Marcelo Marcante Flores - Prova Testemunhal e Falsas Memórias - Entrevista Cognitiva como meio eficaz para a redução de danos

March 24, 2018 | Author: Leonardo Barbosa | Category: Interview, Memory, Criminal Procedure, Science, Criminal Law


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PROVA TESTEMUNHAL E FALSAS MEMÓRIAS: entrevista cognitiva como meio (eficaz) para redução de danos(?) Marcelo Marcante Flores. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Bolsista da CAPES. Pós-graduado em Ciências Penais pela PUCRS. Advogado Criminalista. Resumo: O processo penal brasileiro depende (quase que) exclusivamente da prova testemunhal, o que explica a baixa qualidade da prova produzida sob o crivo do contraditório. O presente texto busca aproximar o processo penal dos estudos sobre a memória e as falsas memórias realizados no âmbito da neurociência e da psicologia cognitiva. O operador do direito deve ter ciência deste fenômeno, pois assim é possível a procura alternativas para (ao menos) minimizar os possíveis danos e injustiças que as falhas na memória podem acarretar no processo penal. A proposta aqui abordada é a entrevista cognitiva, que ainda está sendo desenvolvida nas mencionadas áreas de estudo. Palavras-chave: Prova testemunhal. Falsas memórias. Entrevista cognitiva I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS As pesquisas experimentais sobre a memória realizadas no campo da neurociência e da psicologia cognitiva propõe (re)discussões sobre nossa capacidade de codificar, armazenar e recuperar informações. Inúmeros trabalhos científicos buscam explicar sua amplitude, suas regularidades e falhas. Nestas pesquisas, tem sido comum o estudo da ocorrência dos fenômenos das falsas memórias em testemunhas oculares de crimes. Com isso, evidencia-se a necessidade de um maior diálogo1 entre o direito penal e processual penal com as ciências que estudam o funcionamento da mente.2 1 A necessidade de abertura dos saberes, de diálogo entre as disciplinas e a impossibilidade de se manterem eficazes os discursos disciplinares impõem uma nova postura aos investigadores, no sentido de se realizar uma abordagem interdisciplinar. Contudo, a interdisciplinariedade sempre enfrentou muita resistência no Direito, pois coloca em xeque a sua base epistêmica calcada na razão moderna. A insuficiência do monólogo jurídico deve ser evidenciada à luz da complexidade das sociedades contemporâneas, inserindo-se o Direito na epistemologia da incerteza e na fluidez da aceleração. (GAUER, Ruth Maria Chittó. Prefácio: inovação e interdisciplinariedade. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: Edipucrs, 2008, p. 19. 2 VASCONCELLOS, Sílvio; GAUER, Gabriel e CATALDO NETO, Alfredo, O estudo da memória e suas implicações para o direito penal. In: Ciências Penais e Sociedade Complexa, FAYET JÚNIOR, Ney & MAYA, André Machado (org.). Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008, p. 344-345. na medida em que o aparato sensorial elege os possíveis estímulos. vive dentro dele. ainda muito dependente da prova testemunhal. II – A FALIBILIDADE DA MEMÓRIA HUMANA E O FENÔMENO DAS FALSAS MEMÓRIAS A partir da figura do pintor. . fortíssimamente marcado pelo ritual judiciário e sua simbologia. reduzir os possíveis danos causados pelas falhas na memória dos depoentes. que são codificados segundo os modelos relativos a cada indivíduo e as impressões integram uma experiência perceptiva. I. o mundo não está diante do observador. mas ao seu redor. Com isso. O observador não enxerga segundo seu envoltório exterior. No contexto brasileiro a situação é mais dramática. E essa variação é ainda influenciada conforme a recordação seja espontânea ou solicitada. Por isso. Aury. 4 Art. LOPES JÚNIOR. MERLEAU-PONTY revela a incapacidade do olho de apreender toda a 3 A objetividade do testemunho é ilusória para quem considera a interioridade neuropsíquica. Portanto. 213 do CPP. Partindo-se deste pressuposto.Revelada a falibilidade da memória humana. no mínimo. Temos que acabar com a crença na objetividade do testemunho3 (art. que se torna o elemento mais importante no deslinde da causa objeto do processo penal. questiona-se a eficácia da entrevista cognitiva como meio de redução de danos na oitiva de testemunhas e vítimas. 2007. Direito processual e sua conformidade constitucional. MERLEAU-PONTY questiona como nosso corpo sente e como os nossos olhos observam e se relacionam com o mundo exterior. