Meditando a Vida

March 30, 2018 | Author: Ana Lúcia Behenck Mohr | Category: Gautama Buddha, Zen, Bodhisattva, Experience, Mind


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Meditando a VidaPadma Samten Prefácio Introdução I. Breve apresentação do budismo II. Prática na vida cotidiana III. Propósito da educação no budismo IV. Meditação V. Superação de crises VI. Paz no dia-a-dia Glossário Conclusão Prefácio Do Caos ao Lama Um ponto de partida surpreendente e uma frase ressoante – eis o desejo imediato de todo o escritor (ou pelo menos daqueles que fingem não saber que o desejo é a raiz do apego e que seus frutos mais genuínos são a infelicidade). De todo o modo, deixando momentaneamente de lado a busca por uma abertura sentenciosa (nem que seja para diminuir o apego, o desejo e a infelicidade), concentremo-nos na procura pelo ponto de vista imprevisto. Ei-lo: um couro cabeludo, no topo da respectiva cabeça, que descansa recostada a um tronco, logo abaixo de um galho, no qual está dependurada uma ... maçã. A maçã desprende-se e cai. Está caindo, caindo e... boing – bem no alvo. Mas então, trezentos anos e três mil quilômetros depois de Isaac Newton, a nova maçã e a velha gravidade não mais arrancam o fisico do mundo natural, nem o fazem vislumbrar, num insight e num instante, as regras que regem o mundo mecânico. O que acontece agora é a trajetória inversa – quer dizer, não a da maçã que caiu, nem a da gravidade, que continua a atraí-la a 9,8 quilômetros por segundo. A direção oposta se dá é na mente do “cientista”, que, num súbito despertar, abandona o mundo mecânico, cartesiano e lógico, para mergulhar de volta no mundo natural, no caminho natural, na “religião” natural, onde tudo se dissolve e se torna como realmente é. Vazio. Não se trata de uma metáfora gratuita. A “parábola” acima faz algum sentido. Afinal, quando estava preso no século (nos dois sentidos da palavra) e ainda se chamava Alfredo, o lama Padma Santem gostava de árvores (ainda gosta), gostava de maçãs (ainda gosta; até deve ter plantado algumas macieiras na Serra gaúcha), gostava de descansar, meditabundo, com a cabeca recostada a um tronco e, acima de tudo, ...era físico. Vivia no mundo do cálculo infinitesimal, conhecia a mecânica das águas e 1 a mecânica dos sólidos, e isso no tempo em que eles aparentemente ainda não se desmanchavam no ar. Era um fiel discípulo de Aristóteles. Um “filósofo da natureza”, por assim dizer (que, aliás, é o que “físico” significa...). Então, Alfredo viu a uva e provou a maçã. E, no entanto, talvez tenha sido justamente ela, a maçã de Newton, a responsável pela nossa expulsão do “paraíso” budista. Conforme o inglês Richard Gard, autor de um belo texto introdutório ao budismo, se a mentalidade européia e a asiática se distanciaram tanto uma da outra, deve-se incriminar muito mais o espírito científico da Renascença do que o dualismo cristão homem-Deus. Afinal, como é que os ocidentais podiam tratar como ilusão e inexistência o mundo da experiência sensível se as chaves fornecidas por Bacon, Bruno, da Vinci, Kepler e Galileu – coroadas pela chave-mestra de Newton – abriram tantas portas e permitiram sucessos tão retumbantes e tão, digamos, palpáveis? Você ainda não sabia em quem jogar a culpa? Pois aí está: jogue-a nos físicos. Mas Alfredo Aveline, por esses azares da sorte, deu de nascer noutra época – “a melhor das épocas e a pior das épocas”, segundo Dickens. Assim sendo, a busca inicial por um ponto de partida inesperado talvez tenha nos conduzido a uma paisagem (ou paisagens: tanto a “física” quanto a mental) inapropriada. Suponhamos, por exemplo, que, ao invés de visualizá-lo como um Newton de bombachas sendo desperto pela queda de uma maçã sem agrotóxicos plantada em uma comunidade meio hippie da Serra gaúcha, tivéssemos imaginado nosso físico-que-vai-virar-lama na pele de Fritjof Capra, sentado – estático, quase extático – em frente às águas translúcidas de uma baía recôndita, numa praia de areias faiscantes, vendo uma chuva de estrelas cadentes e, com uma pequena ajuda de generosas doses de substâncias obtidas a partir de “plantas de poder”, conseguindo vislumbrar, naquele espetáculo cósmico, o desvendamento de todos os mistérios da Dança de Shiva. A Verdade em cada folha tremeluzente e em cada grão de areia. Bilhões de universos sumindo e ressurgindo em cada onda que se esvanece. O monte Meru vestindo um chapéu de nuvens. O casamento do céu e do inferno, da religião com a ciência – tese, antítese e síntese reluzindo num átimo, num átomo. Que ótimo: a mente mais cheia que nunca de Vazio. Bem, é provável que estivéssemos então nos aproximando mais da trilha biográfica que devemos seguir desde o caos até o lama. Aveline, afinal, mais do que um “sir”, como Newton, era um físico quântico, como Capra. Dessa forma, seus paradigmas científicos já não possuíam aquela solidez tão rígida quanto vulnerável: assemelhavam-se mais aos alicerces de prédios japoneses erguidos em zonas de terremoto – preparados para o abalo. O imaginário lisérgico – sólidos céus de marmelada hospedando improváveis sóis azuis – tão pouco era um elemento estranho à sua paisagem mental. Incenso, I Ching, hinduísmo, plantas de poder, praias secretas de Santa Catarina, chapéus de nuvens e chapéus de cobra – o futuro lama estava preparando seu próprio salto quântico. Conhecia os tais Capra e Castañeda e a tal da Física. Sua vida, como a de todos nós daquele bando disperso, era meio Ying, Yang, Jung, etc e Tao. Nesse sentido, Padma Samten estava – como talvez sempre tenha estado – afinado com o seu tempo. Ele ia reproduzindo, no privado, a trajetória que tornara o budismo um fenômeno “público” no Ocidente. Sim, porque, antes da figueira bodhi, dos templos e pagodes às margens do Ganges ou à sombra do Fuji, antes dos jardins zen e das encostas nevadas do Himalaia, antes da estátua luminescente de Padmasambhava ou das fotos do Potala radioso como um pote ao final do arco-íris, as primeiras imagens que os ocidentais viram do budismo surgiram na Califórnia beat e proto-hippie. O doutor D.T. Suzuki desembarcando em San Francisco com a roupa do corpo e o poder da mente. Pôsteres de monges ardendo em chamas no Vietnã. 2 Mestres tibetanos cruzando o Pacífico para lançar as bases de um império atlântico. De repente, tudo Zen: Timothy Leary lendo o Bardo Thodol sob efeito de LSD, Allen Ginsberg recitando sutras e tentando levitar o Pentágono, Allan Watts revelando a um mundo multicolorido o poder da flor e O Significado da Felicidade , Gary Snyder descobrindo, “numa bela tarde”, que ele “e o excelso ganso” eram “apenas Um”. Todo mundo comendo arroz integral. Ok, as misses liam O Pequeno Príncipe –, mas os hippies liam Sidharta, de Herman Hesse. Estranho pensar como, de certa forma, a triha sonora mais apropriada (no sentido histórico) para esse movimento talvez seja o som das botas militares chinesas marchando sobre Lhasa. O mundo é que nem aquela marca de cerveja: desce redondo. O budismo nasce na Índia, cruza os Himalaias, chega ao Tibete, se espraia até o Japão. Japoneses cruzam o Pacífico trazendo o Zen para a Califórnia, o limite mais ocidental do Ocidente. A China invade o Tibete, e os monges tibetanos seguem a trilha dos monges japoneses auto-exilados. A Califórnia os acolhe. Mas, como aprendizes de meditação, estamos perdendo o foco em meio ao turbilhão de imagens. Tratemos de reencontrar Alfredo Aveline. Sim, lá está ele, fundando, junto com um bando de gente que, olhando assim de longe parecem hippies, uma cooperativa para a produção e distribuição de alimentos ecológicos, estabelecida, não por acaso, ao lado de uma sociedade de proteção ao meio-ambiente, a qual ele também esteve sempre ligado. Agora podemos vê-lo comprando uma terra na Serra gaúcha, outra vez em grupo. Se um destino glorioso não estivesse reservado para aquele lugar, seus primeiros habitantes europeus não o teriam batizado de Rodeio Bonito, não é mesmo? Aveline vai virando um desobediente civil. Um Thoreau sem lago, mas menos ranzinza também. É evidente que em breve o veremos em zazen, comendo só arroz, meditando em salas nuas, sorvendo chá que não leva cogumelos – leva mais longe. A maçã começou a despregar-se do galho. Já está em queda livre, pronta para arrastar consigo o mundo da Física. Então, o Vazio se instala onde antes havia uma biblioteca de Babel. Como Newton, quando viu a luz branca dispersar-se em fachos luminosos de todas as cores após passar pelo prisma, Aveline viu – outra vez na direção inversa – toda uma sabedoria e uma vivência multicoloridas tornarem-se, subitamente, brancas. É isso: deu-lhe um branco. O branco total radiante. O Zen levou-o assim tão longe. Mas não era o bastante. Afinal, ele nunca foi um sujeito assim tão zen, sabe? Nos anos 60, ele não ia ficar só naquele de “se senta, se senta”. Certo, a piadinha é infame, mas foi contada com um propósito nobre: para revelar que Aveline percebeu que a solidão e o recolhimento típicos do Zen não eram – pelo menos não para ele – o veículo mais apropriado para levar benefícios para todos os seres. O Zen adquiria, talvez, um aspecto excessivamente individualista. O budismo tibetano reluzia, por outro lado, como um portal de Internet instantaneamente acessível, um Napster espiritual, por assim dizer: o download é gratuito. Você jamais arrancaria essas afirmações do lama – nem desse sobre o qual estamos falando, nem de nenhum outro. Afinal, se nada existe e nada importa, como alguma coisa pode ser melhor do que a outra? De todo modo, com certeza foi melhor para nós – aqueles que o ouvem – que o lama Padma Samten tenha feito a transição do Zen para o budismo tibetano. Porque agora ele está lá em Viamão, nos arredores de Porto Alegre, entre figueiras solenes e seres silentes (e sencientes), dando ensinamentos, gerando benefícios, acumulando méritos. O lugar, como o Rodeio Bonito – que agora abriga Chagdud Tulku Rinpoche, que se materializou em Três Coroas por influência das Três Jóias, do cosmos e do lama Samten –, também tem um nome aproriadamente transcendente: Caminho do Meio. As ressonâncias são múltiplas: não apenas uma das vias do budismo é o 3 ista. marido. Um budismo plenamente medíocre. muito palpável. 4 . Na primeira das seis partes de "Meditando a Vida". tão moderno e tão bacana. Leia Meditando a Vida e perceba como o lama Padma Samten se junta àqueles que vieram ao mundo sabendo que quem não se comunica. apontando os aspectos sutis contidos nas diferentes maneiras de apresentar o pensamento budista. no sentido mais luminoso dessa palavra em geral tão mal empregada. e todos o fizeram com clareza irreparável –. Ele consegue estabelecer uma ponte entre incompreensibilidade e mediocridade. esposa. o lama (além de tudo) é gremista!” Provavelmente. Um budismo para a vida cotidiana. Todas as construções espirituais. ou seja. transcritos nesse livro. Trata-se de uma abordagem geral. em seus ensinamentos.Caminho do Meio. como. dispensáveis ao final da limpeza. seus “potes defeituosos” – tudo é muito claro. ucho. o lama Padma Samtem obtém a preciosa alquimia do meio-termo. colegas de trabalho e demais seres em todos os planos da existência. Cheguei a imaginar algo que me desse o gancho para descrever a torcida gritando: “Ucho. Estava pensando em terminar esta apresentação. ainda assim. No sentido último. o isolamento e a prática formal são artificialidades – só se justificam por eventualmente proporcionarem a remoção de obstáculos. água e sabão. luminosos. Quanto antes nos livrarmos dos remédios e atingirmos nossa condição natural de saúde. vamos examinar as várias formas de introdução aos ensinamentos do Buda. Se Stephen Hawkins conseguiu elucidar para os não-iniciados os mistérios do tempo. sua “devoção” ao “mestre” Charles Bronson. por isto. a plenos pulmões que: “Ista. Tudo bem se os Engenheiros do Hawaii já disseram que o Papa é pop – o lama Padma Samten com certeza também é. já longa demais. ainda que meritórias. Eduardo Bueno Introdução As práticas espirituais só adquirem sentido na vida cotidiana. têm também efeitos colaterais. Quando você ler alguma coisa e não entender. Um sinal de que há algo errado é nos considerarmos espiritualizados. mas um budismo que nos dá o pão espiritual nosso da cada dia. É isso: o lama nos revela um budismo tibetano pret-à-porter. têm princípios ativos e. é claro. São remédios. para uso diário. suas tiradas. filhos. acabou-se o tempo dos livros impenetráveis. praticantes disciplinados e zelosos e. ista. Não um budismo alta-costura para momentos especiais. adora o velho esporte bretão. com alguma imagem futebolística – já que o lama. se trumbica. o único lama do mundo que consegue explicar o sentido da vida descrevendo um gol do Grêmio – num Gre-Nal. é o verdadeiro termômetro da prática. se Stephen Jay Gould compartilhou conosco as complexidades da evolução biológica –. são esponja. o trivial variado. não duvide mais: a culpa não é sua – é do autor.” Mas concluí que estava incumbido de uma missão superior: a de revelar ao mundo. A relação com nossos pais. tanto melhor. se Fritjof Capra desvendou para nós a física quântica. o lama é gaúcho. sermos tomados por desinteresse e falta de compaixão em relação aos seres que nos rodeiam. material e sutil. sem contra-indicações. Seus exemplos prosaicos. suas piadas. ucho. para seres medíocres como nós. poderemos nos direcionar para agir como geradores de equilíbrio e felicidade. A quarta parte de "Meditando a Vida" apresenta de forma breve e direta as várias etapas do caminho da meditação. quando a impermanência desaba sobre o conhecimento que antes parecia seguro e permanente – como acontece quando teorias científicas e paradigmas envelhecem. Criamos identidades e estabelecemos pontos que não queremos que se alterem nunca. Há ainda o método Vajraiana.Em algumas introduções ao budismo a ênfase é colocada em duka. O processo automático. A quinta parte de “Meditando a Vida” explica como lidar com as crises e conflitos. ou seja. As crises fazem parte do mundo dual. no sofrimento. Cada estágio leva a um processo mais sutil que o anterior. Todos os ensinamentos budistas tratam da superação de obstáculos e crises através da percepção da liberdade da mente. A estreiteza das opções só é percebida quando as estruturas cognitivas não mais proporcionam resultados satisfatórios. "Todos os seres desejam ser felizes e evitar os sofrimentos". teremos um instrumento seguro para avaliar nossas ações cotidianas. A crise 5 . A terceira parte de “Meditando a Vida” é dedicada ao processo de educação à luz do Darma. Pode-se também compreender o budismo examinando diretamente o que o Buda ensinou. No budismo. inseparáveis de nossa natureza – os Yidams. Outros mestres introduzem os ensinamentos através de instruções sobre meditação e prática formal. A meditação não consiste de um único tipo de prática. existem diferentes formas de meditar. ou seja. Na segunda parte aprofundamos a experiência de nosso cotidiano. as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. e também no que dispomos de positivo para superar duka – as capacidades latentes de nossa vida humana preciosa. involuntário e. no qual o foco da meditação é dirigido às deidades que manifestam as qualidades da natureza de Buda. ou seja. em geral. se tomarmos esta motivação como referencial. surgem estruturas cognitivas que nos permitem raciocinar e reconhecer de forma correta a realidade circundante. Outras vezes. completamente oculto de atribuição de sentido estabelece uma sutil forma de prisão. Outros grandes mestres desenvolveram a habilidade de apresentar o budismo como o reconhecimento direto da natureza ilimitada presente em todas as manifestações. deixandonos aprisionados em suas opções. Reconhecendo com profundidade e sabedoria o que de fato estamos fazendo e a forma de ação que estamos usando. O processo da educação em nossa cultura apresenta um paradoxo. o XIV Dalai Lama. mas no fato de que o conhecimento baseado em quaisquer estruturas separativas é naturalmente frágil e precisa manter claro o reconhecimento do limite de suas verdades. Libertar das estruturas que conduzem nossa forma de manifestar a experiência de realidade e que criam nossos impulsos de ação sem nos consultar e sem nos avisar. Estas estruturas. diz Sua Santidade. criam um processo automático de construção da experiência de realidade. o foco está no exemplo do Buda. ao se estabelecerem. educar é libertar. Vemos aqui que o problema não está num determinado tipo de estrutura. Quando a educação tradicional se estabelece em nossa mente. entretanto. não são totalmente abrangentes. O tema desta segunda parte é a maneira como os ensinamentos budistas proporcionam aprendizado incessante a partir da vida cotidiana. O conjunto de práticas constitui um caminho com várias etapas. há os que fazem a abordagem através da natureza de bondade. O objetivo é o refúgio final e perfeito na natureza de Buda. explicando a transcendência e como isso espelha a essência de Buda. elas se manifestam nas identidades separativas criadas por nós mesmos. amor e compaixão naturalmente presentes em nosso coração. vivem a inseparatividade compassiva. é necessário cultivar a flexibilidade. além de forma. assim. e refaço o voto de trabalhar para que o caminho do nobre sentar silencioso possa seguir produzindo o fruto direto da lucidez ilimitada. Esta natureza ampla é a natureza ilimitada de Buda. Perdemos a paz quando criamos identidades. libertar-se da experiência onírica de existir em uma roda da vida. Gustavo Guerra. manifestam milagrosamente a natureza incessante de todos os Budas. nem tempo. A verdadeira paz só é obtida com a iluminação. ilimitados e incessantes. mesmo em tempos de degenerescência. Eliane Padma Prajna. “Meditando a Vida” é uma compilação de palestras. A motivação para a transformação destas palestras em textos foi a percepção de que o cotidiano traz incessantes e maravilhosas oportunidades para praticarmos lucidez e profundidade. refugiados no reconhecimento do brilho e liberdade primordial. quando nos fixamos em referenciais. no fim do caminho elas são reconhecidas de modo incessante como manifestações do brilho e silêncio da unidade primordial. Padma Samten 6 . Na sexta parte analisa-se a paz no cotidiano. No início nossas experiências são vistas como internas ou externas. imersos na impermanência. volto a mente e o coração a todos os Budas que trabalharam incessantemente e seguem produzindo benefícios incomensuráveis. reconhecer-se na experiência original que nunca perderam – pois esta não tem início. para que isto aconteça. Lembrando a experiência cíclica de sofrimento pela qual os seres passam quando perdem o reconhecimento de sua natureza original. Quando se atinge a liberação. nem fim – e. é o nosso estado natural.acontece quando a impermanência atinge um destes aspectos rígidos. O trabalho de organização. menor a quantidade e intensidade das crises. Apresentamos o caminho que consiste em parar. mas. reconhecimento e nome. Angelita Padma Palmo. Eduardo Padma Dorje. da forma mais rápida. Que os seres possam. as crises cessam. Sua natureza é tão ampla que nenhum ser deixa de ser alcançado. manifestando a inesgotável energia de ação que brota da motivação de trazer beneficio a todos os seres. Entretanto. Prostro-me diante de todos os mestres vivos que. que aumentemos nossa percepção de liberdade. todas com o coração compassivo dos bodisatvas e brilho no olhar. serenar o corpo. é possível experimentar momentos de paz. Para isso. gravação. nossa paz transitória é abalada. a fala e a mente e desenvolver lucidez progressiva sobre nossa natureza e sobre a natureza de todas nossas experiências. além de espaço e tempo. transcrição. inseparáveis da natureza do silêncio. em carne e ossos. A paz faz parte de nossa essência. O budismo considera as crises benéficas por permitirem que nos flexibilizemos. além de vida e morte. trabalhar contra as fixações. A edição final do livro é de Lúcia Brito. Cada vez que a impermanência se manifesta nestas fixações. revisão e edição do texto foi realizado generosamente por muitas pessoas de diferentes cidades. antes disso. Fabiane Padma Iatsen. Gostaria de agradecer especialmente a Nelson Padma Yeshe. com sugestões de Eduardo “Peninha” Bueno. Quanto maior a liberdade. Maria Bernadete Brandão e Mara Rejane Russel. Prostro-me diante dos mestres que. é necessário observarmos alguns pontos através dos quais nossa visão e ação passam a incorporar a sabedoria budista de trazer benefícios a todos os seres. Bruno D’Avanzo e Sueli. estabelecendo coisas que não queremos que mudem. porque a natureza absoluta não entra em crise. nas quais nenhum ser consegue ultrapassar a névoa da ilusão e do sofrimento. bondade. generosidade e humildade. estamos vivendo uma era afortunada. Então cantaram ao bodisatva. o bodisatva desceu do céu dos deuses mundanos por uma escada luminosa. Sumeda percebeu a bondade e a capacidade ilimitadas de produzir benefícios aos seres que Dipancara emanava. até o momento em que. Ela acordou o marido. Estes braços representam suas qualidades ilimitadas para socorrer os seres. havia um praticante chamado Sumeda. Silenciosamente. presos à impermanência. Neste momento. Estes tempos estão caracterizados pelo fato de que os ensinamentos de como ultrapassar o véu de ilusão que se apresenta diante de nossos olhos estão presentes e preservados desde o período histórico da manifestação do Buda na Índia. correu a notícia de que o Buda daquela época. quando os ensinamentos que ele desse no reino humano desaparecessem. Muitas vezes ofereceu sua vida e seu corpo para benefício e alimento de outros seres. fevereiro de 2001 I. Breve apresentação do budismo O Buda da Compaixão é algumas vezes apresentado com mil braços. Quando o Buda passou diante de Sumeda. Numa era anterior à nossa. no qual um elefante branco penetrava em seu ventre pelo lado direito. o rei Sudodana. Neste momento. Com sua visão abrangente. O bodisatva concordou e disse que completaria a profecia de Dipancara. A seguir. Dipancara. doença. Segundo a cosmologia budista. há longas eras de escuridão. insatisfatoriedade. percebendo o voto de Sumeda. reconheceu-o como bodisatva e disse que. ele atingiria a condição de Buda com o nome de Sakiamuni. estamos vivendo os tempos do Buda Sakiamuni. seria a vez de Maitrea manifestar-se como Buda. decrepitude e morte. defrontando-se com as evidências de doença. Sumeda percebeu que o Buda teria que cruzar por um trecho enlameado da estrada e colocou seu manto sobre a lama. em breve passaria pela aldeia de Sumeda. pedindo que fosse ao mundo dos humanos para socorrê-los em suas aflições. no reino dos Sakias. a rainha Maya teve um sonho. Na última vida como bodisatva. parou e olhou para ele. Nesta ocasião. de modo a manifestar as qualidades do Buda no futuro. tornando-se o Buda Sakiamuni.” O príncipe Sidarta nasceu apresentando sinais extraordinários. Viveu nos palácios reais em grande felicidade. o voto 7 .Caminho do Meio. Sumeda manifestou-se vida após vida como um bodisatva. chamado Dipancara. Em contraste aos tempos afortunados. praticando compaixão. numa vida futura. Todos se colocaram em atividade para arrumar as estradas e embelezar os locais por onde o Buda passaria. Sua motivação de trazer benefícios é tamanha que ele desenvolveu a capacidade de utilizar os múltiplos aspectos da experiência convencional limitada como portas para a experiência final do reconhecimento da natureza ilimitada. acompanhado de uma comitiva. o Buda chegou a pé. na qual mil budas surgirão em seqüência. na Índia. estes deuses perceberam o sofrimento dos seres humanos. Mas não houve tempo. voltou-se para o bodisatva Maitrea e disse-lhe que. Sumeda fez para si mesmo o voto de praticar incessantemente a bondade. com sua comitiva. Viamão. Enquanto eles trabalhavam. Dentro de nossa era afortunada. decrepitude e morte. manifestou-se no mundo dos deuses da felicidade. e lhe disse: “Estou grávida. Certa vez. extinguindo o sofrimento e atingindo a onisciência – a condição idêntica de todos os Budas do passado e do futuro. podemos não perceber. Remédio para duka O budismo pode ser apresentado como um remédio para tratar a perda do reconhecimento de nossa natureza ilimitada. Sidarta libertou-se completamente de todos os padrões automáticos que produzem as experiências convencionais de realidade. absolutamente insegura em relação à sua tênue conexão com ele. Duka pode ser explicado de forma simples a partir do fato de que. Enquanto meditava sob a figueira sagrada. Tornou-se então o Gautama (o Abençoado). Até o fim da vida. a intensidade do sofrimento causado pela vigilância e a intensidade da insegurança quanto aos rumos da relação correspondem exatamente à atração exercida por aquele ser. o senhor da ilusão. percebeu que todos os seres sofriam de uma mesma doença. inacreditável. Ou seja. fantástico. Adaptando-se às diferentes mentalidades dos seres. os conceitos estão separados e não podem ser unificados em um único termo. Sidarta enfrentou e superou muitos desafios. Sidarta colocou-se de pé para levar sua experiência de liberação a todos os seres. Após um período de vida ascética. Embora todos tenhamos a doença. Quando o bebê nasce. quando temos alegrias. Um exemplo é o da mulher que deseja ter um filho. praticada e ensinada de forma ininterrupta. Outro exemplo: uma pessoa vê um ser maravilhoso. Quando o Buda era um príncipe. com etapas de nascimento. envelhecimento. o Buda Sakiamuni (o sábio silencioso da família dos Sakias). Trata-se de algo como alegria e sofrimento inseparáveis. Ao longo dos 25 séculos que nos separam daquela época. o Buda Sakiamuni dedicou-se a socorrer os seres incessantemente. Às vezes achamos que encontramos um regulador de velocidade. e gostaríamos de acelerar quando estamos infelizes. que ele guardasse aquele conhecimento para si. Assim. Na visão budista existe uma única palavra para estes dois conceitos. O sofrimento surge na exata medida daquela alegria. podem até conceder alguma interação… E logo a pessoa se descobre vigiando aquele ser. desafiando Mara. A seguir. deixem-me chegar perto daquele ser maravilhoso. A partir dali. proferiu 84 mil ensinamentos. O mais curioso é que a intensidade da vigilância. aos 80 anos. mas logo surgem problemas nessa tentativa de controle. doença e morte. foi viver na floresta. mas não existe termo correspondente nas línguas do Ocidente.feito perante Dipancara amadureceu. elas constituem-se sementes de sofrimento. crescimento. 