LIvro Lembrar Escrever Esquecer
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Lembrar escrever esquecer1 2 Jeanne Marie Gagnebin Jeanne Marie Gagnebin LEMBRAR ESCREVER ESQUECER Lembrar escrever esquecer 3 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda., 2006 Lembrar escrever esquecer © Jeanne Marie Gagnebin, 2006 A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. Edição conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Imagem da capa: A partir de desenho de Henri Michaux, Sem título, 1960, nanquim s/ papel, 65 x 140 cm (detalhe) Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Bracher & Malta Produção Gráfica Revisão: Alberto Martins Camila Boldrini Marcela Vieira 1ª Edição - 2006, 2ª Edição - 2009 CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) G129l Gagnebin, Jeanne Marie Lembrar escrever esquecer / Jeanne Marie Gagnebin — São Paulo: Ed. 34, 2006. 224 p. Inclui bibliografia ISBN 85-7326-356-3 1. Filosofia. 2. Literatura e estética. I. Título. CDD - 102 4 Jeanne Marie Gagnebin ........................... O rumor das distâncias atravessadas .......................................................................................................... 11 13 29 39 49 59 83 97 107 119 145 163 179 193 201 211 213 221 223 Lembrar escrever esquecer 5 ................... Homero e a Dialética do Esclarecimento . Verdade e memória do passado .. 11..................................... 8........... Memória.. 14.......... Sobre os textos .......LEMBRAR ESCREVER ESQUECER Nota da autora ................ 10.......... 9........... 4.................................... O rastro e a cicatriz: metáforas da memória ...................... estava doente” ............................. 2........ 1.. Sobre as relações entre ética e estética no pensamento de Adorno ......... 7. Agradecimentos ..... A memória dos mortais: notas para uma definição de cultura a partir de uma leitura da Odisseia ................... “Após Auschwitz” ............................ Sobre a autora ........ “Platão......... 5............................................................................................ história... 12............................ testemunho ............................................................. Os prelúdios de Paul Ricoeur ...................... 6.............................................................................. Escrituras do corpo ...... O que significa elaborar o passado? .............................................. creio.................................. Bibliografia .................. 13........................... 3............................................. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur . As formas literárias da filosofia . 6 Lembrar escrever esquecer . LEMBRAR ESCREVER ESQUECER Lembrar escrever esquecer 7 . 8 Lembrar escrever esquecer . Aos amigos do “grupo sem nome” pela perseverança nas palavras errantes A memória dos mortais 9 . 10 Lembrar escrever esquecer . De outro. propiciada pela escrita. passando pelos múltiplos exercícios filosóficos. Ao reler estes textos.NOTA DA AUTORA Este livro reúne ensaios bastante diversos. mas que desenha o vulto da ausência. não calar. e o da conservação pela escrita. não cair na ilusão narcísica de que a atividade intelectual e acadêmica possa encontrar Nota da autora 11 . mas só pode salvá-lo quando o codifica e o fixa. percebo que todos tentam assumir uma tarefa paradoxal. se apoiam reciprocamente. mas que têm em comum seu modo de exposição: elaborados por ocasião de encontros. mas efêmeras. De um lado. ela ao mesmo tempo se revela nessas palavras compartilhadas. nem mesmo garantem a certeza da duração. transformando sua plasticidade em rigidez. A oralidade viva do diálogo com colegas e estudantes e a procura lenta de clareza e diferenciação. Dos poetas épicos aos escritores sobreviventes dos massacres do século XX. suas vozes — isto é. mais uma vez. A escrita. sempre retomados. Nem a presença viva nem a fixação pela escritura conseguem assegurar a imortalidade. não esquecer dos mortos. aliás. ambas. mantendo sua lembrança para as gerações futuras. congressos. na esteira de Walter Benjamin. cumprir uma exigência de transmissão e de escritura. mas frágil e efêmera. dos vencidos. por sua vez. deseja perpetuar o vivo. agora seguindo as pegadas de Nietzsche. foram posteriormente reescritos para publicação. e do esforço de dizê-la. o diálogo oral representa a vivacidade de uma busca em comum da verdade — e se esta última escapa da tentativa de sua apreensão. a memória dos homens se constrói entre esses dois polos: o da transmissão oral viva. de explicitação do enigma do real. colóquios. inscrição que talvez perdure por mais tempo. afirmando e confirmando sua ausência — quando pronuncia sua morte. apenas testemunham o esplendor e a fragilidade da existência. Desde Platão. Oralidade e escrita também atravessam como temas de reflexão estes quatorze ensaios. A palavra rememorativa. em termos filosóficos antigos. também exige que o pensamento saiba esquecer. isto é. não tira sua força mais viva da conservação do passado e da perseverança de escritores. da exigência da vida justa dos homens junto a outros homens. mesmo quando ele parece estar sufocado e ressoar de maneira quase inaudível. saiba desistir de seus rituais de auto-reprodução institucional e ouse se aventurar em territórios incógnitos. da vida no presente. 12 Lembrar escrever esquecer . portanto. mas do apelo à felicidade do presente. historiadores ou filósofos.sua justificação definitiva nesse trabalho de acumulação — pois o apelo do presente. sem definição nem inscrição prévia. saiba esquecer de sua complacência erudita para consigo mesmo. Sobretudo. Ouvir o apelo do passado significa também estar atento a esse apelo de felicidade e. certamente imprescindível. de transformação do presente. paradigma da violência necessária para o estabelecimento da razão instrumental e da identidade subjetiva. Nessa leitura que se orienta em Marx. pois violentada. A história de Ulisses. o custo dessa “odisseia”. como ainda o faziam os intérpretes do início do século XX quando saíam à procura das paisagens. T. deve escapar das tentações e das seduções do mito. este custo é alto: ele consiste na dominação da natureza que continua ameaçadora. das oliveiras e dos rochedos evocados pela Odisseia nas ilhas do Mediterrâneo. Rio de Janeiro. à Pátria. portanto. para se construir a si mesmo como “eu” soberano. a desorientação funesta sobre “o mar sem caminhos”. sobre si mesmo. à ordem familiar e política. e na repressão da libido mais originária. 1 A memória dos mortais 13 . representa. e a volta a Ítaca. dos bosques. Jorge Zahar. 1985. W. também. Hoje. da mímesis mágica para a dominação racional. pois recalcada. Adorno. A MEMÓRIA DOS MORTAIS: NOTAS PARA UMA DEFINIÇÃO DE CULTURA A PARTIR DE UMA LEITURA DA ODISSEIA Todas as pesquisas recentes sobre a Odisseia concordam em não ver mais na errância de Ulisses a descrição de um itinerário geográfico preciso. assegurando seu domínio sobre a natureza externa e. Horkheimer. como diz Homero. que também continua ameaçadora. na leitura de Adorno e Horkheimer. intérpretes tão diferentes como Adorno e Horkheimer ou Pierre Vidal-Naquet e François Hartog leem essa viagem muito mais como uma trajetória alegórica entre a perda inicial de rumo. e M. sobre a natureza interna. Freud e Nietzsche.1. a formação do sujeito pela dominação da natureza e pela auto-repressão. Adorno e Horkheimer1 encontraram na Odisseia a descrição da construção exemplar do sujeito racional que. tradução de Guido Antonio de Almeida. da passagem da infância para a idade adulta. Dialética do Esclarecimento. dos rios. Todorov. “comedores de pão”. o dos Lotófagos — esse povo pacífico. F. pois os autores que vou citar são Pierre Vidal-Naquet.Gostaria de apresentar uma outra visão dessa interpretação da Dialética do Esclarecimento. mais luminosa e humanista. Os Lotófagos não ameaçam nem matam. Canto IX. A perdição de Ulisses nesse mundo mítico. Ora. grega porque mais intrinsecamente ligada à nossa condição limitada de mortais. comendo loto e es- 2 3 O adjetivo “negro” é de Habermas. das vacas de Apolo. atenção que é dessa condição de homens mortais que também trata a Odisseia. normal. “doce como mel”. de Circe. deuses. oferecem o eterno presente do esquecimento: “Estes [os Lotófagos] não pensaram em matá-los [alguns companheiros de Ulisses]. de maneira belíssima. Ao chegar numa costa desconhecida. uma leitura mais antropológica e mais histórica. Uma leitura menos dramática e “negra”2 do que aquela de Adorno e Horkheimer. não mais queria trazer notícias nem voltar. mas. com efeito. se são “mortais”. 