pão. isto e isto. Bastava falar i taliano para ser preso. com o Carlinhos no colo. ficar na fila desde as cinco horas da manhã. Ele contava que. Eu com o tempo adquiri a mesma prática. eu sobrevivo". Seis anos depois o enco ntrei pedindo esmola com a mulher no viaduto do Chá. Não sei aonde foi buscar. não foi tão violento o combate a esses súditos do Eixo. el a cada vez mais fraca. consegu iu com um guarda do clube e entrou na água. passou um ami go meu. preciso viver". mas ele era superior a Salazar. O menino estava com um abcesso na coxa e eu fui pedir dez mil-réis para ele para com prar algodão e ataduras. Mostrei o abcesso e expliquei que não tinha um tostão em casa . podemos esquecer os que fazem bem à. eles não racionavam de acordo com o número de pe ssoas da família. Os outros começaram a nadar porque eram sócios e ele ficou na beira do rio esperando. muito d istinta pessoa. Eles eram mais realistas que o rei. Avelino Lemos. q ue se percebe apalpando o flanco. ela sentou no vazio e seus joelhos bateram no ventre dela e houve um desloc amento. o Carlinhos tirou o assento da cadeira. Enquanto ela se levantou para apanhar alguma coisa. Quando era sanitarista. Era a coisa mais difícil do mundo. Dois dias depois começou a hemorragia e a Rosa quase morreu. não se importavam com as famílias grandes. Rosa estava se ntada numa cadeira com assento sobreposto. Só o soltaram depois de tempo. eternamente tem a minh a gratidão. a reação de Vidal vê a presença dos anticorpos em nosso organismo. Certa vez um barbeiro bateu no Flávio e rasgou a bola do menino. Teve um abort o não provocado e perdeu litros de sangue. não estava em condições. Respondi: "Não quero seu dinhei ro. Minha mulher não me contou. E ela sobreviveu e tenho absoluta certeza. como resposta. (Intervenção de d. menos pra esses. Não se justificava tanta repressão. beiro apostou que comia 48. nisso chegaram uns agentes e o prenderam. o Carlinhos estava brincando pelo chão da casa. faço questão de registrar seu nome. Depois. Na última guerra. Passou na rua um padeiro e eu pedi para compra r um pão e ele me negou. Rosa: Precisava levar todos. Nisso. anemiados porque perdiam sa ngue. Uma vez. ninguém sabia onde ele estava. Preso por falar italiano. Os sinais mais evidentes do tifo no doente eram a língua de papagaio. Sacramento só olhava e já sabia se era caso de tifo. a pior das doenças contagiosas que naquele tempo exigiam n otificação compulsória era o tifo. no intestino. Eram duas horas e meia da madrugada. a gente fica eternamente grato. procurei o açougueiro Vilares na rua da Glória. Afinal. faltou muita coisa. tenho t antos filhos pra criar. Meus anátemas sempre pegam.aqui em São Paulo foi o Adhemar de Barros. por causa daquilo. gente. Com a prática. o dr. Ainda vou te ver pedindo esmola na rua". saburrosa e grossa. só depois que ele morreu. A cultura desses bacilos se faz no sangue mesmo. até as crianças. muito amigo meu. Isidoro Pais. Ele estava falando com um amigo dele na rua São Bento. se de ssem anestesia ela morria. quando era estudante. Lá no empório vendiam ovo s cozidos e esse bar. gua rdamos até o fim da vida. Ele nadava cachorrinho porque não sabia . Se tornavam pálidos.) No tempo da guerra. Sem observar o que aconte ceu. ele ia passando e eu chame i: "Isidoro! Me acontece isto. Um irmão meu foi preso por causa disso. ela lutou contra a morte: "Não posso morrer. me pediu: "Se você me arranjasse um pouquinho de café com lei te e um pedaço de pão. teve 600 mil votos. viram ele lá e o retiraram e salvaram a vida dele. E eu via esse amarelo aqui na fronte dos doentes. infelizmente tive que votar no Dutra porque não gostava da UDN. Não era um partido popular ap esar do nome socialista. não conhecendo. Todos sabiam e evitavam. O juramento não existia mais porque. nem poderia votar neles. esse então. Em 45 trabalhava no Centro de Saúde. ejuarez. O candidato do Prestes era Yeddo Fiuz a. pelo que disse o Luís Car los Prestes. Essa água era captada e distribuída à população. mas eles eram intransigent es. Eu não gostava dojuscelino porque não o conhecia bem. Eu os conhecia e sabia que eles não eram socialistas. Eu não quis mais saber d e política. juntamente com o Getúlio. onde era capta da essa água para uso. quatro metros do solo. votei no Jânio e para vice no Jango. bastava olhar um pouco mais além do horizonte da gente. nem medicação alguma para evitar. em 55. ent rou no redemoinho e foi afundando. Eu fiz ver ao prefeito que era esse o mal. como Alípio Correia Neto. depois no Brás. Pouco antes haviam tirado um poste que era porta-bandeira do clube e fico u lá um redemoinho no rio Tietê. Partido de Representação Popular. ipso facto o juramento estava nulo. hoje os suporto e em algumas coisas os admiro. passou a ser PRP. Em Porto Feliz. O tifo exantemático era oriundo das montanhas Rochosas do Canadá e matou todos os qu e ficaram doentes desse mal. zero. O tifo era endêmico no interior do es tado. ele era pessoalmente muito simpático. Em 60. uma grande pessoa. num palanque aí do Parque Anhangabaú. Em 50 votei no Getúlio. que era um sujeito digno e correto. me afastei completamente das lides diretas. adotas se um método que salvasse Porto Feliz. Mas não sou comunista. Hoje já estou bem diferente do que antig amente. nunca pactuaria com ele pelo meu voto. um grande cirurgião. Nós examinávamos os piolhos enviados do interior. e esse trabalho era em prol da pessoa humana. filtrasse. mas ele. Tinha também o Yeddo Fiuz a mas eu ainda não suportava os comunistas. Estava quase morrendo q uando numa das vezes que ele emergiu. A maioria das casas tinha água nas torneiras mas oriunda de u ns poços de areia em que os bacilos tíficos passavam à vontade. Trabalhava-se ganhando-se muito p ouco por 250 amor ao próximo. Essas fezes de sciam do lençol e iam para o rio Tietê que era uns dez metros mais baixo do que a ci dade e recebia todos esses bacilos e redistribuídos à população lá em cima. nem a ação integralista. tinha essa faculdade de ver se a pessoa ia morrer ou não. que estavam triturando o piolho para estudos. mil anos haveria endemia tífica lá. se cessou o fato. estavam muito afastados da massa a que eu pertencia. de modo que nunc a me filiei a esse partido. que ele corrigisse. Mas havia muita gente lá no partido que não me inspirava confiança nenhuma entre os s ocialistas. Tínhamos mais dados que um médico sanitarista de hoje. Então restava o Plfnio. Se isso se fizesse dur ante mil anos. O lençol d'água.nadar. estava pra se afogar. Aqui em São Paulo os nordestinos trouxeram o esquistossomo das lagoas do Norte e infecções helmínticas. desde que não existia mais nem o chefe. Em 1946. a população de São Paulo sofre mais do que antes. na água. Nesse mesmo local faziam as fossas onde eram atiradas as fezes dos doentes de tifo. pelo contrário. mas na ocasião da eleição do Dutra o Prestes estava. em Santo Amaro. que vêm do chão. era a três. foi candid . O Plínio Salgado. nunca mais o revi. que eu conhecia. E podia estar certo que era tiro e queda. Eu não gostava de Ad hemar. os efeitos também cessam. da falta de hi giene nos alimentos. onde estavam os poços (não tinha água encanada) para proveito da água. nas eleições. Depois que o Jânio renunciou. como técnico de l aboratório. Os integralistas juravam fidelidade ao chefe. Mas ele disse que viu a Morte e que a Morte era amarela. porque era moço. eu descobri por que que o tifo era disseminado na cidade. mas politicamente. todo ano havia casos de tifo. um grande médico. Não tinha cura. Trabalhava-se com muito afinco e com muita boa vontade. Não porque a UDN apresentasse más pessoas. No governo Dutra foi cassado o registro do Partido Comunista Brasileiro. mas o Getúlio esteve compartilhando também com o Partido Comunista. eles mataram um médico e o auxiliar dele. A Ação Integralista não existia mais. Hoje. conheci alguns chefes do Partido Socialista aqui em São Paul o. Aparecendo a quele halo amarelado na testa o doente morria mesmo. O líder mesmo do operariado era o Getúlio. tinha que fazer outra. voltou boa?! Ela dizia que a causa era ele. daquelas almas sem rou pa. e a mãe. era Prestes Maia. O cônego Castanho era reitor no Seminário de Sorocaba. Votei em Prestes Maia. até a senhora ficar boa". A presença dele em casa sempre foi mais marcada. mas tenho que dizer que o Flávio esteve sempre na frente. ele e Adhemar de Barros. Qu ando tinha doze anos escreveu uma carta para mim e o portador era um diretor do SF51. a eleição foi roubada. foi ao pai da Rosa que era um gênio. tifo. a madre Stokler. como parece. quis conhece r o cônego Castanho. Só os que lidam com ele conhecem seu valor. doze anos o cônego me disse: "Eu conheço você muito bem e não acredito que o menino tenha puxado você.. com 85 anos. sendo tão distraída. é impossível que ele tenha pensado mal de alguém. é melhor esperar". então. Mas lá também não havia modo de curá-la. gostava muito de uma freira. fez exame de direito romano esc rito. Altino Arantes conversou com o cônego Cas tanho e voltou para o bispo: "De fato. Então ele foi à missa durante seis meses. que disse: "Você vai conhecer um caipira e ter uma desilusão tremenda. Ele arrancou todas as figuras da Divina comédia. Com cinco anos ele recitava o "1-Juca Pirama" inteiro e "O caçador de esmeraldas". amanhã eu v ou beijar a sua mão". Era um caipira santo. é um pouco indolente . Curioso. mas além de ser um dos home ns mais doutos que conheci. Precisa ficar ajoelhada! E vamos rezar!". Ia se confessar por ter ouvido aquele palavrão e a confissão não valia. Quem venceu foi o Hug o Borghi. Ele traduziu a ave-maria do latim para o grego. Os médicos todos morreram. Se fosse padre e alguém fosse se confessar com ele naquele tempo. que er a professora dele no jardim-de-infância do Colégio das Beneditinas. Quando Altino Arantes foi visitar Sorocaba. Deve ter uma o utra pessoa que ele puxou. Sabe o que ela quis dizer com isso? Que ele seria padre. em Sorocaba. às cinco da manhã." O cônego Castanho sofreu de umas três ou quatro moléstias de uma vez só. Estava desenganado por todos os médicos. não. fazia a Landa ajoelhar também e rezava os três terços para a madre Stokler sarar. E le tinha três ou quatro anos. Acho que f oi aquela fé que curou a madre. Ele esperou um ano. Todos os meus filhos estudaram. Não podia ver certa s figuras. mas não escreve nada. ele dava um castigo de três anos. ao ver como o menino escr evia rapidamente. não foi a mim que ele puxou. E o Flávio disse: Vou rezar e pedir bast ante a Deus pela senhora. Depois não houve mais eleição. e lá tinha que ir à missa com o Flávio e ajo elhar. Adhemar ganhou. ajoelhado. Quando o Flávio tinha uns onze. Antes de ir. onde o Flávio estudou até uns dez esseis. entrou na faculdade da ust e d. Os irmãos ficam zangados. A Landa nunca foi muito religiosa. Ela foi para a Alemanha se tra tar. recita a ave-maria em grego!". que conhecia português de cor e salteado. mas ele. era muito meticuloso. mas não é tão tolerante. quem ganhou foi Borghi. ela falou: "Hoje você beija minha mão. dezessete anos. afastada das aulas. Be da ficou esperando até agora. O Flávio não podia ser padre. ele escreve bem. nos da situação. Ele estudava até as quatr . O bispo não quis que ele fosse padre. pediu para ler e diz que nunca viu uma pessoa escrever tão bem. Cursando a Faculdade de Direito no primeiro ano. uma porção de doenças. E não é que a madre sa rou mesmo. até agora não é. e m 1938. Ele cortava e o Plínio guardava. o presidente da República mandou que se apurasse tudo em favor do A dhemar de Barros e não Borghi. foi fazer uma visita ao senhor bispo. Ele não é nada daquilo que você está pensando". Beda disse: É. Veio pra São Paulo e d. isso que era engraçado. Ele chamava a atenção da Landa porque a Landa não rezava direito: "Se a madre Stokler não sarar você vai ser culpada. Depois tinha que fazer oral com Alexandre Correia. ele é um caipira. Ultimame nte tenho votado nos candidatos do MIE. é um dos mais santos". antes de tom ar a comunhão. Saiu porque ficou santo demais.ato a governador de São Paulo. Ele chegou a fazer o seminário. é diferente. d. porque a madre Stokler tinha sarado. José Carl os de Aquino. A m adre estava com câncer. Flávio. no inferno. Na primeira eleição em que o Adhemar venceu foi porque o Partido Comunista votou nele. Quem fazia as injeções nele era eu. ele se julgava culpado se ouviss e um palavrão de alguém. Quando o Flávio foi despedir-se dela. Era escrúpulo demais. esperando o Toninho. "É verdade. se tivesse mais ambição teria se projetado.. ele ficou triste. Hoje. ele está vivo até hoje. Mas é rapaz . tinha passado para o segundo. o cabelo todo revolto. principalmente o Flávio. Têm três filhos formados. O Plínio é geólogo. ele é nte de uma empresa. foi diretor comercial de outra. que fez ciências sociais e fez também o Exército. que agora está nessa mesma cadeira. ele nunca deu nem quatro. É um gênio. Os outros não são capazes de fazer um negócio. Precisava f azer oral e nunca tinha assistido uma aula. de uma inte ligência acima da média. Quando ele tirava o giz da lousa. prepara e dá suas aulas e vai casar-se também. É o único de meus filhos. O xadrez. mas com a cabeça dele. este também era fora do comum. Até as pes soas formadas. passaram do meio. Se não alcançaram. Estragava a aula do padre. O bispo era muito exi gente. Nem para o filho dele. Não se pode fazer uma coisa dessas. escreveu a tese dele em inglês. isso é difíc il." "Então vou vol tar!" Ele voltou e deu aula pros alunos que nunca mais deixaram de ser admirador es dele. Ele adquiriu uma cultura universal. Pelo menos soube assim. O capitão chamou por diversas vezes sua atenção. pai de minha mulher. O André também cursou o seminário mas não sei por que não pôde seguir. Não tinha outro livro e aprendeu tudo. de uma família de Piracicaba. Seu filho é muito inte ligente. Um dos alunos me contou ISSO: ch egou lá o Flávio com a camisa de fora. ele não me participou ainda. que são gêmeos. não ficaram no meio do caminho. o Flávio dava a resposta. Ag ora. Carlinhos é assim mesmo. começaram as gargalhadas dos alunos. mas chegou a dar aulas de inglês. é professo r na PLC e diretor de um colégio. eles ficaram boquiabertos. A Landa deixou os es tudos para casar. talvez . Ficou catorze anos trabalhan do no Recôncavo Baiano e esteve nos Estados Unidos com uma bolsa de estudos da Pet robrás. Entrou na sa la de segundo ano pra dar uma aula de terceiro. (Eu também sou muito impulsivo. não com os cânones legais da álgebra. Tem o avô. A mulher e ele são professores e têm dois filhos boni tos. nós não comp reendemos nada da sua aula". o sargento dava punição pra ele por causa disso. O Alexandre Correia. depois continuam vencendo semp re os percalços. até agora é a mesma coisa. lendo só o jornal. Formou-se em letras clássicas na usp e casou-se com uma colega. muito mais. de vez em quando sai um arranca-rabo entre os dois porque ela é muito impulsiva. O professor de matemática dele me contou o seguinte: estava gizando uma equação algébric a. Casou-se com um homem boníssimo. e seu filho acha que ele não sabia o que estava falando e es tava sempre brigando com o sargento. essas coisas. não sei de quê. hoje Ibirarema. Começou a dar aula. Esteve dois anos nos Estados Un idos fazendo mestrado de química. muito sim ples. Era o sujeito que mais castigava os al unos. Passou um tempo. ele foi à secretaria da faculdade e disseram q ue ele não estava mais no primeiro ano. ele também jogava excepcionalmente. mas era mais inteligente que o Flávio. O Flávio era fora do comum e por emulação os irmãos se obrigaram a ser iguais a ele. todos se levantaram e foram atrás dele: "Professor.o da manhã.) É só naquele instante. Dei ess nome a ele porque era muito amigo do Plínio Salgado. entrou numa sala errada. muito culto e os nossos sargentos. a mãe dele não chamo u e ele não acordou. o senhor sabe. pela primeira vez na vida dele. professor. Casou-se na Bahia com uma professora e tem dois filhinhos. O bispo queria santos. Quando a aula acabou e ele saiu. quando ele dava aula num colégio. os advogados o consultavam. ele queria os levitas dele cem por cento. agora estão muito bem. "Mas por quê?" "Nós somos do segundo ano. Era consultado antes de qualquer negócio a ser feito. É profe ssor de geografia. Uma ocasião. Nenhum aluno nunca chegou a ter quatro com ele. em Los Angeles. ia dormir e queria levantar às sete horas para estar lá às oito. não é? O sargento fala em radar. e le desmoraliza o instrutor". tinha dado dez para um aluno. O João fez administração de empresas. pelos hab itantes da sua cidade que naquele tempo era Pau D'Alho. Era conhecido como sr. Quiquino. Tem cinco filhos. Era genial. formou-se em química na us e trabalha atualmente como químico no Instituto de Pesquisas Tecnológicas. O comandante do Duque de Caxias mandou me chamar e explicou: "Além dos exercícios militares. Mas perdeu o exame. Depois dele vêm o João e a Lúcia. fica quieto". Meu filho veio para São Paulo. o no me dele era Francisco Pontremolese. de vez em quando vem um sargento dar uma aula para os rapazes. Todos os meus filhos são inteligentes. que saiba ganhar dinheiro. de qualquer atitude a ser tomada. Depois vem o Carlinhos. com um giz numa mão e a outra mão fazendo sinais: "Flávio. em 191. passei por eles e entrei na primeira sala à direita. quase sem vida. Quando Paulo viu a mãe que estava chegando. para evitar que todos me vissem chorar. O matemático é o chefe de todo serviço de processamento de dados na empresa em que está. viu? Eu não ret iro uma palavra sequer do que eu disse. Veja se você desembaraça isso em dez minutos para ele levar o filho embora". levantou-se e estava algema do. tem três filhos. Agora vêm os dois gêmeos. Meus filhos me chamavam de fascista . Não que eu reneguei. Entramos num corredor amplo. Meus filhos estranhavam porque eu fui integralista: era um partido que sentia qu e aquela situação estava errada." "O senhor é pai?" 'Sou. a cadeia era no interior e foi seu irmão João que o acompanhou todo o tempo. Caí num sofá. Estão abismados com Paulo. faz aquilo muito antes dos outros com uma perfeição extra ordinária. pres tou vestibular de medicina e entrou. diretor do DOPS. estudou no Adolfo Lutz. Tiveram mais campo. um é matemático." "Não lhe estou exigindo retratação nenhuma. Começou ganhan do 1800 cruzeiros. não preciso me desculpar de nada. Os dois são formidáveis. que está preso e algemado. com filhos. E estava mesmo. prendem u m menino desses que é a melhor pessoa do mundo. Não pod ia. eu agradeceria de vez e m quando a sua prosa. Quando aconteceu o mesmo com o Flávio. fica aí. sendo os últimos. Tudo o que eu disse está dito. Eu não pude sofrer aquilo lá e começou a me doer o peito.'' 'Então. A mão se plantou num choro tremendo e gritava: 'Meu filho algemado! Meu filho algemado!". Teria que escolher um dos três. para mim. seu delegado. foi preso como subversivo depois do congresso de estudantes em Ibiúna. O senhor me poria junto do meu filho. Olhei. o modo humano como o se nhor me tratou sempre. que é uma pessoa de idade. "Sou. O diretor do DOPS me disse: "O senhor vem todo dia aqui! Amanhã eu meto o senhor no xadrez também. que ficou embaixo para não se confundido com o irmão. comprido. não é? Só esse pr azer mereceria o mais encomioso agradecimento. com angi na. E depois. eu quero é fazer alguma coisa pelo senhor. mas eu me tornei socialista por causa deles. eu também sou soli dário com eles. Ambos estão casados. Não cursou. não precisa mais entrar e sair. É uma cabeça importante. E lá eu xinguei a polícia do mundo inteiro: 'Cães. em Catanduva. Mas ela vai ainda fazer medicina." Ele mandou chamar um delegado e disse: "Esse senhor é pai daquele moço que está lá. o Pedro também foi envolvido e preso eu ia todo dia no DOPS. por mais difícil que seja. "Que posso fazer pelo senhor? Eu faço! O que o senhor quer?" Olhei para ele bem e disse: "O senhor é da polícia?". Ficaria mui to grato de ser preso. mas eles sem necessidade e sem amb ição alguma esposam ideais tais que beneficiam aquele que trabalha. está sol tando a melhor pessoa do mundo." "Quero que solte meu filho. O senhor é o único delegado que presta e i lustra esses milhares que não prestam pelo seu modo de agir". de manhã e de tarde. Antes de seu casamento festejávamos o Nata . A Lúcia é técnica de laboratório." Meu filho foi processado e o promotor deu absolvição. enquanto os ladrões e assassinos estão soltos por aí". outro fez biologia. Quando dei por mim." "Quem é o senhor?" "Sou Celso Teiles. Fomos com o gêmeo dele . vi uma pessoa quase ajoelhada ao meu lad o que dizia: "O que aconteceu com o senhor? Por que ficou tão exaltado?". Meus filhos sempre se reuniram em casa. ser sín dica do prédio onde ela mora e mãe de três filhos. Está tomando conta da fazenda da sogra. agora ganha 35 mil. se recebe uma atribu ição. Fiquei lá com ele e disse: "Agradeço.muito bom. acho que eles têm razão. Não vendo o passe deles nem por um trilhão de dólares. o Paulo. que fecharam com c have de ouro. são o saldo. Agora. Fiquei uns dez minutos xingando até que sucumbi. E sses aí é que me deram mais trabalho. É biólogo. mas percebi que devia ser da polícia. que foi melhor que o resto. Então ela preferiu educar os filhos. mas o senhor não está fazendo favor nenhum. O irmão menor dos nove. que estão com 28 anos: o Pedro e o Paulo. Eu er a o contrário do que eles são. O que apareceu primeiro no integral ismo foi o partido nacionalista e eu entrei. "Eu agradeceria por estar junto de meu filho. não conheci a pessoa. Depois de um mês conseguimos vê-lo. Teria que estudar medicina. já". O Pedro começou fazendo agronomia e acabou desis tindo para fazer biologia. Mais tarde. O que aconteceu ontem pode ser que eu lembre hoje. sou desta idade mesmo. Enquanto o homem p ersistir em viver. apesar de gostar tanto da língua italiana. Quando encontro pessoas de minhas relações antigas. Já que não posso viajar. que me dão um certo equilíbrio. qu e tem uma tradição de cinqüenta anos. não é para esse mundo. Eu me recordo muito bem quando tinha uns quatro anos e atearam fogo num campo. Finalmente. ess as coisas de casa. Há uma forte amizade entre os ir- mãos. Das r ecentes não lembro mais. Está tudo mudado . das duas moças. eram milhões doJockey Club de que eu era portador em confiança. Pode ser que o mundo não vá pra pior e que estas fezes sejam diluídas e postas de lado. minha mãe. Não resta dúvida. Nào pode haver concórdia. dixit Ec ciesiastes. Achei uma maravilha. Jogo no Clube Cisplatino. Pra dizer a verdade. Há um hiato muito grande entre mim e eles. Recordo com gosto as passagens de vida e morte em que eu sabia que havia perigo de morrer. se possível. não posso me locomover com r apidez por causa das coronárias. Ele falou: Roubei o dinheiro porque ele é velho e gordo e não podia me alcançar". Não se sabe. fico o dia inteiro conversando sobre o passado. no alto. mas sonho com eles. é para outra vida. No fl0550 aniversário de casamento. meus filhos se cotizaram e e u e minha mulher fomos para a Bahia. Comecei a sentir uma dor no lado esquerdo. No meio daquele ajuntamento de curiosos me aproximei e o rapaz . Eu jogava bem. meus irmãos é que são mocinhos. mas agora os jogos de carta não são como antigamente. Tendo como alvo uma outra vida. Meus ataq ues não são tão rápidos. adido ao Instituto Ado lfo Lutz. Houve um ajuntamento de populares em volta. Eu. com todos eles. que meu subconsciente vai lá e vai buscar. Dia de finados ia sempre visitar o túmulo de meus pais e irmãos no Cemitério do Araçá. só o cérebro porque o coração está pifa o. De certo não têm mais lugar. Ainda nos encontramos de vez em quando e fazemos uma aa'unanza. Sonho com meus irmãos mortos. Um jogo inteligente como o pôquer quase não se joga mais. a polícia apareceu e domi nou o ladrão. Eu chorava com medo que o fogo pudesse que imar minha casa. faz uns cinco anos. Tenho 3 anos agora. A única coisa que presta neste mund o são as coisas mais comezinhas. o resto é tudo vaidad e. de vez em quando vou assistir uma ópera. Se houvesse um atrito entre eu e minha mulher. Diz Dante: Nessun maggior tiolore che ricorciarsi nella miseria dei tempi felici. Quando sonho com meus filhos eles são crianças. de avião. jogo. As coisas que me aconteceram ficara m guardadas na memória de tal modo. Para chegar à minha cas a. A sociedade ideal é urna utopia. Fiquei na casa do meu filho geólogo. con hecer coisas. Jogo com prazer com as pessoas de idade. não vou mais. com 66 me aposernei no Serviço Sanitário. Nenhum deles eu quis que aprendes se italiano. aí me estendo. Com meus companheiros de trabalho de our ivesaria. mas se passar uma seman a já não lembro mais. uma reunião de canto. naturalmente por piedade. Tenho o cérebro bom. o fogo precisava atravessar o rio. quando encontro bons parceiros. que era um rapaz novo. Não tenho quase atividade. isto não tem conserto. os outros me vencem. meu pai . nem pros meus n etos. Fico aí em casa. É preciso amar quem está aí perto. Lembro mais amiúde as coisas da in fância. a rapidez me foge. de sofrer. Gostaria de viajar. haverá dissemelhança. d os sete homens. de todo dia. não haverá nunca. Nem pros meus filhos. e dois votos a favor. mas não tenho meios. Goste i do povo de lá. companheiros de coro do Teatro Municipal que ainda estão vivos. Os maus pedaços são mais recordáveis do que os outros. Corri uns 160 metros atrás do ladrão. Sou como Bossuet: Vanitas i'anitaturn. ágil e disposto a tudo. aquele Pelourinho lá é uma vergonha. eu teria sete votos contra. baiano é muito melhor do que paulista. no sonho.l e a Páscoa em casa. que está do minando tudo. Sábado e domingo. Quer que eu diga com franqueza? Está caindo no mundo uma chuva de fezes. as coisas mais simples: o olhar de uma criança. Levava uma maleta de dinheiro que não me pertencia. Esse mu ndo é de luta. esportista nunca fui. fico jogando baral ho com os amigos. Faz uns dez ou quinze anos. Certa vez fui roubado quando saí do trabalho. é um mistério. Ago ra. Não sou desses de contar o que me aconteceu. Deixei o teatro. t'anitas tanítatum et omnia i'anitas. Tudo é vaidade. A polícia desceu o cassetete nele. Os armários eram cheios de potes e num tinha açúcar-cande. Essa casa foi derrubada muitos anos depois. que se chamou Penha do Rio d o Peixe. A sorte é que a água entrava por baixo do tanque. Caetano. Na fazenda de minha bisavó em Eleutério (Itapir a) havia um tanque. Já havia o qu into filho em casa: éramos Mário. Ana Margarida. Fui chamado pelo juiz dois meses depois p ara depor e declarei que tinha sido um engano. duas do quarto de meus pais. "O palhaço o que é?" "É ladrão de mulher!". o pessoal respondia. de acusado. Meu tio era farmacêutico. Cobri o corpo do rapaz com meu corpo e fiquei recebendo as pancadas que desciam sobre ele. com quatro janelas de frente: duas da sal a de visita. que passava com urna veste talar e me olhava zangado. durante muitos anos. Ainda ouço o grito dele por mamãe quand o me viu com sangue no pescoço: 'Lilica!". Gritei: " Não! Não quero que batam nele. Vou junto". Quando fui buscar os sapatos dele que tinham sido jogados longe. Lembro da farmác ia antiga. e a gente ganhava pelotes de açúca r quando ia na farmácia. Eu f icava de lado e enquanto ele lavava o rosto peguei a navalha e quis ïmitar os movi mentos dele. que ela perdeu com um ano. que era uma pele seca. Com doi s. em Ribeirão Preto. Minha mãe curava essas queimaduras de fósforo com banha d e galinha. Brincava de pegador em roda do tanque com minha prima e uma pretinha. meu apelido era cabrita. fazia um redemoinho e minha cabeça subia para fora. Dia 11 de fevereiro era uma data negra em Itapira. para convencê-lo a sair de Penha p orque era abolicionista e estava perturbando a ordem da cidade. três. modesta. As duas meninas fugiram para o mato. água e açúcar. Numa dessas viradas caí no tanque. com grades de madeira e dois globos. árvores. onde meu pai era engenheiro da Mogiana. De vez em quando minha mãe ia ver os pais em Itapira. como se diz. Preciosa. Quero amar o que está aí perto. quatro anos gostava de sentir o cheiro de fós for aceso até queimar meu nariz. que o soltasse m. ao rés -do-chão. mas de tanto andar de um lado p ro outro ela desapareceu. um homem. Ergui os olhos e vi do outro lado da rua Cristo . Ele fugiu pelos fundos da casa mas na rua do fundo os capangas pegaram Joaquim Firmino. meus p ais eram de família pobre mas gostavam de bastante quintal. D. tio de minha mãe. Tenho uma pálida idéia d e uma pantomima em que iam serrar o braço do palhaço. sempre feliz quando trepando em muros. Deix ou a criança no chão e veio me pegar. Tinha mais dois quartos e a sala de ja ntar e a cozinha. Nossa casa era no largo Treze de Maio. erguia os dedos quebrados da mão. Toda tarde o palhaço passava montado de trás para diante no seu cavalo. Gritaram: 'A Vivina está morrendo afoga da!". Ficou disso uma lembrança muito boa porque me deram para b eber uma sangria de vinho tinto. sou assim terra-a-terra. O palhaço vinha de cara branca. Já t inha engolido muita água. eu e Chico. Nasci quase asfixiada dentro de uma pelica: nasci em pelicada e o povo diz que tem muita sorte quem nasce assim. acabei dando um corte no pescoço. Mamãe guardou essa pel ica. dono da Farmácia Lima (da família Araújo Lima). um globo amarelo e um verde. JOVINA Nasci no final do século passado a de agosto de l89. Foram à casa de Joaqui m Firmino. A casa era simples. de pegador. ouvi um polícia: "Vamos para a delegacia e batemos lá nesse ladrão". Meu pai fazia barba à moda antiga no seu lavatório com duas gavetas. Eu era uma criatura travessa com certa tendência para as coisas perigosas. Armei um berreiro e saí do circo . Não gostava de boneca. mas de correr. puseram . O banheiro era no quintal. Tinha uma tendência para os malfeitos. que não houve roubo. Pensei: 'Vou morrer e el e quer que eu perdoe'. Mamãe me pôs de cabeça pra baixo. nosso contraparente. No largo havia sempre um circo de cavalinhos onde eu ia com três anos. lá nós tínhamos uma cabra pa ra dar leite. ás vezes com banda de música atrás. Mamãe apareceu na porta da casa de minh a bisavó! Trazia no colo uma filha. até pelo gosto do perigo que me atraía e que a criança tem. à direita para o escritório. Gianeili reunia os moços e ensinava trechos de ópera. Em Ribeirão Preto a terra era roxa. o fogo alastrou e fiquei encu rralada entre o fogão de lenha e o fogo do chão. Vovó gostava de dançar e dançou até ser o vis-a-v is da quadrilha com tio Bento. com os fundilhos remendados. inspirava respeito. con trolada. a noite toda. que casou depois com Batist a Pereira. Pedro II. Trabalhava como professor com João Kiipke. Depois outro punho e prendia. Quando apareceu na cidade um garibaldino chamado Gianelli. Gente antiga era discreta: ele nunca falou que foi colega do príncipe.num forno e chucharam seu corpo. Lecionava particul armente os dois filhos de Rui Barbosa. Nas cartas. Mamãe tinha uma personalidade calma. Depois engomava o colarinho. Quando minha irmã mais nova nasceu. Eu escutava em casa. D . fazia exames para passar. ele sonhando em voz alta. dócil. E quando todos cantavam na praça ele excl amava: "Sono in Italia!". seleiro. Ele levou as pontas dos trilhos até o triângulo mineiro. Aninha foi uma senhora que morou com mamãe. do Rio. ela dava conta de tu do. não freqüentava as aulas. ele em Santos. Tinha profanado o templo. E ra republicano mesmo. longe de casa. Gostava de raspar as panelas e frigideiras grandes de fer ro onde se cozinhaa o angu dos cachorros. Viveu até 53 anos. a vida era dura. chegou a alcaide de Itapira. era a mais inteligente. Mudou o nome para Itapira. patriarca de Itapira. seu filho mais velho. na palma da mão. chamada As Filhas de Nhô Bento. Saía pelo sertão no burro Soberbo. depois engomava um punho e prendia a cam isa. A luta e ra tremenda. Na praça da igreja. de joelhos. um artista. Penso que conheceu mamãe quando trabalhava na estrada de fer ro. no largo São Francisco. Morreu com 69 anos com tod os os dentes. Ele tinha um espírito forte. foi um grande trabalhador. Mas meu pai tinha horror do Rui. O corredor dava à esquerda para a sala de visitas. Entrei um dia. Morava na Ponta do Ca ju e ia a pé para a escola. Havia uma quadrilha feita p elos músicos da época. Eu tinh a uma vontade louca de entrar lá. Depois da morte de Joaquim Firmino ninguém mais quis ser de Penha do Rio d o Peixe. andava sempre de sobrecasaca. mamãe ficou com uma moléstia car díaca. uma mancha. Quem engomava as camis as era mamãe: ela punha a camisa de lado. Homem de origem humilde. calculando logaritmos. ele contava que passando a pé pelo Cemitério do Caju ouvia os ecos do próprio passo e olhava ao longe. Seus pais eram modestos. ficava muito cara. Era chamado pelos colegas de frei Caetano porque. aos 38 anos. Ela era filha de nhó Bento. Esse meu avô. Mamãe teve onze filhos. Nunca vi uma rua em Itapira com o nome Gianelli. A roupa. Aninha enrolou bem a saia nas pe . ramal Itapira. Meus pais nunca viajaram. nunca fizeram uma estação de águas. mas q uando fiquei moça e fui à ópera conhecia todos os pontos bonitos porque mamãe cantava. bati a mão na escrivaninha e voltei. tinha a impressão que o estavam acompanhando. Sua mãe viveu muito da costura. Minha avó contava que conheceu meu avô lá em Eleutério. a Maria Amélia. na escola de João Küpke. Eu ajudava muito mamãe. p ara esconder os fundilhos remendados da calça. tinha seu escritório onde ninguém entr ava. Minha avó admirou quando reconheceu o homem de fundilhos remendados na pessoa que veio pedi-la em casamento. Aninha me salvou a vida quando saí num relance de perto de mamãe e corri para a co zinha. Sobre a es crivaninha vi um peso de mármore com uma flor em relevo. Vim correndo. Sua mulher. e moravam em Ribeirão Preto. Vovô Bento era homem muito austero. Mamãe dava banho em mim. andando a cavalo. mas meu pai dizia a todo instante: "Cuidado com sua mãe!'. pedia que não matassem o marido. a única ajuda que ela teve na vida. fez o curso vago de Politécnica. que nos olhava por cima dos óculos. cidade pioneira. Meus avós eram abolicionistas. D. Dos onze. ficaram oito. ficou sendo uma vergonha. Meus avós paternos também viera m com o filho. filho de d. Filhas de nhô Bento eram minha mãe e as irmãs. Foram quinze anos de cu idado. Itapira t omou um impulso artístico e todo mundo começou a cantar. Lá derramei uma lamparina de querosene no chão. esfregando com pano o meu corpo. em 1908. D. para lavar fora. Meu pai casou-se em 1890 com mamãe e veio morar em Ribeirão Preto. Lembro de mamãe aqui. na pele. m as havia antes uma alcova por onde se passava e onde ninguém podia entrar. Meu pai era um homem pobre e estudou engenharia com grande força de vontade. Paupérrimo. adere nas roupas. a gente de lá ficou estigmatizada. A vida dele era construir estradas. construindo canais. o Parque Balneário. um negro nos acompanhava com uma lante rna. Estavam cortando as árvores para nivelar a rua e vi os torrões expostos dos eucaliptos. Quando voltamos já estava dia e fizemos uma caminhada dentro da mata de beira-mar. com dois anos. Ficamos numa casa de madeira diante do canal que ia para São Vicente. Fomos morar na rua Maria Antônia. D. que de vez em quando ficavam secos. numa casa b em em frente à universidade. A rua Maria Antônia já estava toda construída. Perto da rua Maceió já hav ia algumas casas. atravessavam as avenidas. Quando mudamos para lá e u teria uns sete anos. avô do Chico e pai do Sérgio Buarque de Holanda. Não se tomava banho só. papai fazia o saneamento de Santos e trouxe toda a família para São Paulo. Dizia meu pai que. ali na estrada Santos-Juquiá.. só mergulhar e a lata v inha cheia de peixes. sem banhista.. Paletó com manga comprida. Íamos por uma trilha que passava no fundo das chácaras com enormes solares. Rebouças. Meu pa i construiu a casa num terreno da baronesa Angélica. A avenida Angélica era uma trilha de eucaliptos. A alta burguesia estudava na Europa e ela mandou construir uma cópia fiel de um castelo da Alemanha. dona de tudo ali. Logo depois que nós saímos foi o episódio da febre amarela. porão alto mas não habitado. Gostava de quebrar tabus já desse taman hinho. Havia um vão entre os dormentes por onde enfiava minhas pernas. Es ses braços de mar. epidemia tremenda em Ribei rão Preto. Minha mãe vestiu uma roupa de baeta azul-marinho com duas peças. Quase matei meus pais de susto nesse hotel. tinha o Co légio Mackenzie na esquina. os Parada. tudo meio escuro ainda. faziam molecagem: punham a figura d e um grande sapo na janela deles para arreliar minha avó. Chico Bento e eu. era uma italiana chamada cl . Quem tem filhos diga adeus ao sossego. N o mès de setembro os dias ainda não são largos. Aninha disse. Tive uma dor de barriga nos sanitários. Lembro a primeira vez q ue entrei no mar. do século p . calça até os tornozelos com duas listas brancas e um babado. o Waller. Foi em setembro de 1904. "Ao simpático Chico Bento e à gra ciosa Vivina. ainda no lusco-fusco da madrugada. Depois mudamos para o outro lado da rua. Subi num torrão. lá por 1905. Quando meu pai trabalhava nos canais de Santos. numa casa de madeira. que era naquele tempo o sobrado dos Parada (família Rud ge Parada). pensaram que eu havia caído na água. Eu e Chico Bento íamos de calcinha pelo meio da perna e colete. Nesta r ua morava Cristóvão Buarque de Holanda. com medo. ainda vi casas desse tempo lá.'. eu ficava na ponta do pé e assoprava no ouvido dele: 'Papai. Era lindo o castelo de d.rnas e me tirou por cima do fogo. quando minha avó aparecia. que descendia do célebre negro Rebouças que a rainha tirou para dançar. No fundo moravam os Correia. Estavam abrindo a avenida Angélica. que nos deu um retrato com dedicatória. d.". carpint eiro. Na rua Maria Antônia nas ceram minhas irmãzinhas Brites e Clélia. Dei um grito es tridente. sobrado com água-furtada que ainda está lá. 1906. Minha mãe levava no colo Brites com nove meses. e dizia o nome feio. Seu Nicolau entrou conosco. Eu ficava orgulhosa de ler. D. o chefe dele era o dr. e vi pela primeira vez as marolas arrebentando com a fimbriazinha branca de espumas. Gostava de coisas perigosas. franzid o e com aba. Em 1903. que fez as carteiras de todos os colégios de São Paulo. Júlia a fazer crochê. Angélica. Toda mesa do hotel levantou.. Nas enchentes pescavam bagres de lata. Meus pai s chegaram e me enrolaram numa toalha. Na casa que foi a antiga unive rsidade. Aninha gostava muito de ler histórias. só se passava de trólei. queria ficar lá para ter a sensação de ver o guindaste descendo. na certa para dizer que ela se parecia com um sapo. Suas terras iam até a rua das Palmeiras . muitos anos. Fusa Poli. a casa do maquinista ficava lá em cima e subiam e desciam caçambas para cavar o canal. Guiomar nasceu na casa da rua Barão de Ta tuí casa de esquina que tinha uma face para a alameda Barros. em braços de mar. Lembro de um passeio que demos até o Hospital Samaritano por essa trilha. Em frente passava um guindaste enorme nos trilhos. quando ele chegava em casa. Quem tocava o único hotel de Santos. que fez morrer muita gente.. onde aprendi com d. No terreno ao lado do Mackenzie morava. Elisa para mim era uma beleza. que ficavam sobre a água. numa casa com escada que dava acesso para a sala de visitas. estavam todos almoçando. que morava num castelo na esquina com alameda Barros. O banho de mar pra fazer bem tinha que ser ao raiar do dia. 5. Dizia: "Nobreza. Cada um vivia muito sua vida. atrás do vidro da janela. mas tanta. Era boa. nossos berros: "Mamãe. Cada filho . Explorava nossos pontos fracos. Para ali descíamos todos. Espinheira. as aulas começam hoje" . qu e era uma rua estreita. com nove anos completou o grupo. na turma do presidente Castelo Branco. Em frente a es se. passou do segundo para o terceiro ano e depois foi para o Exército. o mais velho. tratava do jardim. lecionei aos netos de d. dava um estouro e passava. quando ele estava. mas de estopim curto. Lembro do Chico Bento sentado na mesa comigo: havia uma hora em que tomávamos uma xícara de café com leite frio. Para mim esse portão deve ter si do na rua das Palmeiras. Chico era um tip o castanho. Lá no Exército brigou. onde está o Minhocão. muito gostoso. Mário era zangado. Uma escadinha levava para o porão alto onde a dependência mais important e era a sala de estudos. 'namorando o carteiro". D. eu caía. Caetano era uma arrelia com dois pés. que a cama com rodinhas de ferro ia pra frente e pra trás. olha o Chico!". Angélica. um vestíbulo. Angélica fechava as terras dela com um portão.e tapou o terraço de flores. Foram os irmãos mais velhos que nos prepararam para a Escola Normal. Nossa vizinha. saindo para o Palácio Episcopal. Mário. Como era três anos mais velho. Lembro do casamento das filhas dela.assado. contava que d. A avenida São João começou só em 1911 e levou vint e anos para se fazer. dos mais velhos. c alada. . Deitou na cama com o livro e ria e achav a tanta graça. ela tinha quinze e havia lido 72 livros! Na época não se tinha a facilidade de hoje para conseguir livros. Quis ser militar e meu pai tinha horror do Exérci to. estudava e lia! Papai deu Dom Quixote para Preciosa ler nas férias. Era um berreiro. sogra do dr. voltad o para o estudo. Nossos pais tinham a vida deles. denunciou o chefe e veio para casa. nós a nossa. d oente. mas uma vez que o carteiro não veio ela chorou. uma sala de jantar muito gr ande. compreensiva. inteligente. Uma escada em curva subia para o terraço com um jasmim-d e-itália e uma roseira. de gênio forte. bonito. Saímos e demos a volta na esquina para outra rua. Quando entrávamos ele acertava uma goia ba nas irmãs menores. de residências. Eu tinha um entusias mo por ela! Quando eu tinha onze anos.. Papai criou um ambi ente onde só havia uma obrigação: estudar. No fim do ano a roseira morreu. só admito uma. Preciosa era intelectual: quatro anos mais velha que eu. Corri. estudou cinco anos nos Estados Unidos. Sua saudade era discreta. Ele subia nos galhos da goiabeira e ncostada no muro do quintal e se escondia. Sentávamos nos bancos das sete às nove da manhã e das sete às nove da noite. Criat ura brava. Vivina. e no quintal uvas enxertadas por um jardin eiro português. onde entrava um dedo inteiro da mão. Abstraia o largo Marechal Deodoro. Para o terraço davam duas portas: a da sala de jantar e a do vestíbulo. Meu pai tinha o culto da inteligência e do caráter. então ele me disse: "Não começa hoje não!". ele sarnava muito as irmãs mais novas. Qua ndo passei para o terceiro ano ele me disse: "Olha. Morreu em quinze dias com febre tifóide aos 22 anos. dando dois para a sala e dois para o corredor que ia da sa la à cozinha. Chorei de raiva. Passava os domingos desenhando seus mapas. que no último ano de vida deu rosas demais . Não se saía só de casa. Morr eu com meu irmão Chico. Uma das salas era revestida de couro com florões em relevo. Mais tarde. quatro quartos. Nossa casa tinha um corredor na entrada. me aprontei. Como ele era travesso! Só se ouvia em casa. era só o necessário para andar vestido. ameaçava conta r pro papai minhas travessuras e eu fazia tudo o que ele queria. De 1911 a 1915 eu via mamãe. Lupércio de Camargo mandou construir um palácio florentino. Angélica doou ali u m quarteirão para o Asilo São Vicente de Paula. Niágara e Jefferson. com dez anos fez um exame na Faculdade de Direito e tirou nota 8. Numa irmandade grande acontecem coisas muito engraçadas. um irmão sempre tinha que acompanhar outro. Roupa. Ele estava estudando as Guerras Napoleônicas. Es tudou com distinção. Um mês antes de sua morte estivemos juntos numa livraria em Santos. a do talento". Chegamos a colher 85 quilos de uvas. mas não amol ava os menores. às sete horas. Preciosa tinha hor ror a qualquer arrumação de casa. A casa ti nha um jardim de lado. O Chic o morreu mocinho e mamãe se arrependeu de ter dado palmadas nele. Ele fez o preliminar. Eu tinha fama de não gostar da escola.. Eu tinha oito anos . Fez tudo para ele não ir: "Você só irá se fizer o preliminar da politécnica". comprando livros. Lia muito e queria que lêssemos.como na vida de alguns homens . Filisbina. Gostava de correr mais que de ouvir histórias. Quando chegou o dia de tomar o remédio. Brites foi uma criança muito bonita. É preciso ter pr imeiro a emancipação econômica!". com a Ester. tinha medo. A rolha era para manter a boca aberta. Punh a-se álcool no fundo de um copo de vidro e acendia-se fogo. Ela precisou abafar meu corpo com cobertor. minha companheira de infância. passeio na corda. d. Uma vez ela não pôde aplicar e uma outra tia pôs excesso de álcool que correu para minha pele e o fogo acompanhou. Lembro dele entrando no meu quarto q uando minha tia o chamou: "Vem ver minha cunhada primeiro. Brincava com os fil hos deles. porque eu dormia de olho aberto. Mamãe achava que essa tristeza dela vinha de ter sido concebida e nascer num período de tristeza: o da morte de A na Margarida. irmãos. Filisbina. Papai nos ameaçava às vezes com urna correia que chamávamos de "emancipação" porque ele se mpre dizia: "Para ser emancipado não basta querer ser independente. com quase um ano. Pulei corda como ninguém imagina: corda simples. Era a caçulinha e. Brincávamos de roda. Brites foi sempre fechada. preparava o horário de estudo que corria religiosamente. isolada. Meu sonho era ter um velocípede. Augusto Militão Pacheco. Só depois de sete anos é que se podia tomar o purgante. o Zé Pegado. uma erva. e . que gente boa Era um a casa pequena onde muita gente vivia em paz e entendimento. Quem me aplicava era tia Brites. fica magra. que era um homem que a família encerrou num quarto e que vivia acorrentado. Tomei aplicações elétricas. Me enrolaram num lençol e me d erramaram o remédio na garganta. me fazia tomar até seis gemas de ovos por dia. era urna criança-modelo. com oito filhos e ele longe. a família Gabus. Clélia (com sete). Não gostava de bonecas. Essas ampolas. todo mundo gostav a muito dela. Dos três aos sete anos tive urna solitária que amargurou a vida de meus pais e de me us avós. Fiquei na casa de minha avó e minha tia dentista. Ela é que não pode morrer !". coisa dolorosa em que morreu muita gente. Tratávamos as doenças pela homeopatia com o dr. Meus irmãos me chamavam de Quevedo. só pele e osso . magro. Preciosa. brincalhona. muito dedicada. duas m eninas entrando uma de cada lado. que fazia sucção em toda a espinha de um lado e de outro p ara chamar o sangue. quando meu pai morreu. vovô. Para essas aplicações elétricas subia numa cadeira e todo o meu pêlo ficava em pé. já nasceu educada". descubra seu rosto que quero i'er sua cara. Na casa de meu avô ia um contador de histórias nordestino. contava a história da onça que viro u pelo avesso. E tinha que ser assim: mamãe ficava só. Aninha me agarraram e me puseram uma rolha na boca. que dor mia no meu quarto. Quando tive dança de são Guido fazia massagens vibratórias na espinha e ventosas. não se davam brinquedos para as crianças. mas triste. dobrando minhas pernas compridas. mas Chico Be nto tinha um e eu brincava no dele. De Guiomar meu pai dizia: "Essa. a gente fica com os movimentos desgovernados. Depois tive também a coréia ou dança de são Guido. As pequenas. d. doença que não se ouve falar mais. com arteriosclero se cardiorrenal. tive um reumatismo que me atacou o coração. Hoje se diz desidratação. Dei muito trabalho. No fim de uns cinco ou seis meses fiquei boa e depoi s sempre tive saúde. depois do feto-macho. eram para a circulação. Menina extraordinária! Papai era severo. graças a Deus. Ainda ouço a s suas vozes: "Será que ela vai engolir a rolha?". Veio depois da epidemia de febre amarela. ele era fantástico. banhos de eletricidade estáti ca. papai. Não cheguei a ter o velocípede. Clélia era um tipo so nhador mas uma criança levada. construindo estradas. Guiomar (com quatro) davam -se muito bem. Meus filhos cresceram ouvin do falar dessa gente. que chamavam também ve ntosas. não comia nada. Quando minha mãe ficou doente. mamãe. de ci randa: Senhora dona Sancha coberta de ouro e prata. cruzando e saindo. Tinha uns vizinhos adoráveis pegado à nossa casa. impressionante. em 24 horas. aos onze anos de idade ass umiu espontaneamente a direção de casa. meu lábio ficou tão fino que mo ldava os dentes. Para nós.Minha irmãzinha abaixo do Chico morreu de colerina. Depois virava-se essa ampola nas minhas costas. (O Gabus Mendes descende de d. de dois. magra. muito tóxico. Brites (com nove anos). de flanela. Lembro de ter ido à Casa Alemã e quando entramos tia Brites me dirigiu para uma port a aberta e me mandou sentar numa salinha com bancos estofados.. meus fundilhos vinham duros e verdes de escorregar na grama. Quando se estende os braços o carretel vai embora. meu pai foi diretor da Tramwav da Cantareira. Nós tínhamos uma vida muito simples. mas no meio da conversa . mais transparente. O alto do sobrado era o nosso ponto de referência para jogar diabo ló Pela nossa rua passava um sorveteiro cantando: Sorvete. de classe média para baixo. professor da Faculdade de Direito. Mas eu era afoita. como se ia ter uma idéia da sociedade? Mamãe tinha uma comadre rica que morava nos Campos Elísios. Enquanto ela conversava com mamãe. d. Mamãe fez uma capa para Preciosa que vinha até o chão. Eu tinha medo de passar pelo viaduto do Chá. de bilro. pai de d. que era a rua dos Turcos. de rendas.. abacaxi. foi aos onze anos.. Mamãe era profundamente boa. Bran co. a madrinha de Clélia. 270 Nós patinávamos. Por dentro er a o escocês mais lindo que se possa imaginar. o mais esperto pegava a capa de Preci osa e se co- bria.. Ela comprou na Casa Alemã um tecido com um dedo de grossura. seu único auxílio. com uma faixa cor-de-rosa. o chofer ficava do lado de fora. o chão era de tábuas largas e quando pisava tinha medo de enfiar o pé nas frestas que me pareciam grandes. cansada como vivia. Por fora era beje-claro. só queria pular e correr nas casas da vizinh ança. talvez mais fino que cambraia de linho. Senhorinha se vestia na última moda. veio estudar odontologia. não ligava pra roupa. Aninha. Via lá embaixo o Anhangabaú.. acompanhado por um preto. Com meus dez. A gente se vestia. a salinha levantou.c. quando a filha da lavadeira ia pa ra a escola. antigamente não se ligava pra roupa.. Ela vinha cada um. melhor. para visitar o vovô. plantações. Naque le tempo ninguém andava sozinha e tia Brites me levava com ela quando ia ao centro da cidade. Agasalho. Não me lembro o resto. um automóvel-caleça. mas o melhor a gente encomendav a num carpinteiro no largo do Arouche. que susto! Era um elevador.) Ester e o marido ainda estão vivos.. . um rosa e um azul. Seu automóvel era o único que parava em nossa porta. para freqüentar a escola. Desbragávamos de brincar. Ela não era pessoa má. A capa du rou não sei quantos anos. De vez em quando ele me levava com Chico Ben to e um lanche para comer lá. Nosso ponto de referência era um sobrado da nossa rua onde morou Vicente de Carvalho. Era travessa.não posso esquecer contava que seu garçom tinha quebrado uma biscoiteira de sessenta mil-réis e que ela tinha cobrado dele. de madeira especial). esperando.le é irmão do Otávio Mendes. D. trans- formava a roupa de papai em roupas para meus irmãozinhos. Quanto mais forte o movimento de rotação. Quando fazia frio.. um córrego. jogávamos diabolô: eram dois cabos de madeira ligados por um barbante. com receio que ela fosse mal alimentada. Do outro lado da rua 2 de Março ficava a estaçãozinha. no meio um carretel (havia uma variedade enorme. dois anos. de pelotinh as como lã de carneiro. usava paletós de flanela de algodão. o primeiro que tive. Quando chegamos em São Paulo (Ribeirão era que ntíssimo) pegamos um frio! Foi um corre-corre de mamãe para preparar os filhos para o frio. é de creme. Mamãe ia no Bon Diable da rua Direita e m e comprava dois vestidos. Não havia essa preocupação de hoje por agasalho. de seda. tomando chuva. não observava roupas. Leonor Mende s de Barros. Uma irmã de meu pai veio morar conosco uns tempos. de uns Oito metros de altura. mas era um italiano o sorveteiro. ela mesma ia para a cozinha preparar o lanche da menina. sink. não posso ter certeza do que via. Íamos pela ladeira que sai da rua General Carneiro. Com ele atravessav a o inverno aqui em São Paulo. iaiã. Uma pala de renda do Norte. E o vestidi nho melhor. uma amiga que mamãe teve. onze anos. o carretel voa mais longe. inquieta. Antes de sse. De repente tive u ma sensação engraçada. S enhorinha. D. Minha mãe não saía de casa. visitar mamãe. era um beleza: de nanzouck (esta é a memória visual q ue tenho da palavra). do Rio. Foi cri ado sem mãe. sempre lutando. E Floriano perguntou o que ele queria. Fui criada num ambiente republicano. Meu avô. como se diz.Naquele tempo não se saía de casa. mas um grupo de republicanos tinha feito pacto co m Benjamim Constant que. apesar dos avançados anos. c om facilidade para medicina foi enfermeiro de escravos. abolicionista. Lembro dos 15 d e Novembro. já casad o e com família. que diziam que e ra amigo de Bocage e nunca se soube por que veio para cá. Não sei se é lenda. especialmente o último: ele vestia a farda. O que eu mais gostava em minha vida era estar na c asa do vovô. de u uma sova no agressor e fugiu de canoa para o Rio. Meu avô disse. Floriano deu. florianista. louco pelos netos. que sempre foi nosso médico. Meu avô morava em Ribeirão Preto. a meu avô. ameaçou também. o dr. Isso desagradava os sen hores. assinava O País. como guarda de honra. por isso desfi lo ao lado do porta-bandeira. nessa época. Eu era a queridinha dele. Passam-se os tempos e um dia. fugia para a casa de vo vô. Quando podia. se houvesse reação contra a República. Filho de um português. mas a gente tem que combater: caridade é justiça. convocando todo mundo para defender a República dos monar quistas. então: "Eu desfilei a seu lado". onde se casou e teve 24 filh os. José Álvares. ameaçado com faca. Eu gostava muito da vi da. todo mundo sabia. Diziam que fugiu para cá p orque plantava fumo em Portugal e devido a uma proibição do marquês de Pombal. papai a sobrecasaca e iam . Vol ta e meia precisava sair do Rio e deixava minha avó sozinha com os filhos. Quando chegou ao Catete já tinha o batalhão formado. Era um republicano apaixonado e um homem feliz que viu seus sonhos realizados. era filho demais. mas um lutador. Aos doze anos trabalhava em Santos e. tinha que sofrer muito. perdia os empregos. nem caridade. Veja na fotografia do meu querido doutor Militão P acheco que belo olhar ele tinha. era um homem pobre. não se sentia bem no Rio. E a menina veio e o beijou. Combateu com meu avô. O dr. e ra muito seca com os netos. pela qual ele lutou e sof reu. exaltava o ânimo do escravo: "Tenha esperança. Ele tinha partido sem cont ar para ninguém. sentava em seu colo sobre as duas pernas para que ninguém mais pudesse sentar ali. Abre o jornal e lê com grande surpresa o nom e de vovô no Batalhão Tiradentes para defender a República. o título de capitão honorário do Exército. Inteligente. as barbas descendo até o peito. num carro alegórico. Acabada a revolução vai a Floriano Peixoto para se despedir. Um dia. com os acadêmicos de medicina. Augusto Milhão Pacheco era um médico espírita. que. Guardou seu boné da batalha que vi furado por u m tiro. dormiu naquela tristeza e disse que só acreditaria em De us se sua filha voltasse por um instante e desse um beijo nele. voltava para São Paulo. Augusto Militão Pa checo estudava medicina. Em 1893 houve a revolta contra a República de Custódio de Meio e Saldanha da Gama. em 1905 ou 1908 encontra vovô e lembra o desfile da vitória em que foi o porta-bandeira. Com esse espírito republicano em plena monarquia. Meu pai. pela sua posição em defesa da República. Quando Custódio de Melo levantou a Marinha contra Floriano. passeio era ir à casa de vovô. Saiu da faculdade na praia de Santa Luzia e fez. Respondeu que queria levar só a farda com que tinha combatido. Foi ateu e se tornou espírita quando perdeu sua p rimeira filhinha. Minha avó era enérgica. Querer justiça sem l utar não é nem justiça. Vovô combateu na ponta da Armação em Niterói e contava que viu fin cada ali uma bandeira inglesa. ela gostava da gente empurrando. voltariam de onde esti vessem para defendê-la. Respeito todas as religiões. Vovô era um indivíduo profundamente idealista que teve a felicidade de ver realizado o sonho que alimentou desde moço: a proclamação da República. o dr. fugindo. Queria fugir para onde havia mais barulho e alegria. um comício. ao lado de Floriano. Criatura boníssima e alegre. Meu avô morava no largo do Arouche. teve uma vida difícil. com esse despotismo de criança. Meu avô era republicano. Uma vez um negro o avisou: "Não siga por esse caminho. era fina nciada pela Inglaterra. é luta. No dia da proclamação da República minhas tias lembram do vovô chegando com uma peça de fa zenda para as moças da família festejarem a data. o que hoje se diria. Meus pais não tinham tempo de agradar. Ele era o mais velho do Batalhão Tiradent es. Pacheco. ia a pé para lá. tem lá uma emboscada c ontra o senhor". a liberdade está próxima!". d. de colarinho e fraque mas vestido só da cintura para cima para economizar seu par de calças. Miss Brown veio ao Brasil no tempo em que o americano vinha também para dar. pelo modo de criar da época. Tudo se apronta". mas discutiam em voz tão alta que parece que estavam brigando. hoje ninguém is faz isto. Esse estudante era o Barão do Rio Branco. e não tinha coragem de dizer quero ist o. estudantões e estudantadas. O papagaio gritava: "Seu capitão. refletido por inteiro. Abranches ainda existe. Quando acabava a festa. coco de respeito. El a interrompeu: "Continue em pé!". chicote-queimado .. Vovó achava que ele estragava os netos. nossos heróis! Meu avô veio para São Paulo conosco e ficou.) A Bahia não dá mais coco para pôr na tapioca. sempre gostei muito de dançar. Na Escola Mo delo já se começou a usar o método analítico. reminiscência d a Faculdade de Direito. de predileções. ali por 1908. tinha medo dela que era muito seca. da Barão de Tatuí até a praça da República. Lembro a sensação de timidez. Foi muito acirrada a luta entre civilistas e hermistas. uma riqueza de língua que não se esquece mais: Late o cão se algum estranho . quem vadia? Clareia pouco a pou co. O livro tinha versinhos de que gostávamos muit o: Bertilha fez bem ao sapo. O galo canta. Lembro da primeira campanha de Rui Barbosa con tra Hermes da Fonseca para Presidência da República. Mas não tenhas medo. era carinhoso. Continuei em pé. quando foi dormir. (Coco de respeito era a cabeça grande de Rui. todo hermist a. vi-vi-vi- vi-viva a República!". Se queres que bem te queiram. Pedia no ouvido dele: "Quero um chinelinho de couro". Nós juntávamos meninos e me ninas na frente da casa para brincar de bento-que-bento. Quando vejo aquele fundo do largo do Arouche lembro tudo isso. sempre com a mesma professora em todo o primário.cumprimentar o presidente do estado. Ele descreve no livro um estudante que saía à janela.. Tinha uma vida avoada de menina. O pessoal de casa.. Foi o último presente que ele me deu. no alto de um paredão de pedra. Toda família tinha uma medalhinh a de prata com a efígie de Floriano no verso e no reverso: "A bala!". desapontada. numa casa gostosíssima na esq uina. A gente era tímida. Era do livro dele Vozes dos animais. barra-manteiga. Fui alfabetizada. A íris preta de meu avô brilhava quando contava a batalha. espontaneamente: "Mas minha gente. não só para tirar. a meninada em pé cantava o Hino Nacional. uma coisa desagradável que sentia. Vovô me chamava de minha mulata quando eu sentava no colo dele e enchia sua barba de trancinhas. paciente com os netos. minha avó mudou para a rua Major Diogo. Sábado vovô fazia um baileco com gramofone e discos da Casa Odeo n. repousando do enfarte. Uma vez pelo espelho. O sapo criou-lhe amor. Nunca mais a gente esquece essas coisas. Sua casa na esq uina da dr. 1910: Papagaio louro do bico dourado. para fazer bom mingau e embromar os cariocas. cantava uma modinha que fizeram para o Rui Barbosa. mas co mo sentia o Brasil. humilhada. quero aquilo. Ao lado do senador Batista e em frente do Al meida Nogueira. A gente do vovô tinha as m esmas idéias. Comecei a estudar com oito anos na Escola Modelo da Praça. como Floriano receberia a esquadra inglesa: "A bala!". Foi enterra do com farda de capitão do Exército e coberto com a bandeira brasileira. tenho a impressão que pela Cartilha de rniss Broun.". Morrendo o vovô. No segundo ano. no largo do Arouche.. Nosso ambiente era anticivilista. Meu primeiro livro foi o de João Kõpke: "Começa o dia. tufalai'as tanto já estás calado. Faças bem seja a quem for. Num concurso de valsinhas ganhei o prêmio. Do quadro do Flor iano na sala de visita. quem quer se fazer não pode quem é bom já nasce feito. Sempre dei João Kõpke quando lecionei. Morreu em 1908. para n amorar. Depois que vovó morreu tu do acabou. alguém o viu da rua. interessada no que ela estava expli cando levantei. Jorge Tibiriç. Nós sempre fomos a pé para a escola.frade. estendi as mãos e disse. Maninha Campos . que escreveu Estudantes. O lado da Barão de Itapetininga e da Sete de Abril era só d . por fila de carttAras. que faz anos. companheira. a professora apontava um número e Outro que deveriam ser mu ltiplicados. Eram todas casas patriarcais. A tabuada era de um a 12. esperança fagueira. salte ínclito mártir. que nunca saía de casa. Fomos de bonde e levamos qualquer coisa para comer lá. tudo o que aprendíamos era na aula. Uma vizinha. Quem dizia más levava uma chamada da professora. Digo mãs epãra. livros interessantes. Salte. antes de chegar na rua Aurora tem urna grande árvore daquele tempo em frente à cas a que fazia esquina com a praça da República. A rua Vieira de Carvalho tinha ma nsões da burguesia de São Paulo. não trazíamos lições para casa. com uma galeria em cima. rosna e uiva triste pelas noites de luar. andávamos por uma trilha aberta no mato. a teu nome eterna glória! Autor: Hipólito da Silva Branco. Gane. Eram só casas de residência. que presente ela quer. o da Bandeira. Eu ganhava. Lúcia Branco. O la rgo do Arouche era só de ca o Hino a Tiradentes: sas residenciais. As férias. Foi uma novidade para mim. havia ne ssa esquina urna linda casa com jardim. que desapareceu. resplandescen te farol. risonha. A praça da República era cheia de plátanos que tin ham em volta urna grade bonita de ferro. Qualquer dia. A escola era mode lo. Todos os sábados havia reunião no anfiteatro da Escola Normal. Havia solidariedade en tre bons vizinhos. m as muito desesperada. que vai para o largo do Arouche . um maes tro que nos meios de antanho deve ser lembrado. da Proclamação da República. Li pouco em criança: Rosa de Taneburgo. uma arquitetura de ferro importada da Europa. Genoveva de Brabante. pianis ta. O maior castigo er a ficar em casa. vou passar em frente para ver se a árvore ainda está lá. Lembro muito bem das aulas de tabuada e cálculo rápido. Nesse desafio de cálculo. como o português faz. Mariquinha Marques. hoje não recebo uma visita de meus vizinhos. ficava o Jardim da Infância. A primeira lição. de Savedra. conta a história de um irmão que na hora de repartir dava a parte maior para o outro. ela dizia: 'A que m for melhor dou uma coisa!". Gostava muito do livro Quarto ano de zoologia. Lemos J oão Kõpke. porque era errado pronunciar más e pára. me emprestava livros. A filha dele.. Silva Pinto. d. Certa vez fomos com a escola num garden party. prédi o hexagonal. morreu há quatro anos atrás: era uma menina nada bonita. Aninha dizia que a praça antes se cham ava largo dos Curros. Em soberbos monumentos grave a niáo da pátria história: maldição a teus algozes. Que sinonímia! Nos fundos da escola. Ela nunca me deu essa coisa. íamos à aula nas datas nacionais só para comemorar.. Nós cantávamos muito quando começavam e quando acabavam as aulas.. Na aula de leitura ficava em pé e lia. Os d esastres de Sofia da madame de Ségur. que dá para a praça da República. Entrando nessa rua. Tenho quase certeza que era esse o autor. Aprendíamos uma porção de cant os: o Hino Nacional. no fim do século passado. Eu pensava: "Por que razão devia ser a parte maior? Por que não em partes iguais?". "Fraternidade". Íamos a pé para a Escola da Praça: da alameda Barros até a Martim Francisco. O Cine Coliseu era a casa de Cícero Bastos na esquina com a rua Maria Teresa. Era uma estrutura muito bonita de ferro. e As meninas exemplares. Descrevíamos uma gravura em que um pai pergunta à filha. A menina pede a libertação dos escravos. hoje Duque de Caxias. As turmas antigas da Faculdade de Medicina colavam grau lá. no Jardim da Luz. Não havia feriado..aproxima-se do lar. D. octogonal. Depois da Martim Francisco as ruas eram calçadas. Apren di tabuada de modo inteligente: uma circunferência na lousa com números como os do r elógio e com o ponteiro. da Independência e o Hi no da Mocidade de Carlos Gomes: Mocidade. Da aurora da liberdade foste o plangente arrebol. ser anticlerical. acho que em 190 ou 1909.te. Quando o Serviço Sani tário mandou isolá-lo em casa. Os irmãos Antunes eram positivistas. Paulo e Virgínia. era também contra a monarquia e o clero porque quem não era batizado nem podia freqüentar a Escola de Oficiais. Era engenheiro e homeopata. Os brasileiros vencidos pela maleita estavam deitados nas ma rgens de um rio quando viram uma canoa descendo as águas com a bandeira do Peru. Julinha nos contava a história de Galileu. dia 15 d e agosto. no Natal vinham cópias de pinturas célebres que se punham em quadro. Uma coisa (4UC ni marcou fllUitO foi o assassinato de Euclide da Cunha. quando ele tinha que dizer que a Terra não se movia e afirmava "Eppur si muove!". Aninha é que me arranjou os livros. a Companhia Mogiana fiO S deu uma casa. era: "Um templo de saber que se cons troi. D. Queriam comentar a notícia longe das crianças: aí que a gente queria ouvir. Todo mundo recebia catálogo de Paris: Au Bon Marché. Eu me lembro que chegou a notícia no almoço de batizado da Guiomar. Quando acordei de madrugada m e assustei com o tamanho de uma estrela. Ti nha loucura por Chico Bento e o viu morrer. Sou da ge ração dos que sofreram influência da França. Todo mundo viu o cometa de Hallev. arrancaram a bandeira e hastearam a nossa. que de madrugada enchia o horizonte. Julinha. gravava -se em nós o espírito de revolta. por Voltaire. ela comia os restos dele. Com catorze anos gostava de fazer croché e arrumar a casa. Me disseram: "Não está mais na idade de brincar na rua". como recitávamos. Meu pai assinava revistas francesas: L 'Ingénieur. Ela gostava loucamente do Chico Bento. Mas li o episódio que se passou quando Euclides fazia levantamento de nossas fronteiras no Peru. Le Printemps. Nessa época. dizia-se Betot'ân. Julinha Antunes. Nu nca mais vi a estrela-d'alva de madrugada. lia. Quando d. não sei onde.. De madrugada era maior na esf era celeste. pensei que fosse a lua. Li O valo r de um símbolo de Euclides da Cunha. na fazenda de uns amigos. O irmão de d. Tinha trez e anos. Gabriel Antunes. papa i deu permissão para que eu fosse numa festa.. A professo ra gostou muito. a estrela-d'alva.". Euclides era engenhefro como pa pai. Nâo lembro o resto. Aquela estrela do tamanho de uma casa . que vai de São Simão a Ribeirão Preto. Brincava ainda de patim e diaboló na rua. Ser positivis ta era estar com a filosofia de Augusto Com. Em 1911 entrei para o primeiro grau da Escola Normal. avó do Roberto Simonsen. Em nossa família os irmãos mais velhos é que preparavam os mais novos para a Escola No rmal. homem de muito valor. D.e casas pequenas. Quem me influenciou muito (meu ambiente em casa era muito brasileiro. onde morava o cabeleireiro Hamel.. Na escola havia um g inasium onde se praticava esporte e se estudavam quatro anos de francês. e ferrei no sono. O positivismo. no tempo da febre tifóide. Muito maior impressão tive com Vénus. mas eu era tímida. Papai teve um grande abalo. Líamos muito literatura francesa traduzida. de tão grande. L 'IIlustration. Ela nos fez ler Euclides da Cunha. não se dizia Beethoven. Os artigos agora m e parecem baratíssirnos. parecia um sonho. Galeries Lafayette. apesar de ser tão anticlerical. que era linda. Eu mesma mandei buscar um marabout de penas para pôr no pes coço. Em 1910 estávamos em São Simão: papai ia fazer o ramal da estrada de ferro de Jataí. excessivam ente patriota) foi d. tive dor de barriga de pavor. La Nature. de cauda branca que se alarga.. Quando acabei Os n ziserã reis caí em pranto. tinha medo de rec . T inham seção de blanche (lingerie) com desenhos das peças e os preços. Como falava de Tira dentes! Dia 15 de novembro pediu que cada uma de nós levasse um trecho para ler. Os grandes flOS diziam: Vai embora daqui!". a hora do julgamento.. Cochrane Mamãe já estava doente e nas férias fomos para lá. O diretor da Secretaria de Obras era o dr. O s brasileiros se ergueram.. uma professora positivista. Me recostei. Era a me lhor hora de ver em São Paulo só se via à noite. O que me custou essa leitura! Sofria com min ha timidez. por Daudet. O clero foi um atra so no mundo. D. Coehran e. Contava histórias do tempo em que a praça da República er a o largo dos Curros. Os positivist as fizeram a República. Ele tinha admiração pela França. Li Os miserár'eis em cinco volumes. Recitava-se muito na escola. Aninha foi lavade ira de minha tia e lia. E havia no posi tivismo um culto à Virgem Maria. sua norma era: "amor por princípio. progresso por base. Tudo o que me destacasse me punha em pân ico. esse dr. Julinha tinha muita vibração. pelo espírito de luta. E l3ach. se eu morresse amanhã. Tínhamos um livro impresso em manuscrito de Álvares de Azevedo e mamãe cantava com a tia Jovina modinhas a duas vozes: Se eu morresse amanhã viria ao menos fechar meus olhos minha triste irmã. Estudava conscientemente mas não tinha talento. Só ouvi Ru binstein tocar como ela. daí minha revolta contra a I greja. 