LIVRO PROPRIETARIO
Comments
Description
Antropologia Cultural2014 Editorial Comitê Editorial Sergio Cabral Claudete Veiga Claudia Regina de Brito Autor do Original Amir Abdala © UniSEB © Editora Universidade Estácio de Sá Todos os direitos desta edição reservados à UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá. Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico, e mecânico, fotográfico e gravação ou qualquer outro, sem a permissão expressa do UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá. A violação dos direitos autorais é punível como crime (Código Penal art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 – Lei dos Direitos Autorais – arts. 122, 123, 124 e 126). Antropologia Cultural Su má ri o Capítulo 1: Caracterização Inicial da Antropologia...................................................... 7 Objetivos da sua aprendizagem.................................. 7 Você se lembra?................................................................. 7 1.1 Origens da antropologia .................................................. 8 1.2 A teoria antropológica evolucionista................................... 11 1.3 Alteridade e etnocentrismo....................................................... 14 Atividades............................................................................................. 18 Reflexão................................................................................................... 18 Leitura recomendada.................................................................................... 20 Referências...................................................................................................... 20 Na próximo capítulo........................................................................................... 20 Capítulo 2: Antropologia Social Britânica: o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown . ................................... 21 Objetivos da sua aprendizagem................................................................................. 21 Você se lembra?........................................................................................................... 21 2.1 O método etnográfico............................................................................................ 22 2.2 A antropologia funcionalista................................................................................... 23 Atividades....................................................................................................................... 27 Reflexão.......................................................................................................................... 27 Leitura recomendada....................................................................................................... 28 Referências .................................................................................................................... 28 No próximo capítulo...................................................................................................... 28 Capítulo 3: O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses . ....................................................................... 29 Objetivos da sua aprendizagem............................................................................... 29 Você se lembra?.................................................................................................... 29 3.1 Antropologia cultural................................................................................. 30 3.2 Contribuições antropológicas dos estudos franceses.............................. 34 Atividades................................................................................................. 39 Reflexão................................................................................................. 39 Leitura recomendada......................................................................... 43 Referências.................................................................................... 44 No próximo capítulo................................................................. 44 Capítulo 4: O Conceito de Cultura.............................................................................. 45 Objetivos da sua aprendizagem....................................................................................... 45 Você se lembra?............................................................................................................... 45 4.1 Natureza e Cultura.................................................................................................... 46 4.2 O cultural e o biológico............................................................................................. 51 4.3 Análise cultural......................................................................................................... 54 Atividades........................................................................................................................ 58 Reflexão........................................................................................................................... 59 Leitura recomendada........................................................................................................ 61 Referências . .................................................................................................................... 61 No próximo capítulo........................................................................................................ 62 Capítulo 5: Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil..... 63 Objetivos da sua aprendizagem....................................................................................... 63 Você se lembra?............................................................................................................... 63 5.1 Uma introdução às teorias da etnicidade.................................................................. 64 5.2 Os grupos étnicos de Fredrik Barth.......................................................................... 66 5.3 As relações entre o mundo do índio e o mundo do branco....................................... 69 5.4 A Mestiçagem e a questão da formação da nação em Gilberto Freyre..................... 77 Atividades........................................................................................................................ 80 Reflexão........................................................................................................................... 81 Leitura recomendada........................................................................................................ 83 Referências....................................................................................................................... 83 os temas e conceitos que o constituem.na qual seriamos educados com visões de mundo. isto é. e para a qual não devemos ter a expectativa de oferecer uma solução rápida e imediata. humanos. conferimos significados à realidade em que estamos inseridos. dotados de uma constituição fisiológica que nos foi legada pela história da natureza. necessitaremos ir além. mas sim compreender seu alcance. procuramos compreender a origem e os fenômenos do universo. as mesmas pessoas que somos? Teríamos as mesmas crenças que temos? Nossas explicações sobre a realidade seriam as mesmas com as quais habitualmente orientamos nossa conduta no mundo? Pensando um pouco sobre esses questionamentos. não pretendemos memorizar o significado formal de uma palavra. tivéssemos sido completamente afastado de nossos ascendentes biológicos diretos e transferido para outra sociedade – um país distante.o ã Ap res ent aç Prezados(as) alunos(as) O que é antropologia? Trata-se de uma questão central em nossos estudos nesta disciplina. precisamos percorrer. atingimos respostas negativas para todos eles. Um exercício preliminar de imaginação nos facilita o acesso às discussões antropológicas. então. refletir acerca daquilo que nos é dito pela antropologia. acompanhar os sentidos para os quais nos envia. a própria história do pensamento antropológico. por um motivo qualquer. se pretendemos examinar a pergunta em sua amplitude e profundidade. mesmo que sumariamente. . logo ao nascer ou pouco depois. por exemplo . Seríamos. valores e hábitos significativamente distintos daqueles que vigoravam no local de nosso nascimento. Afinal. Em uma expressão. por outro lado excedemos aquilo que é simplesmente natural: modificamos a paisagem. por um lado somos seres naturais. construímos a cultura. identificar suas relações com a condição humana e com a vida em sociedade. É certo que com poucas palavras podemos apresentar uma definição básica do termo. suas diferentes vertentes teóricas. Ou melhor. Suponhamos que cada um de nós. E isso nos remete para a constatação de que se nós. Porém. instituímos princípios morais que regem nossos comportamentos em sociedade. pois a cultura modifica-se no curso do tempo: transformam-se os costumes. Pretendemos. Afinal. pois diferentes sociedades – e mesmo grupos sociais distintos no interior de uma sociedade – desenvolvem diferentes hábitos. à humanidade. os seres humanos são seres naturais e culturais. examinamos essas questões mediante a exposição introdutória das principais escolas de pensamento antropológico. quer dizer. por sua vez. Nessa perspectiva. pertencemos à unidade da espécie humana. diferentes culturas. mas sobretudo indicar a pertinência das contribuições antropológicas para as nossas vidas e para nossas reflexões sobre o mundo contemporâneo. . não somente caracterizar a atividade e a produção discursiva da antropologia. No itinerário deste livro. as normas. com isso. de suas diferentes perspectivas metodológicas e dos conceitos desenvolvidos na esfera da antropologia. pela área do saber que atualmente chamamos de antropologia cultural. a cultura não é algo definitivamente dado e imutável. portanto. valores. Assim. sob o prisma cultural mais adequado seria falarmos em humanidades. visões de mundo. se de um ponto de vista rigorosamente natural. o que devemos entender pela palavra cultura? Como cultura e natureza se relacionam? Em que medida culturas distintas condicionam diferentemente as visões de mundo dos seres humanos? É correto hierarquizarmos as culturas humanas ou identificarmos estágios inferiores e superiores de uma cultura humana? Quais são as formas pelas quais as diferentes culturas se relacionam umas com as outras? As relações culturais envolvem relações de poder? Como a cultura interfere em nossa existência. posto que se constata a pluralidade de culturas nas quais vivem os seres humanos em sociedades. em nossas escolhas profissionais? Esses são alguns dos problemas teóricos contemplados pelas investigações antropológicas.elaboramos culturas. E. Os conteúdos culturais não são configurações eternas da realidade social. a pergunta o que é antropologia? envia-nos para um amplo conjunto de indagações interseccionadas. No interior de uma sociedade ou de um grupo social. na formação de nossos laços afetivos. os padrões comportamentais dos seres humanos em sociedade. percorremos as noções de etnocentrismo e de alteridade. em textos jornalísticos ou literários. Objetivos da sua aprendizagem Compreender as origens da antropologia e suas características fundamentais. intensamente presente na primeira geração de estudos antropológicos.Caracterização Inicial da Antropologia CCC CC C CC C Neste capítulo. trataremos desses temas e de conceitos sob o prisma da investigação antropológica. termos centrais nas discussões antropológicas. discorreremos sobre a origem das questões antropológicas e da antropologia como área relevante do saber científico contemporâneo. . Por fim. as palavras etnocentrismo e alteridade? Neste capítulo. Você se lembra? De ouvir termos como antropologia e evolução em seu dia a dia? De encontrar. Delinearemos ainda a concepção antropológica evolucionista. as ciências humanas e sociais distinguem-se das ciências naturais ou da natureza. histórica. pouco preciso. a antropologia pode ser inicialmente definida como o estudo acerca do ser humano como ser social e cultural.1 Origens da antropologia 8 Em sentido muito abrangente e. a geografia. isto é. se no âmbito das ciências da natureza. ou seja. Vistas em conjunto. desenvolve-se a ciência moderna. em suma. social e cultural. têm nos temas especificamente humanos o seu objeto de estudos. a saber. a tarefa proposta pelas ciências humanas e sociais é. Surgem. sociais e políticas no ocidente. Dessa forma. a física e a biologia. mais complexa do que a realizada pelas ciências naturais. existindo. Entretanto. voltam-se para as questões que dizem respeito centralmente à humanidade em sua existência psíquica. mediante a verificação empírica. a observação sistemática e experimental dos fenômenos naturais. em um contexto histórico marcado por profundas transformações econômicas. Nas ciências humanas e sociais. não é tão clara a fronteira entre sujeito e objeto. Nas origens da chamada modernidade. especialmente no século XVII. relacionado ao crescente prestígio da ciência moderna. há uma nítida separação entre o sujeito – o ser humano – e o objeto do conhecimento – os fenômenos da natureza. dentre outras. situa-se no círculo das denominadas ciências humanas e sociais. pretende-se identificar as relações de causalidade e a regularidade presentes nos processos da natureza. As ciências humanas e sociais. nas quais se pressupõe maior nível de . a partir do século XVIII. em certo sentido. do ser humano que pretende conhecer a própria humanidade. uma interpenetração mais radical entre ambos. inicialmente direcionada exclusivamente ao conhecimento da realidade natural e baseada em métodos experimentais considerados adequados à revelação das leis da natureza. Para estas. em suas dimensões socioculturais. como a história. pode ser explicado simplificadamente do seguinte modo: a consolidação das explicações científicas dos fenômenos da natureza estimulava o esforço intelectual e metodológico pela busca de explicações científicas para os fenômenos humanos e sociais. a sociologia e a psicologia. quer dizer. portanto. bem como no lastro dos êxitos alcançados no campo das ciências naturais. Assim. Quanto a este último aspecto. isto sim. prevalece notável coincidência entre sujeito e objeto. pois trata-se. por seu turno. As ciências naturais são assim intituladas porque têm a natureza como objeto de conhecimento.Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB 1. que dizem respeito a áreas do conhecimento como a química. notam-se divergências teóricas e metodológicas entre pesquisadores. desprovidas de escrita. como a demografia. a antropologia procura. tal situação é ainda acentuada nas ciências humanas e sociais. é esclarecedor o comentário feito pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss: Enquanto a sociologia se esforça em fazer a ciência social do observador. a antropologia nasce como o estudo dos “povos primitivos”. ou seja. há muito que os estudos antropológicos se estenderam aos fenômenos das sociedades ditas “civilizadas”. caracterizada por diversas tendências interpretativas. a pluralidade de modelagens que assume a existência humana figuram no centro das atenções da disciplina. em outros termos. às concepções epistemológicas e à ênfase atribuída a aspectos da realidade humana. Contudo. resultante da imersão do pesquisador em um universo cultural que é. daquelas sociedades de pequena escala. elaborar a ciência social do observado: seja que ela vise atingir. a antropologia não deve ser confundida com uma suposta “ciência das sociedades primitivas” porque. a antropologia toma a humanidade como objeto de conhecimento. Não é diferente. também se ocupam do mesmo objeto de investigação. Mesmo nesta seara. evidentemente. seja que ela amplie seu objeto. historicamente. sendo possível destacar variações no tocante aos temas pesquisados. desenvolvem-se perspectivas metodológicas e teóricas distintas e. a geografia e a psicologia social. Nesse sentido. a dos fatos sociais considerados mais complexos. o conhecimento antropológico se distingue uma vez que prima pela abordagem microscópica da realidade e fundamenta-se na experiência etnográfica.EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1 objetividade. com organização social mais “simples”. Do mesmo modo que as demais ciências humanas. A plasticidade do homem e. considerando-se sua condição de ciência humana e social. em alguns casos. marcadas pelo peso da tradição e por certos costumes considerados “exóticos”. do encontro com modos de vida e com sujeitos sociais que lhe causam estranhamento. Além disso. o ponto de vista do próprio indígena. além do seu evidente anacronismo. a despeito dessas origens. mas com um diferencial decisivo: seu interesse volta-se para a diversidade de formas de cultura e sociedade. por sua vez. pois outras áreas. em sua descrição de sociedades estranhas e longínquas. opostas. Na história do pensamento antropológico. uma definição assim restrita carece de embasamento real. É certo que. até incluir nele a sociedade do obser9 . de algum modo. distante do seu ou. ainda. com a antropologia. o empreendimento antropológico busca tornar a realidade observada acessível. mas. mas. p 404). do observador e de seu objeto (LEVI-STRAUSS. O autor advertia que. Ilustrativo desse propalado interesse pelo “outro”. e forjando um sistema. alguns estudiosos defendem que já se pode falar em pensamento antropológico quando se consideram os escritos filosóficos centrados na descrição dos costumes exóticos de povos distantes ou na reflexão sobre as diferenças entre os grupos humanos. Segundo o exemplo do autor. ao mesmo tempo. para os portugueses. enforcá-lo. Seu argumento é que julgamos inaceitável o modo como vivem e agem os povos remotos porque simplesmente não seguem eles as mesmas regras que o Velho Mundo. entre os selvagens. 10 Através. Ainda mais. portanto. o canibalismo. e ao que foge do que nos é familiar atribuímos um valor inferior. mas. parece natural consumir a carne do inimigo derrotado em combate. com o cuidado de não esvaziar sua singularidade. As duas maneiras de ser e agir são bem diferentes. antes de condená-las. convertendo o distante em algo próximo sem dissolver a diferença. reconhecível e aceitável até mesmo para o observador indígena. inclusive. é o ensaio do filósofo francês Michel de Montaigne intitulado “Dos canibais” (1580). 1973. ou principalmente. ou uma interpretação. suas próprias práticas lhes . procura capturar as propriedades e os sentidos dos fenômenos sociais. excepcional pela adoção de uma postura claramente relativista face a ele. por fim. mas tentando então extrair um sistema de referência fundado na experiência etnográfica. normas e aos costumes da nação a qual pertencemos. a vingança consiste em enterrar o adversário até a cintura. do mesmo modo que. Como consequência disso. segundo a qual o estatuto de inferioridade dos costumes dos então chamados “selvagens” era algo dado de antemão. da etnografia. Na contracorrente da sensibilidade de sua época. ao mesmo tempo. De todo modo. persiste ainda uma tendência geral de se assumir que a curiosidade intelectual pela diferença ou pelo ponto de vista do “outro” estaria na origem da antropologia.Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB vador. Montaigne (1533-1592) reflete sobre a disposição geral de se desqualificar como bárbaras as práticas adotadas pelos nativos. o que seja independente. aos olhos de cada um dos grupos. no esforço de reter a perspectiva de quem a experimenta. deveriam seus contemporâneos olhar para as faltas cometidas por sua própria nação. cravá-lo de flechas nas áreas descobertas e. pelo contrário. Nosso parâmetro corresponderia sempre às ideias. Montaigne. A marca desse período formador da antropologia é o predomínio do paradigma evolucionista.Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1 parecem legítimas. assim.2 A teoria antropológica evolucionista Efetivamente. se procedêssemos a um distanciamento com relação às nossas próprias ações. que os sobrepassamos em toda a espécie de barbárie” (MONTAIGNE. pela presença do pensamento científico. nossas técnicas de guerra não se revelariam menos nobres? Assim. enquanto os demais povos. A sociedade ocidental europeia encarnava o nível mais adiantado de progresso alcançado pela humanidade. ele afirma: “Podemos. efetivamente nunca tinham tido contato. anunciaram temas ou debates de natureza antropológica. com os quais. O que estes teóricos concebiam ser “a civilização” – e que correspondia evidentemente à sua própria sociedade – ostentava a forma mais complexa de cultura e organização social conhecida. o desenvolvimento da antropologia enquanto disciplina acadêmica foi um processo gradual relacionado a personagens e condições particulares. ainda não estavam na presença da construção de um saber científico tal como conhecemos hoje. do governo. Por outro lado. Mesmo interessando-se pelos povos do Novo Mundo. da propriedade privada. entre os séculos XVI e XVIII. EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB 1. América e Austrália. do Oriente. achá-los bárbaros em relação às regras da razão. assim como outros filósofos. marcada. salvo raras exceções. pois. nem da institucionalização de um campo de conhecimento. 