8 . Compreendendo que todos os seres têm a natureza ilimitada. alguns destes enfoques. No último encontro com Mara. Esta é uma experiência cíclica – é como uma roda girando entre as polaridades de estar bem e estar mal. No Oriente esta doença tem um nome específico – duka –. Em nossas línguas acontece o contrário. eles não podem ser separados. Ela pede aos deuses: "Por favor. este disse a Sidarta que a condição de liberdade que ele havia atingido só ele poderia conquistar. pois ninguém mais entenderia. geração após geração." Se os deuses estão de bom humor. É assim em todas as relações humanas. os ensinamentos do Buda foram apresentados de forma variada. a transmissão de sua experiência foi preservada. produzindo no príncipe o impulso de se dedicar à vida espiritual. ela pensa: "Que maravilha!" Depois ela percebe que tudo que acontece ao filho a perturba intensamente. Seu efeito é nos curar da experiência de existência limitada. Gostaríamos de encontrar o freio quando estamos na região de felicidade. decrepitude. há uma semente de intenção que perdura. Nosso apego não é às coisas. do adolescente e do adulto. nunca entendemos completamente o que os outros fazem. 9 . É como um filme que acaba no cinema. o sofrimento e a insegurança. Outro exemplo: olhamos para uma caixa de doces deliciosos e pensamos: "Que delícia!" Podemos contemplar os doces e examinar cuidadosamente nossos apegos. Quando estamos imersos em nossa forma de ver as coisas. não conseguia entender por que as pessoas se portavam daquela forma. Podemos ter uma noção disto da seguinte forma: reconhecemos que fomos bebês. existe um problema correspondente. No sentido budista. mas não são de forma alguma estáveis. envelhece. quando a morte vem. Não há como evitar esta inquietação. mas ainda assim não conseguimos frear a doença de duka. morte. tapamos. É um exercício interessante. adultos – e em cada etapa é como se houvesse toda uma visão de mundo correspondente. Dentro do círculo representado pela palavra duka. nascimento. mas aos ventos internos que elas provocam. Via crianças sendo maltratadas e tinha uma sensação de grande vantagem por ter minha própria mãe. mas cada uma delas tem um resultado também. papel. Não precisamos acreditar no renascimento. tem uma correspondência interna em nós na forma de energias que percorrem nosso corpo e nervos. percebemos que as várias visões são perfeitas enquanto acontecem. Esta dependência e apego são a base de duka. Lembro de minha adolescência. exatamente no mesmo grau. Então percebemos que nossas visões anteriores eram visões particulares. plásticos. Quando elas mudam. esta capacidade de discriminar. Para cada característica favorável que percebemos no mundo. adoece e morre. Temos uma identidade.. Os problemas ecológicos são exemplos de duka. Ao examinarmos as várias fases de nossa vida.quanto maior a atração. Isso é resumido por duka. Cada um nasce. outro filme sempre entra em cartaz. e as energias se vão. maior a vigilância. O Buda usou o exemplo da criança. pode surgir uma pergunta: "O que permaneceu ao deixarmos de ser crianças e nos tornarmos adultos?" O que permanece é um misterioso brilho interno. Ele apontou esta essência que vai transitando de um para outro. É por causa dela que surgiu o budismo. ver como surgem as reações condicionadas. Tiramos a tampa da caixa. Os ventos internos são a experiência íntima dos objetos e também dos seres. eu olhava para as outras pessoas e achava suas vidas muito estranhas.. No sentido geral. Temos um processo infindável de vida. Chamamos isto de duka. Mas isso gera problemas. não é o fim. Observando de forma ampla o sentido de duka. adolescentes. outras imagens vão surgir na tela após a projeção do filme. adubos. Não desejamos destruir a natureza. refrigeradores. como a qualidade que está mais próxima do permanente. cada um dos seres sente duka em seu corpo. o que morre é um personagem. percebemos que o Buda estudou a doença detalhadamente e descobriu uma natureza que está além de toda esta complicação. Se há um cinema. Pode-se ficar em uma morte apenas. crianças maiores. Cada pequeno objeto. Todos os aspectos do budismo são propostos como remédios para esta doença. só podemos ver de forma estranha o modo de vida dos outros. Do nosso ponto de vista. cada pedrinha na paisagem. A isto chamamos ventos internos. olhamos com estranheza as vidas que os outros levam. e surgem energias nítidas dentro do nosso corpo. permanentes. Queremos apenas meios de transporte. criancinhas. Cada uma das ações humanas tem um objetivo. vida. Traduzimos do tibetano. sânscrito ou páli. Ao aprofundarmos o significado da palavra Buda. atinge-se uma situação além de espaço e de tempo. ensinou como cruzar para a outra margem. Depois. Os ensinamentos visam a remover o sofrimento originado por duka. Tudo o que fazemos é atravessar o rio e abandonar o barco. elas registraram em papel. saímos do barco. não foi o primeiro Buda. japonês. a partir deste processo. O que fazemos numa viagem de ônibus? Será que pensamos em ser fiéis ao ônibus? Não. Está apenas em busca da liberação da existência cíclica – o Buda é somente um guia. o Buda não veio anunciar coisa alguma. ainda que não esteja. Para o cristianismo existe o Antigo Testamento e a tábua de Moisés. ela expressas a verdade para o cristão. Existem várias imagens para descrever este processo. Muitos seguidores escreveram muitos livros. Atinge-se a liberação da existência cíclica. imutável e exprimível em palavras. o budismo some completamente. E surgiu uma vasta obra escrita baseada nos ensinamentos orais do Buda.Se quisermos ver o que é budismo de fato. de escrituras e profetas. Ao final da viagem abandonamos o ônibus. Agora os ensinamentos chegaram à língua portuguesa. O Buda completou o trajeto. Não teria sentido ficar no barco. No budismo não existe uma bíblia. Algumas vezes as pessoas questionam os ensinamentos espirituais da seguinte forma: "Quem foi o fundador do budismo? Quando e onde surgiu o budismo? O budismo acredita em reencarnação? Que tipo de preceitos morais são praticados pelo budista? Qual a diferença entre tal e tal escolas budistas?" Esta análise do budismo em forma de questionário talvez não ajude muito. Existe o rio do sofrimento. O budismo não é messiânico. Conforme seu relato. Esta verdade é vista como eterna. É que. para o português. Quando chegamos ao destino. chinês. Quando a liberação acontece. não está se filiando a uma experiência sectária. Durante a vida do Buda. Quando a pessoa se vincula aos ensinamentos budistas. não devemos pensar em épocas. O budismo se extingue com seu efeito. quando o sofrimento gerado por duka realmente cessa. por exemplo. Quando Buda desapareceu. pois a experiência de duka não está limitada pelo tempo. O cristianismo depende da Bíblia. Sua função é ajudar as pessoas a percorrer o caminho até a liberação do sofrimento de duka. as pessoas guardavam de memória o que ele falava. que leva à margem da liberação. que ele recebeu de Deus no topo do Monte Sinai. Esta é a sua função. Os ensinamentos cristãos surgem quando Deus se apresenta a Moisés e revela a verdade. ele serviu a incontáveis Budas no passado e deles ouviu instruções. quando isso acontece. A imagem do barco. sempre lembrando que "a sabedoria não está nos livros". ele veio manifestar uma liberdade que a maior parte dos seres não vê. O Buda histórico. E o que fazemos quando estamos liberados? A primeira coisa é abandonar o remédio que nos curou – os ensinamentos. os textos podem umedecer as sementes de sabedoria que temos naturalmente. O budismo surge à medida que os Budas periodicamente aparecem e dão ensinamentos. a margem do sofrimento e o barco da liberação. durante mais de quarenta anos. Estudamos os textos minuciosamente e sabemos de cor que "a sabedoria não está nas palavras". percebemos que os primeiros Budas surgiram quando as complicações surgiram. Buda 10 . Parece contraditório traduzir textos sabendo que a sabedoria não está lá. Buda Sakiamuni. os mesmos problemas do primeiro. Algumas vezes brinco que Charles Bronson é meu mestre. ao álcool. agora já sei como é. aquilo nunca mais. dizer não a algo. Estamos inevitavelmente presos no mesmo tipo de situação descrita na música ou no romance. apesar de nossa decisão. Isso quer dizer que temos emoções perturbadoras. vai!" Por isto Charles Bronson é um mestre. daí ponho a fita no vídeo. vemos que são sempre sobre nossos impulsos: "Eu não deveria fazer tais coisas. Faço o teste. Ensinamentos A fala do Buda. Podemos dizer não à inveja. Devemos escutar e testar à nossa maneira. lembrando: "Lamas não podem matar". mata logo. mas dez minutos depois surge o impulso: "Mata. e "não. quando falamos do Buda. Em vez de começar com o sofrimento de duka. se estudamos a liberação. Ao observar as grandes poesias e músicas. Cada vez que decidimos não mais fazer alguma coisa. Porque. mas estas coisas seguem nos atraindo. coloco uma estatuazinha do Buda sobre a TV e fico rezando durante o filme. à raiva ou ao orgulho. Buda é uma condição de libertação de todos esses impulsos. Podemos dizer não ao cigarro. "por que ela me deixou?". Se fosse assim. o aprisionamento. Por que esses poemas. "por que sempre faço tudo errado?". inevitavelmente temos que falar de carma. você tem uma condenação perpétua – os próximos vão ter a mesma cara. testem por si próprios. Então. dos condicionamentos grosseiros e sutis. mas presente. O Buda Sakiamuni disse: "Não acreditem no que eu digo. Um mestre já falecido dizia: "Se você culpa seu marido por seus problemas. ao videogame. ao cansaço. não existiria a palavra Buda. Quando olhamos nossa experiência e reconhecemos tudo isso. mas elas são mais fortes. músicas e ficções nos atraem? Por que vivenciamos aquilo? Por que aquela energia percorre nossas veias? Isso acontece porque estamos presos no mesmo tipo de situação mental. ao desejo/apego. e dizemos: "Ah. isso não faz bem. que chamamos de carma. Pensamos: "Muita gordura. e há duas correntes opostas: "Aqueles cinco minutos valeram a pena". Podemos resumir este processo em uma palavra – carma. Mas parece que tudo continua funcionando da mesma forma." Os ensinamentos não devem ser vistos como uma verdade a ser aceita." E as coisas vão assim. não é uma lei que nos condena. O que é buda? A natureza completamente liberta dos hábitos. E de novo voltamos àquele mesmo lugar: "Por que fui atropelado?". É um processo muito sutil.Outra apresentação do budismo pode ser de forma positiva. muito açúcar. existe uma região – onde surgem os impulsos – que parece não ser afetada pelas decisões. ele aponta a violência oculta. temos que estudar o processo oposto. à ganância. o custo é demasiado". Como sabemos que somos presas de tais comportamentos? Basta olharmos para uma caixa de doces. não é uma pessoa. percebemos que os doces seguem nos atraindo." São sempre sobre duka. independentemente de nossas convicções e tratados médicos a respeito. ou de sabermos por experiência própria que doces nos deixam enjoados após comermos alguns a mais. E então começa tudo de novo. Buda não é o ser." Com namoradas é assim também. ainda assim. Aponta a fragilidade latente. vemos que nossa vida tem sido sempre composta de muitos ciclos desse tipo. E então descobrimos o sentido de uma palavra muito importante – carma." Mas. explicamos o budismo através da palavra buda. seus ensinamentos e explicações sobre o remédio para duka seriam 11 . As ações realizadas dentro desta experiência de inseparatividade produzem a natural retribuição positiva do universo. como naquele decalque muito engraçado que vi um dia: "Grêmio. nossa vida muda por completo. O primeiro passo do Nobre Caminho é a decisão de abandonar a existência cíclica e a impermanência. o Caminho Óctuplo. Campeão do Planeta". maledicência e agressão verbal. Se temos coragem para ultrapassar este obstáculo aparente. que causa mal para si e para os outros: matar. O amadurecimento desta etapa tem certa conexão com outras tradições religiosas. Também percebe o aspecto ilimitado presente nas manifestações abstratas. Se tiramos isso da pessoa. É como falar com alguém que está torcendo por seu time num campeonato de futebol. o praticante está livre dos quatro defeitos da fala e das emoções: falar inútil. ou. Isto se dá pela prática das quatro qualidades incomensuráveis e das seis perfeições. energia constante. No quinto passo o praticante se vê amparado pelo que poderíamos chamar de sorte. As Quatro Nobres Verdades são: a experiência de existência cíclica. da aparência física dos seres. da mente. Significaria dizer a um gremista que. parece que a vida perde completamente o sentido. E aí? Vou desaparecer!" A primeira etapa é muito difícil. carência e aversão. as qualidades e perfeições se tornam naturais e não exigem esforço. uma dúzia de CDs – buscamos essas coisas. paciência. Apenas se liberarmos nossa conexão com a roda da vida é que estaremos livres de fato. Percebe o aspecto ilimitado dos grãos de poeira. As seis perfeições são: generosidade. É uma apresentação através das Quatro Nobres Verdades e do Nobre Caminho Óctuplo. campeã do mundo. A maturidade do sexto passo – a meditação – dá à pessoa grande estabilidade. moralidade. As quatro qualidades são: compaixão. que leva à dissolução da fixação na experiência de existência cíclica. Mas a pessoa diria: "Se eu abandonar o Grêmio. Podemos apresentar o budismo através destas quatro verdades. e o caminho para descobrir a liberdade é o Nobre Caminho Óctuplo. roubar e manter conduta sexual imprópria.uma terceira forma de apresentação do budismo. Quando a pessoa atinge a maturidade relacionada ao sétimo passo do Nobre Caminho. vigor físico e energia. a afirmação da possibilidade de dissolução da experiência da existência cíclica. concentração e sabedoria. A maior parte do tempo estamos preocupados em ganhar jogos. Quando atinge a liberdade correspondente ao terceiro passo. Se a pessoa realiza o segundo passo do Nobre Caminho. não sou mais eu. se abandonasse o time. Quando atinge a realização do quarto passo. alegria e equanimidade. Ela atingiu a perfeição da atenção e vê com nitidez o aspecto convencional e o aspecto ilimitado como inseparáveis no mesmo fenômeno. não sofreria mais. dos carrapatos. Presos à roda. Esta energia estável significa também grande destemor. de tudo. Parece haver um grande sofrimento. É como se o universo inteiro começasse a conspirar a seu favor. é o oposto do que costumamos pensar. das estrelas. Ao vivenciar a amplidão natural da mente. podemos querer reconhecimento. a pessoa liberta-se das três formas de manipulação de corpo e das identidades. 12 . É muito difícil chegar a este ponto. consegue conceber a natureza divina de todas as coisas. é como saltar de um abismo. o reconhecimento de que a experiência cíclica é criada artificialmente. amor. saúde. vê-se liberada dos três impulsos que produzem as ações negativas da mente: pensamentos heréticos. mentira. dinheiro. Curiosamente. A pessoa quer ser campeã da Libertadores. No Zen a Sanga é comparada a um recipiente e um pilão. que pode ser misturado com a prática formal e com a prática no cotidiano. Neste caminho a pessoa entra. manifestando soluções. De acordo com o conteúdo. ou: "Nos textos não está a verdade! Testem!” Mas ainda assim o Buda descreve. Ela é capaz de queimar nossos problemas. A terceira palavra é Sanga. A Sanga é como uma fogueira. Chamamos isso de Sanga. sem as limitações da visão convencional. Meditação Uma das formas tradicionais de introduzir os ensinamentos. Cada pessoa do grupo é um grão de arroz com casca. A Sanga surgiu há 25 séculos. Se isto não tivesse ocorrido. A primeira é Buda. existe um passo adicional ao Nobre Caminho Óctuplo. O Buda diz que a verdade não está nos textos. podemos chamar de samassati. Não é uma etapa de liberação – a liberação está concluída no oitavo passo –. Como um Buda tem liberdade perante o que para nós é dificuldade. mahasandi. e aí pode ser útil de alguma forma. mas. o budismo pode ser resumido em três palavras. dependendo da realização da pessoa. a chama não pertence a um ou dois dos paus queimando. Simplesmente sentamos e praticamos o primeiro dos oito passos. é o recipiente. apresentada pelo Buda. No oitavo apenas não há mais a percepção dual. mahamudra. Com a mesma aparência externa. O Buda descreve minuciosamente estes passos e diz: "Não acreditem!". um grupo de praticantes. shamata. Cada um deles precisa dos outros. É algo que surge a partir do conjunto: se separamos um dos paus da fogueira. o Buda levantou-se para ir ao encontro dos seres e ajudá-los. mas quando estamos juntos é mais fácil. É o caminho que o Buda ensinou. o pilão (a vida) vai batendo. ainda dentro desta perspectiva descritiva. é o momento da ação iluminada. Um centro de Darma. Este é o efeito da Sanga. sentados na posição de lótus. e a vida cotidiana é o sucessivo bater do pilão. a figueira sagrada. O Buda levantou-se para o benefício de todos. Esses dois últimos passos são a iluminação. Após percorrer as oito etapas sentado sob a árvore bodhi. e as cascas do arroz (nossas dificuldades) caem. já explicada. é o caminho da meditação tranqüilizadora. vipassana ou samadhi. No sétimo passo ainda existe uma dupla verdade. Podemos chamar de diana. pois há um aspecto convencional em contraponto a um aspecto absoluto. Sidarta venceu os oito passos em seis anos de vida na floresta. como Buda. com o que acontece por dentro. Alcança-se a percepção estável do aspecto ilimitado e da inseparatividade de todas as coisas. Foi a manifestação da compaixão. exerceu a ação iluminada pelas aldeias e estradas por mais de quarenta anos. os ensinamentos que surgem na mente de um Buda para beneficiar os seres – como as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. Temos dificuldade em seguir o caminho da liberação sozinhos.O oitavo passo significa a liberação completa de todos os sentidos convencionais. seguimos etapa por etapa. Por curioso que possa parecer. não estaríamos estudando estes ensinamentos hoje. Se a pessoa só fica 13 . A segunda é Darma. junto com o Buda. Temos então o aspecto discursivo. o fogo termina naquele pedaço. e está relacionada ao Buda. Existe uma divisão comum de três modos de praticar o budismo. shine. depois meditamos sobre eles e a seguir agimos de acordo. examina o duka dos outros seres e resolve os problemas. e os outros seguem-se sucessivamente. o texto pode impulsionar essa realização. Se quisermos explicar de outra forma. senta e vai colhendo as experiências profundas sentada. Dentro do recipiente (o grupo de praticantes). Começamos ouvindo ensinamentos. A pessoa precisa ouvir os ensinamentos e meditar. olha para eles como um médico e é capaz de entender o que se passa em suas mentes. O reconhecimento da natureza ilimitada produz a superação de todas as prisões e carmas. Isso é bondade. praticamos sadanas (preces e visualizações) referentes a Yidams. o fazemos desde a perspectiva do agrado ou desagrado que nos causam. A bondade é uma capacidade de ir além da própria identidade e olhar os outros seres a partir da perspectiva deles mesmos. Isso é olhar os outros a partir de nós mesmos. nada mais é necessário. mas só ouvir também não adianta. a compreensão da roda da vida. Os chineses estão destruindo a cultura tibetana tradicional. Natureza ilimitada Existe ainda outra forma. ele tem a capacidade de transcender sua preferência pessoal e olhar os seres no contexto mental e emocional onde estão imersos. as deidades de sabedoria. dedicando-lhes a bondade que manifesta com todos os demais seres. A prática da bondade é um exercício de transcendência ativa. pode ser praticado sozinho. vamos além de nós mesmos. Bondade Existe uma abordagem do budismo que consiste simplesmente em praticar bondade. e caracteriza uma abordagem completa em si mesma. praticar a estabilização meditativa ou focar a atenção diretamente na bondade. A partir da conexão com as deidades. Como um professor espiritual poderia rejeitar algum ser? Este acolhimento incondicional é o que possibilita os professores serem professores e auxiliarem verdadeiramente. Não vamos usar conceitos de amor e compaixão. quando olhamos os outros seres. E é por isso que pode ajudá-los. e aí nos tornamos capazes de efetivamente auxiliar os outros. não vamos praticar virtudes nem a supressão das não-virtudes. focamos diretamente a natureza ilimitada. mas Sua Santidade. Yidams Outra forma aparentemente diferente de se aproximar do budismo é olhar as deidades e suas qualidades e procurar de imediato estas qualidades em si mesmo e vivenciá-las. por exemplo. Usualmente. É o que faz um psiquiatra. O obstáculo da meditação nunca é resolvido apenas na meditação. surge um esquecimento das nossas tendências usuais. 14 . É uma prática de transcendência ativa. responderá que prefere estar no meio de pessoas estáveis.” E as obscuridades devem ser entendidas como emoções que brotam do autocentrismo. No entanto. é preciso algum tipo de instrução. É um outro caminho. o Dalai Lama. Se ele se perguntar se gosta ou não gosta da companhia de pessoas perturbadas. aí a meditação funciona.sentada. e as qualidades naturalmente se manifestam. Em vez de estudar a roda da vida. pode ficar apenas em confusão. a bondade e a estabilidade surgem como formas de praticar a compaixão para com todos os seres e a sabedoria transcendente. O Buda diz: “A impossibilidade de ajudar surge das obscuridades mentais. na qual resumidamente se compreende o primeiro passo do Nobre Caminho Óctuplo e se utiliza a vontade de superação da experiência da existência cíclica como combustível poderoso para penetrar nas práticas de meditação na perfeição de todas as coisas. ela precisa aplicar o que ouviu na vida cotidiana. Todos os métodos têm superposições uns com os outros. Talvez 90% a 95% dos seres não possam praticar imediatamente as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo porque estes pareceriam demasiado sofisticados ou fora de propósito. e então pensamos nos feriados ou no tempo que falta para a aposentadoria. inveja. Prática na vida cotidiana Sua Santidade. além do mais. O benefício de conseguir um bom emprego é muito diferente do que se alcança ao superar um dos cinco venenos – orgulho.Esta prática pode ser realizada na meditação formal ou na vida cotidiana.. só o engarrafamento na viagem de volta. obtusidade mental. em Viamão. a felicidade acaba. não criem sofrimento. tão logo começamos a trabalhar. Se os alunos apenas praticarem a bondade. por exemplo. dirijam a própria mente. Existem vários tipos de felicidade. o elemento mental que cria o desejo pela casa. Seria como entrar diretamente na oitava etapa do Nobre Caminho. mas muitas lições podem ser necessárias antes mesmo de se conseguir entrar no Nobre Caminho Óctuplo. em outubro de 1999) II. (Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Bodisatvas. mas quando chega o domingo. o amor e a compaixão. Rio Grande do Sul. No budismo. carência e raiva. será maravilhoso. Um emprego. a casa de praia é uma boa opção? Não há dúvida de que passar o fim de semana na praia é ótimo. na família ou nos centros de atendimento. A casa da praia nos traz um tipo de felicidade que necessita de um certo esforço e trabalho para se concretizar.. 