SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS.1 @2003 Ministério da Saúde É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. Tiragem: 10.000 exemplares - reimpressão Edição, distribuição e informações MINISTÉRIO DA SAÜDE Coordenação - Geral de Documentação e Informação / SAA / SE Esplanada dos Ministérios, bloco G, Anexo B sala 408 Organizadores: Grupo Pela Vidda - Niterói Rua Presidente Domiciano, 150 - Ingá CEP: 24210-271 - Niterói, RJ Tel.: (21) 2719-5683 / 3793 e-mail:
[email protected] www.pelavidda-niteroi.org.br Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Profissional do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba Av. Quintino Bocaiúva s/n - Charitas CEP: 24370-001 - Niterói - RJ Tel.: (21) 3701-0190 e-mail:
[email protected] Material financiado com recursos do Projeto 914BRA59 CN-DST/AIDS e UNESCO Elaboração: Suely Broxado, Marco Aurélio Lima, Charles Weinstein e Eduardo Rocha Revisão: Suely Broxado Editoração e Diagramação: Márcio Amaral Capa: Imagem fruto de criação coletiva dos pacientes da Oficina de Artes do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Coordenação de Ana Paula Rosa. Todos os direitos autorais estão resguardados. Foto da Capa: Baby Fernandes Brasil, Ministério da Saúde Sexualidade, Aids e Saúde Mental: Outros Olhares, Novas Abordagens - 1ª Reimpressão - Ed. Brasília, Ministério da Saúde - 2003. Elaboração: Broxado, S; Lima, M.A.; Weinstein, A. C. e Rocha, E. 100 p. 1- Saúde Mental 2- Sexualidade 3- Aids I- Ministério da Saúde IIIII- Título 2 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Sumário APRESENTAÇÃO APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO CAPÍTULO CAPÍTULO I - Saúde Mental e Aids: Na Teia da História Reforma Psiquiátrica E DU ARDO D E C A R VALHO R OCHA DUARDO RV Aids: Duas Décadas. Epidemia > Pandemia > Vulnerabilidade Social. O que vem depois? UELY NTONIO S UELY B R O XADO D E O LIVEIRA , A NT ONIO C HARLES W EINSTEIN Fragmentos do Dia a Dia da Loucura.... Em uma Residência Assistida... CAPÍTULO Desvendando Sexualidade Loucura CAPÍTULO II - Desvendando a Sexualidade na Loucura Sexualidade e Loucura UELY S UELY B R O XADO D E O LIVEIRA Sexualidades & Saúde Mental: um olhar (des)institucionalizado C LAUDIO G RUBER M ANN Em um Centro de Atenção Psicossocial... Outro Dia ... CAPÍTULO CAPÍTULO III - Aids e Saúde Mental: Novos Rumos, Antigos Desafios Nov Rumos Antigos Desafios umos, Oficina de Saúde & Sexualidade: Um Novo Dispositivo de Saúde Mental em Tempos de Aids C LAUDIO G RUBER M ANN S UELY B R O XADO D E O LIVEIRA UELY Diversificando a Linguagem na Oficina de Sexualidade C LÁUDIA S IMONE DOS S ANTOS O LIVEIRA Residência... De Volta à R esidência... Ética Médica, Direitos do Paciente e Aspectos Legais do Portador do Vírus da Aids P A TRÍCIA D IEZ R IOS Aconselhamento em HIV/Aids para Pacientes Psiquiátricos: uma experiência. A NA C RISTINA M ONTEIRO N ARDA N ERY T EBET Em outro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)... SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 3 CAPÍTULO Loucura loucura CAPÍTULO IV - A Aids na Loucura (ou a loucura da Aids) “Aids e Drogas: Vulnerabilidades” P AULO R OBERTO T ELLES D IAS Noções Básicas do Tratamento da Sida/Aids J UREMA N UNES M ELLO A infecção pelo HIV e os Distúrbios Mentais M AURÍCIO D E A SSIS T OSTES Caso Clínico UELY S UELY B R O XADO D E O LIVEIRA 4 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Apresentação SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 5 6 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Introdução Em 1997, o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ) e o Grupo Pela Vidda/Niterói iniciaram uma parceria para a elaboração de um Projeto Piloto em Saúde Mental e AIDS. O fato do HPJ ser o pólo de recepção e avaliação das internações realizadas e, por responder por 80 % dessas internações o colocava em situação estratégica para desenvolver este projeto. Em 1998, com a consolidação desta parceria e financiamento da Coordenação Nacional de DST/AIDS (CN-DST/AIDS) e UNESCO, foi implantado o Projeto: Saúde Mental e AIDS. Este teve como objetivo sensibilizar profissionais do Hospital para desenvolver ações de prevenção em DST/AIDS junto aos usuários de Saúde Mental. Foram, então, implantadas Oficinas de Sexualidade nos seguintes setores: Serviço de Internação Masculina (SIM), Serviço de Internação Feminina (SIAF), Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) e Albergue. Em 2000, esta proposta se ampliou (ainda contando com o financiamento da CN-DST/AIDS e UNESCO) implantando-se no HPJ o Projeto: Intervenção e prevenção das DST/AIDS e fortalecimento da cidadania entre usuários de Serviço de Saúde Mental. Tal Projeto tinha por objetivo fortalecer as Oficinas já existentes, bem como implantá-las em outros setores: Serviço de Álcool e Drogas (SAD), Oficinas Integradas e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do Largo da Batalha. Com a experiência acumulada nestes projetos, o HPJ passa a ser referência em prevenção e assistência em DST/AIDS para usuários de Saúde Mental. Assim, através do seu Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Profissional (CEAP/HPJ), em 2001, implanta-se o Centro de Treinamento para profissionais de Serviços Psiquiátricos em Sexualidade e DST/AIDS, cujo principal objetivo é capacitar profissionais de todo o Brasil para desenvolver atividades relacionadas à prevenção das DST/AIDS, oferecimento da testagem anti-HIV com aconselhamento, assistência e tratamento do portador do vírus da AIDS, monitoramento da adesão aos antiretrovirais, em suas unidades. Este Manual é fruto dos conteúdos produzidos durante os treinamentos. Trata-se de uma coletânea de artigos que abordam as múltiplas facetas da AIDS na Saúde Mental, seus dilemas e alternativas de intervenção. Esperamos, com esta publicação, contribuir para a formação de profissionais que buscam novas formas de assistência visando, sobretudo, a melhoria da qualidade de vida dos usuários de Saúde Mental. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 7 8 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Fragmentos do dia a dia da loucura... Em uma residência assistida... Hoje propus ao grupo uma dinâmica para discutirmos sexualidade. A metodologia utilizada foi a Linha da Vida, que consiste em traçar 2 linhas : uma retratando a vida das mulheres e outra a vida dos homens. Perguntei, então, se alguém lembrava quando descobriu que tinha órgão sexual, ainda pequenos, na infância. O grupo teve dificuldade em localizar esta descoberta na infância e já começaram pela adolescência. André Luís diz que “quebrou o tabu aos 16 anos”; Vitor diz que “sentiu prazer no corpo pela primeira vez aos 15 anos”; José Maria “descobriu seu órgão sexual aos 9 anos”; Joelson diz que “aos 17 anos saiu esperma do seu corpo pela primeira vez”, relata também que teve um sonho do seu nascimento; Mariana diz que “descobriu seu órgão genital quando tinha 9 anos, quando os pêlos começaram a nascer”; Valquíria diz que “descobriu aos 13 anos”; Antônia disse que “descobriu sua vagina aos 20 anos”; Glicia refere-se que “foi aos 22 anos com seu marido” e Sara fala “que só descobriu quando adulta...” Passamos, então, a falar da adolescência e perguntei ao grupo quais eram as modificações que o corpo sofria nesta fase. Os participantes responderam : “nos homens nascem os pêlos, a voz engrossa, aparecem os músculos, o pênis fica maior e mais grosso e sente necessidade de fazer sexo. Nas mulheres nascem os seios, aparece a menstruação, e os pr oblemas problemas...” oblemas SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 9 10 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Capítulo I Saúde Mental e Aids: Na Teia da História SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 11 Os Centros de Atenção Psicossocial efor Reforma e a Refor ma Psiquiátrica Eduardo Carv Roc ocha Eduardo de Car valho Rocha* Para falar de CAPS ou NAPS1 é necessário voltar um pouco sobre a história do movimento da reforma psiquiátrica no Brasil e situar seus princípios, suas diretrizes e seus sujeitos. O movimento ou talvez os movimentos para uma reforma na assistência psiquiátrica começaram a dar seus primeiros passos nos anos 60 com as experiências de comunidades terapêuticas em alguns hospitais que passaram assim a privilegiar a tomada da palavra na instituição, tanto nos grupos operativos como nas assembléias. Era um tempo de ditadura militar e muitas dessas experiências foram interrompidas. A seguir vieram os movimentos dos trabalhadores de Saúde Mental que se mobilizaram em prol de mudanças no aparelho psiquiátrico mas também por uma reforma sanitária e pela redemocratização politica do país. Era um tempo em que se misturava anti-psiquiatria, marxismo, existencialismo, paz e amor e psicanálise. Os psicofármacos eram poucos. Pouco se acreditava nos testes psicológicos, e os estudos do funcionamento cerebral não despertavam grandes interesses naquela juventude (a maioria era de fato muito jovem). Também eram combatidos pelo establishment como comunistas e considerados partidários de uma psiquiatria política e não cientifica. Os tempos mudaram, o país se redemocratizou, elaborou uma nova constituição, e nela os principios da reforma sanitária foram afirmados, entre eles aqueles que consagravam um Sistema Único de Saúde, público e universal, e a municipalização de sua gestão. Para o setor da Saúde Mental o maior desafio estava na tarefa de reverter um modelo assistencial que se fundava nos seguintes esteios: hospitalização compulsória, instituição totais e dominadas pelo discurso psiquiátricoadministrativo da periculosidade e da curatela, privatização da assistência, e centralização na esfera federal (antigo INAMPS2 ). Esse modelo produziu a instalação de grandes hospícios acompanhando o desenvolvimento industrial e as crises das grandes cidades. Foi dessa forma que se concentrou na região sudeste a maioria dos leitos psiquiátricos do país, que por sua vez funcionavam como referência para as cidades do interior. Alguns inclusive foram sendo construídos já nas cidades periféricas (exemplos de Carmo, Paracambi, Barbacena, Rio Bonito). Também essa concentração de leitos e de hospitais gerou uma indústria da loucura isto é, um processo econômico que passou a depender dessa estrutura e a sua reforma implicaria na redistribuição de responsabilidades e de recursos . O grande motor da reforma tem sido a municipalização. É a partir dela que as cidades começaram a se ver implicadas e responsáveis pelas política assistencial a ser conduzida em seu território. Claro que estamos falando de um processo que é diversificado e heterogêneo, mas que vem acumulando nos últimos 10 anos inúmeras experiências de tratamento, cuidado, inserção social, e de formação multiprofissional que produziram um consenso político nacional que questiona e repudia os grandes hospícios e as práticas de isolamento. Ainda assim, em 2001 havia 55.000 leitos em hospitais psiquiátricos, enquanto o número de Caps atingia 266. Se esse número de Caps é pequeno, no entanto eles eram apenas 3 em 1990. Do mesmo jeito o dispêndio de recursos financeiros com as internações ainda responde por 90% do gasto da Saúde Mental, mas não se deve perder de vista que esse processo exige um tempo de implantação, de consolidação, e sobretudo de invenção Psiquiatra e psicanalista, diretor do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói(RJ) e Coordenador de Saúde Mental de Niterói. Consultor técnico para o Projeto de Saúde Mental e Aids do Ministério da Saúde. 1 Caps (Centro de Atenção Psicossocial) e Naps (Núcleo de Atenção Psicossocial) 2 Instituto Nacional de Previdência Social * 12 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. no cotidiano das comunidades. Mas afinal o que vem a ser um Caps/Naps, e qual é sua relação com a municipalização? A primeira experiência emblemática que temos notícia de um Caps/Naps foi em Santos quando por ocasião da intervenção sobre um hospital psiquiátrico (Clínica Anchieta). Ali os envolvidos naquele trabalho desconstruíram o hospital e acompanharam os pacientes vinculando-os por Naps em algumas regiões da cidade. Quando a portaria 2243 do Ministério da Saúde estabeleceu as bases para os Serviços de Saúde Mental, os Naps/Caps foram previstos como dispositivos intermediários entre a hospitalização e os ambulatórios, como lugares de passagem e de mediação entre os usuários egressos de internação e a comunidade. O objetivo que se tinha em mente era garantir um lugar de suporte múltiplo (medicamentos, acolhimento, lazer, trabalho, psicoterapias, proteção intensiva) para o paciente e sua família de forma a substituir o hospital, e evitar a burocratização que havia se instalado nos ambulatórios de psiquiatria e de saúde mental das redes estaduais e federal. Os primeiros Caps/Naps (e o que distinguia Naps de Caps era o fato dos primeiros funcionarem em caráter de 24 horas, com acolhimento noturno e nos finais de semana) surgiram como um dispositivo a mais, como mais um tipo de serviço, e destinado a um grupo específico de pacientes (psicóticos principalmente) dentre os outros existentes numa rede, tais como ambulatórios, hospitais, policlínicos, etc. A própria municipalização se incumbiu de produzir modificações nesse desenho inicial tendo em vista que em sua grande maioria não havia qualquer rede de saúde mental nos municípios, e na verdade se tratava de implantar um serviço que passasse a responder por uma assistência que até então os hospitais realizavam. Pactos entre gestores começaram a ser feitos e os repasses financeiros correspondentes propiciaram a multiplicação dos Naps/Caps, que encontram-se em expansão. Entretanto por força da ausência de outros serviços esses Caps municipais e/ou regionais se constituiram já como porta de entrada com atendimento de crise, ambulatório e atividades de atenção diária. Em alguns lugares o Caps é a unidade coordenadora das ações de saúde mental e autorizadora das internações. Essas modificações culminaram com a recente publicação da portaria 3364, que modifica aquela anterior, a 224, e institui os Caps (desaparece o nome Naps) como os dispositivos principais de uma rede territorializada de Saúde Mental. Aqui eles não são mais considerados como intermediários mas sim como substitutivos, não mais restritos aos pacientes que necessitam cuidados intensivos, mas também àqueles que demandam atenção semi-intensiva e não intensiva, isto é, o ambulatório. Os Caps se tornam assim os centros de referência, o coração de uma rede cuja capilaridade é dada pelas unidades de saúde da família, agentes comunitários, visitadores, famílias substitutivas, lares e residências terapêuticas. Essa mesma portaria institui outros Caps específicos para crianças e dependentes químicos. Mas por que incluir a assistência não- intensiva, o ambulatório tradicional, no Caps, e não mantê-los como instâncias diferentes numa rede? Qual é a crítica feita aos ambulatórios? Para abordar essa questão será necessário considerar a ética que orienta o Caps e aquela outra que geralmente comparece nos ambulatórios. Os ambulatórios são serviços organizados em torno de um movimento centrípeto da clientela que é encaminhada, recepcionada, incluída em programas e agendada para retorno. Isso pressupõe usuários motivados e orientados suficientemente para pedir e sustentar um programa de tratamento. Os pacientes vão até os serviços e quando não vão, salvo raras exceções eles são esquecidos, quando não excluídos dos programas e entram nas estatísticas de “abandono”. Além disso as situações emergenciais que suscitam atendimentos mais intensivos ficam de fora pois os agendamentos (mensais 3 4 Portaria no.224 , de 29 de janeiro de 1992 Portaria no.336, de 19 de fevereiro de 2002 do Ministério da Saúde SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 13 ou diários[as filas]) não deixam disponível qualquer tempo para essas situações. Dessa forma enquanto estão estabilizados se mantêm no ambulatório, mas quando surtam são encaminhados ou vão espontâneamente para as emergências e para os hospitais. Esse circuito gera uma multiplicidade de vínculos que em muitos casos é desorientadora para o paciente e para a família, quando não conflitiva. É claro que numa rede integrada e articulada, onde os técnicos se encontrem e se falem com freqüência muitos problemas podem ser contornados, mas essa situação é uma exceção. Os Caps foram concebidos justamente para funcionarem de uma forma centrífuga, isto é, eles se constituem como um ponto de referência, de encontro para a realização de muitas coisas (atendimentos, oficinas, reuniões) mas também como ponto de aglutinação das responsabilidades de acompanhamento que é feito aos usuários, buscando saber o que está acontecendo mesmo quando ele não vem ao serviço, procurando mediar inserções sociais na comunidade, e viabilizando de fato uma porta aberta para as situações mais agudas. Os Caps são ao mesmo tempo um procedimento ambulatorial de alta complexidade (e é dessa forma que passarão a ser incluídos a partir da regulamentação da nova portaria), constituem serviços diferenciados numa rede de atenção em saúde mental, e dizem respeito também a uma ética de trabalho em Saúde Mental marcada pela implicação dos envolvidos com compromissos de escuta subjetiva, mediação possível de laços sociais e desburocratização das respostas, reconhecendo a urgência de certas intervenções frente à fragilidade social daqueles que precisam assistir. É um campo de invenção orientada dentro de um território. O processo de reforma psiquiátrica no Brasil como vimos é bastante recente, pois 10 anos constituem apenas o tempo de fundação, de lançamento das pedras fundamentais. Há consenso e mobilização da sociedade mas as respostas no plano politico-administrativo são lentas e às vezes desanimadoras. O próprio processo de municipalização do SUS onerou de forma maciça os municípios sem as contra-partidas financeiras necessárias à viabilização das ações. Muitos ainda relegam a plano secundário o planejamento das ações em saúde mental já que esta não lhes causa problemas maiores pois há uma oferta de leitos ao SUS que se mantém. Será sempre importante advertir ao gestor que esta tranquilidade é superficial pois ela tem um alto custo financeiro (cerca de R$ 900,00/ mês para cada paciente) que poderia ser revertido para outras ações de saúde mental na comunidade, e um custo social inapreciável de exclusão, que se hoje está dirigida principalmente para os psicóticos, a tendência é que se estenda para os usuários e dependentes de drogas se não houver uma resposta mais inclusiva para essas situações. Os Caps estão destinados a se constituírem nesses serviços mas para tal é fundamental investimento público na contratação de pessoal, formação e supervisão, diversificação e desburocratização no funcionamento das equipes. Até aqui falamos da reforma psiquiátrica e dos Caps como resposta e instrumento da mesma na comunidade. Entretanto há uma população de pacientes internados em regime de longa permanência provocada tanto por fatores clínicos quanto sociais. São milhares de pacientes mantidos hospitalizados por absoluta falta de alternativas de suporte social comunitário (não há vínculos familiares mantidos, ou os vínculos são precários e de díficil aceitação). Nesses casos supõe-se que o Estado deva assumir a responsabilidade. Até aqui isso tem sido feito pagando às clínicas e/ou hospitais psiquiátricos diárias de internação e sem exigir um projeto terapêutico e de assistência diferenciado. Em 2000 foi editada a por taria ministerial 5 que dá as diretrizes gerais para a implantação das Residências Terapêuticas que deverão ser financiadas através do remanejamento das verbas das AIHs (autorização para internação hospitalar) e poderão ser implantadas em parcerias com associações de usuários e familiares e outras organizações não-governamentais. Já há várias experiências com 5 Portaria no.106, de 11 de fevereiro de 2000. 14 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Residências Terapêuticas em curso, e o importante é que as mesmas venham a se integrar aos Caps em seu território. Por último chamo atenção para o Programa de Saúde da Família e Agentes Comunitários que vem ganhando importância e investimentos nos últimos anos. Já há experiências de intervenções na Saúde Mental nesses programas, e em alguns municípios procura-se integrar as ações dos Caps com aquelas dos agentes comunitários e dos médicos de família, envolvendo esses agentes na assistência específica e trazendo para os Caps o desafio de enfrentar outras demandas que não aquelas já cristalizadas nas formas de adoecimento que chegam aos hospitais e aos ambulatórios (violência doméstica, delinquência infantil e juvenil, famílias sem pais, desemprego, o emprego no tráfico das drogas, a gravidez na adolescência, a morte violenta dos jovens). Por todo esse contexto é impensável que os profissionais de Saúde Mental possam ser manter à margem dos fatos da epidemia de AIDS. O fato é que as próprias condições de vida e da subjetividade dos sujeitos usuários dos serviços psiquiátricos constituem em si mesmas situações de vulnerabilidade à infecção pelo vírus. E o que se faz com isso? O que observamos é uma grande dificuldade em abordar essas questões com usuários e seus familiares sob várias justificativas. O que importa é reafirmar que não há justificativa para não abordar, e que os Caps por tudo que disse sobre sua maneira de funcionar, constituem também os lugares privilegiados para o desencadeamento de ações de prevenção, aconselhamento e tratamento de seus usuários HIV positivos ou com AIDS. É isso que justifica o esforço do Ministério da Saúde em priorizar a formação e o conseqüente compromisso dessas equipes em desenvolver atividades que permitam aos usuários não só se protegerem da infecção, mas também serem acompanhados e orientados em seus tratamentos específicos para a AIDS do mesmo jeito que o são para as outras situações clínicas. Na ética da reforma é fundamental que os serviços estejam à mão, ao lado, acessíveis para os momentos críticos, e a AIDS constitui um desses momentos e não há porque transferir essa responsabilidade para outros serviços mas sim incorporar tecnologia de abordagem e de tratamento aos próprios Caps. LEITURAS RECOMENDADAS DELGADO,P.G, VENANCIO. A. T. e LEAL, E. M.(org). O Campo da Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro, Instituto FrancoBasaglia/ Te corá Editora, 1997. FIGUEIREDO,A C.e SILVA FILHO, J.F. Ética e Saúde Mental. Rio de Janeiro, Topbooks, 1996. MINISTERIO DA SAUDE. Caderno de Textos para III Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasilia, novembro de 2001. MINISTERIO DA SAÚDE. Manual de Assistência Psiquiátrica em AIH/AIDS. Brasilia, 2000. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Legislação em Saúde Mental. Brasilia, 2000. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 15 Aids: Duas Décadas ulnera Pandemia Epidemia > Pandemia > Vulner a bilidade Social O que vem depois? Suely Broxado de Oliveira * einstein* Char les Weinstein * A epidemia da Aids completou 22 anos este ano. Desde então muitas descober tas aconteceram, mas também muitas perdas se seguiram. Neste artigo, primeiramente procuraremos mostrar um resumo dos principais fatos que marcaram a epidemia no mundo e no Brasil: desde a notificação de casos de uma doença rara que só atingia homossexuais, em 1981- Câncer Gay, a um dos mais graves e complexos problemas de saúde pública de nossos dias. As informações aqui contidas foram colhidas a partir de uma série de cronologias surgidas no ano de 2001, fruto da ação de Organizações não Governamentais - ONGS, que ao longo destes últimos vinte anos ajudaram a tecer o atual tecido social brasileiro. À este tecido, a Aids, primeiramente foi-lhe apresentada como uma Epidemia, onde os doentes não viviam mais de dois anos após desenvolver a doença. Após melhor estudar o mecanismo de infecção do vírus, os pesquisadores desenvolveram duas categorias de drogas que evitam que o vírus se multiplique: os inibidores de uma proteína chamada transcriptase reversa e inibidores de protease. Porém, ao mesmo tempo em que a Ciência avançava, a Epidemia também. Saímos do confortável e preconceituoso status de uma doença que atingia a um determinado grupo de risco, para uma desconfortante, porém real situação de comportamento de risco, em que qualquer pessoa pode adoecer. Atualmente, devido a mudança do perfil da epidemia de Aids, percebemos que ela tem se “interiorizado” i.e.: no princípio, ao olharmos para o mapa da infecção cruzando o número de novos casos e a localização geográfica, a Aids, tomava conta de toda a faixa litorânea Brasileira com ênfase nas grandes cidades (acima de 400.000 habitantes)1 , atualmente, este mesmo mapa demonstra que mais da metade dos 5.000 municípios brasileiros tem casos de Aids, e que, ela tem demonstrado um menor crescimento urbano relativo, pois num país em que pululam desigualdades – sociais, de renda, de acesso a bens e serviços de saúde - aferimos que quanto menor o município (com menos de 5.000 habitantes), maior o aclive destas taxas. O que reflete a noção de Vulnerabilidade Social, objeto deste texto. Grandes desafios A luta contra a Aids está longe do fim. A Organização Mundial de Saúde - OMS estima que mais de 40 milhões de pessoas estejam infectadas pelo HIV no mundo e milhares de novas infecções acontecem a cada dia. Assistente Social do Instituto de Psiquiatria / Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB / UFRJ. Mestre em Ciências da Saúde pelo IPUB / UFRJ. Coordenadora da “Oficina de Saúde & Sexualidade” do IPUB / UFRJ. Coordenadora do Projeto Saúde Mental e AIDS da CN – DST / AIDS do Ministério da Saúde. ** Psicólogo do Instituto de Psiquiatria / Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB / UFRJ. Presidente do Conselho de Curadores do Grupo Pela Vidda/Niterói, Assessor do Projeto: Centro de Treinamento para Profissionais de Serviços Psiquiátricos em Sexualidade e DST/AIDS - MS 1 Fonte: Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16 (Sup-01) 7-19,2000. In Disseminação da Aids no Brasil, no período de 1987-1996. Szwarcald, Célia et all.] * 16 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Quando a epidemia de Aids apareceu, alguns pesquisadores disseram que uma vacina contra HIV seria desenvolvida dentro de pouco tempo. Duas décadas depois, a vacina ainda não existe. Agora a pesquisa é por vacinas que poderão não só prevenir a infecção como também ajudar a tratar dos já infectados, através de estimulação de seus sistemas imunológicos – chamadas vacinas terapêuticas. Túnel do Tempo O objetivo desta cronologia é de contribuir para uma possível compreensão das diferentes dimensões desta epidemia. Caso haja interesse do leitor, organizações estrangeiras como a UNAids2 (Joint United Nations Programme on HIV/Aids) e AVERT 3 (Aids Vírus Education and Research Trust) possuem em suas respectivas páginas eletrônicas, cronologias que podem ser consultadas. No caso de uma pesquisa de âmbito nacional, sugerimos o site da Agência de Comunicação Imediata.4 1980 · Ano em que o Boletim Epidemiológico reporta o primeiro caso de Aids no Brasil e o primeiro óbito, paciente masculino e forma de infecção via sexual. 1981 · Primeiros casos de Pneumonia por Pneumocystis Carini e Sarcoma de Kaposi, um Câncer raro na Califórnia-LA o CDC, publica notícia sobre estes dois casos sendo então denominada: GRID – Gay Related Infection Disease , logo chamada de Câncer Gay pela imprensa. 1982 · A nova síndrome foi relacionada ao sangue e passa a ser identificada não só em Gays, mas em mulheres, homens heteros, usuários de drogas, hemofílicos, recepetores de transfusão de sangue e bebês. Foi então renomeada para “Aids” e o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) já a classifica como uma epidemia; · 14 Países relatam ter casos de Aids; · 2 casos relatados em SP. 1983 · Luc Montaigner – Instituto Pasteur, isola um retrovirus – LAV (Virus associado a linfodenopatia), que seria logo a seguir identificado como o causador da Aids; · 3.000 casos de infecção nos EUA, com um total de 1.283 óbitos; · No dia 12 de junho sai no Jornal do Brasil a 1ª notícia de caso de Aids no Brasil: “Brasil registra dois casos de câncer gay”; · Em setembro, foi organizado o Primeiro Programa de Controle e Prevenção da Aids do Brasil, no Estado de São Paulo, tendo a frente o Dr. Paulo Roberto Teixeira, atual Coordenador da CNDST/Aids – Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis / Aids. 1984 · O Dr. Robert Gallo,(Instituto Nacional de Câncer - EUA) isola um vírus chamado HTLV-III, UNAIDS: http://www.unaids.org , acessar “Fact Sheets, link For Journalists” AVERT: http://www.avert.org 4 Agência de Comunicação Imediata: http://www.imediata.com acessar InfoAids, link “Túnel do Tempo” 2 3 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 17 que causava a Aids, dois anos depois foi determinado que o LAV e o HTLV-III eram o mesmo vírus; um Comitê Internacional dá um novo nome ao vírus: HIV; · Autoridades americanas anunciam a possibilidade de uma vacina para testagem em humanos em dois anos; · Morre, Gaetem Dugas, conhecido pelos pesquisadores como o paciente Zero. Comissário de vôo de origem canadense – que manteve relações sexuais com vários homens infectados pela Aids no princípio da epidemia; · O governo americano acreditava que fechando as saunas gays da Cidade de São Francisco, poderia conter a epidemia, Já são mais de 7.000 americanos infectados ao final deste ano. 1985 · Chega ao mercado americano um teste para diagnóstico do HIV que poderia ser utilizado na varredura dos bancos de sangue. Devido ao seu alto custo, infelizmente foi necessária a perda de várias vidas até que se passasse a utilizá-lo em larga escala; · Morre Rock Hudson; · Ocorre a I Conferência Internacional de Aids em Atlanta, 51 países anunciam ter casos de Aids entre sua população; · 1º caso de transmissão vertical (Mãe-Bebê) de Aids, no Brasil; · Surge o GAPA-SP, Grupo de Apoio e Prevenção à Aids, primeira Organização Não Governamental de luta contra a Aids. 1986 · A OMS, lança uma ação global contra a Aids; · II Conferência Internacional de Aids – Paris, primeiras experiências iniciais com AZT, neste mesmo ano, o FDA5 aprova o seu uso, mas o impacto sobre as mortes dos doentes é pequena; · Fundação da ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, por Herbert Daniel; · Criação do Programa Nacional de DST/Aids – MS, tornando obrigatória a notificação de novos casos de Aids as autoridades de saúde. 