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 618-619. em busca de estabelecer um processo penal justo e humanizador (acusatório). cujos fantasmas variam muito no processo mnemônico (memória). é preciso lançar um novo olhar sobre o processo penal. A pouca credibilidade desta espécie de prova mostra que precisamos encontrar alternativas para. Vol. Cf. principalmente diante da complexidade fática que envolve o ato de testemunhar em juízo. P. a importância de se aproximar o conhecimento desenvolvido pelas pesquisas da neurociência e psicologia cognitiva com os preceitos jurídicos (processuais penais). pois a precariedade de recursos com que trabalham a Polícia e o Poder Judiciário acarreta a comum (e inevitável) atribuição de extrema relevância à prova testemunhal. O juiz não permitirá que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais. 213 do CPP4) e encontrar alternativas para efetivação de um processo penal que minimize as injustiças. está englobado nele. salvo quando inseparáveis da narrativa do fato. cada cachorro e cada ser humano é quem é. Iván. Iván. enfim. desde os que operam nas placas dos computadores. Memória. tampouco comunicar aquilo que desconhecemos. justamente. memória é a aquisição. lembrança. A aquisição é também chamada de recordação. Ao converter a realidade em um complexo código de sinais elétricos e bioquímicos. aquilo que foi aprendido.6 Portanto. Logo. 8 Segundo IZQUIERDO. p. A primeira vincula-se as memórias de capacidades ou habilidades motoras ou sensoriais e o que chamamos de hábitos (Exs. O acervo das memórias de cada um nos converte em indivíduos. país. saltar. nadar. eventos ou conhecimento. Iván. portanto. porque os mecanismos de sua aquisição.). é mais fácil aprender ou evocar algo quando estamos alerta e de bom ânimo. são utilizadas redes complexas de neurônios. até a história de cada povo. 9-10. não podemos fazer aquilo que não sabemos. 1997. Só lembramos aquilo que gravamos. recuperação. Mas. O olho e o espírito. à memória. e. Op Cit. devem-se ao fato de que em ambas as ocasiões. os neurônios traduzem. Iván. somam-se todos os aspectos levantados acerca da falibilidade da memória pela neurociência e psicologia cognitiva. Cf. armazenadas e evocadas por rede de células nervosas (neurônios). A memória declarativa registra fatos. armazenamento e evocação são diferentes. pelo contrário. soletrar. Maurice. 33. 2002. é a memória que utilizamos para proferir uma frase gramatical que faça sentido. assim como durante o longo processo de consolidação ou formação de cada memória.complexidade de acontecimentos: “faltam ao olho condições de ver o mundo e faltam ao quadro condições de representar o mundo”. p. A memória de curto prazo abarca informações guardadas na memória apenas por poucos instantes. p. em cada caso. um indivíduo diferente de qualquer congêneres graças. A memória humana7 não se equipara a de um computador. Conforme IZQUIERDO. 11. as memórias humanas são feitas. p. etc. fica difícil aprender qualquer coisa ou até lembrar o nome de uma pessoa ou de uma canção quando estamos cansados. a conservação e a evocação de informações. bem como as memórias individuais dos animais e das pessoas. Porto Alegre: Artmed.9 5 6 MERLEAU-PONTY. (IZQUIERDO. sendo. p. A memória de longo prazo contempla as informações que ficam armazenadas por mais tempo. moduláveis pelas emoções. nada que não esteja na memória. deprimidos ou muito estressados. Cada elefante. Lisboa: Veja. Em outras palavras.5 A esta incapacidade humana. na aquisição e na evocação. o significado atribuído é diferente. sendo responsável pelo armazenamento de dados passíveis de serem declarados.: IZQUIERDO. dias. 12. Os processos de tradução. . Op Cit. Portanto. anos ou mesmo décadas. a formação. A memória de longo prazo pode ainda ser dividida em memória procedural e memória declarativa. civilização. pelo nível de consciência e pelos estados de ânimo. 22-23) 8 IZQUIERDO.: andar de bicicleta. o significado da palavra memória abrange diversos mecanismos. Op Cit. 9 IZQUIERDO. podendo perdurar por horas. somos aquilo que recordamos. 7 A memória humana é de curto ou de longo prazo. Dissertação de Mestrado (Psicologia social e da personalidade). p. Cit. mas sim de alguma coisa que realizou há algum tempo. Gabriel e CATALDO NETO. às vezes. A memória humana não armazena os fatos como uma filmadora ao gravar imagens. Reescrevemos nossas experiências passadas e as adaptamos aos acontecimentos presentes. 