Matérias Revista Língua Portuguesa (RLP)

March 17, 2018 | Author: mark86ar | Category: Word, Natural Language, Portuguese Language, Grammar, Portugal


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Lei da condiçãoDoutorado da UFRJ aborda as funções discursivas das orações condicionais Por Marcelo Módolo e Henrique Braga A voz de Dorival Caymmi entoa com convicção que vai a Maracangalha: "Se Anália não quiser ir, eu vou só". Na propaganda, o jornal persuade o público a assiná-lo: "Se no Brasil ninguém paga caro por mentir, por que você vai pagar caro pela verdade?". Com menosprezo pela ex-amada, o eu lírico de Já Passou, de Chico Buarque, confessa que outrora sofrera: "Se isso lhe dá prazer/ Me machuquei, sim, supurou". Há um fato gramatical comum às citações: todas partem de uma oração subordinada condicional. Um olhar mais demorado sobre o fenômeno poderia ater-se, porém, às categorias em que cada uma dessas condicionais se insere. Foi o que fez a estudiosa Maria do Rosario da Silva Roxo, cujo doutorado, defendido na UFRJ, analisou "Aspectos cognitivos das construções condicionais em audiências públicas" (http://www.letras.ufrj.br/poslinguistica/wp-content/uploads/2012/04/M-R-Roxo.pdf). A autora optou por seguir a classificação proposta pela americana Eve Sweetser, agrupando as orações em condicionais preditivas, epistêmicas ou pragmáticas. Com base nessa ordenação, esmiuçou o funcionamento de cada tipo de condicional no discurso jurídico oral. Numa perspectiva cognitivista, em que não se desvinculam construção gramatical e moldura comunicativa - no caso, orações condicionais e audiências públicas em que os réus são acusados de "crimes contra a vida" -, Maria do Rosario defende que as condicionais são evocadas em seu corpus não primordialmente para mostrar uma relação condicional entre dois eventos. Mais do que isso, o recurso linguístico é usado por um enunciador (juiz, promotor ou mesmo réu) que visa persuadir o auditório sobre dada visão de mundo. De modo muito genérico, o raciocínio condicional é visto como um componente de nosso aparato cognitivo, raciocínio pelo qual somos capazes de criar mundos possíveis ou alternativos, projetar situações imagináveis, num simples jogo entre realidade e irrealidade. Além desse sentido mais básico, contudo, as condicionais podem expressar noções de causa-efeito (preditivas), servir de base para expor uma conclusão (epistêmicas) ou introduzir um ato de fala (pragmáticas) - veja os quadros nestas páginas. Com análise minuciosa, Maria do Rosario Silva Roxo contribui para a percepção de que, por meio de uma construção sintática a que chamamos "oração condicional", são veiculados valores semânticos que nem sempre evocam a dualidade "sonho vs. realidade". Como bem disse Paul Valéry, "A sintaxe é uma faculdade da alma", mostrando sempre um quadro muito mais rico que a decoreba mecanicista em que muitos professores ainda insistem. Condicionais preditivas Quando a estrutura gramatical de condição veicula também um valor de causa A predição configura-se a partir da certeza de que algo irá acontecer em razão de outro acontecimento, da imaginação de ações alternativas ou de realização de eventos. Consequentemente, nas condicionais preditivas, a estrutura gramatical de condição veicula um valor causal. Isso porque o evento expresso na condicional (a prótase) provoca a realização do evento descrito na oração principal (a apódose). Em Caymmi, a possibilidade de "Anália não querer ir" gera a possibilidade de o enunciador "ir só". Maria do Rosario transcreve o diálogo entre um réu que, no passado, havia sido "o dono do morro" (o chefe do tráfico na comunidade) e o juiz: Réu: E aí agora eu não vou entrar lá, né? Facções, na nossa época não existia facções. Juiz: Você foi preso com uma 7 meia 5 (risada). Se você chegar com uma 7 meia 5 hoje lá, o pessoal vai rir de você. Para a autora, compreender a relação causal expressa numa condicional preditiva depende de um conhecimento que está além do enunciado. No caso, seria imprescindível que os interlocutores conhecessem os frames, os esquemas 1 conceptuais evocados no enunciado. Sem saber do maior poder de fogo de que hoje dispõem os traficantes e como seria visto, nesse universo, um traficante que dispusesse de uma "simples" pistola 765, não se pode interpretar a relação de causa-efeito que o juiz expressou por meio da construção condicional. Condicionais epistêmicas Quando o que se deduz das orações não é um fato, mas um saber iferentemente do que ocorre na preditiva, na condicional epistêmica não se relacionam dois acontecimentos. Nesse tipo de condicional, o conteúdo veiculado na prótase serve como justificativa para a conclusão que se apresenta da oração principal. Por isso, a oração é chamada "epistêmica": o que se deduz dela não é propriamente um fato, mas sim um saber, uma informação como um tipo de experiência. É o que se dá no texto publicitário: o evento "no Brasil ninguém paga caro por mentir" autoriza a conclusão "você não deve pagar caro pela verdade". Num cenário argumentativo, como as audiências analisadas por Maria do Rosario, esse tipo de condicional se mostra produtivo, pois o raciocínio lógico pelo qual se constrói o enunciado condicional dá um "aspecto de verdade" ao argumento apresentado, o que é valioso como recurso persuasivo. Entre outros exemplos, a autora cita esta fala de um promotor: "(...) tão fundamental é o direito à vida que nem o Estado tem o direito de tirá-lo (...) e se nem o Estado tem legitimidade para tirá-lo, ninguém mais tem, ninguém tem o direito de antecipar a morte de outra pessoa (...)." Na fala, o conteúdo expresso na prótase ("nem o estado tem a legitimidade de tirar o direito à vida") serve de base à conclusão expressa na apódose ("ninguém tem o direito de antecipar a morte de outra pessoa"). Por esse nexo sintático, o enunciador dá uma feição de "verdade indiscutível" ao próprio argumento. Condicionais pragmáticas Conteúdo da subordinada introduz enunciado com valor de ação Aqui, o conteúdo expresso na subordinada condicional serve como introdução para o ato de fala (ou seja, um enunciado com valor de uma ação) que se concretizará na apódose. Em Chico Buarque ("Se isso lhe dá prazer,/ Me machuquei, sim, supurou"), a confissão se manifesta na oração principal, e a subordinada serve como comentário que lhe abre caminho. O enunciador se coloca num patamar de altivez, mostrando-se capaz de praticar o ato de fala "confessar sofrimento passado", tendo como única motivação "dar um (mesquinho) contentamento à excompanheira". Na condicional pragmática, a subordinada expressa um conteúdo que influencia a realização do ato de fala desenvolvido na apódose. Nos dados de Maria do Rosario, as pragmáticas mais recorrentes foram aquelas em que a apódose contém verbo no modo imperativo. A tese mostra a fala em que o promotor se dirigiu a jurados: "(...) se a criminalidade já é assustadora do jeito que é, imaginem os senhores se nós estivéssemos autorizados a nos vingar quando fôssemos vítimas de algum crime (...)." No jogo persuasivo instaurado nas audiências, essas condicionais se mostraram um produtivo recurso para introduzir alguma ordem ou pedido que se faz ao interlocutor. http://revistalingua.uol.com.br/textos/92/artigo290636-1.asp 2 O plural dos números Faz sentido escrever construções flexionadas como "anos vintes" e "os quatros quadros"? Há gramáticos que acham que faz Por José Augusto Carvalho Alguns gramáticos recomendam que se deva dizer "anos vintes", com flexão do numeral, sob a alegação de que a dezena se repete a cada ano (1920, 1921, 1922, etc.). O argumento não convence. O numeral cardinal tem duas características: além de participar da natureza do pronome, por ser um quantificador determinado (ex.: Carlos e seus três filhos saíram. Os quatro foram ao cinema.), o cardinal tem quatro funções, duas sintáticas (adjunto adnominal e aposto especificativo) e duas semânticas (enumerador e classificador), dependendo de sua posição em relação ao substantivo. O numeral cardinal, depois do substantivo, é sintaticamente um aposto especificativo (que é função substantiva, e não adjetiva) e semanticamente um classificador (com em "casa dois", "revólveres 38", "professores adjuntos quatro"), por isso não se flexiona. O aposto especificativo pode confundir-se com um adjetivo, mas é normalmente invariável: sequestros relâmpago, comícios monstro, tons pastel, rua Quinze, Óticas Visual, Lojas Pet, operários padrão, desvio padrão, vestidos laranja, etc. É por confundir-se com um adjetivo que o aposto especificativo às vezes é flexionado indevidamente, como em "contas fantasmas", por exemplo. O numeral cardinal, antes do substantivo, é sintaticamente um adjunto adnominal (e alguns - como um, dois e os terminados em -entos - podem variar, como em "duas casas", "duzentas pessoas"), e semanticamente um enumerativo, na terminologia de M.A.K. Halliday & Ruqaiya Hasan, no livro Cohesion in English (London: Longman, 1976: 40-41). O numeral cardinal pode flexionar-se quando é substantivo ("Os quatros que ele desenhou pareciam cadeiras viradas."). Mas, posposto ao substantivo, o cardinal não se flexiona em nenhuma das línguas neolatinas, e não há caso de escritor, linguista ou bom usuário da língua que escreva ou diga "anos vintes". Não há, pois, respaldo que endosse a lição que preconiza a flexão do numeral cardinal depois do nome. http://revistalingua.uol.com.br/textos/92/o-plural-dos-numeros-290660-1.asp 3 devemos dizer: "As mini e maxi desvalorizações". como sugerem alguns gramáticos.com. "Os pré e pós-operatórios".asp 4 . incluindo o "praça de pré"). Prefixos. Isso porque tais morfemas não são adjetivos.uol. "Os homo e heterossexuais". prefixoides ou pseudoprefixos não se flexionam nunca. etc. como nos exemplos: "Os autos hoje são mais confortáveis". flexionando o prefixoide? "Micro e pequenas empresas" significa "microempresas e pequenas empresas". como é o caso de "auto" (abreviatura de automóvel) ou de "mini" (abreviatura de minissaia) ou de "pré" (com o sentido de vencimento de militar inferior. "As micro e pequenas empresas" "Os super ou ultraconservadores". nem quando estão distantes da palavra primitiva. e o prefixo passa a ser substantivo (derivação imprópria).Problemas gramaticais Plural em sequência José Augusto Carvalho discute a flexão de número em expressões como "micro e pequena empresa" Por José Augusto Carvalho Seria errado dizer "micro e pequenas empresas" ou teríamos que dizer. "Os arqui ou multimilionários". "micros e pequenas empresas". "Os prés foram pagos com atraso". Pode acontecer que uma palavra formada por prefixação se abrevie.br/textos/90/artigo280677-1. Assim. http://revistalingua. "Os pseudo e autênticos poetas". "Elas vestiam minis azuis". e precisa urgentemente ser repensada (sobretudo. e. por exemplo. Isso sem falar em contratos. são as obras da literatura que me vêm à mente e não a fala dos operários senegaleses numa construção civil de Paris). A rejeição à mesóclise. escrevem simplesmente mal. desde algum tempo. é possível reconhecer nesses textos características do português brasileiro contemporâneo . mas têm vocabulário pobre e dificuldade de organizar ideias de modo coeso e coerente. complicada. a linguagem é mais livre). também evolui. etc. o modelo mental que temos de uma língua (quando penso no francês. Significa dizer que a língua culta formal já simplificou a concordância. por isso. uma revisão da gramática com vistas à sua simplificação e racionalização seria muito bem-vinda . contudo. enfim. isto é. livros. ilógica. a modalidade culta. 5 . não usa mais o futuro simples. também é praxe entre nossos melhores jornalistas e escritores. em certos casos. que o padrão culto deva incorporar toda e qualquer inovação popular. é ela que se usa em documentos. não sendo proficiente na escrita formal. Evolução Devido ao empobrecimento de nossa educação. Inovação É a modalidade culta. escreve como fala. é preciso ter claro de qual espécie de língua se está tratando. e ambas se distanciam bastante das correspondentes modalidades lusitanas. tanto em registro formal quanto informal. em geral adota usos da língua popular que se consagraram em textos formais. O português engloba. Especialmente quando se estuda um idioma como expressão cultural de um povo. em sua modalidade popular falada. regulada pela gramática normativa. projetos. temos cada vez mais pessoas de nível superior que não dominam a norma e. é a língua padrão.provavelmente porque o redator. programas mais "sérios" de rádio e TV (nos de entretenimento. num momento em que a língua portuguesa começa a se internacionalizar. as variedades de todos os países lusófonos.Lógica A evolução também involui Não se pode confundir a incorporação sensata (ao padrão do idioma) de usos da língua falada com a produção textual deficiente resultante da falta de estudo Por Aldo Bizzocchi O português brasileiro.como ocorreu com as gramáticas de outras línguas latinas. revistas. difere muito da escrita culta. Outra coisa é dizer que o português popular deve ser elevado à condição de língua padrão. como o espanhol e o italiano). relatórios. O português brasileiro falado evoluiu muito e virou uma língua com características que. em ritmo bem mais lento. No entanto. Em todo caso. necessariamente. jornais. quando o faz. já ocorre há mais de um século na fala. que se tem em mente: é ela que se ensina nas escolas (até aos estrangeiros). E não apenas em termos gramaticais ou ortográficos. Até alguns jornais e revistas trazem textos mal escritos. Uma coisa é reconhecer que nossa gramática normativa é anacrônica. Isso não quer dizer. certidões. A norma culta. quando se analisa uma língua. pouco têm em comum com outras línguas românicas. O que se tem aí não é evolução.br/textos/90/artigo280692-1. Seria como dizer que pessoas flageladas pela subnutrição constituem uma forma evoluída da espécie humana.asp 6 . http://revistalingua. Mas não se pode confundir a evolução do idioma padrão pela incorporação consciente e sensata de usos contemporâneos da língua falada com a produção textual deficiente resultante da falta de estudo. como se poderia pensar. portanto. é involução. É evidente que o português brasileiro evolui. e havia construções que já prenunciavam as línguas vulgares.aboliu o hífen? Claro que não! Se tomarmos um texto escrito em latim medieval.com.uol. Involução Isso não representou uma evolução do latim. veremos que a gramática e o vocabulário desse período eram mais pobres do que no período clássico. na verdade. o que isso representa é a tentativa de escrever em latim por indivíduos que já não eram falantes nativos do idioma e. não o dominavam por completo. mesmo em sua forma culta. especialmente em casos de dúvida. Começo pela última. escreveu "que outro valor mais alto se alevanta"!) e Eça. boas aulas ensinam a ter dúvida na hora certa. em sociedades como a nossa. o estudo é exemplar: não só atesta o desaparecimento do antigo pronome reto. a escolaridade. resumos adequados. Não faz sentido. para verificar quais as expectativas "sociais". A heterogeneidade social implica. O conjunto formaria a "área" de português. para só citar um estudo. a) A variação e a mudança da língua. "ela". É claro que a escrita e a rescrita de textos implica consultar dicionários. "as" como objetos diretos pronominais exclusivos (condenando "lhe"(s) nessa função). a tese de que "lhe" substitui "o". conforme seus usos reais). Por que a invasão ao Iraque não seria história? E por que excluir o envio de dados pela internet? A história do português continuou após Machado ou Graciliano. outras poderiam ser destacadas. em vez de (por falta de saber do que se trata!) rir dela? Principalmente. reconhecendo que é estigmatizado. na heterogeneidade linguística . etc. c) O domínio da norma. cartas a autoridades ou a jornais. como objeto direto. tratando o restante das formas da língua simplesmente como erros. Não faria sentido tratar de língua portuguesa na escola. pois assim D. como leitura e escrita. Talvez a única verdade indiscutível em relação às línguas é que não são faladas uniformemente por todos. Mas o resultado mais interessante da consideração da variedade da língua é que ela pode ser tratada juntamente com sua mudança. A recusa em reconhecer os fatos.Ensino A língua não é dos falantes Analisar novas formas linguísticas deveria fazer parte do dia a dia de alunos e professores Por Sírio Possenti Três questões devem reger o ensino de gramática. "a". "os". e isso não é um erro. sem propor que isso seja parte da norma. Se o latim pigritia deu "preguiça". mas o uso de "ele". a idade. A melhor maneira de aprender a fazer isso é fazendo. etc. Ou seja: que soubessem escrever textos publicáveis. eventualmente. Pedro I soube das pressões de Lisboa para sua volta a Portugal. numa era de domínio da ciência (quando se tenta explicar tudo). ao menos coocorre. as novas formas da norma (visto que a forma aparece 7 . a questão da variação e da mudança da língua. Variação Em seguida. Suponha um professor de história que parasse na queda do Muro de Berlim e considerasse que o que veio depois não é história (é erro!).em todas as sociedades! Seria simplificador supor (e impor) uma única variedade. o sexo. etc. Ou Camões (que. aliás. que alunos não possam ter ideia razoável de por que as línguas variam conforme a região. mas por que não se pode aceitar o processo de formação da palavra. nem por isso se deve aceitar que "estrupo" é a forma correta. por que não se pode aceitar que regências mudaram (como as de "assistir" e "preferir")? Por que insistir nos pronomes "o". mas dos dados do português do Brasil! Aliás. digamos. dos falantes. por metátese. Aliás. b) O desenvolvimento da capacidade de análise. se um dos objetivos não fosse que os alunos tivessem. e não estudar gramática ou corrigir listas de erros. foi proposta por Mattoso já em 1957? Mais fundamental: não é uma tese nascida da cabeça de Mattoso. relatos / relatórios de viagem. Ou defendesse o correio a cavalo. razoável domínio da norma culta (até variavelmente. "a". ao fim de anos de trabalho. Ao lado delas. se. etc. gramáticas normativas e manuais de redação. Aulas de história falam de globalização. Aceitar só porque alguém disse .que "o" e "orelhudo" são adjuntos adnominais de "cão" em "O cão orelhudo". do professor). sem dar-se conta que nunca se diz "mim vou/vai". http://revistalingua. Deve haver explicação para o fato raro. as células. decorre de que o falante "analisa" "Livro para mim" e "Livro para mim ler" como casos em que "eu" está no escopo de "para". preposição que rege objeto indireto.. que as gramáticas dizem que são suas fontes? Como se pode dizer que "Tinha uma pedra" (no meio do caminho) é erro de português. Aprender a analisar (tanto estruturas de acordo com a norma quanto as descriminadas) ajuda a entender porque umas não devem ser usadas em certos tipos de texto: não é que estão erradas (a história da língua mostra qual seu lugar). ao se tentar eliminar tal "vício" (!). nem "lhe vai/vem". em vez de dizer que "orelhudo" é um adjunto adnominal de "cão" e "o" é adjunto adnominal de "cão orelhudo". as de física. como "Tenha dó de mim" e "Hoje é dia de eu pagar"? A forma ajudaria a compreender porque a norma espera "para eu sair". dependendo do tipo de texto. nunca se leva em conta construções parecidas. o DNA. o rock. é só engolir ou decorar uma norma. de átomos.embora não sejam suas criações. Por que.com. Por que as de português não podem falar de formas dialetais menos valorizadas.mesmo em textos de escritores profissionais) é equivalente a não reconhecer a internet. a observar dados com alguma sofisticação. pois estes objetos não estão na história do século 19. se tais formas estão em Drummond e Cabral . Análise Aceitar sem discutir que "Livro para mim ler" é erro porque "mim" não pode ser sujeito.br/textos/89/a-lingua-nao-e-dos-falantes-279078-1. etc. E por isso. Menos valorizadas Ser capaz de analisar as formas novas (usadas por pessoas cultas ou não) deveria fazer parte da capacidade do aluno (ao menos. assim como "Joga-se os grãos" (na água do alguidar). mas amplamente usadas pelos que tomamos por cultos? Em terceiro lugar. devem ser incluídas. é importante aprender a analisar.asp 8 . como o fizeram e fazem os melhores escritores. é renunciar às capacidade de observação. é que não são bem avaliadas. nem dar-se conta de que formas do século 16 deixaram de existir e as novas estão nos textos dos literatos. Provavelmente.uol. a imprensa esportiva tem popularizado o neologismo "medalhar" (no sentido de "conquistar medalhas": "Fulano não medalhou nas Olimpíadas").. ficar por cima). de "sobrar" no sentido de excelência. por vezes. há anos vem sendo usado. Até o vetusto Estadão o usa. ao exímio cobrador de faltas Marcos Assunção. caber. Nossas dificuldades com as ações verbais são. em sua vida.afinal. tomados da premiada série cômica Everybody Loves Raymond (no Brasil. da superprotetora e cuidadora mãe. que. pois transcendem os limites do humano. sejam canonizados. quando Marie começa a ameaçar Frank. 9 . Se podemos dizer tranquilamente que o goleiro Cássio foi excelente na final contra o Chelsea. boa amostra do falar real quotidiano nos Estados Unidos. como deseja. mimar com cuidados). como o caso de São Marcos do Palmeiras e. no caso da tradição cristã. é melhor traduzido por excelência. Tomás de Aquino. de "arrogante" e "vaidoso" para "atarefado" . exibida na TV de lá entre 1996 e 2005. o verbo "sobrar": a manchete do Terra Esportes. virtude pode ser aplicada. parcimoniosamente. digamos. "coisa ruim ou desconfortável" (Houaiss). No episódio 7 da 1a temporada ("Your place or mine?"). Por isso a extrema cautela na época em se atribuir a alguém virtude. o soberbo precisa suar para.. areté. Voltando à escala humana. No episódio 23 da 4a temporada (Confronting the attacker). go baby Dad". manifestam virtudes heroicas e operam milagres. supridas por gírias.. um autêntico virtuose (claro que ele não converte todas. Raymond Barone (Ray Romano) está cansado da intromissão. diz a Marie que. E para S. A acepção. há que se contar com a graça. o conceito grego de virtude. popular e coloquial. já falecido)..!"). Excelenciar Para significar excelência. seu marido. Já "Tiger Woods excelled" encontra-se aos milhares na imprensa. afinal sempre pode haver um São Cássio do outro lado). verbos denominais ou novos usos de velhos verbos. if you want to baby somebody. Num diálogo especialmente histriônico. o melhor referencial da teologia cristã medieval. com sentido ainda não dicionarizado. Por influência do inglês. Daí que alguns poucos goleiros. Por exemplo. Mais um par de exemplos. como: "arrasou". já não é tão fácil: não há o verbo "excelenciar" e temos de recorrer a formas menos eruditas. esse fato gramatical tem se intensificado ainda mais no Brasil. E. por exemplo: ao virar verbo. "apavorou" etc. no plano verbal. Enquanto o português tem de dizer: "Eu vou pôr isto no micro-ondas". que "bebeze" Frank (o veterano Peter Boyle. considerada mais um ideal assintótico do que algo efetivamente atingível. nada menos do que o máximo do que se pode ser. por Deus. o Delúbio e o Zé [Dirceu] não falamos". uma das Frases do Ano de 2012 foi a bombástica declaração de Marcos Valério (Folha. a força sobrenatural dada por Deus. "detonou". a virtude dirige-se ao ultimum potentiae. Verbos denominais são aqueles derivados de substantivos ("soberba" está na raiz de "assoberbar".Semântica "Excelenciou" na grande área Verbos como "sobrar" são especializados para fornecer sentidos que o léxico nem sempre fornece Por Jean Lauand Uma notável qualidade da língua inglesa é o fato de o substantivo ser também já quase automaticamente um verbo. acaba coincidindo com o clássico conceito de virtude. 3/11/12): "Só não sobrou para o Lula porque eu.: "Look. o inglês diz simplesmente: "I'll microwave it" (claro que entre nós não cabe: "Vou micro-ondá-lo"). ainda não contemplado pelo Aurélio. o marido responde com o inusitado verbo "to Frank": "Não me frankize" ("Don't Frank me"). mesmo orgulhoso. São Cássio. Raymond & Companhia). a partir de Yokohama. especializou o sentido. De fato. no glorioso 16/12/12. Marie (Doris Robert). se ela quiser "bebezar" alguém (tratar alguém como criança. foi precisamente: "Cássio sobrou na área corintiana nas bolas aéreas". chamando-o com a prosódia típica do vocativo de repreensão ("Fraank. Muito mais usado é outro novo sentido de "sobrar": atingir. especialmente para algumas virtudes. Nesse sentido. vai à USP amanhã?". favor. vizinho de prédio. "Da sua transbordância. que.uol.). perguntei: "E aí.Confundente Mas o que dizer daqueles especiais gols do Neymar ou do (absolutamente incrível) gol do Falcão em 18/12/12 no jogo das estrelas do Futsal (o vídeo no YouTubehttps://www. . para eles tão conatural como o nosso "devo ir"..). A virtude. preferência. O site de esportes internacional Sportygossip diz: "Falcao has exceeded himself with this unbelievable goal". must. no outro dia... em torno de fḍl confundem-se. Allah supera. por exemplo. a quem frequentemente dou carona. poderia me dar um cigarro". literalmente "da sua transbordância (/ virtude etc.. sobrou. esse "devo" pode ser interpretado desde a mais absoluta e imperativa decisão de ir ("Eu devo ir. e costumam ser muito mais confundentes do que as "correspondentes" ocidentais.à Sua transbordância. mas ao sobrar. certamente. Allah Assim. 38 etc. para o inglês (should. entre nós.youtube. have to.. portanto. XII. Essa acumulação semântica. mas à generosidade da alma da pessoa a quem se pede o favor. Outra sugestiva situação é a de quando num happy hour sobra um último pastel e resolve-se o impasse de a quem cabe o petisco. não se refere a uma transbordância de cigarros. que mal dão conta do básico. 60. virtude. Há notórios favores de Allah para a humanidade. no Alcorão e nos hadith.. ao transbordante. A tradição muçulmana dos 99 nomes de Deus reconhece que há ainda. na língua árabe as palavras são expressas fundamentalmente por radicais triconsonantais. outros nomes (que sobram) de Allah: e certamente o Transbordante (o Obsequioso) é uma dessas características divinas (XXVII. oferecendo-o a um dos comensais. entre outras. dirigindo-me a um colega. E com isto viemos dar com uma importante nota do conceito árabe da palavra virtude: f ḍl (faḍylah). X...com. e aí apareceu um desenho animado legal na TV e eu não fui"). talvez porque duvidem que se possa repetir. 73). permite sugestivas situações. muito confundente. 243. Como no caso de um pedido qualquer: "por favor" em árabe é precisamente: min faḍlik.. eu falei 'Devo ir'. Aplicada a Allah .)? Pois.. http://revistalingua. Sua resposta foi: "Devo ir". os comentaristas hesitam até em dar-lhe um nome. e com os devidos descontos. O leitor (e mesmo o interlocutor) não tem a menor possibilidade de saber o que significa esse "devo". transborda. não é associada a um "mero" máximo. Como traduzi-lo. Na sura IV (73). só em raríssimos casos. excede. Assim. podem ser chamados de virtuosos. Como se sabe.com/watch?v=1SGo4RC1FNM beirou os 4 milhões de acessos em 4 dias): uma indescritível carretilha de costas. ought.asp 10 . transbordar) e virtude. são prometidos prêmios divinos aos que fazem boas obras e ainda mais: "Allah lhes acrescentará algo de Sua transbordância". Não é meramente exímio: excedeu.. Um exemplo de pensamento confundente dá-se com o nosso "dever".o que sobra é para o virtuoso (/ transbordante / preferido.. que o inglês diferencia em cerca de meia dúzia de distinções.fḍl aparece no Alcorão 62 vezes. no caso f-ḍl. supposed to. as ideias de sobrar (exceder. já que os homens. senão a USP desmorona") até a mais descomprometida e frágil intenção ("Eu não falei que iria.)". mas a maioria dos homens nem agradece (II. dizendo: "Al-faḍli lil faḍyl" .br/textos/89/artigo279059-1. se limitam a citar os pronomes e advérbios interrogativos. ao formularem uma estrutura interrogativa. essas sentenças são caracterizadas por entoação final ascendente e por começarem. Para tanto.analisando cartas pessoais. pelo uso efetivo da língua. peças de teatro e também língua oral da segunda metade do século 20 . como a possibilidade de: 1) Antepor-se o sujeito ao verbo. dos linguistas holandeses Hengeveld e Mackenzie. defendida na Unesp. que ocupará a posição inicial da sentença. e também disponível para leitura no link http://bit.ly/Ws4K0H. porém.ganhou maior atenção. morfossintaxe e fonologia sendo que um tem domínio sobre o outro: a pragmática sobre a semântica e a semântica sobre os demais. com o 11 . ou seja. Nos estudos linguísticos. Quando plural Mais pontualmente.mostram um quadro plural. consequentemente também houve uma mudança na pragmática do português brasileiro. se há mudanças na ordem. os falantes. Curiosamente. Nesse modelo teórico. o ato de perguntar ainda é pouco estudado nas gramáticas tradicionais da língua portuguesa que. Pouquíssimos trabalhos de vertente funcionalista. quem. Michel Fontes observou pela pragmática. Para Michel Gustavo Fontes. junto ao constituinte interrogativo: "Onde a desgraça nos há de cobrar?". onde. como resultado de pressões semântico-pragmáticas relacionadas ao uso efetivo que fazem os falantes da língua.pragmática. entendendo o funcionalismo como o tipo de análise que privilegia os usos concretos e as situações de uso em que se insere um fenômeno. entende-se por gramática a conjugação de quatro níveis de análise . Assim.Academia Os pontos da interrogação Para mestrado na Unesp. é de se destacar que um dos mecanismos linguísticos mais produtivos na marcação de funções pragmáticas é a ordem. Na modalidade escrita padrão da língua. em geral. como cartas pessoais e peças de teatro que reproduzissem diálogos. Foi nessa brecha que Michel Gustavo Fontes elaborou a dissertação As Interrogativas de Conteúdo na História do Português Brasileiro: Uma abordagem discursivo-funcional. como essas construções se comportaram no português brasileiro dos séculos 19 e 20. semântica. pouco falando sobre o funcionamento sintático das sentenças interrogativas diretas. Tríade Especialmente sobre os casos 1 e 2. Generalizando um pouco. o autor buscou seus dados em textos de gêneros que pudessem surpreender com mais facilidade usos linguísticos da fala do século 19. também o ponto de interrogação (?) é obrigatório. etc. apresentam diferentes propósitos comunicativos. com vocábulos interrogativos (por que. como: "Quantos filhos você tem?" "Quem fez o trabalho?" "Por que você falou?" "Onde você mora?" "Você vai chegar às 7h?". ideia de que toda pergunta só serve para pedir informação não dá conta dos usos de interrogativas Por Marcelo Módolo e Henrique Braga Uma frase atribuída ao francês Voltaire diz que "Devemos julgar um homem mais pelas suas perguntas que pelas respostas". quantos. 2008). de São José do Rio Preto (SP).chamado nessa corrente teórica de "interrogativas-Qu" . exibindo até construções do português brasileiro que não são muito frequentes no atual português europeu. foi em análises de cunho gerativista que esse fenômeno sintático . 2) Posicionar o constituinte interrogativo em posição final: "E tudo leva a quê? A nada?". Os resultados a que chegou o autor . que não se limitam só a pedidos de informação. o propósito da dissertação foi descrever a estrutura das interrogativas de conteúdo. no que tange aos mecanismos estruturais de construção e codificação das interrogativas de conteúdo. 3) Clivar (colocar "é que") o constituinte interrogativo em posição inicial: "Por que é que a agência há de cobrar e eu não?". Sob a ótica da Gramática Discursivo-funcional (GDF.). assim nomeadas por Mackenzie (2008). trataram com profundidade o assunto. quase sempre. br/textos/89/artigo279081-1. rapariga.360): "Falante 1: Onde é que elas estão?.constituinte interrogativo no início ou no final das sentenças. que tornam o ato de perguntar mais complexo e saboroso para os estudiosos da linguagem. Retóricas São aquelas com as quais o falante não necessariamente busca uma informação nova no conhecimento do seu ouvinte. supondo que ele também desconhece a informação solicitada. Aonde está tua mãe? Aninha . são marcadas por uma multifuncionalidade de usos. Conforme exemplo de Michel Fontes (carta pessoal do início do século 20): "Um afetuoso abraço para os teus. com várias frentes e sugestões em aberto. assumindo seu desconhecimento. direciona-se ao ouvinte. retóricas ou meditativas.. desconhecedor da informação posta sob interrogação.. O falante antes se utiliza da estrutura interrogativa como um mecanismo argumentativamente saliente de transmitir uma informação nova ao ouvinte. um beijinho para a Hilda.Está lá dentro preparando a jacuba.) onde estará o pacote?".com. indo além do mero jogo com palavrinhas e entoações. Meditativas As perguntas meditativas se dão quando o falante. http://revistalingua. as interrogativas de conteúdo podem ser típicas.. O trabalho é rico. o autor mostra que a tradicional e comum associação entre interrogação e solicitação de informação não dá conta da real funcionalidade das estruturas interrogativas na língua portuguesa." No português falado do século 20 (SP .Adeus. Com essa tríade tipológica. No teatro do século 19 (O Juiz de Paz na Roça..Diálogos entre dois informantes . que podem servir a diversos propósitos comunicativos e. de Martins Pena): "Manuel João . Os três tipos de perguntas Típicas Usadas em momentos da interação em que o falante. e para você minha santa que mandarei? aceita um beijo com toda a força de meu amor".. pede ao ouvinte (detentor desse saber) que lhe forneça a informação nova. Conforme exemplo de Fontes (carta pessoal do século 19): "Post Scriptum No mesmo pacote de Cartas escrevi uma ao meu amigo nosso amigo vosso Tio (. assim..asp 12 . Falante 2: No Fernão Dias em Pinheiros".uol.) É esquisito! Nada eu perco (. de início pelo constante intercâmbio cultural entre a colônia e a metrópole (a elite brasileira ia estudar em Portugal. Some-se a isso a distância entre a própria língua culta brasileira e a europeia. Até então. é preciso reconhecer que nosso português também evoluiu consideravelmente ao longo do tempo. Tanto que os mais conservadores deploram o fato de o brasileiro não saber falar português (considerando-se. que as diferenças entre as variedades brasileira e lusitana são maiores que as do inglês britânico e americano e. que a distinção entre as modalidades oral informal e escrita formal é maior no Brasil do que em outros países. já que aqui não havia universidades). a alternância r/l. é claro. não há como negar. uma espécie de koiné dos vários dialetos tupi. permitindo a intercompreensão entre todos os brasileiros. em grande parte por efeito da deriva.Lógicas A vibração do idioma brasileiro Mantemos a identidade da lusofonia. em segundo. com a literatura valorizando usos populares e palavras indígenas e africanas. propõem que o português brasileiro tem uma dupla origem: de um lado. negros de diversas etnias. No entanto. era natural que adotassem a língua dos nativos na comunicação cotidiana. uma espécie de crioulo de base portuguesa falada por negros. já se dava em português medieval. como em "framengo" por "flamengo". Vários estudiosos. temos de revisitar a história da língua. em primeiro lugar. embora estrangeiros já estudem a variante brasileira como uma língua em separado Por Aldo Bizzocchi Das línguas que têm expressão escrita (uma minoria. de outro. depois pela relusitanização do Brasil com a transferência da família real para o Rio de Janeiro em 1808. Mas se o português brasileiro. apenas 4% do total). já que não houve tempo suficiente para uma dialetação mais acentuada. A partir de então. finalmente. índios e brancos pobres até o século 18. o idioma predominante em todo o território nacional era a chamada língua geral ou língua brasílica. a chegada da escola e dos meios de comunicação de massa impediu de vez a fragmentação linguística. não chega a ser um idioma autônomo. o português quinhentista dos primeiros colonizadores. Foi só quando o marquês de Pombal proibiu a língua geral e impôs o português como idioma oficial do Brasil que este prevaleceu. Nosso português culto manteve-se afinado ao padrão lusitano até princípios do século 19. e temos a sensação de falar um outro idioma. que se perderam por causa da evolução mais rápida que a língua sofreu do lado de lá do oceano). Diferenças Para entender por que isso acontece. passou-se a legitimar uma variedade autenticamente brasileira. isto é. é o padrão culto). dentre os quais Dante Lucchesi. com a Independência e o Romantismo. De outra parte. seja o culto ou o popular. Este parece ser o caso do português brasileiro. há desde aquelas em que praticamente se fala como se escreve (caso do alemão) até aquelas em que a diferença entre a fala corrente e a escrita formal é tão grande que é quase como se fossem dois idiomas distintos. O desbravamento relativamente recente do interior também teria contribuído para essa uniformidade. Diversos teóricos afirmam que o português brasileiro tem um caráter conservador em relação ao europeu (nossa língua manteria até hoje traços do português lusitano dos séculos 16 e 17. Evoluções Sendo os brancos uma franca minoria. embora no Brasil possa ser um fenômeno multifatorial). que os modernistas de 1922 chamavam de língua brasileira. a continuidade de certos processos evolutivos (por exemplo. 13 . membros de várias nações indígenas e brancos de pouca ou nenhuma escolaridade provavelmente se comunicavam num português veicular de gramática simplificada. que "português". da Universidade Federal da Bahia. nesse caso. até meados do século 18. léxico repleto de africanismos e indigenismos e pronúncia fortemente afetada pela fonética nativa desses falantes. A constante migração de escravos dentro do território brasileiro por força do comércio escravista teria garantido certa homogeneidade à nossa língua. a queda de sílabas postônicas ("fosfro".Intercompreensão Enquanto isso. se pensarmos no ensino de português para estrangeiros. http://revistalingua. tendemos a construir a interrogação de forma clivada. Traços peculiares Como resultado. "estomo"). o português popular seguia vida própria. mantiveram-se aqui. há uma gramática portuguesa e outra brasileira. Inovação padrão Os tempos contínuos com gerúndio em lugar do infinitivo ("Estou fazendo" em vez de "Estou a fazer"). à ênclise. Ainda que muitas inovações ocorridas no Brasil possam ser fruto de deriva e. é o pronome objeto que tende a ser omitido. a já mencionada alternância entre r e l (chamada "rotacismo"). no popular. isto é. podem ter-se consolidado por influência do tupi. que se mantém apenas no início da oração. já estar embrionárias no português herdado da metrópole.br/textos/89/artigo279083-1. já que figura em nossos melhores escritores e nos principais jornais e revistas do país. eu canto. o pronome sujeito deixa de ser oculto para vir sempre explícito. Ainda como o francês e o inglês. como o francês ou o inglês. sobretudo nos infinitivos. enquanto os portugueses dizem "Procurei o livro. nosso português está se tornando uma língua de tópico (há dois tipos de construções sintáticas: sujeitopredicado e tópico-comentário). o carro dela. vocês/eles cantam.uol. Nada disso pode mais ser considerado erro. em vez de "O ideal pelo qual lutei". desapareceu já faz um bom tempo a distinção entre o presente e o pretérito perfeito na 1ª pessoa do plural dos verbos da 1ª conjugação ("cantamos" x "cantámos"). a lusitana. a colocação pronominal brasileira tende à próclise. evidentemente. cê/ele/nós/a gente/cês/eles canta). perderam-se em Portugal. Algumas das inovações introduzidas pelo português brasileiro já se tornaram padrão em textos cultos contemporâneos. Isso. Por exemplo. você/ele canta. vem reduzindo a conjugação verbal (eu canto. nós cantamos. correntes em português quinhentista.com. Como no inglês. Consequentemente. podem igualmente ter resultado da miscigenação linguística aqui verificada. "arve". é possível dizer tanto "The ideal for which I fought" quanto "The ideal I fought for"). embora alguns gramáticos ainda torçam o nariz para certas construções. o pneu furou". deve ter deixado marcas profundas na nossa fonética. a monotongação dos ditongos ei e ou para e e o. esta não corresponde bem ao uso culto atual de nenhum dos países de fala portuguesa. Assim. o português brasileiro falado é hoje uma língua com traços bem peculiares. nós dizemos "Eu procurei o livro. Diferentemente do que se passa com outras línguas transnacionais. mas não o encontrei". o único elemento no plural é o artigo "os". em compensação. especialmente quando regido de preposição. Por isso. Já uma estrutura tópico-comentário equivalente seria: "A Maria. Língua tópica Além disso. como o créole do Haiti ou o cabo-verdiano. Outra característica é a progressiva perda da flexão. portanto. duplicando o verbo em lugar de inverter verbo e sujeito. Por isso. Numa estrutura do tipo sujeito-predicado. sintaxe e vocabulário. se diz: "O pneu do carro da Maria furou". embora latentes no sistema do português.asp 14 . Este último tipo de construção é mais comum em línguas asiáticas como o chinês e o japonês do que nas europeias. Como o francês e o inglês. Se o "crioulo" de que falei não chegou a ser uma língua independente. predominante no português europeu e na norma culta. dizemos "O ideal que eu lutei" (em inglês. do quimbundo e do ioruba. costumamos perguntar "O que é que ele diz?" em vez de "O que diz ele?" (compare com o francês "Qu'est-ce qu'il dit?" e o inglês "What does he say?"). No Brasil. Em "Os menino pequeno brinca na rua". a perda do r final. quanto à gramática normativa tradicional. mas não encontrei". há uma tendência a eliminar o pronome relativo das orações adjetivas. isto é. que exercem o papel de preposições. tornaram-se elos de ligação entre outras palavras ou mesmo parte integrante delas. Exemplos visíveis em português são adjetivos como "conforme" ou "segundo". são meras ferramentas na formação de frases e textos. votar) ou psíquicos (felicidade. Já as palavras gramaticais são a razão de ser das gramáticas. isto é. tem-se em qualquer fase histórica de uma língua palavras que ainda não se tornaram totalmente gramaticais. Em grego. determinadores (artigos. "antigo". expressam conceitos lexicais muito claros ("grande". Palavras lexicais expressam conceitos. as vazias são o cimento. com o tempo. Exemplo semelhante é o do inglês man. o qual em latim também significava "modo. ou "vazias". e as gramaticais. No entanto. o ser humano usava muito poucas palavras gramaticais. Palavras vazias nada significam em termos de pensamento. guardando 15 . "coisas" que podemos pensar. Se as palavras cheias são os tijolos do discurso. se não a totalidade. Esses conceitos podem ser fenômenos da natureza (montanha. Palavras lexicais são aquelas que apontam para fora da língua. paleo-. "descrição"). as gramaticais são "vazias". Acredita-se que grande parte. eram palavras cheias que formavam compostos. Elas cumprem certas funções sem as quais é impossível falar (de nada adianta conhecer milhares de palavras e não ser capaz de formar frases). mas na passagem de um idioma ao outro. Já as palavras gramaticais apontam para dentro da língua. representam o mundo à nossa volta. o funcionamento do cérebro e a aquisição da linguagem pela criança parecem indicar que.aliás. etc. demonstrativos). também faz isso. o estilo telegráfico. ou locuções como "em relação a". que funcionam como conjunções.Lógicas O cimento das palavras Enquanto palavras lexicais são "cheias" e representam os tijolos da linguagem. mas atua como sufixo formador de profissões em palavras como milkman (leiteiro = homem do leite). conjunções). fatos sociais (festa. verbos e adjetivos). mas são o cimento articulador do discurso Por Aldo Bizzocchi Há dois tipos de palavras: as lexicais. processos e atributos (grosso modo. maneira". Passado Estudos científicos aprofundados sobre línguas pré-históricas. primitivamente. postman (carteiro = homem do correio). apenas agem sobre as palavras cheias como conectores (preposições. greve. pouco a pouco foram surgindo na língua essas palavras e também outros elementos gramaticais. substitutos (pronomes). que significa "homem". que nada mais é que o substantivo "mente". por economia. chover). como os afixos e as desinências. os quais o psicólogo alemão Karl Bühler dividiu em objetos. Muitos elementos de composição de origem grega. e ainda sufixos como -mente (de "totalmente"). nos permitem pensar a realidade e dar conta da nossa própria vivência. preposições e conjunções . ou palavras "cheias". essas três categorias correspondem ao que a maioria das línguas chama de substantivos. hipotenusa). artefatos humanos (automóvel. Gramaticalização Como a gramaticalização transforma progressivamente palavras cheias em vazias. desses elementos eram originalmente palavras lexicais que. esses compostos foram importados pelo português sem que cada um de seus componentes fosse uma palavra em nossa língua. escrever). se gramaticalizaram. -logia. mas não são palavras autônomas (por isso são também chamadas de semipalavras). a gramaticalização não se deu nem em grego nem em português. como arqui-. A exceção era talvez um ou outro pronome pessoal ou demonstrativo (nos primórdios da linguagem talvez nem isso). Neste caso. "discurso". Palavras lexicais são a alma dos dicionários. etc. -grafia. Muitos idiomas ainda hoje dispensam artigos. "há" permite flexão de tempo ("Havia três anos que não o via") e comuta com "faz". quer livros. seja ele histórico. portanto.br/textos/88/artigo277107-1.certos resquícios de lexicalidade.com. quer". que equivale a "ou. dinâmica. se a frase for "O importante é que a criança leia ou livros ou gibis".asp 16 .) Se "há" é verbo. "há" seria uma preposição? Zona nebulosa Outro caso curioso é o de "seja. sejam gibis". a possibilidade de ser flexionadas. sejam livros. e conjunções não se flexionam.uol. pode dar conta perfeitamente das particularidades de seu objeto. http://revistalingua. Se hoje há na língua palavras inequivocamente lexicais e outras inequivocamente gramaticais. Se o papel da ciência é classificar e. Finalmente. "De três anos para cá não o vejo". a concordância é impossível. "quer. E isso gera certos impasses na análise linguística. "há" é verbo ou preposição? De um lado. seja". Já "quer" não concorda ("O importante é que a criança leia. gerativo ou qualquer outro. "livros". quer gibis"). Na frase "Há três anos (que) não o vejo". Como a língua é viva. nesse caso. nenhum elemento permanece estático numa única função. comuta com preposições: "Não o tenho visto por três anos". logo. funcional. fica claro que nenhum modelo teórico. como. e o sujeito de "quer" esteja oculto (mas. "sejam" concorda com seu suposto sujeito. ou". móvel. há uma zona nebulosa entre ambas que desafia os linguistas e embaraça os professores. estrutural. "desde": Da tre anni non lo vedo. Mas também é possível considerar que o período é simples e que "há três anos" é adjunto adverbial de tempo. distribuir em categorias estanques entidades multifacetadas. talvez porque aqui "livros" e "gibis" sejam objetos e não sujeitos. a mesma construção utiliza respectivamente as preposições da e seit. pois "ou" é conjunção alternativa. em que "há três anos" é a oração principal e "que não o vejo" é a subordinada. "gibis". quem quer?). Na frase "O importante é que a criança leia. de outro. (Em italiano e alemão. Seit drei Jahren habe ich ihn nicht gesehen. então o período é composto por subordinação. por exemplo. faz "turismo": passa de uma língua A para uma língua B e volta à língua A com modificações.