15 . Ainda que nos falte clareza quanto a isto. buscamos felicidade de longo alcance. Compreensão Existem muitas formas de praticar os ensinamentos. É como o Buda disse: “Pratiquem a bondade. e o benefício é curto – longo. sentimos que trabalhos longos e felicidades curtas não são muito interessantes. estamos buscando felicidade. diz que todos os seres se movem buscando a felicidade e tentando evitar o sofrimento. todos ao redor serão beneficiados. As pessoas estão presas a ideologias. é a prática natural e fácil de todos os Budas. o XIV Dalai Lama. Um exemplo é superar o orgulho internamente: a pessoa que o fizer imediatamente melhorará sua relação com a família e com os amigos. Neste caso. no trabalho. Neste último método. É a manifestação não-elaborada e sem esforço de nossa natureza ilimitada. por exemplo. Não se trata de uma prática construída. A ênfase está especialmente nos retiros. hábitos mentais. o foco não está na prática.” Esta é a essência do budismo. Quando desejamos uma casa na praia. Na busca da felicidade. nossa felicidade implica na frustração de outros (aqueles que não conseguiram a vaga). soluções aparentes e prioridades invasivas que impedem a compreensão. formas de compreensão. e cada um apresenta características e dificuldades específicas. Ele lembra que as religiões preenchem sua função ao auxiliarem as pessoas nesta aspiração. Ajudar estes seres é o foco da maior parte dos ensinamentos dos mestres. esta é a motivação verdadeira. surge a insatisfação. Muitas vezes mães e pais não têm tempo para praticar formalmente. Após a visita. divina e estável que é nossa identidade e a essência de todos os seres. compaixão por todos os seres e atravessar o colapso do corpo com equanimidade na mente. a prática formal é um complemento que intensifica nossa qualidade de atenção nas outras horas do dia. Realizar práticas formais. ou se sentir como um sol. a pessoa pode se sentir aprisionada a condições hostis no seu cotidiano. continuamos buscando segurança em elementos e circunstâncias impermanentes. A motivação correta – trazer benefícios aos outros seres – tem o poder de transformar ações aparentemente comuns em prática espiritual. Descobrimos uma fonte de satisfação permanente. mesmo fazendo práticas. que está além de qualquer transformação. de esperança e medo. Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche diz que não adianta meditar formalmente uma hora por dia e ter 23 horas de más ações e maus pensamentos. Nossas motivações religiosas também são limitadas se. O autocentrismo foi substituído pela natural amplitude do coração. Suas aparências mostravam bem os mundos internos em conflito. de vida e morte. pode vir a esquecer. Sua conexão a este lugar se dá exclusivamente pelo benefício que traz continuamente a estes seres. a diretora do hospital disse: "Este é um local maravilhoso. da compaixão. que tudo vêem com compaixão. além de nome e forma. Quem dá alguma coisa nunca perde essa alegria. e tudo que brota desta fonte e que podemos oferecer aos outros é motivo de alegria para nós. Motivação correta A prática budista requer um cuidadoso foco na motivação. Nosso carma geralmente nos leva a ver tudo através dos cinco venenos. Mesmo em meio a uma enorme desgraça. mas mesmo nessa hora poderemos irradiar amor. A falha é nossa. Utilizar esta capacidade de opção define a prática espiritual budista. mas a motivação de ajudar seus filhos e sustentar a casa transforma tudo que fazem em prática espiritual. Certa vez visitei um hospital psiquiátrico e percorri as alas onde muitos seres debatiam-se presos a mundos de sofrimento. Ela descobriu a natureza ilimitada de manifestação amorosa e compassiva. irradiando benefícios para seres em sofrimento. Dependendo da motivação. Se depositamos nossa segurança em objetos e circunstâncias. se fico um dia sem vir aqui. e esse não será propriamente um momento feliz. mas temos a possibilidade de praticar o olhar dos bodisatvas. como a morte de um filho. recitar mantras ou entrar num templo sem motivação correta envelhece aos poucos a tradição. amor. Sempre podemos optar. Há um grande sofrimento. Somente esta experiência ilimitada permite o surgimento do amor. e não dos ensinamentos. é possível e desejável praticar o olhar de bodisatva. Um dia morreremos. é um momento muito difícil.No instante em que superamos a carência. mas só existe uma forma de produzir benefícios aos que nos circundam e ao ser que morreu: manter a percepção na natureza luminosa. quem recebe. de espaço e tempo. da alegria e da equanimidade verdadeiros. surge um vazio no meu coração. as motivações que nos conectam à busca da felicidade e ao afastamento do sofrimento são mundanas. As 16 . Olhando as práticas sem o olhar correto. alegria e equanimidade.” As situações externas são um espelho do que temos internamente. não há benefícios." Logo pensei: “Eis um Bodisatva. nos tornamos ricos. A prática do cotidiano é a base. É necessário praticar 24 horas por dia. e ficamos progressivamente insensíveis às palavras de sabedoria. motivações só serão efetivamente religiosas, no sentido ilimitado do termo, se nossa segurança estiver baseada em fatores situados além da roda da vida, além do alcance da impermanência. Em qualquer caso, sem exceção, os seres buscam a felicidade e tentam evitar o sofrimento. Esta é a chave unificadora. Todos os seres, dos elefantes às pulgas, se movem nesta direção. Em nossa relação com as pessoas também é assim; mesmo quem nos agride quer felicidade e não quer sofrimento. Se nos aproximamos com intenção de prestar benefício, todos nos acolhem; mas, se nos aproximamos querendo sugar o que o outro tem, somos repelidos, não há dúvida. Mesmo numa relação afetiva ou com amigos é a disposição de dar, e não a de receber, que produzirá resultados. Todos os mestres budistas dizem isto. A origem do sofrimento está em colocar a experiência de felicidade na dependência de algo externo. Não haverá escapatória: nossa felicidade flutuará junto com o objeto ao qual está vinculada. Refúgio nas Três Jóias O budismo pode ser resumido pelas expressões Buda, Darma e Sanga – os Três Refúgios, ou as Três Jóias. Cada um de nós é um buda, nossa natureza é perfeita. Nossa mente é um diamante, mas, por operarmos a partir de certos referenciais, ela parece contaminada. É como se o diamante estivesse coberto de barro. Darma são os ensinamentos do Buda, os métodos para remover o barro que recobre o diamante. Num sentido interno, Darma é a compreensão que brota da mente iluminada. Quando repousamos na natureza liberta, além do espaço e tempo, podemos olhar as atividades da mente sem flutuar. Sanga é a comunidade daqueles que praticam, é onde praticamos a moralidade, que consiste em se mover sem causar malefícios e buscando o benefício dos outros. Com o tempo reconheceremos todos os seres como parte da Sanga. Moralidade e meditação vêm juntas. Se a pessoa pratica uma hora de meditação e 23 horas de iniqüidades, não adianta. A meditação é inseparável de nosso cotidiano e da motivação de nossas ações. É ela que trará profundidade à visão, permitindo a transformação de qualquer ação em prática espiritual. Usualmente nos portamos como mendigos, colocando a felicidade como dependente de algo externo. No momento em que olhamos para fora em busca de felicidade, esquecemos que nossa natureza é uma jóia que realiza todos os desejos, e nos tornamos mendigos, dependentes de situações externas. É como se fôssemos muito ricos, mas não tivéssemos consciência de nossa riqueza. Quando adotamos uma atitude de mendigo, nos relacionamos com os outros como quem espera ganhar uma esmola de vez em quando. Quando uma pessoa entra nesta situação, os horizontes da mente se fecham, e ela não sabe mais como sair desta armadilha; ela esquece a experiência de liberdade de sua natureza luminosa básica. O budismo tem por função unicamente revelar esta natureza básica. A experiência de liberdade não é uma teoria, é algo completamente prático. É como um carro atolado: basta tirá-lo da lama para ele andar; o carro não está danificado, só está preso. O ponto básico para a liberação é a motivação, pois é ela que comanda o aspecto sutil da energia da ação. A motivação mais sutil é tomar refúgio no Buda, no Darma e na Sanga para benefício de todos os seres. Felicidade permanente 17 Já vimos que a motivação básica de todos os seres é buscar felicidade e se afastar do sofrimento. Há então uma harmonia, todos buscam a mesma coisa. Mas existem diferenças. Existe a felicidade permanente e as felicidades passageiras. Dentre as passageiras, podemos ter felicidades curtas com longos pagamentos, ou felicidades de média duração e longo sofrimento. Podemos ter felicidades mais ou menos intensas. A felicidade de um casamento termina com o fim do casamento, por exemplo. Também podemos ter felicidade à custa de outros seres, como no caso de um churrasco. Mas há um tipo de felicidade que, quando obtida, traz benefícios para a pessoa que a alcançou e para todos os demais, instantaneamente. Mais que isso: essa felicidade é permanente, não tem fim. Um exemplo é libertar-se do orgulho: isso é bom para a pessoa que se liberta e para todos à sua volta, permanentemente. Ou então se libertar da raiva, é uma grande felicidade! A pessoa pode olhar com carinho para os outros, vê-los como pais, como irmãos. Trata-se de uma liberação, é algo que não termina. As qualidades que brotam na liberação não são passíveis de perda. Esta é a felicidade de liberar as seis emoções perturbadoras – orgulho, inveja, desejo/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo. Quando se consegue isto, o mundo muda, passa a ser uma fonte de felicidade radiante, que não depende de fatores externos, nem de objetos. É a felicidade permanente. As outras felicidades existem, não há dúvida. Algumas dependem de objetos, são as felicidades mundanas. Outras podem ser obtidas à custa de terceiros, que perdem ou são prejudicados. Existem tradições religiosas que usam a palavra Deus para seres que produzem benefícios para uns e malefícios para outros. No passado havia sociedades cujas religiões ensinavam como destruir outros povos para benefício próprio. Temos que olhar para isso com cuidado. A natureza do absoluto não pode ser descrita por conceitos relativos. Os seres capazes de produzir benefícios para uns em detrimento de outros podem ser muito poderosos, mas não têm a experiência de sabedoria transcendente. Estes seres pertencem aos reinos de existência condicionada. Como nós, eles têm uma natureza intrínseca perfeita, mas operando sob condições limitadas. Não há benefício dual permanente, mas, como nossos olhos estão perturbados, quando nos voltamos para estes seres poderosos só pedimos coisas impermanentes. Isto parece religião, mas não é – embora possa lidar com coisas sutis. Estas ações estão dentro da roda da vida, dominadas pela impermanência e instabilidade. Generosidade Parece que nossa felicidade material só ocorre com esforço e luta, mas essa visão é equivocada. A generosidade cria méritos que impedem a pessoa de viver uma situação de miséria. Se a pessoa se acha miserável e acredita que não tem nada para oferecer, assim é. A situação melhora imediatamente quando ela oferece algo, nem que seja um sorriso, um olhar de carinho. No entanto, se a atitude mental é de avidez, há um poço sem fundo, a pessoa sempre se sentirá miserável. Com esse sentimento de carência, ela só vê o que falta. A avidez independe do quanto temos; é uma atitude mental. Quem vive na pobreza mas é generoso não se sente pobre, sempre tem algo a oferecer. Um dos remédios do Buda para a transformação da experiência dos seres é a tigela 18 que segura na mão esquerda. Ele e os monges ofereciam-na para ricos e pobres, dando a eles a oportunidade de gerarem méritos. Mérito traz resultados imediatos: alimentar um cachorro traz satisfação imediata. Sustentar a Sanga produz grande mérito e felicidade. Uma mente miserável não oferece nada, pensa que, se der algo, aquilo fará falta mais adiante. Estamos em meio a seres que buscam a felicidade sugando os outros. A maneira de lidar com eles é desejar que se liberem dessa condição de miséria; se usarmos apenas noções de justiça e injustiça, será impossível. Estes seres miseráveis não podem ser acusados ou condenados por se manifestarem desta forma. Além das circunstâncias externas, há uma atitude interna a ser transmutada. Neste caso, o meio mais poderoso é proporcionar condições para que pratiquem a generosidade, livrando-se da experiência de dependência, incapacidade e miséria. Estados mentais transitórios As felicidades mundanas, que são finitas, podem ter curta, média ou longa duração, mas existe um aspecto comum: a felicidade mundana traz consigo uma infelicidade potencial. Por exemplo: a pessoa bebe e depois fica de ressaca. Ter um filho é uma maravilha, mas ele também é impermanente, se morre é uma tragédia. A pessoa se alegra porque comprou um carro, depois se preocupa com que não seja arranhado, roubado etc. São alegrias na dependência de outros fatores; sujeitas, portanto, à impermanência. Há situações nas quais entramos e depois, por pior que seja, não conseguimos sair. Primeiro rezamos para conseguir, depois para nos livrarmos. Existe uma grande alteração de qualidade em nossa vida quando percebemos que, independentemente da situação objetiva externa, podemos dirigir nossos estados mentais na direção que desejarmos. Focando a mente num estado mental específico a infelicidade cessa, e a felicidade surge. Podemos ouvir música ou acender incenso, por exemplo. Ainda que haja aí uma certa liberdade, não é completa, pois, tão logo a música e o incenso terminam, o estado de felicidade perde seu substrato. No entanto, enquanto permanecemos naquele estado mental, estivemos tranqüilos. Se temos um pouco mais de habilidade, podemos fazer relaxamento ou meditação de tranqüilização. Mas estas experiências também têm início, meio e fim. Não podemos ficar relaxando o tempo inteiro, e por isso voltamos aos velhos conflitos de sempre. Vendo essa situação, queremos isolamento, desejamos morar num ashram em meio à natureza, nos Himalaias. Olhamos ao redor e achamos tudo terrível. A felicidade através de estados mentais particulares também é finita. Em geral, nossa motivação está oculta. Ela tem o poder de transformar qualquer atividade em atividade de mérito – e também o poder de estragar tudo. Se fazemos prática espiritual, mas com a motivação de ser melhor do que alguém, ou porque estamos numa disputa, nossa mente está imperfeita, mal colocada; mais adiante colheremos os frutos dessas ações e diremos que aquela prática não funciona. Por outro lado, se a motivação é correta, podemos transformar toda nossa atividade cotidiana em prática espiritual. A motivação definirá se nossa vida funcionará, se nossa prática frutificará. Já vimos que nossa motivação básica é buscar felicidade. Todos os seres se movem nesta direção, então podemos entendê-los. Não há atividades erradas. Todos buscamos, de forma mais ou menos hábil, nos aproximar do que consideramos bom. Todas as religiões brotam disso. Como isto se dá de forma prática no budismo? Buda no país dos kalamas 19 o Buda Sakiamuni chegou ao país dos kalamas. isso é sofrimento imediato. Mais ainda. Os efeitos negativos são muito mais intensos se. mentir. Se o ensinamento trouxer benefício. ter aversão por outros seres. que a faça descrer da paz. sim. não!" Assim. se ela executar a ação planejada. não!" O Buda perguntou: "E roubar é um método para encontrar a felicidade?" Todos repetiram: "Não. agredir com palavras. a pessoa passa a planejar a forma de realizar isto. O pior de tudo – o que completará o carma negativo – é se a outra pessoa morrer. Porém. as dez ações não-virtuosas podem produzir vantagens aparentes. Abençoado!" Ao final. isto é interessante?" Todos disseram: "Não. ela dá ao outro ser o poder de perturbá-la. ela se fixa na forma de percebê-lo como um ser perturbador que deve morrer. não!" O Abençoado seguiu enumerando: conduta sexual inadequada. mas as conseqüências danosas são de quatro níveis: imediatas. de curta. a avareza e o ódio são chamados de os três venenos – são a raiz de todos os sofrimentos. isto pode levar a pessoa ao renascimento nos reinos inferiores. Observe: estas são conseqüências de apenas desejar a morte de alguém. muitos mestres têm passado por nosso país. depois de desejar a morte. Quando alguém pensa: "Seria bom que tal ser morresse". O mesmo 20 . Depois o Abençoado citou a avareza e o ódio. Se usamos como método de buscar felicidade matar outros seres. O Buda então indagou: "Uma pessoa dominada pela ignorância pode ser levada a matar?" Todos concordaram: "Sim. E todos repetiram: "Não. perguntando se poderiam causar. nós é que nos sentimos imediatamente afetados. Naquele momento alguém se levantou e disse: "Senhor. as dez ações não-virtuosas. Pode manifestar também uma atitude herética que leve à violência. Na linguagem budista. sigam-no diligentemente. a pessoa se torna sensível à toda menção. por exemplo. oferecendonos seus sábios ensinamentos. com medo de alguma punição. dar conselhos que resultem em sofrimento aos outros. A longo prazo. eles sempre dizem: “Esqueçam o que vocês já ouviram antes. Neste caso. lembrança. As pessoas se aproximaram e lhe pediram que desse ensinamentos. No momento em que pensa isso. mas geram infelicidades imediatas e de curta. Não é que algum ser superior sinta-se afetado.” Como devemos ouvir suas palavras?" O Buda disse: "É muito simples. Abençoado!" O Buda questionou: “Uma pessoa dominada pela ignorância pode ser levada a roubar?" Todos concordaram novamente e responderam: "Sim." Emoções perturbadoras Causar mal aos outros talvez tenha um resultado vantajoso de curta duração. Se não trouxer nenhum benefício. Experimentem em suas vidas. falar inutilmente. sim. Em cada um destes eventos ela se sente atingida e reage com amargor interno. a pessoa pode desenvolver uma doença física. A curto prazo." O Buda continuou: "Todos os seres buscam felicidade e querem se afastar do sofrimento. ser avarento. todos concordaram que estas dez ações são fontes de sofrimento e não de felicidade e entenderam por que são chamadas de ações não-virtuosas. sim. A cada pergunta os kalamas responderam: "Sim. média e longa duração. criar discórdia. Abençoado!" O Buda enumerou as dez ações não-virtuosas e todos concordaram que a ignorância poderia causar cada uma delas. agora vou ensinar a verdade definitiva. Quando praticadas.Certa vez. uma a uma. média e longa duração para quem as pratica e para as pessoas ao redor. ético e moral ou que parece elevado e digno. abandonem-o. o executante não terá mais sossego. Ouçam com cuidado e testem. o Buda explicou: "Esta é a razão pela qual a ignorância. isto pode se manifestar como uma atitude não-consciente de aversão a tudo que é religioso. sonho ou encontro com aquele ser. A médio prazo. Não é um benefício arrancado de alguém. num ciclo incessante. Se conseguimos liberar o orgulho. O que define nossa prática espiritual é a motivação: superarmos nossas dificuldades e sermos capazes de beneficiar os outros seres. A ignorância é a base de todas as emoções perturbadoras: orgulho. É o que fazem os bodisatvas. mas eles sabem que tudo que é construído em uma semana. buscamos gerar méritos e obter uma felicidade estável. todos os seres ao nosso redor se beneficiam. surge a decisão forte e estável de nos libertarmos. contaminamos tudo. o desejo/apego. porque a felicidade termina quando a impermanência se manifesta. É um benefício que está além de vida e morte. espaço e tempo. desejo/ apego. Como vimos. Estas seis emoções perturbadoras são assim chamadas porque cada uma nos leva a cometer as dez ações não-virtuosas. que aquilo trará benefício para ela. se desmanchar. e o grande segredo é a generosidade. Ao reconhecer isso com o coração. longos carmas. a obtusidade mental e a carência. todos os seres que estão em situações de sofrimento têm todos os argumentos para justificar suas ações equivocadas e não mudar. surge uma felicidade que automaticamente beneficia a todos. A pessoa não percebe que está construindo um longo carma de sofrimento para si mesma. Se nos aproximamos de qualquer prática espiritual com emoções perturbadoras. como certas posturas espirituais ou filosóficas limitadas. seres que se movem impulsionados unicamente pelo desejo de beneficiar os outros. à meditação de tranqüilização. o que nos leva a praticar as dez ações não-virtuosas. que produzem impulsos que não conseguimos controlar. No momento em que liberamos as seis emoções perturbadoras. Curiosamente. há um limite no que é possível avançar. se buscamos a melhor forma de trazer benefícios relativos e absolutos. Nos empenhamos em eliminar as seis emoções perturbadoras e desenvolver emoções positivas. a inveja. aos ciclos incessantes de felicidade 21 . É o veneno da ignorância atuando. um ano. os bodisatvas manifestam desapego em relação às circunstâncias dos seis reinos da existência cíclica. associadas à música. No primeiro. gerando sofrimentos imediatos e futuros. Níveis de motivação Existem três níveis de motivação budista. Ela quer felicidade e não quer sofrimento. Mas. uma vida. não se dá conta e pensa que é bom. Como conseqüência. carência e raiva/medo. motivação indispensável para começar a receber os ensinamentos budistas. Existem motivações que trazem felicidades para uns e malefícios para outros. Todas estas motivações são pré-budistas. ou algo que em seguida temos que devolver. inveja. nossa relação com eles melhora. Eles não estão presos em jogos mentais.processo é válido para as outras nove ações não-virtuosas. construindo longas infelicidades. O mesmo acontece com a raiva. Existem também felicidades sutis. esperança e medo. ao relaxamento. Uma etapa deste processo é liberar as seis emoções perturbadoras. um mês. Depois de praticar longamente nessa perspectiva. existem motivações que levam a experiências de felicidade – ainda que impermanentes e dependentes de objetos –. O caminho budista começa quando percebemos que estamos aprisionados pelas seis emoções perturbadoras. isto é prática espiritual verdadeira e transforma nossa vida. Por isto. tampouco é impermanente como o que podemos comprar ou fazer com nosso trabalho. Quando a pessoa faz uma ação equivocada. obtusidade mental. têm sabedoria. Nós construímos coisas duais e buscamos felicidade deste modo. a pessoa se dá conta de que todos os outros seres estão em situação idêntica e que o universo inteiro está submetido à impermanência. Nesta etapa a pessoa tem a atenção sobre si. A mente ilimitada é a base das mentes limitadas. Assim. têm nome e forma. O terceiro nível de motivação é a percepção de que o local onde estamos. o reconhecimento da natureza perfeita e verdadeira inerente a todas as aparências. pela descrição do que vemos ao nosso redor. Mesmo em nossa condição limitada. Quando não temos sabedoria. nossa natureza e tudo que nos rodeia é perfeito. não existem duas mentes. percebe que sua felicidade está ligada à sorte dos outros seres. vemos que está sempre ligada a uma realidade circundante específica. Há um panorama. A perturbação sempre parece justa e explicável. A raiva fica lá dentro e pode vir a explodir como uma panela de pressão em algum momento. seja de que tipo for. a prática de todas as quatro qualidades incomensuráveis é fundamental. não adianta criar uma tampa interna. No segundo nível. Ampliamos o foco que estava apenas sobre nós mesmos e passamos a incluir os outros progressivamente. se examinamos sua manifestação. As demais qualidades são: amor. a paisagem virtual na qual nos sentimos imersos. Quando estamos envolvidos em nossos sofrimentos e complicações. Para retirar o princípio energético das perturbações é necessário utilizar a sabedoria da inseparatividade. Tudo aquilo que focamos é inseparável de nossos olhos. Quando estamos sob o efeito desta perturbação. A raiva é uma das emoções que produz grande desconforto e ansiedade. e dela brotará o sofrimento posterior. É a prática da visão pura. A compaixão já é prática da onisciência e liberdade da mente ilimitada. Sempre justificamos nossa raiva ou perturbação. apenas a represa. a maturidade deste primeiro nível conduz ao reconhecimento dos ensinamentos que falam da inseparatividade de todos os seres e de todas as coisas. Inseparatividade É importante entender que o budismo visa à superação das raízes do sofrimento e o estabelecimento de bases para a felicidade temporária e definitiva. alegria e equanimidade. No caminho da liberação do sofrimento. é como se o esplendor luminoso desta mente ilimitada surgisse no horizonte como a claridade que antecede o sol. É muito extraordinário que alguém se ocupe com os outros. a felicidade sob condições também é uma forma sutil de perturbação para a qual temos ainda menos vigilância e defesa. ela parece surgir de forma natural e justa de dentro de nós. uma experiência mental de reconhecimento do mundo e de nós mesmos de um certo modo. surge inseparável do conteúdo de nosso coração. quase que de forma independente. temos todo um contexto que valida a perturbação. a felicidade condicionada é. O segundo nível da motivação budista começa neste ponto e se baseia na compaixão. A compaixão é a primeira das quatro qualidades de valor incomensurável descritas pelo Buda. isto não elimina a perturbação. as coisas ruins existem como experiências concretas. é o desejo de que o outro se libere de suas dificuldades. Entretanto. A compreensão da inseparatividade começa quando percebemos que a realidade. No sentido budista. portanto. impermanente.e sofrimento. o primeiro passo é descaracterizar a solidez da experiência de sofrimento. Ela desperta sua sensibilidade em relação aos outros. Como as condições são sempre impermanentes. Quando a compaixão se manifesta. Conter-se não é uma solução definitiva. a mente ilimitada opera o tempo todo. Esta compreensão é muito profunda e nos permite uma liberdade 22 . Este é o ponto central do budismo. e é somente na dependência deste panorama que a perturbação ocorre. e toda a complexa realidade circundante toma vida diante de nossos sentidos físicos. Ao reconhecer isto. Vemos que. É a manifestação da impermanência no reconhecimento das coisas e do mundo. Mesmo na ciência. O que experimentamos como uma realidade externa na verdade surge inseparável de nossa estrutura cármica interna. a visão clássica da física parecia definitiva. certezas desaparecem. No momento em que viajamos para "dentro" e transformamos o conteúdo cármico de nosso coração. logo.. Em nossa vida há dias em que tudo parece torto.antes desconhecida. As relações humanas – inclusive nossas relações afetivas – estão na dependência dessas paisagens que atuam sem avisar e mudam por uma dinâmica própria. com sua visão surpreendente. todo o universo "externo" muda. sob o céu de fim de tarde. Até o início do século XX. Quando as teorias e visões mudam. as práticas de meditação têm o propósito de desarticular a prisão automática e quase invisível que nos conduz à experiência das emoções perturbadoras e dos seis reinos da roda da vida. Paisagens mentais No budismo. presente e futuro. hoje temos outro.. O colapso da física clássica originou a física quântica. a experiência de universo muda. Os seres que nos cercam são inseparáveis de nós e. incompreensíveis. uma única vez.. Quando mudamos esta estrutura complexa – nossa paisagem sutil interna –. e no futuro teremos uma outra visão de futuro. Quando você tiver essa experiência. 