15-16) 15 A distração envolve uma ruptura na interface entre a atenção e a memória. quando estamos preocupados com outros assuntos e não nos concentramos no que precisamos lembrar.) 11 . 14 Transitoriedade se refere à perda ou fraqueza da memória. Assim. 13 NYGAARD. sendo responsável pelo armazenamento de dados passíveis de serem declarados. (Ibidem. (Ibidem. geralmente. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.10 Portanto. Iván. 15-16. Rio de Janeiro: Rocco.) 19 A distorção reflete as influências poderosas do nosso conhecimento atual e opiniões sobre nossa mente quando nos lembramos do passado. as implicações jurídicas devem dirigir maior atenção aos estudos sobre aspectos deste aspecto da memória humana. 2003. eventos ou conhecimento. O que entra como informação não é. Os sete pecados da memória: como a mente esquece e lembra. Sílvio. Depoimentos testemunhais: a memória em julgamento. Faculdade de Psicologia. (Ibidem. Erros da memória relacionados à distração – como esquecer o lugar onde colocamos a chave – ocorrem. Maria Lúcia Campani. p. nossa memória pessoal e coletiva descarta o trivial e. (Ibidem. entre a captação do fato através dos sentidos. um sujeito que equivocadamente assume a culpa por um crime que não cometeu ou mesmo alguém que cria falsas memórias a partir de um inquérito mal conduzido está alocando ou alterando informações constantes na sua memória declarativa11. atribuição errada17. uma testemunha que distorce lembranças sobre um fato. são grandes as possibilidades de falhas. referindo-se a suscetibilidade da memória. Alfredo. 43.13 SCHACTER classificou as distorções mnemônicas mediante alterações que foram por ele denominadas de “sete pecados” da memória: transitoriedade14. distorção19 e persistência20. Daniel. 346. Essas falhas de memória ocorrem no nosso dia a dia e podem acarretar conseqüências 10 IZQUIERDO. Op. comentários ou sugestões feitos quando uma pessoa está tentando lembrar de um experiência do passado.) 18 A sugestionabilidade está ligada à atribuição errada. 2003. sugestionabilidade18. A memória declarativa é uma memória de longo prazo que registra fatos.. sua codificação e armazenamento na memória e a posterior evocação. p. mentiras e variações que geralmente as enriquecem.) 16 O bloqueio é uma busca frustrada de alguma informação da qual se precisa e não se consegue lembrar. bloqueio16. (SCHACTER. Op Cit. distração15.) 20 A persistência envolve a recordação de informações ou acontecimentos perturbadores que gostaríamos de eliminar totalmente da nossa mente. O conteúdo pode mudar devido a diversos aspectos. p. (Ibidem) 17 A atribuição errada envolve referir uma memória a uma fonte errada: confundir fantasia com realidade ou lembrar incorretamente que um amigo lhe contou um fato inconseqüente que na verdade você ficou sabendo ao ler jornal. A atribuição errada ocorre com muito mais freqüência do que as pessoas se dão conta e pode ter profundas implicações em problemas jurídicos. (Ibidem. pois lembranças podem ser criadas como resultado de perguntas tendenciosas. o que sai. 23) 12 VASCONCELLOS. incorpora fatos irreais. consciente ou inconscientemente. (Ibidem.12 Nessa perspectiva. Não se trata da dificuldade que a pessoa tem de recordar o que estava fazendo nas últimas horas. naturalmente. GAUER.Ao longo do tempo. p. Contudo. Cit.. Em uma das pesquisas experimentais. No caso “John Doe 2" (o segundo suspeito ao atentado à bomba de Oklahoma. apresentando os resultados de algumas pesquisas iniciadas na década de 70. 349.22 O segundo caso é o do psicólogo Donald Thomson que foi acusado de estupro. 22 . p. p. As três primeiras falhas são erros de omissão. Tom Kessinger (mecânico que lembrava ter visto dois homens na ocasião do atentado) disse ter lembrado corretamente das feições de Bunting. Op.21 Nos processos judiciais. Op. Ao final. As outras quatro (o engano. as recentes pesquisas demonstram que a memória é um processo verdadeiramente construtivo. Ibidem. 23 Outro fenômeno bastante comum é a ocorrência de distorções ou implantação de falsas memórias. o soldado inocente estivera na loja um dia antes do atentado. demonstra a existência de distorções na memória. 