11 . ainda estavam nos estágios inferiores da evolução. Os objetos e dados coletados por viajantes. A primeira geração de antropólogos estava. entre outros traços. mas dispunham de informações compiladas por terceiros. Uma dessas circunstâncias diz respeito à coleta de artefatos e informações sobre os então chamados “povos primitivos” e a organização de coleções etnográficas em museus nacionais da Europa e Estados Unidos no século XIX. porém os diferentes grupos humanos se encontravam em fases desiguais de desenvolvimento. África. mas não a nós. 2002). de onde formulavam suas teorias e grandes generalizações sobre povos remotos. O evolucionismo pressupunha a existência de uma história universal e linear rumo ao progresso. missionários e funcionários dos Impérios Coloniais na África e América eram classificados e catalogados por eruditos que se tornaram reconhecidos como especialistas em “sociedades primitivas”. desafia Montaigne. vinculada aos museus e atrelada aos seus gabinetes. Proibida a reprodução – © UniSEB Antropologia Cultural 12 da religião monoteísta e do casamento monogâmico. industrial e cientificista. isto é. em sentido rigoroso. Tylor (1832-1917) e James Frazer (1854-1941). por sua vez. o parentesco. Instituições como o direito. sem ciência. que conduzem as sociedades humanas de um estágio sociocultural primitivo para formas de organização mais avançadas. para o pensamento antropológico evolucionista. Nota-se que. sendo que este seria. substituído pela chamada era científica. da mesma forma que os fenômenos da natureza são regidos por leis universais. Semelhantes às teses de Tylor são as concepções de Lewis Morgan e de James Frazer. Adotando como referência os aspectos culturais da moderna civilização ocidental. mas tão somente a cultura humana em sua singularidade. tecnologia e crenças. Segundo Morgan. estão os britânicos Edward B. e o norte-americano Henry Morgan (1818-1881). Extraídos de seu contexto social de origem e uso. Vivenciando uma condição de atraso. ou seja. estabelece como sequência evolutiva da humanidade os estágios por ele denominados de mágico e de religioso. a magia e a religião figuravam entre os temas que mais despertavam o interesse desses teóricos. encontrando seu ponto máximo de evolução na sociedade moderna. para esse pioneiro da antropologia. Por outro lado. desejos e ações humanas são determinados por leis. isto é. os elementos e características de cada uma dessas instituições eram separados e classificados dos mais simples aos mais complexos. finalmente. sendo então dispostos em uma escala evolutiva. Essa crença em um único . concebe a história da humanidade como o desdobramento de leis fixas. atravessando o nível intermediário da barbárie e concluindo-se no desenvolvimento da civilização. era justamente a ausência dos predicados previamente citados: sem escrita. Dentre os mais notórios representantes da antropologia evolucionista. tais povos apresentariam configurações mais simples de parentesco. Frazer. sem economia de mercado. Edward Tylor compreende a história cultural da humanidade como parte da história da natureza. e daí por diante. não existe em culturas humanas. pensamentos. sem Estado. ele rejeita especulações sobre interferências extranaturais ou sobre espontaneidade não causal na história humana. segundo os evolucionistas. Dessa forma. não há pluralidade cultural. o que identificava os povos chamados de selvagens ou primitivos. considerando primitivas ou atrasadas todas as formas de organização social distintas desse modelo ocidental. os antropólogos evolucionistas hierarquizam as sociedades humanas. o percurso evolutivo da cultura humana tem como seu ponto de partida a selvageria. . das instituições. demonstraram que tais homens não viviam segundo leis da natureza. [. 2010. uma das características principais do evolucionismo [. Evidentemente. como escreve Morgan. mas apenas etnologias regionais: a unidade da espécie humana. mas obedeciam às normas de sua organização social. Entretanto.72-73).. como. os evolucionistas lançaram as bases da nova disciplina. mesmo se suas convicções fossem mais passionais do que racionais essa hipótese mestra sem a qual não haveria antropologia. os evolucionistas não trouxeram análises muito satisfatórias sobre o funcionamento e o significado de suas instituições. dos comportamentos e das crenças. como observaremos. reconheceram a legitimidade da cultura destes povos e impuseram a relevância científica de seu estudo. por exemplo. da “família humana”. Quanto a esse aspecto.. a magia.. recebe críticas severas dos posteriores estudiosos da antropologia. não devemos ignorar sua contribuição para a constituição dessa área do saber humano. ao postular a irracionalidade e a inferioridade das manifestações culturais dos povos do Novo Mundo. Apesar de suas ambições pouco modestas – nada menos do que inventariar a diversidade dos costumes sociais e escalonar as sociedades humanas.Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1 modelo realmente válido de organização sociocultural revela a profunda inspiração etnocêntrica do evolucionismo. comparar as práticas sociais infinitamente distantes umas das outras tanto no espaço como no tempo. (LAPLANTINE. ainda assim contribuíram decisivamente para que a humanidade dos povos selvagens deixasse de ser colocada em dúvida. Entretanto. Assim.] São eles que mostraram pela primeira vez que as disparidades culturais entre os grupos humanos não eram de forma alguma a consequência de predisposições congênitas. motivo pelo qual. 13 . mas apenas o resultado de situações técnicas e econômicas. É certo que a concepção evolucionista e etnocêntrica desses primeiros antropólogos não penetra verdadeiramente a diversidade cultural da humanidade. ou. Seu mérito é ter extraído mesmo se o fizeram com dogmatismo. por exemplo – e dos seus resultados pouco expressivos no tocante a um verdadeiro entendimento da realidade vivenciada pelos nativos.] colocavam o problema maior da antropologia: explicar a universalidade e a diversidade das técnicas. é interessante registrarmos as palavras de François Laplantine: EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Esses homens [.] é o seu antirracismo... p. os fenômenos culturais não mais precisam ser situados no eixo da história para terem suas características reconhecidas e apreciadas. Do ponto de vista humanista. ou seja. nem como prova da irracionalidade de grupos humanos mais atrasados. Por um lado. os mortos). Por outro lado. de traduzir a diferença em termos familiares ou interpretar uma visão de mundo diferente. No panorama das ciências sociais. ao lado de outros. com a origem dos relatos e a construção da base empírica da reflexão antropológica. que certos povos ameríndios constroem a alteridade de uma perspectiva distinta). em um próximo capítulo. constitui parte de uma cultura ou organização social. O costume nativo passa a interessar não mais como exemplar de uma etapa da evolução social. deixa de figurar como obrigatória a análise diacrônica da cultura. e é esta totalidade que cumpre estudar e reconstituir. é algo que diz respeito ao jogo identidade/diferença. Em outros termos a tarefa da . é por meio das inovações teórico-metodológicas lançadas nas primeiras décadas do século XX que a antropologia consolida-se como ciência social moderna. Parece claramente insatisfatória a atitude de eleger a civilização ocidental como medida e modelo de desenvolvimento a partir do qual todas as outras formas de sociedade devem ser avaliadas e rotuladas. mas sim como um elemento que. Passa a haver interesse pela realização de pesquisa de primeira mão e pelo testemunho direto da vida nativa. os animais encarnariam a alteridade máxima (veremos. o primitivo) e absolutos (a natureza. O rompimento definitivo com a abordagem evolucionista é manifestado através de algumas operações essenciais. Proibida a reprodução – © UniSEB 1. emerge também uma nova atitude com relação à prática de investigação.3 Alteridade e etnocentrismo 14 Falar em alteridade é falar sobre a condição de ser do “outro” e. Sistemas de alteridade articulam a oposição “nós”/”eles” segundo uma gradação da diferença e podem conceber “outros” próximos (o vizinho). Consiste em um saber que se arvora a competência de revelar a verdade do “outro”. portanto.Antropologia Cultural Contudo. distantes (o estrangeiro. Por outro lado. por exemplo. fruto de uma preocupação com as condições de coleta do dado etnográfico. de tornar uma outra realidade inteligível. a antropologia é a disciplina que institui a alteridade como seu objeto de estudo. perde centralidade a dicotomia civilização/barbárie. O ponto de partida era sempre o contraste com a civilização europeia. Segundo Rapport e Overing. envolvam um ambiente intelectual em que a noção de alteridade ganhava proeminência. canibalismo. mesmo na chamada “antropologia feita em casa”. Peirano observa que a alteridade mudou de dimensão. afinal o contexto era o de confronto com o exotismo dos povos do além-mar – contatados alguns séculos antes. deu-se a inclusão de objetos de estudo mais “próximos”. Assim. seres bestiais e perigosos. crueldade. Contudo. os processos de construção da diferença e de caracterização do estranho como monstruoso implicam na instituição de fronteiras rígidas entre o “nós” e o “eles”. a organização do empreendimento missionário. A distância construída é tão abissal que sugere a negação da humanidade do “outro”. a imagem que surge dos povos do Novo Mundo corresponde a uma perfeita inversão daquilo que os europeus julgam ser a sua própria sociedade. infantis e tolos. decodificação. e a questão da construção da distância. a conquista da América. deixou de prevalecer entre as antropologias metropolitanas a exigência de que o antropólogo viaje ao além-mar para um encontro com uma “alteridade radical”. No discurso dos conquistadores. interpretação. o Ocidente adotou um sistema de alteridade pautado pelo princípio da exclusão. sem escrita e sem Estado. A construção do imaginário europeu sobre o “outro” se forjou ao longo de séculos de narrativas de viajantes e conquistadores em um extenso período que cobre os descobrimentos. ainda que próximo. representação – mas o problema da alteridade se manteve. trata-se de investigar um “outro”. 1999). no século XIX. o que determinou que os chamados “primitivos” fossem encarados tanto pela ótica da falta: sem roupa. mas não foi eliminada porque é um aspecto fundante da disciplina. sem o qual ela não pode se reconhecer (PEIRANO. o esquema colonial de processamento da alteridade não somente reduziu a diferença ao exotis15 . no caso da tradição brasileira. Assim. EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Mesmo atualmente. Também. o estabelecimento dos Impérios Coloniais. com as mudanças no regime de alteridade com o qual a antropologia trabalha. Mariza Peirano defende que a noção permanece central à disciplina. além da consagrada preferência pela população indígena – representação máxima da diferença por aqui. Hoje.Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1 antropologia já foi definida de diversas maneiras – tradução. Nesse sistema. Mas qual era a imagem dos povos do Novo Mundo que prevalecia na época? Eles eram representados ora como seres irracionais. ora como monstros. É significativo que as próprias condições que permitiram o florescimento da antropologia. O selvagem aparece então como a antítese do civilizado o que assegura que a diferença seja percebida como absoluta. eliminando a possibilidade da interação. permanece central. ainda que mínima. quanto pela ótica do desregramento: sexualidade desviante. Nenhuma atitude seria mais característica do gênero humano do que a do grupo que duvida da humanidade alheia. 2000). 2000). de fato. Rapport e Overing sugerem que há também um regime inclusivo da alteridade característico dos índios da Amazônia. Ou seja. enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para indagar se os indígenas possuíam ou não alma. No sistema indígena. o que no caso de alguns povos implica na prática do canibalismo ritual. o estranho e o desconhecido não deixam de ser encarados como monstros em potencial (o diferente pode sempre representar um perigo). 1976.Antropologia Cultural mo. estes últimos dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para verificarem através de uma vigilância prolongada se o cadáver daqueles estava ou não sujeito à putrefação (LEVI-STRAUSS. A estratégia para lidar com os perigos da alteridade consiste na absorção dos poderes do “outro” através da antropofagia – no exemplo dos guerreiros Tupinambás. Nas palavras de Levi-Strauss: Proibida a reprodução – © UniSEB Nas Grandes Antilhas alguns anos após a descoberta da América. o etnocentrismo corresponde à avaliação culturalmente centrada que cada grupo faz do . isto se dava através da ingestão de um pedaço do corpo do inimigo (RAPPORT e OVERING. Tanto europeus como indígenas situam suas respectivas sociedades no centro do universo. um ser desprezível ou um perigo. no entanto tal sistema enfrenta o problema da neutralização dos poderes do “outro” prescrevendo como solução a assimilação destes poderes. os dois modelos de enfrentamento da alteridade expostos aqui embutem preconceitos etnocêntricos. Contudo. como promoveu a neutralização de sua potência. 16 Os membros de uma determinada sociedade naturalmente consideram os seus próprios valores. não poderia ser de outro modo se aceitamos a premissa de Claude Levi-Strauss de que o etnocentrismo é um traço universal. p 60). costumes e crenças como os mais corretos e tendem a tomá-los como parâmetro quando são confrontados com um modo de vida ou uma ideologia diferente. tratando de rebaixá-la para reafirmar a superioridade europeia (RAPPORT E OVERING. identificando-se como os legítimos humanos e colocando a humanidade do “outro” em questão ou percebendo-o como uma criatura monstruosa. igualmente compartilhado por todas as culturas. E. Resta pouca dúvida que apesar de se orientarem por princípios opostos – inclusão versus exclusão –. a exclusão e a inferiorização não consistem nas únicas formas de apreensão da alteridade. qualquer povo se reconhece em sua cultura. o evolucionismo manteve o rebaixamento da diferença. Inexiste assim medida absoluta para informar julgamentos. o “outro” continuou reduzido a um estatuto inferior. ainda foi forjado um dos antídotos mais eficazes contra o etnocentrismo (assim como contra racismos e provincianismos afins). costumes. se a antropologia nasceu com a promessa de capturar a alteridade e torná-la acessível a um “nós” europeu. De fato. a avaliação do costume do outro com base no que julgamos bom e aceitável representa um obstáculo ao conhecimento verdadeiramente antropológico. tratava-se da atitude de rejeitar o julgamento de outra cultura com base nos valores da nossa própria. O relativismo cultural preconizou que todas as culturas deveriam ser consideradas igualmente válidas e compreendidas em seus próprios termos. embora o conjunto disforme de exotismo encontrado no além-mar passasse a ser catalogado e organizado em tribos. as quais nos parecem absolutamente naturais. os valores são relativos e. a qual se apresenta como bastante satisfatória para aqueles que a vivem. tornando-se nesse sentido bem sucedida. portanto. quanto elevá-lo ao nível dos deuses. por meio do desenvolvimento do funcionalismo britânico e do culturalismo americano. No âmbito do culturalismo. continuando a enquadrar a diferença a partir do princípio da exclusão. estágios evolutivos. Do mesmo modo que nós tendemos a aprovar nossas próprias normas de conduta. logo se tornou evidente que a viabilidade do projeto antropológico de conhecer a alteridade dependia de dois procedimentos metodológicos essenciais: a objetividade do olhar do etnógrafo e o distanciamento deste com relação aos valores de sua própria sociedade. A disciplina passa a perseguir este empreendimento. Em resumo. já que são os preconceitos derivados do apego às convenções culturais às quais estamos familiarizados que nos impede de considerar aceitável o comportamento do outro. Estas duas operações são consideradas etapas básicas para a antropologia se libertar da armadilha do etnocentrismo. A construção ou representação etnocêntrica do “outro” pode tanto rebaixá-lo ao nível dos animais. poderes mágicos. prescrevendo atitudes de medo ou reverência com relação a ele. ocidental. abordados a seguir. como pode imputar ao “outro”. pode tanto negar-lhe atributos humanos de valor. Porém. evocando sentimentos de desprezo e rejeição.EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1 outro. 17 . a corrente evolucionista fez isso sem se livrar do esquema intelectual etnocêntrico dominante em sua época. níveis tecnológicos e até em culturas. a própria proposta de um saber que se ocupa de tornar o exótico algo familiar aliada ao esforço de relativização da cultura do “outro” e de atribuição de valores iguais ao ponto de vista do nativo e às concepções da sociedade do cientista devem ter soado como empreendimentos heterodoxos para a época. NIELSEN. linhagens na África. Ruth Benedict – e de pesquisadores vindos das colônias inglesas – Meyer Fortes e Max Gluckman – o que não era tão comum no meio acadêmico em geral (ERIKSEN . nos casos da GrãBretanha e nos Estados Unidos. Algumas peculiaridades da antropologia contribuiriam para situá-la de forma diferenciada no quadro das demais ciências sociais. 02. Caracterize a concepção antropológica evolucionista. 03. Explique a contribuição do pensamento filosófico de Michel de Montaigne para a antropologia.Antropologia Cultural Atividades 01. a liderança da disciplina ou a fundação das correntes principais são feitos muitas vezes atribuídos a estrangeiros como o polonês Malinowiski e o judeu alemão Franz Boas. 2007). danças ameríndias e trocas cerimoniais na Melanésia. Como os autores apontam. Eriksen e Nielsen fazem um questionamento provocativo acerca da posição marginal da disciplina no contexto de sua institucionalização. A rigor. ritos mágicos. Contribuía ainda para conferir uma identidade marginal à disciplina a predileção por investigações orientadas “para baixo” assim como por assuntos eminentemente “estranhos” ou “incomuns” como terminologias de parentesco. Proibida a reprodução – © UniSEB Reflexão 18 Ao propor um relato da história da antropologia. Também se destacava no campo de estudos antropológicos a presença de mulheres – como Audrey Richards. . Explique os significados dos termos etnoocentrismo e alteridade. Como o próprio autor colonial. como Cambridge. 2004). Columbia e Chicago. é que a ênfase do evolucionismo no primitivismo e Um caso notório no atraso dos povos da África. tais fatores não implicaram em desprestígio para a nova ciência social e. Zâmbia (Instituto Rhodes-Livingstone) e África do Sul (Universidade do Cabo). Não se pode deixar de notar que mesmo indiretamente. Evansgumento científico a dominação Pritchard entre os Nuer. Brasil (Museu Nacional. Pode ter ficado mais esclarece. justamente a pedido europeia de que se tratava de uma do governo colonial (Evans.Pritchard. inclusive em situações de tensão nas colônias (FIGUEIREDO. As relações entre colonialismo e antropologia são cercadas de controvérsia e constituem assunto de estudos de historiadores da disciplina que têm se empenhado em esclarecer. de fato. de fato. contribuído despeito de um contexto desfavorável para referendar através de um arà presença europeia é o de E. É difícil não reconhecer que a observação direta de povos considerados então “primitivos” fez-se possível num contexto em que estes estavam sendo submetidos a um sistema de dominação pelos grandes estados nacionais europeus – que. talvez tenham até contribuído para aumentar sua visibilidade. em última instância. Índia e em que o antropólogo pôde fazer seu trabalho de campo a América teria. Uma hipótese aceita. Escola de Sociologia e Política de São Paulo). os usos que o sistema fez do conhecimento etnográfico que era produzido. a empresa colonial foi um evento que favoreceu o desenvolvimento da pesquisa de campo de natureza antropológica. A primeira metade do século XX testemunhou a expansão da antropologia e sua institucionalização nos principais centros universitários da Europa e América. de que modo as condições coloniais afetaram o desenvolvimento da disciplina. compartilhando com intimidade de seu cotidiano. É digno de nota também o estabelecimento da disciplina na “periferia” do mundo.EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1 Todavia. com destaque para as instituições que avançaram a pesquisa antropológica em países como o México (Escola Nacional de Antropologia e História). por exemplo. Oxford. 2008). missão civilizadora: os europeus estavam levando desenvolvimento a povos atrasados. e de outro. era o que de fato permitia a pesquisadores brancos viver com segurança entre eles. Outro ponto que gostaria de exortar à reflexão diz respeito às relações entre antropologia e colonialismo. este povo acabara de ser pacificado fácil convencer a opinião pública com uso de violência pelos britânicos quando ele se estabeleceu entre eles. 19 . por um lado. E. Série Antropologia. São Paulo: Editora Martins Fontes. Thomas H. EVANS-PRITCHARD. . 2010. Cuidando da saúde do vizinho: as atividades de antropólogos norte-americanos no Brasil GEERTZ. Clifford. Aprender Antropologia. Brasília: UNB.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. História da antropologia. 2007.Petrópolis. Michel De. FIGUEIREDO. LAPLANTINE. 1999. Finn S. e NIELSEN. Rio de Janeiro: Zahar.Antropologia Cultural Leitura recomendada Aprender antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. São Paulo: Brasiliense. D. A alteridade em contexto: a antropologia como ciência social no Brasil. “Algumas reminiscências e reflexões sobre o trabalho de campo” In: Bruxaria. oferece-nos uma introdução concisa e competente acerca da antropologia e de suas principais vertentes. Os Ensaios. Proibida a reprodução – © UniSEB PEIRANO. Edward. examinando o método etnográfico e a teoria funcionalista da antropologia social britânica. ERIKSEN. 20 Na próximo capítulo Avançaremos em nossos estudos antropológicos. 2001. 2002. de François Laplantine (Editora Brasiliense). Mariza. RJ: Vozes. MONTAIGNE. Referências CASTRO. Nova luz sobre a antropologia. Celso (org. oráculos e magia entre os Azande. Evolucionismo cultural. Regina E. 2005. François. 2005. Objetivos da sua aprendizagem Compreender a importância do método antropológico e a concepção antropológica funcionalista. procuraremos compreender a vertente antropológica funcionalista. Examinaremos também as perspectivas antropológicas funcionalistas da antropologia social britânica.2 lo ít u Cap Antropologia Social Britânica: o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown Neste capítulo. Você se lembra? De ouvir a expressão função social e os significados que ela recebe em nosso cotidiano? Neste capítulo. . trataremos do método etnográfico e da consolidação da antropologia como disciplina científica do conhecimento. com a construção rigorosa de um alicerce empírico para a reflexão antropológica. destacam a necessidade de rigorosas pesquisas etnográficas como base indispensável para a formação de um saber antropológico realmente sólido acerca das culturas humanas. Mas em que consiste tal método? Em primeiro lugar. ou seja. a ideia de pesquisa de campo implica que o pesquisador se desloque para o lugar que lhe propiciará o contato direto com seu objeto de estudo. Esses antropólogos. com o registro dos relatos. se a primeira geração de antropólogos não se dedicou sistematicamente a pesquisas de campo.1 O método etnográfico 22 Verificamos. o evolucionismo. Assim. preocupando-se com as condições de coleta dos dados etnográficos. cronistas e missionários sobre os povos distantes.Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB 2. ele vai a campo e lá permanece o intervalo de tempo . Bronislaw Malinowski e Claude Lévi-Strauss. no capítulo anterior. embora reconheçam nos evolucionistas a fundação da preocupação antropológica. baseando-se em relatos de viajantes. Desde então. a centralidade do método etnográfico para a antropologia tende a ser tão pronunciada que chega a constituir parte do que tradicionalmente define a disciplina. caracterizadas pelos trabalhos de estudiosos como Franz Boas. mas sim como totalidades sociais próprias e reveladoras da diversidade cultural humana. A pesquisa de campo intensiva nasce com a moderna antropologia e torna-se uma exigência tanto para a confecção de monografias sobre os povos “exóticos” quanto para a legitimação do saber produzido sobre o outro. partiu do falso pressuposto de que a civilização ocidental contemporânea é a medida e o modelo de desenvolvimento a partir do qual todas as outras formas de sociedade devem ser avaliadas. à sua análise unicamente diacrônica da cultura e à sua ausência de sistemáticas pesquisas de campo. nem como prova da irracionalidade de grupos humanos considerados mais atrasados. Para as novas tendências antropológicas. as outras culturas passam a interessar não mais como supostos exemplares de uma etapa da evolução social. com seu etnocentrismo expresso na dicotomia civilização/barbárie. que as críticas à teoria antropológica evolucionista dirigem-se ao seu etnocentrismo. Nas pesquisas desenvolvidas pelos antropólogos que procuram se afastar do viés teórico evolucionista. os novos antropólogos assumem uma atitude afirmativa em relação às práticas de investigação. ou seja. 23 . Durante sua estadia em campo. Tradicionalmente. O campo se refere ao lugar ou cenário onde o antropólogo procede às suas observações. Essa distinção é fundamental. presta atenção aos detalhes e anota. em grande medida. os rituais. mas viver a rotina do grupo implica o engajamento em atividades como a caça. Em campo. o “campo” do antropólogo era uma “aldeia”. a técnica privilegiada pelo etnógrafo é a “observação participante”.2 A antropologia funcionalista A doutrina funcionalista foi. as notórias palavras de advertência de Clifford Geertz: “Os antropólogos estudam nas aldeias e não as aldeias”. Hoje.Antropologia Social Britânica: o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown – Capítulo 2 EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB necessário para testemunhar os fatos que deseja interpretar ou analisar. um hospital ou mesmo um arquivo. sobretudo. que prevê o convívio do pesquisador com a comunidade perscrutada. ou seja. as refeições. a análise da sociedade no tempo presente. Não somente conversar com as pessoas. a pesca. Predomina ainda nos clássicos estudos de campo a perspectiva sincrônica. em geral na África. atestava a rejeição à história conjetural e às especulações quanto ao desenvolvimento das sociedades – recursos estes largamente utilizados nos grandes esquemas evolutivos propostos. Esta convenção narrativa ficou conhecida como “presente etnográfico”. o lócus da investigação etnográfica pode ser uma empresa. as celebrações. que perguntas faz e que teoria o orienta. suspendem o tempo e criam a ilusão de que o objeto da descrição é contemporâneo ao leitor. Suas anotações constarão de um caderno de campo. A proposta é interagir com as pessoas e procurar imergir no cotidiano do grupo social. uma reação ao evolucionismo. observa. 2. inclusive através da participação em suas atividades e eventos. fazer perguntas e entrevistas. A aposta na análise sincrônica dos eventos sociais se opunha claramente ao privilégio que as teorias evolucionistas conferiam ao eixo temporal. América ou em uma ilha do Pacífico. porque o que interessa é o que o pesquisador procura. para quais fatos dirige seu olhar investigativo. um relato dos vários aspectos da vida social real de um grupo no momento em que transcorriam e eram observados pelo antropólogo. Em segundo. Outro recurso contestado pelos funcionalistas era a teoria das sobrevivências. Artifícios como o uso do presente do indicativo e a eliminação da perspectiva histórica congelam a ação. A proposta destes trabalhos era oferecer um retrato da sociedade. colhe dados. o etnógrafo escuta. o funcionalismo indaga cada sociedade pelo que ela é em si mesma. Entretanto. os evolucionistas articulavam passado e presente. confrontamo- . instituições. quer uma cultura extremamente complexa e desenvolvida. Ele foi um dos primeiros antropólogos que se dedicaram intensa e sistematicamente a compreender o que pensam. permanecem como sobrevivências do período em que tiveram alguma utilidade. desempenham uma função dentro dela. Trata-se da tese de que as instituições sociais são construídas para satisfazer necessidades dos seres humanos. exprimindo-se. nos códigos institucionais dos vários grupos da sociedade. O trecho seguinte nos auxilia a compreender melhor a orientação funcionalista da antropologia de Malinowski: 24 Como é óbvio. Em linhas gerais. Costumes. à maneira de um organismo em que todas as suas partes confluem para a preservação do todo. defendendo que certos costumes herdados perdem o significado com o tempo e as mudanças. assim. recusa os pressupostos evolucionistas e confere novo relevo à alteridade: em vez de priorizar a humanidade em diferentes estágios sociais.Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB Através dela. podemos dizer que o funcionalismo. todas as culturas possuem um ponto fundamental em comum: as culturas humanas têm a função de satisfazer as necessidades elementares dos seres humanos. Para Bronislaw Malinowski. cada cultura possui sua lógica própria. uma noção de totalidade cultural integrada. sendo estas sobrevivências referenciadas como evidência do processo evolutivo. mas persistem nas sociedades como meros resíduos da história. A objeção dos funcionalistas com relação à teoria das sobrevivências é patente. de acordo com sua concepção funcionalista. Quer consideremos uma cultura muito simples ou primitiva. se eles continuam em funcionamento na estrutura social é porque têm um sentido. nas ideias e artes. a cultura consiste no conjunto integral de instrumentos e bens de consumo. sentem e fazem homens e mulheres de culturas diferentes da prevalecente na civilização ocidental contemporânea. comportamentos não existem ao acaso. é um efeito direto da proposição central desta corrente de que tudo no sistema social tem uma funcionalidade. com sua significação e coerência no interior da sociedade em que está em vigor. nas crenças e costumes humanos. nem podem ser considerados sobras da evolução. desenvolvido na antropologia social britânica com Bronislaw Malinowski (1884-1942) e com Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955). definindo-se pelo fato de todos os seres humanos terem de comer. respirar. mas. (MALINOWSKI. 2009. a cultura é uma consequência da natureza humana. EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB A teoria funcionalista de Malinowski assenta-se em fundamentos biológicos: os seres humanos são uma espécie animal cuja sobrevivência requer a satisfação de necessidades naturais. o homem produz armas aguçadas e pesadas.] (MALINOWSKI. a construção de artefatos e o consumo organizado de bens. dormir. Estes problemas resultam do fato de o homem possuir um corpo sujeito às necessidades orgânicas mas variadas e de viver num meio ambiente que é o seu melhor amigo visto fornecer-lhe a matéria-prima destinada ao seu trabalho manual. p. Faltam-lhe armas naturais tais como garras. [. procriar e eliminar excreções do organismo. pois alberga muitas forças hostis.] Para produzirem os objetos necessários. Dessa forma.. mas que é ao mesmo tempo um inimigo perigoso. da lei e da ética [. em parte material e em parte espiritual. a necessidade de resolver os problemas apresentados pelas necessidades nutricionais.. dizer que a cultura possui uma função significa afirmar que corresponde ao atendimento de necessidades humanas mediante a cooperação. Em outros termos. os dotes anatômicos do homem são algo escassos. Inventa e aperfeiçoa instrumentos [. 2009.] Em contrapartida.. Sob o ponto de vista funcionalista de Malinowski. regulamentar a conduta coletiva e manter vivas as tradições do conhecimento. por um conjunto de necessidades básicas que constituem o determinismo biológico sobre o qual se erguem as culturas. 130-132). Nesse sentido. p... presas ou bolsas de venenos. reprodutivas e higiênicas dos seres humanos determina a construção de um ambiente artificial.Antropologia Social Britânica: o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown – Capítulo 2 -nos com um vasto dispositivo.. os seres humanos organizam-se em grupos perma25 . que possibilita ao homem fazer face aos problemas concretos e específicos que se lhe deparam. capazes de atingir alvos distantes. [os homens] têm de obedecer a normas técnicas. diante das necessidades naturalmente impostas para a sua sobrevivência. sendo esta compreendida não em uma dimensão filosófica. 45). Essa relação entre natureza humana e cultura é exposta nos seguintes termos por Malinowski: Comparados com os dos outros animais. em sociedades caracterizadas por instituições que definem as relações dos seres humanos entre si e com o meio ambiente. É da observação direta desta realidade concreta que o antropólogo parte para poder alcançar as formas gerais. o comportamento. contudo. Interessado em instituições do . Ou seja. nessa configuração de tipo mais estável e constante baseada nas redes de relações sociais de determinada espécie e instituições sociais existentes. Por exemplo. assim. procedimentos educativos. e. a vida cultural implica novas necessidades e novos imperativos para o comportamento humano: transmissão da tradição pelas gerações. regras e costumes. João e Antonio ou o comportamento de Juca e Zeca podem ser anotados no nosso caderninho de notas e servir de exemplos para a nossa descrição geral. mecanismos que assegurem a vigência dos costumes. é a fim de poder registrar o mais precisamente possível a forma geral ou normal dessas relações. as ações observadas só interessam na medida em que permitem derivar a ocorrência de uma forma geral de interação que se reproduz independentemente dos sujeitos envolvidos. então. da lei. de pessoas que se acham na relação de irmão da mãe e filho da irmã. em certo número de casos. vividos sob as instituições culturais. Mas o que necessitamos para fins científicos é de uma descrição da forma da estrutura. temos que: Proibida a reprodução – © UniSEB As relações reais de Pedro. as relações de pessoa a pessoa. o objetivo é identificar as regularidades a fim de atingir um modelo formal. a estrutura social consiste. As necessidades e os impulsos naturais. uma com as outras. abstração feita das variações de casos particulares. Na explicação do próprio Radcliffe-Brown. são profundamente afetados pelas culturas em que estão inseridos. da moral. p 160-161). a antropologia tem como objeto de investigação as relações de associação estabelecidas entre os seres humanos. Nas comunidades chamadas tribais. se numa tribo australiana eu observo. por exemplo. constituem uma parte fundamental de sua estrutura social. 1970. como aquelas entre pais e filhos. portanto. Assim. 26 Para Radcliffe-Brown. Já de acordo com a proposta estrutural-funcionalista proposta por Radcliffe-Brown. se bem que levando em conta essas variações (RADCLIFFE BROWN. estruturais destas conexões e assim descrever a estrutura social em operação. articulados em leis. a saber. as relações de parentesco permeiam todas as esferas da vida social e.Antropologia Cultural nentes. Além disso. EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Reflexão As teorias antropológicas desenvolvidas posteriormente ao evolucionismo. com isso. conferem relevo ao tema da alteridade e da diversidade cultural humana. Com menor ou maior intensidade. 02. malgrado suas diferentes perspectivas. rompem com o etnocentrismo característico da primeira geração de antropólogos e. Atividades 01. apresentam alguns aspectos comuns. caracterizadas por responder pelo funcionamento. a ser investigadas como realidades próprias e autônomas. integração e continuidade das estruturas sociais. Radcliffe-Brown dedicou-se ao estudo de fenômenos como as sanções sociais e o direito primitivo. adquire relevo também a sistemática investigação etnográfica. com o propósito de se encontrar uma base verdadeiramente empírica para o saber antropológico.Antropologia Social Britânica: o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown – Capítulo 2 mesmo tipo. Caracterize o método etnográfico e sua importância para a antropologia. Descreva as perspectivas funcionalistas de Bronislaw Malinowski e de Radcllife-Brown. 27 . então. As diferentes culturas das diferentes sociedades humanas passam. B.1883-1911: antologia. 2009. George (org). MALINOWISKI. Uma teoria científica da cultura. No próximo capítulo Proibida a reprodução – © UniSEB Prosseguiremos no exame das diferentes vertentes da antropologia. São Paulo: Abril Cultural. François. Referências BENEDICT. LAPLANTINE. B. constitui-se em uma ótima introdução ao método e à concepção antropológica funcionalista.ed). examinando o culturalismo norte-americano e as contribuições francesas para o conhecimento antropológico. MALINOWSKI. In: STOCKING.Antropologia Cultural Leitura recomendada Uma teoria científica da cultura. São Paulo: Brasiliense. Aprender antropologia. livro de Bronislaw Malinowski (70. Os argonautas do Pacífico Ocidental. Franz. Lisboa: Livros do Brasil. Padrões de cultura. Rio de Janeiro: Contraponto e Editora UFRJ.ed. Lisboa: 70. 2010. 2004. A formação da antropologia americana. BOAS. 1984. Os princípios da classificação etnológica. Ruth. 28 . em algum momento com a expressão relativismo cultural? De ouvir dizer que nossos pensamentos são condicionados pela sociedade em que vivemos? Esses temas são tratados neste capítulo.3 lo ít u Cap O Culturalismo NorteAmericano e os Estudos Antropológicos Franceses Neste capítulo. e algumas características da obra do antropólogo Lévi-Strauss. perspectiva filosófica lançada por Franz Boas. Objetivos da sua aprendizagem • Compreender o culturalismo antropológico norte-americano e as contribuições de intelectuais de tradição francesa para o pensamento antropológico. apresentaremos o culturalismo norte-americano. com Mauss e Durkheim. . bem como descreveremos as contribuições francesas para a antropologia. Você se lembra? De ter se deparado. Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB 3. compilado por George Stocking. em primitivos e civilizados. Boas iniciou sua carreira contrapondo-se à orientação evolucionista dominante na antropologia norte-americana do final do século XIX. o que o torna um adepto do individualismo metodológico. para o estudo do caso individual. Nele. Além da insatisfação com a classificação do mundo em povos mais ou menos evoluídos. ele realizou expedições para estudar os esquimós da Terra de Baffin e os índios Kwakiutl da costa de Vancouver. foi o imigrante e judeu alemão Franz Boas (1858-1942) quem inaugurou a moderna tradição de estudos antropológicos. Foi responsável por elaborar críticas definitivas tanto à ideia de evolução social unilinear. reunindo um estoque especial de elementos. engajando-se em debate públicos contra o racismo e a favor da igualdade entre os povos. Seu problema era saber de que forma a ação de fatores geográficos e processos históricos podia influenciar na formação do caráter específico de determinada configuração cultural. ao longo da vida. conhecida como culturalismo americano. Sua atenção não se voltava para a elaboração de esquemas gerais. ilustra uma Fotografia bem conhecida em que Boas estaria de suas divergências com ilustrando o movimento de uma dança que ele os evolucionistas. . mas ao contrário. desafiando a premissa da inferioridade destes últimos. interessava-lhe compreender como uma cultura.1 Antropologia cultural 30 Nos Estados Unidos. Um artigo de Boas de 1887. Também um dos pioneiros na condução de pesquisa de campo entre “povos primitivos”. conferia ao todo um significado e uma orientação próprios. quanto à crença de que existiriam diferenças inatas entre a mentalidade de civilizados e a de primitivos. porém. observou em campo. Boas rejeitava a busca por leis universais de desenvolvimento social e a derivação de grandes generalizações a partir da comparação de fatos etnográficos similares. Desse modo. ele também promoveu um ferrenho ataque ao conceito de raça. Coerente com este posicionamento. para a investigação das qualidades do particular. subtraídos de seus contextos sociais. por exemplo. Otis T. porque tiveram causas comuns. fora do contexto das outras invenções do povo a que pertence e fora do contexto dos outros fenômenos que afetam esse povo e suas produções.O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3 Boas discute os critérios usados para organizar as coleções etnológicas em museus e critica o sistema adotado pelo curador de etnologia do Museu Nacional de Washington. lanças e facas) é sugerir que. O que tal coleção revelaria além do fato de que os povos se servem de meios similares para fazer música? Segundo ele. armas (um conjunto de arcos. Nada é dito acerca 31 . O objetivo na forma de arranjo de Mason. Assim afirma ele: EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Não podemos compreender o significado de um artefato singular se o consideramos fora do seu ambiente. uso e finalidade do objeto dentro do seu contexto de origem. Seu ponto de vista fica ainda mais claro quando ele discute o exemplo hipotético de uma disposição de artefatos que combinasse uma coleção de instrumentos como flautas e tambores indígenas e instrumentos musicais de uma orquestra moderna. A objeção de Boas é com a forma de classificação museológica sem potencial explicativo. invenções semelhantes podem ser encontradas entre povos muito distantes e podem ser entendidas sem a necessidade de referência à sua conjuntura “tribal”. Boas julga que esse procedimento classificatório é arbitrário e não serve aos objetivos de uma coleção etnológica. 2004. primeiro. Em segundo. Uma coleção de instrumentos usados para o mesmo fim ou feitos do mesmo material ensina apenas que o homem em diferentes regiões da Terra tem feito invenções semelhantes. Por outro lado. divide as invenções humanas como se fossem espécimes biológicos com base em sua aparência externa. por ser uma classificação centrada nos objetos e suas similaridades. uma coleção que representa a vida de uma tribo permite compreender muito melhor o espécime singular (STOCKING. ao mostrar diferentes exemplares de um tipo de artefato. porque. que não permite a identificação das características que compõem o estilo de cada grupo e não favorece a apreensão da cultura como um todo. não é feita nenhuma contribuição para a questão principal: as características da música de cada cultura. principalmente porque não propicia o entendimento do significado. Mason. o que não esclarece a respeito do estilo de cada grupo. nem esclarece acerca de suas relações com outros elementos da cultura em questão. p 87). O argumento de que cada fenômeno cultural corresponde a uma combinação de elementos segundo uma lógica e uma história próprias e que. deve ser estudado individualmente. Este postulado está na raiz da rejeição dos antropólogos boasianos ao método comparativo – tendência que radica em outro texto seminal de Boas. nem dos métodos tecnológico aplicados para atingir esse objetivo. ou seja. Esta . Nesse sentido. ao discorrer sobre como deveria ser o tratamento da cultura material de um povo pelos museus etnológicos. defendendo a integração do elemento em seu conjunto cultural particular. algo se perde. 32 Na verdade. sua forma pode ser característica da arte do povo (STOCKING. um dos pilares da antropologia boasiana: a ideia de que cada cultura é uma totalidade que integra e confere significado às suas partes. merece destaque o trabalho da sucessora de Boas na cátedra de antropologia da Universidade de Columbia. o pode resultar do prazer que as crianças sentem com barulhos de qualquer tipo. para Boas.Antropologia Cultural dos diferentes estilos musicais que enfim é o que determina a produção dos instrumentos dentro de cada grupo. Como consequência. 2004. não resulta simplesmente da idéia de produzir barulho. também escrito para refutar a forma arbitrária dos evolucionistas compararem traços de culturas diferentes e a partir disso tecerem generalizações impróprias. cada cultura escolhe apenas uma pequena porção de traços do grande arco de costumes e comportamentos humanos possíveis. Extraído o contexto. “a tribo” – ou seja. tornou-se dominante na tradição americana. por exemplo. Na trilha do mestre. cada grupo se destaca por um conjunto de costumes. “As limitações do método comparativo” (1895). tradições e instituições. p 90). pois qualquer barulho pode ser empregado para invocar ou afastar os espíritos. resulta de concepções religiosas. Além disso. como bem observa Stocking. portanto. Ruth Benedict (1887-1948). o conjunto – e não o objeto – o elemento – deveria ser o critério para a organização das coleções etnológicas. Proibida a reprodução – © UniSEB O chocalho. mesmo porque é só dentro de seu contexto cultural que um objeto deixa entrever os sentidos que tem para o grupo e pode receber uma classificação adequada. Para Benedict. o texto em tela apresenta. os alunos de Boas assumiram que a cada povo corresponde uma cultura com perfil particular. Em cada uma. os costumes. afirmando. a matéria-prima da antropologia é tal que ela precisa ser uma ciência 33 . orientando seus membros a um determinado temperamento. o individualismo metodológico ou o método histórico de Franz Boas enfatiza a importância de se entender o desenvolvimento interno e específico de cada cultura. examinando como os modos de vida dos indivíduos são tributários da cultura a que pertencem.. segundo o qual os valores. Em linhas gerais. Essas teses de Franz Boas incidem no relativismo cultural. nem sempre se deve às mesmas causas. conforma o “espírito” ou “ethos” de um povo. desse modo. Boas entende que não há uma lei geral ou um elemento fundacional presente em todas as culturas. em outros termos. portanto. a partir dos quais muitos estudiosos pretendem identificar leis vigentes nas diversas culturas. espécie de “personalidade coletiva” responsável por moldar uniformemente as emoções dos indivíduos. os paralelismos entre diferentes culturas resultam de causas sociais capazes de produzir efeitos similares e de problemas para os quais há um número limitado de soluções. Cada cultura dá forma aos seus variados elementos segundo um padrão.. [. uma configuração. sem a utilização de critérios comparativos e hierarquizantes entre as culturas. jamais indicando a existência de um único caminho cultural para a humanidade. Quando muito. As condições causais das ocorrências culturais repousam sempre na interação entre indivíduo e sociedade. é uma perspectiva extremamente contrária às tendências etnocêntricas. e nenhum estudo classificatório das sociedades irá solucionar esse problema. Assim. Portanto. radicalmente a pluralidade cultural: há culturas humanas.] Em resumo. sendo compreensível apenas na história particular de cada cultura. a proposta culturalista de Franz Boas consiste no estudo das características particulares de cada cultura.EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3 combinação original responde pela feição característica que cada configuração cultural possui. Nesse sentido. O relativismo cultural. pois cada sociedade desenvolve sua história cultural: Os fenômenos culturais são de tal complexidade que me parece duvidoso que se possa encontrar qualquer lei cultural válida. as instituições e normas de conduta tendem a uma direção. as práticas e as normas de uma cultura são legitimados exclusivamente no interior mesmo desta cultura. então. para Boas. e não um só modelo cultural. esse antropólogo destaca que a ocorrência de fenômenos culturais similares em diferentes sociedades. não há uma história única. mais do que no estabelecimento de leis gerais (BOAS. Mauss e outros sociólogos franceses se dedicaram ao estudo empírico comparativo de certas ideias engendradas pelo pensamento coletivo a fim de desvelar seus mecanismos de funcionamento e. a história da disciplina tem uma peculiaridade. sistemas de conhecimento ou categorias. entre as sociedades ditas “primitivas”. para a antropologia social britânica.1917).Antropologia Cultural histórica. uma das ciências cujo interesse está centrado na tentativa de compreender os fenômenos individuais. como o estrutural-funcionalismo de Radcliffe-Brown. certas categorias do entendimento. Contudo. Ele exerceu influência notável também sobre o campo da antropologia tanto pelo fato de haver analisado alguns fenômenos sociais.2 Contribuições antropológicas dos estudos franceses 34 Do mesmo modo que Malinowski e Radcliffe-Brown. é mais apropriado falarmos em uma Escola Sociológica Francesa no âmbito da qual Mauss e seu tio. para a vertente culturalista norte-americana. contribuíram com grandes trabalhos de inegável importância tanto para o pensamento etnológico como para o sociológico. Noções . como a magia e a religião. p. e Boas. Interessa-nos aqui. o plano de trabalho pioneiro da escola francesa ao eleger como objeto de pesquisa sociológica as categorias do pensamento ou as chamadas “representações coletivas”. quanto porque sua metodologia de abordagem do mundo social e seus instrumentos de análise acabaram inspirando correntes antropológicas. particularmente. Marcel Mauss (1872-1950) é o principal nome associado à fundação da antropologia na França. neste último país. Emile Durkheim (1858. têm uma história.107). 