1987 · 62.811 casos de Aids em 127 países são relatados a OMS; · Porém a própria OMS estima entre 100.000 a 150.00 a realidade da epidemia; 1988 · Instituído 1º de Dezembro6 como o Dia Mundial de Luta contra a Aids, com o tema: “Junte-se ao esforço Mundial”; · Morrem os irmãos de Betinho – Henfil e Chico Mário; · Criação do Sistema Único de Saúde (SUS), Constituição Federal; · Criação do Primeiro Centro de Orientação e Apoio Sorológico (COAS), atual Centro de Testagem e Aconselhamento. Federal Drug Administration O estabelecimento do dia 1º de dezembro como Dia Mundial de luta contra a Aids, foi um dos vários desdobramentos de um encontro, que aconteceu em Londres, em 1988, e que reuniu ministros de saúde e representantes de 148 países – http://www.avert.org , seção: The History of Aids. 5 6 18 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 1989 · Surgem novas drogas para tratamento das infecções oportunistas; · O FDA anuncia um novo antiretroviral: o DDI, indicado para pacientes com intolerância ao AZT; · Fundação do Grupo Pela Vidda –Valorização Integração e Dignidade dos Doentes de Aids, por Betinho. 1990 · Mais de 307.000 novos casos de Aids são reportados à OMS, estimativas porém, falam em quase 1 milhão de pessoas; · Morre Cazuza; · No 1º de Dezembro o tema escolhido foi: Aids e Mulheres. 1991 · Autorizado pelo FDA o terceiro antiretroviral - ddC, indicado para pacientes com intolerância ao AZT, ficando desta forma evidente a limitação desta droga; · Realização do I Encontro Nacional de Pessoas Vivendo com Aids, pelo Grupo Pela Vidda e ABIA. Neste encontro que reuniu mais de 160 pessoas, discutiu-se a Terceira Epidemia , ou seja as repercussões sociais, jurídicas e éticas provocadas pela epidemia de Aids; · ONGs brasileiras protestam contra a política do então presidente: Fernando Collor de Melo. “Se você não se cuidar a Aids vai te pegar”. · O “Lacinho Vermelho” torna-se o símbolo mundial de Luta contra a Aids7. 1992 · Inicia-se o combate à epidemia de Aids utilizando-se a combinação de dois antiretrovirais, o ddC + AZT, proposta terapêutica precursora do Coquetel; · O Conselho Federal de Medicina aprova uma resolução que proíbe a realização compulsória de exames anti-HIV e, impediu o médico de revelar a sorologia sem autorização prévia do paciente. 1993 · Pesquisa Européia – Estudo Concorde, aponta que AZT não é 100% eficiente para portadores de HIV que ainda não desenvolveram os sintomas de infecção; · 3.700.000 novas infecções, sendo mais de 10.000 por dia – OMS; · Morre Rudolf Nureyev. 1994 · Tom Hanks ganha um Oscar por sua atuação em Philadelphia; · Novos medicamentos surgem para atuar em novas frentes, os inibidores da protease8 ; Ver: http://www.pelavidda-niteroi.org.br , a história do Lacinho Vermelho Os inibidores de Protease atacam o vírus num estágio posterior ao seu desenvolvimento. Essas drogas evitem que esta proteína a Protease, corte pedaços do vírus, sem estas partes, o HIV não pode infectar outras células. 9 Os recursos deste Convênio, finalizado em 1998, foi de 250 milhões de Dólares, 160 milhões de empréstimo do Banco Mundial e 90 milhões como contrapartida nacional. 7 8 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 19 · ONGs disputam liberação de verbas para os projetos a serem financiados pelo governo federal, conhecido como Aids I9. 1995 · Aprovado pelo FDA, o Saquinavir antiretroviral inibidor da protease; · A Coordenação Nacional de DST/Aids, já possui registro de mais de 80.000 casos de Aids no Brasil; · Nascimento do Plano Nacional de Cooperação Técnica Horizontal entre países da América Latina. 1996 · Transformação do Programa Global de Aids – OMS, pelo Programa Conjunto das Nações Unidas em HIV/Aids –UNAids10; · Nasce oficialmente a terapêutica conhecida como coquetel, usando o tríplice esquema de antiretrovirais, dois inibidores de transcriptase reversa e um de protease. Crescendo desta forma o otimismo de que o HIV poderia ser controlado através do coquetel; · Editada a Resolução 196, pelo Conselho Nacional de Saúde, que estabelece regras para experimentos com seres humanos, dificultando assim a realização de experimentos antiéticos com pessoas soropositivas; · Aprovada a Lei 9.313, obrigando o SUS a distribuir gratuitamente remédios para HIV/ Aids para todos os brasileiros infectados pelo HIV; · O movimento de Luta contra a Aids consegue uma vaga no Conselho Nacional de Saúde. 1997 · Descoberta de santuários para o HIV, locais onde o HIV se esconde, jogando por terra a possibilidade de eliminação do organismo através do uso continuado de coquetéis; · A UNAids alarmeia o Mundo ao prever 30.000.000 pessoas infectadas e 16.000 novos casos de Aids por dia; · Realização do VII Encontro Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids – Rio de Janeiro, com mais de 1.000 pessoas, contando com a presença do Dr. Luc Montaigner. 1998 · Morre Jonhnatan Mann, idealizador e diretor da UNAids; · Começa nos EUA o primeiro teste de um produto candidato a vacina anti-HIV/Aids (em 1984 o governo americano previu que em 2 anos, no ano de 1986, já haveria uma vacina Anti-HIV/ Aids, há, portanto 12 anos de atraso deste cronograma); · Assinatura de dezembro do Acordo de Empréstimo com o Banco Mundial para o Segundo Projeto de Controle da Aids e DST, conhecido como Aids II11. 1999 Em 1996, o programa global de Aids, deixou de ser gerenciado somente pela OMS e passou a ser integrado, e gerenciado por outras agências das Nações Unidas. A atual composição da UNAIDS envolve as seguintes agências: Banco Mundial, Escritório das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas e Prevenção ao Crime, Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), UNESCO, OMS e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) 11 O valor deste projeto, que finaliza este ano 2002, é de 300 milhões de dólares, 165 milhões do Banco Mundial e 135 de contra-partida nacional. 10 20 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. · O Governo Federal divulga nota afirmando que houve redução em 50% nas mortes, e a redução em 80% nas infecções oportunistas em função do uso do coquetel; · Início da produção nacional de 3TC e da combinação AZT+3TC; · 350 projetos financiados pelo governo em 1 ano; · O Ministério da Saúde gasta 336 milhões de dólares com a compra e distribuição de antiretrovirais. 2000 · Ministério da Fazenda ameaça cortes nas verbas do Ministério da Saúde! As ONGs protestam e conseguem reverter o quadro; · No período de 1995-2000, em virtude da administração dos antiretrovirais, a mortalidade por Aids cai 54%, no município de São Paulo e 73% no município do Rio de Janeiro; · O Minstério da Saúde estima que entre 1997 e 2000, por causa da utilização dos antiretrovirais, o SUS poupou 677 milhões de Dólares em internações e tratamento das infecções oportunistas em pessoas com HIV/Aids; · Neste ano, o Ministério da saúde gastou 303 milhões de Dólares com a compra dos antiretrovirais, atendendo a 87.500 brasileiros. 2001 · A UNAids estima em 40 milhões o número de pessoas infectadas no mundo e 26 milhões somente na África, com estimativa de 3 milhões de mortes; · A “Declaration of Commitment on HIV/Aids” , resultado da Sessão especial da Assembléia Geral da ONU sobre HIV/Aids, menciona que 90% dos casos de Aids estão nos países em desenvolvimento; · Lei de patentes – Brasil X USA, o M.S. ameaça quebrar a patente dos medicamentos Nelfinavir, fabricado pelo Laboratório Roche e Efavirenz fabricado pela Merck, após muita negociação, estes laboratórios concordam em abaixar os preços destes medicamentos; · O Ministério da Saúde estima gastar 422 milhões de Dólares com a compra de antiretrovirais, prevendo atingir 105.595 brasileiros; · Segundo dados do Boletim epidemiológico de dezembro de 2001, são estes os números da Aids no Brasil: · 210.447 casos de Aids acumulados de 1980 até junho de 2001; · 155.792 homens; · 54.660 mulheres; · Transmissão sexual corresponde a 67% dos casos; · Estimativa de 597 mil pessoas infectadas pelo HIV. 2002 · Mais de metades dos cerca de 5.700 municípios têm casos de Aids; · A Aids, atinge de diferentes formas grupos populacionais diferentes, fala-se de pauperização da Aids num país com desigualdades de renda, educação e acesso a bens e serviços de saúde; · No início a epidemia se apresentava urbana, i.e. com predileção dos grandes centros, atualmente com o menor crescimento relativo, quanto menor o município (com menos de 5.000 habitantes), maior o aclive das taxas; · Maior aumento relativo entre as mulheres; · Entre homens, no sudeste houve desaceleração da curva de infecção, porém na Região SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 21 Sul, houve aumento da infecção indepentende do sexo; · Os municípios pequenos têm as menores razões entre sexos, pois a transmissão predominante é por via heterossexual; · As transmissões por via homossexual e bissexual continuam a existir, porém ela diminui face a transmissão heterossexual; · Nos Municípios médios (entre 200.000 a 500.000 Hab.) prevalecem, a transmissão UDI12 ; · A Aids, é ainda urbana, mas há sinais de expansão para o rural, evidenciando assim o caráter regional; transmissão heterossexual atual; · O motor da dinâmica da epidemia, aumenta entre as mulheres, a transmissão se confunde com os hábitos da população em geral; · Nesta segunda fase da epidemia, (a interiorização de novos casos) se apresenta saturada em segmentos específicos de alto risco e apontando desta forma a expansão para pessoas com padrões comportamentais considerados de baixo risco, o que leva a idéia de vulnerabilidade social que se traduz pela falta de: · Educação; · Ocupação / mercado de trabalho; · Cuidados de saúde e; · Momento social. Diante da nova configuração da epidemia, que fatores levam os usuários de Saúde Mental estar mais vulneráveis ao HIV? Com a mudança do perfil da epidemia no Brasil e no mundo, novas demandas são colocadas em relação às abordagens preventivas e assistenciais. Ao contrário do passado, onde apenas alguns grupos eram identificados como sendo de risco para contrair o HIV, hoje a Aids está cada vez mais associada às mulheres, de baixa renda e escolaridade, em idade reprodutiva, de comportamento heterossexual. Esta nova configuração da epidemia revela que não existem mais populações de risco, mas um conjunto de fatores que levam pessoas a contrair o vírus. Nesta perspectiva, os fatores de riscos estão diretamente relacionados a problemas estruturais subjetivos e objetivos que tornam a população em geral mais exposta ao HIV. São eles: a pobreza, a violência, a baixa escolaridade, iniqüidade de gênero, a falta de acesso aos serviços de saúde entre outros. Foi a partir dessa nova concepção que a noção de vulnerabilidade vem sendo utilizada no sentido de aperfeiçoar estratégias de prevenção do HIV/Aids. Assim, ela não se limita apenas a identificar aqueles que têm alguma chance de se expor ao HIV, mas fornece elementos para avaliar objetivamente as diversas possibilidades que qualquer pessoa tem de se contaminar, considerando certas características individuais e sociais, que possam estar diretamente associadas a maior exposição e menor chance de proteção diante da doença. A epidemia da Aids tem trazido novos desafios não só para o meio acadêmico, mas para a sociedade como um todo. Enfrentá-la não requer apenas uma ação individual, mas antes de tudo uma profunda transformação social. Os fatores relacionados à vulnerabilidade como já vimos, estão estreitamente ligados aos aspectos sócio-políticos e culturais e por isso, se as estruturas de desigualdade social continuarem existindo, a disseminação da infecção pelo HIV e Aids continuará - e continuará seguindo as fissuras e falhas criadas pela opressão, preconceito e discriminação social e econômica. (PARKER, 1994:20) (PARKER, Vejamos, então, que características tornam os usuários dos serviços de saúde mental mais 12 UDI – Usuários de Dorgas Injetáveis. 22 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. vulneráveis à Aids. Algumas situações particulares de pessoas com doença mental grave pode aumentar seus riscos de exposição ao HIV. Certos aspectos da doença mental podem contribuir para o desenvolvimento de comportamentos de risco, tais como: a dificuldade em estabelecer uniões estáveis; encontrar-se social e economicamente em desvantagem; ser vítima de abuso sexual; estar com o juízo crítico prejudicado, principalmente nos surtos psicóticos; hiperssexualidade; impulsividade e baixa autoestima. Esses fatores conjugados com as hospitalizações freqüentes, podem deixar os usuários dos serviços de saúde mental ainda mais vulneráveis ao HIV. Porque se sabe que as re-hospitalizações favorecem a quebra dos relacionamentos sociais e afetivos, o que pode levar os usuários a tornaremse mais expostos a parceiros desconhecidos. Somando-se a isso, extensos períodos de hospitalização em enfermarias divididas por sexo, podem favorecer a atividade sexual entre pessoas do mesmo sexo, especialmente entre homens. Algumas situações de risco não são únicas apenas para pessoas com problema mental grave mas podem ser vivenciadas mais freqüentemente por elas. A prática sexual com parceiros desconhecidos, por exemplo, diminui a probabilidade de conhecer seus status de HIV. Outra experiência associada com risco de HIV que está começando a ser apreciada é a vitimização sexual, a qual aumenta a probabilidade de intercurso desprotegido e tem mostrado ser comum entre certos grupos de pacientes internados. O risco para Aids pode não estar exclusivamente relacionado à doença mental, mas muitos fatores mediam o risco de contrair o HIV. Poderia ser um engano considerar pessoas com doença mental grave como um grupo com riscos homogêneos. Na realidade, essas pessoas formam um grupo heterogêneo, em que fatores cultural, social, étnico e outros - incluindo suas condições de vida - podem desempenhar um papel importante na determinação dos comportamentos de risco e práticas seguras. BIBLIOGRAFIA AYRES, JRCM. Vulnerabilidade e avaliação de ações preventivas. São Paulo: Casa de Edição, 1996. COURNOS, F. et al. HIV Seroprevalence among patients admitted to two psychiatric hospitals. Am J Psychiatry, 148(9):1225-1230, 1991. Cadernos Pela Vidda, São Paulo. In Vinte Anos de Epidemia. Ano XI, Nº 34 Agosto 2001. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(Sup-01) 7-19,2000. In Disseminação da Aids no Brasil, no período de 1987-1996. Szwarcald, Célia et all. JOFFE, H. “Eu não”, “o meu grupo não”: representações sociais transculturais da Aids. In: GUARESCHI, PA, JOVCHELOVITCH, S. Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, p. 297-323, 1994. GALVÃO, J. 1980 – 2001: Uma Cronologia da Epidemia de HIV/Aids no Brasil e no Mundo – Rio de Janeiro ABIA, 2002. KELLY, JA et al. Aids/HIV risk behavior among the chronic mentally ill. Am J Psychiatry, 149(7):886-889, 1992. PARKER, RG. “ A construção da Solidariedade: Aids Sexualidade é Política no Brasil.” Rio de Janeiro: Rlume Dumará: ABIA: IMS/UERJ, 1994. Histária Social da Aids Nº03. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 23 24 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Em um Centro de Atenção Psicossocial... Pedi que as pessoas falassem das práticas sexuais que conheciam para que pudéssemos avaliar quais dessas práticas eram de risco e quais as que não eram de risco. José Ricardo começou a falar: sexo oral, sexo anal e sexo normal. Perguntei então o que significava sexo normal. Ele disse que era o sexo pênis na vagina. Jacira então fala que conhece outra prática, mas aí a identifica como sexo oral, e diz: “eu ia falar aquela que a mulher chupa o homem e o homem chupa a mulher, mas ele já falou.” Sérgio começa a rir, e como sempre se mostra pueril a cada intervenção feita. Mais uma vez chamo sua atenção para a nossa proposta de trabalho. Rivaldo diz que existe o sexo mental. Pergunto o que é sexo mental. Ele diz que: “é aquele que a pessoa às vezes sente vontade de transar com alguém, mas não consegue, ou não pode, mais aí ele se satisfaz apenas pensando como seria transar com aquela pessoa.” Pergunto ao grupo se eles identificam isto com alguma coisa, então Melissa diz : “Isso é desejo sexual. Que tudo é desejo, que sexo só acontece se existe desejo.” O grupo continua complementando com outras formas de sexo: masturbação, beijo na boca, beijo no corpo inteiro, fazer amor por telepatia, fazer sexo olhando uma fotografia e se auto satisfazer. Jacira fala que às vezes só olhando um casal numa foto transando pode chegar a gozar. José Ricardo pondera que se auto - satisfazer é muito solitário, não acha isso legal. Já as mulheres acham que beijo na boca é muito bom, e que às vezes nem é preciso transar, que um bom beijo pode levar ao orgasmo. José Ricardo pondera que depende de quem dá o beijo. Alguns homens concordam, mas a maioria acha que sexo é transar mesmo, pênis na vagina. As mulheres voltam a ponderar que o olhar é fundamental, que às vezes só o olhar desperta o desejo sexual. Comento então as falas, dizendo que isso é sexualidade, exatamente o que vimos trabalhando durante os grupos passados. Que existem várias formas de se sentir prazer e desejo, que a sexualidade não se restringe a relação sexual, isto é, a penetração. Rui então diz que :“Sexo é radical, que é uma coisa que agente não tem como escapar, que é uma coisa normal, que acontece na vida de todo mundo e que agente não pode evitar”. Melissa coloca que hoje em dia o sexo está muito indiscreto, e que isso não é bom. Que antigamente havia mais carinho e as pessoas se conheciam melhor para poder transar, e que hoje mau se conhecem e querem ir logo transando. Ela fala que não gosta disso, prefere primeiro conhecer, para depois transar. Cremilda diz que para ela sexo não é tudo. E diz que já teve homens com quem ela se dava muito bem na cama, mas no dia a dia não era compreendida e brigava muito. Que antes do sexo ela vê o caráter e a personalidade do homem, isso para ela é mais importante, mesmo que não se de bem com ele na cama. Disse que já teve homens com quem não se dava bem na cama, que não se sentia satisfeita, mas que se dava bem no relacionamento do dia a dia. Já aconteceu também de estar com um homem na cama e ter que se masturbar para se satisfazer. E define: “O sexo é uma química, é coisa de pele, é carinho, não é só transar”. Jacira, então, diz que ela não precisa se masturbar, mas que ele pode masturbá-la e isso dar muito prazer. Outras mulheres se manifestaram dizendo que o homem não saber masturbar a mulher, ele só sabe meter. Peço que os homens fiquem atentos no que as mulheres estão falando, pois o que observamos no dia a dia, é uma insatisfação sexual feminina, pelo fato dos homens estarem preocupados com o seu próprio prazer, desconsiderando o prazer da mulher. Que esta questão é cultural, e que nós SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 25 desde pequenos aprendemos que homem é para ser satisfeito, nos seus desejos e impulsos sexuais, e as mulheres para satisfazer. Rivaldo intervém dizendo “Que o beijo, é o gesto de carinho mais fino do mundo, que beijar uma mulher, acariciar sua pele com os lábios é o carinho mais fino do mundo”. Rui então diz: “que sexo na realidade é pênis e vagina, que sexo é violento.” Neste momento Cristina diz, que ele fala isto porque é tarado, que mulher nenhuma gosta de violência. Rui continua dizendo que “quando a masculinidade aflora, o homem fica violento, e faz sexo de maneira violenta, e que a violência sexual é prazerosa e que a mulher gosta de sentir dor, isto dá prazer para ela e satisfaz o homem.” Neste momento as mulheres se colocam, e indignadas dizem que isso não tem nada haver, que elas não gostam de sentir dor, que isso é invenção do homem para se satisfazer. José Ricardo pede a palavra e diz que ele gostaria de falar de uma tara que ele tem. Que ele gosta de fazer sexo anal com mulheres e gosta que as mulheres façam sexo anal consigo, com um consolo, e pergunta se isso é homossexualismo. O grupo se manifesta e claramente há uma tomada de posição de homens e mulheres de forma bem diferenciada. Todos os homens, com exceção do Pedro, dizem que isso é homossexualismo sim, e as mulheres já identificam isso como erotismo, não vêm nada demais que o homem sinta vontade de ser penetrado por uma mulher, já que isso lhe dá prazer. Pedro, então pondera que homossexualismo é uma prática sexual onde 2 pessoas do mesmo sexo estão envolvidas, já no caso de José Ricardo isso não acontece, pois ele sente prazer em ser penetrado por uma mulher... 26 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Capítulo II Desvendando Sexualidade Loucura Desvendando a Sexualidade na Loucura SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 27 28 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Sexualidade e Loucur a Sexualidade Loucura Suely Broxado de Oliveira * Segundo BIRMAN (1980), desde o surgimento da Psiquiatria Clássica, a sexualidade dos doentes mentais tem sido vista como uma função biológica, sendo tomada apenas pelo ponto de vista da reprodução da espécie. Desconsidera-se a existência de qualquer sentimento ou emoção que possam advir de um relacionamento sexual tido como normal. Assim, o desejo sexual do doente mental é desvalorizado e esvaziado na sua singularidade, tratado como uma manifestação de enfermidade mental. Nesta perspectiva, os doentes mentais seriam incapazes de por si só regular suas paixões e seus afetos. Seriam, por isso, levados a cometer atos anti-sociais e antinormativos, que os impediriam de se integrar na rede de relações sociais, visto que é através dos afetos que as ligações interhumanas se fazem e se desfazem ao longo da vida. Os doentes mentais estariam à margem das normas morais que estabelecem as relações interpessoais, que por sua vez regulam as proximidades e as distâncias entre os indivíduos, determinando o permitido e o interdito. Como, então, a Instituição Psiquiátrica vai lidar com a sexualidade do doente mental? Segundo BIRMAN e SERRA (1988), a sexualidade do doente mental nunca é considerada no espaço institucional. Recebendo uma marca negativa, ela será caracterizada como uma anomalia. Desdobrando-se numa precisa designação patológica, ela é desvalorizada por sua repetição e por sua atividade, perdendo, assim, a sua singularidade. A manifestação da sexualidade representa um grande perigo para a ordem institucional, devendo, por isso, ser proibida. Reduzindo a sexualidade a um sintoma da enfermidade mental e descaracterizando sua singularidade, a ordem asilar se mantém intocável ao mesmo tempo em que legitima a utilização dos meios tecnológicos da Psiquiatria para contê-la. Na medida que se considera a atividade sexual do doente mental como anômala, essa passa a ser objeto de uma pedagogia institucional. Essa pedagogia vai se estruturar a partir dos valores morais. Será, então, pela culpabilização e pela proibição que a instituição psiquiátrica vai fornecer ao doente mental a direção certa para os seus desejos. Sem se interessar pela escuta das motivações do doente mental na busca do prazer, a regra proibitiva prevalece sobre qualquer possibilidade de negociação entre a manifestação do seu desejo e a ordem institucional. Por isso, a proibição de qualquer manifestação de sensualidade entre os doentes mentais se exerce pela violência concreta sobre os seus corpos, sem qualquer preocupação explicativa. Seja pelo uso da medicação, seja pela contenção mecânica, o doente mental tem o seu corpo imobilizado para a realização do desejo sexual, pois seu comportamento logo será visto como delituoso, sendo apenas mais uma manifestação de sua enfermidade mental. De fato o que se conhece sobre a sexualidade do doente mental ? Estudos realizados sobre a conduta e o desenvolvimento sexual dos sujeitos psiquicamente enfermos são escassos, fragmentados e, por vezes, apresentam problemas metodológicos que comprometem seus resultados. De modo geral, o que se conhece são descrições clássicas das disfunções sexuais referidas * Assistente Social do Instituto de Psiquiatria / Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB / UFRJ. Mestre em Ciências da Saúde pelo IPUB / UFRJ. Coordenadora da “Oficina de Saúde & Sexualidade” do IPUB / UFRJ. Coordenadora do Projeto Saúde Mental e AIDS da CN – DST / AIDS do Ministério da Saúde. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 29 nos livros textos de Psiquiatria, que apenas fazem declarações a partir de hipóteses teóricas, sem comprovação por pesquisas empíricas ou observação sistemática. Pesquisas realizadas com pacientes esquizofrênicos revelaram que é comum encontrar desordens de comportamento sexual no desenvolvimento da doença, especialmente a diminuição do interesse e da atividade sexual. Contudo, para alguns autores, a redução da sexualidade, principalmente entre os esquizofrênicos crônicos, não acontece somente pelo distúrbio de pensamento e regressão causados pela doença, mas, sobretudo, pela ausência de socialização devido às hospitalizações freqüentes e prolongadas, aos déficits de motivação, e às disfunções induzidas pelos psicofármacos1 . VERHULST e SCHNEIDMAN (1981) estudaram e avaliaram 20 pacientes esquizofrênicos e observaram que os homens são relativamente mais isolados do que as mulheres e, por isso, têm maior dificuldade de se aproximar e abordar parceiros em potencial. Já as mulheres reagem melhor a essa abordagem, mas têm mais dificuldades de manter relacionamentos mais estáveis, tornandose assim, gradualmente isoladas e menos atraentes. Talvez essa possa ser uma explicação para os relacionamentos que acontecem no período de internação, pois neste período, há uma maior proximidade e intensificação das relações interpessoais. Os autores assinalam, ainda, que existem três explicações possíveis para as modificações na sexualidade dos esquizofrênicos. Primeiro, a existência de um aspecto estrutural real, que levaria a essas alterações, muito embora não estejam convencidos disto pois, no decorrer da pesquisa, não encontraram nenhum sinal de desinibição real, perversão ou ausência de atividade sexual. Segundo, o fato dos padrões sexuais mudarem secundariamente à doença. Eles acreditam que o isolamento e a falta de habilidade social realmente parecem afetar diretamente o potencial dos pacientes para a expressão de sua sexualidade. E, por último, os psicofármacos e as barreiras sócio-culturais que parecem interferir na expressão sexual dos pacientes psiquiátricos crônicos pois esses, geralmente, se encontram em ambientes protegidos, onde a sexualidade é reprimida, ou em meios socialmente privados, onde os relacionamentos são limitados. Assim, não se pode esperar que relações sexuais mutuamente satisfatórias se desenvolvam ou se mantenham em situações em que as interações são primitivas, regressivas, repressivas e, muitas vezes, acontecem sob forma de exploração. Porém, com a atual Reforma Psiquiátrica, muitos avanços se realizaram no campo da assistência psiquiátrica, especialmente, em relação aos direitos dos doentes mentais. Nesse novo modelo assistencial, a sociabilidade é valorizada, estimulando-se, cada vez mais, as trocas interpessoais como medida terapêutica. Há uma maior valorização do indivíduo, o que o torna singular e possuidor de desejos. O doente mental, que antes era incapacitado para o mundo dos sentimentos, é redescoberto e estimulado a estabelecer relações dentro e fora do espaço asilar. Com isso, a convivência entre homens e mulheres possibilita uma maior circulação de afeto, o que já não é mais encarado como um distúrbio na sua manifestação desde que regulado em sua medida. Entretanto, este convívio mais próximo produz como efeito o aparecimento da sexualidade, que já é encarada com maior flexibilidade pela instituição. Segundo BIRMAN e SERRA (1988), nesse novo dispositivo de cuidados, a sexualidade já é incorporada no registro da fala, perpassando as várias instâncias institucionais. Porém, o interdito permanece, só que, desta vez, ele não se dá de forma explícita e tão violenta como antes, mas apenas verbalmente. Sobre esta questão consultar: WITTON K. Sexual dysfunction secondary to Mellaril. Dis Nerv Syst, 23:175, 1962; GREENBERG HR. Inhibition of ejaculation by chlorpromazine. J. Nerv Ment Dis, 152:364-366, 1971; STORY, NL. Sexual dysfunction resulting from drug side effects. J Sex Res, 10:132-149, 1974; KOTIN J., WILVERT DE., VERBURG D., et al. Thioridazine and sexual dysfunction. Am J Psychiatry, 133:82-85, 1976; NININGER, JE. Inhibition of ejaculation by amitriptyline. Am J Psychiatry, 135:750-771, 1978. 1 30 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Ainda assim, observa-se que persiste uma grande preocupação da equipe de saúde mental com as manifestações afetivas e sexuais que se apresentam durante a internação psiquiátrica. Mesmo as instituições que acompanham este novo modelo assistencial se vêem um tanto embaraçadas ao lidar com a sexualidade de seus usuários, pois é difícil conciliar as necessidades da instituição com as necessidades terapêuticas dos pacientes Visando contornar esta situação, a equipe técnica procura dizer ao doente mental que ele encontra-se internado para realizar seu tratamento, e não para ter envolvimentos emocional e sexual, que não são ruins desde que estabelecidos em circunstâncias adequadas, isto é, fora do espaço institucional. Assim, parece que a equipe ainda tem dificuldade em lidar com a sexualidade do doente mental. Para BIRMAN e SERRA (1988), a sua manifestação ainda é encarada como um sintoma, devendo sofrer uma intervenção terapêutica. BIBLIOGRAFIA AKHTAR, S et al. Overt sexual behavior among psychiatric inpatients. Dis Nerv Syst, 38:359-361, 1977. AKHTAR, S, THOMSON JA. Schizophrenia and sexuallity: a review and a report of twelve unusual cases Part I. J Clin Psychiatry, 41:(4)134-142, 1980a. _________. Schizophrenia and sexuallity: a review and a report of twelve unusual cases - Part II. J Clin Psychiatry, 41:5 166-174, 1980b. BIRMAN, J. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. Biblioteca de Saúde e sociedade, v. nº 3. _________. Sexualidade na instituição asilar. 1ª ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980. _________. Sexualidade: entre o mal e as maledicências. In: LOYOLA, MA. (org). AIDS e Sexualidade: o ponto de vista das Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: UERJ, p. 109-115, 1994. _________. 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Preocupado em conhecer os processos determinantes desta sexualidade, para melhor compreender estes sujeitos, buscamos através das representações sociais daqueles que passam pela experiência de internação em uma Instituição Psiquiátrica, o amálgama para melhor entendêlos e contextualizá-los. Discutir a questão da sexualidade, em uma sociedade como a nossa, não é uma tarefa muito fácil. Voltar a tocar no assunto, mas agora o relacionando a indivíduos com histórico psiquiátrico e que estão internados, torna-se mais complicado ainda. Desta forma, apontamos para as seguintes questões norteadoras : 1) Como o indivíduo, que está internado em uma Instituição Psiquiátrica, percebe e representa a sua sexualidade? 2) Será que houve alterações no comportamento sexual de um indivíduo que está internado em uma Instituição Psiquiátrica? Buscando elucidar tais questionamentos, este estudo se movimenta no sentido dos objetivos que ora se seguem : investigar as representações da sexualidade de indivíduos que estão internados em uma Instituição Psiquiátrica, segundo a percepção destes e; analisar as representações sociais destes indivíduos em relação ao processo psiquiátrico. Desenhando o Caminho Metodológico Estudar as Representações de um grupo específico, como o é os de indivíduos que se encontram internados em uma Instituição Psiquiátrica, é pensar numa realidade cotidiana e na atividade mental desenvolvida por estes indivíduos para fixar sua posição com relação as situações, acontecimentos e comunicações que lhes concernem, ou seja, é uma tentativa de apreender e compreender, através do olhar deste grupo, uma sociedade que exclui, que isola e que estigmatiza todos aqueles sujeitos, que não compartilham ou preenchem determinados padrões construídos pela maioria e considerados por esta mesma maioria (a sociedade), como sendo normais. JOVCHELOVITCH (1995) enfatiza o significado das Representações Sociais enquanto um fenômeno psicossocial que se encontra arraigado no espaço público e nos processos através dos * Enfermeiro Supervisor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ / IPUB; Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery / UFRJ; com Especialização em “Assistência ao Psicótico” pelo IPUB / UFRJ; Coordenador da “Oficina de Saúde & Sexualidade” do IPUB / UFRJ. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 33 quais o indivíduo desenvolve uma identidade social, cria símbolos e abre-se para uma diversidade de um mundo coletivo, cujos significados são elaborados por um grupo social que se transformam e se tornam subjetivados. Para coletar os dados desta pesquisa, optou-se pela utilização de uma entrevista semiestruturada. A coleta de dados foi realizada pessoalmente pelo pesquisador nos meses de Dezembro de 1997 a Fevereiro de 1998, alterando-se com a disponibilidade dos pacientes em participar da entrevista. As entrevistas foram gravadas com o prévio conhecimento dos entrevistados e também suas autorizações, sendo de grande importância a utilização deste método por permitir registrar o momento da entrevista e as várias nuances que são proporcionadas pelas reações a cada pergunta realizada. Para este estudo foi utilizada a Análise do Discurso, que, segundo SPINK citado por JOVCHELOVITCH JOVCHELOVITCH (1995), tem o poder de representar o grupo no indivíduo através da problematização em relação ao material coletado (gravado e transcrito), procurando explicitar os processos de significação que nele estão configurados e também os temas que emergem deste discurso. Posteriormente a este primeiro momento, é preciso mapear o discurso a partir dos temas emergentes definidos através da leitura dos dados coletados, guiados pelos objetivos da pesquisa. Com este método há uma maior facilidade de apreender a significação das idéias dos sujeitos estudados em relação ao contexto e aos papéis sociais por eles desempenhados. A análise dos dados foi realizada com o intuito de se estabelecer uma compreensão dos mesmos, confirmar ou não os pressupostos iniciais da pesquisa, podendo responder às questões formuladas e, ampliar o conhecimento sobre o assunto aqui investigado. Para tanto, optou-se pela categorização dos dados obtidos a partir da coleta dos mesmos, fazendo-se tal categorização à medida que estas surgiam nos discursos dos sujeitos deste estudo. De acordo com MINAYO (1994), MINA trabalhar com categorias significa agrupar elementos, idéias ou expressões em torno de um conceito comum capaz de abranger tudo isso e que, no caso da teoria das representações sociais, expressem a realidade em que vivem as pessoas, no intuito de trabalhar mais amplamente esta realidade, que se apresenta no cotidiano da assistência Psiquiátrica. Após a descrição dos depoimentos, os temas emergentes surgiram diante das análises aqui apresentadas, sendo divididas em três núcleos figurativos : os vários significados da sexualidade do paciente psiquiátrico, segundo suas percepções, descritos no núcleo “Desvendando a Sexualidade”; a realidade dentro das Enfermarias, no núcleo “A (as) Sexualidade do Paciente Internado” e; como os entrevistados sentem que a sociedade encara sua sexualidade, representado pelo núcleo “Os Estigmas da Sociedade ou a Sociedade dos Estigmas”. Núcleos tiv Constr uindo os Núc leos Figur a ti v os 1. Conhecendo os Atores Sociais Para este estudo foram realizadas dez entrevistas e todos os pacientes encontravam-se internados, sendo que sete (07) na Enfermaria 1 (para pacientes em fase aguda da doença) e três (03) na Enfermaria 2 (para aqueles em fase intermediária). Para conhecermos um pouco de cada um, daremos a seguir, algumas características demográficas e sociais dos mesmos : . Entrevistado 1 P. B., sexo feminino, 44 anos. Residente em Copacabana com seu companheiro. Possui o 2o. grau completo. Refere ser modelo e atriz, mas encontra-se desempregada até o presente momento. . Entrevistado 2 M. C. L., sexo feminino, 34 anos, solteira, porém referiu ter um namorado, há mais ou menos 34 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. três meses. Moradora do bairro de Belfort Roxo. Possui o 3o. grau completo. É Enfermeira, mas no momento está de férias (SIC), devido ao problema psiquiátrico. . Entrevistado 3 I. V. B. E., sexo masculino, 46 anos. Solteiro, mora em Botafogo. Com 3o. grau completo, sendo Bacharel em Pintura (SIC), é pintor desde os treze anos, está sem trabalhar no momento pois está internado, mas referiu ser autônomo. . Entrevistado 4 D. A. C., sexo masculino, 32 anos. Solteiro, porém com namorada, é morador da Urca. Possui o 3o. grau incompleto em Economia, tendo como último emprego o de Operador de Computador. No momento encontra-se desempregado, porém referiu ter “um emprego à vista”. . Entrevistado 5 A. C. L., sexo feminino, 40 anos, separada. Possui o 2o. grau completo. Moradora do Leme, diz ter como profissão Bordadeira : “Eu mesma faço minha produção, tenho ajudantes, mas é uma produção pequena...”, porém está desempregada no momento. . Entrevistado 6 M. B., sexo masculino, 26 anos, solteiro. Mora no Jardim Botânico com seus pais. Possui o 3o. grau incompleto , em Publicidade. Era estudante , mas está parado no momento, assim como não tem emprego algum. . Entrevistado 7 A. C. S., sexo masculino, 27 anos, solteiro e sem namorada. Morador da Tijuca. Com o 2o. grau incompleto, porém com curso profissionalizante, seu último emprego foi vendedor mas atualmente está sem trabalhar. . Entrevistado 8 A . L. T., sexo masculino, 29 anos. Divorciado, sem namorada atualmente (SIC). Mora em Botafogo. Possui o 2o. grau completo. Trabalhava como gráfico, mas no momento encontra-se aposentado por invalidez, por ser paciente psiquiátrico. . Entrevistado 9 B. R. A., sexo feminino, 35 anos, moradora de Campo Grande. Divorciada do primeiro marido e viúva do segundo, refere estar namorando um paciente que também se encontra internado na mesma Enfermaria que a sua. Possui o 1o. grau completo, tendo como profissão a de cabeleireira, mas encontra-se desempregada no momento, recebendo apenas a pensão de seu primeiro marido. . Entrevistado 10 J. F. F. C., sexo masculino, 20 anos. Solteiro, porém diz ter namorada, mora no Centro da Cidade. Possui o 2o. grau incompleto, tendo Curso profissionalizante de Técnico em Contabilidade, porém encontrando-se desempregado atualmente. Neste estudo foram entrevistadas 10 (dez) pessoas, das quais 6 (seis) eram do sexo masculino e 4 (quatro) do sexo feminino. O grupo em estudo foi constituído, em sua maioria, de adultos jovens, na faixa etária de 20 a 35 anos, tendo sido entrevistados também 3 pessoas na faixa dos 40 anos. Em relação à escolaridade, apenas 1 (um) possui 1o. grau completo; 1 (um) possui o 2o. grau incompleto e 4 (quatro) possuem o 2o grau completo. Dos que possuem nível superior, 2 (dois) têm o 3o. grau incompleto e os outros dois, completo. A maioria dos participantes deste estudo (9 em 10) disse possuir algum tipo de profissão, tais como: Enfermeira, Pintor, Bordadeira, Gráfico e Cabeleireira, sendo que 2 dos entrevistados são apenas estudantes. Porém, apesar de terem alguma profissão, a situação da maioria é de desemprego SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 35 (6 em 10), sendo que outros 2 (dois) entrevistados são trabalhadores autônomos, 1 (uma) encontrase de férias em seu serviço e o outro está aposentado por invalidez, devido ao problema psiquiátrico. A explicação para o desemprego de grande parte dos entrevistados concentra-se na dificuldade de alguém doente conseguir algum tipo de trabalho. Quanto à situação conjugal dos entrevistados, a maioria (7 em 10) são solteiros, 2 (dois) são divorciados e 1 (um) é separado. Em relação ao número de internações em Instituições Psiquiátricas, todos possuem, pelo menos, 2 (duas) internações, tendo inclusive uma entrevistada relatado que se trata há mais de dez anos em Instituição Psiquiátrica : - “Eu tenho 10 anos de Psiquiatria , 6 anos no IPUB.” (D.A.C., 32 anos) FOUCAUL ULT FOUCAULT (1993) refere que é próprio de nossa cultura, dar à doença, o sentido do desvio e ao doente um status que o exclui. O estado da doença mental é ainda definido por UCHÔA (1976) como inadaptação, insuficiência, desinserção por parte do homem total em que, implicitamente , estão integrados os planos biológico, sócio- cultural e espiritual. Da doença mental fazem parte as noções de desequilíbrio, desarmonia, não integração, não adaptação. Esta não adaptação pode fazer com que o indivíduo portador da doença mental sofra várias internações, necessitando sempre de um grau maior ou menor de supervisão e de atendimento para que sua permanência na sociedade seja mais prolongada, evitando as re-internações : - “... tenho mais de 11 internações. Fora daqui tive duas.” (P.B., 44 anos) - “Aqui, foram três vezes. Eu tive umas 4 ou 5 internações, incluindo as daqui.” (M. B., 26 anos) - “Essa é minha décima internação. Há 4 anos eu me interno.” (J. F. F.C., 20 anos) - “Desde os 17 anos é que eu me interno. Perdi a conta.” (B.R.A., 35 anos) YLOR TAYLOR (1992) relata que existe ainda hoje o fenômeno da porta giratória. É um fenômeno no qual as pessoas recebem um atendimento intensivo através da hospitalização, recebem alta e voltam à comunidade onde podem ou não continuar sendo atendidas. Logo após, precisam ser hospitalizadas novamente, repetindo o ciclo. 2. Desvendando as Sexualidades Mito para uns. Dramática realidade para outros. A sexualidade dos pacientes psiquiátricos é um fato ainda pouco estudado, que gera conflitos e discussões, tanto para aqueles que se encontram internados em uma instituição psiquiátrica, como para seus familiares e os profissionais que atuam na área da Saúde Mental. Segundo BEARZOTI (1993) , a sexualidade é um assunto complexo, controverso e de BEARZOTI difícil conceituação. A mesma tem sido alvo de tabus, repressões, distorções e tentativas de reduzi-la a sinônimo de reprodução e ligada apenas à genitalidade. Sua conceituação, e mais profundamente o seu entendimento, irá depender do ponto de vista considerado: o psicológico, o antropológico, entre outros. E do ponto de vista dos indivíduos que estão internados em uma Instituição Psiquiátrica? Qual é seu significado ou representação de sexualidade? A sexualidade, de acordo com BIRMAN (1988), ocupa um lugar fundamental na instituição, adquirindo vários significados nos seus diferentes projetos e configurando olhares diversificados para os agentes asilares. Nesta definição encontramos a interdependência de seus conceitos, se admitirmos a dificuldade do ser humano em elaborar um pensamento claro quando dominado por forte emoção. Tais significados da sexualidade são percebidos pelos pacientes internados, sendo que a maioria (oito em dez) tem como representação da sexualidade, não só como sendo a relação sexual pura e 36 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. simplesmente e sim, um algo a mais, como se evidencia nos seguintes depoimentos : - “Eu acho que é algo afrodisíaco , que brota, é o desejo que todo o ser humano tem.” (A. C. S., 27 anos) - “Significa troca de carinhos, amor. Tudo relacionado ao erótico, ao sexual mesmo. Inclui a troca afetiva de 2 pessoas.” (M. B., 26 anos) - “Vem a ser uma troca de pele, de experiências, de sensações. Uma troca física. Não é só o sexo.” (I. V. B. E., 46 anos) - “É a expressão do corpo, é o olhar, é a forma de como você se vê diante de si mesma. Você ter sensibilidade para perceber o outro. Não é só a questão do sexo. Sexualidade para mim é uma questão interna.” (M. C. L., 34 anos) Portanto, vários foram os significados de sexualidade, dependendo da situação vivenciada por cada indivíduo. Neste estudo, observou-se que o amor e a relação de afeto entre duas pessoas apareceu na maioria das vezes, sem no entanto a sexualidade estar associada diretamente ao sexo em si. Porém, dois dos dez entrevistados consideraram como sexualidade somente aquilo ligado à genitalidade, como já descrito anteriormente : - “É uma atitude que nós cometemos, entre homem e mulher, que significa o sexo. É o que o homem e a mulher fazem juntos : transar.” (J. F. F. C., 20 anos) - “É imaginar uma pessoa e se masturbar.” (A. L. T., 29 anos) De acordo com GHERPELI (1995) , quando falamos em sexualidade, pressupomos intimidade, já que ela está estreitamente ligada às relações afetivas. A sexualidade é um atributo de todo ser humano, mas para compreendê-la, não devemos separá-la do indivíduo. A nossa cultura tem uma tendência a reduzir a sexualidade à sua função reprodutiva e genital, sem levar em conta a importância dos sentimentos, emoções e sensações decorrentes da vivência do indivíduo no âmbito sexual. A questão é que cada um pode viver plenamente de acordo com o que suas circunstâncias lhe permitem. No entanto, é inegável que as pessoas que puderem ter mais experiências de vida, no sentido de relações interpessoais, ampliando assim seus conhecimentos, principalmente sobre sexualidade, alcançam uma riqueza maior em suas relações posteriores. Isto não significa que sejam mais ou menos felizes sexualmente do que os outros que não tiveram as mesmas oportunidades. A maioria das pessoas possui uma idéia padronizada da sexualidade e espera que os demais correspondam e se ajustem ao seu molde do que é viver sexualmente feliz. Porém, ninguém é igual a ninguém, inclusive no âmbito sexual. O grande erro dos trabalhadores de Saúde Mental é usarem como referencial, suas próprias expectativas para solucionar questões desta natureza, sem levar em conta que a sexualidade do indivíduo internado em uma instituição psiquiátrica desenvolvese em contextos variados e a par tir de experiências distintas. Tal atitude propicia inúmeras interpretações erradas do seu comportamento sexual em função do que se supõe que seja de seu desejo. A melhor maneira de lidar com estas situações e, especificamente, com tais indivíduos, é procurar despir-se dos próprios preconceitos. 3. A (as)Sexualidade do Paciente Internado Desde que o mundo é mundo, não existe ser humano sem sexualidade. E desde que passamos a estudar o mundo da sexualidade humana, descobrimos em todos nós a capacidade de desenvolvermos sentimentos como a paixão, o prazer e a fantasia. E o mundo da sexualidade do indivíduo internado em uma Instituição Psiquiátrica? Será que este é diferente do nosso? E se não o é, como estes indivíduos lidam com suas sexualidades e todos os sentimentos envolvidos nesta trama psicossocial , quando estão internados? SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 37 ATKINSON (1989) refere que durante a doença, a perda do sentido de integridade, sobretudo no que se refere à imagem corporal, pode causar uma grande ansiedade em torno da capacidade sexual. Ainda segundo o autor, a hospitalização afeta a expressão do amor. Ao serem questionados de como, após a internação, lidam com sua sexualidade, a maioria (6 em 10) respondeu que a prática da masturbação é o meio de satisfazer suas vontades e desejos sexuais : - “Me masturbando, só me masturbando.” (A. L. T., 29 anos) - “De vez em quando eu me masturbo, porque me relaxa.” (I.V.B.E., 46 anos) - “Eu me masturbo. Me masturbo muitas vezes.” (J. F. F. C., 20 anos) Embora haja a necessidade da prática sexual por parte de alguns dos entrevistados, a instituição psiquiátrica, por apresentar um discurso da existência de um ambiente terapêutico, no nosso entender por vezes contraditório, priva o cliente de tal necessidade. Mesmo diante destes paradoxos, alguns optam pela prática da masturbação, enquanto outros ainda conseguem relacionarse sexualmente com uma parceira, como conseqüência de uma opção pessoal: - “Eu cheguei a transar duas vezes com duas mulheres aqui dentro.” (J.F.F.C., 20 anos) É interessante ressaltar que tal maioria (6 em 10) foi também os seis homens que fizeram parte do estudo, portanto os outros quatro entrevistados (todos mulheres), referiram não ter nenhuma maneira de lidar com sua sexualidade durante a internação, apenas não pensando nisso ou em como desenvolvê-la : - “Eu lido de uma forma que eu acho que eu vou sair daqui um dia e que eu vou poder es tar com a pessoa que eu gosto, para poder desenvolver isso.” (M. C. L., 34 anos) - “Eu procuro não pensar porque eu acho que o sexo é psicológico. Se você ocupar sua cabeça com alguma coisa, não pensa em sexo. Vontade a gente tem.” (B. R. A., 35 anos) Com isso, pôde se observar que as mulheres, apesar de sentirem vontade, como qualquer outra pessoa, tentam não pensar como desenvolver sua sexualidade, nem mesmo se utilizando da prática da masturbação como os outros seis entrevistados (todos homens), e referem : - “Você quer saber se eu me masturbo, essas coisas. Eu não faço nem aqui nem nunca pois nunca tive esse hábito. Eu sempre transei com namorados, sempre amando, nunca foi uma transa gratuita. Então, nunca criei este hábito. Quando eu estou sem companheiro, eu normalmente fico sem sexo.” (A.C.L., 40 anos) - “Eu não faço nada , fico só no ‘hora veja’. Eu não sei me masturbar. Eu não gosto.” (P. B., 44 anos) Diante das afirmativas destas entrevistadas, podemos notar que as mulheres na sociedade sofrem ainda com sua educação, recebida desde criança, de que a masturbação para elas é um hábito impuro e proibido, na medida em que sejam vistas apenas como veículo de procriação, sem direito ao prazer. A masturbação, de acordo com GHERPELI (1995) é, na verdade, uma atividade fisicamente semelhante ao ato sexual, com a diferença de ser realizada solitariamente. No entanto, para os indivíduos internados em uma instituição psiquiátrica, tal prática acaba sendo a única solução para o alívio de suas tensões sexuais. Portanto, privá-los desta atividade, seria negar por completo sua sexualidade, além de um descaso diante das suas necessidades. Outra questão, que faz com que a sexualidade (quando esta existe) da mulher internada seja encarada com mais cautela e vigilância que a do homem, é o temor de uma gravidez indesejada, seja decorrente de relações voluntárias ou forçadas (violência sexual), dando margem a observações mais cuidadosas. Frente a atual realidade criada recentemente na Instituição Psiquiátrica, onde foi realizado 38 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. este estudo, as Enfermarias, que outrora eram separadas por gênero, uma masculina e outra feminina, refletem o atual impacto das premissas da Reforma Psiquiátrica na assistência em Saúde Mental, sendo tais Enfermarias transformadas em mistas, aonde ambos os gêneros viessem a conviver cotidianamente. Sendo assim, os entrevistados foram questionados se esta atual política divisória por estados psíquicos (agudos e intermediários) e não mais por sexo (homens e mulheres), afetou ou não a sexualidade dos indivíduos internados, tendo a maioria dos atores sociais deste estudo (7 em 10) referido que com esta nova divisão, propiciou uma mudança no comportamento sexual de todos, como percebemos nos seguintes relatos : - “Afetou, claro. Pois a gente vê uma mulher e pensa que pode ser uma companheira. Reconhece nas outras pessoas elementos possíveis de se flertar.” (I. V. B. E., 46 anos) - “Sim , afetou sim. De maneira que todos venham a se agarrar, se beijar e a se encararem um pelos outros e fazer amor.” (J. F. F. C., 20 anos) - “Agravou mais, aflorou mais. Existe sexo aqui dentro.” (A. C. S., 27 anos) - “Afetou, pois temos homens e mulheres juntos e isso sempre dá um auê. Sempre cria uma situação que desperta a libido.” (M. B., 26 anos) - “Afetar, afetou. Porque o contato de homens e mulheres sempre acende um foguinho. O olhar, a atração, a amizade...” (B. R. A., 35 anos) Antes da adoção das Enfermarias Mistas, a divisão de gênero era a maneira adotada, talvez para evitar que a sexualidade dos pacientes aflorasse na forma de atos, mais especificamente, na relação sexual em si. Este fato institucional, por si só, sugere a negação da sexualidade heterossexual, visto que as práticas alternativas (relações homossexuais, masturbação, entre outras) são muito mais passíveis de punição, por serem consideradas desviantes e, por vezes, amoral. Por outro lado, são muito menos condenáveis por tanto, mais aceitas pelos profissionais de Saúde Mental e, consequentemente, menos grave do que o relacionamento heterossexual. O cuidado para manter separados sexualmente seus doentes, mediante o discurso de proteção, conforto e segurança, faz com que sejam conservados sob a guarda constante do olhar dos profissionais de saúde, principalmente os da Enfermagem, considerando muito mais grave suas manifestações e possíveis conseqüências indesejáveis, tal como a gravidez. Porém, mesmo sob este olhar tutelar, para os internados, a sexualidade, de acordo com BIRMAN & SERRA (1988), é um bem que não se retira, não se disciplinando facilmente como outros comportamentos. A proibição para a prática sexual não irá aboli-la por completo, apesar de pretender atingir este objetivo, transformando-se em um jogo de poder: internados e instituição, onde o prestígio da equipe irá ser redefinido cotidianamente. Dos dez entrevistados, metade (todos homens) referiu já ter tido relações sexuais durante suas internações. Apesar disso, a maioria dos entrevistados (9 em 10), mesmo aqueles que tiveram relações dentro da instituição, relataram que não acham certo se relacionar sexualmente dentro das Enfermarias, conforme podemos observar nos seguintes relatos : - “Eu acho errado , porque é um lugar para a gente se tratar e não para fazer sexo ou amor.” (J. F. F. C., 20 anos) - “Errado. Deve haver respeito, compromisso e responsabilidade.” (A. C. S., 27 anos) - “Sim , já transei duas vezes com duas meninas diferentes (...). Hoje em dia me arrependo porque acho que a instituição não é lugar para isso, é um lugar para se tratar.” (D.A.C., 32 anos) - “Não é o lugar ideal para se fazer este tipo de coisa.” (M. B., 26 anos) - “Aqui é um lugar de tratamento, merece respeito.” (P. B., 44 anos) - “Eu acho que aqui é um lugar de respeito. A gente veio aqui para se tratar e não para SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 39 poder ter relação. Eu sei separar as coisas : hospital é hospital, vida pessoal é vida pessoal.” (B. R. A., 35 anos) - “... eu não quero ter relação com ninguém, eu quero é sair do hospital. E também porque aqui não é lugar disso, e sim de tratamento.” (M. C. L., 34 anos) Apesar do aparato de vigilância e de controle montado pela instituição, os internados conseguem romper o sistema estabelecido e resgatar a satisfação proibida. Face ao perigo para a ordem institucional, os profissionais atuam como um bloco para regular o comportamento desviante. A tecnologia farmacológica se articula como uma violência institucional, fixando o sexual como sintoma e legitimando a restauração da regra como sendo da ordem terapêutica. 