117. Alfredo. o FBI fez uma caçada no país inteiro que restou inexitosa. foram fornecidas às testemunhas de um acontecimento informações novas e errôneas sobre o evento. 15-16. Thomson foi inocentado porque tinha um álibi irrefutável: estava no meio de uma entrevista transmitida pela televisão (ironicamente. A vítima tinha assistido à entrevista e associou erradamente à lembrança do ocorrido com o rosto do psicólogo. p. Pensava-se que a memória era apenas um processo reconstrutivo. o que teve como resultado freqüentes 21 SCHACTER. GAUER. SCHACTER aponta a comum ocorrência do fenômeno da atribuição errada. Logo. Sílvio. não apenas somos capazes de resgatar certas informações relacionadas a um evento qualquer. os mais prejudiciais são a atribuição errada e a distorção. No entanto.. na verdade. dos ditos “sete pecados” da memória. sem qualquer relação com o atentado. pois. p. lembramos da informação errada. um homem inocente.inesperadas. a distorção e a persistência) são erros de comissão. 116-117. como também de acrescentar muita coisa nova a tudo àquilo que lembramos. 24 VASCONCELLOS. ocorrem no armazenamento do fato na memória. Contudo. através de um estudo de dois casos exemplificativos. houve atribuição errada. em 1995). Daniel. sobre a falibilidade da memória) no momento em que aconteceu o estupro. a sugestão. 23 Ibidem. chegaram à conclusão de que John Doe 2 era o soldado Todd Bunting. Gabriel e CATALDO NETO. com base em uma lembrança presumivelmente detalhada do seu rosto por parte da vítima. Cit.24 A professora LOFTUS. após reestudarem algumas informações. p. Segundo LOFTUS. mais ela crê que essa ação de fato aconteceu. na cena de um crime. os participantes deveriam realizar uma ação simples (bater na mesa. quebrar o palito de dentes. sugeriu-se à metade deles que a placa era do tipo “dê a preferência”. Estes trabalhos demonstram a possibilidade de modificação das lembranças. quanto mais tempo uma pessoa imagina uma ação não realizada. Numa segunda sessão. foi possível criar a lembrança da existência de um estábulo num cenário bucólico em que não havia construção alguma. 92. Num primeiro momento. 90. 28 Ibidem.27 Também na Universidade de Washington. p. 25% dos participantes afirmavam se lembrar do incidente fictício. 90. Na ocasião. enquanto aqueles que haviam sido expostos à desinformação se lembravam melhor da placa de “pare”. quando lhes foi relatado pela primeira vez. Entretanto. imaginar que a realizavam ou simplesmente escutar a descrição dela. cruzar os dedos ou girar os olhos). As falsas lembranças. relatou-se a realização de outro que envolveu mais de 20 mil pessoas. depois. outras. 18% e. ao longo de duas entrevistas consecutivas. da presença de cacos de vidro em cenas nas quais esses elementos estavam ausentes.26 Em outro estudo apontado por LOFTUS. Os resultados mostraram que.28 25 26 LOFTUS. Elizabeth. nenhum dos participantes se lembrava do evento fictício. psicólogos apresentaram acontecimentos reais misturados com acontecimentos inventados (por exemplo.transformações nas lembranças. Durante uma sessão inicial. de maneira espetacular. ter derramado champanhe nos pais da noiva). Viver Mente e Cérebro. p. aqueles que tinham sido submetidos à sugestão recordavam mais a placa “dê a preferência”. 91. p. Quando perguntados de qual placa se lembravam. numa festa de casamento. a pesquisa confrontou a exposição a falsas informações com a ocorrência de alterações na memória. Depois. Vários voluntários assistiram a um falso acidente automobilístico ocorrido num cruzamento onde havia uma placa de “pare”. 2005. da cor branca de um veículo. tinham de imaginar certas ações que tinham efetivamente realizado no início. Ibidem. LYN GOFF e HENRY ROEDIGER examinaram as experiências vividas recentemente. 2. 27 Ibidem. com o objetivo de estabelecer (de forma mais direta) as ligações entre as ações imaginadas e a construção de falsas lembranças.25 Ainda. na verdade azul. às vezes de maneira previsível e. . 