2010. os esquemas lógicos de classificação. sobretudo. O argumento é que a sociedade impõe sobre os indivíduos certos esquemas de pensamento. Com efeito. e não simplesmente como algo dado na consciência individual. Para eles. devem ser tomados enquanto fatos sociais. enquanto fenômenos de ordem coletiva. já que seu desenvolvimento esteve profundamente associado ao da sociologia. demonstrar como elas estão atreladas à sociedade. Proibida a reprodução – © UniSEB 3. Durkheim é um dos autores fundamentais da sociologia clássica e o grande responsável pela institucionalização da disciplina na França. Longe de serem inatas. as ideias coletivas são construídas. Durkheim. divididas em agrupamentos sociais chamados de clãs. a cada momento de sua história. p 234). suas estruturas sociais e suas mentalidades (MAUSS. às honras. é bem conhecida a contribuição de Mauss por meio do estudo das formas embrionárias que a noção de pessoa (a ideia do “eu”) assume em sociedades consideradas “primitivas” até a articulação do conceito de consciência individual psicológica. originando-se em certas estruturas sociais. Nesse sentido. MAUSS. ao clã. ainda que parcialmente. segundo seus direitos. é a partir do grupo que se compõe a pessoa enquanto personagem social. através de numerosas sociedades. 1981. nomes e privilégios reconhecidos a um personagem social. os indivíduos encontram-se ainda muito dissolvidos. mas a noção. ela deve seu nome. à personalidade humana. contudo constituem produto da consciência coletiva.se lentamente. confundidos na coletividade. em íntima relação com a organização social correspondente” (DURKHEIM . continua o autor. De acordo com Mauss: “Às funções. emerge um conceito jurídico de pessoa e também a ideia de que a “persona” pode corresponder à verdadeira natureza do indivíduo. Em suas próprias palavras. Ao lado da personagem.. diz Mauss. p 455). aos cargos. Mauss busca investigar: EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Como. aos direitos acrescenta-se a pessoa moral consciente” (MAUSS. uma noção de pessoa concebida como um fato do direito. da máscara do teatro. É entre os romanos. seus costumes.). os pesquisadores franceses procuraram indicar “de que forma ideias tão abstratas como aquelas de tempo e de espaço se acham. 1974. em diferentes trabalhos. seu papel ritual. Aqui se tem a pessoa enquanto um fato da organização. espaço. o conceito respectivo que os homens das diversas épocas criaram (. Acompanhando relatos etnográficos de diversas partes do mundo. número e pessoa (o “eu”) são manifestações do espírito humano. Mauss discute como em sociedades “primitivas”. 35 . não o sentido do ‘eu’. seus títulos e direitos. Nesse caso. suas religiões.O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3 gerais como tempo. O que quero mostrar aos senhores é a série de formas que esse conceito revestiu na vida dos homens em sociedade.. 1974. Este caráter pessoal do direito é enriquecido com os gregos por meio da adição de um sentido moral à pessoa. que é próprio das civilizações modernas. p 211). vinculando-se a certos usos sociais. Assim. que se estabelece. no curso dos séculos. elaborou. sua posição social. a transformação definitiva teria resultado do esforço empreendido pelos filósofos. O ponto de partida é a recusa da hipótese. constroem a noção do “eu” como categoria fundamental da consciência. equaciona-se a pessoa ao eu. 1974. Já os psicólogos apostam no papel da associação de ideias e na capacidade de entendimento abstrato. está feita a revolução das mentalidades. então prevalecente. Mas Durkheim e Mauss opõem-se a tudo isso: . ou. p 400). O projeto que inaugurou o estudo dos aspectos sociais dos sistemas de conhecimento foi o conduzido em parceria por Durkheim e Mauss sobre a faculdade de classificar. os acontecimentos. Por fim. humanidade.Proibida a reprodução – © UniSEB Antropologia Cultural 36 A passagem da “persona” para a pessoa humana dependeu do trabalho do cristianismo. Primeiro. Para os lógicos. cada um de nós tem o seu ‘eu’” (MAUSS. A convicção na unidade de Deus. amalgamando substância e forma. fazem da consciência humana a condição para a razão prática. de que a elaboração lógica do mundo sensível resulta de uma atividade espontânea que depende tão somente da consciência dos indivíduos. em determinar suas relações de inclusão e de exclusão” (DURKHEIM. o mundo sensível oferece o esquema da classificação que é apreendido pelo homem. em subordiná-los uns aos outros. a hierarquia dos conceitos está dada nas coisas. procurando buscá-la seja a partir de faculdades imanentes ao indivíduo. seja pelas propriedades do mundo real. os autores contestam tanto a psicologia quanto a lógica por ambas atribuírem à gênese de tal função uma necessidade natural da humanidade. O discurso religioso empresta à pessoa tanto um sentido de universalidade. edifica-se a ideia de uma consciência individual. e em decorrência na unidade das duas naturezas de Cristo e da própria Igreja. No artigo “Algumas formas primitivas de classificação”. seriam inatas. das noções de gênero e espécie. coloca também a questão da unidade do homem. MAUSS. 1981. psicológica. individual. a noção cristã de pessoa fundamenta-se no caráter uno e indivisível do ser. é rebatida a tese kantiana de que as categorias do entendimento – e aqui é incluída a classe – estariam dadas a priori. Com eles. quanto de unidade (“todos são um em Cristo”). os fatos do mundo em gêneros e em espécies. se preferir. Depois. Concebendo a função classificadora como “o procedimento que consiste em classificar os seres. é apresentada uma teoria sociológica da categoria “classe”. obra da intelecção pura (razão pura). “A partir de então. publicado em 1903 na revista L’Anee de Sociologique. Unindo corpo e alma. p 239). Nesse caso. O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3 Uma classe é um grupo de coisas; ora, as coisas não se apresentam por si mesmas tão agrupadas à observação. Podemos perceber de maneira mais ou menos vaga suas semelhanças. Mas o simples fato destas semelhanças não basta para explicar como somos levados a reunir os seres que assim se assemelham e reuni-los numa espécie de meio ideal, encerrado nos limites determinados, e que chamamos um gênero, uma espécie etc. Nada nos autoriza a supor que nosso espírito, desde o nascimento, traga já elaborado em si o protótipo deste quadro elementar de toda classificação (DURKHEIM; EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB MAUSS, 1981, p 403). Destarte, se o modelo das classificações, com suas relações de coordenação e subordinação, não pode ser encontrado nem no mundo natural nem na consciência individual, onde é que os autores propõem buscá-lo. Como sociólogos, eles assumem que o plano da psicologia individual subordina-se ao da organização social e, consequentemente, não é graças a uma atividade introspectiva que os homens teriam atingido as tipologias em que se enquadram os seres vivos. É porque estavam agrupados no mundo social que os homens puderam projetar um ordenamento ao reino natural. O fato de o coletivo ter precedência sobre o individual sugere que para explicar os quadros de disposição das coisas deve-se articulá-los aos grupos sociais entre os quais operam. No lastro dessas contribuições antropológicas francesas, desenvolve-se a pesquisa do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que tinha origem belga, mas realizou seus estudos de graduação na França, sendo, em larga medida, um seguidor de Marcel Mauss. Com efeito, Lévi-Strauss contemplou em seus grandes trabalhos aspectos teóricos da obra maussiana, sendo um exemplo o princípio da reciprocidade sobre o qual Lévi-Strauss assentou sua teoria das trocas matrimonias (LÉVI-STRAUSS, 1949). Mas o que nos diz respeito aqui mais diretamente é o prosseguimento que ele deu ao projeto conjunto de Mauss e Durkheim de tornar inteligível a lógica das classificações primitivas, compartilhando com eles o interesse mais geral pelo modo como pensam os povos indígenas. O diferencial de Lévi-Strauss é que ele não vai trabalhar com a correspondência entre a morfologia social e a disposição do mundo natural em classes, ele concentra sua discussão no plano das classificações, adentrando no sistema de ordenação estabelecido, na lógica das rela37 Proibida a reprodução – © UniSEB Antropologia Cultural 38 ções construídas. Entretanto, retém, claro, algumas das preciosas lições aprendidas com Mauss e Durkheim. Uma delas diz respeito ao reconhecimento de que, longe de constituírem “singularidades excepcionais sem analogia com aquelas que estão em uso entre povos mais cultivados”, as classificações primitivas se revelariam ligadas “às primeiras classificações científicas” (DURKHEIM; MAUSS, 1981, p 451). Seguindo nesta trilha, Lévi-Strauss se propõe a qualificar essa ligação, voltando-se para as propriedades comuns que unem as duas formas de categorização, mas preocupando-se em desvelar a lógica própria dos sistemas primitivos – empreendimento esse que resulta em um livro bastante desafiador intitulado provocativamente de O Pensamento Selvagem (1962). Lévi-Strauss começa denunciando que, com frequência, analistas incorrem em preconceitos ao avaliar o modo de pensar dos “primitivos”. Ele observa algumas tendências. O caso de sociedades ditas “primitivas”, em que proliferam terminologias mais gerais e abstratas em detrimento de nomes específicos, é mobilizado para referendar a teoria de que tudo na natureza que não se presta ao uso útil ou não atende a uma necessidade deixa de despertar o interesse intelectual destes povos e, por isso, eles não se preocupam em definir de modo mais preciso uma série de coisas desprovidas de utilidade, referindo-se a elas simplesmente através de termos genéricos. O mesmo raciocínio, só que invertido, ou seja, a hipótese de que os “primitivos” demonstram uma incapacidade para o pensamento abstrato busca sua pretensa comprovação no caso das línguas que carecem de conceitos abrangentes, como, por exemplo, o de “animal” ou o de “árvore”, e que, por outro lado, priorizam o detalhamento e a atribuição de denominações próprias para uma grande variedade de espécies naturais. Em resumo, a despeito de revelarem uma riqueza de conceitos e classificações abrangentes ou uma plêiade de nominações precisas e terminologias descritivas, as informações etnográficas sobre as classificações dos outros povos acabam sendo constantemente mobilizadas para servir à teoria geral da inépcia do modo de pensar dos “primitivos”. É contra tal atitude que Lévi-Strauss irá se opor veementemente na obra ora discutida. Segundo ele, nada na observação cuidadosa dos sistemas de classificação destes povos nos autoriza a negar-lhes a capacidade de abstração nem tampouco a imputar-lhes uma negligência intelectual com relação a coisas, seres e fenômenos que não digam respeito diretamente à sua experiência prática ou não possam ser convertidos em recursos econômicos. O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3 Com efeito, o pensamento de cada cultura inclina-se para interesses divergentes e, portanto, é natural que cada língua realize um determinado recorte conceitual, preferindo investir na formulação de terminologias mais ou menos abstratas, conforme o caso. A curiosidade do espírito e a vocação para o conhecimento não são apanágios das ditas sociedade civilizadas. É um grande equívoco supor que o “selvagem” interpele o mundo somente em função de suas necessidades orgânicas. Mais que isso, é uma grande injustiça. Atividades 01. Caracterize a antropologia cultural de Franz Boas. 02. Destaque as contribuições dos teóricos franceses para a antropologia. EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Reflexão O interesse dos antropólogos em compreender formas outras, por vezes “estranhas”, de conhecer e pensar o mundo, manifestadas por diferentes culturas, foi responsável por assentar a discussão instigante sobre como pensamos em solo empírico, nas condições sociais. Dados etnográficos expuseram a diversidade de lógicas com as quais as sociedades operam e muito provavelmente contribuíram para expandir nossa visão paroquial acerca da questão da(s) racionalidade(s) humana(s). Classificação totêmica, lógica do concreto, pensamento mágico e outros esquemas intelectuais não foram apresentados pelos antropólogos aqui discutidos aos contemporâneos das sociedades em que eles viviam como espécimes exóticas de uma mentalidade pré-lógica ou irracional. Embora, com efeito, esta disposição também tenha ocorrido, ela foi francamente minoritária. Ao contrário, a tendência dominante foi de os estudiosos se empenharem, por um lado, na demonstração de que mesmo formas de racionalidade tão discrepantes daquelas prevalecentes no mundo ocidental podiam ser compreendidas se apreciadas em seus próprios termos, podiam se revelar inclusive bastante apropriadas, uma vez que fosse desvelado 39 Proibida a reprodução – © UniSEB Antropologia Cultural 40 seu encadeamento lógico, seu sentido próprio e sua ressonância com a experiência vivida. E por outro lado, algumas análises antropológicas tenderam ainda a defender que, se procurássemos bem, poderíamos encontrar tanto fenômenos da ordem da ciência e da filosofia em roupagens mais simples, elementares e menos cultivadas entre os povos “primitivos” (nada menos do que uma “ciência do concreto”, por exemplo), quanto poderíamos até descobrir entre nós mesmos áreas de refúgio em que ainda florescem expressões de uma razão mítica. A tradição da antropologia francesa, como vimos acima, primou por grandes sínteses, cruzando dados etnográficos de várias sociedades, extraindo suas propriedades comuns e formulando princípios e proposições de amplo escopo. A teoria explicativa de um fenômeno é elaborada com base na sistematização e análise dos fatos observados em várias culturas. Como contraponto a este estilo, trazemos o exemplo de outro tipo de abordagem aplicada à questão da lógica nativa. Um estudo centrado em uma única sociedade, tendo em vista apreender o sistema de pensamento com o qual ela opera e revelar sua coerência. Nesse caso, o problema é como descrever um complexo de crenças em feitiçaria e suposições místicas a respeito da causalidade dos fenômenos de modo a evidenciar a racionalidade do sistema e a torná-lo inteligível para uma audiência desacostumada a acreditar nesse tipo de explicação causal dos eventos. O trabalho aludido é a clássica etnografia de E.E. Evans-Pritchard sobre a bruxaria entre os Azande. O povo Zande vivia na região que hoje corresponde ao cruzamento de três fronteiras nacionais: os Estados do Zudão, da República Democrática do Congo e da República CentroAfricana. A pesquisa realizada por Evans-Pritchard, em fins da década de 1920, focalizou os Azande habitantes do Sudão. O livro Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande (1937) oferece uma sistematização das crenças desta população na existência de bruxos, ou seja, de pessoas dotadas de certos poderes maléficos que fazem uso deles para prejudicar seus inimigos. A bruxaria corresponde a uma substância escondida no interior do corpo do indivíduo e, portanto, ela tem uma base física, sendo, inclusive transmitida hereditariamente, porém, sua ação se realiza através de um ato psíquico dirigido a quem se quer atingir. Segundo a descrição de Evans-Pritchard, as ideias e práticas com respeito à bruxaria povoam a vida Zande. Ela se apresenta como um fenômeno tão prosaico, ao qual as pessoas se referem tão cotidianamente, que não provoca sentimentos de temor, mas tão somente aborrecimento. Acidentes, o estudo detalhado de costumes. Bagbeyo foi coletivamente reputado como um nakuangua ou nangbisi (um bruxo). Além deles. o esforço teórico-filosófico de caso de morte.ac.prm.ox. assassinato do bruxo. só é permitido abater o bruxo pelo recurso à magia. 2007.O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3 EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB empreendimentos fracassados e os eventos nocivos mais diversos podem ser atribuídos à “Mauss dividiu o estudo da antropologia em ação dos bruxos. parcialmente cortado. Em antropologia. os parentes da vítima generalizar sobre a humanidade e a socieestão autorizados a se vingar – o que dade fundamentado nas descobertas feitas pelos dois estudos anteriores” (Eriksen e tradicionalmente podia implicar no Nielsen. Muito frequentemente. em que ele argumenta que a tenacidade da crença na bruxaria se deve ao fato de ela propiciar uma explicação para os infortúnios que acometem os homens e um artifício para reagir a eles. São fornecidos inúmeros relatos de como a noção opera na vida diária dos indivíduos explicando a cadeia causal de condições 41 . 63). bem certas características peculiares crenças e da vida social. estão outros homens. ou seja. três níveis de pesquisa: etnograepisódios de doença e morte que exifia. mas que sob o domínio britânico ficou restrito ao método mágico de vingança. Um retrato de um ancião na província de Prince Rikita (identificado como Bagbeyo) usando um ornamento no pescoço (de dente de animal?) e um chapéu. o estudo empírico da comparação regional.uk/details O ponto alto do estudo de Evas-Pritchard é o capítulo dois. etnologia. Data da foto: 1927 Fonte: Coleção de Fotografias tiradas por Evans-Pritchard intitulada “Fotografias Zande” e pertencente ao acervo do PittRivers Museum | http://southernsudan. À sua direita está um outro homem (identificado como Nzoropoi). e são interpretados deste modo. Aparentemente. um inclinado sobre um telhado. negligenciem inteiramente as causas secundárias que. por dizerem que um homem foi morto por bruxaria. o rapaz concordou que tocos são naturais. e depois veio a ter uma infecção. Se um celeiro cai sobre pessoas que estavam sentadas sob sua sombra.Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB que liga um determinado indivíduo a certos acontecimentos naturais que culminam em sua desgraça. De outro modo. somente o expediente da bruxaria poderia explicar este encadeamento de coincidências incomuns. Portanto. mas alegou ter prestado atenção e. cortes costumam cicatrizar rápido e não infeccionar. ferindo o pé. Porém. À ressalva de Evans-Pritchard de que o toco estava lá porque é coisa que cresce em toda parte na África. O que eles estão fazendo aqui é abreviando a cadeia de eventos e selecionando a causa socialmente relevante numa situação social particular. Quem sente que sua desgraça se deve ao fato de ter sido “embruxado” busca então identificar seu perseguidor entre seus inimigos e entre seus vizinhos. atos de bruxaria são esperados quando há relações de antagonismo entre o agente e a vítima. Os Azande bem sabem como o infortúnio do rapaz aconteceu. algo comum nas horas quentes do dia. Um rapaz que ao caminhar pela mata bateu em um toco de árvore. deixando o restante de lado. Notadamente. o que está bastante conforme com o postulado de que a bruxaria só surte efeito à curta distância. como no seu caso. declarou que havia sido vítima de bruxaria. Isso é feito através da consulta ao oráculo do veneno onde uma substância tóxica é administrada a uma ave e. Veja outro exemplo relatado. as pessoas teriam ficado lá sem que o teto caísse sobre elas. a ocorrência simultânea dos dois eventos só pode mesmo ser atribuída à ação da bruxaria. ou o celeiro teria desabado em outro momento. Um exemplo. conforme a reação desta. 42 A crença zande na bruxaria não contradiz absolutamente o conhecimento empírico de causa e efeito. Se um homem é morto . Não nos devemos deixar enganar por seu modo de exprimir a causalidade e imaginar que. além disso. e que o garoto andava displicentemente. O resultado positivo induz a tomada de certas providências para neutralizar o bruxo. mas só a bruxaria é capaz de explicar por que eventos comuns resultaram em efeitos danosos. são as razões reais daquela morte. em nosso modo de ver. visto que os Azande não ignoram a culpa dos cupins que roem os esteios. também não se estranha o fato de alguém estar descansando sob o celeiro. tem-se o veredicto acerca da suspeita de bruxaria. ninguém se surpreende com o fato do desabamento em si. O mundo dos sentidos é tão real para eles como para nós. merecedor de destaque. segundo o argumento do autor. grifos nossos). Foi então por meio da observação de inúmeras situações sociais em que a noção de bruxaria era invocada como causa relevante de um determinado acontecimento ruim e da comparação com tantas outras ocorrências em que outras causas eram acionadas que Evans-Pritchard pôde “extrair os princípios do pensamento zande”. pois é a única que permite intervenção. em seu estudo. é preciso ter em mente que ele não encontrou as ideias a respeito do funcionamento da bruxaria enquanto teoria da causalidade do modo elaborado e consistente em que ele as apresenta. livro organizado por Celso Castro (editora Zahar). como adverte o autor. 