14 Lembrar escrever esquecer . trata-se de sair do território do inumano e do mítico para. animais. simultaneamente aterrorizante e sedutor. quem quer que saboreava este fruto. de Calipso.3 ou se são outros — monstros. Ulisses muitas vezes se pergunta quem são os habitantes dessa região. talvez mais “francesa” também. entre os Lotófagos. é assinalada pela tempestade de nove dias e nove noites que o afasta das terras conhecidas dos Cícones para mergulhá-lo no mar desconhecido das ilhas fabulosas onde vai errar até chegar na corte dos Feácios: ilhas dos Lotófagos. talvez mais “grega” e menos “alemã” é. Ulisses não encontra mais nenhum mortal. por exemplo. mas preferia ficar ali. senão que lhes deram loto a comer. de Éolo. de maneira muito mais perniciosa. dos Ciclopes. doce como mel. pouco a pouco. no primeiro episódio. Chama. Hartog. Françoise Frontisi-Ducroux e T. vegetariano e perigoso: perigoso porque representa através do loto. nesse sentido. verso 89. Na história de Ulisses. bem como em vários contos para crianças. chegar ao mundo reconquistado da condição humana. depois de várias provações. sem falar de Caríbdis e Scila nem das Sereias! Nessas errâncias. Essa passagem é assinalada. Ver. a grande tentação contra a qual luta a Odisseia inteira: o esquecimento. digamos. lugar de um início de organização política sob a forma dos convivas que participam do ritual do sacrifício e. ou se tornar animal (como os companheiros de Ulisses transformados em porcos por Circe). São Paulo. isto é. do churrasco! A ideia do culto e de uma organização política mínima nos levam à terceira característica dos homens mortais comedores de pão: respeitar algumas regras de troca com os outros homens.quecido do regresso. 83. podemos ressaltar três características principais dessa condição. A segunda característica se refere à cocção. desde o início. as histórias. feriam com os remos o alvacento mar. a cocção. para manter a palavra. uma luta para manter a memória e. em torno dele. portanto. Esta não é somente importante em relação à comida dos homens. a não se esquecerem do futuro. Odisseia. que a luta de Ulisses para voltar a Ítaca é. depois. os mortais são “comedores de pão”. em boa ordem. Em primeiro lugar. onde se come cru. Abril. os cantos que ajudam os homens a se lembrarem do passado e. O sacrifício é. arrastei-os para debaixo dos bancos dos remadores e aí os prendi.”4 Este episódio indica. eles conhecem a agricultura (o trigo) e. elo de ligação entre os homens e os deuses. antes de tudo. 1978. portanto. eles não pertencem mais à idade mítica de ouro onde vegetarianismo e antropofagia coabitam. duplamente. receoso de que alguns deles. lugar de culto e. respeitar a lei da hospitalidade. ou se tornar divino (como Calipso o oferece reiteradas vezes a Ulisses)? Segundo Vidal-Naquet. entre outras. debulhados em lágrimas. para as naus. enquanto instava com os demais companheiros. se esquecessem do regresso. mas introduz também um tema-chave. também. provando o loto. 4 A memória dos mortais 15 . a que subissem depressa nas naus ligeiras. o sacrifício. Tive de os reconduzir à força. tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Embarcaram imediatamente e sentaram-se nos bancos. Canto IX. depois. Mas o que seria essa condição humana que a Odisseia tenta resguardar contra a dupla sedução do inumano: isto é. Agricultura. que me tinham permanecido fiéis. p. igualmente. ”5 Os Ciclopes são mencionados duas vezes. mas respeitar uma ordem humana cujo fundamento é a ordem instaurada pelos próprios deuses. nesta passagem e posteriormente no verso 189. que prescreve os direitos e os deveres de cada um sob a autoridade de um chefe do genos. não plantam nem lavram. portanto a uma organização ulterior do social). Le Vocabulaire des institutions indo-européennes. estabelecida pelo jogo político (o que poderia ser o sentido ulterior de dikè). o direito entre as famílias de uma tribo. entre os quais tudo nasce. dikè. de um genos. ibidem. Paris. O que significa themis? Segundo a obra básica de Émile Benveniste. acima das várias famílias. athemistes. com o coração amargurado. Eles tampouco têm embarcações para chegar à ilha 5 6 Idem.O famoso episódio do Ciclope no Canto IX da Odisseia nos fornece pela negativa o retrato emblemático de uma sociedade monstruosa. confiando nos deuses imortais. à diferença do conceito posterior de justiça. portanto. deusa da lei. 16 Lembrar escrever esquecer . Não têm assembleias que julguem ou deliberem. homens soberbos e sem lei. Émile Benveniste. a cevada e as vinhas que produzem o vinho dos pesados cachos. Chegamos à terra dos Ciclopes. que. nome da deusa Themis. portanto.. em grego. A themis é de origem divina. alianças. nem culto. não só respeitar uma convenção humana. que para eles a chuva de Zeus intumesce. das três Parcas! Respeitar a themis entre os membros de uma comunidade significa. isto é. como “sem lei”. Maspero. prosseguimos viagem. vivem em côncavas grutas. 1969. segunda esposa de Zeus e mãe. designa o direito familiar. Esses Ciclopes athemistes não têm. como assinala seu nome. Vejamos mais de perto: “Dali. nem cultura política. casamentos (dikè remete à justiça mais elevada da polis. no cotidiano e nas circunstâncias excepcionais como guerras. sem se preocupar com os outros. não humana.6 themis. nem leis. no cimo das altas montanhas: e cada um dita a lei a seus filhos e mulheres. sem que a terra tenha recebido semente nem cultura: o trigo. nem agricultura como foi demonstrado no fragmento do Canto IX.. tão poderosa era a cidade que saqueou e tão numerosos os povos que destruiu. a quem ventos de toda sorte desviaram do rumo sobre o extenso abismo do mar. Sem dúvida. e ele. na esperança de receber tua hospitalidade e alguns presentes. cuja glória é imensa debaixo do céu. Eis-nos agora aqui. Mesmo assim respondi-lhe nestes termos: ‘Somos Aqueus. a teus joelhos. vindos da Tróade. então.. acendeu o lume e. [. que acompanha os estrangeiros e quer que os respeitem’. é o deus da hospitalidade. ato contínuo. portanto. filho de Atreu. Nem eu. Respeita os deuses. como piratas que arriscam a vida sobre as ondas e levam a desgraça a gentes de outras terras?’ Assim falou. outros caminhos. com a falta de respeito pelos deuses e com a falta de culto: “Rapidamente concluída a tarefa. egrégio varão! A ti nos dirigimos como suplicantes: Zeus é o vingador dos suplicantes e dos hóspedes.] A memória dos mortais 17 . o instrumento de troca e de comunicação por excelência que. és um ingênuo. pouparei a ti ou a teus companheiros. Assim falei. e nós com o coração transido de terror. seguindo outra rota. por sobre os úmidos caminhos? Vindes por algum negócio ou cruzais os mares à toa. segundo Ulisses. que é costume dar aos hóspedes. por temor do ódio de Zeus. por causa de sua voz rouca e de sua monstruosa estatura. mas arribamos aqui. atentando em nós. pois os Ciclopes são pastores e desconhecem regras de comunicação mais elaboradas. em particular na descrição do Ciclope Polifemo. que. a não ser que o coração a isso me incite’. Desconhecem. se prestaria tão bem para a agricultura. para os gregos.próxima da sua. quem sois? Donde vindes. de ânimo inexorável: ‘Estrangeiro. me replicou. é o navio.. Zeus assim o determinara! Orgulhamo-nos de ser guerreiros de Agamémnon. aconselhar-me que tema e acate os deuses! Os Ciclopes pouco se preocupam com Zeus portador da égide ou com os deuses bem-aventurados. Vejamos como esta falta de themis (de lei) se articula. porque somos muito mais fortes que eles. perguntou-nos: ‘Estrangeiros. ou vens de longe. queríamos retornar à pátria. como conta a Teogonia: ameaça imemorial do retorno ao chaos. não faz libações e come cru. os miolos esparramaram-se pelo chão e molharam a terra. os infelizes companheiros de Ulisses. quando se vangloria de não respeitar Zeus. depois. Uma fórmula várias vezes repetida na Odisseia afirma a ligação entre temor aos deuses e respeito pelo estrangeiro. portanto. fugir rapidamente. nem os medulosos ossos. Falta sublinhada no texto pela expectativa contrária de Ulisses. sem deixar coisa alguma. antes de mais nada. Eles ameaçam. Ulisses.. debulhados em lágrimas. como aquele que não teme os deuses. Ele mesmo o diz nos versos 273 e seguintes. sem saber o que fazer.”7 Nesta citação. antes de convidar todos os seus companheiros a irem à terra: 7 Odisseia. entre outras coisas. como amigo e estabelecerá com ele uma troca. Ulisses responde que quer aguardar a chegada do Ciclope para vê-lo e para receber os presentes de hospitalidade. sem proferir palavra. mas. Aos seus companheiros que lhe aconselhavam roubar alguns queijos e alguns cabritos. nem entranhas. Embora tivesse chegado carregado de lenha e acendido o fogo. de ânimo inexorável. deveria ter ficado desconfiado: pois um ser que não conhece nem agricultura nem organização política dificilmente reconhecerá o estrangeiro. 85-6. Comeu-os. 18 Lembrar escrever esquecer . erguendo-se num ímpeto. Diz Ulisses quando chega perto da ilha. como um leão criado na montanha. esse fogo não serve nem para a cozinha nem para o sacrifício. o Ciclope é descrito. o desrespeito pelas regras mínimas de hospitalidade. Esse não-respeito é ressaltado pelo fato de que o Ciclope não sacrifica.Assim falei. o xenos. cit. depois retalhou-os membro a membro e preparou a ceia. porém. pp. Nós. de os Ciclopes serem mais fortes que os deuses. como se fossem dois cachorrinhos. e ele. a ordem do cosmos garantida pela vitória de Zeus sobre os Titãs. apanhou dois de uma só vez e atirou-os por terra. A falta de respeito pelos deuses é ressaltada por Homero num aspecto muito específico: a falta de respeito pelo estrangeiro. erguíamos as mãos a Zeus. estendeu as mãos para meus companheiros. perante espetáculo tão monstruoso. nem carnes. isto é. enquanto eu com minha nau e minha tripulação vamos procurar que homens são estes: se violentos (hybristai). O adjetivo theoudès é formado por duas palavras: Theos (deus) e aidôs (esse sentimento essencial mal traduzido por “pudor”. Simultaneamente são ditos philoxeinoi. filho de Alcino. o estrangeiro. a reverência em relação à família. a palavra xenos/xeinos designa o hóspede num país estrangeiro. falta de limites. ao grupo. o hóspede. estrangeiro. desmedida.“Companheiros fiéis. diz Ulisses. responde que se deve sempre acolher o estrangeiro. 