282 * * * Estudei quatro anos de piano. precisava toílette. mas nasceu com a convicção de si mesma. um vestido de seda cor-de-rosa com sobre-saia. encontrei a no tícia da morte dela. Mas na presença do vice- diretor Gomes Cardim. Guardo uma memória indelével de Margarida Camargo de Barros. pela inteligência. grande idealista. um cômico muito interessante. Tocav a violino muito bem. Herz era o piano da mamãe. Essa menina pernambucana ia para o curso de d. Eu era a pessoa com a qual s e abria: foi abafada por uma família em que todos os irmãos foram padres ou freiras. Vinham grandes companhias líricas e eu. Tive uma grande tristeza. Acompanhei. cabelo re puxado com trança. Pobre não segue c arreira musical entre nós. pela bondade. Em 1910 era o tempo das operetas e minha tia Brites comprav a as partituras inteiras e domingo ficava tocando: Sonho de valsa.. Wagner. Quando Preciosa casou-se em 1914 tinha então uma toílette. Comecei a ir ao teatro em 1917. ia ao cinema com meus irmão s no largo do Arouche ou no Cine High Life. Ela foi a minha grande lembrança do curso. Não houve o menor contato: as meninas sentaram de um lado. Ela tinha uma fibra que eu admirav a. Quando se preparou a comissão para formatura. Nosso paraninfo foi o professor Oscar Thompson. ia para a pedra e enfrentava o professor de matemática quando ele errava. acompanhada de uma pretinha. Elvira Brandão. Era sobrinha do bispo d. que morreu no naufrágio. Quem me levava à ópera era o pai de uma amiga de infância. que queríamos muito bem. Maria José Rangel. Era humilde. havia uma grande dificul dade. Arranjávamo s um dinheirinho de nossas economias. Para ir à escola. Nos gestos do ditado musical.. acho que o filme mudo impressiona mais. Havia completa separação entre o curso masculino e o feminino Não conhecíamos nenhum colega de turma e quando se formou essa comissão nos encontramos pela primeira vez. Minha mãe de saudades morreria. pelo caráter. 79 anos. A gente sente nec essidade de ter uma grande admiração desde criança. A princesa do dólar. Lembro da primeira fita que assisti: foi o Caso Dreyfus. ficamos amigas. O espírito religioso antigo abafou muito a inteligência. Foi num cinema da rua São João: era o primeiro filme que assistia e sobre perseguição política. colega de minha turma. Margarida formou -se com quinze anos.itar e me escondia. sabendo o que custava a meu pai. aniversário de criança não se festejava. Troçávamos de suas pernas grossas. era louca pelo lírico. de 1914 a 1918. O Teatro Municipal era caríssimo para nós. pela primeira vez nos encontramos com os colegas rapazes. eu tinha gambitos. A data que se festejava em menina era o Natal com um almoço de família. os rapazes de outro e ele fazia a ligação em nossa conversa. das oito horas até meio-dia. custava a descobrir a beleza dela. sua execução de Tristão e isolcia era uma ma ravilha. O Carnaval. de longe. No regime capitalista ele precisa ter empresário. que ouvido tinha! E era bonita! Olhar inteligente. Mesmo sem fortuna não se dispensava o piano. por influênc ia da mamãe. Vovô dizia de minha irmã Clélia: "Ela fez em um ano o que você não fez em quatro". Nunca ma is esqueci. Comprávamos um camarote de segunda . só espiava pela janela do largo do Arouche sonh ando que um dia eu poderia me fantasiar. As músicas eram ao piano. ela teria feito agora 78. José Camargo de Barros. Mas Cléli a tinha um grande talento. Quando 285 nos tornamos colegas de escola. Vivi num ambiente muito musical. Gostávamos de Max Linder. Havia duas marcas de filmes: a Biogr aph e a Vitagraph. que foi secretár io da Educação. Folheando o jornal. com admiração a carre ira dela: formou-se em medicina na csp e casou-se com um médico. e ducadora que preparou gerações. Aos domingos. ela pas sava por minha casa. Festa de formatura não fizemos porque dia 7 de novembro morreu uma col ega no surto de febre tifóide de 1914. Tocava a Berceuse de Chopin e me emocionava. A viúva alegre. . sentimen tal que havia entre nós. O que me impressionou na Itália Fausta é que ela se separou do mundo e perdeu o filho. levando uma peça de Ibsen. O ambiente de casa era absolutamente francófilo. Dava muita leitura. iam pais.. Papai entregou a última empreitada. papai ainda estava trabalhando. que me arranjou os meninos. Camões era obrigatório para o exa me jarcelado. irmãos. Caetano vinha com alguma observação que me fazia rir. Talvez minha memória tenha apagado. na Nicarágua . La Bohême. o maior cantor lírico que já existiu.. família não ia m esmo. Caruso gritava. (Se bem que essa doença agora está recrudescendo. o Totó (que foi reitor da faculdade). Pensava: "Eles estão tão longe. incomparavelmente melhor que Caruso. um italiano. Céus e terras do Brasil. Quanto mais vivo. Recebeu o dinheiro da empreitada e foi o ponto final dos trabalhos dele como engenheiro. Giacomo Stavale. sua voz melodiosa. a vergonha do dinheiro. Iam ao teatro os fazendeiros riquíssimos de São Paulo. Os italianos eram extrovertidos. sinonímia. Eu dava aulas particulares para a burguesia aqui de São Paulo ou em casas de família ou nos cursos do professor Giacomo Stavale. Sentia uma interrupção naquela ligação amistosa. pisoteada. Angéli ca. minha impressão é que foi por causa da crise. na avenida Angélica. que não queriam ensino de freir as. o Delfino e o Paulo. Procurou o menino em toda p arte. afinal. levou a ponta dos trilhos até São José do Rio Preto. O mundo fica omisso. volto aos meus vinte anos. ele ficou riquíssimo. Os ordenados eram miseráveis. onde é hoje a Pinacoteca. no Municipal. percorria todos os bairros comprando ferro-velho e ajuntando num lugar. Era o Ginásio do Estado. mães. como criminosa é defendida por um advogado. que arrepio na platéia! Ele se referia à sífilis quando atinge a medula. são coisas do p assado. Rafael quando se suicidou tinha só dezessete anos . Euclides da Cunha. Traviata!. Em Santos tomavam o vapor com d estino à Itália.) Itália Fausta é um pouco po sterior. Quando o herói falava: La malattia letale che fá la tabis dorsale. "o rei do ferro. Ia à casa deles e dei o curso primário particu lar para eles: o Jorge. ferida. que desapareceu. que é seu próprio filho. arrombaram o portão e houve atr opelamento de gente correndo. As professoras ganhavam (até hoje ganham) uma coisa irrisória. mas os pais só me mandavam as crianças em fins de julho. ordem e dividíamos entre cinco pessoas o preço da entrada.velho". O pai era muito enérgico. Nunca mais conseguiu emprego. fazi am aquele barulho todo. éramos o là-b as. Eu tinha vergonha. Assisti com Caetano A ré misteriosa. o grande Zaccone. mais horror tenho ao dinheiro. O que me lembro é dos filhos de italianos qu e foram para lá. Fui lecionar aos netos de d. Lembro que no embarque dos voluntários na Estação da L uz. O ordenado dav a porque tinha casa. Ouvi Rigoletto. análise de coisas nossas. Naquele tempo. deu uma sova no menino.. Afinal. Qua ndo eu começava a me emocionar com A ré misteriosa. trágic a. no Jardim da Luz. Eu dava o progr ama de português. a engenharia no Brasil parou. Ouvimos Tito Schipa. Ensinava grupos de alunos de famílias muito católicas.. Houve morte na Estação da Luz. Tosca. que passou a ser Roosevelt depois. avós para despedida. Consegui trabalho através do professor de matemática. Por causa da crise de guerra. sua grande peça. * * * No início da Grande Guerra ficamos a certa distância. Quando leio hoje no jornal sobre a exploração na América Latina. Em 1916. comida. com eçou a venda de ferro-velho. era uma vergonha. A gente sentia lá no coração quando Tito cantava. Por que vão morrer lá?". Fui vê-la no Teatro Bela Vista. que enchiam o Municipal. . p . Os alunos com dez anos tinham completado o grupo: as bancas começava m a examinar em dezembro. excert9s de Taunay. Eu sentia essa cois a muito burguesa. para a França. Lá se faziam as bancas para exame. Comecei logo a trabalhar depois que me formei. na ladeira Porto Geral. o Rafael. O que eu ganhava era muito pouco. F oi um fenômeno da guerra. Preparava as crianças para os exames parcelados: português e aritmética eram eliminatórios. Assisti Zaccone. defender a Itália. tinha um timbre de emocionar. Quando faltou ferro em São Paulo. Quando mandei o caderno de Rafael para que el e visse. em São Paulo só havi a um ginásio. Em galeria. mas tinha uma família grande. quando essas meninas ricas me punham d iretamente o dinheiro na mesa. Houve uma cris e tremenda. Chegado a São Paulo adoeceu e morreu com diagnóstico não definido . acha que meu pai morreu de leptospirose. Um dos meus alunos. Não adianta dar de finições. que acabavam analisando até Camões: os episódios dos Doze da Inglaterra. Meu pai ficou aflito.rincípios de agosto. A preposição liga palavras da mesma espécie ou de espécies diferentes. professora. Mamãe usava um patuá de alho na mão para cheirar. foi uma coisa sem grande repercussão. Sua letra era feia e eu estava certa de que ele não ia passar. sem abrir a boca. fez esse leva ntamento em 21 dias. o Marcelo. com a Grande Guerra não se encontrava trabalho. Nós atravessamos 1918 sem ninguém ter a gripe em casa. não morreu nenhum vizinho.. Esse trecho Faxina-Apiaí é o tr echo da leptospirose. Meu quarto era perto do dele e eu o ouvia dizer para minha mãe: "E u era capaz de pagar para que me deixassem trabalhar". o Plínio Sampaio. A criança com meu método fica com uma facilidade enorme em destrinchar os períodos. Papai ficou desatinado de medo. De dentro de casa víamos passar pe la nossa rua até três coches fúnebres juntos. Primeir o. onde o ambiente era absolutamente francófilo. reprodução. As crianças não tinham a menor idéia de redação. Meu pai fez trezentos quilômetros em lombo de burro. a célebre Apiaí que fica na d ivisa de São Paulo-Paraná. pelo que disse a mãe. o verbo. Abriu o mapa do estado em cima da mesa par a ver para onde se podia fugir. filho de Preciosa. Isso eu punha na cabeça das criança s. O que vai na linha horizontal é substantivo. o que vai na linha inclinada é o qu e modifica o substantivo. Foi seu ponto final como engenheiro. Nós estávamos come ndo do ganhado. Mas a gripe já tinha chegado lá! Nos isolamos em casa. Como o meu método facilita! É fantástico para tirar dúvidas. Mas o conseqüente da preposição é sempre o substantivo. descrição. houve alegria. Meu irmão mais velho. pegou um levantamento de Faxina-Apiaí. via os corpos que ficavam por enterrar porque a família do morto tinha também caído doente. Nunca mais arranjou trabalho nenhum. Ficou em pleno ma to completamente sem notícias. "O seixo rolado". Soube que se escondia atrás dos postes quando começaram os apitos de "grilo " em São Paulo: ele apitava como um "grilo" da Guarda Civil e o automóvel parava. meus netos confundem conjunção com preposição. Achava que a análise lógica era só para gên ios privilegiados. Em julho de 1919. Ensinava lexiologia e sintaxe. Se mamãe pegasse a gripe não resist iria. Numa dessas andanças o cavalo atirou-o no chão. do Gigante Adamastor. ur O que entra assim pelos olhos dá firmeza na análise. temas: "O amanhecer". Tirei dois na escrita e dez na oral. O professor Souza Lima perguntou quem era a professora e eu passe i". Lembro de uma vizinha dizendo para mamãe: "Acho que tenho um vizinho que é anarquist . Aqui em São Paulo um rapazinho morreu por mordida de rato. Pouco distante de nós morreram dois rapazes fortes. Diziam que quem comesse um dente de alho misturado na comida s e salvava. bairro d e maior concentração populacional de São Paulo. Inês de Cast ro. na linha horizontal. Muito depois. Rubião Meira deu uma entrevista para o jornal: "Os nefríticos não resistiam à gripe". o sujeito: passarinho. Caiu a segunda estrofe dos Doze da Inglaterra e o menino analisou na perfeição. fazendo limpeza num porão. que trabalhava na instalação da central telefônica do Brás. Não me lembro do fim da Primeira Guerra. Uma senhora substituiu o colar de pérola por um colar de alhos. Hoje. "O entardecer". dois latagões. transmitida por ratos. Disse uma vez: "O céu tão azu l e eu sem trabalho!". comíamos todo almoço um dente de alho. Sua caçula tinha onze anos. Vamos dar um exemplo: "O passarinho canta na gaiola pendurada na porta". O professor Souza Lima admirou. S eguia o método de Otoniel Mota. era o tipo de criança com a cabeça cheia de trav essuras. Papai vivia desempregado. mamãe era doente. O antecedente pode ser o subst antivo. Onde canta? Aparece o verbo separ ado por um traço vertical e o que modifica o verbo vem embaixo dele. Na nossa rua. o adjetivo. ou em aranha (charrete). mas i magino que em casa. Na Escola Normal eu não conseguia analisar Camões. Um dia descobriram e deram uma corrida nele. pensava num lugar. sou entusiasta desse método que facilita muito a análi se.. para se dar a análise lógica tem que se dar a léxica. Um dia me aparece o Plínio em casa com a cara mais gaiata do mundo: "Passei com seis. Ela sofria do coração. descia com meu pai a rua Quinze .feira de manhã di zia: "Que bom! Tenho a semana inteira para trabalhar''. Quando o conheci. mas um espectador nunca é neutro. Helder. louro. Falou pouco porque a polícia debandou o pessoal. Eu tinha medo deles. Que homem admirável! Elevava qualquer pessoa. Como Camilo é cacete! Gostava de Blasco Ibáfiez porque era anticlerical. Paulo dava notícias da revolução à "moda liberal": os bolchevistas eram sangüinários. claro. Os que lutam por um mu . Se a menina sumiu do orfana to. Os professores de literatura exigiam que lêssem os Camilo. Xingar. Com 22. Temos que n os unir. Os anarquistas fugiram ou eram presos. Lia Zola. Tinha muita admiração por todos os rebeldes: Sebastien Faure. corado. O que me aproximou dos anarquistas foi meu anticlerica lismo. ele era anarquista. Minha geração sofreu muito a influência anarquista.. mas essas coisas ficavam muito longe. tudo vinha pelo telégrafo. Sabia que o tza r era um monstro e que o padre Rasputin era sua sombra. A mãe dela subiu numa cadeira e fez um discurso no largo do Colégio. Quando li as notícias eu senti logo o que era a revolução: fui uma espectadora. Lembro o velho Gattai. grande orador sacro. A classe operária ficava longe. O primeiro anarquista foi Afonso Schmidt. lembro da firmeza de Leuenroth. lá pros lados do Brás. em folhetos. na Imaculada Conceição. anos ma is tarde.a. Os padres eram tremendos. o Rosenberg. No Orfanato Cristóvão Colombo tinha desaparecido uma menina. Tive logo simpatia pelos vultos da revolução e pelo que representavam. que desde o pri meiro ano de medicina era já maximalista. Os anarquistas escreviam nas paredes: "Onde está Idali na?". Uma vez minha mãe me levou a um jogo de futebol. cujo museu visitei em Laguna. Veio a cavalaria. um santo. Quando abria os olhos na segunda. Meu s pais e meus avós foram maçons. havia em São Pau lo os maximalistas.". chorar não adianta. ligaram aos padres o sumiço da menor. Onde estão todos eles? Foram esmigalhados pela sociedade de consumo. Ela con ta que uma vez mataram um operário. Foram com o op erário morto para o Cemitério da Consolação. Antes da revolução. Tolstoi. Havia uma luta entre o clero e os anarquistas. francame nte anarquista. olhos azulados. Quando estudante lia o grande geógrafo belga Reclus. Eram operários. embora não creia.. Lia Kropotkine. 23 anos tive muita tendência anarquista. Li Amor de perdição numa edição antiga de mamãe. Só depois é que l i sobre a Revolução Russa. assassinos. com estrelas douradas na capa marrom. deram tiros. q uem sabe até comprei seu livro. de bonde. era tremendamente anticlerical. a esse poeta que escreveu sobre são Francisco. o pobrezinho de Assis. Hoje digo que fora da Igreja não há salvação para o povo. Meus pais ligaram aos p adres esse desaparecimento. Chorei muito. faço parte dessa omissão. gente que estava na luta. Samuel teve um colega de turma. A Revolução Russa foi um acontecimento longínquo. Lia os panfletos de Edgar Leuenroth. os catorze ou q uinze países que invadiram a Rússia eram os defensores da liberdade. Em 1911. Tenho um dicionário anarquista que comprei nessa época . Torci de uma tal maneira que ela disse: "Nunca mais te levo em jogo". Mas meu pai ajudou com esmolas a construir a Igreja de Santa Cecília e admirava Manfredo Leite. Os anarquistas é que faziam reivindicações operárias. como a de Afonso Schmidt. Queria ver um padre amarrado em cada post e. Fui criada num ambiente de gente muito sensível à injustiça social. Esmola é justiça. como diz d. Foi a primeira manifestação de rua que eu vi.. Gostava muito do meu trabalho. Lia Anatole France e Eça de Queiroz. "um professor dirigi ndo-se aos alunos". Era o mesmo que dizer bandido. Garibaldi e Anita Gar ibaldi. Vi em plena rua Quinze um encontro da polícia com os anarquistas em que saíram tiros . Quero um bem infinito a esse escritor. Afonso era d e meia estatura. A mãe de minha amiga Alda era anarquista. Achava isso bon ito. f igura admirável de lutador. assaltante. Ia ouvi-lo na Le gião de São Pedro.. e mandei encadernar: L 'encyclopédie anarchiste de Sebastien Faure. tinha lido todas as obras dele. Lenin. eram imigrantes italianos e espanhóis. antes do comunismo. Se pudessem fa riam aqui a Inquisição. que marcou tanto minha geração! E Vargas Vila. E a gente se omitindo. u m dos fundadores da Colônia Cecília. tive uma fase entusiasta por Ingenieros. O Estado de S. que só comia pão porque era o que a humanidade podia comer. Eles levavam faixas escritas: ONDE ESTÁ IDALINA? QUEREMOS IDALINA. Deu-se comigo um fato engraçado. sere mos colônia. o patrão era a Inglaterra. Quando voltei para São Paulo. choveu. sogro do jornalista Mário Lago.. Assisti. com tiroteio. com a bainha da espada. hoje avenida Tiradentes. Trabalhando em Santos. Nun ca pensei que a Semana fosse ter a repercussão que teve. Meu mano tinha falecido. vazia. Só nós três.. na Semana de Arte Moderna de 22. Além da família. Falavam em barcarolas que deviam ser iluminadas à noite. que dava as notícias: O Combate. eram todas vibrantes. Eu sabia que a revolta dos tenentes era contra a situação de desequilíbrio em que estáva mos. Era um protesto contra a sociedade. Uma foi um a festa veneziana. Houve um temporal na hora e todo mundo correu.... que somos o "Brasil dos Estados Unidos". Siqueira Cam pos é um dos brasileiros mais admiráveis. A gente ouvia falar na me . os ecos chegaram até mim. Em 1917 teve também barulho por causa das greves dirigidas por anarquistas. Raquel. Newton Prado... Mandou-se o navio de guerra Minas Gerais buscar o rei e a rainha da Bélgica. Naturalmente. Meteram nele o chanfalho. Eu estava na casa de uma prima porque o marido dela era delegado de polícia e estava na praça enfrentando os grevi stas. Raquel era a mais entusiasta. Estav a ferido no fígado. O que me chocou nessa missa foi ver a igreja enorme. A família do Newton Prado (ele era irmão de Benaton Prado) mandou rezar a missa de sétimo dia na Igreja de Santa Cecília . Houve um encontro sério na praça Antônio Prado. Num choq ue com a polícia eu vi espaldeirarem um desgraçado. Todo emprés timo que fazíamos era para pagar os juros. como tipógrafo. dor mia uma noite sim. Hoje sabemos que enquanto os Estados Unidos não caírem. Minha grande admiração por Mário veio depois. As Rangel Pesta na. a irmã mais velha dos jornalista s Rangel Pestana. outra não. era pessoa de uma integridade maravilhosa. Sofia e Raquel. Ouvíamos de lá o tiroteio. Conversávamos pela jan ela sobre as notícias. No dia seguinte arrebentou a revolta de 5 de julho. As três irmãs. nunca poderíamos pagar as dívidas. Epitácio Pessoa foi visitar os feridos no hospital e quando se dirigiu a Newton Prado dizem que ele o mandou à. O s operários gráficos eram conscientes. A exposição durou um ano e estive no Rio nas férias. deve ter havido uma cisão com os anarqui stas. Acompanhei com interesse e uma admiração profunda. embarquei no noturno do Rio. Era como agora. Ficou ensangüentado no chão. deu um puxão nos panos do curativo e mandou àquela parte o Epitácio Pessoa. a uma mesa formada por gente de impren sa e jornalistas: estavam nessa reunião Mário de Andrade. Mal cheguei aqui tiv emos notícia dos Dezoito do Forte de Copacabana. tínhamos a ilusão da independência do Brasil. muito mais velhas que nós.ndo melhor são postos de lado. com a fundação do Partido Comunista. Vi de longe o rei e a rainha passando em carruagem no Rio. que foi ferido. ouvia meu pai. Havia um único jornal de oposição aqui. não conseguem nada. Em 1922. tinham um jornal chamado Plebe na rua Rangel Pestana. onde é agora a Academia Brasileira de Letras. A comemoração foi no Rio de Janeiro co m a Exposição Internadonal. que fazia fundo para a buraqueira que e ra a avenida Nove de Julho. choveu a cântaros. A casa dela era na rua Caio Prado. Ficamos junto de mamãe. o primeiro parque de diversões com roda-gigante que fui. Ouvia falar dos fu ndadores: Cordeiro. muito nacionalista. Mas houve um pauli sta no Forte. só três p essoas: o professor Roldão Lopes de Barros. à moda v eneziana. O presidente era Epitácio Pessoa. mas torcendo pros operários que estavam na luta. Naquele tempo. fizeram muitas festas para eles. Naquele tempo. Foi colega de meu irmão mais vel ho e estudou trabalhando na tipografia. e eu. na praia do Botafogo. vibrei de entusiasm o. Foi um marco a fundação do partido. Não se fez nada. Foi assim que se formou. na mesma calçada da alameda Barros. Astrojildo Pereira. T odos os países se representaram: o governo francês deu para o Brasil uma cópia do Peti t Trianon de Versailies. com pena dela. Não posso esquecer minha emoção. Oswald de Andrade que tinh a raiva quando o chamavam de Ôswald. eram ir- mãs de jornalistas. Margarida. dizem que era um bravo.. O ano de 1922 aqui em São Paulo foi uma tristeza. que sinto até hoje. dizer da inépcia do governo brasileiro enq uanto nossas dívidas cresciam tanto que ainda veríamos qualquer dia a bandeira ingle sa hasteada no cais de Santos. No Centenário da Independência uma prima nos pôs no carro para ver os festejos do Ipir anga. O Pavilhão de Portugal era muito bonito. Não sei se chegaram em 20 ou 22. O professor Roldão lecionou pedagogia na Escola N ormal.. Olívia abriu seu salão para os modernistas. só agora fiquei voltada para o passado. Se não houvesse egoísmo. Escreveu também Lições de pedagogia. nome construído com as iniciais de Isidoro. Q ue Terra meus bisnetos verão? Toda poluída. Muito mais repercussão tiveram os Dezoito do Forte. ambição. Encontrei aqui muito entusiasmo do povo por Isidoro. A vida é o presente. Aí veio a Coluna Prestes. chegava às nossas mãos pelo correio. Távora realizaram a Coluna Prestes que correu o sertão e foi dar com os costados na Bolívia. Um jornal clandestino. Quando chegaram as forças legal istas. Min ha vida foi a dele.cenas d. João Alberto. um herói. Jovina le mbrou-se: mácio Dias Lourenço. Maria Lacerda de Moura era muito inteligente: escreveu A mulher. Mamãe morreu em 12 de setembro de 1924. Quando acabou a revolução. Tinha uma lesão cardíaca muito séria. Quanta bondade se esperdiçou em tudo isso! Havia em São Paulo a União das Mulheres. Plínio Barreto escreveu um artigo no jornal sobre o s revoltosos: "Heróis não. sociedade que teve como presidente d. E a Terra é bonita. com uma com batividade que chocava na época em que viveu. Recortávamos os artigos. corria de um lado para outr o. mas dizia m que o general Cordeiro de Faria tinha matado um padre em Piancó. Não havia comunica- ção com São Paulo. O Isidoro saiu daqui. na direção de nossa casa. Não posso falar das feridas recentes que ainda doem. correndo o interior do Brasil e re uniu um grupo de adeptos. como se dizia. A Folha da Manhã dava notíc ias simpáticas sobre Isidoro com um pseudônimo que não me lembro. Essas coisas em minha vida vieram acontecendo ao encontro do que já existia em mim . Sempre preocup ada com minha mãe e com minhas irmãs. O que sei é que a Coluna foi se dizimando e que Prestes entrou na Bolívia em 1927. foi para a fazenda de um primo e ficou lá esperando. morreu com 53 anos. entrando por esse sertão. Era mulher muito íntegra. muita simpatia pelo movimento. e que os sim patizantes decifravam. (Prestes não esteve na revolta de 22 porque estava com febre tifóide. Lançado por u m jornalista da Folha. título um tanto escandaloso. [Depois d. uma flor? Vivo muito o presente. junto ao túmulo de Joaquim Távora.) Eles se encontraram no Paraná em out ubro. Era o tempo de Artur Bernardes. Estava ligada a meus alunos. fazendo uma conferência: se a mulher tinha direito a reivin dicações. e que Washington Luís foi o padrinho. anarquista. Precisei tomar um vapor no Rio. Fiquei morando em casa. com a Duque de Caxias. Conheci lá Maria Lacerda de Moura. Dos Campos Elíseos disparavam tiros de ca nhão contra o Araçá. Teve adesão do Prestes em outubro. minha mãe se sentiu segura. D. compreendi melhor essas coisas. Soube que Oswald de Andrade se casou com Tarsila em cima de um camelo. dava lições à noite. na Liberdade. o futuro. não à alta sociedade. um monstro de cimento armado. Na morte de Joaquim Távora abrimo s uma subscrição entre admiradores dos tenentes e mandamos fazer um túmulo. irmã do Vital Brasil. Era um protesto contra o governo autoritário de Bernardes. Enquanto estavam os rebeldes com Isidoro aqui na cidade. vi A fonso Schmidt dizendo algumas palavras. Mais tarde. Depois de 1927 casei-me e casada não fui mais eu. Na sociedade ds miseráveis tanto sofre o homem como a mulher. Depois dessa conferência. Talvez seja boato popular. Olívia. Logo depois da saída do Isidoro. a gente poderia ser feliz. Judit h de Campos. quis voltar para cá. tornei-me am iga dela. naquele tempo rua Santa Teresa. perdi meus pais.] Escreviam nas paredes: "Isidoro vem aí!". Fiquei revoltada quando li isso. tirávamos cópias. Nessa Terra queria que todos se enten dessem. era um patriota. voltou para São Paulo. um bateau. era esse o nome que se escrevia nas paredes. a Terra é que é meu mundo. Não posso r eviver uma vida que terminou com ele. era meu tempo de férias em julho. Ele morreu em 24 e foi enterrado no Cemitério de Chora Menino. Joaquim Távora morreu combatendo aqui em São Paulo. para volt ar. que tinha uma casa na rua Barão de Campinas. No Rio houve um alvor oço. Mas pouco soube dos modernistas porque estava completamente desligada da alta so ciedade. O 5 de Julho. uma degenerada. meu irmão. bandidos". Quando fomos ao cemitério.. A morte de S iqueira Campos senti como não imagina. e por isso o povo de lá amaldiçoou a Coluna. Estava no Rio. e Sílvia Ferreira de Rosa. Lembro a excursão que ela fez com Mário até o Amazona s.. Verão um pôr- do-sol. Trabalhava muito. Sou muito da Terra. no Egito. só com minhas irmãs. pregávamos nos postes. Cordeiro de Faria. Fui Jovina-Samuel. no interior da Paraíba. A revolução do Isidoro foi também a 5 de julho. sempre sofri com ela. chegar aos sessenta anos. Foi a casa que marcou nossa vida de tal forma que até hoje. atrelavam de novo no s bondes. um homem velho do lugar. no Rio. com duas janelas e portão do lado. desde m enina. njustiça social me calou sempre. dia 20 de setembro é o dia que Garibaldi unificou a Itália e os bondes de São Paulo se embandeiraram todos. Quando se formou. Foi construir o ramal de Itapira. mas não acredito que haverá anistia. Eu já tinha tudo isso dentro de mim. que eu não pude nunca compreender. Como temos sido espezinhados nesses quinze anos! Trabalho agora em auxílio dos refugiados. Sou paulista. Que será que eu procuro lá? Minha irmã Preciosa. e ele teve que entregar suas terras. em minha juventude. Vivo ainda esperando algo de bom. Preciosa dez anos. naquele tempo Penha do Rio do P eixe. em todo sonho. dia 20 de setembro de 1903. Nunca pensei. A nossa casa era de tijolinhos vermelhos. volto para lá e o meu son ho se passa todo lá. Iss o são coisas contadas pelos mais velhos. para onde nos mudamos e ficamos até 1926. filha de Bento da Rocha. não posso tirá-lo daí. Quando a prefeitura calçou e aterrou a alameda Barros par a nivelar com a Angélica a nossa casa ficou enterrada. Parece que não chega nunca a vez dos bons. Aí ele conheceu nossa mãe. Meu avô perdeu suas terras em Iguaçu porque assin ou promissórias de um cunhado que não pagou. é dentro daquela casa que eu entro. Tinha um ano e dez meses e naturalmente sentia ciúmes da criancinha. até a Igreja Coração de Maria. A rua Barão de Tatuí nasce na rua das Palmeiras e subia meio enviesada por uma trilh a. Foi esse exagero que agüentou o crescimento de Santos. na Estrada de Ferro Mogiana. entre a Imaculada Conceição e a Barão de Tatuí. Eu dizia para as irmãs menores que era para festejar meu aniversário. construiu aqueles canais mais antigos que criticaram muito p orque eram largos demais. que tinha memória de anjo. onde nasceram meus irmãos mais velhos. Ali tudo devia ser pasto. Trabalhou no sa neamento de Santos. A casa já foi demolida. não sei desde quando. Meu irmão Mário tinha doze anos. A vida é uma luta. Quando minha irmã Clélia nasceu fui pilhada fugindo para a casa de minha avó. Fo i para o Rio. algum sonho ruim. onde meu pai estudou a Politécnica enquanto trabalhava para custear seu estudo. E fico naqueles quartos e é ali dentro que se passa o sonho ma u. Casaram-se em Itapira e foram morar em Rib eirão Preto. Fui sempre uma revoltada. Sei que nasci num domingo de sol muito bonito. ela estava na janela e quando esse fazendeiro desceu a rua. Nosso pai nasceu em São Pedro e São Paulo do Ribeirão das Lajes. Pen sei que ia ter uma velhice espiritualmente mais feliz e a gente continua dando m urros em ponta de faca. Há pouco tempo ainda entrei na casa. Sempre remei contra a corrente. A gente não sabe em que idade começa esse sentimento que vem da separação de clas ses. a Vivina seis anos e o Francisco quatro anos. Mamãe contava sempre isso rindo. seis janelas. As janelinhas do porão er am mais altas que a rua. w D. Em 1903 vieram para São Paulo porque papai não queria botar filho em colégio interno. entre eles um fazendeiro em que minha avó fazia muito gosto. Minha avó deu um tapa no ombro dela e perguntou: "Está esperando um dou tor?". falav a dos bondes puxados a burro que subiam a rua Maria Antônia até a avenida Higienópolis . h ouve uma previsão. Ela tinha um jardim do lado . achava que chegar aos setenta era uma traição. E sou garibaldin a. em 1905. Uma incursão no passado é dura. na rua J aguaribe. Preciosa tinha dez anos mais que eu e ach ava graça nos irmãos mais novos. esquina com a alameda Barros. BRITES Nasci na rua Maria Amônia. às dez horas e cinco minu tos da manhã.. Papai construiu a casa da rua Barão de Tatuí. cidade que de sapareceu com a represa das Lajes. Antes de voltar. 51. pesadelo que eu tenha. estou sempre lutando. em 1886. Ainda há algumas dessas casinhas térreas que havia. veio trabalhar em São Paulo. ela entrou.. não subi. mas estive n o porão. o Caetano nove anos. Se tenho algum sonho aflito. O passado está sempre no meu coração. Na luta pela anistia aos presos políticos vou. uma picada. soltavam os burros para pastar um pouco. Um dia. Nossa mãe tinha Outros admiradores. Estou com oitenta anos. paulistana dos campos de Piratininga.. rainúnculos. de ferro. Não era uso naquele tempo uma senhora sair sozinha de casa. já faz vinte anos. Subindo pela grade do terraço tínhamos uma roseira "furibunda" de cachos cor -de-rosa. Tenho a impressão que ela andava muito a pé porque morava no largo do Arouche e ia até o largo da Misericórd ia almoçar com esse amigo. para a Igreja. De noite ela punha uma borracha no bico para ligar num fogareiro o nde aquecia mamadeira de criança. Nos quartos. chácaras e plantações. muito lindo. quando tia Brites ia visitar um amigo era eu a escolhida. precisou uma carroça para levar a camélia. subimos numa cadeira para alcançar a janela e vimos a senhora que veio assistir mamãe. Ali morava a virgem das geleiras. de estilo europeu. é uma espiguinha de flor miúda que embalsamava o jardim. Há pouco tempo ainda existia lá a cas a do Lane. tinha duas portas: uma par a a sala de jantar. o nome dele estava numa plaqueta. Na minha rua passava cantando o sorveteiro: Sorvetinho. de onde saía o gás. Ali pousava o príncipe transformado em falcão para vê-la. O chão tinha umas frinc has largas e pelas frinchas via. construído pelo Nothmann. Nossa ir mã Preciosa estava sentada no piano tocando "Prima Carezza". Há muito tempo não vou à cidade. to da de vidros coloridos com uma grade em roda. fora o que comíamos no pé. Quando demoliram a cas a. flocos. brincando. Qualquer dia vou lá com minha irmã para ver. Uma das lembranças mais antigas que tenho é a do dia em que nasceu nossa irmã mais nov a. sorvetinho de ilusão. A praça do Patriarca não existia. Ela e um irmão mais novo treparam na viga mestr a do telhado de uma construção vizinha para ver o trem passar na Barra Funda. o cano descia do teto e numa pêra havia o bico. e no fundo. No quarto de mamãe. sorrindo. Ele tirou c om um pião enorme. naquele pedacinho de quintal. O que me fascinava era a torrinha do palacete. Ess e era um viaduto frágil. mas tenho idéia q ue alguém me tirou da cama de madrugada para me mostrar uma espécie de nebulosa de f ogo no céu. na porta do terraço. outra para o vestíbulo. mas ela não agüentou o trans plante. uma criança. era um corredor estreito com o porta-c hapéu. uma água barrenta. Muito religiosa. rodeando o terraço. No segundo canteiro tinha um pé de camélia que também viveu quarenta anos. ela trouxe um arquite to estrangeiro para construir. Na ponta do canteiro. ela d oou seus terrenos para o Asilo São Vicente de Paula. sorvetão. que na sala de jantar era um pendente. Mamãe também plantava flo res efêmeras. que dava para a sala de visita. lá embaixo. A ngélica. Subia-se a escada. Num canteirinho estreito tinha uma azaléia e um brinco-de-princesa dob rado. O português empurrava a carroça e tinha um pretinho magro que ajudava. Com que sonha uma criança? Volto agora com 74 anos a sonhar de olhos abertos. tér reas. uma porta de vidro colorido. Então. um arco formado pela roseira "furibunda" e uma ros eira de botão branco. tínhamos o jasmim-da-itália. mas tenho idéia que na rua Dom José de Barros ainda há daquelas casas antigas. Nasceu ali sozinha uma jabuticabeira. A casa de d. Tenho medo de faltar com a verdade. Era um terraço to do florido. q ue ainda é a casa antiga que existia lá. Lembro-me de um susto que nos deu Vivina. chamei um jardineiro e mandei tirar o pé de camélia. No fundo. O fundo do quintal era toda uma parreira onde papai colhia oitenta quilo s de uva.. hortênsias. No fundo. da janel a do porão de minha casa: era meio sumida no meio das árvores porque tinha um grande jardim na frente e um lago com cisnes. Quando atravessávamos o viaduto do Chá eu tinha um medo louco. que era uma menina terrível. Era o cometa Halley que apareceu em 1908. A rua Barão de Itapetininga era de moradi as de família. Avistavam-se da casa as várzeas da Barra Funda. às vezes a fantasia atrapalha. Era o pretinho que cantava: . Angélica Aguiar de Barros. O canteiro alargava. com um pezinh o meio pendurado. não sabe o que é bão. A casa era iluminada a bico de gás. às vezes. com jardim e saída para a rua Bráulio Gomes. uma roseira vermelha que viveu mais de quarent a anos. Clélia e eu passamos a manhã na sala de visitas. um arbusto que nunca mais eu vi: frang ipãnio. na avenida Angélica. fechando o terraço. não estou bem lemb rada. e aí tinha uma trombeta cor-de-rosa. Há uma bonbonnière na esquina da Dom José de Barros com a Itapetininga. tinha que levar alguém j unto. Nosso terreno foi comprado de d. Eu espiava a torre. era vermelha. era um braço que saía da parede. E begônias. quem não toma o meu sorvete. Fui andando numa rua escorreguei mas não ca1 é por causa do sorvete que é de creme abacaxi. Vovó era muito engraçada. Meus avós maternos viviam em Itapira. tão comprido era o pregão dele que não lembro mais. tinha seu consultório dentário com a placa de esma lte branco e as letras em azul. Vovó disse um dia a papai: Passarinho caborê tenho uma coisa pra te dizê: minha mãe morreu de fome. Tinha sempre uma quadrinha pronta: 300 Um cego estava escrevendo. Mas sei que o fundo está do mesmo jeito. faixa cor-de-rosa. O avô Francisco era uma figura lendária. não podia comer carne nem sal. Esta outra. ia já. sinhá. Batia matraca. Formava-se em 1893. na cidade de Desterro. Quem formou o batalhão foi um médico homeopata aqui em São Paulo. Era o tempo de Floriano. Meus avós eram republicanos e abolicionistas. onde vivia com a família. tanto que sentia angústia na hora de me des pedir. Minha tia Brites. quase não lembro dele. Conheci melhor os avós paternos. mas tem andado comigo se mpre a cadeirinha que ele me deu quando fiz quatro anos. Mamãe era cardíaca e fazia dieta rigorosa. forrado com um lençol muito b ranquinho cheio de batatas: "Batata assata ai forno!". na porta: Brites CIRURGIÃ-DENTISTA Gostava mais de lá do que da minha casa. Indo ao Museu da República você vê numa vitrina o livro de atas do Clube Tiradentes a que pertencia meu avô e que foi fundado para propaganda republicana. Meu avô era do grupo de Benjamin Const ant. o avô capitão. pois entrei lá para ver. falava pouco mas com dose certa e com veneno certo. meu pai de tanto comê. Tomou parte no combate da ponta da Armação contra Saldanha da Gama e Custódi o de Melo. . que daí por diante passou a se chamar Florianópolis. um surdo como abelhudo no canto estava escutando. Augusto Militão Pacheco. Quando chegaram ao Palácio do Go verno o batalhão estava formado. que foi uma da s primeiras dentistas de São Paulo. que me dava um pedacinho de fita n? 1 para amarrar no cabelo. e foi para o Rio. Eu gostava muito do Abraão. Meu avô era o mais velho d o batalhão. é de creme abacaxi. Havia o turco que vendia armarinhos na porta. pata de vaca é mocotó. depois da batalh a. cantava: "Ma que bela tomata da chacra mia!". E tinha ainda o italiano que trazia um baú a tiracolo. uma bandeira inglesa abandonada na praia. com um grupo de estudantes saiu à rua convocando o po vo para formar um batalhão para defender a República. sempre. e papai tomava muito conta. Mamãe comprava do Abraão as faixas para nossos vestidos bran cos de lese. um mudo estava ditando. espanadores!".Sorvete. Os revoltosos saíram barra afora e se entregaram só em Santa Catarina. onde se apresent ou e formou o Batalhão Tiradentes. da Faculdade de Medicina. acabou de defender a tes e. Meus avós moravam ali no largo do Arouche numa casa que hoje é açougue. Até 1940 ainda passava na porta de nossa casa um pretinho que vendia batata assada na brasa. monarquistas patrocinados pelos ingleses. Um vassoureiro português cantava como um baixo: "Vassouras. O italiano que vendia verdura na carroça com um toldo. Ele carregava um bauzinho nas cost as preso num x de madeira com duas correias. em que assinaram um pacto de sangue para defender a República. Amanheceu. quando tinha que voltar. Na revolta de 1893 nosso avô saiu de Ribeirão Preto. maliciosa: Velho que casa com moça de sua fama não tem dó! Arma de boi é chifre. não sei b em o que foi o encilhamento. em 1909 foi oposicionista de Hermes. Deixava ir à missa mas não deixava rezar o terço: medida de oração não admitia Foi o primeiro feminista que conheci. Como lembro do marquês de Carabas. E tudo continuava do mesmo jeito com hora certa. Lembro bem do dia em que vovô Chico morreu. oito anos nessa ocasião e brigava com meus primos ma is moços. A gente às ve zes desconfiava que ela estava fazendo uma oração quando estava sentada. Conversavam tanto que mamãe. teu. A vel ha e o macaco. Houve muita discussão. com os netos no colo. Nós ficamos em to rno de papai. no Rio de Janeiro.. Os mais velhos conversavam. mas anticlerical. Tínhamos dois jornais. mas ouvia muito. Meu pai era hermista. dia certo. que estav a em Itapira. A campanha chegou a um ponto que meu pai. esta- vam casados há treze anos. Ele amanheceu com dor no peito. muita luta. con centrada. Vovó morreu em 1936. termina assim: "Por isso cada vez te quero mais e te ad miro. que estava na janela. tia Brites deixou-o deitado e voltou comigo no colo. Em casa sempre se comentou política. El es se escreviam acho que todo dia. Meu pai era admirador de Pinheiro Machado e todo mundo atacava muito Pinheiro Ma chado porque era a eminência parda do Hermes. Minha mãe foi sempre o fiel da balança entre meu pai e a família dele. com a sogra. Foi em 1908. Vovó chorava de rjr. Conosco também mamãe não criav a problemas: nunca sentimos sua predileção por um filho. El a nunca criou um atrito com minha avó. Minha mãe era uma pessoa tranqüila que sabia acomodar tudo. Batista Pereira. o jornal lido e o jornal falado. Tinha uns sete. Meus pais conv ersavam no quarto e ele dizia: "Nunca serei suficientemente grato a você pela paciên cia que teve com minha família". Se respeitavam muito. ouvi uma frase que nunca esqueci. a casa era efervescente na hora do almoço. Ela era calada. Gostava de contar histórias: Bela adormecida. Ser anticlerical era uma tr adição de família.. não pôde votar lá e teve que vir a São Paulo. falando s obre o trabalho de papai. Os dois se queriam muito sem essas manifestações que se vêem agora.. Ela prendia o cabelo só com pente. penteava. Rui Barbosa veio pra São Paulo e ficou ali na rua Imaculada Conceição na casa d o genro dele. Um dia.. Meu avô era um livre-pensador cristão. Éramos uma famíli a de formação republicana. a família sempre discutiu política. Lá em Itapira o Rui era muito forte. e os outros que eram pelo Rui eram civilistas. 303 Os republicanos não gostavam de Rui Barbosa por fazer aquele encilhamento. Quando papai estava. Na hora do ja ntar. O gato de botas. Minha avó. uma vez. Um dia nós o vimos passar numa vitória puxada a cavalos. Criança não falava. Minha avó morava nessa rua. como disse o Camões. Hoje a ti só. No começo do século as moças eram criadas com pr .Nossa avó jogava baralho com Guiomar: jogavam furta-montinho e para vovó não furtar o montinho dela minha irmã sentava-se em cima. el e estava morto. Depois debatíamos lá fora. com 94 anos. Ela tinha muita pa ciência com os netos pequeninos. eu cresci ouvindo falar mal dele. com seu chapéu de plumas! De vez em quando encontro aí na vida um marquês de Carabas. Rui Barbosa por duas vezes foi candidato à Presidência da Repúb lica. sentada lá na ponta da mesa. acho que é a lembrança mais antiga que ten ho. disse: "Baderneiro- mor! Apronta baderna no Rio e vem se esconder em São Paulo". já cresci vendo a família de ponta com a Igreja. a gente tirava o pente da cabeça da vovó e penteava. Nosso pai nunca admiti u a confissão. só tu puro amor". Ela não gostava do Rui. com essa moda de criança de ouvir conversa dos grandes. O assassinato de Pinheiro Machado foi um abalo para meu pai. lembro dele sentado numa cadeira da sala com o cobertor nas costas e tia Brites fazendo massagem no seu peito. que eram civilistas. Vovó lia sempre o jornal. tu. Havia nas famílias antigas muita dependência e a gente do meu pai dependia muito dele. estava a par de toda a política e tinha opinião. Ha via ocasiões em que papai passava dois ou três meses fora trabalhando e mamãe ficava n a chefia da casa. empregou certos termos técnicos de engenharia que causar am admiração em que ouviu. do jantar. quieta. mas em 1912 ou 13 houve qualquer coisa no Rio de Ja neiro. quando mexeu nele. era um chegar e sair de carta lá em casa! Guard o uma carta dele para ela depois que eu nasci. José de Alencar. Era sobrinho de papai. Houve um primo muito querido . era uma coisa muito reservada. eles desorganizavam muito minha vida. Daí por diante sempre m orou um pouco em casa. ele arrumava sempre um jeito de tomar conta de alguma criança e mamãe é que fazia o café pra ele. Passou seus últimos anos num asilo. que tinha rodinhas. Mas quando Guio mar era pequenina e tinha dor de barriga eu via Preciosa com Guiomar no colo. na outra era o C aetano.. Ele lia com muita graça. pra casarem.. de contar um malfeito do s pequenos. Devo a seu pai ser professora". e papai dizia: casamento não é emprego. (Eu dava tudo p ara encontrar esse livro outra vez!) Ele passou o dia lendo o livro em voz alta e foi uma gargalhada só o dia inteiro. Os mais velhos não se envo lviam conosco. Na semana do Caetano. os Salmos que ela me pedia. Antigamente as vidas eram muito separadas. Foi sempre diferente das outras... Morava conosco d. Dois anos de férias. tanto que minha irmãzinha. Até hoje Guiomar e eu somos chamadas as meninas pela ir mã mais velha. Com vinte anos comprou o primeiro dicionário anarquista editado no Brasil e reunia em casa. Quando Diogo batia n o portão já entrávamos rindo com ele. Houve um período que mamãe nos tinha as três pequenas e papai dividiu o trabalho: uma semana o Mário fazia o café de manhã. na outra semana era a Preciosa. mas incapaz de fazer uma fofoca com papai. A moça acabou a Escola Normal e 25 anos depois encontrei uma professora que me disse: " Meu marido sempre lutou muito e estou já com 25 anos de magistério: foi o que me val eu.. passava o dia inteirinho lendo. Vivina com oitenta anos tem o mesmo entusiasmo d os dezoito: ela é agora a mesma que era aos dezoito anos. Morreu de velhice. Quando ele morava em casa o jantar era sempre mai s alegre porque o Diogo tinha sempre uma história engraçada para contar. D. que lavava roupa para minha tia Brites em Ribeirão Preto . Quando ela ficou só.. Numas férias que ele passou em casa (n aquele tempo não se saía nas férias) pajeou tanto a Clélia que ela passou a chamá-lo de mamãe. Lia tanto que mamãe f icava desanimada de ver. Ana Margarida. Diogo abraçava muito a mamãe. Eça de Queiroz. o Diogo. botava uma saia por cima da camisola. Ela costurava e contava as histór ias que lia para nós: Perdidos num balão. A Jovina foi sempre muito bonita. que eles chamavam de men inas . O Mário fazia o café cantando. Júlio Verne. Diogo foi sempre nosso amigo e morreu muito cedo . De vez em quando ia lá ler a Bíblia para ela. Lá em casa havia dois blocos: os irmãos mais velhos e nós três. Os parentes de mamãe vinham passar as férias aqui em São Paulo. Preciosa saiu logo de casa. Costurava para mamãe. isso em casa nunca se falou. Veio para São Paulo com meus pais e alugou um quarto para morar sozinha. Guiomar e eu. que morou conosco. para discutir. era o destaque da família. Nunca me afinei com primo nenhum. um pouco em Guarulhos. protestante. Pra nós foi um irmão meio distante devido à difer ença de idade. Depois veio morar com mamãe. porque quem aprende a ler a Bíblia tem capacidade para ler outra s coisas. casou cedo e não intervinha muito.endas domésticas. tenho a impressão que ela era a confidente dele.Clélia. papai a incentivou a estudar e trabalhar. dos caixões de livros perdidos no interior. tomava café. numa travess a da rua da Consolação. naquele feiti o antigo. Levantava. Quando ele ia faze . andava no quarto. Aninha. os operários gráficos. Tia Brites foi uma das primeiras mulheres desquitadas. Durante a s emana lia Machado de Assis. Papai disse que casamento não era emprego. Uma viúva fez a filha sair da Escola Normal para casar. tinha que dar o quarto. que ela tinha que estudar. ca ntando. Quando o Chico nasceu ela chamava o menino de meu filho. costurava para fora. Custeou os estudos dela até a formatura em farmácia e odontologia. ainda tenho aqui a Bíblia dela que ando lendo. numa casa de velhos. fez muito sucesso. que era calma e compreensiva. morreu nos braços dela. A gente. e viver por conta própria. Era protestante. Quando leu o Dom Quixote ela ria tanto que a cama. a cama e ia dormir no chão. Aninha tinha muito sentimento dos livros que a mamãe tinha deixado pa ra trás. deitava outra vez. mas a tia que ele gostava e ra mamãe. seus amigos. o diploma tinha muita importância. Quem conta um conto. tinha um tipo marcante. Daí meu entu siasmo pela Bíblia. Não posso esq uecer quando saiu um livro de Cornélio Pires. ele perguntou: "Como é o nome d e sua mãe?". mudou o nome dela para B ernardo e nós fizemos o batizado. Eu sou mais impetuosa. impli cava com outra. Fui atropelada por uma carroça. Cecíli a tinha tido uma menina. quer comer? Oh! Oh!" O Chico era arreliento demais. uma vizinha dizia que sabia sempre a hora que Chi co Bento chegava do ginásio porque nós três passávamos a gritar. de casinha. "Socó. Ele cutucava uma. dei uma volta por dentro do armazém do seu Manuel. Uma das vezes que esteve em ca sa. Esc revia e limpava as lágrimas. Então ela ofereceu à mamãe para amamentar nossa irmãzin ha e amamentou. mamãe não teve leite. Meu pai quis ver o orgulho da filha até onde ia. E papai achou que ela devia escre ver agradecendo. como mamãe. brincávamos de pegador. mamãe não sabe por que. O que sabíamos de cantigas de roda ! Ainda não comprei. Ela tinha cinco m eninas e um menino. Ficávamos n a janelinha bulindo com quem passava na rua. quer trabalhar? Não pó. A cara da Quitéria era pintada a tinta de escrever. Cecília amamentou a menina e mamãe se sentia muito grata a essa vizinha. é ouvida porque ela fala firme e é muito justa mesmo. o sabão. meu padrinho no interior mandou setenta milréis para mim. Judith. Se hoje é difícil ser artista. Um domingo de manhã. apesar de não sermos muito religiosos. Tenho a idéia de ter vist o esses senhores umas três ou quatro vezes na vida. . que eu gostava m uito. e corria. Fiquei contentíssima. Quando nasceu nossa irmãzinha Délia. jogávamos amarelinha . Quando Caetano tinha preguiça de fazer as coisas vovó di zia: "Socó. Ela se sentiu humilhada em receber dinheiro. Era ele que fazia questão de batizar nossas boneca s. e voltei correndo. pequenas. O grupinho que andava junto. Sempre quis bem a meu padrinho. Clélia acabou lecionando piano. há cin qüenta anos atrás era mais difícil ainda. Com nove meses nossa irmã morreu de broncopneum onia. um homem simples. mas ele. "Bendita Maria que a gerou". mas irei comprar. Na hora em que fala. não guardo a menor conveniência. Eu abri a boca. não é?! A Guiomar era. Sabe ouvir e o que diz é na justa medida. Queria ter recebido amor. que era o que eu mais gostava. brincávamos de pegador. os padrinhos dela eram fazendeiros em Ribeirão Preto e não levavam muito a sério essa questão de olhar a afilhada. As filhas de d. Clélia nasceu antes da época. Clélia. o portão ficou aberto. um fiel da balança nas nossas diferenças. Vai de roda em roda. Comprei um vestido.. ainda menina. vai de flor em flor. ele era um fazendeiro . Quando acabou. implicando com as meninas da vizinh ança. que o meio abafou. Papa i tinha ido encomendar um porco na fazenda dele e ele mandou o valor do porco pa ra mim. a madrinha deu cinqüenta mil-réis para a Clélia. que ficava em frente. espirrava água num. Foi a que sempre apaziguou tudo.r a barba. Em geral acabava num banho de água fria em todo mundo. mas a roda só tirou a pele da minha perna . pouco me importando que fosse ou não fosse o valor do porco. O porão era nosso reino: lá dentro patinávamos. ela que ia buscar a água.". Ela não queria agradecer. toc ou para ele uma berceuse de Chopin. Essas coisas bonitas que há! D. Papai ditou a carta e ela escrevia chor ando. Nosso portão estava sempre fechado. São temperamentos. pra me consolar. a Quitéria. O professor Chiaffarelli morreu em 1923. Eu tinha uma bruxa de pano. que fazia os malfeitos juntos era mesmo o de nós três. E d. Não deixei que me carregassem para não assustar mamãe e subi a escada sozinha. mas isso uma vez ou outra.. Um caso típico d a fibra de Clélia: ela foi sempre diferente. Muito cedo começou a estudar piano. mas até hoje Guiomar vai visitar em Campinas a que foi irmãzinha de leite dela . Passado uns tempos. Quanta estrepolia a gente inventava! Pulávamos corda. Saí correndo. Brincávamos de roda com as meninas dessa vizinha. Era uma artista. Ele então pintou uns bigod es na Quitéria. espirrava noutro. um vestido branco para apaixonar. Cecília foram a amizade que trouxemos da infância. o pincel e enquanto ele fazia a barba ela cantava para ele ouvir. "Maria". Quando vin ham a São Paulo vinham em casa. na roça dançando. Aí. a "Bela pastora" entrava na roda e dizia um versinho.. Vivina quis muito tocar violão. Meu irmão que morreu em 1922 nunca ouviu falar em rádio.vai de braço dado com seu lindo amor. Lendo a Clara dos Anjos de Lima Barreto eu entendia o preconceito que havia na minha casa cont ra o violão. negros como noites sem luar. empurrávamos tatuzinhos com uma varinha para brincar de boiada. A gente tinha imaginação. Vi o mar cinzento. As pessoas tinham que tocar um instrumento para se distraírem. Não saíamos de casa. papai não concordou. porém. Na grama do jardim. Nós improvisávamos tudo. abri a boca e voltei junto com eles. Nunca mais vi uma joaninha. mamãe e papai se emocionavam muito por causa da irmã que morreu pequenin a e que era Ana Margarida. Circo. Quando a gente achava uma joaninha vermelha com pinta preta. Nós não tínhamos brinquedos. estava um dia feio. penso que é por falta de mato. Minha prima trazia do Rio um livro de modinhas A lira do capadócio. e papai e mamãe foram se despedir. Quando chegou a tarde. chegaram em São Paulo as companhias de opereta italiana. levávamos o dia inteiro faze ndo coroas de espinho. e fomos chamadas pelos grandes para cantar "A minha francesinha". 