4. Os Estigmas da Sociedade ou a Sociedade dos Estigmas Os gregos criaram o termo estigma, para se referir a sinais corporais com os quais procuravase evidenciar algo de extraordinário ou mau sobre o estado moral de quem os apresentava. Atualmente, o termo é amplamente utilizado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, sendo mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal. A sociedade estabelece, segundo GOFFMAN (1963), os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. O mesmo autor refere que a estigmatização pode ser vista como uma forma de classificação social pela qual um grupo ou indivíduo, identifica em outro, segundo certos atributos seletivamente reconhecidos pelo sujeito classificante, como negativos ou desabonadores. É provável que, em situações sociais onde há um indivíduo cujo estigma conhecemos ou percebemos, empreguemos categorizações inadequadas e que tanto nós como ele nos sintamos pouco à vontade. Há, freqüentemente, mudanças significativas a partir dessa situação inicial. E como a pessoa estigmatizada tem mais probabilidades do que nós, de se defrontar com tais situações, é provável que ela tenha mais habilidade para lidar com elas. Em muitos casos em que a estigmatização do indivíduo está associada com sua admissão a uma instituição de custódia, como uma prisão, sanatório ou orfanato, a maior parte do que ele aprende sobre o seu estigma ser-lhe-á transmitida durante o prolongado contato íntimo com aqueles que irão transformar-se em seus companheiros de infortúnio. A maioria dos entrevistados (7 em 10) relatou que a sociedade não percebe (ou não quer perceber) a existência de suas sexualidades e, portanto, de acordo com MIRANDA (1996), a negação MIRANDA de tais sexualidades se combina com a noção de desvio, por ser indicativo de estigma, em que as deformidades físicas e os problemas relacionados ao caráter da pessoa dão sustentação para tal manifestação. Assim, através dos depoimentos colhidos, pudemos perceber que os indivíduos internados sentem-se discriminados e rejeitados por não poderem exercer suas sexualidades diante da sociedade, como demonstram alguns dos depoimentos coletados : - “Há discriminação porque a sociedade acha que as pessoas internadas em instituições psiquiátricas não têm mais condições de conviver em sociedade. Que elas têm que ser excluídas. A sociedade rejeita. Se eu namorar uma menina normal, a família dela vai condenar o namoro porque eu tenho problema psiquiátrico, então a própria sociedade dificulta o nosso reingresso na vida comum lá fora por causa dessa rejeição.” (D. A. C., 32 anos) - “Eu acho que a sociedade nem vê o paciente psiquiátrico. Ninguém quer saber disso não. Lugar de louco é no hospício. Nós somos pessoas como as outras. Nós temos o direito ao trabalho, a uma vida afetiva, direito ao tratamento, quando necessário e a gente tem o direito de viver. E a 40 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. sociedade se esquece disso. A sociedade não quer saber do louco não !!!” (M. C. L., 34 anos) - “Preconceito. Muito. No sentido de não ter condições de um cara maluco fazer sexo com uma mulher que está boa da mente.” (J. F. F. C., 20 anos) - “O paciente psiquiátrico é estigmatizado muitas vezes, com rótulo de doente, de maluco. (...) Ter sexualidade eu não sei , mas exercer ela numa Instituição Psiquiátrica, acho que acham errado.” (M. B., 26 anos) - “Eles têm muito preconceito da loucura, mas sobre isso, ninguém pode opinar em nada pois quem quer fazer sexo faz e não é da conta de ninguém.” (P. B., 44 anos) - “O preconceito existe sim. Eles acham que somos loucos, mas somos pessoas que precisam de tratamento. O que a pessoa lá fora sente nós sentimos também. Tanto faz se a gente está boa ou ruim, sexualidade existe em todos os sentidos, é uma coisa que vem de dentro, que é de todo o ser humano, não importando se ele está ou não internado.” (B.R.A., 35 anos) Tal sociedade, segundo GOFFMAN (1963) , caracteriza as pessoas através de atributos considerados comuns aos membros de uma determinada categoria, onde um indivíduo é encaixado através de certos aspectos percebidos, o que permite estabelecer sua identidade social. De acordo com PUPPIN (1989), as pessoas consideradas normais pela sociedade que se esforçam para mostrarem coerência nos vários papéis que desempenham, e as pessoas estigmatizadas são selecionadas pela estrutura social, sendo empurradas à um processo de discriminação pelo modo de vida que apresentam. Assim, o indivíduo não será capaz de fazer parte desta representação social, acarretando desordens psíquicas e emocionais. Frente a este contexto, entendemos que dando aos pacientes informações, envolvendo-os nas decisões sobre o tratamento e solicitando sugestões ao processo de planejamento, pode-se amenizar suas ansiedades e reforçar sua auto-estima. Para PAIVA (1992), trabalhar preconceitos, medos e o respeito à diferença é urgente, e AIVA garante maior eficácia em qualquer intervenção preventiva ao que seja apenas a simples informação. É se aproximar do que seja outro lado, tornando-se capaz de perceber o outro como sendo parte de nós mesmos. É compreender a universalidade e ao mesmo tempo a variabilidade do ser humano. É tomar contato com nossos lados não vividos, para não entrar em pânico com alterações do caminho. Desta forma, o resultado pode ser uma convivência mais harmoniosa e mais fácil entre as pessoas, ou até em qualquer processo que busque a tranqüilidade e prazer na existência do individual inserido no coletivo. Concluindo luindo... (IN) Conc luindo... Compreender as representações sociais que os indivíduos com problemas psiquiátricos possuem a respeito de sua sexualidade e de como esta é vista pela sociedade, implica na necessidade de conhecer não só o discurso, mas a situação que define estes indivíduos que as produz. Uma análise concreta do significado que uma pessoa atribui ao mundo que a rodeia, só é possível, se esse for focalizado em sua inserção num discurso mais amplo, onde as lacunas, as contradições e, conseqüentemente, a ideologia, possam ser detectadas. A história da humanidade tem sido a história da dominação, e as sociedades autoritárias têm criado mecanismos pelos quais os indivíduos ficam predispostos mentalmente para a aceitação e reprodução do sistema autoritário. Para isso, são “castrados” e submetidos a fortes sentimentos de culpa, toda vez que agem ou pensam em desacordo com a moral da Ordem Social, que se estende ao próprio funcionamento das instituições psiquiátricas, de maneira a moldar o comportamento humano dentro das mesmas. Percebeu-se, através dos depoimentos dos entrevistados, que a sexualidade não é apenas demonstrada e nem representada pelo ato sexual. É também um sentimento que envolve uma relação SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 41 afetiva entre duas pessoas, não importando se de gêneros iguais, e que depende, não só do sexo em si, mas também do carinho, do amor e do respeito. GHERPELI (1995), refere que, vista isoladamente, a sexualidade tem seu valor limitado, isto é, reduzida ao prazer do corpo e às suas manifestações genitais. No entanto, quando inserida nas circunstâncias de vida de uma pessoa, diferencia-se sua participação intensa e freqüente no desenvolvimento de cada um. O problema psiquiátrico pode ser visto como um estado conseqüente de diversos infortúnios que acarretam um comprometimento mental, que pode ser potencializado ou diminuído, de acordo com a posição da sociedade. Faz-se necessário compreender que a sexualidade dos indivíduos internados em uma instituição psiquiátrica é igualmente importante, embora se processe de forma diferenciada. A maioria dos entrevistados (6 em 10) expressa sua sexualidade dentro da instituição através da masturbação. Muitas vezes tal ato pode ser encarado pelos profissionais como um desvio decorrente de sua doença. Porém, o indivíduo internado não se masturba por ter algum tipo de problema psiquiátrico, mas sim porque é um ser humano. Como qualquer pessoa, ele tem necessidade de entrar em contato com seus sentimentos e exprimir algo inerente à vida. Afinal, sexualidade não se resume ao ato sexual. Ela está associada, como dito pelos próprios entrevistados, ao desenvolvimento da afetividade, à capacidade de entrar em contato consigo mesmo e com o outro, que são elementos fundamentais para a construção e preservação da auto-estima e do bem-estar. A prática sexual dentro da instituição foi outro meio encontrado por alguns dos entrevistados para lidar com sua sexualidade, seus desejos e seus instintos. Porém, os mesmos acharam que não fizeram algo certo, indo contra uma regra institucional e social de que a sexualidade (não a entendendo aqui como relação sexual) deve permanecer apagada durante sua internação, onde o único objetivo é tratar-se e curar suas doenças. Em História da Loucura FOUCAULT (1993) , refere-se à uma sociedade que segue um FOUCAUL ULT regime de ordem imposta, com exigências radicais da humanidade, preocupada em castigar e precaverse dos perigos. Para tanto, o louco era discriminado (e ainda o é), não sendo tratado como ser humano, mostrando a nossa não aceitação de suas formas de expressão, assim como a existência de suas sexualidades. A loucura era encoberta por consistir em um perigo para a nossa sociedade. Tal inadequação provoca um mal estar geral, e sabemos que este sentimento ainda está bastante presente nos dias de hoje. Percebeu-se, através dos depoimentos, que a sociedade ainda precisa aprender a aceitar o louco como sendo um ser humano que também possui necessidades, desejos e que também tem direito à busca do prazer, seja ele sentimental ou apenas físico. Quando os indivíduos com problemas psiquiátricos passam a funcionar como um espelho, quando a sociedade vê sua própria face humana projetada nestas pessoas, a reação pode ser violenta, tais foram as máscaras que o homem incorporou para si ao longo dos tempos, em busca de sua perfeição, a ponto de perder um rosto e uma identidade. E, portanto, todos aqueles que lhe parecem diferentes, devem ser isolados e ignorados. Não existe nenhum trabalho que seja finito em si mesmo, pois sempre há muitas questões que merecem ser mais bem estudadas. Esta pesquisa não deve ser finalizada de forma definitiva, mas deve servir para abrir caminhos que possam auxiliar, tanto aqueles que optaram em lidar com a loucura, quanto aqueles indivíduos que possuem problemas psiquiátricos, ajudando-os a superar as dificuldades criadas pelo estigma construído socialmente, assim como os ajudando a compreender e a conviver melhor com suas sexualidades. Sexualidades ... vistas sob um outro olhar. Um olhar (des) institucionalizado. 42 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. BIBLIOGRAFIA BEARZOTI , Paulo. Sexualidade : um conceito psicanalítico Freudiano. Arq. Neuropsiquiatria, 1994, No. 52 (1). BIRMAN, J. Sexualidade na Instituição Asilar. 1a ed., Rio de Janeiro : Achiamé, 1980. BIRMAN, J & SERRA, A. Os Descaminhos da Subjetividade : um estudo da Instituição Psiquiátrica no Brasil. 1a ed., Niterói : EDUFF, 1988. FOUCAULT, Michel. História da Loucura, 3a ed., São Paulo : Perspectiva, 1993. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade : a vontade de saber, 9a ed., Rio de Janeiro : Graal, 1988. GHERPELLI , M. Helena B. V. Diferente mas não desigual : a sexualidade no deficiente mental, 1a ed., São Paulo : Gente, 1995. GOFFMAN , Erving. Estigma : la identidad deteriorada, 1a ed., B. A. : Amorratu, 1963. JODELET, D. Représentation Sociale : phénomènes, concept et théorie In : Psychologie Sociale, Paris : Presses Universitaires de France, 1984. (Xerox) JOVCHELOVITCH, S. & GUARESCHI, P. A. Textos em Representação Social, 2a ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1995. MANN, CG. HIV & Loucura: os dois lados da mesma moeda. Dissertação de Mestrado. Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1996. MANN, CG. Sexualidades & Saúde Mental : um olhar institucionalizado. Monografia final do Curso de Especialização de Assistência ao Psicótico. Instituto de Psiquiatria / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Abril / 1998. MINAYO, M. C. de Souza. O Desafio do Conhecimento-Pesquisa Qualitativa em Saúde, 2a ed., São Paulo HUCITEC - Abrasco, 1993. pp. 197 - 248. MIRANDA, Francisco A. N. de. Doente Mental : sexualidade negada ?, Dissertação de Mestrado, EERP/ USP, Ribeirão Preto, 1996. MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise, 1a ed., Rio de Janeiro : Zahar, 1978. OLIVEIRA, S. B., ASSIS M. T., MOTA, M. P. Avaliação do Comportamento sexual, Conhecimento e Atitudes em Relação à AIDS : um estudo entre indivíduos com distúrbios mentais internados. Rio de Janeiro : mimeo, 1996. SPINK, Jane Mary. O Conhecimento no Cotidiano- as representações sociais na perspectiva da psicologia social, 1a ed., São Paulo :Brasiliense, 1993. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 43 44 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Outro Dia... Nesta Oficina, a pedido do grupo, foi passado um vídeo sobre preservativo feminino, e então... Dalva: “Assistir esse vídeo é um pecado, vou sofrer muito porque eu já estou aposentada do sexo há muito tempo”. Irene: “Eu estou passando por uma situação muito complicada, na minha vida sexual eu estou desconfiada que meu marido está tendo relações sexuais fora do casamento, por esse motivo eu estou obrigando ele a usar camisinha e estou até gostando porque ela já deixa vagina molhada.” Vandré: “Essa camisinha feminina é muito esquisita ela não fica dentro da mulher? Estou bastante interessado.” Elaine pega a pelve de acrílico e explica como deve ser colocada e tirada. Rosano: “Eu quero ser o primeiro a colocar a camisinha feminina, na outra reunião eu prestei bastante atenção e já sei até colocar.” Ruth: Os dois podem usar a camisinha? Vinícius: É claro que não, não entra.” Suely: “Não é necessário os dois usarem, basta um só usando, já é o suficiente. Se os dois usarem tem o risco de estourar”. Ruth: “E se o homem tiver um piru bem grande? A xereca não vai suportar!”. Suely: “Não importa o tamanho do pênis. Se colocada corretamente a camisinha é muito segura.” Rosano: “Minha namorada sempre sente muita dor quando estamos fazendo sexo. Eu gostaria de saber se tem algum problema masturbar a mulher com a camisinha feminina?” Suely: “Não tem problema nenhum masturbar com camisinha, e a respeito da dor quando vocês tem relações sexuais ela pode estar com algum problema. Ela pode estar pouco lubrificada, isto causa dor. Por isso, as carícias são importantes, antes da penetração. Caso isso não solucione é preciso procurar um médico. Ela pode ter vaginismo, problemas psicológicos ou algum medicamento pode estar provocando esta alteração. Em último caso é bom usar um lubrificante a base de água, pois a base de óleo pode danificar o preservativo. Rosano: Sexo anal com camisinha é perigoso? Suely: “É só usar a camisinha corretamente e não usar lubrificante a base de óleo, como acabei de mencionar, porque a camisinha já tem.” Ruth: “O bebe da minha amiga nasceu com Aids ele nunca vai ficar curado?”. Suely: “Só dá para saber se a criança é soropositivo a partir dos dois anos, até então ela tem os anticorpos do HIV na corrente sanguínea que ainda é o da mãe.” SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 45 46 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Capítulo III Aids e Saúde Mental: Novos Rumos, Antigos Desafios SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 47 Saúde & Sexualidade : um novo dispositivo de Saúde Mental em tempos de Aids Claudio Gr uber Mann * Suely Broxado de Oliveira * * Atualmente, os serviços psiquiátricos vêm se defrontando com um contingente cada vez maior de pacientes portadores do HIV e vivendo com Aids, nas suas unidades de internação e nos seus ambulatórios. Contudo, para que a epidemia seja enfrentada de forma eficaz, há necessidade de se criar estratégias de prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids entre determinadas populações, considerando suas especificidades. Além disso, para melhor desenvolvermos tais estratégias é imprescindível discutirmos sexualidade. Com a perspectiva de estarmos lidando com esse elemento que até então era negado pela Instituição Psiquiátrica, a sexualidade nos traz novos desafios em relação à atenção integral ao doente mental. Negá-la é tentar destituir do doente mental sua cidadania. Aceitá-la, porém, traz implicações para a assistência, pois teremos que lidar com todos os desdobramentos do seu exercício. Por exemplo, diante da epidemia da Aids um dilema se coloca para os profissionais de Saúde Mental. Como prevenir doenças sexualmente transmissíveis, que deixam as pessoas mais expostas ao HIV do que as pessoas que não possuem uma DST, entre usuários de Saúde Mental ? Como discutir vulnerabilidade ao HIV/Aids se a questão da sexualidade ainda é um tabu entre os profissionais de Saúde Mental e pacientes psiquiátricos ? GRUBER GRUBER MANN (1998) em pesquisa realizada com pacientes internados em uma Instituição Psiquiátrica Pública descreveu quais as representações sociais que tal população tinha acerca de sua sexualidade. O autor verificou que a sexualidade não é apenas demonstrada e nem representada pelo ato sexual. É também um sentimento que envolve uma relação afetiva entre duas pessoas, não importando se de gêneros iguais, e que depende, não só da relação sexual em si, mas também do carinho, do amor e do respeito. Apesar dos usuários de Saúde Mental representarem a sexualidade não apenas como o ato sexual, mas sim como parte de sua vida afetiva, parece que os profissionais ainda têm dificuldades em lidar com a sexualidade dos pacientes psiquiátricos, conforme aponta o estudo realizado por OLIVEIRA (1998). Para a autora “falar sobre sexualidade também se torna uma tarefa árdua para qualquer profissional de saúde mental”, conforme relato que se segue : “Uma vez fui falar com a minha psicóloga sobre sexo e ela disse que esse assunto não era para ser abordado, que o atendimento tinha limite”. (Homem, 24 anos) Aids e suas implicações nos ser viços Psiquiátricos Em tempos de Aids a grande preocupação dos profissionais de saúde mental tem sido o perigo dos pacientes se contaminarem em relações sexuais no espaço institucional, somando-se às outras preocupações já existentes no passado, como gravidez indesejada, doenças sexualmente Enfermeiro do Instituto de Psiquiatria / Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB / UFRJ. Mestre em Enfermagem pela Escola Anna Nery / UFRJ. Especialista em Saúde Mental pelo IPUB / UFRJ. Coordenador da “Oficina de Saúde & Sexualidade” do IPUB / UFRJ. ** Assistente Social do Instituto de Psiquiatria / Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB / UFRJ. Mestre em Ciências da Saúde pelo IPUB / UFRJ. Coordenadora da “Oficina de Saúde & Sexualidade” do IPUB / UFRJ. Coordenadora do Projeto Saúde Mental e AIDS da CN – DST / AIDS do Ministério da Saúde. * 48 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. transmissíveis e abuso sexual. A falta de conhecimento sobre a vida sexual dos pacientes psiquiátricos pode levar os profissionais de saúde mental a negligenciarem na avaliação de comportamentos de risco, na orientação de uma prática sexual mais protegida, bem como na proteção contra abusos sexuais. Alguns estudos mostram que doentes mentais crônicos têm uma vida sexualmente ativa, mas poucos se protegem em suas relações sexuais. Em algumas instituições a atividade sexual é proibida, seja formal ou informalmente. Na maioria das vezes essa atividade é desencorajada pelos profissionais de saúde mental, que negam a sexualidade dos internos, não realizando qualquer discussão acerca dessa questão, limitando-se apenas a reprimir as atividades sexuais que acontecem em encontros furtivos e secretos. Já numa instituição que acompanha a “atual” Reforma da Psiquiatria Clássica, os comportamentos sexuais são encarados com uma maior flexibilidade. A repressão do interno é apenas de cunho verbal, ou seja, a equipe técnica procura dizer ao paciente que ele se encontra internado para realizar seu tratamento e não para ter relações sexuais, que não são ruins, desde que praticadas no lugar, com o objeto e nas circunstâncias adequadas. Porém, a existência de algum programa que vise a orientação sexual para esta clientela faz-se necessária na medida em que, estando internado e por vezes em “crise”, sem o discernimento daquilo que é ou não de sua própria vontade, acaba por sofrer algum tipo de violência sexual. Oficina de Saúde & Sexualidade : vivenciando o problema Diante da perspectiva da construção de um novo modelo assistencial em Saúde Mental no contexto histórico da atual Psiquiatria, faz-se necessária a busca de novos métodos terapêuticos que visem melhor atender os usuários do sistema de saúde mental, sem com isso recorrer à institucionalização e à medicalização da loucura. A criação de Centros de Atenção Diária veio suprir a necessidade de realizar um trabalho junto aos pacientes psiquiátricos sem que estes necessitem permanecer na Instituição. Com isso criaram-se recursos diversos, tais como: grupos operativos, grupos de familiares, atendimento ambulatorial e oficinas terapêuticas. Foi pensando em como abordar a prática do sexo seguro dentro e, principalmente, fora da instituição e orientar os indivíduos que estão ou já estiveram internados em uma Instituição Psiquiátrica a se prevenirem de doenças sexualmente transmissíveis e também da Aids, criamos a Oficina de “Saúde e Sexualidade”, na qual há um espaço para discussão da sexualidade e prevenção das DST e Aids juntos aos usuários de serviço de Saúde Mental. Esta Oficina se propõe a discutir temas referentes aos cuidados com a saúde e sexualidade, enfatizando a importância da prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids, através de dinâmicas de grupo, onde os usuários podem expressar suas dúvidas e sentimentos em relação a sua sexualidade, bem como aprender a usar corretamente o preservativo. Os temas abordados são trazidos, em sua maioria, pelos participantes e vão desde infidelidade, impotência sexual devido ao uso de medicação, violência sexual, dificuldade em manter uma relação afetiva estável, homossexualidade, prática sexual em Instituição Psiquiátrica até como são transmitidas as DST e a Aids e como praticar o sexo seguro. Os grupos são formados por usuários de ambos os sexos, o que possibilita uma rica troca de experiência, além da discussão à respeito das diferenças de gênero. Contudo, observamos que existem diferenças nas abordagens de acordo com o setor que realizamos cada Oficina. Por exemplo : no Centro de Atenção Diária, as preocupações dos participantes estão mais SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 49 voltadas para a dificuldade de encontrar um (a) companheiro (a); para o desconhecimento do funcionamento do próprio corpo; para a dificuldade de ter uma identidade sexual definida e para a interferência da medicação no desempenho sexual, especialmente entre os homens. É comum o relato de violência sexual entre as mulheres e como isso interfere nas suas vidas afetiva e sexual. Na Enfermaria, a discussão está centrada no exercício da sexualidade durante a internação. Nossa experiência se desenvolveu em uma Instituição onde as enfermarias são divididas por estado psíquico e não por gênero.: Enfermaria 1 – pacientes com quadro agudo, em franca crise; Enfermaria 2 – o quadro dos pacientes é intermediário, entre a crise e sua alta. Assim, temos homens e mulheres compartilhando o mesmo espaço físico durante a internação. Isto requer maior vigilância por par te dos profissionais de Saúde Mental e maior disponibilidade destes em abordar os pacientes que por ventura se envolvam emocionalmente neste período. Sendo assim, nossa intervenção se direciona no sentido de discutir as implicações dos possíveis envolvimentos afetivos e sexuais no momento da internação. Para isto, desenvolvemos o conceito de responsabilidade social. Isto significa discutir com os pacientes que estão mais orientados sua responsabilidade com aqueles que estão menos orientados, logo mais vulneráveis a serem vítimas de alguma violência física ou sexual. Em moradia assistida, a discussão se dá na dificuldade de exercer a sexualidade no local de residência, especialmente quando este serviço funciona dentro de uma instituição psiquiátrica O tema central gira em torno da autonomia versus responsabilidade institucional. Enfim, em qualquer situação, todos os participantes trazem suas contribuições, e como grupo procuram acolher as dificuldades e levantar alternativas para encaminhar as questões trazidas por cada um. Ao final de cada encontro são distribuídos preservativos para todos que participaram da atividade, menos aqueles que estão internados, recebendo-os apenas por ocasião da licença ou alta hospitalar. Os participantes mostram interesse em aprender como usar corretamente o preservativo e mostram evidências de que são capazes de usá-lo regularmente. Diante disso, constatamos que a atividade de grupo pode se constituir uma alternativa de prevenção das DST/Aids em Saúde Mental, uma vez que possibilita ao participante desenvolver um papel ativo e crítico durante o processo grupal. São eles que propõem os temas, as soluções, mudanças e, eventualmente, estabelecem limites. Podemos afirmar, ainda, que há um aprendizado mútuo entre os usuários, estejam eles internados ou não, e técnicos em relação à atividade proposta. Conclusão Mudança de comportamento para redução de risco para a Aids é um processo lento e complexo entre a população saudável. Para os chamados doentes mentais, a impulsividade e diversos distúrbios de personalidade, são cofatores que não coadunam com recomendações para redução de risco. Nossa experiência tem mostrado que falar livremente sobre sexualidade, parece ser uma maneira eficaz de torná-los informados da grande necessidade de prevenir doenças de nossos dias, especialmente entre aqueles que não tem acesso a informações sobre prevenção. Acreditamos com isso, estarmos contribuindo para a diminuição da vulnerabilidade dos doentes mentais ao HIV e às DST através da informação, da troca de idéias e experiências à respeito de sua sexualidade, além de desmistificar tais sexualidades em uma nova abordagem à assistência integral ao paciente psiquiátrico. Essa experiência tem mostrado a importância de conhecermos e respeitarmos cada vez mais a vida sexual dos doentes mentais crônicos, cuja realização faz parte de seu bem estar. Assim, estaremos satisfeitos se, com tais reflexões, sensibilizarmos a equipe de Saúde 50 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Mental em relação a este aspecto de fundamental importância para a vida destes pacientes, que antes de o serem, possuíam (e ainda possuem) sua individualidade, bem como todo e qualquer ser humano. Além de apresentar à sociedade a necessidade de reconhecer e manter a cidadania e os direitos destes indivíduos que tanto sofrem devido aos preconceitos e estigmas socialmente construídos. BIBLIOGRAFIA BIRMAN, J. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. Biblioteca de Saúde e sociedade, v. nº 3. _________. Sexualidade na instituição asilar. 1ª ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980. MANN, CG. HIV & Loucura: os dois lados da mesma moeda. Dissertação de Mestrado. Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1996. _________ Sexualidades & Saúde Mental: um olhar institucionalizado. Monografia final do Curso de Especialização de Assistência ao Psicótico. Instituto de Psiquiatria/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998. OLIVEIRA, SB. Loucos Por Sexo: Um Estudo sobre a Vulnerabilidade dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental. - Rio de Janeiro: UFRJ/IPUB, 1998, 114p. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Instituto de Psiquiatria. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 51 Di v er sificando a Lingua gem na Oficina de Sexualidade Diversif sificando Linguag Oficina Sexualidade Cláudia Simone dos Santos Oliveira * A efetivação dos avanços alcançados com a Lei da Reforma Psiquiátrica, nº 10.216 de abril de 2001, que dispõe sobre a humanização dos métodos de tratamento e a inclusão social dos portadores de sofrimento psíquico, é um dos desafios atuais da Saúde Mental. Muitas preocupações originaram-se desta nova possibilidade de relacionamento da sociedade com a loucura. Uma delas é a dos profissionais de Serviços de Saúde Mental no que se refere ao perigo dos usuários de se contaminarem em relações sexuais no espaço institucional, a partir do momento que o surgimento da Aids mudou as regras do jogo. A Aids vem redefinir a relação entre o paciente e o profissional, colocando em cheque todos os tabus, medos e incertezas diante da multiplicidade de emoções que são vivenciadas dia-a-dia. É hora de usarmos a criatividade. O mundo da Aids não pode nos congelar. Experiência pioneira no Brasil tem sido desenvolvida por MANN & OLIVEIRA desde março de 1996, com a criação da Oficina de Saúde e Sexualidade que tem por objetivo discutir temas referentes aos cuidados com a saúde e a sexualidade, enfatizando a importância da prevenção das DST/Aids. Segundo OLIVEIRA (1998) o baixo nível de escolaridade e renda; longo tempo de tratamento psiquiátrico; alto índice de reinternações em diversas instituições psiquiátricas; vida sexual ativa e o não uso de preservativo; a troca de sexo por dinheiro; drogas ou outros favores ; alta incidência de violência sexual; e a ocorrência de relações sexuais desprotegidas nas instituições psiquiátricas, tornam os usuários de serviços de Saúde Mental vulneráveis ao HIV. É primordial, portanto, atentar para a vulnerabilidade dessas pessoas à infecção pelo HIV/ Aids para assegurar-lhes seus direitos: humanos e civis. Em 1998, o Hospital Psiquiátrico Jurujuba/Niterói abriu suas portas para a implementação do Projeto Piloto “Saúde Mental e Aids”, iniciando uma significativa trajetória para a construção da mentalidade preventiva em DST/Aids dos usuários dos serviços de Saúde Mental, em parceria com a Fundação Municipal de Saúde, Grupo Pela Vidda/Niterói e com a Coordenação Nacional de DST/Aids. A necessidade de criação de uma peça teatral com pessoas portadoras de sofrimento psíquico tendo como tema base o desenvolvimento de conhecimentos, de atitudes e de habilidades para a prevenção da população à qual o projeto dedicava sua atenção, trouxe a Oficina de Teatro Oficina eatr tro Pirei Cenna, Pir ei na Cenna coordenada por mim, para este cenário. Desenvolver um trabalho de sexualidade e prevenção em DST/Aids com usuários de Saúde Mental através do Teatro é um grande desafio, cheio de surpresas, buscas, encontros e desencontros. Falar de Aids não é fácil, as pessoas evitam tocar no assunto. A Aids mexe com o limite e traz à tona sentimentos que nem sempre estamos dispostos a vivenciar. Como sensibilizar os usuários para a criação de uma peça que falasse de loucura, sexualidade e prevenção? Não foi tão difícil como imaginava, pois a demanda desta clientela em relação às dúvidas, informações e curiosidades ligadas diretamente as questões de sexualidade são inúmeras, e se tornaram uma força motriz para a construção de cenas criativas e espontâneas. Minha proposta não foi utilizar o Teatro convencional. Esse me pareceu não ser adequado diante de séculos de opressão. Buscando técnicas que dinamizassem de forma criativa a atuação dos usuários-atores, encontrei um forte aliado no Teatro do Oprimindo (TO) que se define como o teatro * Psicopedagoga, Professoara de Artes Cênicas e Coordenadora da Oficina de Tetaro Pirei na Cenna. 