342. da ordem política da polis. p.10 Ulisses hospedado (xenos) na casa de Laodamos. 337 ss. pp.. 84. cit. falta de limites impostos pelos deuses. não se pode lutar contra ele. De acordo com 8 9 Idem. selvagens e sem justiça. Benveniste9 nos lembra que estes adjetivos da esfera moral não caracterizam qualidades psicológicas. p. lembra Benveniste. permanecei aqui. na forma substantiva designa especialmente aquele que vem de fora. essa falha maior que coloca em perigo o equilíbrio do cosmos e. Aceita lutar contra todos. deve mostrar seus talentos numa competição esportiva. é meu xenos.”8 A palavra hybristai remete a hybris. Menelau é advertido que há dois xenoi na sua porta. Na Odisseia. Ainda na Odisseia. uma belíssima palavra forjada por Homero. 10 A memória dos mortais 19 . que assinala o respeito. Assim. Op. mais tarde. de philos. temos dois adjetivos homéricos intrinsecamente ligados: philoxeinoi e theoudès. versos 173-6. pois cada um em relação ao outro é xenos. Theoudès são aqueles que respeitam os deuses. a si mesmo). amigo. e de xenos. ou se hospitaleiros (philoixeinoi) e respeitadores dos deuses (theoudès). menos contra Laodamos que. um doméstico pergunta ao rei se deve acolhê-los e hospedá-los ou se deve levá-los para casa de outra pessoa. palavra mais diretamente política). indignado. Em oposição a essa desmedida. mas designam muito mais valores inter-relacionais entre membros de um mesmo grupo ou de dois grupos diferentes. Canto IX. Idem. na forma adjetiva designando tanto o hóspede como o anfitrião. à selvageria e à injustiça (aqui adikaioi. Menelau. trocar presentes nem estabelecer aliança. todas as regras de respeito aos deuses e. Idem. não precisa consistir em presentes materiais. de mulheres. ele não vai. hóspede. amigo. ele come cru. ele não aceita os suplicantes ou os estrangeiros. ibidem. de crianças.] a hospitalidade se esclarece em referência ao potlach [essa troca de dádivas analisada por Marcel Mauss em ‘Essai sur le don’] do qual ela é uma forma atenuada.”. ela pode também ser “troca de formas de polidez. ele não faz libações. portanto. marcando bem a ambiguidade dessa relação que pode ser o início de uma aliança duradoura ou.. A Odisseia nos fornece muitos exemplos de recepções modelares e de trocas bem-sucedidas. uma depois da outra. pois Polifemo fere. portanto. Forme et raison de l’échange dans les societés archaïques”. em busca de notícias a respeito de seu pai.. mas deve obedecer a um sistema de obrigações muito estrito que se transmite de geração a geração. agora portadores de guerra e 11 12 13 Idem.13 Sua característica é a de parecer espontânea. 151. 1950. aos estrangeiros: ele não sacrifica.”12 A troca. de festins. O episódio do Ciclope é. Recusar a troca ou sua continuação significa recusar a aliança.Benveniste. de ritos. amados e protegidos por Zeus. não precisa ser econômica. como na viagem de volta deste último. mas ela é altamente simbólica. Marcel Mauss. como ressalta Mauss. 92 ss. Paris. Ela se fundamenta na ideia que um homem está ligado a um outro (hóstis sempre tem um valor recíproco) pela obrigação de compensar uma prestação particular da qual se torna beneficiário. de uma guerra. portanto. de favores militares. Sempre segundo Benveniste: “[. como também hóstis. p. 20 Lembrar escrever esquecer . Quadrige.11 o xenos corresponde ao futuro radical latim de hostis que dará tanto a palavra hóspes. de danças etc. pp. paradigmático. declarar guerra. Ou melhor: a recusa de seguir a lei sagrada da hospitalidade acaba por perverter a troca de presentes. inimigo. tanto na viagem de Telêmaco. in Sociologie et anthropologie. neste contexto. “Essai sur le don. então. a palavra outis (ninguém) remete. encantado com a qualidade do vinho. a capacidade de entrar em relação com o outro sob suas diversas formas. embrião de uma organização política mais ampla. Ela se manifesta na descrição de várias cenas de hospitalidade exemplar. O episódio de Polifemo nos ajuda. a partir dessa leitura da Odisseia. Ulisses aqui se faz de inexistente. também se inscreve neste contexto de regras pervertidas. qualidade específica desse Ulisses-Ninguém que se finge de morto para escapar à vingança do monstro. cujo nome não é nem dito nem conhecido. o que parece ser uma conduta nada vergonhosa. o outro é o outro homem. como diz Adorno. na sua alteridade radical de estrangeiro que chega de repente. o outro também designa o outro do homem. Podemos deduzir então uma característica essencial. furar o único olho do monstro. mas que deve ser acolhido. Poderíamos dizer que ela se caracteriza pela capacidade de entrar em comunicação com o outro e de proceder a uma troca. Aliás. que anuncia a morte em vez de propor aliança. à troca entre o trabalho humano e a natureza. por sua parte. mas de se chamar “Ninguém” para melhor enganá-lo. Polifemo. pela negativa. tanto da parte da deusa Atena como de outros mestres em disfarces na Odisseia. ele explora. do que seria uma definição plural da cultura humana: a saber. simplesmente. Por A memória dos mortais 21 . e aqui cultura remete à agricultura. Ulisses faz mais que. Assim. num belo trocadilho de Homero. Enfim. à palavra mètis (astúcia). pede mais bebida e. o vazio entre a palavra e a coisa. oferece um estranho presente de hospitalidade: promete devorar Ulisses por último — um presente. a entender melhor o que seria a especificidade da “cultura” humana segundo a Odisseia. com quem se pode estabelecer uma aliança através de presentes. para melhor montar sua armadilha. o vinho que Ulisses oferece ao Ciclope é também o instrumento que permitirá embriagá-lo e. portanto. aproveitando seu sono. os deuses.de morte. o espaço. Gostaria ainda de apontar rapidamente para uma outra dimensão. mentir e se dar um outro nome. em troca. em franca oposição estrutural ao episódio do Ciclope. O outro tem diversas formas: pode ser a terra-mãe. O famoso ardil de Ulisses de não declarar seu nome ao Ciclope. a dimensão do sagrado: aqui a cultura se confunde com o culto e com a troca no sacrifício. o pobre porqueiro acolhendo Ulisses. como moeda de troca contra os belos presentes de hospitalidade. por assim dizer. E. das conveniências do vocabulário etc. Todos esses anfitriões também são homens piedosos e justos que não se esquecem nunca de nenhum sacrifício nem de nenhuma libação. isto é. acolhem calorosamente o estrangeiro. Ulisses disfarçado. como aquele que sabe contar. um bom vinho. felizmente.exemplo. Mas em geral não tem nada — fora a narração comovente de suas aventuras. um episódio a mais. passa a noite na choupana do porqueiro Eumeu. porqueiro Eumeu. Conta. nenhuma joia de ouro fino. linda história nos contaste! Nem uma palavra inútil ou fora de propósito [observa-se aqui que Eumeu não só gostou de suas histórias. Ele também será reconhecido como tal (mais que isso. numa emboscada debaixo das muralhas de Troia. E lhe empresta uma capa. Nestor até parece passar seus longos dias de ancião sacrificando aos deuses sem parar. é reconhecido neste trecho como um bom contador. nenhuma arma afiada.]. numa noite de inverno junto a “Ulisses”. ou Eumeu. lhe volveste: ‘Ancião. às vezes. o convidam a participar do sacrifício e. velho e pobre. nem de qualquer outra coisa. ainda tem. o que tem nosso herói Ulisses. então. o grande rei. 22 Lembrar escrever esquecer . A história terminada. das que se devem dar a um pobre suplicante’”. A troca de presentes tampouco é esquecida. Alcino. quando. essas belas histórias vão ser reconhecidas. navegante infeliz e sobrevivente de tantos naufrágios nos quais morreram todos seus companheiros. mas também se comportou como conhecedor das regras de estilo. na famosa Nekia. uma bela história inventada. de fato. na sua viagem ao Hades. conseguiu por ardil uma capa de inverno de um camarada. Objetos preciosos contra palavras preciosas. o que tem ele a oferecer a seus hóspedes em troca dos presentes preciosos? Não possui nenhum objeto artístico. como um aedo completo) num momento central da Odisseia. da refeição frugal na choupana de Eumeu. Todos. E só depois de ter acolhido e alimentado o estrangeiro perguntam pelo seu nome e pela sua condição. tu. não sentirás falta de roupa. a reação de Eumeu é imediata: “Em resposta. ou. como na caverna de Polifemo. no Canto XI. ao país dos mortos. faz frio e Ulisses não tem roupa apropriada. portanto. Nestor ou Menelau acolhendo Telêmaco. Cito duas passagens onde esta equivalência se torna explícita: no fim do Canto XIV. depois. por assim dizer. Por isso. Ulisses. igualmente. então. da Ilíada. da comilança. Ora. disfarçado de velho mendigo. Clímene e a odienta Erifila que vendeu o marido a preço de ouro. na sequência das aventuras. essa esposa mais ardilosa ainda que o astucioso marido. O que nós. não consegue esconder suas lágrimas. seu disfarce de velho e pobre mendigo graças à ajuda de Atena. Entre esses dois grandes episódios. na corte dos Feácios. que observa tudo. O rei Alcino. na primeira pessoa. isto é. Ulisses se apresenta e começa a longa narração de suas aventuras (Cantos IX. temos a parte central da Odisseia. no palácio do rei Alcino onde Ulisses participa de um banquete em sua honra sem que ninguém saiba ainda quem ele é. Homero. que conte um episódio crucial do cerco de Troia. Ulisses pede então ao famoso aedo Demódokos. possível descre- A memória dos mortais 23 . e a viagem que se segue.Cabe lembrar aqui que a Odisseia é dividida em três grandes partes: a primeira. tomado pela emoção ao escutar essa história que é sua própria história (pois quem poderia inventar essa máquina senão o ardiloso