-quente" é decalque do inglês hot dog. foot-ball). de um registro ou de um falar típico dentro da mesma língua (como "mixar" ou "mixaria". que em francês significa "boi". Decalque O empréstimo. a expressão "outdoor". não tem esse sentido em inglês. foi emprestado ao inglês. chauffeur). quando proveniente de outra língua (como "mantilha". é decalque do inglês 17 . O português "feitiço" deu origem ao francês fetiche. "salvar". da gíria dos ladrões. O que nós denominamos "out-door" chama-se em inglês billboard. O empréstimo é uma forma ou expressão linguística que uma língua aceita e adota de outra.-relâmpago). Assim. termo com que se designa a tradução literal. usada como invocação para reforçar uma afirmativa. mas. com roupagem vernácula integral. em que outdoor significa "ao ar livre". "bife"). o segundo opera de forma a permitir a entrada na língua de empréstimos e estrangeirismos. O francês rendez-vous significa "encontro". "cachorro. Mas termos como "balé" (fr. Por exemplo. que como "blitz" usamos para designar uma batida policial feita de surpresa. no século 15.Morfologia A montanha-russa dos idiomas A diferença entre estrangeirismos e empréstimos linguísticos revela a qualidade das relações com outros povos Por José Augusto Carvalho Há duas forças na língua que. que voltou ao francês como bifteck (em português. muitas vezes. "menu" (francês). comida na gíria militar). porque já estão incorporados à língua. entrou na língua francesa como "bigot". na língua A. Assim. se opõem simultaneamente: o espírito de campanário (esprit de clocher) e o espírito de intercurso. Um tipo especial de empréstimo é o decalque. que designava os ataques rápidos e inesperados dos alemães na II Guerra. O substantivo boeuf. palavras como "habitat" (latim). "futebol" (ing. ballet). com o sentido de "guardar num arquivo do computador". usada por falantes do português para designar o quadro em que se fazem anúncios em via pública. com o sentido de "carola". "chofer" (fr. Nem sempre o estrangeirismo adotado numa língua tem o mesmo sentido na língua de origem. de uma palavra ou expressão de uma língua B. enquanto aquele já é do domínio de seus usuários. às vezes com a subversão do significado tradicional na língua A dos elementos que constituem a tradução. ou "boia". quando proveniente de um dialeto. segundo Saussure. de origem castelhana). e não batida policial. "chutar" (ing. A expressão bi Gott ("por Deus") do médio alto-alemão. na língua de origem. se origina da expressão Blitzkrieg (guerra. shoot) são empréstimos. que voltou ao português com outro sentido. O primeiro visa a assegurar a estabilidade da língua diante de influências estrangeiras. sem a conotação pejorativa de seu uso em português. que o adotou como beef na palavra beefsteak (fatia de boi). O empréstimo pode ser externo. O termo alemão Blitz. pessoa muito devota. ou interno. O que distingue o empréstimo do estrangeirismo é que este ainda não se integrou à língua. "flashback" (inglês) e "blitz" (alemão) são estrangeirismos. Blitz significa relâmpago. lucivelo (abajur). numa confusão condenável. uma atração alemã em parque de diversões. perceber". se "gol" mantém a vogal fechada é porque não é palavra portuguesa. é um decalque do alemão Klassenkampf. como "mulherão". "gol" é apenas a adaptação gráfica do inglês goal. "balípodo" ou "ludopédio" (neologismos de Castro Lopes para substituir o ing. é decalque do inglês realize. como "protofonia" (ouverture) ou "convescote" (piquenique). que designa. Alguns gramáticos e o dicionário Houaiss. como "criança". http://revistalingua.uol. e gênero é distinção gramatical. pode designar pessoa do sexo masculino. Cozzi foi mais feliz com seus neologismos: escanteio (corner). já que todas as palavras oxítonas terminadas em -ol. "autoestrada" (do fr. e a atração ficou conhecida como montagne russe (montanha-russa). Às vezes o decalque nasce de uma tradução inadequada. postularam a existência de um plural "gois". Mas. A maioria foi rejeitada: cinesíforo (chofer). auto-route) etc. apenas virtual e hipotético. é a palavra "gol". e o plural "gols" é legitimado.).com. etc. porque "gênero" nunca existiu em português como sinônimo de sexo (sexo é distinção semântica. têm a vogal tônica aberta (lençol. Os campeões de neologismos no Brasil são Castro Lopes e Oduvaldo Cozzi. Futebol Um estrangeirismo de uso no Brasil. uma palavra sempre do gênero feminino. terçol. A utilização de "gênero" como sinônimo de "sexo" é decalque do inglês gender. o nome Rutsch foi indevidamente traduzido para o francês como se fosse o adjetivo russe. Neologismo é uma palavra inventada (ou com sentido novo). ludâmbulo (turista). apenas parcialmente adaptado ao vernáculo. Na expressão Rutschbahn ou Rutschberg. falta (foul). no futebol. o conflito entre classes sociais ou entre o proletariado e a burguesia.br/textos/88/artigo277090-1. que significa montanha (Berg) de escorregamento (Rutsch). em português. foot-ball). Outros decalques: "quebra-luz" (do fr. festimana (matinée). Pena que "tento" (goal) e "arqueiro" (goalkeeper) tenham tido pouca aceitação.save. etc. com o sentido de "entender.asp 18 . equivocadamente. abat-jour). isto é. "realizar". demostasia / operinsurreição (greve). sky-scraper). Poucos neologismos de Lopes conseguiram alguma aceitação. penalidade máxima (penalty). no marxismo. Equívoco A expressão "luta de classes". impedimento (off side). por exemplo. futebol. e vice-versa: uma palavra do gênero masculino. "arranha-céu" (do ing. designa pessoa do sexo feminino). Na verdade. zagueiro (back). Palavra-ônibus Com tais matizes e situações de uso. Há quem diga que todas as formas da língua apresentam polissemia. como "coisa". coiso. indefinidos e/ou abstratos (1). nos dicionários escolares da ABL e no Luft. locução. ao menos dentro da economia e fugacidade que caracterizam a comunicação em língua portuguesa. "cara". etc.o que seria impossível. em textos até de cunho científico ou veiculados pela internet. não dando. porém. são indeterminados. gramaticais. na linguagem popular: coisinha. à expressão de numerosíssimas ideias. polifunção. por outro lado. como substitutas natas de todas as demais.e mesmo formal (ver quadros). "camarada". A polissemia é a multiplicidade significativa de uma mesma palavra. expressão ou frase. "tipo". né?". coisar. coisamente. como propriedades de certas palavras. seja na linguagem escrita informal . outros são genéricos ou mais ou menos genéricos (3) e alguns específicos (9. de mais de 40 sentidos e usos registrados no verbete "coisa" (sing. "aí. no momento. e pl. que sugere. As palavras-ônibus servem para tudo. todas as ideias apreciativas. praticamente. Sentidos A noção de palavra-ônibus leva-nos à lembrança das noções de polissemia. legal. prestando-se dentro de uma certa faixa. 10). cujas acepções são tantas que não comportam delimitação semântica formal (p. às vezes." Já Silveira Bueno explica que "algumas palavras ficaram.). Ex. Arrolamos. praticamente insubstituível. que exprimem. "negócio" etc.: troço. "coisa" é. a seguir. bacana)" e Aurélio. legal. certos usos são tachados 19 . Nesse sentido. em português. mas reportamo-nos aos casos que chamam maior atenção. "sujeito". ex. A palavra e seus derivados despertam curiosidade e múltiplos.Léxico A "coisa" é uma coisa A onipresença e a variedade de sentidos de uma palavra-ônibus que virou fenômeno na língua portuguesa Por Hudinilson Urbano O que seria da conversação espontânea e até da comunicação escrita formal sem a "coisa" (ou cousa ou. seja em situações informais da linguagem falada. descoisar. a impressão de cacoetes como: "tipo assim". variados e até eufemísticos sentidos em diversas situações. um pequeno exemplário de sentidos. coisificar)? O vocabulário relativamente restrito da linguagem popular justificaria esse uso aparentemente desregrado e insubstituível da palavra." Nesse sentido são palavras "tapa-buracos" ou "pau-pra-toda-obra". "aquela que tem larguíssimo número de acepções. pragmáticas. em sua maioria. usos e usuários.: bacana. Elas fazem nossa comunicação diária fluir com mais facilidade e eficiência. As mais comuns são "coisa". prendendo-se a um leque de questões linguísticas. pois evitam que a todo momento tenhamos de ser criativos . os sentidos e usos. cujos sentidos não ocorrem. polidiscurso. Houaiss entende que "palavra-ônibus" é "quase sempre de uso coloquial. coisíssima. a quem estiver falando. noções como poliuso. Ela tem infinitos e ilimitados usos. Os 40 sentidos da "coisa" Há uma consolidação simplificada feita nos dicionários Aurélio e Houaiss. mas a vemos usada sobejamente pelos letrados. "coisa" lembra as chamadas "palavras-ônibus" ou passe-partout. No resumo abaixo. mesmo verbete: "Espero que tudo corra bem"). Abafar a coisa.) suspender a cousa dos outros. Há no português de Portugal 3. as coisas. coisa. Em outras línguas O fenômeno de uso de "coisa" deve ser universal. Este dicionário arrola palavras aparentemente inocentes. Coisa por onde toda a gente começa. em particular demonstrativos como "algo" (= alguma coisa. 2) Sequência ou série de coisas. apuradas entre os mais de 23 mil substantivos de "sentido geral. contracção. 20 . prep. conjunto dos negócios do Estado.. "Tomou uma dose exagerada do medicamento e teve uma coisa".900 ocorrências da palavra "coisa". jur. negócio. concreto. coisa comercial. coisa pública. "É coisa séria"." (José Lins do Rego. 6) Abafar (Bock): (. de Preti): É coisa como diabo: artigo. além de provérbios. valores: "Teve que vender as coisas". 4) Interesses próprios.500 da fala carioca do Projeto NURC. referindo-se ao julgamento do senador Demóstenes Torres (20/7/12). 6) O que acontece. pensamento.como brasileiros. "Não veremos palavras. de natureza corpórea ou incorpórea: "as coisas do mundo". principalmente mulheres. 1) Tudo quanto existe ou possa existir. M. mas todas conotam maliciosamente um segundo sentido específico obsceno. de maneira que o marido não saiba.. revela: Chaque chose en son temps. uma única coisa. Quando "coisa" define outras palavras A palavra "coisa" é usada até no interior de muitíssimos outros verbetes de nossos dicionários. contar com a realização de coisa desejada. tema. 1) Rolo (Aurélio): Qualquer coisa de forma cilíndrica um tanto alongada. 3) Mono (Houaiss): Único.. um rór de troços. 9) (pl. concreta. trem: "Traz esta coisa aí para eu examinar!". como no verbete "esperar": contar com realização de algo) e "tudo" (= todas as coisas. mas substitutos pronominais. ou não se quer declinar. "todas as coisas do Universo". Une place pour chaque chose et chaque chose à sa place).. evento. leve suas coisas daqui". "Que coisa existirá entre eles?". sendo que "algo" pode parecer mais expressivo do que "alguma coisa"..) coisa que vem depois dos beijos. H. populares. 3) Aquilo que se pensa. Riacho Doce). 5) A (Dicionário Moderno. coisa fungível. 7) Abandono (Bock): (. Gir. só. 8) Bras. de interesses do país. gíria. apud Linguagem Proibida. Órgãos genitais externos de ambos os sexos: "e deixara-se possuir pelo amante que lhe beijava os pés. = troço. solitário. negócios. como na frase de um leitor do DSP: "Há algo de pobre". em relação ao que é abstrato ou assim considerado: "Importam mais coisas que as palavras". um só ser. Duarte Marques as comparou quantitativamente com as 3. caso: "A coisa se deu enquanto ele dormia". 1995). fato concreto. ocorrência. 2) Esperar (Aurélio): Ter esperança. de 1903. E "troço" é qualquer objeto cujo nome não importa.): Bras. "Foi assim que se deu a coisa". apuradas no Projeto do Vocabulário Fundamental português (IFPF). "Por favor. etc. propriedades. 10) Como termos técnicos. 4) Esto (Luft): 1) Sucessão de coisas. sem haver recurso contra (res judicata pro veritate habetur). 2) Realidade. ou não se sabe. altamente polissêmico. de Bock. os seios.: coisa julgada: o que foi resolvido em definitivo em última instância. francês (Les choses de la vie (as realidades que a vida cotidiana. 7) Assunto. etc. ALGO Às vezes não ocorre a palavra "coisa". mas coisas evidentes". sem vínculo com temas específicos" ("Léxico de alta frequência na língua portuguesa". matéria: "A reunião era para tratar de coisa importante". muito usado em perguntas: Cosa? (Che cosa é questo? Por che cosa? Cosa cosia?). Pop. 5) Bens. italiano (cosa. frases feitas. ao menos como sugere o levantamento que fizemos em espanhol (cosa). ocupações: bem material de valor ou não: "Cada qual trata de suas coisas". ideia: "Passavam-lhe pela mente coisas disparatadas". ditados e frases feitas. O SLA Funk de Fernanda Abreu (doutorado em linguística e língua portuguesa. pobreza e trabalho intelectual". 4. 2007: "O new funk possui um apelo erótico tão grande entre os jovens de uma geração cuja sexualidade explosiva se tornou. 10) Não dizer coisa com coisa: falar desencontradamente. cerca de ("Daqui até lá. Araraquara. o bom caráter moral e a boa vontade".) Essas três coisas são: o bom-senso. do filósofo alemão Josef Pieper: "mistérios do próprio ser. 5) Dell Hymes. de Antenor Nascentes. 1966). cheio de dedos. RJ/SP: Freitas Bastos. 6. no verbete "coisa". 8) As coisas estão pretas: a situação está difícil. 22/4/12). incompreensível. 22/4/12). 3) Carlos Vogt: "Trabalho. em microtextos (e até títulos) de nível científico. As ocorrências exemplificam usos genéricos. Há excertos com repetições da palavra "coisa" (três vezes em 2. 1) S. passando por sentidos bem genéricos (2). 8) Michel Foucault é autor de As Palavras e as Coisas. referência ou identificação de uma pessoa (. 5. é coisa de meia hora"). 7) Luciana de Paula. advérbio. exigente. pretensioso. Tomás de Aquino: "As essências das coisas não são ignoradas. isto é.. enfim o dinheiro coisa substitui o dinheiro-moeda". 7 e 9) ou a posteriores (catáforas: 6). Como atesta o Tesouro da fraseologia brasileira (2 ed. implicante. duas cada em 6 e 7). 12) Uma coisa é uma coisa. no mistério que consiste em que alguma coisa é" (Jornal da USP. 6) Coisa que o valha: semelhante.Em construções da língua "Coisa" é componente de locuções. O espírito da coisa A palavra "coisa" assumiu tantos valores que cabe em quase todas as situações cotidianas A palavra "coisa" é um bombril do idioma. graças ao contexto ou cotexto. como o período composto de duas frases (12). 7 e 9). o dinheiro-arroz-e-feijão. Os segundos ganham sua especificidade. 8 e 10) e específicos (3. A natureza das coisas: gramaticalmente.) é apenas uma das coisas que esses termos fazem". outra coisa é outra coisa. 5. feitiço. 4) Antonio Cândido. há perigo. 5) Coisa feita: bruxaria. é interjeição de surpresa ou de lamento. dentre os mais de 30 sentidos e usos: 1) Que coisa!: conforme a entonação. "coisa" pode ser substantivo. em A Língua que Falamos: "a denominação. 7) Coisa sem pés nem cabeça: monstruosa.". talvez. FCL/Unesp. 2) O que é acadêmico?. há muito rigor." (Jornal da USP. 4) Coisa do arco da velha: extraordinária. mais ou menos genéricos (1.. adjetivo. caso em que se assemelham a pronomes. sobre o romance I Malavoglia (1881). 6) Aristóteles: "Há três coisas que inspiram confiança na personalidade do orador (. Também pode 21 . Em textos cientificos O uso de "coisa" se propagou em outras fontes fora dos dicionários. em Os Pobres na Literatura Brasileira (Brasiliense.. expressões. 1983): "O dinheiro-ferro. reportando-se a referentes anteriores (anáforas: 3. equivalente. o dinheiro-papel. 11) Cada coisa no seu lugar / Pôr as coisas no seu lugar: restabelecer a verdade. mais ou menos genéricos (3) e específicos (5). 2. É o tipo de termo-muleta ao qual a gente recorre sempre que nos faltam palavras para exprimir uma ideia.. As construções a seguir compreendem de interjeições (1) a frases complexas. 9) Cheio de coisas: com luxos. 5. observa um fenômeno semelhante apontado por Carlos Vogt: "o dinheiro parece transitar do mundo abstrato do valor para o universo denominado das coisas naturais". de Giovanni Verga. a única coisa que lhe restou. apud Maria Célia Lima-Hernandes. nos quais a palavra foi usada sempre com naturalidade. 2) Que coisa? 3) Coisa de: aproximadamente. asp 22 . o bloco carnavalesco Segura a Coisa tem um baseado como símbolo em seu estandarte. é o sujeito estribado. Em Minas Gerais. o eleitor pensa: "Agora a coisa vai". equivale ao ato sexual. registra o Aurélio. E tal e coisa. Para o pobre. e autor de Coisas do Português. O cheio de coisas é o indivíduo chato. pós-graduado em Comunicação pela USP e em Marketing pela UFRJ. logo se torna um coisa qualquer. a coisa está sempre feia: o salário não dá pra coisa nenhuma. Desde Cabral. Nunca vi coisa assim! Coisa de cinema! Coisa também não tem tamanho: na boca dos exagerados. a coisa muda de figura. pega os trem que lá vem a coisa!". Se as pessoas foram feitas para serem amadas e as coisas para serem usadas. Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. A coisa pública não funciona no Brasil. Menos o trem. outra coisa é outra coisa. Por isso. Coisa boa é a Juliana Paes. é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Quando se elege. faça a coisa certa e não esqueça o mandamento: "Amarás a Deus sobre todas as coisas". "coisa nenhuma" vira "coisíssima". O cheio das coisas. E. Coisa feia! O eleitor está cheio dessas coisas! Se você aceita qualquer coisa.com. quando assume o poder. Coisa-ruim é o capeta. e coisa e tal. o trem se aproxima e ela diz: "Minha filha. Este texto é a versão resumida de "Com mil e uma utilidades" (Língua 12. seu coisinha. Gente fina é outra coisa. é claro. todas as coisas são chamadas de "trem". Uma coisa é falar.uol. Já as "coisas" nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais. você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?".br/textos/88/artigo277152-1. por que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as pessoas? Bote uma coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não são coisas. Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. E no Nordeste há "coisar": "Ô. como lá sempre há bloco mirim equivalente.ser verbo: o Houaiss registra a forma "coisificar". Em Olinda. Na Paraíba e em Pernambuco. por sua vez. outra é fazer. Uma coisa de cada vez. desculpe qualquer coisa. "coisa" também é cigarro de maconha. temos o Segura a Coisinha. Entendeu o espírito da coisa? Se não entendeu. mas. um coisa-à-toa. que lá é chamado de "a coisa". "Coisar". Devido lugar Por essas e por outras. Político quando está na oposição é uma coisa. A mãe está com a filha na estação. em Portugal. outubro de 2006: 18-20) http://revistalingua. pleno de não-me-toques. pois uma coisa é uma coisa. Francicarlos Diniz é jornalista. comer(am)." Os recursos: a) de recorrer à lembrança do perfeito do indicativo para recuperar o futuro do subjuntivo.. quando/se eu comer.". 100% de aproveitamento. o futuro do subjuntivo se confundir com o infinitivo." É caso que J. ao menos. dormir. Irregulares são os que variam pouco ou muito em relação ao modelo. O redator deveria então ter escrito: "Se o Fluminense perder todas e o Vasco tiver algo como. dando como exemplo.Dito & escrito Salada de verbo Pressa e distração atrapalham a combinação de tempos verbais Por Josué Machado O redator esportivo do jornal escreveu nota (com o título: "Ainda dá") em que escorregou no uso do futuro do subjuntivo: "Se o Fluminense perder todas e o Vasco ter algo como. a conjunção está subentendida no que se chama de elipse: "Se o Fluminense . nos verbos regulares.. a 1a pessoa do futuro do subjuntivo pode ser retirada da 3a pessoa do pretérito perfeito.. sem o sufixo -am: amar(am).. Nomenclatura Para quem esqueceu a nomenclatura desagradável. o time cruzmaltino pode tirar o título no confronto direto da última rodada. usou adequadamente o verbo no futuro do subjuntivo (perder) e.... a coincidência também ocorre. O engano se explica pelo fato de. Nos regulares. regulares ou não.. com os verbos grifados: "Se o Fluminense perder todas e o Vasco ter algo como. a 1a pessoa do subjuntivo coincide com o infinitivo "perder". introduzidas pela conjunção subordinativa condicional "se". na primeira.). b) de manter a correlação entre os verbos de orações relacionadas. de modo que o texto não saia dos dedos para o teclado sem passar antes pelo filtro do cérebro.. o time cruzmaltino poderá tirar. Com tais verbos. verbos regulares são os que seguem o modelo de conjugação sem modificações em todos os tempos e pessoas: amar. usou o infinitivo (ter). Ele ligou duas orações. Mattoso Câmara Jr. a 1a pessoa do futuro do subjuntivo coincide com o infinitivo: amar. a irregularidade pode ocorrer só na flexão ou no radical: dar. 23 . pôr. comer." Se o Fluminense "perder" e o Vasco "ter". etc. como se nota na repetição da frase. quiser.." Respeitada a correlação. e com todos os outros. ter. amares. tiver(am). etc. Só que.. em Dicionário de Filologia e Gramática: "Se eu tiver dinheiro. 100% de aproveitamento. o time cruzmaltino pode tirar o título. comprarei uma casa.. Isso ocorre também com muitos verbos irregulares. etc. poder. Correlação Não é só. O redator também se esqueceu da correlação adequada entre os tempos verbais das orações iniciais e o do verbo da oração seguinte. Só servirão de auxílio a redatores distraídos que.. amar..".. Mas não ocorre nem com o verbo "ter" nem com a maioria dos verbos irregulares. é o caso de "perder". É a dúvida que nos leva a parar um pouco para pensar. quando/se eu amar. comer. Embora irregular. na segunda. Se houver filtro e se o cérebro não estiver obliterado..) e o Vasco tiver (. fugir... e (se) o Vasco. mantiveram a bênção da curiosidade. na segunda. a frase ficará: "Se o Flu perder (.. classificaria de "convicção de não ocorrência para a correlação permanente ou futura". Com alguns verbos irregulares. São iguais.uol. no futuro do subjuntivo.asp 24 . mas se for para a cadeia.br/textos/87/artigo276219-1.Formação do futuro do subjuntivo Alguns exemplos. com verbos regulares e irregulares. A distinção entre um e outro só se faz pelo contexto: "Se eu for deputado. todas as formas desses verbos iniciadas por "F": pretérito mais que perfeito (fora) e pretérito imperfeito do subjuntivo (fosse). ficarei triste. ficarei rico. portanto. aliás." Infinitivo (3ª pessoa do plural) Andar Comer Dormir Pôr Tiver Ser Ir Pretérito perfeito Andar(am) Comer(am) Dormir(am) Puser(am) Tiver(am) For(am) For(am) Futuro do subjuntivo Andar Comer Dormir Puser Tiver For For http://revistalingua. Note-se que ser e ir têm as mesmas formas no pretérito perfeito e.com. são. de certo modo. muitos termos ingleses de origem francesa retornaram triunfalmente à sua pátria de origem. dentre muitos outros. como eles surgiram no inglês? É aí que vem a grande surpresa: tais vocábulos foram tomados de empréstimo ao francês! Na Idade Média. Mas. 25 . remetem à antiga palavra francesa tablette. porque eles entram em nossa língua sem pedir licença. séculos depois. E tal influência fez com que os verbos esporter ou desporter ("distrair"). Esse fenômeno do retorno de uma palavra à própria língua. (Como traduzir vernissage. não sem receber. Até os populares tablets. é quase impossível pô-los para fora. "tabuleta". assim chamados na França. Com a decadência do francês como língua hegemônica e concomitante ascensão do inglês a partir do século 19. performance. budget. Por isso. essas palavras caíram em desuso em francês.isto é. Os substantivos pudding. salvo no caso de modismos inconsequentes. é o que se chama tecnicamente de retroviagem ou retroversão. na verdade. No francês Os termos franceses sport. Um pouco de conhecimento etimológico (o verdadeiro. Em princípio. interchanger e interview parecem anglicismos. A retroversão se dá. budget e interview também ocultam numa grafia exótica os antigos vocábulos franceses tenez. chegassem ao inglês. em geral. línguas de países política. econômica ou culturalmente hegemônicos. não? E. tennis. e. precisamos dela. nosso léxico estaria no patamar das 10 mil palavras das línguas primitivas. aqui e ali. porque. Seus derivados esport/desport ("distração. Tempos depois. não fossem os termos emprestados de outros idiomas. as vaias dos puristas. é porque. são inúteis as iniciativas de certos puristas em combater os estrangeirismos. era a língua dos francos e não a dos bretões que dominava a Europa. tennis. Pior ainda quando os formadores de opinião condenam por estrangeira uma palavra que é originalmente vernácula. depois que entraram. palavras do nosso idioma transformadas por outro e importadas em nova forma Por Aldo Bizzocchi Palavras não têm fronteiras. boudin. qualquer língua pode dar e depois tomar de volta suas palavras. substituídas por outras. numa roupagem estrangeira. Mas isso é mais comum entre idiomas que são ou foram grandes exportadores de palavras . bougette e entrevue (hoje.Lógicas Palavras que vão e voltam Muitos vocábulos repudiados por puristas como estrangeirismos são. Primeiro. performer ("executar") e entrechanger. entrevue é entrevista de emprego e interview é entrevista jornalística). recreação") e performance ("execução") também aportaram nas ilhas britânicas. condenam-se "acessar" ou "deletar" como anglicismos quando a origem desses vocábulos está no latim accessum e deletum. Mas o fato mais importante é que muitas vezes se reclama da invasão estrangeira sem razão. afinal o francês os importou do inglês entre os séculos 17 e 19. Por exemplo. quando uma nova potência hegemônica desponta. coaching ou mentoring para o português? Alguém tem alguma ideia?) Em terceiro lugar. pudding. Segundo. no fundo. não o de almanaque) lançaria luz nesse embate infrutífero. quando importamos uma palavra. (Dizem que para muitos homens um carrão esportivo é objeto de fetiche. Em Portugal. um tanto quanto amaneirado após uma longa estadia na França. também a casa tornam? Hoje nossa língua é muito mais importadora do que exportadora de vocábulos. há até um prato muito parecido com a tempura. o indonésio sepatu ("sapato"). especialmente sexual. é bom verificar se não estamos dando um tiro no próprio pé. Algumas dessas palavras voltaram ao português. o que está correto. o malaio keju ("queijo") e o swahili meza ("mesa").) Se os casos de retroviagem não são muito numerosos em português. apontado pelos dicionários como oriundo do francês fétiche. mas é pouco provável. http://revistalingua. O fetiche era o objeto usado pelos xamãs para lançar um feitiço sobre alguém. muitas de nossas palavras foram disseminadas pelos quatro cantos. Quem hoje come uma tempura (ou tempurá) de legumes está na verdade comendo um prato introduzido no Japão por jesuítas portugueses que. Dizem até que o japonês arigatô derivaria de "obrigado".com.Retroviagem E os "bons filhos" do português. ad tempora quadragesimae).uol. pois tampouco nós temos exercido grande influência cultural sobre outras nações .embora o quadro prometa mudar nos próximos anos. criaram uma receita à base de vegetais e peixes. Mas durante os áureos tempos do Império Português. Também não estamos devolvendo. como se faz com os bonequinhos de vodu. palavras estrangeiras que importamos no passado.asp 26 . por exemplo. ou seja. embora também se conjeture que a palavra proveio de "tempero" ou "temperar". Daí que de objeto mágico. Potência linguística Temos ainda "fetiche". por não consumirem carne vermelha durante a Quaresma (em latim. eles ficam "enfeitiçados" pelo automóvel. é provavelmente porque a maioria das línguas que importaram nossos termos não sejam hoje exportadoras de vocábulos. como. alvo de veneração e respeito religioso. antes de condenarmos um estrangeirismo. fetiche passasse a ser qualquer objeto de adoração. Enfim. o que tornaria o termo ainda mais vernáculo. aportuguesadas.br/textos/87/artigo276252-1. Mas fétiche nada mais é do que o nosso bom e velho "feitiço". "aquesse". saberiam que é possível aprender a ver. ouvir ou enxergar adequadamente em certas situações. isto é. não é exagero dizer que ela ainda não sabe respirar. são padrões ideais. é a gramática e não o dicionário o que caracteriza uma língua. Entra-se na escola falando-se o português. prestando atenção à própria fala. É educando o ouvido que se aprende a distinguir os tons e semitons de uma escala musical. "esse". O que se ensina na escola. O sistema é outro. "esso". como "esto". embora as palavras reais que a constituem sejam todas estrangeiras: "O office-boy flertou com a garçonete da pizzaria. Norma é o que é usual. Padrão real é o que o falante diz em situações informais ou em situações em que o falante recusa ou ignora a formalidade. O mesmo ocorre com a língua. basicamente num estilo refletido. afirma que determinado orador "assassina" o português. com exagero. Mas é aprendendo a falar a própria língua que um falante consegue mudar os registros linguísticos de acordo com a situação da fala. Alguns desses demonstrativos caíram em desuso. o sistema permite que o pretérito perfeito de "fazer" seja "fazi". existe um sistema de demonstrativos e um sistema de sons vocálicos. É uma visão educada que permite apreciar detalhes de uma tela de Renoir ou de Gauguin. Português-brasileiro O que caracteriza uma língua são os instrumentos gramaticais e não o léxico. É aprendendo a respirar que se pode praticar um esporte adequadamente. Mas a norma exige que o pretérito perfeito de "fazer" seja "fiz" e rejeita a forma "fazi". hoje. Assim. como o de "correr" é "corri". A norma é que restringiu o sistema. que se subdivide em outros sistemas. Sistema O sistema linguístico é uma rede de relações constitutiva de um estágio cronológico da língua. Até o final da Idade Média." 27 . "isso". A norma restringe o sistema e varia de acordo com a região. Padrão ideal é o que se espera que o falante diga numa situação de formalidade. Quando alguém. "aqueste". num certo grau de formalismo em que o falante policia a linguagem. o sistema dos demonstrativos era constituído por uma dúzia de pronomes. A língua não tem apenas uma função social. porque se alterou a rede de relações entre os demonstrativos com a eliminação de alguns deles. seria tão absurdo acusar alguém de não saber falar a sua própria língua materna quanto acusá-lo de não saber "usar" corretamente a visão. Dessa forma. habitual na fala de uma comunidade.Gramática normativa Um padrão ideal da língua A defesa da norma no debate sobre a existência de uma língua apenas brasileira José Augusto Carvalho Existem na língua padrões reais e padrões ideais de linguagem. nas aulas de português. Embora uma pessoa entre na escola respirando. Segundo alguns linguistas. "aquelo". o que ele está dizendo é que esse orador não aprendeu ou não respeita os padrões ideais de um registro adequado à situação de formalidade em que o discurso se realiza. isto é. "isto". por exemplo. "aquele". ouvindo ou enxergando. A frase seguinte é legitimamente portuguesa. "este". com o dialeto (cada dialeto tem suas normas linguísticas próprias). mas a língua permanece a mesma. Se esses linguistas fossem os pesquisadores que acreditam ser. "aquilo". normal. a flexão verbal ou os demonstrativos que se ouvem em Portugal. E a língua é a mesma. quase no final do volume! O fato de não entendermos certas palavras usuais em Lisboa e desconhecidas no Rio de Janeiro (e viceversa) não significa que estejamos diante de línguas diferentes. Afinal. Mas não é o vocabulário que caracteriza a língua.br/textos/86/artigo275068-1. ou o de Roldão Simas Filho) para entender o português de Portugal. apenas pronúncias regionais e o léxico.. que é língua latina. Se fizesse. nas páginas 55-63. Está certo. a flexão verbal "-ou"." São línguas diferentes? Os linguistas que privilegiam a fala popular. O que me apraz é acicatar. o inglês seria língua latina (há maior número de palavras de origem latina do que de origem anglo-germânica usadas no inglês diário) e o romeno seria língua eslava (grande parte do vocabulário ativo do romeno. 1999) para ver o porquê do glossário brasileirobrasileiro. como se fossem diferentes no Brasil o feminino. um pouco mais de estudo e de reflexão sobre a língua. como critério de definição de língua. Alegam os linguistas que é necessário um dicionário português-brasileiro (como o de Eno Teodoro Wanke.uol." "Traduzida" para um registro mais informal. Falta-lhes. o sufixo "-aria". de Antônio Fraga (Rio de Janeiro: Relume Dumará. sob a alegação de que o português falado no Brasil é outra língua diferente do português falado em Portugal. o plural. essa frase significa: "Pouco importa que a mula manque. Não é pelo fato de se desconhecerem alguns termos usados em Portugal e desconhecidos no Brasil (e vice-versa) que se pode considerar que a língua falada lá seja diferente da falada aqui. Duvido muito que um carioca do asfalto entenda o português de um morador da favela. http://revistalingua. é de origem eslava). como. também é possível dizer uma frase no português do Brasil sem que nenhum brasileiro de cultura média a entenda. o de Mauro Villar. em detrimento da norma culta. porque o dicionário não faz a língua.asp 28 . O que eu quero é rosetar. e não os instrumentos gramaticais.com. confundem norma com sistema e adotam. a esses linguistas. por exemplo: "Pouco se me dá que claudique a onagra..Essa frase é portuguesa porque seus instrumentos gramaticais são portugueses: o artigo. a preposição. Basta ler o livro Desabrigo e Outros Trecos. as da variedade dominante em sua comunidade de fala. O que há é que a criança "testa" formas gramaticais. Com o tempo. regências desaparecidas de fato (assistir ao jogo. Não só os "Eu fazi" e "Eu cabo" são normais. pois o sistema no fim se impõe). de cuja língua se apossa (ou que se apossa dela. preferir X a Y) etc. em geral). entre muitos exemplos. considera os "erros" um sintoma de que a criança está falando por sua conta.Ensino Variação aceita Unir teses sobre aquisição da linguagem e sobre variação linguística pode salvar o ensino da lista de regras gramaticais Sírio Possenti São cada vez mais frequentes as apresentações sobre aprendizagem das línguas. "Estou dirijando". Talvez a verdade mais sólida sobre as línguas seja que nenhuma sociedade fala sua língua de maneira uniforme. mas os contatos entre falantes que produzem diferentes formas e as mudanças de avaliação no interior da sociedade). que incluem mesóclises. A outra tese opera com a hipótese de uma radical heterogeneidade das línguas. e achamos que é a única certa (esquecemos que uma dispensa o sujeito e a outra não). enfatizando que a criança aprende a falar por interagir com adultos. em vez de imitar um adulto. futuros que quase não se usam (dormirei em casa). A primeira resvala perigosamente para a tese segundo a qual há uma ordem fixa na aquisição. Como professores. seja em livros de "divulgação". para usar conceito sociolinguista. amara). como "Escovi os dentes". mas a comparamos a outra. quando a ordem prevista (certos "erros" em dada idade ou fase escolar) não ocorre. associadas a um padrão ou a uma norma ideal. formas do mais-que-perfeito (devera. fixa (mais ou menos) as de seu dialeto. de Steven Pinker (Martins Fontes). na qual o correto é "Tu pegas". seja em notícias sobre estudos com crianças. Se fosse possível isolar uma variedade linguística de seu contexto social (que avalia ideologicamente línguas e dialetos) e de sua história. com experimentos mapeando o cérebro e as reações a inputs. 29 . Variações É aqui que a compreensão das regras de variação linguística é crucial. nos defrontamos todo dia com formas linguísticas distantes das consideradas corretas. tão sólida quanto: uma língua não permanece igual com o tempo (claro que não é o tempo que a faz mudar. seja em estudos de detalhe sobre aspectos da aquisição. Seu exagero reza que a criança tem algum déficit (dislexia. a análise mostraria que qualquer variedade é gramaticalmente estruturada e adequada às finalidades a que a língua serve. que explora o funcionamento do cérebro. como O Instinto da Linguagem. Os erros de análise são às vezes brutais (faz falta saber linguística elementar!). Só consideramos que "Tu pega" é erro por não analisar essa forma em si. "Não ouçava". Esta verdade explica outra. no interior de dada variedade. e considera normal (sem admitir "qualquer coisa" e negar que possa haver pessoas com problemas) certas misturas de formas gramaticais concorrentes. que serão aprovadas ou não (pela mãe). outra de fundo interacional. Duas tendências guiam esses estudos: uma de fundo biologizante. este não deveria ser um problema. e não da gramática. Classe social Com esse dilema. analogamente. e assumimos projetos de ensino consequentes com esse saber. e insistimos no ensino de regras mais ou menos soltas (listas de regências. ocorre um fato que.uol. diz: "Chegou um fax. porque sabemos que essas formas novas são o resultado da deriva do português. "Fui na cidade ver um amigo que o pai (dele) está doente". O lugar de ensino do "correto" é o texto. o escrito (sobre o falado. ou.Diante disso. com seus gêneros. que se leiam e comentem textos cultos.. de escrever segundo a norma culta!) e à variação linguística é a única saída. com base em fatos. Ensinar listas de regras produz o que se tem produzido: detesta-se a gramática. "Prefiro suco do que água"." (em vez do escolar "cujo conteúdo não posso dizer").br/textos/86/artigo275041-1. mesmo que não mais faladas e até pouco escritas. o explica: cada vez mais há professores e alunos oriundos das classes populares (o que é ótimo!). que não posso dizer o conteúdo porque está sob sigilo. nesses grupos. Ingredientes numerosos do português daqui. A junção inteligente de teses relativas à aquisição da linguagem (os erros devem ser compreendidos como tentativas de falar uma língua.asp 30 . a rigor. Se se quer o domínio da escrita culta. o que haveria de errado em construção idêntica de alunos? Por que não reconhecer nela uma estrutura possível das relativas.com. que se diga e escreva "A gente quer nossos direitos". e atestada desde sempre na história do idioma? Soluções Só há duas saídas: ou se aceita que o português da escola. não são percebidos como erros pela própria escola. Poderíamos aceitar. e se escrevam e reescrevam textos até adquirirem forma culta.. o português real (o do Brasil) é muito diferente do sustentado pelas gramáticas normativas. "Você e tua amiga vão". que acaba de aposentar-se do Supremo Tribunal Federal tido como cultor do vernáculo. hoje usada até por pessoas cultas. esquecidos pelas gramáticas ou que elas consideram erros. http://revistalingua. em boa medida. Em si. e não só a ensinar uma forma "correta". Se Ayres Britto. ou então deve ficar claro que o problema não é só de correção ou de gramática normativa. como "Vós iríeis"). "Sentei na mesa". podemos ter duas atitudes: ou consideramos tudo isso normal. A gramática. preenchimento de espaços com formas "corretas". Ora. a comparar suas variedades. seria dedicada a compreender a língua. "Me dá uma grana?" etc. para salvar a língua e ensinar o verdadeiro português. e ela não cumpre seu suposto papel. ou consideramos que a língua está sendo destruída. nem se discute) possa ser o do Brasil (não necessariamente todas as variantes "populares". se ensinada para valer. A correção é uma exigência social e histórica dos campos. Só o é porque assim o consideramos. mas as que são de fato as que não são mais percebidas como erros). declamou: . de Collor. percebemos clara ironia . lançadiço ou rafeiro em relação ao hebdomadário em tela. vigiando-o. Particularmente. ao justificar a estapafúrdia tentativa de convocação do coleguinha Policarpo Jr. todavia. a famosa frase considerada como de Jânio Quadros foi negada taxativamente pelo próprio. como cão de guarda. é castigar. e em 31 . caso da Veja. na CPI do Cachoeira." Em termos de notícia. lançadiço ou rafeiro em relação ao hebdomadário em tela. abria por exemplo um comentário sobre restaurantes "por quilo". por isso perguntei-lhe sobre o que talvez tenha sido a sua frase mais famosa. Circuncisfláutico quer dizer rebuscado. em 20 de maio. encontrei uma vez o ex-presidente Jânio Quadros. tem chamado mais atenção pelo linguajar circuncisfláutico. na íntegra. veracidade e níveis linguísticos. segundo o Aurélio. Collor e Jânio Em primeiro lugar. as notícias provocam algumas reflexões. censurar. a seguinte frase do atual senador e ex-presidente Fernando Collor de Mello: "Não se me acoime de ter comportamento alapado. da Academia Brasileira de Letras. sem alusão especial explícita ao político." Sem entrar no mérito se os significados do Aurélio foram bem escolhidos. O título "Fi-lo porque qui-lo". Rafeiro é o indivíduo que acompanha sempre o outro. Em termos de mote para comentários jornalísticos. quanto à declaração de Collor. a redação da notícia e o respectivo comentário. um passeio pela linguagem da orgulhosa elite bacharelesca Hudinilson Urbano O nome do professor. como acontece em tantos outros casos. a coluna de Ancelmo Gois em O Globo (reproduzido pelo Diário de S. talvez. parece-nos perfeitamente aceitável e tolerável tal alusão. Hebdomadário é semanário. melhores e os mais adequados para o contexto. defendendo-o. no seu livro Na Ponta da Língua (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura. O ambiente era propício. reproduzimos na sequência. irônico e insinuativo: "Fernando Collor.A imprensa inventou o 'fi-lo porque qui-lo'. além. Já havia abandonado a política. inicialmente. punir.Não se me acoime de ter comportamento alapado. do mesmo grupo) comenta. a não ser a própria frase. Mais recentemente. Resposta: . Paulo. sob o título "Lembrando Jânio".e nisso a coluna foi feliz . Alapado é escondido.no emprego das palavras "cincuncisfláutico" (segundo Aurélio e Houaiss: uso burlesco) e "estapafúrdia"." Ironia Hã? Gois explica: "Acoimar. gramático e ex-presidente Jânio Quadros costuma ser muito lembrado pela frase-anedota "Fi-lo porque qui-lo". Paulo de 7 de setembro de 2011. Lançadiço é desprezível. da Veja. Minha frase foi outra: 'Fi-lo porque quis'". segundo nos informa Arnaldo Niskier.Elitismo Os tropeços da verborragia Do "Fi-lo porque qui-lo" de Jânio ao "Não se me acoime". Quinta. pretensioso. 2001: 17): "Na residência paulista do Morumbi. na coluna de Hermes Galvão do jornal Diário de S. .com. que essas indústrias pensem em flexibilizar o preço final de seus produtos". Isso significa dizer que. dizer a verdade de forma velada. que parecia enterrada há muito tempo. a balança comercial pode-se desequilibrar momentaneamente. da sutileza da palavra "declamou" em lugar de "declarou" ou "afirmou".uol. Quanto a "coleguinha". Nessa linha de considerações. Dizer para não ser entendido é uma forma de voltar à desnecessária sofisticação da elite cultural do passado. A intenção é ser eufêmico. embora afeito ao seu ethos e "collorido" estilo. Nesse sentido. que. melhor fora "declamar" simples e objetivamente: "Não me censurem ter comportamento encoberto. Feita a paráfrase. nesse sentido. desprezível ou 'maria vai com as outras' em relação à revista Veja". cabe observar que esse linguajar rebuscado e prolixo. popular de O Globo. sobretudo do "economês" flexibilizar. apesar de usual. os preços ao consumidor brasileiro fatalmente vão aumentar". a médio prazo. a propósito do seguinte texto de um ministro de governo da época: "Com a escalada do câmbio. essa palavra aparece frequentemente na coluna de Gois. http://revistalingua.asp 32 . Clareza indesejada Após uma análise crítica dessa fala. oferecendo a seguinte paráfrase simplificadora: "Como o dólar disparou frente ao real. que pretendem sua fala próxima à do povo.particular. como espécie de clichê ou bordão.br/textos/86/artigo275093-1. Prolixidade A insinuação aparece no silêncio da segunda parte da comparação: "tem chamado mais atenção pelo linguajar circunscisfláutico" "do que. mas era evidente que tal clareza não interessa nessas ocasiões. comentando que a mensagem seria clara e não se afastaria da linguagem culta. não se questionam aqui o tom e o estilo da redação da notícia. conclui." Evidentemente. apenas para "botar lenha na fogueira". merece mais é elogios. perfeitamente adequada ao tom jornalístico. ao mesmo tempo. não condiz com o falar ao menos demagógico dos políticos de hoje. a ponto de deixar com que os insumos para a indústria tornem-se menos acessíveis em larga escala. Rodriguez termina. entretanto. A presente observação vale. de tom coloquial. polêmico e. Em relação ao pronunciamento em si de Fernando Collor. é possível. sim. faço meu o perspicaz comentário de Victor Rodriguez (Manual de Redação Forense. 2000: 47-48).. como esses (transitivos indiretos). "precisar de". de modo que o "se". esses. as palavras e expressões plurais seguintes são complementos. que rege preposição e exige como complemento um objeto indireto. Repetitivo e redundante.Dito & escrito O medo que leva ao erro Com receio de errar por não usar plural onde deve. têm de manter-se invariáveis. de acordo com a análise tradicional."vende-se deputados" e "aluga-se senadores" -. manter-se no singular . Sendo complemento. "tratar". Portanto. e palavras ou expressões plurais. mas também de preposição. De volta aos verbos transitivos indiretos . não há como 33 . Na verdade. contudo. Dizem que o verbo deve. etc. "acabar com"." Basta lembrar que depois de verbos na 3a pessoa do singular + preposição. Plural Os admiráveis deputados e senadores para aluguel ou à venda funcionam como sujeitos dos verbos transitivos diretos e. -. impõem o plural a tais verbos. por isso pregam a manutenção do verbo no singular. então. necessitar. "necessitar de". Trata-se de verbo transitivo indireto. como fazem redatores distraídos: "Sabemos muito bem.tratar." "Assiste-se a julgamentos. sim. vendem-se senadores. mantém-se no singular. "assistir a". o verbo não concorda nem poderia concordar com ele. Tanto que deram o nome pejorativo de "kit gay" a material que seria distribuído nas escolas pelo Ministério da Educação. o analista escorregou no uso do verbo "tratar". Protestantes contra essa análise dizem que ela é ultrapassada. porque tais não passam de objetos e não sujeitos. se acompanhados do pronome reflexivo "se". No trecho. no caso. por isso. E o objeto indireto. seguido de preposição ("de"." Em casos como esse. para ninguém esquecer: Verbos como "tratar de"." "Acabou-se com as propinas. na 3a pessoa do singular: "Trata-se de políticos venais. sim. obviamente não é sujeito e. funciona como índice de indeterminação do sujeito. mantêm-se discretamente no singular porque tais construções não devem ser confundidos com a voz passiva sintética ." "Precisa-se de candidatos bons.alugam-se deputados. seguidos de preposição e palavras plurais. o redator erra ao usar plural onde não deve Josué Machado O jornal publicou boa análise de colunista sobre o problema da diversidade sexual perfidamente explorado por políticos e líderes religiosos. no caso) e de palavra plural. é a palavra ou expressão plural. tratam-se de enunciados criminosos por reiterar proposições sempre usadas para alimentar o preconceito e a violência contra grupos com profundo histórico de exclusão social. por isso." "Necessita-se de juízes incorruptíveis. que nada disso é manifestação da liberdade de expressão. "Alugam-se pianos": o substantivo não preposicionado (pianos) é o sujeito."O dinheiro é bom quando se o tem" seria inadmissível: o pronome sem preposição. o sujeito é simples quando tem núcleo ("Alguém saiu") e composto quando tem mais de um ("Você e Pedro saíram").o sujeito é indeterminado. o verbo vai para o plural.uol."Precisa-se de empregados": o substantivo está preposicionado. não pode ser o sujeito.br/textos/86/artigo275072-1. O sujeito é indeterminado quando não tem núcleo (não há pronome ou substantivo que exerça tal função de forma explícita na oração). por isso o verbo fica no singular . Por isso. só o sujeito determina a concordância do verbo. Por isso. . E. que surge na oração com "se" e "o". é impossível ocorrer "se" com pronomes pessoais "o" ou "a". http://revistalingua. como nos lembramos todos.asp 34 .com.submeterem os verbos ao plural. pois é pronome pessoal típico de objeto direto. . Corrija-se: "O dinheiro é bom quando se tem" (ele). O pronome "se" Há uma regra muito ignorada de concordância verbal: sempre que na oração houver o pronome "se". seu sujeito será o 1º substantivo ou pronome que vier sem preposição. . facilita o entendimento do texto. "rial" e "perdeu". a absolvê-los" O jornal Folha de S. necessária antes do e em ao menos uma situação: quando une orações com sujeitos e verbos diferentes." "A loja distribuiu roupas.Paulo publicou na 1ª página. é indiscutível. Na primeira oração. joias e o resto será doado a instituições de caridade. e o ministro Ricardo Lewandowski. o sujeito é "ministro Joa-quim Barbosa" e seu verbo. porque a conjunção coordenativa aproximativa "e" liga duas orações com sujeitos e verbos diferentes." (Grifo nosso. Da mesma forma.) perdeu 80% do seu valor desde o início do ano. portanto." "O jornal publicará a carta de protesto e a repórter incompetente que escreveu a reportagem com erros dará a última palavra. por isso não é antecedido de vírgulas. No mínimo. muitos ignoram ser preciso usar a vírgula. sapatos.." 