23 . No passado tínhamos um futuro. São elas que produzem todas as experiências de atração. A impermanência toca passado. Nem mesmo os cientistas escapam disso. minhas ações devem ser deste e não daquele modo. manifestam-se na forma de amigos ou inimigos. podemos prestar benefícios aos outros seres. quando somos pais. e novas liberdades se oferecem. Mesmo seus universos são dependentes de crenças e suposições. Olhamos um quadro retratando um lago com um barco ao longe. É neste ponto que reside toda a magia do budismo. mas na verdade o reconhecimento da realidade externa de um modo específico condiciona as opções e determina impulsos. Eles olham tudo a partir da paisagem mental de suas teorias. surpreendentes.. apreciamos a paisagem do quadro. experimente sentar um pouco e respirar devagar e profundamente uma vez. Brota uma emoção na mente. as emoções. quando as teorias mudam. ela atua também em relação ao passado. ainda que externamente sejam os mesmos. liberdades aparentemente mágicas. cheio de tons suaves. Aspectos que hoje parecem bons. imutáveis. irremovíveis. ao optar por uma estrutura interna. sofrimentos e alegrias surgem como ventos incontroláveis. Somente recuperando a estabilidade. O que parece liberdade é apenas um movimento preso às condições virtuais automáticas aparentemente sólidas. Surpreendentemente. amanhã não parecerão favoráveis. nos descobrimos com liberdades de que nem suspeitávamos. separação e indiferença como felicidades e tragédias emocionais. como os mestres que se movem com sabedoria e liberdade em qualquer circunstância. Quando somos filhos. vemos nossos pais de um jeito. Mas onde realmente estão o barco e o pôr-do-sol que nos comovem? Ali temos apenas tela e tinta!. surge uma experiência correspondente na forma de algo externo. Costumamos pensar: "A realidade da vida é assim. Tudo muda. É surpreendente olhar ao redor com o reconhecimento desta liberdade. poderosas. o universo inteiro muda. eles adquirem uma face inteiramente nova. inseparáveis de nossos olhos e corações." Parece haver liberdade nisto. sempre buscamos segurança na lembrança de um colo de mãe ou de pai. Sem isto. dizemos: "Quero vencê-los e me livrar disso. A natureza de Buda é estável. tornou-se imune à experiência de impermanência e ao carma que a origina. disse: "Libertei-me daqueles que foram meus senhores por incontáveis vidas – as disposições mentais e os agregados. dizendo: “Vou derrotá-lo e destituí-lo de seu poder de confundir e perturbar as pessoas. pela lucidez.” Mara produziu muitas ações perturbadoras. Não temos liberdade frente ao carma. além das marcas mentais. mas um impulso surge por si mesmo. Esta experiência de liberdade é o refúgio na condição de Buda. Sidarta Gautama desenvolveu a habilidade de olhar para as coisas com liberdade. ele havia feito como nós fazemos: olhara suas disposições mentais e agregados e os seguira. de um lugar oculto que nem suspeitamos qual seja. tornou-se Buda. A proteção que podemos oferecer aos outros também é frágil. é a verdadeira fonte de segurança e refúgio. é sim! Motivado pela compaixão por todos os seres." Até atingir a iluminação. e termina por nos dobrar. e por isto foi reconhecido como Buda. todos os colos são inseguros e impermanentes. Por repousar sobre o que não é construído. Mas o Darma é a sabedoria estável que brota dentro de nós sempre que tomamos refúgio na estabilidade da natureza de Buda. Não adianta lutar contra isso." Ao final. Quando enfrentamos de modo repressivo os impulsos que nos conduzem a ações equivocadas. mas quando a hora chega não conseguimos sair da cama. criar uma maneira sempre positiva de nos manifestarmos? Existe esta liberdade? A resposta. Libertação É possível. Nossa compreensão não é estável porque nossos referenciais não são estáveis. Decidimos uma coisa. observador. O carma produz o impulso de ação.Até hoje este tema provoca emoções e a sensação de perda nos cientistas que se mantêm apegados à noção de uma realidade externa pré-existente e independente do observador. as flechas de Mara transformavam-se em flores. aproximando-os da intuição espiritual (e budista em particular). e nos leva em outra direção. A compreensão que brota desta experiência é o Darma. O que surge produzindo impulsos e nos faz ver as coisas de um jeito e não de outro chama-se carma. Quando repousamos no que é estável não precisamos lutar. Onde encontrar? Nunca conseguimos segurança. podemos até dançar em meio às flutuações. mas nossos olhos determinam a experiência das coisas. incerta. Quando Sidarta libertou-se de Mara. mas a decisão em si não tem força. perfume e na luminosa aura dourada do Buda. mas é o carma que decide. pois o impulso surge de novo e de novo. mesmo para situações extremas. livre. a natureza não-construída. decidimos uma coisa. Não é que a vida mude propriamente. em meio às confusões. Pensamos que temos liberdades. Podemos decidir fazer ginástica às seis da manhã.” Mas o impulso é mais forte que nossa decisão e nos desgastamos. A visão da inseparatividade entre objeto. No entanto. atacando Sidarta de várias maneiras. o príncipe Sidarta Gautama um dia sentou-se em meditação debaixo de uma grande figueira e invocou Mara (o senhor das ilusões). teoria e equipamento experimental é a grande contribuição da física quântica para a compreensão da realidade – e é o que excita a imaginação dos cientistas. 24 . ao se aproximarem. que significa “liberto”. Há liberdade em meio às coisas do mundo. pensando: "Isto sou eu. após a cura não são mais necessários. enquanto Anteu continuava com vigor pleno. ou seja. Fixamos concentradamente o objetivo de superarmos nossas dificuldades e sermos capazes de trazer benefícios permanentes aos outros seres. nossos ossos irão engrossar as paredes do templo onde se cultuam as fixações e carmas. ou seja. pois são capazes de revelar nossa natureza luminosa e maravilhosa. um gigante sanguinário. pensamos em pular na frente. Lama Preliminarmente vem a motivação. a materialidade. o carma e o sofrimento. Hércules dominou-o facilmente. Palas Athena. Ir de encontro a esta situação não adianta. seremos derrotados e. No momento em que Anteu perdeu o contato com sua fonte de força. Sem desenvolver esta habilidade. surgem naturalmente e são bem aceitas. Quebra-se o encanto ao se revelar nossa verdadeira situação. era derrotar Anteu. seres estudam. a impermanência. A cada geração. por compaixão. o carma e os venenos da mente são desejáveis. e suas forças eram equivalentes. Mas. dedicam suas vidas – uma após a outra – a transmitir os ensinamentos que permitem liberar o sofrimento. quebrar a magia poderosa que sustenta a paisagem onde as prisões. realizam e transmitem ensinamentos que trazem em si uma bênção própria. menos dia. basta a lua. Quando disputamos uma vaga com alguém. sua mãe. Então prestamos homenagem ao Lama. cujo objetivo é suspender Anteu. É como um dedo que aponta a lua: o dedo é para ser esquecido.Existe uma história da mitologia grega que ilustra bem este fato. o herói em luta pela transcendência. A força de Anteu vinha da terra. Estamos completamente inseridos nisto. Pensamentos transformadores Como suspender Anteu? Como produzir o enfraquecimento das seis emoções perturbadoras? Os ensinamentos do Buda são como remédios. Segue-se a homenagem ao Lama. queria construir um grande templo com ossos humanos para homenagear sua mãe. após um tempo. Os dois se enfrentaram. Estes ensinamentos começam com uma homenagem ao Lama e a seguir abordam os quatro pensamentos: a vida humana preciosa. mais dia. ao obtê-la. ouvem. Por exemplo: fazemos esforço para obter uma certa coisa. água e sabão: quando terminamos de lavar um prato. Anteu. parece natural. deixa o ônibus. não vai levá-lo para casa. protetora de Hércules. ficamos orgulhosos. Hércules começou a cansar. É como pegar um ônibus: quando você chega ao destino. Um dos trabalhos de Hércules. Esse aspecto "terra" é o que nós faz sentir vivos. justificáveis. Temos que suspender Anteu. Se alguém tenta invadir nosso território. 25 . Gea (a terra). elas se encaixam com perfeição em nosso contexto. sentimos que nada é mais normal que uma boa raiva. não deixamos resíduos deles. há um suprimento energético aparentemente ilimitado que as sustentam. Lembramos dessa linhagem ininterrupta de seres que. Existe um conjunto de ensinamentos tradicionais budistas chamado “os quatro pensamentos que transformam a mente”. Os ensinamentos são como um hospital: você sai tão logo esteja curado. intensos e naturais. sussurrou-lhe que suspendesse Anteu do solo. O voto de refúgio encerra os ensinamentos. Anteu personifica as seis emoções perturbadoras. vamos cansar como Hércules cansou. Sempre desejamos algo e pensamos que isso é ótimo. É como esponja. Não é o reino de Deus. ou sonhando com isso. Não conseguimos dirigir esse processo.. Entre os reinos superiores. à depressão e à gula. mas são competitivos e invejosos. não têm problemas de saúde ou financeiros. Os seres nos infernos dizem: "Estou sofrendo. E. Existem seis reinos nos quais podemos renascer – um deles é o reino humano. Os humanos sonham em chegar ao reino dos deuses. Nos conectamos com esse reino através da raiva e da aversão. e esta é sua perdição. Temos liberdade de olhar nossos impulsos e perceber aspectos mais sutis. Os fantasmas famintos têm sempre muito pouco diante do que sentem que necessitam. 26 . Isso é a vida humana comum. há o dos deuses. o chefe. No reino humano isso corresponderia à vida daqueles que têm muitas facilidades. passam o tempo todo combatendo. Os humanos têm a possibilidade de praticar. Nos conectamos a essa experiência através da avareza e ganância. então por que praticar? Os semideuses não têm tempo para praticar porque estão sempre em guerra. Como somos geridos pelo carma. Vivem almejando chegar lá. Os deuses têm corpos sutis.. O problema é que são benefícios condicionados. Assim. Nossa condição humana atual é favorável. Nos conectamos ao reino dos animais quando cedemos à preguiça. dormem. trabalhando para isso. Podemos vivenciar as experiências dos seis reinos com o corpo humano – embora com muito menos intensidade. nosso renascimento é determinado por nossa condição cármica. O reino dos seres humanos tem uma vantagem. deslocam-se no espaço e produzem benefícios para seres humanos em dificuldades. Para todo lado que olhamos as coisas são difíceis e só há sofrimento. Nossas felicidades e sofrimentos não são tão duradouros. mas dos deuses. também não ouvem o Darma. Cada reino tem um âmbito de experiência específico. Temos tempo livre. ao cansaço. tudo é horrível. o marido. buscamos os ensinamentos. No reino dos infernos e no reino dos seres famintos não se pratica o Darma. E ela é muito rara. como posso praticar?" Existe o reino dos animais. desfrutam de todas felicidades do mundo material e também são amados e livres. Esta é a vida humana comum. Conectam-se com este reino através do orgulho. não produzem liberação. O reino dos infernos é vivido por nós através da experiência de que todas as pessoas que nos cercam são ruins – o filho. Eles têm poder. de barriga cheia. Os outros seres são muito mais numerosos. No reino dos seres famintos há uma experiência de carência incessante. A conexão humana com o reino dos semideuses dá-se através da inveja. Os mestres do passado diziam que o renascimento em um corpo humano é tão improvável quanto uma tartaruga cega que viesse à tona a cada cem anos num mar revolto conseguisse colocar a cabeça dentro de um aro que flutuasse na água. como vou praticar?" Os seres famintos dizem: "Preciso disso e daquilo. Outro reino superior é o dos semideuses. quando cruzamos da felicidade para a infelicidade. A vida humana preciosa tem características que transcendem em muito à vida humana típica. Os deuses não praticam porque estão imersos em facilidades e felicidades. o que resulta na obtusidade mental. e eles não praticam porque tão logo estejam com suas necessidades satisfeitas. O corpo humano é raro e improvável.Vida humana preciosa O primeiro pensamento é sobre a preciosidade da vida humana. Isso significa méritos. está esquecida de sua condição búdica. sem que a pessoa saiba. Onde estão aqueles amigos inseparáveis dos tempos de escola? Onde está a casa de nossa infância? Nossa mãe. A médio prazo. aprendemos a olhar a impermanência. manifestando-se de forma não-consciente. Impermanência O segundo pensamento é sobre a impermanência. O sofrimento de curto prazo é ver de modo recorrente a morte de alguém como solução para problemas. Os ensinamentos chegaram a nós. carência e medo são a realidade natural do mundo. Os mestres do passado disseram que. Se estivéssemos sob domínio de seres negativos. O olho incorreto vê tudo como se fosse estável. de nossos apegos? Estamos aqui por um curto período. O sofrimento de longo prazo vai se prolongar por esta vida e por outras. ou se tivéssemos um modo de ação incorreta. mas nos enganamos. a vida humana preciosa é tão rara quanto estrelas à luz do sol. O carma se manifesta em quatro níveis: imediato. mas sumiu? Nossa experiência é de instabilidade e transformação constantes. irmãos? O primeiro namorado. se a vida humana é numerosa como as estrelas no céu noturno. É rara e preciosa. Pior do que desejar a morte de alguém é planejá-la. Esta percepção. e isto é sofrimento imediato. a pessoa sofrerá por desenvolver uma aversão consciente e ativa aos valores elevados. que foi maravilhoso. Tudo é impermanente. inércia. Estamos sempre buscando o que é estável.Quando vivemos em épocas nas quais os seres de luz não se manifestam. A vida humana é preciosa quando. Quando entendemos a preciosidade de nossa vida e a usamos para produzir benefícios para outros seres. Se executar seu plano. e manter a fragilidade que faz ver o outro como perturbador. Além disso. o planeta Terra irá desaparecer. Com o ensinamento. não conseguiríamos ouvir os ensinamentos. a curto. e estamos numa região onde esses ensinamentos existem. pai. No momento em que a pessoa deseja tal coisa. Vamos usar como exemplo o desejo de que alguém morra. somando-se a estes fatores. como uma insensibilidade aos valores positivos. estamos engajados em transformar nossa vida a partir dos ensinamentos dos seres de sabedoria. Se não estamos nessas condições. a intranqüilidade aumentará 27 . Na época atual os seres de sabedoria vieram e deram ensinamentos que foram guardados e transmitidos. Carma O terceiro pensamento é sobre o carma. é sinal de que os ensinamentos produziram as transformações que buscávamos. e a pessoa poderá ter pesadelos. De acordo com os ensinamentos budistas. perfeita. já é a experiência dos reinos inferiores. temos as características de vida humana preciosa. Aí a perturbação se intensifica. O que dizer então de nossa pequenez. nos sentimos perdidos. produzido pela sensação de que os valores de agressão. aprendemos a olhar com o olho correto a cada momento. Estes impulsos produzem as dez ações não-virtuosas. médio e longo prazo. originando sofrimentos específicos. como as tradições filosóficas e religiosas. e a vida parece sem sentido. Estamos sujeitos a impulsos internos com os quais não podemos lidar. O renascimento em reinos inferiores ocorrerá por um impulso natural da mente deste ser. temos sensibilidade para ouvi-los. luminosa. Tem o poder de produzir benefícios que ultrapassam o limite de vida e morte. competição. Esta qualidade deve abranger ex-maridos. Os Budas olham o que chamamos de samsara e vêem a perfeição que ali existe. recebemos ensinamentos e nos sentimos protegidos pelos seres de sabedoria. criação de filhos. toda vitória que podemos ter é como vitória no futebol – frágil. Trata-se de perceber a flutuação de alegria e tristeza da vida: num momento se tem uma grande alegria. estamos submetidos ao carma. Somos como formigas num enorme palácio humano.” Em meio às confusões do mundo e tendências cármicas. solucionando confusões e conflitos. não conseguimos reconhecê-lo com nossos olhos de formiga. A pessoa irá se sentir perseguida. Reconhecendo isto. Se o outro morrer. que é sobre o sofrimento. Quatro qualidades incomensuráveis Paralelamente ao processo de transformação das tendências cármicas. em terra pura. É o método positivo de manifestação no cotidiano. o voto de refúgio surge naturalmente: “Eu gostaria de me liberar disso. Assim. ex-esposas. A alegria é a terceira qualidade. sua condição verdadeira. o desejo de que os seres realizem sua natureza interna e se livrem de suas complicações. indagar: "O que posso oferecer?" Alegrar-se em oferecer! Se 28 . A primeira qualidade é a compaixão. Mas então resolvemos mudar: fazemos o voto de refúgio para ir em busca de nossa natureza completa. que é onde praticamos. isto é prática espiritual. validamos a imagem que a pessoa faz de si mesma. completamente suscetíveis ao próprio carma. luminosa. Devemos percorrer uma longa etapa de transformação de nossos olhos. Esta nossa vontade de mudar é testada várias vezes nas circunstâncias do mundo. A equanimidade faz surgir uma serenidade estável frente às flutuações e uma fé permanente e inabalável na natureza de todos os Budas. Atenção: compaixão é diferente de pena. lugar de sofrimento e enganos. Quando temos pena. quebrando o encanto dos jogos mentais que estão produzindo as complicações. em vez de perguntar: "O que vou obter do outro?".. perfeita. pequenas ou grandes. Sofrimento e refúgio Por causa do carma surge a etapa seguinte.. Estes métodos são positivos também nas relações humanas – casamento. Sempre que operamos com referenciais duais. usar as relações que estou vivendo de forma positiva. revelar minha natureza luminosa.mais. É a capacidade de se alegrar com as alegrias e vitórias dos outros. o desejo de que o outro seja completamente feliz. pior ainda. A quarta qualidade incomensurável é a equanimidade. A segunda qualidade é o amor. que é nossa própria natureza. a paisagem ao nosso redor transforma-se de samsara. ex-sócios. O mesmo ocorre ao se praticar as outras nove ações não-virtuosas. impermanente. Sofrerá por um tempo que ultrapassa seu período de vida. Essencialmente é o desejo de que o outro supere suas dificuldades e possa melhorar. e que é a razão de ela estar mal. beneficiar os seres. Em primeiro lugar. namoro. e o sofrimento é inevitável. trabalho. É um poderoso antídoto contra a inveja. em outro aquela mesma coisa transforma-se numa grande tristeza. o Buda ensinou a prática ininterrupta das quatro qualidades incomensuráveis. até que possamos reconhecer o palácio. estudo. como resultado do refúgio e da prática. Compaixão é reconhecer no outro sua natureza estável. Enfim. o quarto pensamento. todos os seres estão vulneráveis aos resultados de suas ações. superando os conflitos internos. através disto. Além do aspecto emocional invasivo que limita nossa vida e determina nossa experiência e forma de viver. sempre brinca: "Que tipo de amor é o de vocês? Aquele que só existe se o outro sorrir?" Este amor baseia-se no que recebemos e. A abordagem cognitiva não toca sequer no segundo nível. refere-se à fé também." Mas quando chega o momento. implica em acerto e erro. (Ensinamento proferido no Campus Semente da Fundação Peirópolis. curiosamente. mas. em Uberaba. e em nosso sofrimento não somos capazes de ver toda uma diversidade de outros seres maravilhosos ao nosso redor. e. os carmas que nem percebemos que estão presentes. Os amigos dizem: "Vá lá e peça o aumento. como os que definem nossa experiência sensorial – nossa visão. os sentidos físicos nos introduzem em realidades virtuais. No nível emocional a pessoa sabe que deve pedir um aumento ao chefe. Por outro lado. é frágil. Ainda assim podemos considerar que exista o critério de acerto e erro. chegando ao nível cármico e sua transcendência. Uma pessoa pode operar com seus sentidos completamente atrelados a uma percepção cármica. o sentimento de dor segue. por exemplo. não pode ser facilmente testada. Como a educação costuma limitar-se à perspectiva cognitiva. podemos saber que estamos com a mulher da nossa vida. eventuais justificativas não consolam o lado emocional. mas entraremos em crise quando surgir a impermanência e o outro flutuar. é muito raro chegarmos ao nível emocional. o emocional. Outro exemplo: para uma pessoa que é demitida do trabalho. quando o Buda diz: "Testem o que eu digo".dependemos do comportamento do outro para obter felicidade. mas muito além do sentido ordinário que se dá para isso. o XIV Dalai Lama. em 1998) III. de transformação interior. outros seres seguem tocando o nosso coração. existe um aspecto mais sutil. Ainda que tenhamos uma abordagem geral a respeito disso no budismo. Fé diz respeito à vida como um todo. inclusive no budismo. Minas Gerais. se coloca num sentido muito amplo. A operação mental legitima aquilo que percebemos cognitiva. Usualmente a questão da aprendizagem nas diferentes tradições. Estamos presos ao automatismo. Podemos ter uma namorada e perdê-la. podemos usar a vida cotidiana como caminho espiritual. os filmes no cinema não funcionariam. ela não consegue bater na porta ou perde a voz. Ainda que encontrem justificativas discursivas para a derrota. ou age de maneira brusca e irrita o chefe. Sua Santidade. Muito mais raro ainda seria ir além dos padrões habituais da percepção sensorial em si. Pensemos nos torcedores de um time que perde a final de um campeonato. Se não fosse assim. e trazendo benefícios a todos os seres. Praticando as quatro qualidades incomensuráveis. podemos ficar bem por um tempo. O exemplo clássico: ver uma cobra onde há uma corda enrolada. manifestando bondade e a natural moralidade. acaba tratando-se apenas de uma questão de mudança de opinião. por isso. Acontece que a emoção passa através dos sentidos físicos e viajamos 29 . Propósito da educação no budismo A palavra aprendizado usualmente diz respeito a cognição. sejam elas racionais ou emocionais. não se refere apenas às coisas práticas. emocional ou carmicamente. e é muito raro o pote ser realmente perfeito. eles foram além dos diversos processos ilusórios da mente. mas não apreende nada. préexistente e independente. É quando a pessoa tenta converter os ensinamentos a exemplos de suas visões distorcidas. Nossa experiência convencional é de que. O ouvir tem obstáculos imediatos. Isto não pode ser percebido pela maioria das pessoas. 