Ulisses?). Narração aqui também na terceira pessoa. porém. dos poucos domésticos que lhe permaneceram fiéis e. sua vingança contra os pretendentes com a ajuda de seu filho (também de volta). XI e XII). claro. portanto. Seguindo o belo comentário de Françoise Frontisi-Ducroux. a saber. a viagem de Ulisses ao Reino dos Mortos. portanto. a Telemaquia. assume sua identidade. Ora. o ardil do cavalo de madeira. Louva sua arte e. cego como outro aedo famoso. Não me é. toma a palavra e conta suas aventuras e suas provações numa longa narrativa feita. o reconhecimento de Ulisses por Penélope. conta a decisão de Telêmaco. muitas vezes. aconselhado por Atena. sem dúvida. há pouco ainda um menino inexperiente. A terceira parte da Odisseia conta a chegada de Ulisses a Ítaca. dos inimigos e dos possíveis aliados. o aedo Ulisses. um de preparação. este trecho central no qual o herói se autonomeia. da deusa Atena. conhecemos como Odisseia é. isto é. seu reconhecimento prudente do terreno. aliás. Narração na terceira pessoa que relata a viagem de Telêmaco. gostaria de apontar para um fato muito instigante e único na trama narrativa da Odisseia. a interrupção da narração no meio do canto. interrupção que o herói. outro de conclusão. com efeito. Finalmente. o centro dessa autonarração é. formam uma multidão infinita!) e pela hora avançada da noite: “‘Vi Mera. justifica pela matéria infinita (os mortos. X. de sair em busca de informações sobre seu pai. também a passagem para a idade adulta desse jovem príncipe. em termos simbólicos como. então. lhe pede então seu nome. de que tanto necessita. que vos parece deste herói. aqui presente. tomando a palavra. Na sala sombria. todos se quedaram calmos e silenciosos. estatura. mesmo se me pedisses para aqui ficar um ano. os bens que. que suas palavras se cumpram’. quer eu volte para a ligeira nau. teus pensamentos 24 Lembrar escrever esquecer . que sou o rei desta terra. Se teus discursos são graciosos. Obedecei-lhe. compete o cuidado de sua partida’. e deixe que eu reúna meus presentes.’ Assim falou Ulisses. A vós e aos deuses compete pensar no meu regresso. lhe respondeu: ‘Ulisses. A todos nós. o que nossa cordata rainha afirma concorda com nossos planos e sentimentos. desde que me prometas reconduzir-me à pátria e oferecer-me brilhantes presentes. especialmente a mim. é meu hóspede e cada um de vós compartilha desta honra. ao olhar para ti. Então Alcino elevou a voz para lhe responder: ‘Cumprir-se-á a palavra da rainha. Por isso. forjadores de mentiras que ninguém logra perceber. Alcino. encantados pelo que escutavam. consinta em ficar entre nós até amanhã. antes disso. quer permaneça aqui. não obstante seu desejo de regressar. O industrioso Ulisses lhe respondeu: ‘Poderoso Alcino. como tantos que a negra terra sustenta por toda a parte. eu conviria em ficar. pois são abundantes. porque. não te reputamos um daqueles impostores ou trapaceiros. Depende de Alcino. É tempo de dormir. nem lhes recuseis os presentes. que era o mais idoso dos Féaces: ‘Amigos. vossos palácios contêm’.ver nem sequer nomear todas as esposas e filhas de heróis que vi. sensatez e equilíbrio de espírito? Além de tudo mais. Que o hóspede. por mercê dos deuses. a noite imortal teria chegado ao fim. honra de todo este povo. Entre eles tomou também a palavra o velho herói Equeneu. de sua graça. para junto de meus companheiros. enquanto eu for vivo e rei dos Féaces amigos do remo. não vos deis pressa em reconduzi-lo à pátria. Todos os homens que me vissem entrar em Ítaca mais me respeitariam e estimariam’. pois seria muito mais vantajoso para mim voltar ao torrão natal com as mãos cheias de presentes. Arete de níveos braços foi quem primeiro tomou a palavra: ‘Féaces. como também o saberá fazer Sherazade nas Mil e uma noites. Canto IX. 106-7. uma longa lista de heroínas mortas. o herói experiente pois passou por várias provas. realçar a ligação íntima entre Ulisses como herói. devemos observar que ela é instaurada depois do “catálogo das damas”. 4). agora reconhecido como herói e narrador mestre. versos 326-84. Quanto mais se narra.dão prova de lealdade. A memória dos mortais 25 . peças de bravura que devem mostrar mais a arte mnemotécnica do aedo do que contribuir com uma informação importante para a ação. sem nada dissimular. como um aedo tão bom. Ulisses retomará sua narrativa com a história de Agamémnon. Depois da interrupção. senão melhor que esse Homero que escreveu a Ilíada! A interrupção tem por efeito. Pois bem! Dize agora. Se quisesses relatar as provações por ti suportadas. portanto. no meio de suas histórias. como aquele que não só sabe viajar. assim chamada porque lembra os outros famosos catálogos da Ilíada. com uma história que não foi contada pela Ilíada. O contexto ressalta. Contaste-nos com a arte de eloquente aedo as dolorosas tribulações sofridas pelos Argivos e por ti. pp. se viste alguns de teus divinos companheiros que te seguiram até Ílion e aí completaram o seu destino. outrora estrangeiro desconhecido. infinita. essa interrupção permite. talvez uma interpolação. peço-te que narres essas gestas divinas. em segundo lugar. e Ulisses como narrador. à profusão das histórias. escutar-te-ia até que surgisse a brilhante Aurora’. precisamente. mais que isso. Essa troca de palavras e de presentes 14 15 Canto XI.”14 Como entender melhor essa estranha interrupção? Primeiro. a profusão dos dons trocados. igualmente. Diante de nós estende-se uma noite comprida. A interrupção estratégica do herói/aedo Ulisses. a maestria de Ulisses como narrador. estabelecer uma troca essencial. mais se presenteia o hóspede. criando um efeito de suspense. como “varão que sobre o mar sofreu em seu íntimo tormentos sem conta” (I. Às belas palavras de Ulisses vão responder os belos presentes de Alcino. mas também sabe contar e cantar. em palácio ainda não são horas de dormir. Ulisses que possui a “arte de eloquente aedo”15 como o constata o rei Alcino. isto é. verso 368. se esse atraso lhe propiciar mais presentes. eles veem o invisível. passando por Dante. turva. Não há. o confessará a Penélope: “Há muito que Ulisses podia estar aqui [isto é. uma reflexão do poeta sobre a importância do canto poético (como que uma reflexão metapoética). em Homero. de Virgílio a Baudelaire. sim. Trata-se. configurada pela assimilação do herói — de quem se fala — ao poeta — que toma a palavra. 26 Lembrar escrever esquecer . em seu palácio. Ora. no meio desse canto consagrado à descida de Ulisses aos Infernos. no coração desse primeiro poema de nossa tradição literária. mas achou ser preferível primeiro correr mundo em busca de riquezas”16 — riquezas em belas palavras e em belos presentes. de voltar para Ítaca. graças a essa interrupção do canto. Não a de descrever aquilo que acontece depois da morte. com o adivinho Tirésias. versos 283-5. Temos então. para nossas expectativas cristãs e platonistas de uma descrição do além. como observa Frontisi-Ducroux. junto à esposa]. mas de voltar carregado de belos presentes e de belas histórias.. no Hadês. Aliás. Ulisses se encontra com um outro grande cego (fora Homero. O conteúdo informativo desse Canto é muito pobre. Ambos cegos.tem o poder de deter o tempo: Ulisses concorda em diferir seu supostamente tão urgente retorno a Ítaca. Ora.. não é por acaso que essa reflexão aconteça agora. mesmo decepcionante. depois de inúmeros desvios pelas ilhas do mito e da ficção. o passado e o futuro que os outros homens clarividentes não enxergam. Borges!). irremediavelmente. sombras pálidas que se precipitam para beber uma gota do sangue da bezerra sacrificada por Ulisses. Nos Infernos. Mas a viagem de Ulisses aos Infernos tem mais uma função. ao mesmo tempo silenciosa e cheia de barulhos 16 Canto XIX. Édipo e. descrição da imortalidade. Alcino e seus companheiros concordam em diferir o sono e o descanso — apesar do ritmo matutino da Odisseia! — se Ulisses contar mais histórias. os mortais — e a morte é não-ser. disfarçado de mendigo velho e sujo. depois de uma “odisseia” inteira. da vida depois da morte. poetas e adivinhos se respondem e se correspondem como mostraram as clássicas análises de Vernant. paradigma de várias outras descidas aos Infernos. isto é. face escura. ao País dos Mortos. Os mortos da Nekia têm uma existência anônima e miserável. o próprio Ulisses. então. pois os homens são. no país do “Invisível” — uma tradução possível de haidès —. os mortos. seja ele Homero ou não. mais uma pista deixada pelo autor da Odisseia. mas sim tentar manter viva. do poeta. mas são as duas faces complementares do mesmo amor à vida. que sobrevive ao herói. A memória dos mortais 27 . e o assombro diante da morte não se contradizem. em relação a uma definição de “cultura” — reconhecer nossa condição de mortais. Essa é a função secreta. a lembrança gloriosa dos mortos. então. o outro lado aterrorizante do esplendor da vida. para os vivos. condição tão incontornável como a exigência que ela implica: cuidar da memória dos mortos para os vivos de hoje. para os vivos e através da palavra viva do poeta. figura. de Ulisses. Temos então. É o mérito de Vernant ter mostrado como o cuidado da glória (kléos). daquele que sabe lembrar. e é assim que gostaria de concluir. não é esperar por uma vida depois da morte (esse consolo somente virá com os Pitagóricos e com Platão). mas central. nossos antepassados outrora vivos e sofredores como nós.inarticulados. no próprio poema. A única coisa a fazer. 