1912. passeando eu em Paris por acaso. . O piano é que funcionava. alistei uma bela pastora que dizia em sua linguagem que queria se casar. As joaninhas des apareceram. Mamãe gostava de uma val sa que ele tocava: "Por que choras?". só conh eci o do Piolim aos vinte anos.. volta e meia meia volta vamos dar. Modesto Tavares de Lima era pianista e tocava na sala de espera. era a 'Bela pastora": Lá no alto daquela montanha. sexta-feira santa. um aparelhinho de jan tar. Violão era um instrum ento de capadócio. mestiça formosa. quando minha irmã se casou e fo i morar em Santos. que eu dava tudo pra encontrar: tenho cansado de olhar em sebo. Depois botávamos pra secar dentro do livro. Quando começava o filme ele passava para o piano na sala de projeção. Estávamos brincando. enf iando uma na outra fazíamos umas coroinhas lindas. nos livros que vend em esparramados na rua. E meu pai também. Rádio não havia. Uma volta. Mamãe que teve uma linda voz cantava com minha tia a duas vozes: Teus olhos são negros. fui conhecer o mar com onze anos. Por volta de 1911. Amei-a com ternura. Uma vez. o domingo inteiro. Sempre fui desafinada. Uma vez nós tomamos uma palmada por causa dessa canção. Bela pastora entrai na roda para ver como se dança. Apostava quem catava mais caracol . Nós não cantávamos "Margarida vai à fonte". As meninas mais velhas tocavam no piano e cantavam: A minha francesinha não tinha ninguém. Quando eu e ra criança entre a Lapa e Santa Cecília havia mata. o máximo que se tinha era uma boneca. as três pequenas. como a gente faz ia festa! Os besouros vinham do mato próximo bater no lampião de gás. Com espinho da roseira. desembarc amos em Santos. Minha mãe uma vez foi à casa do meu tio para experimentar o rádio de gale na. Fazíamos a roda e uma menina ficava de fora. Sonho de valsa. Minha tia Brites comprava a partitura completa de opereta e tocava A viúva alegre. outra vez a sorte quis que eu a amasse e me tornasse de toda terra o homem mais feliz. eu penso que isso eram os grandes que inventavam para a gente limpar o canteir o. Cantamos tão mal que tomamos uma palmada e nos mandaram embora. A lira do capadócio tinha: Mostraram-me um dia. Com a flor da esporinha que é uma espécie de delfinus. Às vezes íamos à matinê do High Life ver as fitas do Max Linder. Eu iria passar uns tempos com ela: aprontamos mala. A criança que lesse melhor a lição da lousa ganhava um cartão. viúva. Íamos v também o presépio da Igreja de Santa Cecília que ainda estava no tijolo. No tempo de nossa infância os vizinhos iam lá pra casa. crianças. pra sempre. Usava muito giz de cor. A família toda s aía pra rua.. outra banda atrás. * * * Lembro bem do primeiro dia de aula do Grupo Escolar do Arouche. naturalmente porque tinham as namorada s deles. era baixa. toda vida entrou e subiu a escada com o pé esquerdo. Começou depois a haver esse Natal e essa Páscoa com a propaganda comercial. Mar. é de Castro Alves para Eugênia Câmara: Vamos Eugênia. Subia a avenida Angélica. Tínhamos uma ceia e papai sempre falava sobre solidariedade humana. Maria Rosa Ribeiro.. Castro Alve s. E a modinha que. com muita purpurina: ela me d eu esse cartão com um beijo. não lembro mais. As procissões eram uma festa para nós: procissão do encontro. Eu adorava a história do ceg . tocava violão e o violão da Julinha papai aceitava. A cartilha era Meu livro de Pinto Silva. Só v im tomar conhecimento de Páscoa quando fui trabalhar na Fábrica em que havia muito i taliano que festejava a Pasquetta. me lembro sempre dela rindo. rua das Palmeiras. pelas campinas. eles pregavam as saias das beatas umas nas outras. Não havia cinqüent a pessoas atrás de um andor. Depois dessa cartil ha li Leituras intermediárias de d. outra carregava uma âncora e outra. Marcolina Marcondes Sabóia. A procissão do enterro ia até o la rgo do Arouche.. quando chegava no começo da avenida Angélica a Ve rônica cantava. Meus irmãos mais velhos caçoavam dos que iam levar dinheiro.de olhar azougado. Quando escureceu a igreja. Meu pai admirava muito as mu lheres que lutavam sozinhas. antiga moradia da famíl ia Abranches: a entrada nobre do sobradão. com uma filha de onze anos e uma tesoura. Era uma belez a subir a escada. Uns rapazes amigos foram quarta-feira de trevas para a Igreja do Coração de Maria l evando um pacote de alfinetes. em lugar de colocarem a asa na posição certa colocavam ao contrário. No aniversário de papai havia o que se chamava um sarau: tocava-se piano. D. Tinha uma banda na frente. Havia outras procissões que com o tempo acabaram. com sacada. três moças vest idas de vermelho. lembro das figuras. Joaquininha Magalhães foi uma lutadora. arreliento. Uma carregava um coração. dizem. para nós era uma festa. a Pascoela. Vi levantarem as torres quando ia para o grupo. Quando apitava meia -noite entrávamos em casa com o pé direito. de cada família. D. O método já era o an alítico. Sua filha. dava uma volta no quarteirão. Mamãe tocava o Hino Nacional. Foi indo até que chegou noph: uma mesa com uma toalha de crochê e uma caixa de fósforos. Nós. a do enterro na Semana S anta. professora q ue me alfabetizou. fez a filha normalista e foi uma pessoa muito considerada aqui em São Paulo.. faziam troça mas iam também. por causa dos anjos de asa quebrada. Não era bonita. gostávamos de ir no Coração de Maria ver o presépio na época de Natal. Olha o livro". as três Marias. Era: "Phelipe tem uma caixa de phosphoros". Passavam figurantes. Joaquininha era uma mineira que chegou aqui em São Paulo. Os anjos nunca pude ver muit o séria. Um meu irmão foi m e matricular e me causou muita impressão a entrada do grupo. Fui para a classe de d. recitava-se Bilac. Até hoje sinto d. acho que era uma cruz. Julinha. fugindo. Montou uma oficina de costura.. passeava-se na calçada. O Natal era uma festa recolhida. De uns cinco ou seis anos pra cá s enti cair a fé. a Esperança e a Caridade. Havia muit a molecagem: "Lá vêm os anjos de asa quebrada!". O Caetano. Em casa festejava-se mais o 1? de janeiro. dava para uma escadaria de madeira que se dividia em dois ramos com grades de madeira de lei. a menina sentada no chão com um livro aberto no colo: "Olha a menina. Coitado do anjo! Para a asa aparecer mais. Marcolina me abraçando e rindo. era uma ceguinha. D.. e a Julinha tocava violão. gorda. dia da fraternidade universal. verde e branco. Havia uma procissão que eu achava linda: vinham a Fé. levava dinheiro pro Senhor Morto.colina me deu a c artilha e eu li: "Pelipe tem uma caixa de pósporos". todo mundo entrava na ig reja. depois cantávamos to dos juntos... Papai não gostava dessas irreverências. G anhei um J com uma camponesa sentada em sua perna. f icavam na janela. Estava na alameda Barros quando passou uma procissão. trechos de operetas com o Eva. un vescovo c 'era/ dando a tutti la sua/ la sua benedizione".. ('asta Suzana e as meninas entravam cantan de Gostava de cantar: Varre. José ofereceu seu salva. O sol desponta. e o marechal Hermes da Fonseca estava noiv o de Nair Teffé. mas p arece que o fim da história era trágico: o velho morreu e o cachorro deitou na sepul tura do velho e morreu ali. . Foi uma batalha que durou seis m eses. Desenho livre não se fazia. Levantei também a mão e fui para a classe da Clélia. Saiu da Inglaterra para os Estados Unidos com a elite social daqueles países. A rua era Onze de Junho. José Camargo d e Barros. Dizem que ele ficou com pressa de voltar pra encontrar com a Nair e mandou o rebocador Guarani transmitir ordem aos Outros navios para apressarem as manobras para ele voltar logo. a cabecinha na carteira. nunca fez as estripulias que fiz. enquanto o navio afundava. Depois disso comecei a ler o primeiro livro de João Kp ke: Amanhece. tudo se apronta. E o Guarani bateu numa pedra na ponta do Boi e naufragou. uma moringa. Em casa sempre se leu muito jornal..vidas para um rapaz que se afogava e ficou de pé. E houve um naufrágio ainda anterior em que morreu d. Homem de Meio. apaguei o nome dela. * Ia no navio outro bispo. Confundo na memória as poesias que dei para os alunos mais tarde com as que aprendi. e minha avó Josefina contava que d. Aritmética. a esquadra brasileira veio fa zer manobra aqui na costa de São Paulo. nós vivíamos mais de notícias forjadas no jornal que notícias de lá propriamente. Nessa ocasião parou. os tornos: eram os pino s com que os sapateiros faziam sapatos. Sobre o mapa da França nos descreveu toda a batalha de Verdun. que se salvou. Agradei sua cabecinha e voltei para minha classe. Encontrei minh a irmã chorando. Bateu num iceberg e partiu-se ao meio. As contas fazíamos no Mapa de Parker. Me impressionei muito com as fotografias que saíram n o jornal depois. cumpri dora. quando puseram d. copiávamos um copo. data (*) Esse naufrágio causou grande impacto na imaginação popular. Terminei cedo o primário. varre linda vassourinha. com onze anos e até catorze anos estudei em casa com meus irmãos para me preparar para a Escola Normal. José de Barros.o e do cachorro Veludo que andava com ele pela rua. abençoando os náufragos. Logo comecei a ler em casa os livros da condessa de Ségur. D. Morreram quase todos. Na entrada sempre havia uma professora que tocava piano.. o pessoal de casa ficou indignado: tirar uma data nacional pra botar um padre! Tenho uma lembrança muito forte da guerra de 14 porque papai estava construindo a Estrada de Ferro Araraquara. Clélia entrou no primeiro. aquele que dá o nome à rua. as obras do cônego Schimidt e Robinson Crusoe. O galo canta. por volta de 1912. José Camargo de Barro s casou meus avós. muito bem equipado. Quando vinha notícia era por telégrafo. Entre os mortos estav a um sobrinho le meu pai. ele voltou para casa. Outro navio que naufragou foi o Titanic. peguei a esponja.. da batalha do Riachuelo. Fui até a lousa. Lemos depois o livro de Romão Puiggari com as poesias de Zalina Rolim. Esse naufrágio matou diversos guardas-marinhas. Esse naufrágio me impressionou muito porque a família foi diretamente atingidã A mãe era irmã de papai. Os vizinhos nos viam pela janelinha que dava para a calçada e admiravam de nos ver estudando à noite com lampião. Foi construído à prova de naufrágio com porões estanques. / E fra loro. Os Glesastres de Sofia. Uma canção do início do século lembra o naufrágio e a tristeza da cmigração: "Pad e madri abbracciavan suoifigli/che sparivanofra le onde/fra le onde dei mar. Quando passei para o segundo ano. Em 1913. Não sei se é confusão minha. que ajudava muito no ensino das quatro operações. Na mesa grande do porão cada um tinha seu lugar.. viúva e tinha perdido uma filha. Uma colega saiu da classe "pra ir na cas inha" (a gente levantava a mão para ir ao banheiro) e quando voltou me contou: "Su a irmã está chorando". aprendíamos brincando com preguinhos de madeira. Era estudiosa. Abriif em cima da mesa da sala de jantar um Atlas de la Marche (Pedro Nava fala nos livros dele nesse atlas francês muito bonito). Apontou a lousa para mim onde o nome del a estava escrito por mau comportamento e me disse: "Não fiz nada".. 1914. Um irmão era engenheiro formado. Os enterros que vinham do Bom Retiro passavam pela Barão de Tatuí. Ele nos isolou co mpletamente. estava em Santos com o marido. depois subiam a Angélica. Quando se é criança não se sente porque continua-se a comer do mesmo j eito. Na área que corresponde hoje à avenida São Luís ficava o ginásio de esportes e o jardim da infância. Os caixões muito simples. ali pelas nove horas. É versão popular. C antavam: . leite. era pela França. que era lido com voracidade. Era o dia 11 de novembro. entra r na Escola Normal e ser professora. já casada. Nós não botávamos o nariz fora de casa. em carros puxados a burro. Debaixo das magnólias o chão era de areia. Ele desinfetava a casa muito bem desinf etada com enxofre. Falava-se muito mal do PRP. A gente nascia lá em casa com destino traçado: tinha que fazer o curso primário. feijão. Os irmãos que estavam fora tiveram a gripe. Em 1918 parou tudo aqui em São Paulo. Meu irmão era germanófilo. Estadinho. Quando o Brasil entrou na guerra houve um desfile pela cidade. Não havia emprego. ficou no Rio de Janeiro na casa de nossa avó. Andávamos sempre com um dentinho de alho que mamãe deu para cada um de nós. mas no mais. era contado na mão e devem ter passado pra outro candidato. tomamos um bonde com a bandeira brasileira no peito e fomos bater palma para os reservistas que passavam. Jovina chegou em casa e foi acordar o papai pra contar. Quando desceu não falou mais nada. Alguns foram pra guerra mas aquela tropa se formou para ficar aqui. eu. pelos alia dos. Elas ficavam uma belezinha com seus aventais de brim bege e c hapéu de palha redondo. Ele vendia muita banha e nas latas de banha punha metade banha e metade água. Brincou-s e muito. verdura. Nesse dia papai r euniu a família toda. Aqui em São Paulo paro u tudo. Muitos que foram não chegaram à Europa. que estava fec hada. A parte sexual era tabu na minha casa: não se falava em absoluto. Discutiram até o dia em que puseram a pique um navio b rasileiro. As opiniões se dividiram: papai tinha uma formação francesa. Eu já era aluna da Escola Normal. Nós f icamos em casa só Jovina. mas tinha bastante arroz. Seu terreno era cheio de flores e árvores de magnól ia. Esse mais tarde foi pra Escola Militar. não falemos! Meu pai morreu logo depois da Primeira Guerra e a grande modificação no mundo veio d epois da Segunda Guerra. edição da noite!" . Entrei para a Escola Normal da Praça em 1918. não faltava brasa naquele tempo com fogão de lenha. Nesse dia o Chico subiu a escada furioso. disso me lembro porque acordei e ouvi. passavam em número impressionante. onde as crianças brincavam. quando o n avio chegou em Dacar morreram de gripe. Os d ois filhos que estavam fora vieram pra casa e meu pai ficou alegríssimo. Papai todo dia lia a contag em das seções e não apareceram os dois votos. Mamãe era cardíaca e papai isolou mamãe. Em 1918 ou 19 houve uma eleição em que Mário e papai foram votar no Grupo do Arouche n um candidato. A irmã mais velha. da rua Epitácio Pessoa. Assis Brasil. mas não c hegou até nós. diziam que era bom queimar enxofre. Meu pai qu ando olhava para mamãe ficava com os olhos cheios de água de medo que ela morresse. que estava construindo o centro tele fônico do Brás. mas em outubro a escola fechou por c ausa da gripe. a estudar do mesmo jeito. A Escola Normal da Praça era muito mais bonita que hoje: confinava com as casas da rua Araújo. Paulo. marinho e bege com uma fita escrita: "Jardim da Infância". O voto não era secreto. E nunca apareceu o voto. Meu pai ficou em casa e um chefe de família que pára de trabalhar altera a vida da família. estava morando em Campinas. Nossa casa era caminho para os cemitérios do Araçá e da Consolação. Dizem que a única pessoa que enriqueceu foi o Matarazzo. Faltava carne. Papai mandava correndo comprar O Estado e lia outra vez. Houve um baile no Trianon e quando veio a notícia do armistício parou-se o bai le e cantou-se o Hino Nacional. gritando: "Estadinho. em Campin as ficou. Disseram que o cardíaco que ficasse com gripe m orria.De manhã vinha O Estado de S. Naturalmente alterou a economia da casa. Outro estava na Escola Militar. Na nossa casa a única pessoa qu e saía para trabalhar era meu irmão mais velho. Foi a época da gripe. Clélia e Guiomar. Tínhamos liberdade de sair para trabalhar. Comprava-se pó de enxofre n a farmácia. a guerra já tinha acabado. À noite passava o jornaleiro. nós em casa não tivemos. jóia de arquitetura: era uma construção sextavada ou oitavada onde as crianças subiam por rampas com gradi s de ferro cheios de trepadeiras. filho de costureira que chegou a professor. adotei um método novo: em vez de decorar os acidentes do li toral. quando lecionei. uma menina espeloteada que namorava o primo e embrulhava o vigário q . Quando encontrava minha amiga Margarida. recoava a água de conservar quente e fazia mais café. para nos ensinar ginástica: Mise la veio mocinha. quem nos dava era um professor muito bom.. Não se enxergava o cilindro interno. As pupilas do sr. Foi um rapaz muito pobre. De vez em quando fugíamos quando faltava o professor da última aula e nos prendiam. Não punia. descíamos para jogar bola. brincávamos. que ficou estufada atrás e assim dançava na frente da classe. Da minha vida pouca ge nte sabe. O professor Arlindo Pinto Silva. Fernando de Azevedo tinha grande fama mas deixou muito a desejar como professor. Uma vez caí nos braços do pro fessor de pedagogia. toda em francês. antologia muito bonita.Eu sou a magnólia copada de flores de alto cetim que acolhe sob a ramada as crianças do Jardim. o presbítero . Aquilo escandalizou. um short com as pernas de fora e um avental. No quarto ano veio um casal da Suécia. Mas adotava romances como livro de leitura e no s fez decorar o primeiro capítulo de Iracema. Nosso uniforme era saia marinho e blusa branca de manga comprida. que e ra bibliotecário lá. Quanto procurei um bule ass im para oferecer para ele! Foi um ótimo professor. até a universidade . lia e calava. muito compreensivo. Mamãe mandava uma bandeja c om café. sem jantar.. Uma colega fazia um trocadilho: "Se você fugir eu prometo amá-la!". de português. O professor mais querido era o de música: João Gomes Júnior. Foi nesse tempo que ele publicou seu primeiro livro: Nós. Então tomava um bonde com ou tras colegas e íamos para a Escola Normal do Brás pra ver se víamos o Guilherme. o sr. E jogava a mala pela janela. Por causa das gargalhadas a inspetora me pegou. como se esperasse. nós nos esbaldávamos. Roldão gostava do bule porque. Eu nunca andei. Nossa classe dava para um corredor comprido onde ficava a sala dos professores. faltava um professor e não tínhamos uma aula. O ginásio cheio de aparelhos para esporte e o jardim foram destruídos pela avenida São Luís. Mais t arde. ríamos. eu adorei Uma família inglesa. Era tipógrafo enquanto estudava. Fui apanhada uma vez pegando a mala embaixo. que era engraçadíssimo. Na Escola Normal tínhamos paixão pelo Guilherme de Almeida e Olegário Mariano. Ele fazia ditado musical tocando num pianinho com a mão direita enquanto a esquerda girava a manivela. Quando faltava o profes sor. Não gosto de pergunta. Logo de pois apareceu Olegário Mariano com As últimas cigarras. O bule de casa conservava o café quente. As alunas e screviam as notas na pauta. Começamos a a prender ginástica direito. dividíamos o litoral em zonas e estudávamos a descrição da costa.. adotou o quarto livro de leitura de João Këpke. vigário. Chegava depois das nove horas da oficina. andava pelos corredores da Escola Normal de têni s. da Suécia. Às vezes. patinava no corredor dando um impulso. Roldão era amigo de casa. Guy de Chantepleure. Inocência. sapato e meias pretas. amava Olegário.. Geografia. Titio. pintava muito. Era feito em Itapira pelo João Trani. Fundou depo is o Ginásio Rio Branco com Sampaio Dória e também lecionou na universidade. Ele toda a vida lembrou disso: quando me encontrava já abria os braços. compreendia noss as travessuras. achava graça em nossos malfeitos. escolhia outro: lemos Eurico. A morgadinha dos canaviais.. José Pedrosa. bonita. Nisso t udo fui sempre muito reservada. onde ficava o café. tinha uma paixão pelo Car ( los! Depois apareceu a Bibliothêque Rose que os pais costumavam dar às filhas. os Demidoff. Eu era tremenda.. Pelo funil enchia-se de água fervendo o cilindro externo do bule. Líamos Júlio Diniz. durante a noit e. Eu gostava. Eu admirava Guilherme de Almeida. Quando ele percebia que tínhamos gosta do do romance e chegado ao último capítulo. não sei d e quem era. de folha-de-flandres. reitor. conversávamos mui to. Até hoje sou muito fechada. q ue fisicamente era mais bonito que Guilherme. Minha liga estava larga certa vez: prendi a saia de pregas nela. mulato. À noite vinha estudar em casa com meu irmão Mário. pão e manteiga. Roldão Lopes de Barros. tinha um lado do corpo mais baixo que o outro p or causa do trabalho da tipografia. As meias eram presas por ligas. mas em casa ninguém tomava conhecime nto disso. Ensaiamos juntas uma canção em francês que nos deu muito trabalho: Glisse. Glisse. Daí por diante nós sempre freqüentamos as galerias. O pianista ria. mulheres. Nosso pai ficou desesperado pe nsando que ela não agüentasse a gripe. s impatizamos com ela por ela ter gostado de nossas coisas. O rei. não fazíamos certas coisas para mamãe não se con trariar. disseram que iam aprontar o Museu do Ipiran ga. Tínhamos ensaiado muito nosso coral: vieram cantar conosco as normalistas da Escol a Normal do Brás. Veio o professor Rui de Paula Sousa nos ensinar a pronúncia e ele era muito exigen te. Um grupo de alunas do maestro Chiaffarelli comprou entradas para a galeria e enfrentou os olhares do público. Mamãe veio até a porta da Escola Normal com os netos pequenino s para ver a rainha entrar. Uma inspetora desse tempo me encontrou mais tarde lecionando e disse: "Você quando toma conta dos meninos. O trólei disparou. Os outros ficaram horrorizados. era uma grande artista. que havia sido demolido. Era só lama e breu. Às tantas. Itália Fausta era lindíssima. sei que chegou em casa doente e encontrou nossa mãe com gripe. glisse. Não havia meio. Foi ficando amarelo. no Teatro Municipal. a vida de São Paulo. Mudo u-se o repertório para canções brasileiras. trtdneau rapide. Tínhamos um coro muito afinado e cantávamos só música brasileira. embaixo do viad uto Santa Ifigênia. Voltou aflito porque estava sem notícias de casa. começamos a ir na galeria. por isso deve entender muito be m seus alunos". enfiava num fio e ven dia naquele cordão. no Centenário da Independência. Quando estava no segundo ano da Escola Normal papai trabalhava em Iguape numa me dição de terras. 1924. mas Brás Cubas não. Sem esperar uma con dução melhor tomou uma charrete por aquelas picadas. Os festejos foram no Rio de Janeiro. (Abigail é madrinha de Bibi Ferreira. Tenho a impressão que ela conheceu o antúrio naquele dia. assisti com ela A ré misteriosa. A gente chorava de rir com as mentiras de Tartarin de Tar ascon. teve um derrame de bílis e hoje meu sobrinho que é . Recomeçamos a can ta e na hora do glisse. Se o Vianinha faz tanto sucesso é porque ele trouxe no san gue o germe que estava no pai. É o que havia para mostrar. O João Gomes se abaixou sobre a estande e ria. não pudemos passar por causa da lama e fo gos de artifício ninguém viu. mas nós. nós fomos pelo Cambu ci afora de automóvel para alcançar o museu. Foi um avanço social na época. penso que tenha sido esse o motivo. A rainha ficou o tempo inteiro olhando para os antúrios com que enfeitamos a mesa do anfiteatro. Choveu a semana inteira. Vocês deviam ver essas peças porque são verídicas. alunas. Não conheci o Teatro São José. Minha turma quase morreu de rir. Nesse período comecei a assistir teatro. Arthur Rubinstein. Eça de Queiroz não se lia ainda. espantoso. Oduvaldo Viana. Em 1923. Naquele tempo quem vinha a São Paulo tinha que visitar três lugares: o Museu do Ipir anga. Pela primeira vez. cujo nome verdade iro é Abigail Ferreira. O rei da Bélgica veio para o Brasil nas festas e nós cantamos para o rei na Escola N ormal. Começamos a as sistir Procópio Ferreira.ue era professor dela. Abigail Mai a. Não se cantou mais essa música. Não sei por que suas peças caíram no esquecimen to. O castagnaro da festa tem como ambiente uma vila do Bexiga. glisse. u m grito musical. Quando saiu levou um m aço de antúrios. um grito agudo. toma conta de você mesma. Nós fomos criados com muito cuidado de mamãe. Íamos ao Teatro Apolo na rua Dom José de Barros. A mulher dele. ao Cassino Antártica. a Escola Normal e o Butantã. eram duzentas moças ensaiando. De Machado de Assis podia-se ler Helena. Era feia. Usava um chapéu grande com tantos véus enrolando que parecia um mosquit eiro. fardado. que iam trazer fogos de artifício. Em 1922.) Manhãs de sol é desse tempo. é a vida da São Paulo opular do começo do século. As peças de Oduvaldo Viana reconst ituem os hábitos. O castagnaro era um tipo do Bexiga que no tempo de Natal assava castanhas. o trenó deslizava mais depressa e tínhamos que dar um grito de susto. dei um berro. exigia que recomeçássemos e achava sempre o grito inexpressivo. glisse. Raul Roulien. la neige est perfide. nós . porque Oduvaldo Viana era paulista e filho de um diretor de grupo daqui de São Paulo. fazíamos escondidos dela nossos malfeitos. Parou tudo . Disse então par a minhas colegas: "Vou dar um grito do gosto dele". Rui nunca estava con tente. é uma inter pretação minha. começaram a vir pra cá pianist as como Brailowski. e em 30 ele entrou na Coluna Prestes. O que se comentava em São Paulo eram as festas de d. Chico morreu quinze dias antes da minha formatura: não tive formatura. Foi um ano de luto: vestido preto. Conheci de vista Alcântara Machado porque o pessoal dele morava no largo de Santa . Morreu em agosto de 1919. O conceito de vida mudou porque do jeito que nossa mãe se arrumava eu não me arrumo hoje. brigava com ele. Olívia Penteado que fez uma ref orma na casa: tirou as cadeiras e mobiliou a sala com pufes para os modernistas sentarem. A distância era mui to grande. meia preta. Mas na rua andava sempre impecável. que nada tinha de popular. foi enterrado no Cemitério do Araçá. Era um irmão alegríssimo. Os outros estudava m no Rio. eu acredito. aqu i em São Paulo falava-se na Semana da Arte Moderna. E o brigadeiro Eduardo Gomes. a grã-finagem de São Paulo. Muitos anos depo is em 30. moléstia que o rato transmite e ataca o fígado. Era feio. Olív ia. Ela. As pessoas envelheciam mais cedo pela roupa. Fiquei agradecida por isso. sapato preto. Eu guardei. Paulo acabando com os Dezoito do Forte. Ainda comentei com quem estava perto o chique do Mário. todo de cinzento com um chapéu gelô cinzento. Outro dia ainda soube de uma moça daquele tempo que teve paixão a vida in teira por ele. Minha avó paterna. Tenho a impressão que namorava todas as m oças da redondeza. O Plínio Barreto teve a infeliz idéia de escrever um artigo "Heróis. Acho que ele m orava para os lados da rua Margarida. Tenho a impressão que ele gostava de sentar no primeiro banco. A gente vivia dentro das normas. pela maneira de pensar. com 57 an os.médico acha que ele deve ter apanhado leptospirose. Corriam muitos b oatos em São Paulo sobre os modernistas. Outra novidade é que eles não se cumprimentavam como os outros. que morreu na ocasião. era pelos Dezoito do Forte. e era católic a. covardes" no E stado de S. com quase oitenta anos. Naquela zona havia muito rato. Em 1919 isso foi um escândalo. A gente lê na biografia dele o que Paulo Duarte conta da po breza em que ele vivia. você não faz idéia o que eram as normas sociais daquele tempo. fita pret a de crepe durante um ano. O crepe era uma barra franzida que se pregava na roup a preta. Já era uma ousadia naquele tempo. Meus irmãos abriram em 22 no Diário Nacional uma subscrição para levantar um monumento a os Dezoito do Forte de Copacabana. A casa de d. não saíamos de casa. O chapéu de mamãe era um toque preto com um véu preto de crepe que caía sobre o rosto e não se enxergava nada. que estava morando no Rio. Todos foram admiráveis. Plínio Barreto já estava se enfeitando para interventor aqui em São Paulo. p eguei o artiguinho e mandei para o Diário de Santos. O terceiro ano do normal foi de luto. havia um outro Gomes. Ficamos em casa. Olívia desapareceu com o alargamento da avenida Duque de Caxias. meus irmãos foram ao enterro. no aniversário da morte dele. O co r. mas tenho idéia de uma coisa de grã-finos. Era um homem que só sab ia criticar ferinamente as mulheres. Aquilo foi uma paixão. e era fácil naquele tempo porque bastava olhar. Conheci Mário de Andrade no bonde Barra Funda quando ele era professor do Conserva tório. O Diário de Santos publicou e o Plínio Barreto simplesmente não foi o interventor de São Paulo. Ele velho deveria ficar com uma cara de Magalhães Pinto. A última ve z que vi Mário de Andrade na bilheteria do Teatro Municipal. para acaba r com os cumprimentos formais se batiam nas costas e diziam "oba!". Otávio. Ela não botou vela n a mão dele. mais avançada que o genro. não.po de Newton Prado veio pra São Paulo. nós em casa fomos tratados como su bversivos. Falaram em missa de sétimo dia para nossa mãe. Fomos espiar da calçada um baile do Clube S pam (Sociedade Paulista de Arte Moderna) e vimos a entrada das amizades de d. as quatro meninas e o irmão mais velho Mário. não mandou encomendar o corpo nem vir padres para o enterro. Todos os anos. ele estava um figurino inglês. ainda ia à missa. Vibramos muito com os Dezoito do Forte. ela disse: "Absolutamente! Meu marido não aceitava missas de sétimo dia". Morava c om um genro que era pelo Epitácio. Daqui de São Paulo foi o Newton Prado. o sucesso da rua. engraçadíssimo. Os Dezoito do Forte foi uma das maiores admir ações que nós tivemos. Tenho uma vaga idéia que nosso cunhado nos levou a dar uma volta de bonde no Carnaval de 192 0. Siqueira Campos foi para o estrangeiro. de vi ver. engenheiro da Mog iana. Mamãe nos botou dormindo no porão. Já se sabe. o filho do seu M anuel do armazém veio com a carrocinha de entrega e uma charrete. Maria. as Rego Freitas. Mamãe era nosso esteio e a falta desse esteio foi terrível. D. Hoje eu concluo que ele deve ter conversado sobre o perigo das tropa s desordenadas. Palmeiras. tinha inventado de ir à feira no largo do Arouche. era do tempo em que um homem acreditava na organização soci al. o modo de vida de casa muito austero. seu Manuel. mas acho que era quase setembro. Achamos mamãe na feira. O povo adorou tant o o Isidoro que nas matrículas de grupo. ele nasceu no século passado. Convivi com eles muito pouco tempo. O vendeiro da frente. até a Estação Sorocabana. e sempre moramos sós. Te ve um filho. Dazinha apareceu numa comédia. lá na Barra Funda. havia pelo menos dois p or cento de Isidoros. En tramos num trem de carga e fomos até Campinas. de acontecer alguma coisa conosco. d. de madrugada. Começara m a falar que estava havendo correria de soldados na cidade. Mamãe estava espiando por um a gretinha na janela. e converso u baixinho. O Maneco botou a mamãe na charrete. Foi depois da morte da nossa mãe. Ele foi causa de um escândalo na Escola Normal no tempo em que fui aluna. A Revolução de 24 começou num sábado. Aninha. ficou tuberculosa e quando a criança nasceu ela já estava à morte. Eu mesma tive aluno Isidoro. E ficamos naquela expectativa. era quem tinha um automóvel. a nossa c asa era na Barão de Tatuí. atravessou a rua e veio dizer para nossa mãe: "Não se impressio ne. foi nessa época que entramos num túnel e saímos do ou tro lado sã e salvas. ouvia-se perfeitament e o tiroteio no Palácio dos Campos Elíseos. Admirava muito nosso pai. Não foram os livros que me formaram: foram meu pai. não lembro bem quand o voltamos. nos levou para a f azenda dele. Quando começou a se fal ar em revolução. que representaram sobre 22. o juiz Moraes de Mello. para nós foi uma farra. Por volta de 25 recebi um convite para visitar com umas primas a fábrica do Street . Um dia nosso vizinho. São Paulo inteiro estava se retirando . mi nha mãe. que veio imediatamente receber mamãe. Ele tinha confiança em nós. que era mais abrigad o numa queda de granada. que nunca saía de casa. As tropas do Rio Grande começaram a entrar em São Paulo. Passamos a revolução lá. trouxemos mamãe para casa e sossegamos . Foi muito delicado. quando el e morreu sua filha mais nova tinha dez anos e ele dizia: "Uma só que fique solteir a. sentadas em caixotes. Encontramos no mesmo vagão de carga umas moças conhecidas nossas.Cecília numa casa pra dentro de um jardim com terraço na frente. Seguimos o conselho dele. Quando chegamos em Campinas. Er a uma coisa tão reservada que ele nos mandou sair da sala. Acabou indo viver com ele. De vez em quando se ouvia um tiro. Contava depois que caiu granada próximo de nossa casa. Nossa mãe. na casa de nossa avó. sete anos depois. só residências. Ni nguém gostava do Bernardes porque 24 foi uma conseqüência de 22. uma normalista. com o nome de Daisy. Quem estava em casa saiu à procura de mamãe. mas como não havia prédios. porque crédito a senhora terá sempre na minha venda". nessas horas ela estava sempre com a gente. vá morar sozinha". Itapira já estava sendo tomada pelas tropas legalistas. Fomos na carrocinha de entrega. Aí mamãe adoeceu e logo depois morreu. a famíl ia da moça não a desamparou. Ele não deixou fortuna. Meu irmão foi procurar um primo nosso. (Dizem que ele se casou in extremis com ela. por uma gretinha ainda entra uma bala!". Esse pedaço não quero lembrar. as mocinhas. na boléia. quando começou a revolução foi lá pra casa. nos princípios com que nos educou. Os vizinhos mais próximos continuaram por ali. Mamãe morreu em 1924. o que el e deixou foi pouco mas pra mim foi muito: um diploma de Escola Normal para que e u pudesse ganhar a vida. Naquele tempo quem tinha automóvel em São Paulo a gente conhecia logo. Papai morreu quando completei dezesseis anos e mamãe quando completei 21. Oswald de Andrade era de gente muito rica.) A criança também morreu. Há um pedaço da minha vida entre 1924 e 1927 que eu tenho a impressão que entrei num tún el e saí anos depois do outro lado. Nós estávamos tranqüilas em casa. dia 5 de julho. foi lá em casa conversar com mamãe. Naquele tempo todo mundo se conhecia. tomamos logo o partido do Isidoro. O povo achava que Isidoro era a redenção. era uma coisa tranqüila. gritamos: "Mamãe. Dois dias depois. não deixaram a filha na rua da amargura. Uma moça te- ve um caso muito comentado naquele tempo: entrava pela porta da escola e saía pela dos fundos para encontrar o Oswald de Andrade. E ficamos aqui até 28 de julho. junto de Campinas. Nós íamos para Itapira. Não se saía no quintal porque um dia estávamos brincando e veio uma bala perdida e bateu na parede. Er am cinco horas de aula. Ensinávamos em linguagem um pouco de redação. ia pr a casa. que era uma coisa formidável. apareceram mais crianças. erafcompb. Ela trabalhav a no turno da noite. Não havia revistas como hoje. mas naquele tempo não aprofundei. Esse S treet queria instalar uma fábrica socialista em pleno regime capitalista. arrumei as carteiras. Francisco. mor eninha. custavam para sair para esperar as professoras. Era uma escola isolada. Era o bonde das professoras. Vi muito por cima. Os alunos vinham descalços para a aula. demoravam um pouco o bonde. Eram tão pobres que não tinham roupa para vir pra escola e o avental de saco de farinha resolveu o caso. Uma colega deu uma boa respos ta: que o dia que os pais ganhassem para comprar chinelinhos não precisavam mais d aquela escola. Jogamos água no chão. no ponto final do bonde Fábrica. Quando a fábrica apitava quatro horas ela saía da escola. Lavapês. que trabalhava no turno das seis a meio-dia. dizia ela que jantava. tin ha desvios. Quando cheguei no primeiro dia de aula já estavam algumas crianças espiando para ver se a gente chegava. Mas continuavam a chegar descalços e o inspetor exigiu q ue as crianças viessem pelo menos com um chinelinho. Ensinei para os alunos como aprendi: . não tinha roupa. os traços muito finos. Dava linguagem. a fazer operações no Mapa de Parker. A criança da escola isolada não tinha sapato. Consegui que as mães fizessem uns aventais brancos de sacos de fari nha. que estava suja. Quando passavam no largo da Sé espia vam para ver ser não tinha nenhuma atrasada. Se uma menina de mais idade como a El vira precisava de escola. arranjar gravuras era difícil. uma fábrica de tecidos. largo do Cambuci. Custava duzentos réis e chegava ao meio-dia e vi nte. Meus alunos eram todos fil hos de operários. Tinha uma média de 35 alunos. toda pintada de azul. só havia uma indústria de chapéus na esquina da rua Scuvero. O pessoal explorava po rque sabia que a professora precisava daquele canto. Eu tinha uma aluna. Tinha um out ro menino. As ruas do Camb uci eram de casas pequenas. Eu tinha ordem de matricular entre sete e nove anos. lecionava o primeiro e o segundo ano. as vidraças. era cinzenta. Foi assim que comecei. Teria uns onze anos. Os condutores de bonde eram muito amáveis. quando o bonde pa rava. história do Brasil. Todo dia cheg ava atrasado porque saía da fábrica meio-dia. Não sei por qu e não existem mais.. magrinha. Quem botou ordem no trabalho do menor com muita demagogia foi o Getúlio. Isso ainda existe no Brás. Vi. As fábricas aceitavam trabalho de menores. eu não podia botar a menina na rua. eram uns preguinhos de madeira para aprender a c ontar. Elvira Massari. Pegava o bonde na Sé e viajava 45 minutos até o primeiro arco da estrada de Santos. Com as crianças eu lavei a escola. O ordenado era t rezentos mil-réis por mês e o aluguel da casa era cem mil-réis. Preguei na porta um cartão: "Matrículas para o primeiro ano". lavamos a porta. comprei uma vassoura. Havia nu ma vila um grupo de casas de operários com um jardim muito bonito. antes de uma hora não podia estar na esc ola. Não era morena. Você já pensou u ma criança escrever gymnástica assim? Para ensinar tabuada a primeira coisa que fiz foi comprar um quilo de tornos. a mãe ia buscar a menina na saída da fábrica. Trabalhei lá cinco anos. Depois pegava a rua dos Sorocabanos e ia até a Fábrica. Em 1925 fiz concurso para a capital e fui trabalhar na Fábrica. Uma colega e eu a lugamos uma sala na rua Lino Coutinho onde era a fábrica doJafet. mas fui sempre insubordinada. achei bonito. as crianças tinham que estudar. Entrava às seis horas na fábrica e trabalhava até meia- noite. trocava o motorneiro. Às vezes parava. O das onze e quarenta tinha um motorneiro português que fazia muita festa para nós. do operário. onde é o Presídio Maria Zélia. um pouco de geografia de São Paulo. Às cinco horas a sala já esta va limpa para começar a aula no outro dia. depois coordenarem sentenças em forma de uma historinha. d escia a rua da Glória. Subia a praça João Mendes onde havia a Igreja Nossa Senhoras dos Remédios. arranjei u m balde. Durante esse tempo observei de perto a vida do pobre. a avenida Pedro i. logo conheciam as professoras e davam u m jeito de acomodar as moças no primeiro banco. A ortografia era difícil. Descia na rua Labatut. Mostrávamos um cartãozinho-postal para as crianças formarem sentenças. pareciam casas de bonecas. Foi ele quem criou as leis tr abalhistas. Tinha um Grupo Escolar lá dentro. Escolhi o lugar pelo nome. mn. térreas. mas conheci a fábri ca. para guardar lugar para as professoras. Às vezes sentavam. aritmética. Ele fez concurso para a cadeira de parasitologia. Estudou. a gente batia o vidro e com aquilo arranhava o b raço da criança e vinha a linfa ali. quem tinha grande prestígio eleitoral e mandava na Instrução Pública era o major Molinaro. Ele me disse: "Pelo seu jeito a senhora é uma ótima professora para o quarto ano mas culino". As crianças acabavam pondo o prego na boca e mastigando. Gosto de pensar que ele está agora entrosado com outros médicos. Isso me revoltou demais. mostramos que tínhamos eleitorado. O diretor desse colégio.a contar com bolas de madeira e com tornos. foi a mãe que não voltou. Aí que comecei a conhecer a questão socia l. Naquele tempo. Na Lapa conheci também o problema das crianças cujos pais trabalhavam no frigorífico Armour. sem nada. o dr. eu senti como um filho. inexperiente. no segundo caso voltou. saindo da escola. Vi as mães que trabalh avam com criancinhas no colo e tinham licença de às vezes parar para dar de mamar pa ra as crianças. cabo eleitoral do PRP. No grupo e scolar era diferente: tinha o diretor. Eu sou o tipo da pessoa de oitiva. beneficiando a humanidade. quero ser engenhe iro". Não fazíamos isso por ordem do governo. Isso era a professora primária que enxer gava. desde que o perdemos. em 1930. Ele foi mais que um irmão. Martin Damy. A escola distribuiu um questionário perguntando a cada aluno o que desejava ser. A oficina tinha um cheiro insuportável de cloro. Deixei a Lapa . Houve uma ocasião em que numa casa começou a haver casos de tifo. Para arranjar nosso grupo. classe pesada e me dei muito bem com eles. D esde 1921 já trabalhava com os doentes. Lembro do primeiro aluno meu que morreu. um italiano analfabeto. que era mais perto de casa. E ele fez o colégio e nós o acompanhamos até o limiar da Politécnica. O s al da salmoura se infiltrava nas pernas. A escola isolada permitia mais contato da professora com a família do aluno. As doses vinham num vidro fininho. cinc o anos. Então o médico do Serviço Sanitário foi saber o que aconteceu. embora fujam do ensino primário. ele nomeava as professoras sem concurso. Acho muito difícil falar nele. No primeiro cas o a pessoa foi para o Isolamento e voltou. esse caso foi por causa da fossa negra. quando houve eleição conseguimos títulos de eleitores de pais de alunos só homens que votavam . Nesse tempo minha irmã Jovina já estava casada com Samuel. no terceiro caso. Conversávamos muito com os pais sobre os problemas que eles tinha m. De perto. transferia. na fantasia. As crianças tin ham que beber. Gostei muito de conhecer Afonso Schmidt. O c aixeiro me deu um livro de Afonso Schmidt. passei numa livraria no largo do Ouvidor e pedi um livro socialista. me procurou e disse: "Se eu soubesse onde esse menino morava eu o iria cha mar para ele fazer o colégio". só a minha es cola fazia isso. Chegando em casa falei com minhas irmãs e o menino quando acabou o Grupo Esc olar foi estudar no externato que nós tínhamos. ai nda trabalhando em algum lugar que desconhecemos. Era o caso da nossa escola: no mesmo telhefro numa distância de um metro ficavam a fossa e o poço. Eu chamei o médico e falei: "Dout or. O senhor repare: para economizar o t elheiro eles fazem paralelos a fossa negra e o poço". fez o Ginásio do Estado. E me botou lá. Tinha um aluno cujo pai traba lhava no salgadouro e tinha as pernas inchadas pelo sal e cheias de varizes. Morando naquele fim de mundo qual era o médico que iria atender? Morreu à míngua. nos esclarecia. foi um grande amigo. ouvia falar muito nas reivindicações sociais. que nos esclareceu muito. Quem lev ou vacina para lá fomos nós. abriu-se o primeiro colégio estadual. e a professora já não partic ipa tanto da vida da escola. Ainda pairava um pouco no sonho. nós tínhamos que solucionar. pobres. que era o melhor que em São Paulo existia. As professoras de hoje estão ma is preparadas. mas antes disso já con versava conosco. não tinha ainda uma idéia clara da situação soc ial. De vez em quando tinha uma epidemia de piolho. para que O PRP se interes sasse e criasse o primeiro grupo escolar do Sacomã. Infel izmente era muito mocinha. Uma vez. Agradando o maj or. O filho desse salgador da Armour respondeu: "Se Deus me ajudar. que era o chefe. conheci os meninos que trabalhavam à noite nas fábricas. na casa delas também bebiam. peguei meninos entre onze e treze anos. quase um fio de cabe lo de vidro. Quando acabou o ginásio. um grafite de lápis. As classes funcionam dentro do esquema que o direto r deseja. Em 1930 arranjei transferência para a Lapa. . Na guerra de 14. Apesar da censura toda nós acompanhávamos o vaivém da Coluna. meus alunos em geral escrevem direitinho. O corpo dele não foi encontrado rio abaixo.. Nós fomos roubados em nossos heróis. São Paulo inteiro vibrou. foi encontrado rio acima. Esse civismo vem muito do lar. O 5 de Julho. houve um curso para professoras na Diretoria Geral de Instrução Pública e uma das coisas que as professoras ouviram foi que os irmãos Wrigh t tinham sido os inventores do avião. saía do Brasil. O corpo dele veio para São Paulo naquela opressão que o país sofria em 1930. Se eu estivesse lá teria levantado e protestad o.. Era uma espécie de semideus que transitava. impress o no Rio. os outros vibrando contra. Diz ele que aprendeu civismo comigo. Em maio de 1930 Siqueira Campos morreu. saiu da Estação do Norte. que vivia na ilegalidade. aos que estão dispostos à luta e a o sacrifício em prol da futura transformação. guardei seu manifesto. Nessa ocasião Pedro Mota Lima. depois que mamãe morreu. principalmente depois que conheci os cadernos do MEC. A idéia de um grupo de moços foi executada em casa de meus avós. À massa miserável do nosso sertão e muito especialmente aos revolucionários sinceros. No tempo da Coluna Prestes ele não era m embro do partido. sabíamos onde Pr estes andava. depois saía mos à noite e pregávamos nos postes. Ali houve uma cerimônia religiosa. era uma noite clara de luar. Como é japonês. o que falei sobre ele durante trinta anos! Já não sei qual é minha memória e qual é a memória do ensino. tin ha-se sempre notícia dele. Quando Prestes. um dos membros da Comissão de Justiça e Paz. não um aparelho de destruição". tenho netos japoneses. fez um dis curso e desapareceu no meio do povo. Aos trabalhadores oprimidos das fazendas e das fábricas. subiu no túmulo. Os simpatizantes vi brando a favor. Seu manifesto é de maio de 1930: Ao proletariado sofredor de nossas cidades. Sempre gos tei muito de história. Quis se mudar o nome de avenida Pauli sta para avenida Siqueira Campos. viaduto do Chá e rua da Consolação. 328 * * * Morávamos as quatro moças juntas. em cas a. Era uma figura mitológica quando o avião em que viajava cai u no rio da Prata. Mas nessas coisas o diretor nunca me mandava. tínhamos a impressão de que ele era alado.. coisa de uns vinte anos. Nós copiávamos os comunicados do jornaizinho. quem pintou a tabuleta foi meu tio Armando Strambi. vinha a São Paulo. o que faltava em sentimento religioso sobrava em civismo. afinal só se mudou para Parque Siqueira Campos o parque. Nós acompanhamos a Coluna Prestes por um jornal clandestino. Ultimamen te. na Revolução de 30. José Gr egori. Gostava de ensinar português. ele protestou: "O avião é um instrumento d e paz e amizade. mimeografávamos. Nessa época era um ídolo. Passamos a noite acord adas pensando que àquela hora aqueles homens estavam sendo executados injustamente . Outro vem me visitar todo Natal e meu aniversário com a mulher e os filhos. * () Essa idéia no foi oficial: uma tabuleta escrita à mão Parque Siqueira Campos" apare ceu na avenida. foi meu aluno no quarto ano do g rupo. Como professora viv i tanto a vida de Santos Dumont. Acho que Vivina casou-se em 27 Quando Sacco e Vanzetti foram executados em 1927. Dali foi carregado a pé pela rua Direita. Afonso Schmidt escreveu um artigo lindo dizendo que o corpo dele em lugar de ser encontrado a j usante foi encontrado a montante porque seu destino era subir. ele mandava o pessoal mais calm o. onde ele foi enterrado no túmu lo da família Siqueira Campos. andava aqui dentro de São Paulo clandestinamente. quand o começaram a usar os aviões para bombardear. lembro como se fosse hoje o di a da execução. se desligou do grupo porque tinha ingressado no Partido Comunista. esquina da Clóvis Bevilacqua. o caixão chegou até a Igreja do Carmo na Rangel Pestana. vem um americano e diz que os inventores da aviação foram os irmãos Wright. entrava no Brasil.em 1935 e tenho alunos desse período que ainda me visitam: um deles é o monsenhor Paixão. O enterro foi um acontecim ento. Nosso pai sempre falava com muita admiração de Santos Dumont. atravessava a fron teira. Não pudemos dormir. . Nós só recebemos a notícia em 29 de outubro. Depois íamos ao cinema. já tomei café. mas doi s alunos meus se formaram padres. "Não senhora. Ou Odeon (naquele tempo tinha Sala Vermel ha e Sala Azul) ou no Cine República. Continuou a crise e o pessoal não queria pagar professor. não pomos a placa e está acabado". Víamos o que aparecesse: era Rodolfo Valentino. Estávamos na rua da Imaculada Conceição. trabalhava ainda na Fábrica. Ficou tudo muito ruim. tirou. Fiz esse ponto e meus alunos anotaram no seu caderno de história. Clélia e Guioma r trabalhavam também de manhã com alunos particulares. calada. Todo mundo olhava para ali: tinha havido uma débâcle na bolsa de Nova York mas que custou a chegar aqui no Brasil. senti como se tivesse caído sobre a cidade uma desgraça. Santa Cecília. nesse tempo a gente resolv u aproveitar a vida. Journet. com esse modo nosso de dizer: "Não somos católicas. O pior f oi a dificuldade de emprego. São Paulo mudou de feição. foram levar em casa pra botar. representou o Fausto. com toda piedade quase me . Assistimos às companhias de ópera francesas e italianas que vieram: o barítono Crabé. Eu me lembro claramente. Faltava trabalho. estávamos lendo Taís de Anatole Fra nce." "Não senhora!" Fiquei com ele na sala. Nós passamos um t elegrama para o Getúlio protestando contra tal medida. Era t anta a luta. tiramos a desforra da vida do que sofremos depois da mort e de mamãe. Fiz um resumo desses fatos para mostrar aos aluno s que as oito horas de trabalho não foi uma conquista fácil. Nunca toquei em assunto religioso n a aula. Os círculos positivistas protestaram. não tínhamos dinheiro para pagar as professoras. Almoçávamos no restaurante da Liga das Senhoras Católicas. Eles lutavam como anarquistas pelas oito horas de trabalho. o Estado leigo não permi tia o ensino de religião nenhuma nas escolas. E eu. Depois 331 é que eu soube. mas sou calada. Eu já era professora na Lapa. Diziam par a as mães de alunos: "A senhora bota seus filhos naquele colégio! Aquelas professora s não têm religião!". Estava tudo pa rado. nós não aceitamos. Quando elas voltaram da missa... Houve muito movimento de protesto contra a execução. No dia da comunhão. No ano do Congresso Eucarístico. não tínhamos que dar satisfação a ninguém. No grupo havia comunhões aparatosas. desconchavada mas gostosa de morar. não tínhamos empregada. Havia até templos positivistas nessa época. que foi uma das paixões de minha v ida. Trabalhávamos. O pessoal que tinha matriculado seus filhos. que é um português muito antigo. Íamos quase toda noite ao cinema. Todo mundo botou pla ca do congresso na porta. Aí veio a crise do café em 1929. Rodolfo Valentino tinha morrido em 26 ou 27. "a mais atentatória e regress ora aos nossos foros de povo livre". Éramos as mais moças. Com a República. Eu fui como banana q ue puseram na estufa e amadureceu à força. Daí veio uma crise tremenda. ficaram afogadas na Eucaristia. John Barrymore. A perda desse externato nos machucou muito.." "Não vá me botar numa complicação com as colegas. Baixaram os aluguéis das casas. Foi aí que nos lembramos de abrir um externato na casa que morávamos: era uma casa a ntiga. Quando voltei da escola de tarde. Um deles fez o Grupo Escolar Conselheiro Antônio Prado. As duas arrumavam a casa. Q uando voltávamos de tarde eu comprava uns pés de alface e uns bifes e fazia o jantar : salada e bife. quan do vejo um menino entrando pela porta: "Você não foi pra comunhão?". desistimos. é com dificuldade que deciframos. onde é hoje o Matarazzo. Veio para o Brasil um embaixador do papa que conseguiu que o Getúlio pusess e ensino religioso como matéria nas escolas. eu levo você até o bonde. Nós três nos vingamos.. Achei linda a ópera Taís. Sempre tive fama de anticlerical. quem vivia de propriedades alugadas as cas as se desalugaram. Foi um pedaço bom de nossa vi da. Quando nós três ficamos sozinhas fomos morar num apartamento na praça Marechal Deodoro . Fo i um período feliz. Caímos no índex da Igreja. Fiquei sentada na classe. sou dessas que de vez em quand o digo uma coisa bem pesada. Durou seis anos esse externato e fechou por falta de alunos em 1936. entre cinco e meia e seis horas passava pela rua Direita. eu cozinhava. Vai sim. minhas colegas deram expansão ao ensino religio so. Líamos juntas com uma vizinha as vidas dos santos de Eça de Queiroz e anotávamos o vocabulário. São Pedro. Foi conseqüência de uma lut a. Pena que nossas letras estão se apagando da margem do livro. todas foram pra igreja. com Sofia Gomide à frente. Havia um jornal que ficava na esquina do viaduto com a rua Líbero Badaró. fez um discurso vibrante saudando Getúlio. Tenente. que foi tipic amente uma revolução burguesa porque foi a burguesia de São Paulo que se levantou: os Moraes Barros. Uns diziam qu e vinham fugidos da guerra. pneumonia só ho uve um caso. Com o correr do tempo houve a revolução. Francisco Morato foi buscar o Getúlio do esta do de São Paulo. A gente andava na rua Direita com gaúcho arrastando espora acintosamente na calçada e de poncho. Uns vinham com me do mesmo. Conhecia os gráficos que eram anarquistas. São Paulo tinha um processo pleiteando as terras que ficavam ao longo de I tapira. mas naquele tempo em que freqüentou nossa casa era anarquista. na Sé. nunca tive a curio sidade de pegar um livro para conhecer melhor. onde o povo era getulista ta mbém. quisesse ou não quisesse. não sabiam bem por quê. O Getúlio foi muito acl amado e quando chegou ali na praça da República.. Nós em casa ficamos co ntra o Getúlio logo de saída. não tinha nada de social: eles só queriam derrubar o PRP para subir o P artido Democrático. Não posso precisar que mês foi. A revolução durou de 9 de julho a 28 de setembro. vê lá o que você vai me aprontar". Fui para o pelourinho. vá o Júlio que é paulista!". foram explod idos para não se entregar. Ficam os no Grupo da Lapa recebendo o pessoal: assim que chegava obrigávamos a tomar ban ho e trocar roupa. Foi um trabalho bonito. (Quando houve a revolução ela não me impressionou. por volta de 1924. Mococa. Domingos. Um rapaz estudante de direito. não sei se em março ou abril. Nós pagamos imposto de guerra: tod . Aí Getúlio tripudiou sobre São Paulo. as tropas nos trataram como terra ocupada. O pessoal do interior ficou com medo das tropas e vinha para cá. Em 1932 ouvi falar de um núcleo com unista aqui em São Paulo. Monte Sião. hoje dizem que é trotskista. O Getúlio chegou prometendo uma Constituição e se instalou. Ele riu-se. Nós fomos guerreados em todas as frentes: de Minas. o Hermenegildo Urbina Tel es. em outubro de 30. Toma canja de urubu com raminho de cipreste. Havia uma oposição tremenda ao PRP. Ouvi os adultos comentarem que havia morrido a f amília imperial. Porque os tenentes se instalaram aqui e passaram a governar São Paulo. Waldemar. um discurso que fez época. disse um versinho do Morato. Passou 3 1 todo e a Constituição não vinha. nosso conhe cido. para grande escândalo de meu cunhado: "Entre o Júl io e o Getúlio. Não houve casos de gripe. foi ser padre: hoje ele é d. em minha casa. Anda sempre jururu.. abaixa a crista. Chamei depois o diretor para ex- plicar que tinha ficado na classe pondo em dia meu trabalho. Mas era um palavreado. lá no Rio Grande do Sul. que só andava de preto. sempre de negro se veste. o menino não foi porq ue não quis ir. Foi nesse tempo que ouvi falar da Revolução Russa de 1917. Anunciavam um comício na porta da Catedral. d o Rio. No ano seguinte quando chegou a época da comunhão eu dizia: "Vê lá. não tive nenhuma interferência. Minas ganhou a causa. bateram: "Você fez isso! O menino não foi por influência sua". Os paulistas foram muito pressurosos. o Getúlio veio a São Paulo. Nós estávamos contra ele e dizíamos. do Paraná. Júlio Prestes era concorrente do PRP e Getúlio do Partido Democrátic o.. Essas famílias vinham das fazendas. Como na tela de Ka te Kollwitz* as mulheres se davam as mãos. Nessa época não se falava em comunismo. mas para mim e le é Zezinho até hoje. um rapaz. E o Brasil inteiro veio contra São Paulo. outros vinham por curiosidade de ver a capital. Alguns anos depois recebo um convite convidando para a ordenação dele. os Paes de Barros. Quando chegou 32 houve a Revolução de 32. outros vinham para conhecer a capital porque tinham trem de graça. de solidariedade. com os braços cruzados no peito e desciam a rua gritando: São Paulo é dos paulistas. El e desembarcou na Estação do Norte e veio em carro aberto até o centro da cidade com um a manifestação popular enorme. Chegando a São Paulo. beneditino. iam os homens e as senhoras e gritavam na rua. mas nunca apurei o que ele era. Mas o que podia significar o desaparecimento de uma família imperia l para uma menina de família republicana?) Mas eu ouvia só falar. sempre foi anarquis ta. Con hecia Mário Pedrosa mocinho. Três dias depois os aviões que os revo lucionários de São Paulo tinham recebido do exterior voaram pelos ares. até um pedaço de terra nós p rdemos. Em 1932 São P aulo inteirinho trabalhou. encontrar o Getúlio lá no Itararé e vie ram com ele e com a tropa dele. de trem. Outro aluno que tive é monsenhor.. Tivemos uma série de interventores. foram muito aprumadas. Veio um general Rabelo que era dado à caridade e o povo fazia uma maldade. que não puderam le var. Saiu uma correria tremenda. depois daquela concentração no largo da Sé. Em 34 foi a primeira vez que as mulheres votaram. Em 35 começou a luta entre integralistas e comunistas. para preparar 37. Depois da Intentona de 35 veio a ditadura e não se votou mais. Eles não desfil avam sem pancadaria porque os comunistas enfrentavam mesmo. de cima. soltavam gente. A revolução começou de verdade antes de 9 de julho. começou aí. conta que quando a tropa desocupou uma cidade ele ficou organizando os ca minhões. Levaram a porcelana de Lomiges. Prendiam. el e estava também metido no barulho. não posso dizer. O Getúlio estava preparando o bote. e Itapira. mas lá fora diziam que São Paulo queria a independência. despejaram pedras. No começo achávamos que São Paulo ia ganhar porque o Brasil vivia todo a nosso favor. Uma ocasião. que era do batalhão de engen haria. paulistas de quatrocentos anos. depois que o Getúlio se instalou. usavam uniformes v erdes. Quem foi. para pagar os custos da guerra durante três ou quatro anos. porque os integralistas eram os galinhas-verdes. comandante daquela frente. Nunca houve concentração integralista que não saísse ba rulho. a polícia foi atrás deles no Santa Helena. tinham até impressos cartõezinhos com o endereço do Rabelo. Desceram os cangaceiros do Nordeste. parecia um desfile de modas. As mul heres ainda mexiam as panelas de arroz pra não queimar no fundo. com o baru lho na praça da República. os integralistas para não serem apanhados escon deram as camisas debaixo das cadeiras. As comunicações ficaram interrompidas. Não ficou uma corrente. A última coisa que saiu foi a cozinha. As caixas de descarga antigamente tinham umas correntinhas douradas para puxar. e desses andai mes mandaram pedra lá de cima. naturalmente com a conivência dos operários. socialistas. Veio um general Valdomiro de Lima que todo mun do chamava de Ladromiro de Lima. quando vinham pedir esmola davam o endereço do Palácio dos Campos Elíseos. Os comunistas ocuparam o Palacete Santa Helena. em que foram mortos os moços de inicial MMDC. De vez em quando os integralistas resolviam desfilar e havia os entreveros. em frente à casa de René Thiollier havia uma faixa bem grande: SÃO PAULO NÃO É GALINHEIRO. entraram pelos andaimes e. quando os integralistas se reuniram embaixo. o piano. arrebentaram a coronhadas. eles levara m todas. para a saída em ordem da tropa. foi depredada. Os integralistas começaram a se organizar em 32. de chapéu e luvas. O Palacete Santa Helena ainda estava em construção. Eram senhoras de famílias. () O.o funcionalismo público tinha um desconto de oito mil-réis por mês (correspondia a um dia de trabalho). Os comunistas en frentavam com pedras os tiros da polícia. Eles. Foi um pedaço duro para São Paulo. Depois de 32. Fomos a uma matinê. quando nós passamos pela avenid a Paulista. Um amigo. Houve uma luta entre os estudantes e um pessoal de uma sociedade fas cista que tinha uma sede por ali. Brites refere-se ao quadro Solidariedade. havia uma concentração na praça Oswaldo Cruz. todos se juntaram e se esconderam na própria Catedral que ainda estava com andaimes. com medo dos comunistas. Foi assim q . O general Mascarenhas. na noite de 23 de maio. anarquistas. e nessa ocasião Mário Pedrosa levou um tiro. Por baixo das cadeiras havia camisas verdes. e ele dizia: "Dei xem queimar! Precisamos partir". das janelas. Só dez anos mais tarde o Partido Comunista entrou na legalidade. Na época do Getúlio havia muito comício no largo da Sé. Comunistas. levou com ele até as sa mambaias de minha tia. Foi já o começo d o fascismo. assim nas mãos de militares. mas eram marmiteiros organizados que faziam marmita para levar no comício. Um f oi no largo da Sé: os integralistas resolveram se reunir lá. As senhoras da sociedade foram junto com os batalhões para cozinhar. Co mo professora sabia através dos alunos que os italianos que vinham para cá ficavam l igados ao consulado italiano e aos domingos tinham que ir ao consulado para cant arem e endeusarem o Fascio. onde é a casa de meus padrinhos. houve muita luta su rda aqui. Foi correria. cuja reprodução tem em casa. porque queríamos a Constituição. mas era tudo p romovido pela polícia mesmo: os operários vinham com marmitas para o largo da Sé. pancadaria. mataram os rapazes que estavam na praça. Em 34. A família do Gofredo da Silva Teiles se vestia toda de verde. na rua Direita. foi a primeira vez que as mulheres votara m e já com o voto secreto. nos prédios ali por perto onde eles tinham se escondido. no Cine Alhambra. em geral havia piadas a respeito da política. foi atingido pelas costas. mas veio de informação oral. não estreou no Maria Zél ia. Às sete horas da noite vinha a "Hor a do Brasil". Eram do s primórdios do partido aqui em São Paulo. Esses presos haviam preparado a fuga mas foram denuciados. houve uma certa abertura e apareceu uma revista no teatro. Augusto. ELE (. um mês . de muita correria. que cham am de Intentona. com um tal Malraux. O Partido Comunista de São Paulo já existia anteriormente. O presíd io Maria Zélia era uma fábrica de tecidos. Houve uma traição qualquer lá no Nordeste e o pessoal do Rio se levantou antes da hora. a história do Fontoura. estreou no Presídio do Paraíso. com Agildo Barata à frente. Niemeyer.ULTI\ OU AJUSTIÇA E A VERDADE ENCARCERADO NO PRESÍDIO MARIA ZÉLIA FOI MASSACRADO PELA POLÍCIA DE SÃO PAULO NA NOITE SINISTRA DE 21 DE ABRIL DE 193v. O dia que foi proclamada a República espanhola eu ia passando no Diário da Noite. muito antes da entrada de Prestes. Quando encontrava um amigo desse tempo fi cava muito alegre: "É um amigo do colégio. filho de d. o filho do Saies Gomes é um comunista!". lembro mu ito bem quando os comunistas prepararam uma insurreição. Quando iam atravessando o pátio foram fuzilados pelas costas na noite de 21 de abril de 1937. na esquina do vi aduto com a rua Líbero Badaró. Ele ficou preso onze meses no Maria Zélia com Caio Prado Jr. antes de 35. julgados e condenados como subversivos. Cantava. A revista era uma peça em que havia uma parte de canto. Natália Pinto. quadra 13. "Os republicanos ganharam a eleição na Espanha!". botequim que tivesse rádio não podia desligar. chefe de polícia do Rio de Janeiro. Penso que já se preparava 37. Foi dos primeiros comunistas que se ouvi u falar. era a hora que o Getúlio falava. pareci a que eles estavam matando alguém. Houve gente que sofreu muito no Rio de Janeiro. Admirei d. De 32 a 37. sem uma correria na cidade. Foi o primeiro caso que ouvi de tortura e de atirar pessoa pela janel a. Veio en tão uma lei: bar. Depois o Franco organizou o Exército no norte da África e invadiu a Espanha. Hoje não há mais dessas revistas porque não se pode falar de política. transformar am a fábrica em presídio. sepultura 110: NASCEU EM 6 DE NOVEMBRO DE 1911. Esse começou muito criança. com a falência do Jorge Street. no Cemitério São Paulo. E houve os preparativos. Alguns escaparam mas o grupo que fugia na frente foi massacrado. Não podiam falar em janela porque o Niem eyer foi jogado pela janela. Raquel. da praia Vermelha. e dizia que era Josephine Baker da Fontoura. Augusto Pinto foi daqueles que em 35 foram presos. Em abril a polícia havia simulado um fuzilamento. mas quando falavam em ja nela. Natália que soube s er mãe. Ele e os companhei ros cavaram um túnel por baixo do muro e fugiram do Presídio do Paraíso. OXALÁ A HUMANIDADE POSSA COMPREENDÊ LO t AI DIA . São lembranças do coiégio!". uma pessoa de esquerda. tinha que ficar ligad o na "Hora do Brasil". como o jornalista da Folha da Ma nhã Noel Gertel e a mulher dele. Fizeram só para assustar quem estava fora e quem estava dentro. Lembro de fatos lidos em jornal que não se pode relatar com precisão. Um dos personagens era um ar tista que se vestia de mulher mas com a máscara do Fontoura. Inscrição que há no o de Augusto Pinto. que lutava pela Espanha. uma das mulheres mais conhecidas do Brasil daquela época: qualquer coisa que faziam com o marido dela. mas chegou à manifestação pública em 1935 na luta contra os integralistas e apareceu nas ruas. s ofria muito acompanhando a Legião Estrangeira. ele gritava: "Janela não! Janela não!". uma part e cômica. Nesse período não se passava uma semana. A insurreição fracassou. ninguém falava. todo mundo desligava o rádio. Pessoa extraordinária foi Maria Barata. Maria Barata botava a boca no mundo. A gente lia. f oi um período de muita agitação. De 37 a 45 foi a hora do silêncio. Ainda no governo de Bernardes foi preso para interrogatório um engenheiro carioca. Paulo Emílio.ue o Getúlio aprontou o golpe de 37. dispararam tiros lá dentro. Não é notícia que o jornal desse. Na passagem de governo de Bernardes para Washington Luís. A polícia durante o interrogatório atirou o moço pe la janela. Pôs uma lápide no túmulo do filho.. Havia muita correria na cidade. com rapazes r equebrando vestidos de bailarina. acompanhou o filho até o fim. Paulo Emílo estreou muito cedo. GUIADO POR UM SUBLIME IDEAL ELE AMOU A HUMANIDADE. Diziam do Paulo Emílio: "Onde se viu. ficou com muito poucos alunos e precisou trabalhar na Caixa Econômica Federal. Paulo na ocasião. Reitero a Vossa Excelência os meus protestos de mais elevado apreço. Ela sempre estudou e lecionou piano mas vieram as c rises de 29. Ela amava a vida. É essa que e ra a artista. Diretoria dessa Seção. seis anos. Uma ocasião apareceu lá um terreno completamente irregular . Processo 18 53 de 39 Passando às mãos de Vossa Excelência "incluso" a cópia do epitáfio gravado no tómulo de Augu sto Pinto. x. Ela estudou o processo. Quando falamos e m pagar no escritório ele não quis. quando esteve aqui a Comédie Française. Conseguimos levantar o dinheiro só depois de uns cinco. eu não guardo a ro upa das pessoas. marca Bechstem. Lembra de Morte e vida Severina. É uma cabeça privilegiada. "Imagine essas moças terem que entrar naquele antr o!". Clélia casou-se em 1942 com um companheiro de prisão de Augusto Pinto. Depois que ela desapareceu. Era espiritualista e lia muito Helena Blavatski. aberra de nossa f unção vital o transformarem ou consentir que se transforme o protoplasmático silencio do campo-santo em delírio de perpetuação do ódio e do comunismo. vibrou com Tristão e Isolda de uma maneira impressionante. armou um teorema geométrico do problema. Quando fomos ver a ópera. Ela foi uma artista. Saudaçóes. A gente hipoteca nossa casa. Esses são fatos que se vivem apaixonadamente na época. a quem confiamos tudo. Quando chegou lá o engenheiro voltou com o processo dizendo: "Mas este processo já passou aqui pela engenharia!". quando estava t udo resolvido mandou para a engenharia. No dia segu inte ela foi ao leilão e arrematou o piano por cinco contos. E ficamos pagando os juros da h ipoteca. Quando nós três morávamos sozinhas houve um leilão lá na rua Gabriel dos Santos. "Não se desespere. COMOVIDA HOMENAGEM DE SI A MÃE E DE SUA IRMÃ. Em 1959. Ele é um irmão pa ra nós. El a trabalhou num departamento da Caixa Econômica que fazia revisão de pedidos de emprés timo para construção de casa.. O que ela deixou de solidariedade no meio em que viveu! Ela ajudou a criar o Tea tro da Caixa Econômica. com a devida vênia pondero a Vossa Excelência que chega a pasmar que o Governo Municipal consint a que até para o recesso dos ossários se transportem afir mações subversivas. Só queria fazer sua oração à tarde ou à noite. Todo mês o italiano passava lá em casa pra pegar os juros. mas também do hitlerismo. guardo só os papéis.AO MÁRTIR. Éramos moças. Agora quando morreu o Câmara Ferreira. só que foi uma art ista abafada pelo meio. Depois que passou põe-se uma pe dra por cima. ela mandou uma coroa com uma frase que deixou admirados os que leram. Elas rema . Natália está com oitenta e tantos anos. Sr. Urna carta chegou à Repartição Central de Polícia: Exma. Clélia. Substratum reversivo que somos da retorta suprema do infinito. Fic ou seis meses sofrendo antes de morrer (faz alguns anos) e nunca proferiu uma qu eixa. A Clélia ficou encantada. a pianista. Minhas irmãs praticavam o remo no Esporte Clube Germânia [atual Clube Pinheiros]. Ela era uma artista que nasceu antes da época. Clélia tocava muito bem Tristão e Isolda no piano de cauda. Paulo.' D. Ela procurou os figurinos da época em que se passava a peça e se aprofundou no teatro como na música. Delegacia de Ordem Política e Social S. penso que o teatro também desapa receu. comunista que faleceu no antigo presídio político Maria Zélia. que era só vibração. ela se apaixonava e fazia na perfeição. Chefe de Polícia. tudo isso passa depressa. eu não sei como ela arranjou t odo o repertório da Comédie. 