162. KASSIN. vários deles. estudou as reações de indivíduos falsamente acusados de ter danificado um computador apertando a tecla errada. sobretudo durante o processo criminal. uma cena de agressão) também influem decisivamente na inexatidão das lembranças evocadas. Saul & GUDJONSSON. terminaram por descrever de maneira detalhada o ato que não haviam cometido. armazenamento e recuperação de uma informação. p. Em virtude das fraturas no crânio. Elizabeth. as situações que produzem ansiedade e estresse (por exemplo. confissões falsas: por que pessoas inocentes assumem a autoria de crimes que não cometeram?. inclusive pelo sugestionamento a que se submetem nestas ocasiões. Os estudos na área iniciaram a pelo menos três décadas e comprovam que as pessoas (adultos e crianças) formam falsas memórias. o que interfere no momento da codificação. A repercussão midiática do caso foi enorme e. foi preso Matias Reyes que espontaneamente confessou ser o autor do referido crime no Central Park. 93. ela de nada lembrava. Os participantes (todos inocentes) de início negavam a afirmação. até mesmo. num prazo de 48 horas. inclusive. 2006. quando uma mulher foi espancada e estuprada no Central Park. Viver Mente e Cérebro. treze anos depois. Um deles ocorreu em Nova Iorque. a 29 30 LOFTUS. Ressalta-se. 74-75. alegou ter sido pressionado a participar pelos companheiros do que seria o seu “primeiro estupro”. em contextos onde as pessoas devem se lembrar de importantes fatos pessoais.29 KASSIN e GUDJONSSON também apresentaram outros casos de condenações com base em confissões falsas.KASSIN.30 Portanto. Gisli. p. sendo que um deles. Cit. Todos os detidos foram condenados. corroborando sua confissão. ademais. Segundo DAVIDOFF. a polícia obteve a confissão de cinco rapazes. Crimes verdadeiros. no ano de 1989. principalmente. que as amostras de sêmen recolhidas da vítima pertenciam a Reyes. da Universidade Williams. Entretanto. Cada acusado descrevia com detalhes como a vítima foi atacada. Alguns. Op. ainda. Esse fenômeno ocorre. Os indivíduos que presenciam uma cena de agressão ficam muito confusos pelo seu estado de cansaço e ansiedade. depois de terem sido confrontados com um cúmplice do experimentador que afirmava tê-los visto apertar a tecla errada. mudaram suas versões. Todavia. . todos os estudos e pesquisas experimentais realizados no âmbito da neurociência e da psicologia cognitiva apontam que comumente a memória está sujeita a falhas. Os testes de DNA revelaram. assinando confissões falsas. amigos.33 Portanto. sem dúvida. Contudo. subjetivismo ou juízo de valor). pelo que se pode observar. provida de detalhes técnicos e despida de contaminação (emoção. comumente praticados na clandestinidade. e DI GESU. O problema é desvelar o que realmente aconteceu. A testemunha ou vítima desliza no imaginário sem consciência disso. bem como pela 31 32 BARBOSA. deixando no esquecimento justamente o que seria mais importante a ser relatado no processo.31 O delito. Op. psicólogos. Consistem em erros que não se enquadram no crime de falso testemunho (art. Op. a memória cognitiva. 35 LOPES Jr. Assim. p. 79. cit. vítima ou testemunha. set. a tendência da mente humana é guardar apenas a emoção do acontecimento. Falsas memórias e prova testemunhal no processo penal: em busca da redução de danos.expectativa pelo desfecho da situação. ou o fato não deixa vestígios ou estes foram apagados pelo tempo. tampouco. em que a palavra da vítima constitui a principal prova. todavia. Cit. 83. nasce um novo e grave problema: o induzimento realizado pelos parentes. Certamente. Aury.32 Na verdade. ou seja. 34 LOPES Jr.35 Em virtude da importância da prova testemunhal. 25. gera uma emoção para qualquer pessoa. 90. assistentes sociais e julgadores ao formularem seus questionamentos. a verdade como os indivíduos as lembram. 2007.. Conforme LOFTUS. são grandes as possibilidades de esses aspectos influenciarem na codificação do fato em questão. Op. LOPES Jr. Aury. Cit.34 A realidade vivenciada na atividade forense não escapa do que aqui foi referido. pois. . as falsas memórias são caracterizadas pela recordação de situações que na verdade nunca ocorreram. a coleta e avaliação da prova testemunhal deve observar toda a complexidade que é a compreensão da “memória humana”.. p. Op cit. gerando falsas memórias. situação que na maioria das vezes não é tão simples. policiais. 33 LOFTUS. representando. a informação errônea pode se imiscuir em nossas lembranças quando falamos com outras pessoas. Claudia. razão porque é mais difícil se identificar uma falsa memória em detrimento de uma mentira.. Cristina Carla. In: Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. 