52 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. das classes oprimidas e de todos os oprimidos BOAL (1980). O conceito e a prática do Teatro do BOAL Oprimido se entrelaçaram com a idéia de Reforma na Saúde Mental. Porque o Teatro do Oprimido ? Os mitos construídos em torno das pessoas que sofrem de problema mental, levam-nas a sofrerem silenciosamente, passarem por situações de desrespeito, medo, vergonha, maus tratos, violência, rejeição, carregando consigo estigmas, resultando em exclusão. E excluindo, estamos afastando, tentando eliminar, omitindo, expulsando. O que é a exclusão se não uma poderosa forma de Opressão ? Através do Teatro do Oprimido foi possível discutir conceitos fundamentais para que o usuário pudesse: desenvolver a auto-estima, gostar e conhecer seu próprio corpo, encarar sem culpa a sexualidade, reconhecer e respeitar as diferentes formas de atração sexual, compreender que a sexualidade faz parte do desenvolvimento humano, identificar e expressar seus sentimentos, buscar ajuda e informações, quando necessário. Ainda sobre essa magia, fascínio e poder do Teatro, BOAL (1996) afirma que o Teatro “é BOAL aquela capacidade ou propriedade humana que permite que o sujeito se observe a si mesmo, em ação, em atividade. O autoconhecimento assim adquirido permite o ser sujeito (aquele que observa) de um outro sujeito (aquele que age) permite-lhe imaginar variantes ao seu agir, estudar alternativas. O ser humano pode ver-se no ato de ver, de agir, de sentir, de pensar. Ele pode se sentir sentindo, e se pensar pensando”; questões consideradas por mim essenciais para o processo de mudança de comportamento, principalmente entre essa população. “A Aids até o presente momento não tem cura, mas a prevenção pode impedir que as pessoas entrem no círculo da Aids.” Herbert de Souza (Betinho) Contribuindo para a construção da mentalidade preventiva, de forma consciente e sistemática, sem preconceito ou barreiras, 2 peças foram montadas : “Ser ou não ser positivo” e positiv “Um Amor muito Louco”, que romperam os muros do hospital e apresentaram o lado saudável da Louco” loucura às comunidades de Niterói. Promovendo a troca de informações e de experiências entre diversos segmentos da sociedade na área da sexualidade e de prevenção, o Gr upo de Teatro Pir ei na Cenna se apresentou no IV Grupo eatr Pirei tro Congresso de Prevenção em DST/Aids – Descentralização e sustentabilidade, Cuiabá , 2001, que reuniu 1.800 participantes no Centro de Eventos Pantanal. O espetáculo “Um Amor muito louco” foi desenvolvido em parceria com MANN & OLIVEIRA iniciada no ano 2000, tornando-se o primeiro passo para a consolidação de um trabalho que vem sendo desenvolvido em nível nacional para o treinamento de profissionais de serviços psiquiátricos para o desenvolvimento de ações de prevenção e aconselhamento das DST/Aids e tratamento dos portadores de HIV entre usuários de Saúde Mental. Nessa atuação direta junto aos usuários, ficou comprovado mais uma vez que uma metodologia participativa é muito eficaz no desenvolvimento de ações preventivas, favorecendo positivamente o trabalho do profissional de Saúde Mental, na construção da mentalidade preventiva de sua clientela. eatr tro possível para abor dag borda Tea tr o do Oprimido : um caminho possív el par a a a bor da g em das questões em sexualidade A metodologia que apresentei para os profissionais de Saúde Mental, como um caminho possível para a abordagem da Sexualidade dos Loucos, foi a do Teatro do Oprimido para diversificar as linguagens na Oficina de Sexualidade. Esta Oficina deve tornar mais simples e divertida a reflexão sobre temas tão difíceis quanto SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 53 os relacionados com o exercício da sexualidade. A utilização do TO em Cursos e Treinamentos para profissionais de Saúde Mental na prevenção às DST/Aids, vem comprovando que os exercícios, os jogos e as técnicas teatrais: dinamizam as discussões; proporcionam uma melhor compreensão e assimilação dos temas; permitem imaginarmos possibilidades; facilitam a troca de conhecimentos e reflexão sobre mudanças de atitudes. Experimentando as diferentes linguagens, essa concepção metodológica para a realização de Oficinas de Sexualidade em Saúde Mental auxilia os participantes a: desenvolverem uma comunicação clara nas relações interpessoais; compreenderem o seu comportamento e do outro e; tomarem decisões responsáveis acerca do exercício da sexualidade. Na busca da promoção de uma vida cada vez melhor para os envolvidos no cuidar, o exercício da criatividade, da espontaneidade, do treinamento de respostas diferentes para questões corriqueiras, que envolvem esse cuidar, auxiliam o profissional a vencer tabus e preconceitos relacionados à sua sexualidade e a do usuário. Assim como, respeitar pessoas com valores sexuais e estilos de vida diferentes dos seus. Além de defender o direito de todas as pessoas obterem informações precisas a respeito da sexualidade, evitando atitudes discriminatórias e intolerantes. Nesta perspectiva, o profissional, a par tir de uma escuta atenciosa e compreensiva, proporcionará um cenário mais atraente para que o usuário possa expressar questões relacionadas a sua sexualidade. Tudo isto favorece o trabalho para o desenvolvimento de conhecimentos, de atitudes e das habilidades para a prevenção. Uma metodologia participativa é condutora de novas motivações e o Teatro do Oprimido na prevenção multiplica os contextos, amplia as possibilidades e redefine os dispositivos assistenciais, rediscutindo as sexualidades de uma forma VIVA. Por intermédio da informação, da troca de idéias e de experiências, buscamos pelo menos minimizar, com essas atividades, o ainda existente preconceito da sexualidade na loucura. BIBLIOGRAFIA BOAL, Augusto. 200 exercícios e jogos para atores e não-atores com vontade de dizer algo através do teatro, 6ª ed., Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1985. _______________. Jogos para atores e não-atores ?, 2ª ed., Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1999. _______________. O Arco-íris do desejo : o método Boal de Teatro e terapia, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. _______________. Stop: C’est Magique !, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1980. _______________. Teatro do Oprimido e outras poéticas, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1988. _______________. Teatro legislativo : versão beta ?, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1996. LONGO, PH & SILVA, EF. O Livro das Oficinas, 3a ed., Rio de Janeiro : Velocípede, 1998. 60 p. MANN, CG & OLIVEIRA, SB. Oficina de Saúde & Sexualidade : um novo dispositivo de saúde mental em tempos de Aids In : Compreensão e crítica para uma clínica de enfermagem psiquiátrica, Cadernos PUB, nº 19, Rio de Janeiro : UFRJ / IPUB, 2000. OLIVEIRA, SB. Loucos por sexo : um estudo sobre a vulnerabilidade dos usuários dos serviços de saúde mental para o HIV. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psiquiatria / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Agosto / 1998. 54 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. De Volta à R esidência... Residência... Em uma Oficina contei a seguinte história : “...existe uma pessoa aqui no albergue que está contaminada com o vírus da Aids e está transando com todo mundo sem camisinha. O que o grupo faria para resolver o problema?” Elba – “O pessoal daqui é que vai resolver o problema da Aids.” Valquíria – “Se engravidar faz mal para o bebe, sai aleijado, descontrolado.” André Luís – “Chama a polícia e bota na cadeia, quem tiver contaminado por estar transando sem camisinha.” Joelson – “É alguém que quer se vingar do mundo através das pessoas, é triste ! Fazendo mal as pessoas.” André Luís – “Partir para o abraço.” Joelson – “Levar todos para fazer exame.” Sara – “Eu não dou problema. O problema é lá em cima em alguém falando. Podia arranjar um jeito de botar camisinha.” André Luís – “Aconselhar a pessoa para não fazer mais isso !” Madalena – “Já morri ! Dá choque, sei não.” José Maria – “Eu não sei. Usar camisinha.” Valquíria – “É a mesma fabricação da luva.” Vitor – “Parar de transar, falar com a pessoa para não fazer mais isso.” Estela – “Separar a pessoa das outras.” Perguntei, então, se fariam o teste. Joelson disse que não sabe, Elba e Sara disseram que fariam. Valquíria pergunta como se descobre os sintomas da Aids. Como Elba disse que quem tinha que resolver o problema era a equipe, pedi então que os técnicos também se manifestem no sentido de solucionar a questão colocada. Os profissionais levantam as seguintes alternativas : “...primeiro fazer o teste com aconselhamento; ...realizar testagem geral (compulsória); ...realizar testagem geral (consentida); ...eu aconselharia todos para testagem; ...acho que deveríamos informar ao grupo que existe uma pessoa contaminada; ...identificar o grupo com prática sexual e aconselhar para testagem...” Quando se inicia a discussão sobre testagem compulsória, Elba se manifesta e diz : “eu não dou meu corpo não.” Perguntei o que queria dizer com isso, e ela repetiu : “se eu não quiser não dou meu corpo”, e apontava para o braço como alguém que vai tirar sangue. Isso foi muito interessante, pois ela estava sinalizando que se ela não consentisse não faria o exame. Peço, então, ao grupo que escolham uma ou mais alternativas propostas por todos. Sara diz : “conversar com todos.” André Luís diz: “aconselhar a pessoa para ela não fazer mais isso para não precisar de punição.” O grupo concorda. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 55 56 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Ética Médica, Dir eitos do Paciente e Aspectos Direitos Paciente Por ortador Vírus Leg Legais do Por tador do Vír us da Aids Patricia Diez Rios * A saúde, prevista nos artigos 6º e 196 de nossa Constituição está elencada na categoria de direito social, e é concebida como direito de todos e dever do Estado, que deve garanti-la mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos. O direito à saúde é regido pelos princípios da universalidade (para todos, independente de contribuição previdenciária) e da igualdade ( de maneira igualitária para todos) de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperam. As ações e serviços de saúde são de relevância pública, por isso, ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público. Assim é que os diversos ramos públicos e privados, que se organizam para a prestação de serviços médicos estão sujeitos às normas éticas estipuladas para o controle das atividades dos profissionais envolvidos na manutenção, promoção e recuperação da saúde de nossos pacientes. Direitos Humanos são os direitos fundamentais de todas as pessoas, sejam elas portadoras de deficiência, mulheres, índios, idosos, etc... e todos, enquanto pessoas, devem ser respeitados e sua integridade física protegida e assegurada. A luta pelo respeito aos Direitos Humanos é indispensável para superarmos as exclusões existentes e desenvolvermos uma consciência de respeito entre os cidadãos e é também caminho obrigatório no treinamento dos profissionais de saúde e educação. A Ética é, segundo a Filosofia, a ciência da Moral. Diariamente, no exercício de nossas profissões nos deparamos com situações que suscitam o conhecimento e o estudo da Ética. Devemos saber que os códigos de ética das nossas profissões são instrumentos que devem ser conhecidos e utilizados, e não, esquecidos na lida diária, como infelizmente freqüentemente se noticiam fatos que estariam implicados com a assistência (ou a falta dela) prestada à população, insinuando-se possíveis violações de normas éticas, administrativas, penais e de direito civil. Todo cidadão é, perante o Estado, sujeito de direitos e deveres; não há lógica para a carga de preconceito e discriminação que acompanha a epidemia de Aids e os usuários dos serviços de Saúde Mental. No caso da Aids, conhecemos as formas de contágio e o mesmo não ocorre nas relações sociais. A solidariedade ainda é o melhor remédio e antes de tudo, o desconhecimento das leis inibe as ações, possibilita transgressões e estimula a omissão. Por isso, conhecer seus direitos, ajudar no resgate da cidadania e lutar pela vida com dignidade é obrigação de todos nós, membros da sociedade em geral e profissionais de várias áreas que iremos nos deparar com situações onde poderemos estar prevenindo, garantindo, defendendo e ampliando os direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids e dos usuários dos serviços de saúde mental. O Código de Ética Médica orienta a prática médica em todo o território nacional, submetendo também, as Organizações de prestação de serviços médicos e todos os profissionais envolvidos (art. 107 CEM). Caso ocorram questionamentos em nosso dia-a-dia que não estejam contemplados explicitamente na legislação ou nos códigos, são respondidas através de Resoluções dos Conselhos de Medicina que devem estar atentos às demandas do exercício ético da medicina e procurar resolvêlas. Outro instrumento utilizado para responder aos questionamentos do dia-a-dia é o Parecer que exprime a opinião do Conselho. Então profissional de saúde, caso possua dúvidas ou questionamentos não hesite em formular consulta ao Conselho de Medicina. Sua dúvida ou questionamento pode ser * Advogada do Grupo Pela Vidda/Niterói - Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 57 também o mesmo de outras pessoas e sua resposta pode até mesmo transformar-se em jurisprudência para o exercício da medicina, tomando a forma de um parecer. Exercite seus direitos e deveres. Principais Tópicos: TESTA João azendo para TESTA GEM COMPULSÓRIA – J oão está ffazendo seleção par a ser admitido em az nov empre futuro patrão infor saber um no v o empr e g o e o seu futur o pa trão inf or mou-o que iria pedir o teste par a sa ber Aids. empre corr se ele tem Aids. A conduta do empr e g ador está cor r eta? Não. A Por taria Interministerial nº 869/92 dos Ministros da Saúde, Trabalho e Administração proíbe a testagem para detecção do vírus HIV nos exames pré-admissionais e periódicos de saúde dos trabalhadores. Ninguém pode ser obrigado a realizar o teste. Em qualquer situação (como por exemplo internação e trabalho) só pode ser feito com o consentimento da pessoa. Legalmente a realização do exame é obrigatória quando da doação de sangue, órgãos ou esperma. O Ar tigo 7º, Inciso XXI da Constituição Federal proíbe qualquer discriminação no critério de admissão do trabalhador. Tomando conhecimento deste fato, denuncie ao Conselho Regional de Medicina ( Resolução 1.359/92 do Conselho Federal de Medicina ) e à Delegacia Regional do Trabalho. APOSENTADORIA MORTE A UXÍLIO DOENÇA - APOSENTADORIA - PENSÃO POR MOR TE –Marina fficou doente icou teira pag consegue tra balhar, de Aids e não conse gue mais tr a balhar, ela possui car teir a assinada ou pa g a a sua autonomia. O que ela, sua família ou sua empresa deve fazer? Em caso de incapacidade por mais de 15 dias consecutivos o empregador deve encaminhar Marina para o Auxílio Doença, o contrato de trabalho ficará suspenso e o INSS fornecerá o benefício enquanto permanecer a incapacidade. Para o portador do vírus da Aids, independe do período de contribuição à Previdência Social (não há carência).. Sendo a incapacidade definitiva, o direito a aposentadoria é assegurado. Em caso de morte os dependentes recebem o benefício sob a forma de pensão. Inciso I da Lei 7.670/88. Procure o posto do INSS mais próximo de sua residência. F.G.T.S .G.T PASEP ASEP. tadora LIBERAÇÃO DO F.G .T.S e PIS - PASEP. - Ana Lúcia descobriu que é por tador a do valor alores Aids, vír us da Aids , ela está bem de saúde mas descobriu que pode sacar os v alor es do PIS FGTS. ver erdade? e do FGTS. É ver dade? Sim. Neste caso, o levantamento dos valores correspondentes ao FGTS, independe da rescisão do contrato de trabalho. Inciso II da Lei 7.670/88. Procure a Agência da Caixa Econômica Federal centralizadora de sua conta, levando a declaração do seu médico acompanhada do seu exame para detecção do HIV. Para o PIS a Resolução nº 2/92 do Conselho Diretor do Fundo de Participação PIS/PASEP, autoriza a liberação do saldo das contas do PIS/PASEP, independente de aposentadoria. DEMISSÃO ARBITRÁRIA – O patrão de Manoel descobriu que ele estava com Aids, permite Aids, e o despediu. A lei per mite esta demissão? Entendemos que o trabalhador soropositivo só pode ser demitido por “justa causa”. Houve um projeto de lei em tramitação para proibir a demissão, só dependia da sanção do Presidente para tornar-se Lei, mas o presidente vetou esta lei. O fato do indivíduo ser soropositivo não justifica a demissão, pois o contato em relações de trabalho e social não é causa de transmissão do vírus HIV. O que pode ocorrer em caso de doença é o encaminhamento ao INSS para Auxílio doença ou aposentadoria. Caso a pessoa trabalhe em área de risco para a sua saúde deve ser readaptada para nova função. Artigo 7º, Inciso I da Constituição Federal. Ocorrendo esta hipótese, denuncie à Delegacia Regional do Trabalho e procure um advogado. TRANSPORTE Leandro PASSE ESPECIAL DE TRANSPOR TE – Leandr o é usuário dos ser viços de saúde precisa re gular, exames mental e pr ecisa de acompanhamento médico r e gular, além dos e xames que constantemente faz. Ele possui direito ao passe livre? No Estado do Rio de Janeiro é garantida a gratuidade dos serviços de transporte coletivo por meio do passe especial para pessoas portadoras 58 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. de doença crônica de tratamento continuado e pessoas portadoras de deficiência física. Antigamente, o cadastramento era feito junto a FETRANSPORT, agora você deve procurar a ADL ( Agência de Desenvolvimento Local) mais próxima de sua residência, se tiver dúvidas ligue o Disk Saúde no 0800239191. Incisos I e II do Artigo 14 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro e Lei Complementar nº 74/91. Em caso de não aceitação do passe pela empresa de Transporte, pegue o horário e o número do ônibus, nome, endereço e número da Identidade de pelo menos duas testemunhas do fato, dirija-se à Delegacia de Polícia mais próxima e registre a ocorrência, depois procure um advogado. É direito do portador de doença crônica o acesso ao transporte para o seu tratamento. Algumas Prefeituras também disponibilizam o passe livre, procure a Secretaria de Ação social e informe-se. RENDA VITALÍCIA PRESTAÇÃO CONTINUAD ADA Márcio RENDA MENSAL VITALÍCIA OU BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINU ADA – Már cio é vírus nunca contribuiu por tador do vír us da Aids e/ou usuário dos ser viços de saúde mental, n unca contrib uiu para a Previdência como empregado ou autônomo, ou já faz muito tempo que não contribui. Agora Márcio está doente e não tem mais como trabalhar e cuidar-se por si amigos parentes dev azer? mesmo. az mesmo. O que ele ou seus amig os e par entes de v em ffazer? Márcio deve ser encaminhado a Previdência Social para provar a sua incapacidade e solicitar a concessão do benefício chamado de Renda Mensal Vitalícia. “A Assistência Social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: A garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção, ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”. Artigo 203, Inciso V da Constituição Federal, Artigo 20 da Lei 8.742/93 e Decreto nº1.330/94. Neste benefício, em caso de morte, os dependentes não tem direito a pensão. O requerimento deve ser feito junto ao posto do INSS mais próximo de sua residência e a renda mensal per capita (por cabeça) da família do doente deve ser inferior a ¼ do salário mínimo para obter o benefício. IMPOSTO RENDA Fer inv alidez ISENÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA – Fer nando ffoi a posentado por in v alide z e ele oi aposentado paga o Imposto de Renda. Ele tem direito a isenção? Sim, estão isentos do pagamento de Imposto de Renda os proventos de aposentadoria ou reforma recebidos pelos portadores do HIV e alienação mental - Ministério da Fazenda código 33, Circular 601-005.3/22 de 16.11.89. Lei 7.713/88 e 8.541/92. NOTIFICAÇÃO DA Dr. Pedr rece edro ecebeu NO TIFICAÇÃO DA DOENÇA – Dr. Pedr o r ece beu um paciente por tador do vír us para tratamento. dev notificar públicas? da Aids par a tr a tamento. Ele de v e notif icar às autoridades púb licas? Sim, a notificação da doença à autoridade pública pelo médico é compulsória e um dever legal, sua omissão é crime previsto no Código Penal, artigo 269. No entanto, a notificação é apenas para a autoridade pública e preenchimento de atestado de óbito. SIGILO PROFISSION OFISSIONAL- Dra Sr. Antônio, infor Q UEBRA DE SIGILO PR OFISSION AL- Dr a Maria, médica do Sr. Antônio, inf or mou infectado Aids. corr a um vizinho que ele está inf ectado pelo vír us da Aids. A conduta está cor r eta? Não, e a médica deve ser punida. A revelação do diagnóstico e de fatos de que se tenha conhecimento pelo exercício profissional é crime de Violação de Segredo Profissional previsto no artigo 154 do Código Penal, além da possibilidade de ser enquadrado nos termos do Código de Ética da profissão e Resolução 1.359 do Conselho Federal de Medicina. Esta mesma Resolução prevê os casos de justa causa para proteção da vida de terceiros, quando o paciente se recusa a informar parceiro sexual ou membro de grupo de uso de drogas endovenosas sobre sua condição sorológica. Neste caso, a quebra de sigilo é permitida. enfer meira ADICIONAL INSALUBRID UBRIDADE Solange ADICION AL DE INSALUBRIDADE – Solang e tr a balha como enf er meir a em um hospital para tratamento do HIV/Aids. Ela tem direito a receber adicional de insalubridade? Sim, a Portaria Ministerial nº3.214/78 estabelece adicional de 40% aos profissionais da área de saúde expostos à risco de sangue contaminado. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 59 precisa realizar cirur urgia NORMAS UNIVERSAIS DE BIOSEGURANÇA – Mário pr ecisa r ealizar uma cir ur gia e o exame para vírus HIV, seu médico solicitou exame par a detecção do vír us HIV, sob a desculpa de que não poderia equipe. colocar em risco sua vida e a de sua equipe. Esta solicitação tem fundamento? Não, o médico sabe como proteger-se com determinadas normas nos procedimentos que adota, sejam cirúrgicos ou não. Estas normas são universais e determinadas pela Organização Mundial de Saúde e Ministério da Saúde e tem que ser observadas independentemente da patologia do paciente. DIREITO VIDA TRATAMENTO ADEQU Sérgio procur ocurou Dr. DIREITO À VIDA E A TRATAMENT O MÉDICO ADEQ U ADO – Sér gio pr ocur ou o Dr. cardíaca infor Silva para Silv a par a tr a tamento de doença car díaca e inf or mou que é paciente psiquiátrico com neg tamento. nações. histórico de inter nações . O médico desculpou-se e ne g ou o tr a tamento. O médico recusado poderia ter r ecusado o paciente? .Não. A saúde é um direito reconhecido pela Constituição . Federal e o Código de Ética Médica em seu artigo 1º estabelece que a medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade, e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza. Caso fosse portador do vírus da Aids, está atitude também seria incorreta , pois de acordo com o artigo 1º da Resolução nº1.359/92 do Conselho Federal de Medicina o atendimento profissional a portadores do Vírus HIV é um imperativo moral da profissão médica e nenhum médico, instituição pública ou privada pode recusá-lo. Também é vedada a testagem compulsória como condição necessária a internação hospitalar, pré-operatório, exames pré-admissionais ou periódicos (artigo 4º) Constituição Federal Ar tigo 196 “A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido Artig tigo mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. INVIOLABILIDADE DO DIREITO À VIDA E DO ACESSO A SAÚDE – André está doente Pre precisa tra tamento. nunca contribuiu para e pr ecisa de tr a tamento. Ele n unca contrib uiu par a a Pr e vidência Social. Ele tem direito ao tratamento? Sim, é preceito constitucional a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza art 5º C.F.; o artigo 196 estabelece que “ a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário as ações e serviços para a sua omoção, ecuperação proteção”. promoção recuper promoção, recuper ação e proteção”. A Lei nº 8.080/90 regulamenta em todo o território nacional as ações e serviços de saúde que são o dever na relação jurídica de saúde que tem no polo ativo qualquer pessoa e a comunidade. LIVRE ACESSO AO PRONTUÁRIO – Joana faz tratamento continuado em uma unidade de saúde e pretende mudar-se para outra cidade. Ela pode pedir ao seu prontuário? médico a cópia do seu pr ontuário? Sim, o CEM estabelece em seu ar tigo 70 o acesso do paciente ao seu prontuário, ficha clínica ou similar, e que o laudo médico deve ser fornecido sempre que solicitado (art74), no entanto, devemos lembrar que em razão do sigilo médico devemos atestar sempre que está sendo fornecido o requerimento a pedido do cliente, o CID ou menção ao diagnóstico só deve ser colocado por concordância ou a requerimento do paciente. VERTICAL TESTA Alessandra grávida procur ocurou TRANSMISSÃO VER TICAL – TESTA GEM – Alessandr a está g rávida e pr ocur ou o para realização pré-natal. conv hospital par a o acompanhamento e r ealização do pré-na tal. A médica con v er sou com ela sobre os benefícios da realização do teste anti HIV no pré-natal e perguntou se ela azer exame xame. agiu corr g ostaria de ffazer o e xame . A médica a giu cor r etamente? Sim, no entanto, mesmo com toda az a importância do diagnóstico precoce para evitar a transmissão vertical, devemos nos ater ao que está disposto no CEM art 46; “ é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévio do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente risco de vida”, e apenas solicitar o teste com o assentimento do paciente, caso contrário estaríamos procedendo a testagem compulsória que é arbitrária e ilegal. Marcos enfer mag erma DOS AUXILIARES – Marcos é auxiliar de enfer ma gem em uma unidade de saúde onde 60 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. ator amoso az para psiquiátricos. enfer ermeium ator ffamoso ffaz acompanhamento par a distúrbios psiquiátricos. Na condição de enfer meipatolo tologia ator tor. r o ele descobriu a pa tolo gia da doença do a tor. Ele pode contar este ffa to par a outr as a para outras pessoas? Não, o segredo médico profissional alcança os auxiliares e compete ao médico zelar para que seja respeitado (art 107 CEM) bem como é vedado facilitar o manuseio e conhecimento dos prontuários pelos demais profissionais. SOCORRO Dr. Marcelo emergência OMISSÃO DE SOCORR O - Dr. Mar celo está de plantão na emer gência e ausentouse para ir ao bar da esquina tomar um café. Chegou um paciente HIV positivo e bronquite enfer meiro gr por tador de distúrbios psiquiátricos com uma g r a v e crise de br onquite e um enf er meir o chamá-lo para atendimento Dr. Marcelo infor tendimento. acabasse f oi c hamá-lo par a o a tendimento. Dr. Mar celo inf or mou que assim que aca basse o dez minutos havia alecido atendimento lanche atendê-lo tendê-lo. lanc he iria a tendê-lo. A pós de z min utos o paciente ha via ffalecido sem o a tendimento necessário. médico necessário. É criminosa a conduta do médico? Sim. Prestar assistência ao necessitado é dever legal que protege a vida e saúde do paciente. Neste caso ainda terá o agravante de homicídio culposo. Negligenciando no atendimento com o qual não manteve nem contato pessoal e só por exemplo limitou-se a receitar através de enfermeira contribuiu de forma eficaz para a morte e enquadra-se assim, na figura do homicídio culposo. O médico tem o dever jurídico de cuidar do paciente por relação jurídica anterior ao fato e não simplesmente a prática do crime de omissão de socorro. ABANDONO INCAPAZ CRIME DE AB ANDONO DE INCAPAZ – Almeida ffoi a bandonado e está inter nado oi abandonado quadro clínico há vários meses em um hospital psiquiátrico com um quadr o c línico que o tor na incapaz de avaliar a sua situação e cuidar-se. O seu médico não tem prescrito os mente. muito re r emédios necessários e m uito menos acompanha o paciente r e gular mente . O médico e a família praticaram o crime de abandono? Sim, abandonar pessoa que está sob o seu cuidado, e incapaz de defender-se dos riscos causados pelo abandono é crime. O médico deve proteger a saúde e a vida do paciente, pois assume a posição de garantidor por contrato ou convenção, para guardar absoluto respeito pela vida humana e não pode destarte, simplesmente lançá-lo ao abandono. O mesmo se dá com a família do paciente, pois os parentes tem o dever legal de cuidados recíprocos. vírus MEDICAMENTOS Juliana tadora A CESSO A OS MEDICAMENTOS NECESSÁRIOS – J uliana é por tador a do vír us HIV e infor mudança sofrerá f oi inf or mada pelo médico que seu tr a tamento sofr erá uma m udança pois criou resistência aos medicamentos que utiliza. O médico prescreveu um medicamento que estav disponível direito rece eceber não esta v a disponív el na ffar mácia. Ela tem dir eito a r ece ber este medicamento? Sim. ar . A Lei 9.313/96 dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do vírus HIV. A Constituição Federal leciona em seu artigo 196 que “saúde é direito de todos e dever do Estado”. A Lei 8.080/90 em seu artigo 6º ( Lei do SUS) inclui no campo de atuação do SUS a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, da mesma forma dispõe a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, artigo 296 que a assistência farmacêutica faz parte da assistência global à saúde. Quando o paciente não consegue adquirir os medicamentos necessários ao seu tratamento, independente da patologia que é portador, na farmácia da unidade onde faz seu acompanhamento, deve procurar um advogado para que ingresse com uma ação objetivando obtê-los judicialmente de uma das três esferas que compõem o SUS (União, Estados ou Municípios). Leandro tra PLANOS DE SAÚDE – Leandr o é por tador de doença crônica de tr a tamento uado, prescr exames nação. continuado contin uado , o seu médico pr escr e v eu alguns e xames e inter nação. O plano de saúde azer atendê-lo tendê-lo. Leandro dev az ?. r ecusou-se a atendê-lo. O que Leandr o de v e ffazer ? Em caso de negativa no atendimento, internação, cirurgias, etc... o paciente deve buscar socorro junto ao Poder Judiciário. O amparo para a pretensão é a Lei nº 9.656/98 e também a Resolução nº 1.401/93 do Conselho Federal de Medicina que estabelece a obrigatoriedade de atendimento a todas as enfermidades relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde, por parte das empresas de Medicina de SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 61 Grupo, Cooperativas Médicas e outras, outro argumento é o Código de Defesa do Consumidor ( Lei 8.078) que ampara o respeito a dignidade e saúde do consumidor e transparência nas relações de consumo em seu artigo 4º. O artigo 6º da mesma lei protege o consumidor contra práticas e cláusulas abusivas e desleais impostas no fornecimento do serviço. O Artigo 51, Inciso IV considera abusivas e portanto nulas as cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada e restringe direitos fundamentais inerentes à natureza do contrato; portanto, ocorrendo a negativa, procure um advogado. sofreu urgia retir etirada INFECÇÃO POR TRANSFUSÃO – Aline sofr eu uma cir ur gia par a r etir ada do apêndice e o seu quadro clínico agravou-se sendo necessária a transfusão sangüínea. hepa patite A pós alguns meses descobriu que ffoi contaminada pelo vír us da Aids ou he pa tite C ou oi ocorrido? sífilis ilis. sífilis. Isto poderia ter ocor rido? Não. A partir de 1988 com o advento da Lei nº7.649, todo o sangue coletado deve ser submetido a realização de exames laboratoriais para detecção de Hepatite B, Sífilis, Doença de Chagas, malária e Aids. Neste caso, ela deverá buscar na Justiça uma Indenização compensatória prevista no Código Civil artigo 159 “Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. DISCRIMINAÇÃO DANO MATERIAL DISCRIMINAÇÃO / DANO MORAL - MATERIAL – A vizinhança de Lia, usuária de um comunidade unidade, era tadora ser viço de Saúde Mental próximo de sua com unidade , descobriu que ela er a por tador a unidade. env expulsou comunidade do vír us HIV e a e xpulsou da com unidade . O compor tamento das pessoas en v olvidas ffoi oi corr cor reto? Não, o portador do vírus da Aids não pode ser discriminado por sua sorologia e o usuário dos serviços de Saúde Mental por sua patologia, como estabelece a Constituição