30 . portanto. não tem a motivação correta para buscar a liberação. Ainda que estejamos escutando instruções. O objetivo não é adaptar a pessoa à experiência convencional de um mundo circundante. O primeiro defeito é o pote emborcado.mentalmente devido aos automatismos cármicos de resposta. A raiz dos defeitos do pote está na ação das seis emoções perturbadoras. Toda a educação no budismo está baseada em recuperar a liberdade. nossa mente divaga. poderemos superar este defeito. Este defeito surge quando a pessoa está fixada a referenciais da roda da vida. A forma de reconhecer nossa situação se transforma completamente. mesmo que já saibamos o final do filme. Não é má vontade. surge o ideal de liberação daquilo que nos produz uma experiência limitada. o mundo continua. Os Budas olham esta situação de outra maneira. e. tentamos nos liberar dos automatismos que produzem as experiências limitadas. O ensinamento entra no pote. mas não se mantém lá. secretamente desejamos que o Titanic não afunde e conduzimos nossas emoções de acordo com os eventos na tela. A origem deste defeito está no orgulho ou na inveja. Outras vezes começamos a refletir sobre o que ouvimos e perdemos o ensinamento seguinte. existem ensinamentos extensos nos quais focamos os elementos de condicionamento etapa por etapa e utilizamos as ferramentas para liberá-los. no qual não se pode depositar nada. Nesta situação os ensinamentos não produzem benefício. e ela não sabe o que aconteceu. Tentamos desenraizar os obstáculos mais evidentes. O progresso é muito lento. A pessoa acredita que aprendeu. internas. e além do mais temos intranqüilidades próprias. Defeitos do pote No sistema de educação budista é muito difícil acreditar que alguém possa avançar sem um guia. Em vez de tentar nos adaptar a este mundo. se desaparecemos. É fácil ver que diferentes seres têm diferentes tendências. o mundo se transforma completamente. Por isto na educação budista começamos ouvindo sobre como ouvir. mas logo em seguida tudo se foi. Há o pote envenenado. Isto pode ser provocado por qualquer uma das seis emoções perturbadoras. Convencionalmente vemos um mundo que nos acolhe. emocional e cármico (sutil) –. não seguimos esta perspectiva. mas que é separado de nós. A pessoa chega para ouvir. Esta é a experiência condicionada e limitante de samsara. corrompendo tudo o que nele é depositado. O segundo obstáculo é o pote rachado. pois o pote está contaminado. Precisamos desenraizar o que chamamos de três defeitos do pote. o caso mais grave. No sentido budista. receptivo. este é também o sentido de liberação. Uma vez que isto se altera. quando olhamos esta situação. ou seja. Se pudermos substituir estas emoções pela humildade e pelo apreço ao professor. Esta é a perspectiva mais profunda de educação no budismo. De fato. Isto também pode ocorrer por influência de qualquer das emoções perturbadoras. portanto. ou por combinações entre elas. é que as ilusões são muito profundas. Cada vez que vemos o filme. Quando superamos os três automatismos – cognitivo. No treinamento budista. seja do tamanho que for. Esta é uma abordagem geral. Remoção de obstáculos Os grandes mestres dizem que nossa natureza parece estreita devido a uma construção. Ou seja. pediríamos comida. O aspecto ilimitado da natureza é o que de fato chamamos de Buda.É importante que os ouvintes sejam bons potes. Por isso existem ensinamentos sobre o que é permanente e impermanente. Isto é muito importante para organizações não-religiosas. quando é vivenciado. desejo e aversão. às voltas com urgências. quando este aspecto é compreendido. oposição ou misturarem os ensinamentos com suas próprias teorias e continuarem a operar dentro de contextos limitados. Todos os seres dentro da roda da vida estão presos a uma atitude contínua e urgente. Nesta primeira categoria de ensinamentos somos levados a gerar uma motivação para ir além da impermanência. A comprovação desta amplidão é a capacidade de se alegrar com experiências cada vez mais altruístas. pois a maioria de seus objetivos são impermanentes. Para nós é muito difícil imaginar uma coisa que não seja impermanente. Poderia não ser uma boa forma de utilizar o poder extraordinário da lâmpada. Não importa o que obtenhamos no mundo da existência cíclica. uma coisa que a impermanência não destrua”. os grandes seres. Não se trata de fugir da roda da vida. entre elas a riqueza. É algo completamente diferente da experiênciaraiz da roda da vida. vitórias com todos os obstáculos inerentes à roda da vida." Mas mesmo as coisas muito grandes dentro da visão separativa são limitadas. então talvez disséssemos: "Quero riqueza ilimitada. o que buscamos é um interesse muito maior pelos seres. estaremos sempre operando como equilibristas. mesmo que parcialmente. e chamam o processo de aprendizagem – a desconstrução – de remoção de obstáculos. Isto significa utilizar os ensinamentos para gerar habilidades capazes de produzir vitórias transitórias. observam esta natureza. em vez de focarmos nossa identidade estreita. Vivemos num tempo em que os objetivos estáveis são praticamente desconhecidos. há uma 31 . Em seguida recebemos ensinamentos sobre a amplidão de nossa natureza e a inseparatividade. A primeira visão de transcendência é percebermos que nossa experiência de ser transcende nossa identidade. do ponto de vista de nossa experiência. A experiência da roda da vida está ligada a prazer e dor. prioridades e ansiedades. Se o gênio dissesse: "Vou lhes dar uma quarta coisa. Pode acontecer de ouvirem e gerarem amargor. reconhecemos nosso ser dentro dessa experiência ilimitada. Todo processo de treinamento ou educação segundo os valores budistas está centrado no treinamento dessa natureza. uma esposa e um palácio. Esta segunda experiência está baseada na capacidade de compreender e atuar de forma muito mais ampla que a própria identidade. Amplidão A primeira coisa de que precisamos é sabedoria para ouvir. além do que chamamos de roda da vida. Quando os Budas. ou seja. nos alegramos ao fazer certas ações em detrimento daquilo que consideramos lucros individuais. Se tivéssemos a lâmpada de Aladim e fizéssemos como ele. somos levados a desenvolver uma motivação para o que está além do espaço e do tempo. Surge então a segunda parte dos ensinamentos: motivação e resultado. de modo que. a percepção que têm é de algo ilimitado. que significa “liberto das limitações”. em que os seres dos infernos e os deuses estão em uma mesa cheia de comida. aparecem seres por todos os lados querendo ajudar. Se aqueles seres pudessem apenas ampliar suas percepções. cognitiva e emocionalmente. como um lugar onde temos pouca margem de manobra. A confiança na natureza que então se percebe está além de todas as histórias particulares que possam surgir para a identidade estreita construída. estamos presos dentro de paredes concretas e constantes. Perdemos muito quando olhamos o mundo externo como fixo. se percebemos a conexão entre os dois níveis. De acordo com os ensinamentos. não propriamente cognitiva.decorrência. mas de ter o poder de transformar unilateralmente as coisas que são obstáculos para nós e para os outros seres. como se houvesse mais dimensões. Por outro lado. tudo que surge externamente é inseparável do que parece ser o mundo interno. mas não necessariamente. A liberdade manifesta-se através da amplitude de visão. Os seres dos infernos passam fome. as alternativas não são boas para nenhum dos dois. Estas liberdades só podem ser acessadas removendo-se os obstáculos construídos. mas será necessário nos transferirmos para outras paisagens mentais. são uma questão de perspectiva. a mesa está ali. Não se trata de teoria. antes de que possamos usufruir de nossas liberdades. se atingimos a amplitude de visão. O deus se vangloria: "Que lugar maravilhoso. e 99 me oferecem comida!" No inferno o ser também está objetivamente certo: "Somos cem seres miseráveis. Liberdades em relação àquilo que chamamos de roda da vida. É a confiança. um resultado. Se percebemos apenas o exterior. Professor O professor representa os ensinamentos do Buda. Curiosamente." Todos os problemas estão nesta categoria. estariam saciados. podemos transformar os inimigos unilateralmente. apenas proporcionam a liberação dos condicionamentos automáticos. mas os deuses têm o discernimento de se alimentarem uns aos outros. Dito assim parece esotérico. Quando usufruímos dessa liberdade. pensar nos outros e usufruir de sua liberdade. e o braço realmente não alcança a boca. temos graus de liberdade adicionais. místico. Ou seja. a fome está ali. estou oferecendo comida a um. Existem ensinamentos sobre como transformar obstáculos em vantagens. não importando 32 . Não se trata de usar uma visão idealista. é um aspecto vivenciado sensorial. Eis um exemplo típico de mudança de perspectiva. O objetivo da educação no budismo é oferecer liberdades que não percebemos usualmente. Coisas que os seres em geral vêem como obstáculos são vistas pelos grandes seres como situações com grande potencial de benefício. mas. ganhamos liberdades inesperadas pelas mudanças externas ou internas. Qual o resultado prático desta abordagem? Há uma vastidão de resultados práticos. Existe uma vastidão de conseqüências relacionadas com essa percepção da inseparatividade dos mundos externo e interno. Em relação às comunidades humanas e ao benefício que os seres podem receber individualmente. ampliar nossas perspectivas. No inferno a comida está ali. Há um exemplo clássico. Os ensinamentos são importantes para todos os seres. Estes aspectos podem estar incluídos. Todas as situações cármicas são impermanentes. É uma visão múltipla. surgem a liberdade e a conseqüente amplitude de visão. Se nos defrontamos diretamente com um adversário ou inimigo no local de trabalho. os ensinamentos do Buda não são budistas. Como isto pode manifestar-se na prática? Se isso tem valor. Um exemplo é a diferença entre o reino dos deuses e o reino dos infernos. algum resultado prático deve ocorrer. mas seus braços são grandes demais e não possam ser dobrados. Nesta etapa. que inclui a respiração e também as energias internas do corpo. Surge a compreensão profunda de que a mente do Buda é igual à de todos os seres. Surge uma imagem cósmica do Buda como um impulso universal em direção à liberdade e à felicidade. em um certo sentido contemos a mente. e há seres que usufruem disto de forma consciente e outros não. O ensinamento busca a transcendência. nem liberação – é um método de treinamento. e também liberdade frente ao que foi criado. por isto buscamos repousar naquilo que é estável. a pessoa sente-se completamente inseparável do Buda. em 1999) IV. No budismo não há qualquer ênfase em converter as pessoas. é comum respondermos automaticamente a tudo que aparece. quando a experiência estiver clara. A segunda âncora é a fala. Por outro lado. O terceiro aspecto é a mente. fala significa respiração serena. mas uma característica do Buda. há menos opções. os objetos sobre os quais a mente pode focar sua atenção se restringem. Sem isto. É a prática do repousar tranqüilo. Com o corpo parado. esta se torna mais pacífica. reflete a natureza ilimitada da lua em sua superfície. a imobilidade em si é prática espiritual. a liberdade de criar e estabelecer universos mentais. A imobilidade nos tira parcialmente de samsara. a imobilidade do corpo. o que importa é ajudá-las a perceber mais profundamente as realidades e liberdades em cada situação que vivam e em cada papel com que se identifiquem. fala e mente. e ela puder falar sobre a liberdade e visão de que já usufrui. Não é uma característica ou posse pessoal. Para ser professor. fala e mente. fazemos diferentes gestos. para nosso benefício e benefício de todos os seres. a pessoa deve ter ouvido os ensinamentos e desenvolvido certa clareza vivencial sobre os temas. De acordo com diferentes circunstâncias. Meditação Tendo compreendido a impermanência e abandonado os objetivos correspondentes à roda da vida. e todos que usufruem disso e dedicam-se a facilitar o acesso dos outros a esta liberdade e felicidade são completamente inseparáveis do Buda. Desta experiência surge a noção de bodisatva – sua visão é ampla. Em nossas atividades. ou seja. Nesta etapa. e ele utiliza suas características pessoais particulares como meio de espelhar a natureza de liberdade que é inerente a todos. 33 . Esta experiência de serenidade não é iluminação. Contendo o corpo. inspirar e expirar serena e silenciosamente. Apenas sentando imóveis já estamos removendo obstáculos que se interpõem à ação de imobilidade. justamente por ser um lago particular no espaço e tempo. entendemos que sem serenidade a sabedoria não é possível. É como um lago que. reconhecerá que não é uma sabedoria pessoal sua. mas uma condição de liberdade e felicidade. se nos movemos é sinal de que nossa mente tem um grau de agitação tal que a meditação pode não ter utilidade em um primeiro momento.quais sejam suas convicções religiosas. que foca a respiração e a experiência de serenidade. Este é o primeiro foco prático da meditação sentada. Ao ficarmos imóveis estamos disciplinando a mente através do corpo. (Ensinamento proferido em Florianópolis. Nesse momento vamos usar um processo indireto de pacificar a mente. A meditação sempre implica na observação e disciplina de três aspectos – corpo. Por isto meditamos. Buscamos estabilidade de corpo. Neste sentido. A primeira âncora é o corpo. não pode ensinar. os polegares se afastam. ou focam o chão em um ângulo de 45 graus. a respiração serena. Sem isto. buscamos um pouco mais de consciência sobre o processo dos ventos internos que comandam os pensamentos. a mente em geral vagueia aleatoriamente. a mente busca a serenidade e mantém o foco na respiração. ruídos. A posição do corpo é coluna ereta. além da forma. Para chegarmos ao ponto no qual o Buda constatou: "Livrei-me daqueles que foram meus senhores durante vidas incontáveis – as disposições mentais e os agregados". ou seja. cores. Não focamos nada disto. que ficam entreabertos. Quando se fica sonolento. vai tentar desestabilizá-lo. a compaixão e as energias podem ser vistos de modo objetivo. os braços. Quando a concentração aumenta. Seguimos assim até o ponto em que nossa mente naturalmente se estabiliza. retornamos ao foco. Teste você mesmo e veja que é assim. que produz outro. Ainda que ocorra. desencorajá-lo. é como se estivéssemos sob o domínio de seres sutis que direcionam nossas energias internas e definem nossas fixações sutis. a segunda etapa já está surgindo. evitamos ficar irritados. sensações. e a pessoa aperta os polegares involuntariamente. como perturbações visuais – luzes. liberam as energias. operando carmicamente. Vemos ventos internos. Neste momento surgem os olhos que vêem além das imagens. é necessária a decisão de sustentá-lo na posição. mãos juntas. dos vários impulsos. vemos se o amor ou a compaixão estão presentes. podem surgir outros obstáculos. Através dos ventos. Como disse o Buda. Os olhos fitam à frente. A meditação mudou. concreto. surge uma energia correspondente. O queixo fica recolhido. Toda a distração mental ou movimento do corpo é visto como perturbação da meditação. vivemos sob o domínio do carma. Se os pensamentos brotam com intensidade. mas o carma vai se opor. pés sobre as coxas. que começa quando olhamos face a face os impulsos cármicos e optamos pela liberdade. O corpo não fica totalmente relaxado. com os polegares mal se tocando. um eixo. há ainda um longo trabalho. Esse vaguear da mente produz o vaguear das energias. o amor. A posição mais adequada para as pernas é a de lótus. A respiração é abdominal. deprimi-lo. 34 . Estamos no caminho de reencontrar um rumo seguro. imagens etc. do que decorrem as várias ações.Podemos escolher um objeto para nos fixarmos. através do nariz e dos lábios. acontecimentos – é descartado como movimento externo. Retomamos o foco e a motivação e seguimos sem impaciência. Um objeto produz outro. mantemos a mente ancorada na respiração e na imobilidade do corpo. energias. Não se vê isto como imagens. O processo mais direto de atingir isso através da meditação começa com a prática da imobilidade do corpo. A posição de fala é o silêncio. não forçamos. as pálpebras podem ficar completamente abertas ou semicerradas. isto faz parte do processo. Não criamos tensão. Tudo o que se passa em volta – vozes. e saímos vagueando. Ventos internos Na segunda etapa da meditação. Respiração Na primeira etapa do treinamento em meditação. mas isso não se dá com os olhos físicos. emoções. com as palmas para cima. Também se descartam os movimentos internos da mente – pensamentos. no momento em que percebemos a distração. Sustentamos os dedos. atua sobre a energia e os ventos. 35 . é nossa natureza limitada que está indo ao chão. progressivamente todo o corpo. E. desenvolvemos consciência do corpo sutil que comanda as ações e das energias que surgem inseparavelmente dele. Primeiro uma perna. Quando vamos ao chão. fala e mente. Esta prática promove a recuperação da saúde e da equanimidade. desenvolvemos a consciência deste processo e podemos liberar estas fixações. O finito se prostra diante do ilimitado. por sua vez. carência e raiva/medo. vai desaparecer. Nossa reação rápida às coisas se dá através dos ventos. e as dificuldades também. Podemos expirar direcionando os ventos para partes específicas do corpo onde existam desequilíbrios. obtusidade mental. A obediência aos impulsos é a essência da experiência de uma identidade pessoal. Desta forma nossa mente coloca-se em uma condição receptiva. Olhando o corpo. estas palavras descrevem a experiência interna que acompanha as prostrações. buscarei incessantemente trazer benefício e felicidade para todos os seres. através da meditação. pois estamos apegados a estes aspectos. É bom que. Isso produz liberação. consigamos lavar as impressões residuais que manifestam os automatismos do corpo. A meditação. a natureza ilimitada que é também nossa própria natureza e é inseparável da natureza ilimitada de todos os seres iluminados. propícia à prática. Os cinco pontos que tocam o chão nos liberam dos cinco venenos e das seis emoções perturbadoras. harmonizando-os. deixamos as seis emoções perturbadoras – orgulho. é com a natureza ilimitada que o fazemos. O que se prostra – nosso corpo. a fala e a mente como nossa essência. transferem as perturbações às gotas que comandam. Quando as energias estão perturbadas. a compreensão que brota da natureza ilimitada. todas as coisas se manifestam através de ventos específicos. Vamos ao chão e fazemos a prostração de corpo. fala. Prostração Antes da meditação é muito auspicioso fazer prostrações diante dos símbolos da natureza do absoluto. Se temos alguma doença. desejo/apego. mente. Se acolhemos qualquer tipo de fixação. comandados ou surgidos automaticamente. nossa identidade finita – nosso corpo.regem os impulsos e a sustentação do carma. fazemos o voto de bodicita: "Até que o samsara seja esvaziado. depois a outra. Todo sofrimento se origina desta forma. os três aspectos da iluminação que se manifestam como compaixão: o Buda. o Darma. Quem faz a prostração é nosso "eu". o local lateja. Quando levantamos. o conjunto dos que praticam a busca da liberdade. fala e mente duais – é impermanente. curvando-se diante da natureza ilimitada. Como fazer isto? Com a mente focamos a respiração. o que produz a recuperação da saúde. Seguimos o processo de reequilíbrio até dissolver esta sensibilidade. e a Sanga. inspiramos quatro dedos abaixo do umbigo e expiramos irradiando por todos os poros do corpo. mentalmente tomamos refúgio nas Três Jóias." As prostrações são feitas com este propósito. através da prática. geradoras das dez ações não-virtuosas e sustentadoras da roda da vida. Quando vamos ao chão com a intenção de tomar refúgio em nossa natureza ilimitada e tocamos o solo com os cinco pontos de nosso corpo – mãos. inveja. No momento da prostração. Quando vamos ao chão. nos movemos o tempo todo protegendo os impulsos que daí brotam. e isto gera desequilíbrios e doenças. Tomando a equanimidade por referência. reconhecendo que foram todos minhas mães e pais. É importante reconhecer este aspecto finito. enquanto levantamos. o sofrimento é inevitável. joelhos e testa –. Isto produz liberação. estabilizandoos. Quando efetivamente fazemos a prática. que passa a imaginar e a ter impulsos correspondentes à compaixão. é construída. por isto é distinto da real prática de compaixão. vela. nem fim. O pensar sobre compaixão não produz energia de ação correspondente à compaixão. Depois recitamos a homenagem ao Buda e os votos de refúgio. não é a experiência real de se prostrar. elementos e emoções perturbadores. ofuscando todo o samsara. A serenidade rompe nossa ligação com o samsara. nem meio. porque haverá uma paisagem previamente purificada do ponto de vista cármico. Não é necessário que haja uma compreensão do processo. liberar-se das emoções perturbadoras. não é ainda o estado natural de liberdade lúcida da mente. Daí em diante o samsara não tem mais o poder que tinha antes. fumo. entender como operam e verbalizá-los. Quando atingimos a realização da prática surge uma experiência de felicidade tão intensa que não há nenhum paralelo no samsara. uma a cada vez que recitamos cada voto de refúgio. A 36 . Etapas Se estamos começando a praticar meditação.Em tudo isto existe um aspecto sutil a ser considerado: a diferença entre compreender a prática e exercer a prática. Com isto há o rompimento dos carmas sutis que se manifestam no comando dos ventos e ações. Um traz transformações instantâneas para a mente. Em respeito. Isto limpa as conexões cármicas. meio e fim. é a meditação da serenidade e tranqüilidade. A segunda etapa do treinamento em meditação nos leva à equanimidade. nossa mente passa por uma transferência de consciência. e quando sentamos em silêncio surge uma grande emoção de gratidão aos Budas. mas isto não é tudo. Essencialmente. felicidade intensa. novamente fazemos prostrações. Quando fazemos esta homenagem. há uma diferença entre isto e a real decisão de trazer benefício a todos os seres. praticar compaixão é fazer prática. pensar sobre compaixão é apenas pensar. alegria e serenidade. Acontece o mesmo com os votos. Os carmas que não podemos localizar de forma cognitiva estão ligados a todos os processos obsessivos de pensamentos e dependências – como raiva. Quando olhamos mentalmente para o que é fazer a prática. pedras. Se temos a experiência de fazer a homenagem de fato. são medos. Se fizermos as prostrações antes. mas dentro há uma diferença. Por que essas etapas são importantes? Porque vão abrir experiências reais. Pode-se fazer prostrações diante de uma foto do Buda. Depois pode-se fazer mais dez a quinze minutos de meditação com o foco na respiração e energia. altar. A pessoa descobre um foco de mente que produz méritos maravilhosos. Ao final. Ainda que possamos compreendê-los. e surgimos em uma paisagem de pureza. levantar-se e recitar. Externamente parece tudo igual. sem início. basta que ele ocorra. Todas estas experiências são nãocognitivas. flores. dedicamos nossa prática ao benefício de todos os seres. Ao final desta primeira etapa do treinamento em meditação já há este poder. não está propriamente praticando ou experimentando o que está sendo dito. É impermanente. No momento em que você está aqui lendo. a todos os seres iluminados. podemos sentar e ficar dez minutos em silêncio. nos vemos prostrando e levantando enquanto recitamos. Por que ainda não é a liberação? Porque esta experiência está na dependência da própria meditação – tem início. inveja. também homenageamos nossa própria natureza ilimitada. açúcar –. tigelas. Há uma expressão importantíssima: transferência de consciência. significa que estamos reconhecendo que a natureza liberta é de grande valor. será muito mais fácil atingir a felicidade. formas de defesa das escolhas carmicamente eleitas. Depois aceleramos o processo e conscientemente vamos chegar aos obstáculos e trabalhar sobre eles. mas imperturbável. Está longe porque ainda existe a experiência de uma identidade pessoal como agente de toda a ação. o que está ligado à mudança de paradigma. A primeira nobre verdade é: “Estamos presos a uma experiência cíclica”. 