26/11/13:: Le Monde Diplomatique Brasil :: Imprimir página « Voltar CIDADES REBELDES É a questão urbana, estúpido! A vida nas cidades brasileiras piorou muito a partir dos últimos anos da década passada. Considerando que a herança histórica já não era leve, o que aconteceu para torná-la pior? por Ermínia Maricato Quem acompanha de perto a realidade das cidades brasileiras não estranhou as manifestações que impactaram o país em meados de junho de 2013.1 Talvez a condição de jovens, predominantemente de classe média, da maioria dos manifestantes exija uma explicação um pouco mais elaborada, já que foi antecedida pelos movimentos fortemente apoiados nas redes sociais. Mas no Brasil é impossível dissociar as principais razões, objetivas e subjetivas desses protestos, da condição das cidades. Essa mesma cidade que é ignorada por uma esquerda que não consegue ver ali a luta de classes e por uma direita que aposta tudo na especulação imobiliária e no assalto ao orçamento público. Para completar, falta apenas lembrar que há uma lógica entre legislação urbana, serviços públicos urbanos (terceirizados ou não), obras de infraestrutura e financiamento das campanhas eleitorais. As cidades são o principal local onde se dá a reprodução da força de trabalho. Nem toda melhoria das condições de vida é acessível com melhores salários ou com melhor distribuição de renda. Boas condições de vida dependem, frequentemente, de políticas públicas urbanas – transporte, moradia, saneamento, educação, saúde, lazer, iluminação pública, coleta de lixo, segurança. Ou seja, a cidade não fornece apenas o lugar, o suporte ou o chão para essa reprodução social. Suas características e até mesmo a forma como se realizam fazem a diferença. Mas a cidade também não é apenas reprodução da força de trabalho. Ela é um produto ou, em outras palavras, um grande negócio, especialmente para os capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros, juros e rendas. Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos. www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=1465 A cidade constitui um grande patrimônio construído histórica e socialmente, mas sua apropriação é desigual e o 1/4 cortes. por exemplo –. As migalhas desse banquete traziam algum conforto para a população migrante. minérios – ganha o centro da política econômica e sua produção reorienta os processos demográficos. e muitas prefeituras de “novo tipo” (ou democrático-populares) adotaram novas práticas urbanas. uma unidade de saúde. Mudam as dinâmicas demográfica. Contraditoriamente. morador da periferia metropolitana. tampouco há observância de legislação urbanística ou de quaisquer outras leis. em que pesem as novas nomenclaturas definidas pelo mainstream. voltado para o investimento em obras de infraestrutura econômica e social. para a qual não contribuem advogados. Garantiu-se também um aumento real do salário mínimo (de cerca de 55%. o ajuste fiscal. e lideranças. vamos priorizar o fato de que grande parte de nossas cidades é construída pelos próprios moradores em áreas invadidas – muitas delas ambientalmente frágeis – ou adquiridas de loteadores ilegais. arquitetos. as cidades brasileiras carregam uma herança pesada. o Programa Universidade para Todos (ProUni). O Estatuto da Cidade. é a outra face da moeda. pesquisadores. O modelo visava à desoneração fiscal de produtos industriais e buscava www. urbanistas. festejado no mundo todo como exemplar. Foi sobre essa base extremamente desigual que se deu.org. Isso tem a ver também com a disputa pelos fundos públicos e sua distribuição (localização) no espaço. em especial nas principais metrópoles. e a escravidão vigente até pouco mais de um século atrás são características que se somam a um Estado patrimonialista e à universalização da “política do favor”. o governo federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). ONGs etc. entre 2003 e 2011. quando o governo Lula retomou em 2009 os investimentos em habitação e saneamento numa escala significativa. As primeiras medidas de combate à fome e à pobreza constituíram um círculo virtuoso de fortalecimento do mercado interno. o crescimento tanto da economia quanto das taxas de emprego trouxe esperança de dias melhores. priorizou-se a urbanização da cidade ilegal ou informal. portanto. Para a construção desses bairros não contribuem arquitetos ou engenheiros. em torno da qual se organizaram movimentos sociais. o MST. assistentes sociais. a tragédia urbana se aprofundou. mobilidade. mas sua apropriação é desigual e o nome do negócio é renda imobiliária ou localização. como o Ministério das Cidades (2003). A exportação de commodities – grãos.br/print. 