625. intencionais.. Cristina Carla. p. e DI GESU. as falsas memórias não são uma simulação e. 342 do CP). principalmente nos delitos sexuais. Aury.. Elizabeth. p. somos interrogados de maneira evocativa ou quando uma reportagem mostra um evento que nós próprios vivemos. p.. Dessa forma. a entrevista cognitiva almeja superar os métodos mais convencionais de entrevistas utilizados em interrogatórios policiais. Cristina Carla. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Daí a necessidade de que os interrogadores saibam como a memória funciona. Lilian Mlnitsky. 36 Atualmente. Logo. 37 A expressão “entrevista cognitiva” se refere a uma forma de inquirição desenvolvida para aumentar a performance da memória do depoente. a entrevista cognitiva tem sido muito utilizada em países europeus e nos Estados Unidos. NYGAARD. p.. Trata-se de um método padronizado que tem como um dos seus principais objetivos minimizar os efeitos de distorção e os erros da atribuição que se mostram capazes de interferir nas lembranças de um depoente. obtendo a resposta pretendida. Deve o inquiridor empregar meios convenientes para impedir que as suas perguntas. possam identificá-lo e estejam preparados para lidar com ele. jul-ago 2006. pois certos perguntadores conseguem arrastar a testemunha para onde desejam. Op. possam provocar no interrogado um estado emocional capaz de dificultar a correta descrição dos fatos. o primeiro fator a entrar em julgamento é a memória do depoente.mídia (quando há notoriedade do caso). 83. criando mecanismos procedimentais que sirvam para mitigar a situação. É preciso que os operadores tenham consciência desse fenômeno. Maria Lúcia Campani. . cit. 2006. quais os caminhos mentais percorridos quando alguém tenta lembrar de alguma coisa. 152. apresentando-se como uma alternativa que objetiva a diminuição dos danos causados pelas falsas memórias. Contribuições da psicologia cognitiva para a oitiva da testemunha: avaliando a eficácia da entrevista cognitiva. como a memória é frágil e como os interrogados podem ser influenciados por aqueles que fazem as perguntas. A maneira de perguntar tem uma profunda força.. III – PROVA TESTEMUNHAL E ENTREVISTA COGNITIVA: MEIO DE EFICAZ (?) DE REDUÇÃO DE DANOS NO PROCESSO PENAL Toda a entrevista de investigação ou interrogatório tem o objetivo de obter informações sobre experiências passadas. e DI GESU. demasiadamente insistentes e talvez involuntariamente intimidativas. Leandro da Fonte e STEIN. Aury. FEIX. p. que 36 37 LOPES Jr. a fim de minimizar suas (nefastas) implicações no processo penal. Estimula-se o entrevistado a recordar-se de algum som. na expectativa de que o entrevistador conduza todo o processo. (3) relato livre41. que maximize os sentimentos de segurança e confiança por parte do entrevistado.. 38 A entrevista cognitiva representa uma aliança entre dois campos de estudo: cognição e comunicação. uma pessoa ou grupo. o entrevistador solicita ao entrevistado que volte mentalmente ao ambiente em que ocorreu o evento em questão.) 40 Para a maioria das pessoas. Sílvio. Todavia. Não é de se estranhar. fazendo o exercício de se colocar no lugar da outra pessoa. O entrevistador deve manter uma postura de empatia constantemente.php?script=sci_arttext&pid=S1808-56872005000200002&lng=pt&nrim=iso> Acesso em: 19 jun. Gabriel e CATALDO NETO. Op. é importante que ocorra o contrário. Giovanni Kuckart e STEIN. Alfredo.br/scielo. Sua versão original foi delineada a partir dos achados da psicologia cognitiva sobre como as pessoas recordam. Cada uma dessas perguntas tem seus próprios problemas. podendo contribuir para a ocorrência de falsas memórias. cheiro. a situação de prestar um depoimento é absolutamente nova. (4) questionamento42. é fundamental o conhecimento de algumas características da memória. recuperando o maior número de detalhes possíveis. (5) recuperação variada e extensiva43. Quando o entrevistado tiver conseguido 39 . (c) perguntas de seleção podem. Através da personalização da entrevista. incumbindo ao entrevistador enfatizar o caráter colaborativo da entrevista. sentimento que tenha ocorrido no momento em que vivenciou o evento que está buscando recordar. de modo que o entrevistador funcionará apenas como um facilitador. Lilian Milnitsky. deve o entrevistador familiarizar o entrevistado no que diz respeito aos objetivos daquela interação que acabou de começar. Essa posição está relacionada ao “efeito do status do entrevistador”: o entrevistado acredita que o entrevistador é uma figura de autoridade que tudo sabe. cujo objetivo é a descrição de um lugar. para que haja um trabalho conjunto. Entrevista cognitiva e terapia cognitiva-comportamental: do âmbito forense à clínica. GAUER. 