28 Lembrar escrever esquecer . portanto. mas que a reorganiza pela forma escrita. a uma linguagem que se apoia na tradição oral mítica. ou seja. pois. à maneira posta pelo florescer da civilização grega. HOMERO E A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO A pré-história da razão que Adorno e Horkheimer desenvolvem no livro Dialética do Esclarecimento tem um alcance exemplar. É nesse momento de reorganização poética que jaz uma dimensão racional. notadamente nas relações de propriedade e na estruturação social de classes. no sentido amplo da palavra grega logos: discurso. de um livro de filosofia que tenta pensar um aquém e um além do pensamento filosófico tradicional: sua imbricação com as forças míticas na sua origem como no tenebroso presente. segundo o qual a dominação política somente se baseia na dominação econômica. Para tentar responder à questão “por que a humanidade. ao desabrochar da poesia na tradição épica homérica. com uma história da filosofia iluminista. É a incapacidade (segundo os autores) do marxismo contemporâneo e da Homero e a Dialética do Esclarecimento 29 . que “o mito já é esclarecimento” e que “o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”. Voltam. então. está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (Prefácio. A hipótese central. em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano.2. Diferentemente do marxismo ortodoxo mais clássico. com os precursores e os herdeiros do Iluminismo. tanto uma reflexão sobre as origens do pensamento ocidental quanto sobre sua desastrosa incapacidade de resistir à moderna barbárie que encarnam o nazismo e o antissemitismo. 11). isto é. numa construção hipotética ousada. p. em particular dominação da natureza externa e da natureza interna. Trata-se. logos — e dominação. linguagem — ou seja. Adorno e Horkheimer retomam motivos oriundos de Nietzsche e de Freud para enfatizar uma forma de participação arcaica que liga razão. razão. só pode ser realmente elaborada através da afirmação enfática da relação intrínseca entre razão e dominação. Não se contentam. O alcance desse livro é tão amplo porque reúne. linguagem. Adorno e Horkheimer voltam à saída da barbárie. inscrita na própria relação do homem com a natureza. simultaneamente racional e rígido. A Odisseia é reinterpretada pelo duplo prisma de uma história da razão que se desfaz dos encantos e dos feitiços (Zauber. não cultivada e sem cidades. Ulisses e seus companheiros se aventuraram até uma caverna. cujo preço é alto. encantadora e perversa. um modelo que será retomado. como sendo uma gênese violenta e violentadora. Isto é: a história da emancipação do mito e do devir adulto não é somente um devir progressivo e luminoso. Nessa reconstrução da história da razão se inscreve a releitura. segundo os autores. que se torna um ego adulto. como pretendiam. determinado. habitação primitiva de um monstro 30 Lembrar escrever esquecer . muito peculiar. também ressaltar o preço pago pela humanidade para chegar à assim chamada “idade da razão”. segundo o conceito weberiano (Entzauberung).tradição iluminista (da qual. mas também deve ser denunciada. isto é. as luzes do Iluminismo. pelas grandes obras da filosofia e da literatura ocidentais. justamente. portanto. sem identidade assegurada. nas pegadas de Freud. aliás. de uma evolução da criança polimorfa. ilustrar exemplarmente essa gênese violenta. uma relação inscrita no desenvolvimento da techné (da técnica. Como Lukács na sua Teoria do romance. Marx é um digno representante) de explicar e de entender realmente o nazismo e o antissemitismo. Esse processo de desencantamento. à história social coletiva e à história psíquica de cada indivíduo singular. que leva Adorno e Horkheimer a procurar elaborar uma teoria da dominação muito mais ampla e profunda. Escolho aqui dois deles: a releitura do encontro com o ciclope Polifemo e a interpretação do canto das sereias. Vários episódios da Odisseia podem. Chegando numa ilha longínqua. do trabalho) e do logos (da linguagem e da razão). pertence. em alemão) míticos para chegar à dominação e à autonomia — e. Adorno e Horkheimer interrogam essa obra originária da nossa tradição narrativa e descobrem na história do retorno de Ulisses a Ítaca uma alegoria primeira da constituição do sujeito. Relembro rapidamente essas duas aventuras contadas pelo próprio Ulisses na corte dos Feácios. mas sim. da Odisseia. Antissemitismo e nazismo serão compreendidos como o retorno dessa violência recalcada. também de resistir a esses movimentos tão “irracionais”. consigo mesmo e com seus companheiros. Interessa a nossos autores não só descrever essa história. seguindo Nietzsche e Freud. como paradigma primeiro das buscas e das erranças humanas. sempre a seu modo. de separar o nome e o objeto nomeado. reconhecimento altamente lógico-racional. sem que. sem jamais retornar a Ítaca — o deus do mar ouve a prece de seu filho. até então. Poseidon. Como sobremesa. aprisiona os viajantes dentro da caverna. que puna Ulisses e faça-o morrer em alto mar. Poseidon. Ulisses sai por último agarrado à lã do ventre do carneiro preferido de Polifemo. O ciclope grita de dor. Depois reconhece que tudo isso tinha sido previsto por um oráculo e pede ao seu pai. fecha a entrada com uma pedra gigantesca e promete devorá-los na ceia noturna. Ele reconhece. Essa curiosidade lhes será fatal porque o monstro desconhece todas as leis sagradas da hospitalidade. último sinal do mundo culto e civilizado dos homens. de superar a identidade mágica-mimética entre o nome e o nomeado. no fato dele não revelar seu verdadeiro nome. Isto permitirá à Odisseia o desenvolvimento de numerosos episódios. mas se auto-nomeia de “ninguém” e inventa uma história fictícia para explicar sua chegada na ilha. Ulisses e seus companheiros se aproveitam do seu sonho para lhe furar o único olho com um tronco previamente apontado. Todos correm até o navio e fogem da ilha. na qual foram devorados. No raiar da aurora Polifemo afasta a pedra que fechava a entrada da caverna e faz sair seu rebanho de ovelhas. vivos e crus. no seu navio. e se aproveita dessa distância Homero e a Dialética do Esclarecimento 31 . O ciclope. Aqui intervém um dos mais famosos ardis de Ulisses: perguntado sobre seu nome. o ciclope Polifemo. com um único olho no meio da testa.gigantesco. no entanto. fica bêbado e adormece pesadamente. seus irmãos acorrem do lado de fora. isto é. Os outros ciclopes zombam dele e vão embora. alguns companheiros de Ulisses. Um segundo ardil segue à ceia do monstro. A interpretação de Adorno e de Horkheimer centra-se no primeiro ardil de Ulisses. por assim dizer. a arbitrariedade do signo. Excitados pela curiosidade. mas ele só é capaz de dizer que “ninguém” — isto é Ulisses — o feriu. Ulisses não revela sua identidade verdadeira. Distinguem dois momentos essenciais nessa mentira salvadora: primeiro Ulisses é capaz de distinguir. esperam dentro da caverna até o ciclope voltar ao cair da noite. em baixo das quais os companheiros de Ulisses se escondem. filho do deus do mar. Ulisses oferece a Polifemo uma porção generosa do vinho precioso que conseguiu conservar. Enfurecido. Grita ameaças ao ciclope e anuncia seu verdadeiro nome. Polifemo joga um rochedo em direção do navio e quase o esmaga. repete a dose. Ulisses consiga resistir à tentação de revelar sua verdadeira identidade. que nunca tinha bebido um vinho tão bom. se delicia. dá a impressão de ser uma transparente racionalização. Horkheimer.ontológica entre as palavras e as coisas para proteger sua vida. Em grego trata-se de um jogo de palavras.”1 O segundo episódio que escolhi é o das sereias. de sua própria vida. a dialética fatal da constituição do sujeito burguês esclarecido: só consegue estabelecer sua identidade e sua autonomia pela renúncia. 32 Lembrar escrever esquecer . com “ninguém”. pois. Para ouvidos modernos. pp. tão paradoxal quanto necessária. à vivacidade mais autêntica e originária da própria vida. na leitura de Adorno e Horkheimer. para se autodenominar de ninguém. Mas só o consegue. na astúcia do nome. Esse gesto prefiguraria. responderia dizendo: ‘Ninguém’ e assim ajudaria a ocultar o acontecido e a subtrair o culpado à perseguição. porque aproveita a ambiguidade do nome. porém. um estado de consciência a partir do qual ainda não se cristalizou uma identidade estável e representado pelo gigante trapalhão. Ele é bem conhecido. simultaneamente arbitrário e significante. na única palavra que se conserva separam-se o nome — Odysseus (Ulisses) — e a intenção — Ninguém. Na verdade. a renuncia à sua vida mais elementar: “A assimilação da ratio ao seu contrário. com a morte. Isto é. Odysseus e Oudeis ainda têm um som semelhante. Ulisses só consegue salvar sua própria vida porque aceita ser identificado com a não-existência. Dialética do Esclarecimento. Adorno e M. então. com a ausência. indagado por sua tribo quanto ao nome do culpado. o sujeito Ulisses renega a própria identidade que o transforma em sujeito e preserva a vida por uma imitação mimética do amorfo. Razão esclarecida e adulto razoável conservam as marcas dessa violência — e dessa proximidade com a morte. o nome do rei desta ilha era de fato um homófono do nome de Ninguém. O preço da autoconservação do sujeito é. Ela pertence a um folclore muito difundido. Advertido por Circe que nenhum navegante resiste aos encantos do canto das sereias. Ulisses trama um ardil que lhe permite escutar o 1 T. em um dos dialetos em que se transmitiu a história do retorno a Ítaca. e é fácil imaginar que. num segundo momento. W. O cálculo que Ulisses faz de que Polifemo. 