43 . mas basta ser confrontado com uma situação real em que recorrer à explicação mágica faz sentido para que ele torne explícita tal doutrina. ou de uma doença. traz uma apresentação clara do culturalismo norte-americano e trechos significativos da obra de Franz Boas. a partir deste ponto. todas as explicações e ações decorrentes seguem um curso coerente. de torná-lo próximo e aceitável ao ponto de sugerir que o próprio pesquisador podia valer-se da mesma lógica para explicar certos eventos funestos que lhe ocorressem se assumisse a premissa inicial de que o mal pode ser causado por um agente com poder sobrenatural já que. a bruxaria é a causa socialmente relevante. Isto porque um Zande não é capaz de formular em termos conceituais – só de modo frouxo e vago – a teoria da bruxaria na qual acredita. mesmo porque a bruxaria só é aplicada como categoria explicativa de um infortúnio nas situações particulares. o antropólogo inglês apresenta a formalização de uma filosofia nativa conforme ele a observou expressa na prática dos agentes. 2005. determinando o comportamento social (EVANS-PRITCHARD. diríamos. Evans-Pritchard se empenha em demonstrar que se trata de uma doutrina da causalidade com base racional embora se expresse em um idioma místico com o qual a mentalidade europeia não estaria acostumada (dado que ela não supõe a existência de seres sobrenaturais que. Todavia. Leitura recomendada Antropologia cultural. “desexotizar” o pensamento Zande. uma fera na caçada. ou uma mordida de cobra. p 55. objetivamente. Em outros termos. não existem!). Finalmente. é a bem sucedida estratégia de Evans-Pritchard de.O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3 EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB por uma lança na guerra. um traço especial do trabalho em tela. Esboço de uma teoria geral da magia e Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. ______. Celso (org. Campinas. 1883-1911: antologia. Émile. 2010. VIVEIROS DE CASTRO. O pensamento selvagem. E. MAUSS. In: EVANSPRITCHARD. George (org). o conceito de cultura. No próximo capítulo Proibida a reprodução – © UniSEB Examinaremos os diferentes enfoques acerca de uma noção central nas investigações antropológicas. CASTRO. SP: Papirus. Bruxaria. Rio de Janeiro: Zahar. E. Nota do tradutor. Oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1981. In: Marcel Mauss – Ensaios de Sociologia. A formação da antropologia americana. MAUSS. Algumas formas primitivas de classificação. In: Sociologia e Antropologia. 2005. Marcel. LEVI-STRAUSS. 2010. Claude. Marcel. 2005. 2004.). Os princípios da classificação etnológica. São Paulo: Companhia das Letras. I. Rio de Janeiro: Contraponto e Editora UFRJ. 1973. São Paulo: Perspectiva. Tristes trópicos. 1974. São Paulo: Editora da Universidadede São Paulo. 44 . Eduardo.Antropologia Cultural Referências BOAS. a noção do ‘eu’. Antropologia estrutural. DURKHEIM. ______. Franz. In: STOCKING. v. Antropologia cultural. examinaremos a noção de cultura. procuraremos delimitar a profundidade antropológica da noção de cultura.Cap ít u lo 4 O Conceito de Cultura Neste capítulo. procurando delimitar sua centralidade para a antropologia e as suas variações conceituais em conformidade com os diferentes enfoques antropológicos. . Objetivos da sua aprendizagem Identificar a importância antropológica da noção de cultura e as conceituações que esse termo recebe no interior das reflexões antropológicas. Você se lembra? Dos sentidos que atribuímos à palavra “cultura” na linguagem cotidiana? Neste capítulo. do indiscriminado. Situada no limiar entre a esfera do universal. a ocorrência de “um verdadeiro salto da .1 Natureza e Cultura 46 Há vários caminhos possíveis para iniciarmos uma reflexão sobre as relações entre natureza e cultura. de compreender significados atribuídos a objetos. 1996. do ordenamento. para o processo em que o homem se diferencia dos outros primatas. como explica Roque de Barros Laraia. por sua vez. 2003). Leslie White (1900-1975). do natural. ou seja. trata-se de uma imposição cultural que devido à sua abrangência quase se transverte em um comportamento constante. trabalha com a hipótese de que a origem da diferenciação dos homens com relação aos animais está na capacidade mental de simbolização. 1982). O uso de símbolos define o homem enquanto um ser cultural (LARAIA. hoje completamente desacreditada. Considerando que somente o homem disciplina suas uniões matrimoniais e todos os grupos humanos costumam interditar relações sexuais com determinada categoria de mulheres. é quase um dado da natureza. e o âmbito da cultura. da primeira convenção. portanto. Esta é uma matéria que não tem sido disciplinada pelo consenso.Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB 4. Uma das vias privilegiadas pela antropologia tem sido a discussão sobre as origens da cultura. e esta troca recíproca responde pela gênese da socialidade humana (LEVI-STRAUSS. do comportamento não regrado. do universal. Segundo ele. os homens são obrigados a trocarem mulheres. o autor conclui que a proibição do incesto corresponde à norma mais universalmente prescrita. a faculdade de gerar símbolos. SAHLINS. tal convenção responderia. para Levi-Strauss. a passagem da natureza para a cultura se dá com o estabelecimento da primeira regra. é somente quando o homem institui a primeira convenção que estamos diante de um fato cultural. pela passagem do estado natural para o humano. Com efeito. Os antropólogos têm oferecido diferentes explicações para o fenômeno do surgimento da cultura. Uma vez que a natureza corresponde ao reino do instinto. Outra teoria. admitia. A norma por excelência que de acordo com a tese do autor marca o surgimento da cultura é a proibição do incesto. impedidos de desposarem suas parentes próximas. ou seja. é uma faculdade precipuamente humana. do regramento. Ademais. É bem conhecida a afirmação dele de que o homem é o único animal capaz de apreciar a diferença entre água destilada e água benta. Uma das conjecturas mais célebres e controvertidas é a formulada pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. A ideia é que em determinado momento o aparelho biológico humano sofreu alterações definitivas que permitiram o surgimento repentino da cultura. ao lado da família Pongidae (gorilas. ao contrário do que se imaginava. porém. 47 . A espécie Homo Sapiens faz parte do gênero Homo dentro da família dos hominídeos e integra a ordem mais abrangente dos primatas. A família Hominidae (dos hominídeos). esta hipótese considera que foi somente quando se completou a evolução orgânica do homem. ajudam a constituir a ordem mais geral dos primatas. O Australopithecus corresponde a um ancestral já extinto do homem que integra a família dos hominídeos. a postura ereta. Os hominídeos correspondem à grande família dentro da qual se situam os gêneros Homo (que inclui o Homo sapiens) e Australopithecus (já extinto) e cuja principal característica comum é a capacidade de andar sobre dois pés. Espécie de semi-homens.O Conceito de Cultura – Capítulo 4 natureza para a humanidade”. a habilidade manual. tem a maior importância – culmina com a aparição do Homo sapiens. Todavia. Formas elementares de atividade cultural. vindo apenas para ornamentar a existência do novo personagem humano. a diminuição dos caninos e o aumento do volume cerebral. a cultura não teve de esperar que a caixa craniana do homem atingisse a dimensão atual para surgir. 1996). mas dependeram de um período de transição que remete a milhões de anos (LARAIA. chimpanzés. O aperfeiçoamento destes processos – e dentre eles. orangotango e gibão). a natureza não opera por saltos. já teriam sido identificadas entre alguns Australopithecus – um tipo primitivo e extinto de hominídeo que é anterior ao desenvolvimento da espécie Homo Sapiens. Conhecida como “teoria do ponto crítico”. no entanto. a evolução dos hominídeos dependeu de uma sequência longa e complexa de transformações anatômicas como o bipedismo. eles combinam um sistema locomotor bípede semelhante ao humano com uma capacidade craniana pequena mais próxima da dos símios. Com efeito. como a confecção de utensílios de pedra. não fez sua estreia na história da evolução do gênero Homo somente nesta reta final. Os achados da paleontologia1 indicam sim que a aquisição de capacidades culturais esteve associada ao desenvolvimento do cérebro humano. A cultura. a complexificação da organização nervosa. As grandes mudanças na trajetória evolutiva do homem não ocorreram de repente. EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Aqui. O Homo sapiens corresponde ao homem moderno. faz-se necessário atentar para algumas categorias taxonômicas. A capacidade craniana do Australopithecus cor1 Paleontologia humana: estudo da evolução do homem através da análise dos fósseis. a partir de uma mudança genética extraordinária é que teve início o desenvolvimento cultural do homem. p 59-60). a adoção da caça organizada e as práticas de reunião. 1996. 48 Segundo Geertz. totalmente humano (GEERTZ. a cultura não foi algo acrescentado apenas quando já havia se encerrado o processo de evolução anatômica e neurológica do homem. p 1989).Antropologia Cultural responde a 1/3 da ostentada pelo homem moderno. o melhor ferramenteiro. foi concedida uma vantagem seletiva àqueles indivíduos da população mais capazes de levar vantagem – o caçador mais capaz. a fim de se chegar à essência humana. o início da verdadeira organização familiar. o colhedor mais persistente. os homens também podem ser considerados o produto da cultura. 1989. ritual) para a orientação. num passo a passo infinitesimal. acumulou-se e se desenvolveu. mito. GEERTZ. embora seja ainda muito difícil identificá-la em detalhe. símbolos. tudo isso criou para o homem um novo ambiente ao qual ele foi obrigado a adaptar-se. Por conta disso. . o líder de mais recursos – até que o que havia sido o Australopiteco proto-humano. o início da vida cultural não desempenhou um papel coadjuvante na história evolutiva do homem. mas sim ajudou a orientá-la ao fornecer ao homem sistemas de crenças. mas ele já fazia uso de ferramentas rudimentares e praticava a caça esporádica de pequenos animais. a descoberta do fogo e. o mais importante. a comunicação e o autocontrole. de cérebro pequeno. correspondeu a uma atividade iniciada antes do surgimento do Homo sapiens. então. tornou-se o Homo sapiens. controlar seu comportamento e dirigir suas ações. de cérebro grande. depreendendo-se disso que ela participou do processo de constituição deste homem. e reivindica que a cultura exerça seu impacto também no conceito de homem. A cultura não somente constitui uma faculdade adquirida pelo gênero humano. mas. À medida que a cultura. ele contesta a visão prevalecente de que é necessário decompor as camadas culturais. de fato. encaradas enquanto meras exterioridades. o apoio cada vez maior sobre os sistemas de símbolos significantes (linguagem. o que aponta que ocorreu uma superposição entre o crescimento do sistema nervoso central humano e o desenvolvimento da cultura humana (LARAIA. regras e instituições para organizar sua existência. Proibida a reprodução – © UniSEB O aperfeiçoamento das ferramentas. Clifford Geertz (1926-2006) é um dos antropólogos que defendem que na história da carreira do homem de primata a hominídeo evoluído. arte. o antropólogo americano faz a seguinte afirmação provocadora: “Um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser. os diferentes costumes e instituições não contam quando se trata de definir a natureza humana. a pluralidade de crenças e valores. as peculiaridades. Dentro desta lógica. que todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas. o que define o homem é uma essência uniforme. pois os atributos culturais. peculiar e acidental na existência humana é descartado. a diversidade cultural. para 49 . os traços diferenciais encontrados não representariam nada além de ornamentos que colorem ou falseiam uma base comum estável e constante. p 57). Ora. 1989. para vivenciar qualquer experiência. Ou seja. tudo o que é passageiro. o que compõe a natureza humana é aquilo que se apresenta constante em todos os grupos humanos. Por outro lado. Em oposição a esta perspectiva e à tese de que os aspectos mais gerais da existência humana ou um suposto “denominador comum da humanidade” seriam mais instrutivos acerca do que é ser humano do que os aspectos peculiares de cada povo. os conteúdos circunstanciais de cada cultura. universal e genérico. finalmente. variável. mas terminamos por viver apenas uma espécie” (GEERTZ. é o contexto cultural que responde por esta restrição do potencial humano para realizar qualquer coisa.O Conceito de Cultura – Capítulo 4 EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Lucy: reconstituição a partir de um fóssil feminino de Australopiteco. A objeção de Geertz se dirige à noção iluminista de “natureza humana” ou à suposição de que uma definição verdadeira do homem deve se ater ao que ele tem de mais natural. Nascemos sim com aptidão para todo tipo de aprendizado. as manifestações mais gerais e os comportamentos universalmente compartilhados. mas o que ele efetivamente faz. uma vez que o interesse antropológico incide não sobre o que o homem é intrinsecamente capaz de fazer. não admitem discussão acerca da não interferência de qualquer base genética em sua determinação. Geertz responde afirmativamente a esta indagação que ele mesmo propõe e. para sustentar seu argumento. que fala uma língua particular. o fato irrefutável de que o homem empiricamente observável é o indivíduo desta ou daquela cultura específica. ele se vale da constatação de que a cultura deve ser compreendida simultaneamente como uma característica da espécie humana e como um dos fatores que ajudou a modelar o homem enquanto espécie. age segundo instruções aprendidas. as “necessidades básicas”. por exemplo. convenções. Em outros termos. mecanismos de controle e significados compartilhados não pode mais ser ignorado quando a questão for decidir quais fatores refletem a essência desta existência. aprender a respirar. Do ponto de vista do autor. grande parte do comportamento humano complexo envolve uma interação entre habilidades congênitas e socialmente aprendidas. e. como. deixa de fazer sentido a busca obstinada pelo que há debaixo da camada cultural com o propósito de revelar o verdadeiro homem. deixa de ser pertinente apostar que na composição da natureza humana detém precedência as supostas “regularidades estruturais”. Deste modo.Proibida a reprodução – © UniSEB Antropologia Cultural 50 uma infinidade de atuações. são claramente intrínsecas e outras. o que ele faz é controlado . os “fundamentos biológicos” e outras noções do gênero. Se o desenvolvimento cultural acompanhou os desenvolvimentos biológico e psicológico dos homens. Geertz observa que enquanto algumas atividades. segundo seu equipamento somático. os invariantes da conduta. é sempre vã a preocupação com as fronteiras vacilantes entre formas inatas e regradas de ação. o conjunto de padrões de conduta. mas acabamos “programados” para viver um tipo único de existência e acabamos por investi-la de significados muito particulares. se a cultura operou como uma condição essencial para a existência humana. Em contraste com outros autores que deram muita importância à tarefa de separar o que no comportamento humano é inato e o que é culturalmente condicionado. enxerga o mundo segundo um enquadramento determinado e segue regras e tradições herdadas não deveria ser considerado o fator mais relevante na composição de uma imagem mais exata do homem? Evidentemente. como a preferência de uma sociedade pelo mercado livre e não pela estatização da economia. reprodução.O Conceito de Cultura – Capítulo 4 pela cultura. organizado por uma etiqueta. um judeu. é controlar a sua respiração pelas técnicas do ioga. e seguir uma etiqueta rígida à mesa ao consumi-los. a voz de Deus pronunciar o seu próprio nome – ‘hu Allah’. Não é apenas sentir. um dos principais embates travados pela antropologia foi contra o determinismo biológico. p 65). dirigido por um sistema de significados particular. ‘respeito’ (GEERTZ. A suposição de que as origens profundas de toda conduta humana remontam à biologia e à psicologia individuais foi desde cedo confrontada pela evidência de que os fenômenos coletivos. ‘resignação’. no tom de voz apropriado e com a direção evasiva apropriada. é emitir as palavras e frases apropriadas. portanto. de forma a ouvir literalmente. Não é apenas comer: é preferir certos alimentos. morte). Afinal. cozidos de certas maneiras. sobre uma razão utilitária dependente dos eventos e imperativos da biologia. 1989. os fatos sócio-culturais possuem uma lógica e uma dinâmica próprias e. Um tipo particular de homem (um xavante. torna-se ainda mais clara a primazia de uma racionalidade simbólica. um efeito fenômeno que se toma principalmente em consideração. na inspiração e na expiração. Não é apenas falar. mas se prestarmos atenção à diversidade de significados associados àquilo que costuma ser encarado como “fenômenos da vida” (nascimento. ‘desprendimento’. arbitrária. nas situações sociais apropriadas. portanto. como reduzir a mero efeito da atividade 2 Epifenômeno: fenômeno que é um mero acessório. 51 . um esquimó) diz mais acerca da realidade de ser homem e. Assim: Ser humano não é apenas respirar. de sua propalada natureza do que a busca por propriedades presumidamente genéricas e comuns a todos os homens.2 O cultural e o biológico No esforço de construção de um campo autônomo de estudos. EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB 4. mas sentir certas emoções muito distintamente javanesas (e certamente intraduzíveis) – ‘paciência’. devem ser objeto de estudo das ciências sociais. A constatação de que os diferentes grupos humanos oferecem respostas muito variadas às necessidades congênitas e limitações orgânicas já deveria ser considerada uma prova de que a cultura não se resume a um epifenômeno2 da biologia. 1996. tudo isso. se adotada a perspectiva de que os fatores biológicos correspondem à dimensão explicativa mais importante do comportamento humano. do Brasil. algo que envolvia também a atuação das mulheres. como sugere. De qualquer forma. por exemplo. É necessário que o homem e a mulher tenham várias relações para que a criança seja totalmente formada e torne-se apta para o nascimento.. entre nós. já era. às vezes. implica em uma sobrecarga de trabalho superior ao executado pelos homens. as trocas matrimoniais. A propalada desigualdade no tocante à força física também não está na base das tarefas atribuídas distintamente a homens e mulheres. de maneira veemente.] os índios Jê. categorias e símbolos que envolvem os sistemas de parentesco. o artesanato. além das obrigações ordinárias como o preparo das refeições. relações sexuais com outros homens. correlacionam a relação sexual com a concepção mas acreditam que só uma cópula é insuficiente para formar um novo ser. não pode ser arrolada como a causa das diferenças de comportamento observadas entre homens e mulheres. em Israel.Antropologia Cultural reprodutiva (ou necessidade de perpetuação da espécie) toda a riqueza de normas. considerando que interpretações fornecidas pela ciência biológica podem não fazer sentido em outros contextos culturais onde prevalecem outras teorias sobre os chamados “eventos naturais”. regras de filiação e descendência adotados pelos grupos sociais. e. uma vez que em diversas sociedades indígenas cabem a elas atividades que não demandam pouco esforço como o cultivo de roças domésticas e o transporte de água para as aldeias. . ainda eram associadas apenas aos homens. em um dado período que antecede ao nascimento. o cuidado com as crianças. por exemplo. Aquilo que é associado a cada um dos gêneros varia enormemente através das sociedades e da história. o dimorfismo sexual. os rituais de casamento. restará muita coisa sem ser explicada! Tal visão reducionista da ação social encontra um dos seus limites na constatação de que mesmo uma realidade biológica universalmente reconhecida como. como a guerra. 52 De forma análoga. pode-se também questionar a suposta evidência. p 93).. E se ocorrer que a mulher tenha. O recém-nascido pertencerá tanto à família do pai como à da mãe. transparência e supremacia dos fatos biológicos. o seguinte relato de Laraia: Proibida a reprodução – © UniSEB [. Atividades que há bem pouco tempo. todos estes serão considerados pais da criança e agirão socialmente como tal (LARAIA. os indivíduos que não se revelam aptos a dedicarem-se à atividade correspondente ao seu sexo ou que “escolhem” se dedicar às tarefas do sexo oposto. arma única dos caçadores. só é utilizado por elas: os homens caçam.(. é bastante ilustrativo o caso dos guaiaqui analisado por Pierre Clastres: SERGIO BLOCH | HTTP://PIBMIRIM. de modo tão marcante. p 74 e 76). coisa das mulheres.O Conceito de Cultura – Capítulo 4 De fato o que é decisivo na divisão sexual do trabalho não parece repousar nas diferenças de constituição física dos sexos. As sociedades tendem a associar. batizado pelos etnógrafos de berdache. as mulheres carregam.ORG Quase não é necessário sublinhar que o arco.SOCIOAMBIENTAL. mas no simbolismo atrelado às diferentes tarefas. a conjunção do homem e do arco não se pode romper sem transformar-se na sua inversa e complementar: aquela da mulher e do cerco (CLASTRES.. ele deixa ao mesmo tempo de ser um homem: passando do arco para o cesto. metaforicamente ele se torna uma mulher. Nesse sentido. em que homem assume o papel e o status feminino comportando-se como uma mulher sem ser homossexual (Rodrigues. certas atividades a categorias femininas ou masculinas que chegam ao ponto de “feminilizar” ou “masculinizar”. 1990. Com efeito. 53 .) EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Menino Waimiri-atroari com seu arco em Índia hupda do Médio Tiquié miniatura Se um indivíduo não consegue mais realizar-se como caçador. conforme o caso. é um instrumento exclusivamente masculino e que o cesto. A pedagogia dos guaiaqui se estabelece principalmente nessa grande divisão de papéis.SOCIOAMBIENTAL.. 