35 . Normalmente. o redator se esqueceu da vírgula ao comentar a situação da moeda iraniana: "Os investidores externos sumiram e o rial (. e o ministro Ricardo Lewandowski. mas há casos em que é vital Josué Machado Uso da conjunção evita ambiguidade em "O ministro Joaquim Barbosa tende a condenar os acusados. Supremo É também o caso de: "O ministro Joaquim Barbosa tende a condenar os acusados. embora seja tão pouco frequente antes do e. A necessidade da vírgula. Na primeira. e tarifa/bancária sobe". em geral indica a união de dois elementos ou orações e o fim da enumeração de uma série. o e expressa soma de ideias. em que se repete a união de duas orações com sujeitos e verbos diferentes. Como tais utilidades são as que ocorrem com mais frequência..Dito e escrito O "e" pede vírgula? Aprendemos que não há vírgula antes da conjunção. "tende". renda do trabalho assalariado. a absolvê-los. Por que a vírgula aparece aqui. na segunda. em que a vírgula foi omitida: "Tenho rendimento tributável exclusivamente na fonte e minha mulher. "investidores" e "sumiram".) É clara a falta de vírgula antes do e nesse caso. em 4 linhas de 1 coluna. é o que há nestes exemplos de jornais. na segunda. o sujeito é "Ricardo Lewandowski" comandando o verbo "absolver". No exemplo da revista Veja. o leitor tenderia a emendar o objeto direto "os acusados" com o sujeito da outra oração "ministro Ricardo Lewandowski" em mistura indigesta. o título: "Juro é o menor/já registrado/no país. Foi o caso do título." Não fosse a vírgula. em leitura rápida. principalmente em títulos? No caso ela foi bem usada. há versículos em que tal virgulação é perfeita. e o Verbo estava com Deus.com. Além de conjunção (que já significa união. juntar.Nos três casos. Passou a ser classificada como conjunção coordenativa aditiva. pois promove a união de duas orações ou dois termos da oração. acasalar.uol. encontro). por extensão. A mudança de nome Sobre o uso da vírgula antes do e." A conjunção e era classificada em velhos tempos como conjunção coordenativa copulativa. versículo 1: "No princípio era o Verbo. o "e" (grifado por nós) tem de ser precedido da vírgula essencial. denominação que perdeu na reforma de 1959.br/textos/85/artigo273818-1. como: Capítulo 1. significa. incapaz de inspirar associações mentais desairosas. e o Verbo era Deus. http://revistalingua. além de unir. já que "copular". título inocente.asp 36 . no Evangelho segundo João (tradução de João Ferreira de Almeida). era copulativa (serve para ligar). o verbo no plural é cada vez mais raro. Valho-me desses fatos para defender que. Em vez de rir delas (não digo que seja proibido). Da língua. já que. Seria muito mais eficiente agir como as mães. "filhotes de cachorro" é objeto direto. Said Ali. 37 . Ou seja. Ambas podem levar em conta mais ou menos claramente a história. aliás. segundo sua análise. já teria desaparecido. teríamos de agir como os cientistas. cada vez mais frequente. Repito: não há discordância nenhuma sobre as formas. falas de criança. A questão urgente é encontrar meios de conseguir que os alunos escrevam com sintaxe e morfologia cultas (não trato aqui das questões de texto.Ensino Divergências concordantes As abordagens podem confluir. de pronúncia rural (r por l em "self") e da tendência de acrescentar um "e" depois de certas consoantes em final de sílaba (serve). b) sustentar que esta construção é passiva. E por que dizemos "navegar é preciso" e não "navegar é precisa"? A oração substantiva subjetiva por acaso é masculina? Esses dois exemplos são de estudos de John Martin sobre gênero. já que não há sujeito com o qual concorde. Da norma. Qualquer dado pode ser objeto de análise: português popular ou culto. na escola. depois de apresentar uma série de argumentos contra a análise "passiva". corrigir fornecendo a norma. a gramática deveria ser apresentada com maior clareza. no outro (mudanças havidas e outras em curso podem ser atestadas). embora este seja o tópico mais importante quando se trata de escrever). São coisas diferentes: a) propor que se deve dizer "vendem-se filhotes de cachorro". As escritas populares rendem excelentes análises e permitem que se descubra por que são como são. que os alunos. A discordância é sobre a própria noção de masculino. Clareza Outros exemplos: todos concordam que é correto dizer "está cheio de crianças na praia" (e não *está cheia de crianças na praia). Estrutura popular No ensino de gramática como análise e descrição coerentes. como poderia haver em relação a "Ele assistiu o jogo". Se não houvesse insistência da escola e dos manuais de redação. reconheceu que sobrava um problema: como explicar o verbo no plural. diversos tipos de escrita etc. Além disso. há mais de cem anos. mas nem todos concordariam sobre as razões pelas quais "cheio" deve estar no masculino. Ele prefere "esquecer" este problema não resolvido a "esquecer" os que derivam da outra análise. podem ver como é nos textos que leem (é urgente que leiam textos um pouco mais antigos ou formais). Há boas razões para duvidar da eficácia do ensino dos usos da norma culta por meio de análises (como repetir que se deve dizer "vendem-se cachorros" porque "cachorros" é sujeito). a análise de escritas como "serve-serve" em vez de "self-service" são ótimas aulas. mas uma análise científica pode ser mais poderosa do que formas autoritárias de ver o idioma Sírio Possenti Há basicamente duas maneiras de estudar uma língua: aprender suas regras e fazer sua descrição. mais numerosos. Há nessa escrita um misto de etimologia popular (trata-se de estabelecimentos em que as pessoas se servem e podem repetir). num dos casos (não se escreve "bem" hoje como se escrevia há algum tempo). que simplesmente corrigem seus filhos quando dizem "Eu fazi" etc. os alunos aprendem a analisar. http://revistalingua. Além disso.. são os que ocorrem nos textos dos alunos). portanto. sintaxe etc.Podem ser objeto de análise as estruturas gramaticais populares. que aparece também em "garça". seja regional. A riqueza da análise pode ser muito maior se não se discriminarem dados (os melhores. É um fato que essa é letra (e. por exemplo). Observando e descrevendo.uol.. Outra comparação é com paisagismo: pode-se ter preferências na escolha de plantas para praças ou jardins. Quanto mais conhecemos a diversidade das plantas e do solo (da língua). com um r retroflexo.br/textos/85/artigo273820-1. Além disso. Experiências mostram que aprendem mais quando comparam claramente sua língua real com a língua que se espera que venham usar. Casos assim são numerosos. para que o projeto seja bem-sucedido.asp 38 . ou porque há um exemplar numa praça europeia. devem-se analisar jornais e relatórios. em especial porque vivemos a era do discurso da preservação. especialmente as mais marcadas (consideradas erros). mais bemsucedidos podemos ser nas tarefas de preservação (de ensino). Uma abordagem científica na análise é muito mais poderosa do que uma abordagem autoritária ou apenas livresca dos dados. Ciências Gosto cada vez mais da comparação dos estudos de língua com os de botânica. Esse tipo de trabalho equivale. Para saber como se escreve em um jornal ou relatório. a letra tem a ver com um universo cultural específico. de fato. dependendo do cantor.que sabem falar.com. um dos resultados desse tipo de trabalho é que os alunos mais discriminados descobrem que seguem regras .). para isso. Não só é possível. Não adianta escolher uma planta só porque se gosta dela. serão capazes de seguir também as regras de outra norma. permite a rima com "praia". social ou entre fala e escrita. Mas... como é vantajoso fazer confluir aulas sobre variação. Não se pode plantar qualquer árvore ou criar qualquer animal em qualquer bioma (ou dar a mesma aula de gramática para qualquer turma em qualquer região). E. ao das gramáticas contrastivas. Veja-se o começo da letra de Cuitelinho: Cheguei na beira do porto onde as onda se espaia as garça dá meia volta e senta na beira da praia e o cuitelinho não gosta que o botão de rosa caia São pontos a observar com especial destaque: a) a marcação de plural em "as onda" e "as garça". pronominais. Sendo assim. das quais eventualmente se trata quando se estuda uma língua estrangeira (comparando sistemas verbais. é preciso que as condições de vida da planta sejam respeitadas. Os dois casos são iguais (essa regularidade pode ser observada em outros versos). aparecem outras marcas: meia vorta. Mas como aprenderão a escrever "como se espera"? O certo é que não têm aprendido com análises tradicionais. na canção. Preservar o cerrado não é a mesma coisa que preservar a mata atlântica (o que dá certo com uma turma pode não dar certo com outra). Fato Isso significa defender que se pode escrever assim? Uma boa resposta é: esta pergunta não faz sentido. b) há duas questões em "As onda se espaia": a forma do verbo (sem marca de plural) e a pronúncia rural da sílaba "lha": "espaia". A língua também é governada por leis. O líder indiano foi o maior expoente da desobediência civil. não tem fundamento nem etimológico nem fonológico e mais cria dificuldades do que facilita a vida das pessoas. A ortografia. Toda vez que ocorre uma reforma ortográfica. pelo menos contra a Princípio de rebeldia de Gandhi contra as injustiça pode também ser aplicado à gramática língua. Mas leis injustas (supondo que haja um critério objetivo de justiça) nem sempre são criadas por razões deliberadas. do Acordo Ortográfico de 2009. que faz os pobres pagarem relativamente mais em impostos do que os ricos. especialmente em situações formais. qualquer um que não saiba se expressar de acordo com a gramática pode alegar que o faz deliberadamente. É o caso daquela grafia que. por sinal.Lógicas Desobediência civil Deveríamos nos rebelar contra injustiças linguísticas e arbitrariedades gramaticais? Se sim. algo como "Si hay gobierno en esta tierra. os atos de desobediência deliberada em relação à língua têm um caráter muito mais conservador do que na política. E. quanto as de uma legislação. acaba sendo mais tirânica que a legislação propriamente dita. toda lei é uma forma de opressão. Já a gramática. filosofia política formulada pelo americano Henry David Thoreau. E ortógrafos e gramáticos também erram. e da concordância ou regência que atentam contra a lógica e a natureza da língua. (Alguns. se pudessem. Afinal. podemos ter abusos motivados por razões ideológicas. para os radicais. como exigem os gramáticos) constitui. mais. E olhe que não faltam normas ruins e malfeitas em matéria de ortografia.se não contra os falantes. é objeto de regulamentação federal. ainda hoje. mas são tidas como canônicas pela gramática normativa. abolindo por conta própria o h mudo ou coisas do gênero. um ato de desobediência civil. portanto também criam leis injustas . nas palavras paroxítonas. tal norma leva a palavra "guaíba" (trissílaba com hiato) a ser grafada "guaiba" (dissílaba com tritongo). discordar dessas regras e. não se usa mais o acento no i e no u tônicos quando vierem depois de um ditongo. redigida desse jeito. Mas será que toda desobediência é justificável? De um lado. sobretudo porque não prevê sanções cíveis ou penais a quem a transgride (exceto a reprovação em concursos). como no caso de "baiuca" e "feiura". 39 . yo soy contra". o legislador não se dá conta de todas as implicações de sua lei. Uma delas. por exemplo. E afetam mais a ortografia do que a gramática. Então será que todo desvio é justificável? Rebeldia tímida Curiosamente. A ideia básica dessa filosofia é a de que é justo desobedecer a leis ou governos injustos. Fernando Pessoa. desacatariam até a lei da gravidade!) De outro lado. Logo. dizia em sua primeira redação que. Afinal. não é possível enviar ao Congresso um projeto de lei de iniciativa popular para mudar regras de gramática. embora não tenha efeito jurídico. na prática. em defesa do sistema antigo. as mais das vezes. embora oficial. Já os "progressistas" da língua se limitam a criticar a timidez das reformas. muitos portugueses resistem ao novo acordo ortográfico. embora não tenha força de lei. desobedecê-las (ou desobedecer a elas. mas não ousam desafiá-las. é um conjunto de normas que exercem pressão tão coercitiva sobre os falantes. Só que. pregava a desobediência civil à reforma de 1911. como distinguir entre desobediência e ignorância? Em tese. como diferenciar desobedientes dos ignorantes? Aldo Bizzocchi Nem tudo o que é legal é justo (segundo Gandhi. É o caso também da regra sintática obsoleta que ainda é exigida em concursos. não são raras as vozes a se levantarem contra ela. O que fazer com elas? A desobediência civil cabe nesses casos? Imposição A regulamentação do idioma. Exemplo disso é a legislação tributária brasileira. uma lei injusta é uma forma de violência). etc.asp 40 . temos o correto "ao nível do mar". se quisermos fazer um trocadilho de mau gosto). "piedoso". por que não proíbem expressões como "fiquei na saudade". e quiçá do mundo.? Anexo x Em anexo Para a gramática. pois "visar a" é objetivar. pululam os casos de regras incoerentes. afiná-las à tendência dos demais idiomas é crime de desobediência segundo a gramática normativa. delibera ou não. "fico na esperança". etc. agora temos de conviver também com "conta-corrente". que indica interioridade. vemos alguns casos de incoerência gramatical ou ortográfica que são alvo da desobediência civil dos falantes. etc. Colocação pronominal Nossas regras de colocação pronominal.Sou-o.br/textos/85/artigo274268-1. Tais formas se usam no mesmo planeta em que se diz "sou-o. Santo Tomás x São Tomás Muitos ainda hoje insistem que o certo é "Santo Tomás" e não "São Tomás". em que pese o horrível cacófato. "estou em férias".) Com respeito à gramática (ou com desrespeito. to. manter um documento em segredo.inclusive na norma culta -. Hoje em dia. "estou à espera". semanticamente. Só que essa construção é corrente em Portugal . ou "adeqúa"?). sou-a Exemplo extraído de apostila preparatória para concurso público: . adjunção. Apiade-se Parece incrível. acaba "corrigindo". http://revistalingua. além de nunca ter tido uma justificativa semântica convincente (exceto por razões etimológicas). "nos" e "vos" com "o". portanto. pomo central da discórdia ortográfica da nossa língua. do que com "em".uol. Em que planeta se fala português assim? Mo. e "obedecer a" é acatar. "os". "Santo Inácio". No entanto. todos verbos designativos de ações transitivas diretas. Fico no aguardo x Fico aguardando Gramáticos abominam a primeira forma e preconizam a segunda.A senhora é professora de português? . "as".com.Mas é a professora de português da quarta série? . que não tem uma grafia oficial (o dicionário Houaiss é um caso isolado) porque para os gramáticos essa palavra simplesmente não existe? E o hífen. Só que posso deixar livros em consignação. a ideia de nível é mais compatível com a preposição "a".Sou-a. sou-a". etc. Sou-o. nem mesmo a imprensa mais zelosa trata como transitivos indiretos esses verbos. que incluem até a bizarra mesóclise ("dar-lho-ei quando o vir") são as mais complicadas dentre as línguas da Europa. "te". lho. os anexos de um e-mail ou de um processo). E a embaraçosa exceção à regra de que "Santo" só se usa diante de nomes iniciados por vogal ("Santo Antônio". Além disso.). e a única aceita nas demais línguas românicas e no inglês. "apiada-se".Discórdias E casos como o de "adequa" (ou "adequa". cujas normas de uso são tão herméticas quanto ilógicas. Esses gramáticos não devem ter muita piedade dos falantes. . Se considerarmos "anexo" como substantivo (por exemplo.) se conjuga "apiado-me". vo-lo A mesma apostila ensina a usar as contrações dos pronomes "me". (Se antes não havia qualquer sentido na grafia "cartão-postal". não se deve enviar um documento "em anexo". Em nível de x A nível de Os gramáticos odeiam "a nível de". "assistir a" é ver. "lhe". muitas vezes sem ter consciência de que é um transgressor contumaz. que o falante. E. cuja regência com preposição já se tornou há muito obsoleta. um telefonema em espera. em sua ingenuidade. mas para alguns gramáticos o verbo "apiedar-se" (de "piedade". que indica proximidade. Nestas páginas. a construção "em anexo" é absolutamente similar às demais aqui citadas. "apiadas-te". "a". no-lo. mas "anexo". Simplificá-las e. asp 41 . não parece possível porque "Ucrânia" foi escrito com inicial maiúscula. que tem no sul uma enorme península em forma de gancho? Esse ganchão suportaria por certo milhares de mulheres penduradas com seus vestidos. bastava o redator ter desconfiômetro e perceber que o melhor seria antecipar. para horror de almas pudicas. porém. verbo. como a do curioso título. http://revistalingua. Só as vestidas. não. Então. mas fica pendurada pelo vestido na Ucrânia".uol.br/textos/84/artigo271743-1. sim. mas fica pendurada pelo vestido". seios à mostra. Atrevido Um título atrevido como esse evoca o problema da colocação das palavras na frase e acentua a evidência de que nem sempre é satisfatória a forma absolutamente direta. mas há casos em que pode gerar perplexidade Josué Machado O site G1. necessariamente entre vírgulas. jovens.sujeito. portanto. Pendurada na Ucrânia? Dá o que pensar. o senhor Ucrânia. da Globo. o adjunto "na Ucrânia". Só se fosse gancho especialíssimo. que a única qualidade indiscutível duma frase não é a ordem direta. se não tivesse limitação do espaço: "Mulher fica pendurada pelo vestido ao cair do 8º andar de edifício na Ucrânia". na Ucrânia. porque. na Ucrânia. publicou a seguinte curiosa manchete em 26 de junho: "Mulher cai do 8º andar. Conclui-se. muitas delas. em geral recomendável no jornalismo . gostam de protestar contra os muitos males deste mundo mau exibindo sua nudez ou seminudez como arma. Ou mudar a redação: "Mulher fica pendurada pelo vestido ao cair do 8º andar na Ucrânia".com. na Ucrânia. complementos e adjuntos. Melhor ainda. para não ser involuntariamente engraçado. mas a clareza. Estaria o redator se referindo a algum gancho especial chamado Ucrânia? Não. Pendurada.Dito & escrito Pendurada na Ucrânia A ordem direta dos termos na frase contribui para a clareza da mensagem. opulentas e aparentemente saudáveis. Ou será que a referência foi feita ao mapa da Ucrânia. Assim: "Mulher cai do 8º andar. batizado com o nome do inventor. às vezes obtida com a disposição variada dos seus elementos. optou-se por analisar especialmente as adversativas marcadas com a conjunção "mas" e as concessivas introduzidas por "embora". além de sua visão de mundo. Outro conhecido fator distintivo entre as duas construções é a mobilidade: enquanto as adversativas sempre se opõem a um conteúdo previamente verbalizado. tais construções têm a peculiaridade de contrapor duas noções distintas. as coordenadas adversativas inserem o argumento apresentado como mais forte. estaria com receio de que a cor negra de seu pupilo fosse alvo de rejeição por parte do eleitorado. as concessivas têm mobilidade no enunciado. em que se opõem valores e visões de mundo. mas eu fiquei entediado com ele". Não é preciso dizer que essa bastante questionável oposição. Como já sugere o título.editoriais dos jornais Folha de S. Esse foi um dos tipos de construção sintática analisados por Renata Margarido em seu mestrado "Construções (coordenadas) adversativas e construções (subordinadas) adverbiais concessivas em Português: pontos de contato e de contraste na língua em função" . pospostas a ela ou intercaladas. Se alguém diz "A crítica aclamou o filme. Nas concessivas ocorre o inverso: a oração concessiva encerra o argumento fraco. percebe-se uma interessante escolha analítica: assume-se de saída que adversativas e concessivas são bastante produtivas nos gêneros textuais argumentativos. Como se sabe. a pesquisa se deteve sobre semelhanças e diferenças entre essas duas construções gramaticais.Academia Ordem de fatores altera o sentido Mestrado defendido na Universidade Presbiteriana Mackenzie discute os significados por trás da escolha de conectores "mas" e "embora" em orações Marcelo Módolo e Henrique Braga Conta-se que o prefeito de uma grande cidade brasileira. a frase seria assim parafraseada: "Embora a crítica tenha aclamado o filme. de oposição. podendo ser antepostas à oração principal.defendido na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em ambas. Diante de tal temor. o desagrado do filme ao enunciador.Paulo e O Estado de S. Esse outro valor. eu fiquei entediado com ele". rendeu protestos contra o prefeito. Paulo -. Posição Para delimitar com mais precisão o escopo do estudo. Usando uma concessiva. em São Paulo (disponível em http://bit. mas ele pode ser um bom prefeito". Diante desse quadro. estabelecida na frase pelo conector "mas". que têm como o mais evidente ponto em comum tratarem de relações de contraste. em campanha para eleger como sucessor seu apadrinhado político. o então prefeito teria lançado seu brado contra o preconceito. o enunciador manifesta.presença de diferentes vozes no mesmo enunciado . Já na definição do corpus .está presente em orações adversativas e concessivas. a busca da pesquisadora pode ser resumida desta maneira: se o valor de verdade carreado por adversativas e concessivas é basicamente o mesmo. destaca-se o aspecto negativo no caso. De fato. oposto a ela e apresentado como de menor peso. então quais outros fatores estariam associados à escolha por uma ou outra construção? A lei da preferência As estratégias para marcar a opinião preferida pelo enunciador A polifonia . outro valor. dizendo: "O candidato é negro. rechaçado pelo 42 . indicando que uma noção prevalece sobre outra.ly/Nfgvyy). A oração "sairei" manifesta o ponto de vista do enunciador. Já quando se usa "embora". o enunciador insere. o fenômeno se manifesta diferentemente em cada uma. que surge como uma "antipreferência". Se na primeira o enunciador afirma tacitamente que não assistia às aulas todas. ainda se valendo de García. os efeitos de sentido decorrentes de cada construção serão também diferentes. na segunda esse mesmo fato já é apresentado como algo de menor relevância. é preferível permanecer em casa." / "Embora eu não assistisse a todas as aulas. sairei". entre as opiniões veiculadas. mas começava a aprender com elas.enunciador. Renata explica esse princípio na seguinte construção concessiva: "Embora neve. é mais coerente com a intenção comunicativa de afirmar a negritude no candidato (por mais que a frase não tenha sido feliz ao fazê-lo). que veria como lamentável um salário tido como baixo. o que configura a variedade de vozes nesses enunciados adversativos ou concessivos. a voz de um enunciatário virtual. a proposição de menor peso é imediatamente refutada. mas trabalha". Antecipação ou adendo 43 . Na oração "embora neve". Embora as duas construções sejam polifônicas. A construção adversativa. trabalhando. Renata lembra que. começava a aprender com elas. a que goza da preferência do enunciador. A pesquisadora comenta estes enunciados. pois a preferência social é suplantada pela do autor da frase. o que se observa quando se aplica a categorização chamada "lei da preferência" . Renata Margarido manteve o questionamento: o que poderia levar à opção por um ou outro modo de manifestar a preferência? O fluxo da informação Estudar o fluxo da informação é estudar o "empacotamento" sintático escolhido pelo enunciador ao veicular certo conteúdo em seu enunciado. as estratégias linguísticas postas a serviço da comunicação. porém. pode ser um bom prefeito". em que aceita como verdade a afirmação de menor peso. Citando a Gramática de Usos do Português. é advogado pelos que defendem diferente modo de pensar. para só depois apresentar um valor superior a este. ativa-se a preferência socialmente compartilhada: sob tais condições climáticas. de Maria Helena de Moura Neves. mais importante que o valor da remuneração é o fato de que o indivíduo está ocupado. Levando isso em conta. A preferência. Citando estudo do linguista Luis Flamenco García. Mesmo diante dessa explicação mais minuciosa e sofisticada sobre a diferenciação de adversativas e concessivas. recairia sobre outro aspecto: para o enunciador. nas construções com o conector "mas" admite-se como verdadeira a proposição da qual se vai discordar. mas não "Embora ele seja negro. Se adversativas e concessivas são "pacotes" distintos. discutidos por Maria Helena: "Eu não assistia a todas as aulas." Ainda que as frases tenham o mesmo valor de verdade. Nesse caso. Para explicar a "lei da preferência" nas adversativas. mas pode ser um bom prefeito". parece não ser um acaso que a frase do prefeito fosse "Ele é negro. os efeitos de sentido produzidos mostram diferenças marcantes. a estudiosa trata da frase: "Ele ganha pouco. na primeira oração.a qual trata das estratégias para marcar. Marcelo Módolo é professor doutor e pesquisador na Área de Filologia e Língua Portuguesa da USP. "embora" já antecipa a noção de que o dado apresentado tem menos valor que o sequente a ele.Ainda buscando diferenciar os efeitos produzidos em cada tipo de construção. professor e autor de materiais didáticos do Curso Anglo Vestibulares. o foco é atribuir ao presidente venezuelano uma "escalada antidemocrática". como adendo.com. portanto. com boa interface com as ciências do texto. percebendo as deficiências do saber acumulado sobre as orações que carreiam oposição. Antepor ou pospor a concessiva faz com que ela funcione como antecipação ou. é a opção por criar uma antecipação do julgamento sobre o enunciado ou inserir uma informação dando-lhe feições de adicionais que justificam a seleção e a ordem das concessivas no fluxo da informação. como adendo. comentada por Renata: "A escalada autocrática de Chávez é notória. que merece ser conferido. a informação de que a democracia não foi formalmente rompida por Hugo Chávez.uol. No caso. Renata menciona um trabalho anterior de iniciação científica. No fluxo informativo.asp 44 . Henrique Santos Braga é doutorando na Área de Filologia e Língua Portuguesa da USP. 25/11/2007). academia. É efeito diferente do que ocorre nesta frase.com http://revistalingua. no qual analisava o tratamento dado a adversativas e concessivas (entre outros aspectos) em materiais didáticos. Ao se começar uma frase com "Embora seja verdade que o Windows é barato". portanto é posta como secundária. há a preocupação em melhorar o entendimento de alunos e professores. A partir disso. Paulo. embora ocorra sem ruptura formal da democracia" (Folha de S. Embora a análise não se destine explicitamente ao ensino da língua. Renata Margarido buscou respostas que tornassem mais verdadeiro e funcional o estudo dessas estratégias discursivas. muitas vezes. Trabalho sólido.revistalingua@gmail. Renata relaciona a mobilidade das concessivas a distintos efeitos consequentes da ordem.br/textos/83/artigo270372-1. déik-e-ti etc.-as. -es. tempo. dada a raiz dik-. língua-mãe do latim e "avó" do português. deveríamos reconhecer novas conjugações dos verbos Aldo Bizzocchi Gramáticas e livros escolares ensinam que o português tem três conjugações. Além disso. Alguns desses sufixos eram também vogais ou ditongos. identificadas pela terminação do infinitivo: a 1ª conjugação em -ar.). -emos. amas. modo. ou "fracos"). enquanto outros (derivados. "poder". Um verbo de 1ª conjugação. "ir". dik-á-ie-ti) etc. número.e suas irregularidades -.. -am (amo. temos de retroceder no tempo cerca de 6 mil anos. Como explicar então verbos irregulares como "estar". Histórico As conjugações seriam então os padrões básicos de flexão dos verbos nessas categorias. "ser". antes. Os verbos temáticos apresentavam uma vogal de ligação entre o radical e as desinências de tempo. alguns verbos (primitivos. ama etc. Mas será que a coisa é assim tão simples? Será que apenas a terminação do infinitivo é suficiente para definir todo um paradigma de flexão. 45 . ou "fortes") eram formados apenas pelo radical. -amos. me parece um erro metodológico. Por exemplo. modo. -e. "vir".tem mais do que três conjugações. indica" (com radical no grau zero dik-). quando na maior parte das formas flexionais se desviam do paradigma. dik-á-si. -er ou -ir. essa flexão abrange uma quantidade maior de categorias: número. uma extensa lista de formas? O que chamamos de conjugação é um modelo de flexão dos verbos. "dar". mostra" (com o radical no chamado grau pleno deik-). "indico. número etc.dik-á-ie-si. Os atemáticos não apresentavam essa vogal. a 2ª em -er e a 3ª em -ir (o verbo "pôr" e seus derivados são um caso irregular da 2ª conjugação). -ais. e o verbo fraco dik-á-mi. apresenta no presente do indicativo as terminações -o. mostras. até a ancestral da maioria das línguas da Europa: o indoeuropeu. déik-e-si.e as línguas românicas em geral . portanto agregavam as desinências diretamente ao radical. havia dois tipos de verbos: os temáticos e os atemáticos. -a. "mostro. já um verbo da 2ª conjugação traz no mesmo tempo verbal -o. para entendermos como surgiram essas conjugações . Mas.Lógicas Sujeito a novidades Em vez de estabelecer inúmeras exceções às regras. dik-á-ti (ou dik-á-io. -em. Só que. pessoa etc.. indicas. assim como os substantivos e os adjetivos também têm flexões (de gênero. voz. por exemplo. traziam sufixos entre o radical e as desinências. -eis.). dentre outros? Apresentá-los como meras exceções a uma regra pelo simples fato de que no infinitivo também terminam em -ar. no caso dos verbos. "querer". "dedo". Tipos de verbos Nessa língua. isto é. tínhamos o verbo forte temático déik-o. pessoa. Talvez devêssemos considerar que o português . vais. estetc. mas de verbos atemáticos indo-europeus cujo a pertencia ao radical. es-ti etc. Por exemplo. esteve" e não "esto. O que eram sufixos em indo-europeu tornaram-se com a perda de sua função gramatical vogais temáticas em latim.com. "ir" não pertenceria à 3ª. e assim por diante. Em resumo. vêm do verbo vadere. Novas conjugações Analisando diacronicamente.Esse sufixo -a. "ser". o verbo "ser" tem infinitivo proveniente da 2ª conjugação latina (sedere). Ao mesmo tempo. estive.. que parece da 4ª conjugação.. saiu o verbo atemático indoeuropeu es-mi.br/textos/83/artigo270374-1. com base em apenas três. foste. os com sufixo -e. estaste. da 3ª conjugação. e "fui. Por outro lado. "ser" não pertenceria à 2ª conjugação.para a primeira. vai" etc. enquanto as formas finitas "vou. Da mesma forma. Da mesma forma. Na passagem do latim ao português. Origem latina Os verbos fortes.evoluiu em latim para a vogal temática da 1ª conjugação: dico. pois não provêm de verbos fracos com sufixo -a-. da raiz es-. tanto os temáticos quanto os atemáticos. estas. foi" etc. é". do verbo fugere (ou de esse. está. Só que muitos verbos portugueses têm origem complexa.asp 46 . que era verbo atemático da 3ª conjugação em latim. chegamos à conclusão de que "estar" e "dar" não pertencem realmente à 1ª conjugação. dicat (infinitivo dicare. és. es-si. "dedicar"). Isso explica por que "estar" se conjuga "estou. em vez de. o infinitivo de "ir" vem do latim ire. http://revistalingua. estabelecer um sem-número de exceções. estiveste. a ponto de os verbos fortes temáticos e atemáticos terem-se fundido numa única conjugação latina (justamente a que desapareceu no português!). conjugadas) provêm de esse. estei. dicit (infinitivo dicere. as atuais três conjugações do português provêm das quatro conjugações latinas (pela fusão de duas em uma). estás. talvez o reconhecimento da existência de novas conjugações trouxesse mais facilidade ao ensino e à compreensão da gramática da língua.uol.ou -ei. es. ao passo que a verdadeira vogal temática indo-europeia deixou de ser vista como tal em latim. estou". Ao contrário do que se possa pensar. "dizer"). convergiram para a 3ª conjugação latina. "sou. mas na verdade é um atemático (raiz indo-europeia ei-). que resultou em latim sum. dicas. os verbos da terceira se redistribuíram entre a segunda e a quarta conjugação. esta. todos da 3ª conjugação latina. já que estabeleceria novos paradigmas de flexão. que passou a ser a terceira do português. dicis. o verbo forte evoluiu para o latim dico.para a segunda ou a quarta. que por sua vez vieram de apenas duas conjugações indo-europeias. os verbos fracos com sufixo -a. mas as formas finitas (isto é. como defendem alguns estudiosos). Essa é a forte mensagem trazida pelo Guia de Uso do Português (Unesp.0 navegam pelos textos na internet e como isso se diferencia da leitura do impresso.br/textos/83/artigo270391-1. R$ 36) A obra reúne pesquisas de mestrado e doutorado de seis autores da Universidade Federal de Minas Gerais. Já consolidada como obra de referência entre linguistas e profissionais da linguagem. que exploram a maneira como os leitores da web 2. Esse leitor é alguém que vive o idioma no seu cotidiano. o livro faz um estudo do significado das palavras por meio de uma abordagem pragmática. Foco Narrativo e Fluxo de Consciência. que ganhou 2a edição atualizada pela autora. mas a professores.asp 47 . publicitários. 96 p. http://revistalingua.20) Lançado em 2008. confrontadas com situações reais de uso. antes de tudo.com. Manual de Semântica. de Carla Viana Coscarelli (org. O conhecimento das regras. Maria Helena confronta duas frentes em conflito: normativistas. de Luciano Amaral Oliveira (Vozes. jornalistas. R$ 37.) (Autêntica. 830 p. 184 p. trazendo diversos exemplos da literatura estrangeira e brasileira.. por isso tem o direito de decidir a melhor forma para apropriar-se dele.Prateleira Contra extremismos Guia de uso do português refuta o "certo-errado" e a ideia de que tudo é válido Carmen Guerreiro Maria Helena de Moura Neves: reedição atualizada da obra que virou um marco do gênero A norma pode ser contrariada. sobre o foco narrativo e o fluxo de consciência. moldado também por quem não segue à risca o português de cartilha.. Língua indica Hipertextos na Teoria e na Prática. Ao ler esse guia. A obra é um prazer para aqueles cansados de reproduções de regras. como mecanismo de opressão social. estudantes. é que permitirá ao brasileiro fazer escolhas para melhor desempenho linguístico. a obra orienta o uso da língua portuguesa nas diversas situações de comunicação. das mais gerais às mais específicas. R$ 110). escritores e demais interessados na linguagem. R$ 25) O autor se propõe a analisar diversas teorias. Maria Helena não compra versões pré-fabricadas e reflete a pesquisa do idioma que leva em consideração a tradição sem desconsiderar a língua como mecanismo mutante. de Alfredo Leme Coelho de Carvalho (Unesp. voltada não apenas a acadêmicos.. o leitor entende que é livre para escolher a maneira como vai expressar-se. Maria Helena de Moura Neves. 176 p. e os linguistas que acreditam que as normas servem.uol. Com isso. que ditam as regras do idioma e consideram qualquer desvio um erro.. como Arrudão. é palavra da mesma raiz e também dicionarizada pelo Aurélio e pelo Aulete digital. o "mensalinho" com o então governador e agora deputado mineiro Eduardo Azeredo como protagonista. Houve alguns casos em que ocorreu uma ou outra parcela. trabalhão. o valor afetivo assume tons mais ou menos pejorativos. Legislativo e Judiciário. que havia sido o tesoureiro da campanha de FHC. Com dinheiro público. a ideia implícita em mensaleiro é a do adesista comprado. ninguém põe em dúvida. ministro-chefe da Casa Civil do presidente Lula. Mineirão. trouxe pelo menos um benefício: a criação de dois neologismos. beneficiário do mensalão. Em referência a algumas palavras. o pomposo julgamento e as novas palavras com que enriqueceu nosso vocabulário. veadão. gostosão. os pagamentos nem sempre foram mensais. em dinheiro . E. (A palavra "mensalinho" não pegou. bundão. quantia em dinheiro que se dá ou se recebe referente a um mês. do latim mensuale. Por exemplo. Mas não deu resultado a denúncia do então deputado João Maia (PFL) de que ele e outros haviam recebido R$ 200 mil cada um. chefão. receberem agrados do poder dominante.Ensino O mensalão enriquece a língua A extravagante Ação Penal 470. Jefferson. a instituição da propina. Insatisfeito por não ter sido atendido em algumas exigências. machão. como resultado de denúncias do então deputado Roberto Jefferson (até agora presidente do PTB). Apesar do nome. mundão. Pelezão. Mas entrou para o vocabulário com o significado de propina. Maia e outros políticos atribuíram o controle do esquema ao então ministro das Comunicações Sérgio Motta. chorão. É o mesmo que mensalidade ou mesada. já dicionarizados: mensalão e mensalinho Josué Machado O mensalão foi assunto frequente no noticiário político dos últimos tempos por causa do julgamento no STF e das repercussões. denunciou o esquema.5 milhões. Enfim. patetão. mas apenas por dinheiro e não porque comungam com os nossos elevados ideais em benefício do povo!" (Mensaleiro. Disse Jefferson à Folha em junho de 2005 que o PT pagava mesada de R$ 30 mil a parlamentares que o apoiassem. estadual e municipal. Trata-se de neologismo bem formado com o acréscimo do sufixo aumentativo ão ao adjetivo mensal. mensalão. cavalão. a aprovação da emenda constitucional favorável à reeleição de Fernando Henrique Cardoso foi muito comentada na época. companheirão. Como discursaria um operador do mensalão: "Eles nos apoiam. solteirão.) Durante o julgamento. como em animalão. a suposta afetividade irônica é ao mesmo tempo algo contaminada por abranger ideia de corrupção. 48 . politicão. está generosamente infiltrada em todas as instâncias da administração federal.) Não importa de que lado e se com apelido ou sem. Ele mesmo afirmou ter recebido R$ 4. E sobram denúncias contra os poderes Executivo. Daí o aumentativo em nomes de estádios. maricão mulherão. cargos ou favores para votar a favor de qualquer coisa. Engenhão. em todos os tempos. figurão. e o caso acabou abafado. claro. disfarçada ou não. Mas não é novidade o fato de parlamentares (deputados e senadores). que muito militou em defesa de Collor naqueles tempos. O -ão funciona muitas vezes como sufixo moral ou ético de valor afetivo. que desnudou muita gente. negocião. o STJ preferiu tratar o caso e a causa pela discreta e anódina denominação técnica: Ação penal 470. Mas o que marcou o mensalão foi seu alcance. pois significa a compra ou suposta compra secreta do apoio de políticos ou administradores. brigão. cuja chefia atribuiu a José Dirceu. Os neologismos mensalão e mensaleiro sugiram no noticiário em 2005. No caso específico de mensalão. bonitão. bonzão. Depois disso houve o que chamaram informalmente de mensalão tucano ou do PSDB. beatão. O Houaiss o ignorou.asp 49 .. Assim como o Aulete Digital.07. de 2009. Esquema de propina. A prática ou o esquema de pagamento dessa quantia: políticos envolvidos no mensalão.ext. quando contou pela primeira vez sobre um suposto esquema de pagamentos mensais a deputados (. Diz o Aurélio: mensalão [De mensal + -ão1. Folha online.) deu à Folha.).2005) [Pl..] http://revistalingua. 05.. mesmo na última edição. 2 P.. 1.Palavra de dicionário Os dicionários não registraram "mensalão" imediatamente.] Substantivo masculino. ou que os favoreçam. 1 Quantia supostamente paga mensalmente (ou com outra periodicidade. em constante renovação. ou propina paga mensalmente a políticos que votem a favor dos governistas. sm.: mensalões.uol. E o Aulete Digital (men. Pop. de 2009.sa." (.lão) Bras. O Aurélio já o registrou a partir da quarta edição.br/textos/83/artigo270845-1. no valor de R$ 30 mil.com.: "O termo 'mensalão ' entrou definitivamente para o vocabulário político e cotidiano do país com a entrevista que o deputado (. ou de uma só vez) a deputados para mudarem de partido ou para votarem a favor de projetos de interesse do poder executivo: Acusou o deputado de ter recebido o mensalão. Nem político de supersalário. é palavra da mesma raiz e também dicionarizada pelo Aurélio e pelo Aulete digital. Não é mero "amigo do rei". Mensalão traz riqueza a idioma Por Josué Machado O mensalão foi assunto frequente no noticiário político por causa do julgamento no STF e das repercussões. é se esse processo teria resultado em mesadas parlamentares (o mensalão) ou no repasse de verbas de campanhas (caixa 2).uol. A dúvida. as pessoas compartilham o termo como estigma de manejo rápido. e entre a exatidão e a imprecisão. chefão. Beneficiário do mensalão. o "inempregável" de FHC em 1997.com. "lavagem de dinheiro". chorão. negam a compra de apoio..asp 50 . Corrupção. a suposta afetividade irônica é ao mesmo tempo contaminada por abranger ideia de corrupção. Mineirão). criador de "mensalão": hesitação semântica no Supremo símbolo. mulherão). Não fosse a invenção do termo por Roberto Jefferson em 2005 e o crime ficaria na mazela lexical dos sinônimos de "propina". Que talvez provocasse o clamor de uma CPI do Cachoeira. Pois o nome é tão especial que já ganhou seu lugar na linguagem. Acusados admitem crime eleitoral. brigão. Daí o aumentativo em nomes de estádios (Arrudão. como o "imexível" de Rogério Magri em 1990. em 1988. O valor afetivo assume tons mais ou menos pejorativos (animalão. mas sem a pecha de "escândalo da história" que a palavra alcançou. Sanduíches com queijo na chapa viram "x-fulano" (xburguer. Se um só A ser o crime que o neologismo define e a ilegalidade remonta à disputa de Eduardo Azeredo (PSDB) ao governo de Minas em 1998. enfim. Mas a coisa é complexa. cavalão. "misto quente". Representa o próprio atestado de existência de "mensalão". "Mensalão" não é da família de invenções vocabulares que costumam popularizar-se na política. do latim mensuale. beatão. Engenhão. Pertence antes ao grupo que nos legou o "marajá" de Collor. o presunto com queijo é tão especial no gosto popular que ganhou nome próprio. se é um ente ou um sinônimo) e bastariam as evidências. maricão. x-salada. O "-ão" funciona muitas vezes como sufixo moral ou ético de valor afetivo. É um tipo tão especial de privilegiado que o nome "marajá" alçou à categoria de Jefferson. não única. lembra o filósofo Jean Lauand. Dizer que não existiu é até irrelevante. "Marajá" não é um "funcionário fantasma" qualquer. O "mensalão" é o misto quente da política. É neologismo bem formado com o acréscimo do sufixo aumentativo "-ão" ao adjetivo mensal. É o mesmo que "mensalidade" ou "mesada". http://revistalingua. E.br/textos/83/artigo269454-1.Contraponto O misto quente da política Vitória do neologismo marca o caso mensalão Luiz Costa Pereira Junior Qualquer que seja o resultado do julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal. Aglutina práticas mais ou menos apreensíveis e intercambiá-veis. "Mensalão" reescreve por condensação o esquema de empréstimos fraudulentos (prática contida no rótulo "lavagem de dinheiro") para irrigar campanhas.. Não houvesse hesitação jurídica (saber se o termo nomeia mais de um crime ou só um. o caso consagrou a vitória do neologismo. claro. Mas.). A ideia implícita em "mensaleiro" é a do adesista comprado. Aqui. É algo familiar no país. embora seja o mesmo caso de seus pares (um "x-presunto"). De apelo confortável para manchetes. bonitão. quando o publicitário Marcos Valério teria criado com tucanos o esquema depois reproduzido por petistas. com dinheiro ilegal de campanhas eleitorais. mensalão. bundão. "caixa 2". Mas entrou para o vocabulário com o significado de "propina". bonzão. que confieso que conozco que no es deshonra llamar hijo de puta a nadie." Estamos tão acostumados a essa expressão que já não questionamos o fato surpreendente de que um amigo em grau máximo deva ser um "puta amigo". exímio jogador.¡Oh hideputa bellaco. Elogio com palavrão De "puta". etc.54 milhões + 80. Aurélio registra o uso ("paradoxal") de "filho da puta" como elogio de excelência: "O filho da puta é inteligente: estudou pouco e mesmo assim passou em primeiro lugar" ( Aurélio). o intenso de que se fala. que.Filosofia É grande pra caramba A vocação brasileira para o exagero seria responsável por expressões que tornam visível o uso intensificador apoiado pela preposição Jean Lauand O gosto brasileiro por intensivos e hiperbolizantes acaba gerando uma enorme gama de formas para expressar essa exagerada demanda de sinônimos. Sancho bebe da bota e exclama: . Caramba A outra campeã nacional de uso . para o chulo em lugar das comportadas: grande. "Ela era uma puta médica". E no falar do povão. "Estava fazendo um puta frio. diz o Aurélio: 3. "pra cacete". en oyendo el hideputa de Sancho -. 141 mil). duas são de longe as mais usadas: "puta" (ou na versão família: "baita") como adjetivo e "prá car*%$#" (na versão ate-nuada: "pra caramba"). iremos registrando o número de incidências no Google (em 10-7-12). Para avaliar a popularidade de cada uma. precisa abundar. precisamente pelo inusitado: imagine-se que usássemos a sinonímia sugerida por Houaiss e disséssemos que Fulano é um insigne ou ínclito amigo. em ambos os casos. 4.dijo el del Bosque. "um puta show". Assim. Extremamente grande: "Compramos uma puta casa.¿Veis ahí . extremamente etc. Um puta amigo é um "amigo do c*" ou "amigo pra c*". cuando cae debajo del entendimiento de alabarle. Ligadas a palavrões (disfarçadas ou não).no gradiente de atenuação: "caceta" e "caramba" .). até por razões de marketing e ofício. compreende-se o recurso ao c* (que ajunta ao pênis o descomunal) e à puta. intenso. enorme. a preferência é para formas agressivamente expressivas.mas este caso inclui o "puta" substantivo. Excepcional. 19 mil. A gíria vai se encarregando de criar expressões." 5. E são mais expressivos do que os congêneres (alguns já em desuso): 51 .é "pra car*%$#" (Gg 2. Chulo. grande. Se se trata de tornar visível o muito..5 mil de "para car*%$#". etc. estamos diante de um grau máximo de uma escala concreta. ostentar. y cómo es católico! E seu interlocutor: . "para cacete". Muito forte: "Recebeu dois puta(s) socos".81 milhões. "uma puta": 3. "pra caramba". já o recurso ao palavrão contribui para o impacto intensivo.respondió Sancho -. exuberar. 650 mil.Digo . Certamente. Bras. Ou que a Embratel apresentasse Bruno Mazzeo ou Maria Clara Gueiros exortando-nos: "Faz um 21 que está deveras barato". 