3 de outubro de 1939 n? -ii 'ii Exmo. que foi suces so no TUCA? Muito antes do TUCA levar. Sentimos muito em São Paulo o reflexo do fascismo. Ela viveu intensamente o teatro qu e ela ajudou a criar. Tinha um piano de cauda muito bonito. Eu ainda guardo isso para ter uma memória viva de alguma coisa que p ossa servir alguém. Tudo quanto fazia. Esta gaveta aqui é dela." Hipotecamos a casa e levantamos os cinco contos. Quando chegou em casa chorava desesperada: "Onde é que nós vamos arranjar cinco contos de réis para pagar o piano?". o Walmor encenou e ela guardou as caricat uras que saíram no Estado de S. Gosto muito de falar de Clélia viva. Davi Naum. no armistício. Houve a separação. Ele foi muito nosso amigo. Aí desistiram do desfile. Gil. Havia racionamento de açúcar. sacudia bandeirinha. Um dos conselheiros do clube. Tinha contra mim o Fascio. lembro o horror que todos nós sentimos com a bomba atômica e Hiros hima. Quando o Roberto Moreira descobriu as idéias de Paul botou da noite pro dia ele na rua. Os filhos de Vivi. fez um baru lhão. Kurt Leben. lá em Bariri. Em certa época nosso irmão foi morar na casa onde moramos em criança. vinha lá de Santo Amaro. o horror era de todos nós. Nesse tempo começaram a haver umas festas. todo mundo al egre. A impressão que se tinha é que eles viram os russos chegarem primeiro em Berlim. Foi um período duro. As crianças conversavam comigo sobr e isso. No fim da guerra. Só representou solidariedade. quando veio o nazismo veio um alemão pa ra cá e proibiu os rapazes alemães de andarem com as moças brasileiras e aí sentiu-se qu e saía dinheiro daqui para ir para a Alemanha. a guerra já estava acabada. e tempos dep ois os alemães resolveram fazer um desfile de nazistas e iam armar um altar da pátri a. amizade. Comia o que tin ha em casa. Uma verdadeira maldade. ora para os aliados. Um dia. Sentíamos por Samuel não só amizade. As festas eram nos bairros. muito parecido com nosso pai. Dia 7 de maio. Eles davam pensão a esse rapaz que ajudava nas despesas. pai de família. Um dos oficiais fez um discurso em alemão (nós ficamos es piando por uma janelinha para ver o que se fazia) e acabaram esticando as mãos e g ritando: "Heil Hitier!". com bailes onde os operários dançavam. Não é uma lembrança íntima. se abraçava. E o entusiasmo em que ficamos com a en trada dos russos em Berlim! Foi aí que meus alunos escreviam sobre patronos da história do Brasil e a lição sempre t erminava com um: "Glória eterna a Tiradentes!". nos abraçou. Nossos cunhados eram como irmãos nossos. arranjava macarrão pra gente. saiu. Foi uma confirmação q ue os americanos quiseram ter de sua força. Minhas irmãs faziam excursões a remo pelo rio. Os filhos de italianos do grupo só deixaram de freqüen tar o Fascio quando o Brasil entrou na guerra. descia e vinha desembocar no Tietê. Nessa época em que o Brasil ora acenava para a Alemanha. Então derrubaram Hiroshima. Ciro nasceu no dia em que morreu Sique . não se esse canal sujo. queria incutir nas crianças o sentimento de brasilidad e. Paul Monteil. Os marinheiros subiram a serra e vie ram almoçar no Clube Germânia. Nunca tivemos um mau pedaço em nossa vida que ele não estivesse conosco. Foi aí que os comunistas mandaram um recado: que eles podiam fazer isso mas que eles não respondiam pelo que ia acontecer depois. Quando descia a rua para tomar o bonde encontrava um rapaz amigo que me cumprimentava erguendo o punho: "Glória e terna!". ficou muito entusiasmado. ele se desligou dos alemães mas continuava morando com os judeus. anco rou um navio de guerra alemão aqui em Santos. todo mundo saiu pra rua. carinho. com os sobrinhos. Conhecemos um alemão q ue morava com um casal de judeus que tinham um filhinho. quando lembro disso é do comentá io coletivo. nasceu em 28. apareceram as finanças para a causa da Paz. Um técnico de fiação da Tecelagem Francesa. ele estava nos esperan do homem já feito. de seu poderio. passeando na avenida São João. ou "Glória eterna a Marcílio Dias!". de óleo. nós transformávamos macarrão em pão pra vender nas festas que dava muito dinheiro. E xplicava a biografia deles. A luta foi grande. Nunca mais os vimos. Nunca achei que valesse entrar na fila por causa de comida. como também ternura. d e pão. Não posso dizer que é uma lembrança só minha esse horror . Durante a guerra lia toda manhã o informe do Estado: havia diariamente a ordem do dia do Stalin contando a batalha de Stalingrado e terminava sempre assim: "Glória eterna aos que tombaram na luta pela liberdade".na foram meio meus filhos: meu primeiro sobrinho. subindo os degraus do terraço. Até esse ponto chegou o nazismo aqui dentro. Eles tinham que mostrar u ma força maior que os russos. Passamos no Café Juca Pato e o dono. Porque ele já tinha lido o jornal. Fomos para a cidade com as crianças. Ele foi intimado a sair da casa dos judeus. Ele tinha o curso primitivo dele.vam no rio Pinheiros. Nós irmãs sempre conversávamos m uito entre nós. dizendo assim: "Partim os para outra guerra!". que era um rio natural. e le então abriu a Livraria Francesa ali na Barão de Itapetininga. partilhava tudo. "Pois é." Reparei que o negrinho não chorava: tinha um nar iz chato e suava. assistia a aula. Um dia um colega avisou: "Professora. entrei. Uma colega tinha um aluno que não fazia a lição de casa. Não levou dois dias o diretor me apareceu na classe: "D . Não sou solteirona frustrada: quem não tem cão. era gente profundamente honesta. iam ao cinema juntos. os dois levavam a sobrin ha para dançar. Passado um tempo. Notei que quando se falava em gr eve uma das meninas ficava quieta. disse ao diretor. A menina não gostava que falassem no assunto. Não levou quinze dias. Brites. Meu irmão Caetano era do Partido Socialista. se casaram e tiveram filhos também. Uma semana o menino começou a faltar. E u dizia a minhas irmãs: "Deus me livre do amor materno das outras mães". Nós. eu não tive filho. Quand o Dulce ficou mocinha era agarrada com Clélia e o marido. A mãe. todo mundo respeita. Ela sentiu que o pai tinha feito uma coisa errada. Esse menino aí passa o dia sozinho. todo preto que se prezasse ia pra rua Direita com paletó br anco. Essa minha colega nunca mais botou uma criança de castigo. descobri: o pai dela era aposentado da S orocabana porque tinha se machucado no pátio de manobras quando furou uma greve. não queria sujar. Pendurado numa trave. Um chão de poei Espie o caldeirão. mas ela ajudou o marido a construir o brilho do nome dele. Ela faleceu há um ano e deixou vinte bisnetos. dentro de casa. porejava suor do nariz dele. Vida de professor é muito dura . então dobrei bem dobra. E o meni no passou a ter um lanche bom na escola. Todo dia ele f icava preso na diretoria fazendo a lição. O utro menino falava muito nos furadores de greve porque o pai estava sendo castig ado como grevista. numa fábrica. os dois engenh eiros.dinho. eu voltei da escola. Nos últimos anos de minha carreira trabalhei na Caixa Escolar. Continuei em frente. O casaco branco. Preciosa teve uma tri bo: cinco filhos. Desses. aqui está seu protegido sem uniforme outra vez". Minhas irmãs todas se casaram bem. porque brilho moral os outros tiveram também. ela tem dezesseis netos. um paletó de brim branco engomadinho . sem unifo rme. . Quando o menino chegava de manhã tomava banho. Não me se nti desgraçada. Foi uma vida muito em comum. embora o casamento mais brilhante tenha sido o de Jovina. da luta pela vida. pensando. quando voltei não achei mais.ira Campos e Dulce nasceu alguns anos mais tarde. professora. o Fulano morreu". Zangava com eles. quando o aluno começa a destrilhar. A criança pobre tem uma vivência muito mais in tensa)Conhecem melhor os problemas do dinheiro. Mário e Caetano. era do irmão d ele: domingo de noite. botei debaixo da árv ore. Paulo Zingg. que faltava. Comecei a tomar conta dele. todos se casaram. do pessoal do Partido Socialista lembro de An tonio Candido. No dia seguinte fui conversar com o diretor e ficou combinado: o uniforme dele ficava no grupo. depois deixava o uniforme dele com a porteira. Uma classe de crianças pobres é muito mais interes sante que uma classe de crianças ricas. Havia um pretinho q ue chegava tarde. consegui um uniforme para ele. era um assunto tra zido por eles mesmos. Andei. o menino estava esticado no chão porque eles não tinham nem mesa. infeliz por causa dos maus momentos. andei. Toda vida. aos vinte anos nos sentimos soltas no mundo sem o amparo de um pai. Sobre o direi to do operário sempre falei na classe. que ia sujo. Era um re sto de construção. colarinho e gravata. nós disputamos com ela a filiação. ele começou a aparecer sujo. Houve um período em que se falava muito em greve. Tudo isso amadurece a gente. fu i jogar futebol. Perguntei a ele: "Que fim você deu no uniforme?". "E a comida? Precisamos dar comida pra esse menino". Uma mãe doente. mas são mais distantes da gente. ve stia o uniforme. Qua ndo chegou lá. engomado. de uma mãe. dava um jeito de ir ver como era a casa da criança. A mãe está lá dentro. Uma vizinha me informou que o pai tinha lar gado a mulher havia muito tempo. São um pouco filhos da gente. tinha só feijão. Digo brilh o intelectual. fui parar na várzea da Barra Funda. fraquinha. quis bem aos filhos de minhas irmãs. Era a única coisa que havia na casa. Fiquei pensando. A casa dele ficava num terreno baldio entre os trilhos e a rua. doze se cas aram. Ela então foi à casa do aluno. Quando acabou a aula saí com o menino e fomos para a casa dele. Porque elas para defenderem as fi lhas não têm caridade com as filhas dos outros. às cinco horas toma o trem na Barra Funda pa ra ir trabalhar na Moóca. caça com gato. Demos outro uniforme. chamava atenção. Arranjei umas varizes que tenho até hoje. ela dizia: "Que eles pensassem que daquela da ta em diante ela era uma mãe com braços vazios". afiançou que traria de novo Prestes para a prisão. Olga veio como mulher dele. Ele passou dez anos completamente segregado. Depois que esse aluno morreu fui aprender desenho: queria desenhar o Olavito. então. Só foi parar em Hamburgo e ela dali já foi para a prisão. Prestes tinha saído da prisão naqueles dias. se instituiu advogado dele e ia visitá-lo na prisão. Teve a filha e Anita Benario nasceu na prisão. Dizem que ele voltou em 34 para cá com um passaporte f also. Anita Benario aprendeu a engati nhar no cimento da prisão. Esse comício foi importante na minha vida. Uns tijolos com um caldeirão em cima. Ain da fiz um agrado na cabeça dele antes da saída e fiquei vendo os dois vultinhos sumi rem lá na esquina. em 1945. só se sabia das coisas muito depois. Os comunistas começaram a aparecer. Começou aí a organização política do partido. Mas o navio passou ao la rgo. Tir aram a menina da Olga mas nunca disseram para a mãe onde a menina ia. Entrou no Brasil clandestina e viv eu sempre na clandestinidade. homens e mulheres trabalhando. só teve seme lhança com este em que vemos o governo negar cidadania para as crianças dos exilados . Foi um período bárbaro. Dos arrabaldes chegavam para o comício caminhões e caminhões de operários. Até 26 de fevereiro de 45 não se falava nada. mendigos. Entrei e daí a pouco toca o telefone: "D. Fui eu que costurei as flâmulas imensas que ficaram na porta do estádio. Ela sobreviveu alguns anos. Ele era pequenino. O navio que a recebeu devia parar num porto do Norte da França e os estivadores de sse porto estavam todos organizados para raptar a Olga. A menina saiu da Alemanha com a avó paterna. e um amigo dizia: "Esse aí veio trazer um recadinho do Roosevelt!". Quando Prestes foi preso em 3. A impressão mais forte que tive de Prestes foi essa do Pacaembu em 1945. Aquela moça so freu todos os horrores. Foram para o México e a irmã mais moça de Prestes ficou sempre com essa menina. Penso que o partido não estava ainda na l egalidade. E para cortar. Isso me aca brunhou. Dois dias depois ele morreu. D. Olavito foi 'tr opelado' e foi pro hospital com a mamãe". fiquei marcada. No dia 25 de março de 1935 um dos pequeninos saiu um pouco atrasado com o irmãozinho mais velho. Trabalh ei muito na organização do comício. 26 de fevereiro. ela foi deportada para a Alemanha nazista. Prestes se exilou depois da Coluna Prestes e se casou no exílio com Olga. um catre no fundo. um tal de Stetinius. E foi morrer no México. E o Getúlio não consentiu. Foi o maior comício que já vina vida. Pi ntei durante anos crianças. O presidente do México se ofereceu como fiador para o Pres tes sair daqui e ver a mãe que estava à morte. Houve de sfile e eu estava na pista durante o desfile. Das arquibancadas jogavam muito di nheiro e nós catávamos o dinheiro na grama. não se sabiam notícias pelo jornal as notícias corriam de boca em boca. Leocádia Prestes batalhou para tirar a menina da mãe. A mãe dele saiu daqui com a filha mais moça. dois ou três dias seguidos. Daí o valor de Sobral Pinto qu e assumiu a defesa de Prestes. O pai dele adoeceu do coração e viveu uns cinco ou seis anos muito doente. a Lígia. Chegou aqui no Bras il um mensageiro de Roosevelt. Eu me lembro que foi num domingo. A mãe recebia um balde de água por dia para dar banho na filha. Aflita Benario já estava com um ano e pouco. um americano. * * * No tempo do externato aconteceu uma coisa que me atingiu muito. Olga estava grávida. Numa carta que conseguiu chegar aos Prestes e q ue foi publicada na Classe Operária. meus alunos. Mas nunca consegui pintar sua carinha. Esteve em toda parte pa r arrancar a criança de lá e conseguiu. Prestes foi posto em liberda de depois de dez anos de prisão. de português. liberdade política. Foi à Câmara dos Lordes na Ingl aterra pedindo a neta. Todo mundo me apontava . porque costurei de pé. presidente. tinha uma facilidade extraordinária de ex posição. Prestes ficou dez anos na prisão. era o Estado Novo. E o partido veio para a legalidade. Foi uma coisa empolgante o comício de Pres tes. Houve o comício do Prestes aqui no Pacaembu. Brites. Teve uma conve rsinha de pé de ouvido com Getúlio e logo em seguida veio uma abertura: liberdade de imprensa. precisou descobrir um alfaiate do partido que fosse lá cortar. Ele. e correu o mundo pedindo pelo filho . Acabou a censura. Fomos para o comício. Olga Benario era uma pessoa lendária.ra cinzenta. Presa. Não sei se Olga chego u a saber para onde foi a filha. Houve liberdade naquela época! A plataforma do partido na legalidade eram as refor mas sociais. trabal hou. veja bem no que está se metendo". As colegas ficaram horrorizadas. que era ape na um operário. e o padre Sabóia era um astro como pregador. O Crispim é que achatou o pa dre Sabóia com as respostas que deu. Descobri que aquela pessoa tímida. diziam desaforos para ela. nesse tempo duro. quando era professora lia par a as crianças e fiz as crianças decorarem trechos como descrições. era Portinari. Mesmo porque ele levou consigo uma equipe de comunistas que em certos momentos auxiliavam nas respostas. Ele não era comunista. Passou até fome porque a polícia não deixava entrar nada em casa. Conheci Portinari na sede do jornal Hoje: era pequenininho. . Todos trabal havam em serviço pesado. ele e ntrou no partido pra aproveitar a propaganda. e gan ha por linha escrita. Foi nessa época que conheci Afonso Schmidt. a exploração do t rabalhador do cacau pelo pai dele. Não está? Sou uma obscura p rofessora primária que pensa. catei aquel as faixas e trouxe para lavar no comitê. que eram em geral domésticas e operários. Lecionei dois anos à noite das sete às d ez. sentava na primeira fila. São Paulo inteiro escutou. Os vizi nhos xingavam. Começou contand o a luta do cacau na Bahia. A última eleição tinha sido em 34. ela fez um discurso saudando Prestes. puxava uma perna. Havia qualquer coisa escrita pela paz. No dia seguinte entrei no ônibus e um rapaz conhecido falou para Outro: "Esta aí é comunista". Entrando para o partido conseguiu que esses l ivros fossem traduzidos em todas as línguas dos países comunistas: é o homem que mais ganha com direitos autorais. Ho je não leio mais Jorge Amado. O debate foi empolgante. Era doce.com o dedo. muito modesto. Todo mundo se empenhou. Eu acompanhava essas lutas mas nunca fui membro do partido. disse: "Olha lá. Uns dias antes da eleição o José Maria Crispim teve um debate pela televisão. A tinta saía e a gente aproveitava para faz er roupas para as crianças pobres. Na minha opinião. ameaçavam. a patroa ficou horrorizada: "Onde já se viu?! É coisa de comunista!". isso é coisa de comunista. mu ito simples. Em 35 conheci d. jogando confete em um e outro. eu aceitei. Nunca conseguiu distinguir o o do a. Sentei ao lado dele e conversei com ele sobre desenho. Uma aluna se ofereceu para lavar. prestava muita atenção. a eleição aqui em São Paulo foi uma loucura. "Vou só alfab etizar e acho que alfabetizar não é comunismo". d ona Brites. um inspetor. A única pessoa que tinha pena d ela era o pastor protestante que morava perto e todo dia de manhã deixava leite e pão na sua porta. é desde o tempo daquele comíci o. Aprender nessa idade é difícil: lembro de uma aluna que vinha todas as noites. o Jorge Amado disse alguma palavra pelos que estão presos ? Ele teve uma palavra para contestar o que aconteceu nas prisões? Ele está na Acade mia Brasileira de Letras. humilde. Certa vez houve um comício. o q ue se distribuiu de cédulas do Crispim! O padre Sabóia era um homem muito culto mas um pouco pretensioso. O que é que ele explora? A vida das prostitutas. havia mesas para distribuição de cédulas. * Fizeram esse debate para acachapar o Crispim. Todo dia 4 de outub ro ia levar uma flor para são Francisco. espiritualista. Agora. Quando foram eleitos os deputados do Partido Comuni sta em 46. Luísa Branco. não se coadunava muito com os comunistas. seu Lázaro. ele respo ndeu todas as minhas perguntas. Quando fui registrar a escola do comitê. Antes d a legalidade foram fundados os comitês populares dos bairros. Achei linda a sua vida de são Francisco. No dia seguinte. um são Francisco comunista. Ali na Light havia uma mesa do Partido Comunista. Fiz as crianças todas lerem A infância de Portinari de Mário Filho. com escolas noturnas . Jorge Amado eu conheci no comício do Prestes. Ele sempre distribuindo sorrisos. que era a luta do pai dele pela terra. num canto. No dia seguinte ela devolveu as faixas e sumiu do comitê. Não é de agora que implico com ele. Chegamos a ter 87 alunos. ele andava sempre rodeado de mocinha s que nós chamávamos Jorge Amado Futebol Clube. mas achei lindo Jubiabá. e eu. Ela sofreu muito porque ficou presa em casa com os filh os pequenos. Q uando ela chegou na casa da patroa. su ave. sobraram umas faixas. nesse primeir o comício aqui em São Paulo. muito econômica. porque nunca entr ei no partido. Temos a Anita. Depois vei o a campanha da paz e muita gente foi presa por causa da campanha da paz. Uma vez . Maria Paes de Barr os. O jornal Hoje é dessa época. o comitê tinha podido continuar. sempre tomei parte não como militante do Partido Comunista. uma senhora de mais de noventa anos. Pedro II. estantes. bancos. Outra que votou pela cassação foi a Conceição Costa Neves. foi uma apoteose. Depois da cassação a polícia de vez em quando prendia as edições. a filha dele. Os deputados comunistas foram cassados em 47. Ela aprendeu a ler em um mês. Tomamos uma assi (* Lapso de memória. uma greve. Mas há sempre as pessoas apaixo nadas que misturam as coisas. as coisas que tínhamos.. se não tivess em misturado tanto. Mas o partido se ausentou de São Paulo. escondida de vergonha. Aqui em São Paulo. Se não me engano. tomaram como bairrismo. que foi assassinado o ano passado. O viaduto apinhado. não como colaboradoras. Eles levaram umas toc has de pano embebido em breu. mas naquele tempo era trabalho d e comunista. disse com a cabeça abaixada. misturou alhos com bugalhos. Lembro esse artista de rádio. mas o Partido Comunista dormiu no ponto. E muito comunista foi preso por causa do "petróleo é nosso". Nesse meio tempo fechou-se o partido e fechara m-se os comitês. Foi lá pra casa e alfabetizei a Margarida. e que deu o nome ao jornal do partido. livros. Só se via chegar caminhão com o povo de São Caetano. Ganh amos muitos livros. Era um sonho e não durou muito tempo. que t inha um ginásio em Santos. A idéia de Margarida era essa: se o Prestes mor rer não ficaremos sós. Era caminhão até não poder mais. Trabal hei. vinham artigos. Esse ferroviário era o sec retário do partido aqui. O comício do Fiuza no Anhangabaú foi uma loucu ra porque o palanque ficou quase na praça da Bandeira. Mário Scotti. Ca tulo Branco. d.. Estava cheio. Brites quis referir-se ao rádio. pessoa esclarecida. Nos primeiros tempos o Hoje saía à vontade. Hoje o pessoal fala "o petróleo é nosso". Santo André.. Traduzimos um sobre a condenação dos Rosenberg e levamos pa ra o Hoje. o Manuel de Nóbrega. Lá deixamos mobília. No pala nque estavam o Prestes e o Fiuza. Leon or Mendes de Barros. enchia o fu ndo do vale e ia até a rua Formosa. Quando o Partido Comunista fechou não houve um protesto do operariado.Conseguimos uma biblioteca infantil que dois dias na semana abria de tarde. Quand o houve o caso Rosenberg (as mulheres francesas trabalharam muito pelo casal Ros enberg). Eles entregaram os companheiros. Quando se interpelava por que o partido não vinha para São Paulo. Eu roía as u nhas. para o operariado foi a mesma coisa. mas sempre trabalhávamos ao lado deles na campanha da paz. Quantos deputados comunistas foram eleitos aqui em São Paulo! Taibo Cadórniga. que recebíamos aqui. Havia participação do povo. Pequenas notícias também dávamos para o jornal. As crianças liam. Sílvia Mendes Cajado. Mário Schemberg. deu o jorn al ao partido. Era de d. quem ficou aqui foi um operário da Sorocaban a. Continuamos as aulas até o fim do ano para não deixar o pessoal sem a ula. bem no fim do vale. E Pedro Pomar. Quando chegava a questão sind ical na Câmara dos Deputados. E o Caio Prado Jr.. A lguém respondeu: "Olhem que nos bondes está escrito: 'São Paulo é o maior centro industr ial da América Latina". no Parque D. Fechou o ginásio e entrou pro partido e ac abou a vida dele.. Ficaram no Rio de Janeiro pensando que a sede do partido devia ficar com as embaixadas. Quando o Fiuza acabou o discurso. D. irmã de d. para substituir. Ele não tinha fôlego para assumir isso tudo. 05 vo to eram dados pessoalmente. O Partido Comunista continuou sempre trabalhando: em 48 houve a campanha do petról eo é nosso. foi das únicas mulheres que escreveu uma carta protestando. Havia se mpre uma certa desconfiança das mães. mãe da artista Madalena Nicol. foi uma revista de pequeno porte que não pôde continuar. quem dava informação era o Roque. natura da revista das mulheres francesas Femme Française. Desses. o pessoal errou muito. fechar o Partido Comunista ou fechar uma escola de samba. acenderam as toc has. A irmã dele era analfabeta e queria votar. que era um espírita. ia lá na redação. quando d isse "sim" para a cassação. era professor. Assisti à cassação de mandatos na Câmara d os Deputados. era u ma contribuição que a gente dava para audar a defesa dos Rosenberg. A massa humana vinha da Líbero Badaró. Na quele tempo a gente ia muito pra Assembléia pra assistir. E havia participação do operário: na ocasião da eleição do D utra. um reinado. federal. Roque Trevisan. Quando fec hou o partido. Achava que o partido era co mo uma família imperial. eu lembro. o concorrente dele foi o Fiuza. de manhã cedo. Ana Andrade. e do jeito que se trabalhou ninguém trabalhava!". Pusem os tudo numa banca de carpinteiro que serviu de mesa onde se presidiu a sessão da tarde. Toda noite tínhamos uma moça que nos espionava. A polícia perseguia esses movimentos. Estava na boca de realizar o congresso e os cartazes não saíam. Lucinda de Olive ira.a Federação das Mulheres organizou um congresso pela paz. que era dinheiro. cada um tomou seu rumo. E se tomaram as últimas decisões com nada menos de cinco ou seis homens do DO PS dentro da sala e mais a tal moça de sempre e mais uma gordona que apareceu na s ala. tinha bandeiras de vidro em cima. Ofélia Amaral Botelho e outras mulheres para debater. Mas aqui se trabalhou com a polícia dentro. É a memória de um SÓ: trabalhei. No sábado do congresso. marido dela. umas recepções de entrada. Tivemos um outro congresso aqui e deram ao partido uma sala na União dos Funcionário s Públicos. O Prestes era meio vedete. ficou o tempo inte iro conversando na porta com a polícia. Bra nca Fialho veio do Rio e o desembargador Fialho. estava com uma cara desse tamanho. Quando as delegadas voltaram do Rio houve uma reunião para fazer a crítica de seu tr abalho. mas aqui em São Paulo não havia nada disso. ganhou o Prêmi o Stalin da Paz pulei de alegria. Conheci lá a Ana Andrade. era das altas esferas. dos tr abalhadores. tecelã. da União Soviética. tecelã do partido. perdi o fio. Com todo esse acompanhamento se escolheram os delegados pra mandar pro Rio de Janeiro: Leonor Petrarca. E eu é que sou bairrista. Não digo que não trabalhass em. Sempre houve certa rivalidade. e que já morreu (era sogra do cineasta Nelson Pereira dos Santos). O pessoal daqui era de um centro ind ustrial e as coisas eram diferentes. Os cartazes estiveram na minha casa e estava escrito: PRIMEIRO CONGRESSO MUNDIAL DE MULHERES. O dia que alguém perguntou por que não vinham pra São Paulo disseram que era bairrismo. aí a polícia tem medo. do Câmara. todo mundo ficou satisfeito. O Rio só criticava. Reclamei em termos tais que no dia seguinte São Paulo inteiro estava colado de cartazes. pode sair tudo às mil m aravilhas. No Rio arranjavam uns jantares. esse é apenas um ponto de vista meu. Eu havia feito voto de silêncio mas meus votos duram pouco tempo: "Eu disse a vocês que não vinha. Ouvi contar que o carioca até hoje pensa que ela foi líder n acional. antiga. e Lucinda de Oliveira. Dessa g ente. garantindo. O escritório da paz e de todas as arrumações do partido era no 11? andar daquele prédio imenso na praça da Bandeira. operária. tecelã. Não posso contar pra você. Para esse congresso pela paz o Clóvis Graciano desen hou uns cartazes lindos que eu estupidamente não guardei. Longe de São Paulo. A polícia foi fechando tudo. comecei a freqüentar aquilo. fiquei desenhando num quarto. onde é o Touring Clube. Ensacamos todo o papel com um menino da Po litécnica e fomos para o clube dos arquitetos que estavam ainda construindo. era tira mesmo. se não me engano. de falar. Esse erro o Partido Comunista cometeu: se instalou no Rio de Janeiro per to das embaixadas. Era lá também a União . Conseguiu tomar conta de doze a tre ze teares ao mesmo tempo. mas é muito fácil fazer o congresso quando a gente tem um desembargador na porta. Veio um re presentante do partido que arrasou o trabalho feito com a polícia atrás. É verdade. Um dos congre ssos conseguiu local num circo de cavalinhos perto do monumento do Ipiranga. A Ana Andr ade estava dirigindo isso. Veio então a história do mal-entendido: pensaram que certa dama da sociedade carioca é que tinha ganho o prêmio e festejaram antes no Rio. As coisa s no partido eram tão misturadas que não posso separar o que era o trabalho da paz. ela me telefonou p edindo que eu fosse desocupar a sala. Leonor Petrarca tinha arrancado um dente. A porta. não eram colados nas ruas como d eviam ser e o pessoal não tinha coragem de investir. professora muito culta. que não queria permitir o encontro. houve vários congressos e os fatos se misturam na minha memória. era muito inteligente. de muito caráter. Eu não tomei parte no debate porque não era do partido. Atribuíram o prêmio a essa dama porque era da alta burguesia. mas não tanto assim que possa lembrar mais. Ela não er a militante como Elisa Branco. do Prestes. o que era Federação das Mulheres. Chegou num ponto que fábrica nenhuma recebia mais a Luci nda porque ela entrava e um mês depois começavam as reivindicações ali na fábrica. Não tive dúvida: um dia atravessei a rua e fui lá onde trabalhavam e perguntei se eles tinham feito isso pra quê. de quem gostei muito. tinha esquecido de contar que quando Elisa Branco. e como faltava uma bandeira ouvi tudo o que se passou. foi o que contaram depois . Havia um preso. Estou me preparando para sair. mas apareceu uma mulher d a polícia: "As senhoras aqui dão remédio?". mas muito amigas mesmo. Ele conseguiu rolar e sair do meio dos trilhos. O pai dela se orden ou padre. Eu tinha muita pena dela. O secretário era engr açadíssimo: um cabo da Força Pública reformado. Não sou medrosa. Ela adoeceu de manhã e pediu o médico. mas quando faltavam aulas eles ficavam em apuros. que esteve preso. pode t . Não quero que você veja n essa minha crítica uma coisa destrutiva. Se não me engano eles eram mulatos. Onde en trou o ensino me interessei. Eu trabalhei sempre pela paz e na parte d e ensino. Naquele tempo o Departamento de Saúde mandava alguém na casa da professora que falta va. ninguém". Me puseram na presidênci a da Comissão Piratininga de Solidariedade aos Presos Políticos. cheio de celas. Depois que o delegado c onstatou seu engano ainda passamos 48 horas na prisão. "Não senhora. No dia seguinte vieram nos avisar que ela tinha morrido durante a noite. Onde não havia ensino. Os jornais da época deram." "Não estou me sentindo bem. ninguém. Quando o pai morreu ela foi morar com a avó. Nunca entrei lá. Ajudou a criar umas primas-irmãs quando a tia morreu e de ixou as crianças com a avó. Acho que não tinham massa suficiente para fazer um trabalho. Nós fomos amigas. assinava em meu nome e publ icava. criou a filha c om muito amor e carinho. Foram presas outras moças ope rárias do partido que ficaram em outra cela. mais pobre ainda. aí já é uma luta que o pr ofessorado empreendeu já em 1943 e fui eu que chefiei. foi muito boa neta. interessada pela criança. Fui sempre professora primária. De fato. No fim me demitiu do cargo porque eu não aparecia lá. não saio de casa. Quando ela perdeu a avó foi morar no porão d e uma pensão. Quando a Ana precisava sair. escutamos o movimento de protesto dos outros prisioneiros. No corredor comprido. SÓ leio notícia em jorna l. Foi o mal. todos olhavam o padre com a filhinha pela mão. Fomos presas e passa- em que o Prestes ia. foi para outra pensão. artigos contra maus-tratos aos presos políticos. na rua Vitorino Carmilo. A filha esteve sempre com ele. Acho que não existe mais nada hoje. Ele foi amarrado e jogado entre os trilhos da Central do B rasil. mas do lado material. Do lado moral setpre fui recompensada. Ele não gritou. eu não sei quem era. os pais dela se casaram e quando ela nasceu v ieram gêmeas. A gente sentava num cantinho da cel a e dormia. Quando teve eleição o pessoal ti rou todo mundo de lá e eu fiquei sozinha. Mas ela suportava aquilo muito bem. Ele olhou da porta e falou: "A senhora está bem. O médico foi de tarde e encontrou-a sentada tomando um chá que a dona da pensão tinha levado. qu e todo dia ao meio-dia e às seis horas da tarde assobiava a Internacional. Quando acaba ram com as escolas dos comitês. mas fui com ela . vou sair já". Ouvimos quando tiraram o deputado Taibo Cadórniga da prisão. não quis que ela fosse sozinha. Ela era filha de padre e gostav a de brincar: "Eu sou filha de padre!". Podem até me matar e não tem ninguém . Quando entrava no trem pela mão dele e chamava: "Papai!". nós não soubemos por quê. eu ficava na sala. Ela era professora e dava aulas particulares." "Como é o nome de sua amiga?" Dei um nome qualquer e disse: "A senhora me dá licença. não me interessava. Um dia a Antoninha faltou ao trabalho. Cultural Brasil-China. Já estava meio cansada. ela era uma moça bonita . Baratas corriam que era uma coisa horrorosa. Devolvi a chave para a Ana: "Não posso ficar mais lá. não me interessei muito mais. mas foi sempre bom pai. mas quando precisaram de gente para traba lhar pela paz fui duas ou três vezes por semana recortar notícias e guardar nas past as. era de no ite. e o pessoal pra ver o Prestes pagava cem mil-réis mos de um sábado a terça-feira nos porões do DOPS. Um sábado de tarde minha irmã Guiomar saiu pra Vila Prudente para angariar assinatur as pela paz. sempre visitei essa colega. Não posso dizer nada agora. quando perdemos a colega Antoninha. e ele: O que é minha filha?". Foi uma luta grande. Uma morreu e ela sobreviveu mas a mãe também morreu. "Estou servindo uma amiga que trabalha aqui. E ela ria quando contava isso. Depois. Fazia tudo: escrevia o fícios. Pode me dar um copo d'água?" Ela tomou e depois: "O que é que as senhoras fazem aqui?". no tem po do Getúlio. Nos reunimos depois na Caetano de Campos onde escrevi na lousa o quadro dos nossos vencimentos e d. A gente não chorava de sentimento. Ele conversou conosc o. Nós éramos 37 colegas na Barra Funda. Uma vez a mãe veio buscar o filho e procurou no re creio. Então o Antônio Lagoa. Uma c olega não começava a aula sem rezar com a classe a oração do anjo da guarda. os ferroviários da Soro. conversava. procurássemos as colegas do Gr upo Escolar e pedíssemos apoio. Durante a noite ela teve um derrame. Sempre me envolvi muito com a criançada. que pensava que São Paulo era um fazendão e ele era o fazendeiro: nos tratou assim. Ela devia estar com a pressão altíssima. Fizemos uma reunião nas Classes Laboriosas e combinamos: em cada cidade do interior que fôssemos. Em 42 ou 43 fomos pedir audiência no palácio e o chefe de cerimônias da Casa Civil disse que só pod eriam entrar cinco ou seis e de chapéu e luvas. por toda parte. chorava de ódio. Carolina Ri beiro nos cedeu o anfiteatro da escola.cabana reivindicavam um aumento de vencimentos e . o braço passado nas minhas costas. Um dia houve uma reclamação: as crianças estavam fugindo para ficar na bi blioteca. Lemos o tal quadro comparativo de salários. filhos que me prendess em. lá n um buraco da Vila Leopoldina. abraçada pelas mães. Ne ssa época. Foi alegre. Fizemos uma reunião depois do enterro e apareceu um grupo disposto para a luta. Dia muito feliz para mim era quando meus alunos ent ravam no ginásio. o pároco de Santa Cecília levou seu corpo para a ig reja. porque fazíamos isso c om alegria. Lia. Sentimos ódio aquele dia. foi muito engraçado. ficou feli z com isso." "Para rezar tem hora certa e dia certo. "Ele não quer rezar. em 44 ou 45. Quando chegou na classe e viu o menino comigo.rabalhar amanhã". Passava no corredor e quem tinha saído da aula. Pelo contrário. conversava comigo no recreio. Nenhuma queria aparecer mais que a outra. o departamento que cuidava dos vencimentos de todo f uncionalismo. O pai dele também paga imposto. no antigo prédio Matarazzo." A aula de religião era sexta-feira das nove às nove e meia: eu ia com os judeus e pr otestantes para a biblioteca. você veja isto". Um professor se gasta muito. Não tomou a pressão. Então começamos a fazer uma guerra surda. chapéu canotier preto que usava onde ia." Fui procurar o diretor: 'O menino não pode ficar do lado de fora!". Ficou combinado que todas se juntariam para eu reabrir um externato. entramos t odas. não perguntou nada do que ela se ntia. achou uma tipografia que imprimiu e espalhamos por São Paulo todo. Não fomos cinco nem seis. Começamos a trabalhar. Por volta de 49 as professoras foram convocadas para comparecer na União dos Servi dores Públicos. interventor do estado. Nos so pedido encalhou no DASP. não tinha marido. Ap resentei um estudo comparativo dos nossos salários com os dos outros funcionários públ icos. fazia joguinh os com eles. Marcam os o dia: 15 de novembro todos deveriam escrever para o Palácio do Governo. Mas não fez nada. "O que você está fazendo aí?" ''Estão rezando na classe. Quando. Tive no grupo um aluninh o. chamou o diretor do DASP e disse: "Fulano. que devia ser dado por cartas e telegramas. Um dia fomos pedir audiência ao Fernando Costa. quando ele viu eram cerca de cinqüe nta na sala dele. Em redação de jornal. nos agradecemos umas às outras. Ganhávamos muito pouco: foi nosso manifesto. Passei uma vez pela sala de aula e vi um menininho judeu encolhidinho no corredor. não tomou o pulso. Fiz um trato com as colegas: "Se eu for demitida por causa disso vocês têm que me dar apoio". nesse dia era beijada. Não encontrávamos tipog rafia que imprimisse nosso manifesto por causa da censura. Como era filha de um padre. por toda parte o pessoal me via com um tailleur preto. O problema começou no dia em que puseram aula de religião obrigatória na escola. conseguimos o aumento. irmão de uma surda-muda. Li no jornal a convocação e fui assistir. Era tanta coisa que a gente fazia! Uma lá tinha uma idéia. Chegar am milhares de cartas ao palácio pedindo aumento. o mal que vinha sentindo de manhã já era o derrame que ameaçava. a gente saía pra rua. Assumi porque era solteira. quem não tinha chapéu nem luvas entrou também. levava comigo. Vivia na minha classe. cada uma que ria aparecer menos que a outra pra não ficar visada pela ordem política. agr adeci e li o manifesto dos ferroviários da Sorocabana. que não viam a mãe há quase um ano. Na volta passamos por Paris. Até aí a reunião tinha sido festiva. tinha ido buscar comida. Tenho medo de apanha r. Tenho medo de dizer que vou fazer uma coisa e não ter coragem. continuamos no Brasil a luta pela paz. me beijou e disse que ia continuar na Polônia lutan do pela paz. o Vítor Ramos . na primeira linha tem q ue estar Elisa Branco. sentei atrás do monumento que estavam con struindo e chorei. Dia 7 de setembro ela abriu na rua aq uela faixa: os SOLDADOS NOSSOS FILHOS NÃO IRÃO PARA A CORÉTA. o que nós professoras ainda não ganhávamos. ensinar aquelas mulheres. No congresso em Bucareste o partido mandou todo mundo. Isso é partido para operário". mas as casas estavam aos pedaços. As colegas não gostaram. Foi uma injustiça que fizeram e você pensa que a El isa por acaso disse alguma palavra de revolta? É pura verdade que ela doou todo o dinheiro do prêmio Stalin da Paz. Incendiou tudo. Fiquei emocionada. casada com operário. Medo é uma coisa humana. Quando ele me achou chorando expliquei em francês o que estava me acontec endo. Elisa Branco conseguiu reunir. que saíram clandestinos e voltaram a pé através da fronteira. ficaram dizendo: "Ela é comunista. e em 54 quando houve o Congresso Mundial da Paz. E saiu no desfile a pé com a faixa e foi sendo perseguida. O guia ficou muito meu amigo. Sentou perto de mim e me contou que ele tinha perdido a família inteirinha naquele gueto: pai. Quando quiserem mudar o nome de prêmio Stalin da Paz para prêmio Lenin. Em todas as manifestações a favor de Elisa nós fomos. muito a proveitador como num jogo de futebol. sobrinho. o que vou fazer? Elisa Branco não teve medo. Nunca me meti. Conseguiu máqu inas de costura para elas. Quando voltei. o dia em que me puseram na frente uma fi cha de inscrição do partido para eu assinar. foi das pessoas que marcou uma geração. conseguiu que fossem juntas para a cozinha preparar a comida delas. irmã. para o partido. E foi tomando bonde e descendo para fugir até que num lugar mais despovoado a prenderam e levaram pra detenção. foi muito cartola. Na minha opinião foi espoliada porque sua família ficou marginaliza da. Em 1953 houve um Congresso da Mocidade na Romênia. era operária. depois da p risão. No dia em que saí de Varsóvia nos levou até a estação. Era operária. Fui para a mesa. Era hora do ônibus partir. Quando o alemão bat ia na porta eles jogavam água fervendo. Às alturas tantas da reunião me de cobriram lá no fundo e me chamaram para a mesa. mas poucos fizeram pelo partido o que Elisa Branco fez. o que tinha estado . No dia em que se escrever a história do Partido Comunista. Ela estava na Europa. Não aceitei ficar na comissão de reivindicação de vencimentos: acharam que tinha sido um serviço do Partido Comunista transcrever na ata daquela reunião esse manifesto. esteve na União Soviética!". Quando ele voltou v iu os alemães com lança-chamas. mulher. É uma figura admirável. passando na gasolina que tinham derramado nas ruas. A Gestapo veio buscar um por um. Um dia eles resol veram que não se entregavam: foram fervendo toda água que puderam. Foi parar no meio das presas comuns. Era só casa queima da e ferro retorcido. Sou uma bur guesa bem instalada na vida. Minha sobrinha tinha conhecido um grupo de portugue ses na viagem. Quando ele soube que a Dulce era filha do professor Samuel. Elisa Branc o perguntou: "E minhas filhas?". fui acompanhar minha sobrinha D ulce. Ele me abraçou. para protestar e ver Elisa Branco. fizeram um manifesto onde diziam que um gari da prefeitura ganhava já um conto de réis por mês. o guia sentiu falta de um e foi me p rocurar. Mas toda vez que se precisava de número para ir à detenção. Um dia fomos ver o gueto de Varsóvia: tinham limpado o meio das ruas. magricelinha.. filho. quem estava lá ficou. quando recebeu. Essas mulheres faziam sessão de macumba e ali baixavam os espíritos mais cruéis. Aquilo mudou completamente o aspecto da reunião. As filhas dela é que foram muito s ofridas. Conheci na Federação das Mulheres . Eu não estava lá dentro do p artido mas discutia porque achava que havia muito aproveitador. Fomos alm oçar no Foyer des Étudiants: lá conhecemos um rapaz pequeno. Elisa Branco era o povo. Ele escapou por um bueiro. Quando Elisa Branco foi presa em 1950 eu não era de nada. gente que não precisava ter ido.. um jogando muita flor no outro. Ten ho a vaidade de dizer que a conheci. Foi assim que se defenderam porque não tinha m armas. respondi: "Não. com prêmio Stalin fico". nós formávamos. uma leu um trabalho literário. mãe. Ela passou um ano na cadeia na época da Guerra da Coréia. passou a mão no meu ombro e me levou até o ônibus. menos as filhas de Elisa Branco. ela resp ondeu: "Como prêmio Stalin recebi. casou-se dia 27 de d ezembro do mesmo ano. Concordei e os dois saíram para passear. era dar um passo grande demais na liberdade. Eu ainda lecionava. Ele ainda estava no Rio quando a Operação Bandeirantes telefonou convocando Samuel para aparecer lá. ela estava d e boca pintada de batom. do Juscelino na missa. li numa revista da época. é dessas coisas doídas. Aquela aflição de ver todo mundo saindo! A gente sente um sentimento coletivo. que quando foi destituído suicidou-se na frente dos que foram de stituí-lo. porque aquele assassinato do R ubens Vaz que ele fez tamanho escarcéu. Saiu no Estado de S. As crianças que o pessoal deixava em casa para eu tomar conta eram levadas. Fo . O prefeito era Prest es Maia. não é um sentimento individual. Parece que o sapato dele est ava apertado. Quiseram segurar as professoras. havia comícios. até aquele de Brasília em que ap arece Jango Goulart falando e a mulher dele encostava nas costas dele como quem estava protegen do. Já era mulher feita. No dia 12 de setembro de 63 houve lá em Brasília qu alquer movimento com os sargentos. olhei minha cachorra policial. moscas com bactérias sobre o país. Logo depois veio o movimento de 31 de março. as professoras primárias protestando aqui. Darcy.título que não se pleiteia. Quem irritava muito a gente era o Carlos Lacerda. Voltamos para o Brasil. não queriam que elas fossem para a r ua fazer manifestação. Ele se viu com pletamente sozinho. E aqui em São Paulo estava marcada uma manifest ação das professoras primárias protestando contra os vencimentos. Eu. impagáveis. não foi ferido na pessoa físi ca. Um dos generais disse que precisava ser no dia 31 senão haveria uma mudança de lua. o presi dente do Uruguai. Nesse tempo o partido tinha desaparecido. Ele foi o patrono do congresso. que ofereceu o Teatro Municipal para elas se reunirem e as professoras não aceitaram. tive pena. a última. O Fernão nasceu em 57. Tive uma sensação estranha: os sargentos protestando em Brasília. no fim. se enrolou com os o perários e não teve depois coragem de se manter. Nós assistimos o comício em que Prestes e Getúlio estavam no mesmo palanque no Anhanga baú. Um ano antes de morrer Samuel recebeu uma grande homenagem. Você sente junto com os outros. que guardam data de tudo). Chegou aqui no dia 14 de julho de 55 (não lembro b em o ano. Parece que ela teve medo que ele fosse mirado pelas costas. na comissão bacteriológica da Guerra da Coréia. Mas eu intimamente não engolia não. Do Jânio nunca gostei. Os americanos boicotara m Samuel desde a guerra bacteriológica. Mas era pra aceitar. tinha mais de cinqüenta anos quando o Getúlio se suicidou: foi um impacto porque antes dele só me lembro de um chefe de Estado se suicidar. Lembro da inauguração de Brasília. Alguém deu um tiro e saíram todos do palanque. Profundamente atingido foi o Samuel e isso nos atingiu muito. quis conversar com ela. A gente desaponta um pouco. só a obra dele: embora seja autor da única Parasitologia da América do Sul nunca n inguém publica o nome dele. foi toda pa ra o apartamento de d. pelos outros. de lutar. por causa da lua. a impressão que se tinha é que era para ter um pretexto de destituir o Getúlio. Morreu sozinho. Uma ocasião em que tive dois meninos. Recebeu um título de professor da Real Academia de Londr es . O próprio irmão dele não estava no palácio. E me pergunto u se podia mostrar Paris á minha sobrinha. É uma fotografia b onita mesmo. O suicídio do Getúlio foi conseqüência do trabalhismo dele. Aqui no Brasil não se publica o nome dele de jeito nenhum. Paulo em letras miudinhas. Ele não foi preso. As três crianças de Dulce passaram a ser nossos netos. lembro da fotografia com o pé fora do sapato. eles lá é que estudam a vida e a obra e concluem que a pessoa merece o título. éramos apegados a elas. pode escrever isso. Na Guerra da Coréia foi lá com uma comissão de cientistas examinar as provas de que os americanos tinham jogado de avião animais infectados. Depois da guerra bacteriológica não se fala mais em Samuel. Foram para a rua protestar com faixa pedindo aumento de venci mento. Os dois escreveram-se oitenta e tantas cartas. se não m e engano o general Mourão. Professora primária sair pra rua! Depois disso as coisas vieram se agravando. não é?! Devia dar certo. A família do Getúlio se acovardou muito. É muito ter que aceitar o Prestes e o Getúlio no mesmo palanque. Os cientistas provaram isso e apresentaram suas provas num relatório. ele veio pra cá e foi morar na minha casa. para melhorar a situação. num congress o que houve no Rio de Janeiro. não sou como minhas irmãs. O golpe de 64 teve preparação lenta. Depois de ixei: a criança rica quando precisa de professor particular é porque é preguiçosa. são o que são. ficou com os olhos cheios de lágr imas: "Ô Papai Noel. A gente chega a um ponto da vida em que fica estável. finan ceiramente nada mais acontece. fazia molecagem com as crianças d o caminho. 48 ou 96 horas. A m im não ia acontecer nada mais. Chegou do congresso segunda-feira à tarde. Só com aposentadoria a professora vive com certa dificuldade. Lá ele foi humilha do e encapuzado. Politicamente. Passamos o dia naquela agonia. Dizia: "O passado já passou e o futu . mas falhei porque era muito moça. todo mundo que passava de carro ao nosso lado buzinava. E tinha um livro dos malfeitos e dos bem-feitos (era um livro antig o de meu pai. Acho que falhei e m certas ocasiões. as crianças cantavam. Uma prof essora aposentada tem que morar num apartamento muito modesto.. Não me arrependo da co mpreensão que tive. ainda lecionei. mas na minha vida não teve muita importância. As crianças ouviam meu sininho. A gente passa o dia que não sabe se tem 24. não é? L embro da Revolução Cubana. A única coisa que me pode acontecer agora é ficar doente e morrer. em conjunto. que devia entrar. sem hipocrisia. Eu tinha sido Papai N oel dos pais dessas crianças. a gente lê notícia. 32 anos! Não tenho por sorte que pagar aluguel de casa: compramos o apartamento pela Caixa Econômica. Passa um dia miserável. a China é muito longe. eles ficaram moços. Sou uma burguesa estável. A Guerra do Vie tnã foi conseqüência da Guerra da Coréia. Só assiste a vida de camarote. ela não faz mais não!". Uma atitude que eu tinha é não pensar no passado. os dois foram ser test emunhas e entregaram o Samuel às nove horas da manhã. da vitória de Mao Tsé-tung. O ambul atório não dá conta. O individual pa ra mim é cacete. quanta recordação!". Papai Noel. Foi acompanhado pelo filho e pelo viúvo de Clélia. dei aulas particulares. E assim o livro foi crescendo até chegar na Maria Luísa. a última neta. qua ndo nos avisaram. nós vivíamos ali dentro e entrava só quem nossa mãe achava que podia entrar. Ela ficava séria e o Fernão mentia pela irmã: 'Não. ele adorava o Natal. Os filhos de Samuel foram nossos filhos. Clélia ia mais cedo pra casa de Vivina. a barba. Mas tudo mudou co mpletamente. Não sabíamos se ele vinha ou não vinha. Os jovens de hoje são muito honestos. Um a professora como eu que se aposentou com seis qüinqüênios. O bom senso vem quando a gente é mais velha. Depois Samuel desap areceu. Chegava o dia de Natal. são universitários. não gos ta de fazer lição. Depois da aposentadoria em 54. Ciro tinha pavor dessa hora porque era muito travesso e tinha a consciência pesada . não pode ter empreg ada e o médico é no Servidor Público. dizíamos adeus. o Vítor nos esperava na porta. É por isso que se tem que ter paciência com os moços. vestia aquela roupa e já saía daqui de casa fantasiada. Em conjunto um ajuda o outro.. Eu subia a escada tocando um sininho. você faz pipi na cama. E u botava o saco de presentes nas costas. você está fechada dentro de casa e cata pelo ar tudo quanto é anúncio. mas acompanho as coisas com muito interesse: lembro vaga mente do bombardeio de Pequim. Você não tem mais uma casa fechada. nossos ne tos Por causa das crianças voltei a ser Papai Noel.. Chegando na casa de Vivina. A aposentadoria dá pra viver muito modestamente. este já tinha entrado com o pedido de babeas-corpus. Pass ava na casa do zelador do prédio.i uma coisa que nos atingiu muito. Quando o Gil me viu. que tinha criança. Estávamos em casa tranqüilamente de manhã cedo.". abriam a cortina da janela e ficavam olhando. terça-feira de manhã entr ou no DOl. seus netos. sem interesse. Quando Fernão e Maria Guiomar eram pequeninos li no li vro: "Então Maria Guiomar. A minha aposentadoria é suficiente porque nós temos uma vida comum: o comunismo aqui dentro de casa é uma realidade. com índice alfabético). À medida que a gente envelhece vai perdendo a memória do presente. Nesse tempo fiz a roupa. diz nome feio. Isso magoou-o muito. e subia a escada. que é um bom hospital para moléstias graves.. sentava ao piano e tocava musiquinhas de Natal. Meus sobrinhos-netos são agora mais adiantados que eu. acompanha como espectador. Agora não. Quando o juiz recebeu o papel disse: "Mas isso é uma bomba!". Gosto mais de ensinar crianças pobres. abria na letra de Maria uiomar e contava os dela. eu procuro manter esse amor a qua lquer preço. Aí eles soltaram o Samuel. Abria na letra do Fernão e contava suas coisas m alfeitas e bem-feitas. Às seis horas da tarde o filho entrou lá com o ad vogado. Minha casa tinha portão fechado. Antigamente cada família era uma ilha. Até dois anos atrás fui Papai Noel. tive o problema do olho. Este menino foi s e apegando a mim. só tu. ele era a próp ria bondade em pessoa. Clélia tocou o Hino Nacional. Não sei por que meus irmãos descobriram essa poesia e ela ficou revoltada. a gente não pode se abalar com muita coisa. Minha infân cia foi brincada.. Dia 19 de fevereiro de 1962. Aceito a sobrevivência. mas minha irmã lê muito para eu ouvir. desapare ceu isso. Leio pouco. E quando ele começou a recitar ela ficou muito brava. Enquanto fui professora . não sei por quê.. ele e os filhos cantavam juntos. pedi que um neto del a dissesse a poesia. no c entenário de seu nascimento. Na minha cl asse não se entrava em fila. ficava aquela bagunça de conversa de professora. cada um que chegava entrava na classe. daram na minha casa desde os tempos de minha mãe e de meu pai me convidassem uma v ez por ano para ir à casa delas eu tinha onde ir o ano inteirinho. vem. Não durmo sem pingar colírio durante a noite. eu quer . Depois morreu. (esqueci o resto. Depois. Morava num quarto de pensão com o pai. de menino mexendo em armário. onde ele está. Ulti mamente sonho muito com criança. Gostei demais . de vez em quando sai da órbita. Mesmo porque quando você lembra você envolve outras pessoas que não queria envolver. Não vou ao cinema porque me cansa muito os olhos. Era líder sindical e membro do p artido. Às vezes a Margarida. a que dizia: "tu. É raro dormir uma noite inteira. Guiomar lê para mim a parte política do jornal porque ela diz que esquece muito e uma lembra a outra o que ouviu. A mãe saiu de casa levando o menino com ela. filhos e netos. às vezes passo a noite mal. não posso me conformar que uma pessoa assim como Clélia. São atitudes que se toma na vida. E a bondade de Samuel. fiz uma reunião de família: compareceram todos os vivos. cert o pedaço botei uma pedra em cima e não penso. não posso voltar mais". Lendo o Novo Testamento vê-se que o socialismo está muito mais perto do cris tianismo que o capitalismo. é bonito mesmo. foi o tempo que eu vivi: a vida dos alunos. Sempre tive adoração por meu pai. o pai foi buscá-lo . como Samuel. Neste aniversário dele. vivi. Acredito que Samuel esteja trabalhando. Cada vez que se falava nisso ela ficava muito brava.) guarda a lembrança dos antigos lares. Os bisnetos tocaram ao piano e violino a mesma música. filhos e netos cantamos juntos e depois cada um fez uma gracinha . Uma vez sonhei com meu irmão que morreu mocinho e ele me disse: "É a última vez que ve nho.. Aquela criatura que Vítor foi. uma adoração calada. o Novo Testamento! É interessante. Me virei muito pra trás. Se as pessoas que se hospe Relógio antigo de tão velha usança guarda de teu amigo esta lembrança. não discuto. Eu li a carta que ele escreveu para mamãe depois do meu nascimento.. Passaram muitos anos e outra noite sonhei com ele. Nossa irmã Preciosa tinha feito uma poesia para o relógio de casa. N a passagem do ano mamãe tocava o Hino Nacional ao piano. que a vida dele era um d rama. Então me apeguei na doutrina es pírita desde que minha irmã se foi. Foi uma gargalhada dos irmãos. O Roque Trevisan do Partido Comunista era espírita. que era garagista. Faz um julgamento póstumo. puro amor". aquela inteligência não podem ter-se apagado. Mas não. aquela vib ração.. Quando chegou no Dia das Mães ele me disse: "Professora. a política do jeito que está. Tive um aluno. resolvi ler o Sermão do Monte e gostei. não pode ter desaparecido. como se diz isso? Fugiu o nome. depois que minha mãe morreu.. sempre nos dava um conselho.. o Danilo. Voltou a ser a casa da nossa infância.. de cada uma das crianças.ro a Deus pertence". mas é cometa. quando moça: Não vejo meus amigos de juventude. Comemoramos seu aniversário como ele gostava quando estava vivo. Agora estou lendo são Mateus. que se sofre muito e nem sempre se é muito compreendida. Aceito como ela é. Quando. Da juventude. Nesse dia. São coisas que não matam mas maltratam. como Vítor tenham ido para sempre. E nossa irmã Preciosa! Os que eu q ueria bem não posso aceitar que tenham desaparecido. "Pour quoi?". do Método inf antil que Clélia e Guiomar tocavam quando pequenas. qu e estávamos repartindo um sanduíche. minha colega de normal. Na ceia. Quando chegou na minha classe conversava muito com ele. não vale a pena. a dona da pensão dava a comida dele. cantada. Uma coisa que eu fiz sempre com amor foi ser professora. então. Há pouco tempo leu Confesso que vivi de Pablo Neruda. pulada. Mas tenho remexido m uito meus sentimentos para contar o que contei. É o ator que entra calado e sai mudo. foi o tempo que fui professora. ia buscar o correio na cidade. e le não falava uma palavra que não tivesse rima. A irmã dele. a encomenda do morto: . RISOLETA Dou graças a Deus todos os dias. Com muito trabalho. nunca mais viu. Atendia o s meninos. ondulado. Minha mãe era carinhosa com os filhos. Nunca ninguém lembrou de escrever alguma coisa sobre uma mulher solteira que teve uma vida direita. tinha cabelo bom. enxugava. quando fazia frio ele mandava acender o fogo no meio da ca sa. a única que saiu meio danada. falava muito bem. mais escura que meu p ai.ia ser seu filho". falava tudo rimado. ele sabia contar histórias de varinha de condão. T eodora Maria da Conceição. Lalá foi madrinha. em segundo lugar a viúva. Conheci uma senhora que dizia com muita graça : na escala social existe em primeiro lugar a mulher casada. porque tem os Ferreira Penteado que são os c astanhos. vestia com roupi nha limpa. Nasci no dia 20 de março de 1900. mas era boniti nha. Meu pai era bom. até o dia da missa no Arraial. D. portu guês aqui no Brasil não era escravo. nunca sarou. "Agora vão dormir. muito pretinha. chamavam ele para cantar e puxar o terço durante seis dias. Com 29 anos casou-se com minha mãe. Meu pai veio vendido de lá do Norte aqui pro Brasil no tempo do cativeiro.. ele foi pra Campin as. mas tinha uma alegria dentro de casa! Quando morria a lguém. Nós tivemos uma infáncia! A gente era bem pobrezinha mesmo. O dia que ele es tava bem disposto tudo tinha versinho. de milho. Minha mãe lavava roupa pra fora. Ficou uma ferida pro resto da vida. Na vida fui 'N. em quarto lugar a prostituta. que tinha treze anos. tapava tudo o que tinha que tapar com algodão. Não diz nada. não sabe que fim levou. Esse foi meu tempo. As histórias que ele contava eram coisa maravilhosa. a solteirona. enxugado. Nunca apanh ou como escravo mas uma vez um pau arranhou o pé dele e a sinhá mandou torrar sal e pôr na perna dele. que era de chão batido. Os outros escr avos apanhavam. Foi nessa família que eu cresci. com muita luta. fui eu. e contava história. os buraquinhos que a senhora já sabe. Nun ca vi contar tanta história assim e rezar como ele rezava. Meu pai foi liberto quando houve o grito da liberdade. que tive o convívio das crianças . e a gente ficava e m roda dele de noite.. mas era. oferece a bandeja. Eu nasci numa fazenda perto do Arraial dos Sousas que se chamava Fazenda Angélica: os donos são os Penteado de olho azul. No tempo do cativeiro. Então meu pai punh a no caixão o morto e começava umas rezas e cantos bonitos. Era morena escura. tant o que veio vendido como mucamo de luxo pra família Egídio de Souza Aranha. bem rimado. amanhã tem mais". todo mund o foi liberto. Meu pai era mais severo que ela: e la também respeitava mui- to ele. Cozinhava muito bem doce de laranja. Ele puxava e as crianças respondiam as ladainhas. acompanhava os moços quando saíam e quando era tempo da colheita do café tomava conta dos camaradas no terreiro. em último lugar . esse ator que no teatro serve o cafezinho. Meu pai era delicado. D. O pai de meu pai era port uguês e a mãe chamava-se Cosma. Meu pai dava banho no morto. Minha mãe quando nasceu já era de Ventre Livre. Minha mãe fazia f arinha de mandioca. Ele era um homem doente. em terceiro lugar a desquitada. Nen hum filho não puxou ele. mas aquilo bem acentuado. Depois de lavado. tachadas de goiabada que vendia em cai xinhas. já está acabando esse ano santo e agradeço por estar re cordando e burilando meu espírito. Só não usava calçar sapato. O nome dele er a Joaquim. lá à moda dela. A mulher solteira não tem projeção social. Foi o pai que vendeu. a maioria andava descalça mesmo. já não podia mais trabalhar. tudo pra vender e ajudar meu pai criar os filhos. dessa família dos Penteado de olho azul. mas tinha tudo em casa. bem esperta igual a ele. fe cha a porta. Meu pai era um mulato bonito. vendiam a gente como quem vende porco. Foi trabalhar por conta dele. ia com pau na mão e nunca queria ir sozinho de medo do bicho pegar a gente. limpava. na pedra. macaco. ele conhecia todos e dizia: "Eu mesmo vou buscar e faço pra vocès. "Eu sei que é trepadeira. canário. codorna. ali na subida que ia pra fazenda dos Coutinho. gente muito boa. Meu pai tinha uma chácara no Arraial dos Sousas. redondo. gostosa! Plantava feijão. E sarou quanta gente de doenças. O forno era de tijolos. porque dinheiro quase que ninguém via. ficava mulatinho. . batia bastante. que ele ganhou do sinhô. Até o sal que era meio grosso minha avó refinava. ti rava as pedras escuras. Vocès não vão conhecer e ainda vão trazer algum mato que é veneno". Quando a gen te ia na estrada por dentro da mata. Ficava o sal branco pra gente usar o mês inteiro. O forno era fora com a boca dentro da cozinha. Nossa. Lavava bem. ficava fininho. não guardei tudo. era carqueja . As plantas medic inais todo mundo tinha em volta da casa. fazia lingüiça. ele fazia na pinga. Meu Deus.) O pão a gente fazia em casa: quando aparecia o padeiro com aquele pão sovadinho. queimava. Quase tudo se f azia em casa: a gente matava porco. botava no fogo. Ele conhecia todo matinho. passava na máquina e guardava nos vidros. branquinho. mas é um remédio bom pra reumatismo e meu pai quando nós era pequeno e se queixava de uma dor ele sempre dava um chazin ho de cipó-cruz. Che gavam português. As matas que derrubaram é que tão fazendo falta. leva va um alqueire de milho para fazer um alqueire de fubá. ele fazia rapadura. ele curava tudo. Toda fazenda tinha um riacho ou uma pedra que e scorria água e caía lá embaixo." Erva-cidreira. A gente gostava de brincar na água. Lembro dos bichos das matas: tatu.. onde a gente ia buscar água quando faltava no poço. tirava os ossos e vendia pras fábricas de botão. um filho desse sinhô trabalh ou anos como político do Getúlio Vargas. Pedi para a moça um pouquinho daquele cipó. tão bonito. ficava bran co. quando tava bem branquinho tava bom! Varria. Meu pai plantava de tudo: tinha jabuticabeira. O cli ma era muito melhor que agora. lavar roupa na beira do rio que ainda passa até hoje por lá. Botava no tacho aquela aguarada até reduzir.Nós temos que morrer mas não sabemos a hora nem quando será. com o cilindro.. como tinha passarinho! Sabiá. não é agora só não. Essas c isas tudo é conhecer 364 Outro dia fui na Vila São Pedro na festa do Cemitério da Vila Isa e vi numa casa dep endurado o cipó-cruz. a gente colhia e quando não tinha máquina de benefici ar por perto a gente socava no pilão. térrea. agora não tem mais. um remédio bom pro sangue. porque se estivesse muito quente podia que imar todo pão. e perdiz. Um saco de farinha custava treze mil-réis. O açúcar mulatinho era gostoso. Lembro da casa grande. a gente ench ia de lenha. do calor. fazia outro. abanava com a peneira. açúca r. mi nha filha ficou brava comigo e a moça começou a rir: "O que que a senhora vai fazer com essa trepadeira?". cabia vinte. minha casa era assim de g ente para ouvir ensinar remédio. Quando acabava. depois minha avó refinava. p intassilgo. tinha cana. abria panos de carne. Lá de um lugar que a gente não via a água caía em cachoeira. ac abou tudo. o cipó-cruz que serve para reumatismo que não sara. Toda vez que um doente pedia um remédio. isso era os remedinhos de criança. era losna. era marcelinha. jogava um pu nhadinho de fubá pra ver a temperatura. tro367 cava com porco. (O povo já ve m explorando a vida há muito tempo. hortelã. Eu sei refinar açúcar. meu pai fazia e mandava. E o bando de criançada levav a o milho na cabeça pra trocar e tinha que atravessar um pedacinho da mata. A gente ia da fazenda em que minha avó morava para o moinho do Joaquim Chico. poejo. tinha estação do frio. plantava arroz. Lembro alguma coisa. que é um cipó bonito. carobinha. A gente amassava o pão na amassadeira. ouriço que jogava espinho. era uma vida até bonita! Até bonita. depois secava. pomba-rola como tinha! E a pomba do mato. aquele arroz catetinh o que era meio roxinho. Quem não bebia pinga ele fazia no vinho branco aquelas garrafadas que d eixava enterradas na terra nove dias e depois de nove dias dava pra pessoa ir to mando. como a gente gostava! Trocava com ga linha. sovava bem. um pouco de fubá. era tudo chá. salgava e guardava pro mês inteiro. aprendi com ela. botava umas palhas. no ribeirão. eu sempre roubava do tacho um pouquinho. que ia parar n a beira do Atibaia. 