352-353. A entrevista cognitiva vale-se de estratégias bastante distintas das convencionais. É explicitado desde o início que o entrevistado é quem possui as informações sobre o acontecimento em questão. que o entrevistado possua muitas dúvidas acerca da situação da entrevista. Cit. Assim. 38 VASCONCELLOS. Deve o entrevistador criar uma atmosfera relaxante. busca-se transmitir a idéia de que o entrevistado é um indivíduo único e que a entrevista será conduzida de acordo com as suas particularidades e necessidades específicas.tendem a incluir alguns estilos específicos de pergunta como: (a) perguntas fechadas que permitem respostas envolvendo um número reduzido o de palavras ou do tipo “sim ou não: (b) perguntas identificadoras. de outro modo. O entrevistado coloca-se numa posição passiva. que permitem uma significativa redução nas chances de ocorrência de falhas específicas em termos de memória. Disponível em: <HTTP://pepsic. Deve haver a “transferência de controle” do processo. portanto. conhecedor pleno daquilo que deve ser feito. Estrutura-se em sete etapas: (1) estabelecimento de rapport e personalização da entrevista39.) 41 Neste momento. (PERGHER. Para maximizar a qualidade e quantidade de informações colhidas. Trata-se de um processo de entrevista que faz uso de um conjunto de técnicas para maximizar a quantidade e a qualidade de informações obtidas de uma testemunha. inicia-se o processo no qual as lembranças do entrevistado são recuperadas.bvspsi. 2009. p. Nesta etapa. (Ibidem. (2) explicação dos objetivos da entrevista40.org. (6) síntese44 e (7) fechamento45. envolver um questionamento sobre se o sujeito levava uma arma ou uma navalha em determinada ocasião. (Ibidem.) 44 O entrevistador faz uma síntese dos principais pontos abordados naquela interação. A entrevista cognitiva consiste numa nova forma de interrogar que possui embasamento científico na psicologia e na teoria da comunicação. provavelmente o depoimento será muito mais parecido com a versão do entrevistador do que propriamente com o fato em si. Agradecer pelo seu esforço no trabalho conjunto ali desenvolvido. espera-se que o depoente tenha o maior número de pistas possíveis à sua disposição. Deve-se evitar que a entrevista seja conduzida de maneira que se busque apenas confirmar suposições/hipóteses anteriormente criadas. O fato do indivíduo não ter conseguido se lembrar de algo num primeiro momento. Neste caso. No Brasil. sobretudo no âmbito do processo penal. Também é interessante que o entrevistador coloque-se à disposição para esclarecer eventuais dúvidas. em que se busca preencher as lacunas presentes no relato livre anteriormente produzido. Cit. 169. portanto. o que facilita a ocorrência de falsas memórias. (PERGHER. além de solicitar que seja advertido caso esteja se esquecendo de algum aspecto importante (Ibidem. Lilian Milnitsky.46 É necessário que os operadores do direito. não significa que não possa consegui-lo em uma nova tentativa. sem fazer nenhum tipo de edição baseada em julgamento da relevância daquilo que foi recordado. Isso porque. alerta que novas informações podem ser adicionadas. Esta é uma oportunidade do entrevistado conferir a precisão de sua própria recordação. atrapalhando o trabalho judicial e manchando a credibilidade do processo penal. levem em consideração os resultados obtidos pelas pesquisas científicas desenvolvidas no campo da memória humana. os interrogatórios (judiciais ou na polícia) não obedecem a um critério cientificamente comprovado na sua validade. (Ibidem. Giovanni Kuckart e STEIN. demonstram a superioridade do método da entrevista cognitiva em comparação ao tradicionalmente adotado nas recolocar-se no contexto original. p. ele é estimulado a relatar livremente tudo o que conseguiu se lembrar. pedir que o entrevistado coloque-se no lugar de outra pessoa que tenha passado pelo mesmo evento e descreva-o sob esta perspectiva. traz mais (e mais corretas) informações. utilizando as palavras do entrevistado.) 43 Baseia-se no princípio de que existem múltiplas rotas de acesso para as informações armazenadas. pois estas podem induzir a testemunha a relatar os fatos de forma distorcida. pode o entrevistador utilizar estratégias como solicitar que a situação seja relatada de trás para diante. é uma estratégia muito interessante para este momento. O entrevistador. demonstrando respeito e consideração ao entrevistado (Ibidem.) 