2. ("um puta": Gg 890 mil. muito. um show impecável. visível e não abstrata como muito. O uso é antigo e não exclusivamente nosso: já no Quixote.. etc. cómo habéis alabado este vino llamándole hideputa? E Sancho sentencia: . excelente: "Eles fizeram um puta show". embora mantenha as "clássicas". abreviando por Gg. seguido do número de sites em cada caso. "para caramba".92 milhões . Caberia também "pé para o saco".. "burro de carga". nesses casos. Essa quantidade imensa é para burro.3 mil) De montão (754 mil) Do tamanho de um bonde (102) Pra dedéu (1.8 mil / 33.. ou seja. para o rei. pra cachorro." a "do c.. king size é o tamanho do rei. deu origem ao "pra chuchu".5 milhão) (chique) no úrtimo (75 mil) Pra danar (40. Em vez do abstrato "muito árduo ou tedioso" é bem mais expressivo evocar uma seringa de injeção de elefante. etc. Do mesmo modo. "para" equivale a "de" e "pra c. Fórmula Naturalmente surge a pergunta: por que o "para" em "pra car*%$#". Do mesmo modo. E entendemos o porquê de "pra burro" quando consideramos que o burro é usado como cargueiro.4 mil) A/pra dar com pau (109 mil e 138 mil) (Para) dar e vender (770 mil) De baciada (12. foi 52 .. Dizer: "isto é calor para Saara" é dizer "isto é calor de Saara". o chuchu. adequação.. a fórmula de equação: Esse "para" de proporção. não esqueçamos que há um "para" de proporcionalidade. "não aguento aquele chato: é dose para elefante". isso é calor para Saara". "dose para/pra leão" (Gg 31.? É claro e normalíssimo o uso de "para" em metáforas como: "dose para/pra elefante" (Gg 18. céu para brigadeiro (que. uma pá de (1. / cacete) notemos que. aparece também quando dizemos. não vai se expor a riscos ou turbulências). a boche. cuja dadivosa colheita pode chegar a espantosas 145 toneladas por hectare (!). Se preferirmos.2 mil) Toda a vida. "prá burro" (Gg 208 mil). E a mulher muito bela é "de parar o trânsito". Proporção Antes de considerar a expressão "pra car*%$#" (/ caramba. pra chuchu (104 mil) A rodo (276 mil) Milhões.9 mil / 25. Cavalo de batalha é cavalo para batalha.26 mil). que assumiu o sentido figurado de "pessoa que recebe tarefa excessiva.. etc. adequado ao rei. Ou a dor da ação contundente do pé sobre as partes mais sensíveis: "aquela aula foi um pé no saco".6 mil). 40 graus.8 mil): "Traduzir 30 páginas num dia é dose para leão".. às pampas (44. Um céu tranquilo é "céu de brigadeiro". "linda de morrer" (expressão que.. está insuportável. como chefão hierárquico. consagrado na linguagem matemática "três está para seis como quatro para oito". Isso não é calor para São Paulo." (Aurélio). proporcional à grandeza do rei. a mancheias. "pra cachorro" (990 mil). por superstições e tabus de gente influente na mídia.À beça (Gg 217 mil) Pra burro. bela para parar o trânsito ou mesmo para levar à morte.". por exemplo: "Meu Deus. como disse a ministra Gleise Hofmann.suplantada pela inexpressiva "lindo de viver").http://pt.68 milhão).desses que circulam na internet.asp 53 . evocando as cores da União: "se f* de verde e amarelo".docspt. Dilma não é mulher para (/de) ceder a chantagens. do car*%$#. ou também. mulher para macho nenhum botar defeito. município ou estado: "a garotada fez uma bagunça federal" (Aurélio). na expressão em foco. a Cacau do BBB 10. Para além de comprimentos. de longe. O car*%$# aparece como concretização do grande do descomunal. "passou-lhe uma descompostura federal". é quase uma expressão matemática. Veríssimo etc. tomam-se também referenciais no âmbito administrativo: não se trata da rua. mas. Jogando com vários duplos sentidos. o Sol é quente pra caralho.. a mais usada é pra car*%$#. o "para" indica mera aproximação: "O Neymar está mais para Messi ou mais para Pelé?".) .php?topic=4704. Um célebre apócrifo . melhora.br/textos/83/artigo270341-1. a Playboy fez uma célebre capa com Cláudia Colucci. 'da porra' (1. que.com. E a um referencial que tende ao infinito.traz uma sutil e pertinente sugestão: "Qual expressão traduz melhor a ideia de muita quantidade do que 'pra caralho'? 'Pra caralho' tende ao infinito. Profusão de formas intensivas e hiperbolizantes.wiktionary.com/index.. A Via Láctea tem estrelas pra caralho. só há avizinhação assintótica. também ela uma expressão 'muito foda' (Gg 2.org/wiki/caralho. E. "O direito ao palavrão" (atribuído a Millôr.68 milhão). http://revistalingua. refina o uso de Portugal." Mais de metro Diante da inigualável excelência (o c* é a melhor representação do infinito). que prefere o "como": "Isto é bom como caralho" (cf.uol. ou http://www. bairro. daí o "para" brasileiro.0) Também lida com medidas enormes a expressão "pra mais de metro" (Gg 417 mil): "esse pênalti vai dar discussão para mais de metro". Sabemos que palavras com significados idênticos e pronúncias distintas são chamadas de sinônimas (como "cão" e "cachorro"). o que equivale a dizer que é "semifonética". O trabalho etimológico de qualidade forma a base da Linguística Histórica e alicerça-se sobre textos filologicamente editados. diferentemente do inglês ou do francês. assim como o da filologia. toda escrita inicialmente fonética acaba tendo essa característica. é invertida: só a linguística e a etimologia podem verificar se uma regra gramatical tem algum pé na realidade ou é uma fantasia. pois dobra o número de possibilidades. a discussão internacional gira em torno das vantagens de uma solução ortográfica para as línguas europeias quer fonética quer etimológica. palavras homônimas. gerada pela veleidade de um gramático ou mesmo pela sua ignorância e presunção de fenômenos linguísticos. a variação linguística como algo natural e a norma culta como apenas uma dessas variantes. -ç-. o caráter semifonético da sua escrita. Pronúncia e escrita A escrita gera um problema extra. por um lado. que só adotaram a escrita latina respectivamente nos séculos 19 e 20. manteve o hmudo e as variedades de grafia para o som [s]. Se. como Aristófanes quis fazer com Sócrates em sua peça cômica e reacionária As Nuvens. ao dividir a expressão de um conceito em escrito ou falado. a pronúncia e a grafia dos termos mostram que a origem dos vocábulos não tem nada de arbitrário Mário Eduardo Viaro Em alguns de nossos textos enfatizamos que os estudos etimológicos podem ser científicos e que nada têm a ver com os "chutes" que aparecem com o nome de Etimologia em títulos do mercado editorial há pelo menos sessenta anos. o produto da etimologia. A etimologia científica difere da fantasiosa tanto quanto a Astronomia difere da Astrologia. imbuído de todas as conquistas teóricas da linguística dos séculos 20 e 21. na língua portuguesa. por causa dos étimos. th-. não tem compromisso algum com a gramática normativa. Há retroalimentação nesse ponto: se a etimologia depende de textos produzidos por especialistas em ecdótica. y e letras mudas. Uma das maiores aplicações da etimologia na gramática normativa foi no campo da ortografia. Tal discussão achou. portanto. Com o passar do tempo. paradoxalmente. A relação entre etimologia e a gramática normativa. a saber. também o inverso ocorre. pois as decisões da edição crítica muitas vezes se pautam nas generalizações da etimologia. Podemos dizer que as formas "farmácia" e "pharmacia" têm significado e 54 . um compromisso curioso.Etimologia As palavras multifacetadas Diferenças entre o sentido. -x-. -xc. -ss-. deve levar em conta não só a natural transitoriedade das expressões e dos significados. Também sabemos que há o caso inverso. mas também o sistema linguístico como algo associado diretamente a um fenômeno psicológico. Mudanças recentes de pronúncia causam irregularidades na relação entre som e letra. a possibilidade de um simbolismo linguístico para além da arbitrariedade do signo. o português não usa mais ph-. Soluções ortográficas O etimólogo científico atual. Desde o século 16. por outro. Bom exemplo é o distanciamento na pronúncia de algumas palavras no romeno moderno e no turco. se é possível fazer essa comparação. da mesma forma que não se pode responsabilizar um filósofo pela aplicação e mau entendimento de suas ideias. ou seja. portanto. sobre os quais se constrói a própria História (da língua e dos povos). com significado distinto e a mesma pronúncia (como o caso de "manga"). ampliando. Dessa forma. A escrita portuguesa é "semi-etimológica".etc. em minax "que se projeta. citado acima. no entanto. com o tempo. Também o caso de "cão" e "cachorro". entre outras coisas. tão espontânea quanto indesejada. os não-sinônimos (incluindo os antônimos) poderiam ser chamados de heterossêmicos. Algo que se aproxima ameaçadoramente. de controlar e legislar sobre a mutabilidade das formas e dos significados. no entanto. embora a pronúncia seja bem distinta (sinônimas heterofônicas homógrafas heterossistêmicas).inicial se torna im. na verdade. mas. mas escritas distintas. Tudo depende da perspectiva que adotamos: intuitivamente. mas devem estar sempre atentas ao plano real do pánta rheî de Heráclito. rigorosamente falando. para evidenciar a paronímia. a diferença entre "eminente" e "iminente" tem uma razão etimológica. no entanto. na verdade. para dentro. até certo ponto sincera (e discutivelmente legítima). Nesse caso. costumam errar na escolha e é difícil ensinar a sua distinção. A variação de uma língua no espaço é distinta da variação no tempo e sempre traz em si.porque a palavra seguinte começa com m. Trata-se de um conjunto de palavras que mistura vários dos casos logicamente separados acima. que optaram pela escrita etimológica: imminence. como se chamariam? Se os sinônimos são. Um bom exemplo para ilustrar isso são os chamados parônimos. por exemplo. daí imminentia > "iminência". ameaçador". cujo neutro plural minacia "(coisas) ameaçadoras" gerou. a mesma palavra. mesmo assim. a qual aparece. mesma pronúncia e mesma escrita (ou seja. Por purismo. "ameaça". palavras com mesmo significado.se simplificam. Apenas asheterossêmicas heterófonas heterógrafas (como "olho" e "pedra") alimentariam de fato a situação ideal em que apenas um significado se vincula a cada expressão. diferentemente do que ocorre em inglês e em francês. leva o prefixo in. seria na verdade sinônimos heterófonos heterógrafos. É sobre essa postura ideal (platônica) que se alicerça o falante. só se torna um problema ortográfico porque houve. Sentidos diversos E as palavras que não são nem sinônimas. nem antônimas. com o passar do tempo. palavras homossêmicas. entre essas também há a mesma distribuição: há heterossêmicas homófonas homógrafas (como "manga" acima). a situação da homofonia só existe no nível ideal (o mesmo se pode pensar. sabe-se que isso se deve à natureza diacrônica da língua ("pharmacia" é grafia antiga. não conseguiria entender nem ser entendido. caso contrário. A gramática normativa faz o mesmo. para não perder-se no infinito móvel que é a língua. como que forçando a entrada. que. A palavra "iminência" é latina tanto como "eminência" e compartilham a mesma raiz min-. a palavra meaça e. um estudo de fonética acústica provará que nunca duas produções da mesma palavra terão a mesma pronúncia. Eminência e iminência Por exemplo. uma transformação fonética. A heterossemia parece não chamar a atenção. háheterossêmicas homófonas heterógrafas (como "sessão" e "seção") e há heterossêmicas heterófonas homógrafas (como o substantivo "oca" e o adjetivo "oca"). cuja revitalização atualmente só se justifica por algum efeito comercial). da homografia e mesmo da sinonímia). com a mesma grafia. 55 . são sinônimos heterófonos homógrafos. essa tendência é reprimida e algumas pessoas pronunciam claramente [e] ou [i]. pronunciado por um paulista e por um carioca. A linguística histórica e a etimologia não podem ancorar-se nesse plano ideal. sinônimos homófonos homógrafos) seriam. formam um capítulo da ortografia. com a pretensão. mais tarde. Trata-se de uma situação de sinônimos homófonos heterógrafos. sob a ótica normativa: a vogal inicial átona tem a tendência de ser pronunciada indistintamente como [i]. em certa medida. diferenças de pronúncia: o mesmo vocábulo pasta. na verdade. O in.e em português as letras dobradas -mm.pronúncia idênticas. ou seja. isto é. no português antigo. a fim de garantir melhor distinção. pode ser não só para dentro. mas uma acronia (ou.com. enfim. pois sua aparição ameaçadora. se algo se avulta. A razão histórica para tais casos bizarros é que os autores de gramáticas e dicionários. usaríamos o sufixo e. algumas pessoas exageradamente pronunciam o -x. Trata-se do mesmo jogo entre i. significa o oposto."para fora" que encontramos em outros parônimos como "imigrar" e "emigrar". O prefixo ex. a saber. não raro com falhas. destacar-se". porque é substituído por endo-. As gramáticas. está prestes a entrar na situação. tal como os falantes comuns. exceto as muito recentes. Esses cultismos mostram uma duradoura prevalência cultural dos sistemas dessas línguas clássicas sobre o do português. algo que é ensinado apenas a um grupo seleto. por exemplo. como exige a ortoépia dos dicionários e gramáticas. escreve-se com -x. esoterikós. mas há casos parecidos (na linguagem biológica. já o que é esotérico só se ensina para quem está dentro (es-) do mesmo grupo. Algo que se diz exotérico pretende ser ensinado para fora (ex-) do grupo seleto. com alguma qualidade (inteligência. que pode. também "esoderme". invadila. que privilegiam a pesquisa e o raciocínio e não a decoreba de listas. já es. podem ser um ótimo incentivo da parte dos que ensinam a Gramática Normativa. é porque ameaça ocorrer. Nesses casos.Se algo está na iminência de ocorrer. apesar de usados em especialidades distintas.uol. de onde viria a palavra portuguesa "eminência".e significa algo que pode ser ensinado ao grande público e não somente a um grupo seleto. metaforicamente. é o oposto de "exoderme"). Na verdade.asp 56 . cunhando um termo novo. Originalmente. em certa medida. portanto. deixar de ser algo hermético e esotérico para ser comum a todos e exotérico. uma "anacronia") nas suas afirmações e exemplos. com o mesmo significado. de montanhas ou seres colossais).da primeira palavra como [ks] em vez de [z]. no sentido etimológico da palavra. esse é um caso raro de palavras antônimas homófonas heterógrafas."para dentro" e e.br/textos/82/artigo264856-1. como que emergindo da terra ou do mar é algo que se apresenta enormemente diante de nós e nos assombra com seu tamanho ou.significa "para dentro". Essas dicas instigantes. "êxodo" é a saída em massa de uma população (o termo "êxodo rural" aparece nas aulas de Geografia). http://revistalingua. que vem de outra palavra grega. não levam realmente em consideração a sincronia. "esotérico". sim. "Exotérico" e "esotérico" têm o mesmo problema de "emigrar" e "imigrar": o ex. significado e conteúdo são realmente interessantes e merecem ser estudados à luz da Etimologia em vez de simplesmente decorados a partir de uma lista enfadonha: "exotérico" vem do grego exoterikós. Linha tênue Alguns casos que envolvem paronímia. escritas por linguistas. sabedoria ou dignidade moral) que reconhecemos facilmente.aparece em várias outras palavras. não são cientistas e nunca tiveram ideia do que seria um sistema linguístico.é mais raro. mas para cima (falando. por exemplo.grego significa "para fora" e es. falaríamos de eminentia. Também desconhecem os estudos diacrônicos e deles só se valem oportunamente. Por outro lado. a raiz indo-europeia *men significa "ser saliente. Nesse caso."de dentro para fora". Para enfatizar a distinção. O simpático coronel Ponciano de Azeredo Furtado ordena a um funcionário que dê explicações: "Sem hora a perder. Na mão de quem saiba explorar os recursos do idioma. o que foi dito está dito. às vezes. na verdade. O trabalho com porcas e lâmpadas representa atividades corriqueiras ou literais. "ventre". mandei que desembuchasse". O desatarraxador é Bebé Reis. substantivos referentes a seres vivos. cobrador itinerante de "divídas mortas e sepultadas". mente) e não dá para voltar. nem tanto: quem desconversa. Mas. No Brasil. "desembuchar" significa "dizer logo o que tem de falar". O que está feito está feito. Há casos em que o prefixo des. Os usuários do português não precisam de dicionário para saber que o prefixo des. para podermos ser livres e "destravados"? Anos atrás. pois "procura" substantivos (desamor). diz. de José Cândido de Carvalho (Porque Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon. afirma algo (conversa. todavia. ao passo que. Uma vez que o leite está desnatado. Bom exemplo é o conto "ODesatarraxador de Dívidas". um concurso vestibular usou como tema de redação uma fotografia de uma velha catraca 57 . pois ninguém na narrativa tem em mãos uma lâmpada ou chave de fenda.Morfologia O feito pelo desfeito A linguagem literal e metafórica de "des-" mostra a rede de significados que um mero prefixo pode permitir às pessoas John Robert Schmitz A maior parte das pessoas que consulta dicionários busca saber a grafia de uma palavra ou o significado de um substantivo. adjetivo ou verbo. Prazer em desfazer José Cândido nos brinda com outro jogo linguístico em O Coronel e o Lobisomem (José Olympio). porque há coisas que ocorrem ao longo da vida que são impossíveis de desfazer. na segunda. a situação é outra. aqueles que desdizem ou desmentem. não há volta.). que foi incumbido de "desaparafusar quarenta contos de um tal Pepito Cunha da praça do Cipó dos Índios". às vezes. porque uma vez descaroçados os pêssegos e as azeitonas. não há jeito de inverter o processo. "o fresco da manhã" na verdade não tem "bucho". desdiz ou desmente. Por que não "brincar" com o idioma nos moldes d´O Coronel e o Lobisomem? Não poderíamos "desaparafusar mágoas" e "desatarraxar 'grilos'" que. Há. Quem desconversa. habitam nossas mentes. Poucos recorrem a eles para tomar ciência do significado de preposições ou advérbios. muito menos dos afixos (prefixos ou sufixos). O provérbio "Não adianta chorar sobre leite derramado" vai ainda mais fundo. adjetivos (deselegante) ou verbos (desmentir). mentem novamente. encobre e disfarça. na hora em que o fresco da manhã começa a desembuchar". o que falou tá falado. etc. Na primeira oração. José Olympio). mas os leitores entendem e apreciam a metáfora. Não sabem o que perdem.indica ação contrária: "Carlitos parafusa e desaparafusa porcas na fábrica" ou "O homem passa o dia atarraxando e desatarraxando lâmpadas". Estamos diante de uma metáfora. O substantivo "bucho" tem vários significados ("estômago". "barriga". ele anuncia uma viagem: "Saí de madrugadinha. na realidade. Em outro momento.não ocorre sozinho. ações no funcionamento do mundo que são impossíveis de inverter: "Ele vive descaroçando pêssegos e azeitonas". Junho 2004". Nem todos perceberam a crítica sociopolítica subjacente e muitos desconheceram o revestimento da palavra "catraca" em neologismos como "descatracalizar" e "descatracalização". como "terra": aterrar. mas destravadas para os desprivilegiados: dificuldades. as palavras: "Monumento à Catraca Invisível .asp 58 . cuja base nominal é "vencilho" (ligadura para atar objetos). desterrar. região e identidade sexual. Mas o que falta no ensino do léxico é conhecer o sentido figurado dos vocábulos: "desvendar os segredos". Quem descortina pode avistar à distância algum objeto ou pode perceber o que não é evidente aos outros. Um ponto positivo é que os principais dicionários do português têm aprofundado a descrição dos afixos. mas o conhecimento vocabular deve ir além. "catracaliza" a vida de muita gente. Fundação Calouste Gulbenkian e Editorial Verbo) exemplifica: "Descortinou um barco que aproximava". O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (Academia das Ciências de Lisboa. Mais complicado para alguns é "desvencilhar". de fato. por outro. Os problemas de alguns com a recepção dos neologismos com des. Notem o papel que os prefixos fazem com uma reles base nominal.("descatracalizar". temos "venda2". Sentidos É obvio que "descortinar" se refere ao ato de tirar ou abrir cortinas. como a falta de oportunidades de emprego. desvendar. Eles que permitem a expressão de diferentes significados. é mais fácil identificar a raiz ou base nominal do primeiro exemplo (cortina).br/textos/82/artigo264511-1. "desvencilhar as tramas de um discurso político".com. mais atenção aos afixos (prefixos e sufixos) da língua. Para alguns estudantes. Literalmente. É importante. me levam a acreditar que o ensino do léxico não recebe a atenção que merece.desenterrar e desaterrar. estudo e moradia. religião. etc.Programa para Descatracalização da Própria Vida.). mas há outras catracas na vida. no ensino.uol. É um mundo que se descortina com um mero prefixo. travadas para alguns cidadãos. é "soltar ou desatar os vencilhos". a disciplina de língua portuguesa é a mera memorização de uma lista de estruturas gramaticais e sintáticas que devem ser evitadas. http://revistalingua. Embaixo da "borboleta" enferrujada. enterrar. um bom exemplo de homógrafo e homófono. Mas o que significa? Em que contexto poderia ser usado? "Desvendar" pode levar o incauto a afirmar que a base é o substantivo "venda1" (trocar ou transferir algo por dinheiro) e quando se trata de "um pano usado para cobrir os olhos das pessoas". desvencilhar).numa praça de São Paulo. O estudo deles é parte essencial do vocabulário. Com respeito aos verbos de origem nominal (descortinar. o estudo das acepções figuradas do léxico e. A existência de preconceito e intolerância com base em raça. Descatracalizar o mundo Virar a catraca de um ônibus é uma coisa. oferecem a possibilidade de trocas de mensagens em tempo real e isso permite que os usuários "sintam-se falando por escrito". a linguagem dos diálogos nos programas MSN e Skype. Modesto observou a necessidade de se estudarem esses novos gêneros textuais e possibilidades de comunicação. para "encurtar distância". os enunciados ganham marcas da oralidade. dependente do interlocutor para se desenvolver e não apoiados na fala/ oralidade. Defendendo que a conversação digital se apresenta numa linha tênue entre fala e escrita (uma espécie de "texto falado por escrito"). flogs. por meio de outro AED. particularmente os quais chamou de "conversação digital". e ambos respondem aos AEDs disparados. Ao discutir os avanços tecnológicos na comunicação e discorrer sobre como a internet tem causado grande impacto na vida do homem e da sociedade. caracterizados como a atualização da língua numa situação de interação por meio da escrita. mas ainda pouco estudadas pelas nossas ciências do texto. Outra marcante semelhança entre a conversação digital e a interação face a face é o uso intenso de marcadores conversacionais. fóruns. que criam o efeito de proximidade própria de interações de corpo presente. e por se tratar de um ambiente digital. conversação digital. É como se os recursos linguísticos fossem acionados para simular interação face a face. Além disso. O autor argumenta então que. pois não há a necessidade de "lutar" pela vez de falar. a ponto de fazê-lo interagir em tempo real. e-mails. produções textuais muito usadas. Nessas conversas. servindo a linguagem. ambos os interlocutores disparam AEDs. classifica-o de Ato Enunciativo Digital (AED). microblogs. Também não é necessário "sustentar" a vez de falar. literalmente.com a chegada da internet ao Brasil . sem a necessidade de esperar pela "vez" de falar. como diz o já velho jargão. encontramos nesses ambientes virtuais também marcadores de uso exclusivo desse universo. Esse AED teria ação de natureza linguística. Processos Interacionais na Internet: análise da conversação digital. pela tomada de turno. o que evidencia o caráter dinâmico e dialógico desse tipo de interação. chats. o conhecido bate-papo. os interlocutores produzem atos enunciativos.houve uma explosão de novos gêneros textuais: blogs. os quais serão respondidos à medida que se leem os enunciados disparados. listas de discussão. Conversa digital Os comunicadores instantâneos. não se pode considerar a troca de falantes como relevante para a instauração do processo conversacional. garantir que o outro ouça em silêncio enquanto uma fala é proferida: ambos podem emitir seus AEDs simultaneamente. Por não representar um turno. Na conversação digital não há alternância nos papéis de falante e ouvinte: ambos os interlocutores interagem simultaneamente no ambiente virtual. esse ambiente conversacional teria suas peculiaridades. em vez dos tradicionais atos de fala de uma conversação presencial.Academia Os diálogos em internetês Tese de doutorado defendida na USP analisa a linguagem de processos interacionais na internet Marcelo Módolo e Henrique Braga Desde a década de 1990 . nas conversações digitais. ou seja. Além de marcadores próprios da oralidade. Desvendar um pouco dessas novas estruturas é o que nos propõe o doutorado de Artarxerxes Tiago Tácito Modesto. capaz de produzir efeitos pragmáticos no interlocutor. Modesto postula que estratégias conversacionais próprias das interações face a face poderiam ser usadas no meio digital. acionando assim o processo conversacional digital. Assim. como MSN. dentre outros. geralmente adaptações de situações da interação face a face. 59 . Interlocução No bate-papo digital. verbal e interativa. Marcadores Elencamos elementos que atuam como marcadores conversacionais de uso exclusivo no ambiente virtual. ae. prosódicos. Indo além do que está na superfície. em): Na interação face a face. finalizações e até em progressão de tópico. encontrados nos inquéritos analisados pelo autor: a) Reticências (. a tal "linguagem de internet" parecia se resumir às temidas abreviações (como "pq" em vez de "porque".. não seria nada ruim se a escola pudesse tirar proveito do contato que os adolescentes têm com esse tipo de escrita para. b) Onomatopeias (ae.. ou "vc" em substituição a "você"). indicando entonações diferenciadas. muito já se falou sobre aspectos mais superficiais presentes nesse tipo de interação. Passo importante nessa empreitada é entender o funcionamento da conversação digital. L). c) Emoticons: Figuras iconográficas que representam expressões faciais. padrão.. onomatopeias ou os emoticons (expressões iconográficas que representam emoções humanas.. por meio da imitação do som e variação da voz. Para isso. representado na interação virtual pela expressão lexical do falante com o uso de onomatopeia. Modesto aponta em seu trabalho complexos processos mentais por trás desse jogo interativo. indicando que um EAD será seguido de outro. essas imitações se lexicalizam na digitação de diversas maneiras. graças a esse tipo de interação. d) Caixa alta: O uso de maiúsculas remete ao tipo de marcadores não linguísticos. que passa a ser encarado como algo mais que uma brincadeira de crianças ociosas.. conforme vimos nos exemplos apresentados. que o completará.): Representação prosódica. como por exemplo: J. elas visam demonstrar emotividade dos interlocutores no momento da conversação. nervoso e descortesia (como: JÁ DISSE QUE NÃO VOU!!!!).asp 60 . valendo-se disso. enquanto os prosódicos são representados por vários elementos gráficos.. auxiliar os alunos a melhorarem também sua escrita formal. Parece ter uso para hesitações. existam hoje mais jovens em contato com a palavra escrita. que podem ser consideradas como "animação" do falante (como: AHUEHUEHUEHHAHEU) ou raiva. é comum as palavras serem acompanhadas de pequenos gestos ou de tom de voz mais intimista. Se essa tendência é irrefreável.uol... ae. haha.Os marcadores verbais lexicalizados são representados tal como na conversação face a face (só que por meio da escrita). Ensino Para muitos.. que indica pausas.br/textos/82/artigo264516-1. como reticências. uffa.com. Preocupados com as supostas danosas consequências que a escrita dos chats teria sobre a escrita escolar. a pesquisa de Modesto muito contribui. Seria difícil negar que. http://revistalingua. ainda que com essas peculiaridades analisadas por Modesto. curtas ou longas. Na interação digital. Mas há influências e influências. para ceder quando não se tem razão. no entanto. E de malícias retóricas a que nem sempre estamos atentos. Não é só a opinião crua. na mais isenta entrevista de emprego. Como identificar Mas sempre é possível reconhecer uma falácia. É introduzir gradativamente argumentos aceitáveis cujas conclusões deem suporte à conclusão final. não é ganhar o debate no grito. Enquadrar é tentar modificar o conjunto de opiniões e valores prévios. nem teriam paciência em me ouvir. Argumentar. É preciso que a opinião seja transformada num 61 . é questão de prática desenvolver um radar interior para as falácias. uma vontade de chegar perto de um ponto de vista razoável. na negociação familiar do melhor período para as férias. A comprovação do que se defende requer uma sequência de fatos contextualizados. Parecer convincente. As ciências da linguagem já constataram que o melhor começo para quem não deseja cair na conversa alheia é assumir sua parte no processo. que perfuma o ouvido desavisado. A responsabilidade de não se deixar levar por afirmações enganosas é da vítima delas. não é um raciocínio pouco rigoroso. para só então abrir espaço para a nossa opinião. Um argumento é uma opinião formulada para convencer. Para Breton. Para isso. na conversa de bar.Argumentação Um radar para a fajutice Não é só na política que é preciso ficar atento às táticas falaciosas Luiz Costa Pereira Junior Influenciar é a habilidade de provocar crenças. Por isso. ou a que induz o interlocutor a admitir uma ideia que logo depois será usada contra ele. O principal é verificar se as premissas (os argumentos que sustentam uma opinião) são justificáveis. como a de quem aprova um aspecto da afirmação (para parecer que concorda). na indústria da saúde e no mundo dos negócios. não é defender algo de maneira débil. É recurso antigo o de preparar o terreno. O cotidiano é um imenso espaço de interação. apresentar uma opinião não é o mesmo que argumentar. é mandamento em voga nas CPIs do parlamento. Pode estar empoleirada. Convencimento O francês Philippe Breton. no pedido de desconto. descrever uma situação facilmente assimilada pelo ouvinte. o que sobrar (as premissas) será algo com o qual concordamos? Então. Há falácias sutis. Usar falácias tem consequências. portanto. Sem esse esforço prévio. o vale-tudo retórico de quem quer vencer a parada a qualquer preço. Não posso defender a liberalização das drogas a policiais sem antes derrubar seu natural asco pelo assunto. em A Argumentação na Comunicação. antes de emitir pra valer a própria opinião. sem necessariamente ter razão. serão importantes as afirmações que guardam relação com a conclusão. convém identificar o ponto central sobre o qual querem nos convencer. partilhados por quem nos ouve. do horário eleitoral gratuito ao púlpito dos pregadores e às fantasias vendidas na internet como verdades científicas. chama o expediente de "enquadramento". na negociação das dívidas. mas se detém muito mais tempo em seus fatores negativos. Dos sofismas gregos aos contos do vigário da esquina mais próxima. Uma reunião de acionistas alimentada por argumentos falaciosos pode fazer uma empresa perder milhões. E isso não é fácil. na resposta de um exame escolar. Defender o uso de um remédio de forma falaciosa pode pôr em risco a população. Se isolada a conclusão do raciocínio. Isso exige disposição para respeitar o outro. a conversa fiada é uma sereia sedutora. recebe o argumento de que só as mulheres têm direito a discutir a questão. Quando a ciência engana Oportunismos de mercado fazem com que as pessoas sejam bombardeadas com novos e milagrosos produtos. É preciso rebater separadamente as questões implicadas na mesma pergunta: primeiro. dizendo que não é verdade. Rebatemos. ao pôr em dúvida sua confiabilidade. Foi assim que a berinjela com suco de laranja passou a ser indicada para a redução do colesterol. mas ideal para "pegar fogo". A falácia desqualifica o oponente. um aluno pergunta a um professor. apesar de ter sido comprovada apenas em coelhos. melhor para a manobra. mas manipulando. É um tipo de falácia comum o de desqualificar uma afirmação desancando o oponente (ad hominem. Desviar a argumentação para uma questão acessória é um procedimento similar a esse. garantem Carla Yamashita e Karin Sedo Sarkis. Refutar outra coisa Aristóteles chamou de ignoratio elenchi a estratégia de argumentar algo que não tem a ver com o ponto em discussão Um estrangeiro diz que nossa cidade é violenta. ter o espírito disponível a não aceitar só uma delas. O argumento busca silenciá-lo.a reconstrução da opinião alheia de forma diferente da original. competência. seja apresentando contradições entre palavras e ações do oponente.não o argumento A técnica ad hominem recria opinião alheia para fazer a conversa "pegar fogo" Um homem faz objeção à descriminalização do aborto: como resposta. qualquer que seja a resposta. Piada dos tempos da cortina de ferro: num país do Leste Europeu. a seguir. na linha: "Onde V. Algumas falácias exploram o preconceito e a boa-fé do ouvinte e do leitor. Na ignoratio elenchi. Quanto mais sutis as diferenças entre a opinião contestada e a original. não necessariamente seu discurso. comprometem o entrevistado. pois a dele tem muitos mais crimes. a atenção para algumas delas. Toda plateia tem tal volume de opiniões e valores.argumento adequado a um auditório. as mais correntes usadas com apelo nas mais diversas situações do cotidiano. A falácia da acusação Comprometer o interlocutor é expediente comum em acusações de todo gênero O recurso retórico clássico nos interrogatórios das CPIs é o plurium interrogationum (a falácia da pressuposição). honra) ou indireto (à imparcialidade: ressalta-se a característica positiva do oponente para mostrar como ele é tendencioso). que é preciso que a opinião se ajuste ao contexto em que será recebida. que falava mal da economia norte-americana: "Qual o salário médio nos EUA?" O professor respondeu: "Eles matam negros". Contestar a pessoa. A pessoa faz perguntas que. incapaz de refutar a proposição do outro. Sa escondeu o dinheiro que roubou?". Elogiar as qualidades de uma opção sem abordar os contrapontos que a questionam também não é argumento. Algumas pesquisas relatam resultados positivos só em animais. 62 . muda o foco da questão. Em Refutações sofísticas. e não em humanos.Como a comida protege a sua saúde? (Campus Elsevier-Fleury) Se defendemos uma opinião diante de um interlocutor fingindo apresentar todas as opções existentes para que ele tome uma posição sobre o tema em pauta. pois o homem seria parcial pela própria condição masculina. Chamemos. o debatedor. Aristóteles chamou de ignoratio elenchi (ignorar o que se deve refutar) a estratégia de quem argumenta algo que não tem a ver com o exato ponto em discussão. dirigido à pessoa). É propaganda. seja por ataque direto (ao caráter. mostrando ao adversário que ele é quem está implicado no problema. É preciso se perguntar pelo conjunto de evidências. em Alimento Funcional . É o que os americanos chamam de straw man (espantalho) . não estamos de fato argumentando. a premissa (roubou?) e só então o ponto central (onde escondeu?). originalmente. Em retórica. a premissa depende da verdade da proposição "Deus existe". O raciocínio é circular . Evidentemente. é preciso desconfiar de introduções como "claramente. ele crê em". porque. porque a Bíblia o diz e a Bíblia é a palavra de Deus. mas. de cúmplice. mas não pelos motivos alegados. substituindo. com vistas a fugir da questão de que a corrupção está disseminada entre os homens públicos.defender uma tese por meio de uma premissa equivalente ao que está em discussão. Em Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão. tem. Se alguém responde: "Nem todos os políticos são corruptos. cuja forma mais simples é A. o que se faz é inserir um comentário prévio. Trata-se de um raciocínio circular. Iluminar o detalhe secundário Cuidado com quem ataca os argumentos frágeis e ignora os mais fortes Uma falácia comum é atacar os argumentos mais frágeis arrolados na defesa de uma proposição e ignorar os argumentos mais sólidos. que consiste em demonstrar uma tese com um equivalente ou sinônimo do que deve ser demonstrado. quando alguém diz: "Muitos políticos são corruptos" (quantificador não universal). Esse raciocínio é conhecido com o nome latino de petitio principii (petição de princípio). Jefferson teria o mandato cassado em 14 de setembro daquele ano. Generaliza-se.O divórcio entre premissa e conclusão Derivados da falácia non sequitur fazem a festa Quando se diz "A eleitoreira política da oposição de introduzir temas como aborto no debate eleitoral visa assustar os religiosos pró-governo". não pode ser o ponto de vista comum. Dessa forma se mostra o adversário mais fraco do que ele de fato é. Pouco importa se a tese anterior (se Dirceu patrocinou um "mensalão") estivesse demonstrada. está generalizando a afirmação do outro. Atribui-se ao ponto de vista um alcance mais amplo do que ele. portanto. como se fosse um ponto de vista comum. Jefferson deu por concluído seu raciocínio com uma sentença geral. que é precisamente o que está em discussão. quantificador não universal. A proposição em questão é o que está em debate e. O que é concluído pode ser verdadeiro. defendeu-se alfinetando. Acusado de controlar um esquema de corrupção nos Correios. Posso citar exemplos de políticos honestos". é derivado do non sequitur . A ênfase excessiva na obviedade de um ponto de vista ou na exatidão da maneira como está sendo exposto deve sempre levantar a suspeita de que ele esteja sendo deformado. Por isso.a não implicação lógica entre premissas e conclusão. Não é absurdo? Você deixaria um camarada que rouba sair ileso?" Não. Virou-se para uma câmera de TV. Afinal. Assim. quantificador universal. Induziu a culpa do outro. explícita ou implicitamente.fallacia non causae ut causae (tratar como premissa o que não é premissa). se ele não existisse não haveria palavra de Deus. O então deputado federal Roberto Jefferson depôs no Conselho de Ética da Câmara em 2005. Arthur Schopenhauer chamava o expediente de "falácia do efeito sem causa" . atribuiu ao então ministro José Dirceu a compra de apoio parlamentar pelo governo. portanto A. Generalização Generalizar uma afirmação que. 63 . Raciocínio circular Uma ressalva a quem defende uma tese por meio de uma premissa equivalente ao que está em discussão "Deus existe. "alguns" por "todos". O julgamento do mensalão começa em agosto. é preciso que as palavras que expressam as duas proposições A sejam ligeiramente diferentes. Mas ali. o olhar atrevido. de fato. "o autor está fascinado por". uma pressuposição que vira verdade. somou uma conclusão à ideia de culpa genérica. da qual dificilmente se discordaria. Mas já deu margem a apelos do gênero. e "todos". antes de sustentá-la. para que ele seja persuasivo. ainda longe da degola." A premissa de que a Bíblia é a palavra de Deus pressupõe que Deus existe. era mais restrita Há dois tipos básicos de quantificadores: "alguns". não deixaria. "Dirceu dava aos deputados R$ 30 mil por mês. uol. São Paulo.br/textos/82/artigo264828-1.Pensamento Crítico e Argumentação Sólida. É preciso cuidado porque as frases usadas por uma pessoa continuarão a produzir sentidos por si mesmas se tiradas do texto original.A Argumentação na Comunicação. cuidado com propagandas com personalidades que admiramos. 1999. São Paulo.com.Descontextualização Tirar uma afirmação do contexto para melhor contestá-la Retirar do contexto uma afirmação é uma eficaz forma de trapaça retórica. Tradução Renata Cordeiro. O apelo ao sentimento Exige cautela ouvir uma opinião de alguém que se admira Uma maneira de convencer é apelar ao sentimento que temos por alguém ou à confiança que temos em sua autoridade. .A Arte de Persuadir. Confira . Por isso. Nós nos questionamos menos quando gostamos de quem quer nos convencer de algo. Philippe Breton. Publicações Intelliwise.asp 64 . Landy Editora. Blaise Pascal. Bauru. . Sergio Navega. Edusc. http://revistalingua. Na península Ibérica. em que o som ch = x. É o caso dos encontros pl. como lunam > chuna (em português "lua". Não estão aí só para servir de chacota de pessoas que vestem anacronicamente a casaca empoeirada dos puristas e não sabem nada sobre a história da língua. Alguns fenômenos históricos pertenceram a uma dada sincronia da língua. cinza. 65 . sua permanência ou alteração ao longo do tempo. como se depreende da primeira gramática da língua portuguesa. O romeno fica no meio do caminho. os encontros consonantais têm diferentes soluções. no castelhano). de pl > ch e de cl > ch é tão marcada na história como sotaque dos falantes do noroeste peninsular que jamais voltou a ocorrer outra vez na história. Essa transformação. tchuva e tchave são testemunhados por Amadeu Amaral no início do século 20 como pronúncia típica do dialeto caipira. gerando os sons *plh e *clh.e cl-. que é língua celta). outros parece que começaram no passado e não deixaram de ocorrer nunca. No Brasil. adquiriu tonalidades de som fricativo lateral (estranho som que se vê no galês llwyd. Nessas regiões. costumo chamar a atenção para uma diferença que raramente se faz de maneira clara. portanto. como mostra Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida: esses falares têm por base o português paulista levado pelos bandeirantes. das línguas românicas. transformandoo em algo parecido com nosso "lhe". Ainda é comum hoje nas regiões próximas a Cuiabá. em castelhano luna). parece conservar a pronúncia dental (ou o contrário? O francês teria alterado uma pronúncia palatal? Não há certeza de como era a pronúncia do latim vulgar). Os que ocorreram uma vez só raramente voltam a ocorrer. ouvia-se qualquer l ser pronunciado assim. que existiam em palavras latinas. Essa letra ll equivalia ao lh português.e cl-. que se valeram da pronúncia quinhentista.Etimologia Encontros mutantes Transformações históricas em palavras com pl. Em francês. talvez devido ao sotaque celta da região. temos pluie e clé.e clOs encontros pl. pois diz ploaie e cheie. além dessa. No espanhol (ou melhor. Só o francês. de Fernão de Oliveira. Chove chuva As transformações de encontros consonantais como pl. mas em línguas crioulas de base portuguesa. em que vemos a passagem do l > *lh > i. como Nunes de Leão): palatalizou-se o l. mudaram nas línguas românicas (tal quadro comparativo já existe em autores do século 16. Pesquisar com detalhes a beleza da distribuição de formas como essas pode ajudar a entender os fenômenos migratórios do passado. outras pronúncias regionais. entre os bables leoneses.confirmam tendência atual do idioma Mário Eduardo Viaro Quando falo da história da língua portuguesa a meus alunos. Já o *lh.e cl. Esse *tlh evoluiu para algo como *tch: essa pronúncia se encontra não só no galego moderno. de onde viriam o galego e o português modernos. para os equivalentes latinos pluviam e clavem. Histórico Nos falares do noroeste peninsular. A pronúncia simplificada de "chuva" e "chave". houve simplificação com tendência a eliminar a consoante inicial: lluvia e llave. E mostrar que muitas variedades tachadas como "fala de gente inculta" revelam conservações de expressões regionais portuguesas e algumas remontam a formas medievais. mas hoje há. O italiano diz pioggia e chiave. pertencem a várias sincronias. a consoante inicial desses encontros se tornou um *t. é fenômeno cujos indícios se encontram já no século 16. Não nos espantaria que menos de um século depois. faz-se sentir a crioulização do latim. De fato. ora se mantém com pl-.). Começou. como ocorreu em "chuva"? O francês plaisir e o italiano piacere seguiram o caminho normal. "planta" e "placa" se tornaram pranta e praca já faz tempo na língua falada.O prazer da troca do l pelo r Palavras como "prazer" mostram fenômeno permanente no idioma Há mudanças que não são tão características de uma região e época. um Toyota Corolla roubado foi recuperado por policiais rodoviários graças a um erro de grafia na adulteração de um emplacamento. a não ser em etimologias hipotéticas (das palavras "chorume". fiel à pronúncia popular. na origem da língua portuguesa e está longe de desaparecer. mais recente do que a de "prazer"). Alguém poderia perguntar-se: mas se essa palavra tem um pl. *chor. com a popularização. 