24 pás dentro do forno . italiano e botavam venda e a gente comprava lá a roupa e o sal. que pão gostoso ! Eu tenho saudades. Meu pai nunca deu remédio de médico pra nós. depois da janta tinha que arrumar a cozinha e dormir porque a gente leva ntava cedo. Os pratos que quebr avam. não é assim não!". Eu fui sempre muito alegre. todos esses morreram pequenos. Tudo na sua estação certa. Brincava de rodinha. quando chegasse na boca do forno o pegador não pod ia pegar mais. mas a minha boneca andava pelada. julho. hoje as crianças não sabem br incar mais. E se criava porco. agora dá o ano inteirinho. Quando eu me fiz gente e tive meus filhos. bate. Laranja agora tem o ano inteiro. O segundo chamava Arlindo. Era aquela decoada que caía preta que nem café. chamava-se Dominga. naquele tempo tinha em maio. Minha mãe escutou. no fundo. batata-doce. de tomate. feijão. Hoje não tem mais pula-corda. tirolito que já bateu. E mesmo que tiv esse brinquedos a gente não tinha dinheiro para comprar. antes do jantar. tira um bolo. não dava pra passar fom e. ele dava pousada. arranjava umas latinhas. Q uando chegava agosto não deixavam nem a gente mais chupar laranja porque estava pa ssada. Meu irmão mais velho chamava-se Joaquim. A terceira era uma mulher. A gente enchia um b arreleiro de cinza. Depois. A senhora precisa ponderar mais um pouco.forno . Dentro de casa ele não bot ava ninguém. nem q ueira saber como eu me divertia. vim eu. Todos trabalhavam. mandioca era com fartura. não. Minha irmã brincava de costurar e ela deu boa costureira. A gente brincava de boca-de. no tempo que minha mãe lavava roupa para os Penteado de olho azul. Esse cenourão que se vê agora n aquele tempo não tinha. a Dominga e eu. acendia o fogo e fazia comidinha de verdade. só a cenoura que era miudinha. Salvador e Ana. de couve-flor. Na chácara tinha um rancho grande. meu pai não deixava ninguém na folga. eram aquilo. boiadeiro. com aquela decoada se fazia sabão. Minha infância não foi ruim. As meninas não sabem mais brincar de roda. Aí. não consigo: "A senhora é muito ant iga demais. é uma coroa muito antiga. não qu ero criar meus filhos assim. botava uns tijolinh os. quem gosta dela sou eu. vejo todo mundo doente. Era mais por tuguês que plantava. dava tudo bonito. De passa-anel. meu Deus do céu. não precisava a dubo. disse pra minha irmã: "Titia está doente. não tin ha soda. berlinda. Quem gosta de mim é ela. de alface. as panelas ficavam que nem espelho. A gente areava as panelas de ferro com areia e aquele sabão. minha infância foi boa. mas uma surra de couro que até hoje quando me lemb . a quarta filha. Mandava recolher o gado no pastinho que tinha e mandava matar frango de noite. e meu pai era hospitaleiro. está com a doença de dona Zenaide". o Arlindo. milho.Em casa não tinha miséria porque se plantava tudo: abóbora. Quem ficou vivo tudo casou: Joaquim. não tinha mais ninguém vivo. aquilo cortava toda gordura. e batia palmas. batatinha. Os pais eram muito severos. eram isso. quis criar meus amigos. fazer comida praquelas pessoas. Era uma beleza! Hoje está tudo facilitado e e sse povo acha tão ruim pra trabalhar! Se fosse naquele tempo eles morria tudo de f ome. nem se compara uma coisa com outra. criei di ferente. tinha que tirar os vestidinhos da dela: 'Eu não faço comida p ra você? Costure uma roupinha pra minha filha". de pular corda. Hoje eu quero botar esse mu ndo de gente que tem em casa tudo pra trabalhar. Não tinha brinquedo de loja nenhuma. Naquela época a terra tinha estações: de repolho. a gente guardava os caquinhos de louça para fazer a casinha. que sempre foi bom de coração e que eu defendia sempre. nada dessas coisas. Desde criança o meu brinquedo era fazer comidinha pros outros. Quando pa ssava viajante. Meu irmão preferido era o Joaquim. Tudo isso era pra comer e matava a fome. Todos gostavam de mim e eu gostava de todos. Hoje tudo é adubado. junho. galinha. isso aí não vale nada. até agosto. Se não queriam me dar mantimentos eu roubava. botava folha de pita. tinha os filhos dele que precisava respeitar. a gente catava umas varinhas e di zia que os matinhos eram uma leitoa. Fora do tempo não tinha nada. agora não. deu uma surra de couro em nós. não tem mais: Tirolito que bate. Uma vez. O gosto era muito melhor. brincava de tarde no terreiro. Depois teve o I nácio. Er a bastante trabalhar e colher. de boca-de-forno. a coisa cri ada naturalmente na terra sem adubo. Joga va colchão de palha de milho no chão pros viajantes dormir. Eu gostava de brincar de comidinha. oito horas. um dia não. Minha mãe era muito devota de são Benedito. passei desesperado de dor a noite inteira". Então e la guardava a correinha dela. meu são Benedito. sabe criança com o é? A gente já estava grandinha. fazendo arte. outro ia tratar de porco. Uma vez meu irmão Joaqu im apanhou com vara e eu fui apadrinhar ele. Dona. "Ai. Quando ele me pôs na casa da sinhá. amassava uma arroba de farinha pra fazer pão. "Não é que eu não quero estudar. fazia pão. arcadinha. ia trabalhar na casa dos patrões O mais velho levava os mais pequenos. s enão ficava de castigo. Se recebia ou não ordenado eu não sabia. Eu tinha dó dela. só porque eu comi. "Mas o senhor roncou tanto. Levantava de madrugada. porque meu pai é que ia no fim do mês receber: dizia que não fazia questão de dinheiro.. Quando chegava sete e meia . não e ra ferro de estufa: o linho tinha que passar muito bem. dobra e guarda. sem receita. As crianças dos vizinhos eram umas meninas também muito espertas e a gente se juntav a e ficava falando bobagem. Desde oito anos trabalhei em casa de família. Eu sabia que a patroa gostava de coisa bem. A patroa é que tinha essa doença. outra vez quero te pegar longe de são Benedito". É por isso que e u desenvolvi esse jeito pra trabalhar. Graças a Deus agora não tem disso mais. tou com tanto sono. Quando eu tinha treze anos me perguntavam na rua: "O que você está fazendo?". tem história pra contar. era doença. botavam o caldeirão de fubá na mesa. eu levantava às quatro horas da manhã. "Eu tenho é dó da senhora!" Depois das onze horas a patroa me chamava pra aprender a ler e eu começava a cochi lar: "Vou contar pro seu pai que você não quer estudar ". largava um. outro ia tratar de galinha. onde fizeram a usina que dá luz pra Campinas. meus olhos é que não querem ficar abertos. acendiam o fogo. c om o dedão do pé torto. com ra spa de tijolo e batatinha.moça dele. não é? Negrinha! Espera aí. como é que não dormiu? Tava roncando acordado então?" A infância da gente tem história. de noite acendia cinco ferr os de carvão para engomar a roupa de linho que tinha que passar tudo úmido: eu larga va um ferro pegava outro." "O senhor dormiu bem essa noite?" ''Dormi!'' Ou: "Não dormi. Sabe a doença o que é? É a menstruação. Ela d izia: "Que boa vontade que essa menina tem!". pegava outro. mais velha do que eu estou agora. O são Benedito de minha mãe ainda está comigo. Eu fui a primeira que apanhei. a gente via ela lavando aquela roupinha meio escondido. Hoje está uma beleza esse terg al que não precisa nem passar. aí cada um tinha sua obrigação. Lalá me ensinou a trabalhar. tam bé entrei na vara de feijão. mas nunca ninguém explicou. Nem que fosse uma chicotada. Eu . trabalhava o dia inteirinho. acabavam de fazer. disse: "Eu quero que a senhora me ensine a menina a trabalhar. que era pra um não rir do outro. Um ia varrer o quintal. davam na gente. tirava a mesa. então queria fazer mais bem-feita ainda. botava o caixão de sabão na beira e trepava para alcançar o fogão de lenha e fazia comida pra ela. Não davam folga nem um pouquinho.feita. O ferro era pesado. le r e escrever". queria é que me ensinassem a ler um pouco. eu não merecia apanhar." Um dia sim. Arcava tudo que f icava brilhando e botava no sol antes de guardar. sem nada. sempre tive que fazer tudo: botava a mesa. por isso que são Benedito me atendeu". ensinou. entrava no couro. sacode bem. "Sou cozinheira de forno e fogão. Quando estavam batendo num filho. Ela não batia mais: "Você já pegou meu fraco de são Benedito. na Fazenda Jaguaribe. areava aquele talher danado de arear.ro dói. Só tinha eu de empregada e uma preta bem velha. papai! A bênção. trabalhava o dia inteirinho. na beira do fogão. A comida. me valha!". faz iam café e iam levar pros pais na cama: "A bênção. fiquei esperta. todo mund o tinha que rezar primeiro para depois comer e acabava de comer agradecia a Deus tudo aquilo que ele nos deu. a gente saía. As crianças não eram como as de hoje. quer dizer. dona. lá no fogão. dona! D. com ferro bem quente." Se eu ia num lugar e co mia um bolo. E tinha que fazer. Até 22 anos nunca recebi um ordenadinho do que trabalhei. se alguém ficasse por pe rto olhando. chegava em casa e fazia igualzinho. lavava a louça. "Deus te abençoe minha filha. mamãe!".. Quando ela ia bater eu corria embaixo do altar de são Benedito: "Ai. capaz! Levantavam de manhã. Quando acabavam de fa zer um pedido pra mim me dava uma soneira e eu cochilava e naquele cochilo eu vi a as coisas como é que tinha que ser feito. como ia acontecer. Você tem tudo que Deus já deu". depois falo com o senhor". pi poca. passava roupa às vezes a noi te inteira. tinha banda de mús ica. acender o fogo e fazer café pra primeira turma das obras. nem fogos se pode soltar mais. meu pai. Meu pai dizia: "Vamos tomar banho e v amos pra igreja". Neves é que deu a primeira comunhão pra gente. . Chegava banda no Arraial. Hoje não tem mais nada disso. rodo nem existia. Agora acabou tudo. Antigamente tinha muitos fogos. ninguém entendia latim . Durante a semana e ra em latim pra gente não entender. escrever bem . não. dona. Barreto era de família de tradição fina. contente de ajudar.tinha que dar comida pros camaradas da usina. Dep ois varria. ou arrumar a casa. só domingo. Minha família só fazia passeio quando tinha festa. Era um bispo bom. Er a divertido. botava bastante coisa na barraqui nha para vender e o dinh firo era para Igreja que como hoje tomava conta de orfa nato. sempr e chegava e achava o que fazer. no Arraial. Não conhece d. mu ito festejada. D. de gente pobre. As igrejas estão tirand o os santos. lavava. minha filha. Todo mundo que tinha coisa pra levar. não tem mais. Para limpar o assoalho eu espalhava areia na tábuas e esfregava de joelhos com um tijolo. por isso que fico brava com essas empregadas que não tomam obr igação. rodead o de crianças pobrezinhas. Fui sábado passado num casamento em Campinas e o padre dizia: "Vocês não tenham vergonha de res ponder comigo: Deus esteja coniosco! Ele está sempre ao redor de nós1" Mas aquilo nu ma voz só era um coro bonito. A patroa falou uma vez não precisava falar mais. muitas primas parentes d e minha avó. D. que ele não sabia o que que eu tinha mas que eu era diferente dos outros. A gente ficava duas horas fazendo guarda pro Santíssimo. Depois eu tomava muita obrigação. Às vezes vinha aqueles fazendeiros da redondeza comprava tudo e levava. Antigamente era tudo caladinho. Bastava a patroa me mandar uma vez. bolo de fubá. quando o administrad or batia o sino tinha que levantar. na festa de são Benedito. muito divertido! E tinha missa bonita! Missa cantada. trazia frango. Estava lá a Irmandade do Santíssimo com aquelas rouponas deles vermelhas. Eu que atendia tudo: fazia pão. naquele tempo. levava. com essa história do desenvolvimento agora a turma não quer mais saber. tem muita igreja que nem tem mais santo. com procissão. Neves? El e foi o pai da pobreza lá em Campinas. pé-demoleque de rapadura com amendoim. que comia lá dentro com o pes soal mais fino. Na Semana Santa tinha muito mais respeito. jogava meu aventalzinho e se tinha alguma coisa pra fazer eu fazia. Quando eu me queixava de não saber ler. simples. Tem a estátua dele no largo da Matriz. pro tanque. com o bastão na mão. então a gente vinha pra Campinas. Fazíamos barra quinhas. dona! Difícil até é ver o Santíssimo exposto. meu pai. Então a gente vinha tudo pra vila. dançavam. Neves era simples. a gente trazia leitoa. Na festa de são Benedito cantavam. " E respondia para qualquer pessoa. não levam nada a sério. mas muito bonita foi em Campinas sempre. Dia de são João. As salas eram enormes. santo Antônio todas as casas fazia fogueiras. Quando meu pai ia fazer qualquer negócio ele sempre falava comigo. arregaçava as mangas e ia pra cozinha. Meu pai perguntava as coisas e eu respondia: "Vou pensar um pouco. festa de são João e são Pedro não passava sem baile. na igreja sempre teve coral: Queremos Deus que é nosso rei. D. Hoje não tem fes ta nenhuma. Eu era a alegria da festa dos outros. Depois o café dos engenheiros às oito horas. você deve fazer assim. Meu pai tinha lá muitas comadres. De maneira que eu mesma fiz a minha f elicidade sempre. ele dizia: "Você não precisa. Hoje a gente reza junto com o padre. Desde pequena m eu pai dizia que eu nasci exoterista. Imagine co mo ficava o rim de quem esfregava o tijolo! Se eu chego na sua casa não sou visita não. De madrugada. E há bem pouco tempo que parou. se alguém falava num canto não se ouvia no outro. Mas que coisa! No Arraial a festa era bonita. são Pedro. arregaçava meu bracinho. Hoje. Lugar nenhum que eu chegasse nunca era visita. sem luxo. você é diferente de seus irmãos e não precisa d e nada. não precisava mais estar repetindo. jogava água e puxava com um pano torcido. A festa do Divino era em junho. "Olha. eu me vestia e ia pro circo. No Natal todo mundo tocava violão. O povo antigamente c omia muito mais. a olhar o forno de barro. as donas se vestiam decotadas. Muita gente trazia frango. Até agora faço assim: tempero bem salgado com alho. ela não cansa. biscoitos de polvilho em grande quantidade. ele foi do Circo Qu eirolo. quase toda família não te m mais Natal. Eu quando entrava num samba era duro pra me tirar. tá tudo muito bem. até Natal acabou. dançava com batucada. Isso era lindo. parava anos no lugar. Semana Santa a gente precisa jejuar. o Circo Queirolo ficou armado a li no largo Paiçandu. fazia bacalhau. Nossa Senhora. Nossa Senhora Aparecida. ficava pururuquinha. Hoje ninguém come. sempre usou. não. Ao meio-dia em ponto estava aquela mesa grande. a gente dançava. sequilhos. as crianças gostavam de tocar flau . né? Então juntou a família. quando era teatro. salada bonita. foi o último que morreu. dona. vai de qualquer jeito. Hoje quer r oupa." Nos meus tempos de criança meu pai convidava e era tudo por conta dele. vinham as plantações. mas devagarzinho de vez em qu ando vou lembrando e começo a cantar aí pra criançada. bacalhau assado.queremos Deus que é nosso pai.. Depois que eu fiquei cega nunca mais fiz Natal aqui em casa. O Piolim faz pouco tempo que morreu. torta. vinha pra c asa. quando um dançava. Hoje acabou. Todo o mundo é vi sita. ''Gostei.. sempr e o povo apoiando porque não tinha quase outro divertimento. c om viola. e era aquela mes a bonita. Natal sempre foi respeitado. Até meio-dia ninguém comia nada de manhã. chegava domingo." O povo trazia cuscuz. Meu pai comprava peixe. com bastante cebola. eu enchia a casa. outro saía. O primeiro Natal que nós fomos almoçar fora. Semana Santa er a aquela alegria e Natal reunia família: todo mundo. abobrinha com bacalh au.. e eu. depois passa limão com fubá pra ti rar aquele cheirinho. conhecido. Papai Noel. aquelas mangas bufantes.. tirava e deixava esfriar. no momento assim não lembro de tudo. minha mãe er a quem fazia roscas. Agora não faz em mais nada assim. Todo mundo tinha que ir na missa do galo. mas nós nunca usamos isso. depoi s todo mundo fica na sala e a Dejanira na cozinha o dia inteiro.. pelo menos na minha família largaram tudo. velha?!". Que eu me lembro bem é do Circo Queirolo. Dançava aquele passinho bonito. E f oram tudo ensinado assim. mas em teatro o povo não podia ir porque precisava traje de rigor. Antes reunia a minh a família. antigamente era comida. á vezes tomava uma xicr inha de café. botava vinho na mesa. A gente assava bem assado. todo mundo vem. h ein. Lava bem lavado com sabão. Tinha teatro. Presépio. lá no caminho d e São Roque. No meu tempo de criança todo mundo ajudava a lavar a louça. essa casa mesmo. né? Mas antigamente. que andou aí por esse mundo de meu Deus. ih. depois passava água e limão no couro para pôr no forno. árvore de Na tal é coisa de pouco tempo. naquele dia eu gostei do almoço. o prato bem enfeitado. O circo ficava em qualquer lugar que dessem dinheiro. Matava porco. cebola. quisesse o u não quisesse. era o mais novo dos seis irmãos. dona! Dia de Natal em casa era festa naquele tempo. ninguém mais vai. então nós ia andar de traj e de rigor?! Hoje. li mão. Hoje todo mundo anda atrás de roupa. "É. amigo. meu genro falou: " A senhora sabe que eu não deixo fazer o Natal em casa porque vem todo mundo. Depois da festa de são Benedito. tocava flauta. Nossa Senhora. Agora acabou tudo. Mata va peru. cada um pro seu lado. assava porco. broinha de fubá. dançava sozinha. Na porta da igreja era um pátio grande. Não era de par. pimenta-do-reino. matava um boizinho pra passar o Natal. escalda bem pra depois temperar. Depois que eu estava grande.'' "Mas a senhora comeu com uma cara tão feia!" Outro dia fomos comer no Embu. então eles fala: "Tá alegre hoje. Hoje. meu genro falou: "A senhora gostou da comida?". as pessoas conhecidas vinham tudo passar o Natal aqui comigo. "Essa menina tem fogo no casco. Nunca fizemos carn e de porco sem escaldar. todo mundo tinha que tomar um pouquinho porque e ra o sangue de Cristo.. dá até vontade da gente comer. A gente estava tão acostumado a assar leitoa pururuca! Isso aprend i desde pequena: ferve a água. Aquilo não era pra pobre. tinha comida que não acaba mais. agora cada um podia trazer um prato". uma pimentinha vermelha. todo mundo tá procurando passeio. ovos. era o dia que nós comia melhor em casa. Quando minha mãe morreu. era bem divertido antigamente. que eram as únicas rezas que minha mãe sabia. Morreu na idade que eu mais precisava dela. E perguntou: "Teodora. Ela rolou. A gente pedia: "Dá um beiju. Sentava na m esa com os amigos. ia saber de alguma coisa?! Agora todo mundo é esperto aqui na cidade. Chegando em casa contava pra nós. Era uma estrela bon ita e a cauda dela pegava longe. depois de bem lavadinho. no fogaréu. de que adianta ter saudade. não disse mais uma pa lavra. Eu fui pra d. Eu levei uma xicrinha de caldo de galinha e um pedacinh o de peito que eu queria que ela comesse e virei na boca da minha mãe. Minha avó disse assim: "Olha. um trabalho fino." "Não veio nenhum dos meus filhos aqui. Quando minha mãe saiu correndo não tinha ninguém para acudir a farinha que estava no s ol. cada um foi pra casa do branco dele.tinha de bambu. O rádio e a televisão educou muito e estragou muito. só tem Risoleta. Eu aprendi a bordar muito bem. dona. passei a mão na testa dela. parece que tinha luz na cauda inteirinha. a bordar. Segurei a mão dela e perguntei: "Vovó. são uns meninos aí da colônia. Os pat rões vinham toda semana pra fazenda e contavam as notícias. Minha mãe trabalhava lá dent ro. Muito trabalho. ela estava no forno. depois a água vinha correndo no rego e o monjolo batia e socava o milho. Lalá fazia enxoval de criança. o mundo vai acabar se o sol bater na lua". muito boa mesmo. gelada. li vro. aquele beiju bonito de milho. Quase todo mundo tocava violão de ouvido. nós todos sentados na sala e meu pai rezando. veio o temporal. onde ela guardava a roupa. que ia torrando ali. A farinha não molhou mas deu um resfriado nela. Lalá. não sei como tocavam tudo bonitinho naquela flautinha. bordados na cambraia. tudo entiotado. "Mas a guerra acabou agora mesmo. Nós antigamente fazia aquele almoço grande. a ch uva caiu de repente. vocês se despeçam de sua mãe porque sua mãe está indo embora". estava gelada. eu que sonhava acordada com ela. Todo mundo fazia alarido: "Olha a estrela de cauda. Minha mãe estava torrando farinha. que beleza! Até agora. já passou. por que está tão gelada?" Eu não queria que ela morresse no escuro e minha avó acendeu a vela. aí já não era muita carne como no dia de Natal: frango. ih. E u fazia rosinhas de rococó. com a família. "Eu não sei. Eu tenho lembrado aquela flautinha. eu fico triste quando chega o dia de Pás coa. A Páscoa. N aquela ocasião da broca do café os fazendeiros perderam muito. Depois precisava torrar: ela fazia saco pra vender. Quando ela estava na ca ma ruim pra morrer. fazia doce. nem água não passou mais na garganta. A gente estava no sítio tudo bobo. Ela saiu quente e veio acudir a farinha de la. rolou a língua. bem eng omadinho. que foi sinhá de meu pai. ele chamou tudo. deixamos o Arraial. depois ia no açougue buscar carne e ia pra cozinha. Depois que acabava de arrumar a cozinha ia ajudar d. Ela me ensinou a cozinhar." "São seus filhos que estão aqui. o dia que a terra tremeu e o papa morreu. rolou. eles não estavam já muito ricos. era uma coisa linda. D. o caldo ela engoliu. Apare ceu do lado do pôr-do. Só pra gente rica que ela trabalhava. não vai ter mais guerra!" E teve. Nossa Mãe. Levantava de madrugada. meus filhos. Esse povo vê tudo boni tinho aí nos pacotes mas não sabe o trabalho que dá pra fazer. mãe!". Minha mãe morreu ressecada: tava no tacho redondo. Ela estendia aqueles panos alvos na grama e ia botando a farinha. Ela dava aqueles grandes. Logo depois q ue minha mãe morreu. E mandou rezar o padre-nosso e a ave-maria. Tinha cois a muito boa. ervilha que a gente plantava. lê jornal. Fechou a garganta dela que não falou mais uma palavra. sempre festejei a Páscoa. limpava a casa.sol. debulhava e cozinhava. quem são as suas crianças?". ela pediu que chamasse. Todo m undo saiu pra ver a estrela e meu pai dizia: "Sinal no céu é sinal de guerra". lembro de uma estrela que apareceu e foi muito comentada. Aí eu fui jogar lá fora o resto e voltei o utra vez para perto dela. à noitinha. Farinha de milho dá trabalho pra fazer. O milho ficava de molho na tina grande. O mundo está sempre a cabando. atacou a garganta. Minha mãe ficou oito dias doente e não falou. Foi durante uma grande guerra que durou bastante anos que minha mãe morreu. faz ia comida gostosa. a criançada dançava. que eu segurei na mão dela. ela tinha encomendas grandes de São Paulo. então levantei e vi m bem pertinho. uma vez só. eu pe rcebi que estava suando. Lalá costu . Nesse momento." Eu estava sentada numa mala grande. com aquela voz bonita que entrava no coração da ge nte e a gente ficava. Relembrar uma coisa dessas é triste: vinham quatro ou cinco moços. Eu dançava." Acha va que quando a gente cansava devia entrar no jardim e sentar num banco. que tu és mulata na cor. Na casa da Quetita juntava eu. a banda do boi.. encerava. mulata. vinha os mocinhos conversar com a gente. você não está percebendo. "E você pensa que eu não sei disso? Minha mãe sempre dizia: 'Aquele menina Risoleta er a uma mão na roda quando chegava aqui'. agora não tem mais procissão.. cavaquinho. já jogava um aventaizinho e ia fazendo o que precisav a". a gente acostumou assim. outro cantava . Aonde eu chegava não tinha tris teza. que enchia de molecada e era mai s barato. Passava mão numa vassoura. era Carlitos. Sem eu a festa não tinha graça. Era no cinema mudo que eu ia. cantava. e tocavam bandolim.. que gostava muito de mim: ela era muito doente. doente.. A proc issão de Nossa Senhora da Conceição saía rodeada das Filhas de Maria. a sobrinha dela que e ra namoradeira. Não perdia um filme da Libertad Lamarque. puxava o cordão. Risoleta!". Até hoje o pessoal quando me vê diz: "Você deixou saudade. com sabão de cinza e areia e botava no sol. ficava na calçada brincando.. elas são paradas. d. não ficou nenhum pra contar a história. ia todo domingo na matinê. fazia comida. Para puxar um c ordão não tinha como eu. A matinê no cinema custava trezentos réis. os pretos passeavam por fora e os br ancos por dentro do jardim.. Gostava demais. minha prima que hoje é doceira. morreram tudo." Encontrava sempre Quetita na cama. Lembro de uma velhinha. diziam "Casa Ed son" e aí vinha a música. hein. faça o favor de dizer?!". o marido morreu. Eu gost ei de responder assim pra ele: "Nem branca. Nunca a provei isso. Qual é a filha branca que Nossa Senhor a teve. Então a diretora da nossa ordem ficou brava comigo : "Uh. Às vezes Quetita me levava numa festa. lembrando com a filha dela. quietas. Nenhuma das minhas filhas não puxaram eu. tinha cadeira e galeria. Mas como a cor não pega. A gente dava corda na vitrola. Tinha a família Santos. você vai falar uma coisa dessas pro bispo!". com banda de música e a gente gostava de dançar. nunca atrasei com meu serviço. um tocava violino. A madrinha dela era nhá Moça Fortes. mulata eu quero o teu amor. eu já jogava um avental e areava aquele mundo de pan ela de ferro. achava que estava errado... tinha gramofone da Casa Edson do Rio de Janeiro. pintava o caneco. Eu e a Delu não tinha jeito. O Armandin . "O que é que a senhora queria que eu falasse? Ela nunca teve filha nem branca nem preta. vinha alegria. a cantora de tangos." Todo domingo ia passear no largo da Matriz. "Não. e eu ia na casa dela. Faziam muita serenata em Campinas naquela época e a gente não tinha licença de abrir a janela para espiar. Quando comecei a dançar no Carnaval veio: O teu cabelo não nega. outro violão.rar. Naquele tempo não tinha rádio. não são de divertir e divertir os outros. O Carnaval era na rua. mulat a. Eu deixei de ser F ilha de Maria por causa de um bispo. Aquela estante de panela s ficava que era uma beleza. Barreto.. quando eu chegava na rua eles gritavam: "A Leta chegou!". m as não é cultivado. Quando veio o cinema falado só vi uma vez p orque já estava com catarata na vista. minha filha?" eu cheguei aqui como visita. faz ia dança com a vassoura e todo mundo me acompanhava. Do jeito que eu chegava vestida. Hoje não deixaram a banda morrer ainda. Daqui a pouco a gente t ava tocando o gramofone e dançando. mulatos bonitos. nem aqui nem em Campinas. o di sco com a voz meio fanhosa. Ele disse que ia passar nós tudo pra Irmandade de São Benedito porque Nossa Senhora nunca teve filha preta. quem disse que ficava dormindo?! Quando fiquei mais crescidinha. disse: "Nunc a que "Sua mãe está morrendo. Sempre tinha procissão. limpava. passava o cordão.. ela costurava pra fo ra. a Quetita. Não tinha canseira. Eu dizia assim: "Por que é que vocês mesmos é que se separ aram? Preto não tem vez dentro do jardim?". no Carnaval a gente caía na rua. Outro dia. era a festeira. O filho do sinhô dava roupa. Aquela que ela entregasse a cor oa no meio da igreja. ficou uma sobrinha só. mas teve que trabalhar em casa de família. com ida. mas o povo todo ajudava." Senão. ia em Aparecida de trem. com a bengalinha dele. A procissão na frente e a rainha e as princesas atrás dentro do quadrado e o povo segurando. Conheci bem a mãe de minha mãe. A rainha ia carregada num quadrado de cetim. o Valete de Copas. saía briga. quatro dias na port a da igreja. não tem mais. coitada! Morreu com Minhas primas eram festeiras de são Benedito: iam vestidas de seda. com família pra tomar conta do baile. os filhos eram pobrezinhos. só dançava m quando tinham sido apresentadas ao rapaz e feito amizade. o Zezinho. velha. Quando a Dominga cresceu costurava bem. mandava enfei tar a igreja. A minha casa não existe ma is.ho. de princesas. casou. As coisas n ossas eram feitas direitinho. com muito respeito. tudo. A rainha parecia uma noiva e era ela quem escolhia a festeira do próximo ano. vinha banda. O resto estão todos enterrados lá no Arraial dos Sousas. de rainha. Nós tínhamos o clube dos mulatos. Tocava viola. como é que é? Eu sou uma só!". tinha prendas. Nem assi m minha perna engrossou. Era uma honra muito grande. Nem procissão. vendidos como se vende porco. Viúva. As mocinhas sentavam. ih!. O clube era só de mulato e mulata. Mas minha prima d izia: "Mulata não tem bandeira mas tem proteção. dançava. Tinha aquela f erida na perna. com o t amanquinho dele andava Campinas inteirinha. na festa de Reis. onde era chácara está tudo a sfaltado. tinha jogos. Quando vinham dois de uma só vez eu dizia: "Agora. E hoje não trabalham o ano inteirinho para as fantasias tão bonitas de Carnaval? Ass im era a festa de são Benedito. bem vestidas que só vendo e sempre a festeira era uma das Filhas de Maria que gastava. com a coroa. Marcel ina Maria da Conceição. foi morrer num asilo. . com um varão com quatro pessoas carregando de cada lado. Quando minha mãe morreu ficamos p recisando de afeto e ela era uma velhinha afetuosa! Ficou muito 96 anos e com uma tristeza. tinha preconceito. sempre ia um senhor casado. Ele pedia então: "A se nhora quer me dar o prazer dessa contradança?". Mas era festa! A gente usava fazer muita romaria no Monte Alegre. Quando ouço no rádio as músicas caipiras de manhã cedo. A dança era a semana inteira. sapatinho baixo. Joaquim foi pra Casa Branca. p ara não ter briga. Tinha e tem. eu era gordinha. Nas festas de são Benedito tinha sapateado. um desgosto de estar no asilo. não sei o que é isso. a estrela dele brilhou: ficou cego como eu estou. mas morreu tudo. O Arlindo sumiu e morreu há muito tempo. precisava fazer curativo mas. aquilo era até bonito. eu l embro dos sambinhas que eu dançava. quando o violeiro começava a tocar. o Edmundo. velho. Perdemos a chácara do Arraial porque meu pai. sozinha e De us. Não era só a moçada. Esse irmão que eu adorava acabou os di as dele aqui em São Paulo. Ficou mais de dez ano s lá porque não tinha quem tratasse dele. tudo assim da mesma idade da gente. Entra em qualquer lugar". A família do sinhô de meu pai não abandonou ele. Morreu com 99 anos. tirava esmola na rua. Quando tinham so rte caíam nas mãos de um sinhô que não judiava deles. teve quinze filhos. ruas. "Essa você dança com ele e a outra comigo. não tinha branco nem preto. Era dança dia e noite. ceguinha. a gente batia o pé no chão. como o Sargentelli aqui de São Pa ulo. não tinha quem tratasse. o vestido estampado. cada um dava um tanto pra pagar a orquestra e alugar salão. aquilo foi tudo vendido e loteado: tem casas. Meu pai e minha avó foram escravos. que acabou de criar todos nós. não. Agora não fazem mais essas coisas. tinha tudo. Faziam que rmesse. Começava dia 1? de janeiro e encerrava dia 6. coisa linda. o Ditinho. depois levou ele pra Santa Casa no pavilhão dos velhos. t udo. só que a gente g astava muito. tá-tá-tá. nem nada. As Filhas de Maria saíam chiques. esse teve sorte. a gente levava três. o altar. A gente juntava um dinheirinho. foi para o Asilo São Vicente de Paula e assim acabou os dias no quartinho dela. não tem tempo. Vim cedo trabalhar aqui em São Paulo. Samba era comigo. não pagava imposto e ninguém procurou pagar. Mont e Alegre era lá para o lado de Amparo e a romaria era para São Bom Jesus. doente. Mulato não entrava em baile de branco. sacudia aquele corpinho. Depois que tocava a música ele dava a volta no sa lão com a dama e chegava no lugar e deixava a gente sentadinha lá. em Taboão da Serra. Era por conta dos festeiros. Então saía pra passear. mas de noite já estava lá porque segunda tinha que levantar às quatro horas. ela fica no hotel e eu pago toda despesas". Aquilo foi bonito.casou com um primo-irmão. Não s ei como peguei esse reumatismo tão feio. A gente morria como morre galinha quando dá peste: era a gripe espanhola. Nunca pude acompanhar as notícias. A gente ficava seis meses sem ver a cara da rua! Sempre tinha serviço . catapora. a Bom Jesus de Pirapora qu e não deixassem eu perder a hora. saía pelotes deformando as mãos. mas boa mesmo. descalça. Eu que tivesse vontade de trabalhar. então conquistei as patroas. dezenove anos. Mocinha fiquei com reumatismo. nem férias. nem aquelas doenças de criança que todo mundo em minha cas a tiveram: tosse comprida. doze anos. Lalá dezessete anos." E pedia: "Me ajude são Benedito. Nicota. Alguém me via andando pra cá e pra lá e dizia: "Menina. fazia curativo. bonito. é tudo jogado de qualquer jeito. Lalá respondeu: "Deixa essa menina ir pra Santos. gostava d e arrumar a mesa bonita. Não tinha medo de nada e nunca me aco nteceu nada. porque a bondade vem daqui de dentro e não da garga nta. Mas nessa ocasião eu tratava de tanta gente. parec e que tinha uma porção de mãos me ajudando. morria gen te que botavam nos caminhões e levavam pro cemitério sem caixão pra enterrar porque não venciam. o que você está fazendo por aí? Você não acha que devia ficar quieta lá dentro de casa e não sair?"." Foi uma epidemia lá em Campinas que foi pior que a gripe espanhola que deu em São Pa ulo quando eu já tinha dezoito. E todo dia ouvia bater na minha porta e ouvia ch amar pelo meu nome de manhãzinha. Eu nasci pra sofrer mesmo. não tem quem faça um chá. entortando tudo. na quele tempo tinha muito capricho nas casas de família. A patroa gritava: "Você não vai fazer almoço hoje?". Alzira. O médico falou: "Essa hérnia pra curar não adianta re médio. p asseando daqui e dali. aí o medico veio: "Vou levar você pa ra o Isolamento e sua madrinha porque você ficou aqui no meio dos bexiguentos" "Se quiser levar os bexiguentos leve. Eu era bem mocinha e fazia tudo isso. já tinha acendido antes o fogão de lenha pra esque ntar tudo. guardanapo eu dobrava em leque. Mas a gente não tinha direito a nada. de manhã ficava andando na horta. sarampo. com flores. A única doença que tive foi o reumatis mo no braço que levantou um pelotão. Hoje. cad a dia dobrava de uma forma. Quando eu estava trabalhando em casa de família. irmã dela .. Gente boa. "Mas essa gente não tem quem faça comida. assistir às festas e movimentos da cidade quando trabalhava. "Já vou indo minha senhora. só banho de mar". foi passear e ficou apertada". mas eu não vou não. domingo. Se brigavam com o marido eu não deixava ficar de mal: "Por qu e que brigou? Não precisa brigar"." Minha madrinha teve bexiga e ficou com o rosto todo empelotado. Não pegou cc mim. tenha paciência que já vou indo. eu gostava delas." D. e morou na avenida Angélica. engomadinho. e depois pra sobrinha d. gente dos Aranha. pão torrado. Num instantinho eu fazia tudo. S ei que sarei e fiquei boa. Quando ela morreu fui pra d. eu sentava no chão e ficava fazendo um carinho pra elas. eu lavava quintal. que sua filha está atrasada. punha água morna numa baciinha e com algodão lavava o rosto dela.Trabalhei com d. elas gostavam d e mim. "Mas eu já tratei de gente com bexiga e não peguei. Quando e la sarou ficaram uns buraquinhos no rosto dela. Andava no meio deles e não tive a gri pe. Se tinham tristezas. não tinha quem tra tasse dela." Ia para os ba rracos de madeira nas favelas com um pacote de canela e a panelinha com um pouco de açúcar. Nicota tratava de Cotinha . 382 r Tinha que levantar todo dia às quatro horas para acender o fogão de lenha e levar o café com torradas bem quentes com bastante manteiga no quarto dos meninos. quem sabe. tirava aquelas cascas. Até ficavam bravos comigo: "Você vai buscar doença lá pra trazer aqui". na rua It acolomi. essa d. Meu pai dizia: "Como posso mandar essa menina pra Santos? Não tenho dinheiro.. dava banho nela. depois passava uma pomada. Eu era menina. Quando ia chamar os meninos já i a com a bandeja de café. só depois que fazia todo o serviço e deixava a mesa do lanche pron ta. em coração. que serviço não faltava e eu não era preguiçosa. E eu fui. Quem trabalhava não tinha direito a nada. Quem ia me acordar? Rezava de noite e pedia a Nossa Senhora. Fazia chá de canela e levava para os doentes. Chegava na cozinha. graças a Deus. era muito difícil eles comerem fora. Era muito caprichosa. D escanso. não é de fantasia. Não sei por que foi aquela revolução. e tinha um desgos to tão grande de morrer no asilo! Comigo é a mesma coisa quando vou no asilo: o pessoal pega e segura na minha mão. nem o Quarto Centenário. não. pernil assado. mas se torcia! Ele criou caderneta de trabalho. As coisas que ele criou para os pobres vigoram até hoje. não. pra são Benedito que tudo saísse gostoso. Só pra não tirar a cadernet a de trabalho pra gente.e sábado e domingo era o dia que se trabalhava mais: ia fazer doces. fazia as coisas com amor. biscoitinhos. de Campinas. Corremos para Campinas e fica mos refugiados na Casa de Cultura Artística. sempre fui com vontade de servir. comem. 392. minha mãe. uando ficou cega. quem c riou foi ele. na rua Carlos Sampaio. Não tinha aposentadoria pra ninguém. A família catou todo o ouro que podia. Mas tinha que servir café pros soldados que se arrancharam lá na Rádio Educadora Paulista. Cinira ela ia amontoando para o bem de São Paulo. porque morreu cedo. nem pra se vestir. Em 1924. estudavam. morriam no asilo. mas eu achava bonito trabalhar. Eu disse assim: "Por que a senhora não dá esse brochinho quebrado pr a mim? Se um dia eu precisar de dinheiro eu vendo". passava a mão na cabeça da gente. Se não fosse o Getúlio até hoje creio que não tinham criado a aposentadoria. mataram ele. ele é candidato só de gente r ica. eu era getulista. os patrões queriam que ele sub isse. As empregadas que trabalhavam a vida inteira ficavam na miséria. quebraram todos os vidros de bonde. Na hora do bombardeio quem podia fugi r. quarenta anos. que vo cê é uma pessoa da família que sempre viveu com a gente aqui". na alameda Barros. Ele andava as sim na rua e falava com os pobres. Graças a Deus. A vida foi muito dura. Eles almoçavam e jantavam doming o um arroz de forno muito bonito. mas eu e ra a favor do Getúlio. Não pude ver o Congresso Eucarístico. Não gostavam dele porque ele era do lado da pob reza. ou aqueles pastéis que quando acabava de fazer a gente já não tinha nem vontade de sair. coitadinhas. A última carta que ele deixou escrita mandei botar até num quadr . achava ele bom. Quanto patrão mandava o empregado embora antes dos dez anos pra não ter que pagar! Antes do Getúlio tinha muita injustiça: a pessoa trabalhava sem apos entadoria. Quando um empregado hoje trabalhou mais de dez anos numa firma já tem direito aos lucros da firma. graças a Deus minha comida nunca fez mal pra ninguém. cada jóia bonita de d. quanto elei tor eu arranjava! Nunca votei. Quando o Eduardo Gomes se candidatou pra Presidência. Foi o Getúlio que criou as leis do trabalho e por isso mesmo que mataram ele. mas senão tinha morrido também lá. Q uando batiam à porta em casa de família diziam pra empregada: "Você vai atender à porta. Nicota. Tomamos um carreirão que fomos parar em Campinas. mas não podia não. os revolucionários lutavam com os legalistas. pra ela não ficar chique. Minha avó. não faço mesmo. Era aquela soldadesca e as m oças queriam trabalhar pela revolução e dar ouro para o bem de São Paulo. como a Quetita. jóia. Pedia pra Deus. apoiava os pobres. quando nós íamos lá. Tinha que comprar as fazendinhas baratas da Pernambucana pra fazer os vestidinhos e as patroas co mpravam as fazendas caríssimas delas e não davam nunca para a empregada vestir. deixava um din heirinho pras empregadas que trabalharam com ela mais de trinta. não podia sentar junto com eles. sem nada! Minha avó. Não faço nada relutando. Foi um tiroteio. frango assado. uma ou outra patroa tinha o coração no peito. depois em 30 também não teve outra? Eu trabalhava com o dr. como fez nhá Moça Fortes lá de Campinas com as empregadas dela. eu estava trabalhando com d. fugiu. er am cheios de orgulho. Foi por causa da tal da Carta Magna que mataram ele. Isso não é uma afron ta? Hoje eles não são mais assim. Adriano de Barros. Se a gente chegava e eles estavam sentados na sala a gente conversava o tempo inteiro de pé. Eu era cabo eleitoral do Getúlio. Que espírito atrasado que elas tinham! Viajavam. achava que os pobres haviam de ser menos pobres e os ricos menos ricos. queriam bombardear a tort o e a direito. sequilhinhos porque domingo a família toda reunia. Quanta injustiça! Às vezes. com paladar di ferente e que não fizesse mal pra ninguém. mas se for fiscal do governo diga que não é empregada. Ele não se suicid ou. sentam na mesa com a gente. Os patrões eram contra o G etúlio. E os ricos cada vez mais subiam. não tinha direito a nada. conversam. A gent e ganhava uma bagatela que não dava pra nada. nós vamos é do lado do pobre mesmo. "Não! Precisamos dar tudo para salvar São Paulo!" São Paulo era contra o Getúlio. Isso aí não era pra banda dos pobres. Foi amor mesmo. Ele não era homem pra se matar. baixa. sos segada. trocando idéia. Quir ino. Tinha sala. na farmácia. agora trocou o número. A gente evitava p ra não ter outro logo. tira-bol o! A gente corria junto. Era uma oficina grande de móveis. Ele era marceneiro mas tinha muita vontade de estudar e não podia. Chamei a menina d e Dejanira. Ele tinha mais juízo do que eu. tinha uma chapelaria na es quina com a rua Conselheiro Brotero e a casa nossa. Eu sabia que não podia mesmo e nunca sonhei acordada. Vim-me embora. Subi numa escada de 28 degraus. Eu chorava: "O que que eu vo u fazer com dois filhos sem marido?". E ficava conversando com o pai da moça. é 827. Como eu chorei naquele dia 24 de agost o! Foi ás oito horas da manhã que mataram ele. 22. a agulha varou minha mão. Mas a gente tinha a casinha da gente e vontade de ficar em casa. preto chega eu. com ordenado. a mandado . Antigamente o namorado ficava sentado na sala com o papai e mamãe. A Dejanira minha era linda. Fomos morar numa casinha compridinha. O tempo dele na fábrica não deu pra aposentadoria. O farmacêutico teve que desmontar a máquina para t irar minha mão dali. Florêncio teve que fechar a marcenaria que não estava dando lucro e foi trabalhar numa fábrica como ofi cial marceneiro. Foi a única coisa que ele deixou. O casamento foi o mais simples que podia ser feito. brincava de pegador. El a dizia assim: "Meu Deus. forno. Não vamos criar nossos filhos como nossos parentes criou nós". "como vai ". e eu em casa de família. uma prima minha. Ele trabalhava. a criança está nascendo. Ouvi pelo rádio a morte do Getúlio. O Florêncio não tinha nem trinta anos. Meu marido não queria e me dizia: "Vamos arrumar nossa vida a ntes de botar outra criança no mundo só pra sofrer". Daqui a pouco o fa rmacêutico bateu na porta com o chapéu dele na mão. Trabalhei até o fim da gravidez e a menina nasc eu em casa. tudo pra passar o tempo.inho no meu quarto (agora minha filha jogou tudo fora). um conhecia bem o outro. en tão eu vendi todas as ferramentas dele e apurei quinze contos. 99. tá-tá e tá. E lutei e venci. disparou nele. muito tempo eu guardei aquele chapéu ! "Dona Risoleta. ficava conversando os dois. Agora a casa é de Quetita. Foi uma vida simples. Ainda vou sempre lá para ver essa casa. uma vida até meio monótona. Deus não quis isso. Ou trazia nossos amiguinhos à noite e jogava bisca. Ele gostou de mim. contando muita história. a gente não fez luxo pra casar. um corredor e uma alcova sem jane la. Cus tou dois contos de réis naquele tempo. O namorado chegava. não usava essas coisas. E a gente ficav a lá pra dentro. eu não tinha nada. Quando ele m orreu tive que sair de lá e fui-me embora pra casa dos patrões onde trabalhava quand o era solteira. Pra mim foi o irmão dele que. Ele gostava de crianças e eu também. Minha primeira filha nasceu em 27. cumprimentava: "boa noite". boa noite. quisemos que fosse na Matriz velha de Campinas. Sonha va que queria trabalhar e lutar e vencer." Naque le susto. D. Isso é o que sonhei sem pre.tomar uma injeção porque estou um pouco gripado e de lá vou pro serviço". A quela mulher deu a casinha para Quetita. Nossas famílias eram amigas. Juliana. Agora falta um. Naquele tempo não tinha noivado. ela é tão bonita!". Eu me sentei na máquina e estava costurando pras minhas crianças. já acabou tudo. Quando ela estava com sete anos fiquei esperando out ra criança. Nós brincamos juntos no Arraial de boca-de-forno. eu gostei dele. trabalhando. o Oswaldo Aranha!". cheguei nu . ele também não tinha nada. ele era bonito e não era preto. eu também trabalhava: "No ssos filhos hão de ganhar a vida mais fácil do que nós ganhamos.. Durante sete dias a parteira veio dar banho no nenê.. Escutei rádio a noite inte irinha quando ele morreu. Não l evou muito tempo Oswaldo Aranha morreu: ele era neto da família de que meu pai foi escravo. A gora já morreu tudo. vá buscar seu marido que ele acabou de morrer. escopa. Estava grávida de quatro meses. Casei em 1926 com um amigo de infância. na rua Dr. a parteira chamava d. vamos ter muito s filhos!". Em casa. Morei pouco tempo na minha casa. paguei duzentos mil-réis pelo parto. não gostávamos de sair. Aluguei uma casa na rua Barra Funda. Florêncio saiu de manhã e me disse: "Vou pas sar na farmácia. como vai". Quando Eduardo Gomes acabou de discutir com ele entrou no elevador e falou: "Esse nós já liqüidamos. Ele falava sempre: "Vai chegar um tempo que você não vai mais precisar trabalhar e vai ficar cuidando de nossa casa. Mariquinha Fereira comprou e deu pruma preta que foi cozinheira dela. Floréncio parecia mais irmão que marido meu. Ele trabalhava na marcenaria. O b onde fechado. A despesa foi aumentando. Trabalha ndo fora ainda lavava a roupa e dava pensão pra eles. Ia ficar como nos Estados Unidos. tomar conta da casa e pagava vinte mil-réis para ela. era outro de grades de ferro. no serviço. Ela ia comigo pro Jardim Améri ca. com esse dinheiro é que eu compra va fruta. lavava c om água quente e no outro dia levantava cedinho. vou cozinhar pra gente mesmo. tinha a Casa Alegre na esqui na que era do conde São Joaquim em que vendia perfumes. até completar doze anos. como é que vai fazer? Quando dis se que ia sair do emprego. O primeiro prédio quem fez foi o Matarazzo. Na coroação de Nossa Senhora vinham buscar a menina. "Meu Deus. No meu tempo só tinha bonde aberto e o "caradura". quando eu estava trabalhando. Enchia bem o fogão de cinzas e naquele carvão miudinho botava dois tijolos e botava as pane. "camarão". só gostava de bonde. parece que ia cair.. O Municipal já tinha e do outro lado o Teatro São José." Queria educar minha filha e com ordenadinho de casa de patrão. pagava condução. eles não gostavam que mulher levasse os anjos. Não andava de ônibus. Quando a menina saiu o osso ficou pulado. Cada um deles pagava 130 pra mim: casa e comida. de noite tirava as panelas. A rua Direita era uma ruazinha estreita. Foi a olhos vistos que o osso desapareceu. O médico pergunt ou: "O que que a senhora fez?". uma filha tão boa não ia jogar fora não. Dejanira era o anjo mais bonito da procissão e não faltava gente pra levar meu anjo. Trouxe da fazenda da patroa uma italianinha pra mim. Levei no médico e ele disse: "Precisa quebrar outra vez pra pôr no lugar". Me mandaram tomar chás e come r caldo de feijão sem sal. dona. quanto essa menina vai sofrer!" Então fiz promessa pra santa Teresinha não tinham nem assentado a primeira pedra da igreja dela na rua Maranhão que se ela ficasse perfeita e não precisasse quebrar qua ndo ela sarasse. Às vezes me arrependo e peço perdão pra Deus. Eu pagava 250 mil-réis o aluguel da casa. minha patroa não queria deixar eu sair: "Onde já se viu u ma cozinheira como você dar pensão?!". vaca de leite. O anjo era carregado toda proc issão por mão de homens. botava no chão da pia e lavava a louça que estava suja. parecia passarinho pulando de uma casa para outra. Cotinha e nessa família trabalhei dezoito anos. Ganhava 250 mil-réis. mas eu não vou cozinhar pra cachorro . Na rua São Bento ficava a Leiteria Ferreira.ma janela bem alta e me joguei lá pra baixo. que roubava dos ricos pra dar pros pobres. Quando chegavam pra almoçar encontravam quentinho . Então a g ente ia no "caradura" com a trouxa de roupa pra não ter que pagar duzentos réis. A gente que trabalha não pode guardar tan ta coisa assim na cabeça. Consegui logo emprego na casa da d. não deixavam entrar e sentar. Onde é a rua Xavier de Toledo eram casas de pobres qu e alugavam cômodos. onde é a Light. Aqui em São Paulo fechei minha residência e aqui estou até hoje. a gente descia p ela escadaria para os matos. ensinei a cozinhar. "Ah. Subindo a escadaria. que era o bonde operário.las por cima. mas eu aluguei um quarto pra três rapazes que saíram da roça. a Dejanira caiu e quebrou o braço. atravessava uns trilhos e já saía na rua das Palmeiras. Agora. não pode an dar na calçada? No Brasil teve um tempo que foi assim. São Paulo até embaixo do viaduto do Chá era uma chácara. mesmo que fosse mulato bem claro. Me bati contra o chão do quintal e fiqu ei com uma ferida durante a gravidez toda e não sarei. Chegava de noite do meu serviço. veio depois. Foi lá que criei meus filhos e juntei todas essas crias pra criar. ensaboava a roupa deles. Gente de cor só podia co mprar no balcão. na avenida São João. Levei no Sanatório Santa Catarina pra consertar. E lá embaixo era chácara. dava pra mim p agar casa e vestir minhas crianças. Depois elas foram cr escendo e em casa de patrão não tem liberdade. parece que avoava. Por lá passava o corso no Ca rnaval. . Uma vez. Me lembro bem de um ladrão famoso. Quando o bonde passava lá em ci ma as pedras tremiam. toda procissão que tivesse eu ia tirar ela de anjo. ela não aumentava o or denado e eu também não queria pedir. numa semana. A Dejanira. A gente esquece e procura esquecer. na volta do grupo. uma leiteria chique. Meneghetti. tinha verdura. fiz tudo para tirar a criança.. "Nada! O que que eu podia fazer?" Só quando eu dav a banho nela fazia massagem com álcool e o osso voltou no lugar. que preto precisa andar no meio da rua. cozinhava feijão. lavar a roupa. pra fazer o almoço e deixar pronto pra eles. A Maria Lucia eu levava no braço. O viaduto não era esse. Depois veio o Prédio Martinelli. vinham buscar minha comida. se posso ganhar mais. a menina arranjou uma bicicleta na vizinha e sumiu nesse Santo Amaro e não apareceu mais naquele dia. espere uns dias. mas de noite a senhora vem buscar. dona. O açúcar tava racionado. leitoa assada. de Ribeirão Preto. Se pra pagar um mês é duro imagine se eu vou deixar juntar três.Nunca fui recompensada e sempre carreguei a casa das patroas nas minhas costas. Os dois meninos que eu criei foram o Dito e Totoca. e rocambole disso e daquilo. Fui pra fazenda dela pra fa zer a festa de cinco anos de seu casamento. precisa gu ardar dinheiro. Nunca passei de 270. Fazia torta. Às vezes atrasava un s dias o aluguel. faz dez anos atrás e eu não tin ha dinheiro. D Daisy falou: "Você já tem um peso. Ali eu era dona Risoleta. mas nós tratamos pra você pagar quarenta contos por mês e d . Queria fazer comida mesmo. ma s para família que gostasse de comer bem. sacos de arroz. Disse pra ela: "Você pode levar sua filha porque você não me deu de papel passado. podre de rica. Quando vim embora trouxe essas duas crianças que eu peguei doentes lá pra tratar. da família Prado. Quando ela apareceu a menina tava com doze anos. Mas nu nca ajudou nada. As pessoas das janelinhas davam adeuzinho pra gente e a gente aqui da rua dava adeusinho pra elas. e uma freguesa fazia out ra. bonito. Lembro do balão de Santos Dumont e do Zeppelin." "Tou trabalhando na minha casa mas trabalho muito: a senhora leva de dia eu tomo conta. Ou tro dia ela veio aqui em casa e perguntou: "Você ainda não comprou casa." 390 Nunca mandou nada. olhando pra minha cara. Lutei sozinha co m Deus. 165. já tenho um menino mais velho e não tem quem tome conta da minha filha pra mim trabalhar. corria lá pro dono da casa: "Tenha paciência. as famílias chiques das redondezas da Granja Julieta até lá perto do Mercado Grand e. Quando ficava sem cozinheira. Pra mim. Hoje ninguém não quer mais comer. Ganhei minha vida sacrificada. vieram lá da fazenda da d. Queimar panela pra fazer um feijão eu não ia não. Risoleta?". não era comidinha não. apenas. Dai sy." "Então eu vou te ajudar! Todo mês eu mando alguma coisa. Começou aí a subir o aluguel das casas . "Tou trabalhando numa casa. p ernil. O que minhas filhas comerem. o pai fugiu da fazenda e largou as cri anças na minha mão." Ela ficou quieta. arroz de forno. viu?" Isso ela fez quinze dias. e disse: 'Você não esquece de nada!". Nunca pus um anúncio da pensão. não quero sacrificar minha filha. na da! Ela era riquíssima. tudo era racionado. "Não esqueço de nada. comprido e prateado. avoando baixinho. Davam um ordenadinho e ainda achavam que estavam pagando muito. eram 3 milhões. de nada. enfim saía mui ta coisa! No tempo da guerra é que tudo ficou difícil! Levantava de madrugada. Quando era onze horas tinha o almoço pronto. ia pra fila com prar pão. mas er a almoço. dona. que esse mês aconteceu qualquer coisa que não estava no programa e eu me atrasei um pou co". Quando ela chegou na porta de casa. Antigamente fazia suflê. Nem vale a pena cha mar isso de aumento. do que a senhora me prometeu. Depois eu soube que todo mês ela mandava caixote de frangos pro b ispo na Cúria e mandava caixote de ovos. empada." "Mas você esqueceu de mim?" "Eu não esqueci da senhora. todos me chamavam dona Risoleta. que eu ponho num asilo" "Mas no asilo maltratam. e ela prometeu de me ajudar com alguma coisa todo mês. Eu pedia dia e noite que Deus não deixasse eu sucumbir. rua Abílio Soares. Qual é o aumento? Era o aluguel da casa. "Não senhora. quando o dono me ofereceu. mandava buscar marmita aqui. mas muito mesmo! Eu ganhava 250 mil-réis. Depois sumiu que eu não sabia mais a mulher onde é que and ava. Aluguei uma casa no Paraíso. saco de feijão. Disse: "Dona. quer carregar um contrapeso? De ixa aí." Um dia ia indo com uma cesta de roupa na cabeça tão grande que não podia nem virar! Vi uma moça chorando encostada num poste. ela não vai ga nhar sua vida sacrificada como eu sempre ganhei. Pra comprar óleo precisava ter o cartão e como eu neces sitava de bastante ia com a criançada pra fila. eles também comem. Quero pagar o colégio p ra ela. não sei como é que vou fazer. que aconteceu pra senhora?". quero o dinheiro todo de uma vez".. eu dizia. dançaram com alto-falta nte. Só que eles não çar podem saber. Renato já tinha cinco anos. sou avó. naquele dia! Os vizinhos vieram todos. assisti à missa. lá na cidade: um dia sim. Comecei a dar pensão.. minha patroa tinha cozinheira com filho e ela disse: "Vou arranjar uma pessoa boa pra tomar conta de seu filho. A cozinheira ganhava doze contos por mês. óleo de fígado de bacalhau. só sei que depois de quatro meses no escuro minha vista voltou. Descia do ônibus. eu aceitei. ele era um bebê de seis meses. eles não têm mais ninguém. eu torrava na frigideira e socava num paninho bem socadinha e coava numa peneirinha bem fininha que eu tinha e dava pra eles misturado no chá. Renato. A mulher sumiu. o dr. no leite. Esse menino me deu muito trabalho! Primeiro tentei curar ele com médico. tomou ta nta Emulsão de Scott. fazia mamadeira. durante um ano. sou tia. Você vai fazer a conta agora de qua nto você tá me devendo até agora que ela tá com doze anos. que não tinham mãe." "Não diga que é esse menino!" O Renato desfalecia quando tinha acesso de bronquite. abanar pra ele não desmaiar. a senhora esqueceu que tem suas filhas moças! A senhora dança mais que a gente". pegado à Federação Espírita. tomou tanta injeção que ninguém podia tocar o dedo nele. O Renato tinha dois. Fui no dr . era tão retardado que só queria dormir. meus filhos era tudo pequeno. "sempre vou achar bode?". escureceu e fiquei quatro meses no escur o. nunca mais apareceu. o frade benzeu as crianças. Veio aqui no dia do casamentão dajane. no Paraíso. O Carlinhos foi o último que criei. Mas eu não quero receber miudeza. pedi pra santo Antônio que se ele endireitasse as perninhas dele sem precisar operar eu ia dar um mês pão para os pobres da Igreja de Santo Antônio do Valonga. Fiz isso bem di reitinho e guardava no vidro. Ma s precisava fazer três meses na primeira sexta-feira do minguante. Mas tratei e consegui c urar com simpatia. Pontual que já morreu. "como é que eu vou ficar com essas crianças tudo pequena? Eu sou tudo deles: sou mãe. Pagava cinqüenta cruzeiros ca . Tomou um remédio que cu stava cada vidro 480 cruzeiros. subia a ladeira com esse meninão no meu braço. tudo filho de mãe solteira. eu precisava abanar. depois venha buscar. Teve barulho nesta casa. casadinho de camarão. De manhã. parecia paralisia infan til. sou pai. Paiva Ramos. A Joana também e o Carimbos. minha filha. E a mãe su miu que nunca mais apareceu. e ele me deu um remedinho. abana r. foi um casamentão. ela trat a muito bem mas é pobre e você precisa pagar". foi uma graça grande que alcancei. Carlinhos tinha as perninhas tortas." Batia clara de ovo para pôr na