2005 e 2007). inclusive religiosas. florestas amplamente derrubadas. Os principais programas sociais do governo Lula. o impacto das décadas seguintes de baixo crescimento. De que forma essas características aparecem nas cidades? Como não é o caso de fazermos uma leitura extensa. destinada a ser simulacro de algumas imagens-retalhos do “Primeiro Mundo”. que por sua vez (e por isso mesmo) é altamente especulativo. em 2001. uma das maiores da América Latina. podemos dizer que vivemos a urbanização dos baixos salários. continuados pelo de Dilma Rousseff. que era invisível até então para o urbanismo e as administrações públicas. foi nesse período que floresceu uma nova política urbana.2% para 7. habitação. foram o Bolsa Família. as cidades se orientaram em uma direção desastrosa. A taxa de homicídios cresceu 259% no Brasil entre 1980 e 2010. juízes ou tribunais. saneamento. foi aprovado no Congresso após treze anos de luta popular. alto desemprego e recuo das políticas públicas e sociais determinadas pelo receituário neoliberal pode ser medido por muitos indicadores. pois ela tem um preço devido a seus atributos. A desigualdade social. Por mais paradoxal que possa parecer. de uma força de trabalho barata. A contar a partir dos anos 1980. Assim como vivemos a industrialização dos baixos salários. Com a globalização e o ajuste fiscal. a iluminação pública. A melhoria desses bairros é fonte inesgotável do velho clientelismo político: trocamse por votos a pavimentação de uma rua. celulose.4 Em 2007. Além de incluir a participação social – orçamento participativo. O Brasil vinha há quarenta anos num crescimento acima dos 7% ao ano. o Conselho das Cidades (2004) e as conferências nacionais das Cidades (2003. engenheiros. assassinadas.2 Como integrantes de um país da periferia do capitalismo. Uma não existe sem a outra. advogados.3 Com a globalização. Trata-se de uma força de trabalho que não cabe no mercado residencial privado legal. A principal vítima dos homicídios é o jovem negro e pobre. subordinando o que encontrou pela frente: terras indígenas ou de quilombolas. carnes. apesar de todo esse avanço institucional.2% nesse mesmo período. uma linha de ônibus etc. Esse movimento logrou criar um novo quadro jurídico e institucional ligado às cidades – política fundiária. no início dos anos 1980. prefeitos. Os exemplos virão quando tratarmos do momento atual. o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa Luz para Todos. O tsunami dos capitais globais e nacionais passou antes pelo campo. após quase trinta anos de estagnação nesse sentido. etanol. mas vamos fazê-lo aqui pelo aumento da violência urbana. além de novas instituições. conforme o Dieese).diplomatique. parlamentares. resíduos sólidos –. A cidade formal.26/11/13 :: Le Monde Diplomatique Brasil :: A cidade constitui um grande patrimônio construído histórica e socialmente. que chegava aos milhares nas cidades. Além disso. urbana e ambiental.php?tipo=ar&id=1465 2/4 . criminalizado. A urbanização se interioriza. pois este texto é apenas um ponto de partida. Construiu-se a Plataforma de Reforma Urbana. o território brasileiro passa por notável transformação. até mesmo para a resolução dos (frequentes) conflitos. segregada e excluída da cidade legal. Os classificados em “condição de pobreza” diminuíram sua representação de 37. além das social e econômica. o Crédito Consignado. Trata-se. 6 O investimento de capitais privados no mercado residencial cresceu 45 vezes. diante de urbanistas perplexos.8% em 2003. deixando inúmeros elefantes brancos para trás. as leis foram flexibilizadas ou modificadas.2 milhões de automóveis.5 milhões de motos. Teve então início