66 . Nesse processo complexo. que é mais fácil e nem requer pesquisa. Assim. Aparentemente. só nos resta o preconceito linguístico. Até nos documentos do motorista aparecia "Frorianópolis" em vez de "Florianópolis". portanto. foram feitos na ocasião. diz placer (no entanto. o chamado rotacismo. de Nebrija. ainda que necessária ao entendimento complexo do fenômeno.latino ora se transforma em ch-. porém. logo teremos uma porção de outros exemplos. encontrássemos já a grafia "praca". sobretudo com o advento do cristianismo. a distinção entre l e r (dental) costuma ser a última que a criança faz quando aprende a falar. se erudita ou popular. mostra a tendência de rotacismo no espanhol antigo). alicerçados no preconceito linguístico. Passada a fase de pidgin entre habitantes e soldados romanos. O Brasil das "pracas" Origem. superstrato ou adstrato. placidus > "plácido" é palavra erudita (seu uso moderno e mesmo sua acentuação proparoxítona reforçam o fato): isso explicaria por que o pl. Em 2006. Essa palavra parece não ter tido a mesma frequência de uso e a sua introdução na língua falada se deve talvez menos à aquisição bilíngue de adultos ou à aquisição da linguagem das crianças e mais a um aumento vocabular pela qual a língua passou. a primeira gramática da língua castelhana. enquanto o espanhol. A transformação de l > r. nunca foi registrada. A palavra "flor". Caso contrário. "chorudo" etc. Mas nem tudo é tão óbvio: "planta" é uma palavra de uso corriqueiro na língua moderna. "Placa" é mais recente: sua primeira ocorrência no português é do século 18. Enquanto pluviam > "chuva" aponta uma trajetória popular. de onde se deriva o nome próprio "Floriano". no fim do século 15. base para o nome da capital catarinense. A própria grafia praca revela essa tendência. Os manuais de gramática histórica apontam ao menos dois caminhos de surgimento de palavras a partir do latim e daí falarmos de étimos populares e étimos eruditos. o português diz "prazer". define mudança de palavras como "placa" Se digitarmos "pracas do Braziu" no Google Images. Não se pode ligar a essa mudança qualquer substrato. por que então não se transformou em *chazer em português. A forma antiga. é ubíqua e atemporal. Comentários zombeteiros. que aos poucos passa ser a única língua do noroeste peninsular (com exceção da zona de fala basca). bem como língua de cultura por toda a Idade Média. vemos já em 1557 a palavra sendo grafada como prantas. encontros consonantais com l passam a r em palavras que se popularizam. Como as primeiras ocorrências de "planta" são do século 14. ao menos desde a sua introdução na língua portuguesa. A pesquisa sobre a datação desses fenômenos é precária. também é palavra erudita: o povo falava e ainda fala fror. trata-se de uma oscilação corriqueira que se vê já na aquisição da linguagem: nas línguas europeias. mais próximo do latim placere.inicial. mas a falta de alteração do pl inicial mostra que sua introdução na língua falada é erudita (no entanto. em inglês prejudice. o mesmo não ocorre com a transformação l > u em final de sílaba (no português brasileiro. Em Portugal. Mas isso tem de ser feito rápido: a escola. as gramáticas e os preconceitos populares pegam pesado ao extirpar as variedades sociolinguísticas (sobretudo. lança mão da visão enviesada dos que querem fazer uso universal da gramática normativa. mas diferente do l do italiano. ao se trocar o l por u. mas. não ocorre mudança de pronúncia do l em u Se. pois até a palavra "julgar" poderia parecer espúria: afinal. a transformação l > r é eivada de preconceitos. No Brasil. Na língua portuguesa. Se julgar e prejulgar parecem situações cômodas. A fala de uma classe social não é algo que deva ser erradicado. a pronúncia lateral era ouvida nas transmissões radiofônicas do início do século 20. para o mesmo significado. que possuímos antes de julgar um fato. com uma velarização simultânea (equivalente ao l do inglês. Antes fazem com que ele se sinta deslocado na sociedade. a pronúncia do l tem ainda o valor lateral. a tolerância e a manutenção do bilinguismo dialetal são vitais ao entendimento da história da língua e à integração do indivíduo que não recebeu a "variante administrativa" padrão de forma quase natural quanto os que tiveram privilégio de cursar boas escolas. mas que isso reflita um problema da fala). mas tal uso hoje parece arcaico). mais do que fazem com as regionais (se pudessem). comentários azedos também contra essa pronúncia hoje típica de todo o Brasil."Mau" e "mal" não se confundem na fala Em final de sílaba. como se fala) é resultado de decisão errada. Não é à toa que tantas línguas usam. até início do século 20. palavra culta. mas hoje é cada vez mais rara: apenas pessoas muito idosas por todo o Brasil ainda falam assim. em francês préjudice. esse l vem de um estranho *judgar (veja o inglês judge). O respeito às variedades e a sua preservação. as das classes baixas). de modo que um português pronuncia diferentemente "mal" e "mau". na pronúncia. Esforços para aniquilar formas coloquiais usadas pelas classes mais pobres. em italiano prejudica. não trazem ao falante o bem-estar apregoado. No entanto. normalmente errôneo. jamais poderíamos julgar corretamente. Em espanhol dizemos perjuicio. Já não há mais. para tal.entre vogais (que caiu em "prejuízo" 67 . No mesmo terreno dos preconceitos morais e dos prejuízos monetários está o verbo "prejudicar". como mostra a conservação do -d. Há reflexão um pouco mais amadurecida com relação às línguas indígenas nativas do país. francês e espanhol). que remonta ao judicare latino (o espanhol diz juzgar). como podemos deduzir da grafia "Braziu" acima (há quem pense que não se cometa só um erro ortográfico. pois parciais). a palavra "degrau" rima com "canal"). a despeito de sua existência em séculos de expressão. "Preconceito" é sinal de "prejuízo" Diferença entre "conceito" e "juízo" distingue formação de palavras em línguas distintas O termo "preconceito" é uma formação por prefixação: um conceito prévio. por ser apressada. o preconceito sequer poupa a tolerância da língua falada. o "prejuízo" econômico (ou "preju". Já houve. porém. a qual diz querer integrá-lo por meio da escola. Prejulgar o julgamento Conduta preconceituosa não explica formação da palavra "julgar" Se usássemos o raciocínio remendão. como se fosse adequada a todas as situações. mas raramente se pensa nisso para além dessa situação. o mais útil para gerarmos conhecimento novo é investigar. perpetradas por quem já está assentado em verdades (discutíveis. como a fome. a palavra "prejuízo" (o próprio português dizia "prejuízo" com o sentido de "preconceito". embora a pronúncia original do l também se ouça em outras faixas etárias à medida que vamos para o extremo sul do país. outras regiões pronunciam-no diferentemente: é dental em Portugal. http://revistalingua.uol. o verbo "prejudicar" já existe na língua portuguesa desde o século 15 (na forma perjudicar). Esse fenômeno ocorre em dialetos em Portugal e na Espanha. mas não em francês. farso etc. Em vez do famoso r retroflexo da fala caipira. as alternativas à pronúncia do l sofrem intenso preconceito: a "pronúncia caipira" tradicional faz rotacismo também em fim de sílaba: sordado. convido a ouvir no YouTube o belíssimo fado Os teus olhos. é universal nos crioulos de base portuguesa.com. em vez de "garfo" e. interpretado por Germano Rocha: descobrirá perplexo que "os teu zóio" está presente na fala lusitana popular. alicerçada em fatores econômicos). pois também ocorre em grandes áreas do Centro-Oeste. Para quem pensa que fenômenos desprestigiados são deformações da fala brasileira. O vigor da pronúncia caipira do l História mostra que rotacismo virou tendência da variante brasileira do português A vocalização do l é hoje a pronúncia padrão do português brasileiro culto. já em algumas regiões do Nordeste.br/textos/81/artigo262654-1. ouve-se aqui e ali uma pronúncia aspirada: bahde. por fim.e no espanhol perjuicio. no Brasil. está longe de ser uma peculiaridade de São Paulo. por hipercorreção. inglês e italiano). Minas Gerais e Paraná. Apesar de culto. Dada a escolha arbitrária (na verdade.asp 68 . sobretudo nos asiáticos e. em vez de "balde". ouve-se u: gaufo. carça. também seguidas de líquidas. pude/pôde. o falante do português se baseia numa quarta proporcional: "fui" está para "foi". Um aluno escreveu. Imaginei que o garçom deveria dizer "piscologia" ou "táquis" em lugar de "psicologia" ou "táxi". sigo/segue. "aprazer". Daí o nome "hiperurbanismo" por que também é conhecida. v. É o erro proveniente da tentativa de se atingir a norma culta urbana. como rt (arte) ou st(costa). que certamente não retratava a pronúncia do aluno nem a de ninguém de sua sala. como em "abraço". em agosto de 2009. num entrevero violento com o senador Pedro Simon). Por razões alheias à minha vontade. nem no dialeto do falante que comete a hipercorreção.onde ele diz -i-. no mesmo tempo verbal: tive/teve. poderá dizer "telha de aranha" ou "pilha de cozinha". por exemplo. que "o rapase era amigo de infância". a hipercorreção resulta numa forma lingüística que não existe nem no dialeto culto. só há grupos impróprios quando a primeira consoante é uma fricativa alveolar surda ("asco") ou sonora ("desde") ou uma consoante vocálica ("arte". O difícil. acreditando que está "errado" dizer "teia de aranha" ou "pia de cozinha". entre outras. li a nota de despesa que um garçom me trouxe à mesa. "alce"). por Fernando Collor de Mello. Só por acaso descobri a razão desse "rapase". editado em 1971 pela Slatkine Reprints. As gramáticas ensinam que grupos consonantais próprios são os que se pronunciam na mesma sílaba. corresponde a uma vogal média (e. Como ele escreve "quase". firo/fere. etc. Na conjugação popular do verbo "viver". Os grupos impróprios são os que se pronunciam em sílabas diferentes. assim como "trusse" (pronúncia popular estigmatizada da forma "trouxe". é descobrir a analogia que levou à hipercorreção. além do "digiro-digere". porque pronunciava "rapais". Quando diz "eu trusse" por "eu trouxe". pus/pôs. por força da competência transitória na língua estrangeira. 3ª pessoa).").o) na 3ª pessoa. num trabalho. usado no início dos "trabalhos" parlamentares. de Genebra.. Outros grupos 69 . achou que deveria escrever "rapase". De fato. fiz/fez.. "trôsse" (pronúncia usual de "trouxe". estive/esteve.Gramática A regularidade do tropeço Equívocos gramaticais podem esconder mais analogias do que os professores costumam admitir José Augusto Carvalho Perguntaram-me uma vez se existe algum livro que ensine a prever e a normatizar a ocorrência de desvios gramaticais. A base de uma gramática de erros está na analogia.u) de um verbo. na 1ª pessoa. Por ouvir uma pessoa culta pronunciar -lh. fui/foi. Hipercorreção A hipercorreção também pode ser causa da regularidade de um erro. no número 779-80 do Suplemento Literário de Minas Gerais. um falante pouco escolarizado. mas pronuncia "quais". Na verdade. "O papel da análise de erros no ensino de idiomas". às vezes. O aluno pronunciava "quase" como "quais" ("Eu estava quais caindo. "inflar". Muitas vezes. trata da regularidade dos erros cometidos por falantes de português na aprendizagem do inglês-segunda língua.. tusso/tosse. edição de 5 a 12 de setembro de 1981. num restaurante: "1 pepis". e são normalmente formados por oclusivas seguidas de líquidas. que ele pronuncia "trabaia". temos: vivo/veve (cf. "afro". tentando falar "bonito"... sinto/sente. Ele queria dizer "rapaz". de Henri Frei. só conheço um único livro a respeito:La Grammaire des Fautes. ou das fricativas planas f. da 1ª pessoa do pretérito perfeito do verbo "trazer") está para. Um artigo de Milton Azevedo. são vários os exemplos em que a vogal alta tônica (i. como "trabalha".. as formas verbais sirvo/serve. A propósito de pronúncia. assim como "fazer" está para. além de correto. contentar-se com. Os minidicionários Aurélio e Houaiss segmentam "parapsicologia" como se houvesse hífen depois de "para". como em: tráfico/trafico. em que p e s ficam em sílabas distintas. a caracterização do que já está caracterizado. tm (ritmo).uol. trânsito/transito. dv (advoga). por exemplo. que é forma que a criança diz. Acho que temos necessidade de uma boa gramática de erros em português. por hipercorreção). há só uma ocorrência (normal) do sufixo al. "fazi". O melhor seria dizer "magríssimo" que. de Antônio Geraldo da Cunha (Rio de Janeiro: Lexikon. etc. A regência usual de "assistir" sem a preposição a. o sufixo se repete: "milhalal" (com dissimilação da lateral l da primeira ocorrência do sufixo). Mas. só são impróprios fonemicamente. pissicologia. na utilização intuitiva de sua gramática interiorizada: "correr" está para "corri". "parapsicologia" se segmenta assim: pa-rap-si-co-lo-gi-a. confidência/confidencia. silépisse. que não se constrói com a preposição "em". há entre eles a inserção de uma vogal alta anterior fechada (um tipo particular de epêntese a que se dá o nome de suarabácti ou anaptixe): adivogado. "irei sair" é futuro de futuro! Acredito que a construção "implicar em". pt (apto). bd (abdica). A separação silábica oficial é que considera esses grupos como impróprios: silep-se. iguinorante. apesar de não ouvi-la nem mesmo de um adulto pouco escolarizado. Aliás. ct (pacto). Hipercaracterização Ao dizer "rúbrica" em lugar de "rubrica" (subst. ap-to. que é transitivo direto.bt (obtemperar). assistir a. comércio/comercio.. porque..br/textos/81/artigo262650-1. Esse mesmo erro de segmentação está no Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. foneticamente. desfazer-se de. Outro caso interessante a estudar é o da hipercaracterização. como em: desdizer de. o falante comete uma hipercorreção já abonada pelos dicionários (analogia com negro/nigérrimo). isto é. mas de intensidade). cn (acne). mn (amnésia). etc. etc. a criança recorre frequentemente à quarta proporcional. se deve talvez à contaminação com o verbo ver. já que não se trata de tom.como gn (ignora). comparar com. se deva a uma tendência dos falantes a repetir na regência a preposição que lembra ou que constitui o prefixo do verbo. o sufixo -íssimo se repete ("satisfeitissíssimo"). contar com. o falante se baseia no fato de que muitas vezes a forma nominal se distingue da forma verbal apenas pelo fonema de intensidade (tasema). É por hipercaracterização que se diz "irei sair". como consta do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. Como "vou sair" já é futuro. Ao dizer "magérrimo". cálculo/calculo. isto é. etc. mágoa/magoa.asp 70 . ps (psique). em lugar de "vou sair".. ap-neia. crédito/credito. da Academia Brasileira de Letras (pretensamente de acordo com a nova ortografia). o que levou os linguistas a excluir a simples imitação como forma de aprendizagem da língua materna. conversar com. "peneu". perguntar por. Em "algodoal" ou em "cafezal". Em "grandessíssimo". com o sentido de presenciar. em "milharal". José Augusto Carvalho é mestre em linguística pela Unicamp e doutor em letras pela USP http://revistalingua.com. é menos "esnobe". pela mudança de posição do acento tônico (o nome "tônico" é impróprio.. No processo de aprendizagem da língua materna. um erro de regência do verbo "implicar". 2008). fábrica/fabrica.). por exemplo. como a preposição "com" em "comigo" (latim "cum me cum"). concordar com. Pronúncia Essa epêntese do i explicaria a pronúncia "adapito" (adapto) ou "impreguina" (impregna). bs (obs erva). por "macérrimo" (superlativo de "magro"). ft (afta). importar em. pineu (às vezes. por exemplo. como tal. diga-se de passagem. ele mesmo estabelece) numa conversa de bar. Essa matéria serve bem para mostrar a diferença de postura entre linguistas e gramáticos. É como escolher uma roupa: nenhum traje é intrinsecamente correto ou incorreto . À pergunta se o correto é "as plantações de soja estãono Mato Grosso" ou "estão em Mato Grosso". Dessa forma é possível compreender que a expressão correta é 'As plantações de soja estão em Mato Grosso'". está exorbitando de sua função. para um biólogo. Será que o sentimento dos matogrossenses em relação à língua deve ser levado em consideração em questões como essa? Universidade Federal de Mato Grosso. Para um astrônomo. portanto. a gramática normativa diz respeito à comunicação formal. afirmou: "Quando se usa a expressão 'do mato grosso'. professora mestre Carolina Akie Ochiai Seixas Lima. um físico observa. Da mesma forma como espécimes biológicos não estão certos nem errados. se este é grosso ou fino. diante de um fato concreto (como o desvio na órbita de um corpo celeste por efeito da gravidade de outro) julgar se isso é bom ou ruim é simplesmente natural. Nem receberam mandato popular nem têm qualificação científica para fazê-lo. combatido pelos habitantes do estado. na maioria das vezes. e não em algum lugar. estão apenas mais ou menos adaptados ao seu habitat. descreve e procura explicar fenômenos físicos: não faz sentido. isso se refere à quantidade e tipo de mato. não há estrelas boas ou más. cujo mote é a seguinte questão: é correto ou não usar artigo definido antes do nome próprio "Mato Grosso"? É que a presença desse artigo incomoda os mato-grossenses. uma determinada expressão linguística pode ser mais ou menos adequada ao meio (isto é. é (ou deveria ser) uma tecnologia derivada da linguística. a coordenadora argumenta: "o no só é utilizado quando você se insere. não faz juízos de valor. cujo objetivo é normatizar uma das formas de uso da língua. reacende debate sobre normativismo Aldo Bizzocchi Em abril de 2011. Em segundo lugar. jurídicos e. Por outro lado. Ciência A função da linguística é analisar. que. 71 . e não ao Estado". o jornal mato-grossense Folha do Estado publicou reportagem com o título "Você gosta de Mato Grosso?". a gramática não é uma ciência. a chamada norma culta. quando um gramático exige a obediência cega às regras (que. está dentro de algo. como textos técnicos. Seus critérios são subjetivos e calcados em meia dúzia de escritores do passado escolhidos arbitrariamente (cujos exemplos também são pinçados ao arbítrio do gramático: o que não serve para provar sua tese é simplesmente descartado). acadêmicos. não há como negar que a comunicação formal necessite de uma normatização. a ponto de um escritor do estado ter mandado fazer adesivos para carro com os dizeres "Quem fala do Mato Grosso não é de Mato Grosso". nenhum espécime é certo ou errado. um padrão criado artificialmente para ser usado exclusivamente em situações formais.depende do lugar aonde vamos. descrever e explicar como as pessoas efetivamente falam e por que o fazem deste e não de outro jeito.Lógicas Artigo de estado Polêmica sobre o uso de artigo antes de "Mato Grosso". O problema é que a maioria dos gramáticos legisla sobre o idioma sem ter legitimidade para isso. com base na Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. mas esta deveria se dar segundo critérios científicos e com embasamento em fatos e não em opiniões. também jornalísticos (certos cronistas esportivos e policiais têm a "licença poética" de usar um linguajar mais coloquial visando um público mais específico). de Domingos Paschoal Cegalla. A linguística é uma ciência e. às circunstâncias de comunicação). apenas se atém aos fatos. em Cuiabá: artigo da discórdia O jornal ouviu a opinião da coordenadora de ensino de graduação em Letras da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Aqui surgem dois problemas: primeiro. Em igual posição ficam os professores de português que embasam seus argumentos exclusivamente nesses gramáticos e dão as costas para a ciência. como m ou n. é mais desvio do que norma) fosse melhor que o jornalístico. Se a maioria dos brasileiros diz "do/no Mato Grosso" (e isso pode ser verificado estatisticamente). É por essa razão que posso dizer "bânâna" ou "bánâna". Em resumo. pois "do/no mato grosso" se referiria a uma floresta densa e não ao estado brasileiro. Mas daí a dizerem que aqueles que não o fazem estão errados e devem ser repreendidos ou reprimidos por isso vai grande distância. por mais respeitável que seja quem as emite.asp 72 . .Gramática No caso em questão. Por fim. Largo de/das Perdizes. tomam a exceção como regra. e o discurso literário (que. deveríamos dizer "de/em Rio Grande do Sul". "plâino" mas "apláinar". por esse raciocínio. é apenas isso: preferência. . ."Saudade de Minas Gerais" x "Saudade das Minas Gerais". Uma ciência verdadeira se constrói com fatos observáveis e mensuráveis e não com opiniões. . mas porque os falantes assim falam. os portugueses fossem mais sábios que os brasileiros. como se a língua de ontem fosse melhor que a de hoje. que admitem ambas as formas: Largo de/dos Pinheiros. "Estou vindo de/do Lourdes". Quanto à preferência que os mato-grossenses têm por esta ou aquela forma. "em França" (os portugueses preferem esse segundo uso). por sua própria natureza poética. especialmente lusitanos. não preciso consultar os próprios moradores desses bairros para saber como eles desejam que eu diga. O que conta para a descrição de um idioma é como as pessoas efetivamente falam e não como algumas pessoas gostariam que as outras falassem. principalmente quando o a vem seguido de fonema nasal. e não "do Mato Grosso. não porque os gramáticos assim o querem. Ora. "páineira" mas "pâina". "de/emRio de Janeiro". e assim por diante. o publicitário.br/textos/81/artigo262412-1. Se quero me referir aos bairros paulistanos de Pinheiros e do Alto de Pinheiros. o qual baseia seu veredicto em opiniões e não fatos.Em Belo Horizonte. iniciativas como a do escritor que distribui adesivos podem ser consideradas bairristas e preconceituosas.com. pode-se dizer "na África". basta que eu use uma das duas formas correntes em São Paulo. http://revistalingua. crenças ou ideologias. pois estamos nos referindo a Estados e não a rios! Aí está a típica posição de um gramático leigo em assuntos de ciência da linguagem. no Mato Grosso". . o coloquial etc. o técnico. os bairros de Pinheiros e Perdizes devem seus nomes a dois largos. apoia-se a professora da UFMT em Cegalla (um gramático tradicional e não científico) para afirmar que o correto é "de Mato Grosso. nomes de bairros como Santo Antônio ou Lourdes se usam tanto precedidos de artigo como não: "Moro em/no Santo Antônio"."O poeta de Alagoas" x "O poeta das Alagoas".uol.Em Portugal. São respostas desse tipo que fazem os gramáticos "tradicionalistas" perderem a credibilidade. Portanto. pois seu método de análise e julgamento é questionável: criam as próprias regras. mesmo que sejam eles os moradores do local."O prefeito de Recife" x "O prefeito do Recife". Ora. em português não há oposição fonológica entre "á" e "â".Em São Paulo. Fonética Isso me lembra a famosa questão sobre a pronúncia de "Roraima": deve-se dizer "Rorâima" ou "Roráima"? Gramáticos sem formação científica que pontificam nos meios de comunicação alegam que deve ser "Roráima" porque é assim que os próprios roraimenses falam. fundam essas regras em usos de escritores do passado. a posição dos próprios mato-grossenses a respeito é minoritária. em Mato Grosso". "Mato Grosso" é um desses nomes próprios que admitem ambas as formas. em geral com base em critérios pessoais e idiossincráticos. se os mato-grossenses se sentem melhor dizendo "de/em Mato Grosso". é justo e legítimo que continuem a fazê-lo. Quando o artigo tanto faz Muitos nomes geográficos admitem formas precedidas ou não por artigo definido . "na França" ou "em África". "Jáime" ou "Jâime". -ito(livrito). exprimindo depreciação. ironia. uma frequência bem alta. Nas baladas. Piriguete Rebola devagar depois desce Piri. humildade. em Cheias de Charme: farra sufixial Já unido a bases cuja conotação é depreciativa. sempre prontas para seduzir. "periguetes". o sufixo atua como intensificador (lindinho. Periguete Quem são. Pipiri. que expressam diferentes valores afetivos. não se via uso tão exagerado do sufixo.Sufixo O "ete" da empreguete Telenovela da Globo testa vitalidade de terminação da palavra Eils de Almeida Cardoso Em português há muitos sufixos formadores de diminutivos. irritação. além de -inho/-zinho.. E as "caldeiretes" povoam o Caldeirão do Huck (Globo). Pipiri. na internet e nos programas de TV. ternura. São mais do que um perigo. advérbios e pronomes com sufixos diminutivos podem ganhar valor enfático (agorinha. Formada por "perigo" + -ete.. as "paniquetes" (ou panicats) são as que recebem closes das câmeras no Pânico na Band. e Avenida Brasil (no ar) por Ísis Valverde (Suellen) são mulheres que usam roupas justíssimas e chamativas. Dos sufixos diminutivos mais comuns. afinal. Pode até perder seus traços semânticos em formações com outros sentidos (camisinha). por Carolina Dieckman (Teodora). novas palavras com essa terminação surgem a cada dia. O funk Piriguete de MC Papo tem como refrão: Quando ela me vê ela mexe Piri. Fina Estampa (2011/2012). Mesmo usado em palavras dicionarizadas. Pipiri. lingueta). por Deborah Secco (Natalie). Isabelle Drummond. as periguetes (ou piriguetes)? Representadas nas novelas da Globo Insensato Coração (2011). Hoje. Leandra Leal e Taís Araújo Principalmente na linguagem coloquial. É a terminação -ete em novas palavras. Pipiri. Piri. O -etecontinua usado em referência às mulheres. indica tolerância e compreensão (feinho. delicadeza. por seu valor expressivo. ouvem-se as formações "reboletes". palavras vindas do francês. Desde a era das "chacretes". na língua falada. -ete (disquete). escolhem com quem querem ficar e ficam. pequenininho). muito maquiadas. O valor de diminutivo desaparece e outros sentidos passam a ser vistos em palavras com -ete. O mais produtivo é mesmo a dupla -inho/-zinho. "Boletes" eram as moças do Clube do Bolinha (Bandeirantes. Hoje. Unido a bases que têm traços semânticos de delicadeza ou pequenez. sempre em cima de um salto. há -eta (caderneta. mas o sufixo -ete vem ganhando. com bijuterias enormes e o único objetivo de chamar a atenção. nadinha). Já foi usada pela cantora Ivete Sangalo. Nomes formados com diminutivos relacionam-se à ideia de carinho. mas também podem ser pejorativos. Piriguete 73 . bobinho). "funketes". ola (sacola). a palavra é usada com conotação diferente do adjetivo "perigosa" e circula há anos. conquistar. Antes eram chamadas de "vedetes" e "coquetes". Piri. anos 80). Programas de TV seguiram a mesma linha de Chacrinha. que em show deixou de ser Ivete para ser "Periguete". Dentre seus admiradores. essas jovens enlouquecidamente apaixonadas são as responsáveis por essa outra conotação do sufixo. as neymarzetes (mais sonoro do que "neymaretes") vão a estádios. A terminação. é a pessoa que se está "pegando".br/textos/81/artigo262372-1.com. outro fenômeno.uol. por "amiguetes".. o sufixo continua afetivo. Penha (Taís Araújo) e Rosário (Leandra Leal) se dizem "empreguetes" e produzem um videoclipe cujo título é Vida de Empreguete.asp 74 . "Empreguete" é a empregada jovem que quer ser reconhecida pelo seu sucesso e chegar à condição de patroa. no caso. http://revistalingua. não do futebol. uma legião de fãs o segue. Seguidoras do jogador no Twitter. comum de dois gêneros. dessa vez as seguidoras do cantor Luan Santana. levam cartazes. quando as calouras que acabam de ingressar no ensino universitário são chamadas de "bixetes" (pois "calouro" é "bixo"). O -ete pode ter valor de feminino. gritam e fazem de tudo para ter uma foto do ou com o ídolo. santistas por causa do craque.As periguetes que vão a bailes funk são conhecidas como "funketes". O substantivo "rebolete" retoma a ideia da dançarina e "peguete". mas do meio musical-sertanejo. Fanzetes Desde que o jogador Neymar atingiu fama e popularidade. há um grupo especial: as "neymarzetes". Amigas tratam-se. Formar palavras com -ete é. é sonora e seu valor semântico nas formações novas e não dicionarizadas revela expressividade porque vai do pejorativo ao afetivo. O sufixo -ete tem. uma tendência. no ar) mostra domésticas que querem ser alçadas ao sucesso. com /e/ aberto. com quem se mantém relação sexual ou afetiva ocasional. podem ser chamadas de "reboletes" e acabam sempre arrumando um "peguete". Cida (Isabelle Drummond). Cheias de Charme(Globo.. Fazem coro com as "luanetes". Quando na balada. sobretudo na adolescência. Nas novelas que retratam o universo carioca circulam agora as "empreguetes". valor carinhoso. modismo que faz com que o sufixo ganhe seu minuto de fama. Formando o feminino. "ficando". pois. Essas torcedoras especiais. Elis de Almeida Cardoso é professora de língua portuguesa na Universidade de São Paulo. O -ete passa a designar também a fã de alguém. sem compromissos. "lavamos" etc. comentando a edição que a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo lança em julho. "tu".Ensino Mudanças inconscientes Sem consciência de fazê-lo. Faz isso valendo-se de recursos como as construções de tópico ("os juros. "Antigamente" (espero que compreendam as aspas).também muito bom. O primeiro caso talvez seja o melhor exemplo de que o português do Brasil deriva para uma sintaxe que preenche cada vez mais o lado esquerdo da frase. aprendia-se a escrever eliminando pronomes sujeitos (em vez de "eles foram" ou "nós vamos".". pp. Um dos parágrafos começa assim: "Basta consultar o expediente para se ver como. "ele" (nunca "ela") ou "nós" etc. Acho que sou menos conservador do que ele em questões linguísticas. Trata-se de matéria sobre a revista Senhor. ao contrário do trabalho que faz quando trata de outras questões. Ilustríssima. português do Brasil deriva para sintaxe que preenche o lado esquerdo da frase Sírio Possenti Sempre que me refiro a Ruy Castro. desde sua estreia. com seleção de materiais editados na revista ( Folha de S. "foram" e "vamos"). É tendência. mas o livro que seguiu a este se chamou Mais comédias para ler na escola. É um pretexto para falar de mudança linguística. Mas combato algumas posições dele sobre língua. b) a construção "x se trata". quando fala de língua seu brilho diminui... em que x é um nome ou pronome (cada vez mais comum). começo dizendo que seus textos estão entre os melhores dos jornais e das revistas. paradoxalmente. Às vezes. Mas hoje não se sabe se o sujeito de "lava" é "você". "lava".todos sabiam do que Senhor se tratava" (os grifos são meus). Mas. 4-5). A flexão verbal deixava claro que o sujeito era "eu". das quais o caso mencionado é exemplo. Um pouco adiante: "Daí que os homens que se sucederam na sua condução pelos cinco anos de existência da revista puderam fazê-lo sem traumas . não se trata de regras categóricas.Paulo. Senhor continha. Ou some. Consequência: a língua impõe que o sujeito seja explicitado. 20/5/2012. Alegavam que a construção "correta" é "para morar bem". Era uma sugestão estilística. ele usa em um parágrafo duas construções que nunca uso: a) "se" como sujeito indeterminado antes de infinitivo. acrescento que as biografias que escreveu também são trabalhos exemplares. 75 . É doutrina das gramáticas tradicionais que o infinitivo pessoal não flexionado é uma forma de deixar o sujeito indeterminado (em "Comer fora é caro" e "Navegar é preciso" não se explicita o sujeito de "comer" e "navegar"). Luis Fernando Verissimo publicou Comédias para se ler na escola. "lavas". Alguém deve ter soprado que aquele título estava errado. "ele/a" ou "a gente". É que. especialmente para se ler na escola. uma deriva. Lado esquerdo Outro exemplo de preenchimento do lado esquerdo da frase tem a ver com o que acontece com os pronomes ditos pessoais. Por isso. eles são muito altos") e o preenchimento de posições que eram ou podiam ser vazias. porque as formas verbais eram "lavo". Vou comentar dois fatos de ordem gramatical que encontrei em um texto dele .. colunistas andaram criticando uma propaganda que sugeria um lugar "para se morar bem". Outra pergunta interessante: como é que Ruy Castro adotou essa forma (mesmo que não o faça em todos os casos)? A resposta é dividida em partes. b) as mudanças não são isoladas (são sistemáticas). Ou condenaria. não". porque não se vê mais como erro o que antes assim se via. "esse fato". ou vice-versa.. É exemplo de mudança do sistema.mas esses não se dão conta de que há uma história ocorrendo debaixo do nariz. Assim as mudanças ocorrem: são inconscientes.". Ora. mas de reinterpretação da valência verbal (isto é. Na falta de consciência da mudança. Hoje.ou mais elíptico. As análises de corpora extensos da língua mostram que. Então. Quando alguém se dá conta (e principalmente quando não se dá). um sujeito surge explicitamente antes (ou depois) do verbo: "isso não se trata" de 76 . não sintática).. Segue-se esta regra por pressão da língua. diriam: "Com a diferença de que isso(esse fato) não se trata". Com a diferença de que não se trata (sem nome ou pronome antes de "se trata".Não é que isso seja ensinado. São eles que dizem que os donos da língua são as pessoas cultas (não conseguem dizer que é "o povo"). A posição mais conservadora sobre a questão do erro e do acerto é a seguinte: é certo o que os escritores escrevem (poderíamos substituir "escritores" por "pessoas letradas"). se pessoas como Ruy Castro usam (escrevendo formalmente!) "se" antes de infinitivo. quando o objeto pode ser recuperado no contexto (o que é questão textual. Esta oração pressupõe "isso". Menos flexões Tradicionalmente. Com a diferença de que não se trata. Um exemplo como o seguinte é típico. Compreender isso é fundamental para que se entenda ("para entender" ou "para se entender") como as línguas mudam: a) as mudanças são inconscientes. O fenômeno é acompanhado do esvaziamento do lado direito da frase. A oração do verbo "tratar(-se)" deixava o tema elíptico. falando ou escrevendo de um jeito que condena(va).(Eu) comi. usei uma construção "antiga": "O que acontece com. caso se desse conta! O preenchimento do lado esquerdo da frase é consequência também da diminuição de flexões verbais. Cada vez mais. e não fenômeno isolado: . c) as mudanças são lentas. por que eu não adoto "se" nessa posição sintática? Respondo: porque sou mais antigo. que os falantes sejam obrigados a seguir essa regra.. A questão nem é tratada nos livros didáticos. o que acontece com "se ver" acontece com "se tratava". já segue a regra nova. acontece com . A divisão correta é "eu escrevo à moda antiga e eles seguem regra nova". Uma regra da norma culta. dos "acompanhantes" do verbo). perguntará alguém. em meu estilo) de questão estrutural mais ampla. perguntará o leitor. Então. Os falantes são seus próprios gramáticos. deveriam seguir suas diretrizes. Ruy escreveu o que escreveu sem saber que estava fazendo uma concessão à nova regra. Aliás..Você comeu bolo? . Acima. a construção encontrada no texto de Ruy Castro está errada? Seria bobagem dizer isso. esta construção supunha que o tema ou tópico fosse mencionado anteriormente. ninguém consegue corrigi-la. No caso. a questão não é "eu escrevo certo e Ruy Castro e os jovens... o objeto (complemento verbal) é cada vez menos repetido . este é um forte sinal de que a construção é considerada correta. Antigo Então. insisto. Só profissionais dedicados ao ramo percebem o "problema" . Um verbo impessoal passou a pessoal.uol.. que se espalha: se tópico. no entanto.com.br/textos/81/artigo262396-1.a natureza de seus melhores planos. tema ou assunto for um plural. 26/5/2012): ".. como nas previsões astrológicas para nascidos de Touro (O Estado de S. Paulo.questão estrutural (Ruy: de que "Senhor se tratava"). há a hipercorreção. entender direito de que se tratavam esses melhores planos". http://revistalingua.asp 77 . Inconscientemente. Na verdade. o verbo assume flexão correspondente. Isso faria com que inúmeras pessoas começassem a dar palpites sem. Caderno 2. tem mais: a partir dessa estrutura. não limitados à rede social. empreendeu uma análise aprofundada sobre tais casos. ao escrever que alguém "andorinhava" . Marta de Oliveira Silva. 1986: 16) elogiava a já louvada inventividade linguística de Guimarães Rosa: "Rosa inventa palavras. ao cravar o termo "imexível" (o qual. um indivíduo ou um grupo consegue demarcar sua identidade. desprovido do talento rosiano. pela extensão dos textos. Ainda que nem sempre com o brilhantismo de um dos maiores mestres de nossa literatura. porém. "blog". pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). A pesquisa de Marta Silva permite que dividamos as palavras analisadas em dois universos: vocábulos gerados no Twitter e relacionados a esse universo e vocábulos criados alhures. em referência a esta nossa transitória existência). Atenta a isso. quanto se supre a necessidade de comunicar noções novas. Com as palavras inventariadas por Marta Silva. enunciadores são capazes de suprir alguma nova necessidade comunicativa. nome dado a esse gênero discursivo do ambiente virtual). sei lá o que seja". A verdade. Inventando palavras. Quem precisa? Algum resquício de conservadorismo linguístico poderia desdenhar a criação de mais palavras. desintegra-as. Neologismos podem ser recursos estilísticos para atingir os mais nobres fins. outra é que cada mensagem não se destina a um enunciatário em particular. usuários do Twitter andam recorrendo ao expediente de inventar palavras que deem conta de suas necessidades comunicativas. Guimarães Rosa não tinha consciência de que investia em sua identidade como escritor. mas ao conjunto de "seguidores" (pessoas que se cadastraram para receber mensagens) do enunciador. Também por meio de neologismos. Um exemplo é o dos defensores dos direitos dos animais: cunharam o termo "especismo" para transmitirem a ideia de que o tratamento cruel conferido a bois. poderia dar lugar ao consagrado "inalterável"). faz alquimias. pelo caráter público das mensagens (ou "tweets". cirurgia plástica. 78 .Academia A era das tuiter palavras Dissertação de metrado defendida em Mato Grosso do Sul analisa os neologismos da rede social Marcelo Módolo e Henrique Braga O poeta Manuel Bandeira (Seleta em prosa e verso. as características permitiram que o site fosse chamado de "microblog": "micro". não é diferente: tanto se investe na construção de uma identidade. que não podem ultrapassar 140 caracteres. como no célebre caso do ministro do Trabalho. deforma-as. Ao comentar as invenções do amigo escritor (como "nesta outra vida de aquém-túmulo". Rio de Janeiro: J. numa situação solene como a fala de um ministro.em vez de "andava como se fosse uma andorinha" -. frangos ou peixes é um caso de preconceito da espécie humana em relação às demais. É difícil não acreditar que. É verdade que nem sempre a novidade é assim tão nova. recompõe-nas. em sua pesquisa sobre a comunidade virtual Twitter. culminando na dissertação de mestrado Tweologism e Tuiteiro: criação de novas palavras no Twitter. Bandeira chega a admitir uma ponta de inveja: "O que não dava eu para ter inventado isso!". 4a ed. Olympio. Tuitando com estilo A rede social Twitter tem duas características: uma é a brevidade das mensagens postadas. Antônio Rogério Magri. é que neologismos atendem a necessidades dos idiomas. Somadas. professor e autor de materiais didáticos do Curso Anglo Vestibulares. o Twitter apresentou falhas e. Exemplo é o verbo "baleiar". ousamos pensar que o poeta aprovaria. Seria pretensão nossa partir dessa coincidência para tentar supor o que um usuário da língua com o quilate de Bandeira pensaria dos neologismos estudados por Marta Silva. para designar nesse universo um exagero com função enfática). usar palavras da "tweetosfera". o poeta louvou a "hitlerocidade". forma de escalar um time de futebol semelhante à defendida por Dunga. Embora a maioria dos neologismos estudados tenha na base o termo "Twitter" (82. justamente por deixarem entrever de modo mais evidente como motivações circunstanciais concorreram para o surgimento do neologismo. usado principalmente na 3ª pessoa do singular: "O Twitter baleiou" é uma maneira precisa.com. da obcecação e da insanidade incutidos nesse novo termo foram emprestados do substantivo próprio "Hitler". É o caso de "tweepular" (uma pessoa que é bastante famosa. usada para designar um usuário obstinado. Os traços semânticos da obstinação. técnico do Brasil até a Copa Fifa de 2010. é fundamental usar as palavras daquele grupo. Henrique Braga é doutorando na área de Filologia e Língua Portuguesa da USP.com http://revistalingua. É princípio semelhante ao da tentativa mais convencional de se explicarem as gírias: para ser parte de um grupo. o qual dispensa qualquer tipo de apresentação. que publica seus textos de 140 caracteres com enorme frequência. Atrevidos que somos. "tuiteiro" (usuário do Twitter) e "dunguismo". e sobretudo econômica.uol. trata-se de um substantivo criado para designar uma atrocidade digna de Adolf Hitler.É visível essa distinção se comparamos. para que o enunciador mostre uma espécie de solidariedade com os demais que compõem o ambiente virtual.5% dos casos). Tais vocábulos servem. no mínimo. o mesmo que inspirou o neologismo "Twitler". Mesmo os neologismos mais banais desse universo têm uma importante função na construção de uma espécie de identidade desses usuários da rede social. No caso do Twitter.revistalingua@gmail. fazendo ou não referência direta à palavra Twitter. academia. por consequência do grande número de acessos. há um considerável número de vocábulos que. por exemplo. no Twitter) ou "tweeperbole" (junção de Twitter e "hipérbole". Como a forma e a sonoridade sugerem. impediu que mais usuários o acessassem. Chamam a atenção especialmente as palavras do primeiro grupo. outro neologismo curioso inventariado pela pesquisadora. servem com bastante propriedade à expressão de novos significados.br/textos/81/artigo262388-1. seria equívoco tratá-los como banais ou pouco criativos. "popular". Marcelo Módolo é professor doutor e pesquisador na área de Filologia e Língua Portuguesa da USP. num frenesi que beira à insanidade.asp 79 . de dizer que. porém. No artigo de Bandeira sobre Rosa. Pensando em termos mais qualitativos que quantitativos. durante um período. Twitler Tão expressivo quanto esse neologismo é a palavra "Twitler". Filologia Descoberta saudável Leitura de manual de médico de D. João V derruba tese de que idioma foi corrompido por negros e índios Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida É fato que nossa memória cultural nos reserva surpresas óbvias quanto óbvio é o mito de que no Brasil não há (pre)conceitos que estigmatizam negros e índios, e seus descendentes ou nós que, majoritariamente, nos consideramos brancos ou pardos. Por esse discurso estereotipado é comum dizer que do diversificado modo "brasileiro" de falar, distinto do modo "português", europeu, africano e asiático, surgiram realizações (do nível fonético ao sintático) nunca ditas e ouvidas ou escritas e lidas antes. O argumento, para tanto, encontra chão em nossa história social e etnográfica. Por ela, acredita-se que tais realizações foram introduzidas no português, em terras brasileiras, por índios, em especial do tronco tupi-guarani, e africanos, principalmente o banto e o iorubá, que se viram obrigados a falar o idioma do europeu. Por aí caminha G. Chaves de Melo (Iniciação à Filologia e à Linguística Portuguesa, 1971: 137-38), e outros, quando se refere a essa influência na formação do português do Brasil. É dele a opinião de que a língua lusitana, culta e "instrumento de civilização superior", suplantou, no século 18, sua concorrente, o tupi, a chamada língua geral dos brasilíndios. Segundo Melo, os indígenas e as populações rurais e urbanas "de pouca cultura abandonaram o uso da língua tupi" em favor da românica, mas "falaram muito mal a nova língua", poisimpinguaram-na com seu idioma materno "sem flexão, e de vocabulário pobre". E assim a "deformaram em dialetos crioulos". Essa ideia é frutífera não só em relação à língua, estritamente. Quem nunca ouviu algo que responsabilize nossos ascendentes "pretos" e "gentios" pela "corrupção" de costumes ou cultura (no sentido lato) com que os patrícios portugueses vêm nos presenteando desde o século 16, quando Cabral cismou em nos "descobrir"? Teste Então, façamos o teste. A quem se atribuiria esta receita caseira para prisão de ventre: "A cabeça da sardinha e da sarda (ou cavala), usando-a como mecha ou supositório no intestino reto, promove a evacuação dos excrementos"? Ou esta simpatia, também comezinha, para febre: "As sardinhas bem salgadas e velhas, postas nas solas dos pés, têm virtudes para curar sezões"? A resposta viria depressa. Pela lógica preconcebida, não é exagero dizer que só pode ser recomendação de nossas avós indígenas ou africanas. Afinal, é natural o brasileiro dizer que tem antepassado "pego a laço". E quase sempre é a avó. Ora, pois! O contra-argumento pode ser extraído da mesma história. Porque não é de hoje que estudos 80 sobre a língua, com perspectiva diacrônica, apontam exemplos, em vários níveis de análise, antigos no português falado no Brasil, dando-lhe matiz de variedade conservadora em oposição à inovadora europeia. Para tanto, buscam-se provas dessa vertente em textos de épocas anteriores. Não há muito como fugir disto: se se quiser levantar o léxico do século 18, por exemplo, recorre-se a materiais literários e não literários daquele século. É dessa maneira que age o lexicógrafo interessado, dentre outras informações de um verbete, em sugerir a datação de uma palavra com suas acepções de antanho. Impinguar A primeira edição de Âncora Medicinal para Conservar a Vida com Saúde - manual de medicina de 1721, escrito por Francisco da Fonseca Henriquez, médico do rei D. João V (1689-1750) - pode ser uma dessas fontes de consulta para pesquisadores que têm a intenção, dentre outros temas, de mostrar o português [escrito] do final do século 17 e início do 18. Encontram-se, nesse testemunho, no nível semântico-lexical, formas já substituídas por outras em dicionários atuais, como Houaiss e Aurélio. É o caso do verbo "impinguar", ressuscitado neste texto, que não está registrado nos dicionários. A forma substituta é "engordar", que, por sua vez, não encontra lugar na versão setecentista do manual. No nível fonético, destacam-se palavras em Âncora que, apesar de estarem no Aurélio e noHouaiss, não são frequentes hoje no português brasileiro escrito e falado pelos que têm formação escolar: o verbo "alimpar" e os substantivos "embigo" e "rezão". Ressalte-se que as formas "umbigo" e "razão" não receberam tinta pela escrita do médico português. Já a forma "limpar", com duas aparições, coocorre com "alimpar", que, em virtude do número maior de ocorrências (14), provavelmente era a mais comum à época. Também merecem luz: "estâmago" (estômago) e "emprasto" (emplastro) que, ao lado de "alimpar", "embigo" e "rezão", são formas correntes na fala do interiorano, com mais idade e baixa escolaridade. A vitalidade desses vocábulos nessa bula médica é prova resistente às dúvidas, caso existam, de quem acredita no mito de que essas aparências fonéticas sejam inovações brasílicas ou afras, jamais ditas na terra de Camões. Trata-se de manutenção, conservação, repetição, reinterpretação (como queiram nomear) de um sistema sonoro português descrito desde o galego-português. Vitalidade O mesmo se aplica ao remédio para prisão de ventre recomendado pelo doutor Henriquez (1665-1731), que, para escrever sua Âncora Medicinal, não fez incursão etnográfica na cultura brasileira (menos ainda na indígena ou africana), mas foi buscar argumento de autoridade nos escritos do pai da medicina, o grego Hipócrates (460-377 a.C), sem esquecer de beber na fonte do cirurgião romano Cláudio Galeno (129-201), médico particular do imperador Marco Aurélio (121-180). Podemos, então, retirar de nossas avós índias ou pretas toda responsabilidade pela disseminação das virtudes medicinais da sardinha e da cavala (ou sarda) em favor dos dureiros (ou de quem tem prisão de ventre) ou febris. Porque é sensato inferir que, antes de elas nascerem, mandatários portugueses, romanos e gregos já tivessem experimentado desses peixes além da mesa. Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida é professor pesquisador livre-docente na área de Filologia e Língua Portuguesa da USP/CNPq e autor do Minidicionário livre da língua portuguesa (Hedra, 2011). [email protected] http://revistalingua.uol.com.br/textos/81/artigo262392-1.asp 81 Dito & escrito Levar ou trazer? Um texto sobre o estranho velório do papa copta no Egito sugere uma discussão sobre o significado de dois verbos Josué Machado A redatora escreveu sobre o curioso velório do papa copta do Egito, Chenuda III. Vestido com os trajes litúrgicos solenes e sentado no trono de madeira reservado ao chefe da Igreja Ortodoxa Copta, seu corpo foi assim velado e reverenciado por fiéis chorosos durante dois dias. A cerimônia um tanto lúgubre se passou no norte da África, mas a redatora em certo momento escreve sobre os coptas egípcios: "Com a posterior ascensão de uma religião concorrente, a muçulmana, trazida por tribos árabes, tornaram-se uma minoria discriminada." Pergunta-se: por que, escrevendo ela em São Paulo sobre o velório do papa copta lá no Egito distante, redigiu que a concorrente religião mulçulmana foi "trazida por tribos árabes"? (O grifo é nosso, como diria um acadêmico.) Não teria o Chenuda III: confusão de verbos no Brasil islamismo sido "levado" ao Egito? Estava do lado de lá, no Oriente Médio e na África, e permaneceu do lado de lá. Pode-se concluir, portanto, que o islamismo foi "levado" de suas origens árabes para concorrer com os coptas do Egito. E persegui-los um pouco. Todos bem longe de São Paulo, da redação, da mesa e do computador da redatora. Ocorre que "levar" e "trazer" podem ser substituídos por sinônimos comuns em certas circunstâncias. Como transportar para fora (levar) ou para dentro (trazer). Isso não significa que sejam eles próprios sinônimos entre si. Confusão Seja por que for, a confusão entre "levar" e "trazer" é mais comum entre estrangeiros, mas talvez se explique porque a redatora da notícia há de saber línguas, que terão se cruzado em sua cuca e produzido a curiosidade inofensiva. Nada de grave, porque os leitores nacionais do texto do computador poliglota talvez estranhassem um pouco, mas por certo entenderam a mensagem. Esse fenômeno ocorre também com "ir" e "vir", como demonstra a seguinte história verídica: um jornalista libanês, em pequena redação no Brasil, falava ao telefone e encerrou a ligação com o seguinte aviso à pessoa com quem conversava em português, que domina bem: "Mais tarde eu venho aí." Como falava alto e com seriedade no silêncio da pausa para o almoço, houve perdoáveis risos gerais dos colegas, que o preveniram depois sobre a pequena confusão entre ir e vir. Distrações apenas. http://revistalingua.uol.com.br/textos/81/artigo262413-1.asp 82 mas sempre terá mais regularidades. porém. Mas não é possível haver línguas puras e isoladas. Se não há. caso. se valem do mínimo de elementos gramaticais: enfatizam palavras e regras sintáticas. Se há fatos universais nas línguas. É fácil. Tudo o mais só pode ser confirmado por investigação. trocas de tecnologia. É proparoxítona. mas são importantes à língua e à visão de mundo da sociedade e do indivíduo. Como se modificam as estruturas e os valores sociais. ante a realidade social e cognitiva da língua. número. eliminaram categorias mais idiossincráticas. dado um isolamento político ou geográfico. alicerçar-se na suposta impermeabilidade das línguas: um castelhano pode não entender palavra do vizinho basco. Mudanças Uma das verdades universais que alicerça o estudo histórico (e etimológico) é: palavras mudam. precisaríamos reconhecê-los em níveis básicos e inegáveis. 