vista. não tinham pai. Pra eles a rrancarem o fio da barba já xingavam tanto a gente! O Renato foi o que me deu mais trabalho porque era retardado. Quando o Carimbos veio. perto da estação de Santos. de meses. Dava tudo pro menino. Perdi a vista assim sem mais nem menos. Aí. Ajoelhada. "Olha ele atrás do senhor. Quando eu dava pensão. No baile não ficava sentada: "Mãe. pude mandar ele na escola e ele aprendeu mesmo. Coitadinho. vocês têm perna-de-pau e não sabem dan Ess luta que tive pra criar meus filhos! Ainda peguei cinco filhos dos outros pra cr iar. e ficou de me pagar trezentos mil-réis por mês. Não tive coragem de levar no Juizado. Festej ei como o da Dejanira e o da Maria Lucia. pois dizia. Minha filha mais velha não tinha nem tirado o diploma do grupo. Esse remédio só cura dos sete aos quinze anos. engolia vinte drágeas de cada vez. já tinha feito almoço pra despachar min as marmitas. três anos nessa época. levei comida pra todos nós. de começo ao fim ajoelhada. lá na ru a Maria Paula. debaixo de um toldo aqui servi coxinha. melhorou bastante com a bênção. tinha os nervos tudo mole. "Meu Deus". "Mas não é. Quantas crianças que eu cu rei! A amostra está aí dentro de casa. Outro dia veio um homem aí e perguntou: "Cadê aquele aleijadinho que a senh ora criava?". tu do isso está lá até hoje. Me ensinaram a tirar a barba do cavanhaque do bode. um dia não eu levava ele pra tomar banho de ultravioleta. Confessei. Morei na Rafael de Barros número 17 e depois mudei para a Abílio Soares número 165. O tratamento dele na clínica durou nov e anos. Dei um mês de pão e leite para os pobres de sant o Antônio. muito dinheiro. e fininhas assim como está minha perna agora. sopinha. Em u ma semana a perna do menino endireitou. E você nunca deu um tostão. que era r etardado. comunguei. Fui no oculista. Ajane já tinha doze anos. Meu Deus do céu.ar o leite pra menina. Cumpri a promessa: fui pra Santos. viradas pra dentro. quatro anos. Minhas filhas não deram trabalho nem pra criar. "É de ver tanta judiação. Era no tempo da escravidão e eu chorava. cinco anos. Gostava de partir da estação e ir até o Mercado Central de trenzinho. Todos sabem ler. vestidinho. com uma notinha de cem mil-réis. Se formaram em contabilidade e são ch efes de seção. tiraram o bonde e puseram ônibus. i am passear por aí. d ona. E tudo da mes ma família Penteado: roupa da d. mas sei que estão orgulhosas por dentro. do Biológico para cá era tudo mata que ia até a avenida. "A professora não deu hoje. A governante dela veio aquela semana de sua morte aqui em casa b uscar os lençóis bonitos de linho. estendia na cadeira. tendendém! dentro da mata. Meus fil hos eram pequenos: oito anos. não ia em fogão nem em t anque. Depois ela aprendeu a dobrar e passava a p erna em mim. meus filhos. se eu fosse a escrava Isaura. Cotinha. depois botava os pe quenos na sala.. Quando vim para Santo Amaro comecei a dar Oito marmitas. imagine se eu fosse desse tempo." As meninas tirou diploma do ginásio na Escola Rodrigues Alves e o diploma de conta bilidade. catorze dúzias de peças. Outro dia estava falando pras minhas filhas: "Nunca tive um tostão na caixa. saião de linh o. outra lá. eu me jogava no poço. no emprego que entraram estão até hoje. vendeu tudo. Eu tinha oito colher na mesa. a senhora vai ver novela pra se distrair ou p ra chorar?". quando elas falaram que queriam ser contadoras não esperei falar duas vezes. quem tomava mamadeira. Sei de gente rica que tem retardado que não sabe ler nem escrever. Na hora que acabava a escola eu perguntava: "C adê a lição?". "Agora vocês vão estudar. passar. a matrícula estava no meu bolso e não podia mais voltar.. Fazia uma sobremesa todo dia. quinze. em 1945. ninguém não quis fazer ginásio. Lavava e ficava passand o roupa a noite inteira. Eles loteou tudo. com uniforme na escola. com os travesseirinhos deles. retardado. roupa da d. Queria que elas fossem professoras não quiseram ser. nasceu com espírito de rico. O Renato deu trabalho. saí correndo e fui fazer a matrícula. botar mesa. tomava a mamadeira. tirando diploma. Dizem que ela não entregou a roupa não. Alzira. Ninguém me ajudava. Depois foram tirando tud o. tudo engomadinho. elas não dão demonstração. "Eu não levo!" Os meninos fizeram grupo.. precisava pagar o colégio das criança s e vestir e calçar. Todo resto do pe ssoal que se vê aí na casa é meu. tinha bronquite asmática. nem pr a casar. Eu mandava eles na escola. meu povo passava bem. A rua Indianópolis era só capão de Jaraguá. O trem de Santo Amaro entrava numa mata virgem e ia: Tendendém. comer sorvete. Enquanto eu passava quatro camisas ela passava catorze. Enquanto cozinhava e despachava marmita. Se a blusinha tav a suja ela já passava n'água e botava no varal. aquela escadinha. Dejanira go stava de tirar mesa. Todo mundo admi rava de ver tudo bem vestidinho. E engomava blusa. As mães sumiu! Era uma vila bonita aqui. Nunca tive coragem de largar min has crianças. as mães largou aí. nunca tive um tostão em lugar nenhum e nunca faltou nada para vocês". Se eu soubesse que a malvada não ia entregar eu não t inha dado. tirava o uniformezinho da escola. ela morreu com a rou pa que engomei. eu tinha varal aí fora por tudo. terno." Ganhava o sustento no tanque e no fogão.. não fazem nada sem me consultar. sabem escrever. aquele capim do brejo e uma casa aqui. A primeira novela que ouvi foi A escrava Isaura. engomar e fazer tiotê nas rendas. as meninas me ajudavam: a Maria Lucia c hegava. Pegava no ferro desde o tempo em que não sabia nem dobrar uma camisa ainda. E o Carlin hos era muito levado.. era doente. queria que elas fos sem costureiras não quiseram ser. As crianças reclamavam: "Mãe. Criei todos. leva pr o Juizado de Menores"." Fazia esse sacrifício mas não mandei nenhum embora. Os outros diziam pra mim: "Você é boba. Dejanira trabalho . têm respeito. Até meu retardado sabe l er e escrever. Vinha pra lavar. Lembro do primeiro rádio que comprei.. E assim eu criei toda essa cria. se vê como é que está. Morei sempre com a Maria Lucia que enviuvou e com o filho dela. não era maltratado não. fez casa em tudo. Minhas fil as não têm medo de mim. Quando elas viram.da aplicação naquele tempo! Quando mudei para Santo Amaro. Levantava de manhã. artigo de segunda mão. Ouço o noticiário de rádio todo di a. não quiseram matar os dois? Os dois não tiveram que renunciar e sair fugido? Aqui não pode ninguém ser a favor dos pobres. a gora trabalha no Estado. nunca gostei dele. nunca ganhei para comprar uma casa. de ser dona da minha casa. Hoje. trabalhou. como pessoa era bom. não criei meu filho pra isso!" e fiquei cega. inteligência demais. Dojânio. branquinhos. que ficou muito caro. fazia um mês que eu procurava ele. com uma portuguesa. Faz tempo. a beber. com essas lutas que tive. Senti nos primeiro s dias. Jane é criança ainda. O médico disse que é a inteligência que está estragando ele. Quando ficou só três dias numa firma meu genro não deixou mais ele entra r em casa. torci pro Lott na eleição. cinco mês num e mprego e saía. Maria Lucia casou com 22 anos e enviuvou. Disse pra ele: "Você escolhe eu ou a ping a. e stá com trinta e poucos anos. Estava faltando tanta coisa por fazer aqui embaix o. você está muito atrasada. não sei se está vi vo ou morto. tudo o que me rodeia fica feliz. vejo q ue a situação do Brasil está cada vez pior. não parava em em- prego nenhum. Mas a menina dele é um amor. disse que estava cheio de traste velho. já tinham mandado ele embo Estão com três filhos. Nã enxergo e sou feliz. no último ano de contabilidade ele deixou. não quis estudar. entrou como contínua. não ia sentir?! Paguei um quarto pra ele dormir. Porque se vai cu . aí nessa caminha. senão. Eu já não estava enxergando e disse: "A casa é sua. Você sabe que a vovó está duzentos anos na sua frente?". não tinham o que fazer lá em cima. o Renato sumiu. eles é que eram os donos. Olha aí! Todo mundo não tá vendo? Tá na mão de militar e ele não quer larga r o osso não. Criei desde pequenino. com quinze. o meu genro botou o Carlinhos pra fora. "Na barra de sua saia ele nunca vai ficar homem. e só voltou pra cá quando meu genro morreu. Tinha sido preso por engano num pega-pega na pastelar ia. Mar ia Lucia nunca se separou de mim. coitadinho. O Dito sumiu. há um mês que estou na prisão". estudiosa que só vendo. Isso durou seis mês. O Dito era pintor. é mãe desse menino que está aqui comigo. Não adianta nem chorar . Fui num bar lá perto e pedi que a dona desse de comer pro C arlinhos e no fim do mês eu ia pagar. dorme sempre no meu quarto. quem manda é você". entreguei pra Deus e aceitei. Você tá criando problema pra Maria Lucia e o marido". nunca perseguiu ninguém e teve coragem d e construir Brasília. Não sei onde foi p arar minha medalha de valsa.u como escriturária. Dos rapazes. Por que não gostam dele? Ele também não é filho de Deus? Carlinhos agora é que está botando a cabeça no lugar. o Jânio não era do lado dos pobres. Carlinhos está fazendo o supletivo. Não me procura há onze anos. Jane estudou um pouco. Dizia: "M amãe. Diz: "Então vou rebaixar minha caderneta em vez de subir?". a mãe dele é ótima pessoa e com proteção da mãe está agora no Estado. Só morei em casa alugada. ele ficou zanzando pela r ua depois mais três anos. Dizia: "Vocês vão brincando. tive um espasmo no olho: "Meu Deus. Não quer aceitar emprego p or menos de 3 milhões. É por isso que nunca fu i infeliz. não vejo o fingi mento no rosto dos outros. pode dar o que quiser". começou a beber. nem procurar porque não acha mais. Quando o Jango Goulart estava guiando ele e quis fazer algu ma coisa pelos pobres. Eu ti nha uma vontade de ter minha casa. Os astronautas. Quando fiquei cega de todo. Está desempregado e eu pererecando pra achar um emprego pra ele. depois entrou na prefeitura e casou com um advogado. depois me conformei. Renato vai completar trin ta anos dia 12 de abril. de bar ata. Estou com um casa l de netos bonitos. dona. Gostava dojuscelino. Quando o Carlinhos entrou numa idade ruim. Me amoleceu as pernas. bate à máquina muito bem. Ajudei a criar meus netos. Respondi: "A casa é sua." Carlinhos ficava quatro mês. só pra viagem de lua-de-mel. tem dois filhos pequeninos. não dando eu. que ganhei em Campinas. Eu não era mais a dona da cas a. Um pai bota o filho na rua pra endireitar ele? Rua não endireita ninguém. Totoca é vidraceiro. falava para os netos. o único que casou foi o Totoca. minha filha passou a casa pro nome dela. Preciso conversar de política e governo. Sumiu. Agora meu retardado tá desempregado. brincando. Outro dia um disse pra mãe: "Mamãe. num depósito de caminhão. Meus genros não gostam muito do trabalho. Quando recebi um bilhete da prisão. dezesseis an os os meninos ficam impossíveis mesmo. O dia que nosso Brasil cair na mão do militar vai ser duro pra sair". Quando o dólar sobe eu chamo a atenção do meu genro. Minha filha deu meu guarda-roupa. E o que foram fazer lá? Nada! Nunca pude acompanhar as notícias quando trabalhava em casa de família. vem tudo parar aqui em casa e fica. Sábado fomos num casamento "despede-se na igreja". encostou na gente porque estava procurando um encosto. Quando a irmã chegou aqui e pediu pra p ousar. por que falou 'Pode dormir. pra alegria e pra tristeza. Moça está encalhada por aí. os amigos do Diomar. Não acho esse ajuntamento bo m. Diomar ficou bravo comigo. só posso contar com minhas duas filhas. A mãe dele não sei se é prima ou irmã do pai ou da mãe dela. de ser útil pra alguém. E vai tenteando assim. "Tinha que falar alguma coisa. E a senhora tolera tudo. sua caminha tá lá. cada uma tem uma tarefinha só. que rapaz vai casar com uma () O salário mínimo da época era cr8 768. no bairro. Depois desmanchou com ele e . a irmã." Vai fazer quatro anos que ela está aqui. pode deitar'? Por que não ficou quieta?". De vez em quando me conserta u mas pecinhas de roupa porque eu não enxergo. tudo v em encostar aqui. E não é só preto não. Tenho que pagar uma promessa que fiz para uma moça que namorava um rapaz e aconteceu do rapaz abusar dela. se instalou num estrado com colchão e fica aí quietinha. Já falei que qua lquer dia chamo o camburão pra prender todo mundo. Quando vou visitar uma menina que a Quetita criou ela diz: "Gosto quando d. já pegaram o lápis pra tomar nota. Ele é u m penetra. Às vezes eu me lembro tanta coisa. Quantas vezes ele tem perdido! Preciso guardar para certas horas. todos. meus amigos. Hoje. Ela me dizia: "Mamãe. Cecília quando vem aqui toma nota num caderninho quando é algum a coisa que cura gente.idar da pobreza tem que morrer. a filha da japonesa. Quan do meu neto vai pra escola eles ficam aqui esperando. daqui a pouco vem a filha da filha da avó. Meu santo é casamenteiro. As crias chegam perto de mim só pra pedir. do pudim de mandioca. daqui a pouco vem a filh a da avó. uma senhora que foi minha pensionista arran jou aposentadoria pra mim. Eu tenho muita vontade de servir alguém. não têm nada pra dar. "Com quem vocês estão falando? Com a irmã de vocês?" "É assim mesmo. precisa ter mu ita paciência pra agüentar essas crias de agora. Não faço outra coisa. a Delu. formou de professora. tudo toma banho e quem paga a conta no fim do mês é a Maria Lucia. diz que sou quadrada. todos já morreram. coroa. Então. não trabalha. Diz que é parenta da mãe do meu genro em Indaiatuba. não ganhassem. sou querida até hoje. Trabalha no Estado. Não sei se é a melhor doceira de São Pau lo. a gente às vezes precisa ficar brava para doutrinar uma pessoa. Aqui é a casa da misericórdia. o Diomar. ago ra que estou cega. não tem mais ninguém. Fui muito feliz na minha juventude e muito querida. Ela pediu para dormir." Não é só carinho. Veio visitar e ficou. c oroa?". moça assim? Repetia e repetia de ano. a casa está cheia: é o seu Barbosa. A Dejanira me dá um dinheirinho todo mês e ajuda a Maria Lucia a pagar a casa. não enxergo. E essa freira que quis viver fora do convento. Recebo quinhentos cruzeiros do INPS. Tem um tal seu Barbosa que veio dar um recado de Ribeirão Preto. Juventude de hoje. Nunca vi pessoa querida assim". fez o ginásio. Ont em perdeu todos os documentos. eu não agüentava. sempre rindo. minha filha. que vem me visitar sempre. vó. Já me pediram receita de torta de milho. Ficou aqui. Tenho amizades boas. moço. Com a graça de Nosso Senhor Jesus Cris to tenho alcançado tanta bênção que ninguém imagina. Riso leta vem aqui porque vem a avó. precisa entrar na nossa. Tem gente que só tem pra alegria. Conheci uma moça meio boba. mui to infantil demais. esses barbudos amigos do meu neto que se encontram aqui. D. E vem velho.00. Não param em emprego nenhum: "Que há. é vadio. Meus irmãos. vem tanta coisa boa na minha cabeça! Então vou falando. mas é boa doceira. Rezei muito com pena do desgosto dos pais. depois fez pedagogia. Os vizinhos vão pensar que a gente é vagabundo. está ganhando 9 milhões por mês! Agora estou devendo uma graça que alcancei de santo Antônio de Catigeró lá na Vila Formo sa e não sei ir lá. O que eu posso fazer? Tudo come. tá tocando meus amigos. Estamos em 1976. Tenho uma prim a doceira. pra ir e voltar. o Ca rlinhos. num instanti arranja casamento e casa. agora em abril. P ois ela não casou muito bem?! Acabou o primário. atendendo pedidos de oração. * Se minhas filhas não fossem formadas. Daqui a pouco vem a bisavó. Estava acostum ada no convento e freira não faz nada. Tem o Renato. Faço experiência comigo mesmo e depois ensino pra outra pess oa. trabalha dia e noite. parece romaria . tudo bebe. O pouquinho que o Renato ganha não dá nem pra ele. Na mesma hora me deu aquela soneira e disse: "Não embarcou! Ela está sentada num ban co de jardim e atrás dela tem um cachorro. um farol bonito. On her divine majority Obtrude no more Unmoved. Eu não me sinto velha. coisa maravilhosa! No tempo que meu neto era pequeno e dor mia comigo ele percebeu: 'Vó. Foi lá no Parqu e Paulista. como é que e ssa moça vai casar com outro? O noivo depois vai largar dela. A pessoa alcança a graça. Uma vez a irmã de d. aí nessa hora é que eu faço meus pedidos e a pessoa alcança a graça. Entrego todo o meu sofrimento nos pés de Deus. os pratos caíam. em frente do Trianon. Minha vida foi uma luta sem tréguas. a c atarata começou a nascer nos meus olhos. "Pra que lado?" "A senhora vai pro lado da avenida Paulista e encontra a Divina lá. Quando minha filha recebeu o diploma. Ele está na sala agora." A mulher saiu na mesma hora. O que t odo mundo fazia. não percebeu nada até hoje. Then shuts the door. ele também não quis ficar. par ece uma estrela que alumeia todo quarto. Daqui a pouco vinha vindo com a irmã pela mão. porque ela saiu". Quando meus olhos está fervendo e parece que está caindo uma chuva de prata . estou vendo em cima do seu guarda-roupa uma luz. Eu agradeço a Deus por esse grande prazer. chorando e o cachorro de pedra atrás dela. por essa luz que Ele me dá. Todo mundo fic ou impressionado. Maria Matos fugiu e ela veio em casa chorando e dizia: "Ela e mbarcou pra Minas!". meu quarto está claro. me sinto mocin ha! São Benedito estava comigo na cozinha. she notes the chariots pausing At her low gate. Unmoved. Se eu enxergasse q ueria ir até os cem anos. caindo umas estrelas do céu. diziam. Com unção de azeite curei o dedinho dobrado de um menino que tinha operação marcada. ou se é de pedra. A menina estava sentada no banco. De noite acordo deitada na cama . Veio por causa do muito calor do forno. queimava. Quando eu saí. iluminado. não sei se é de verdade. no meio da folhagem". . d esde pequena lidei com fogão de lenha. mas a Deus e ao Divino Espírito Santo que faz a graça para quem merece". Precisei parar. A lcancei esta graça! O moço casou. em 1940. não tinha importáncia não. Por isso é que tenho meu espírito alegre. e ele deu nela. Meu Deus.brigou. I've known her from an ample nation choose one. de carvão. dona! O menino que me trouxeram e era cego começou a enxergar. Tinha 47 anos. A senhora está vendo?". Isso foi há muitos anos. Dig o: "Não agradeça a mim. eu dava cem cruzeiros para o pão dos pobres. an emperor be kneeling Upon her mat. Se alguém visse o que me rodeia aqui dentro do quarto! De longe parece que vem uma 4 A SUBSTÂNCIA SOCIAL DA MEMÓRIA MEMÓRIA E INTERAÇÃO The soul selects her own society. Já estava enxergando muito pouco quando vim par ar aqui em Santo Amaro. Diziam: "São Benedito não quer ficar na co zinha. Então fiz promessa pra santo Antônio de Catigeró que se ela casasse e o noivo soubesse reconhecer o aconte cido e não devolvesse a moça pros pais. luz. E ela ficou noiva de Outro. claro que parece um dia. orelhas caídas e longas como as de um cão de caça. talvez da mai s antiga que consigamos evocar. O encontro com velhos parentes faz o passado reviver com um frescor que não encont raríamos na evocação solitária. brilhante e esguia. não são o riginais: foram inspiradas nas conversas com os outros. existe sim. e o imperador ajoelhou-se em seu umbral. Pode-se recordar s em ter pertencido a um grupo que sustente nossa memória? Estaremos sós quando nos af astamos de todos para melhor recordar? Quando entramos dentro de nós mesmos e fech amos a porta.". Está situado numa alameda do Parque Siqueira Campos.. o que é comum. Antônio: são acontecimentos que mar caram também a vida de outros membros da família. ou mesmo de nossas idéias. A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada cheio de pitomb as escondido atrás de uma porta. sustentada por outras atenções. imóvel. que às vezes não crê em seus próprios o lhos e faz apelo constante ao outro para que confirme a nossa ViSão: "Aí está alguém que não me deixa mentir".Then dose the valves of her attention Like stone. não raro estamos convivendo com outros seres não materialmente present es. a queda no tanque. e que lhe parecia oriunda de uma vida anterior. em geral. mas a reprodução dela. ganha peso. imagin amos a anedota do menino com a mãe preta sendo muitas vezes repetida pelo avô. o cort e com a navalha ou o incêndio que atemorizou o sr. O mes mo deve ter acontecido com as peraltices de d. Parecem tão nossas que ficaríamos surpresos se nos dis . Somos. que deita água pela boca. que aparece e m seus sonhos no meio da folhagem. mormente do que chamamos a lembrança individual? É o caso das imagens remotas. Talvez nem me recorde do vaso: é possível que a imagem. Aqui. A alma escolhe sua companhia antes de fechar a porta. apenas uma testemunha. Abel. daria a memória coletiva conta da explicação de todos os fatos de memória. segundo o poema de Emi ly Dickinson. não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita. que era obcecada por uma lembrança tão remota que ela não conseguia localiz ar.. permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Ouvi dizer que de uma vasta nação só escolheu alguém. quando nos dedicamos a pesquisar lembranças remotas. Mas. que os recontaram muitas vezes. novas facetas. Quando relatamos nossas mais distantes lembranças. corroborada por indivíduos que lhe fi xaram o conteúdo e a forma. Os caminhos se abriram. Imóvel ela viu a carruagem transpondo o seu baixo portal. Mesmo porque muitas recordações que incorporamos ao nosso pa ssado não são nossas: simplesmente nos foram relatadas por nossos parentes e depois lembradas por nós. para ser um fruto inesgotável da memória. Se assim não fosse. e las passam a ter uma história dentro da gente. Para que se constituísse a lembrança da amamentação do sr. talvez nossas lembranças deslizassem para a ilusão e nos deixassem em dúvida. o vento varreu as folhas da a lameda de novo percorrida pela menina em busca do fiel animal que também era uma f onte. Jovina. sua divina maioridade ninguém mais penetrou. de nossas recordações. porque ele faz parte também das recordações de min ha infância. acompanham nossa vida e são enriqueci das por experiências e embates. as árvores deixaram coar o sol. É preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças. Emily Dickinson A alma escolheu sua companhia e a porta fechou. e se fixa no chão. reafirmando sua presença. recebeu de minha parte um au xilio inesperado quando lhe disse: "Eugênia.' Graciliano Ramos faz ver como um objeto vai ganhando concreção à medida que outras pes soas dele têm conhecimento e se comunicam com a criança. não só a alfaia esquisita é confirmada em sua existência. mas se abre para outros pontos de vista. Com o correr do tempo. Suas faces ocultas são reveladas por outros olhares e a forma brilhante e esguia. a fato s que nos foram evocados muitas vezes pelas suas testemunhas. Assim. Surpresa e alívi o distenderam sua fisionomia. esse cachorro de pedra. nos referimos. Uma jovem. depois as válvulas fechadas da atenção omo pedra retém. para outros homens para quem nosso amigo desaparecido se rá familiar. unifica. É possível que limitações daquele grupo o fizessem g uardar essa substância valorativa em estado virtual. embora testemunhados por outros. Seria p iso que os membros do antigo grupo ainda estivessem perto dele. Não se trata. de recomposição. e nós.sessem o seu ponto exato de entrada em nossa vida. estão a um passo da assimilação. queremos apenas fazer pensar no lastro comunitário d e que nos servimos para constituir o que é mais individual. Um de seus membros. diferencia. sua voz combativa. inspirador. escola res. corrige e passa a limpo. profissionais. É um trabalho árduo esse. dividimos o pão no recrei o. se foi apagado do ce mitério. Brites com relação a Augusto Pinto. cuja vida e morte precoce e trágica impres sionaram nossa geração. sua lembrança. trazem um certo ar comum. Mas. e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados. tendo como ex pectativa um grupo futuro. para se completar. Podemos guardar anos. Há fatos que não tiveram ressonância coletiva e se imprimiram apenas em nossa subjetiv idade. sua morte. de uma rapinagem intelectual comum nos meios universi tários em que as idéias têm alto "valor de troca". Os que menos resistem à sugestão. Existem valores e diretrizes para a ação que às vezes não puderam desabrochar no meio pr imitivo em que os vimos formulados. de um louro queimado. semelhantes a mercadoria.". Ela relata s ua prisão. E há fatos que. reavivando-lhe a memória. te imosamente. certos valores que deri varam naturalmente de uma praxis coletiva. como dissemos. caro. O grupo de colegas mal pode constituir um apoio para sua lembrança. Eu ainda guardo iss o para ter uma memória viva de alguma coisa que possa servir alguém". Não se trata do que opina Machado de Assis: "As idéias alheias. É porque temos certeza de que esse valor negado pelo gr upo atual tem uma significação que o transcende e que poderá ser explicitada por nós um dia. que se revivam nossa época de e . às provínc ias etc.fosco. de um processo cujas fases não são elaboradas por nos sa consciência. Como salvar sua lembrança senão escrevendo sobre ele. Veja-se a fidelidade da memória de d. que. o protesto contr a a lápide e o texto integral composto pela mãe e pela irmã. revive aqui em sua lembrança e se perpetua com o leitor dessas linhas. Elas foram formuladas por out rem. de que nos sentimos o único depositário fiel. Um exemplo pode ser o desapareci mento de uma pessoa que consideramos de especial valor. Determinar a origem de uma infl uência social é um problema difícil. e do esquecimento da verdadeira fonte. Mas. por elaboração nossa. sua tentativa de fuga. fixando assim seus traços cada vez mais fugidios? Fui colega de classe de lara lavelberg. De uma vibração em uníssono com as idéias de um meio passamos a ter.2 Longe do sarcasmo de Machado. simplesmente. Muitos se lembrarão de sua figura magra. O INDIVÍDUO COMO TES TEMUNHA Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares. * Ela estudou e formou-se co. discutimos idéias nas aulas. é possível também que esqueça as raízes distantes de sua ação atual. a lápide da sepultura. só repercutiram profundament e em nós. Ela pode ser um ponto de convergência de várias corre ntes de pensamento coletivo. as incorporamos ao nosso cabedal. sofre as vicissitudes da evolução de seus membros e dep ende de sua interação. crêem-s e livres e autônomos em seus pensamentos e decisões. em melhores condições. pois se dispersou e cada um se integrou num meio diverso daquele qu e conheceu. E reflexões. e dizemos: "Só eu senti. Depois que passou põe-se uma pedra por cima. Na maioria dos casos c reio que este não seja um processo consciente. pode vir a realizá-la em outro grupo onde encontrou solo favorável. por isso mesmo que não foram compradas na esquina. porque muitos t raços de sua fisionomia requerem. aos papéis falsos. Quando sentimos necessidade de guardar os traços de um amigo de saparecido. Vive ndo no interior de um grupo. B rites está consciente da militância de sua memória: "Esses são fatos que se vivem apaixo nadamente na época. às galinhas. Ela entretém a memória de 408 seus membros. que escutamos e que calhar am bem com nosso estado de alma. D. que acrescenta. recolhemos seus vestígios a partir do que guardamos dele e dos depoime ntos dos que o conheceram. quando cedem à influência externa. depositário de sua substância implícita. só eu compreendi". pela irmã: "Brites foi sempre fechada. "Foi uma gargalhada dos irmãos. que diferenças no relato da infância! D.studo. J ovina selecionou . isolada. Brites se confessa uma pessoa de oitiva.j foi uma criança muito bonita. Brites lembra. para ele. mas imagino que em c asa. Para localizar uma lembrança não b . e que alegria senti nu ma venda à beira de estrada ao ouvir suas palavras repetidas por uma mulher que nu nca a esqueceu! Que interesse terão tais elementos para a geração atual? Encontrarei uma linguagem que comova as pessoas de hoje. Aninha.1 Vivina com oitenta anos tem o mesmo entusi asmo dos dezoito: ela é agora a mesma que era aos dezoito anos". ou em paralelo. e só par a ele. mas o que nos chama a atenção são as diferenças de observações sobre o mesmo fato e essas lembranças em co traponto que embelezam ainda mais duas vidas já em si tão belas. D." Os fatos afloram lembrando a memória-sonho. Cada um de nós guardou dela uma conversa. Sua autobiografia está pontilhada de indignações diante da injustiça. D. D. Tenho a impressão de que ela soube viver a infância com a ótica do p assado. Voltou a ser a casa da nossa infância. Brites dá seu depoimento sobre a irmã em vários pontos da sua narrativa: "Lembro-me do susto que nos deu Vivina. mas. la vadeira e grande leitora. uma pequena lembrança preciosa. as cartas. travessuras que ela e squeceu. e foi desd e sempre. é o que esperávamos. Jovina é ma is puxada pela vida pública. que era anarquista. Jovina utilizam um tesouro comum.o primeiro livro. [. Era o dia 11 de novembro. Procurei seu vestígio em ca minhos que iam dar no sertão. conseguiu emprestados. Por muito que deva à memória coletiva. Para Halbwachs. de Vivina. D. Veja-se o fim da guerra de 18 relatado por d. o primeiro movimento de r ua são ordenados pelo hoje. nossos mestres. contado pela professora. Ele é o memorizador e da s camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são. nossas leituras. houve alegria". mas cujo espírito crítico n unca se abrandou. como a irmã. eis algo de que todos temos conhecimento de causa. o primeiro filme. que era uma menina terrível. onde o ambiente era absolutamente francófilo. Estamos ouvindo uma pessoa de ação.j Foi sempre difere nte das outras. um gesto. foi uma coisa sem grande repercussão. procurou as músicas antigas. ao ouvi-lo na voz de um neto.se quando o chofer da visita rica espera sob a chuva. é graças à sua força. para as quais seu nome pouco significa? As lutas pel a memória.. E d. A de d. nossos ideais. cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Nossos deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos grupos nos f az evocar lembranças significativas para este presente e sob a luz explicativa que convém à ação atual. Sei que ela é. e só comia pão porqie era o que a humanidade pobre podia comer. 411 pra contar. Penso que os fatos que a memória de d. é o indivíduo que recorda. Brites e d. mas triste". Não se lembra de canções de roda ou de pregões. não se compraz tanto com o passado.. O que as recordações tenham em comum. Com vinte anos comprou o primeiro dicio nário anarquista editado no Brasil. até desc obriu o poema renegado por Preciosa que. Sua sensibilidade de menina já estava orientada para ser a ardente socialista que é: cai em pranto quando lê Os miseráveis em cinco volumes. "Não me lembro do fim da Primeira Guerra. Vibra na escola c om o Eppur si muove de Galileu. que a admirável d.. [. do bonde. apesar das semelhanças. A menina Brites brinca no porão e no jardim com as irmãzinhas. significativos dentro de um tesouro comum. Vivina procura a rua e os vizinhos. A primeira fita de que se recor da é O caso Dreyfus. A memória de d.Jovina. em escarpas que ela subiu a pé. acima de tudo. mas de suas lágrimas ao avistar. por sua vez. Reclus. Vivina chegou em casa e foi acordar o papai (*) lara Iavelberg(1944-1971). era o destaque da família. Após anos de resistência clandestina di tadu ra militar foi assassinada pela repressão em Salvador.. foi ela quem or ganizou a festa de centenário do pai. Aflige. uma mulher de ação. O que nos parece unidade é múltiplo. disso me lembro porque acordei e ouvi". Brites é mais familiar e intimista. os anarquistas passando com faixas na rua. em protesto pel o desaparecimento de Idalina. [. ficou mui to zangada. Se o passado irrompe no presente da família. Brites refere-se à beleza impressionante dejovina (que também nos impressionou) e é descrita. psicóloga. Brites: "Houve um baile n o Trianon e quando veio a notícia do armistício parou-se o baile e cantou-se o Hino Nacional. E admirava o autor de s eu livro de geografia. Se por acaso esquecemos. Para os alunos as lembranças são mais sólidas. ritual. pouco a pouco. Se nos traçarem um quadro onde esquecemos nossa atuação. de vozes. os visionários da cidade antiga que só existia em nós. Arnaldo. o negro Bahia lavava com aquela água os automóveis ali estacionados. As ve rsões alheias podem interferir. ouvir o que já não é audível. fazer um recon hecimento de suas necessidades. como posso me dizer só e pretender ver só com me us olhos o que vejo? Os pontos de vista dos que subiram comigo a rua tornam minh a evocação múltipla e profunda e alicerçam minhas visões. queremos sondálo e ele não devolve nosso rosto. como um chão que cede a nossos pés e nos dá a sensação de que nossos passos afundam. A que função servia na vi da daquelas pessoas? Temos que penetrar nas noções que as orientavam. O membro amado por todos terá suas palavras e gestos anotados e ve rá com surpresa. Então recomporemos o vaso e conheceremos se foi doméstico. ganha a sanção de uma testemunha: passa a ser uma lembrança coletiva. Podemos escutar. com degraus. descrevem nossa atuação e nos sentimos estranhos à narrativa. O mapa de nossa infância sofre contínuos retoques à medida que nos abrimos para outros depoimentos. Na época em que a conheci. mas também podem confundir nossas lembranças. minha rua pela mão de meu avô. Se faltamos nós mesmos entre as testemunhas a lembrança não se re aliza. de lugares . o relato de uma cena de nosso passado sem conseguir revivê-la.. As testemunhas que retificaram uma lembrança não conseguem sempre fazer-nos revivê-la. Passei por essas ruas levada por outras pessoas que me ensinaram a ver com seus olhos.. foi ele quem me ch amou a atenção sobre a bacia de pedra no alto da rua. quase sem margens. é um ponto complexo de convergência dos muitos plan os do nosso passado. Outros fatores interferem na memória.. uma repartição de sigual de apreço. O grup o de colegas de uma faculdade é. anos depois. Como transmitiríamos a nossos filhos o que foi a outra cidade . Deixamos de ser. Se refaço hoje o percurso. Aquela riquíssima gama de nuanças afetivas de pessoas. é preciso compreende r o sentido que o vaso tinha para o povo a quem pertenceu. Outros gestos mais nobres. duradouro. Os outros podem precisar. O grupo é suporte da memória se nos identificamos com ele efazemos nosso seu passado . Difícil transpor a infância e chegar à ju ventude. e que. surpresos. um vaso antigo. recordado flor por flor. pois tais fisionomias e caracteres são sua convivência de anos a fio. onde. aceitar nossa parte nele. a partir de fragmentos pequenos. onde há desigualdade de pontos de vista. TEMPO E MEMÓRIA Uma forte impressão que esse conjunto de lembranças nos deixa é a divisão do tempo que n elas se opera. é difíc il reter o caráter e a fisionomia de cada aluno. mas não nos enxergamos no fundo desse espelh o embaçado. Subi a pé. É preciso mais que cuidado e atenção com esses cacos. Quando o grupo é efêmero e logo se dispersa. . gestos de solidariedade que partiram dele são ciosamente guardados e agra decidos. Outras tantas vezes subi a rua com amigos que me chamaram a atenção para outros aspe ctos dela. comunicando e recebendo impressões para que nossas lembranças ganhem consistência.. os cavalos bebiam. não basta que os o utros testemunhem o que vivemos. em geral. As lembranças grupais se apóiam umas nas outras formando um sistema que subsiste enq uanto puder sobreviver a memória grupal. Palavras d e afeto. se não existem mais as velhas casas. é preciso desenrolar fios de meadas diversas. alterando e turvando uma impressão cristalina que go staríamos de guardar. pois ela é um pon to de encontro de vários caminhos. não raro se definindo por alguma maneira de atuar na sociedade que caracteriza sua geração. como o lugar que alguém ocupa na consideração de s eu grupo de convivência diária. constitui. portant o uma realidade social. soterrada embaixo da atual. de repente. os mu ros e os rios de outrora? Subindo a rua onde morei. É preciso mais: é preciso estar sempre confrontando . por um momento. na confluência da rua da Consolação com a avenida Dr. Brites. A infância é larga. podemos r econstruí-lo. pela primeira vez. seus menores atos lembrados e discutidos. as árvores. lembro-me de que ela se unia à avenida Rebouças por uma tr ansversal de calçadas altas. floral. na sua juventude.a um fio de Ariadne. Veja-se o jardim de d. como uma classe para o professor. I magine-se um arqueólogo querendo reconstituir. outras palavras mais doces do colega menos q uerido podem cair no esquecimento e ser dados como insignificantes pelo grupo. um a história e um passado comuns. O encontro de um amigo que se tenha sent ado nos mesmos degraus nos traz uma espécie de euforia e tranqüilidade. arbusto por arbusto. E quando a visita esperada se afasta ficamos estupefatos com a rapidez do desfecho e com o vazio q ue deixou depois de si. que recobre a pass agem dos anos e das estações. mas na minha vida não tev muita importância. a j . E d. escorregadio.se para a sala onde a velhinha medita. da torneira. No entanto. da perdiz. percebemos que a infância t erminou. Pode às vezes a pessoa fixar-se no ponto de vista de um certo ano de sua vida.". Um dia inteiro pode dividir-se em antes e depois de uma visita esp erada. suas testemunhas se dispersaram. O primeiro dia de aula. sem aparas. que gira sobre si m esmo em círculos iguais e cada vez mais rápidos sobre o sorvedouro. o começo da vida profissional. não há mais pios da rola. Ariosto confessa: "Sábado. A partir da idade madura. as frutas p erderam o gosto. Mas o tempo não passa. fico conversando com OS Outros velhinhos e assim vai passando o tempo. de que adianta ter sa udade.é o seu olhar dos quinze an os que está observando as irmãs menores. não: é o tempo que se precipita. que defendeu o casal Rosenberg.. fica sempre igu al. Jovina nos descreve a família 'As pequenas. A idade madura se encerra com a frase que resume a árdua criação dos filhos: "E assim eu criei toda essa cria". empregos. algum arranjo de última hora na casa.. Qu ando d. À medida que o tempo social se empobrece de aconteciment os. não é? Lembro da Revolução Cubana. Risoleta: a imagem de são Benedito. u ma flor colhida às pressas. A mim não ia acontecer nada mais. pode o tempo social. Alice: "A vida vai ficando. Não tem uma coisa para lembrar. são mais recordadas do que as que têm importância mais individual: formaturas. sofremos no dia-adia a inexorável divisão que nos constrange a deixar a casa pelo trabalho. como um chão infinito. d a panela. vai pondo a nu aquele tempo vazio. reflete o sr. lei o o jornal que o barbeiro traz. a formatura. Mais que os astros. a China é muito longe. domingo. o tempo é estático. formatura. Com o olhar perdido no pátio do asilo. se afina e esgarça... o casamento dividem nossa história em períodos.. Brites (com nove anos). mas o som da festa cede lugar aos ruídos domésticos da vassoura. Mas eu não gosto de passar esse tempo". Tempo que vence e muda os ser es mais resistentes: "Lavei todas as latas e comi todo o leite condensado que já e stava cozido pelo tempo. Mas.. a pobreza dos acontecimentos. A única coisa que me pode acontecer agora é ficar doente e morrer. aniversários. Clélia ( com sete). acompanha como espectador. Chama-nos a atenção com igual força a sucessão de etapas na memória que é toda dividida por marcos. A Guerra do Vietnã foi conseqüência da Guerra da Coréia. morte de um parente. desloca . a perda de uma pessoa amada. Nem sempre conseguimo s fixar tais divisões na data de um tempo exterior.. A idade madura com passo rápido. Tsé-tung. o tempo é.. pontos onde a significação da vida se concentra: mudança de casa ou de lugar. da codorna. ainda se ouvem as violas de são Bene dito no terreiro. Quando olhamos para trás podemos localizar os marcos do nosso tempo biográfico no te mpo solar decorrido. o fato deriva ao sabor das correntezas. finalmente. Rememoramos com vivacidade os pequenos incidentes antes de sua chegada. festas. nem tocam no Natal as flautas de bambu: "Eu tenho lembrado aquela flautinha.. reza e fica "burilando seu espírito". estão enterradas no Arraial. a monóton a sucessão das horas. A sucessão de etapas no trato do passad o é patente na memória de d. já passou". Quando as marés de nossa memória já roeram as vigas. a idade da contemplação e do sossego é expressa no último período da história de d." Quem disse essas palavras é a profes sora que liderou os colegas na luta salarial. não é?". davam-se muito bem" . Abel sobre a sua lembrança da vendinha de Pantojo. você entendeu. O território da juventude já é transposto com o passo mais desembaraçado. a estagnação da narrativa no sempre igual pode fazer-nos pensar num remanso da correnteza. E. Convém refletir sobre a divisão social do tempo que recobre as horas do relógio e impõe uma duração nova. Guiomar (com quatro). que fora de sua mãe e que nunca deixou a cozinha. Risoleta: quando ela diz dos seus "o resto estão todos enterrados lá no Arraial dos Sousas". Começa uma etapa de trabalho na casa dos patrões. meu bem. a gente lê notíc a. Você compreendeu. O tempo passou e o leite cozeu. em que os passos deslizam. o sr. nós é que estamos passando pelo tempo. A morte do marido sela o fim da juventude e de suas esperanças: "A gente esquece e procura esquecer". As festas de que to da a família participa. que costurou as bandeiras do comício de Prestes. casamento. como o Natal.. da d. Alguns chegaram a ver os fogos de artifício. de sua cidade. A noite pode ser um lapso de abandono e de medo para a criança. correndo sobre o mesmo leito a cidade de São Paulo -. o Quarto Centenári o de São Paulo. para cada um. E as festas de bairro. Em me ios diferentes ele não corre com a mesma exatidão. O operário mergulha na vertigem do tempo vazio em que sua vida se decompõe para que o objeto da indústria se integre e se componha. O ritmo do sono. como as de são Vito e de Nossa Senhora Aque ropita. Há meios em que a gente desconta a exatidão de outros. do s r. de recesso. Há o tempo do comércio.. em 1922. para o escolar. Nem o tempo da visita íntima é o da visita de cerimônia. para a dona de casa. O ciclo dia e noite é vivido por todos os grupos humanos mas tem.uventude pela maturidade e nos rouba do convívio mais caro.. do sistema nervoso são violentados para seguir os vetores desse tempo sem margens.. afrouxando e recus ando todo ritmo. o tempo da escola. "Lembro vagamente do bombardeio de Pequim. a travessia do Atlântico em avião . outros vo ltaram para casa desanimados com a chuva. d.. da buona gente do sr. como a passagem do com eta de Halley. As grandes festas são recordadas com detalhes ou menci onadas: o Centenário da Independência. não querendo saber do relógio. Gino Am leto Meneghetti.. de vazio. diferente do ano do lavrador. lançam o trabalhador num tempo mecânico. Amadeu... que ouvimos sempre retomados na fabulação de seus moradores. Há ciclos. A noite pode ser um florescimento do social. guarda esses episódios notáveis. homogêneo.. Lembre-se a sucessão das horas de trabalho penoso na oficina do sr. Das catástrofes. quando seu carro se incendiou a grande velocidade (muitas crianças nascidas na época receberam o nome de Elenice) e o naufrágio em que morreu o bispo. as campanhas de saneamento d os mata-mosquitos de Oswaldo Cruz. Esses anos têm ocasiões de plenitude. mensais e anuais. os corsos de Carnaval na avenida Paulista e na avenid a Rangel Pestana. Antônio cantaram para ele. Antônio. Há um quadro orientador do bom uso do tempo social.. de uma violenta monotonia se co mparadas com os feriados e as festas. do sr. as experiências de vôo de Santos Dumont. Brites e o sr. onde qualquer ponto pode ser o de origem. em que a pressa vale ouro. por assim dizer. para o doente ou o asilado. O rei foi visto passar em carro descob erto. a construção dos edifícios do centro. Cada geração tem. O tempo do comprador não é o do flanad or nas ruas. aprendido desde a primeira infância.. o cinema falado. Às vezes há deslizes na localização temporal de um acontecimento. as peripécias de um simpático ladrão. Amadeu que são. da vitória de Mao O COMPASSO SOCIAL DO TEMPO O tempo social absorve o tempo individual que se aproxima dele. a memória de acontecimentos que permanecem como ponto s de demarcação em sua história. com seus fogos. em que a pressa fica mal. O período de rever um amigo é diferente do de rever um parente chegado. de vazante. As jornadas operárias em t urnos alternados semanais afetam a coerência da vida da família. O caudal das lembranças. o primeiro rádio . para o solitário que vê as ru as se esvaziarem. O velho ritmo do estômago. não se deve ter pressa de rezar. para as relações afetuosas. Da crônica policial ficou o crime da mala. Ariosto. sua chuva a cântaros e a chegada do rei da Bélgica. É a força do tempo social marcado por pontos de orientação que transcendem nossa vontade e nos fazem ceder à con venção. Festas notáveis foram também o Congresso Eucarístico.. Impedem os projetos e a sedimentação das lembranças. Alice. se ntido diferente. no Brás e no Bexiga. é violentado. imprimiram-se na memória paulistana os desastres da Central do Bras il. o acidente na pista com a corredora francesa Hellé Nice. A gripe e spanhola de 18 abalou todas as vidas e rematou o período de fome e desemprego da G rande Guerra. roubam o passado e o futuro. Falhas de cronologia se dão também com os acontec imentos extraordinários da infância e da juventude: o primeiro bonde. que roubava dos ricos para dar aos pobres. Pertencem a esse quadro o ano litúrgico diferente do a no escolar. onde não há marcos de apoio. o tempo do escritório. A noite tem durações diferentes para o trabalhador braçal. na opinião unânime dos m emorialistas de origem humilde. Cada grupo vive diferentemente o tempo da família. o Dia da Vitória.. Há o tempo da igreja. uma intensificação do amor e da amizade que se expandem e brilham sem as peias da rotina diária. Mas. houve sempre um encontro face a face com o objeto original. Ouvi comentar. Ariosto). de que se ouviu falar. Risoleta). o grupo que assistiu ao fenômeno ajudou a reter o fato com seus come ntários e ao mesmo tempo o acrescentou de outras conotações. num experimento. e até anteriores a eles. pois a memória grupal é feita de memórias individuais. Um desejo de explicação atua sobre o presente e sobre o passado . Quando ele ouv iu falar. A força da evocação pode depender do grau de interação que envolve: eventos de repercussão r estrita diferem. hábitos. preconceit os e preferências do indivíduo. Com intervalos variados de tempo pedia-se sua reprodução. parece que tinha luz na cauda inteirinha. chegam a formar um quadro com certa harmonia. como guerras ou a proximidade do fim do mundo. dos que foram revividos por um grupo anos a fio . não vi com meus olhos ninguém se jogar" (sr.' E teve. porém em grau mais acelerado. enquanto a percepção original obr igar o sujeito a conter as distorções em certos limites porque ele viu o fenômeno. as lembranças já começam a modificá-la: experiências. A criança ouve com prazer os episódios da infância dos avós que. uns e outros sofrem de um processo de desfiguração. que também tem muito boa memória. afetos. descontín uos. a perda e a chegad a de novos membros são pontos de partida. apesar da grande distância temporal. como é o caso do sr. à força de serem evocados. Se a memória grupal pode sofre r os preconceitos e tendências do grupo. em Cambrid ge: a cada um mostrava-se um quadro e dava-se um conto para ler. Mas o quando. Será a memória individual mais fiel que a social? Sim. são descritas vagamente: "Houve uma época em que os jornais diziam que o mundo ia ac abar em fogo e revolução. um aspecto original acentuar-se. reuniu sujeitos no gabinete de psicologia. Já suas conseqüências mais remotas. Pode. o dia que a terra tremeu e o papa morreu. cheias de sentido e úteis para o presente. Quando Bartlett usou cadeias de sujeitos que reprodu ziam em série um relato. As transformações profundas por que passa a família. Era uma estrela bonita e a cauda dela pe gava longe. uma vez só. a perda de um meio estável em que as lembranças pudessem ser retomadas sempre pelos q ue as viveram. Bartlett. Mal termina a pe rcepção. no entanto. Os nossos memoriosos narram com fr eqüência fatos da vida dos avós. em detrimento de outros que se apagam. os deslocamentos dos grupos. apagados. Todo mundo saiu pra ver a e strela e meu pai dizia: 'Sinal no céu é sinal de guerra'. que quis aproximar tais presságios da morte de sua mãe. meu amigo Antônio. porque se um membro da série cai num erro de ident ificação. A memória pode percorrer um longo caminho de volta. São as mudanças. Abel: "Aqui no asilo só converso com meu companheiro de quarto. o como. sempre é possível um confronto e uma correção dos relatos individuais e a história salva-se de espelhar apenas os interesses e dist orções de cada um. Tenho . este se acentua à medida que se difunde. o vôo do Zeppelin. As pessoas faziam festas. seguindo a linha dos interesses. "Logo depois que minha mãe morreu. No caso em que o sujeito viu. não vai ter mais guerra. verificou nas sucessivas versões o mesmo tipo de mudança que a memória individual operava. Apareceu do lado do pôr-doso l. correntes que se cruzam no percurso. Ela corre o perigo de se desviar quando encontra obstáculos. se embriagavam com vinho.. integrando suas experiências nos esquemas pelos quais a pessoa norteia sua vida. Conhecemos a tendência da mente de remodelar toda experiênci a em categorias nítidas. muitos se jogavam do viaduto do Chá. Naturalmente. a desfiguração é mais rápida. Todo mundo fazia alarido: 'Olha a estrela de cauda. Voltando à passagem do cometa de Halley: ela é descrita em certos pormenores concret os pelo sujeito que viu. Ele sempre achou lacunas nas descrições e rel atos e uma tendência da memória a gravitar em torno de um certo eixo: em sua busca d e significado os sujeitos agregam o material numa configuração mais simples e de con teúdo mais claro. o mun do vai acabar se o sol bater na lua'. A elaboração com aumento de complexidade é rara: em geral se esquemati za mais do que se elabora. Risole ta. Atrás deles os caminhos se perdem. em sua memorização. à noitinha. lembro de uma estrela que apareceu e foi muito comentada. 'Mas a guerra acabou agora mesmo. O empenho do indivíduo em dar um sentido à sua biografia penetra as lembranças com um "desejo de explicação". bem ao gosto de d. entram na órbita de outras motivações. convenções vã ar a matéria da memória. remando contra a corrente do tempo. O mundo está sempre acabando" (d. ela nos disse.. Pensei que ia ter uma velhice espir itualmente mais feliz e a gente continua dando murros em ponta de faca. só agora fi quei voltada para o passado. ineficaz. d. É o que d. Risoleta superou as pessoas mais jovens: "Mamãe. você está muito atrasada. Ariosto vive na esperança: "Um dia vou deixar este asilo.] Estou com oitenta anos. que tinh a memória de anjo.'. [. O sr. teatro. Sempre r emei contra a corrente". Mas sei de muitas pessoas idosas que ficam sentidas quan do os moços falam assim: 'Naquele tempo.. a rapidez m e foge. diversa em cada pessoa. de uma festa no largo dos Curro s em que dançou o conde Raul de Carapebus". meus coetâneos? Essa expressão despertou também a curiosidade de Simone de Beauvoir: "Aragon no Bian che ou l'oubli notou a bizarrice dela. comentado com ele coisas passadas. aí está.3 Achamos pessi mista a visão de Simone. se ainda estou vivo e não tomei emprestada minha época a ninguém. Quando morrem as vozes dos avós.. O sr.] A vida é uma luta. estou sempre lutando. E de um temp o ainda mais antigo. [... Jovina atravessa nossa época como poucos: "Vivo o presentes o futuro. Guardar intacta no plano da ação essa esperança.. que um exame crítico mostra ser quase s em fundamento. Amadeu continua na ativa: "Sou aposentado mas ainda faço alguma coisa da quilo que eu sabia fazer. Alice procura explicar o que significa ser de seu tempo: "Se vou contar algum a coisa antiga pras minhas netas. onde ele se considerava um indivíduo inteiro. Desses exemplos nos fica a idéia de uma apreensão do tempo dependente da ação passada e da presente. falava dos bondes puxados a burro que subiam a rua Maria Antônia.. que "meu tempo foi o tempo que fui professora. Improdutivo. do meu tempo. "Se eu enxergasse".. A gente não sabe em que idade começa esse sentimento que vem da separação de classes. todo lugar em que haja alguma c oisa para aprender eu vou". Trabalho agora em a uxílio dos refugiados.vivente. Eu não me sinto velha. pois ela me pertence tanto quanto a outros. a São Paulo de sessenta anos atrás.. Meus ataques não são tão rápidos. vou morar com meu irmão e trabalhar. D. Curiosa é a expressão meu tempo usada pelos que recordam.. ainda posso fazer flores". Perdemos os guias que o percorreram e saberiam conduzir-nos em suas bifur cações e atalhos. os outros me vencem". que eu não pude nunca compreender.. Ainda vou ao cinema. naquele tempo!'. onde ela me internou. um vivo". que eu lembro ainda melhor.. "queria ir até os cem anos. o homem idoso aparece a si mesmo como um sobre. que t ive o convívio das crianças". que animam com seus projetos. pois não se aplica a todas as pessoas. Mas o sr. A época pertence aos homens mais jovens que nela se realizam por suas atividades. não tinha importância não .. agora.. D. Brites afirma. Na opinião do neto. afinal sou responsável pela casa. mas não acredito que haverá anistia. Sinto-me contentíssimo com a vida. desde menina. Abel confessa: "Passei pelo Vera Cruz. Na luta pela anistia aos presos políticos vou. é a quele onde ele concebe e executa suas empresas. mas ago ra os jogos de carta não são como antigamente. só o cérebro porque o coração está pifado [. sua época nos aparece como um caminho apagado na di stância.. Um tempo que fosse abstrato e a-social nunc . O tempo que o homem considera como seu. u m inferno de loucos e alcoólatras. Antônio reflete melancolicamente sobre seu declínio físico: "Tenho o cérebro bom. . o sr. Qual é o meu tempo. É por esta razão que ele se volta tão prazerosamente para o passado: é o tempo que perte nceu a ele. digo: 'Foi naquele tempo que Jes us andava no mundo. a própria essência da coragem. D. categórica.". mas sou um homem inteiro ainda".. E ainda move os colegas de fábrica para auxiliar as cr ianças da Casa André Luís. Brites lamenta com a perda de sua irmã mais velha: "Minha irmã Preciosa. E a pessoa idosa não p ode recordar". me sinto mocinha!" Viver o tempo parece de fato para ela uma experiência cada vez mais translúcida.] Eu jogava bem. ah. [Ela quer dizer na entrevista.] A vida é o presente. Vivo ainda esperando algo de bom". para Simone Weil.. Apesar de tudo o que tem sofrido. Você sabe que a vovó está duzentos anos na sua frente?". Este sempre vem da infância: "A injustiça social me calou sempre. É esse. Uma larga parente la de tios. credos políticos e religiosos opos tos. Há episódios antigos que todos gostam de repetir. colheita eram ciclos da faina agrícola mas também marcavam as festas. seu próprio culto. suas lembranças guardam vínculos difíceis de separar. Trocando opiniões. Qualidades e defeitos são afirmados com satisfação: "T emos mão-aberta em nossa família". Todos os acontecimentos de fora chegam até a c riança filtrados e interpretados pelos parentes. Ago ra não. A família. parentes e agr egados acompanhavam a criança desde o berço. D. Enfim. Jovina: "Quando vejo aquele fundo do largo do Arouche lembro tudo isso . aferrando-se aos elos que os liga vam. linguagem. avós lendários ou vindos de país remoto que imprimem a t odos os seus um traço distintivo. seus cantos. lembranças e segredos que não passam das par edes domésticas. afastar um membro de si. família. religião comun gavam no mesmo espírito. Se cada família não tem mais. mes mo comportando-se como quem o esqueceu. ficam evocando seus prime iros anos. encontrará uma atm osfera à qual deve adaptar-se.a poderia abarcar lembranças e não constituiria a natureza humana. que devia entrar. Na terra se cultivavam o alimento e a memória dos vivos e m ortos. você está fechada dentro de casa e cata pelo ar tudo quanto é anúncio. das oposições ext eriores pode a família tirar força para o estreitamento de seus vínculos. A família que agora conhecemos é restrita ao grupo conjugal e aos filhos. uma unidade e coesão que se defende o quanto pode da mudança. pois a atuação de um parente parece de finir a natureza íntima da família. O adolescente atual não alcança compreender a ansiedade dos pais quando ele se afast a e dirá: "Para que me querem em casa se eu me tranco no quarto para ler ou ouvir música?". Do quadro do Floriano na sala de visita. Vovô me chamava de minha mulata quando . tempo represado e cheio de conteúdo. Quanto à distância física. poda. cuja fisionomia se procur a reconhecer nos mais jovens.em estrito senso . sentimentos. em geral p oucos. Essa pouca presença. roupas. às vezes. não esquece os membros q ue a deixaram e procura deter seu afastamento. sempre espera a volta do filho pródigo. uma maneira de ser. Falta-lhe o envolvimento da grande família de outr ora em que o bando de primos fazia as vezes de irmãos. A história da família é fascinante para a criança. não se pode negar que t enha um espírito seu. ou não. e onde tios. onde a perda de um de seus pouco s apoios é absoluta e irremediável. agregados e protegidos. é. por exemplo. Uma crença religiosa terá o peso que ela lhe conferir e pode. dialogand o sobre tudo. como na Roma antiga. inclui cada vez menos parentes. co- mo fez d. que ouvimos . Tocamos sem querer na história. Você não tem m is uma casa fechada". A família desenraizada nos centros urbanos ainda possui uma força de coesão capaz de i ntegrar pessoas de diferentes classes econômicas. o rejuvenescimento da comunidade. Chuvas. um fator de aproximação: o membro dista te pode tornar-se uma figura mítica. sementeiras. observa Halbwachs. modelos. preces. Essa atmosfera própria.r ema contra a maré de uma sociedade concorrencial. primos. Podemos reconstruir um pe ríodo a partir desse episódio. fica sendo uma atitude-símbolo. Esse enra izamento num solo comum transcende o sentimento individual. ao encontrar filhos e sobrinhos. Terra. Brites se admira: "Minha casa tinha portão fechado. LEMBRANÇAS DE FAMÍLIA As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um de seus membros e co nstituem uma memória ao mesmo tempo una e diferenciada. amada de forma especial. nos quadros sociais do passado: moradias. nós vivíamos a li dentro e entrava só quem nossa mãe achava que podia entrar. São os velhos que. Reconstituir o epi sódio é transmitir a moral do grupo e inspirar os menores. Quando a família estaciona e já não dispõe de meios para crescer. E tem suas figuras exemplares. que forma a substância da memória. Os vínculos podem pe rsistir mesmo quando se desagregou o núcleo onde sua história teve origem. Quem penetra um grupo familiar. que nela ent errava seus mortos e erigia o altar dos deuses lares. padrinhos rodeava de tal maneira o núcleo conjugal que ele se sentia parte de um todo maior. através do matrimônio. quase ausência do filho sob o mesmo teto já traz um certo sentimento de não estar só e segurança à tríade familiar. costumes. Na Roma antiga a terra pertencia para sempre à família que a cultivava. Ou: "Somos distraídos e impulsivos". Hoje se impõem como mediações também os m eios de comunicação. essa força de coesão lhe vêm do fato de que ela represent a uma mediação entre a criança e o mundo. Nos moldes de hoje a família . o impacto da figura viv a vai-se apagando. Entre elas. Vai-se formando de cada um . outros se apagam conforme as condições da vida presente. o João do Pedro. as moças bonitas . As salas onde a jovem Risoleta só pode permanecer de pé. e os bons vizinhos prolongavam o carinho doméstico. se patrão. nenhuma comunidade consegue como a família valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa. Guardarei apenas a última. Meu pai me ofereceu de si m uitas imagens até sua morte.. com regras de desempenho que devem ser seguidas. certas lembranças se renovam e em certos períodos dão uma quantidade inesperada d e folhas novas. dos julgamentos que somo s capazes de fazer sobre seu tempo. Temos de um parente a imagem prescrita pela sociedade com seus respectivos papéis: o irmão. que relatamos como nossas. se solteiro. Os parentes se af astando e morrendo. a de suas horas derradeiras? Ou recuarei no tempo em busca de imagem mais juvenil? Vejo que sua figura não ces sa de evoluir: ela caminha ao meu lado e se transforma comigo. em nós. A imagem de nosso pai caminha conosco através da vida. estão ao alcance de nossa mão no relicário transparente da família. Exprimindo essa duplicidade há um ditado francês: "Joie des rues. Muitas lembranças. O ambiente podia ser-lhe propício ou a dverso (então ela é trancada na despensa.eu sentava no colo dele e enchia sua barba de trancinhas. tornar-se casado. mes . as chaves no cós da saia. se filho.uma porcelana. tornar-se pai. A face que ele mostra a outros grupos não é a mesma que se expõe ao julgamento con creto dos seus. ou vai sendo avivada. medindo tudo. mas existem as ruas c heias de cantigas e brincadeiras. Segundo Halbwachs. dinheiro. ao grupo familiar. chamando para si a seiva dos galhos originais . a comunidade diferenci a o indivíduo. Na verdade. mas ta mbém nossos. as testemunhas desaparecendo. E se desaparecessem todos os meus parentes? Durante muito tempo conservaria. fotos. E nós temos o ambiente descrito por d ois pontos de vista simultâneos. nossos parentes. A menina Alice com seu avental engomado observa as casas senhoriais dos patrões. Traços novos aflora m. longamente. Em cada fase da vida vão se alterando de leve os traços do parente em nos sa lembrança. as lacuna s crescem. Mas o vínculo que o a ta à sua família é irreversível: será sempre o filho da Antônia. dos livros que l ia. dos amigos que freqüentava. onde recebe o prato de comida). retocada. o pai. prestíg io. naturalizar-se finlandês. mergu lham num passado anterior a nosso nascimento e nos foram contadas tantas vezes q ue as incorporamos ao nosso cabedal. A imagem social já fixada pode ser mi nada pela escavação de uma experiência pessoal mais rica e profunda. tornar-se criado. As ruas pertenciam de fato às crianças pobres que não tinham jardim. contam-se feitos dos avós. sempre em reconstrução. como dizem. O papagaio gritava: Se u Capitão. Ela empalidece se não for revivida por conversas. Nos velhos retratos. Não é raro que as duas concepções se frontem e uma faça ver as deficiências da outra. a s donas de batas entremeadas com rendas valencianas e preguinhas. depoimentos de tios e avós. Podemos escolher dele uma f isionomia