um boom imobiliário de enormes proporções nas grandes cidades.8 bilhão em 2002 para R$ 79. aqui apenas resumido. além disso. Em 2009. A terra urbana permaneceu refém dos interesses do capital imobiliário e.7%.5 Em seis regiões metropolitanas. E embora a piora de mobilidade seja geral – isto é. pontes e túneis. chegam a atingir 295 quilômetros das vias. Em São Paulo. esse tempo é de mais de três horas. em 2011.7 e os subsídios governamentais (em escala inédita no país) cresceram de R$ 784. que estamos tratando. saneamento. não guardam qualquer ligação com a racionalidade da mobilidade urbana. planos. também pesquisadora da USP.8 O coração da agenda da reforma urbana. Com exceção da oferta de emprego na indústria da construção. foram criados 27. resíduos sólidos. o preço dos imóveis aumentou 153% entre 2009 e 2012. Verdadeiros assaltos aos cofres públicos. drenagem.3 bilhões em 2011.7%.8% em 2012. Mas é com a condição dos transportes que as cidades acabam cobrando a maior dose de sacrifícios por parte de seus moradores.org. mesmo contra qualquer leitura da nova legislação conquistada por um Judiciário extremamente conservador. O comprometimento da saúde mental (depressão. mas sim com a expansão do mercado imobiliário. do tempo perdido. 20.26/11/13 :: Le Monde Diplomatique Brasil :: obras de infraestrutura econômica e social. respectivamente. Os movimentos sociais ligados à causa se acomodaram no espaço institucional em que muitas das lideranças foram alocadas. em www.14 A desoneração dos automóveis somada à ruína do transporte coletivo fizeram dobrar o número de carros nas cidades.5 milhões de automóveis e 4.8% para 2. Minha Vida. havia em doze metrópoles brasileiras 11.9 bilhões em 2011. foram lançados o PAC II e o programa habitacional Minha Casa.. os investimentos em viadutos. temos no Brasil leis. o aumento foi de 184%. atinge a todos –.3 milhões. mas também da morte. contrariando a tendência anterior.753 empregos).5 milhões e 18.12 Favelas bem localizadas na malha urbana sofrem incêndios. em 2010 o crescimento nacional foi de 7. Concluindo: para fazer frente a esse quadro.5% e o da construção civil. Minha Vida. habitação. tem sido estudado pelo médico Paulo Saldiva. especialmente graças às medidas de financiamento estendido e à institucionalização do seguro incluídas no Minha Casa.13 Os megaeventos – como a Copa e as Olimpíadas – acrescentam ainda mais lenha nessa fogueira. foi esquecido. onde circulam diariamente 5. obviamente. sobre os quais pesam suspeitas alimentadas por evidências constrangedoras. pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Saúde e Sustentabilidade. é das camadas de rendas mais baixas que ela vai cobrar o maior preço. Para um terço da população. com consequente diminuição da expectativa de vida. Após a crise de 2008. as prefeituras viram a multiplicação de torres e veículos privados como progresso e desenvolvimento. A taxa de desemprego da construção civil no período diminuiu de 9. e US$ 14 bilhões (quase o mesmo montante dos subsídios) foram enviados ao exterior. Enquanto em 2009 o PIB brasileiro e da construção civil foram negativos. Os congestionamentos em São Paulo. Sem tradição de controle sobre o uso do solo. que atingia 12. experiência. Os capitais se assanham na pilhagem dos fundos públicos.php?tipo=ar&id=1465 3/4 . No Rio de Janeiro. a reforma fundiária/imobiliária.15 A prioridade ao transporte individual é complementada pelas obras de infraestrutura dedicadas à circulação de automóveis. além de ampliação de avenidas. Mas..727 para mais de R$ 5. o primeiro item necessário à política urbana hoje é a reforma política. para tanto. O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2 horas e 42 minutos em 2007.11 Os despejos violentos foram retomados. de 11. Em 2001. do financiamento de campanhas. Há mais subsídios para a circulação de automóveis (incluindo combustível e outros itens) do que para o transporte coletivo.9 A disputa por terras entre o capital imobiliário e a força de trabalho na semiperiferia levou a fronteira da expansão urbana para ainda mais longe: os pobres foram para a periferia da periferia. conhecimento técnico. pois a política