83 . Se imaginarmos que assim foram numa época. O raciocínio humano tem muito de analógico. também sons. Uma língua pode ter irregularidades. Palavras migram de língua a língua. casamentos. Outras explicitam classificações e categorias que inexistem ou existem parcialmente na realidade. Toda etapa de um sistema linguístico (tecnicamente conhecida como "sincronia") tem regras que a distinguem de etapas anteriores. É aí que entramos na fronteira desconfortável da etimologia. tempo. Mudam porque acrescentam ou subtraem sons que antes não tinham. por empréstimo: vendas. nada parece no lugar quando vemos "a mesma palavra" em tempos diferentes. aspecto etc. porque o significado fica mais amplo ou restrito. dominações e discursos filosófico-religiosos são responsáveis pelo fenômeno. o que são línguas? Uma língua advém da uma sensação de sociedade unificada na mente do falante. pois não vemos isso nem em línguas insulares. Dados não devem a priori ser compreendidos com teorias dogmáticas. "cibernético" é boa palavra para confirmar as afirmações polêmicas acima. estruturas. modo. paradoxalmente. Heráclito está mais correto do que Platão. Algumas. No mundo cibernético isso é ainda mais visível. Todos que se esforçaram para criar línguas artificiais mais "lógicas" se debateram com essa multiplicidade de conceitos. porque se transformam. mas mantiveram outras.Etimologia O trajeto até a cibercultura Evolução de "cibernética" ilustra a dificuldade de entender as novas aplicações dadas às palavras Mário Eduardo Viaro Um dos deleites de quem se interessa por étimos é criar associações. Outra verdade universal: não há fronteiras entre línguas. como chinês ou inglês. tendo. mas importa saber o que são de fato. tudo faz pensar que. Palavras surgem de repente ou desaparecem. porque esses sons trocam de posição na palavra. Enfim. regras sintáticas e demais categorias linguísticas. uma visão particular do que seria universal. Cibercultura Aliás. veremos que não eram em outra: projetar a visão romântica de confinamento não é útil. Esses seres semiexistentes são as categorias morfológicas e morfossintáticas: gênero. talvez erroneamente .a rápida popularização da acepção. não há comparação: barcos e pessoas não são vistos como mesma coisa por 84 . era usada como substantivo. mas investigação detalhada para confirmar isso está por ser feita. tanto a informação etimológica quanto a datação disponíveis parecem equivocadas. O sentido não era o atual: em dicionários de grego. o sentido atual é abonado só em 1948. passa ao latim já com esse significado: gubernare originará o "governar" português. há em grego antigo o substantivo kybernetiké (arte da navegação). de sentido náutico. a ampliação de sentido faz ver uma mudança metafórica. O dicionário Petit Robert afirma que cybernétique vem do inglês cybernetics e já em 1834 significaria "ciência do governo". em inglês. habere > haver. Em português. adjetivo cuja forma feminina. "Conduzir um barco" equivale a dizer "conduzir as pessoas que estão num barco". Compreender mudanças semânticas requer a leitura de autores específicos. A transformação de gub. mas até essas já foram paroxítonas: árvor. é bem distinto do original. Contatos A terminação -ikós forma adjetivos no grego. subentendendo-se "arte": do uso adjetivo em tékhne grammatiké (arte das letras) obtinha-se o substantivo grammatiké(gramática).e não cyb. o adjetivo derivado kybernetikós referia-se a algo ligado ao piloto. grammatiké. Isso ocorria sobretudo em empréstimos antigos que se popularizaram cedo. Quando saímos da "arte de conduzir barcos" para "arte de conduzir pessoas" vemos uma mudança metonímica. Assim. O uso da data do inglês para todas as línguas informa .em português não foi diferente: todo u breve latino tende a o em português e todo b entre vogais se torna v: lupum > lobo. portanto. antes da expansão do Império Romano. sul da península itálica). A passagem fonética de kybernáo a gubernare não é tão estranha: muitas palavras gregas iniciadas em k. daí o sentido amplo de "conduzir pessoas". o que faz duvidar da data de 1948 para o português. italiano e inglês. devido à acepção do título da obra de Norbert Wiener. kybernétes é "piloto". O raciocínio é o mesmo para grammatikós. -áo é desinência verbal da 1ª pessoa do presente do indicativo e corresponde ao -o latino (terminações do infinitivo seriam -ân em grego e -are em latim). o étimo é antigo. pois a palavra é de origem culta (não transmitida de geração a geração por aquisição da linguagem. A mudança de sentido é mais visível que a da forma. O final da palavra não conta nas leis fonéticas: em grego. Em francês. Desde Homero há kybernétes e kybernetikós é comum em Platão. de repente. surgem palavras proparoxítonas. Pode-se perguntar por que kybernáo não se tornou *cybernare em latim. Raciocínios Na mudança metonímica. tornou-se.Portanto. por tradução de textos técnicos (fenômeno mais comum hoje). por um acadêmico). surgiu só no século 20. como as de origem popular. o "estudo do controle e da comunicação tanto no animal quanto na máquina". O Houaiss (2001) diz que o substantivo feminino "cibernética". a acepção "ciência do governo" aos poucos mudou para "ciência do autogoverno" e. no jargão científico. e perseguir seu raciocínio.no latim (provavelmente. O fato de romanos dizerem gub. figado. como Norbert Wiener. Grego e latim tiveram vários momentos de contato. alguma característica da pronúncia na Magna Grécia. O original kybernáo. que incluiria a Grécia em suas províncias.testemunha que a palavra não veio por via erudita mas popular. E há casos de y em palavras gregas que se tornam u no latim. Ao sair da imagem de pessoas conduzidas por alguém para a de conduzidas por si mesmas ou de qualquer coisa conduzida por si. Principalmente no século 15. São raras as proparoxítonas nas cantigas galego-portuguesas e em textos medievais: as mais comuns de origem não culta talvez sejam "árvore". No dicionário Bailly. praticamente único.cantavamos. não está na língua desde sempre. Mas o sentido atual.passam a g. sobretudo latinas aportuguesadas e empréstimos italianos. com sentido atual. mas ressuscitada pela memória escrita. "fígado" e verbos como "cantávamos".para gov. Apesar disso. da mesma forma. Há outras transformações observadas desde que Bréal organizou essas tendências na semântica histórica. mas por relação de contiguidade (espacial: pessoas estão dentro do barco). Mas esses raciocínios esquisitos caracterizam as principais mudanças semânticas nas etimologias: "fígado" em latim era iecur. Já na mudança metafórica. Nem que. que não sobreviveu. de tão popular. Com o tempo. então o livro é a mesa. Caldo "Caldo" vem do latim calidum.causa de semelhanças (físicas.br/textos/80/artigo260799-1. portanto A é B. uma metonímia. passou a denominar metonimicamente o fígado (ficatum) mesmo quando servido sem figos. portanto A é B. Conhecê-las ajuda a entender etimologias. mas os movimentos lato sensu de metonímia e metáfora parecem explicar a maioria das mudanças de sentido. houve movimento contrário. B também é C. por exemplo). pois a história das palavras está pronta a desmentir verdades sobre o passado atingidas pela razão. mas em português deixou de ser adjetivo e especificou "líquido quente". autor de Por trás das palavras: manual de etimologia do português (Globo: 2004) e de Etimologia (Contexto: 2011) http://revistalingua. ao se generalizar o sentido a qualquer líquido (metaforicamente. como na metáfora. sou meu irmão. portanto iguais e. Raciocínios tão particulares (A está perto de B. "quente" (como o italiano caldo e o francês chaud). O uso exclusivo do raciocínio em etimologia prega peças. Mário Eduardo Viaro é professor de língua portuguesa na USP. se sou filho de Josué e meu irmão também.asp 85 .uol. ou então A é C. Não posso dizer que se um livro está sobre a mesa. Mas um prato chamado iecur ficatum (fígado com figos). a ampliação ou redução de sentido mostra que se viu um ponto comum entre coisas distintas (condutor e conduzido são pessoas. uma metáfora) podem conduzir a monstruosidades lógicas.com. como "caldo de cana"). pois nada substitui a investigação documental. não a chegar a étimos. usamos a palavra até para líquidos frios. pessoas e coisas são seres). para ser exato) não tem uma norma padrão pelo simples fato de não possuírem expressão escrita. padronizar. resultante da aplicação dessa norma. Se a norma culta foi criada para servir à expressão dos falantes cultos em situações formais. é até certo ponto um idioma artificial. revistas. bem como de que qualquer manifestação linguística fora desse modelo é indício de barbárie. Além disso. a ser usado sobretudo na escrita formal. (Aliás. em muitos casos. sofreu contribuições de outros dialetos do reino. a língua padrão. Como resultado. altamente monitorado. esse espírito excessivamente conservador das gramáticas tradicionais. os gramáticos surgem a partir do momento em que se constitui essa norma. é natural que ela tenha partido do próprio uso que esses falantes faziam em tais situações. É preciso lembrar que as línguas europeias. e assim por diante. jornais. que retomam a diretriz original de construir a norma a partir do uso e não o contrário. compêndios jurídicos. obras literárias. exceto em rituais religiosos. orais ou escritos. vem sofrendo o contraponto de gramáticas mais modernas. nos últimos anos. só constituíram um padrão a partir de fins da Idade Média. ou ainda norma standard. isto é. deveria ser fator de intercomunicação e integração entre diversas províncias numa época em que não havia meios de comunicação de massa. Ciência Felizmente. dentre as quais o português. ou simplesmente é outra língua. etc. ignorância.Lógicas Norma culta a marteladas Criada para disciplinar o uso da língua. buscando o bom-senso e a regularidade. de bom-senso Aldo Bizzocchi Norma culta. Portanto. Com o tempo. elaboradas por linguistas. produzidas sem respaldo científico. a grámatica normativa carece de flexibilidade e. a maioria das línguas (96% delas. é um conjunto de regras de utilização da língua que visa normatizar. tratados filosóficos. quando o dialeto de maior prestígio foi elevado ao status de idioma oficial da corte e nele passaram a ser escritos documentos. embora tivesse por base um dialeto. Padronização Esse padrão. norma padrão. textos técnicos ou científicos. além de serem utilizadas por pequenas comunidades (como tribos e aldeias) em que não existe formalidade. 86 .). bem como intervenções de gramáticos a fim de racionalizar seu uso. desde o início a norma culta deveria ser racional. até o ponto em que as regras ditadas por ela se tornaram anacrônicas. essa lógica se inverteu.) Assim. e os falantes é que tiveram de se adaptar à norma. tidos como "cultos" (livros. Embutiu-se na normatização da língua a ideia de que o respeito ao padrão é a garantia de que o idioma não se corrompa com o tempo. o modo de expressão em discursos. na prática. No entanto. o "esse" de outro. conjugação. quando se estuda uma língua estrangeira. as dimensões léxica e fonética estão mais sujeitas a variações de sexo. e assim fazendo com que. De certo modo. que a norma padrão padroniza? Parece que a ênfase está mesmo na morfologia e na sintaxe. Isso não é totalmente verdade: há diferenças gramaticais entre regiões (como usar ou não artigo definido antes de nome de pessoa. Nova York ou Los Angeles. o que se aprende é o padrão. Talvez o grande mérito da Rede Globo tenha sido o de estabelecer uma koiné linguística. como a dos grandes centros. a ser divulgado nacionalmente. mesclando o "erre" de um. sobretudo a televisão. No caso do português brasileiro. as palavras e o modo de pronunciá-las operam um corte entre regiões geográficas. o inglês modelo é geralmente o de Londres. assim como classes sociais distintas usam vocábulos distintos e pronúncias distintas. religião. as gramáticas nada falam.com. as pessoas cultas de todas as regiões se entendam e não se estranhem tanto. Disciplina Afinal. mandioca ou macaxeira? Um manual de trânsito distribuído pelo governo federal poderia usar "farol" e "lombada" em vez de "sinal" e "quebra-molas"? Livros didáticos devem ser adaptados ao linguajar de cada região ou disseminar os termos correntes no Sudeste? E que termos são esses? Como decidir entre "fecho éclair" e "zíper". então é necessário estabelecer um padrão não apenas gramatical. Normalmente.br/textos/80/artigo260797-1.Mas o que é. o vácuo deixado pelo nosso ensino nesses dois últimos aspectos foi preenchido pelas mídias de massa. mas também vocabular e fonético. não o da Escócia ou do Kentucky. que não se restringe à gramática (flexão. porque extraídas de autores do passado.asp 87 . do que a dimensão gramatical. posição dos termos na frase). que português se deve ensinar aos estrangeiros? E que vocabulário o autor de um texto formal. Na verdade. exatamente. como o inglês. Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume) www. grau de instrução.br http://revistalingua. com base principalmente nos falares do Rio. que termo usar: tangerina. Logo. a palavra daqui com a sintaxe dali.uol.que determinam os níveis de linguagem.com. ao mesmo tempo em que os gramáticos tradicionalistas são intransigentes em relação à observância estrita a regras obsoletas. São Paulo. deve empregar? Num telejornal. ou empregar "tu" em lugar de "você"). Sem consenso A ausência de consenso sobre o léxico e a pronúncia se deve provavelmente à crença de que. ensina-se o léxico e a fonética de alguma das variedades de prestígio do idioma.aldobizzocchi. mas inclui um vocabulário e uma pronúncia. Do léxico. cujas variações se dão basicamente por dois fatores: escolaridade e circunstâncias do ato de comunicação . faixa etária. a regulamentação fonética se restringe a questões de prosódia e ortoépia. profissão. não se exige uma padronização lexical ou fonética. enquanto a gramática produz uma divisão social entre "cultos" e "ignorantes". entre "bombeiro hidráulico" e "encanador". funileiro ou tanoeiro? Aipim. mexerica ou bergamota? Lanterneiro. entre "trocador" e "cobrador"? Se o propósito da existência da norma culta é disciplinar a expressão dos falantes em situações formais e equalizar o uso da língua entre as várias regiões do país. mesmo guardando um leve acento regional. ou registros. Belo Horizonte e Brasília. A iniciativa visaria. Zilda Aquino concorda com a sanção da lei. por exemplo. Segundo a lei. O artigo 2º da lei indica que as pessoas já diplomadas podem requerer. Autoestima Para Antonio Carlos Xavier.Numa sociedade machista como a nossa. Neste século 21. dar um passinho em direção à igualdade de gêneros. assim. Na justificativa da senadora para seu projeto de lei.4 milhões de universitários do país é formada pelo público feminino.Flexão de gênero O sexo do diploma As mulheres agora sairão da escola com o grau ou profissão correspondente ao sexo registrado no diploma: doutora. bacharela. etnias e religiões sobre um mesmo espaço. sim. da flexão de gênero para nomear profissão ou grau. engenheira. de 2005. a flexibilidade é ingrediente essencial à sobrevivência pacífica entre homens e mulheres de diferentes classes sociais.605 o projeto 6. .avalia Xavier.383 de 2009. Alguns especialistas consideraram a iniciativa um erro. A pessoa (mulher ou homem) recebe o título de "doutor". porque usar o gênero masculino para denominar a profissão ou o grau obtido por mulheres é considerado uma tradição do idioma. Outros já foram dados. emissão de seus diplomas com a correção. A médio e longo prazos. Estas passam pela língua sem a qual aquelas jamais aconteceriam . de autoria da então senadora Serys Slhessarenko. mais da metade (57%) dos quase 6. que por sua vez teve origem em outro projeto de lei. Em parte. ao designar a profissão e o grau obtido. A presidenta Dilma Rousseff transformou na lei 12.. é chamada de "doutora". A força da mulher nessa área deve ganhar visibilidade com a lei. Juntamente com a tolerância. representado em português pela forma masculina. por confundir o título com o tratamento à pessoa.A lei instaura um princípio da flexibilidade.afirma. A lei promove e protege a mulher . . em diplomas. no entanto. Adriana Natali As mulheres são maioria no ensino superior brasileiro.. Escritores e pesquisadores de vários lugares do mundo têm adotado a mesma prática como política de valorização feminina. A discussão talvez se deva ao fato de o título acadêmico flutuar no discutível domínio do gênero neutro. a lei causa alvoroço. Facilidade Há divergências quanto ao peso dado à lei. entretanto. Mal nasceu. usa-se só o nome masculino mesmo ao referir o feminino. que determina o uso. Segundo o Censo da Educação Superior. a prática revelaria antes a resistência de um preconceito. Professora de português da Universidade de São Paulo. a lei pode representar um indicador de autoestima para as profissionais brasileiras. se for o caso. professor de português e linguística da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). as instituições de ensino públicas e privadas devem expedir diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada. O Palácio do Planalto e suas agências de notícias. mas depois. a curto prazo a lei pode passar despercebida devido ao recente acesso que a brasileira tem ao ensino superior. Paulo Luis Capelotto. procurador aposentado e professor de 88 . As grandes mudanças começam com pequenas atitudes. do MEC. as mulheres já conseguem dirigir empresas como a Petrobras e comandar o país. adotaram o feminino "presidenta" nas referências a Dilma. de graça. mestra. É apagamento da mulher. ideologias. sancionada em 3 de abril. . "Cobra" se aplica tanto a machos quanto a fêmeas. o que temos na memória hoje são os substantivos terminados em e. . como em "doutora Sônia". A lei só se justifica se for um anseio da sociedade. não por exclusão ou machismo.A tradição fixada pelo uso e pela norma aponta para o registro "doutor". Histórico Márcia Molina. Essa lei confunde o título com o uso do gênero.diz Bechara. O próprio Estado prefere transferir imóveis populares à mulher. diretor da empresa Y" e assim por diante.explica. Há quem insista. quando se trata do título. dizemos "doutor em linguística.avalia a professora. chefe do setor X. nos diplomas e certificados que emitem. Mas essa origem se perdeu. deve-se esperar o desenvolvimento natural do idioma. a estrutura familiar mudou. "Presidente". no entanto. se a norma linguística é o uso relativamente estabilizado em uma língua. . amparadas por lei. em que alterações são sempre resultado do uso popular. Dessa maneira. Para o gramático Evanildo Bechara. da USP. do departamento de português da PUC-SP e do Centro de Comunicação e Letras do Mackenzie. embora soe estranho para muitos . quando as pessoas do sexo masculino ou feminino são tratadas pelo título que obtiveram ou pelo nome da profissão para a qual estudaram. isso ocorre nos terminados em e. Quer dizer: agora. Em alguns casos. a lei contraria o desenvolvimento da língua. Quando digo: "Almocei na casa de meus tios". A sociedade mudou.Direito Internacional. Quando nos dirigimos à pessoa que porta o título. lembra que as profissões são elencadas pelas secretarias da Educação pelo gênero masculino. as instituições formadoras podem escrever. Como em "elefante". Como disse a presidente da ABL. Assim. tanto me refiro a tios como a tias. início do 20. o que preside.O artigo 5o da Constituição fala sobre igualdade entre homens e mulheres. no papel. . doutora em linguística e semiótica pela USP e coordenadora dos cursos de licenciatura da Unisa. mestre em língua portuguesa. . Ana Maria Machado: 89 . no dia a dia. Garanto que a presidente não foi bem assessorada por especialistas em teoria gramatical. O masculino é usado nos diplomas porque engloba o feminino. Assim como já observamos. a lei comete enganos de teoria gramatical. Pela tradição."Presidente" é palavra de formação latina. nada obstaria usarmos "residenta". se vai ao encontro da vontade popular . diz que discussões sobre o gênero de certas palavras remontam. seguindo a tradição da língua . Há um animal feminino que se chama "gata" e um masculino que se chama "gato". "Residente". sem que se criem leis para determinar aquilo que não deve ser determinado aleatoriamente diz a professora Neusa Bastos. que se trata de lei apenas desnecessária por se dedicar a assunto trivial e dispensável. o que já é norma na prática cotidiana. "mestre". usamos a marca de gênero. O uso do feminino para "presidente" foi alvo de discussões já naquela ocasião. mas para facilitar o uso dos termos. Uso popular Segundo Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos. que oculta em sua origem uma designação verbal. Necessidade O filólogo Manoel Mourivaldo Santiago Almeida. Mas ao afirmarmos o título de Sônia. para passar a valer também no papel. no Brasil. o masculino engloba os dois. ao final do século 19. porque a regra geral de flexão nominal informa que os substantivos terminados em o fazem o feminino em a.A lei apenas normatiza. o que reside. Isso demonstra a importância e a responsabilidade dela. quando ainda não havia expressões para designar funções até então nunca exercidas por mulheres. "doutor fulano" ou "doutora fulana".O gênero do substantivo é inato. avalia que a lei apenas ampara uma necessidade de comunicação já solucionada no cotidiano brasileiro. como "elefante/elefanta". Não falo como presidente da ABL.. com uma forma para o masculino e outra. Lílian Ghiuro Passarelli. da USP. "mestre(a)". que se construam creches. "estudanta" e coisas assim. Outra obviedade.com. da USP. afora essas situações formais. como "dentista" e "motorista". mas autora. Analistas como Ana Maria parecem acreditar que a lei se refere também a substantivos de gênero único. é necessário. Íris. reitera que a lei é restrita a diplomas. Parece ser o caso dessa lei. como "doutora". Se o objetivo era igualdade de gênero. se "presidenta" tem sustentação na tradição do idioma. Lair. obrigando ao uso do feminino nos cargos de repartições públicas e que acabou não pegando . isso se a língua prevê a forma feminina. para as palavras uniformes ou comuns de dois gêneros. Mas ninguém receberá diploma com título de "apóstola".diz Bechara. Ideli.diz a professora. que têm o mesmo radical ou base. Não vale. que mal há em que uma mulher receba o título oficial. Ela não se lembrou de nomes como Agar. não há motivo para estranhar a lei.É uma perda de tempo e esforço.Espero que essa lei seja tão desobedecida quanto a baixada em meados do século passado pelo presidente Juscelino Kubitschek. o esdrúxulo e pouco usado "bacharela". o povo continuará usando como preferir. com a flexão. "carrasca".br/textos/80/artigo260772-1. embora haja o feminino de "bacharel". tenha nos mostrado o processo ideal para o surgimento de toda e qualquer lei: primeiro. não há razão para choradeiras. Lemir. o registro da profissão. que a gente nunca sabe se é homem ou mulher. bom/boa gerente . Alair. http://revistalingua.A lei vale para as palavras biformes. Que sejam então proibidos nomes como "Juraci" e "Alcione". se houver algum na área acadêmica. talvez sem querer. presidentes "criativos" poderiam muito bem reivindicar o título de "presidento". Mas como a língua é do povo. registrado no diploma. às vezes. "administrador(a)". Muda apenas. "mestra".Quem quiser encontrar motivos para criticar a lei tem somente a opção de acusá-la de ser óbvia. Eli. considerando seus valores e não valores morais e éticos. flexionando ou não . "psicólogo(a)". na escrita dos diplomas.retruca Manoel Mourivaldo. terá de constar nos diplomas a flexão de gênero para nomear profissão ou grau do recém-graduado. Desde que a flexão de gênero se limite a palavras consagradas. O país tem outras prioridades.asp 90 . no entanto. mas que vale a pena ser dita: quem manda na língua é o povo. para que as mulheres possam trabalhar e ter independência econômica. Bechara desconfia do resultado. como lei. que. do departamento de português da PUC-SP. Naomi e Sadi. "engenheira" e outras já consolidadas ou que venham a incorporar-se à língua. . a distinção do gênero fica por conta do artigo ou adjetivo: o/a dentista. de "doutora" em vez de "doutor"? Ou de "mestra" em vez de "mestre"? . para o feminino. . Para tal perspectiva. Essas duas perspectivas implicam que. observa-se o fato que é da prática cultural de uma sociedade.explica o professor. como "doutor(a)". pela escrita. Mesmo assim. Exagero Manoel Mourivaldo. . Desconfiança De todo modo. torná-lo válido juridicamente . considera esse tipo de objeção apenas um exagero. "médica". Se depender de linguistas como ele.Ninguém vai inventar palavra nova para seguir a lei. para depois.uol. "médico(a)". Nesses casos. Mas ser óbvio. ouvinte. determina o uso oficial da forma feminina para designar cargos públicos ocupados por mulheres. Terminadas em -nte (amante. exemplifica o grupo. f. "poluenta".749. o substantivo ( líquido ou águapoluente). por coerência. "colega". Ao oficializar "presidenta". Marcelo Módolo informa que. Não gosto.diz Módolo. nada impede que um termo até chegue a substituir o anterior. mulher de um presidente.) mulher que preside.. O problema é que não há consenso linguístico que justifique opção contrária à lei. muitos professores. comuns de dois gêneros. Consagrada Linguistas de instituições como USP ponderam. embora se saiba que substantivos formados por -nte são comuns de dois gêneros. Em comunicado. não usam o / apara indicar gênero. gramáticos e dicionaristas se apressaram em dizer que tanto "a presidente" como "presidenta" são legítimas. Professor e presidente da Vestcon. O dicionário as aceita.a) presidente. o brasileiro teria de oficialmente referir-se a Dilma Rousseff como "presidenta".a) estudante. Por isso. invariáveis. a lei condiciona o uso flexionado ao que for admitido pela gramática. O fator linguístico a limitar essa "androginia".. "jovem". professor da Unicamp. "ouvinta". não dizemos "gerenta". a equipe do Lexikon. arrisca-se a "despender energia". Confusão O uso coletivo deve determinar predileção ou confirmar as duas formas. é improvável que a questão cause crises. mas quem sou para condenar? . constante. Era letra morta. a amante). a lei federal 2. digamos..Tanto faz qualquer uma das formas. para mim. Criada num pós-guerra em que os países incorporaram direitos em resposta a movimentos sociais. 91 . . (Fem. "pacienta". Caso fosse "presidenta". (neol. portanto: (o. . Elis Cardoso de Almeida. embora pareça recente. "constanta". Na prática. ortodoxo para seus hábitos. Ao menos desde o dicionário de Cândido de Figueiredo (1899): "Presidenta. Sim. como "pianista".diz John Robert Schmitz. que fale. "clienta" etc.Prefiro "a presidente" com base em outros vocábulos. avalia que os substantivos e adjetivos de dois gêneros terminados em -ente não apresentam flexão de gênero terminado em-a . Para o gramático Ataliba de Castilho. por isso. de presidente. diz Pimentel. hermafroditas ou bissexuadas". "presidenta" é termo antigo. tornando a palavra só masculina ou feminina.). Por essa lógica. de 1956. e é esperado que a preferência se resolva nas situações comunicativas. deveríamos ter (o. concorda. Em novembro. tradição do idioma e visão de mundo entram em conflito na definição do termo a ser usado para referir-se a Dilma Rousseff Luiz Costa Pereira Junior Se quisesse seguir a lei com um rigor."Presidenta" já está consignado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp). "a gerenta" ou "a atendenta". é indiferente o uso . "a pretendente" etc. "docenta". Sua colega. Todavia. assistente. poluente. docente. "a atendente". etc. quem quer falar "a presidenta". O que daria vez à forma "presidente". o pronome a ela ligado ( nosso ou nossa contribuinte). no Houaiss. que atualiza o dicionário Aulete. como "a gerente". é o artigo ( o amante. Até o país escolher sua primeira mulher à Presidência da República. diríamos "a presidenta está contenta" e "o presidente está contento". Mas número equivalente tomou "presidenta" como neologismo avesso ao sistema da língua. criando "amanta".)" . do senador Mozart Lago (1889-1974). Ernani Pimentel diz que "presidenta" pertence às palavras "andróginas..Morfologia Presidente ou presidenta? Lei. "capitã" e "generala". evita adotá-las. "coronela". Vejamos como. aí incluídas as que derivaram do particípio presente -nte. Política A professora acredita que há conotação dupla em "presidenta": o vocábulo serviria tanto à valorização (no sentido de "forte".É o que explica que o uso com ou sem o morfema de feminino seja ressignificado. Essa situação precisaria ser testada no português brasileiro. mas também pode transferir a ela uma certa visão de "mulher durona". "Presidenta" pode valorizar a mulher. A mulher começa a ocupar cargos antes só masculinos. há quem a chame "presidente eleita" ou "a presidente" com ênfase que ultrapassa a do uso corriqueiro. serviu a preconceitos eleitorais que. Por isso "chefa" nunca pegou. as pessoas se referirão a esse cargo quando ocupado por uma mulher.Algumas vezes. ele mesmo. interesses específicos. Ataliba explica a pouca variação de gênero em palavras terminadas em -nte . agora. talvez até orgulho. o feminino ganha ar pejorativo. Tal "divisão sexual" de qualidades é artificial. "feminina") quanto ao sentido caricato ("mandona".diz. Sempre foram homens a ocupar o posto. embora o dicionário registre! Usar "presidente" não é desmerecer a mulher. Há "soldada". sinalizaria a tentativa de neutralizar qualquer peso semântico que dê relevo à palavra. Para Elis. "Presidenta" explicita que foi ocupado por mulher .não tanto no campo da morfologia.Fica mais expressivo usar "presidenta". haja deliberada tomada de posição. daqui a alguns anos. o uso de "presidente" ou "presidenta" pode ou não reforçar. como "agente". "sargenta".diz ele.diz o gramático. Os limites de uso seguem. Aplicada a Dilma Rousseff. . Mas duvida que a insistência em "presidente" denotaria alguém preocupado em. http://revistalingua.uol. Ênfases Se é incerto afirmar que.asp 92 .). como "parenta" . . ao evitar a flexão. quando comparada às da classe em -o (menino) e -a (casa). Simplesmente. "Presidenta" parece sofrer outra ordem de influências.br/textos/62/artigo248988-1. instinto maternal. é tão indevido quanto ver como masculinas as incorporadas por esforço e inteligência. Talvez por isso. Para ele.. "presidente" foi apanhada por essa irregularidade. .Não acredito na hipótese. . a extensão a essa classe do morfema de feminino [-a] seja tão irregular. Embora as variações sejam aceitas. "implacável"). ternura acolhedora etc. O professor Módolo concorda que a forma "presidenta" é a preferida por quem a simbologia de uma mulher no poder é fato relevante. ao se usar um termo. "Presidente" remeteria a um cargo tipicamente preenchido por homens. mas no da semântica e até da ideologia. Mas o Exército. creio que usam "presidente" porque é corriqueiro. . É preciso que se marque isso de alguma forma.As palavras que têm vogal temática -e . integram uma classe pouco produtiva. o tipo de adoção de cada uma parece dividir intuições e usos . pois se trata da primeira brasileira no cargo . Algumas não admitem feminino de forma alguma.Ao manter invariável o gênero. a diferença passaria pela ênfase que o falante intui dar ao enunciar a ocupante do cargo.O uso é o senhor da língua. . Outras já o admitem. Associar às mulheres qualidades consideradas femininas (sensibilidade. A desinência -a de feminino passa a cumprir esse papel. muitas vezes.com.É aí que entra a questão política. pois é fato novo histórico e linguístico. assinalar sua resistência à eleita. é usar forma comum de dois gêneros. O acordo ortográfico. em grafias divergentes de algumas palavras ("António" e "Antônio". Godofredo de Oliveira Neto. como continuamos a escrever no Brasil. Consonantal Ao programa Política Mesmo. avalia ele.Acordo Ortográfico O nó da discordia Reações dos dois lados do Atlântico contestam a nova ortografia já adotada no Brasil Luiz Costa Pereira Junior Menos de seis meses após adotar o novo acordo ortográfico. Viegas defendeu em fins de fevereiro que "a ortografia poderá ser corrigida" nos próximos três anos. para atualizar a grafia do país. Considerou incompreensível que se reveja um processo que já concluiu seus trâmites jurídicos e políticos. Muitas palavras têm consoantes mudas no português. A regra seria evidência. "aspecto" e "espectador". A posição de Moura deu ânimo a um processo de inconstitucionalidade movido em fevereiro por Ivo Barroso. um abaixo-assinado. seguindo o exemplo de imprensa e editoras. da TVI24. raciocina o professor). A manifestação é inédita entre altas autoridades portuguesas. em Portugal. conforme a conveniência de seu país. Segundo ele. não só protestos isolados. Repercussão O presidente da Comissão de Língua Portuguesa do MEC brasileiro. mas "facto" (acontecimento) se mantém. assinado em Lisboa em 1990. uma referência cultural no país. como a eliminação de consoantes não pronunciadas. "actualidade" vira "atualidade" à brasileira. Nos documentos do Estado. Francisco José Viegas. no entanto. presidenta da Associação de Professores de Português. tomou a 82ª Feira do Livro de Lisboa. O secretário da Cultura português. professor da Faculdade de Direito de Lisboa. Em fevereiro. porque aqui se pronuncia o c e o p nesses casos. para que o parlamento extinga a lei ortográfica. lá não. apesar de estar em curso um período de transição. Portugal ameaça mandar às favas a grafia que já vigora no Brasil. pois "não há polícia da língua". é preciso "aperfeiçoar o que há para aperfeiçoar". a adoção portuguesa começou em janeiro. durante o qual serão aceitas as duas grafias. Já Edviges Ferreira. "gênero" e "género"). para diferir da pronúncia de "fato" (traje). de que o acordo desagrega quando deveria unir. de 49 anos. conforme pronunciados. permanecerão. O gesto de Viegas sinaliza que o desconforto português com o acordo já envolve instituições. criando divergências que antes não havia. em escolas e serviços públicos. até lá. para adotar "receção". Acentos. entidade lusa que organiza os 93 . Os portugueses devem abandonar "recepção". pois o processo "não foi bem encaminhado" e foi decidido "à última da hora". em nome de um movimento chamado Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Ele prestou queixa na Provedoria de Justiça portuguesa por considerar que o "novo idioma" fere a Constituição de 1976. foi abolir o acordo no órgão. O documento já circulara na internet em abril. defende que o país pode "corrigir" o acordo multilateral. Assim. a primeira medida do poeta Vasco Graça Moura ao assumir o Centro Cultural de Belém. Viegas admite que o problema se concentra nas palavras de dupla grafia e nas sequências consonantais. mas elas nem sempre são as mesmas no Brasil e em Portugal. tem período de adaptação até 2015. escrita em grafia antiga (portanto. só por emenda constitucional. Cada português poderá. Em maio. "aspeto" e "espetador". para ira de nacionalistas lusos. começou a ser aplicado em 2009 no Brasil e. reagiu às iniciativas portuguesas. que já o faziam. "escolher a ortografia que prefere". ao Congresso e aos signatários. houve uma primeira resposta da Advocacia-Geral da União a outro processo. O titular da pasta de Cultura quer que até o fim de 2012 os portugueses sugiram mudanças à comissão multilateral que elabora o Vocabulário Ortográfico Comum. coordenador do acordo na ABL. mas apenas de terminologias técnicas e científicas. Em Portugal. Faz referência à portaria do Ministério da Educação e Ciência (o MEC português) que obriga os professores de lá a aplicarem o acordo desde 2011. Em março. Só depois de algum tempo estará pronto para receber alterações. desde que se introduza nele o vocabulário angolano.questiona ela. . A grita não é só lusa. não foram ouvidos para a confecção do acordo. Desde abril. Agora. A alegação é que diversos países assinaram. Angola se declarou favorável à ratificação do acordo. afirma que é a favor do acordo. com que cara vão dizer aos alunos que cada um escreve como entende? . . Viegas sinaliza ligeiro recuo. Se em períodos curtos se propuserem reformas. magistrados e imprensa. por exemplo. Brasileira de Letras e das Ciências de Portugal.Tais pessoas se inspiram na primeira parte no artigo 2º do acordo. A AGU contra-argumenta que não cabe ação popular para discutir o acordo. em Brasília. no Brasil. de pequenas em pequenas mudanças haverá o desprestígio do trabalho longamente pensado e executado . Brasil Aqui. como professores. É a problemas assim que o artigo 2º se refere . Tal Volp consensual (o brasileiro foi oficializado pela ABL em 2010) só será concluído em 2014. considera prematura qualquer tentativa de alteração. Academias O gramático Evanildo Bechara.diz ele. os alunos são punidos por usarem a grafia anterior. Em abril. por representantes de todos os países lusófonos. 94 . que prevê revisão. A afirmação foi de Oliveira Encoge. universidades. E informa que não está participando de nenhum trabalho (nem a ABL) de revisão. para se sedimentar.docentes da área. ligados à expressão escrita. diretor do Ministério das Relações Exteriores do país africano. uma ação civil foi esboçada em abril por entidades como a Associação Brasileira de Imprensa. mas a dupla grafia foi admitida em exames escolares até 2013. mas o Brasil criou regras complementares. A orientação às escolas lusas parece mesmo ambígua. fala-se e escreve-se "Moscovo" (capital da Rússia). Afirmou que "é de lamentar que entre os governantes não haja acordo". fala-se "Moscou" e "Nuremberg". que tem de ser posta em uso pela população. uma ação popular aberta em nome do professor Ernani Pimentel.explica. pelo mercado editorial e pela sociedade.Cada acordo é uma proposta. num encontro de preparação para uma reunião de ministros da Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. mas mudanças pontuais estariam previstas no texto da lei e caberia às academias. e "Nuremberga" (cidade alemã). num trabalho desenvolvido. que não foram submetidas aos pesquisadores. A ação considera ilegal implementarem-se alterações ortográficas sem conformidade com o acordo internacional. que não é lesivo ao patrimônio público. uma lei perde o prestígio se mudada a toda hora. Elas alegam que setores importantes da sociedade. Tornado lei. diz Viegas. Nas aulas. linguistas. adotado pelo MEC. A justificativa é que os manuais escolares estão com grafia antiga. . também criticou Viegas. a lei ortográfica é defendida pelo governo brasileiro. sim.E agora. Para Bechara. realizá-las. Alterações A ideia de "vocabulário ortográfico comum" teria sido extraída deste artigo 2º: "Os Estados signatários tomarão. alterado em 1915. em Portugal. no Brasil. de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa. Bechara insiste em que as alterações costumam ocorrer muito depois de adotados os acordos. respeitando diferenças muito enraizadas. "95% do texto da lei atual" reproduz o acordo português de 1945. não vejo razão para algumas pessoas em Portugal se mostrarem descontentes. E não teve por fim igualar o léxico dos países lusófonos.uol. avalia o gramático http://revistalingua. de janeiro de 1993. que um brasileiro escreveria "objetivo". publicado este ano na imprensa lisboeta.com. até 1º. Um dos exemplos de Bechara para considerar inconsistente a resistência portuguesa ao acordo é a contagem de palavras que fez de um artigo de Vasco Graça Moura (o mesmo que aboliu o acordo no Centro Cultural de Belém).Por isso.O acordo de 1990. e de 1945.br/textos/80/artigo260769-1. É por isso que ele tem condições de dar certo.diz o gramático. O de 1990 é a resolução das diferenças entre esses dois acordos. de Gonçalves Viana. Para Bechara. O brasileiro de 1943 era repleto de acentos diferenciais. Sinal de que a ortografia já estaria unificada. A começar pelo de 1911. as providências necessárias com vista à elaboração. só uma seria mudada pelo novo léxico: "objectivo". Só que o governo está muito preocupado com a situação econômica para preocupar-se com o léxico. que já está resolvido. O europeu de 1945 mudou em 75. é o resultado do exame das diferenças entre os acordos de 1943. que previam a eliminação artificial das diferenças . no que se refere às terminologias científicas e técnicas. agora em vigor. mas fazer a maior aproximação possível. através das instituições e órgãos competentes. expurgados só em 1971. tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível.asp 95 . em Portugal. Falam até em intervenção do governo no assunto." . ao contrário das tentativas anteriores. . Das 800 palavras contra o acordo ortográfico usadas por ele em "A opção". "vende-se flores". Se não. e escrevem. Os exemplos escolares são sempre os mesmos: "alugam-se casas". "aluga-se casas". b) a aplicação aos dados deve ser "cega". aliás. Vou exemplificar as duas questões considerando as chamadas passivas sintéticas. 96 . também! Analogamente: uma gramática deve levar em conta os escritores modernos? Por que sim ou não se poderia considerar representativa a escrita dos jornais ou a dos textos técnicos? Dependendo da resposta a essas perguntas. a gramática final pode ser diferente das conhecidas . "nem assistir os jogos". Para dar exemplos batidos. "vendem-se flores" (e não "aluga-se casas". quando são simplesmente variantes que os escritores empregaram. a construção deve ser considerada correta. por outro. portanto. b) considerar que são dados legítimos e tentar explicá-los a partir de teorias: da mudança histórica. Nesse quesito. "vende-se flores". discutem sua relevância. a dizer e escrever "vendem-se filhotes". já se consolidou nas outras línguas românicas e. A questão de fundo é "até onde vai o português (culto)"? Exigências Além dos dados. mesmo cultos. construções semelhantes. por um lado. por todos os meios. Primeiro.Sintaxe Aluga(m)-se mesmo casas? A fragilidade dos argumentos que consideram passivas frases como "alugam-se casas" põe em xeque a norma culta Sírio Possenti A ciência avança em boa medida por causa das controvérsias. além disso.ou. por exemplo) para quem fala ou escreve. os dados: é fato que muitos falantes. que estão em Os Lusíadas? Se sim. Elas põem em confronto explicações diferentes para os mesmos dados e. Os mais "conservadores" dirão que se deve insistir em ensinar a todos. Diante do fato. como "alevanta" e "ingrês". duas exigências: a) a teoria deve ser clara e coerente. é usada sem que pareça haver problemas (não há dúvidas de interpretação. tratando a variante como erro. como sempre insisto. Comecemos pelos dados. Os menos conservadores opinarão que a variante com verbo no singular é parte de uma deriva da língua. É por não considerarem certas variantes como dados legítimos que as gramáticas tratam certas construções como exceções. Uma gramática atual deve levar em conta grafias que indicam pronúncias ou formas condenadas. ensina-se). um gramático tem as alternativas: a) decidir que não são dados e tratá-los como erros (mas são "aberrações". a opinião prévia do gramático deve dobrar-se aos fatos. como um bezerro com cinco patas ou um feto anencéfalo?). o gramático deve dar suas razões. Fazendo parte de uma deriva. que. as questões teóricas e de método deveriam ser levadas a sério. dizem cada vez mais. considerar toda a "boa" literatura ou só os exemplos selecionados para reforçar teses previamente definidas. Este último caso é de importância crucial para gramáticas: elas podem levar em conta variantes linguísticas (ao menos algumas) ou não e. a regência de "assistir" e de "namorar" seria tratada nesses textos como nos dicionários: "namorar com" não seria mais considerada um erro. eventualmente. isto é. de sua simplificação efetuada pelos manuais ou "colunas". e. das que tentam analisar coerentemente outros aspectos estruturais da língua. isto é. isto é. então "livros são vendidos por mim" prova que "eu vendo livros" é passiva. diz Ali. embora o verbo seja transitivo direto. Borges diz que essa faculdade o impedia de conhecer: "Suspeito que não era muito capaz de pensar". sendo passiva. mas não o são mais. Ali tem outro argumento em favor da análise "ativa" da construção: aceita-se sem discussão que sujeitos não podem ser precedidos de preposição. se a regra vale para "Ama-se a Deus". como tantas já ocorridas na língua. a questão é simples: toda ativa com verbo de ação pode ter contraparte passiva! Mas isso prova só que são paráfrases (têm mais ou menos o mesmo sentido). Por quê? Porque "a Deus" não pode ser sujeito! E teria de ser. de que as formas verbais reflexivas são testemunhas.com. Por isso. cuja memória era tão minuciosa que "aborrecia-o que o cão das três e quatorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente)". de Dificuldades da Língua Portuguesa. A segunda oração. e não que ambas são passivas. O resultado é que os alunos nunca aprendem certos pontos. como no exemplo de Camões: "o mar que só dos feos focas se navega". O argumento da paráfrase também é frágil: se "casas são alugadas" prova que "alugam-se casas" é passiva. O texto é de 1909!). vende(m)-se filhotes" etc. Não se pode afirmar. A placa significa que "esta casa é alugada"? Quem a lesse assim só pode ter chegado de Marte! Para a população.br/textos/79/artigo258565-1. na qual está escrito: "Aluga-se esta casa". que "se" tem funções distintas em "Ama-se Deus" e em "Ama-se a Deus". Esses argumentos têm problemas (repito: independentemente do gosto de cada um em relação a uma ou a outra construção). diz respeito ao sentido da construção. No caso dessas construções. a placa significa que a casa está vazia e alguém. muitas regras são ad hoc (o pior crime de um cientista!). para que a oração fosse passiva. pois significaria "Deus é amado") deve ser analisada como oração ativa com sujeito indeterminado. certamente os alunos têm muita razão. O argumento histórico tem uma falha: as passivas têm "agentes da passiva"! Além disso. A queda do agente em construções com "se" mostra que elas deixaram de ser passivas. Borges criou uma personagem (Funes. tendo coerência intelectual. Ora. a frase "ama-se a Deus" ("ama-se Deus" deveria ser passiva. que vemos uma placa em frente a uma casa.uol.asp 97 . para "aluga(m)se casas. Suponhamos. o argumento é o da paráfrase: "alugam-se casas" é igual a (significa) "casas são alugadas". portanto. segundo a doutrina corrente.incluídos os defensores de que se trata de uma passiva -. está em posição de alugá-la. já foram construídas com "se". É só uma mudança. "Aluga-se" significa "alguém aluga". Assim. o memorioso). por um telefone ou nome de imobiliária). Muitos manuais de ensino de português têm síndrome de Funes. seria "o mar que só é navegado pelas feias focas"). "provaria" que a primeira é passiva. http://revistalingua. embora objetos diretos possam. O primeiro fato é semântico. b) estrutural: é possível converter essa oração em passiva analítica. podese discutir se é passiva ou se é ativa com sujeito indeterminado (como "precisa-se de ajudantes").. em "O pronome se". mesmo com séculos de ensino repetitivo. deve valer para "Ama-se Deus" e. Foram. exatamente como "precisa-se de" significa "alguém precisa de".. Fatos Mas há mais dois fatos que mostram que as ditas passivas sintéticas não são passivas (os argumentos são de Said Ali.Argumentos Outra questão é a análise dessa estrutura. muitas análises são incoerentes. Os argumentos em favor da análise como passiva são de dois tipos: a) histórico: essas construções derivam ou se assemelham à antiga voz média (forma passiva com sentido ativo). Peso e medida Ora. Independentemente da avaliação social da construção. Nos lugares em que essa discussão é apresentada. não especificado (ou sim. culta ou não . em que "dos feos focas" é o agente da passiva e a construção é marcada pelo "se" (hoje. Lógicas Passado subjuntivo Por que usamos um tempo verbal para denotar ações ou estados que correspondem a outro tempo físico Aldo Bizzocchi A língua apresenta três modos verbais: indicativo, modo de ações e estados concretos, efetivos; subjuntivo, de ações e estados hipotéticos ou dependentes de outros estados e ações; e imperativo, de ordem, sugestão. Em "O espirro do verbo" (Língua 35), já chamei atenção para como tal divisão é incompleta e simplifica, no plano da superfície, fenômenos mais complexos. Ou seja, ao nível semântico, há ao menos seis modos de conceber a realidade, que se resumem, em nível morfossintático, aos três modos que conhecemos. No indicativo, a língua é rica, com três tempos pretéritos (imperfeito, perfeito e mais-que-perfeito), um presente e dois futuros (do presente e do pretérito). Já o subjuntivo tem só três tempos: imperfeito, presente e futuro. O problema é que, além de esses tempos não serem nuançados por informações sobre aspecto verbal (perfeito, imperfeito, etc.), muitas vezes usamos um tempo verbal para denotar uma ação ou estado que, semanticamente, corresponde a outro tempo físico. Não que o modo indicativo nunca ofereça problemas. Em "perguntei quem era ele", o sentido real é "perguntei quem é ele", a ação de perguntar se deu no passado, mas "ele" não deixou de ser quem é após a pergunta. Mas é no modo subjuntivo que essas incoerências são acentuadas. Nos exemplos, entre parênteses, após o verbo no modo que usamos na norma culta, está o tempo real da ação ou estado referidos pelo enunciado: "Pensei que ela fosse (era) rica. Se eu fosse (seria) rico, compraria um iate. Espero que ele venha(virá). Espero que ela seja (é) bonita. Onde você estiver (estará), eu estarei com você. Faça o que você quiser (quer). Se quiser (quer), pode pagar amanhã." Outra prova do uso incoerente dos tempos do subjuntivo é que a substituição de conjunção por outra modifica o tempo verbal sem alterar o semântico. Basta trocar "que" por "se" para constatar: "mesmo que você esteja lá" equivale a "mesmo se você estiver lá"; o sentido real tanto pode ser "mesmo que/se você está lá" quanto "mesmo que/se você estará lá". Das línguas latinas, o português é a que tem mais formas de subjuntivo e uso mais caótico dele. As demais não têm ou não usam o futuro (em espanhol, único além do português a ter futuro do subjuntivo, esse tempo está obsolescente). Já o francês quase não usa o imperfeito do subjuntivo, preferindo o imperfeito do indicativo. http://revistalingua.uol.com.br/textos/79/artigo258574-1.asp 98 Tendência Linguistas no paiol dos gramáticos Obra de Marcos Bagno reforça a importância de pesquisadores da linguagem entrarem numa seara antes exclusiva dos gramáticos normativos Sírio Possenti Na abertura do mais recente congresso da Associação Brasileira de Linguística (Abralin), realizado há um ano em Curitiba, falaram linguistas gramáticos da Espanha, de Portugal e do Brasil. Comemorava-se, de certa forma, a chegada dos linguistas a um campo que em geral não frequentam. As gramáticas que então foram apresentadas (faltou a de Mário Alberto Perini) são obras que não têm "intenção" pedagógica. Elas consolidam pesquisas que cobrem, de certa forma, toda a língua, o que é raro no trabalho de um linguista (na verdade, de qualquer cientista: são poucos os que escrevem "manuais"). Cientistas são especialistas em terrenos circunscritos. Marcos Bagno acaba de publicar sua Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (Parábola Editorial, 1.056 páginas, R$ 120). O título é significativo das pretensões da obra. É uma gramática: apresenta regras, no sentido de regularidades; é pedagógica: implica que deseja ser lida nas escolas, com o objetivo de, ao mesmo tempo, descrever / explicar fatos do português (as diversas variedades) e de selecionar o que deve ser aprendido pelos alunos; e trata do português brasileiro: uma variedade (também internamente variada) particular do português que, a seu ver, deve ser a ensinada nas escolas. Sem aceitar tudo Esta questão, se relevante (tanto para a questão nacional quanto para a política de ensino), é a menos explicitamente revolucionária em uma gramática, por uma razão muito simples: as diferenças que repercutem no ensino da língua não são numerosas. Referem-se a poucas questiúnculas, dentre as quais a colocação dos pronomes átonos. O português brasileiro é francamente proclítico ("Me dá um dinheiro"). Bagno, como numerosos outros estudiosos, não vê nenhum problema em aceitar oficialmente esta regra (que Cunha e Cintra, aliás, também "aceitam" em sua gramática, mas ninguém percebe). Decorrente desta mesma posição, a gramática de Bagno propõe que a escola e a "sociedade" aceitem que o português brasileiro culto é diferente do português culto que imaginariamente se fala ou escreve. Bagno "prova" o que diz, citando numerosos dados. E não propõe, como pensam os que só o conhecem pelas polêmicas, que a escola "aceite tudo". Apenas propõe, com clareza, que sejam aceitas como corretas, sejam avalizadas, não mais consideradas como erros, e não se reprove alunos mais por causa delas, construções extremamente frequentes, embora não exclusivas, nos textos dos profissionais das escrita, especialmente da escrita da mídia. Para ser mais preciso, da mídia linguisticamente conservadora. Para todas as questões gramaticais relativamente candentes analisadas, a gramática de Bagno mostra exaustivamente que muitas formas condenadas nos manuais de redação, por exemplo, são fartamente empregadas pelos melhores funcionários dos jornais ou das revistas, incluídos os articulistas, em geral intelectuais da academia. Em suma: com base nos fatos, numerosos fatos (não só atuais), e em teoria consistente, a obra propõe a adoção, como projeto educacional, do ensino do português culto falado e escrito de fato no Brasil. Tratase da fala e da escrita cultas, não das populares: ou seja: o autor nem é "radical"... Para exemplificar: sugere que não se considerem erros construções como "Vende-se cachorros" ou "A casa que o jardim (dela) é bonito" ou "Mandei ele sair". 