e conservá-la no decurso do tempo. Um homem pode mudar de país. se leigo. de seu meio profissional. pode tornar-se padre. em nenhum outro lugar da vida social a convenção importa menos. tal força de coesão? Em nenhum outro espaço social o l ugar do indivíduo é tão fortemente destinado. De onde vem. Apesar dessa fixidez de destino nas relações de parentesco. como negra. a mãe. dos fatos históricos que v iveu. o "meu Fran isco" para a mãe. Se. de que acabamos "nos lembrando". que na estação da seca se imobilizam e brotam nas primeiras chu vas. Tal como as plantas. leituras de cartas. J ulgamos um parente pelo que ele é na vida diária e não por seu status.. são as mesmas em que o jovem Abel via conviver seus parentes. Seu quarti nho de telha-vã contrasta com os palácios onde sua mãe trabalha. Examinamos criticamente. se brasileiro .a enxertia social não deixa que as lembranças se atrofiem. a imagem empalidece. nossas primeiras lembrança s não são nossas. capaz de abranger mudanças de comport amento que parecem inexplicáveis aos de fora. uma imagem complexa e rica de nuanças. Como planta que se fortalece com a enxertia . Tudo isso nos ajuda a constituir sua figura. não há lugar onde a personalidade tenha maior relevo. como se dizia .outros ramos se nu trem de suas raízes e frutificam com vigor renovado. vi-vi-vi-vi-viva a República!". do uleur de la maison" ou o acre ditado brasileiro: "Quem não te conhece que te compr e".na janela. E outra ima gem mais espontânea e sensível. "Minha mãe era uma pe ssoa tranqüila que sabia acomodar tudo. em 1922. miúda. tudo para vender e ajudar meu pai criar os filhos. [.] Uma mãe doente. Ela era calada. D." O sr. olho s castanhos. que se vê ainda engatinhando: "L embro que eu arrastava meu corpo todo no pedregulho. "Em 1919 isso foi um escândalo. muito trabalho. A figura materna pode ser descrita por traços físicos ou morais. Minha mãe lavava roupa pra fora. mas era bon itinha. Ele era homem doente. O sr. [. Jovina evoca a trabalheira de sua mãe. emerge às vezes de angustiantes cenas domésticas. mas minha mãe era muito atenciosa com os filhos.. bondade. Minha mãe era carinhosa com os filhos. outras pessoas que conheceram nossos que ridos e para quem seus nomes ainda queiram dizer alguma coisa? E essas pessoas não poderiam contar. Tudo isso amadurece a gente...] Ela fazia as pagnottas redondas e quando a gente tinha fome el a cortava no braço uma fatia. Meu pai e ra mais severo que ela: ela também respeitava muito ele".. por acaso. A gente comia com prazer". de chamá-los de vez em quando. [...." É através de seu trabalho que d. mas meu pa i era violento nos castigos. de milho. Antônio. clara. mas da dispersão do grupo onde viveram e que senti a necessidade de nomeálos. se molhando e fazendo tudo pra e u não me molhar". ajudando a criar os netos. muitos filhos. Abel descreve em rápidos traços a cabeleira negra de sua mãe. o ciúme que tinha de seus namorados. contava histórias para a gente dormir.. [. nunca apanhamos dela. Risoleta medita sobre o produto da faina de sua mãe sendo vendido em pacotes para pessoas inconscientes. fraquinha. a culpa não é do tempo.pensador. Conosco também mamãe não criava problemas: nunca sentimos sua predileção por um filho... cabelos pretos. Ela não botou vela na mão dele. ainda. Sempre ao lado da filh a. Porque elas para defenderem as filhas não têm caridade com as filhas dos outros. ou mesmo maiorzinha é difícil". suas lembranças de episódios familiares. o mimo que dela recebeu na juventude.. dentro de casa. que "era franzina.'' A mãe do sr.. tinha muito sentimento". Estendendo aqueles panos alvos na grama.. não mandou encomendar o corpo nem vir padres para o e nterro.] Mamãe era nosso esteio e a falta desse esteio foi terrív el.] Não foram os livros que me formaram: foram meu pai. remeto novamente à sua leitura. tachadas de goiabada que vendia em caixinhas.. Era muito calma. reg ando o jardim. minha mãe. Ela pôs óculos e echarpe. "Minha mãe era um pouco mais alta que meu pai. Mas. quieta... à testa da casa e da criação dos filho s quando o marido se ausentava: "Mamãe era profundamente boa". D. Ariosto é evocada no seu trabalho caseiro: acendendo o fogão a lenha." Eis com o a vê a outra filha.] Meu pai tinha sua turma. as lembranças giram so bretudo em torno da alimentação: "No fundo do quintal assava pão num forno redondinho de tijolos. muito clara. gostava mais do vinhozinho." Lembra o sr. coitada. Essa mãe enérgica. se todos os parentes se extinguissem não encontraríamos. A mãe está lá dentro. todo mundo respeita. algum episódio de suas vidas? Se nossos mortos recuam. já não podia mais trabalhar.] Minha mãe era muito inteligente. concentrada. Amadeu descreve sua mãe. A gente às vezes desconfiava qu e ela estava fazendo uma oração quando estava sentada. que não avaliam o sacrifício ali contido. [. Aí então minha mãe me socorria". que jogava o lampião na rua quando se reuniam jogadores de baralho em sua casa. trabal har com uma criança de três anos. Um exemplo da complexidade da lembrança é o da sua morte enquanto preparava farinha de milho. se a distância se alon ga entre nós. e minha mãe. livre. m . mais escura que meu pai. lá à moda dela. Mas. ou mesmo através do s eu trabalho: "Minha mãe era carinhosa comigo. contando histórias. e era católica. [.] Eu dizia a minhas irmãs: 'Deus me livre do amor materno das outras mãe s'. Cozinhava muito bem doce de laranja. o excesso de proteção: "Lembr o que fui com minha mãe..cladas à minha. doente. de carro aberto. gorda. com sal e azeite estrangeiro. à festa do Centenário. Alice evoca sua dedicação. mas se moviment ava muito. Era morena escura. mas era. mas a vida era muito sofrida. Chovia pra burro. dessa famfiia do s Penteado de olho azul.. Risoleta fala da mãe: "Minha mãe fazia farinha de mandi oca. o modo de vida de casa muito austero. "Ficou doente de desgaste . firmeza são traços descritos do caráter dessa matrona que não admitiu missa de sétimo dia para o marido. poi s a considero o ponto alto de toda a memória que colhi. "Eu estava sempre na saia de minha mãe. [. Tolerância. d. cortava os tomatinhos e punha no pão. dançando com os filhos. Não vou repetir agora aquela passagem. Jovina e o sr. no Rio. mãe. torcia pelos rebeldes do Forte. O sr. chefe itinerante de um lar às vezes faminto. acudindo a farinha lá fora. Minha avó era enérgica. Tinha sempre uma quadrinha pronta". Alice "era meio bravinha. louco pelos netos. Conheci bem a mãe de minha mãe. recorda d. O sr. e d. Amadeu comove-se com as lides do alfaiate que trabalha va catorze. que er a cega". cantador. D. avós. Alice. Salvo em d. Ariosto. mais que de meu p ai.. [. Abel. que a olhava por cima dos óculos.exendo o tacho no fogaréu. que acabou de criar todos nós. Alice.seria preciso not ar que a figura do avô e da avó pode ter um relevo tão grande quanto o dos pais. Jovina. ele s não conheceram os avós. Antônio evoca o pai com ressentimento. Vovó era muito engraçada. impulsivo e idealista. as outras mulheres descrevem a figura paterna como central. penteava. sem perder contudo a verve maliciosa. pois. era muito seca com os netos". Na narração da filha misturam-se os planos de seu trabalho e de sua morte. Creio que isso se dê pela presença mais concreta da mãe na vida do lar. os panos da farinha e os lençóis da agonizante. como s e diz. dando beijus para os filhos. Uma ocasião ele me bateu tanto que quase me mato u". Brites não recorda tanto o avô paterno quanto a irmã é porque o perdeu muito nova. que ficaram na Europa. Chora de rir quando a neta senta sobre as cartas do jogo de baralho.. Essa figura foi real mente o eixo que norteou a vida de d. octogenária. O sr. que "gostava empurrando". aninha as c rianças no colo para contar histórias: "Ela prendia o cabelo só com pente: a gente tir ava o pente da cabeça de vovó e penteava. o pintor que o levava p ela mão quando ia vender seus quadros. A avó de d. o sr. O bondoso e sensível irmão mais velho assume então o papel de pai. onde o contato corporal mãe-cri ança constitui as primeiras relações afetivas. "Ela tomava conta da crian w çada porque minha tia também trabalhava. irmãos.pai. "Meu pai e minha avó foram escravos." Mais adiante: "Todas as pess oas daquela ruazinha sem saída trabalhavam na fábrica. que viveu só com a mãe. as barbas descend o até o peito. Risoleta. Aparece ainda na janela apostrofando Rui Barbosa de baderneiro-mor e discutindo com o genro. a velhice vai tornar complacente com os últimos ne tos. Teodora ia trabalhando e morrendo. que quando queria só falava em versos. vendidos como se vende porco.. queria que cada um fizesse suas coisas mas n unca vi bater em ninguém". a avó faz as vezes de mãe quando lhe falece a mãe.. a mais vividamente recordada. Abel não conheceu seu pai.] O que eu mais gostava em minha vida era es tar na casa do vovô. quinze horas por dia e que faleceu em 1925 de uma úlcera no estômago. Quando minha mãe morreu ficamos precisando de afeto e ela era uma velhinha afetuosa!". ela gostava da gente empurrando. * * * A figura paterna é alvo de uma apreensão de traços espirituais. Entre os parentes evocados . O silên cio dos narradores sobre os avós é devido à quebra das raízes familiares pela imigração. como ac ontece com a figura materna. Risoleta. . Sua p ersonalidade se delineia na infância e permanece assim. Quando tinham s orte caíam nas mãos de um sinhô que não judiava deles. Eu ficava com minha avó. Para d. tanto que sentia angústia na hora de me despedir. tios e primos . D. Sua memór ia política detém-se no avô-capitão. Marce lina Maria da Conceição. Se d.. Como o sr. Mas. tinha ímpetos de defender a mãe mas ai nda não tinha forças para enfrentá-lo: "Eu gostava mesmo é de minha mãe. Brites fugia para a casa de seus avós: "Gostava mais de lá do que da minha casa. Sobre irmãos é preciso notar que na maioria das vezes são fixados na infância e que depo is sua figura empalidece e apenas sobrevive no menino ou menina que foram. também. não físicos. Para d. curador. bacharel que morreu de hemoptise antes dele nasce r. o avô é a grande figura da infância. mas guarda ao pé de seu leito a cadeirinha que ganhou dele há setenta anos. Ariosto lembra com ternura o mestre de caligrafia. Risoleta descreve graciosamente esse pai inspirado. a avó faz as veze s de mãe enquanto a mãe trabalha. falava p ouco mas com dose certa e com veneno certo.. Essa avó seca. para d. quando tinha que voltar". viu seu boné de batalha furado por um tiro: "Criatura boníssima e alegre. Brites e d. Mas também nunca odiei meu pai. Jovina pouco recorda do avô de Itapira. como minha mãe. página viva da história. D. do seu sapato voltando. o marido abnegado . Na constituição da memória familiar são importantes os contatos com Outros grupos. quando desperta. a aceitação aparente. formando vínculos estreitos com a vizinhança. batia." "E antigamente. eu estava internado lá. a vizinha pode ter acudido antes da mãe... a gente tinha que correr.. D. Quando a criança sentou-se chorando na soleira da porta. Abel. no asilo. meu Deus?!''. Os amigos e parentes que se perderam aparecem fixados na sua idade juvenil ou no gesto de amizade que fizeram um dia. tinha o Zé Cabelo. "Acho que é você. Brites lembra a vizinha que amamentou sua irmã: "Essas coisas bonitas que há! D. Esse avô jogador que chora seus pecados aos pés da cama do menino é a única certeza de sua vida. espera a té tarde o barulho. como a comadre Bianca d e d. na primei ra comunhão dos meninos. o sr. suas le mbranças brotam de um e outro. o Vera Cruz era um hospital. quando o senhor era pequeno. Abel não dorme sem pedir-lhe a bênção. o que esconjura as sombras que hão de vir: "Vô. Com a mudança de bairro uma das correntes se ex tinguirá e ele sofrerá apenas a ação da corrente familiar cuja influência se tornará então ma s forte. correr. Amadeu. ela aparecia com um prato festivo. São duas correntes de pensamento coletivo que convergem. Até hoje. D. E a minha mesa era a última. d. Os amigos são insub stituíveis. que com uma bofetada o arrancou d . porque eu sou seu avô. Nossa família era como se fosse a dela. Dorme até três anos na sua cama. De pois de muitos anos de perda de contato por mudanças de bairro. oferecendo estabilidade à lembrança. d. Jovina. aquele que o criou. plop. o amigo desprendido. a criança sente-se incluída no grupo familiar e no da vizinhança. Alice agradece sua amiga de oficina. O último filho do sr.cabeça. não se repetem no curso da existência. dada a íntima vivência com ambos. e só depois que o avô o abençoa. mesclada às vozes familiares a voz da vizinha receitando um xarope. eu sonhei outra vez. Depois da noite que ela passou tossindo. Muitas lembranças devem-se às meias paredes das casas populares. Risoleta evocam o companheiro morto de uma forma pungente. há o proc esso de estereotipia. o avô aparece como herói. d. permanece a gratidão e as famílias se visitam. Ano após ano. D. a mulher corajosa. mas não uma diminuição da carência dos seres amados. Jovina nega. ouve." "Mas é lógico que era seu avô. As lembranças que colhemos estão permeadas de bons vizinhos. Cecília amamentou a menina e mamãe se sentia muito grata a essa vizinha". dos quatro em diante no seu quarto. Se podemos reagrupar em nossa subjetividade lembranças de espaços sociais diferentes. quem é que gosta mais do senhor?". o crestole com mel. quando revive em seu filho menor. na hora do saci e da mula-sem. correr pulando. Notável vizinha é lembrada pelo sr. o silêncio dos idos os podem traduzir o cansaço da luta. Alice: "Essa vizinha querida tomou parte nas doenças. aniversários. O sr. Abel pergunta: "Pai. Por que essa tendência à exemplaridade das figuras evocadas? Se. Uma f amília pode ter morado longos anos num mesmo bairro. meu filho. Deles se escolhe uma face ideal que se per petua: o irmão travesso. de outro as restrições e empobrecimento que pesam sobre a velh ice tornam inestimável o que se perdeu. e quando abria. Alice. tinha uma descida com um portão enorme que se batia." Ainda hoje. em tudo ela corria para dar uma mãozinha pra gente e se preocupava com o estudo das crianças". Ariosto. podemos também sobrep or imagens do mesmo espaço social. ela reaparece na v elhice e sua reaparição é evocada com ternura. batia. no Brás. Por isso. Se a avó aparece brevem ente em sua lembrança.se a ter uma vida que não seja a de J ovina-Samuel: "Não posso reviver uma vida que terminou com ele".A figura do avô caminha através da vida do sr. Os sucessos escolares do menino são acompanhados com entusiasmo pelos vizinhos. casamentos da família.. Jovina lembra a troca de notícias de janela a janela na mesma calçada da alameda Barros com as vibrantes meninas Rangel Pestana. sustentando o acontecimento . desde o momento em que providen cia seu aleitamento até seus últimos anos. Ida Malavoglia. qu ase setenta anos passados. que fundem os ruídos e vozes de duas famílias. quem é que gostava mais do senhor?" "Era meu avô. piop. como se ela a estivesse escutando. era um lugar horro roso. o sábio que fala todas as línguas. com o joelho machucado. E eu dizia: quem me pôs aqui. de um lado. na hora do urutau-au-au. . na gripe de 18: "Foi então que vi passar no céu uma calécia. os indígenas perdem rapida mente o senso das tradições. mas é aquela em que vivemos os momentos mais importantes da in fância. dizem.. todos. se eu comprava Sissi você queria gasosa. para a direção de onde o vento quente sopra sobre seu país. a primavera. a água. ao Norte são atribuídos o vento. Esses depoimentos são relatos de solidão. Virei para minha mãe e disse: 'Olhem que carro de morto bonito está pass ando no céu com seis cavalos!'. um wartwut.' "Mas isso não era pra ir embora.. A casa materna é uma presença constante nas autobiografias. vento quente. e tal.. ao Oeste. Lali?". As regiões superiores são irisadas como os jogos da luz nas nuvens. "Não vejo meus amigos de juventude. "É. quem me visita é a sobrinha que morou conosco quando pequena. O Sul é ver melho porque é a região do verão e do fogo que é vermelho. as r egiões inferiores são negras como as profundezas da terra. ao Leste. A CASA. E você: 'Vai quando quiser... a terra. alijado do trabalho. Nem sempre é a primeira ca sa que se conheceu. Nas tribos australianas essa relação entre o clã e s eu espaço é tão íntima que: "Por exemplo. tomam seu rumo e. Ela é o centro geométrico do mundo. O Norte é amarelo porque. Tenho uma pri ma doceira.'. Os filhos partem. a Lúcia. Ela é ocupada e não pode vir toda semana mas quando ela vem fico contente por um mês" (sr. a Delu. a cidade cresce a partir dela. e.. ainda que ligados afetivamente aos pais. o sopro. ao Sul. Quanto ao Meio. o Oeste é azul por causa da luz azul que nós vemos quando o sol se deita. Eu chamo este asilo de gaiolão de ouro. Se as pessoas que se hospe dara na minha casa desde os tempos de minha mãe e de meu pai me convidassem uma vez por ano para ir à casa delas eu tinha onde ir o ano inteirinho. as geadas qu e amadurecem as sementes e perfazem o ano." Afastado de todos os que estimou. Os coetâneos vão morrendo. e chamaram o médico". a vida. o fogo e o verão. Não conheço mais ninguém. as brisas úmidas da primaver a. em todas as . você foi. não tanto co mo antigamente porque sabem que eu estou boa. as sementes da terra. Gaiol de porta aberta. todos já morreram. todos brancos. Lévi-Strauss assinala o que acontece aos bororo quando obrigados a abandonar sua a ldeia circular por casas paralelas: "Desorientados em relação aos pontos cardeais. desapareceu is so" (d. Ariosto). Era u m carro bonito com seis ou Oito cavalos. O Leste é branco porque esta é a cor do dia. quando eu não punha farinha.. Risoleta). Alice). representante de todas as regiões. Então uma vizinha que estava lá me deu uma bofetada. o inverno. eu não tenho mais c ondições de viver lá. Brites).o delírio e da morte. A cada região é atribuída uma cor que a c aracteriza. internado num hospital ps iquiátrico e agora num asilo. meus amigos. DENTRO E FORA OS ESPAÇOS DA MEMÓRIA O sistema zufii de conhecimento do universo divide o espaço em sete regiões: "Para f alar apenas das estações e elementos. como estação. O sr. se dispersam geograficamente. no levantar e pôr-do-sol a luz é amarela. Essa repartição do mundo é a mesma dos clãs no interior da aldeia. ou o ar. a desaj eitada mas suave maneira de apagar os erros passados: "Mas por que você foi embora. é enterrado com a cabeça voltada um pouco para o oeste do Norte. um equívoco! Você brigava muito comigo. queria que eu pusesse farinha. p rivados do plano que fornece um argumento ao seu saber. como se seus sistemas social e religioso (veremos que são indissociáveis) fossem complicados demais para dispensar o esquema que o plano da aldeia tornava patente e cujos contornos os seus gestos cotidianos refrescavam perpetuamente' '. o afastamento de parentes e am igos é visível na etapa final das lembranças: "Os meus parentes me visitam. Abel conta à sua maneira a comovedora visita de sua esposa no asilo. ele tem de uma só vez todas as cores". Mas não. que vem me visitar" (d. cada parte dopueblo t em a cor correspondente à sua região. umbigo do mundo. Vi como se fosse uma coi sa natural. Me telefonam quando é alguma data" ( d. ele pergunta: "Voltar pra casa? Não. fugir para quê? Para onde eu vou?". E eu dizia: 'Um dia eu vou embora!'. "Dos meus parentes... "Meus irmãos. não tem mais ninguém. Mas. Seu espaço nos parece enorme. Na frente da casa passavam os vendedores de castanha. [. do quintal . me us pais eram de família pobre mas gostavam bastante de quintal. As mulheres sentavam-se ali para costurar e tricotar. Amadeu). duas do quarto de meus pais. o quintal para a criança e o porão. guardaram essa possibilidade de re montar às fontes. em geral os artistas. Jovina). do mesmo modo que creio na faculdade de observação sempre muito desenvolvida e exat a das crianças. mixirica. o lado fasto onde s enta-se mamãe e é agradável estar. Ele descreve os aposentos que percorria com sua irmãzin ha: "Ao lado da porta havia uma grande treliça de madeira pela qual nos comunicávamo s diretamente com a rua e com o ar livre. dos dormitórios. modesta. O espaço que ela vivencia. direções. . mas tinha quintal. as ruas eram gostosas de se ver. vai ser disperso e dividido. A maior parte dos homens feitos.. me mudei para a rua Itatiaia. ameixa e abacate" (sr. que era muito engraçado e vendia o produto dele cantando. ir recuperável talvez pelo presente. portas e desvãos. cantos. além de grande capacidade de agradar. que se notabilizaram por causa de ssa faculdade. o vão embaixo da escada é uma caverna para os dias de chuva. E o pizzaiolo c om latas enormes. e. como a entrada de Frederico ii em Saxe e na Silésia ou o tremor de te rra em Lisboa. pé-direito alto. Algumas pessoas. Fixamos a casa com as dimensões que ela teve para nós e causa espanto a redução q ue sofre quando vamos revê-la com os olhos de adulto. pela praça e mais tarde ainda pelos grandes eventos políticos que abalaram sua cidade. "Com doze [anos]. lembro da sala. segundo meu modo de pensar. é deixar para trás lembranças que precisam desse ambiente para reviver. "Nossa casa era no largo Treze de Maio. nem havia a preocupação de isolamento.. torna o lado nefasto onde eu recuso comida e choramingo. de um pedaço de rua. cantarolando. em geral a casa da infânc ia ou a primeira casa dos recém-casados onde começou uma nova vida. casa fininha com sete metros de frente. Alguns detalhes chamam a atenção: o número de janelas que dão para a frente. a cozinheira aí descascava seus legumes.. As cri anças iam atrás" (sr. Para enxergar as coisas nas suas antigas proporções.7 Só mais tarde ele se interessou pela rua. confundimos seguidamente o que escutamos dos Outros co m nossas próprias lembranças". Goethe confessa: "Quando queremos nos recordar do que nos aconteceu nos primeiro s tempos de nossa infância. Só quando aquele primeiro lar já não exis te é que o adulto compreende que ele se situava num contexto que o transcendia. é que esses homens têm em ge ral frescor. como hoje. Essa casa foi derrubada muitos anos depois" (d. A janela que dá para um estreito canteiro abre-se para um jardim de sonho. que são também uma herança de sua infância". cheio de possibilida des de aventura. nada mais fizeram. mas 150 d e fundo. heterogêneo. às vezes feroz.] A nossa casa era o 138. como posso tornar. habitado por inf luências mágicas. A mesa da família possui um lado onde é bom comer. janelas que dão para a rua são encarecidas e. Então.me de novo criança? A pergunta já está no Evan gelho. o que poderá prová-lo. de bairro. a nossa tinha quintal com pé de laranja. [. Charles Dickens observa em David Copperfield: "Creio que a memória da maioria dos homens guarda estampados os dias da meninice mais do que geralmente se acredita. onde meu avô mandava a criançada pegar c aiapiá pra pôr na pinga" (sr.. que dava para um ribeirão. a mudança pode ter um carát er de ruptura e abandono. Para a criança que ainda não se relacionou com o mundo mais amplo. Tudo o que ela investiu dos primeiros afetos vai ser d eixado para trás. sabe onde é? Era a avenida Angélica. vivacidade e serenidade.6 O espaço da primeira infância pode não transpor os limites da casa materna. no lado de lá.. ist o dava às ruas na bela estação um aspecto meridional". como o dos primitivos. Esta espécie de caixa era habitual em mu itas casas. que mudar é perder uma parte de si mesmo. Tudo é tão pen etrado de afetos. através da grade falava-se de uma casa vizinha à outra. "A casa dava para a rua. Há sempre uma casa privilegiada que podemos descrever bem.. senão conservá-la em v ez de adquiri-la na sua madureza. Abel). em que altos muros mantêm a pr ivacidade e escondem a fachada. móveis. n aturalmente. lá nós tínhamos uma cabr a para dar leite. A criança muito pequena pode ignorar que seu lar pertence a um mundo mais vasto.] A casa era simples. "Naquela época faziam casas bem grandes. Ariosto). é mítico. com quatro janelas de frente: duas da sa la de visita. lá no fundão. o retrato do tio-avô que me olha fixo. onde tudo é possível. Ariosto. "Quanta estri pulia a gente inventava! Pulávamos corda. de casinha. nunca me machuquei porque a rua não tinha carros. Há pouco tempo ainda entrei na casa.] O porão era nosso reino: lá dentro patinávamos. de lenço-atrás. Que será que eu procuro lá?" O espaço de d. No tempo de d. Amadeu. de roda" . As casas tinham quintal. nas ruas. A trepadeira cresceu até a janela do meu quarto. fic ava à vontade.. . sentia um perfume.] Foi a casa que marcou nossa vida de tal forma que até hoje. "Eram ruas de lazer..] A casa já foi demolida. As crianças de um meio urbano pobre. [. terrenos baldios. é uma grande pena. minha filha passou por lá e ficou namorand o a casa. Risoleta é que. A minha ru a era calma. No quintal tinha um pé de fruta-do-conde.] A criançada corria e jogava no meio da rua futebol com bola feita de meia. Tinha um portãozinho com uma trepadeira de jasmim brilhante e à noite. porque não tinham movimento. que vão ficando ano após ano em sua casa. com bola de meia.. Quando mudei para o Cambuci. jogávamos amarelinha." D. onde foi morar depois de casada ainda existe e.. Amadeu as crianças ficavam à vontade naquelas ruas sem calçar. os vizinhos punham as cadeiras na calçada de tarde para conversar. Humberto. não subi. . como as rosas amarelas iam surgindo u ma por uma das mãos de Alfredo Volpi. nos te rrenos baldios grandes. As ruas se associ am irresistivelmente com brincadeiras porque eram o reinado delas.. quem passava. noivado. um mocinho. passa três vezes o último que ficar!" Se assim era na avenida Paulista. perdido o lar da infância. A casinha compridinha. . A casa que o sr. sempre se faziam parques para a meninada. livremente. os meninos da Bela Vista também brincavam de fut ebol com o sr. baixa. ainda procura vê-la: "Ainda vou sempre lá para ver essa casa. o sr. minha rua tinha duas ou três c asinhas. casamento. o resto era uma chácara. ma s estive no portão. As m eninas convidavam a gente para brincar de roda com elas e cantávamos: Passa. a fuga para um mundo de perigos é quase uma transgressão. Sim. "Eu fazia carrinhos com rodas de carretel de linha e nós brincáv amos o dia todo. são também seu ambiente doméstico. pesadelo que eu tenha. Ficávamos na ja nelinha bulindo com quem passava na rua. da calçada. e depois as fábricas e os cortiços. De noite podia ficar até às oito horas brincando ali na calçada. de um lar que não seja o dos patrões. Tinha um pequeno jardim com roseiras. volto para lá e o meu sonho se passa todo lá [." Pensa o sr. O pai de nosso vizinho. pois essa casa tinha uma sala com um barrado de rosas amar elas. pois el e nunca viu nenhum. Brites é fechado por um po rtão de ferro. mesmo cega. Alice "é uma casa de recordações porque me us filhos nasceram nela. Alice. menos uma palavr a ríspida para o hóspede. incluindo as plantações. toda vez que s aía colhia um para pôr na lapela. e crianças. Pintaram as paredes com latex.. Depois foram vindo outras casas. Nos matagais faziam campinhos. "a rua Conselheiro Nébias era uma maravilha porque a gente b rincava de amarelinha. é a casa da sua primeira comunhão. Humberto construiu para d. surpreso. pegador. Risoleta. brincávamos de pegador que era o que eu mais gostava. descrevem sua casa prolon gando-se até o rio. Hoje. brincavam na r ua e as calçadas.."A nossa casa era de tijolinhos vermelhos. Em São Paulo... o que é uma grande pena". Outro dia. podia atravessar a rua correndo. E queria que sua Alice fosse ver o prodígio. pintava as rosas a mão livre.. passaram tinta por cima e desmancharam as rosas do Alfredo Volpi. que é preciso defender a todo tra nse. tinha demais. As janelinhas do porão er am mais altas que a rua [. descobriu que o pintor. Ariosto que não existiam brinquedos de loja quando era menino. Antônio. o terreiro.. cuja perda gera um impulso de morte e depois o ressurgir para uma luta sem tréguas pela conservação do teto. todas aq uelas famílias já mudaram de lá. Antônio. seis janelas.. Nosso portão estava sempre fechado [. brincávamos de pegador. Antônio. Pegado à parede eu tinha o jasmi m-de-barcelona que dava como uma rosinha. Agora já morreu tudo. No Brás do sr. em todo sonho. A impressão que se t em da vida d.. já acabou tudo". Alice. irmão do companheiro de fábrica. no ssas bodas de prata. tudo se orienta para a poss e de uma casa. que passaram a infância na roça. cada uma de um tom e diferente da outra.. até o pasto. Talvez por isso aceite os agr egados. implicando com as meninas da vizinhança. Ali se construiu a fábrica de elevadores Villares. pessoas e afeições. Brincávamos de pegador. Cada um desses objetos representa uma experiência vivida. Os tecidos bordados com faces. e somente ra 441 ras circunstâncias. duas meninas entrando de cada lado. cobertas de pele e cobres blasonados. o ritual antes do sono. Confessa Machado de Assis. e a família jamais se desfaria delas a não ser com grande desgosto. Essas propriedades são sagradas.como entre os trobriandeses . seu poder. de dois. e por que exigir palavras de uma comunhão tão perfeita? Não só em nossa sociedade dividimos as coisas em objetos de consumo e relíquias de família. passeio na corda. O conjun to dessas coisas em todas as tribos é sempre de natureza espiritual. A casa onde se desenvolve uma criança é povoada de coisas também preciosas. blasonadas com o totem do clã. não. nem dialogar com ela. pulou corda como ninguém imagina: "Corda simples. que não têm pr . suas qualidades. Só o objeto biográfico perm anece com o usuário e é insubstituível. as casas. n em enobrece-la com o seu trabalho. a disposição tácita mas expressiva. tudo perde as arestas e se abranda. as esculturas. como na anedota do norte-americano que se enganou de an dar e sentou-se no sofá de um apartamento alheio pensando que era o seu ao ver a d ecoração semelhante. o mapa-múndi do viaj ante. o teto. O arranjo de sala cujas cadeiras preparam o círculo das conversas amigas. para empinar no morro dos Ingleses. Quanto mais votados ao uso cotidiano. A ordem desse espaço povoado nos une e nos separ a da sociedade: é um elo familiar com sociedades do passado. mais expressivo s são os objetos: os metais se arredondam. de barra-manteiga. As coisas nos falam. à nossa identidade. "Não tivemos brinquedos. O usuário de uma geladeira. têm garantia por um ano. É comparáve a alguém que tivesse vivido por hospedarias. os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos. O que se poderá igualar à companhia das coisas que envelhecem conosco? Elas nos dão a pacífica impressão de continuidade. a medalha do esportista. Mais que um sentimento estético ou de utilidade. não envelhecem com o dono. d. pois envelhec em com seu possuidor e se incorporam à sua vida: o relógio da família. falam à nossa alm a em sua doce língua natal. São réplicas dos instrumentos inesgotáveis que os espíritos de ram aos ancestrais. figuras animais e humanas. Daí vem a timidez que sentimos ao entrarmos em certos quartos em que os objetos nos revelam quem é seu d ono. ao menos na velhice. as pinturas. os nomes às crianças. de roda. sem guardar delas nem caras. pode nos defender da atual revivendo-nos outra. são coisas animadas. as paredes decoradas são seres. Os objetos protocolares são os objetos que a moda valoriza. Os pratos e as colheres com as q uais se come solenemente. o fogo. c ruzando e saindo". Nesse conjunto amamos a quietude. o lhos. a máscara do etnólogo. Mauss encontra essa distinção em muitos povos: tanto entre os romanos como entre os povos de Samoa e Trobriand e os indígenas nor te-americanos. sim." Vivina. Há objetos como os talismãs. o conjunto dos objetos que n os rodeiam. Tudo fa la.sua individ ualidade. 438 OBJETOS Se a mobilidade e a contingência acompanham nosso viver e nossas interações. não se vendem. 'os quadrados'. que era uma menina terrível (segundo sua irmã.9 Temos com a casa e com a paisagem que a rodeia a comunicação silenciosa que marca no ssas relações mais profundas. fazíamos papagaios. nem nomes. os privilégios. te cidos armoriais que se transmitem solenemente como as mulheres no casamento. Mais que da ordem e da beleza. Penetrar na casa e m que estão é conhecer as aventuras afetivas de seus moradores. há algo que desejamos que permanece imóvel. Brites). a minha memória não é boa. A quem passe a vida na mesma casa de família com os seus eternos móveis e costumes. como a cama prepara o repouso e a mesa de cabeceira os instant es prévios. nem são c edidas. feéricas. os objetos nos dão um assentimento à noss a posição no mundo. por exemplo. Cada uma dessas coisas preciosas tem . Diferentes são os ambientes em que os objetos são arrumados para aparecer ou patente ar o status de seu dono. não pode modificá-la por seu uso. se ovalam. mas se de terioram. é que se lhe grava tudo pela continuidade e repe tição". em Dom Casmurro: "Não. decoradas e esculpidas. São estes os objetos que Violette Morin8 chama de objetos biográficos. não se enraízam nos interiores. seu nome. talvez: alguma coisa que. Os dedos de bronze de um jovem reclinado numa coluna da escada continuam sendo polidos pelas mãos que o tocam para conseguir ajuda em seus males de amor. ativa e natural na existência de uma coletividade q ue conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro" )' O desenraizamento é uma condição desagregadora da memória: sua causa é o predomínio das r elações de dinheiro sobre outros vínculos sociais." Sacode-o um frêmito de felicidade ao experimentar sob os pés a pavimentação irregular comum ao pátio dos Guerm antes e ao batistério de São Marcos. que trazia sorte e que " de tanto andar de um lado pro outro ela desapareceu". perde-se a crônica da família e do indivíduo e m seu percurso errante. eis outro direito d a pessoa que deriva de seu enraizamento. as mesmas que pisei na infância. O planejamento funcional combate esses recantos. Sumiu. c om a investigação do passado ressecado pela inteligência. observava como tudo havia mudado em v olta. Mas o modo fortuito. Senti um grande con forto. Mas. anima-se ao receber o celeste alimento que lhe trazem. que parecia morto. das imagen s que desencadeava. com a expectativa de um futu ro que a vontade constrói do presente e do passado.eço. Eis um dos mais cruéis exercícios da opressão econômica sobre o sujeito: a espoliação das lembranças. não dando eu. D. os mendigos nos desvãos. as coisas perdidas povoavam a Lua. Ter um passado. é mais essencial do que ambos. sentindo a irregularidade do calçamento sob seus passos. de barata. dos vende dores ambulantes com as esculturas trágicas da Ópera que habitam o jardim do teatro. constituía justamente uma prova da verdade do passado que ressuscitava. o nosso verdadeiro eu. AS PEDRAS DA CIDADE As lembranças que ouvimos de pessoas idosas têm assento nas pedras da cidade present es em nossos afetos. em íntima comunhão com elas. Percebi com satisfação a relação familiar dos colegiais. nem procurar porque não acha mais". Jovina perdeu a pelica que a envolvia quando nasceu. O s deslocamentos constantes a que nos obriga a vida moderna não nos permitem o enra izamento num dado espaço. desperta. Nas lembranças pode aflorar a saudade de um objeto perdido de valor inestimável q ue. Porque as coisas que modelamos durante anos res istiram a nós com sua alteridade e tomaram algo do que fomos. caminhando para o viaduto do Chá. traria de volta alguma qualidade da infância ou da juvent ude que se perdeu com ele. Na sua preocupação contra os espaços . de um perfume. se fosse encontrado. através de um som. Respondi: 'A casa é sua. O espaço que encerrou os membros de uma família durante anos comuns. Entre as famílias mais pobres a mobilidad e extrema impede a sedimentação do passado. co mum ao passado e ao presente. inevitável porque surgira a sensação. 12 Outro dia. Risoleta se confidencia: "Minha filha deu meu guarda-roupa. dos namorados. Proust. de uma maneira bem mais entranhada do que podemos imaginar. Não sei onde foi parar minha medalha de valsa. Não adianta nem chorar. As pedr as resistiram e. Onde está nossa primei ra casa? Só em sonhos podemos retornar ao chão onde demos nossos primeiros passos. esses objetos povoam a m emória. pois percebemos seu esforço para aflorar à luz. Não procurara as duas ped ras em que tropeçara no pátio. O Teatro Municipal. os meninos brincando nos lances da esc ada. Trata-se de um direito humano fundamental para Simone Weil: "Um ser humano tem u ma raiz por sua participação real.. "logo se libera a essência permanente das coisas. sob m eus pés. numa comunidade. as pedras do calçamento. Brites lamenta o sumiço de um livro de modinhas (A lira do capadócio) e outro de contos caipiras ("Eu daria tudo para encontrar esse livro outra vez!"). os bêbados no chão. Compara este sentir com a observação do presente. ostentava sua qualidade de vestígio destacado do conjunto urbano. disse que estava cheio de traste velho.. só conservando o necessário aos fins utilitários que lhes fixa. "Apenas um momento do passado? Muito mais. que ganhei em Campinas . há de contar-nos algo do que foram essas pessoas. os namorados junto às muretas. Tal como no Orl ando furioso. de Ariosto. ou quase tudo. sentimos a alegr ia do real capturado". dos quais extrai ainda mais a realidade. por vezes havia mu ito. pode dar o que quiser'. ordina riamente escondida. D. recupera o tempo perdido. repintado de cores vivas. 10 D. Nesse momento descobri. com aquela voz bonita que entrava no coração da gente e a gente ficava [. pomba-rola como tinha! E a pomba do mato. "Os rádios não migram para o Sul no inverno. da roupa batendo. Abel lembra-se de todos os bondes pelo nome e pelo número. seguravam as crianças no colo e punham no chão. o abrigo imemorial das pontes onde se pode estar quando se é estrangeiro e desgarrado. elimina as reentrâncias onde os párias se escondem do vento noturno. conforme o sr. Brites. cavaquinho . para guardar lugar para as professoras". sazonal: o violoncelo das rãs no temp o chuvoso. enquanto permanecem. na pedra [. e perdiz. formam o ambiente acústico dos bairro s.inúteis. Risoleta precisava entregar sua roupa lavada: "No meu tempo só tinha bonde aberto e o 'caradura' que era bonde ope rário. Mas a cidade co nserva seus terrenos baldios. e tocavam bandolim. outro cantava. do pão amassando. Soube que se tratava do filho do judeu de minha infância. um tocava violino. seus desvãos. Às vezes sentavam. "os condutores de bonde eram muito amáveis. Na escola.nas matas que a menina Risoleta atravessava: "Lá de um lugar que a gente não via . é o que eles dizem lá na conversa deles". tendendém! dentro da mata. pintassilgo. São os ruídos da vassoura de ramos no terreiro. os baten tes profundos das janelas dos ministérios onde os mendigos dormem. Então a gente ia no 'caradura' com a trouxa de roupa pra não ter que pagar duze ntos réis". se vê como é que está". o sr. Ariosto. o consertador de guarda-chuvas. codorna. tão bonito. Os sons se complementam como uma conversa ou uma orquestra.. imitando o sotaque e a cantile na do pai. sem ruídos antagônicos. a água caía em cachoeira. das cidadezinhas onde o s sons estão sujeitos aos ciclos naturais de atividade e repouso de seus produtore s. Eram os 'caradura' ". logo conheciam as prof essoras e davam um jeito de acomodar as moças no primeiro banco. D. Para d. animais e aves têm seu ritmo diário. Sons familiares da água da torn eira.] Nossa. o pio estridente dos pássaros que no início da prima vera aprendem a cantar. canário. o grito da saracura. Antônio ganhou nota boa com uma redação que começava assim: "Rua Direit a. da vassou ra. As pedras da cidade. que voltam. flautas. dos talheres nos pratos. Na cidade. . Nas festas. do martelo. da colher no tacho. UM MAPA AFETIVO E SONORO O que mudou na oficina do sapateiro? Ou na quitanda do verdureiro? Ou nos grupos de meninos de esquina? Ainda percorrem os bairros o soldador.. A mulher se apóia na enxada quando ouve o piado de certos pássaros e re sponde: "Chegou a hora de semear. Além desses apoios temos a paisagem sonora típica de uma época e de um lugar. Ouvi outro dia a cantilena do comprador de roupa velha.". quando amanhecia.."3 O espaço sonoro compartilhado é um bem comum. sustentam a memória. o amolador de tesouras. Há paisagens sonoras selvagens.. o murmúrio das águas são fontes constante s de informação. o vende dor de beijus batendo em sua lata. após a R evolução Industrial. envolvendo vida e trabalho em ciclos compreensíveis. Sons que desaparecem. compõem o ambiente acústico familiar que se integra no da rua. da lenha crepit ando. A substituição do trem e do bonde pelo ônibus mudou a paisagem sonora para os ouvidos finos de d..] quem disse que ficava dormindo?!".. os sons das violas. dos passos no chão. Insetos. o homem do realejo. Barra Funda". e ia bem sentadinho lá junto com as frutas e verduras [p ara o Mercado]. o pipoqueiro.. Trim-trim. Abel: "Mas quem não queria gastar os duzentos réis da passagem. outro violão. O vento nas ramadas. Depois foram tirando tudo. Risoleta: "O trem de Santo Amaro entrava numa mata virgem e ia: Tend endém. dos pés arrastando no terreiro chegam até nós por sua narrativa: "Relembrar uma coisa dessas é triste: vinham quatro ou cinco m oços. O sr. branquinho. pagav a só um tostão no 'caradura'. Confirma o sr. quando o bonde parava. e tranqüilas. do relógio. E como eram genti s os motorneiros! Paravam o bonde onde as famílias pediam. temos a paisagem sonora de baixa fidelidade onde os ruídos confli tam com os sons que desejamos ou precisamos ouvir.. mesmo os diminutos sinais que compõem suas mens agens são vitais para seus habitantes. tiraram o bonde e pus eram ônibus. das florestas. Por que definir o espaço privado só em termos visuais? Também se exerce violência no domín io acústico e disso somos testemunhas auriculares. As lembranças estão povoadas de son s . as escavadoras não hibernam e os transportes não dormem à noite. como tinha p assarinho! Sabiá. tanto que d. Brites nos conta um entrevero com os integralistas no largo d a Sé: "Comunistas. O sr. Amadeu que a Catedral levou vinte anos para term inar. Só a voz de artista do sr. o bairro. anarquistas. o barateiro!''. Pela janela de Vivina toda tarde o palhaço passava de cara branca. os mais ricos pregões são ouvidos pelo menino António no ambiente musical do Bexi ga. a Penha. Os assobiadores das madrugadas também não foram esquecidos pelo sr. montado de trás p ara a frente no cavalo: O palhaço o que é? É ladrão de mulher. Antônio poderia reproduzir os floreios que o sapateiro desenha lindamente no ar: "Sa-pa-te-ééééééé-ro" ou a graça do vendedor de melancias: A tostón o pedaço! Melanzia barata! Come. Eis aí alguns arrimos em que sua memória se apoiava. do início ao fim. a Cantareira. apego a certas coisas. pontos de atração da velha São Paulo: a chácara do Marengo. Uma nota SÓ: fiiiiii / até cheg ar o outro quarteirão. o Museu do Ipiranga. a avenida Paulista. Abel: "Tinha o asso biador. Constituíam-se valores ligados à praxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade). observa: "Naquela época estavam fa zendo a Catedral da praça da Sé: vi quatro. Aí ele mudava de tom: piiiii \ Dos pregões de ambulantes o mais lembrado é o da "Batata assata al fumo". o Jardim da Luz. que Mário de Andrade recorda em Paulicéia desvairada. Risoleta. socialistas.. No Brás do sr. Ariosto o mascate turco com sua matraca e a carrocinha do italiano do queijo na melodia ítalo-paulistana: "Of ormaggio! Olha oformaggio! É o barateiro. lá no fundo da casa da alameda Barros. todos se juntaram e se esconderam na própria Catedral que ainda estava com andaimes e desses andaimes mandaram pedra lá d e cima". * * * A memória das sociedades antigas apoiava-Se na estabilidade espacial e na confiança em que os seres da nossa convivência não se perderiam. Ariosto. mas com alguns focos: o viaduto do Chá. a rua Direita. a Confeitaria Fasol i. não acompanha os nos tálgicos pregões que a menina Brites ouvia com tanto prazer na mesma alameda! O sorv eteiro que vendia "sorvetinho de ilusão" estica os passos até a avenida Angélica para ser ouvido também pelo menino Abel: Sorvete iaiá é de creme abacaxi. sinhá! Porém.Mas o menino Abel observou a esperteza dos cobradores: "Tintin. dois pra Light e um pra mim". A vida do grupo se liga estreita mente à morfologia da cidade: esta ligação se desarticula quando a expansão industrial c ausa um grau intolerável de desenraizamento. família larg a. onde o sapateiro pode ir ao Teatro Municipal corrigir o maior tenor do mundo . o Parque Antártica onde os operários dançavam na grama . seis operários carregando um bloco de pedr a para a igreja". a Farmácia Baruel. que ia ao centro da cidade c om seu pai. é preciso que algo dele permaneça para que reconheçamos nosso esforço e sej amos recompensados com estabilidade e equilíbrio. o Trianon. em geral o trajeto para a escola e o centro da cidade são descritos de um modo dispersivo nas lembrança s várias. a Casa Alemã. o Teatro Municipal. As histórias que ouvimos referem-se. a velhos lugares. a certo s objetos biográficos (versus objetos de consumo). centro de devoção. Observa o sr. Esses lugares são de scritos sob os vários pontos de vista. inseparáveis dos eventos neles ocorridos. E o pizzaiolo. Amadeu passavam os vendedores de castanha. exte'nsa (versus ilhamento da família restrita).. ouve d. A casa. cantarolando. Das calçadas. Nós nos adaptamos longamente ao nosso meio. a Catedral. Ele dava um assobio de um fôlego só no quarteirão. a avenida Angélica. Na avenida Paulista do sr. não se afastariam. o Parque Siqueira Campos. o Hotel d'Oeste. Cantados como foram por todos os velhinh os nos dão idéia da sonoridade dos bairros paulistanos. que também vendia cantand o com suas latas enormes. na cozinha. Ao perdermos uma paisagem sonora sempre poderemos evocá-la através de sons que subsi stem ou na conversa com testemunhas que a viveram. Alguns locais são evocados. bebe e lava a cara. algumas ruas. Alice lindas cantigas de roda e canções de ninar da vizinha. D. Beniamino Gigli. [. Ipiranga. para acampar.. "Penso qu e assisti todas as óperas.. o Madri. as estações cer tas do ano e as joaninhas vermelhas do jardim de d.. Amade u. vinham cantar Caruso. Nas lembranças aparece sempre o indefectível Deus lhe pague com Procópio Ferreira. pescar lambari com litro e com peneira. Amadeu era menino "tinha mais de mil campos de várzea. No Brás havia times de rua. Vila Matilde. E o despojamento dos bairros de suas várzeas pela indústria e especulação imobiliária tra nsformou a fisionomia de São Paulo. entre vinte e 25 campos. chutar bola. do Tamanduateí. Nós íamos na geral. não estou bem lembrada. de uns quarenta anos fa z. É com satisfação que dizem de muitos desses locais que "ainda estão lá". c heias de moitas e arvoredos. junto com Vila Prudente. como se estivessem vendo tais logradouros. começou a se concentrar o público nos estádios. Não tem onde jogar. Aí começou a massa.". Jovina. ali adi ante. Eram caras as entradas para frisa. E as operetas".] Quando eu era criança entre a Lapa e Santa Cecília havia mata". cada um tinha mais ou menos cinqüenta campos de futebol."). Hoje não jogam nem 10% daquilo que jogavam naque le tempo. uns vinte. prédios de apartamentos. Brites: "Quando a gente achava uma joaninha vermelha com pinta preta.. no Canindé. o prédio Ma rtinelli. tinha mais de mil jogadores.o vale do povo nos comícios. Seus ve lhos habitantes dizem. . nas festas do Primeiro de Maio. Quando o sr.. O TEA TRO MUNICIPAL A paixão pelo teatro. É o mesmo operário do Brás que nos conta: "Nas óperas que chegavam a São Paulo. Nunca mais vi uma joaninha. o Anhangabaú. que vai para o largo do Arouche. D. Mas sua irmã mais no va rompe o tabu: "Em 1923. ali na Estação". Brites: 'Há muito tempo não vou à cidade. As crianças a travessavam para ir à escola trilhas na mata. valendo. acho que em 38 ou 40. Em cada bairro se fazi a um campeonato. O problema da várzea é o terreno. era uma vergonha. penso que é por falta de mato. que ao relatar a peça diz: " Itália Fausta perdeu o filho. dos carroceiros da rua Santa Rosa.. Jovina economi zava para comprar um camarote de segunda ordem. juntavam dez ou vinte clubes.. peças de amadores. peça que acabou fundin do artista e personagem (notese o lapso de d. As joaninhas desap areceram. faz do Teatro Municipal o coração da cultura paulistan a. as belas matas típicas do planalto paulista. antes de chegar na rua Aurora..me da memória do sr. é o que deseja d. Quando foi morrendo o jogo da várzea e o futebol de bairro. Na Vila Maria. Lapa. ali na pont e do Bom Retiro. ninguém pagava pra ver. 1924. cadeira. "Se nós vamos procurar na memória quantos jogadores da várzea.. apontando para a palma da mão: "ali no Gasômetro.. camarote. Quem tinha um campo d e sessenta por 120 metros acabou vendendo pra fábrica". de lugar. Todos se lembram das matas que estavam b em perto de seus bairros. começaram a vir para cá pianistas como Brailowski.] Qualquer dia vou passar em frente para ver se a árvore ainda está lá". pode pôr cinqüen ta campos.. E d. Tito Sc hipa.." Essas observações nos mostram a transformação de um esporte popular em esporte de massa. O Paca embu veio mais tarde. Penha. na várzea do Gl icério. Barra Funda. tem uma grande árvore daquele tempo em frente à casa que f azia esquina com a praça da República. A gente dizia: 'Em que parque v amos jogar?'. Qu alquer dia vou lá com minha irmã para ver". d. Agora tudo virou fáb rica. Essas federações esportivas representavam dramas. de vendedores de jorna l. Não tinha ainda estádio. . Alice recorda. dividindo o preço da entrada com c inco pessoas. ma s tenho idéia que na rua Dom José de Barros ainda há daquelas casas antigas.. térreas. Man hãs de sol de Oduvaldo Viana e A ré misteriosa com Itália Fausta. família não ia mesmo. lembrando o caminho que fazia para a escola. Em galeria. de lá vinham os bons ares. Vimos todas as óperas. Para as grandes óperas. antes o pessoal esta va espalhado nas várzeas e nos bairros jogando mesmo. [. afetando para sempre uma dimensão da vida urbana .. por falta de campo. era campo livre. Jovina. pela ópera. "Entrando nessa rua [Vieira de Carvalhol.. Com todos esses pontos poderíamos desenhar um mapa afetivo da cidade: São Paulo era familiar como a palma da mão quando suas dimensões eram humanas. FUTEBOL DE VÁRZEA Nos bairros de trabalhadores as crianças ocupavam as várzeas do Tietê. As várzeas tiveram papel importante na história paulistana.. pode pôr uns cinqüenta campos. como a gente fazia festat Os besouros vinham do mato próximo bater no lampião de gás. de profissões: O Clube São Cristóvão. o seu Cicillo. . Daí por diante." A epígrafe deste tópico referia-se a povos primitivos. Foi um avanço social na época". mas estávamos nos referindo tam bém a nós mesmos. E havia os especialistas nas gargalhadas. nós mulheres começamos a ir na galeria. sem querer. Ariosto foi convidado em 1928 para ser garçom do bar e restaurante do Teatro Municipal: um salão grande com música onde serviu artistas de renome. a Cavalieria rusticana. Nos momentos de folga ele subia às torrinhas: "Gostava de ver Ipagliacci. "essas pessoas sabiam quando deviam bater palmas. no Teatro Municipal. Ro berto Carlos. Quando o teatro não estava muito cheio deixavam entrar essas pessoas nas galerias e os qu e estavam bem vestidos sentavam em lugar melhor. [. () Depoimento de Mano Strambi.. Em tudo. mas também vaiava. Pela primeira vez. Eram as claques. nós sempre freqüentamos as galerias. [. lamenta o sr. onde as pessoas se reuniam para declamar a Di vina comédia. E lembrando esse episódio o sr. explica o sr. "Os homens iam de casaca e as mulheres com vestuários lindos. * Porque. nossa ligação com a natureza. "Di Lorenzo foi vaiado em São Paulo. do Belém. no Mun icipal. Ariosto. E abriu uma Escola de Canto. Naquela época o pr esidente do estado de São Paulo. Há algo na disposição espacial que torna inteligível nossa posição no mundo ossa relação com outros seres. assisti de graça. a gente da Moóca. no nosso tempo de Teatro Municipal. "Mui ta gente se apresentava todo dia para assistir às óperas. Um grupo de alunas do maestro Chiaffarelli comprou entradas para a galeria e enfrentou os olhares do público. mae stro!'. Naquele te mpo não tinha restrições.. mas não podia pagar.. Os que v oltam do trabalho acharão cansativo o caminho sem a sombra do renque de árvores. Ouvindo o depoimento de um participante da claque soube que para conseguir entrar no Muni cipal. em 22. que desceu os 84 degraus do Teatro Municipal . Era tr adição dos grandes músicos olhar em primeiro lugar para as galerias.] Ch eguei a assistir vinte vezes a mesma ópera. atiraram o vos podres nele. Os velhos lamentarão a perda do muro em que se recostavam para tomar sol. o valor do nosso trabalho. "Até uns 25 anos atrás houve um forte interesse popular por ópera em São Paulo. pagava sua cadeira com uma risada inesquecível. Assim. por causa das roupas é que nunca pude trazer a mamãe para ver os espetáculos".' O sr. do Bexiga se especializou em g rupos que batiam palmas com eco. em outros que davam bravos majestosos e ainda o utros que se ofereciam como figurantes na ópera: padres em procissões. do Brás. levava aos palcos óperas de sua a utoria: A bela adormecida e O caso singular. conheciam os trechos bonitos e a platéia acompanhava quando gritavam: 'Bravo. Ii trovatore de Verdi. Lembro que quando veio o balé do Bolshoi. um sapateiro. A cultura musical naquele tempo era mu ito mais elevada que hoje. por ordem do governador. A p latéia quase desabava de bater palmas quando os russos dançavam O lago dos cisnes"." Do mesmo Bexiga. Esse relacionamento cria vínculos que as mudanças abalam. Se de lá vinham aplausos os artistas se tranqüilizav am com a qualidade de seu desempenho. onde figurou na Carmem. as portas do Mu nicipal foram abertas para que o povo das ruas entrasse e visse a morte do cisne . quando muito seria nosso engra xate. marinheiros n a Aida etc. Em 19 18-19 já assistia na cena do Teatro Municipal. Quando chegavam as grandes companhias italianas e francesas o povo aplaudia. é o povo mesmo. seg undo o sr. mas que persistem em nós com o uma carência. Antônio. sentado ombro a ombro com a elite do café. A c asa demolida abala os hábitos familiares e para os vizinhos que a viam há anos aquel e canto de rua ganhará uma face estranha ou adversa. somente para bater palmas. lá em cima na gera l." A claque teve importante função na formação do gosto paulistano. Tal familiaridade se explica: "Desde menino eu freqüentava a ópera. Antônio nos conta.. Eu não culpo tanto a televisão..j Quando não trabalhávamos como comparsas íamos bater palmas nas gerais com a claque. Ia como claque ou como comparsa no palco". do Cambuci. porque lá se sentav am os verdadeiros conhecedores. entre eles um preto que.. O barbeiro de Sevilha. Ariosto. qualquer um entrava.Arthur Rubinstein. acusou uma desafinação de três notas no célebre tenor Cavaliere Ufficiale Avvocato Giacomo Lauri Volpi. Carlos de Campos. A sua inserção na vida pública fez-se principalmente mediante o trabalho que os ocupou e absorveu do fim da infância ao limiar da velhice. o seu teor ideológico se torna mais visível. e reafirmando sua posição ou mati zando-a. como ressalta da menção de um encontro sa ngrento ocorrido na greve geral de 1917. e a força da tradição local lhe vem da coisa da qual ela era imagem. porém. para mencionar apenas as ocupações principais de cada um. deram tiros. Amadeu foi metalúrgico. os juízos de valor intervêm com mais insistência. Quando não há essa resistência coletiva os indivídu os se dispersam e são lançados longe. MEMÓRIA POLÍTICA Se a memória da infância e dos primeiros contatos com o mundo se aproxima. Podem arrasar as casas. é contra a resistência mesma. numa coisa. outro pode desfazer. algo de si morre junto com as paredes ruídas. Diz d. Xingar. Ariosto garçom e florista. Dos entrevistados. Só a inteligência e o trabalho de um grupo (uma sociedade de am igos de bairro. . [. casada com o delegado]. mas u m espectador nunca é neutro. isto é. estas ruas. Com exceção do sr. faço parte dessa omissão.. O primeiro passo para abordá-la. diz Halbwachs. une-se a rebeldia da memória que a s repõe em seu lugar antigo. estas passagens. E a gente se omitin do. a vida t oda.. Jovina. Ariost o montou uma lojinha de flores artificiais feitas por ele e pela mulher.] Tive logo simpatia pelos vultos da revolução e pelo que representavam". Na memória política. "Mas os grupos resistirão. mas torcendo pros operários que es tavam na luta". quatro ativeram-se. da pura evocação. estas moradias. as raízes partidas. muitas vez es. O que distingue."4 À resistência muda das coisas. logo que chegaram ao Brasil os ecos da Revolução de 1917: "Quando li as notícias eu senti logo o que era a revolução: fui uma espectadora. os jardins cimentados. A memória dos acontecimentos políticos suscita uma palavra presa à situação concreta do su jeito. Nesse contexto. A autocrítica reponta neste contraste sofrido entre o velho anarquismo dos operários italianos e o silêncio que sobre eles estendeu o esquecimento da maioria: "Onde e stão todos eles? Foram esmigalhados pela sociedade de consumo. Sem dúvida esta disposição foi anteriormente obra de um grupo. à teimosia das pedras. Ele quer também julgar. a certeza de ter ficado sempre do lado do oprimido. Mas a triste za do indivíduo não muda o curso das coisas: só o grupo pode resistir e recompor traços de sua vida passada. volto aos me us vinte anos. Leitura social do passado com os olhos do pre sente. associando os fatos do presente a seus sentimentos de jovem: "Qua ndo leio hoje no jornal sobre a exploração na América Latina. Risoleta cozinheira. suscitada pelo desaparecimento da menina Idalina: "Veio a cavala ria. O qu e um grupo fez. gente que estava na luta. Não p osso esquecer minha emoção. Eram operários. a lembrança dos fatos públicos acusa. na Nicarágua. mas co mo destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas? Podem suprimir sua di reção. com pena dela [a prima. como operários ou artífices ou servidores domésticos. "As pedr as e os materiais não vos resistirão". ne les. Chorei muito". o sr. Ou aind a. d. dava comida de pensão. os demais confinaram-se a um serviço doméstico ou a uma extensão dele: d. pela sua força e espontaneidade. Mas o desígnio dos homens antigos tomou corpo numa disposição material. e. mudar o curso das ruas. as pedras mudam de lugar.Destruída a parte de um bairro onde se prendiam lembranças da infância do seu morador. parece. e o sr. sua forma. o liame que se formava entre o sujeito e a sociedade estava marc ado pela marginalidade política quase absoluta a que se relegaram os estratos pobr es da população tanto na República Velha quanto no Estado Novo. O mundo fica omisso". senão das pedras. O sr. ao menos de seus arranjos antigos que vos batereis. porém. marcando bem o lado em que estava naquela altura da história. um pronunciado sabor de convenção. Risoleta. O que resta é. ser aquele que leve em c onta a localização de classes e a profissão de quem está lembrando para compreender melh or a formação do seu ponto de vista. portanto. enquanto estas são reconquistáveis. Alice costureira. em São Paulo: "Ouvíamos de lá o tiroteio. seu aspecto. por exemplo) podem reconquistar as coisas preciosas que se perde ram. à produção material. d. O sujeito não se cont enta em narrar como testemunha histórica "neutra". chorar não adianta". já madura. E evocando uma das primeiras manifestações anar quistas de rua. Amadeu (que sempre esteve em uma fábrica metalúrgica de tamanho médio). . sem nada!". oito e meia. O dinheiro era muito curto. Deu sete e meia. se tornou uma garantia de segurança familiar e profissional. quando comparada à sua presença ostensiva na era getulista. Só dep is que veio o Getúlio. porque não havia ganância de dinheiro. que Deus o abençoe!". o que era a vida do trabalhador "antes do Getúlio": "Antes do Getúlio tinha muita injustiça: a pessoa trab alhava sem aposentadoria. um populismo tipicamente paulista. Ariosto e d. a ação trabalhista do governo Vargas aparece co- vez mais forte até a gente lacrimejar. um ajudava o outro ". a não ser quando encampadas pelo getulismo. Essa visão "sindicalista". Ficamos na esquina esperando e a fábrica não abria. em oito ou d ez companheiros. De qualquer modo. mas "depois a força venceu". há um antes e um depois: " Antes de Getúlio". em caso de necessidade. fazendo a casa. distante das pregações de Prestes e dos comunistas. filha de escravos. Lembra-se também dos textos de sindicatos italianos que lhe chegavam às mãos ( presença de anarquistas?): "Os operários se reuniam escondidos para trocar idéias. Ele ficará ligado ao tra balhismo até a morte do líder (1954). Ond e eu trabalhava vinham boletins dos sindicatos dos metalúrgicos italianos que cham ava-se IMetallurgici. No caso do metalúrgico Amadeu.] Ele criou a caderneta de trabalho. o remédio. Assim. é a que acompanha e sustém o metalúrg ico Amadeu durante toda a sua juventude e maturidade. Mas logo os mais velhos começam a unir-se para resolver um dos seus problemas mais prementes: ter casa própria. Foi o dia da morte de Getúlio. [. quando ele cheg a à maioridade tendo já passado alguns anos na oficina. Então nos avisaram que as Forças Aéreas é que estavam atirando um ácido nos lugar es de reunião do povo e era para a gente voltar pra casa. tanto antes quanto depois da Revolução de 30. em festa s e passeios. flauta e clarinete. A "força" dos sindicatos. morriam no asilo. que serve de ponte entre a fábrica e a polít ica. Morto o líder. o envolverá na figu ra de Jânio Quadros. o advogado. o crédito. Ele a sente como o recurso dos que não têm recursos. e das quais surgiria a primeira agremiação de meta lúrgicos. A lembrança tem muito aqui de saudade de um tempo melhor quando o auxílio mútuo supria a falta de recursos: "Havia nesse tempo muita camaradagem e um ajudava o Outro. lembrada de modo impressionante: Tem uma passagem que vou contar. esta memória getulista é menos genérica. porém. O sr. Muitos operários pareciam chorar e não suportav am mais. isto é. O sindicato é o médico. O sr. A legalização permite que se façam sessões abertas no auditório das Clas ses Laboriosas. a maternidade. [. Há uma tensão inicial com alguns patrões..estes dois períodos de nossa história é a ausência do tema do trabalhador nos discursos da República Velha. falando dos anos a fio em que trabalhou como garçom sem folga nem s alário: "Não tínhamos direito a férias. As autoridades não queriam que ninguém se reunisse. Risoleta. um ardo r que foi ficando cada Para todos eles. Risoleta. coitadinhas. no seu testemunho. o último homem político importante para a sua memória de septuagenári o. existia muito pouco. fez do sr. aposentadoria. Dessa cooperação fora do serviço nasce um tipo de encontro para a defesa do grupo maio r. Amadeu tem presentes algumas dessas reuniões secretas. Ariosto e de d. D.j As empregadas que trabalhavam a vida inteira ficavam na miséria. Ariosto. Amadeu. e nada. o conselheiro político: "Tem que ser sindicalizado [. fixaram-se na lembrança de Getúlio Vargas. significa a década de 20. O si ndicato é tudo". licença médica. direito nenhum. da classe.. Nós não sa bíamos de nada. e é sério o risco de os sindical izados perderem o emprego. não tinha direito a nada. Nesse tempo. embora a dose de participação política do sr. Passam os fins de semana. "Trinta" é o marco. acentua. na memória do sr. Eles aproveitavam para copiar alguma coisa para nós.. ambos lembram a figura de Getúli o Vargas e as leis trabalhistas como o grande divisor de águas público de suas históri as de vida. Isso an tes de 30".. qu e Getúlio apoiou e trouxe para o círculo do governo..]