habitacional está longe do núcleo central do déficit. O governo brasileiro deixou de recolher impostos no valor de R$ 26 bilhões desde o final de 2008 (nesse mesmo período. literalmente. essa orientação foi aprofundada. para a maioria sobrou o pior dos mundos. o desemprego. comportamento compulsivo) tem sido estudado pela psiquiatra Laura Helena Andrade. desenhado por empresários da construção e do mercado imobiliário em parceria com o governo federal. passando de R$ 1.10 Novas áreas de proteção ambiental acabam sendo invadidas pelos sem alternativas. além. O forte impacto da poluição do ar na saúde da população de São Paulo. ansiedade mórbida.br/print. É da vida. caiu para 5.diplomatique. propostas maduras e testadas nas áreas de transporte. Certa classe média viu suas possibilidades de galgar à casa própria aumentarem. O modelo visava à desoneração fiscal de produtos industriais e buscava alavancar o emprego na indústria da construção. Disponível em: . passe livre. 5 Cf. 14 Cf. Formulou a proposta do Ministério das Cidades. Palavras chave: Brasil. Manuel Castells. Julio Jacobo Waiselfisz. FAU-USP. “Autoconstrução das redes de infraestrutura nos mananciais: transformação da natureza na luta pela cidade”. no qual foi ministra adjunta (2003-2005). 2012. Teotônio Costa Rezende. 1º dez. teremos uma nova geração com uma nova energia para lutar contra a barbárie.br/print. Mas. Carta Maior. 21 set. aqui toscamente rascunhadas. Carta Maior. 3 Cf. “Sentidos do desenvolvimento urbano: Estado e mercado no boom imobiliário do ABCD” (título provisório). Finazzi. São Paulo. A publicação (Boitempo e Carta Maior) terá 112 páginas e vai custar R$ 10 [e-book: R$ 5]. “O pesadelo da imobilidade urbana: até quando?”. Se fizermos um bom trabalho pedagógico. estão baseadas em bibliografia de autores que se ocuparam da leitura marxiana da questão urbana: Henri Lefebvre. 9 Ver Ana Fernandes. 10 Ver Leticia Sigolo. ruas. São Paulo. Pesquisa origem e destino 2007. 7 Cf. USP www. em especial o financiamento de campanhas eleitorais. “Não acredite em combustão espontânea”. Companhia do Metropolitano de São Paulo – Metrô. palestra apresentada no Sindicato da Habitação (Secovi). “O papel do financiamento imobiliário no desenvolvimento sustentável do mercado imobiliário brasileiro”. 1 Ver. e Jurema Rugani. David Harvey. “Salvador. manifestações. o primeiro item necessário à política urbana hoje é a reforma política. entre outros. além disso.diplomatique. as páginas na internet da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip) e do Banco Central do Brasil. 6 Idem. Disponível em: . da autora. FAU-USP. mobilização. 15 Ver Marcos Pimentel Bicalho. a página da internet da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). artigos anteriores que tratam do assunto em: . 11 Ver Luciana Ferrara. 13 Sobre incêndios em favelas. tese de doutorado. 4 Marcio Pochmann. ver João F. Boitempo. “2012 | A cor dos homicídios no Brasil”. Ver ainda o blog da urbanista e professora de arquitetura Raquel Rolnik: . respectivamente. Jean Lojkine. 8 Cf. Disponível em: . cidades. Carta Maior. 2012. 2012. ver o material de pesquisa coletado pelo grupo Observatório de Remoções. sociedade. Carta Maior. protestos. Disponível em: . Sergio Ferro e Nilton Vargas (esses dois últimos no Brasil). São Paulo.. 2012. 2 Essas ideias. governo. 4 jul. 2012. metropóle.php?tipo=ar&id=1465 4/4 . Christian Topalov. a Copa. que viva a moçada que ganhou as ruas. Nova classe média? Trabalho na pirâmide social brasileira. PAC. uma cidade perplexa”. Disponíveis. 2013. Ermínia Maricato :: Le Monde Diplomatique Brasil :: Professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e professora visitante da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 24 ago. a cidade: como ficamos?”. Disponível em: . Disponível em: . Alain Lipietz.26/11/13 sólidos. a ser lançado em agosto. lutas. “Participação social. doutorado em andamento. da FAUUSP. 2012. Este artigo faz parte do livro Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 11 set. em: e .. habitação. Disponível em: .org. reformas. 12 A respeito das remoções forçadas. Então. Disponível em: . Mapa da Violência.