Federal no ar tigo tigo caput put: 5º caput “Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza...” .Inciso V: “ É Inciso assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material ou à imagem”. Inciso X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Inciso XLI: dispõe “que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. DISPONIBILIDADE orqua quato viv viv DISPONIBILID ADE DOS BENS – Tor qua to não tem ffilhos nem pais vi v os e vi v e ilhos anos. gostaria em companhia de uma pessoa há vários anos . No caso de sua mor te ele g ostaria de para dev az azer? deixar seus bens par a esta pessoa. O que ele de v e ffazer? Toda pessoa que não possuir herdeiros necessários ( filho, netos, pais, avós) pode dispor por testamento ou doação da integralidade de seus bens. Em caso de existência de herdeiros necessários poderá dispor de 50% de seus bens. Desta forma, se há companheiro ( união de fato e não de direito ou exista união não reconhecida legalmente) ou alguém que se queira beneficiar com os seus bens para depois de sua morte, aconselhamos que procure um Car tório ou faça um testamento par ticular obedecendo os seus requisitos. Em caso de doação, aconselhamos a cláusula de usufruto como garantia de permanência da pessoa no bem doado. CRIANÇAS E ADOLESCENTES VIVENDO COM Aids - Às crianças e adolescentes vivendo com Aids são assegurados os mesmos direitos dos adultos além dos amparos especiais previstos no estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). O direito à educação é garantido pela Constituição Federal e pela Portaria Interministerial nº 796/92. Caso a mãe ou pai tenha o desejo de decidir antecipadamente o destino da criança com receio de que a Aids os impeça de fazê-lo, podem fazer uma declaração com testemunhas de que desejam que a criança seja cuidada (guarda ou adoção) após sua morte ou impedimento por uma determinada pessoa, que pode ser uma avó, tio, vizinho ou amigo. Recomendamos que caso os pais possam deixar pensão para os filhos seja feita a guarda para que sejam mantidos os laços de família com a família original. Conclusão 62 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Diariamente nos deparamos com situações nunca antes imaginadas e desconhecidas pelo Poder Judiciário; por isso, reforçar a idéia de que a pessoa vivendo com Aids e os usuários dos serviços de Saúde Mental são sujeitos de direitos e deveres como qualquer cidadão é pensar em saídas positivas para todas as dificuldades que porventura venham a ser encontradas no futuro. OBS: Os casos descritos acima foram baseados nos casos colhidos no plantão de assistência jurídica do Grupo Pela Vidda Niterói. Os nomes são fictícios. BIBLIOGRAFIA Ventura da Silva, M. Legislação sobre DST/Aids no Brasil - Ministério da Saúde - 1995 Brasil: Lei Orgânica da Assistência Social, Lei nº 8.742/93. Brasil: Lei do Sistema Único de Saúde-SUS, Lei nº 8.080/90. Brasil: Constituição da República Federativa do Brasil, Constituição Federal, 1988. Brasil: Lei nº 7.713/88 - Imposto de Renda Brasil: Lei nº 9.313/96 Brasil: Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90. Brasil: Código Civil Brasil: Código Penal Brasil: Código de Ética Médica Conselho Federal de Medicina Brasil: Legislação em Saúde Mental 1990-2001 / Coordenação de Saúde Mental . Brasília, Ministério da Saúde, 2001 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 63 Aconselhamento em HIV/Aids par a pacientes para psiquiátricos: uma experiência Ana Cristina Monteiro * Narda Nar da Ner y Te bet ** Durante muitos anos, a prática do Aconselhamento em psicologia ficou banida do mundo acadêmico por não ser considerada uma metodologia científica. A sua prática era restrita a conselhos religiosos e morais, realizada por padres, pastores, e conselheiros ligados às comunidades. A epidemia de Aids trouxe de volta ao mundo acadêmico a possibilidade do aconselhamento como estratégia terapêutica e de prevenção no combate da proliferação da epidemia, uma vez que, é um dos espaços onde as pessoas afetadas poderiam estar recebendo informações e revendo suas condutas comportamentais com o objetivo maior da prevenção e discutindo questões referentes ao viver com HIV e Aids. O aconselhamento então, se configura como possibilidade de criação de um espaço terapêutico onde serão discutidas não somente as questões objetivas relacionadas à doença, como também as questões subjetivas que irão permear a vida do sujeito. O espaço do aconselhamento, surge como a possibilidade de se estar discutindo a saúde apesar da doença. O avanço da epidemia de Aids, a introdução do conceito de comportamento de risco, e de vulnerabilidade ao HIV trouxeram à tona novas discussões a respeito da conduta sexual da população, fazendo com que autoridades e sociedade civil organizada voltassem suas atenções para segmentos marginalizados da população como por exemplo, população carcerária e os usuários dos serviços de Saúde Mental. Tornou-se evidente que tais segmentos tem uma vida sexual ativa e que seria imprescindível a criação de estratégias preventivas direcionadas a essas populações. Neste contexto, o Grupo Pela Vidda/Niterói em parceria com o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba implantou, em 1998, o Projeto piloto “Saúde Mental e Aids”. Projeto este que teve suas ações ampliadas em 2000, no “Projeto Intervenção em Prevenção às DST/Aids e Fortalecimento da Cidadania entre Usuários de Serviço de Saúde Mental”. Neste Projeto, houve a introdução de um espaço de aconselhamento para usuários do Hospital Psiquiátrico Jurujuba, que tinha por objetivo o oferecimento da testagem sorológica para HIV, para pacientes que, em algum momento houvessem se submetido a alguma situação de risco de infecção. Em 2001 foi implantado o projeto Centro de Treinamento para Profissionais de Serviços Psiquiátricos em Sexualidade e DST / Aids no qual foi incluído um treinamento para profissionais de saúde de Instituições Psiquiátricas de todo Brasil. O treinamento direcionado a esses profissionais, faz parte das estratégias que visam uma melhor capacitação frente às ações de prevenção das DST/HIV. Cabe lembrar que estes projetos foram financiados pela – Coordenação Nacional de DST/Aids e UNESCO. Oficinas de aconselhamento em HIV/Aids integram a programação básica dos treinamentos e se configuram em um espaço onde são discutidos e apresentados conceitos teóricos e estratégias de abordagem direcionadas ao público alvo. Durante as atividades, procuramos sensibilizar os profissionais de saúde para condutas fundamentais que o aconselhador deverá seguir, a fim de que se estabeleça um vínculo pautado na relação de confiança entre profissional e usuário, onde a comunicação deve ser o mais clara e objetiva possível. Essa relação deve ser orientada para um apoio de ordem emocional e a transmissão * ** Psicóloga, Terapeuta de Família e Casal, Coordenadora de Recepção e Aconselhamento do Grupo Pela Vidda/Niterói. Psicóloga, Terapeuta de Família , Coordenadora de Capacitação de Voluntários do Grupo Pela Vidda/Niterói. 64 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. de conteúdos informativos e preventivos, de forma que se torne possível adequá-los à vivência e singularidade de cada indivíduo, objetivando utilizar os recursos internos do usuário a fim de que assim, ele possa se reconhecer como sujeito da sua própria saúde e transformação. De acordo com as diretrizes e procedimentos básicos do Ministério da Saúde, são quatro os principais objetivos do processo de aconselhamento em DST/HIV/Aids: 1. Apoio emocional; 2. Troca de informações sobre formas de transmissão, prevenção e tratamento; 3. Avaliação de riscos, onde se reflete acerca de valores, atitudes e conduta; 4. Estabelecimento de estratégias de redução de risco No processo de aconselhamento, deve-se priorizar as seguintes diretrizes: 1. Exercício de acolhimento: o profissional deve ter uma atitude receptiva em relação ao usuário, ou seja, este deverá se sentir apoiado, a fim de que possa sentir-se confortável para falar de suas fragilidades e angústias; 2. Escuta ativa: deverão ser identificadas as reais expectativas, dúvidas e necessidades do usuário, procurando a expressão dos sentimentos relacionados à possibilidade de testagem ou do seu diagnóstico; 3. Comunicação competente: deve-se estabelecer um diálogo entre profissional e usuário, onde as informações deverão ser passadas de forma clara e objetiva e, principalmente adequadas às reais necessidades do usuário; 4. Avaliação de riscos: a partir da vivência do usuário, o profissional deverá avaliar as condutas de risco do mesmo, para melhor orientá-lo em relação a estratégias mais eficazes de prevenção, podendo incluir a demonstração do uso correto do preservativo; 5. Oferecer testagem anti HIV e aconselhamento pré e pós-teste, reafirmando o caráter confidencial e voluntário da testagem, identificando o motivo do oferecimento sem no entanto esquecer de atentar para: a) Identificar as crenças e valores do usuário acerca de DST/HIV/Aids; b) Utilizar linguagem compatível com a cultura do usuário; c) Identificar barreiras para a mudança das situações de risco, e contribuir para a elaboração de um plano viável de redução de riscos; d) Avaliar possíveis dificuldades quanto ao uso do preservativo e sua superação; e) Ajudar o usuário a reconhecer sua responsabilidade e possibilidades de lidar com seu problema; f) Lembrar que, o consumo de álcool e outras drogas lícitas ou ilícitas, pode alterar a percepção de risco; g) Explicar os benefícios do uso exclusivo de equipamentos de drogas injetáveis e demostrar o uso de correto de limpeza e desinfecção de seringas e agulhas; h) Estimular a auto-estima e autoconfiança; i) Estimular o usuário a adotar as orientações recebidas como “Filosofia de Vida”. Dessa maneira é possível ao usuário: 1. Reduzir o nível de stress; 2. Perceber os próprios comportamentos de risco e adotar práticas mais seguras; 3. A adesão ao tratamento; Metodologias utilizadas nas oficinas de aconselhamento: Fazendo uma breve apresentação da técnica de Aconselhamento, optamos por dividir as oficinas em três momentos distintos: SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 65 Primeiro momento: Realização da dinâmica do “Segredo”, onde questões referentes a escuta e a disponibilidade do ouvinte no papel do aconselhador são trabalhadas, esta dinâmica servirá de aquecimento para o outro momento. Ex. O grupo é dividido em duplas, e é solicitado as mesmas que conversem sobre questões de ordem pessoal durante um curto espaço de tempo. Ao final, pede-se aos participantes que descrevam os sentimentos que a experiência proporcionou: sentiram-se acolhidos, foi difícil se expôr ... Segundo momento: Apresentação das diretrizes técnicas e éticas da atividade de Aconselhamento e discussão sobre as expectativas, conceitos, conhecimento prévio dos participantes acerca do que significa realizar/participar de um processo de Aconselhamento. Ex.: Esta atividade é realizada através da dinâmica “Tempestade de Idéias” e discussão de texto teórico elaborado pelos coordenadores da Oficina. erceir ceiro Terceiro momento: São dados um ou dois casos de possíveis situações com usuários do serviço de Saúde Mental ao grupo, que vai discuti-los e depois dramatizá-los. Esta atividade permite que impasses, aspectos afetivos/emocionais, dúvidas sobre encaminhamentos, sejam vivenciados pelos profissionais. Em seguida é pedido aos participantes que digam como se sentiram no papel de aconselhadores e/ou de pacientes. Exemplos: Caso 1 - Um usuário do NAPS, procura a psicóloga do serviço bastante ansioso, dizendo que manteve relações sexuais na semana anterior com um travesti, e como havia ingerido álcool não se recorda de ter usado preservativo. Ele diz que só vai sair daquela sala com um teste para o HIV. Pergunta-se ao grupo qual o encaminhamento dado a esta situação: testagem? Caso 2 - Paciente do sexo masculino, trinta anos, várias internações. A equipe de enfermagem queixa-se de encontrá-lo praticando sexo oral freqüentemente, com outros pacientes também internados, que trazem para o corpo técnico a seguinte questão: Será que peguei Aids? . Qual o encaminhamento possível nesta situação: treinamento para a equipe de enfermagem? Aconselhamento / para quem? Oficinas de sexo seguro e de sexualidade? Caso 3 - Uma mulher usuária de um CAPS é encontrada seminua, na rua e ensangüentada. Ela relata que foi violentada por várias pessoas, mas que não se lembra muito bem como tudo aconteceu. A família a leva para o CAPS no qual ela é atendida solicitando que seja feito um teste AntiHIV. Como a equipe deve proceder? Conclusão Os usuários da rede de serviços de Saúde Mental pertencem a uma população com alto grau de vulnerabilidade para as DST e HIV/Aids, ou seja, é comum haver por parte destas pessoas uma distorção da percepção em relação ao risco de infecção, além da dificuldade de adoção de medidas preventivas e de acesso ao tratamento quando já infectados. Portanto, é fundamental que estes serviços contem com profissionais sensibilizados quanto à problemática da Aids e capacitados a lidar com essa questão junto a seus pacientes, através da técnica do Aconselhamento. O profissional que se dispõe a realizar esta atividade dentro de sua Instituição, deve estar atento a alguns pontos: identificar o grau de vulnerabilidade de seu público; criar estratégias de prevenção e redução de risco de infecção ao HIV e outras DST, específicas a cada setor (ambulatório, hospital-dia, enfermarias); fortalecer o intercâmbio com a equipe multidisciplinar; avaliar da efetividade das ações, a fim de que, estejam assegurados a este segmento da população, o acesso a medidas preventivas e ao tratamento adequado quando necessário. 66 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. BIBLIOGRAFIA COSTA J., História da Psiquiatria no Brasil. Editora Xenon. Rio de Janeiro, 1989. FILGUEIRAS, S. Aconselhamento no Contexto das dst. Brasília:[s.n], 1996. FOUCAULT, M., Historie de la Sexualité - La Volonté de Savoir, Paris: Gallimard, 1976. GOFFMAN. E. Manicômios Prisões e Conventos. Editora Perspectiva 1987. Ministério da Saúde. Aconselhamento em DST, HIV e Aids - Diretrizes e Procedimentos Básicos, Brasília, DF, 1999. Ministério da Saúde. Relatório: Seminário de Aconselhamento. CN DST/ Aids, Brasília, DF, 4-5/12/1996. ROGERS, C. Terapia Centrada no Cliente Ed. Livraria Martins, 1974. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 67 68 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Em outro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)... O grupo iniciou com o Claudio fazendo a demonstração do uso do preservativo e dizendo que para colocá-lo é preciso que o pênis esteja ereto. Evandro então falou : “Eu já tive o pênis muito ereto e me masturbei e foi com mulher. Mas agora meu pênis está pequeno pra baixo e eu preciso de um tempo para me excitar”. Dinalva então pergunta : Você já tentou se masturbar ? Evandro então responde : “Já, mas foge do contexto do amor”. Dóris completa : “Não sente aquele prazer”. Dinalva então fala : “Prazer, que coisa boa, me leva para lugares diferentes e aí chego ao orgasmo”. Claudio então ressalta que 2 palavras surgiram no grupo : Prazer e Orgasmo. Ele pergunta o que essas palavras representa para cada um dos participantes. Silvia Maria diz : “O homem e a mulher tem que atingir”. Dinalva diz : “Quando os dois chegam juntos ao final, ao êxtase, aí completam um instante mágico dos dois lados”. Evandro fala : “Quando ambos se sentirem prazerosos é que eles combinam.” Dóris : “É uma coisa assim, de bem estar, gostoso, estranho”. Claudio então diz que o prazer não se limita apenas ao sexo, mas que existem outras coisas na vida que dão prazer. Fala da diferença de prazer e orgasmo. Dinalva diz que existem várias formas de orgasmo. Pode ser no toque, no sexo oral, inclusive é uma coisa que gosta muito. Dóris, então, diz que não pode ver homem com peito cabeludo, que fica toda arrepiada. Interessante destacar que Dóris sempre foi uma pessoa muito quieta no grupo, e suas opiniões são muito impessoais. Condena algumas formas de sexo, mas observo que se soltou mais nessa reunião. Claudio pergunta a Tereza o que ela acha do prazer e do orgasmo. Tereza fica muito inibida e diz que se sente envergonhada de falar. Depois de um tempo ela responde : “É uma coisa que a gente gosta na pessoa”. Evandro pergunta o que é instintivo ? Dinalva responde: É uma coisa interna que a gente bota pra fora”. Rui diz que : “Prazer pra mim é usar camisinha”. Silvia Maria diz : “Prazer é acariciar o corpo todo da pessoa, é tirar a roupa da pessoa e aí no ato da sexualidade sentir prazer com o outro”. Evandro : “Prazer pra mim, é ver alguma coisa para me sentir estimulado. Ver o corpo da namorada, ver filme na TV, alguma coisa que me dê tesão. Tirar a roupa da parceira, lamber seu corpo, acariciar o seio, mamar bastante o seio. Assim estimula o pênis para ficar ereto para usar camisinha. Sentir prazer pela pele e pelo coração, as duas coisas ao mesmo tempo”. João: “Prazer é a satisfação de fazer alguma coisa que gosta, não necessariamente ligada ao sexo. Por exemplo, comer um bolo de chocolate”. Dinalva diz : “Isso é orgasmo culinário”. Leda diz que não sabe se já sentiu prazer. Diz que tem muita vontade de “dar”, mas tem medo de ser internada. Pergunto o porquê. Diz então que acha que pode ficar doida e desorientada e sua família interná-la. Dóris então fala : “O homem diz que a mulher é fria, que ele batalha, batalha, batalha mas não consegue nada”. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 69 Claudio então pergunta: porque será que isso acontece? João então fala : “Na verdade a mulher foi preparada para dar prazer e não para sentir prazer. Li sobre isso numa revista onde homens e mulheres falam sobre prazer sexual”. Evandro então fala : “Quando há problemas sociais e de trabalho, a gente acaba sentindo falta de vontade de ter sexo. Quando a pessoa não tem dinheiro para pagar o motel, e não tem trabalho, isso deixa a pessoa triste e sem vontade de ter sexo...” 70 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Capítulo IV Loucura loucura A Aids na Loucura (ou a loucura da Aids) SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 71 72 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. “Aids e Dr o g as: Vulner a bilidades” Dro ulnera Rober P aulo Rober to Telles Dias * Os primeiros casos de Aids entre usuários de drogas injetáveis (UDI) foram detectados no ano de 1981 na cidade de Nova Iorque. Estes poucos casos iniciais não foram considerados como um grande problema de saúde pública, tanto por ocorrerem em uma área geográfica restrita, como numa população muito estigmatizada e sem poder político. Pouco tempo depois, a situação vai se revelando mais grave com o registro de casos em Los Angeles e São Francisco. Com o desenvolvimento dos testes para detecção do HIV, a real dimensão do problema vem à tona. Constata-se que cerca de metade dos UDI de Nova Iorque (COHEN ET AL, 1985; MARMOR ET AL, 1987 ) e da região nordeste de Nova Jersey (WEISS ET AL, 1985 ) estavam contaminados pelo HIV, na Europa este quadro não era muito diferente, cerca de 30% dos UDI estavam contaminados em Amsterdan (VAN DEN HOEK ET AL, 1988 ); em Edimburgo (ROBERTSON ET AL, 1986 ) e em algumas partes da ROBERTSON Itália (ANGARAMO ET AL, 1985) as taxas de infecção eram de aproximadamente 50%. O uso compartilhado de drogas injetáveis passa a representar um dos mais importantes fatores de risco na transmissão do HIV, tornando-se uma questão de saúde pública de âmbito mundial. Os UDI, por sua vez, apresentam-se como um segmento populacional de difícil acesso e com práticas ainda pouco conhecidas e muito estigmatizadas. Atualmente, no mundo industrializado, o uso de drogas injetáveis é uma das categorias de exposição mais citadas entre os casos de Aids. Nos países em desenvolvimento o consumo de drogas pela via injetável está se tornando um hábito com prevalência cada vez mais elevada, sendo responsável em alguns países pela rápida disseminação do HIV entre os UDI. O uso de drogas injetáveis já foi identificado em mais de 100 países e na maioria deles foi observada a infecção pelo HIV nesta população. Encontram-se particularmente ameaçados os países STIMSON, onde as drogas são produzidas ou que servem de rota para o tráfico (STIMSON, 1993). Alguns estudos sugerem que haveria ao menos dois componentes que colaboraram para a JARLAIS, rápida disseminação do HIV entre os UDI (DES JARLAIS, 1993). Um deles era a desinformação sobre os mecanismos de transmissão do HIV - em algumas regiões, o vírus já estava sendo disseminado entre os UDI muito antes de ter sido descoberto; em outras, apesar dos mecanismos de transmissão da Aids já estarem bem documentados, muitos UDI não tiveram acesso a estas informações, e portanto, não se motivaram a mudar seus hábitos de risco. O outro componente foi o mecanismo chamado de disseminação eficiente (“efficient mixing”) - quando o compartilhamento de equipamentos utilizados para a injeção é facilitado pela não disponibilidade de equipamentos esterilizados (ex. proibição de venda nas farmácias, dificuldades de aquisição, etc.) O uso de drogas injetáveis também é responsável (direta ou indiretamente) por um considerável número de outras doenças infecciosas (e problemas clínicos) além da infecção pelo HIV, como por exemplo, as hepatites B e C (CARVALHO ET AL., 1994). Flebites e septicemias também CARV não são incomuns e podem ser causadas pela falta de higiene no local da injeção, contaminação da droga, do equipamento, ou do material diluente. Também ocorrem casos de intoxicações fatais (overdoses) e efeitos colaterais causados por substâncias adicionadas às drogas - impurezas tais como pó de mármore, borato de sódio, sal de frutas, talco, anestésicos, outras drogas, etc. O espectro destas infecções nos UDI imunossuprimidos pelo HIV, pode ser bem maior do que o encontrado em não usuários (SELWYN ET AL, 1988 & 1989; STONEBURNER ET AL, 1988). SELWYN STONEB ONEBURNER Entre as infecções, temos as pneumonias bacterianas, a tuberculose, a endocardite, a candidíase * Paulo Roberto Telles Dias, MD, MPH, PhD. NEPAD-UERJ, Coordenador do Projeto de Redução de Danos SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 73 vaginal, o câncer de colo uterino e a doença inflamatória pélvica (não sendo raros os óbitos decorrentes destas infecções). O recente aumento relativo de casos de Aids entre mulheres pode ser considerado tanto como um indicador do crescimento da transmissão heterossexual, aí incluindo uma importante parcela de contaminações através de parceiros UDI ou bissexuais infectados (QUINN, 1989); como de uma substancial proporção de mulheres com Aids cuja categoria de exposição foi o próprio uso de drogas injetáveis (cerca de 26,4% dos casos de Aids em mulheres adultas entre 1988 e 1993) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994 ). Com relação à droga utilizada, há em nosso país uma característica básica, o predomínio da cocaína como droga de escolha dos UDI. Em diversos trabalhos, a proporção do uso de cocaína em relação a outras drogas injetadas é superior a oitenta por cento (GIANNA ET AL, 1989; LIMA ET MESQUIT UITA AL, 1991; TELLES ET AL, 1992; MESQ UITA ET AL, 1992 ). Tal característica contrasta com a maioria dos países da Europa, Ásia e os Estados Unidos, onde uma droga com características diferentes, a heroína, é a principal droga consumida. Em Nova Iorque e São Francisco, o uso de cocaína por via injetável tem mostrado uma forte associação à infecção pelo HIV, tanto em estudos com populações de rua (FRIEDMAN ET AL, 1989) como na amostra de centros de tratamento (CHAISSON ET AL, 1989; DES JARLAIS ET AL, 1988 ). Podemos notar que a cocaína, por ter uma meia vida mais curta no organismo, em geral é usada com uma freqüência de injeções maior do que os opióides. O número elevado de injeções da cocaína aumentaria o risco de infecção pelo HIV entre os seus usuários, por aumentar a possibilidade da reutilização do mesmo equipamento por mais de uma pessoa (MARMOR, 1987; CHAISSON, 1987). Outros fatores também parecem estar associados ao maior risco de infecção entre os usuários de drogas injetáveis, tais como a viabilidade do HIV nos meios de preparação (entre eles o diluente utilizado) e diferenças nos níveis de infecção (background levels) das redes de uso. O tratamento e prevenção da infecção pelo HIV nos usuários de cocaína apresenta ainda mais um aspecto problemático, não existe, até o momento, qualquer tipo de tratamento de substituição (equivalentes ao da metadona para os usuários de heroína) para as pessoas dependentes da cocaína. Conforme já foi assinalado anteriormente, desde que a Aids começou a ser reconhecida como um problema de saúde pública, tem havido uma grande preocupação com a velocidade com que o vírus pode se disseminar entre as pessoas que fazem o uso de drogas por via injetável, e conseqüentemente, com as formas de prevenir esta disseminação. Atualmente, segundo estudiosos no campo das drogas e Aids, merecem destaque duas grandes linhas de ação com relação à diminuição dos efeitos nocivos causados pelo consumo de drogas, incluindo as injetáveis (FRIEDMAN, 1994). a) Medidas repressivas Estas medidas visam diminuir os efeitos nocivos associados ao uso de drogas exclusivamente através de medidas repressivas. O foco central desta ação se resume ao uso de drogas ilícitas (as drogas lícitas recebem tratamento diferenciado) - todos os esforços devem ser concentrados em reduzir o consumo das drogas e prevenir que novas pessoas comecem a usá-las, apoiando-se, na força de leis que criminalizam o uso e numa ação policial/militar que teria como objetivo reprimi-lo. O movimento encerra em seu contexto alguns aspectos como, por exemplo, a criminalização pelo consumo/posse de drogas, e críticas a programas de prevenção que não tem como meta exclusiva a interrupção do uso de drogas. Para muitos dos defensores de uma sociedade com tolerância zero para as drogas ilícitas, elas são colocadas como bode expiatório daquilo que é indesejável ou temido na sociedade, sendo colocadas como causadoras de violência e outros males sociais. De uma maneira geral medidas repressivas tem se mostrado ineficientes em diminuir os 74 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. problemas relacionados com o uso de drogas e também em diminuir o uso/tráfico/produção de drogas. Por vezes marginalizando o usuário e acentuando a barreira para que estes procurem ajuda nos programas de saúde. b) Redução de danos O conceito de redução de danos (do inglês harm reduction) relacionado ao uso de drogas surgiu em 1926 na Inglaterra, tendo sido descrito em um relatório médico, o Relatório Rollestron. O documento propunha o uso de opióides (em doses decrescentes) como a melhor forma de tratamento para os dependentes destas drogas. A estratégia de RD evolui ao longo do tempo e incorpora, no início dos anos 80, a troca de seringas no como uma de suas ações fundamentais, visando dar conta da difusão de casos de hepatite B entre usuários de drogas injetáveis em alguns países da Europa. Entretanto, foi com o surgimento da Aids que o movimento de redução de danos, minoritário até então frente as políticas antidrogas americanas, passa progressivamente a ter maior visibilidade no cenário mundial. O conceito central do movimento de redução do dano (RD) é relativamente simples, e se baseia em alguns fatos como: i) o uso de drogas (principalmente as injetáveis) tem grande chance de causar sérios danos não só para os usuários como para os que os cercam e a sociedade. ii) de que existe, na maioria das vezes, uma relativa ineficácia dos programas tradicionais, destinados unicamente ao combate do consumo de drogas em diminuir estes efeitos nocivos. Conseqüentemente, chega-se à idéia de que o principal objetivo deve ser a implementação de atividades que visem pragmaticamente a redução do dano associado ao uso de drogas e não, única e exclusivamente o combate ao uso drogas. Ou, ainda, mais simplesmente, se não for possível interromper o uso de drogas, que ao menos se tente minimizar o dano ao usuário e a sociedade, causado por este uso. O movimento de RD parte de uma visão mais realista, de que muitas pessoas nas mais diversas sociedades irão fazer uso (ou continuar fazendo uso) de drogas psicoativas, e que alguns destes usuários irão usar drogas de maneira prejudicial a si mesmos, a suas redes sociais imediatas e à sociedade como um todo. O grande avanço deste enfoque é o reconhecimento da real diversidade no consumo das drogas e o exame das mais diferentes formas de reduzir pragmaticamente os problemas associados a este uso. O uso de drogas psicoativas pelo ser humano é um hábito muito antigo, e provavelmente complicações e problemas advindos deste uso devem sempre ter existido. A partir do final do século passado porém, com a evolução das técnicas de manipular as substâncias, foram produzidas formulações mais concentradas, capazes de produzir efeitos psicoativos acentuados, e de desenvolver uma maior tolerância e dependência. Surge também nesta época, pelo desenvolvimento de equipamentos eficientes e acessíveis para a injeção endovenosa, a possibilidade de se utilizar as drogas por esta via. Como consequência destas inovações que ocorrem conjuntamente com grandes mudanças no estilo de vida nas grandes cidades, houve um aumento considerável do uso e dos danos causados pelo uso das drogas psicoativas, não só pelo efeito direto destas substâncias, como também pela possibilidade de ocorrerem associadas a esta prática, infecções (como abscessos, flebites, endocardites, etc) e transmissão de doenças (como hepatite, malária, etc). O aparecimento da epidemia de Aids determinou uma consequência adversa que era qualitativamente diferente dos problemas anteriormente relacionados com a injeção de drogas psicoativas. Diferentemente dos antigos problemas relacionados ao uso de drogas, a infecção pelo HIV é quase