70-1. completa-se. os Lotófagos. atar por laços estreitos ao mastro do seu navio. a ameaça da arte é mais forte e eficaz que a ameaça arcaica do mito. segundo a tradição. jaz também a promessa de uma felicidade arrebatadora: poder ultrapassar. Dissolventes e mortíferas de quê? Justamente dessa identidade clara. o primeiro mortal que consegue ouvir o canto das sereias e escapar vivo. a dissolução — que o prendem ao mastro. para poderem continuar reproduzindo sua força de trabalho em vista do dia seguinte: “O que ele escuta não tem consequências para ele. a única coisa que consegue fazer é acenar com a cabeça para Homero e a Dialética do Esclarecimento 33 . ele se autocondena à impotência e ao aprisionamento para poder gozar do canto. na viagem de Ulisses. superar os limites do eu. cada um com os ouvidos tapados por cera. novamente. Prosseguem. mas não ouvem nada. a não escutar nada. Ora. às forças do canto e do encanto. qual é o ardil de Ulisses agora? À dissolução feliz e mortífera que promete o canto das sereias.. aqui. longe dos encantos e dos perigos. delimitada e fixa que constitui o ideal egoico racional. e. então. então. sucumbir à sedução das sereias acarreta. como o ressaltam Adorno e Horkheimer. enfrentar as sereias. resistir a ele. Trata-se. A leitura de Adorno e Horkheimer ressalta. ele primeiro enfrenta as forças do mito. com a ajuda da poderosa ninfa Circe. finalmente. devia salvar a si próprio e aos companheiros das ameaças do monstruoso e do mítico representadas pelo gigante. Ulisses se deixa. segundo a Odisseia. na caverna do ciclope. a morte. Ulisses seria assim. nas paragens das sereias. na arte. o preço a pagar por tal façanha.canto e. limites entendidos também como limitações que prendem e aprisionam. passam próximos da região encantada. devorado por elas — pois. no entanto. para poderem continuar vivos. isto é. nem o encanto do canto. novamente. ele responde pelo estreitamento dos laços — que impedem. para mais tarde. deve conseguir sobreviver a outras forças extremamente perigosas. a renunciar ao gozo artístico. às forças dissolventes e mortíferas da arte. remam vigorosamente. nem as súplicas de Ulisses para ser libertado. Isto é. como vocês observaram. sãos e salvos. de uma questão de vida ou morte. não se jogar no mar para alcançar as belas sereias e ser. Enquanto Ulisses. Nesse sentido. condena simultaneamente seus companheiros. não pode mais se mexer. enquanto seus companheiros. os ciclopes etc. Não é por acaso que. justamente. trabalhadores braçais à ordem do chefe. pois nela. Amarrado. Eles reproduzem a vida do opressor juntamente com a própria vida. neutralizada num mero objeto da contemplação. Assim a fruição artística e o trabalho manual já se separam na despedida do mundo pré-histórico. segundo uma visão iluminista clássica. os companheiros — que nada escutam — só sabem do perigo da canção. Esse preço é alto: não é nada menos que a própria plasticidade da vida. pois eles não pretendem fazer filologia. em particular dos estudiosos de literatura e de filosofia. A epopeia já contém a teoria correta.que o desatem. mas sim. seu lado lúdico. O que 2 Idem. Ulisses assiste a um concerto. em arte. que explicita argumentos essenciais desse livro. como o nazismo e o antissemitismo na nossa história moderna. 34 Lembrar escrever esquecer . a vida se autoconserva renunciando à sua vivacidade mais viva e mais preciosa — daí a infinita tristeza do burguês adulto bem-sucedido. Não me interessa ressaltar os numerosos “erros” filológicos de Adorno e Horkheimer. portanto. e aquele não consegue mais escapar a seu papel social. Os laços com que irrevogavelmente se atou à práxis mantêm ao mesmo tempo as Sereias afastadas da práxis: sua sedução transforma-se. não de sua beleza — e o deixam no mastro para salvar a ele e a si mesmos. 45. e seu brado de libertação cheio de entusiasmo já ecoa como um aplauso. Adorno e Horkheimer insistem. Interpretação bonita. na sua autonomia. Observe-se que o direito desse uso alegórico pode ser questionado. seu lado de êxtase e de gozo. forte. ler alegoricamente a Odisseia para reforçar a construção de uma “Dialética do Esclarecimento”. e ambos se baseiam na inescapável compulsão à dominação social da natureza. justamente. assim como elucida a manifestação de elementos tão irracionais.”2 Na interpretação desses dois episódios da Odisseia. em particular a própria hipótese da dialética entre mito e esclarecimento. p. Mas essas interpretações também atraíram inúmeras críticas da parte dos estudiosos da cultura antiga. O patrimônio cultural está em exata correlação com o trabalho comandado. e poder se manter vivo. enfaticamente no preço que o sujeito racional deve pagar para se constituir. mas é tarde demais. a escutar imóvel como os futuros frequentadores de concertos. 2. metodologicamente falando. la mètis des Grecs. “Ninguém” no texto homérico não é “oudeis” (que combina com Odysseus. 3 Homero e a Dialética do Esclarecimento 35 . Embora se inscrevam na longa tradição hermenêutica que. que eles se propõem. e que seria assinalado por tais “erros” ou por certas falhas no pensamento. o episódio de Polifemo.são sufixos de negação. Adorno e Horkheimer não citam o texto corretamente. Flammarion. essa inteligência ardilosa e concreta que é característica de Ulisses. não no intuito de condenar o livro.3 Trocadilho reforçado pelo fato que. é perdido. Quais são. mas para talvez analisar até que ponto Adorno e Horkheimer se tornam. outro pronome grego possível. mas sim “outis”. eles também. então. à sua coerência interna. Segundo. essas falhas que proponho considerar como indícios de uma outra dinâmica. o que é essencial para a problemática da negação da identidade na leitura de ambos). contribuir à tarefa. Pode ser interessante apontá-los. de reforçar a vertente emancipatória do Esclarecimento em detrimento de sua tendência à dominação. Isso significa que. essas falhas não são gratuitas. diferente da interpretação de Adorno e Horkheimer. ele consiste num jogo entre outis (ninguém) e metis. Com isso quero dizer. 1974. aquele do ciclope.me interessa mais aqui é tentar localizar o que. Enfim. Les ruses de l’intelligence. talvez possamos dizer “recalcado”. mas presente na Odisseia? Primeiro. faz do canto das se- Ver Jean-Pierre Vernant e Marcel Détienne. reféns de uma coerção lógica que é a coerção de sua própria argumentação. essa explicitação crítica pode nos permitir tornar suas análises mais finas pela inclusão de outras dimensões por eles deixadas de lado. 3. no próprio texto da Dialética do Esclarecimento. em grego. isto é. esquecido.e mé. mas sim pertencem à própria estratégia argumentativa do texto. rapidamente. a história das sereias. o seguinte: 1. alguém se diz tis e que ambas partículas ou. de Homero a Kafka. Esses erros. Paris. se há trocadilho em Homero. portanto. pelo contrário. concreta. Também significa a consagração de Ulisses como narrador de suas aventuras. na construção narrativa da Odisseia. Ora. às quais aludo. esses dois “erros” filológicos/hermenêuticos são instigantes porque apontam. Segundo porque. Vou explicitar isto adiante. mas também a afirmação enfática de uma dialética do Esclarecimento. entre a malandragem e o jeitinho brasileiro. que Ulisses se assume como sujeito da narração. por Atena. a vitória de Ulisses sobre as sereias não significa só a vitória do controle racional sobre os encantos mágico-míticos. cheia de recursos. uma inteligência que sabe usar das imagens. Essas dimensões subestimadas. sabe brincar com ela? Uma faculdade que escapa. à escolha severa entre ficção mentirosa (Mythos) e verdade racional (Logos). porque se ele não tivesse passado incólume ao lado das sereias. Adorno e Horkheimer omitem uma parte essencial dessa tradição: a saber que Ulisses não é somente o vencedor. dialética no sentido rigoroso de um reverter mútuo entre Mito e Esclarecimento. Ulisses só se torna um aedo exemplar porque ele vive muitas aventuras e sofre muitas provações. sabe tomar a palavra na Corte do Rei Alcino e cantar/narrar suas provações. aliás se identifica e se dá a reco- 36 Lembrar escrever esquecer . do seu caráter ficcional e. dos simulacros e das mentiras. Ulisses precisa não se entregar à sedução do canto para dele poder falar. às vezes. senão uma inteligência ardilosa. desenham como que uns outros caminhos possíveis situados entre as austeras vias principais da razão ou do mito. ou ainda. enganador. entre Mythos e Logos/Aufklärung. sem dúvida. essa métis tão prezada por Ulisses e. esquecidas ou recalcadas. Tentemos explicar melhor. ambos. De maneira semelhante. mas também o herdeiro das sereias.reias o simbolo do canto e do encanto poéticos. que não podem se encaixar na leitura de Adorno e Horkheimer. para dimensões da narração épica que são essenciais para uma compreensão mais matizada da Odisseia e. tal como um aedo. para poder perpetuar a memória de sua beleza. pois. no meio da trama da Odisseia. isto é. Primeiro. entre razão e desrazão. sabendo sim. mas também porque ele sabe rememorá-las e. sob pena de colocar em risco não só sua interpretação do poema. Vale lembrar que as aventuras de Ulisses são cantadas por ele próprio. igualmente. mas tivesse se deixado seduzir e devorar por elas. simultaneamente. O que é. ninguém teria sobrevivido para recordar a beleza do seu canto. mas que não condena essa especificidade. cabe não só a tarefa de entender melhor esse livro. deixa escapar elementos preciosos não só para uma interpretação mais “correta” da Odisseia. assim como toda longa e complexa