99 Por várias razões: a) são empregadas por falantes cultos; b) seguem uma deriva histórica da língua, ou seja, têm uma boa explicação histórica, não são frutos do desleixo; c) não há prejuízo para sua "compreensão". Ofendem ouvidos? Pode ser. Mas muito poucos, porque, como os dados mostram, as formas defendidas como as únicas corretas não são empregadas nem por seus defensores (professores, escritores e intelectuais variados). Tradicional inovador Anoto, por extremamente relevante, que o autor repete insistentemente que o ensino das formas "tradicionais" tem lugar na escola (e sugere como ensiná-las). Ou seja: longe de combatê-las, considera que a escola tem a obrigação de ensiná-las, e de uma forma que sejam aprendidas, para que sejam empregadas nos textos que se espera ou se exige que sejam mais monitorados (eis uma forma de ensinar adequadamente os tais gêneros). Mas a obra não é só uma proposta de ensino mais realista, que se aplique a ensinar o português culto do Brasil nas escolas brasileiras. É também uma gramática no sentido mais estrito: contém descrições e explicações para numerosos fatos. Muitos dos eventuais críticos terão trabalho para lê-la. Suarão com as teorias invocadas, porque pensam que só existem as que leram nas gramáticas mais tradicionais, das quais em geral apenas conhecem o traço normativo. A obra tem pouco mais de 1.050 páginas. É óbvio que aqui não posso comentá-la em detalhe. Anoto só algumas características marcantes. Um capítulo introdutório comenta concepções filosóficas clássicas das línguas (sem repetir o blá-blá-blá comunicativo) e as questões políticas nas quais estão sempre envolvidas, entre as quais a questão colonial, que, no caso, ainda implica que se pense que o único português é o de Portugal, e seria o de Camões. Outro tópico inovador é uma apresentação da história do português brasileiro. O que mais chama a atenção nos capítulos dedicados a esta questão é que regras que mudaram o português, desde seus tempos de latim até hoje, continuam funcionando: a variação interna do português atual replica muitos fenômenos que fizeram com que a língua seja como é, diferentemente do italiano, do espanhol ou do latim vulgar. As primeiras 400 páginas jogam o leitor nesse mundo das línguas e da acumulação de conhecimento sobre elas - e sobre a nossa, que já é grande. História Anoto, por ser raro em obras dessa natureza, a menção a muitos fatos análogos, semelhantes ou diferentes, que ocorrem em muitas línguas. Além do valor intrínseco dessas informações, elas têm o papel de mostrar que as línguas são fenômenos cheios de diferentes soluções para o mesmo "problema" (como dizer X), mas também que a mesma estrutura ocorre em línguas nas quais menos se espera encontrá-la. É um prato cheio para os curiosos por informações que fazem pensar. Depois a obra entra diretamente em questões de análise do português brasileiro. Na segunda "metade", está mais próxima das gramáticas que conhecemos, dadas as questões de que trata. Há discussão sobre as categorias (o que é um verbo, um nome um advérbio... etc.) e há tomada de posição em relação a elas. O autor defende, geralmente, que as categorias são um pouco fluidas e, em seu interior, continuam ocorrendo processos de gramaticalização, um dos fatores que impedem uma classificação mais rígida. A perspectiva geral adotada é funcionalista (inclusive com algumas estocadas nos formalistas), compatível com certa concepção da história e da variação interna das línguas. Convincente 100 pois são usadas por falantes cultos e com justificação histórica. Neste sentido. e principalmente as reanálises. estudada. se verbos podem ser ora transitivos ora intransitivos. Que não seja descartada só porque não repete o que pensamos ou pensamos que sabemos. debatida. A professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara e do Mackenzie encara a gramática da língua como a responsável pela produção de sentidos na linguagem. oferece uma organização que os sistematiza. pelo entrelaçamento discursivo-textual das relações estabelecidas na comunicação cotidiana. busca situar o leitor leigo adotando a divisão tradicional em classes de palavras. 2000. Refletindo sobre esses usos. e explicita sua origem e sua dimensão política. Deixaríamos de perder muito tempo. que sempre esconde suas origens e desígnios. ou são mais discutíveis do que outras (p. a obra se notabilizou como fonte de consulta para planos de aula. mesmo se propondo pedagógica. avança no caminho aberto pelas obras anteriores do autor. 101 . Indicada a professores. sempre fundadas em numerosos fatos. Imagem do livro de Bagno: autor sugere que não se considerem erros construções como "Vende-se cachorros" ou "Mandei ele sair". posição que é óbvia em qualquer ciência (não se ensina que crianças são trazidas por cegonhas nas aulas de biologia). Algumas podem ser discutidas. Trata de fatos. como base de seus capítulos.As análises. Mesmo assim. Não se apresenta como sendo a palavra da tradição. A gramática de Bagno deveria ser lida.). 1. Mas é obra de pesquisa.. e não só por professores de português. vinda da linguística Por Luiz Costa Pereira Junior Gramática de Usos do Português De Maria Helena de Moura Neves (Editora Unesp. a que ele está familiarizado na escola. a análise de estruturas como "Mandei ele / o sair" etc. mesmo as "novas". E muita discussão besta desapareceria. são bastante convincentes. que obrigam a rever velhas categorias com as quais as gramáticas escolares nos acostumaram. ex.073 páginas) A obra parte da observação dos usos que podem ser confirmáveis no Brasil por meio de pesquisa. Outra vantagem de uma obra como esta é que ela defende uma teoria. como a proposição de verbos apresentacionais ou do caso absolutivo. não sendo mero desleixo A nova era dos gramáticos As obras do século 21 que abrem espaço a uma nova geração de gramáticos. 2007. Sugere que estudemos não tanto ocorrências arcaicas. dando a mesma importância de análise científica a fatos linguísticos considerados marginais pelas gramáticas tradicionais. por que se adota uma análise e não outra. com suas variedades. Nova Gramática do Português Brasileiro De Ataliba Teixeira de Castilho (Editora Contexto. a construção dos sons e do sentido. e não faz sentido só aprender uma lista de resultados. Por isso. 312 páginas. 2010. A obra considera a gramática uma disciplina científica. 768 páginas. 5ª edição. Até então.asp 102 . normativa (não se propõe instrumento que regule o bom uso da língua). 50 euros) Publicada pela primeira vez em 1983.500 horas de falas em cinco capitais (cada hora gravada produz 40 páginas de transcrição). Perini criou uma gramática da variante brasileira do português. mas em uso na comunidade de falantes do português brasileiro. sem espaço para debate. O resultado é uma monumental contribuição à pesquisa. o livro destinado a alunos e professores de letras busca mostrar. "Tafalano no telefone?" e "Quem que chegou?".com. desde 1988. os pesquisadores dividiram-se em grupos para entender a oralidade. Portanto. como "Ni mim". Ela não é.Gramática do Português Culto Falado no Brasil (Editora Unicamp. a estrutura das sentenças. Castilho busca um retrato da língua tal como ela é falada no Brasil. 5 volumes) Feita a partir de um corpus composto por gravações com a linguagem falada pela elite escolarizada. a variedade da língua estudada é a norma-padrão do português europeu: apresenta descrições e análises de aspectos da língua portuguesa. A obra tem o valor adicional para os brasileiros. O estudo de gramática não leva alguém a ler ou escrever melhor. 2010. Gramática da Língua Portuguesa De Maria Helena Mira Mateus. O projeto retoma outra pesquisa. Mas a descrição das gravações só encontrou a devida análise nesta gramática. Gramática do português brasileiro De Mário Alberto Perini (Parábola Editorial.br/textos/78/artigo255356-1. Mapeia as teorias e os diferentes modos como a língua é usada no país. Isabel Hub Faria (Editora Caminho. http://revistalingua. 368 páginas. R$ 50) Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). mas que se acrescente o estudo de formas de fato usadas diariamente em todo o país. R$ 70) Professor da Universidade de São Paulo (USP).uol. a morfologia e o uso das palavras. estilo menos tecnicista que nas outras edições e cobertura linguística mais ampla. tal como a astronomia e a história. O significativo trabalho de revisão deu à obra portuguesa maior poder descritivo. 2009. que entre 1970 e 1978 gravou 1. Embora esta gramática não seja normativa. Inês Duarte. por isso. esta gramática portuguesa está em sua 5ª edição. em cada caso estudado. Ana Maria Brito. pois é uma oportunidade de comparar trabalhos de linguistas de países lusófonos. reúne o esforço de 32 pesquisadores de 12 universidades. não é um conjunto de dogmas. Norma Urbana Culta (NURC). mais provavelmente no início de 2013 do que no fim de 2012.A concordância sumiu ou evoluiu? Há casos em que o sujeito se divorcia do predicado. e o sujeito escorrega para outro em espetacular dissonância." "Está fora do horizonte da equipe as pressões. sob a urgência ou não de um "fechamento".". No entanto. Está fora do horizonte da equipe as pressões que possam comprometer essa estratégia.. Mas ocorreu no texto de um editorialista em página nobre de jornal. Claro que isso é muito mais frequente na expressão oral do que na escrita e há indícios de que já está incorporado à fala brasileira mesmo da elite culta. Parece ter sido esse o caso registrado no seguinte trecho: "A inflação tende a seguir suave e moderadamente em direção ao centro da meta . como se chama no jargão jornalístico o acabamento dado ao material antes que ele vá a público. perturbado pelo complemento "fora do horizonte da equipe" (entre o predicado e o sujeito). e cada um escapa para um lado Josué Machado Um dos enganos mais frequentes dos que tentam se comunicar segundo o código da norma culta ocorre no campo da concordância verbal quando o predicado aparece antes do sujeito. escreveu ele distraído ou sonolento. Então o predicado desliza para um lado. acontece e pode acontecer com qualquer pessoa que tenha de escrever depressa. Distração Se a ordem fosse direta. Sabe-se que os responsáveis por editoriais são jornalistas um tanto mais experientes do que a maioria dos iniciantes mal escolarizados e pouco rodados na vida e no jornalismo. separados por um recheio qualquer.. jamais o escriba teria escorregado dizendo que o sujeito "pressões" "está" fora 103 . Principalmente quando estão distantes um do outro. o uso tem regularizado a concordância: ela estaria se tornando a mesma quando não há sujeito e quando só parece que não (com o sujeito fora de sua posição típica). Se Possenti estiver certo.uol. constatou o estudo. Só do ponto de vista semântico (ou pragmático) é que dizemos que o termo posposto (céu) é o sujeito. (Luiz Costa Pereira Junior) Nova regra? Cometemos crime de lesa-língua quando dizemos "Passará o céu e a terra. reunindo os esforços de pesquisadores de universidades brasileiras. lembra o linguista da Unicamp. É como se as orações não tivessem sujeito. exemplo clássico das gramáticas? Sírio Possenti.br/textos/76/artigo250586-1.está vazia. quando foram iniciados o projeto Nurc (Norma Linguística Culta Urbana) e o Programa de Estudos sobre o Uso da Língua. Mesmo quando o sujeito não é composto. A razão? A posição típica de sujeito . Essa constatação se tornou uma evidência científica desde os anos 1970.asp 104 . O verbo não concordaria com o 1o nome do sujeito composto posposto. que mesmo os brasileiros de nível universitário usam na fala variedades linguísticas em desacordo com o padrão do idioma. porque em alguns momentos deixa-se de enxergar com clareza um ou outro detalhe do texto lido e relido. no singular. no entanto. 5/7/2002). Paulo." Tendo de cortar algo. Falta de concordância pode ser o padrão oral brasileiro A ausência de concordância em frases curtas muito recheadas por interrupções entre o sujeito e o predicado é um dos pontos gramaticais que unificam a fala de escolarizados a analfabetos brasileiros.. Há bêbados aqui).com. Daí a óbvia necessidade de ler e reler. terá passado a foice no então sujeito "temor". afinal. e revela. Ao falar." A formulação da regra seria: "Quando não há sujeito.500 horas de entrevistas gravadas em cinco capitais do país. Na expressão oral." É o mesmo caso do verbo sem sujeito de fato. o verbo vai para a 3a pessoa do singular. deverá ter início aseliminatórias. quando ambos são separados por apostos e outras interpolações. De preferência. se posposto (após o verbo): "céu" e não "céu e terra". deixando como saldo a antológica discordância "pressões está fora". Coisas da vida. por exemplo.. a maioria lança o sujeito num número (plural/singular) que discorda do verbo que o complementa. entre outras coisas. Talvez . O que pode ter ocorrido para tão distraído escorregão? Um corte de última hora para acertar o tamanho do texto. pedir a alguém que faça a leitura. nesta Língua. o linguista notou a frequência com que se põe o sujeito posposto no plural e o verbo. A concordância é fenômeno sintático. http://revistalingua. Simplesmente não concorda com nada.apenas hipótese -. (Folha de S. como em "Já no 1o semestre. O Nurc permitiu a análise de mais de 1. já questionou a formulação de que o verbo concorde só com o mais próximo elemento do sujeito composto.do horizonte da equipe.antes do verbo . mas minhas palavras não passarão". Os mais escolarizados têm sim maior cuidado com a concordância ao escrever. Daí sugerir: "Talvez se possa propor uma regra parcialmente diferente da das gramáticas. o impessoal (Faz dez anos que saiu. representaria a base do padrão do idioma) já não age do mesmo modo e empata com o uso corriqueiro das variantes populares orais. talvez ele tenha escrito inicialmente algo como "Está fora do horizonte da equipe o temor de pressões blá-blá-blá. a elite culta (que. Os opostos do "mas" Responsáveis por relacionar ideias contrastantes. Um é sobre a posição da conjunção "mas". a questão merecerá um comentário. em resumo.Paulo de 28/12/2011) para ver se encontrava "mas" no início de parágrafos. As gramáticas tratam precariamente das conjunções. que "relacionam pensamentos contrastantes". Deve-se entender que o parágrafo se opõe a tudo o que foi dito antes dele. A resposta dependeria da gramática seguida. porque "mas" não liga dois termos ou orações. Falta esclarecer que as unidades ou pensamentos podem ser múltiplos. Consideremos um dado. que não se deveria começar orações com "mas". afinal.) a outras três. Bechara diz que as adversativas "enlaçam unidadescoordenadas". publicada em Língua 72 (outubro). "Todavia" divide um texto em duas partes: tudo o que o segue se opõe a tudo o que o 105 . O efeito é que simplificam os fatos! Em três gramáticas que consultei. mas aproveitar o pretexto para tratar de dois aspectos do tema. as conjunções adversativas nos ajudam a ver que o sentido é uma construção cultural Sírio Possenti Este texto é motivado pela carta de uma leitora. Mas a resposta será outra se seguimos a tese de que a conjunção enlaça unidades coordenadas ou relaciona pensamentos contrastantes (comecei este período com "mas" de propósito). Unidades Uma forma de lidar com o dado seria perguntar se a redação está correta. Não vou fazer propriamente um debate com a autora da carta. que a antecedem. em oposição aos quais "mas" coloca outro pensamento ou unidade? Divisão Um parêntese: consultei um jornal do dia (Folha de S. No primeiro editorial. em termos normativos. avaliar as gramáticas . a partir dele. etc. Outra atitude seria considerar o texto como um fato indiscutível (há outros mais "radicais".elas devem explicar os fatos da língua. E Rocha Lima. a posição do "mas" é sempre descrita da mesma forma: entre duas orações coordenadas simples e breves. Gastam menos de uma página com cada uma delas. Antes. Outro. como os que precedem "mas" no exemplo. uma questão teórica: a definição de "adversativa". o início de um texto de Luis Fernando Verissimo: "Alguns dizem que é o envelhecimento. A preposição "mas" enlaça. que "ligam dois termos ou duas orações". Cunha e Cintra. Por que não só "orações"? Já veremos. Mesmo assim. ainda outros que é o egoismo ou o chulé. A professora diz. que podem representar um "pensamento" ou "unidade". são os mais simples. como veremos adiante) e. Para Cunha e Cintra. Vejamos as definições das gramáticas. outros que é a morte. Em geral. Observe-se a diferença na identificação das entidades relacionadas: unidades. termos ou orações. e os exemplos que fornecem são pouco representativos. Uma das conclusões seria que Cunha e Cintra erraram sua análise das adversativas e os outros dois gramáticos apresentam uma doutrina muito vaga: o que são unidades e pensamentos? Devem corresponder a períodos simples (e breves) ou podem corresponder até mesmo a diversos parágrafos. o texto começa mal. pensamentos. porque as conjunções adversativas "unem orações sindéticas adversárias". mas eu acho que a maior danação que Deus legou ao homem foi a danação de Babel". há uma ocorrência de "todavia" no início do quinto parágrafo (são conjunções sinônimas). liga ou relaciona uma oração ("mas eu acho". sobre o funcionamento da adversativa. "mas" introduz quatro parágrafos! Resumindo. No caso. como dá a entender parte da carta mencionada.com. os primeiros parágrafos fornecem dados favoráveis ao Brasil. em "trabalha duro. portanto. são as conclusões: é grande: queria comprar. Quanto à posição. Quando o texto equivale a período com duas orações. não é violento.. Significa que vem uma lista de predicados negativos. Do quinto parágrafo em diante. bom marido. Lugares As adversativas são um "lugar" muito interessante para mostrar que a questão do sentido é cultural. há muitos casos desse tipo. como "todavia". apresenta-se uma série de problemas. "passou" (o lugar-comum é "quem estuda aprende"). bom cidadão. "Não passou" se opõe a "passou" (um sentido implícito ou inferido de "estudou") e não diretamente a "estudou". As verdadeiras adversárias. ela quis dizer que não se deve começar períodos (ou parágrafos) com "mas". Provavelmente. "Mas" é uma conjunção que faz coesão entre partes de textos e não apenas uma conjunção que constrói períodos compostos. não aprendeu. mas é cara: não posso comprar. Sírio Possenti é professor associado do departamento de linguística da UNICAMP e autor de Humor. a conjunção opõe estas duas partes. mas vou sair" é um texto no interior do qual há dois "pensamentos" contrastantes que equivalem a duas orações breves. opõe quatro parágrafos aos sete primeiros! Divide o texto em duas partes. você está perdido. No segundo editorial. mas teve prejuízo".antecede. "mas" ocupa sempre a mesma: início de oração. "Faz frio. Língua e Discurso (Contexto) http://revistalingua. Mas o texto pode ter outras estruturas: pode ser como o de Verissimo (um período com diversas orações antes do "mas" e uma depois). as conjunções adversativas têm a seguinte propriedade: marcam algum tipo de contraste entre uma parte do texto e outra. Algumas gramáticas dizem que não se deve começar períodos com "porém". de repente. Começo com uma pergunta: alguém seria capaz de dizer qual é a oposição em "queria lavar as mãos. Um exemplo: "estudou" implica normalmente que "aprendeu" e que.uol. mas não havia água". Não diríamos "A casa é grande (gostaríamos de comprar). mas continua pobre"? Em nenhum desses casos há uma posição explícita entre as duas orações. Se você está sendo julgado e o promotor faz uma série de elogios. "Cara" e "grande" não são "adversárias". que é culto e sofisticado.asp 106 . diz "mas". saberemos que não pode ser o começo de um texto. Não há proibição para emprego de "mas" nesta posição.. Se encontramos uma página perdida que começa com "mas". ideológica. no exemplo. há uma ocorrência de "mas" no início do oitavo parágrafo. De fato. A não ser que seja de um livro de Clarice Lispector. mas é cara (não podemos comprar)" se ter bom tamanho não fosse considerado uma qualidade para uma casa. que introduz um contraste em relação ao sentido dos sete parágrafos anteriores. Adversativas A segunda questão é a verdadeira natureza das unidades que as adversativas contrastam ou opõem. Contraste Em resumo. dizendo que é bom pai. No entanto (ou "mas"!). A única exigência é que "mas" introduza uma unidade (oração ou trecho) que se opõe ao que vem antes. não ganhou dinheiro. cito de memória um "pensamento" de Millôr Fernandes.br/textos/76/artigo250637-1. Para concluir. O que existe é uma oposição entre um implícito que inferimos da primeira oração e o sentido da oração que segue "mas": não havia água. Mas (!) essa regra está em franco desuso. não bebe e não fuma e. e pode ser como os editoriais (dividido em duas partes com diversos parágrafos cada uma). em "aplicou na Bolsa. o gerundismo joga luz sobre o artificialismo nas relações sociais Por Luiz Costa Pereira Jr. Aquilo que se deu o nome de gerundismo se dá quando nós não queremos comunicar essa idéia de eventos ou ações simultâneas. forçamos a barra para que o recado. Em menos de uma década. da Unesp e do Mackenzie. por trás da aparente certeza sintática. alargado ao dia-a-dia. nem sempre lembrada quando se discute o assunto. da Universidade de Campinas. O uso repetitivo do gerúndio tem nome próprio: endorréia. quase uma comichão a que poucos parecem indiferentes. A sentença "vou estar dormindo na hora da novela" é adequada ao sistema da língua. assim como quando há verbos que indiquem ação ou processo duradouros e contínuos: "amanhã vai estar chovendo" ou "amanhã vou estar trabalhando o dia todo". por exemplo. É no mínimo forçado falar de uma ação isolada. autora da Gramática de Usos do Português. Ao adotar o gerúndio numa construção que não o pedia. pontual. in natura.seu sentido. "Vou falar" narra algo que vai ocorrer a partir de agora. expressões como "vou fazer" ou o futuro do presente. pode dizer algo sobre a própria cultura brasileira. que se concluiria num ato. em e-mails e até nas salas de aula. Nas filas de banco. o gerundismo cavou pelas bordas seu lugar sob os holofotes do país. ao telefone. Em si.diz o lingüista Sírio Possenti. Embora não haja explicação única para a origem do fenômeno. em que a duração não é a preocupação dominante. É fenômeno democrático.o verbo se refere só à ação. a palavra é parente da diarréia. em reuniões de empresas. a locução "vou estar + gerúndio" é legítima quando comunica a idéia de uma ação que ocorre no momento de outra. uma perífrase (locução com duas ou três palavras). espalhou-se feito gripe e virou uma compulsão nacional. sua popularidade chama a atenção não só de especialistas da língua. É o Paulo Coelho da linguagem cotidiana. como se fosse contínua. A coisa piora mesmo quando a idéia de continuidade nem deveria existir na frase. Ele chegou furtivo. mas de assertiva). "vai estar analisando" nosso pedido ou "vai poder estar procurando" a chave do carro. O aspecto pontual é aquele em que um fenômeno é flagrado independentemente da passagem de tempo . O gerundismo já foi alvo de tantos e calorosos debates. Mas a vítima do gerundismo não é o gerúndio isolado. Para a professora Maria Helena de Moura Neves. Principalmente porque. .Há um paradoxo semântico porque se dá a impressão de que a ação prometida é duradoura . que potencialmente tem tudo para ser dado. 107 . quando na verdade não o faz. Quando respondemos ao telefone "vou estar passando o recado". é a estrutura "vou estar + gerúndio". sexo ou idade. São pontuais. a pessoa finge indicar uma ação futura com precisão. mas antes falar de uma ação específica. podemos estar diante de um fenômeno com implicações semânticas e pragmáticas . há sempre alguém que "vai estar passando" o nosso recado. mas de empresários e ouvidos sensíveis a saraivadas repetidas do mesmo vício. Nesses casos.Cotidiano O Gerúndio é só o pretexto Vício de linguagem que simula a formalidade e evita compromisso com a palavra dada. não tenha mais prazo de validade. "Vou estar falando" se refere a um futuro em andamento . sem distinção de classe. Sim. profissão. "farei". para alegria dos humoristas. o gerúndio é usado em situações mais adequadas ao uso do infinitivo (aquele que não dá idéia de ação em curso. que mesmo a polêmica em torno dele pode estar virando uma espécie de esporte de horas vagas."estar" dá idéia de permanência no tempo. o gerundismo faz a informação pontual (em que o foco está na ação) ser transformada numa situação em curso (durativa). por exemplo. nas conversas formais. diz Maria Helena. é um desperdício de gerúndio. Permite. parece não querer estabelecer uma data para fazê-lo. Você comunica que até encontrará tempo para fazer a ação. Na opinião de Francisco Platão Savioli. amarro um compromisso. evita dizer de forma direta que vai resolver uma questão no momento e. mas que não implique real compromisso. na prática. Paulo e autora de Redação Linha a Linha. Com isso. desprovida do poder de tomar decisões. Consultora de língua portuguesa do jornal Folha de S. Thaís Nicoleti de Camargo alerta para o fato de que as frases com gerundismo proliferaram em ambientes formais antes de tomar as ruas. O emprego abusivo do gerúndio é próprio das situações formais. de uma espécie de fórmula que lhe permita dizer algo educado. pura e simplesmente.Quando digo "vou passar seu recado". a referência é a ação em si. A pessoa. No fundo. E o gerundismo 108 . é possível obter um efeito pragmático na locução do gerúndio de atenuar o compromisso com a palavra dada. professor aposentado da Universidade de São Paulo e agora coordenador de português e redação do Sistema Anglo de Ensino. Parece ser mais uma forma artificial e planejada. . portanto. por tabela. . na presunção de que aquilo é uma gentileza chique. por vezes. mesmo na língua popular. O descompromisso que essa atitude implica pode ser atribuído a uma duração que é falsa. afirma Platão Savioli. O fato é que se trata de uma expressão que não circula na língua culta escrita e.Ninguém diz "vamos estar tomando uma cervejinha na esquina". O apelo a esse expediente. Precisa. mas seu foco não está mais nela. Ao usar o gerúndio. deixo de me referir puramente à ação e incorpora-se o aspecto verbal durativo. Talvez ela se veja apenas como peça de uma engrenagem burocrática e. essa pessoa aposta na fórmula ritualizada. o gerundismo se propagou como traço de quem se ocupa em encontrar formas de polidez para relacionar-se. ao mesmo tempo. ela não circula com espontaneidade.Porque os mecanismos lingüísticos são acionados pela intenção.Como não tem versatilidade de uso da língua. A ação é indicada ali. Garanto que ela se cumprirá. que qualquer um drible seu interlocutor.a escolha de uma forma de expressão incorreta no lugar da correta por considerar que a incorreção seja mais elegante e menos vulgar. A ênfase passa a ser outra. . sem parecer ofensivo nem indelicado. Não me atenho à sua duração. é similar àquilo que se convencionou chamar de hipercorreção . fica tudo por isso mesmo . A estrutura viciada do gerúndio é tributada ao Brasil. Por não vestir inteiramente a camisa numa profissão que considera instável. o futuro. virou bomba-relógio comunicativa que preocupa executivos e diretores de recursos humanos. "Escreverei". . fornecedores e usuário.se que está trabalhando. mas motivado pelas situações de trabalho e do cotidiano. ou seja.se um sintoma de práticas profundas da atualidade. o problema pode mesmo revelar. a falta de compromissos contida na locução viciosa seria a expressão de um vazio ético. membro da Academia Brasileira de Letras. nos dá certeza. apela para o gerúndio para não se comprometer com ações futuras. 109 . Na lógica empresarial de Adonis. por exemplo.parece atender a essa demanda . por exemplo) e intermediários entre quem deseja a comunicação e quem não a deseja na mesma intensidade. em que as relações humanas são marcadas por escalas rígidas de hierarquia. Para o lingüista da Unicamp. menos sujeito à sua influência . Sua força e franqueza não estão em si mesmas. A superficialidade de não está em quem usa. o que está em jogo pode ser a própria concepção de certeza num diálogo. Nas palavras do gramático Evanildo Bechara. não sabemos quem vai resolver. mas que ele está em andamento. Ao informar que vamos estar fazendo. nós não dizemos quando vamos concluir o processo. O psicólogo Luiz Edmundo Prestes Rosa é o diretor corporativo People da Accor Brasil. o gerundismo parece ter ficado popular pela facilidade com que confere imprecisão a informações que exigiriam solidez. quanto mais rural o meio. mas na fragilidade do diálogo. autor de Quem Roeu a Roupa do Rei?. A associação entre formalidade ritual e falta de compromisso. . Se é difícil saber se os primeiros a usarem a expressão tiveram ou não a intenção de evitar compromisso ou de parecerem formais.afirma.diz Prestes Rosa. No fundo. Acho que o outro Acho que vai fazer o que foi pedido. O gerundismo marca a oposição entre promessa e esperança . nem se vai fazê-lo. assim. . com uma cultura urbana formada por pessoas sempre em muito movimento (Prestes Rosa e Adonis) e estimularia. Para o consultor empresarial Luis Adonis Valente Correia.avalia o gramático. mas em quem aceita respostas imprecisas.acredita. de não compromisso.O presente. O gerundismo. é sina da dificuldade das pessoas de ir a fundo nas questões relevantes. típica dos grandes centros urbanos. Como não conversamos profundamente. Para especialistas e empresários.Vício não prolifera sozinho.Minha suspeita é a de que se trate de um fenômeno urbano. Preferem ao gerúndio o infinitivo com a preposição "a" ("Estou a fazer o tratamento"). uma falha ética nas relações humanas (Sírio Possenti). pode ocorrer ou não. Ele condiria. para ele. Os portugueses não têm dor de cabeça com ela.Combater o gerundismo por purismo é ir contra a riqueza da língua. empresa de origem francesa com mais de 30 mil funcionários no Brasil que se relacionam com o público. autor de um "antídoto" por meio de perguntas importantes à compreensão mútua (ver quadro na página 31). Na prática. o gerundismo chega mesmo a refletir as relações desiguais entre chefes e seus funcionários. Já na construção "vou estar escrevendo" acrescenta-se a idéia de promessa. comunica. o problema gramatical camuflaria um mau serviço. . A propagação do uso vicioso do gerúndio seria. "escrevo". ferramentas mais impessoais de comunicação (telefones e e-mails. mas não trabalha. Ao ouvir um "vamos estar resolvendo o seu problema". no limite. usada à exaustão. aquele que nos atende por meio de gerundismo parece sentir que "atender" não é o que ele "faz" mas o que "está fazendo". 110 . O gerundismo pode não passar de moda e. Quem tem diversidade não recorre à mesma expressão o tempo inteiro. mas não providenciam. o mal estar que o vício provoca pode estar associado à percepção desse esvaziamento da comunicação nas relações mais burocratizadas. e isso é terreno fértil para a expressão fortalecer-se . se ele corresponder mesmo a uma necessidade nem sempre consciente da comunidade. O movimento recente contrário à sua aceitação pode indicar que o fenômeno está longe de generalizar-se.diz Sírio Possenti. Ela é sintoma da falta de variedade de recursos de expressão. . Mas.. com firmeza. o futuro do combate ao gerúndio vicioso. Ainda é cedo para garantir. . como outros vícios de ocasião. São fórmulas que não nos dão garantia de nada . erradicá-lo vai demorar muito mais do que se imagina. As pessoas garantem que "vão estar providenciando". é possível que o gerundismo se torne mais regular do que já é. O professor Platão Savioli desconfia das soluções excessivamente pontuais. desmanchar-se no ar.sugere. Para Thaís Nicoleti. tal como veio. Se tal esforço "vai estar surtindo efeito". só o tempo "vai poder estar dizendo".Talvez o que irrite seja o vazio em que caímos quando ouvimos essas construções. 111 .A submissão a uma forma fixa não se corrige setorialmente.Se não for mudada a relação de compromisso entre pessoas e entre empresas e clientes. com.uol.http://revistalingua.br/textos/1/artigo247894-1.asp 112 . se a língua do povo vencido é a que desaparece (caso do celtibero. no Paraguai. neste. 3) ou as duas línguas coexistem. Na primeira solução. o que não é o caso do Brasil. já que os usuários do basileto não têm acesso às traduções inglesas. deixa na língua dominadora algum vestígio a que se dá o nome de substrato. Abuso localizado Para que regra nova se estabeleça no acroleto (dialeto das classes privilegiadas). o gerundismo ocorre apenas no mesoleto. Senão vejamos. primeiramente. ocorre pelo menos uma solução entre três possíveis: 1) ou as duas línguas se fundem numa só. ambas em contato. após um período de bilinguismo. e as comunidades adotam uma língua franca (caso das muitas línguas e dialetos indianos. como o espanhol diante do guarani. ambas as línguas têm o mesmo status. Quando duas línguas estão em contato. antes da fixação da língua mista chamada crioulo). como o francês e o flamengo. aprendida pelo estudo ou adquirida pelo contato. a língua vencida. Substrato e adstrato Na segunda solução. é necessário que ela passe primeiro pelo basileto. O que originou o gerundismo foi só o abuso de seu emprego fora dos padrões normativos de respeito ao aspecto verbal. em que apenas uma das línguas permanece. temos a influência de superstrato (vestígio da língua desaparecida do povo vencedor na língua supérstite do povo vencido). em que uma língua coexiste com outra. as camadas menos privilegiadas tivessem acesso livre a essas traduções. como superpotência bélica e financeira. uma língua é privilegiada. O bilinguismo se distingue do ambilinguismo. na Bélgica. antes de desaparecer completamente. que se faz sentir basicamente no vocabulário e não na sintaxe. Se o gerundismo fosse influência das traduções do inglês. 2) ou uma das línguas domina a outra. Na terceira solução. e seus falantes chegam a proibir por lei que ele seja usado pelos falantes do mesoleto. graças à tecnologia americana e à supremacia dos EUA. privilegiando socialmente uma delas. em que a grande maioria de falantes do basileto (dialeto da base da pirâmide social) não têm acesso a nenhum tipo de cultura estranha. Parece-me que se trata de uma hipótese equivocada. que desaparece.Pragmática De olho no gerundismo A linguística mostra a impossibilidade da influência do inglês no fenômeno de linguagem brasileiro José Augusto Carvalho Alguns estudiosos atribuem o abuso do gerúndio (gerundismo) à influência das traduções do inglês. a fusão das duas línguas ocorre depois de um longo processo de miscigenação que passa por um período de bilinguismo (situação segundo a qual os falantes utilizam as duas línguas. seria preciso que. a influência exercida em ambas ou numa se chama influência de adstrato. Ora. se a língua do povo vencedor é a que desaparece (caso do germânico diante do latim). e o acroleto repudia o gerundismo. diante do latim). O adstrato inglês no português do Brasil se resume exclusivamente ao léxico. Naquele. cujas comunidades adotaram o inglês como língua oficial de intercurso). 113 . br/textos/50/artigo248729-1. Em "Estou produzindo". mas "vou estar enviando o e-mail". "Gerundismo" é o uso exaustivo e indistinto da perífrase. É um documento só e a ação é rápida ou instantânea. simultânea à do verbo da oração principal ou anterior/posterior a ela.Uma frase como "Vou estar (ficar) estudando hoje em casa". "Tendo concluído a prova. José Augusto Carvalho é mestre em linguística pela Unicamp e doutor em letras pela USP Recapitulando o gerúndio O gerúndio expressa ação em curso. mas apenas o desrespeito exclusivamente mesoletal ao aspecto progressivo do gerúndio. Em formas compostas (dois verbos). ir. em que. "Amanhã. é válido quando:   Se há um futuro em relação a outro: "Vou estar vendo a novela quando você for ao futebol".asp 114 . Não há. Em perífrases (três verbos). apesar da estrutura frasal idêntica. não. Verbo implicar duração ou admitir repetição: "Vou estar fechando o balanço" está no vernáculo. "Anda acordando sem ânimo": ênfase é na intensidade ou insistência do fato. sem vinculação com o inglês. é que teria originado outra como "Vou estar passando a ligação agora". está em curso um processo de produção. vir) e ação concluída antes da expressa pelo verbo da oração principal. "Ele está falando" indica um presente com tendência a continuar. vou estar apertando parafusos o dia todo". andar. a sentença descreve ação contínua. ele indica ação duradoura se ao lado do infinitivo de verbos auxiliares (estar. "Mais fiéis vão rezando pelo papa" assinala ação progressiva. nenhuma influência do inglês ou de traduções do inglês no gerundismo. porque designativa de um processo (a ação se prolonga no tempo). até quando se refere a ações que não duram no tempo. (LCPJ) http://revistalingua. portanto.uol. perfeitamente legítima.com. o aspecto pontual desautoriza o emprego do gerúndio. ele a entregou ao professor": a ação concluída antecipa a entrega. a endorreia.Pode acontecer com o gerundismo o que ocorreu com construções como "a nível de". o emprego viciado de formas como "vou estar passando o recado" . Fora da escrita O exagero do combate. no entanto. os ônibus. . Há quem evite o trenzinho verbal ("vou estar + gerúndio") para não dar ao ouvinte a impressão de que houve má aplicação. da Unesp. O particípio "amado" apresenta ação concluída. Mas não se pode esquecer que há um uso adequado quando está em jogo a ideia de futuro durativo ou contínuo.declarou à Língua a professora Maria Helena de Moura Neves. água fervendo = água fervente). No primeiro caso. O comum. Imaginemos um recente folheto de orientação de trânsito do governo municipal de São Paulo: "Cuidado: mesmo que os automóveis estejam parados. no entanto. desempenham a função de substantivos e adjetivos. exprime a ideia da ação ou do evento.pode estar longe de ser erradicado. uma liberação. John Robert Schmitz.corrigir o que se considera erro até quando não há. portanto. Afinal. a concisão pode ser não raro imprecisa. por equivaler a outra. O gerundismo é considerado. mesmo quando este é a forma mais adequada para apresentar uma ideia.Verbo O bom gerúndio É preciso cuidado para que o combate ao gerundismo não torne marginais os usos legítimos de locuções com gerúndio Luiz Costa Pereira Junior O uso indiscriminado do gerúndio . nem sempre as formas mais econômicas do que o trenzinho verbal evitam problemas. especialistas começam a perceber que o combate ao uso repetitivo do gerúndio nas perífrases (dois ou três verbos numa locução verbal) criou em muita gente uma aversão a qualquer tipo de gerúndio. Segundo ele. vive-se hoje o efeito colateral das campanhas de combate ao vício. com comandos como: "O gerúndio nunca vem depois de um verbo no infinitivo". Uma década depois de o fenômeno se propagar feito gripe pelo país. Tornada atitude crônica. é quando se condena o uso do gerúndio em qualquer perífrase. O particípio pode funcionar como adjetivo (mulher amada). embora com valor verbal. Já o gerúndio pode ter função adverbial ou adjetiva (chovendo. O infinitivo pode ter função de substantivo (amar é sofrer = o amor é sofrimento). por exemplo. não jogarei. Ele flagra o processo verbal em andamento. É preciso pôr os pontos nos ii. com ações diferentes feitas simultaneamente . motos e táxis podem estar andando na faixa exclusiva". A adoção do gerúndio na locução acima é válida porque mostra um futuro em relação a outro futuro. O infinitivo "amar" é pontual: traz o processo verbal em potência. 115 . não jogarei = se chover. Faz sentido dizer "vou estar providenciando" se de fato vou ficar muito tempo fazendo isso . lembra o linguista da Unicamp. como em "Não vou poder entregar o texto pois na ocasião vou estar viajando". com risco de confusão entre as construções sintáticas condenadas e as de uso corrente. pouco econômico. No outro. o infinitivo (amar) e o particípio (amado) são formas nominais do verbo porque. é reprimir as perífrases por hipercorreção . mas já tem uma vítima involuntária: o próprio gerúndio. O "podem estar andando" daria lugar a outro sentido se fosse substituído por "podem andar". O gerúndio (amando). dizem os especialistas. O problema. pode levar a distorções comunicativas.Não dá para condenar o uso da locução sem examinar seu contexto. que sofreu retração de uso ao ser discutida intensamente em público. há alerta. numa falsa analogia que se imagina correta e requintada. Para a professora de português da USP Elis Cardoso de Almeida. é mais longa a construção "vou estar conversando" do que o futuro simples "conversarei" ou o composto "vou conversar". .O europeu é atado ao espartilho do infinitivo ("estar a fazer"). manifesta no equivalente "Penso que". por exemplo. como "Pensando sob esse ponto de vista. nós o usamos com uma frequência e variedade que impressiona. vamos). Em "Considerando que você é meu amigo. e o gerúndio corresponde a essa velocidade interior . A ponto de não ser incomum a tentação determinista de ver no gerúndio um traço cultural do país inteiro. Em sua forma não composta. Uma vez que não traz marca do sujeito. traz os auxiliares "ir" no presente do indicativo (vou. ao começar uma frase com condicionais. 