1980). A literatura antropológica registra que determinadas sociedades reconhecem a existência de um terceiro sexo.ORG ALOISIO CABALZAR/ISA | HTTP://PIBMIRIM. Proibida a reprodução – © UniSEB 4. todo um leque de técnicas é acionado pelas mais diferentes culturas e podemos mencionar desde as perfurações labiais e auriculares dos ameríndios às distensões de pescoços e lábios de certas etnias africanas.no que se toma principalmente em consideração. Neste campo. discerne entre alimentos bons e os que devem ser evitados. cria categorias como comida de pobre e comida de rico que expressam a desigualdade no consumo de alimentos conforme a classe social. acarreta danos ou punição para o transgressor. a comida converte-se em signo de status social (CANESQUI. tomando o caso da nutrição. Entre as mais eminentes abordagens desenvolvidas. Toda cultura cria simbolicamente a natureza. Diz respeito à proibição de uma conduta que. prioritário e supérfluo por estes homens. determina tabus3 alimentares. recomendações biomédicas.Antropologia Cultural Assim. Caso um caçador tenha contato com este sangue ele poder perder sua habilidade pra caçar. Por exemplo. Atribui significados muito diversos às suas práticas. . 3 O tabu é uma interdição. é a ordem cultural que estabelece como e do que os homens vão se nutrir. o contato do homem com o sangue menstrual é tabu porque acarreta poluição. não seria demais afirmar que os homens frequentemente testam os limites de sua biologia a fim de adequar os seus corpos a exigências rituais. cria e determina certos usos sociais do corpo. 2007). longe de apenas responder a presumidas necessidades básicas subjacentes ou atender a fins instrumentais. institui os limites entre a gula e a alimentação saudável. das cirurgias de correção de genitália ambígua dos intersexos às cirurgias de mudança de sexo dos transsexuais. ideais coletivos de beleza.3 Análise cultural 54 A tradição antropológica norte-americana é a que mais se ocupou da análise da cultura. entre outros estímulos ou obrigações ditados pela cultura. normatizações de gênero. classifica e hierarquiza seres e fenômenos. se violada. das escarificações de certos povos indígenas às cirurgias estéticas dos ocidentais. O corpo é sempre culturalmente concebido. critérios de identificação grupal. As variadas formas de modelação e intervenção que os homens impõem aos seus corpos constituem outro indicativo de como os próprios indivíduos contrariam o conhecido preconceito de que “biologia é destino”. das mutilações genitais femininas entre os somalis à circuncisão masculina dos judeus. inclusive definindo o que será considerado necessário. a cultura é um fenômeno singular que organiza o mundo em que homens concretos vão viver. Com efeito. entre muitos grupos. culturalmente marcado. por exemplo. organiza as fronteiras entre o biológico e o social. assim como sobre as próprias explicações que os nativos oferecem da sua conduta. Assim. Assim. mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes. incoerências. de fato – a não ser quando (como deve fazer. escrito não com os sinais convencionais do som.. Geertz busca ter acesso à significação dos eventos. escrever seu diário. p 20). 55 . mas já é em si um esforço interpretativo. Em contraste com as linhas teóricas centradas na busca das leis que regem tais fenômenos ou nos códigos através dos quais eles se organizam. consistindo de uma leitura em segunda mão. por sobre os ombros dos nativos – os quais. E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo. traçar as linhas de propriedade. Para ele. naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas. é o que para ele define o fazer antropológico – não envolve simplesmente o registro da cultura. do seu ponto de vista. segundo Geertz. primeiro apreender e depois apresentar. emendas suspeitas e comentários tendenciosos. compreender o significado dos fenômenos culturais. observar rituais. mas seu interesse principal deve incidir sobre o significado do discurso e da ação. afirma Geertz: O ponto a enfocar agora é somente que a etnografia é uma descrição densa. deduzir os termos de parentesco. cheio de elipses. o antropólogo investiga o que as pessoas dizem e o que elas fazem. irregulares e inexplícitas. ações e processos transcorridos no âmbito da cultura. muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras. A proposta da antropologia de Geertz é interpretar as culturas. que são simultaneamente estranhas. aliás. desbotado. 1989. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho.O Conceito de Cultura – Capítulo 4 EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB aquela que provavelmente segue sendo a mais influente nos dias de hoje é a corrente interpretativa fundada por Clifford Geertz. O que o etnógrafo enfrenta. mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ. são os únicos que podem fazer a leitura em primeira mão de sua própria cultura. de alguma forma.. fazer o censo doméstico. A etnografia é encarada menos como o resultado da observação e coleta de dados e mais como uma atividade descritiva e interpretativa. e que ele tem que. o trabalho etnográfico – que. por exemplo. visto que as mulheres estão excluídas da participação nos jogos – despendem um tempo enorme preparando seus galos. brutalidade. e estiveram na origem de movimentos com o da antropologia pós-moderna que sacudiu o campo nos anos 1980. que exprime ferocidade. uma vez que a população em Bali costumam ser avessos à criação de animais e expressa uma grande repulsa à animalidade e às manifestações consideradas bestiais. Neste trabalho. 1989). na rinha. Durante os embates. a tourada para os espanhóis. Hildred. Geertz começa tecendo comentários sobre a ligação entre balineses e galos. Os homens são representados por seus galos. como ocorre com outros eventos similares. Segundo ele. Ele observou que os homens – e aqui se trata unicamente do sexo masculino. inclusive do Brasil. isto ocorre porque “É apenas na aparência que os galos brigam ali – são os homens que se defrontam”. as ideias de Geertz têm influenciado antropólogos do mundo inteiro. em Bali. com o propósito de compreender o significado desta experiência no universo da cultura balinesa (Geertz. e estes. um jogo popular entre os habitantes da ilha de Bali observado na época em que Geertz e sua esposa. Prevalece uma flagrante reprovação social a todo comportamento que se assemelha ao dos animais. A proposta assim é oferecer uma leitura da briga de galos. são o símbolo da masculinidade. a intimidade entre bichos e homens atinge seu máxi- . o jogo em tela contém uma reflexão.Proibida a reprodução – © UniSEB Antropologia Cultural 56 Concepções como as delineadas acima de que culturas são como manuscritos. por sua vez. de que etnografias correspondem a descrições densas e de que a antropologia é uma atividade essencialmente interpretativa deram grande notoriedade ao antropólogo norte-americano formado em Harvard. uma leitura de segunda mão como Geertz faz questão de reiterar. Todavia. uma afirmativa sobre a cultura balinesa e é seu sentido que ele buscará interpretar. O estilo de análise cultural proposto pelo autor encontra-se ilustrado de maneira exemplar no texto: “Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa” (1972). Por décadas. Segundo Geertz. A identificação psicológica dos homens balineses com seus galos parece intrigante em um primeiro momento. a ação sangrenta. realizaram pesquisa de campo na Indonésia – a briga de galos – é tomado pelo antropólogo como uma experiência que diz algo sobre a vida dos balineses. mas que desenvolveu grande parte de sua bem sucedida carreira no Instituto de Estudos Avançados de Princeton. a violência e o poder destrutivo dos animais são apreciados. como textos. p 289). mas porque dependendo do valor. a importância de ganhar aumenta. o treinador do galo ferido trabalha freneticamente com ele. Ele sopra no seu bico. Alguns deles podem fazer com que os mortos andem. O sistema de regras reconstituído pelo antropólogo é um tanto complicado. é momentâneo e não produz resultados concretos porque o prestígio de ninguém na rígida hierarquia social balinesa pode ser alterado pelo resultado de uma briga de galos. porém. Nas palavras do autor: 57 . Quando é forçado a repô-lo na rinha. mas apenas “de brincadeira”. é um orgulho maior para o vencedor. um bom treinador vale seu peso em ouro.O Conceito de Cultura – Capítulo 4 mo. mas. cobre seus ferimentos com vários tipos de remédios e em geral tenta tudo que pode para despertar o mínimo de ânimo que ainda resta no animal. O desafio. portanto. envolve o prestígio social dos apostadores. Nesses casos. Prosseguindo em sua descrição da briga de galos. que dura cerca de dois minutos. afofa-o. o dinheiro opera como um símbolo e fica evidente que os grandes confrontos desafiam a honra e o respeito dos jogadores. colocando toda a cabeça da ave em sua boca. praticamente. o que está em jogo é mais do que dinheiro. Geertz explica o papel das apostas. Somente neste último caso. O status é colocado em jogo simbolicamente pelos embates. sugando e soprando. mas interessa aqui reter que existem jogos cujas apostas envolvem pequenas somas de dinheiro e aqueles com somas elevadas. como um segundo lida com um boxeur atingido entre os assaltos. ou pelo menos o bastante para o segundo e último assalto (GEERTZ. e os proprietários se empenham sobremaneira para que seus galos não saiam derrotados. O aspecto fundamental que Geertz faz questão de ressaltar é que apostas com mais dinheiro são mais interessantes. para deixá-lo em forma numa última e desesperada tentativa de vitória. ele é afirmado ou insultado. ele está ensopado de sangue. O dinheiro importa não pela quantia em si que se vai ganhar ou perder. no entanto. que os confrontos se desenrolem entre galos equivalentes na força para assegurar resultados mais emocionantes. não pelo acréscimo de lucro material. como acontece nos campeonatos de boxe. os balineses se esforçam para criar embates em que as apostas centrais sejam altas. o jogo é considerado “absorvente” e. 1989. como ilustra o relato a seguir: EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Durante esse intervalo. mas porque na vitória ou na derrota. Antropologia Cultural Os homens prosseguem humilhando alegoricamente a um e outro e sendo humilhados alegoricamente por um ou outro. contêm suas próprias interpretações. Proibida a reprodução – © UniSEB Esta é a interpretação central que Geertz propõe acerca do significado da briga de galos. regozijando-se tranquilamente com a experiência quando triunfam. Não se pode ascender na escala de status pelo fato de vencer brigas de galos: como indivíduo. se o grupo de parentesco de um homem não está diretamente envolvido no embate. Seguindo o mesmo princípio. A hierarquia de prestígio social vivida no cotidiano é celebrada através dos embates. ao analisar a cultura sob este prisma. uma história sobre eles que eles contam a si mesmos”. ele irá apostar no galo dos grupos que são considerados aliados do seu. De fato. Trata-se de “uma dramatização das preocupações de status” presentes na sociedade balinesa. uma ficção. você não pode ascender nessa escala de maneira alguma. nos grandes jogos “absorventes”. Geertz está aplicando sua proposta de tomar os fenômenos da cultura como textos. um jogador sente-se obrigado a apostar no galo do proprietário que pertence ao seu grupo de parentesco. Em regra. Quando a briga envolve galos de estrangeiros. A experiência de rivalidades da aldeia e dos grupos de parentesco está incorporada na briga de galos de uma forma simbólica (não como ela se dá na realidade do dia a dia). ela é um comentário sobre o que significa a hierarquia de prestígio nesta sociedade. Mas não se modifica realmente o status de ninguém. como as vidas. É preciso apenas descobrir o acesso a elas” (Geertz. Ao apresentar a briga de galos como um drama. E também não pode descer por esse meio (GEERTZ. 1989. dia após dia. Assim. ele quase nunca aposta contra o galo e assim expressa o apoio aos seus parentes. p 321). 1989. “uma leitura balinesa da experiência balinesa. Geertz espera ter demonstrado que “as sociedades. p 310). todos apoiarão o galo da aldeia. A briga de galos inscreve o significado da experiência de status em Bali. 58 . esmagados um tanto mais abertamente se não o conseguiram. O Conceito de Cultura – Capítulo 4 Atividades 01. sugere o antropólogo. EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB Reflexão No cenário contemporâneo. Caracterize a análise cultural proposta por Geertz. Os sociobiólogos buscam explicar o comportamento social humano a partir dos mesmos critérios usados para explicar a conduta de animais que vivem em sociedade. agora. o Projeto Genoma4 e o desenvolvimento da sociobiologia reatualizaram o determinismo biológico. 59 . o comando para a ação emana dos genes. A tendência a interpretar o comportamento humano em termos biológicos ressurge com força. mas que toda uma série de comportamentos “problemáticos” pode ter sua origem em uma constituição genética falha. O discurso pretensamente científico. Não se trata somente de identificar a predisposição genética para certas doenças – o que. Explique as diferentes perspectivas antropológicas sobre as origens da cultura. geralmente enfatizando o condicionamento genético e as leis biológicas. mas efetivamente especulativo. Se prestarmos atenção às pesquisas que vieram a reboque do Genoma. expresso por parte da comunidade de geneticistas aposta na existência de genes responsáveis pelas mais variadas tendências e condutas manifestas pelos indivíduos. desde a preguiça à 4 Projeto Genoma: grande projeto científico de sequenciamento dos genes humanos. é possível identificar uma convicção subjacente de que não apenas certas enfermidades são causadas por genes defeituosos. já não tem pouco impacto se considerarmos as implicações discutidas pelo antropólogo David Le Breton (2003) – mas o que está em jogo é a defesa da programação genética da vida humana. A Sociobiologia é uma disciplina criada no fim da década de 1960 com o propósito de associar o estudo das sociedades humanas ao das sociedades encontradas no mundo animal que são objeto de investigação da biologia. mas. de fato. racista e com forte apelo midiático. 02. sob a égide de J. 132). que a guerra se deve a um ‘instinto. algo exótico ou associado a certos grupos étnicos). a taxa de encarceramento de negros é alta. ao suicídio ou ao adultério. a genes. Nas prisões americanas. se contam com as mesmas oportunidades. Goldstein. por exemplo. As causas do deficit de aprendizagem não são investigadas. se as condições de vida de negros e brancos são comparáveis. cerca de 20 cientistas de renome. ou se. p 108).] em 1986. é lançada a promessa de que será identificado um novo gene que finalmente irá explicar determinada conduta (e o interesse é flagrantemente maior caso se trate de alguma “esquisitice”. LINDEE 1988. em um texto síntese. Monogamia e poligamia deixam de ser comportamentos que podem ser melhor compreendidos à luz de sanções sociais. os adeptos do integrismo genético consideram hoje que a criminalidade é hereditária e que atinge desigualmente as classes e as ‘raças’. por exemplo. O racismo científico radica no século XIX e consiste na doutrina que se reveste de uma pretensa cientificidade para sustentar a ideologia de inferioridade de certas “raças” como os negros e amarelos. passando pela propensão ao consumo de drogas. . afirmado a existência de um gene da escravidão. (LE BRETON. Da mesma maneira que na época do tráfico de negros eles teriam. para justificar o imperialismo europeu na Ásia e África. reeditando preconceitos que imaginávamos superados como o de que a criminalidade é inata ou que os negros apresentam uma deficiência intelectual relativamente aos brancos. mais evoluídos e com vantagens adaptativas de sobrevivência. por exemplo. p.. mesmo quando dentro do mesmo estrato econômico recebem tratamento desigual e sofrem discriminação. em Sevilha. A cada dia. e por aí vai!). nos Estados Unidos. ou a mecanismos cerebrais’ (NELKIN . Le Breton ironiza: Proibida a reprodução – © UniSEB [.Antropologia Cultural agressividade. 2003. entre fatores como a qualidade infe5 O darwinismo social aplica a teoria da seleção natural de Darwin ao mundo social. O que Le Breton classifica como “a fantasia da onipotência dos genes” leva representantes da sociobiologia e da genética a proferirem afirmações controversas – triviais do ponto de vista do darwinismo social ou do racismo cientifico5 – acerca das origens genéticas da violência ou da inteligência. explicando as desigualdades de natureza socioeconômica a partir da suposição de que existiriam grupos sociais (raças ou nações) superiores. As teorias racistas de cientistas de prestígio serviam a fins políticos. e disso eles concluem a dimensão ‘racial’ da criminalidade. sem dúvida. vantagens econômicas e valores culturais: eles estão escritos em nossos cromossomos (os tais cromossomos predominam em algumas sociedades e não em outras. Nesse sentido.. reúnem-se e denunciam. 60 Ninguém discute. a única forma de mudar o mundo seria intervir nos genes e aí estaria legitimada uma nova eugenia6 social. Ana Maria. consiste em ótima introdução acerca das conceituações do termo “cultura” no horizonte das pesquisas e das teorias antropológicas. e. Sonia. Ligia e AMARANTE. 2007. o Estado e a sociedade devem ser isentados de qualquer preocupação a esse respeito. As implicações políticas de se assumir as bases genéticas das desigualdades entre os homens são muito sérias: se vivemos em uma sociedade biologicamente justa. A dietética popular (comida de pobre. Rio de Janeiro: Cebes. a toda sorte de ferrenhos opositores aos sistemas de proteção social e investimentos públicos na área social. à sobrecarga da jornada para os estudantes que trabalham. 2003. p 116). à precariedade das escolas. à falta de incentivo familiar. como falar em injustiça social e como justificar a mudança do status quo? Segundo Lê Breton: Caso se admita que o desemprego. Embora não pareça nada razoável lançar mão de hipóteses estritamente biológicas para explicar quadros de desigualdade sócioeconômica e opressão cultural. da mesma forma que todo programa de auxílio social é inútil porque biologicamente infundado (LE BRETON. Saúde em Debate: Fundamentos da Reforma Sanitária. Paulo (orgs). 61 . o recurso ao determinismo genético pode acomodar-se perfeitamente ao discurso virulento dos partidos de extrema direita. Leitura recomendada EAD-14-Antropologia Cultural– Proibida a reprodução – © UniSEB O livro Cultura: um conceito antropológico.O Conceito de Cultura – Capítulo 4 rior do ensino. Referências CANESQUI. aos programas neoliberais radicais de ajuste fiscal. comida de rico). Dessa maneira. a delinqüência e o fracasso escolar são predisposições genéticas. de Roque de Barros Laraia (editora Zahar). BAHIA. In: FLEURY. 6 Eugenia: programa de melhoramento das raças. enfim. Adeus ao corpo. Cultura: Um Conceito Antropológico. S. Antropologia e sociedade. 1996. Marshall. O arco e o cesto In: A Sociedade contra o Estado. Pierre. LARAIA. David. LEVI-STRAUSS. Petrópolis. R. Rio de Janeiro: Francisco Alves.J. S. José Carlos. LE BRETON. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora. As estruturas elementares do parentesco. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2001. 1989. Clifford. Cultura: a visão dos antropólogos. No próximo capítulo Proibida a reprodução – © UniSEB Estudaremos as teorias da etnicidade e aspectos de estudos antropológicos sobre a realidade brasileira. Cultura e Razão Prática. 1982. Rio de Janeiro: Achiamé.: Papirus. 2003. 2003.: Vozes. Campinas. 1980. 2002. Roque de Barros.P.: Editora da Universidade do Sagrado Coração. Rio de Janeiro: Zahar. Nova Luz sobre a Antropologia. Tabu do Corpo. RODRIGUES. SAHLINS.P. Pesquisas de Antropologia Política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Adam. A interpretação das culturas. GEERTZ. 1990. 62 . KUPER.Antropologia Cultural CLASTRES. Bauru. Você se lembra? De ter ouvido ou lido algo sobre a palavra etnia? De ter se deparado com algumas considerações antropológicas sobre o Brasil? Esses temas serão estudados no decorrer desse capítulo. Objetivos da sua aprendizagem Compreender as conceituações de etnia e de identificar a relevância dos estudos antropológicos sobre a sociedade brasileira.5 lo ít u Cap Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil Neste capítulo. apresentaremos algumas teorias sobre o conceito de etnia e apontaremos aspecto de estudos antropológicos fundamentais acerca da realidade brasileira. . uma dimensão ao mesmo tempo afetiva e coercitiva. uma espécie de fatalidade que se impõe à pessoa (POUTIGNAT .Antropologia Cultural 5. a etnicidade constitui um tipo básico ou primário de identidade baseado em certos vínculos sociais específicos encarados como naturais concernentes ao parentesco. O simbolismo dos laços de sangue e de família confere às ligações étnicas. A etnicidade.weblog. 1998). segundo esta visão. é recusada a hipótese de que a identificação seja algo construído ou problemático. 64 Fonte: <http://antropocoiso. STREIFF-FENART. à língua. concebida como dado primordial. ao território.1 Uma introdução às teorias da etnicidade Proibida a reprodução – © UniSEB De acordo com a concepção primordialista. implica na ideia de que o indivíduo não dispõe de outra opção senão aderir à definição étnica (ou identidade de base) que lhe está disponível desde o nascimento e que é um efeito automático de suas ligações com o grupo e a cultura de origem. imprimindo aos indivíduos deveres de solidariedade comunitária (POUTIGNAT . STREIFF-FENART. à religião. restringindo-se a uma simples questão de recrutamento pelo nascimento. 1998). à tradição cultural e mesmo ao sangue e ao fenótipo.com> . Ou seja. uma etnia. Todavia. abrimos liza para os canadenses franceses sua um breve parêntese para origem particular ao passo que ela distinguir etnia de raça. p 61-62). p Mas. no limite. neste caso.EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 Mas. por sua vez. vigora o paradigma de que a etnicidade é algo dado a priori ou uma espécie de realidade essencial extraída da diferença empiricamente observável. a procedência territorial. significativas e tomadas como fonte de Variam os critérios de diferenciação. Há correntes que. mito de origem comum. Mas. ou seja. Como assinalam Poutignat e Streiff-Fenart: “A língua é o que simboAqui. Grande atenção é dirigida às situações em que grupos distintos interagem para compreender como eles manipulam símbolos e conteúdos culturais a fim de se diferenciar reciprocamente. A proposta é observar empiricamente como as categorias étnicas se constroem nas relações sociais. De outro. abordagens que descartam o substrato cultural como fonte de explicação da etnicidade enfatizam o caráter de construção da identidade étnica. de um lado. 1998. embora não seja perene. STREIFF-FENART. enquanto uma raça é definida recorrendose a variações fenotípicas percebidas como 163-164). entre outros. de que a distingue de outras formas de 65 . 