37 . Igualmente importante é olhar os obstáculos ainda presentes. Começa. focando tudo o que ocorre nas dez direções – norte. A liberação ainda está longe.. zênite e nadir. Neste ponto podemos pensar: "Estou iluminado". seguimos com a experiência clara da consciência de um "eu". Agora há méritos de estabilidade e concentração que permitem a prática da sabedoria. no mesmo fenômeno. zonas intermediárias.equanimidade purifica estas marcas. da superação de obstáculos através da percepção da liberdade da mente.. e a única forma de realmente resolvê-los são os oito passos do Nobre Caminho. Se usarmos a liberdade da mente. A percepção da liberdade da mente pode se manifestar como resolução de conflitos. Na verdade o termo paradigma não é abrangente o bastante para dar conta do que acontece. Nas etapas da meditação descritas até agora. Em seu primeiro ensinamento – as Quatro Nobres Verdades –. É o acesso à experiência de que a realidade externa e o observador surgem conjuntamente. A beleza e a perfeição surgem como atributos naturais de todos os aspectos do que antes se chamava samsara. Ainda é meditação impura. Seu objetivo não é nos fazer pensar que não existe saída. a experiência cíclica na qual alegria e sofrimento são inseparáveis. as qualidades que surgem. o que não era compreendido até então. estamos presos na roda da vida. oeste. dirige a prática de meditação. Pelo contrário! Se abordarmos a roda da vida de forma elevada. sul. produz todas as transformações. Mais adiante surgirá a meditação pura sem sabedoria. Seria outro engano. A ação no mundo não limita mais a liberdade. em abril de 1998) V. Esta experiência é um grande divisor. quando sentamos e apagamos toda ligação a objetos internos ou a conexões externas e repousamos completamente serenos e unifocados. estamos apenas afiando os instrumentos. perceberemos que toda experiência é criada pela liberdade da mente. Logo. uma outra etapa de meditação. vai surgir a experiência de concentração. de modo inseparável. o Buda menciona a roda da vida. aumentando a decisão de penetrar na região cármica. Mais adiante vamos aumentar a capacidade de foco da mente. Os oitos passos do Nobre Caminho ensinado pelo Buda são o processo padrão para se resolver conflitos. Fora e dentro são o mesmo. que culmina na experiência da perfeição de todas as manifestações. em Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Uma identidade pessoal manobra. Em cada etapa olhamos os aspectos vantajosos. (Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Bodisatva. Superação de crises A resolução de conflitos é um tema tradicional no budismo. Todos os ensinamentos tratam basicamente disso. O Buda fala sobre duka. um processo no qual a meditação não bloqueia a ação sensorial. É o momento para receber ensinamentos sobre a natureza da realidade. leste. mas a iluminação ainda está longe. ou seja. mas tem sido usado neste sentido. assim. ou seja. Agora é possível a meditação com sabedoria. Temos conflitos de várias ordens. a mente se mantém completamente concentrada e atenta. vamos tratar apenas de coisas depressivas. mundos. nos defrontamos com determinadas perguntas: “Quem sou? Onde estou? Para onde devo ir?” De tempos em tempos nosso mundo desaba. É bom lembrarmos que todos os seres estão submetidos à impermanência. ele é nosso aliado. e não sabemos o que fazer. difíceis. depois de 50 anos tentando acertar. mas o processo de desabamento e recomeço segue se repetindo. reconhecemos que. experiente e capaz de definir a direção correta. lembrando que todos os seres estão submetidos a estas circunstâncias e não têm como conter a impermanência e as dificuldades. compreendendo a primeira nobre verdade. encontramos uma descontinuidade um pouco adiante. como se comportar em meio às crises para que estas não sejam vistas como tal. esta é uma situação que afeta todos os seres.” Depois de cada crise a pessoa se julga mais esperta. No ensinamento básico sobre a roda da vida. Este é o ensinamento do Buda. Na abordagem absoluta. Apesar disso. melhor. o universo desabou. mais esperto. 38 . É como se tivéssemos entrado em um túnel inacabado. Ao falar da experiência cíclica. perceberemos que tudo que vivenciamos é marcado pela impermanência. sofremos dois impactos. inevitavelmente tudo o que tentarmos sustentar irá desabar. agora sou mais experiente. Saímos do buraco e dizemos: “Certo. Absoluto e relativo As crises podem ser vistas de modo absoluto e relativo. que diz: “Observe. Se nossa ação mental e nossa ação no mundo forem estreitas. Aprendi. nós a chamamos de crise.” No entanto. Lá pelo quinto grau de esperteza. mais ou menos. se repousarmos na natureza ilimitada. a primeira nobre verdade tem um sentido libertador. O budismo ensina como lidar com isso. veja se alguma coisa que você está fazendo tem alguma chance de não ser impermanente. Ela remove nossa culpa. circunstâncias. os ensinamentos indicam como agir para para diminuir as possibilidades de que as crises ocorram e a vida humana preciosa possa ser preservada. nos damos conta de que não há por que desenvolver uma culpa pessoal. a experiência da roda da vida é catastrófica. todas as crises são bem-vindas. Quando a descontinuidade surge. ainda assim. O Buda nos avisa que o túnel não tem saída. após um tempo. No budismo. o Buda fala de um jogo mental que montamos e de nossa capacidade de criar jogos. No primeiro constatamos: “Isso realmente aconteceu. Desabamento A cada dez anos.” Se olharmos com atenção. Além disso. Dentro da atual perspectiva que temos de nós mesmos. bloqueado. Quando a desgraça desaba sobre nós. a pessoa pergunta: “Quanto tempo ainda me resta?” Talvez nesta hora finalmente peça ajuda ao Buda.poderemos cruzar naturalmente por dentro da roda da vida. Quanto antes pedirmos ajuda ao Buda. Não foi o Buda quem criou a obstrução. O Buda nos alerta para isso. Cada vez que tentamos estabilizar algo não estabilizável. ressurgimos naturalmente. inevitavelmente colheremos a impermanência.” No segundo concluímos: “Sou um fracasso. O objetivo é que acordemos para uma situação grave. São circunstâncias que a pessoa deve aproveitar. Temos a sensação de que morremos. Não importa em que ponto estejamos hoje. devemos utillizar um método relativo para evitar as crises. Este é o aspecto absoluto que nos impede de entrar em crise. de aparência horrível. mentir. Se não temos a percepção absoluta. mesmo que nossa mente opere apenas de forma limitada e as circunstâncias do mundo desabem sobre nós. inevitavelmente vamos trabalhar com as emoções perturbadoras e cometer ações não-virtuosas. Tanto na abordagem absoluta como na relativa. absoluta. desejo/apego. Neste caso. inveja. a natureza de espacialidade. Nossa natureza encontra a liberdade frente às circunstâncias. São métodos que usamos com nossas identidades separativas. aspectos que não queremos de modo algum que se movam. relativa. existe um ser terrível. chamado Senhor da Roda da Vida. nossa vida se complica. de Buda –. Mestre irado Na roda da vida. Nossa natureza essencial simplesmente não entra em crise. lidamos com as crises direcionando positivamente nossas emoções e ações. Complicações Os problemas começam quando fixamos identidades. no âmbito das percepções relativas. falar inutilmente. Não temos como conter o processo de mobilidade que leva inevitavelmente ao desabamento.nenhuma crise será possível. As crises só se dão no âmbito das identidades. Como a dualidade permanece. cheio de dentes. roubar. se ela se reconhece livre das circunstâncias – como a natureza divina. criar intrigas. a liberdade natural que não manifesta rigidez nem no próprio ideal de liberdade. Assim. Usamos estas motivações em diversas combinações. Este método consiste em evitar ao máximo a prática das dez ações não-virtuosas. absoluta. ficamos cercados de inimigos e circunstâncias difíceis. temos de entender como as crises são montadas e evitar os fatores que as desencadeiam. luminosa. estaremos livres de crises. Logo depois surgem as complicações. Existem métodos relativos. porque os impulsos geram as dez ações nãovirtuosas. vivendo em meio a paisagens mentais ou materiais também impermanentes. seja pela visão transcendente. naturalmente não vamos praticar as dez ações não-virtuosas. São as seis motivações mentais através das quais estruturamos identidades. Nossa natureza essencial nunca entra em crise. Temos impulsos para matar. Trata-se de um compromisso conosco mesmo. mas elas podem ser reduzidas. manter conduta sexual imprópria. ou pela visão dual. carência e raiva/medo. Não haverá mais crises. Estamos liberados. Podemos criar fixações através de seis motivações básicas: orgulho. se não atingimos a liberação. Se nossa natureza reconhece que estamos além das circunstâncias. ensinar coisas indevidas. isto acontece com as identidades impermanentes que montamos. e isto produz impulsos. estamos livres de qualquer crise. enrolado numa pele de tigre. Se praticamos estas dez ações. Não se trata de uma regra externa imposta sobre nós. duais. nem manifestar as emoções perturbadoras. Se temos a percepção última. para reduzir as crises. 39 . não é possível erradicar as crises. Yama. sentir aversão a outros seres e manifestar avareza. agredir os outros verbalmente. Se reconhecermos isto. obtusidade mental. São identidades separativas. de evitar as dez ações por saber que trazem sofrimento e complicam nossa vida e a dos demais. unhas enormes. e assim por diante. Saída Você seria capaz de fazer uma lista do que não gostaria de pensar que eventualmente possa mudar? Todos nós temos pelo menos uma dúzia de coisas que não queremos que aconteçam de jeito algum. Ele apaga todas as nossas complicações. três fixações. aponta e cobra. De modo geral. e a situação parece muito concreta. cedo ou tarde. o sistema sempre funciona. eventualmente. Nós o personificamos. ou ainda Mara. e a dor correspondente vai surgir. Ele personifica todas as nossas complicações. põe o dedo em cima de qualquer imperfeição. mas. dois dedos. iremos nos defrontar com elas quando a impermanência se manifestar. Como ele vai parar nossa ação? Como vai frear nosso processo de loucura? É como uma criança que não sabe o que fazer e a mãe diz: “Vá lá brincar com seu joguinho.” Quinze minutos depois a mãe diz: “Venha almoçar. Maharaja sempre dá um jeito e põe o dedo só naquilo que não serve.” A mãe ouve aquilo. o ex-marido. a mãe é Maharaja quando acaba com a diversão. Se temos uma fixação. salvando as coisas boas. Maharaja é melhor que computador. De tempos em tempos. e as ruins – aquelas que não queremos mexer – vão junto. Maharaja aparece como o vizinho do andar de cima. Não adianta camuflar os defeitos. poderemos aprender. tudo está gravado em sua memória. o movimento produz dor.” Para a criança. nós criamos esta noção. Ele é perfeitamente justo. Aquilo que não queremos que mude vai mudar. Onde temos fixação. Mas também dizemos que é um mestre irado. Podemos dizer que Maharaja é um grande mestre. temos um dedo de Maharaja. Se isto acontece com uma coisa completamente virtual. Se percebermos que Maharaja está apontando as regiões de fixação e se formos capazes de olhar esse ensinamento. Se temos fixações. Os mundos são todos muito concretos. Como ela vai pagar as contas no final do mês? As coisas para nós parecem todas muito concretas. É provável que cada 40 . No budismo é essencial que nos demos conta do papel de Maharaja. Ele nos dá um tempo. o chefe. não existe dor. Envolvemos tudo num pacotão dourado e vamos puxando. duas fixações. Estamos na mão de Maharaja. Onde temos compreensão e lucidez. possa se modificar. Maharaja nunca perdoa. três dedos. O que é flexível não produz dor. Fazemos com que as coisas boas sejam um pouquinho maiores. um mestre benigno. misturamos coisas boas com ruins. vai em cima de cada uma das fixações. depois escove os dentes e vá para o colégio. O que significa a personificação das dificuldades? Vemos as dificuldades na pessoa que está à nossa frente. Maharaja vai apontar o dedo sobre aquilo que não queremos nem pensar que. as desgraças estão presentes. O problema surge onde perdemos a liberdade. Essencialmente. camuflamos as ações ruins no meio das boas. Este é o processo.ou Maharaja. pois permitimos que se altere. o que significa erro? Fixação. No meio disso temos a sensação de que Maharaja está presente. o guarda de trânsito. o que ocorre quando Maharaja chega e diz à mãe: “Este mês você não vai receber seu pagamento. Ele tem uma especialidade: pôr o dedo em cima de nossas fixações. e não acontece pane. O que significa ação equivocada. Ele precisa nos ensinar de alguma forma. não lembramos que aquela mesma pessoa era um amigo inseparável há um tempo. Maharaja sempre os descobre. da mesma forma que para as crianças. não vemos as possibilidades das outras direções. imagens e sons que apareceram ali. as cores. raiva. No mundo condicionado não temos como evitar a dissolução das coisas construídas. de incapacidade. Em meio à nossa vida. O que aconteceu no filme que nos fez sentir aquela angústia? Sentimos angústia e raiva porque ficamos dentro de um tipo de operação mental. Ele apresentou a forma pela qual vamos superá-la. será mais difícil aprender. Na quarta vez que saiu de seu palácio. humanos. mas reconhecendo que nossa natureza é maior do que as circunstâncias que ele possa produzir. Sidarta percebeu que aquele era o único caminho a seguir. Esta é a primeira nobre verdade. poderemos localizar nossa rigidez. infernos e animais. teremos os impulsos correspondentes ao reino dos infernos – medo. Não foi o Buda quem inventou a depressão. de que havia uma linhagem de seres que ensinava como alcançá-la. retornamos às circunstâncias comuns de nossa vida. e isso oferece outra perspectiva frente às ansiedades. Como isso acontece? Vamos supor que exista uma locadora onde os filmes estão classificados de acordo com os seis reinos – deuses. Não estávamos ligados a um cabo que nos trazia o medo através de uma polaridade elétrica. Esta é a primeira forma de utilizar a adversidade – existem outras mais sutis. O Buda não trouxe uma mensagem pessimista. fantasmas famintos. Chegamos a ficar um pouco tontos quando repassamos os itens de nossa lista de fixações. Por isto é necessário reconhecer e treinar esta liberdade de tal maneira que. Não dá para culpar a televisão. semideuses. Ele veio nos livrar disso. reconhecendo a ação de Maharaja. Se formos capazes de olhar para nossas dificuldades e reconhecer a ação de Maharaja como a manifestação da impermanência naquilo que não queremos que se modifique. O filme apenas fez surgir o que já estava 41 . mas existe também o caminho da prática na vida cotidiana. nossas construções. haja lucidez para operar no meio delas.uma das coisas que não queremos que se mova venha a se alterar um dia. circunstâncias negativas e crises. Se não percebemos a natureza da liberdade quando estamos numa situação mais ou menos confortável. É sucesso garantido! Ao assistirmos o filme. Quando tudo aparentemente desaba. porque a raiva não estava ali. ele encontrou um monge. Devemos seguir a sugestão de Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche: aprender a nadar antes de cair no rio. de tristeza. o medo não estava ali. Como achamos que ela estará em uma determinada direção. A crise pode simplesmente desaparecer quando se dá um “salto quântico”. Se cairmos no rio antes de saber nadar. Então deu-se conta de que a liberação era possível. O ensinamento do Buda afirma que existe uma saída e que nem sempre esta saída está no lugar onde esperamos. Tiramos uma fita do reino dos infernos. podemos atuar de forma livre. Devemos aprender a reconhecer a natureza de liberdade mesmo em meio à adversidade. aversão. e ela aparentemente não existe. Procuramos uma saída. Terminado o filme. quando as circunstâncias mais difíceis acontecerem. É uma situação muito difícil. Existe o caminho monástico. Este ensinamento se relaciona às quatro etapas finais do Nobre Caminho Óctuplo. Mas nossa natureza está além dessas circunstâncias. O príncipe Sidarta percebeu isso. o que fazemos? Como reconhecer no meio do desabamento a natureza que não desaba? Este é o ponto. é mais difícil ainda quando tudo desaba. riscos. Delusão Na quinta etapa do Nobre Caminho Óctuplo vamos perceber que nossa mente é mais ampla do que nossa identidade. Havia tiros. as fixações se 42 . Se olharmos livros. Se a cada dez anos mudamos nossa identidade. Aquelas emoções estavam latentes. de um universo mental que validou aquelas circunstâncias. fixas. e elas também são diferentes. quando voltamos para nossa crise. ela parece estreita. o mundo surge junto. No filme havia fogo. mas a tela não está chamuscada. Natureza liberta Começamos a avançar sobre a sexta e a sétima etapa do Nobre Caminho quando reconhecemos que o mundo que estamos vendo é exatamente isso – o mundo como nós o vemos! O mundo surge inseparável da experiência de “eu”. o Senhor da Roda da Vida: “Vou derrotá-lo!” Então surgiram exércitos e coisas completamente inauspiciosas. não tem nada lá. as coisas mudam. Toda forma de arte é um espelho que revela direta e palpavelmente o que temos de marcas e carmas. é algo que acontece em nossa vida. Parece a crise de uma criança cujo doce caiu no chão. Onde tudo aquilo ocorreu? Onde todas aquelas emoções ocorreram? Aquilo tudo ocorreu dentro de uma paisagem. A arte talvez seja uma linguagem a ser explorada no Darma. a crise cessa instantaneamente. Achamos que isso só acontece num filme. quando mudamos. e tudo se torna efetivamente diferente. a cada dez anos o mundo também muda. mas não é verdade. Para haver uma crise. elas serão diferentes agora. o nosso conteúdo. que se dirigiram ao Buda para atacá-lo. dizendo: “Vou derrotá-lo!” O que vai acontecer? É certo que ele vai atacar nossa listinha. seja ela qual for. O Buda aponta para o reconhecimento desta liberdade. Essa percepção é essencial no budismo. Se surgimos dentro de nossa natureza ilimitada. Quando digo: “Eu surjo”. É como se olhássemos para nossa lista de coisas que nem queremos pensar que possam eventualmente desabar e ameaçássemos Mara.dentro de nós. o objeto apenas permite que vejamos diretamente o que está dentro de nós. sem ela não há liberação. A experiência não está dentro do objeto de arte. Então. tínhamos tudo preparado. É preciso acreditarmos que aquilo é como é. Temos impulsos diferentes. mas a tela não está furada. veremos que ela continua igual. Ele olhou aquelas coisas e pensou: “Estou livre disso! Minha natureza é mais ampla. incertezas e aflições que ele pôde localizar dentro de si. Por que as coisas ficam diferentes? Porque são inseparáveis de nós. vemos que o universo onde nos movimentamos é um universo de delusão. é necessário acreditarmos que as circunstâncias nas quais elas acontecem são completamente rígidas. Lembramos das pessoas. Quando começamos a estudar. ele já estava livre dela. ainda que o corpo morra. Se olharmos fotografias. Mesmo a morte cessa. Quando Mara atacou a lista do Buda. Se examinarmos a tela depois do filme. eles serão diferentes. Isto corresponde a todas as possibilidades. Este é o ponto essencial. compreensões diferentes. O Buda sentou sob a árvore bodhi e disse a Mara. a experiência de morte cessa. Temos uma natureza cármica que escolhe as opções de marcas mentais de que dispomos e nos oferece uma experiência emocional e uma experiência cognitiva junto com a aparência que as coisas então adquirem. Não percebemos que as coisas são inseparáveis da forma como nós mesmos surgimos. Isso não é um fenômeno que só acontece no cinema. O exemplo do Buda foi receber a ação de Mara e compreender a liberdade que havia dentro da circunstância que ele estava vivendo. minha identidade se dissolveu. O Buda transformou o ataque de Mara em flores e perfumes. porque proporciona experiência. estamos operando além de nossa identidade. O que fizemos de bom para nós às custas dos outros torna-se cada vez mais amargo com o passar do tempo. devemos cuidar nossas ações e agir de forma que a felicidade seja possível. Na primeira. o terrível Mara. podemos estar trazendo sofrimento para os outros ainda que sem querer. tentamos conter nossa mente de alguma forma. o fato de termos causado mal a alguém para fazer bem a nós mesmos fica cada vez mais doloroso. que é maior do que nossa identidade. Reconhecemos aquilo que não nasce e não morre. sentiu-se capaz de desafiar Mara. queremos felicidade. Por isso evitamos fazê-lo. a aparência de nós mesmos. reconhecemos a natureza ilimitada. 43 . Nossa condição não é a oitava etapa do Nobre Caminho. Tentamos reconhecer que nossa natureza está além disso. Praticando as dez ações não-virtuosas. Nesse caso já estamos manifestando a liberdade natural da condição de Buda. geralmente estão ligadas a algo generoso que fizemos para alguém. Na sétima ele estava em treinamento. A moralidade não é uma regra externa a ser obedecida. Quando causamos sofrimento aos outros. Não foram E assim. um momento no qual transcendemos nossa limitação e fizemos algo realmente bom para alguém. mas por ter evocado o mestre dos problemas. Ele atingiu a iluminação não por ter encontrado um mestre que dissesse: “Vou lhe ensinar um jeito de nunca ter problemas”.dissolveram. que foi quando o Buda experimentou a libertação. olhamos para os obstáculos e reconhecemos que eles apontam nossas fixações. a natureza de inseparatividade que nos liga a todas as circunstâncias. No entanto. Quando examinamos as melhores coisas que fizemos. a lembrança disso sempre produz energia e estabilidade para nós. Quando fazemos isso. criaremos sofrimento para nós. Estamos presos a universos mentais. A base do budismo está em reduzirmos o sofrimento para nós e para os outros. Este tipo de ação se torna permanente. a mais simples e direta. com o tempo isto traz sofrimento também para nós. quando nos movemos. A natureza ilimitada não pode ser alcançada por isso!” apenas pensamentos. praticamos a quinta etapa do Nobre Caminho. Ele é inseparável da natureza ilimitada de Buda. foi quando passou seis anos na floresta contemplando a natureza da realidade de uma forma profunda. Como poderíamos nos livrar de nossas fixações se não passando pela prova final de nos libertarmos delas? Mas nem queremos pensar nisso porque estamos efetivamente presos a nossas fixações. Toda ação moral no budismo está ligada a lembrar que. O que fizemos de bom para nós já se foi. A conseqüência será sofrimento para nós mesmos mais adiante. Quando atingiu a maturidade desta compreensão. Tentamos então trabalhar essas fixações. Reconhecemos também o brilho da natureza última produzindo a aparência da realidade. Este é o ensinamento do Buda – um ensinamento sobre como viver as crises. as coisas que mais nos deram satisfação. exercendo a amplidão de nossa natureza. Na etapa intermediária. surgem a felicidade e a alegria. Na etapa final. Moralidade Para reduzir as crises. Temos três etapas para evitar o sofrimento. Então. Maharaja foi mal entendido. um por um dos ataques de Mara transformou-se no ornamento da experiência da natureza liberta. foi a experiência da natureza ilimitada. evitamos causar mal e tentamos produzir benefícios para os outros. Não é isto que queremos. compreensões e escolhas. Alguém olhou o assaltante de outra forma. temos que ver o que queremos e podemos flexibilizar. temos de ver quais são nossos méritos para escapar. seja de sofrimento ou de alegria. O assaltante começou a contar sua história. De repente. estamos enrijecidos em alguma coisa. Então é necessário olhar da forma mais ampla possível. Um pouco mais tarde. Você pode dizer: “Tudo bem.