trama da Dialética negativa. por meio da narração e da autonarração em particular. mas também e sobretudo para se poder pensar melhor os potenciais da imaginação e da fantasia humanas que não se esgotam na alternativa aporética da dominação mítica versus dominação racional. pois ela corre o risco de se consumir na repetição do mesmo por ela denunciado. A nós também. diz o seu nome (verdadeiro dessa vez!). eles também. vítimas da coerção (Zwang) lógica de sua própria construção dialética. apontadas pela inteligência da métis e pela fruição narrativa. indica certamente uma autorreflexão poética ou poetológica da parte do autor da Odisseia. Seguindo esses desenvolvimentos e algumas sugestões de Albrecht Wellmer. em particular sua redefinição positiva da mimesis na Teoria estética. tal como sustenta toda argumentação da Dialética do Esclarecimento. herdeiros dessa vontade de esclarecimento e de emancipação. fornece a prova que essa estratégia dialética arrasadora e total também deve ser repensada. A reflexão posterior de Adorno. Com isso quero dizer que a ênfase que recai. uma auto-constituição do sujeito que não se confunde necessariamente com a renúncia ao próprio desejo e com a rigidez que resulta dessa renúncia.nhecer. essas dimensões. imediatamente antes. só queria sugerir que Adorno e Horkheimer talvez tenham sido. Homero e a Dialética do Esclarecimento 37 . Ora. e que a fruição narrativa pode se distinguir do gozo extático que dissolve os limites da identidade e faz regredir o sujeito aos prazeres do amorfo e do mágico. quando toma a palavra para cantar. na Odisseia. na primeira pessoa. chame-se ele Homero ou não. coerção que esse livro tão magistralmente denuncia. a continuação de quê? A continuação das aventuras de Ulisses e do Cavalo de Troia cantadas pelo aedo Demódokos. indicam ambas que o esquema rigoroso da contradição dialética. sobre o papel do poeta e sobre as narrações de Ulisses. Também revela que pode haver. no fim do Canto VIII. no início do Canto IX. refletida criticamente. de apontar para outras potencialidades da razão e da fantasia humanas em seu trabalho de resistência contra a dominação e contra a ignorância. mas também de superá-lo dialeticamente (aufheben!). 38 Lembrar escrever esquecer . esse cuidado. uma história da história. nesse presente que tantas vezes se diz pós-moderno e relativista. proponho algumas teses sobre o estatuto da verdade do passado e sobre a importância da memória para nós. em conservação. de um grupo. VERDADE E MEMÓRIA DO PASSADO I Este artigo1 nasceu de uma dupla interrogação: por que hoje falamos tanto em memória. tanto no plano teórico como prático. hoje. por assim dizer. Tentarei explicitá-la por meio das reflexões que seguem. essa “vontade de verdade” (Nietzsche) que nos move? Entendo com isso que a verdade do passado remete mais a uma ética da ação presente que a uma problemática da adequação (pretensamente científica) entre “palavras” e “fatos”. A seguir. Verdade e memória do passado 39 .3. na nossa preocupação ativa com a verdade do passado? Por que fazemos questão de estabelecer a história verdadeira de uma nação. não devemos analisar primeiramente essa preocupação. Ao levantar essas questões já estou afirmando que essa relação entre presente e passado também é profundamente histórica. publicado no número de junho de 1998 da revista Autre Temps. chamamos de verdadeiro. de um artigo escrito em francês. 1 Esta é a versão. de uma personalidade? Para esboçar uma definição daquilo que. ligeiramente modificada. Preciso minha interrogação inicial e pergunto: o que se manifesta. de Paris. Agradeço a Ana Cláudia Fonseca Brefe pela tradução. Pode-se escrever uma história da relação do presente com a memória e o passado. o que já foi iniciado por vários autores. em resgate? E por que dizemos que a tarefa dos historiadores consiste em estabelecer a verdade do passado? Dupla interrogação sobre a relação que nosso presente entretém com o passado. neste contexto. em certos casos. escritas em 1940. Tradução de J. das classificações de Lineu aos Métodos de Francis Ponge. o suicídio. ciência esta que pretende fornecer uma descrição. portanto. pretensamente universal. delineia-se uma história. Benjamin denuncia. Mas o que está em jogo não é apenas 2 Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte”. 148. na fronteira bloqueada dos Pirineus. Benjamin enuncia uma variante da famosa frase de Marx sobre a ideologia dominante como ideologia da classe dominante. do passado. vol. Pierre Vidal-Naquet. como diz Pierre Vidal-Naquet. nomeando-os. 1974. M. Sob a aparência da exatidão científica (que é preciso examinar com circunspecção). Suhrkamp. a mais exata e exaustiva possível. na falta de algo melhor. uma narração que obedece a interesses precisos. 1987. a cumplicidade entre o modelo dito objetivo do historicismo (ele cita Leopold von Ranke). De uma certa maneira. pejorativamente. 3 40 Lembrar escrever esquecer . Walter Benjamin declara: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’. pp. nós não o descrevemos. discernindo-os. como se pode tentar descrever um objeto físico. p. inseparavelmente. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo”.II Em suas célebres teses “Sobre o conceito da história”. que se vangloria de ser a história verdadeira e. qualifica de historicista e burguesa. 695 e 701. Essa recusa de Benjamin fundamenta-se em razões de ordem epistemológica e.3 Nós articulamos o passado. Paris. La Découverte. nós diremos hoje o paradigma positivista. Frankfurt/Main. in Gesammelte Werke. mesmo com todas as dificuldades que essa tentativa levanta. G. diz Benjamin. ético-política. e um certo discurso nivelador. Les assassins de la mémoire. também e antes de tudo.2 Essa afirmação é uma recusa clara ao ideal da ciência histórica que Benjamin. já que estes últimos adquirem seu status de “fatos” apenas por meio de um discurso que os constitui enquanto tais. 1-2. Ele denuncia primeiro a impossibilidade epistemológica de tal correspondência entre discurso científico e “fatos” históricos. distinguindo-os nesse magma bruto e não linguístico “que. chamamos de real”. a única possível. a única certa e. Neste texto candente que ele escreveu antes de deixar a França ocupada e de escolher. O historiador que toma consciência do caráter literário.polêmico. Seuil. Metahistory: The Historical Imagination in XIXth Century Europe (Baltimore/Londres. Essas duas questões estão intimamente ligadas. e Temps et récit (Paris. o discurso científico da ficção. mas adquirem um estatuto explícito de problema científico. não é surpreendente que os debates mais estimulantes da história contemporânea sejam também discussões historiográficas. de seus pares. somente depois da Segunda Guerra Mundial. já presentes no início da história. grosso modo. 1983-85. quanto dos encantos da narração e do mythodes (o fabuloso. “é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio. em Heródoto e Tucídides. Verdade e memória do passado 41 . narrativo de sua empresa. em particular dos liames que a construção da memória histórica mantém com o esquecimento e a denegação. não corre o risco de apagar definitivamente a estreita fronteira que separa a história das histórias. de sua nação). até mesmo ficcional. o maravilhoso. também na história. “A história”. The Johns Hopkins University Press. De resto. ou ainda a verdade da mentira?4 E aquele que insiste sobre o caráter necessariamente retrospectivo e 4 Ver sobre este tema as obras já clássicas de Hayden White e Paul Ricoeur: respectivamente. 1978). e da memória do historiador (de seu grupo de origem. pouco importa que os historiadores do historicismo sejam ou não de boa-fé quando preconizam a necessidade de estabelecer a “história universal”. o presente do historiador e a relação específica que esse presente mantém com um tal momento do passado. Essas discussões dizem respeito a duas questões essenciais. mas aquele preenchido pelo tempo-agora [Jetztzeit]”. na expressão de Marcel Détienne) caro a Heródoto. a experiência do horror e da exterminação metódica parece ter provocado um abalo sem precedentes da confiança na ciência e na razão. III No rastro dessas reflexões. instável e subjetiva. acrescenta Benjamin. O que é essencial é que o paradigma positivista elimina a historicidade mesma do discurso histórico: a saber. Essas duas questões são aquelas da escrita da história. em particular seu caráter literário. até mesmo retórico.). o “mytheux”. 3 vols. como já o sabia Tucídides que desconfiava tanto da memória. . e mesmo para elas discutível).. independente dos diferentes rastros que os fatos deixam nas memórias subjetivas e da diversidade de interpretações sempre possíveis a partir dos documentos existentes? IV Essas questões adquirem uma importância dolorosa (e não apenas epistemológica) desde a década de 1980. a respeito da linguagem poética (nós iremos ver que a história está mais próxima da poiesis. Aux frontières de la philosophie. procedimentos esses cuja impossibilidade prática no caso da historiografia da Shoah fornece.] dizer tudo”. ética. 1994. política e cientificamente falando. já que todas as versões se equivalem se não há mais ancoragem possível em uma certeza objetiva. 42 Lembrar escrever esquecer . já citado. com o intenso debate (ainda aberto) sobre o tema do “revisionismo” ou. que da descrição positiva). cit. como se prefere chamar hoje em dia. o historiador vive no relativo” e se “ele não pode [. a possibilidade de uma “referência não descritiva ao mundo” e sugere que. Paul Ricoeur. p. é “que nós ratificamos de maneira não crítica um certo conceito de verdade.. “por definição. 