116 . e não tem flexão. não o único. em construções adverbiais. não.. Nós. Brasilidade Há quem desconfie que o gerúndio seja uma preferência nacional.se esta não é a intenção de quem fala. Embora povos de língua inglesa e espanhola tenham gerúndio. . professor de alemão da USP. Outros não os têm com a abundância do sistema verbal brasileiro. Há uma atribuição de autoria a um ser indeterminado. A segunda oração dá ideia de movimento que a outra não tem. por exemplo. ao ouvir "vou fazer". para quem. O gerundismo bem pode ter nascido de contextos de formalidade. de abarcar tantas experiências humanas. holandês e francês não desenvolveram formas verbais com ele. é como usar uma chave de fenda para bater pregos. A escritora Nélida Piñon. Caso contrário. o gerúndio pode servir a uma estratégia de dissimulação de autoria. Nós temos a noção de que estamos agora aqui. também. mas daqui a pouco estaremos ali. em que um intermediário é encarregado de mediar o contato de seus superiores com estranhos. Temos necessidade de abranger um país amplo. o gerundismo pode proliferar. que emite a sensação de continuidade da ação. Sob tal ponto de vista.". há uma velocidade interna no nosso sentimento da língua. o trem do gerúndio se ajusta à função desejada (ver quadro da página anterior). acredita que há contextos sintáticos em que o gerúndio pode ser usado para encobrir o sujeito que enuncia ou para evidenciá-lo. mas que não acabou ou evolui sem hora para ser concluída. que remete a ação para o futuro. Assim. Quando a informação não supõe essa duração. declarou à Língua que considera o gerúndio "um tempo verbal deslumbrante". o professor de letras da Uerj José Carlos Azeredo. forma categórica e relativização. é alta a versatilidade brasileira no uso do gerúndio. O sujeito apaga a sua pessoa e não se compromete. recorre-se ao gerúndio para esconder a autoria da declaração. faça isso para mim". não é o falante quem considera. vai. há curto--circuito comunicativo.É diferente dizer "caiu do cavalo e esfaqueou o oponente" e "caindo do cavalo e espetando o oponente". "Caindo" e "espetando" descrevem ação contínua. que em 2007 defendeu tese de doutorado sobre o assunto. Idiomas como alemão. Onde há expectativa de uma pessoa em torno da ação de outra. mas a proliferação do trem verbal é considerada pelos pesquisadores de linguagem um exemplo. . o gerundismo marcaria uma oposição bem brasileira entre promessa e esperança. mas "vou estar fazendo" pode lançá-lo à expectativa . É o que pensa. "Não ligue amanhã pois vou estar viajando" significa que a viagem não se resume a um dado número de horas. pode encobrir a autoria de uma ação. o enunciador não quer deixar evidente sua condição de autoria. Pouco interessa a origem do vício. Simões. mas a pessoa terá todo o dia afetado por ela. Aqui.defendeu Nélida. o gerundismo se instala. por sua vez. Usos e abusos Para o linguista José da Silva Simões. Tal ideia pode ser só um mito. o interlocutor entende que assumimos um compromisso com ele. Endorreia A estrutura com três verbos ("ir" + "estar" + gerúndio).O Brasil criou expressões em que o gerúndio se gramaticalizou como preposição ou advérbio. da produtividade do brasileiro em encontrar aplicações ao gerúndio. Se usado para comunicar uma ação que durará no tempo ou se repetirá no espaço. um nervosismo de estar em outro lugar que não aquele em que estivéramos até então. Um primeiro problema é quando se usa esse trem verbal para indicar uma duração que a ação não pede. e "estar". na perspectiva enunciativa. Ou: "Nós sempre aguentando os problemas com cara alegre" (sempre aguentamos). por exemplo. Identificação O gerúndio brasileiro é rico o suficiente para ter casos em que intensifica a identidade.Nosso gerúndio saiu da formalidade e se reorganizou. Para Ataliba de Castilho.. mesmo que. ligado a gerúndio ou particípio. Por isso temos tantos . o suporte técnico em que se escuda a declaração. similar à do presente do indicativo. com o particípio passado. mais impositivas. o gerúndio adverbial. entre "eu falo" e "estou falando". Ali. a pessoa delimita o campo de discussão ou redireciona o assunto que vem em seguida e evita formulações que o comprometam. e o barulho interrompe o hábito. ela presentifica a ação e serve como digressão. Com sujeito. O verbo aqui promove a presentificação de um evento. no passado ou no futuro.diz Simões. "concluído"). Usos brasileiros do gerúndio: em alguns casos. salvo se. dado que. ainda que. tudo precisando da família".. independentemente de ele ser passível de ser conjugado no presente." é diferente da de "Não se achando a caixa preta do avião. Para Simões. para Simões. desde que.Em construções adverbiais. apesar de que) ou condicional (caso. uma vez que). e o verbo "estar" parece garantir cada vez mais a existência de uma espécie de presente do indicativo composto. concessiva (embora. Verbo "estar" A intensidade de uso das construções com gerúndio e particípio parece. pois. em que "querer dormir" é algo habitual.". a menos que). Assim é com "Todo mundo querendo dormir e você fazendo barulho". o auxiliar "estar". conquanto. "Partindo do pressuposto da linguística" ou "Voltando ao assunto.O enunciador constrói o enunciado de tal maneira que o preserva de ser responsabilizado pelo insucesso de algo . lembra a nominalização. Segundo Simões. mudou seu caráter morfológico e semântico. o problema ocorreu" . sem diferença.. por natureza uma construção formal. direcionar o foco da conversa. esse tipo de construção é uma "defesa da face" do enunciador.Dizer "Não prestando atenção. Mas o português europeu se modernizou.Ele tem virado morfema prefixal que assinala ação acabada em "tá falado" .. O gerúndio veio do contexto formal. o problema ocorreu" é uma maneira de atenuar o sentido dado pela conjunção causal em "Porque você não prestou atenção. que se fia na suposição retórica de que a recepção de uma formulação como "Se eu não achar a caixa preta do avião. . Do latim para línguas românicas. mas essa repetição está cristalizada naquele momento.Talvez esteja sendo criada uma forma composta do presente do indicativo.". "Geograficamente falando" (em lugar de "Se você observar o aspecto geográfico da questão") estabelece um domínio de conhecimento. como "Pensando nos órfãos". a oração adverbial pode delimitar domínio de conhecimento.. . O presente é o único tempo que não tem forma composta. "Essa gente toda dependendo do pai" ou "As crianças. todos falando junto?". da USP.diz Azeredo. posto que. Traz consigo a ideia de continuidade. No português de Camões eram comuns estruturas como "Estou cantando".esclarece Simões. "estar" assinala ação contínua que se aproxima do aspecto perfectivo (no sentido de "foi combinado". Sem o sujeito. O Brasil manteve a estrutura e a desenvolveu como Portugal não o fez. .diz o professor. quando. em vez de atenuála. de quebra. diz Ataliba. 117 . chegou à fala. Era usado em textos litúrgicos e jurídicos. . sem que.Defesa Como o trem verbal com gerúndio. ter mudado a caracterização de verbos auxiliares que ladeiam o gerúndio no trem verbal. num processo que. ele tem a função de dar estofo técnico ou de acentuar a ação .. como acima. É o traço comum de sentenças como "O que é isso. o gerúndio é historicamente uma opção ao uso da conjunção causal (porque. de atividade que se repete. . também serve para simular consistência. Trata-se de estratégia pragmática. Usos do gerúndio Em sua forma simples. sem caráter de duração. Anuncia um evento que durará algum tempo para ser concretizado. mas de sua versatilidade comunicativa. . O desafio. A ação concluída antecipa a entrega da prova. andar. "Estou desistindo" diz que está em curso um processo de desistência. o problema mais grave com o gerundismo nem é a construção em si. Para Elis Cardoso de Almeida. "Ele está falando alto demais".É o problema do uso indiscriminado. no fundo. O uso está inserido no sistema da língua.uol. . as construções com gerúndio precedido de "ir" + "estar" são reflexos de um desenvolvimento natural no idioma. eu vou estar dormindo". Pois. É um documento só e a ação é relativamente rápida ou instantânea. Como quem escreve redações intui que deve adotar um registro culto. um "Observando as ações do governo" sem a conjunção (Se nós observarmos). Não é incomum ver. torna qualquer texto pesado diz Simões.Se quer mostrar um futuro em relação a outro futuro: "Amanhã não posso viajar porque vou estar carimbando documentos" significa que vou passar o dia a carimbar. Mas há domínios em que até ele é legítimo. "Tendo concluído a prova. É cedo para garantir que não haverá neutralização da distinção semântica que define o gerundismo como inadequado. tende a adotar estratégia sintática que supõe culta.br/textos/45/artigo248631-1. a sentença descreve ação contínua. é familiarizar as pessoas com o registro adequado ao grau de formalidade exigido em cada situação.Evolução Nesse sentido.com.O verbo implicar duração ou admitir repetição: "Vou estar fechando o balanço da empresa" está no vernáculo. não do brasileiro. A ênfase da ação duradoura é na intensidade ou na insistência de um acontecimento. mas "vou estar enviando seu documento" é estranho. ele a entregou ao professor".No jornalismo. há construções reduzidas de gerúndio. o gerúndio pontua uma ação duradoura quando acompanhado do infinitivo de verbos auxiliares (estar. então. A locução com gerúndio é apropriada se o verbo O lexicógrafo Francisco Borba diz que. É legítimo. que pode ser simultânea à do verbo da oração principal ou anterior/posterior a ela. mais fiéis vão rezando pela saúde do papa". O verbo "ir" assinala uma ação progressiva em direção a um aqui e agora. Mas em "amanhã. Em formas compostas. vou estar vendo a novela enquanto você vê o futebol". a frase mostra situações diferentes feitas simultaneamente e admitem locução com gerúndio. A forma dada ao verbo "falar" indica a ação como presente e com tendência continuativa. com o movimento admite ação que se repete e se prolonga contrário à aceitação da endorreia. no entanto. vou estar apertando parafusos o dia todo". o gerúndio talvez seja mesmo um retrato. . o gerúndio expressa uma ação em curso. esse tipo de construção chama atenção mais como gozação do que por deslize.asp 118 . "A cada dia. Em "quando você chegar. . sempre iniciada com gerúndio. com dois verbos. O gerundismo do bem A adoção do gerúndio em perífrases (como "vou estar lendo") é válida quando: . por exemplo. Mesmo em vestibulares e concursos. ela talvez não penetre na língua escrita. http://revistalingua. Uma frase seguida da outra. a ação de "dormir" é contínua e simultânea. Em "Hoje à noite. ir e vir) e indica ação concluída antes da expressa pelo verbo da oração principal.A repetição é que incomoda. mas sua frenética repetição. "Ele anda acordando sem ânimo". Lógicas da Língua Repensando o gerúndio O gerundismo, quem diria, pode ser antes um sinal criativo da língua portuguesa do que mero vício John Robert Schmitz Os recentes discursos, veiculados na imprensa e na rede de computadores, sobre certas formas do gerúndio no português do Brasil, merecem reflexão e debate. É preciso uma reavaliação ponderada a respeito do que se escreve contra e a favor - sobre a referida construção sintática. É preciso evitar pontos de vista emotivos e posturas categóricas. O português é uma das línguas do mundo que apresentam uma variedade de construções Fenômeno do gerundismo no perifrásticas com a presença do verbo auxiliar "estar" (e vários outros): "Ele cotidiano do trabalho das está, vem, vai, anda, vive estudando". Há idiomas como o alemão, o holandês grandes cidades brasileiras intriga especialistas e o francês que não desenvolveram o gerúndio. Mas em outros há semelhanças de usos com o que, no Brasil, se considera muitas vezes um vício de linguagem. No Brasil, a presença de gerúndio perifrástico serve como "ponte" para a ocorrência de novas formas (ir + estar + V____NDO) e novos usos no sistema de aspecto verbal da língua. A "expansão" da fórmula "ir + V___ NDO" para "(dever, poder, ter que) + estar + V___NDO" no português brasileiro contemporâneo poderia ser considerada uma marca deixada pelos falantes mais novos, pois cada geração contribui para a mudança do idioma. Se a língua portuguesa não possuísse o gerúndio perifrástico, os falantes não poderiam chegar a produzir a gama de construções que ocorrem no idioma e são bastante arraigadas no português (cf., D. Machado, [1935], 2005). Com base no que será comentado a seguir, argumento que o gerúndio é uma força motriz do aspecto verbal do português e as construções com gerúndio precedido de "ir + estar" são reflexos de um desenvolvimento natural no idioma. Qual a culpa do gerúndio Muitos usuários não consideram legítimos (vernáculos) os enunciados "vou estar transferindo R$ 500 de minha conta bancária", "vou estar enviando o relatório". O problema com tais enunciados não é especificamente a presença do gerúndio, mas do verbo inicial "vou" junto com o verbo "estar". As duas orações expressam uma ação repetitiva que vai continuar no futuro. Alguns falantes, bastante incomodados, perguntam: Quando vai enviar o relatório mesmo? Quando exatamente vai transferir o dinheiro? Vai transferir os fundos de uma única vez ou haverá várias transferências? Um falante consultado sobre o uso do gerúndio (e cliente de um banco) pediu expressamente que a funcionária transferisse uma só vez porque ele entendeu que o banco ia realizar várias transferências que zerariam a conta! Cabe observar que os verbos "transferir" e "enviar" são aceitáveis para os usuários do idioma quando ocorrerem em orações sem o verbo inicial "ir" (vou, vai, vá, etc.), que descrevem ações em progresso no momento da fala: "estou transferindo R$ 500 de minha conta bancária", "estou enviando o relatório neste instante". O verdadeiro problema O cerne da polêmica em torno do gerúndio não é o gerúndio em si, mas o tipo de verbo principal que ocorre numa dada construção sintática. Muitos, por exemplo, têm dificuldade em processar um enunciado com o verbo "providenciar": "vou estar providenciando a mercadoria". Outros falantes, todavia, aceitam perfeitamente uma oração quando o verbo "esperar" está presente: "vou estar esperando enquanto você faz as compras". Por que há resistência por parte de falantes do idioma com respeito à primeira oração e aceitação em geral, para a segunda? A resposta é que o verbo "providenciar" se refere a uma ação pontual, conclusiva, ao passo que "esperar" se refere a uma ação não-pontual, não-conclusiva. Para os usuários, providenciar alguma coisa tem um início e um fim; esperar por alguém ou por alguma coisa pode durar pouco tempo, um tempão ou até uma eternidade! Daí se vê que Pasquale Cipro Neto ("Não pude estar comparecendo", Folha de S. Paulo, 19 de fevereiro, 1998) tem razão ao questionar a aceitabilidade do gerúndio no enunciado "não pude estar comparecendo à festa". A atividade de comparecer terminou, pois, uma vez que uma pessoa comparece, já compareceu 119 e ponto final. Mas isso não significa que o gerúndio não ocorre quando a ação é habitual ou em progresso no momento de falar: "Juca vive (anda, vai, fica) comparecendo às festas de aniversário dos colegas". Observem nessa última oração os diferentes verbos auxiliares que podem preceder o gerúndio. Cuidado com generalizações Infelizmente, uma postura açodada com respeito à legitimidade de estruturas como "vou estar pensando em você o tempo todo" e "o médico vai estar atendendo hoje na parte da tarde" contribui para um certo patrulhamento gramatical com respeito a todas as orações que apresentam gerúndio. Millôr Fernandes ("Esmiuçando", Veja, Edição 1.942, 8 de fevereiro, 2006, p. 24) ironiza as considerações dos antigerundistas com seu característico bom humor: - Devem continuar procurando (a procurar corrijo), aceitando o atual lingüisticamente correto, que odeia o gerúndio. Felizmente, até o momento, os que têm certa ojeriza à construção "vou + estar + V___NDO" pouparam as orações com verbos outros como "poder", "parecer", "dever" e "ter que". Os exemplos retirados de obras literárias e de textos jornalísticos são vernáculos: "Agora mesmo, toda essa manhã perdida em busca de uma e outra pessoa, quando podia estar agenciando, cavando... (Dyonélio Machado, Os Ratos, Planeta [1935], 2004, p. 44). "Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou desanuviado, mas ele devia estar sabendo, eu não precisava mais falar" (Lygia Fagundes Telles, Invenção e Memória, Rocco, 2000, p. 93). "Enfim, até quando eu teria que ficar justificando o que escrevi" (Lygia Fagundes Telles, Invenção e Memória, Rocco, 2000, p. 73). "...uma vez a sempre preferível estratégia de auto-regulamento parece estar falhando", Editorial, Folha de S. Paulo, 6 de junho de 2005, p. A 2. "Muitos devem estar pensando que essa é uma questão de Estado e de política pública", Milu Villela, "O Tsunami Nosso de Cada Dia", Folha de S. Paulo, 3 de fevereiro de 2005, A3. Em Portugal não há o gerúndio? Alguns comentaristas pensam que a forma lusitana "estou a chegar" é a norma em Portugal e que o gerúndio não ocorre. É possível encontrar exemplos da ocorrência do gerúndio no português escrito europeu e em outras variedades, como mostram romancistas como José Saramago e o moçambicano Mia Couto: "Sara ouve o que lhe está dizendo a doutora Maria Sara" (José Saramago, História do Cerco de Lisboa. Companhia das Letras, 2000, p. 167). "Você está entrando em sua casa, deixe que a casa vá entrando dentro de si" (Mia Couto, Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra. Companhia das Letras, 2002, p. 56). Um fenômeno, ao menos, pode ser inovação do Brasil. Não encontrei exemplos, no entanto, de "ele vai (deve, pode, haver de, ter que) estar chegando" na língua escrita em Portugal. Influência do inglês pode ser mito A boa locução com gerúndio Frases que mostram situações diferentes feitas simultaneamente admitem locução com gerúndio ("amanhã, vou estar vendo a novela enquanto você vê o filme do Chaplin"), assim como sentenças que descrevem ações contínuas ("amanhã, vou estar apertando parafusos o dia todo") Não estou convencido de que o contato por parte de muitos brasileiros no diaa-dia com a língua inglesa tenha contribuído para a incorporação no português oral (ou escrito) de estruturas com o gerúndio, como: "Eles podem estar chegando a qualquer momento". ou "Quando você estiver chegando a São Paulo, na segunda-feira, vou estar viajando para o Rio" (Eduardo Martins, O Estado de São Paulo, 5 de junho, 2005). "Ele (o projeto do deputado Aldo Rebelo) teria que estar sendo mais discutido" (Luis Fernando Verissimo, Agência O Globo, Gazeta do Povo, 25 de janeiro de 2001). Como se pode depreender dos exemplos, o português em si é rico em gerúndios. Os que lidam com o ensino de inglês a brasileiros sabem que o aprendiz brasileiro precisa ser alertado de que o uso de "estar + V____NDO" é, em certos casos, mais "livre" do que em inglês. A tradução da oração "Maria não está sabendo as respostas" seria "Mary does not know the answers". Há casos em que o português usa um gerúndio e o inglês, não. Os equivalentes de "Não estou entendendo, delegado", "Não estou vendo a sua bengala" e "Ficarão sabendo em julho", em inglês, são respectivamente: "I don´t understand, inspector", "I don´t see your cane" e "You will find out in July". 120 O gerúndio é um erro? "Erro" é muito forte. Orações como "vou estar enviando a remessa na sexta" e "vou estar pensando em você durante a minha viagem a Paris" são sintaticamente bem formadas. O que incomoda muitos usuários na primeira não é a sintaxe, mas a semântica. Para alguns falantes a ação de enviar só ocorre uma vez. Alguns usuários, principalmente na fala, exageram no uso de orações com "Vou + estar + V____NDO". Há exagero também por parte de certos falantes no uso de gíria, palavrões, estrangeirismos (quando há equivalentes em português) e a repetição irritante de marcadores conversacionais, como "tá?", "né?", "viu?". Sempre haverá indivíduos que se excedem, mas o idioma sempre sobrevive. Um grande desserviço é a regra gramatical sugerida pelos que condenam o gerúndio, que adverte: "O gerúndio nunca vem depois de um verbo no infinitivo". Para refutar a regra, bastam os exemplos de Otto Lara Resende: "Pode ir tirando o cavalo da chuva" (p. 53) e "Boa coisa não há de estar fazendo" (p. 71). ("A Cilada"; In: Ênio Silveira, org. Os Sete Pecados Capitais. Civilização Brasileira, 1964) Falta de comprometimento? A tese de que o uso do gerúndio em casos como "vou estar resolvendo" espelha a falta de comprometimento da sociedade brasileira ou uma artificialidade nas relações é questionável quando se percebe que o espanhol e o inglês têm também um sistema verbal repleto de gerúndios, mas a existência de corrupção e de violência nos países onde se falam os dois idiomas nada tem a ver com a referida estrutura sintática. O gerúndio atenua a assertividade? Alguns usuários consideram que o verbo "estar" em "vou estar recebendo" contribui para desfigurar sua assertividade e, por isso, o gerúndio deve ser eliminado. Mas tanto "vou estar recebendo" como "vou receber" são asserções. Toda oração assevera: "Prometo cuidar de você", "Vou cuidar de você", "Vou estar cuidando de você" e "Cuidarei de você". Falta de concisão Não só a construção com gerúndio "ir + estar + V____NDO" ("amanhã, vou estar conversando com ele"), mas também a construção "amanhã, estarei conversando com ele" são consideradas pouco econômicas. Um perigo com respeito a esse argumento é que o uso do próprio tempo futuro é questionado. Recomenda-se que, em vez de "estarei conversando com ela" ou "conversarei com ela", seria melhor dizer "vou conversar com ela". O desejo de buscar concisão pode, em certos casos, ter resultados trágicos. Por exemplo, num folheto de orientação de trânsito, a Secretaria de Transportes da Cidade de São Paulo informa: "Cuidado: mesmo que os automóveis estejam parados, os ônibus, motos e táxis podem estar andando na faixa exclusiva". Se o "estar andando" for substituído por "podem andar", o significado seria outro e diferente da intenção da Secretaria de Transportes. A ilusão do eterno recomeço Fora da área dos estudos da linguagem, e especificamente na de história, há outra análise do gerúndio que julgo pertinente. O filósofo Renato Janine Ribeiro (A Sociedade contra o Social: o Alto Custo da Vida Pública no Brasil. Companhia das Letras, 2000), apresenta uma tese engenhosa a respeito do surgimento do que ele chama o "gerúndio despropositado". Ele argumenta que os brasileiros nunca ajustaram "... contas com a escravidão, com a colônia, com a iniqüidade" (p. 97) e descartam "o passado inteiro". Segundo o filósofo, o brasileiro vive a "ilusão de eterno recomeço". Por isso, eles precisam "... do presente contínuo a torto e a direito: porque faltam passado e futuro" (p. 98). Afirmar que o sistema verbal do português brasileiro espelha a sua história e que o uso lingüístico dos falantes reflete o passado histórico é uma postura determinista, sem apoio na disciplina de lingüística. Inglês e espanhol têm nos respectivos sistemas verbais uma pletora de construções perifrásticas com o gerúndio, mas as suas respectivas histórias são completamente diferentes. Os acontecimentos políticoshistóricos-sociais de determinados países nada têm a ver com a presença ou ausência de fenômenos lingüísticos como a voz passiva, mesóclise, presença / ausência do subjuntivo ou dois verbos de ligação: ser e estar. http://revistalingua.uol.com.br/textos/21/artigo248207-1.asp 121 publicitários. barrichelladas. Recebendo carícias. Gerúndio (amando. Na forma simples.Normativas O gerúndio do bem Essa forma nominal do verbo. vai. colisões. 1. quando bem-usada.. O verbo "envolver". São nominais porque. Nesse exemplo há duas inconveniências desoladoras: 1. é um ótimo recurso de expressão Josué Machado Virou moda falar mal do gerúndio. substantivos e adjetivos. Melhor trocar o gerúndio por preposição adequada: "Um acidente com um trem. que virou craca crônica. que pode ser simultânea à do verbo da oração principal. que os puristas e redatores cuidadosos preferem evitar. partindo) é uma forma nominal do verbo. se de verbos que não expressem ação em curso. Compõe-se de estrutura fixa. A forma composta indica ação concluída antes da expressa pelo verbo da oração principal." 122 . porta-vozes. O particípio pode agir como adjetivo (mulher amada)." Ou: "O choque de um trem com uma bicicleta. virou-lhe as belas costas. partido). Recomendam que se rejeite a tendência e se troque tal gerúndio pela oração adjetiva correspondente: "Um acidente que envolveu um trem. partir) e o particípio (amado.. espero que eu possa estar ganhando aquela gata. Uma pequena tolice. vamos estar fazendo algo. ao lado do substantivo (acidente). telefonistas. Dizendo isso.. vendedores. não jogaremos = se chover. Por isso convém voltar ao tema. O pobre gerúndio-adjunto.. batidas e abalroamentos (bela palavra). Ronalducho tentou chutar a bola e caiu gemendo. o gerúndio expressa uma ação em curso. E o gerúndio pode ter função adverbial ou adjetiva (chovendo.. Quem usa tal recurso parece ter a sensação de falar com mais acerto e nobreza. marqueteiros e quetais: vou estar relatando. comer. uma bicicleta e um trator paralisou ontem a Marginal do Pinheiros. TVs e jornais. por isso bem assimilada por pessoas que lidam com o público: o infinitivo do verbo estar + gerúndio de qualquer verbo. em geral no presente do indicativo. correndo. gerentes de bancos." Lembrados tais princípios. tratado em Língua 1 (agosto. que os tolerantes chamam de gerundismo. O lamentável nos usos do gerúndio é a deformidade lingüística que ainda grassa entre atendentes. 2005). pode-se falar de outro uso discutível do gerúndio. porque o gerúndio nada tem de mau. Ou anterior ou posterior a ela. fugindo) e a composta (tendo ou havendo amado. basicamente. É a gerundite. E assim por diante. É o que virou moda em rádios. "Um acidente envolvendo um trem. podem desempenhar função de nomes. isto é. a não ser pelos portugueses. o repórter o entregou ao editor.. Também se pode chamá-la de trenzinho verbal. que preferem "estou a mandar" ao também correto "estou mandando" brasileiro." O inconveniente da troca é a aparição do áspero "que". "Tendo escrito o texto. não jogaremos. Essa estrutura freqüentemente vem antecedida e enriquecida por verbo. água fervendo = água fervente). administradores. fugido). a não ser quando mal-usado. que é tapa-buraco em acidentes. uma bicicleta e um disco voador interrompeu o tráfego. Deu-me a receita. Há duas formas de gerúndio: a simples (amando. vamos estar mandando. escriturários. revirava os olhos. As outras são o infinitivo (amar. avisando que eu precisava de regime. 2. trombadas. embora com valor verbal. corrido. Nem por isso o gerúndio é desprezível. Quase sempre ir: vou. comido. Ele se expressa com freqüência na narração de acidentes. comendo. O infinitivo pode ter função de substantivo (amar é sofrer = o amor é sofrimento). 2." Gostam muito de usar o gerúndio como adjunto. atropelamentos. livro de receitas. Notou as formigas marchando em fila? Lá está aquele repórter andando atrás do ministro." (De um colunista. Percebi as aves voando em círculos. que curtem os papas norteamericanos da área. incluindo.. sabendo. livro sobre comida. Pode ser que tenha brotado em escolas de administração e marketing. Nos últimos exemplos. ação em curso. como os dos exemplos: Aquele? É o Barrichello correndo a pé depois da batida.br/textos/15/artigo248097-1. talvez em brasa. o saudável e sem vícios. sabemos todos: carta com instruções.. Melhor escrever. em textos de algum respeito. walking.)." (jornal em descabimento extremo. Em todos. we're going to write him a letter. http://revistalingua. O fato é que todos.uol. com um cavalheiro.) Não é preciso ser normativista nem esperto para considerar inadequados textos como esses. O problema é que a anomalia invadiu até a escrita. no entanto.) "Um livro envolvendo comidas de Natal. por enquanto rechaçado por chegar. Juntou a sinistra gerundite "vai estar chegando" ao "em". Ou da adaptação torta de construções como I'm going to do an exercice. O filme mostra os tanques avançando para a batalha. reclamam do uso do gerúndio adjetivo com verbos que exprimam movimento.. perspicazes. Pouco importa a origem. vindo dos EUA.com. notamos que nenhuma dessas formas gerundiais exprime ação em curso: envolvendo.asp 123 ." "Procura-se repórter sabendo escrever. Vi Luzia pegando (colhendo. exprime-se a tal de ação em curso característica do melhor gerúndio. envolvendo. Casos discutíveis. contendo. Conviria escrever. ORIGENS DUVIDOSAS SÃO IRRELEVANTES Matriz do vício é menos importante que seu avanço para formas escritas A gerundite talvez provenha do inglês mal-digerido: o futuro (I'll be ou We'll be) com o gerúndio de um verbo qualquer: (talking. em mistura indigesta lá e cá. Há quem diga que tenha a ver com certo descompromisso escorregadio do falante: "vou estar fazendo" não tem a incisividade determinada de "vou fazer". apenas: "chegará a Porto Alegre.Quem pega fogo? Casos semelhantes. amanhã". em distraído exercício de ambigüidade: estaria a pessoa ou o apartamento em chamas? Se a pessoa. Um jornal de São Paulo publicou que o acusado de certo crime "vai estar chegando em Porto Alegre. em chamas reais ou figuradas? Daniela Cicarelli foi flagrada em chamas mergulhada nos mares espanhóis. catando) coquinhos atrás da horta. Barrichello e Luzia Nem puristas recalcitrantes. o gerúndio pode ser substituído por preposição ou oração adjetiva. pegando (relacionado a fogo). algo está a ocorrer.. que convém evitar. sending." "Entrou no apartamento pegando fogo.". entrou no apartamento que pegava fogo. Como deveriam ser todos. como diria Eça. repórter que saiba escrever. I'm writing him a letter. também considerados impróprios por redatores cuidadosos: "Recebeu carta incluindo instruções sobre como agir. speaking. aceita que seria bom comprar/alugar. neste caso. uma como advérbio e uma como substantivo. Assim. parecem mais adequadas: "mas" classifica o que foi dito como irrelevante. dá a entender que não vai ou que não pode comprar ou alugar. mas é grande":a ideia de que o lanche não será pedido se altera Explicações O que provavelmente se pode dizer é que os três predicados se opõem a outros que estão associados (são estereótipos) a loiras. Sua tese não só dá conta de casos como os mencionados. claro. ingleses seriam frios e argentinos seriam orgulhosos. Assim. ou contrasta uma interpretação. mas é cara" e "a casa é cara. mas opõe a segunda (ou o que se conclui dela) ao que se conclui da primeira. mas é inteligente". mas é grande". se bem interpretadas. Ele não contrasta as duas orações que une. a ingleses e a argentinos: loiras seriam burras. Para mostrar que esta é uma análise interessante. Em culturas como a nossa. o funcionamento da conjunção "mas" é o seguinte: opõe as conclusões implícitas e faz a segunda ser mais forte do que a primeira. ainda mais interessante. o fato de a casa ser grande é um argumento para comprar ou alugar (casas grandes são valorizadas) e o fato de ela ser cara é um argumento para não comprar ou alugar. mas a um implícito associado a elas. A frase "O sanduíche é grande. essa conjunção pode realçar conclusões implícitas e marcar oposição entre visões diferentes Sírio Possenti Considerem-se sequências como "É loira. se alguém diz "é grande". mas é caro" tem sentido diferente de "O sanduíche é caro. a segunda oração não é uma adversativa da primeira: parece impossível que alguém sustente que "inteligente" se opõe a "loira". que "caloroso" se opõe a "inglês" e que "modesto" se opõe a "argentino". e sim o funcionamento do "mas". Assim. O dicionário Houaiss é mais claro do que as gramáticas.) Nos exemplos acima. (Desafio os leitores a mostrarem um manual em que "mas" apareça introduzindo uma adversativa que se "oponha" a diversas orações anteriores. Duas das dez acepções. mas é caloroso". mas não se manifesta na superfície do dito. Isto parece estar mais próximo ao funcionamento de "mas" que os leitores devem ter percebido adequadamente nos exemplos citados. mas é cara". inteligente. O sentido expresso pelo termo "adversativa" faz sentido. "É argentino. As gramáticas e os livros didáticos repetem que se trata de uma conjunção adversativa que "une" duas orações para formar um período composto por coordenação. veja-se a diferença entre "a casa é grande. Seus exemplos são relativos ao quotidiano.Semântica As muitas camadas do "mas" Por certas sutilezas de sentido. Oposição O semanticista francês Oswald Ducrot propôs uma boa explicação para o "mas". Ducrot propôs mais tarde outra explicação. Ou: "mas" indica que se vai passar para outro assunto diferente. Mas o objetivo não é discutir essas questões. Seja "a casa é grande. Explica ainda melhor os casos em que sequências como as acima são proferidas 124 . Fornece dez acepções de "mas" como conjunção. Selecionei propositalmente exemplos de estereótipos e de pelo menos um preconceito. Pode-se apostar que todo mundo entende que não vai ser alugada no primeiro caso. caloroso e modesto opõem-se não ao que é dito na primeira oração. mas que talvez seja alugada no segundo. mas é modesto". Se acrescenta "mas é cara". culturais ou ideológicas. "É inglês. . "mas" é um marcador discursivo.. como se dá a entender. Assim. para que o argumento fique claro: 1) "O Democratas nasceu de uma costela do PDS. mesmo tratando-se de texto proferido por um só locutor. Se o leitor voltar ao início deste texto. Discursivo O quarto parágrafo começa assim: "Mas ninguém engana a todos o tempo todo" (seguem-se outras 9 linhas). o mais simples de todos.. Mas esse é apenas um dos casos. Eles podem ser expostos em duas orações simples." (o parágrafo tem 7 linhas).uol.com.).em um período com duas orações simples.. apresentam-se dois pontos de vista: um a favor e outro contra (alugar a casa/escalar o jogador etc. como por exemplo: CORRETOR: A casa é grande! LOCATÁRIO: Mas é cara! Sua análise fica ainda melhor se for estendida a "textos" com um só locutor (como no caso de alguém contando a outra pessoa que não alugou uma casa porque é grande.. verá que o terceiro período começa com "Mas". Confronto Mas os melhores exemplos para mostrar que as gramáticas contam só uma parte da história são de outro tipo. é claro. mas é alto). 3) "A fórmula pefelista deu certo por muitos anos..e com o mesmo sentido . ou que não escalou um jogador porque ele é alto. Sírio Possenti é professor associado do departamento de linguística da Unicamp e autor de Os Humores da Língua (Mercado de Letras) http://revistalingua. Não cabem aqui longas citações. Paulo do dia 30/11/2009 falava do então mais recente escândalo político. mas é cara.br/textos/52/artigo248771-1.asp 125 ." (o parágrafo tem 6 linhas). mas é lento . Seria um erro grosseiro? Ou as gramáticas são mesmo parciais. 2) "Adversários dos "demos" pensam de forma diferente. É que. Uma de suas particularidades é que também pode funcionar . A questão pode ser tratada em termos de polifonia: há duas vozes que se opõem. A coluna de Fernando Rodrigues no jornal Folha de S. em uma cultura que é o pano de fundo em relação ao qual as sequências fazem sentido. mas também podem sê-lo em dois longos trechos. O que isso significa? Como esse "mas" pode ser analisado? Uma sugestão: "mas" marca a oposição entre dois pontos de vista. mas considerem-se aspectos dos primeiros três parágrafos." (o parágrafo tem 9 linhas).por dois locutores. E não o único.ou que o escalou porque é lento. já que não tratam de casos assim? Vejamos um caso ainda mais radical. a pesquisadora Daysi Bárbara Borges Cardoso desenvolveu a tese Variação e Mudança do Imperativo no Português Brasileiro: gênero e identidade.youtube. Indo além desses limites. me empresta algum dinheiro / Que eu deixei o meu com o bicheiro". o atrevido cliente se dirige ao garçom usando a forma verbal que. em uma belíssima gravação desse samba. sugestões. Não é surpreendente que a maioria desses pedidos sejam veiculados por meio do modo verbal imperativo. No verso. conselhos. destacando o peso que a busca do falante pela construção de uma identidade se manifesta também na escolha entre as formas indicativa ou subjuntiva quando se tem em mente expressar o modo imperativo.youtube. Em vez do subjuntivo "empreste". de acordo com a descrição consagrada. Mudança A tese foi defendida na Universidade de Brasília e está disponível emhttp://repositorio. Foi orientada por Maria Marta Pereira Scherre. conforme já demonstrava em 1986 o linguista Carlos Alberto Faraco. porém.profere uma enorme lista de ordens ao garçom: "Seu garçom. bastaria dizer que a letra de Noel apresenta falta de uniformidade no tratamento. mas.e seria destinada aos casos em que se opta pela segunda pessoa gramatical. não é esse o emprego predominante em muitas variedades em uso no Brasil: há contextos nos quais o tratamento se dá predominantemente pelo pronome "você". 126 . por exemplo).com/watch?v=uM4WP5eGPBw). Caso se tratasse o fenômeno apenas na perspectiva da gramática normativa. no qual um cliente ."empresta" . o sempre abusado freguês diz. a forma de maior frequência nessas mesmas variedades é a imperativa do indicativo. cujas formas ocorrem em atos de fala que expressam comandos (ordens. aos pronomes "você" e "senhor". Subjuntivo Em outro verso.unb. curiosamente substitui "empresta" por "empreste": https://www. Embora a prescrição normativa defenda que as formas imperativas do indicativo devem ser associadas ao pronome "tu" e as formas do subjuntivo.Academia Tu ou você? Doutorado na UnB analisa a variação linguística e a imagem social dos falantes Por Marcelo Módolo e Henrique Braga Com estes versos. Daysi Cardoso deu sequência aos estudos sobre o tema. (Chico Buarque. conforme atestado em gravação original (http://www. etc.cujo grau de atrevimento se mostra um pouco acima do razoável . o enunciador opta pela forma imperativa "faça". provém do modo indicativo . em seu artigo "Considerações sobre a sentença imperativa no português do Brasil".). que. publicado à época na prestigiada revista Delta. um fenômeno curioso salta à vista. faça o favor de me trazer depressa / uma boa média que não seja requentada". analisando a letra de Noel sob uma perspectiva variacionista. Noel Rosa abre o famoso samba "Conversa de botequim". contrariando a prescrição gramatical. que já apontara em trabalhos anteriores os fenômenos de variação e mudança no modo imperativo.com/watch?v=in9W6vHyI5k): "Seu garçom. Porém. pedidos. segundo as descrições tradicionais do português. é "tomada de empréstimo" do modo subjuntivo e se destina a casos em que se opta por tratar o interlocutor na 3ª pessoa gramatical (por "você" ou "senhor".br/handle/10482/4311. pois oscila entre 2ª e 3ª pessoas. Em se tratando de falantes do sexo masculino. continua predominando a forma subjuntiva: entre eles. porém. a probabilidade maior passou a ser a de que se use uma forma de segunda pessoa: 0. publicado na canadense Papers in Sociolinguistics. as formas imperativas parecem ainda ser regidas por questões relacionadas à polidez. pois começa a se difundir em variedades do português do Brasil só no século 20. Seu uso em contextos informais (nos quais foi se transformando em vossa mercê > vossemecê > vosmecê > vosm'cê > voscê > você > ocê > cê. Empreendendo uma análise probabilística sobre dados de uma variedade em que predominam as formas oriundas do indicativo. 127 . a estudiosa optou por dividir os informantes em três novos grupos. mais íntimo. O mais provável era que indivíduos menos ligados a Fortaleza fossem mais suscetíveis a assimilar os usos do Distrito Federal. não tendo assumido uma identidade local em Brasília. por exemplo).O descompasso entre a prescrição normativa e os dados discutidos em análises variacionistas . levando em consideração a maneira como eles se relacionam com o Distrito Federal: 1) falantes que mantêm maior proximidade com aspectos socioculturais de Fortaleza (como o contato com os parentes).61. ao contrário do que acontece em uma relação marcada linguisticamente por um pronome de tratamento (como "Vossa Senhora" ou "Vossa Excelência". entre os quais figura o pronome "você". Entre as mulheres. Daisy Cardoso encontrou um relevante e inexplorado aspecto da variação no modo imperativo: como se comportariam falantes que transitam entre variedades diferentes? Para desenvolver tal análise. Probabilidades Aproveitando a literatura já existente sobre o fenômeno. Feitos cálculos probabilísticos sobre os usos. maior a probabilidade de que o indivíduo passe a usar formas imperativas do indicativo. Grupos Para verificar uma possível interação entre o fator gênero do falante e outros aspectos de identidade do indivíduo.77 (numa escala de 0 a 1).como as de Daisy Cardoso. como defende a linguista Marta Scherre em seu artigo "Phonic paralelism: evidence from the imperative form in brazilian portuguese".) é uma novidade. 3) falantes que não mantêm qualquer tipo de contato com a cidade de origem. Scherre identifica que um maior grau de formalidade na interlocução atua como um dos fatores favoráveis ao uso da forma subjuntiva. As gramáticas normativas levam em conta uma variedade de língua na qual existia uma distinção entre os pronomes "tu" e "você": coexistindo ambos. o pronome de 2ª pessoa era destinado a um tratamento menos formal. inicialmente. a estudiosa se deteve sobre dados produzidos por falantes originários de Fortaleza (em que 40% das formas imperativas são as que provêm do indicativo) que viviam em Brasília (onde as mesmas formas atingem 90% dos usos). Em algumas variedades. quanto mais ambientado na nova cidade. "Vossa Mercê" era o tratamento destinado ao rei. 2) indivíduos que têm contato semanal com parentes de Fortaleza.tem como uma de suas motivações a mudança nos usos pronominais em variedades faladas no Brasil. a probabilidade de que seja usado o imperativo da 3ª pessoa é 0. um recurso linguístico para demarcar uma relação de maior formalidade. referir-se ao interlocutor usando uma forma de 3ª pessoa é. Marta Scherre e Carlos Faraco . Mercê Nos aristocráticos tempos em que tal pronome surgiu. Em termos probabilísticos. mas que não convivem em Brasília com seus conterrâneos. Dito de outro modo: à exceção desse recente uso informal do pronome "você". a pesquisadora chegou a dados instigantes. 16 e 0.asp 128 . Além de retomar a discussão já encaminhada sobre a variação no modo imperativo. 0. Entre os homens.53 e 0.com. os pesos probabilísticos de cada grupo foram.89.uol.br/textos/93/artigo292163-1. Daisy Cardoso não apenas prossegue com os estudos já realizados. como aponta um caminho em que outros estudiosos podem se aventurar.Interação No caso das mulheres. Ao analisar o uso das formas imperativas como uma manifestação da identidade construída pelos falantes. http://revistalingua. a estudiosa encontra seu modo de contribuir com a discussão. respectivamente. A pesquisadora Daisy Cardoso nos oferece em sua tese um belo exemplo de como deve seguir o pensamento científico. processo que denuncia uma mudança em curso no português do Brasil. 0. que se dividiram só entre o primeiro e o segundo grupo (não havia casos de indivíduos do sexo masculino sem qualquer contato com Fortaleza). nesta ordem.36.36. a probabilidade de aparecer uma forma imperativa do indicativo é 0. especialmente quando a composição está em sua fase inicial (palavras compostas de formação recente). Isso porque as unidades combinatórias de que a língua dispõe para formar seus enunciados constituem dois tipos de inventários: os fechados. formados de elementos altamente instáveis. se chamam lexias. em que o hífen une palavras independentes das quais uma não tem autonomia prosódica. 129 . "girassol") ou pela união com hífen ("guarda-chuva". não raro irrepetíveis. e os abertos. A repetição sistemática dessa combinação faz dela uma unidade memorizada. cuja quantidade tende ao infinito (aqui se encontram os sintagmas. composta ("guarda-chuva"). mas estamos sempre agregando novos termos ao vocabulário. determinar quando se está de fato diante de uma palavra composta e não de duas palavras simples não é tão fácil assim. Mas por que isso é assim? O hífen se usa basicamente em palavras compostas (basicamente. A composição é. posso flexionar no plural ("aquecimentos globais") ou intercalar outros elementos ("aquecimento não global"). as palavras estão no limite entre a morfologia. que podemos acionar a qualquer momento para criar mensagens. desinências). que é fechada. Quando duas palavras simples se unem definitivamente para formar uma composta. Dito de outra maneira. afixos. o fato é que o hífen costuma ser de uso difícil e arbitrário em quase todas as línguas que o adotam. os parágrafos e os textos). o que causa mais embaraço é o uso do hífen. Mesmo sem levar em conta as incoerências do nosso sistema ortográfico (tanto o novo quanto o antigo). as orações. móvel de formato circular. que contêm um número finito e muitas vezes imutável de unidades (como fonemas. Segundo Bernard Pottier. Inventários As palavras se localizam bem na fronteira entre esses dois tipos de inventários. Combinatórias No entanto. no sentido de reunião. as frases. Compostos Com o passar do tempo. Uma das características da lexia composta é que seu significado não é a simples soma dos significados de seus constituintes: "mesa-redonda". por ser sempre átona). isso costuma ser indicado na grafia de duas maneiras: pela justaposição pura e simples ("parapeito". complexa ("processamento de dados") ou textual ("Deus ajuda a quem cedo madruga"). "bem-aventurado"). a primeira vez que alguém combinou numa frase as lexias "aquecimento" e "global").por exemplo. em geral. Trata-se da lexia complexa. mas cujos constituintes ainda são sintaticamente autônomos . não é a mesma coisa que "mesa redonda". e muitas palavras (as compostas) surgem da combinação de outras palavras. porque temos casos como "amá-lo" e "dême". São em quantidade finita. e a sintaxe. um lento processo que começa pelo encontro eventual de duas lexias simples (por exemplo. Uma lexia pode ser simples ("casa").Lógicas É junto ou separado? De uso difícil e arbitrário. hífen é motivo de embaraço Por Aldo Bizzocchi De todos os aspectos da grafia do português. os constituintes de algumas dessas lexias perdem a autonomia sintática: é então que a lexia passa de complexa a composta. que é aberta. as unidades linguísticas estocadas na memória. Há também palavras cuja noção de composição se perdeu porque alguns de seus constituintes sofreram mutação fonética radical. é possível provar que "pé-de-meia" (dinheiro poupado) é lexia composta e "pé de meia" (peça de vestuário) é complexa. as novas regras de emprego desse sinal desconsideraram tal critério e transtornaram a grafia das palavras. algumas bem complicadas e pouco lógicas. seus constituintes deveriam vir separados por espaços. que já foi "filho de algo" (lexia complexa) e hoje é palavra simples. se uma palavra é composta (o que. algumas palavras já nascem compostas. é complexa e não composta. se é complexa.asp 130 .Portanto. como "fidalgo".br/textos/93/artigo292130-1. em alguns casos.uol.com. Mais simples nesse tocante é o alemão. que justapõe sempre e dispensa o hífen. O português tem uma série de regras. É o caso de "social-democrata" e "greco-romano". Também é possível provar que "cartão-postal". sobre essa questão. Apesar desse intrincado processo de composição. malgrado a presença do hífen. é difícil de determinar com precisão). http://revistalingua. Resta saber quando empregar o hífen ou a justaposição. deveria ser grafada com hífen ou justaposição. Infelizmente. Em resumo. um bom método para determinar se uma lexia é composta ou complexa é chamado de critério semiotáxico. Por meio dele. 131 .
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