sempre fatal, tem um curso particularmente penoso, além disso, por ser transmitida pela via sexual, podem ser contaminados os parceiros sexuais e filhos (transmissão vertical). SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 75 Como a transmissão do HIV dependia do compartilhamento dos equipamentos de injeção e não do uso da droga em si, a prevenção, dentro de uma perspectiva da redução de danos, poderia ser feita sem que houvesse necessariamente a interrupção deste uso O aparecimento da Aids então, teve um efeito decisivo no desenvolvimento e afirmação do movimento de RD. Até o surgimento da Aids, apesar dos demais problemas associados ao uso de drogas, a preocupação central era dirigida ao problema da dependência (STIMSON, 1990). Tanto STIMSON, leis (que em geral puniam o uso) quanto modelos de tratamento eram dirigidos essencialmente à prevenção ou à cura do próprio uso. Agora a redução do uso de drogas deixa de ter este enfoque e passa simplesmente a ser mais uma entre várias outras metas a serem atingidas. Com o aparecimento (e rápida disseminação entre os usuários de drogas injetáveis) da Aids, uma nova rede conceitual se desenvolveu e ganhou força em relação ao uso de drogas. Um problema médico (a contaminação pelo vírus da Aids) associado a um comportamento específico, o compartilhamento de seringas e agulhas, passou a ser o principal foco das atenções no lugar do problema do uso e da dependência. Passa a ter capital importância a prevenção da disseminação do HIV. Aparece então, com grande força, dentro do contexto das estratégias de prevenção, o movimento de redução de danos. Desta forma, o surgimento da Aids parece ter dado aceitação e legitimidade política a este movimento. A redução do dano não conta, até o presente, com uma definição única que seja amplamente aceita. Seu campo de atividades está crescendo rapidamente e pode ainda ser muito cedo para formular uma definição que apresente uma clara demarcação entre as perspectivas deste movimento e outras que lidam com os problemas associados ao uso de drogas psicoativas. Mesmo não existindo uma definição clara e precisa, existem alguns elementos em comum que têm sido utilizados em STIMSON, SOTHERAN THERAN, quase todas as tentativas de definição do termo (STIMSON, 1990A; DES JARLAIS & SOTHERAN, 1990; STRANG, 1993). A seguir serão expostos alguns pontos em comum dos programas de redução do dano para usuários de drogas injetáveis. Em primeiro lugar, embora sejam reconhecidas as restrições da livre escolha que ocorrem na dependência às drogas, os usuários de drogas injetáveis são ainda considerados capazes de ter uma racionalidade e de alterar seus comportamentos, devendo (ao contrário de pontos de vista anteriores) ser vistos como membros normais da sociedade. Muitas vezes podem desempenhar um papel importante tanto no planejamento como na implementação de programas de prevenção à Aids. Na realidade, o trabalho dos usuários de drogas, dentro de seus próprios grupos, vem se destacando em muitas das campanhas que visam evitar a disseminação do HIV. É essencial superar a tendência à estigmatização e marginalização das pessoas com Aids e usuários de drogas, que tanto tem limitado os esforços de prevenção. Em segundo lugar, faz parte do pragmatismo da proposta de RD o emprego de diferentes métodos para alcançar uma mesma meta. Esta possibilidade, sugere que para serem alcançados melhores resultados, uma variedade de diferentes propostas de prevenção à Aids devem ser implementadas simultaneamente. Nos casos em que não for possível a interrupção completa do uso injetável de drogas, tenta-se evitar ao menos que um mesmo equipamento de injeção seja usado por mais de uma pessoa, ou, se houver o compar tilhamento, que o material seja adequadamente desinfetado. Ainda uma outra possibilidade seria estimular a mudança da via de administração da droga para uma via mais segura. Em terceiro lugar, metas idealistas com possibilidade de realização a longo prazo, devem dar lugar a metas mais pragmáticas e com possibilidade de realização a curto prazo. A RD enfatiza que a informação/prevenção alcance o maior número possível de usuários de drogas. Esta urgência se deve ao fato do HIV poder se disseminar rapidamente nas populações de usuários de drogas 76 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. injetáveis. Passa a não ter muito sentido deixar de priorizar a prevenção da Aids, em prol de outras metas com menor eficácia ou com realização a longo prazo, como por exemplo, a abstenção ou cura do uso de drogas. Diversos estudos de avaliação mostraram que os de programas de RD podem levar a um certo grau de mudança no comportamento com conseqüente redução do risco de contágio pelo HIV. Entre eles podemos citar: programas que visam dar informações, programas de troca e/ou facilitação da venda de seringas e agulhas, programas de tratamento para o uso indevido de drogas, programas de distribuição de hipoclorito de sódio para desinfecção do equipamento de injeção e programas de aconselhamento e testagem para o HIV. Estes estudos de avaliação são considerados fundamentais para as ações das estratégias de RD e para muitos são mesmo parte da própria estratégia. Esforços para clarificar os conceitos, definir os termos e introduzir maneiras de medir a eficácia das diferentes intervenções em diferentes locais, são importantes tarefas a serem implementadas. As estratégias de prevenção, baseadas no movimento de RD, bem sucedidas coincidiram em muitos pontos, entre eles podemos citar os seguintes: As ações de prevenção foram desenvolvidas (e apoiadas pelas autoridades locais) antes do HIV ter se disseminado entre os UDI da região; Criação de postos de troca de seringas e agulhas. Na maioria destes postos também estão disponíveis preservativos para os UDI; Disponibilidade de alternativas de tratamento para o uso indevido de drogas; Disponibilidade de tratamento de substituição/manutenção pela metadona, para os usuários à heroína e outros opióides; Retirada de possíveis entraves que pudessem restringir a venda de seringas e agulhas em farmácias e outros estabelecimentos comerciais; Possibilidade de prestação de serviços primários de saúde, aconselhamento e testagem anônima para o HIV; Incentivo à par ticipação dos UDI nas atividades de planejamento e implementação das ações; Trabalho de agentes comunitários (do inglês outreach workers), recrutando os UDI, ou levando as estratégias de prevenção aos locais freqüentados pelos usuários; Acesso à informação sobre drogas, infecção pelo HIV e outros temas na área de saúde, destinado ao maior número possível de pessoas; Cooperação da polícia local, para o bom desenvolvimento das estratégias. 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A imunidade natural também chamada nativa ou inata, existe desde o nascimento, natural, previamente à exposição a agentes infecciosos ou outras macromoléculas e é inespecífica Aqui inespecífica. estão incluídas as barreiras naturais do corpo como, por exemplo, a pele, e a proteção química, que pode ser exemplificada pelo ácido gástrico, entre outros componentes (sistema fagocítico, células natural killer, proteínas do complemento, proteínas de fase aguda e citoquinas) A imunidade adquirida também dita específica é induzida ou estimulada pela exposição adquirida, específica, a substâncias estranhas, sendo requintadamente específica para moléculas distintas e aumentando em magnitude e capacidade defensiva com exposições sucessivas a determinadas macromoléculas. As substâncias estranhas que induzem a imunidade específica são chamadas de antígenos ou imune específicas imunóg unógenos im unóg enos e utiliza-se o ter mo r esposta im une para nomear as r espostas específ icas decorrentes do estímulo de diferentes antígenos indutores. O sitema imune específico tem duas características muito importantes: 1) a memória imune específico imunológica – capacidade de lembrar de cada encontro com um antígeno, de tal modo que encontros subseqüentes estimulam crescentemente os mecanismos de defesa efetivos – que é a base usada para vacinação contra doenças infecciosas; e 2) a amplificação dos mecanismos de proteção da imunidade natural que a resposta imune específica provoca, direcionando ou focando esses mecanismos para sítios de entrada de antígenos, e assim, tornando-os mais aptos a eliminar as substâncias estranhas. As respostas imunes específicas são classificadas em dois tipos, com base nos componentes do Sistema Imunológico que mediam a resposta: · Imunidade Humoral – mediada por células chamadas de linfócitos B (LB), que produzem moléculas (ditas anticorpos ou imunoglobulinas), responsáveis pelo reconhecimento específico e eliminação de antígenos. · Imunidade Celular – mediada pelas células chamadas de linfócitos T (LT). Cerca de 70 a 80% dos linfócitos circulantes no sangue são LT e 10 a 15% são LB. O restante são células chamadas de linfócitos não-B e não-T ou células nulas. Neste grupo estaria incluído um grupo de células chamadas de natural killer (NK), que seriam capazes de destruir, diretamente, células tumorais, células infectadas por vírus e algumas bactérias (ex Salmonella typhi). Os LT, por sua vez, podem ser subdivididos em 2 grupos principais, baseado na presença de moléculas na superfície celular: LT CD4+ (também chamados LT helper ou auxiliares) e LT CD8+ (LT supressores e citotóxicos). Os LB e os LT citotóxicos são chamadas de células efetoras do sistema imunológico. A maioria dos antígenos não são reconhecidos pelo sistema imune na sua forma nativa. Isto requer sua captura e processamento por células ditas apresentadoras de antígenos, amplamente distribuídas no organismo: macrófagos (ex: células dendríticas no tecido linfóide, células de Langerhans * Jurema Nunes Mello, Médica Infectologista da Enfermaria de Aids do Instituto Estadual de Doenças do Tórax Ary Parreiras SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 79 na pele, células de Kupffer no fígado, células da micróglia no sistema nervoso central) e linfócitos B, sendo que estas últimas podem reconhecer os antígenos na sua forma nativa e apresentá-los. O antígeno processado é, então, reconhecido pelo linfócito T CD4+ (LT helper), que, como um maestro, orquestra a resposta imunológica, ativando as células efetoras para a resposta imune: linfócitos T citotóxicos para a resposta celular, eliminando as células infectadas com vírus e parasitas intracelulares, células tumorais ou tecidos estranhos (ex. enxertos); e linfócitos B para a resposta humoral. unodeficiência sobre infecção Imunodef 2. Nocões sobr e a inf ecção pelo Vír us da Im unodef iciência Humana (HIV) Existem 2 tipos genéticos do HIV: o HIV-1 e o HIV-2, que provocam o mesmo espectro da doença. O HIV-2 tem contribuído para a epidemia de Aids em áreas limitadas (oeste da África, França, Portugal, Angola, Moçambique, Índia). O HIV-1 é o tipo mais comumente encontrado no mundo (Américas, Europa, Ásia, leste, centro e sul da África). O HIV é um vírus RNA, per tencente à subfamília lentivírus dos retrovírus humanos, caracterizado pela presença de uma enzima (transcriptase reversa) capaz de transcrever o RNA viral em DNA (DNA proviral), permitindo, assim, a integração do material genético viral ao genoma da célula do hospedeiro. O material viral integrado é duplicado pelo maquinário da célula do hospedeiro e o DNA proviral é transcrito para RNA e traduzido em proteínas para produzir centenas de cópias virais. A enzima protease do HIV finaliza o ciclo, transformando as formas imaturas e não infecciosas do HIV na forma infecciosa, ao quebrar proteínas cruciais, que podem então ser rearranjadas dentro do vírus, após seu brotamento das células humanas infectadas. O HIV infecta, principalmente, células que apresentem na sua membrana de superfície moléculas CD4, destacando-se os LT helper (LT CD4+) e os macrófagos Tais moléculas CD4 agem macrófa os. como receptores do vírus, permitindo a invasão celular. A infecção pelo HIV provoca uma diminuição absoluta de LT CD4+ acompanhada de uma função deficitária destas células e um aumento de LT CD8+. Inicialmente, a atividade dos LT citotóxicos é rápida e efetiva para inibir a replicação viral, mas finalmente falha. Além da deficiência na imunidade celular, a função do LB é alterada de tal modo que muitos indivíduos têm marcada hipergamaglobulinemia (representando excessiva quantidade de imunoglobulinas circulantes), mas respostas antígeno-específicas prejudicadas. O marcado declínio dos LT CD4+ é devido a muitos mecanismos, incluindo: 1) destruição mediada diretamente pelo HIV; 2) destruição auto-imune de células T infectadas pelo HIV; 3) depleção por fusão e formação de células gigantes multinucleadas (sincícios); 4) toxicidade de proteínas virais para o LT CD4+ e supressão da medula óssea; 5) indução de apoptose (morte celular programada). Assim sendo, a infecção pelo HIV induz a uma progressiva perda, em número e atividade, de LT CD4+, determinando a profunda imunodeficiência observada no estágio avançado da doença, já que os LT CD4+ servem como reguladores essenciais da resposta imune normal. Apesar do HIV também infectar monócitos e macrófagos, seu efeito citopático nestas células é menos pronunciado, podendo, inclusive, estas células servirem de reservatórios para o HIV, disseminado-o para o cérebro e outros órgãos. A replicação viral se dá de modo continuado, durante toda a doença, desde o dia da infecção, o que significa dizer que, a deterioração imunológica ocorre independentemete da latência clínica. Mesmo em indivíduos assintomáticos, são produzidas até 1010 partículas virais por dia. Num processo extremamente dinâmico, bilhões de vírus e células são produzidos e destruídos diariamente. Isto acontece em todas as pessoas infectadas pelo HIV, mas a quantidade de vírus no sangue varia entre as pessoas. A quantidade de vírus circulante pode ser medida pelos níveis de RNA do HIV, num exame 80 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. conhecido como carga viral. Existe uma correlação direta entre o número de LT CD4+ e o risco de doenças oportunistas definidoras da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA/Aids). A vulnerabilidade a infecções oportunistas aumenta marcadamente quando os níveis de LT CD4+ estão menores do que 200/µl. Como parâmetros para tratamento da infecção pelo HIV são utilizados a carga viral e a contagem de células CD4+/CD8+ circulantes. sobre quadro clínico infecção HIV: 3. Noções sobr e o quadr o c línico da inf ecção pelo HIV: A infecção pelo HIV provoca um amplo espectro clínico que pode simular muitas outras doenças. Logo após a infecção, o HIV se reproduz rapidamente até que o sistema imunológico comece a reagir, produzindo anticorpos (período chamado de janela imunológica). Dentro de 1 a 4 semanas após a infecção, alguns pacientes desenvolvem uma síndrome retroviral aguda ou infecção primária (febre, mal-estar, rash, artralgias e linfadenopatia generalizada), que geralmente dura de 3 a 14 dias, seguida da produção de anticorpos circulantes contra o HIV dentro de dias até aproximadamente 3 meses. A síndrome retroviral aguda é geralmente confundida com quadros gripais ou síndrome de mononucleose. Essa condição é auto-limitada e os pacientes infectados passam ao estado de portadores assintomáticos do HIV, assim permanecendo por muitos anos (latência clínica que não é acompanhada por latência viral). Com a progressiva replicação viral, ocorre a disfunção imunológica (já descrita), ao longo de anos, dando surgimento às chamadas doenças oportunistas, caracterizando, assim, a síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA/Aids). Assim, podemos divisar 3 períodos clínicos na infecção pelo HIV: · Infecção primária ou síndrome retroviral aguda · Estado de portador assintomático do HIV · Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/Aids) Tr a tamento da Inf eccão pelo HIV Infeccão O tratamento da infecção pelo HIV está centrado em dois pilares: tratamento/profilaxia das doenças oportunistas (com uso de antimicrobianos, quimioterápicos etc) e tratamento da infecção pelo HIV propriamente dita (com uso de anti-retrovirais). O Ministério da Saúde do Brasil fornece gratuitamente os medicamentos anti-retrovirais, utilizando para isso controle estrito, incluindo o cadastramento de profissionais habilitados a prescrever SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 81 APV 1200mg 12/12h os anti-retrovirais e dos pacientes que receberão os medicamentos mensalmente. Formou uma câmara técnica, com os melhores profissionais da área, que elaborou um documento entitulado “Recomendações para Terapia Anti-retroviral em Adultos e Adolescentes Infectados pelo HIV” para uso dos anti-retrovirais a serem fornecidos pelo Programa DST/Aids. Há também um documento nos mesmos moldes para orientação do tratamento de crianças infectadas com o HIV. Ambos os documentos são periodicamente atualizados e amplamente divulgados pela internet (www.aids.gov.br), devendo ser sempre consultados. Medicamentos para tratamento/profilaxia das doenças oportunistas são também fornecidos pelo SUS. A terapia anti-retroviral, quando usada adequadamente, retarda o início da síndrome da imunodeficiência adquirida e melhora a qualidade de vida. Os medicamentos são caros, exigem horários de tomada rígidos (para manutenção dos níveis plasmáticos), usualmente apresentam uma gama de efeitos colaterais e interações medicamentosas. Dois exames são utilizados para avaliação do início ou continuidade dos esquemas antiretrovirais instituídos: a carga viral e a contagem de células CD4+. Mudanças na carga viral ocorrem rapidamente após o início da terapia anti-retroviral efetiva. O nível de células CD4+ é um fator importante, juntamente com a carga viral, para decidir sobre o início do tratamento anti-retroviral. Atualmente para uso clínico, existem 3 classes de medicamentos: duas delas com atividade sobre a enzima transcriptase reversa e uma sobre a enzima protease do HIV, usados em terapia combinada. · Inibidores da transcriptase reversa (ITR): · Análogos de nucleosídeos (ITRN): · AZT (zidovudina), d4T (estavudina), 3TC (lamivudina), ddI (didanosina), ddC (zalcitabina), ABC (abacavir) · Não-análogos de nucleosídeos (ITRNN): · DLV (delavirdina), EFV (efavirenz), NVP (nevirapina) · Inibidores de protease (IP): · IDV (indinavir), NFV (nelfinavir), RTV (ritonavir), SQV (saquinavir), APV (amprenavir) Os ITRN competem com os nucleotídeos endógenos no sítio ativo da transcriptase reversa do HIV. De modo geral, os ITRN são menos potentes que os IP e os ITRNN, mas são componentes críticos na terapia combinada. Os ITRNN atuam no sítio da transcriptase reversa causando uma mudança conformacional na enzima, que reduz sua atividade. Cada um deles é único em relação à estrutura química, mas compartilham algumas características: 1) podem provocar rash cutâneo; e 2) pode ocorrer resistência de alto nível e resistência cruzada com cada um deles - em geral, a mutação em um único ponto é suficiente para o desenvolvimento de resistência de alto nível. Os ITRNN só devem ser usados em regimes desenhados para reprimir completamente a replicação viral. O uso sub-ótimo de um ITRNN, mesmo por curto período selecionará, provavelmente, resistência rápida e, portanto, eliminará a classe inteira de drogas para uso futuro. Os IP são potentes inibidores da replicação viral. Quando usados em combinação com os ITRN, comumente se alcança um estado de supressão viral durável. 82 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. No quadro a seguir, colocamos o resumo das principais efeitos colaterais das drogas utilizadas para tratamento anti-retroviral MEDICAMENTOS ANTI-RETROVIRAIS ALGUNS EFEITOS COLATERAIS ALGUNS EFEITOS COLATERAIS Anemia, neutropenia, plaquetopenia, náuseas, vômitos, fadiga, malestar, miopatia, cefaléia, pigmentação ungueal, hepatite, acidose lática e hepatomegalia Alterações gastrintestinais, pancreatite, neuropatia periférica, exantema, cefaléia, mielossupressão, hipocalemia, hiperuricemia, hipocalcemia, hipomagnesemia, acidose lática e hepatomegalia Úlceras orais, neuropatia periférica, pancreatite, hepatite, exantema, Neuropatia periférica, anemia, cefaléia, aumento das transaminases, pancreatite (mais raramente), acidose lática e hepatomegalia Cefaléia, náuseas, diarréia, dor abdominal, fadiga, anemia, neutropenia, neuropatia periférica, pancreatite, acidose lática, hepatomegalia Náuseas, reação de hipersensibilidade, cefaléia, febre, anorexia e fadiga, acidose lática e hepatomegalia Rash, hepatite, aumento de transaminases, febre, náusea, cefaléia Rash, cefaléia , aumento de transaminases Rash, sintomas relativos ao sistema nervoso central (confusão, pesadelos, insônia, vertigem, amnésia, alucinações, euforia), aumento das transaminases, hiperlipidemia e teratogenicidade (macacas) Náuseas, cólicas abdominais e diarréia Nefrolitíase, hiperbilirrubinemia, atrofia renal, hematúria, cefaléia, astenia, fadiga, distúrbios do paladar, pele e boca secas, dor abdominal, plaquetopenia, lipodistrofia, aumento de colesterol, triglicerídeos, hiperglicemia e diabetes Parestesias periorais, náuseas, cefaléia, alteração do paladar; tonteiras, insônia, mialgia, exantema, hepatite, hiperuricemia, aumento de transaminases, colesterol e triglicerídeos, lipodistrofia, hiperglicemia e diabetes Diarréia, exantema, flatulência, náuseas, fraqueza, lipodistrofia, hipercolesterolemia, hiperglicemia e diabetes Rash, alterações gastrintestinais, parestesia oral, aumento de transaminases, colesterol e triglicerídeos, lipodistrofia, hiperglicemia e diabetes DROGA DROGA AZT DOSE 200mg 8/8h ou 300mg 12/12h ddI 200mg 12/12h (jejum) 125mg 12/12h (<60kg) 0,75mg 8/8h 40mg 12/12h 30mg 12/12h (<60kg) 150mg 12/12h ddC d4T 3TC ABC NVP DLV EFV 300mg 12/12h 200mg 12/12 400mg 8/8h 600mg dose única/d SQV IDV 1200mg 8/8h com alimento 800mg 8/8h (jejum) RTV 600mg 12/12h com alimento NFV APV 750mg 8/8h com alimento 1200mg 12/12h SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 83 NOTA: Os IP têm suas doses alteradas quando usados em combinação entre si, dimuindo, inclusive, em muitas situações os efeitos colaterais descritos. Para maiores detalhes, consulte o documento “Recomendações para terapia anti-retroviral em adultos e adolescentes infectados pelo HIV – 2000” (internet: www.aids.gov.br). Atualmente, a principal preocupação no tratamento anti-retroviral é a adesão do paciente ao tratamento instituído, já que a não adesão ao tratamento ameaça não só a efetividade dos tratamentos correntemente disponíveis, como pode resultar em mutações drogas-resistentes, levando a permanente perda de eficiência do tratamento. A prevenção da resistência torna-se de extremada importância porque existe significativa resistência cruzada entre os anti-retrovirais. A melhora na adesão pode ser conseguida com algumas atitudes dos profissionais de saúde, tais como: mostrar ao paciente a importância da adesão; esclarecer o regime medicamentoso; desenvolver um plano individualizado para integrar o regime medicamentoso às atividades diárias do paciente; sempre perguntar sobre a adesão, nas visitas médicas, procurando identificar os problemas enfrentados que possam ser solucionados. Não terá validade qualquer a distribuição gratuita de medicamentos se os pacientes não os tomarem nos horários certos, diariamente. Trabalhar a adesão ao tratamento correto é fundamental para o sucesso terapêutico dessa doença crônica, de características epidêmicas, ainda incurável. BIBLIOGRAFIA McPHEE, S.J., LINGAPPA, V.R., GANONG, W.F. et LANGE, J.D. Pathophysiology of disease – an introduction to clinical medicine, 3 rd ed, LANGE MEDICAL BOOKS/McGRAW-HILL, 2000, 662p. MINISTÉRIO DA SAÚDE. 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Cabe a nós profissionais de saúde avaliarmos a reação das pessoas atingidas por esta doença, e os recursos que elas dispõem para enfrentá-la, para podermos intervir quando necessário. Nossa observação acerca do estado emocional do paciente deve se iniciar por ocasião da indicação do teste sorológico anti-HIV. Nesse momento é importante ventilar com o paciente a hipótese do teste vir a ser positivo, procurando avaliar seus conhecimentos, preconceitos e atitudes em relação a Aids e à possibilidade de estar contaminado pelo HIV. Isto nos possibilitará estimar que tipo de suporte aquele indivíduo poderá vir a necessitar e até o momento mais oportuno para o teste. No atendimento aos pacientes com a infecção pelo HIV deve-se sempre estar atento para os distúrbios mentais que eles podem vir a apresentar. Abandono de tratamento ou dificuldades na adesão ao mesmo, menor qualidade de vida, e talvez uma menor sobrevida podem estar associados a presença de sintomas ou quadros mentais nos indivíduos infectados pelo HIV. Abordaremos nesse texto alguns pontos que podem auxiliar na detecção e abordagem terapêutica destes quadros. Em algumas fases da infecção o paciente pode evidenciar uma maior vulnerabilidade aos sintomas mentais. Devem ser destacados os seguintes momentos: a notificação do diagnóstico sorológico, a descoberta de evidências laboratoriais de queda da imunidade, o início da terapia antiretroviral, o surgimento dos primeiros sintomas somáticos, a perda da eficácia de determinado esquema medicamentoso e a fase mais avançada da doença3. Os indivíduos com história de distúrbios mentais, de transtornos de personalidade ou de uso de álcool ou drogas são mais susceptíveis de apresentar distúrbios mentais e/ou alterações no comportamento na infecção pelo HIV e devem receber atenção especial. Deve ser pesquisada na história de vida do paciente a forma como tende a enfrentar os problemas em sua vida, o que pode nos dar uma idéia de como ele tenderá a reagir ao diagnóstico e ao tratamento da infecção pelo HIV. Os indivíduos mais jovens, os mais velhos e as mulheres parecem ter maior tendência a apresentarem mais distúrbios mentais3. Diversos fatores devem ser considerados ao analisarmos os transtornos mentais associados a infecção pelo HIV e a Aids. O HIV apresenta um tropismo pelo Sistema Nervoso Central causando dano direto ao tecido cerebral e ainda favorecendo o surgimento de diversas doenças oportunistas cerebrais devido ao comprometimento do sistema imunológico. Os transtornos mentais como a depressão, a mania , a esquizofrenia, o pânico e os demais quadros mentais podem coexistir com a infecção pelo HIV. Por outro lado os transtornos mentais podem, em algumas circunstâncias, devido a dificuldade de controlar impulsos, as limitações cognitivas, a diminuição do juízo crítico, o abuso de álcool ou drogas, predispor os indivíduos a infecção pelo HIV. * Maurício de Assis Tostes, médico do Instituto de Psiquiatria e do Serviço de Psicologia Médica e Saúde Mental do HUCFF, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Medicina pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Email:
[email protected] SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 85 O teste sorológico é acompanhado por reações agudas ao estresse, em geral auto-limitadas5. Os quadros mentais mais descritos entre os indivíduos na fase assintomática são as reações de ajustamento, o abuso de drogas, e a depressão, sendo infreqüentes os quadros psicóticos e as síndromes mentais orgânicas. Na fase sintomática têm sido evidenciados por alguns autores níveis maiores de distúrbios mentais, particularmente os distúrbios mentais orgânicos 16,17,18. Destacam-se entre os pacientes hospitalizados nas fases mais avançadas o delirium e a demência 17. Na avaliação mental de um paciente com a infecção pelo HIV algumas perguntas podem ser 22 úteis : 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) Aids? 8) Que tipo de apoio o paciente dispõe em seu tratamento seja nos serviços de saúde, em termos de seguro de saúde e em seu ambiente de trabalho? Ansiedade e Reações de Ajustamento Os quadros de ansiedade são encontrados em cerca de 8% dos pacientes encaminhados para avaliação 23. No diagnóstico diferencial dos quadros de ansiedade devemos considerar os transtornos do pânico, de ansiedade generalizada, de ajustamento do tipo ansioso ou depressivoansioso, os transtornos obssessivo-compulsivos, os quadros fóbicos, os efeitos colaterais de medicamentos (como corticosteróides e pentamidina; vide quadro anexo), os sintomas de ansiedade secundários a afecções somáticas (hipertireoidismo, feocromocitoma por exemplo), os transtornos de personalidade e a abstinência ao álcool ou drogas. Em alguns casos encontramos associações de quadros mentais como depressão maior e ansiedade por exemplo. Os transtornos de adaptação ou as reações de ajustamento podem estar correlacionados a evolução da doença, aos problemas na esfera familiar, profissional ou social a ela relacionados, ou a outros fatores não associados a infecção pelo HIV. O paciente pode se queixar de insônia, tensão, nervosismo, dificuldades de concentração, irritabilidade, cansaço e dispnéia. Algumas medidas podem contribuir para o controle dos quadros de ansiedade. Exercícios físicos, técnicas de relaxamento, estímulo ao lazer, redução de estimulantes (café, mate, chás, guaraná, chocolate, cigarro) podem ser úteis. Os grupos de auto-ajuda contribuem muito para uma melhor adaptação de muitos pacientes. As psicoterapias podem auxiliar os pacientes que não conseguem lidar com as demandas trazidas pela infecção pelo HIV ou que não se beneficiam suficientemente das medidas acima mencionadas. Os psicofármacos devem ser utilizados com cautela devido as possíveis interações medicamentosas com os anti-retrovirais, principalmente com os inibidores da protease. Os benzodiazepínicos (Lorazepam, Clonazepam, Diazepam, Bromazepam, Alprazolam) devem ser utilizados por curtos períodos de tempo (até três semanas), devido ao risco de causarem tolerância, dependência, e efeitos indesejáveis. O Lorazepam é a droga com o perfil mais favorável quanto as interações medicamentosas 14, 23, 24. Antes de prescrever qualquer benzodiazepínico pesquisar as possíveis interações do mesmo com os antirretrovirais e com os medicamentos que o paciente está utilizando. Em qual estágio da infecção está o paciente? Há evidência de infecção do Sistema Nervoso Central pelo HIV? O paciente tem história de distúrbio mental? Como o paciente se infectou pelo HIV? Como o paciente vem lidando com os problemas em sua vida? Quem são as pessoas que apoiam o paciente? Quais recursos o paciente utiliza para se desligar dos problemas relacionados ao HIV/ 86 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. Quadros Depressivos A presença de sintomas depressivos pode ser considerada um dos indicadores da forma como pacientes estão interagindo com esta condição e com seu tratamento. Estes sintomas estão muitas vezes associados a um maior sofrimento emocional, ao abandono parcial ou total do tratamento, e a um prognóstico mais desfavorável. Os sintomas depressivos não devem ser sempre considerados uma resposta normal a doença. Muitas vezes os quadros depressivos não são identificados e por isso não adequadamente tratados nos indivíduos com problemas de saúde. As reações de ajustamento de tipo depressivo são muito freqüentes em todas as fases da doença, e com frequência acompanhadas de sintomas de ansiedade associados. A presença de humor persistentemente deprimido por pelo menos duas semanas deve ser pesquisada. Idéias de culpa, baixa auto-estima, dificuldade de tomar decisões, perda da motivação, insônia terminal, irritabilidade, perda de prazer nas atividades habituais (anedonia), distúrbios de concentração são freqüentemente descritos nos pacientes deprimidos, além das já mencionadas fadiga e anorexia. Em um pequeno número de pacientes podem ser evidenciados delírios. Pesquisar se o paciente sente-se pior pela manhã melhorando no final da tarde, o que é comumente visto em indivíduos com quadros depressivos moderados e graves. Deve-se avaliar sempre se há história pessoal e/ou familiar de depressão, se o paciente (ou familiar) já utilizou antidepressivo e qual a resposta. Indagar se o quadro está associado temporalmente a algum evento estressante. É imprescindível pesquisar idéias e planos de suicídio, assim como comportamentos auto-destrutivos (como o abandono do tratamento por exemplo) já que são freqüentes entre os deprimidos. Nos pacientes com história de euforia ou de mania deve-se pesquisar distúrbio afetivo bipolar. Alguns medicamentos como corticosteróides, sulfametoxizol-trimetropim, interferon, ritonavir, indinavir, foscarnet, vincristina, aciclovir, etionamida, isoniazida estão associados em alguns casos com o aparecimento de sintomas depressivos (vide quadro anexo)23. Na fase assintomática, quando os pacientes se mostram imunocompetentes, em geral o diagnóstico diferencial é conduzido sem maiores problemas. Com o avanço da doença os sintomas somáticos associados as intercorrências clínicas como perda de peso, astenia ou fadiga, retardo psicomotor e a anorexia se confundem com os da depressão, assim como aos efeitos colaterais dos diversos medicamentos utilizados tornando mais complexo o diagnóstico diferencial. A presença de distúrbios cognitivos em parte dos pacientes com a infecção pelo HIV também contribui para a maior dificuldade no diagnóstico, já que os mesmos podem apresentar dificuldades de concentração, lentificação dos processos mentais e mostrarem-se apáticos5. Abordagem terapêutica Nos casos em que predomina o componente reativo e em que a intensidade dos quadros é de leve a moderada devem ser utilizadas as técnicas psicoterápicas. Os grupos de auto-ajuda podem ser úteis em alguns pacientes. O uso dos antidepressivos é o tratamento de escolha na Depressão Maior (ou Episódio Depressivo) e nas síndromes depressivas menos graves que não respondem a psicoterapia. É imprescindível avaliar-se cuidadosamente as possíveis interações dos psicofármacos com os demais medicamentos utilizados pelo paciente (principalmente os anti-retrovirais), já que algumas combinações podem ser danosas. Atenção especial deve ser dedicada a forma de metabolização dos medicamentos. Os antidepressivos tricíclicos (Nor triptilina, Imipramina, Amitriptilina, Desipramina*) apresentam bons resultados particularmente nos pacientes assintomáticos. Os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) vem demonstrando utilidade em estudos abertos, e seu perfil de efeitos colaterais tende a ser mais favorável, devendo-se considerar seu custo mais elevado. Iniciar SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 87 sempre com doses mais baixas, cerca de metade das usualmente utilizadas principalmente nos pacientes com a doença mais avançada. Qual antidepressivo deve ser escolhido para um determinado paciente? Nos casos em que predominar insônia, perda de peso, ansiedade e distúrbios gastrointestinais como diarréia dar preferência aos tricíclicos como a Nortrptilina, a Amitriptilina e a Imipramina (a Desipramina não disponível nas farmácias convencionais no Brasil mas que pode ser obtida em algumas farmácias de manipulação é também recomendada). Os efeitos colaterais mais comuns são: boca seca, constipação, hipotensão ortostática, alterações na condução cardíaca, tremores de extremidades e aumento de peso. Nos casos em que predominar a sonolência, o aumento de peso, houver risco de suicídio, e distúrbios na condução cardíaca preferir os inibidores de recaptação da serotonina como a Paroxetina, a Sertralina, a Fluoxetina e o Citalopram. Os principais efeitos colaterais são dor ou desconforto epigástrico, náuseas, anorexia, cefaléia, insônia, tremores de extremidades e disfunção sexual. A resposta terapêutica se dá em torno de 2 semanas, porém deve-se aguardar de 4 a 6 semanas a resposta ao tratamento instituído. No caso de fracasso mudar a classe do medicamento, sendo preferível neste caso encaminhar para psiquiatra, o que deve ser sempre feito nos casos mais graves ou que envolvam risco de suicídio. Se dispõe de menos experiência até o momento na infecção pelo HIV com outros antidepressivos como a Venlafaxina, a Mirtazapina, o Trazodone, a Bupropiona, o Nefazodone. A Eletroconvulsoterapia (ECT) deve ser reservada para casos mais graves, que não respondem aos antidepressivos, ou quando risco de suicídio é muito grave. Há pouca experiência com os IMAO. A abordagem terapêutica eficaz dos quadros depressivos pode contribuir para melhorar a adesão ao tratamento, para diminuir o sofrimento emocional dos pacientes e de seus familiares e ainda pode ter repercussões benéficas em seu estado clínico. Antes de prescrever qualquer antidepressivo pesquisar as possíveis interações do mesmo com os anti-retrovirais e com os medicamentos que o paciente está utilizando. Suicídio A ideação suicida é freqüentemente relatada em diversas fases da infecção pelo HIV. Alguns fatores estão associados a um maior risco como: história de quadros depressivos ou de outros distúrbios mentais, solidão e pouco suporte social; experiências negativas relacionada ao HIV e/ou surgimento de sintomas relacionados ao HIV; história de homo ou bissexualismo ou de drogas 30. Deve-se estar atento a mensagens indiretas de ideação suicida durante a consulta ou a acidentes, abandono ou irregularidades no tratamento que podem ser evidências de impulsos autodestrutivos. Psicoterapia, psicofármacos, a participação da família e a internação psiquiátrica em alguns casos são recursos importantes para a abordagem terapêutica dos indivíduos infectados pelo HIV com ideação suicida 30. Quadros maníacos São quadros raros acometendo em geral indivíduos nas fases mais tardias da infecção pelo HIV em geral devido a síndromes mentais orgânicas. Nos pacientes sem história de distúrbio afetivo é imprescindível um exame clínico e neurológico detalhado para afastar afecções cerebrais. Alguns pacientes podem apresentar concomitantemente quadros bipolares e a infecção pelo HIV. Tratamento Existem poucos estudos controlados sobre a utilização de estabilizadores do humor em 88 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. pacientes com a infecção pelo HIV. O Carbonato de Lítio (níveis séricos entre 0,5 –1,2 mEq/l) e a Carbamazepina (400-1660 mg) são opções. Os anticonvulsivantes são as drogas de escolha nos pacientes com doença avançada ou com anomalias na TC (tomografia computadorizada) ou RM (ressonância magnética) de crânio. O Ácido Valpróico (1500-3000 mg) e o Clonazepam (1-2 mg) podem ser utilizados. Os neurolépticos em baixas doses (haloperidol 1-2mg; flufenazina 2-5mg; risperidona 1-3 mg) podem ser úteis no controle dos sintomas maníacos. Deve-se ter cuidado com a maior sensibilidade aos efeitos extrapiramidais dos pacientes nas fases mais avançadas da doença. Os benzodiazepínicos podem também auxiliar no manejo dos pacientes14, 23, 24. Antes de prescrever qualquer estabilizador do humor ou neuroléptico pesquisar as possíveis interações dos mesmos com os anti-retrovirais e com os medicamentos que o paciente está utilizando. Quadros Psicóticos Estes quadros são observados em um pequeno número de pacientes, cerca de 1 a 2% dos casos. Nos indivíduos com evidências de imunodeficiência ou nas fases intermediária ou avançada da infecção pelo HIV podem tratar-se de transtornos mentais orgânicos. Ou seja podem ser secundários às afecções clínicas que acometem direta ou indiretamente o sistema nervoso central como a toxoplasmose cerebral, a meningite criptocócica ou tuberculosa, a neurossífilis, a leucoencefalopatia multifocal progressiva, as neoplasias do SNC e a demência associada ao HIV. Nos pacientes assintomáticos (CD4>500 céls./mm3) os quadros psicóticos podem, por outro lado, estar associados a transtornos mentais preexistentes. Por vezes uma alteração grave do comportamento pode ser a primeira manifestação da infecção pelo HIV, daí a importância do diagnóstico diferencial. A doença mental pode favorecer com que determinados indivíduos exponham-se mais ao risco de contraírem a infecção pelo HIV. Estudos conduzidos entre indivíduos com distúrbios mentais crônicos nos Estados Unidos encontraram prevalência da infecção pelo HIV em torno de 6% nas amostras estudadas, muito superior a encontrada em população normal 31. Este subgrupo de pacientes requer uma abordagem conjunta da infecção pelo HIV e do distúrbio mental. Os quadros psicóticos podem ainda estar associados ao abuso de álcool ou drogas , aos efeitos colaterais de medicamentos (corticosteóides, anfotericina, agentes antineoplásicos, AZT, aciclovir, ganciclovir, sulfadiazina e dapsona; vide quadro anexo) e a quadros reativos 23. Abordagem terapêutica O tratamento dos quadros psicóticos entre os pacientes com a infecção pelo HIV assemelhase ao dos pacientes HIV- . Deve-se estar atento para a maior sensibilidade dos indivíduos nas fases mais avançadas aos efeitos colaterais dos neurolépticos e dos psicofármacos em geral, já mencionada anteriormente e as interações medicamentosas, particularmente com os anti-retrovirais. Alguns casos configuram emergências psiquiátricas quando deve ser considerada a hipótese de internação psiquiátrica. Delirium O Delirium é também conhecido como confusão mental. Ele representa uma disfunção aguda do sistema nervoso central. É mais freqüentemente observado entre pacientes com Aids hospitalizados. A demência relacionada ao HIV e outras afecções do sistema nervoso central tornam o paciente mais vulnerável ao Delirium. Este quadro se caracteriza por um alteração no nível de consciência e o paciente apresenta dificuldade de focalizar ou manter a atenção, desorientação temporo-espacial, podendo se mostrar apático ou agitado. O ciclo sono-vigília encontra-se alterado. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 89 O curso é flutuante observando-se em geral uma piora noturna do quadro mental. Podem ser observados delírios pouco sistematizados, ilusões e alucinações auditivas ou visuais. Estes quadros podem dever-se à distúrbios metabólicos, à afecções cerebrais, aos efeitos colaterais de medicamentos e não infrequentemente múltiplos fatores estão envolvidos. É imprescindível nesses casos fazer uma reavaliação clínica do paciente. Além de tratar-se o quadro clínico de base pode-se utilizar neurolépticos, como o haloperidol ou a risperidona em doses baixas para controle da agitação psicomotora, dos sintomas psicóticos e para regularizar o ciclo sono-vigília 23. Distúrbios Cognitivos e Demência: Estima-se que cerca de 6% dos pacientes com a infecção pelo HIV apresentem demência nas fases mais avançadas da doença. Observa-se um declínio na incidência desses quadros com os avanços no diagnóstico e na terapêutica. Raramente na fase assintomática e por vezes na fase sintomática da doença alguns pacientes apresentam alguns distúrbios no desempenho cognitivo, principalmente na atenção/concentração, e nas tarefas que exijam maior flexibilidade mental. Com o avanço da doença podem se configurar os quadros de demência que estão associados a um comprometimento subcortical , assemelhando-se aos quadros descritos nas doenças de Parkinson e Huntigton. Raramente se observam apraxia, afasia e agnosia características das demências corticais. A demência, ao contrário dos distúrbios cognitivos, se caracteriza por um comprometimento do desempenho dos pacientes em seu trabalho ou em suas atividades diárias. Além dos sintomas já mencionados anteriormente podem ser observados distúrbios de memória, lentificação psicomotora, apatia e abandono das atividades habituais podem estar presentes em graus variáveis. Podem ser observados em alguns casos sintomas psicóticos como delírios e alucinações. Nos casos mais avançados observam-se sintomas neurológicos como alterações na marcha e na escrita, sinais de liberação frontal, hiperreflexia. A tomografia computadorizada de crânio pode revelar sinais de atrofia cortical, alargamento dos sulcos e aumento dos ventrículos. A ressonância magnética pode evidenciar lesões na substância branca subcortical e nas regiões periventriculares. Não existem até o momento marcadores específicos confiáveis que auxiliem no diagnóstico. Os testes neuropsicológicos podem revelar alterações no controle motor fino, na resolução de problemas visuoespaciais, na fluência verbal e na memória visual. Abordagem Terapêutica As drogas antirretrovirais com maior penetração no sistema nervoso central como o AZT, Estavudina, o Efavirens, o Indinavir e o Abacavir parecem ser mais úteis. Não existem até o momento drogas específicas para o tratamento da demência. Na abordagem dos quadros de demência é essencial a orientação do paciente e de seus familiares no sentido de aprenderem a conviver melhor com as limitações impostas pela doença. A reorganização da rotina dos pacientes, e um sistema de apoio regular é muito importante nos casos mais graves. O uso de psicofármacos deve objetivar o controle de sintomas mentais como delírios, alucinações, insônia, agitação psicomotora, e sintomas depressivos entre outros. Podem ser úteis os neurolépticos em doses baixas como o haloperidol ou a risperidona 1,0-2,0 mg/dia. Os psicoestimulantes como o metilfenidato podem contribuir para uma melhora no desempenho cognitivo do paciente e para o alívio de sintomas depressivos e da apatia. Há o risco de dependência física. Devem ser utilizados portanto com cautela e sob constante supervisão. 90 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. ANEXO Efeitos colaterais mentais dos medicamentos utilizados na infecção pelo HIV: Aciclo lovir Aciclovir - Tremores, letargia, agitação, delirium, alucinações, insônia. Anabolizantes - Euforia, aumento de energia, irritabilidade, agressividade, violência, flutuação do humor, esquecimento e confusão. uberculose Anti-Tuber Anti-Tuber culose - Estado paranóide, mania, alucinações. Anfotericina B - Cefaléia, desorientação, letargia, agitação, náusea. AZT - Mania, insônia, agitação e cefaléia Ganciclovir - Pesadelos, alucinações, confusão, convulsões. Cotrimoxazole - Agitação, alucinações, tremor, distúrbio do pânico. Ciprofloxacine - Inquietação, insônia, tonteira, alucinações, confusão, ansiedade, estado paranóide. Cor ticosteróides - Ansiedade, insônia, mania ( menos comumente depressão), psicose, delirium. Dapsona - Agitação, alucinações. . DDI - Confusão, cefaléia, insônia. Efavirenz - Insônia, depressão, pesadelos e dificuldade de concentração Etionamida - Depressão oscarnet Foscar net - Fadiga, cefaléia e convulsões. Ganciclo lovir Gancic lovir - Mania, confusão. Indinavir - Fadiga Interferon - Depressão, agressividade, distúrbios de memória, letargia, confusão, distúrbios cognitivos. Isoniazida - Depressão Metronidazol - Confusão, delirium, psicose. Pentamidina - Confusão, hipotensão e sintomas de ansiedade secundários a hipoglicemia. Ritonavir Ritonavir - Fadiga, parestesia, insônia, alteração do paladar. Sulfametoxazol-trimetropim - Depressão Vincristina - Disforia, letargia, convulsões. Adaptado de Catalan, 95 (2) BIBLIOGRAFIA 1. TOSTES, MA. Qualidade de Vida de Mulheres com a Infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Adquirida. Rio de janeiro, 1998. (Tese de Doutorado, Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 145 p) 2. RABKIN, JG, FERRANDO, S. 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Prestar assistência ao usuário que, além do sofrimento psíquico, descobre-se portador de HIV requer mais do que conhecimentos teóricos, mas uma disponibilidade da equipe técnica para o enfrentamento da complexidade que esta interface produz. Assim, acreditamos que o caso clínico descrito a seguir possa contribuir para a construção de alternativas de intervenção nas situações que chegam aos Serviços de Saúde Mental. A conjugação desses dois elementos tão difíceis, mas tão presentes, cada vez mais, no cotidiano institucional, traz o desafio de rever nossa prática e criar novos caminhos para o fazer profissional. Inter nação em 05/01/2000 Identificação: Tânia, sexo feminino, 37 anos, parda, solteira, funcionária de cozinha da UFRJ, aposentada, 1º grau completo, natural do RJ, católica, moradora de rua (vivia na região da Lapa, Catete e Glória há cerca de 8 anos). Queixa Principal: “Não sei o que estou fazendo aqui... não era para eu estar aqui... eu não tenho nada !!!” História da Doença Atual (HDA): Tânia chegou ao IPUB em carro do Corpo de Bombeiros. Estava na rua, na região da Lapa, onde foi encontrada em péssimas condições físicas e de higiene. Sua irmã recebeu um telefonema de uma colega de Tânia solicitando sua ajuda. Ela conta que Tânia havia sofrido um estupro e estava sendo ameaçada de morte por pessoas com quem convivia pelas ruas. “Encontrei Tânia muito confusa, não dizia coisas com nexo... estava com as pernas e o rosto inchados e hematomas pelo corpo”. A história de Tânia, segundo sua irmã, começou há cerca de 15 anos. Ela trabalhava como funcionária da cozinha da UFRJ (Ilha do Fundão) desde os 23 anos. Nesta época, começou a fazer uso de cerveja e passou a utilizar maconha e cocaína. Sua irmã disse que Tânia sempre estava “calibrada” e passou a conviver com pessoas que também usavam drogas. Aos 27 anos, Tânia apresentou uma alteração do comportamento. Ficou muito agressiva física e verbalmente. “Queria bater até em nossa mãe”, disse sua irmã. Nesta mesma época, sua irmã conta que Tânia ficou um bom tempo em casa, muito desconfiada, trancava as portas, dormia com um facão debaixo da cama e dizia-se ameaçada por terceiros. Há cerca de 8 anos, após alguns desentendimentos com sua irmã e por influência de amigos, segundo a irmã, Tânia resolveu sair de casa. “Minha mãe dizia que eu estava atrapalhando a vida da minha irmã, eu não queria ser um peso na vida de ninguém, então resolvi sair de casa”, disse Tânia. Morou algum tempo com uma amiga com quem mantinha um relacionamento homossexual (SIC) e que também fazia uso de álcool e outras drogas. Após alguns meses, resolveu ir viver nas ruas. Caso apresentado no Centro de Estudos do IPUB pelo médico residente. Assistente Social do Instituto de Psiquiatria / Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB / UFRJ. Mestre em Ciências da Saúde pelo IPUB / UFRJ. Coordenadora da “Oficina de Saúde & Sexualidade” do IPUB / UFRJ. Coordenadora do Projeto Saúde Mental e AIDS da CN – DST / AIDS do Ministério da Saúde. * ** 94 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. “Cheguei a ir morar com um namorado numa favela, mas não deu certo e voltei para a s ruas”, conta. Desde 1992 Tânia vive como mendiga nas regiões da Lapa, Glória e Flamengo, na companhia de outros moradores de rua. A partir de então, deixou de utilizar cocaína ou outras drogas e passou a consumir cachaça em grande quantidade (às vezes, duas garrafas por dia). Esta é a segunda internação em instituição psiquiátrica. Em Novembro de 1999, sua irmã conseguiu interná-la em uma Clínica conveniada com o SUS. “Chamei o Corpo de Bombeiros e internei Tânia, mesmo contra sua vontade”. A internação durou pouco mais de um mês. Tânia recebeu alta para passar o Natal com os familiares, no mesmo dia, retornou para as ruas. Estava sendo medicada nesta época com Haloperidol (10 mg/dia), Diazepam (20 mg/dia), Prometazina (50 mg/ dia) e Carbamazepina (200 mg/dia). História Pessoal: Tânia é irmã adotiva. Foi abandonada por sua mãe quando tinha 8 meses. Não há informações sobre o parto. “Praticamente foi criada por mim, pois sou 10 anos mais velha”, disse a irmã. Teve desenvolvimento normal na infância e adolescência. Sempre foi tímida, mas muito amável e companheira, disse a irmã. Nunca precisou de tratamento médico ou psiquiátrico. Sua mãe morreu na época em que vivia nas ruas. “Nem cheguei a ir ao hospital e ao enterro”, conta. Estudou até completar o 1º Grau. Nunca foi casada, mas conta que já viveu com um homem por cerca de 2 anos. “Ele usava cocaína diariamente e aí eu também usava... tive um piriri no coração e então resolvi ir embora da casa dele e voltar para as ruas”. Tânia trabalhou como funcionária da cozinha da UFRJ desde os 23 anos. Foi lá que começou a beber e a fazer uso de outras drogas. Desde 1990 está aposentada, pois não conseguia mais cumprir suas obrigações no trabalho. Estava sempre embriagada. Sua irmã é quem recebe sua pensão. “Ela própria pede para que eu tome conta, porque nas ruas tomam todo o dinheiro dela”, diz. Tânia vive cerca de 7 anos na companhia de mendigos e de seus cachorros (diz o nome de todos) nas regiões da Lapa, Catete e Flamengo. É ajudada por pessoas ligadas ‘a Igreja e por instituições de apoio a moradores de rua. Vive como pedinte, guardadora de veículos e outros serviços informais. Resumo da Evolução: O tratamento medicamentoso foi iniciado com Haloperidol (10 mg/dia), Diazepam (15 mg/ dia) e Vit B (30 mg/dia). No 3o. Dia de internação, Tânia apresentava melhora comparativa do quadro psíquico. Suas idéias já eram mais coerentes. O pensamento era mais organizado, demonstrava bom humor, simpatia e irreverência. Na terceira semana de internação seus exames apresentavam melhora comparativa, com diminuição da TGO (43 UI / ref 4 - 46) e melhora da anemia. Passou a usar Diazepam 10 mg/dia. “Quero voltar para as ruas : lá tenho comida, lugar para dormir, meus cachorros e sexo”, dizia. Tânia apresentou alguns episódios de heteroagressividade e, algumas vezes, recebeu medicação injetável e contenção física. Negou alucinações durante toda a evolução. No 20º dia de internação, recebeu licença médica por 2 dias. Retornou no dia seguinte alcoolizada. Com 1 mês de internação, surgiram dor em queimação, ardência, prurido e lesões eritematovesiculosas em região de hemitórax esquerdo, típicas de infecção cutânea por Herpes Zoster. Também havia vesículas em MMII e abdome. Foi transferida para o HUCFF em 07/02/200, onde permaneceu por uma semana. Lá foi aconselhada e testada para HIV, em razão do seu quadro clínico. Recebeu o diagnóstico de infecção generalizada por Herpes Zoster e infecção pelo vírus HIV. Ao retornar ao IPUB passou a fazer uso de Haloperidol (5 mg/dia), Diazepam (5 mg/dia), Prometazina (25 mg/dia) e Tiamina (300 mg/dia). Há algum tempo, vinha mantendo-se bem cuidada SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 95 e mais preocupada com sua aparência. Recebeu licença médica no final de semana. Retornou, desta vez, um dia após o combinado, alcoolizada, dizendo ter tido relações sexuais e com hematomas pelo corpo. Disse ter tido amnésia e por isso não retornou na data marcada. Na Enfermaria referiu ter vistos vultos. Demonstrou-se ansiosa e encabulada : “Não tem jeito doutor. Eu não vou conseguir... vamos desistir... é melhor eu ter alta”. Diagnóstico Sindrômico : Síndrome amnéstica relacionada ao álcool (blackouts) Síndrome de abstinência ao álcool (sem DT) Síndrome alucinatória Síndrome de intoxicação pelo álcool Diagnóstico Diferencial : Transtorno psicótico induzido pelo álcool Esquizofrenia paranóide Transtorno mental orgânico (relativo à Aids / TCE) Diagnóstico Nosológico : Dependência do álcool interdisciplinar Encaminhamento pela equipe inter disciplinar : Ao receber o diagnóstico de HIV e dependência de álcool, imediatamente as equipes de referência para acompanhamento a pacientes soropositivos e dependentes químicos do IPUB foram acionadas para participar do tratamento de Tânia. Estas equipes são compostas por 1 assistente social e 2 enfermeiros, que, logo, integraramse à equipe clínica que já fazia o seu acompanhamento: 1 médico residente e 1 psicóloga. Ao ser abordada pelos profissionais, Tânia insistia em querer continuar morando na rua, apesar de ter família. Antes de iniciar o tratamento ambulatorial para o HIV, a equipe decidiu, então, realizar uma visita na região onde Tânia residia para avaliar as suas condições de moradia e possibilidades de adesão tanto ao tratamento psiquiátrico, quanto aos anti-retrovirais, quando fosse indicado. Foi realizada uma visita 3 meses após sua internação. echos Lapa Tr ec hos da V isita ffeita pela Equipe à La pa no dia 1o de Abril (Sábado) eita “Oi Tânia. Quanto tempo, hein ??? O que você quer desta vez ? Estava preocupada com você.” (Ir mã r eligiosa do Con v ento das Ir mãzinhas de Madr e Ter e za de Calcutá) religiosa Conv Madre ere “Ela chegava aqui sempre muito mal... na maioria das vezes bêbeda... eu não acredito que ela consiga parar de beber e vá tomar remédios... não posso me responsabilizar por isso.” (Ir mã (Irmã Conv Madre ere r eligiosa do Con v ento das Ir mãzinhas de Madr e Ter e za de Calcutá) “Tânia sempre foi diferente dos outros. Quando não estava bêbada era uma pessoa que se abria conosco. Na maioria das vezes estava triste, chorava. Por isso conhecemos sua história de vida... ela tem até uma pensão usada por sua irmã. Não tinha motivos para viver como vive.” (Prestadora (Prestador estadora Conv Madre ere v oluntária de ser viços do Con v ento das Ir mãzinhas de Madr e Ter e za de Calcutá) “Não acredito no que estou vendo... Taninha do meu coração... Tu tá viva mulé ??? Essa é minha Doutor... é a minha Tânia... Tu tá linda, hein ??? Da onde tu veio ??? Doutor... Chega mais. Eu também gostaria de ir para esse lugar. Descola uma vaguinha lá para mim ???” (Mendigo (Mendigo alcoolizado, gr mendigos os, volta alcoolizado, de um g r upo de mendig os , a maioria deles alcoolizada, por v olta do meiodia numa marquise da Fundição Progresso, na Lapa) 96 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. “O pessoal aqui protege ela. Eu mesmo sou um deles. Ela é boa gente, mas vivia bêbada e sabe como é... vivia sendo espancada... mulher... tinha um policial aí que não gostava muito dela.” (Dono de uma Kombi que trabalha fazendo frete para a Igreja) “Pode contar com a gente. O pessoal que toma remédio deixa tudo aqui comigo. Aliás, vou aproveitar que o senhor está aqui (retira da estante, entre várias garrafas de aguardente uma cartela de comprimidos de um antibiótico). Que remédio é esse ??? Serve pra quê ???” (Balconista do lugar cachacinha, “Bar do Her mínio”, local indicado por Tânia como sendo o lug ar da cac hacinha, e o local onde ela pode guardar seus remédios) “Que isso, rapaz ??? É a Tânia !!!??? Tá outra pessoa... vivia caída aqui mesmo nesta por ta...” (Entr e g ador do caminhão de r efrig er antes , ao v er Tânia, par ado em fr ente a (Entre refrig erantes efriger antes, ver parado frente um depósito de bebidas) “Vai embora Sarita.” (Tânia se despedindo de sua cadela, que ao vê-la, não deixou de segui-la em nenhum momento de nossa visita) Apesar de Tânia querer continuar a viver na rua, a família foi trabalhada no sentido de acolhê-la após sua alta, assim como auxiliar no tratamento da mesma, levando-a às consultas ambulatoriais e administrando as medicações prescritas. O mesmo foi feito com os coleguinhas da Lapa, que logo se prontificaram em ajudá-la. Ainda internada no IPUB, Tânia foi levada pela assistente social ao ambulatório do Banco da Providência, instituição ligada à Igreja Católica que dá assistência ambulatorial a pessoas moradoras de rua com HIV, para consulta médica. Ela foi acompanhada pela família, que se comprometeu a levála às consultas subseqüentes. Durante toda internação, Tânia recebeu assistência médico-psicológica-social. Foi aconselhada em relação às formas de transmissão e prevenção do HIV, aos riscos de recontaminação, caso não tivesse práticas sexuais e de uso de drogas seguras, e à importância da adesão à medicação psiquiátrica e anti-retroviral, mesmo estando na rua ou na casa de seus familiares. Situação atual: A partir do vínculo estabelecido com a equipe, Tânia optou por ficar com sua família ao sair de alta, e dar continuidade ao tratamento ambulatorial. Desde Maio de 2000, Tânia está com seu quadro clínico e psiquiátrico estável. Comparece regularmente às consultas e faz uso correto das medicações (psiquiátrica e anti-retroviral). Continua sendo acompanhada pela equipe. SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS. 97 Este manual foi produzido com recursos do Projeto 914BRA59 da Coordenação Nacional de DST/Aids em parceria com a UNESCO. 98 SEXUALIDADE, AIDS E SAÚDE MENTAL: OUTROS OLHARES, NOVAS ABORDAGENS.