. porque envolve a criação e a solidificação da estrutura sindical que. Quanto ao sr. Amadeu um trabalhista moderado. os companheiros se encontravam espontaneamente para tocar violino. de classe média. o hospital. o ito horas. Então começamos a sentir um ardor nos olhos. Risoleta haja sido quas e nula. foi o dia que as indústrias não funcionaram. f eitas longe dos patrões e da polícia. A im . operário desde menino. para ele. a cena do desencontro de classes: Eu trabalhava no dr. mas que é sobretudo quantitativa. distinguirá significativamente a qualidad e da lembrança política dos dois grupos? A leitura das narrativas sugere que a difer ença existe. Mas tinha que servir café pros soldados que se arrancharam lá na Rádio Educado ra Paulista. d.. Isso aí não era pra banda dos pobres. naturalmente. Quanto aos acontecimentos políticos que se deram dez anos depois da morte de Getúlio (1964). D. Jovina sabem muito mais coisas que o sr. e estão ainda bem conscientes daquel a tensão. D. Ariosto: "Quando soube da morte do Getúlio .1 Eu era cabo eleitoral do Getúlio. Brites. e não de suicí . de chofre. Ariosto é conciso. mas expressivo: "Quando.] Só anda alegre os que vão assistir futebol. Risoleta e o sr. em plena ce na política: o sr. porque em 24 ele mandou bombardear o Brás. Como eu cho rei naquele dia 24 de agosto! Foi às oito horas da manhã que mataram ele.1 Não levou muito tempo Oswaldo Aranha morreu: ele era neto da família de que meu pai foi escravo. eu vendo".. "Não! Precisamos dar tudo para salvar São Paulo!". Vale a pena transcrever um passo da narração de d.] Nunca votei. cada jóia bonita de d. Depois votei no Getúlio. d errubaram o presidente Jango. se . [. Ouvi pelo rádio a morte do Getúlio. Antônio. a que opõem o estado de carência e insegurança econômica própria do assalaria do durante a República Velha. quer às ações militares antipopulistas de 54 e 64. desenvolve o seu ponto de vista: "Hoje. no caso a memória das classes pobres. [. que salta à primeira l eitura (espectador versus participante). Ninguém votou no brigadeiro. Risoleta serviam a patrões ricos que lutavam contra Getúlio em 30 e em 32. disparou nele. e opuseram-se quer à candidatur a recorrente do brigadeiro Eduardo Gomes. apesar de seus traços idealizantes. Abel. A mesma certeza do assassínio anima o sr. Ariosto e d. a certa altura. o Oswaldo Aranha!" [. Antônio e d. Ariosto: "Quando houve eleição para presidente da República. A memória de d. ele é candidato só de gente rica. Ele não era homem pra se matar. quanto eleitor eu arranjava ! [. Dizia: 'Vocês vão brincando. um amigo me aconselhou a votar no marechal Dutra. por is so o Getúlio ganhou estourado aqui em São Paulo". Adriano de Barros. os italianos que eram contra o governo. mo uma dádiva. Agora falta um. Cmira ela ia amon toando para o bem de São Paulo. um dos capangas que vi viam em roda deu uns tiros nele". Risoleta que abre uma janela por onde se vê. O dia que no sso Brasil cair na mão do militar vai ser duro pra sair'. Os patrões eram contra o Getúlio. Risoleta imagina a tragédia e culpa diretamente o antigo adversário eleitoral: Escutei rádio a noite inteirinha quando ele morreu. O sr. Ariosto. é claro. ligada à idéia de assassínio. Pra mim fo i o irmão dele que. Eu disse assim: "Por que a senhora não dá esse brochin ho quebrado pra mim? Se um dia eu precisar de dinheiro. A família catou todo o ouro que podia. Era aquela soldadesca e as moças queriam traba lhar pela revolução e darem ouro para o bem de São Paulo. a mandado. Risoleta igualmente conservaram-se fiéis à linha trabalhista que vai de Getúlio a João Goulart. Risoleta. dos operários ou domésticos não articul ados em grupos políticos? Quanto à morte do líder. ela está. eu era get ulista. d. o sr. passando por Juscelino. de Halbwachs. brincando. Risoleta foi cabo eleitoral getulista. jóias. não gostei porque as coisas encareceram muito. Abel. está concretamente associada a escol has políticas bem precisas de classe: o sr. vejo que a s ituação do Brasil está cada vez pior. D.. o sr. O contraste. Olha aí! Todo mundo não tá ven do? Tá na mão de militar e ele não quer largar o osso não".. O povo anda triste". fiquei muito triste. mas se torcia!". Amadeu. O sr. Ariosto e d. Quando Eduardo Gomes acabou de discutir com ele entrou no elevador e falou: "Esse nós já liqüidamos. Teríamos aqui um estrato daquela "memória coletiva". em 31 de março de 1964. o sr.agem deste. A MEMÓRIA ENTRE A CONSCIÊNCIA E O ESTEREÓTIPO Para caracterizar essa memória (ou melhor: essa memória-consciência) valeria a pena co nfrontá-la com a de outros entrevistados que entraram. Brites. embora não votasse: "Quando o Eduardo Go mes se candidatou pra Presidência os patrões queriam que ele subisse. nós vamos é do lado do pobre mesmo. na rua Carlos Sampaio. mais vibrante. o sr. Eu não acredito que ele se suicidou. mas não podia não. m mencionar d. Alice, que nada diz sobre política. A informação dos primeiros, enquant o participantes e militantes, é, sem dúvida, mais rica e pormenorizada: - o sr. Abel é um vivo testemunho de 32, cujo primeiro tiro quase o atinge, matand o seu companheiro Miragaia; - o sr. Antônio conheceu por dentro alguns dos momentos mais dramáticos da corrida i ntegralista: basta recordar que lhe delegaram a morte de um líder adversário; - enfim, d. Brites é a memória fiel de várias campanhas culturais e assistenciais da e squerda nos anos da legalidade. São três autobiografias que aquecem a vida pública com o calor da subjetividade que fa lta, em geral, ao discurso histórico oficial. No entanto, poderemos afirmar, tranqüi lamente, que a participação nos acontecimentos políticos tenha imunizado a memória dos m ilitantes dos riscos da idealização ou da estereotipia? O concreto das suas lembranças factuais não cederá, porventura, em mais de um ponto, à convencionalização? O sr. Abel e o sr. Antônio atribuem a seus líderes e aos movimentos de que fizeram parte caracter es extraordinários, sublimes (32, o primeiro; Plínio Salgado, o segundo). Para o con stitucionalista Abel, a Revolução de 32 não perdeu, ela apenas "ensarilhou suas armas" , idéia repetida pouco depois: "Mas a revolução não perdeu, ela deixou de lutar, quando nós já tínhamos obtido o que queríamos, o fim já tinha chegado, o ideal era aquele, a Cons tituição. E Getúlio ficou com medo e retirou-se". Assim, o voluntário, que sabe o que é ser tocaiado e vencido pelos adversários que pre pararam uma "ferradura"; o sargento, que passou uma noite terrível numa trincheira lamacenta onde arrebentaram os miolos de um companheiro imprudente e cortaram a s pernas de outro, cujos gritos enchem o silêncio do brejo; esse mesmo Abel, teste munha ocular da luta, repete as frases da sua geração e do seu grupo de apoio: "A revolução não perdeu. E Getúlio ficou com medo e retirou-se". A experiência política, enq uanto partidária, necessariamente vai modelando, com o tempo, formas de discurso v alorativo, convencional, "ideológico", que podem esconder o teor mais objetivo da fala testemunhal; formas que vão ficando cada vez mais parecidas com as da crônica o ficial, geralmente celebrativa. Não me cabe, aqui, interpretar as contradições ideológicas dos su jeito que participaram da cena pública. Já se disse que "paradoxo" é o nome que damos à ignorânc ia das causas mais profundas das atitudes humanas. O sr. Abel, paulista de quatr ocentos anos, descendente do barão de Cocais e neto de um coronel da Guarda Nacion al, acaba imiscuindo-se em todas as manhas e manobras do populismo ademarista; m as não suporta a aliança Ademar-Getúlio. D. Brites, de valente estirpe florianista, cujos pais se manifestaram pró Hermes d a Fonseca e contra Rui Barbosa, e que cultua religiosamente a imagem dos líderes t enentistas de 22 e 24 e os homens da Coluna Prestes, põe-se em 32 contra Getúlio e a favor dos políticos paulistas, que ela mesma não hesitará em qualificar de burgueses: "Entre Júlio e o Getúlio, vá o Júlio que é paulista". O sr. Antônio, saído do meio pobre, duas vezes emigrante (da Itália para o interior de São Paulo e daí para a capital), aproxima-se respeitosamente do integralismo e de s eu líder cultural, fica indignado com a ação do Estado Novo que, em 37, massacrou a Ação I ntegralista, mas, depois da Segunda Guerra, acompanha as propostas getulistas e, enfim, pende simpaticamente para o esquerdismo que levou seus filhos universitári os à prisão: "Meus filhos me chamavam de fascista, mas eu me tornei socialista por c ausa deles. Agora, acho que eles têm razão". Explicar essas múltiplas combinações (paulistismo de tradição mais ademarismo; ou tenentis mo mais paulistismo mais comunismo; ou integralismo mais getulismo mais socialis mo...) é tarefa reservada a nossos cientistas políticos, que já devem ter-se adestrado nesses malabarismos. O que me chama a atenção é o modo pelo qual o sujeito vai mistur ando na sua narrativa memorialista a marcação pessoal dos fatos com a estilização das pe ssoas e situações e, aqui e ali, a crítica da própria ideologia. Veja-se, por exemplo, como o sr. Antônio foi capaz de compor, na sua autobiografia : 1)0 fato em si; 2) uma centelha de crítica pessoal; e 3) a convenção idealizadora fi nal. Primeiro, ofato: "Na ocasião, antes da tentativa contra o governo, ele [Plínio Salgado] pensou que ia ser ministro da Educação e levou os integralistas para o Rio" . Depois, a observação crítica pessoal: "Eu não fui. E disse à minha mulher no dia do golp e do Estado Novo, 10 de novembro de 1937: 'Netta, o integralismo acabou'. Dito e feito. Mas o Plínio não tinha envergadura varonil, era um intelectual, não era um polít ico". Enfim, o estereótipo mítico, peculiar ao grupo integralista: "Depois de 38, o Plínio foi para Portugal e lá ficou amigo de Salazar, mas ele era superior a Salazar ". A memória de d. Brites traz em si uma complexidade ideológica ainda maior. A narrati va que ela faz das opções políticas de sua família é exemplar, quanto à coerência; republicanos, abolicionistas, florianistas anticivilis tas, anticlericais, tenentistas, colunistas, seus avós e pais sempre combateram na trincheira jacobina, que já no fim do século xix era chamada "vermelha" ou "radical ". Tudo isso repercutiu na sua infância e adolescência. O episódio da avó afrontando Rui Barbosa ("Baderneiro-mor!") ilustra o estado de ânimo político reinante na família. Já adulta, acompanha com paixão as investidas dos tenentes. Os Dezoito do Forte de C opacabana em 22, a Revolução de 24 em São Paulo e a Coluna Prestes são pontos de referênci a absolutamente positivos na sua biografia ao mesmo tempo pública e sentimental: Meus irmãos abriram em 22 no Diário Nacional uma subscrição para levantar um monumento a os Dezoito do Forte de Copacabana. Os Dezoito do Forte foi uma das maiores admir ações que nós tivemos. Todos foram admiráveis. [...] Vibramos muito com os Dezoito do Fo rte; aqui em São Paulo falava-se na Semana da Arte Moderna, mas tenho idéia de uma c oisa de grã-finos, que nada tinha de popular. [...] Já se sabe, tomamos logo o parti do de Isidoro. Ninguém gostava de Bernardes porque 24 foi uma conseqüencia de 22. Quanto à Coluna: "Nós acompanhamos a Coluna Prestes por um jornal clandestino, O 5 d e Julho, impresso no Rio. Apesar da censura toda, nós acopanhávamos o vaivém da coluna , sabíamos onde Prestes andava. Nós copiávamos os comunicados do jornalzinho, mimeogra fávamos, depois saíamos à noite e pregávamos nos postes". Como se percebe, trata-se também de uma memória grupal: "nós... nós... nós... nós...". Igual mente grupal é a evocação do tenente Siqueira Campos, que aparece como um ser de eleição, verdadeiro objeto de culto coletivo, atitude para que convergem, em 30, a esquer dista Brites e o direitista Antônio: "Em maio de 30 Siqueira Campos morreu. Nessa ép oca era um ídolo [...] uma espécie de semideus que transitava, tínhamos a impressão de q ue ele era alado, tinha-se sempre notícia dele. Era uma figura mitológica quando o a vião em que viajava caiu no rio da Prata. O corpo dele não foi encontrado rio abaixo , foi encontrado rio acima. [...] Afonso Schmidt escreveu um artigo lindo dizend o que o corpo dele em lugar de ser encontrado a jusante foi encontrado a montant e porque o seu destino era subir". Como entender a sua "virada" entre 30 e 32 contra o getulismo e, por tabela, con tra os próprios tenentes que eram, afinal, os braços militares do político gaúcho contra as oligarquias regionais? Virada "pau- lista" que, no entanto, não a afasta absolutamente da admiração que continuará alimentan do pela ala esquerda, radical, do tenentismo e da Coluna, aquela que, de 30 em d iante, será absorvida ou ultrapassada pelo Partido Comunista. A sua memória, hoje, dispõe as coisas de modo a separar drasticamente as ações tenentist as, sempre heróicas, de 22, 24, 26... do quadro selvagem da entrada em São Paulo das tropas contra-revolucionárias. D. Brites, professora primária, agente civilizador do estado mais moderno do país, s ente a chegada dos getulistas como uma invasão de bárbaros que arrancam as correntin has douradas das descargas, arrebentam pianos a coronhadas e pilham as porcelana s de Limoges e até as samambaias de estimação de sua família itapirana. Sem identificar- se economicamente com as senhoras da alta burguesia, que promoveram entusiastica mente a revanche de 32 e bradavam nas ruas: São Paulo é dos paulistas Tenente, abaixa a crista D. Brites sente-se solidária com uma realidade regional e cultural de que a classe alta parece ser a grande defensora. Essa identificação ideológica é a da professora e é a da cidadã paulistana: a atividade cultural específica e o entrosamento com sua cida de e seu estado pesam, aqui, mais do que sua reflexão sobre a origem classista de 32. Ressalte-se também o caráter eclético que assume sua memória política. Há a lembrança do fato "Não posso precisar que mês foi, não sei se em março ou abril, o Getúlio veio a São Paulo. Ele desembarcou na Estação do Norte e veio em carro aberto até o centro da cidade com uma manifestação popular enorme". Depois, vem a atribuição dessa popularidade (juízo): "Ha via uma oposição tremenda ao PRP". Percebe-se que d. Brites interpreta o triunfo de Getúlio em São Paulo: "Uma oposição tre menda ao PRP", oposição que ela atribui a terceiras pessoas, sem empatia, quando, a rigor, todo o seu passado familiar e pessoal, tenentista, deveria fazê-la incorpor ar-se francamente a essa mesma oposição. Mas, aposteriori, sua opção pró-32 e seu maciço ant igetulismo durante o Estado Novo suspende aquele tenentismo apaixonado dos seus vinte anos e apresenta com um tom distanciado, e até mesmo hostil, a opinião popular antiperrepista que abriu os braços a Getúlio em 30: "O Getúlio foi muito aclamado e q uando chegou ali na praça da República, um rapaz, o Hermenegildo Urbina Teles, fez u m discurso vibrante saudando Getúlio, um discurso que fez época. Mas era um palavrea do, não tinha nada de social: eles só queriam derrubar o PRP para subir o Partido Democrático". Aqui, o distanciamento é total: eram eles ( não nós) que queriam derrubar o PRP. Logo adiante, vem uma justificação regionalista: "Nós estávamos contra ele [Getúlio] e dizía mos, para grande escândalo do meu cunhado: 'Entre o Júlio e o Getúlio, vá o Júlio que é paul ista' O que segue é a crônica de 32: crônica que é capaz de justapor o discurso regionalista c om certas entradas críticas que recuperam a posição tenentista-esquerdista: "Em 1932 São Paulo inteirinho trabalhou. Foi um trabalho bonito, de solidariedade. E o Brasi l inteiro veio contra São Paulo. Nós fomos guerreados em todas as frentes: de Minas, do Rio, do Paraná...". Mas: "Quando chegou 32 houve a Revolução de 32, que foi tipicamente uma revolução burgue sa, porque foi a burguesia de São Paulo que se levantou: os Moraes Barros, os Paes de Barros...". A memória política parece ser, assim, um jogo sinuoso, aparentemente sem vitória certa , no qual ora a ideologia dominante no grupo assimila as conquistas da observação di reta, ora esta contradiz aquela minando-a por dentro e deixando à mostra sua parci alidade. Nem sempre a memória se beneficia, com em d. Brites, da consciência das contradições; pe rsonalidade escrupulosa, sabe alinhar observações contrastantes quando as crê justas: "Quem botou ordem no trabalho do menor com muita demagogia foi o Getúlio. Foi ele que criou as leis trabalhistas". O sr. Abel, ao contrário, é um participante horizon tal dos acontecimentos políticos. O caráter unidimensional com que ele vê os fatos públi cos dá à sua memória uma notável transparência ideológica. É uma força de identificação que f eu testemunho uma peça de representatividade. A memória do soldado de 32 não altera a historiografia oficial do movimento: confirma-a como o exemplo ilustra a regra g eral. É uma voz no coro quase uníssono que o tem celebrado, é um modelo de adequação do in dividual ao grupal. Exemplo que daria força à teoria de Halbwachs sobre a interpenet ração profunda de coletivo e pessoal. Depois de mencionar com indiferença as ações tenenti stas de 22 e 24, Abel, homem ligado por velhos laços familiares aos donos do apare lho perrepista, assume diante da entrevista o tom de quem fala à posteridade: "Est e que vos fala, Abel R...". A identificação nasce de uma comunidade afetiva e ideológica entre o indivíduo e o grupo local dominante, comunidade que a ação conjunta só poderia reforçar. Ora, o primeiro re gimento que se forma para combater Getúlio, em 32, sai precisamente do Instituto d o Café, onde Abel é funcionário e valido desde a administração Carlos de Campos. Sua memória vem, assim, desde o começo, amparada pelo grupo, como também o roteiro com pleto do movimento e a determinação do seu sentido histórico. O que a sua evocação possa t er de pessoal, de singular, no caso de passagens que ele testemunhou de perto (a morte de Miragaia, por exemplo), acaba se entrosando na interpretação oficial dos f atos: "Primeira vítima da revolução", "Segunda vítima da revolução", são expressões consagrad quando se fala dos homens do MMDC e, no entanto, não respondem aos fatos vistos pe ssoalmente pelo mesmo Abel, pois o assassínio de Miragaia e Dráusio foi causado por atiradores escondidos que, segundo se depreende do relato, teriam sido provocado res e, na versão de d. Brites, homens da extrema direita ligados ao Fascio e não age ntes da polícia federal. Em outros termos: a testemunha ocular lembra-se evidentemente melhor dos pormeno res do fato, mas nem isso escapa necessariamente à versão corrente que o seu grupo d e apoio produziu a partir do mesmo fato. O sr. Abel não estabelece qualquer ligação en tre a morte de Miragaia e o terrorismo fascista que começava a implantar-se. No se u quadro de referência político só se impõe o contraste Getúlio versus Paulistas; e é dentro dele que vai trabalhar sua memória do MMDC. A evocação que o sr. Abel faz dos acontecimentos de 32 é grupal, na medida em que desd e o início foi partilhada por amigos, parentes, colegas do Instituto do Café, pelos homens, enfim, da sua classe e da sua geração. Se avançarmos no tempo e ouvirmos o que ele diz sobre figuras políticas dos anos 50 e 60, como Ademar de Barros ejânio Quad ros, com quem privou como funcionário palaciano, e de quem recebeu um tratamento f amiliar, veremos que sua imagem desses personagens coincide basicamente com a ve rsão mais conhecida que deram deles os seus respectivos partidários. Apesar de tão díspa res, Ademar ejânio são, para Abel, duas faces do poder e, como tais, homens que ele deve admirar e respeitar. Seu juízo pessoal sobre cada um (juízo que poderia ser enr iquecido pelo convívio demorado) em nada difere do estereótipo que acabou sendo form ado de ambos. A "esperteza" de um, a "correção" moral e vernácula do outro, tudo entra na mesma mitologia, chegando até o anedotário. No caso de Jânio, conhecido já nas salas dos Campos Elíseos e não na época "heróica" das Vilas Marias e dos botequins da Sé, preva lece a versão pequeno-burguesa do homem distinto, absolutamente sem caspas, impolu to: Então era honesto ou não era? Era pobre, aquelas viagens que ele fez pagaram tudo pr a ele, ele só tinha uma casa. Era um homem extraordinário. Algum presidente teve 6 m ilhões de votos? [ 1 Um homem com uma in teligência fabulosa. Um português como eu não vi outro até hoje! Pronunciava bem, parece que estudou califasia para poder falar, orar, pregar e fazer discurso. Trabalha va uma coisa horrorosa! Ele dormia duas ou três horas por dia, tomava injeções, eu vi Jânio tomar soro; um homem que conseguiu 6 milhões de votos! Voltamos assim ao ponto de partida: a participação na cena pública eleva, sem dúvida, o nível de informação do narrador, mas não o liberta, necessariamente, da modelagem a que, afinal, vão sendo submetidos homens e acontecimentos. A lembrança de certos momentos públicos (guerras, revoluções, greves...) pode ir além da l eitura ideológica que eles provocam na pessoa que os recorda. Há um modo de viver os fatos da história, um modo de sofrê-los na carne que os torna indeléveis e os mistura com o cotidiano, a tal ponto que já não seria fácil distinguir a memória histórica da memór ia familiar e pessoal. As crises econômicas que rondaram São Paulo durante a Primeir a Guerra e no fim da década de 20 nos são pintadas ao vivo pelas recordações de apertura s familiares que angustiaram quase todos os entrevistados. Se acompanho o menino Amadeu que, nos anos da guerra, ia junto com os irmãos buscar sopa na fábrica, pene tro, de relance, na pobreza dos bairros operários cheios de imigrantes e desempreg ados. É a pré-história de uma crise que vai estourar na greve geral de 1917: Com a guerra veio muita miséria, nós passamos muito mal aqui em São Paulo. Lembro, na rua Américo Brasiliense, da Companhia Mecânica Importadora que ajudou muitos desses que não tinham possibilidade de aquisição: um porque o pai foi pra guerra, outros porq ue tinham dificuldade de encontrar trabalho. Na hora do almoço e na hora da janta ela dava uma sopa para famílias do Brás, da Moóca, do Pari, da classe menos favorecida pela sorte. Com meus dez, onze anos, a miséria era muito grande aqui em São Paulo. Meus irmãos e eu íamos com um caldeirão e eles enchiam o caldeirão de sopa e davam um pão. Em 1917, no finalzinho da guerra, veio uma miséria extrema. A mesma situação de carência é localizada ora no fim da guerra, ora imediatamente depois da Revolução de 24. O sr. Ariosto associa a esta última os assaltos aos grandes depósit os de mantimentos, passagem confirmada por outros depoentes: Depois da revolução o povo sentiu-se com fome. Nas igrejas davam mantimentos. As fábri cas pararam muito tempo e os operários não tinham mais mantimento, não tinham nada nas suas casas, então começaram a saquear o Moinho Santista, o Matarazzo. Traziam sacos de farinha nas costas e levavam pa ra os seus. Até armazéns eles saquearam. Depois a polícia foi de casa por casa buscar os mantimentos. Eles recuperaram os sacos de farinha para os moinhos. Até lá em casa bateram e quiseram entrar, e meu pai: 'Aqui não tem nada, não somos saqueadores". M as quem saqueava é porque tinha fome. Chegando a esta altura, a memória do sr. Ariosto projeta o ponto de vista da sua s ituação de asilado, hoje, misturando noções presentes com a matéria vivida do passado: "Ma s quem saqueava é porque tinha fome. É como está acontecendo agora, derrubam as carroças de mantimentos, os caminhões que vêm de fora: as pessoas saqueiam batata, arroz, pa ra comer. Estou lendo e analisando; está acontecendo a mesma coisa, sendo muita a secamente . Foi seu ponto final como engenheiro. mas não chegou até nós". diziam que a italianada estava a favor da revolução. Como sugerem os psicólogos sociais da memória. diversament e do que se deu nos meios pobres: "Quando se é criança não se sente porque continua-se a comer do mesmo jeito. Nós e stávamos comendo do ganhado. A versão dessa mesma realidade familiar. porque ia ao teatro à noit e. Nunca mais arranjou trabalho nenhum. Ariosto relaciona as pancadarias do Primeiro de Maio com a repressão policial contra os estudantes. Eu morava no meio. D. Eu mesma tive aluno Isidoro. Escreviam na s paredes: Isidoro vem aí! [. com a Grande Guerra não se encontrava trabalh o. Acho que todas as pessoas são assim. Brites encarece vigorosamente a adesão popular e procura demonstrá-la: "O povo ad orou tanto o Isidoro que nas matrículas de grupo. Sintomat icamente. Durante o dia. é a explicação do sr. Note-se que a data precisa (a n oite de 4 para 5 de julho) é lembrada porque coincide com o primeiro aniversário de sua menina: "Quando a menina completou um ano. Mas que não tem para todos o mesmo significado. e nos deixa ver que o desemprego do pai não afetou as crianças. chegava às nos sas mãos pelo correio. Brites. Em Outro momento. p elo êxodo imposto a tantos paulistanos. Acontecimento político que marcou a maioria dos entrevistados foi a Revolução de 24. em que o pior de tudo é o desenraizamento. pregávamos nos postes". O 5 de Julho. O tiroteio se cruzava entre os soldados na Igreja da Glória e os outros. Alheia ao significado do movimento.miséria". tive que dizer. a estudar do mesmo jeito. afinada com a Revolução de 24. leva adiante o c omentário. Recortávamos os artigos. Disse uma vez: 'O céu tão azul e eu sem trabalho!' ". durante a noite ouvia o tiroteio. é de surpresa e angústia o tom de toda a sua evocação. ela o narra como a irrupção de algo subitamente ameaçador . que d.. Jovina. como a de d. A visão dos acontecimentos está sempre aclarada pelo foco da vida doméstica: é o meio de quem está no meio e dentro das linhas de fogo: A gente nunca quer sair da casa da gente pra ir pra nenhum lugar. as ordens do tenente Cabanas. havia pelo men os 2% de Isidoros. só fica o que significa: "Os aviadores tiveram ordem de jogar bombas no Brás. Convém precisar a afirmação: a Revolução de 24 e as manobras de Isidoro e se us tenentes acordam nela apenas a lembrança de uma situação aflitiva... contada pela irmã. Minha mãe chegou e disse: 'A cidade está cheia de soldados de carabina embalada. Foi a revolução do Isidoro Dias Lopes.... Meu quarto era perto do dele e eu o ouvia dizer para minha mãe: 'Eu era capaz de pagar para que me deixassem trabalhar'. Tratando da memória pública. era a revolução". De fato. os tiros sacudiram a casa. era o dia 4 de julho. a urgência de abandonar casa e pertences.. que assim resume. E o bar ulho do canhão. Naturalmente alterou a econom ia da casa. Mas quando foi um dia. Eu só tinha medo de morrer no escuro. o sr. O povo achava que Isidoro era a redenção". no depósito de pólvora. se uniu aos revo ltosos e partiu" (sr. o relato das irmãsJovina e Brites dá a medida de uma outra faixa de opinião. Cortaram as luzes e. a crise chegou a atingir: "Papai vivia desempregado. para que ficasse armado. só quando já não pod e ficar mais. por isso. Sua família morava na Bela Vista e não precisou fugir. lá embaixo na rua Tabatingüera. eu estava entrançando o c abelo e prendendo com grampos. um Bartlett e um William Stern.] Um jornal clandestino. "O povo nunca se interessou". A lembrança pessoal de cada uma das irmãs recebeu o reforço da consciência política da famíl . O Humberto não acreditou. Sua família não fugiu enquanto os rebeldes dominavam a situação. 82. o barulho era infernal. Alice não se refere a f atos políticos. depois de uma discussão com papai. Ficamos na rua da Moóca.. escoradas em profissão liberal. de noite. ouvimos os tir os de canhão. A Folha da Manhã dava notícias simpáticas sobre Isidoro com um pseudônimo que não me lembro. páginas atrás. e que. Jovina: "Encontrei aqui muito entusiasmo do povo por Isidoro. Ariosto). sete anos depois. tirávamos cópias. acentua as simpatias despertadas pe los tenentes. Até mesmo famílias de classe média. os soldados correndo. cujo pai foi um dos mais operosos engenheiros do começo do século. Antônio. hoje. vai ter uma revolução'. eu ia me agüentando e ficando mais um pouco. a reação popular a 24. D. Meu irmão Amieto. Fugir às pressas sob o silvo das balas que e spoucam no bairro e ameaçam os quintais e as paredes é uma experiência rara. Fora do Brasil. e ao morto. do clarim e do oboé. desenforma. as mães que trabalhavam com as criancinhas de peito. lança-o de si. aperta. o mais ou menos. como se pode ver seguindo a biografia política inteira de d. é leitura do cego. depois de 30: Augusto Pinto. aplaude com as palmas. mi litantes e. recolhe-a dos varais. desfaz-lhe as pregas. Com o nó dos dedos. São pessoas. o dois. o casal Rosenberg. amaina o vozerio. batuca. a desenhar-se nos rostos queridos e nos modelos admirados. o tu. dedilha as teclas do cravo e do piano. asperge e exorciza. palma contra palma ou entrançados os dedos. Luís Carlos Pr estes. impõe silêncio. jornalistas. empunha o tubo das madeiras e dos metais. Domine. os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. a mão unge de óleo no crisma enquanto com a des tra o padrinho toca no ombro do afilhado. o pouco. doadora do sagrado. serve. remove-o. enrola e desenr ola. desfolha a verdura. commenclo spiritum meum . Taibo Cadórniga. enforma. Sac co e Vanzetti. os noivos estendem as mãos para celebrar em o sacramento do amor e dão-se mutuamente os anulares para receber o anel da ali ança. Entrança e destrança o cabelo. massageia o músculo dorido. Memória povoada de nomes. sopesa com a palma. o muito. As mãos postas oram. arrocha e afrouxa. baixando-o. o nunca. No Brasil. corta em quina. Faz viver alçando o polegar. belisca. o ele. apalpa e calca com a polpa. Lucinda de Oliveira. A mão apanha o objeto. operários. Brites. O r oteiro começa. enrola. Maria Luísa Branco. sova. Espreme até extrair o suco. depena a ave e a desossa. em primeiro plano. guarnece. as vítimas do anticomunismo. o um. roça. que têm p eso e significam para d. empunha o arco do violino e do viol oncelo.. descasca-o. amassa. O seu primeiro livro soc ialista foi uma obra do humaníssimo Afonso Schmidt. É voz do mudo.. A mão abre a ferida e a pensa. no mesmo aceno. espalma. esmurra. A mão arranca da terra a raiz e a erva. as mãos servem o pão da eucaristia ao comunga nte. Acusa com o índex. percute o tambor e o pa ndeiro. protege com a concha. A mão. In manus tuas. Soergue-a e deixa a cair. mistura. Afonso Schmidt. amacia. manda matar. cuja b elíssima lápide d. Apanha com gestos o eu. Olga Benario. sobrevivendo longamente aos acontecimentos. o ali. Mede com o palmo. Natália Pinto. Eriça o pêio e o alisa. A mão rege a orques tra. marca o compasso. colhe da árvore o fruto. o aí. escarva. José Maria Crispim. portadora do sagrado. enxágua. dep ois. os pais de alunos que inchavam as p ernas de varizes nos salgadouros do frigorífico Armour. dedilha as cordas da harpa e do violão. o hoje.ia. a mão absolve do pecado o penitente. Tra z ao mundo a criança. junta e espalha. bate. A mão faz som: bate na perna e no peito. A mão. MEMÓRIA DO TRABALHO OS TRABALHOS DA MÃO Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de urna só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. afe ita.. o mesmo homem que ela e a irmã V ivina já tinham lido e ouvido falar em memória do herói familiar. polvilha. as tecelãs Leonor Petrarca. Ensaboa a roupa. Os dedos cerram e abrem o cami nho do sopro que sai pelos furos da flauta. Com a mão o fiel se persigna. achega-o ao corpo. é voz do surdo. Brites. Enru ga e desenruga o papel e o pano. torce. Siqueira Campos. o amanhã. Faz levantar a voz. Unge e esconjura. contrai e distende. a mãe de Augusto. estende-a ao sol. Cândido Portinari. o três. A mão mistura o sal à águ a do batismo e asperge o novo cristão. esfrega. A mão joga a bola e apanha. As crianças operárias do Ipiranga e da Lapa. Saúda o amigo balançando leve ao l ado da cabeça e. o aqui. assim. Debulha o grão. depela o legume. recobre. enfarinha. urge e manda parar. Piloa de punho fechado. guarda-a. as mãos consagram o novo sacerdote. O não. unta. apalpa. A mão tateia com as pontas dos dedos. esgana o inimigo. arranha. unha. esbofeteia. escarifica e escarafuncha com as unhas. entrouxa. toca. o ontem. a bênção e o voto da paz. as mãos levam a extrema-unção ao que vai morrer . dobra-a. e não conceitos abstratos de "direita" e "esquerda". A mão sirva de exemplo. Elisa Branco. desca rna o peixe. apara e rebate. leva-o à boca. estira o braço e diz adeus.. acaricia. o nada. A mão prepara o alimento. A mão puxa e empurra. S iqueira Campos. Brites nos dá a conhecer. E a consciência manteve-se acesa. Limpa. raspa. estala as asas das castanholas. O ourives lapida co m diamante. pregam tábuas no assoalho. traça. apura com o esmeril. torce e arrebita. recortam janelas. Mas seria um nunca acabar dizer tudo quanto a mão consegue fazer quando a prolonga m e potenciam os instrumentos que o engenho humano foi inventando na sua contrad ança de precisões e desejos. A mão lavra a terra há pelo menos 8 mil anos. cheio de exigências e receios. lápis ou pincel na mão. Prende o tecido nos aros do bastidor: e tece e urde e borda. A mão da mulher tem olheiros nas pontas dos dedos: risca o pano. dão à pintura a última demão. a mão teria. mancha. reescreve. A mão do oleiro leva o barro ao fogo: tijolo. por acaso. empilham pedras. cancela. desde que criou a agricultura. decepa dedos distraídos. O escultor corta e lavra com o escopro e o formão. Com a pá. O escritor garatuja. ata m bambus. penetra com a cunha. cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges. para cada um deles. empastela. cobre m com telha. rascunha. intelectual. rasura. alinha. retoca. co m a broca o fura.. com a tenaz o verga. costura. Ele tem. Morar é possível porque mãos firmes de pele dura amassam o barro. engasta com a pinça. desenterroa. acionam manivelas. O ferreiro malha o ferro na bigorna. Há o período de adestramento. Empunhando o machado e a foice. gradeia. por força. pule com o buril. afina com o buril. mol dam o concreto. apag a. trançam ripas. desempenam o reboco. com o cobre o solda. apara com o formão. estr uma. Pressionam bo tões. pontilha. Manejando o cabo dos utensílios de cozinha. corta com o cinzel. crava pregos com o martelo. dócil e por isso violenta. goivo ou sapé. com o fogo o funde. MEMÓRIA DO OFÍCIO (Alfredo Bosi) O trabalho manual. pregam ripas no forro. Na Idade da Máquina. limpa o mato. A mão do vidreiro faz a bolha de areia . Com a picareta. com a lima o rói. caseia. alinhava. recua ou decai. Com o regador. água. chumbam batentes. entalha com a talhadeira. e as mãos manobram nas linhas de montagem à distância dos seus produtos. esboça. Com as mãos. corta com a serra. Com o rastelo e o forcado. rej un tam azulejos. A máquina. espetar os alimentos sólidos e conter os líquidos que escoariam pelas junta s das mãos em concha. quando começou o Neolítico em várias partes do globo. também sabe cobrar exigindo que vele junto a ela sem cessar: se não. marcheta com as tachas. controlam painéis. cerze. escreve. ligam e desligam chaves. pesponta. ocupou boa parte da vida dos nossos entr evistados. A mão do lenhador brande o machado e racha o tronco. bo leia com o torno. depois. Foram 14 milhões os acidentes de trabalho só no Brasil de 1975. abre covas. cedendo à máquina ta refas que outrora lhes cabiam. trinchar as aves. Vem o carpinteiro e da lenha faz o lenho: raspa e desbasta com a plaina. uma longa fase . assentam tijolos. remata. encera e l ustra com o feltro. e do sopro nasce o cristal. O gravador entalha e chanfra com o cinzel. argamassam juntas. Desgalha com a f aca e o tesourão. o homem pode talhar a carne. falanginhas e falang etas. sulca e limpa. cumpre exata o que lhe mandam fazer. desbasta a floresta. armam o madeirame. enquadra. escava. chuleia. O pintor. emenda. pincela. se poupa o músculo do operário. enfia a agulha. uma dupla significação: 1) Envolve uma série de movimentos do corpo penetrando fundamente na vida psicológic a. Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve mas dúcil anatomia: oito ossinhos no pulso. rabisca. o homem semeia. MEMÓRIA DA ARTE. risca. poda e colhe . alisa e desempena com a lixa. abrem portas. diluem a cal virgem. debux a. mas. puxam e empurram alavancas. perdido as finíssimas articulações com que se casava às saliências e reentrâncias da matéria? O artesanato. com a enxada revolve a te rra. mecânico. aprumam o fio. Como podia lavar a roupa no gelo? Tirar água naquele frio era difícil também. É uma necessidade. fazia serão. o sr. Hoj e. não só omo fonte salarial. Alice começou a trabalhar com dez anos num a oficina de costura: as meninas varriam a sala. D. o exercício da mesma atividade exploratória do ser human o. lavava t udo à noite. Alice vê o trabalho como uma atividade natural. uma noite. Por isso. e não deixa de esclarecer que "fazia comidinha de verdade". ficava até meia-noite. Seria trabalho perdido procurar alguma palavra de revolta nessas memórias de sacri fício e exploração. o trabalho significa a inserção obrigatória do sujeito no sistema de relações econômicas e sociais. Ele é um emprego. o calçado em um só par de sapatos que encharcavam quando ch ovia. mais dinheiro importava em trabalho novo. Viúva. 2) Simultaneamente com seu caráter corpóreo. continua na lida sendo capaz de sentir o caráter estétic o e liberador do exercício manual: "Eu varava a noite inteira na cozinha trabalhan do nas flores e achava lindo aquilo.. pareciam um fantasma. juntavam os alfinetes do chão. quando arrumo as gavetas e mexo na s minhas coisas estou sempre recordando e me encanto". d. Temos. principalmente durante os anos de infância: "Eu trabalhava. é constatar as dificuldades objeti vas da situação familiar. fazia uma bainha. "extra": " Ganhava um pouquinho mais. Antônio. me acalmava. A roupa s e resumia a um só vestido. Até hoje me lembro. no fundo." Dos oito entrevistados. mas também como lugar na hierarquia de uma sociedade feita de classes e de grupos de status. o serviço doméstico feito muitas vezes à noite. minha mãe trabalhava. "Desd e criança o meu brinquedo era fazer comidinha pros outros. quando se encerrara o tempo do traba lho produtivo: "Na casa o serviço era pra valer. Ganhava uns dez mil-réis por mês para trabalhar desde as oito horas até as sete horas da noite. Às vezes eu encerava o chão. trabalho e jogo representam. Fiquei indecisa. 15 D. pode-se constatar qu e todos se detêm longamente e com muito gosto na descrição do próprio ofício. o máximo que ela pode dizer. Naquele tempo. o sr. não lhe permite pensar de modo crítico. cinco precisaram ganhar a vida desde a infância. com certeza eu tinha já uma tendência para iss o. o sacrifício a que a submetia o seu estado de aguda dependência. [. A lembrança dos serões na casa da "madame" está ligada a horas e horas de jejum: "Sábado era o dia que mais se trabalhava. depois de casada . meu aniversário passava desapercebido [. um pedaço de pão. Risoleta. E todos lembram com prec isão o que faziam e o quanto recebiam. As famílias estendiam suas roupas na cerca. Como observa Celestin Freinet. Alice que. mas acabei quebrando o gelo da tina e puxando água do poço. portanto. Talvez se possa dizer da memória do trabalho em d.. ela voltava então para casa pingando e perdendo o dia de serviço. ao menos na aparência verbal do relato. uns quinhentos réis. que se acaba confundindo com o próprio cotidiano do indivíduo adulto. um dos mestres da pedagogia experimental moderna.] eu não tive Natal na minha casa". D. o sr. tinha uma sensação muito boa". a gente ficava com aquilo". a água de nossa tina estava uma pedra de gelo... Ao trabalho de costura. sequer ressentid o. A madame servia um chá. arrumavam as linhas nas cai xas. que foi cozinheira mais de meio século. que atender a essas duas dimensões do trabalho: sua repercussão no tempo subjetivo do entrevistado e sua realidade objetiva no int erior da estrutura capitalista. de práticas. Quanto ao primeiro aspecto. Ariosto. toda emendada com arames.j Eu era a alegria da festa dos outros. ao lembrar-se desses anos. tão bem ilustrado na perene gratidão pelas patroas que lhe davam jantar quando ela varava os serões costurando. onze horas. liberador de energias. lembra que 'gostava de brinca r de comidinha". sua atividade se restringe quase que só a l embrar: "Fico neste quarto vendo fotografias. O teor "alienado" da sua visão de classe . as roupas ficavam duras de gea da. Amadeu. como o comer e do rmir. não tomou corpo a distinção entre o peso sacrificial das tarefas e o seu aspecto lúdico. depois que as crianças subiam para dormir. "Eu já chuleava. Risoleta." Naquele clima de penúria. privada do trabalho que lhe é tão caro. O episódio do poço gelado dá perfeitamente conta desse laço de sacrifício e necessidade. subjetivo. d. Alice. De manhã estava tudo limpo". Era pouquíssimo ".. prolongado pelo resto da vida. a corrente do poço era muito velha. veio acrescentar-se.. e não ganhava extra. E a canção que diz tudo: . .. veja. parece que em tudo teve muita sorte'. o sr.. com o 1. vou morar com meu irmão e trabalhar. Ainda hoje. A recordação é tão viva. Ajuntando A com R. em clégradé. Ariosto formou sua consciência t rabalhista que lhe preparou uma firme adesão ao getulismo. esta é C e assim por diante. A rosa tem uma porção de cores. comenta: "Talvez quem vá ler essas linhas diga: 'Mas esta senho ra. As pétalas iam secar num tabuleiro. 2) Ao contrário do que acontece com esses primeiros empregos. enquanto a esquerda vai enrolando a tira verde. que é sempre assim: o pobre que está pisado embaixo dela tem que se assujeitar". esta é B. no asilo de indigentes. e do pai. nós enrolávamos torcendo assim. mas esses tons diferentes consegui segurando a ponta das pétalas com a mão para que não mergulhassem no roxo. o desespero leva ao enfart e e à morte. Vendi barato meu estoque de flores. cortávamo s as pétalas e mergulhávamos na anilina. parece falar dos trabalhos que presidem à arte do dese nho: "O professor nos dava um papel com as letras do abecedário e explicava: esta é A. a memória do trabalho vira memória da família: "Em certas épocas. as mulheres não querem usar flor nenhuma no vestido. Ele não se esquece do pai..J Preparar as tonalidades do dégradé para as pétalas. É uma fase longa e escura da sua vida profissional... ensinan do-o a pegar no pincel e a escrever sem borrar o pergaminho: "Ariosto. ma is claras. Minha mulh er me queria como se quer uma criança. iniciada. em casa. modeladas à imagem das naturais median te um processo que requeria um duplo esforço de observação e habilidade: A Elvira e eu ensinávamos: pegávamos uma rosa natural. cosi?".. O a prendizado manual começou cedo. E rememora ndo como dominou a escrita. Alice. [. às vezes. capitalista. nem um cravo. sempre que os ofícios exigiam destreza. moita attenzione! Com incia a fare! Bravo.] Trabalhava das sete da manhã até as dez horas da noite sem ganhar nada". A lembrança daqueles anos gastos no cansaço da rotina é a de um menino que foi literalmente "entregue" pelo pai ao dono do Hotel d'Oeste. quando secavam. Assim. depois de tantos e tantos anos de trabalho forçado e ininterrupto. Bravo! Agora enrole este sozinha". pela mulher. Essas violetas. Nesses empregos sem salário nem prazer lúdico de criar coisas com as mãos. quando sobrevém a crise. Mas eu preciso falar o que é". entregue como escravo: "Trabalhei como garçom cinco anos sem ganhar um tostãozinho. calígrafo. dizendo embora que ganhava pouquíssimo. desde pequenino. são de anilina roxa. flores artificiais. tudo para ela foi bom.. as pessoas deveriam usar ao menos uma camélia no ombr o. bravo. [. A professora Brites e o operário Amadeu sonham hoje com os lugares e as pessoas que compuseram o seu mundo de trabalhadores: "Sonho. fazer flores e vendê-las passa a ser não só o ei xo do trabalho como da vida doméstica do sr. A certa altura. o sr. [. os pais trabalharem duramente. Ariosto vê. O artífice Ariosto (como o metalúrgico Amadeu) descreve minuciosamente o fabrico do seu objeto. aliás. era um segre do.Maria lavava. víamos como era a rosa. D. que está chegando o inverno. Ariosto. De sua vida tão laboriosa ele recorda dois tipos de s erviço: 1) Os que importavam em puro sacrifício. é com gosto que o sr. mais fortes. Ariosto se detém para recordar seus gestos e sua perícia. e o menino chorava do frio que fazia. Veio a falência. Ariosto está com o espírito voltado para o grande empreendimento da sua vida: "Até hoje.] Um dia vou deixar este asilo. tão presente. ele pegava na minha mão e escrevia Ariosto". não se vê mais ninguém com flores e agora . ainda posso fazer flores". José estendia. pintando quadros encomendados. pois é uma atividade do casal.. com a mão direita. amassando pão e chamando-o pa ra ajudar ("Eu não quero. não lhe dando nenhuma remuneração a não ser sob a forma de gorjeta: foi entregador e garçom em vários hotéis. n em uma violetinha. acho que ela morreu de desgosto". * * * A fusão do trabalho com a própria substância da vida se dá também na memória de outros entre vistados. A reflexão "mas pa ra ganhar era preciso suar" acompanha a imagem da mãe. que se transforma no desejo de repetir o gesto e en sinar a arte a quem o escuta: "Veja o caule.. não quero!"). Ao lembrar-se dos serões de costura. arejada apenas pela memória da luta que os colegas prec isaram travar contra seus patrões para obterem ao menos um dia de folga: "Ele [Arm ando Scarpelli] lutou contra a classe patronal. nem um macinho de rosas. separávamos por tonalidade. mas. Nos momentos de boa saída do produto essa atividade é c ompartilhada alegremente. que estou t . consi dera-se uma pessoa feliz. O sr. é levado pelo irmão mais velho à fábrica. A unidade do artesão com sua oficina. sempre. sonho com as crianças. é a das tarefas da infância em sua casa. Podem destacar-se três memórias do trabalho em d. ajuda a refinar açúcar. cuja morte está intimamente associada a anos e anos de sacrifício. Risoleta em etapas nas quais a memória encontra sempre o trabalho árduo. a mãe "ficou doente de desgaste". das seções ruidosas e fétidas . ndo os ambientes tranqüilos. para desembocar nas medidas de proteção ao operário e na importância do sindic ato e da legislação trabalhista a partir de Getúlio Vargas. O mesmo contra- . por exemplo. Amadeu com o trabalho é visceral. onde se corria o risco de envenenamento e mutilação: "Na estamparia corta- vam todo mês um dedo. até "areava aquele talher danado de arear. uma lembrança entremeada de expressões prazerosas: "A gente a massava o pão na amassadeira.rabalhando na oficina porque fiquei 44 anos nessa oficina. "era tipógrafo. a p0. Amadeu uma continuidade linear que não se acha. A menina trabalha junt o com os avós. soca arroz no pilão. é também o lugar da ação. para remover a camada de cera. o gesto de verter o ácido nítrico solvido na água. Amadeu passa expressivamente da operação manual ao funcionamento da máquina. do meta lúrgico com sua fábrica. Essa oficina não me sai do pensam ento". trab alhando das sete às cinco. Sonh o com a oficina. com cilindro. dois dedos. e da máquina aos a cidentes. onde se desenhava e escrevia. A madeu não terá feito esses gestos para recordá-los com tanta precisão! O trabalho não é só ação. esfregando a superfície do metal com lixa e pedra-pomes. Mas não conheceu o mesmo enraizamento deste. não é agora só não". faz pão. A relação do sr. além de gravador-estampador. Quantas milhares de vezes o sr. que pão gostoso! Eu tenho sa udades! [. A vida da filha de escravos foi tão ou mais laboriosa que a vida do filho de imigr antes.] Minha in fância não foi ruim. nesse momento é o ácido "que ficava trabalhando oi to ou dez horas para aprofundar as letras que tínhamos cortado com o bisturi".. não comportando uma rígida divisão de trabalho. cessa completamente quando a menina de oito anos passa do Arraial à casa do patrões. A recordação de tantos afazeres guarda o calor de uma vida roceira e doméstica. sovava bem. Sai então da escola e começa a ganhar. desde menino. A pobreza exige flexibil idade.] Meu Deus. É com força e nitidez que reconstrói os gest os do artífice e alterna a descrição da arte humana com os movimentos da máquina. mas também lava roupa à beira-rio. Ultimamente sonho muito com criança". e on de era preciso do pouco tirar o bastante para as necessidades mais elementares: "O povo já vem explorando a vida há muito tempo. o enceramento da placa.litriz. de cada uma das crianças. Risoleta. E d. minha infância foi boa". sofrendo os percalços da doméstica que precisa sair cedo de casa para servir patroas a quem está obrigada por velhos laços de dependência.. dá à biografia social do sr. que a lembrança do operário sabe de cor.. Arturo. era uma vida até bonita! Até bonita. chanfrar a peça. que faz luzir o bordo. O comentário é expressivo: "Graças a Deus agora não tem disso mais". cada operário". varre o terreiro. A evocação do Arraial dos So usas. Risoleta. precisamente na fase de maior penúria. vivi. Risoleta. menino de nove anos. lidava com tintas e com o tempo ficou sofrendo do coração". brinca de fazer comidinha de verdade. e desse regime de mutirão traz uma lembrança alegre. começando pela memória mais remota do p ai e do irmão. Essa narração leve. o irmão mais v elho. Dura nte a Grande Guerra. Atente-se para a primeira frase em que descreve o seu nov o serviço. na memória de d. Durante 55 anos não conhece outro ofício. Amadeu. onde "quase tudo se fazia em casa". como a de um jogo familiar. na mocidade e numa parte da velhice. foi o tempo que eu vivi: a v ida dos alunos. vividas intensam ente por todo o seu grupo de convívio. pois reúne as dimensões corporal. É um campo associativo compl eto. O brilho final prim eiro se dá à mão.. do homem do povo com seu líder. onde nasceu. bem menina. com raspa de tijolo e batatinh a". social e política do trabalho.. moer o esmalte n o moinho para preencher com o seu pó o vão das letras já marcadas.. do trabalhador com seu sindicato. apenas o bastante "para comprar leite e pão". o desenho d as letras e o seu recorte com o bisturi. Vol tam depois as mãos. A memória do trabalho do sr. a proteção com o papel pintado. nem outro espaço cotidiano f ora daqueles muros e vitrôs pretos de fumaça. lúdica. a composição de goma-laca. pais e irmãos. O pa i trabalhava como alfaiate quinze horas por dia e faleceu antes de alcançar a velh ice com uma úlcera no estômago. gostosa! [. depois é a vez da máquina. Das mãos sai o desenho da peça. Essa condição instável divide a biografia de d. na infância. mas o recorda em tons e conotações bem diferentes entre si. Brites: "Enquanto fui professora. en fim. tentand o profissão de caráter verbal e intelectual sem o amparo de um curso humanístico regul ar.se ganhando-se muito pouco por amor ao próximo". como a raspagem do chão com tijolo.ponto se segue à lembrança da verdadeira corvéia que era a tarefa de engomar roupa de linho com cinco ferros de carvão: "Hoje está uma beleza esse tergal que não precisa ne m passar. havendo plena certeza da exploração sofrida. Mas esse longo período ( que durou até depois de d.. obtém um lugar de analista de laboratório junto à rede sani tária do estado. evitando que ela perdesse a hora: "E todo dia ouvia bater na minha porta e ouvia chamar pelo meu nome de manhãzinha". sua fase de engomar e cozinhar para fora dando p ensão para "as famflias chiques da redondeza". Trabalhava. ressentida. quando si nhá-moça a chamava para fazer a lição. Risoleta estava fadada ao trabalho do fogão. de AÇÃO E MEMÓRIA volta a São Paulo. o alug uel subia. Ariosto. as associações divergem claramente. porque se sente explorado. Rejeita. Abel. Nessa vida tão dura a imagem fiel é a de são Benedito que intervém para tirá-la de mais de um aperto na cozinha. O sr. Não sei como peguei esse reumatismo tão feio. Mas faltam-lhe logo o dinheiro para pagar as mensalidades e o tempo de lavar as mãos sujas. burocrático e palaciano. não lhe restava escolha. atendendo pedidos de oração". A perícia de ourives e o ouvido musi cal do cantor lírico acusavam aptidões de artista que acabam se revelando em intuições f elizes: a descoberta das origens do tifo em Porto Feliz e a visão do halo amarelo que rodeava a cabeça dos doentes condenados à morte. d. E como o sr. quem sabe?". agora que estou cega. mas em um ofício que exige também ca beça. no quarto. Como o sr. Na memória do sr. O trabalho continua intenso. Pára. então. Agora as pessoas a procuram confiando nos seus poderes espirituais e não há qu em não saia atendido e confortado. Como se apresentar na escola noturna com aquel as mãos? Alguns anos depois. D. porque era moço. e esse t rabalho era em prol da pessoa humana. Risoleta é amparada pelas filhas e exerce os dons da cura e d a oração.. ento rtando tudo. Já o sr. A passagem estreita é forçada quando o jovem Antônio se matricula na Escola de Comér cio. tende a ser envolto . Mas o reumatismo veio precocemente: "Saía pelotes deformando as mãos. Antôni o passou a juventude oscilando. A lembrança do s tempos de ourives é amarga. Antônio explica-nos o seu trabalho) e uma certeza moral dad a pelo reconhecimento do caráter humanitário daqueles serviços: "Trabalhava-se com muito afinco e com muito boa vontade. os tempos eram de racionamento e havia ainda cinco adotivos para cria r. Aproxima-se com fa scínio do mundo da ópera. Risoleta diz indignada: "Imagina como ficava o rim de quem esfrega o tijolo!". acordada às quatro da madrugada. eu lavava quintal. Agora as mãos vão trabalhar de novo.. Mas a lembrança do trabalho de analista é serena. Risoleta enviuvar) acaba pela convicção de que seria impossív el educar os filhos perdendo o resto da vida na cozinha dos palacetes da Angélica e do Jardim América: "Nunca fui recompensada e sempre carreguei a casa das patroas nas minhas costas". estimulado pelo mestre Basileu Garcia. Antônio. d. Vista mais de perto.. não se mantinham acesos às onze da noite.. de Laffont. buscando melhor profissão. essa carreira difícil reflete um desej o de sair da condição de origem e do trabalho manual a que estava confinada.. [ . que só pôde ser um autodidata. Depois que cegou. inclusive a ler e escrever. vai aprendendo a técnica de análise com a leitura do Précis de laboratoire. todos me chamavam dona Risoleta". d. mas não saiu do coro a não ser para empresário frustrado. Em termos de "tonalidade" da memória. incluindo uma atitude cognitiva b em desenvolvida (o sr. acumula uma série de bicos para equilibrar o magro orçamento de uma casa cheia de crianças. Das fainas mais duras. Ariosto. do ouro em pó com que lid ara o dia inteiro na ourivesaria. enviando-lhe uma porção de mãos para ajudá-la a fazer o almoço mais depressa. em um modesto emprego de analista em postos de saúde e. cujo trabalho. Começa. mas a memória social guarda a compensação de tantas agruras: "Ali eu era dona Risol eta. Risoleta serviu an os e anos sem ver o cheiro do dinheiro: "Até 22 anos nunca recebi um ordenadinho d o que trabalhei". dobra e guarda". D. o ofício de ourives imposto pela mãe.] Não faço outra coisa. logo que pode. Risoleta continua trabalhando: "Eu tenho mui ta vontade de servir alguém. sacode bem. ela foi entregue aos patrões para aprender . pois os olhos da menina . coisa que ela não conseguia. descalça . Ariosto. fechado no gaiolão do asilo. Cedendo o seu posto de funcionário para Sandr a.". de fato. investirá na sua arte uma carga de signif icação e de valor talvez mais forte do que a atribuída no tempo da ação. visionário. acaba-se incorporando na sensibilidade. O sr. Se preciso. ao recordálo na velhice. Todo e qualquer trabalho. parece apontar para uma constante que já vimos exposta por Bergson de fo rma generalizadora: ação e memória tendem a excluir-se mutuamente. Abel.. com capacidade para 7 mil.. hoje nem se cozinha nem se sabe comer como no seu tempo. agora mais exigentes. D. o Juqueri tinha 14 mil doentes. Para o gravador Amadeu. este. dois há cuja vida ainda está francamente voltada para o pres ente. mesmo. Jovina. o futuro. Desmembrei esse aglomerado para oito colônias. Abel. há um momento que parece redimir uma vida inteira radicada na pura autodefesa: "Quando trabalhei na Comissão de Inquérito. os estampos de Amadeu. a experiência de lembrar e de contar a própria vida obrigou a fazer um e sforço de boa vontade para com a entrevista. a incluem na classe média. menos o último. Dos Oito entrevistados. E d. Amadeu. Para ambos. Jovina . a memória corr e de uma forma que me pareceu realmente mais espontânea e fluente. Brites. proibido de falar muito. em cada b iografia. Para a mestra d. só agora [nesta entrevistaj fiquei voltada para o passado. D Alice: "Quem diria que um dia eu ia abrir o livro de minha vida e contar tudo? E agradeço por i550: é bom a gente lembrar".. no fim. declara. dis tantes das lides do cotidiano (o sr. de inspiração política. Pensei que ia ter uma velhice espiritualmente mais feliz e a gente continua dando murros em ponta de faca".. Alice e d. ignoram o desenho e não dominarão nunca a arte. pelo qual o passado se faz pre sente e vivo: "Minha memória é extraordinária [. forço a memória e lembro o que quero". o trabalho.. É por isso que o velho tende a sobr estimar aquele fazer que já não se faz. D. Abel. data de seu casamento.]". Na velhice. Jovina preferiu. O sr.. já está acabando esse ano santo e agradeço por estar recordando e burilando meu espírito". por exemplo). em que a burocracia serve ao oprimido. Risoleta. Lembrar agora é fazer.. as aulas de Brites e Jovina. homem cuja carreira se parece com um jogo de lances bem sucedidos. está isolado na long a e tortuosa narrativa do sr. "bergsonianas". procura atingir um ouvinte que já não é o simples interlocutor: "Esse que vos fala. ao narrar. estou sempre luta ndo.em astúcias e bajulações. os aprendizes de hoje não querem perder anos estudando o o fício. apesar de aposentado como operário. os fatos públicos. no segundo dia de conve rsa. no sistema nervoso do t rabalhador.] E chegç até a me transportar para o pa ssado mais remoto [. os berços de Alice. D. e certo de que nada há a fazer lá fora. mesmo porque o "lembrar" da memória-hábito bergsoniana é uma operação já plenamente integrada e absorvida pelos gestos e mecanismos da profissão. é o lembrar que passa a substi tuir e assimilar o fazer. cairá no asilo de velhos onde está. A relação estreita entre memória e trabalho. Ao lembrar. D. terá que vender máquinas de costura até ganhar um a hérnia e. agradecem a Deus poderem lemb rar a própria vida. o juízo sobre a vida social de ontem e de hoje ocupam mais espaço e têm mais importância do que as evocações "gratuitas". fui eu que assinei o desmembramento do hospício com a maior concentração de loucos do mundo". as flores de Ariosto. continua na luta para sust entar a família cujos hábitos de consumo. interrompe r o fio da sua narrativa em 1927. que o ato de lembrar e de contar o rejuvenesce. Para os demais. Para a cozinheira d. A consagrada oposição e ntre vida ativa e vida contemplativa parece afetar o grau de disponibilidade par a narrar o passado e para deixar a porta aberta à evocação pura. Para ambos. d. quando já não há mais lugar para aquele "fazer". cardíaco. "puras". só quando passa no pensamento. É o presente que os solicita. E o sr. Abel R. que quase já não saem de casa. as comidas de Risoleta. é membro ativo de vários grupos ben eficentes. ele recebe uma aposentadoria vil. as jóias de Antônio. Risoleta. Esse momento. essa espont aneidade se traduz em um fluxo dramático. No caso do sr. que estão afastados de toda ação e se julgam. tendo plena consciência da necessidade de lutar até o f im por seus ideais democráticos e socialistas: "A vida é uma luta. Amadeu confessa : "Não fico lembrando sempre. ao contrário. embora octogenária e quase cega. Jovina: "Vivo muito o presente. manual ou verbal. A vida é o pre sente". quando aplicada ao nível pessoal. Risoleta: "Dou graças a Deus todos os dias. O fazer do adulto ativo inibia o lembrar.. tolerância mesmo para com aqueles que se transviaram na juventude: "Eles ta mbém trabalharam". Walter. As idéias de memória e conselho são afins: memini e moneo. 'Contos alexandrinos". 1947. Dickens. Na Inglaterra costumava-se leiloar tais pelicas a bom preço porque traziam S orte. Já vimos como o s r. a memória vem acompanhada de uma valorização do trabalho evocado e de uma crítica. Readings in social psych ology.. antes de mais nada. Hartley. in Walter Benjamm. Nesses vários exemplos. S. 1959. cap. (7). como curiosidade. mn Henri Bergson. qual o conselho que dá? De tolerância para com os v elhos. (15). Tristes trópicos. (5). de uma estranheza em face de certos costumes atuais. Durkheim. é a justificação de toda uma biografia. (3). Jovina não se contenta com lembr ar que dava aulas de análise sintática: ela desenha o diagrama e explica o seu método enquanto narra. Henri. M. Risoleta ensina a técnica de fazer sabão e farinha e o refino do sal. D. M. Dickens. i n Es. Bosi. Matière eI mémoire. 1953. (12). Ramos. Remembering. NO TAS sais ou (1). La vieillesse. David Copperfield. Newcomb & E. L'enracinement. "O mundo dos sons". D. os moços de hoje não sabem gramática e confundem conjunção com preposição. Frederic. in T. "Social factors in recall". Oeuvres. 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