É como se tivéssemos duas etapas de preparação e uma etapa culminante.” Como achamos que não é prático. este papel desaparece. Continuaram a conversa. É isso que o Buda veio ensinar. mas os outros não concordaram. como havia sido sua infância. Não somos rígidos como parecemos ser. temos de ter habilidade para oferecer opções de flexibilidade e também de reconstruções positivas mais estáveis em alguma direção. e o assaltante foi embora. O processo é sempre esse. se ele não ficava nervoso durante o assalto. Qualquer pessoa pode objetar: “Isso não dá! Ladrão é ladrão. Não é possível flexibilizar tudo. Para ajudar. como inseparável. O que vou fazer? Explicar ao gerente do banco o Nobre Caminho Óctuplo? Ele pode até compreender. pois contrariava os ideais pacifistas do grupo. É muito bom que nos lembremos disso. Um assaltante entrou na empresa com um revólver na mão. de repente. Vou usar como exemplo um caso verídico. Alguém teve a idéia de jogar um vaso na cabeça do assaltante. todos obedeceram. de repente. todos estavam conversando animadamente. mas não morre quando os personagens morrem. quando o sofrimento 44 . Ou estamos nos sentindo agressores e. Estamos nos sentindo vítimas e. vítima é vítima. Quando queremos ajudar alguém.. O que aconteceu com o assaltante pode acontecer conosco. Quando estamos em sofrimento. mas não vai poder me ajudar. a mesma mente que olha para uma tela no cinema e tem emoções. ocorrido na Editora Peirópolis. A lucidez dessa pessoa está na percepção de liberdade que pode ver em nós. uma mudança de paradigma. Na etapa culminante. mas. com uma troca de paisagem. Se a pessoa que pretende auxiliar não vê liberdades e posições de flexibilidade em nós. não tem como ajudar. pois ainda não alcançamos a liberação. de São Paulo. ele não era mais assaltante.” Mas esta rigidez não existe. O assaltante então percebeu que estava cheio de carteiras na mão e começou a devolvê-las. Um outro então perguntou ao assaltante sobre sua vida. O que aconteceu? Uma mudança de perspectiva. mesmo que tenhamos a impressão de que ela nasce e morre. e no dia vinte tenho de saldar uma conta. Mudança de paradigma Às vezes os ensinamentos podem parecer pouco práticos. reconhecer nossa natureza mais e mais ampla. Neste caso. não temos essa disponibilidade. as coisas se tornam viáveis.. entendi tudo. reconhecemos toda manifestação. Temos esta liberdade.. mas tenho um pequeno problema: hoje é dia dezoito. Às vezes parece completamente impossível. como a mente luminosa – curiosamente. Temos mecanismos de fixação e. tomaram um chá. precisamos ver liberdades que o outro não está conseguindo ver. e o assaltante também mudou de visão. que também é a oitava etapa do Nobre Caminho. Temos de nos ampliar. Nossa natureza é assim.. temos de resolver caso a caso. gritando: “É um assalto! Todos para o banheiro!” Naturalmente. é necessário alguém que nos ajude. lama. não nasce e não morre. Quando quatro montanhas desabam sobre nós. Se estamos em crise é porque temos a compreensão disto e de vários outros aspectos como sólidos. não nos sentimos mais. que perceba quais liberdades que permitimos e quais são possíveis trabalhar. não pode ser afetada. de saber que Cristo morreu e ressuscitou. sua natureza última não entra em sofrimento. o ensinamento budista diz: isso não é liberação. dar jeitinhos. A glória de Cristo é a superação da pior circunstância que pode ocorrer a alguém. capaz de resolver qualquer problema. a revelação da natureza ilimitada que está além da roda da vida. A natureza última não é corrompida na alegria. enquanto não atingimos a liberação. visível. Num sentido absoluto. Existem ensinamentos que nos auxiliam a aumentar a paz e reduzir a ansiedade. como ocorreu com o Buda. estamos presos à experiência cíclica – e. ressuscitou. a paz não é possível. Só a lembrança deste fato. Cristo sabia de tudo. Nenhum mestre gostaria de ter um discípulo assim. Aí só pensamos conforme os panoramas nos quais o sofrimento é sólido.começa. Já vimos o resumo dos três aspectos de como o budismo trabalha as crises e de como podemos agir em termos práticos. surge a possibilidade de liberação. Se pensarmos que a paz surgirá por uma boa razão ou sob 45 . O aspecto mais profundo da forma de lidar com as crises está magnificamente representado pela história de Cristo e tornou-se um legado do cristianismo aos seres humanos. O ensinamento budista não diz que você vai se livrar das dificuldades. e não entra em crise no sofrimento. avançar em sua direção. Quando isto acontece. Em um determinado momento. É importante pedir ajuda em situações nas quais não temos competência isoladamente. Podemos trabalhar pela paz. mas existe um limite. paz é iluminação. Cristo foi pregado na cruz. é bom que peçamos ajuda. por definição. pois ela é nossa experiência básica. como ele havia antecipado. os nossos empalidecem. não é? Ele teve que subir a montanha onde seria crucificado carregando sua cruz. no meio das dificuldades. mesmo dentro da experiência cíclica podemos ter momentos de paz. Entretanto. O budismo ensina que. perdemos a paz. Podemos perdê-la se surgirem perturbações. Paz no dia-a-dia A paz na vida cotidiana pode ser examinada em vários níveis. sua natureza seguia intacta. se não temos a visão clara e estável disto. Até um de seus discípulos o negou. Agora. mas sua derrota é seu ensinamento. liberação completa. Cristo foi pregado na cruz. Perto dos sofrimentos de Cristo. parece que enrijecemos mais e mais. Quando manobramos. Enquanto não se obtem essa condição. vamos ter mesmo que cruzar pelas piores circunstâncias. (Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Paramitta. é uma condição não-construída. depois de tudo. mas ganhá-la não faz sentido. três dias depois. agonizou e morreu. passou pela vergonha de caminhar em meio às pessoas que antes pensavam que ele fosse um ser completamente poderoso. mas a efetividade desta ação não passa de um certo ponto. No budismo dizemos que sofrimento e alegria têm a mesma face quando contemplados a partir da natureza última. Mas. Este é o ensinamento mais sutil sobre crise. Podemos manobrar coisas. O sofrimento de Cristo não é comum. É uma derrota completa. Não podemos conquistar a paz. já nos ajuda. em Curitiba. isso é o modo de agir na roda da vida. Não existe derrota maior que a dele. mas. Superou as piores circunstâncias para mostrar que. em 18 de agosto de 2000) VI. A primeira coisa que podemos analisar em relação à paz é que se trata de nossa experiência natural. Paraná. Arrastou-se com a cruz. podemos entrar em estados de grande serenidade. Seguindo este rumo. ou seja. Diz-se que. mas remover as artificialidades que impedem a experiência original. mas o processo para recuperá-la consiste apenas da remoção de obstáculos – não iremos agregar coisas. perde o apelo. A meditação imperfeita gera estabilidade a partir de estados mentais artificialmente produzidos. serenidade e estabilidade que têm vontade de não retornar a suas atividades. Na verdade. separado do mundo. Esta experiência de grande felicidade não é definitiva porque. não será verdadeira. Uma vez perdida. uma interpretação equivocada. a pessoa reconhece que. se nossa paz estiver baseada em argumentos lógicos. Apesar de artificiais. curativos. quando o praticante interrompe a meditação e retorna ao mundo das relações. A paz não surge de um processo lógico sob condições. administrável por ela mesma. Porque. a experiência cíclica. ela nunca teve uma experiência de paz e felicidade com tal brilho e intensidade. Conseguir manter a meditação estável é muito raro e precioso. nunca a encontraremos. vê-se que os estados meditativos. a felicidade e estabilidade condicionadas surgidas da meditação têm efeitos positivos. Esta atitude é um obstáculo. E. natural e livre de qualquer construção. Não terá mais a experiência de que meditar é delimitar seu interesse ao mundo interno. encontramos o Sutra do Diamante. oferecem certa autonomia: até então a pessoa imaginava que a felicidade surgia na dependência de situações externas ligadas ao ganhar e perder. que aborda os vários paramitas. mas não há a verdadeira estabilidade. por serem construídos. será uma condição construída e frágil. formas de prática espiritual 46 . no mundo em que se ganha e perde. a sensação acaba. mas reconhecerá que o mundo interno e o mundo externo são efetivamente inseparáveis e que a compreensão de um leva à direta compreensão do outro. todas as experiências de aflição são construídas e surgem sob condições específicas que podemos localizar analiticamente. A análise de nossa situação permitirá descobrir as condições sob as quais perdemos a paz. sentem tamanha paz. Estabilidade condicionada Quando praticamos meditação silenciosa. Três venenos Entre os ensinamentos do Buda sobre o caminho da iluminação. o objetivo da meditação é chegar a um equilíbrio que não cesse quando retornamos às atividades. não são a solução para se ter paz. Pode surgir na mente a idéia de que o mundo está todo errado e de que o melhor seria ficar em meditação incessantemente.condições externas. limitada e impermanente da paz surgida de fatores internos durante a meditação. mas agora a vê surgir de uma condição interna. no mundo das relações. produz um impulso importante para que o praticante aprofunde a compreensão de seu mundo interno. Por outro lado. Isto permitirá a ele reconhecer melhor sua condição natural de paz e o ajudará a remover os obstáculos aparentemente externos que justificam a perda da experiência natural de paz. a experiência do mundo. O problema é que não meditamos de forma perfeita. Ainda que tenha apenas a experiência condicionada. mais adiante ele reconhecerá que seu mundo interno é tão grande quanto o universo ilimitado. tranqüilidade e paz. apesar de frágeis e transitórias. quando os praticantes chegam a um certo nível. Deste modo. quando as pessoas meditam. a paz só retornará se removermos as perturbações que surgiram. no mundo das experiências cíclicas. Esta experiência. das relações. ainda que impura e imperfeita. Estes três aspectos são a microestrutura de nossa identidade. Esta energia extra gera uma violência. emocionais e físicas.” Aí o corpo reclama: “Mas sou eu que estou sofrendo. a explosão. uma ação agressiva. Quando operamos numa fixação. vemos que de modo geral estamos muito ocupados. entendemos que precisamos de uma energia extra. Seria a identidade realmente o problema? É necessário ter consciência de uma identidade para que o problema surja? A resposta talvez seja não. onde atuam três componentes que são como venenos que sustentam nossa manifestação. ou que não têm consciência clara de seus propósitos.” Temos diferentes fixações neste diálogo. que só surge se houver fixações. você está só ouvindo. É um veneno básico que toca todos os seres. Assim. O terceiro veneno é a atividade incessante. a paz começa a ser perdida. de modo que aquilo a que nos fixamos possa ser sustentado mais facilmente e com mais segurança. Quando sentimos a ameaça.que podem conduzir à liberação final. na qual desenvolvemos as mais variadas fixações sem perceber. Quando analisamos nosso cotidiano. a raiva. e a vida segue. Podemos ter optado pela fixação ou não. um desconforto. O terceiro paramita trata especificamente da paz. vamos aguardar um pouco mais. Curiosamente. urgência. desejo. Ao examinar esta questão. consideramos que existem elementos que vão nos favorecer e tornar as condições ao nosso redor mais estáveis. Mas a agressão não acontece se não houver algo a ser defendido. Por exemplo: estamos numa palestra. De repente a emoção pergunta ao corpo: “Você está interessado. Não 47 . estamos incessantemente preparando condições mais favoráveis e tentando remover o que nos traz perigo. Simplesmente vamos em frente. O segundo veneno é a aversão. podem perder a paz. A partir de nossa fixação. e a mente está atenta. Veremos exemplos destas manifestações em todas as direções que olharmos. apego. Mas para o corpo há um incômodo. A sensação de perigo ou de vantagem surge das próprias fixações. mas a mente retruca: “É interessante sim. nem sempre elas estão de acordo. Com base nisto cada um de nós pode avaliar melhor o que anda fazendo em sua vida e quais as causas de suas dificuldades e instabilidades. Todos os seres passam por este processo incessantemente. Então deve haver uma definição prévia do aspecto a ser defendido. O primeiro destes venenos é a ignorância. tranqüilidade e paciência e dos obstáculos que se interpõem e nos fazem perder esta condição. Mesmo seres que não pensam em si mesmos como identidade. veremos que existe um nível mais fundamental. Junto com as fixações temos a possibilidade de explosão e a atividade incessante que busca produzir estabilidade sem explosão. E nossa ocupação está sempre ligada a alguma fixação. O texto começa examinando nossas identidades e localiza nelas a origem dos obstáculos. O nível emocional não está definido. Quando nos entrincheiramos em nossas identidades. Fixações As fixações podem ser mentais. uma espécie de recurso que usamos quando nossa fixação é ameaçada. Ignorância não é propriamente o desconhecer de algo. ou está desistindo?" O corpo diz: “Isto não lá é muito interessante”. é como se fossem diferentes identidades. ligada à sensação de carência. É uma experiência muito sutil. Aplicamos este referencial para definir o que é vantajoso e o que não é. uma impaciência crescente. mesmo que não seja consciente. todo o universo toma sentido a partir disto. tudo faz sentido. quando fixamos referenciais e nos colocamos em marcha. Ao contrário. mas em certo momento tudo se desfez. Quando interrompemos o andar por um obstáculo. Pensamos que a dor vem porque o adversário fez um gol. Aí respiramos – parecia estarmos vivos de novo. Mais dia. Não temos a experiência de que o renascer seja uma perda de paz. Não suspeitamos da impermanência. entramos num estado intermediário e depois renascemos em outra condição. não parece que estejamos vivos. Achamos que as circunstâncias externas não foram suficientemente favoráveis para que tivéssemos êxito. de que a fixação em novos referenciais seja uma perda de estabilidade. Então elegemos novos referenciais e recomeçamos a nos movimentar. ansiedade. imaginamos que é isto que nos trará nova estabilidade. Se temos fixação por resultados e nos movemos incessantemente para produzir o que consideramos favorável. Sob domínio da impermanência Precisamos entender que. Estas situações ocorrem ciclicamente. os novos objetivos também se dissolvem. não entendemos que isto seja um problema. ansiedade. O próprio andar impede a paz. se estabelecem e depois se dissolvem. não sabemos bem o que queremos. quando fixamos novos referenciais e nos colocamos em marcha. vemos que já tomamos várias decisões. Mas. Então temos alguém para culpar. inveja. tudo se reestrutura. Ou seja. carência e raiva/medo. nossa identidade entra em outra crise. Sem isto. um estado intermediário. ou seja. Aí dizemos que há sofrimento ou que a paz desapareceu. não pensamos que a dor vem de estarmos fixados no campeonato. tivemos uma experiência próxima da perda de identidade. ganha novo sentido. e vamos andando. 48 . pensamos que a fixação nos referenciais e na atividade incessante é algo favorável. Desejamos que as circunstâncias externas se transformem e fazemos um esforço incessante para que isto aconteça. E seguimos novamente.temos propriamente a decisão de andar numa determinada direção. Quando surgem as dores. a sensação de amargor. onde as coisas surgem. seguimos objetivos quase que cegamente. vai se mover. Olhamos os seres ao nosso redor e as circunstâncias concretas em que estamos imersos a partir de nossas fixações. Quando em movimento. aparecem obstáculos. Quando isto aconteceu. ocorre a defesa explosiva e. temos um adversário. houve uma decisão em certo momento. Também pode acontecer o contrário: fizemos o vestibular e estamos cursando a faculdade. sofrimento. aquilo que construímos. ficamos sob domínio da impermanência. aquilo em que nos fixamos. luta. temos a experiência de viver. Usualmente só achamos que a paz se foi quando ocorre a explosão. parecia que a vida não era mais possível. Na seqüência. menos dia. estamos sob domínio das emoções perturbadoras – orgulho. passamos por um bardo. sentimo-nos vivos. Isto significa que estamos presos ao que chamamos de experiência cíclica. É o que o Buda chama de experiência cíclica. fazemos tudo crescer e num certo momento aquilo volta a se dissolver e a produzir uma experiência de sofrimento. Lá pelas tantas. obtusidade mental. Como não temos esta noção. Quando a decisão torna-se ação. E é assim em tudo. Quando estamos em marcha. perfeito. Se estamos num jogo de futebol. dor. caminham por um certo tempo. desejo/apego. a paz já está comprometida. Ao olharmos para o passado. com ela. quando os referenciais e os mundos deles surgidos se dissolvem. nem para onde vamos. iniciamos num ponto. O fato de estarmos num campeonato pressupõe vitória e derrota. um colapso. Quando saímos de uma situação. sentimos como se viessem de fora. e ficamos deprimidos. Na verdade estamos namorando nosso estado energético. porque nossa experiência de energia interna está na dependência daquela presença. Ficamos fixados a uma energia interna. ficamos mal.Os seres humanos estão sempre mudando alguma coisa em suas vidas. podemos passar a viver em função do outro. É como se não soubéssemos viver. respiramos pior. outro tipo de fixação. então passa a funcionar desta maneira. Exercem seu efeito num nível sutil. sempre na dependência destes fatores. Se a energia não está presente. Se o outro nos abandona. mas em nível de energias. podemos cair em algumas armadilhas. É outro tipo de referencial. Também tentamos transformar a nós mesmos o tempo todo. agora pode até tornar-se inimiga dos antigos companheiros. Ficamos tão deprimidos que nem conseguimos respirar. achamos ótimo. quando não olhamos para isto de forma exata. portanto. Esta fixação dá origem a outras. Descobrimos que a energia está presente se o outro está próximo. Referenciais A perda da paz está intimamente relacionada aos referenciais que elegemos ou ao fato de elegermos referenciais. Quando isto se estabelece. locais. que sempre foi assim. é uma grande tragédia. lógico. Não é em nível de pele. Se a energia está presente. é um referencial energético. quando o outro se aproxima. nossos nervos detectam. A pessoa torce pelo Atlético. de repente muda para o Coritiba. Podemos nem nos dar conta claramente do processo. Vivemos num incessante processo interno de transformação de referenciais. Entre estas está o fato de pensarmos que estamos namorando a outra pessoa. Quando os elegemos. Quando estamos fixados. Se é em relação a uma pessoa. atividades e pessoas. Sentimo-nos bem. É como se trocássemos de time de quando em quando. parece que aquilo é cósmico. pode até surgir uma dor física. estou deprimido. Todas as coisas são vistas como favoráveis ou desfavoráveis. Os namorados vivem um dentro do outro. E aí tudo fica ao contrário: antes ela queria que todos torcessem pelo Atlético." Pode ser verdade. Podemos gerar apegos emocionais a circunstâncias. Na medida em que eles se transformam. experimentamos uma dor incessante por dentro. ficamos meio deprimidos. Não é um referencial lógico. dizemos: “Certamente eu a encontrei em outra vida. do tipo: estou com problemas. Isto porque a energia tomou como referencial um aspecto condicionado. Quando o outro vai embora. sentimo-nos mal. é interno. Tentamos transformar os filhos. aquilo está presente 49 . Não é uma depressão lógica. construímos estradas e unidades fabris. Quando o ser se afasta. Mas podemos também operar diretamente no nível da emoção. surgimos como identidades. Erguemos cidades. ficamos mais alegres. todos que convivem conosco. e se manifesta como uma energia. No início do namoro dizemos: “Sempre que o outro está próximo. temos uma condição de energia em que tudo parece fácil. o marido. Temos uma espécie de impermanência interna. De modo geral os namorados passam por esta síndrome. a esposa. Respiramos mais fácil. destruímos florestas. tudo parece difícil e penoso. É um processo mental. Transcende o aspecto mental. e isto produz sofrimentos correspondentes. e acreditamos que precisamos de mais e mais circunstâncias favoráveis. olhamos ao redor com olhos diferentes. ou em muitas vidas anteriores. Mas. buscamos outras aptidões e novas qualidades. mas nem sempre esta conexão tão forte é favorável. Quando aquele ser maravilhoso está próximo. É uma situação grave. mas. Tentamos mudar as coisas concretas ao nosso redor. e fica tudo ao contrário.dentro de mim. Pensamos: isto é viver. e elas parecem o exercício de uma liberdade completamente natural. se permanecerem satisfeitas – e às vezes elas são contraditórias. existe um terceiro tipo.” Aí a emoção diz: “Você não vai me deprimir. pensando: “O Buda tem razão. O mosquito pousa bem perto do olho. Achamos completamente normal. um referencial ligado a uma eletricidade interna. a paz só será possível se as fixações não forem perturbadas. Mas são elas que geram condições que fazem nossa paz desaparecer. é assim mesmo. se tenho esta eletricidade maravilhosa?” Quando ela se inverte. O corpo deseja uma coisa. outra. fizemos voto de não nos mexermos.” Como temos uma fixação pela energia. a energia não está. Porque. depois tem um período médio e por fim há uma fase de sofrimento. A emoção pode vir. é o contrário: “Quando o outro está presente. e a serenidade se evapora. Porque. sejam elas dignas ou não. estou iluminado. Sentimos o peso do mosquito. dizemos: “O outro passou. mas essencialmente é o corpo invadido que vai produzir a fixação. aquela microagulha que penetra a pele é intolerável.” O fato é que todo este processo começa quando geramos fixação por certo tipo de referencial – neste caso. Quando temos uma relação de proximidade. Elegemos fixações de forma consciente ou não.” No final do namoro. não sabemos por que irá terminar. A partir daquele momento. Estes níveis operam quase que independentemente. A pessoa diz para o estômago: “Sim! Sim!” É ele que comanda. e não podemos permitir tamanha invasão. às vezes em oposição. talvez esta não dure muito. A pessoa passa a mão pelo estômago e se pergunta: “O que teremos para o almoço hoje?” Aí pensa: “Batatas fritas!” E imediatamente ela saliva.” Só de pensar naquilo surge um condicionamento no corpo: brota saliva. a eletricidade. mas o corpo pede: “Quero chocolate.” Aí nossos radares vasculham em volta. é bom que o referencial interno seja apenas um adorno. e depois o vôo pesado dele. referenciais que produzirão resultados. Estamos sentados em meditação. E aquelas fotos que produziam efeito agora não produzem mais. não é um processo intelectual. A mente pode determinar: “Não coma açúcar”. No entanto. às vezes em conjunto. Isto diz respeito à ingenuidade em relação aos referenciais internos. a um estado de energia interna. uma terceira coisa. Referenciais de corpo Além das fixações mentais e emocionais. do mesmo modo que não sabemos como isto começou. O ser que antes tinha aquele poder hoje passa perto e nada acontece. que se manifesta perto do meio-dia. e a energia surge: “Agora sim!” Aquilo funciona por um tempo. Quando surge o magnetismo. não temos a sensação de que estejamos entrando numa área de perigo. mas é impossível. não é mesmo? Olha 50 . dizemos: “Por que eu quereria paz.” Na metade do namoro constatamos: “Às vezes aquilo está presente quando o outro está comigo. De repente. a emoção. Mas ele continua com uma aparência muito semelhante. todas as glândulas cooperam automaticamente. se for a base da proximidade. Esta fixação surge no nível do corpo. e a mente. às vezes não. Quando as fixações são definidas. Podemos ser comandados pelo estômago ou por qualquer parte do corpo. localizamos algo. Ela também pode lembrar: “No sábado vai ter churrasco. Tomemos como exemplo o que poderia acontecer se um inseto pousasse em nossa pele enquanto meditamos. Vamos comer e beber do meio-dia à meia-noite. dizemos: “Eu gostaria de ter paz. E aí surgem várias sensações. Eventualmente podemos ter competição entre os vários referenciais. Para o corpo. que serenidade!” Aí o Buda se transforma num mosquito que voa ao redor. Todas produzem fixações. . Como a harmonia não é possível. às vezes sofremos profunda decepção.” É muito difícil encontrarmos equilíbrio a partir dos referenciais.. O silêncio está ao nosso redor. ouvimos aquele sopro e concluímos: “Deve ser minha alma gêmea!” Mas o ser estava soprando: “Cuidado!” Não conseguimos entender a linguagem do silêncio. Para ter isto eu precisaria de.” Aí vem uma lista de requisitos. Inicialmente. de um pensamento para outro.” Temos referenciais de mente.” Mas. Oscilamos por estas seis formas de emoção. rezam por nós sem cessar. corpo e de energias internas. podemos viver seis experiências distintas. Sofremos por razões objetivas e também porque não queremos sofrer. mesmo que sejam apenas internos. existe um segundo tipo de sofrimento. a partir dos quais consideramos: “Só posso ser feliz se. É como se não tivéssemos olhos para reconhecer o que está além de nossa experiência cíclica. Na segunda. é a condição de vida. a felicidade é fugidia. você tem mais do que eu. a natureza de liberdade pré-existe a nós.. nunca conseguimos encontrar o que é estável. vai lá e a sacode. Vou me defender esquecendo. Ou seja. E vida após vida perseguimos isto. a paz não se torna possível.” Então esquece tudo e gera uma mente obtusa. quando estão alegres. de coisas que precisamos transformar ou adquirir. tentando encontrar a felicidade estável. ao contrário. No quarto tipo de experiência. é uma preparação para o sofrimento.que eu fico deprimido. quando sofrem. desconectada. a pessoa desiste de ter harmonia. A noção de refúgio pode brotar quando entendemos esta situação cíclica. emoção.. Elegemos a harmonia como fixação. Ou pior: escutamos errado. No sexto tipo. Os seres libertos.. Às vezes conseguimos.” Neste estágio a harmonia não é mais o objetivo. Todas estas circunstâncias decorrem de elegermos referenciais específicos. a pessoa quer provar que ela não é possível e. todos são terríveis comigo. Sofremos porque gostaríamos que a harmonia fosse possível. Ela afirma: “Vou esquecer esta situação. Logo. Fazemos esforço a vida inteira. como o que chamamos de felicidade depende de fatores específicos. Mas. Sofremos de uma identidade para outra. e não conseguimos ver algo que nos dê idéia de permanência. Na terceira. Também serei terrível com eles. Por isso o Buda enunciou a primeira nobre verdade: todos os seres têm a experiência de duka. como não temos o olhar de sabedoria. ela desiste de vez e diz: “Ok. por vidas incontáveis. e 51 . vou esquecer todos os problemas.. a pessoa fica desesperada porque falta alguma coisa. olhamos para os seres mais harmônicos e constatamos: “Certo. flutuantes. Aparece um ser na nossa frente. E assim nossa felicidade nunca é possível. Na primeira. de nossos referenciais. Dê-me um pouco de açúcar. É como se a harmonia não fosse realmente possível. Faz parte de nossa situação só vermos o que é impermanente. Não entendemos. que habitam as regiões sutis. Dizemos: “Eu gostaria de tomar por referencial alguma coisa que estivesse fora disto. que vive do próprio sofrimento. Esta é a grande dificuldade. nos sucede e existe simultaneamente conosco. E a perseguimos a vida inteira. Oscilações Quando perseguimos a harmonia. e isto nos perturba. a harmonia parece possível. Quando saímos da condição de feto na barriga da mãe para a condição de bebê. de impermanência interna e externa. gostaríamos que a harmonia fosse possível. Isto porque os fatores são impermanentes. tem uma vida maravilhosa. No quinto tipo. descobrimos que existem seres que têm mais harmonia que nós. quando vê alguma coisa funcionando. soprando: “Acordem!” Mas não escutamos. porque estas coisas desaparecem. Estas histórias também existem no Zen e no budismo tibetano.” O Zen questiona: “Que face você tinha antes de seu pai e sua mãe nascerem?” É o tipo de pergunta sem resposta. Nós surgimos das condições. adolescentes e adultos. se possível. A monja está grávida. Uma monja virtuosíssima nota que alguma coisa estranha está acontecendo. Alguns gostam de envergonhar jovens donzelas. a natureza não-construída. Antes do pai e da mãe nascerem. vemos movimentos incessantes – nunca descobrimos o que não muda quando tudo muda. Antes das condições surgirem. a face antes do espaço e do tempo. Se tivermos a felicidade de tomar por referência a natureza que não nasce e não morre. sem que nada tenha acontecido. pode ser que não vejamos o mar. É o refúgio inabalável. todos a olham de um jeito horrível. E por mais que ela proteste: “Não fiz nada!”