1998. nem são ficativo para a identidade judia efeito da biologia. Ambas são não desempenha um papel signiformas de categorização social. Ao contrário. as diferenças ou armênia” (POUTIGNAT E entre os grupos são socialmente construídas. pertença étnica. qual seria o caráter específico da etnicidade? Com efeito. enquanto. os antropólogos são constantemente confrontados com a realidade de que “identidades distintivas podem ser mantidas na ausência de traços culturais comuns comprovados e que. tendem a considerar a etnicidade uma modalidade de identificação entre outras possíveis que. mas é possível é definida em termos de desconevocar algo de específico à etnicidatinuidades culturais. ao inverso. observa-se a preferência por traços culturais e símbolos como a língua. tais recursos em si mesmos não configuram marcadores étnicos. Ganham relevo os aspectos relacional e contrastivo do processo de identificação étnica. então. STREIFF-FENART. Nesse sentido. não estão dadas na natureza. religião. apresenta certa persistência. É por meio da seleção dos grupos que reivindicam uma identidade comum que estes atributos são convertidos em critérios de pertença étnica e funcionam como signos de contraste. uma teoria indígena da diversidade étnica pode existir apesar da homogeneidade cultural constatada pelo observador” (POUTIGNAT . a concepção substantivista da etnicidade se revela inadequada.Antropologia Cultural identificação (por exemplo. orientações de valores fundamentais – não é entendida enquanto essênos padrões de moralidade e excelência cia ou substância. do sentimento de formar uma comunidade de origem. Interessado na questão da constituição e manutenção dos grupos étnicos – algo. do conteúdo da diferença (valores. 1998. padrões de conduta. identidade religiosa. Dentro do repertório de traços culturais manifestos por um grupo. De modo análogo. pelos quais as ações são julgadas” (BARTH. porque prioriza a análise do substrato cultural. sinais ou signos deve ser buscada no substrato culmanifestos – os traços diacríticos que as tural. Em contraste. segundo Barth. Costumes e padrões de . No caso da abordagem do primeiro tipo. tais como o vestuário. Proibida a reprodução – © UniSEB 5. e Desta perspectiva. a moradia ou o estilo geral de vida. que seria produto de uma singularidade étnica concreta e facilmente detectável. ela é relacional. Sua abordagem dos grupos étnicos enquanto formas de organização social. para Barth. ou seja. Barth confere primazia aos processos de identificação e atribuição de categorias étnicas realizados pelos próprios atores. a identidade 2. profissional). negligenciado pela tradição antropológica – ele rompe tanto com a perspectiva objetivista da etnicidade quanto com a substantivista. é rejeitada a ideia de uma identidade que é efeito direito das diferenças culturais objetivas. O aspecto subjetivo da identificação étnica torna-se assim central em nosso autor. 194). assim como sua ênfase no aspecto relacional das categorizações étnicas renovaram o debate neste campo de estudos e repercutiram inclusive na forma política de lidar com a questão das relações interétnicas. trar sua identidade. apenas uma pequena parcela torna-se relevante do ponto de vista de determinada identidade e será realçada pelos atores em suas interações com outros grupos. a língua. trata-se da convicção em uma origem comum. mas nas relações sociais e nas pessoas procuram e exibem para demonsinterações entre grupos diferentes. contrastiva. tradição) a fim de compreender a “O conteúdo construção da identidade étnica. A foncultural das dicotomias étnicas parecem ser analiticamente te do processo de identificação não de duas ordens: 1.2 Os grupos étnicos de Fredrik Barth 66 O antropólogo Fredrik Barth é o grande nome das teorias interacionistas da etnicidade. 1998. presumivelmente determinada por sua origem e seu meio ambiente” (BARTH. 1998. todavia. É evidente que os critérios de classificação étnica com que os grupos operam dizem respeito a atributos culturais. Nem tudo importa. Assim também mesmo em contextos de intensa interação. fluxos. As referências e emblemas simbólicos de que se valem os grupos para se diferenciar uns dos outros não têm de obrigatoriamente se manter estanques ao longo do tempo. a questão da autoatribuição ou da atribuição por outros de uma categoria diferenciada torna-se central.EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 comportamento e julgamento podem ser profundamente alterados em seus conteúdos sem que a percepção do grupo sobre sua identidade se transforme. Nesse sentido. algo pode ser incorporado). Os conteúdos que definem o que somos nós podem ser reelaborados (algo pode ser abandonado. acirram-se as diferenças. descendentes de um mesmo antepassado e/ou herdeiras de uma tradição comum tendem a se perceber como pertencentes a uma categoria à parte. Esta categoria tem um significado étnico “quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica mais geral. 193-194). transações e empréstimos. De fato. Segundo Barth: “as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato interétnico e da interdependência dos grupos” (BARTH. as relações sociais baseadas na oposição. Os grupos étnicos são conceituados por Fredrik Barth como formas de organização social cujos membros se identificam e são identificados pelos outros como pertencentes a uma categoria distinta de pessoas. A interação entre os grupos não determina seu desaparecimento por aculturação como muitos antropólogos acreditavam. O que interessa é a persistência da dicotomização “nós”/ “eles”. as distinções e categorizações continuam a ser acionadas. 188). com a interação social funcionando como o terreno sobre o qual se reforçam as distinções étnicas. alguns traços culturais são considerados significativos e convertidos em sinais de diferença. Pessoas que se consideram originárias de uma mesma região. mobilidade. sem que o sentido de contraste interétnico seja perdido. minimizadas ou 67 . é o efeito contrário que pode ser esperado. para ele. como portadoras de uma identidade própria compartilhada. o que é levado em consideração para efeitos de categorização não coincide necessariamente com a soma das semelhanças ou diferenças culturais objetivas. no contraste prosperam através das fronteiras étnicas. as delimitações – quaisquer que sejam elas – continuam sendo fixadas. Mesmo com processos de contato. enquanto outras diferenças facilmente observáveis podem ser completamente ignoradas. em outros termos. 1998). Na mesma direção. mas uma diversidade de etnias que se identificava por nomes particulares nas respectivas línguas de origem. o aspecto subjetivo tem precedência levando-o à afirmação radical de que: Proibida a reprodução – © UniSEB Pouco importa quão dessemelhantes possam ser os membros em seus comportamentos manifestos – se eles dizem que são A. portanto. não encontraram “índios”. quando é politicamente interessante do ponto de vista da reivindicação ou do usufruto de direitos. O domínio colonial foi responsável por borrar as diferenças e impor a todos os habitantes nativos do território dominado de forma indiscriminada o rótulo de “indígenas”. suas formas tradicionais de autoidentificação grupal. Em Barth. é claro. 1998. Poutignat e Streiff-Fenart citam o exemplo dos hispânicos nos Estados Unidos cuja designação surgiu como uma categoria de recenseamento e que se tornou representativa de uma camada da população migrante. embora. eles estão querendo ser tratados e querem ver seus próprios comportamentos serem interpretados e julgados como de As e não de Bs.Antropologia Cultural descartadas. a categoria genérica de “índio” é acionada pelas diferentes etnias que convivem no território nacional. os diversos grupos locais tiveram de passar a operar com esta identidade exógena em suas interações com a administração e os “nacionais”. Mas esta classificação fictícia pode gerar efeitos reais – o que nos permite calibrar o poder do ato de categorização. Quando os portugueses chegaram ao Brasil. 68 A proposta analítica barthiana acentua então a importância dos atos de atribuição e classificação tanto endógenos quanto exógenos na construção da pertença étnica – algo que Poutignat e Streiff-Fenart (1998) se referem como “o poder de nomear”. A designação não somente consiste em um aspecto revelador da etnicidade como pode ter o condão de instituir categorias étnicas. tornando-se referencial para a formulação de políticas públicas e para a ação política dos grupos (POUTIGNAT E STREIFFFENART. preservassem. Sobretudo. melhor dizendo. A atribuição de uma identidade étnica se dá a partir do exterior quando toda uma coletividade recebe um rótulo uniformizador. sendo que anteriormente tal população não se percebia como um grupo e. Como estrato social subjugado. não existia enquanto etnia em si. Um caso ilustrativo é a construção do índio “genérico”. p 195). eles declaram sua sujeição à cultura compartilhada pelos As (BARTH. em oposição a outra categoria B da mesma ordem. . em especial os chineses. sobretudo.org/pt/c/no-brasil-atual/quem-sao/quem-e-indio acessado em dezembro/2010> 5. que mantém laços históricoculturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas” Citação de Viveiros de Castro extraída do sítio: <http://pib.ental. Em outros termos. por uma abordagem da questão indígena que não ignora sua dimensão social e política. Apesar das diferenças identitárias assentadas na observação de rituais complexos. Nota-se sempre certa permeabilidade entre as fronteiras como demonstram os casos socialmente aceitos de conversão dos indivíduos a uma nova identidade. 69 . os yaos admitem a cada geração uma incorporação de indivíduos não yaos que perfaz o notável índice de 10%. Um dos exemplos oferecidos por Barth é o da etnia yao do sul da China. a posição dominante é assumir uma conceituação próxima da sintetizada por Eduardo Viveiros de Castro em que “Índio é qualquer membro de uma comunidade indígena.Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 Finalmente. entre os antropólogos. as pesquisas antropológicas de um modo revelam uma preocupação com o destino das populações estudadas. EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Cabe mencionar que a definição oficial de índio adotada pela política indigenista brasileira é claramente tributária da perspectiva relacional da etnicidade em que a identidade étnica é função da autoidentificação e da atribuição externa. As fronteiras entre os grupos étnicos persistem independentemente das mudanças em suas respectivas culturas. reconhecido por ela como tal.3 As relações entre o mundo do índio e o mundo do branco A tradição etnológica desenvolvida no Brasil é marcada por um forte compromisso com a situação de vida do índio. Segundo o autor. Esta tendência é tanto mais acentuada no âmbito da vertente de trabalhos orientada pelas teorias de contato interétnico. a grande inovação lançada por Barth é a noção de fronteira étnica. Comunidade indígena é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros. geralmente por meio da compra ou adoção de crianças ou através do casamento das mulheres yaos com homens de outras etnias. Embora o Estatuto do Índio. o culto aos ancestrais. não representam barreiras intransponíveis. as mudanças de pertença étnica se realizam de maneira individual. Por outro lado. mantenha ainda uma definição que não é totalmente desvencilhada de uma perspectiva não-substantivista ao disciplinar que “Índio ou Silvícola é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”. As delimitações interétnicas são assim relativamente estáveis – mesmo porque constituem objeto de vigilância e controle pelos grupos – contudo. criado em 1973. Durante toda sua existência. quanto de defender a utilidade do conhecimento antropológico para o seu enfrentamento. o treinamento para o trabalho e o comércio e finalmente a regularização das terras. ao relatar as pesquisas etnológicas que vinha desenvolvendo no âmbito da Seção de Estudos acerca de um grupo indígena recém pacificado pelo SPI. as estratégias de pacificação e atração e. Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de Oliveira que. o ensino de técnicas agrícolas e de pecuária. Proibida a reprodução – © UniSEB A iniciativa dos antropólogos mencionados de se vincularem ao SPI deu-se no espírito de contribuir através da introdução dos métodos científicos e aportes teóricos da antropologia para a investigação dos grupos indígenas e assim. A organização do SPI atendeu à demanda por um aparelho estatal responsável pela política dirigida aos índios. do ponto de vista de pelo menos um dos principais atores nela envolvidos. com a fixação dos indígenas nos Postos. num segundo momento. o próprio Darcy Ribeiro. no início de suas carreiras. centros agrícolas e as vigilâncias (Lima. em um breve período compreendido nos anos 1950. tenha variado a ênfase dada a tal orientação. o Serviço de Proteção aos Índios/SPI (1910-1967). ainda que em alguns momentos.Antropologia Cultural Entre os autores que lançaram as bases desta corrente etnológica estão Darcy Ribeiro. A ação do aparelho se dava através das seguintes divisões: inspetorias. tendo à frente o marechal Cândido Rondon e outros militares incumbidos da tarefa de estender o controle sobre o território brasileiro e as populações nele distribuídas. As atividades do órgão no exercício do poder tutelar incluíam. Tal experiência. favorecer o aprimoramento do projeto oficial de proteger o índio e assegurar suas condições de vida. parecia representar uma oportunidade tanto de aproximar os antropólogos dos problemas sociais concretos. atuaram junto ao órgão do Estado então responsável pela política indigenista nacional. Nesse sentido. com a possibilidade de estabelecimento de reservas indígenas. postos indígenas. Ribeiro argumenta que: 70 . povoações indígenas. 1995). num primeiro momento. que apenas começava a sofrer as consequências da interação com a sociedade nacional. e dos remanescentes de outros dois grupos após um intenso processo de aculturação. a educação escolar. a tarefa de civilização propriamente dita dos índios. argumenta Souza Lima. o Serviço de Proteção aos Índios teria envidado esforços no intuito de instrumentalizar os grupos indígenas para o trabalho agrícola. ao qual Ribeiro faz referência no trecho reproduzido acima. pela descaracterização de línguas. sendo atingidos por doenças que antes desconheciam e passando a sofrer de deficiências 1 O dispositivo jurídico da tutela dos povos indígenas está previsto no artigo sétimo do Estatuto do Índio (Lei de 19 de Dezembro de 1973) que dispõe que: “Art. os princípios e as normas da tutela do direito comum. §2º Incumbe a tutela à União. que os grupos indígenas envolvidos em uma situação de contato permanente com a nação acabariam sendo completamente aculturados pela cultura dominante brasileira.7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeitos ao regime tutelar estabelecido nesta Lei §1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber. discutindo as graves consequências do convívio dos índios com a sociedade nacional. porque só através de uma compreensão científica do processo de aculturação de nossos índios e de um exame rigoroso dos métodos que temos utilizado para assisti-los. I. Todavia. que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas”. quando são incorporados ao seu “circuito de contágio”. foi cunhado por antropólogos norte-americanos para designar o encontro entre culturas distintas quando então se instala um processo de interação e troca de traços culturais em que. todavia. Em regra. ele colocou em relevo o problema da sobrevivência física dos povos indígenas. à época em que Ribeiro escreveu tais linhas. é que se pode esperar soluções mais satisfatórias para nosso problema indígena1 (RIBEIRO. o que impedia que fossem percebidos o aspecto relacional do contato. o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal. frequentemente. o contato invariavelmente culmina com o processo de assimilação da cultura minoritária pela cultura dominante. p 369). Em sua abordagem do processo de aculturação. 1951. O órgão competente de que fala o artigo era o SPI e atualmente é a FUNAI. sistemas de crença e costumes tradicionais. além do interesse pela mudança cultural. tratava-se de demonstrar a contribuição da antropologia para o aperfeiçoamento da política de tutela do índio. o sistema mais forte se impõe sobre o outro determinando a modificação deste. bem como da prestação de caução real ou fidejussória. independendo. P. O termo aculturação. Ou seja. considerava-se.Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Estes estudos têm uma importância inestimável para o S. estudos deste tipo centravam-se no grupo aculturado. Segundo o enfoque aculturativo. as forças externas determinantes e as relações de dominação em jogo. No caso do Brasil. Ribeiro mostrou-se atento à participação do grupo indígena na economia regional. 71 . investigando o processo de integração dos índios à estrutura socioeconômica nacional e observando que mesmo os grupos integrados sofriam muita discriminação e não chegavam a ser realmente aceitos pelos brancos. Antropologia Cultural nutricionais causadas pela precarização de seus hábitos alimentares tradicionais (RIBEIRO. Em um de seus levantamentos. centrando-se no “índio de carne e osso”.uncontactedtribes. Roberto Cardoso de Oliveira. os relatórios e demais trabalhos produzidos por Ribeiro foram de suma importância tanto por expor para a sociedade nacional a vulnerabilidade do índio face à situação de contato. 1996). Doravante. 1986).org> 72 Sem deixar de reconhecer o legado de Darcy Ribeiro que deslocou o interesse da investigação etnológica da cultura para os problemas sociais enfrentados pelas populações indígenas. Em resumo. por sua vez. o antropólogo denuncia que entre os anos de 1900 e 1957. os estudos usam a expressão “situação de conta- . Imagem de índios isolados na Amazônia brasileira Proibida a reprodução – © UniSEB Fonte: <http://www. deu uma nova orientação às pesquisas em torno do contato interétnico ao situar a análise no plano das relações sociais entre brancos e índios e destacar o caráter sistêmico do contato. pelo menos 80 sociedades indígenas foram destruídas ou completamente desfiguradas a partir do contato com a civilização nacional (BRANDÃO. quanto por demandar do poder público ações para evitar a extinção de povos inteiros. pastoril e agrícola. por sua vez. quanto à economia e à inserção do fator indígena no sistema econômico regional. 2 Os Tukuna. 73 . à exploração da força de trabalho silvícola. é possível aos índios estabelecerem com as populações regionais relações econômicas e sociais mais ou menos destrutivas para si. 1972. mais conhecidos como Ticuna.EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 to” e remetem a um sistema de relações desiguais entre grupos étnicos do tipo dominante/dominado. interessados na interface entre estas entidades sociais e a realidade nacional. do Pará e também na Colômbia. Roque de Barros Laraia e Julio César Melatti) realizaram importantes etnografias acerca do contato de determinados grupos indígenas (no caso. trata-se de uma oposição central através da qual pode ser analisado o sistema interétnico. Na literatura produzida pelo grupo de pesquisa em tela. frequentemente. Cardoso de Oliveira e seus alunos demonstram como a frente de expansão e colonização com a qual a sociedade indígena entra em contato corresponde a um fator decisivo na determinação da dinâmica da área de fricção interétnica. Ou seja. Embora em todos os casos estejam em jogo interesses que visam à expropriação das terras indígenas e. às relações de poder engendradas. do mesmo modo que a contradição de classes é o ângulo privilegiado para analisar a estrutura da sociedade capitalista (CARDOSO DE OLIVEIRA. dependendo do tipo de frente de contato. BRANDÃO. Segundo ele. Estes estudos voltaram-se para as sociedades tribais. Foi dada atenção tanto à dimensão política. Os Gaviões falam um dialeto pertencente à família Jê e podem ser encontrados no Maranhão (os Gaviões Pykopjê) e no Pará (Gaviões Parkatêjê). 1986). pertencem à família linguística tikuna e vivem nos estados do Amazonas. percebe o índio de um modo diferente conforme a atividade econômica que ela explora na região. Cada frente pioneira da sociedade nacional. ele e alguns alunos (Roberto Da Matta. a fricção interétnica no âmbito do sistema de contato é o equivalente da luta de classes no interior da sociedade capitalista brasileira. Em 1962. Cardoso de Oliveira inicia o projeto “Estudo das Áreas de Fricção Interétnica no Brasil” no qual. Cardoso de Oliveira propõe então a expressão “fricção interétnica” para dar conta da qualidade básica da situação de contato: as relações de contradição entre a ordem nacional e a ordem tribal. os Tukuna. os Gaviões e os Krahô2) com a sociedade regional com a qual interagiam. Os Krahô pertencem à família linguística Jê e vivem no Tocantins. foram identificados três tipos principais de frente de expansão que historicamente invadiram os territórios indígenas dando início às relações de fricção interétnica: a economia extrativista. Constituem o grupo indígena mais populoso da Amazônia. A oposição estabelecida entre a sociedade nacional brasileira e a sociedade indígena converte-se na essência da situação de contato. porém. eram invadidas terras indígenas. seringueiros. podem dominar as técnicas .] Desse modo. BRANDÃO. Além de perderem seu território. caracterizados por seus aspectos competitivos e. como no caso da castanha. avançaram sobre as terras ocupadas pelos índios e promoveram a redefinição do uso da terra para a lavoura. para a expansão dos rebanhos. 1986). Quando. até as grandes empresas agrícolas voltadas para o plantio de produtos de mercado como cana-de-açúcar. As frentes de agricultura buscavam terrenos férteis para culturas diversas. Estas frentes buscam descobrir riquezas de extração direta. Sua condução inclui desde pequenos lavradores que cultivam roças familiares tendo em vista a própria subsistência. as situações de fricção apresentarão aspectos específicos (CARDOSO DE OLIVEIRA. envolvendo toda a conduta tribal e não-tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica. os índios são importantes como força de trabalho. pois conhecem o ambiente e têm facilidade em localizar recursos. às vezes. conflituosos. os índios costumavam ser encarados como uma ameaça. BRANDÃO. 