42 É um momento de aprofundamento. O entrevistador recebe treinamento para monitorar constantemente suas hipóteses e expectativas. além de poder funcionar como uma nova tentativa de recuperação. possibilitando a recordação de um maior número de detalhes relevantes para a solução do processo. ressaltando a importância do papel ativo do entrevistado. entre outros. . maximizando a quantidade e a qualidade das informações recordadas.) 45 é importante que o entrevistador deixe o entrevistado com uma imagem positiva da entrevista.) 46 Ibidem. Op. Para tanto. o entrevistador ativa imagens mentais no entrevistado. questionando-o acerca de mais detalhes. Isso quer dizer que uma testemunha inquirida através desta técnica. Os resultados são positivos em termos de qualidade e quantidade de informações.A maior parte das pesquisas científicas sobre a entrevista cognitiva sugere que a utilização dessa técnica leva à obtenção de maior número de informações corretas em comparação aos interrogatórios habitualmente utilizados pelos policiais. principalmente se houver a necessidade futura de uma nova entrevista. atualmente. Neste caso. A partir da “recriação do contexto”. Nulla actio sine culpa (princípio da culpabilidade). Neste aspecto. Tais descobertas devem ser aplicadas aos preceitos jurídicos. centra-se o debate proposto por este artigo. Nulla poena sine crimine (princípio da retributividade). 80. Nulla culpa sine iudicio (princípio da jursdicionalidade). A3. 47 LOPES Jr. Aury. Gabriel e CATALDO NETO. Sílvio. A6. já que cientificamente embasados. atribuindo-lhes maior credibilidade. cit. Nulla lex (poenalis) sine necessitate (princípio da necessidade). no caso a neurociência e a psicologia cognitiva... exames de DNA. o processo penal brasileiro depende (quase que) exclusivamente da prova testemunhal. Nulla iniuria sine actione (princípio da materialidae). em todos os aspectos. Nullum crimen sine lege (princípio da legalidade). É preciso iniciar um diálogo interdisciplinar entre o direito (processual penal) e as demais áreas de estudo. p. Nulla acusatio sine probatione (princípio do ônus probatório). isolamento do local. com o objetivo de buscar alternativas (por exemplo. Op. VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS No Brasil. GAUER. 352-353. A2. Não é apenas um esforço pertinente. e DI GESU. 48 . A7. na obra “Derecho y Razón: Teoría del Garantismo Penal”. defende que o sistema garantista adota dez axiomas fundamentais tidos como princípios axiológicos fundamentais: A1.47 O exacerbado valor depositado no relato de uma testemunha é uma diretriz que está contraria a crescente quantidade de pesquisas e estudos realizados pela neurociência e psicologia cognitiva. Nulla probatio sine defensione (princípio do contraditório ou da defesa). qualificando a prestação jurisdicional no seu sentido democrático. Nullum iudicium sine accusatione (princípio acusatório). A4. A10. 49 FERRAJOLI. a entrevista cognitiva) que diminuam as possibilidades de sua ocorrência. existe um enorme déficit na investigação preliminar. Alfredo. colheita de digitais.Delegacias de Polícia e Poder Judiciário. mas sim totalmente necessário. Neste contexto. A consequência disso é a baixa qualidade da prova colhida sob o crivo do contraditório. em virtude da pouca utilização de provas técnicas como perícias. entre outras. motivo pelo qual os aplicadores do direito não podem ignorar as contribuições da neurociência e da psicologia cognitiva no âmbito do estudo da memória humana. Os operadores do direito tem o dever de estar cientes da existência do fenômeno das falsas memórias. Nulla necessitas sine iniuria (princípio da lesividade). p. ideal plenamente compatível com o sistema de garantias49 e o Estado Democrático de Direito. A8. VASCONCELLOS. Op. 48 Significa um modo de minimizar as chances de ocorrência de erro judiciário. A9. Cristina Carla. A5. Cit. Iván. Vol.. e DI GESU. 90-93. 2007. O olho e o espírito. 2002. Gisli. . 2006. Prefácio: inovação e interdisicplinariedade. 2007. Aury. Viver Mente e Cérebro. Direito processual e sua conformidade constitucional. I. Claudia. 2002. Crimes verdadeiros. Ruth Maria Chittó (org. IZQUIERDO. 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