. não temos segurança verdadeira. Então vêm os seres de sabedoria.” E. Eles vêm e dizem: “Observem a natureza da liberdade além das fixações. não é só a Virgem Maria. antes das condições surgirem. Este Buda sempre presente. como fonte de segurança. que existe antes de qualquer construção e é o final de todas as construções.depois nos tornamos crianças. traduzem-na em palavras para que nossa natureza ilimitada – que nos sustenta e nos mantém em paz – também se manifeste em nossa existência. Nossa face era a face de Buda. Essencialmente. vida e morte. É como se víssemos as ondas separadas do leito do oceano. qual era a nossa face? Esta é uma boa pergunta. Passamos por várias vidas e não entendemos o que se mantém enquanto as vidas se sucedem. E eles dizem: “Esta é a sua face. é como o mar para onde todas as águas vão e de onde todas as águas voltam. para nos explicar o que é estável. para nos ensinar o que são os refúgios. Isto é a natureza de Buda. elegê-la como referencial. a natureza do silêncio. Tomamos refúgio neste Buda. que face nós tínhamos? Nossos pais e mães não são pais e mães biológicos. Mas a natureza que existe antes de nossos pais e mães surgirem não nasce e não morre. Devemos tomar refúgio nesta natureza. É como se olhássemos para o mar e só víssemos as ondas. Mas somos completamente diferentes em cada fase. nossa face é a face não-construída. Podemos dizer: “Tomo refúgio na natureza incessante de Buda”. nome e forma. tanto no oriente quanto no ocidente. E assim poderemos fazer como os bodisatvas: estar no mundo para ajudar os seres a reconhecerem esta natureza.” E escolhem métodos variados. ou seja. Quando vemos as ondas. eventualmente os vemos. Estaremos livres desse movimento. sempre que os seres de sabedoria dizem isto. porque saberemos onde estamos e o que somos. Estes seres se manifestam e trazem a sabedoria ilimitada quando não conseguimos encontrá-la. a face natural. Temos amigos. terei que ir lá embaixo. Olhamos para o céu. nós acordamos. para as estrelas. objetivos e fixações diferentes. As histórias se repetem. Ou a face que está além de espaço e tempo. Aí podemos ter certeza de que um ser extraordinário vai aparecer. Então os seres de sabedoria dizem: “Não tem jeito. O refúgio em qualquer outra experiência será transitório. temos a sensação de que é uma continuidade. no mundo das coisas que nascem e morrem. poderemos entrar alegremente no mundo dos referenciais. No corpo tudo muda. o que está além da impermanência. E não entendemos o que se mantém estável. 52 . Natureza de Buda Nossa dificuldade está no olhar. Se buscamos segurança no que nasce e morre. Aparecem na barriga delas. como ondas também – porque somente vemos as ondas –. Assim surgimos nós: separados. Não costumamos ver isto. Vemos apenas se as coisas são favoráveis ou desfavoráveis a nós. adolescente.” Este é um aspecto sutil maravilhoso. perceber a criatividade brotando e reconhecer nisto a natureza luminosa de Buda. Nossa condição de homem ou mulher. de criar dualidades. Despertar da compaixão Existe ainda o refúgio de terceiro nível. significados. idéias e projetos. Nem o silêncio cósmico das idéias. Este é o segundo refúgio. E descobrimos que foi isto que aconteceu com o Buda quando ele se manifestou aqui e deu ensinamentos. Descobrimos que o silêncio cognitivo e o brilho da criatividade sempre existiram dentro de nós. não teríamos como reconhecer o silêncio e a criatividade na experiência comum das coisas. E descobrimos que também somos assim. se não ouvíssemos instruções. não precisamos construí-la. formas e significados. quando nossa mente chega aos outros seres e reconhece as dificuldades deles. brota naturalmente em nosso coração o desejo de ajudá-los. Tomamos refúgio na natureza do silêncio antes de qualquer construção. Eles brilham incessantemente e são inseparáveis.Depois dizemos: “Tomo refúgio em Buda enquanto aparência de todas as coisas. Percebemos que. Mas podemos olhar a aparência de todas as coisas e reconhecer nelas este poder criativo. Não importa se vivemos agora. Somos esta manifestação. o silêncio cognitivo dos significados. a compaixão é uma condição natural. Uma natureza que tem o poder de construção. Podemos perceber a alteração de significados que somos capazes de realizar. Ele encontrou na natureza do silêncio e do brilho a força para se manifestar em benefício de todos. Todas as aparências ao nosso redor são produto desta energia criativa. adulto ou velho não importa. Descobrimos que. Não importa em qual parte do planeta vivemos. dizemos: “Tomei refúgio na natureza de Buda. O Buda exerce isto. aparências. Quando estamos em silêncio. Não há diferença 53 . criança. esta natureza brilha de forma estável. mundos. Não veríamos isto como Buda. Mas houve um Buda que veio e ensinou o olhar de sabedoria. nem o brilho que produz as aparências de alguns significados e sua transformação. Usualmente. ações. duzentos anos para frente ou mil anos para trás. Reconhecemos o silêncio e a criatividade como incessantemente vivos. em Buda como silêncio antes de qualquer impulso. Podemos ter a experiência de estarmos vivos da mesma forma que o Buda a experimentou. Podemos exercer este poder criativo alterando o significado das coisas incessantemente. Descobrimos que dentro do silêncio existe uma natureza de brilho. todos os referenciais que produzem a experiência cíclica empalidecem. quando olhamos ao redor.” Quando tomamos refúgio na natureza de Buda. Ele recitou o Prajna Paramita. E o olho de sabedoria dos seres pode se abrir. É um nível muito sutil. Podemos modular o brilho e criar projetos. O Buda deu ensinamentos por mais de quarenta anos. o brilho da inteligência. Esta natureza tem o mesmo frescor em qualquer circunstância. Aí nos damos conta de que o Buda também surge como aquele que produz ensinamentos. Reconhecer este brilho e nele tomar refúgio. fala o Darma e faz com que reconheçamos nossa natureza como a natureza de silêncio e criatividade. recitou: “Gate Gate Paragate Parasamgate Bodhi Soha”. A compaixão que temos pelas outras pessoas já é a manifestação da natureza de Buda. vemos apenas se as coisas são boas ou ruins para nós. Não faz a menor diferença se somos crianças ou se estamos perto da morte. Quando estes referenciais se instalam em nosso coração. e a compaixão também. Não temos o olhar de sabedoria. E tomamos refúgio em Buda como brilho que produz criatividade. E aí surge o budismo. Parece que encontramos algo. ouvir os ensinamentos. Pode no máximo ganhar. Este é nosso objetivo. Às vezes conhecem sem nunca terem ouvido nada sobre elas. mas eu nunca acho essa motivação muito apropriada. Por isso Sua Santidade. produz estabilidade e paz sob qualquer circunstância. por exemplo. além da história. É quando ganhamos os jogos que temos problemas. Se encontrarmos isto. Consideramos este um bom referencial. por exemplo. Quando surge esta experiência. é complicado. são capazes de dar ensinamentos e responder sobre outra tradição sem nunca ter estudado seus textos. ao reconhecimento da natureza não-construída e ao refúgio verdadeiro na natureza do silêncio. Enquanto a experiência cíclica não cessar. tendo ganho.nenhuma. o caminho espiritual é necessário. nunca perder de vista que o objetivo é transcender o caminho espiritual e chegar ao fim dele. Precisamos do caminho espiritual para superar a experiência cíclica. Se um torcedor vê seu time ganhar um campeonato. é porque estão jogando algum tipo de jogo mental e acham que somos bobos porque não jogamos. Porque. Quem joga algum jogo mental não vai além disto. Quando tudo vai bem. Os grandes mestres dão 54 . será maravilhoso. além de espaço e tempo. É interessante ver que os grandes mestres de cada tradição conhecem as outras tradições. o Dalai Lama. o caminho espiritual se extingue. Encontramos um referencial que. o caminho espiritual cessa. o caminho espiritual será necessário. E ele é a expressão da compaixão. Para podermos reconhecer estes refúgios ouvimos ensinamentos. pois já cumpriu sua função. ou seja. é preciso entender que existem referenciais construídos ligados a este tipo de identidade que também produzirão problemas. fazemos prática não só para interromper a experiência cíclica. Existem dois tipos de corrupção – da experiência cíclica e do caminho espiritual. fica muito mais difícil abandonar os campeonatos. pegaremos o que estiver mais próximo disto – a compaixão ou amor que for possível.” E estar preso a um campeonato é um problema. minha religião é bondade. que se manifesta quando abandonamos a experiência cíclica usual e entramos no caminho espiritual com fixações específicas. A motivação correta não é tornar-se budista propriamente. ainda que as pessoas ao nosso redor digam: “Você é bobo. fala em bondade.” Como a experiência cíclica existe. E nem vale a pena ganhar a maior parte dos jogos que se ganha. Se não conseguirmos. talvez as próprias tradições sejam desnecessárias. Como eles acessaram a região de sabedoria. Portanto. Por isso Sua Santidade. como também para nos vermos livres do caminho espiritual. Caminho espiritual Existem três refúgios que nos levam além da experiência cíclica. ao mesmo tempo. uma vez assumido. Os mestres sempre alertam para o que chamam de materialismo espiritual. de onde se é capaz de reconhecer todos os seres como originalmente ilimitados. amor e compaixão.” Se dizem isto. diz: “Eu não sou budista. Quando encontramos refúgio. É mais fácil sermos aprisionados pelo sucesso do que pela dor. na natureza da luminosidade e na natureza da compaixão. nos fixamos naquelas condições.” Às vezes alguém me diz: “Quero ser budista”. Esta natureza estável está além de vida e morte. dar valor a eles e. Por isso é muito importante trilhar o caminho espiritual. o Dalai Lama. amor e compaixão. Recentemente ele afirmou: “Se as pessoas praticarem os valores pregados pelas tradições religiosas. mas buscar a superação de suas dificuldades e se capacitar para beneficiar os outros seres. Ele diz: “Agora sou campeão. inveja e orgulho. não como uma explicação de como as coisas são ou deveriam ser. (Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Paramitta. Se gerar fixação. cinco venenos – raiva/medo. para que aprendam sem gerar fixação. Este eu ouço. obtusidade mental. E diremos: “Este professor do Darma é o melhor que tive. É importante que aprendamos e possamos utilizar isto com outros seres. Darma – o ensinamento que surge na mente do Buda de acordo com as necessidades dos seres. O princípio feminino da sabedoria. Darmakaya – o "corpo de vacuidade" do Buda. e assim criam todo os sofrimentos da roda da vida. correspondente ao aspecto Sanga das Três Jóias. de forma a produzir alívio com relação a duka e apontar o reconhecimento da liberdade não-causal. para que estes seres também se beneficiem e não se fixem. sem inclinações. Dakini – fonte da atividade iluminada do Lama. eu não. Se a fixação se estabelecer.) Glossário As definições apresentadas foram formuladas com base em aspectos particulares dos ensinamentos budistas e não seria adequado vê-las como definitivas ou completas. É um legado precioso que chegou a nós através de gerações para que possamos ter mais lucidez e transmiti-la a outros. que alcançou este reconhecimento cerca de 2600 anos atrás. Paraná. portanto. em especial o exemplo histórico do Buda Sakiamuni – príncipe Sidarta. Este é o poder de corrupção da experiência cíclica. aquele eu não ouço. 55 . estaremos perdendo tempo. será um caminho de sofrimento. O caminho espiritual é um caminho de paz. É uma experiência cíclica infindável. Se não aprendermos que o caminho espiritual é um caminho de paz. teremos a experiência cíclica novamente. aquele outro tem problema. a 17 de março de 2000. mas ainda assim prenhe de todos os fenômenos e possibilidades. Isto é importante para que não pensemos que nosso método específico é único ou que deva ser algo em que iremos nos fixar teimosamente para sempre. Este ensinamento é bom. o Gautama. desejo/apego. Não que devamos rejeitá-lo depois. é nesse sentido que as definições são apresentadas. Nosso objetivo é usar o método e chegar ao final. São chamados de venenos porque potencializam os impulsos para as dez ações nãovirtuosas.” E seguiremos assim. Os seres que ouvem aqueles ensinamentos estão todos perdidos. mas livres de fixação. Ah. De fato o uso das palavras no budismo surge como um remédio para aliviar o sofrimento dos seres. Buda – título que se dá a um ser que despertou completamente para o potencial absoluto da realidade. Ela pode nos corromper mesmo enquanto praticamos. em Curitiba. eu estou no único caminho certo.ensinamentos em todas as tradições. O primeiro passo é abandonar o refúgio nos três venenos e refugiar-se nas Três Jóias – ou seja. nos abstemos destas ações não porque o Buda pediu. São três ações de mente: avareza. mas da experiência. Ela corresponde ao javali e é sustentada e defendida pelos outros dois animais. a heresia suprema é a fixação do javali. aversão ou má vontade para com os outros e visão herética (no sentido de aceitar e defender teorias de mundo e doutrinas que produzem sofrimento). Não é apenas algo desagradável. Desta fixação surge um observador e um mundo que é observado. No quinto passo há uma ampliação desta motivação.dez ações não-virtuosas – ações que produzem sofrimento. Com esta motivação firmemente estabelecida. mas porque verificamos por nós mesmos que não produzem felicidade estável. mentir e falar inutilmente (ou indulgir em distrações e emoções vãs). São três as ações de corpo que devemos evitar: tirar a vida. que incessantemente surge para beneficiar os seres. duka – (em páli. Nobre Caminho Óctuplo – o caminho gradual que o Buda ensinou para irmos da experiência de aprisionamento até a obtenção do reconhecimento incessante da liberdade. abandonar a motivação usual de perseguir objetivos que não são capazes de produzir felicidade duradoura e colocar-se na direção daquilo que realmente pode produzir uma experiência estável de liberdade. mas que mais amplamente é a própria complicação inerente à experiência cíclica da roda da vida. e a correspondente à cobra é a má vontade. o professor em carne e osso que manifesta no espaço e no tempo a intenção iluminada atemporal e não-local do Buda. já que uma pessoa com tal refúgio não pratica as dez não-virtudes em mente (segundo passo). mas implícito na felicidade baseada em condições. "Lama" significa "insuperável" ou "compaixão materna". é também o sofrimento muitas vezes não percebido. difamar (ou comentar atitudes que realmente parecem condenáveis). fala (terceiro passo) e corpo (quarto passo). roubar e praticar conduta sexual indevida (adultério. ocultando a liberdade inata. Corresponde ao aspecto Buda das Três Jóias. Os mestres reconhecidos como emanações da intenção iluminada do Buda. que passa a incluir os outros seres. A moralidade no budismo não surge de uma fonte externa. Mais amplamente. Assim. dukkha) termo geralmente traduzido como "sofrimento". Lama – numa primeira abordagem. o galo e a cobra. Neste passo o 56 . A lista de dez não-virtudes é um croqui através do qual nos guiamos para verificar se os ensinamentos do Buda realmente trazem alívio e contentamento. os três passos seguintes são alcançados naturalmente. São quatro ações de fala: falar rudemente. estupro etc). A ação não-virtuosa de mente correspondente ao galo é avareza. identidade – fixação em que há um processo de auto-referência embasado em outras fixações. que congela a separatividade e atribui significados automaticamente. Nirmanakaya – o "corpo de compaixão" do Buda. fixação – um evento separativo qualquer. Rinpoche – "Precioso". amor. compaixão e equanimidade. e que caracteriza o budismo como tal. Quatro Nobres Verdades – primeiro ensinamento dado pelo Buda. podem ser dissolvidas. atendendo todos os seres em suas necessidades. e o oitavo passo é a prática do reconhecimento incessante desta pureza inerente nãoseparativa. um texto que conduz uma prática de meditação específica. os meios de obter a dissolução da complicação. impermanência e a falta de um eixo (ou sentido) para esta experiência de existência. Os três últimos passos referem-se à prática de meditação: o sexto passo é o desenvolvimento de estabilidade. artificiais. Por serem construídas. o sétimo passo é a prática da sabedoria transcendental que aponta em cada evento separativo uma natureza de liberdade. sadana – numa primeira abordagem.desenvolvimento das quatro qualidades incomensuráveis e seis perfeições proporcionam destemor e uma inserção adequada no mundo. A segunda verdade nos apresenta a origem causal destas complicações. ou seja. A quarta verdade é o Nobre Caminho Óctuplo. Alegria é reconhecer o mérito de outros e se regozijar com isto. A experiência cíclica construída pelos três venenos. que elas são construídas. roda da vida – samsara. e estas classificam as experiências da roda em seis reinos correspondentes. o que elimina a crise existencial. gerando soluções adequadas e permitindo que sua natureza livre aflore naturalmente. Esta roda é caracterizada pelas três marcas: duka. Equanimidade é não sucumbir a flutuações. e a comunidade dos seres que se movem na mesma direção. a liberdade não-causal que sempre esteve presente. Amplamente. indo do primeiro ao oitavo passo várias vezes. refúgio nas Três Jóias – tomar como ponto de referência ou eixo a experiência de liberdade manifestada como o exemplo histórico do Buda. ou seja. O praticante gira esta roda da melhor maneira que consegue. e esta é a terceira verdade. A primeira verdade proclama que experimentamos complicação de tempos em tempos. e portanto não absolutas. O Nobre Caminho constitui a roda do darma. o processo pelo qual o praticante alcança o resultado. título concedido a grandes mestres reconhecidos como Nirmanakayas. quatro qualidades incomensuráveis – alegria. o produto desta experiência na forma de ensinamentos que surgem de acordo com as necessidades dos seres a fim de produzir alívio de todas as formas possíveis. Os seres separativos dominados pelos três venenos vagam indefinidamente por estas experiências de acordo com as seis emoções perturbadoras. Compaixão é entender os obstáculos dos outros seres a partir do ponto de vista deles mesmos. Amor é fazer de tudo para ampliar estas boas qualidades. Elas surgem de uma ampliação da mente que passa a abarcar as necessidades dos outros seres. a cada vez melhorando algum ponto até realizar completamente cada um deles. 57 . incluindo indistintamente meditação formal e vida cotidiana. mas que até então não havia sido reconhecida. e que em geral não temos controle sobre seu surgimento. independentemente de recompensas ou condições. não seria considerado perfeição. Três Corpos do Buda – Darmakaya. Todas as emoções perturbadoras se manifestam no reino humano. porém. e isso caracteriza o reino humano como tal. Três Refúgios – refúgio nas três jóias. e que apenas ajude algum grupo de indivíduos de uma forma relativa. A cobra é muitas vezes traduzida como "aversão". seis emoções perturbadoras – raiva ou medo. mas de forma mais ampla indica uma defesa enérgica desta fixação. a emanação contínua de formas puras que manifesta a liberdade do darmakaya. o que seria divulgar e aplicar os ensinamentos que revelam a liberdade. reino humano. os seres que lá se encontram acreditam na solidez de seu reino da mesma forma que usualmente acreditamos neste reino humano. Elas correspondem aos seis reinos da roda da vida. estabelecendo o critério que as define como transcendentes de fato. reino dos asuras (semideuses) e reino dos devas (deuses). o Buda histórico como o professor ou médico insuperável. uma atividade incessante de sustentação da fixação na 58 . concentração (dhyana). Três Jóias – Buda. Sambogakaya e Nirmanakaya. Nenhum dos reinos tem existência sólida.Sambogakaya – o "corpo de deleite" do Buda. desejo e apego. O galo é traduzido como "desejo". sabedoria (prajna). e orgulho e falso contentamento. por exemplo. Darma e Sanga. seus ensinamentos como um remédio que alivia o sofrimento dos seres. samsara – ver roda da vida. reino dos animais. cobra e galo. paciência ou paz (kshanti). o esforço jubiloso transcendente é o que se propõe a beneficiar os seres da forma mais ampla. Sanga – a comunidade de praticantes que se aplicam na prática dos ensinamentos do Buda. seis reinos da roda da vida – ambientes mentais correspondentes às seis emoções perturbadoras. obtusidade mental e cansaço. três venenos – javali. O Sutra do Diamante é um controle de qualidade para estas "perfeições". mas é um equilibrismo constante. seis perfeições (em sânscrito paramita) – generosidade (dana). perseverança ou esforço jubiloso (virya). aflição por carência. Por exemplo. e a comunidade que coloca em prática estes ensinamentos. moralidade ou disciplina (sila). reino dos pretas (seres famintos). Um esforço jubiloso pertencente à roda da vida. O javali é usualmente traduzido como "ignorância". mas a predominante seria desejo/apego. mas de fato indica uma fixação que é defendida e sustentada pela cobra e pelo galo. inveja e competitividade. Eles são o reino dos infernos. linhagens. o XIV Dalai Lama. São qualidades que não se pode praticar isoladamente. nem o amor serão possíveis. não é imutável. e você e todos que o rodeiam sentirão o brilho e frescor da natureza de Buda. na prisão do auto-interesse. Praticar compaixão é praticar a mente transcendente. a incessante lucidez! Use a meditação serena. o nirmanakaya é o corpo de compaixão que surge incessantemente para beneficiar os seres que agem sem liberdade perante os três venenos e que portanto não reconhecem sua pureza inerente na forma dos Corpos do Buda. Alegre-se com todos os seres a sua volta. reconheça suas qualidades de liberdade transcendente e relacione-se com estas qualidades. a mente que vai além de nossa prisão do autointeresse. impossíveis na estreiteza do auto-interesse. Não perder este foco. Reconheça que todas as linhagens budistas surgem do ensinamento do Buda e não vão além dele. cores e roupas. e portanto a energia vibrante que emana continuamente do darmakaya. nem a compaixão. da natureza ilimitada de todos os Budas. lembre que a própria experiência da roda da vida é construída e. Assim sua vida será prática incessante. exigências. na ausência do amor. A origem da felicidade está na amplidão que a mente possa praticar. está sujeita à impermanência. O problema da roda da vida não está na identidade virtual que os seres manifestam. sua mente se ampliará rapidamente. Sempre que você ficar na dúvida frente a tradições. Se esquecermos a amplidão natural de nossa mente. A compaixão é o antídoto e o exercício de liberdade frente a isto. Você pode praticar isto a todo momento. portanto. é importante relembrar o referencial e foco de nossa prática: a compaixão por todos os seres. nossa vida. o calmo e nobre sentar. Conclusão Quando os ensinamentos parecem complicados. Se você praticar apenas um bom coração. 59 . A cada momento e a cada brilho do giro da roda podemos. E esta natureza ilimitada você já tem! Se estiver muito aflito e tudo parecer impossível. eis o desafio maravilhoso. mas na limitação da mente no autocentrismo. práticas. A liberação é possível. A natureza pura dos três venenos são os Três Corpos do Buda : o darmakaya é a ausência de fixações e ainda a vacuidade que é fonte de todas elas.separatividade. Sua Santidade. pense que nenhum ensinamento pode oferecer mais do que reconectá-lo ao reconhecimento de sua própria natureza. e seus olhos se encherão do brilho de gratidão por todos os Budas. diz: "Não importa quanto poder ou recursos nos for possível reunir. parecerá miserável. Corresponde ao aspecto Darma das Três Jóias. para aprofundar a prática e remover os obstáculos que estiver encontrando. o sambogakaya é a natureza de sabedoria correspondente aos cinco venenos. como inseparáveis das mentes dos praticantes e apresentadas na forma de uma "deidade meditativa". que naturalmente beneficiam os seres. são qualidades de amplidão." A origem do sofrimento está na estreiteza do foco da mente. formalidades. Yidam – As qualidades do Lama. meditando a vida. Além do mais. Lembre-se: nossa natureza segue intacta. 60 . reconhecer o ilimitado. nada está perdido. quando tudo está perdido. quando nenhum controle funciona mais.
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