1972.. Voltam-se para a exploração de algum recurso natural da região como minérios preciosos. de conformidade com a natureza socioeconômica das frentes de expansão da sociedade brasileira. 74 Comecemos pelo último tipo de exploração agrícola. São conduzidas por garimpeiros. p 128). borracha. castanha. Dessa forma. 1972. no mais das vezes. os índios não costumavam ser aproveitados como trabalhadores. às vezes. O caso das frentes extrativistas é emblemático do grau de violência implicado na situação de contato. assumindo esse contato muitas vezes proporções ‘totais’. Nesta situação. não havia interesse por parte dos sertanejos no uso do trabalho indígena. por empresas de comercialização. e. Nessa situação. 1986). eram convertidos em mão de obra nas fazendas (CARDOSO DE OLIVEIRA. 1972. a população era confrontada com uma dura realidade.. já que neste tipo de frente há necessidade de pouca mão de obra (alguns vaqueiros cuidam de muitas cabeças de gado). os índios. [. Ademais. arroz e soja. As frentes pastoris avançavam sobre o interior do país anexando campos e formando pastagens para a criação de gado bovino. já que podem caçar os bois (CARDOSO DE OLIVEIRA. i. madeireiros e frequentemente..Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB Chamamos ‘fricção interétnica’ o contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira. 1986). BRANDÃO. é o resultado da investigação conduzida por Cardoso de Oliveira acerca do contato de uma população indígena. E mesmo depois. disputas e lutas que têm de enfrentar por suas terras. os Tukúna eram dependentes da economia extrativista e viviam relações de atrito e competição com os seringueiros brancos locais. sob controle do seringalista que mede a produtividade. da autossuficiência na produção de bens de subsistência. as quais lhes garantiam a sobrevivência em uma economia de subsistência autônoma. Com o recrutamento compulsório dos índios como mão de obra pela empresa seringalista. o alcoolismo. 1972. A obra O índio e o mundo dos brancos. Entre as principais consequências para as sociedades indígenas desencadeadas pelo contado com a sociedade nacional. os índios continuaram sendo submetidos a regimes de (semi) servidão e exploração intensa do seu trabalho (CARDOSO DE OLIVEIRA. O trabalho sistemático nos seringais. a submissão ao regime de tutela. coleta e cultivo de roças domésticas. a marginalização na periferia das cidades. a dependência com relação a certos bens produzidos pela sociedade nacional. com a substituição das técnicas violentas e castigos corporais por meios indiretos de coerção e controle do trabalho. os Tukúna da região do Alto Solimões no Estado do Amazonas. No estado atual em que se encontravam no momento da pesquisa de Cardoso de Oliveira.EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 de extração. o contágio por doenças que desconheciam. as epidemias que causam declínio populacional (depopulação). na verdade. os índios foram historicamente escravizados pela empresa extrativa. com as frentes de extração de látex e a população do entorno. a conversão em força de trabalho barata. o índio dispunha para se dedicar às atividades de pesca. eles são lançados no sistema econômico regional e destituídos da autonomia econômica de que costumavam desfrutar. O autor pesquisou entre os índios congregados em torno de diferentes pequenos rios da região e assistidos pelo Posto do Serviço de Proteção aos Índios/SPI. em seu modo de vida tradicional. publicada em 1964. o engajamento em trocas desiguais no mercado regional. A instalação e a evolução da economia da borracha na região marcam a entrada dos Tukúna na ordem nacional. Dedicando-se menos a estas atividades e cada vez mais dependentes das mercadorias do “mundo 75 . é desastroso porque arregimentados como mão de obra barata. a perda da autonomia política. consome grande parte do tempo que. Este fato. caça. costumam ser destacadas: a perda da autonomia econômica. dentre outras. 1972). “O conjunto de clãs identificados por nomes de aves forma uma metade. . os Tukúna desenvolveram métodos de ajuste para transferir. o labor extrativo lhes retira tempo da rica vida cerimonial. enquanto os demais formam a outra”. esta é uma que atesta o esforço dos índios para preservarem o seu modo de vida e sua ordem social tradicional. A filiação ao clã se dá por linha paterna. Nesses casos.Proibida a reprodução – © UniSEB Antropologia Cultural 76 dos brancos” – as quais recebem em troca da produção do látex – estes índios seringueiros. A manobra permitia que mesmo aos filhos das uniões interétnicas fosse concedida a possibilidade de identificação via clã. 1972). por exemplo. Os filhos de um pai do clã da Arara Vermelha herdam dele este mesmo status clânico (CARDOSO DE OLIVEIRA. a fim de evitar que crianças crescessem discriminadas. sofrem com a precarização dos seus hábitos alimentares e a carência orgânica de elementos nutricionais com os quais estavam acostumados. às vezes ritualmente. segundo a designação do antropólogo. aos filhos mestiços um status clânico. que viviam na tribo. o que era indispensável para a sua integração à ordem social indígena. condição indispensável para assegurar a sobrevivência enquanto povos indígenas e manter a cultura e organização social. visto que não podiam ser recrutadas por via materna. O sistema clânico é responsável por fornecer um meio de identificação aos seus componentes integrando-os na comunidade tukuna. São muitas as referências trazidas pelo autor sobre as acomodações efetuadas pelos Tukúna face às novas situações engendradas pelo contato. os Tukúna foram confrontados com um problema: os filhos de uniões interétnicas nas quais os pais eram brasileiros e as mães Tukúna. como os rituais “das festas de moça nova” – como são conhecidos regionalmente –eventos grandiosos que se tornaram populares entre os brancos das comunidades locais (CARDOSO DE OLIVEIRA. proteínas. Cardoso de Oliveira observa então que a partir da intensificação das relações de contato. o casamento entre membros dos clãs da mesma metade está proibido. Um dos relatos chama a atenção. como. Neste sistema social tribal. Entre outras evidências. Ou seja. sem pertencer a nenhum grupo social. Caracterizada como uma sociedade dividida em metades exogâmicas organizadas em grupos clânicos. No centro de sua luta está a demanda pela demarcação e homologação de suas terras. todo membro da tribo pertence a um clã e esse pertencimento torna o indivíduo reconhecido como um Tukúna. Além disso. urbano. como por exemplo. iniciava-se esse crescer de nossa cultura. voltaremos a sofrer um impacto igual ao que significou. O clima intelectual dos anos 1920 e 1930 era de discussão em torno das questões mais caras a uma interpretação da sociedade brasileira: cultura. indústria. é uma proposta de criação do Brasil futuro retomando os seus elementos formadores. este teria bus3 Segundo a definição do dicionário Aurélio. raça. em nosso meio literário. O trecho acima do escritor Jorge Amado remete à importância. em seu livro O mistério do samba. O antropólogo Hermano Vianna. a publicação de Casa .Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 5. nova e única. mas que se constitui nos trópicos. ele destaca o trabalho do próprio Freyre na produção de um clima receptivo para as suas ideias e sua obra.grande & senzala. civilização. supõe que a extensiva adesão às ideias advogadas em Casa-grande e senzala teria sido possibilitada em muito por esta espécie de clima de expectativa intelectual. Casa . p. povo.grande & senzala (1933).. da mestiçagem e da economia agrária do país.23).. teriam contribuído sobremaneira para a recepção entusiasmada e imediata projeção que recebeu Casa .grande & senzala insere-se neste debate e propõe. tanto uma interpretação nova das bases da formação nacional quanto um projeto de construção de uma civilização brasileira. consensualmente reconhecida. há vinte e cinco anos. Jorge Amado (APUD IN BASTOS. Depois. Naquele momento. mestiçagem. podemos inferir que o contexto da época marcado pelo fato político da Revolução de 1930 e pelo clima efervescente de debate estabelecido pela intelectualidade brasileira em torno de uma definição da nação. 77 . Naqueles anos que sucederam ao movimento armado vitorioso de 30. do público ledor. que assumiu Gilberto Freyre e sua obra no cenário cultural brasileiro. um ambiente favorável à ruptura com o modo então vigente de relação entre intelectuais e cultura popular. patriarcado é o regime social em que o pai exerce autoridade preponderante. ambos tendo por fundamento a valorização da estrutura patriarcal. agrário. uma espera pelo brotamento de novas ideias. 1986.4 A Mestiçagem e a questão da formação da nação em Gilberto Freyre EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Não sei quando. entre outras coisas. desenvolvia-se um estreitamento das relações entre os primeiros e os artistas populares. a qual herda muito do Velho Mundo. Patriarcalismo consiste na influência social dos patriarcas. Considerando sua afirmação. sua tradição e sua cultura. uma vez que. Ou seja. os sambistas. do interesse pelas coisas brasileiras. patriarcalismo3. única dentre os continentes. destaca que aqui imperava uma docilidade nas relações raciais. O autor não deixa de denunciar o componente de violência que marcava estes intercursos. produzindo inúmeros filhos ilegítimos. Oriundo da decadente aristocracia açucareira de Pernambuco. a obra nos deixar entrever um ponto de vista sobre o Brasil que é um tanto condescendente com o passado. que privilegia o cotidiano. mestiça racialmente e diferenciada. A cultura regional interessava na medida em que era passível de nacionalização. então. uma vez que esta foi possível devido à miscibilidade do povo português. mulatos. deu-se entre o senhor da casa . através das teorias antropológicas de Frans Boas. o autor inaugura o pensamento sobre a brasilidade. estranho à civilização europeia. o movimento de defesa das autênticas expressões culturais miscigenadas e regionais do país que não deixava de destacar o intrínseco caráter universalista destas manifestações. principalmente. ela inclui um projeto otimista do futuro lançando a tese de que a nação se forma sobre as bases favoráveis do encontro entre três raças: a portuguesa. o que é contestado por Vianna. o respeito por esta produção popular e regional. Esta nação deve aos portugueses a mistura. o sadismo dos senhores. a positividade de uma nação que nasce miscigenada culturalmente. os pequenos fatos coletados quase obsessivamente. em plena gestação. Posteriormente. possibilitando o povoamento da nova terra. A plasticidade deste povo invasor permitiu que ele realmente encontrasse com a alteridade do povo nativo. a índia e a negra.Proibida a reprodução – © UniSEB Antropologia Cultural 78 cado promover o respaldo para sua proposta de valorização da mestiçagem no campo intelectual estrangeiro. o intercurso sexual deu-se entre o colonizador português e a índia. Segundo Freyre. mas sob diversos aspectos. através de uma perspectiva saudosista. numa relação que não teria se estabelecido sobre a violência e o conflito. Freyre elege como objeto fundamental de análise. entretanto. a “revelação” da cultura popular mestiça brasileira. à sua predisposição durante a colonização para misturar-se com as índias produzindo uma população mestiça mais aclimatada ao cenário tropical. Primeiramente. mas. Desse modo. Daí. a mulata.grande e a escrava. produto de uma concepção doméstica . Este acentua que já havia nele e em outros pensadores. teria se dado no estrangeiro. em que se constroem as relações entre a casa-grande e a senzala. É uma forma inovadora. a mucama. o abuso sexual. principalmente. nos Estados Unidos. cujo produto antecipa-se promissor. mas que se assentara notavelmente sobre um intenso intercurso sexual e cultural. as relações na intimidade. Estaria. a sociedade patriarcal escravocrata. segundo a opinião de Hermano Vianna.176). ao escolher apontar para o morenamento da nação quando a proposta era seu branqueamento. a assimilação. possibilitando e mantendo a “unidade da pátria”. posteriormente destes mestiços com os índios e negros. como era mais comum na tradição ensaística paulista. foi a miscigenação entre as raças. sendo exaltada a sua predisposição natural para a vida nos trópicos. p. o caráter harmônico da colonização brasileira e mais brando da escravidão. Sobre esta proposição fundamental do livro. segundo Freyre. enfatizando a construção da unidade nacional. aos traços africanos superiores. porque constitui o fator de integração e homogeneização da nação. 79 . Desse modo. Sendo assim. A cultura ameríndia teria sido facilmente assimilada pela cultura dominante europeia. e. por exemplo. A valorização do mestiço como produto da mistura dos vários elementos colaboradores no processo de colonização e desenvolvimento do país como independente promoveria a tendência de se optar pela integração em detrimento da separação e do pluralismo. Toda essa mestiçagem seria fundamental para Freyre. a socióloga Élide Rugai Bastos comenta: EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB O processo de acomodação no campo cultural ao mesmo tempo requer e é produto do amalgamento biológico e étnico. no entanto. extroversão e sensualidade do povo para cá trazido como escravo. daí. de maneira original. E tal processo foi realizado pela miscigenação: primeiramente dos portugueses e espanhóis com os árabes e judeus. cujo vigor impôs-se à tradição portuguesa. a integração sem conflitos mais graves.Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 de escravidão típica da colonização portuguesa e caracteristicamente mais amena: o patriarcalismo (CASTRO SANTOS. 1986. diferentemente da cultura africana aqui estabelecida. introduzido pela Revolução de 30. A formação brasileira deve. 1985. o padrão de interação. p 88). e é com ele que o autor pernambucano vai se filiar. Por isso a história é pacífica: dá-se sem rupturas (BASTOS. o negro é o elemento formador da nação privilegiado pelo autor. Freyre não destaca o elemento indígena na composição racial do povo. se fundamentava no processo de assimilação dos vários imigrantes. sobretudo à cultura negra. Por esse motivo as tensões aqui não se explicitam em conflitos que emergem em movimentos sociais. assim. pelo catolicismo através da catequese. como a alegria. O projeto político da época de Freyre. ou antes. seria consequência direta da ‘complexidade étnica e cultural portuguesa’. etnias/culturas e trópico”. a potencialidade da cultura brasileira parece residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados” (FREYRE. podendo lidar criativamente com aquilo que não é homogêneo. A regra aqui não é o conflito. Mas mesmo assim. a aptidão brasileira a se relacionar com o indefinido e o diverso é considerada por Gilberto Freyre nossa grande originalidade como experiência civilizatória. 88). segue-se um modelo de combinação e acomodação de elementos contrastantes como o moderno e o tradicional. Atividades Proibida a reprodução – © UniSEB 01. o rural e o urbano. Identifique os principais aspectos da investigação antropológica sobre as relações entre “mundo branco” e mundo indígena. o ‘se sentir em casa’ no heterogêneo. a casa . em Casa . o dominante e o dominado. a disputa declarada ou o separatismo.Antropologia Cultural O mestiço estaria muito mais adaptado à exuberância do mundo tropical. . Essa tendência à ‘morenidade’ não foi exatamente inventada nos trópicos. Dessa maneira. Suas raízes seriam ibéricas: o estímulo à diferenciação. 1987. Aqui. p 335). “entre patriarcalismo.grande e a senzala. 80 02. Gilberto Freyre defende uma tese que parece muito cara ao conjunto de sua obra: o Brasil constitui-se sobre uma conciliação de antagonismos. 1995. Bastos. Compare a teoria primordialista com a teoria interacionista de etnicidade.grande & senzala . aquilo que nos marca como diferentes. o sobrado e o mocambo. Finalmente. cuja ruptura é impedida pela articulação. muito bem identificada por Élide R. nas palavras do próprio autor: “A força. justamente por estarmos mais abertos à diferença e podermos incluir o indefinido em nossa definição de identidade (VIANNA. p. Uma das formas é atuando como uma instância normatizadora das identidades étnicas. (Na terminologia russa. 2008). exigindo ou mesmo obrigando que os indivíduos se submetam a processos de definição e reconhecimento com base na etnicidade. Para evitar que a aliança de repúblicas se desintegrasse. Isso foi alcançado administrativamente por meio do sistema de ‘passaporte interno’. os governos soviéticos emitiam carteiras de identidade ou passaportes internos para todos os cidadãos que completavam 16 anos. o grupo étnico numericamente majoritário era considerado o grupo étnico ‘titular’: os russos na Rússia. 224). como por exemplo. Reflexão EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB O Estado pode mesmo exercer uma influência determinante sobre a dinâmica das relações interétnicas dentro de uma nação.Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 03. a difusão da língua russa e a valorização dos feitos nacionais através de uma publicidade intensiva (BRYN et al. os cazaques no Cazaquistão etc. seus governantes investiram em diferentes estratégias para promover o sentido de unidade entre seus cidadãos. Uma segunda estratégia de promoção da unidade nacional envolveu a criação de um sistema que possibilitasse a distribuição do poder e dos privilégios entre os grupos étnicos. a ex-URSS era formada por 15 repúblicas. esses grupos eram chamados de ‘nacionalidades’. O quinto item constante do passaporte registrava a etnicidade do seu portador. Com uma das maiores populações do mundo e um poderio econômico e militar impressionante. a implantação de um sistema educacional nacional. Um dos casos bem conhecidos de uma política estatal de imposição da etnicidade foi a que vigorou na antiga União Soviética até sua dissolução em 1991. os ucranianos na Ucrânia. Adolescentes eram obrigados a adotar a etnicidade 81 . Caracterize a perspectiva de Gilberto Freyre acerca da mestiçagem no Brasil. 2008.)” (BRYN et al. as repúblicas abrigavam muitos outros grupos étnicos minoritários. Com início em 1930. “Em cada república. Contudo. entre outros. durante o regime militar. sua autonomia econômica e sujeitando índios e mestiços a formas de exploração de sua força de trabalho e proletarização. 82 Outra forma de intervenção do Estado no domínio da etnicidade é incentivando o dissolvimento de identidades étnicas minoritárias. e por outro lado. um ucraniano vivendo na Ucrânia etc. p 224). (BRYN et al. no mínimo. p 224) Este sistema de registro oficial da pertença étnica determinou que diferentes dimensões da vida social do país fossem organizadas em termos étnicos. o “passaporte interno” permitiu a aplicação de cotas étnicas para o acesso a universidades. De fato. a partir dos anos 1960. havia mais oportunidades educacionais. Proibida a reprodução – © UniSEB Assim.Antropologia Cultural de seus pais e apenas no caso de os pais pertencerem a grupos étnicas distintos a pessoa podia escolher entre a etnicidade do pai ou da mãe. sobre as áreas habitadas por povos autóctones. As políticas indigenistas oficiais do Brasil e do México em muitos momentos entre os anos de 1930 e 1960 ilustram esta tendência de atuação ao promover a assimilação dos grupos indígenas localizados dentro de suas fronteiras às respectivas sociedades nacionais circundantes. A . conivente com o extermínio das populações indígenas perpetrado em suas fronteiras. a política do Estado brasileiro se não foi facilitadora. favoreceu a distribuição de benefícios e vantagens para os grupos majoritários das repúblicas contribuindo para assegurar a lealdade destes ao governo central. foi. mas os membros de grupos étnicos não-titulares eram os que tinham menos vantagens ainda (BRYN et al. assim como a implementação em tais regiões de programas de desenvolvimento econômico e de estimulo à conversão do indígena em camponês constituem exemplos deste tipo de estratégia oficial que prometia integrar as diferentes etnias à vida nacional. Incentivos à expansão. Por um lado. suas terras. pastorial ou agrícola. retirando-lhes seus meios tradicionais de existência. cargos administrativos. Membros de um grupo étnico titular que vivessem fora de sua república estavam em desvantagem. 2008. profissionais e políticas caso se fosse um russo vivendo na Rússia. das frentes de colonização. 2008. das empresas de economia extrativista. Alcida Ramos.. e STREIFF-FENART. apresentada acima. o papel do movimento indígena organizado e os percalços da política indigenista perpetrada pelos órgãos oficiais do governo.pdf> Acessado em: dez de 2010. definitivamente abandonada aquela perspectiva oficial assimilacionista. São Paulo: Cosac & Naify. 83 . 1998. Teorias da Etnicidade.br/ics/dan/Serie100empdf. Gilberto. Brasília. à sua língua. Grupos Étnicos e suas Fronteiras In: POUTGNAT. br/ics/dan/Serie100empdf.unb. 1987. Do etnocídio In: Arqueologia da Violência: pesquisas de antropologia política. CLASTRES. O texto pode ser consultado no seguinte site: <http://vsites. São Paulo: Editora Unesp. Pierre. POUTGNAT. inclusive direitos à sua identidade étnica. que assegurou aos índios do país uma série de garantias. São Paulo: Editora Unesp. Casa-Grande & Senzala. Teorias da Etnicidade. J. <http://vsites.Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 violenta ofensiva contra a diversidade étnica no país só começou a ser atenuada com a promulgação da Constituição de 1988.pdf>. RAMOS. P. Referências BARTH. discute os desafios dos índios na conquista de sua cidadania. de que o índio era uma categoria transitória que viria a se dissolver na cultura nacional. Fredrik. 2004.unb. P. Indigenismo de Resultados. a antropóloga e professora da Universidade de Brasília. EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB FREYRE.e STREIFF-FENART. então. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1990. Leitura recomendada No artigo “Indigenismo de resultados”. Foi. à cultura e ao território. Série Antropologia. J. Alcida. 1998. 1996 [1970]. A integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras. Proibida a reprodução – © UniSEB VILAÇA. Aparecida. Darcy. 56-72. Vol. Revista Brasileira de Ciências Sociais. 84 . 15 no 44 outubro/2000. Os índios e a civilização. O que significa tornar-se outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia.Antropologia Cultural RIBEIRO. Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Minhas anotações: 85 . Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB Minhas anotações: 86 . Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil – Capítulo 5 EAD-14-Antropologia Cultural – Proibida a reprodução – © UniSEB Minhas anotações: 87 . Antropologia Cultural Proibida a reprodução – © UniSEB Minhas anotações: 88 .
Copyright © 2024 DOKUMEN.SITE Inc.