131 e 147.subjetivo da memória em relação ao objeto de lembrança. pp.5 sua luta não pode ter por fim o estabelecimento de uma verdade indiscutível e exaustiva. permanece uma ajuda preciosa para tentar se orientar de maneira clara. Paris.. op. ele também não corre o risco de cair num relativismo apático. eu gostaria de assinalar uma conclusão que podemos tirar dessas páginas: se.6 Preconizar um conceito de referência — de verdade 5 6 Pierre Vidal-Naquet. seus “argumentos” aos revisionistas. em seu sentido amplo. O pequeno livro de Vidal-Naquet. Lectures 3. Mas o conceito de verdade não se esgota nos procedimentos de adequação e verificação. se temos dificuldade para não sermos vítimas de uma definição empobrecedora da verdade. Seuil. 288. Seria lutar em vão porque a verdade histórica não é da ordem da verificação factual (unicamente possível para as ciências experimentais. Sem entrar nos detalhes dessa discussão. justamente. Sigo aqui as reflexões de Paul Ricoeur que defende. definição pela adequação a um real de objetos e submetido ao critério da verificação e da falsificação empíricos”. do “negacionismo”.. Esprit. que a história como disciplina remete sempre às dimensões humanas da ação e da linguagem e. o positivismo dogmático. Ricoeur propõe. de fato. mas significa levar a sério e tentar pensar até o limite essa preciosa ambiguidade do próprio conceito de história. Geschichte). compreender e explicar). em particular a famosa distinção entre verstehen e erklären. simultaneamente. narrativa (as histórias inumeráveis que a compõem. Assinalar a responsabilidade ética da história e do historiador não é. o agir e o falar humanos: em particular a criatividade narrativa e a inventividade prática. indissociavelmente. que a história é sempre. apático. 74-5. Verdade e memória do passado 43 . que ameaça sua “pureza” objetiva. Aí também esforça-se em vão para preencher um paradigma de cientificidade dito coerente. nessas condições. ficcional e retórica. Erzählung. mais ampla. O pensamento de Ricoeur também nos lembra.— que dê conta do “enraizamento e da pertença (appartenance) que precedem a relação de um sujeito a objetos” é uma atitude radicalmente diferente do relativismo complacente. da narração. 1995. então. Réflexion faite. em alemão) e processo real (sequência das ações humanas em particular. privilégio de intelectuais protestantes ou judeus (!). Como manter. nada mais é que a imagem invertida e sem brilho de seu contrário. a história o fazendo em favor de uma reconstrução do passado sobre a base dos rastros deixados por ele”. justamente. em que se ligam. de refiguração e de desdobrar essa noção: “a ficção remodelando a experiência do leitor pelos únicos meios de sua irrealidade. que. sobretudo. pp. portanto. então.7 7 Paul Ricoeur. Paris. quando se trata. de reivindicar uma outra dimensão da linguagem e da verdade (o que já assinalava a hermenêutica nascente na Alemanha. substituir a ideia de referência por aquela. de deslocar a questão. uma certa especificidade do discurso histórico e não soçobrá-lo no oceano da ficção? Essa questão que guia todo o esforço de Ricoeur no primeiro volume de Temps et récit não pode ser resolvida por uma espécie de “limpeza preventiva” da linguagem histórica contra a dimensão literária. dito pós-moderno. uma definição certamente polêmica. Por que a reflexão sobre a memória utiliza tão frequentemente a imagem — o conceito — de rastro? Porque a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência. Sua fragilidade essencial e intrínseca contraria assim o desejo de plenitude. poderíamos dizer deste modo. através do conceito de rastro. presença do presente que se lembra do passado desaparecido. o rastro de uma ausência dupla: da palavra pronunciada (do fonema) e da presença do “objeto real” que ele significa. Riqueza da memória. da memória. lutar. O que me interessa ressaltar aqui é o liame entre rastro e memória. constrangedora da tarefa do historiador: é necessário lutar contra o esquecimento e a denegação. de Aristóteles a Freud. E. Se as “Palavras” só remetem às “coisas” na medida em que assinalam igualmente sua ausência. Interessa-me ressaltar que. são. O que ganhamos neste percurso? Paradoxalmente. em boa (?) lógica cartesiana. mas sem cair em uma definição dogmática de verdade. essas cópias de cópias como diz Platão.V Esse conceito de rastro nos conduz à problemática. aquelas da memória e da escrita. a consciência da fragilidade essencial do rastro. Podemos também observar que o conceito de rastro rege igualmente todo o campo metafórico e semântico da escrita. certamente. em suma. mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Seja sobre tabletes de cera ou sobre uma “lousa mágica” — essas metáforas privilegiadas da alma —. da fragilidade essencial da memória e da fragilidade essencial da escrita. obscuras — que procuram manter juntas a presença do ausente e a ausência da presença. de Platão a Derrida. ainda. brevemente evocada. na tradição filosófica e psicológica. Abrevio terrivelmente aqui as reflexões muito mais densas e precisas que constituem o universo de uma boa parte da filosofia contemporânea. de presença e de substancialidade que caracteriza a metafísica clássica. 44 Lembrar escrever esquecer . mas também fragilidade da memória e do rastro. É por isto que esse conceito é tão importante para um Derrida. passando por Santo Agostinho e Proust. foi sempre uma dessas noções preciosas e complexas — para não dizer. tanto mais os signos escritos. voltamos às duas questões iniciais. o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente. por exemplo. ao mesmo tempo. Notemos primeiro que o rastro. contra a mentira. paradoxal e. Livre I. 1989. escrita e morte. fundamentalmente. l’amour.8 ele toma para si a tarefa sagrada do poeta épico. Como a estela funerária. O fato da palavra grega sèma significar. em sua intenção e em seus efeitos. Alguns dos mais belos ensaios de Jean-Pierre Vernant9 estudam esse paralelismo fulgurante que sustém o canto poético da Ilíada: a palavra de rememoração e de louvor do poeta corresponde. a ameaça que as investidas atuais do esquecimento e da denegação fazem pesar sobre a escrita da história. no início das Historiai. seja pelos bárbaros.VI Quando. quão inseparáveis são memória. E que as inscrições funerárias estejam entre os primeiros rastros de signos escritos confirma-nos. mas sim um modo de nos obrigar a pensar melhor. Paris. transformando-a ao mesmo tempo pela busca das causas verdadeiras: lutar contra o esquecimento. L’enquête. “Préface”. justamente por se fundar na luta contra o esquecimento. 9 Jean-Pierre Vernant. por contraste. mantendo a lembrança cintilante da glória (kleos) dos heróis. la mort. tradução de André Barguet. Verdade e memória do passado 45 . Túmulo e palavra se revezam nesse trabalho de memória que. às cerimônias de luto e de enterro. Heródoto declarou que ele apresentaria “os resultados de sua pesquisa. L’individu. isto é. Paris. a fim de que o tempo não suprimisse os trabalhos dos homens e que as grandes proezas realizadas seja pelos gregos. igualmente. erguida em memória do morto. ao mesmo tempo. lutar contra a morte e a ausência pela palavra viva e rememorativa. Aqui também o exemplo do revisionismo e da Shoah é instruti- 8 Heródoto. Gallimard. Gallimard. o canto poético luta igualmente para manter viva a memória dos heróis. Pléiade. VII Esse “retorno aos gregos” no fim deste artigo não significa um retorno seguro às fontes ou às origens. não caíssem em esquecimento”. 1964. túmulo e signo é um indício evidente de que todo o trabalho de pesquisa simbólica e de criação de significação é também um trabalho de luto. é também o reconhecimento implícito da força deste último: o reconhecimento do poder da morte. “os nazistas explodiram as câmaras de gás e os fornos crematórios de Auschwitz”. enfim. começar a contar o horror já passado e ainda vivo e notar. As teses revisionistas são. por assim dizer. 10 46 Lembrar escrever esquecer . à sua própria casa. É isto um homem?. ultrapassar a si mesma anulando os próprios rastros da existência. No último livro que escreveu antes de sua morte. Eles deveriam se tornar duplamente inenarráveis: inenarráveis porque nada que pudesse lembrar sua existência subsistiria e porque.11 Primo Levi. portanto. Essa estratégia consiste em abolir as provas de aniquilação dos judeus (e de todos os prisioneiros dos campos).10 e 39 anos depois de sua primeira obra. a credibilidade dos sobreviventes seria nula. os prisioneiros dos campos foram obrigados a desenterrar os milhares de cadáveres de seus camaradas (agora já em decomposição) que haviam sido executados e jogados em valas comuns. e no início do último. desde as primeiras linhas de Os afogados e os sobreviventes. ele não poderia “ser também o mestre da verdade” futura. 1989. com efeito. quando se torna claro que o Reich alemão não seria o vencedor e que. Primo Levi insiste sobre essa vontade de anulação. sentar-se com os seus. isto é. a consequência lógica. para queimá-los em gigantescas fogueiras: não poderia restar nenhum rastro desses mortos. que os entes queridos se levantam e se vão porque eles não querem nem escutar e nem crer nessa narrativa —. É isto um homem?. Cito as primeiras páginas deste livro. Depois da derrota de Estalingrado. Os afogados e os sobreviventes. previsível e prevista de uma estratégia absolutamente explícita e consciente de parte dos altos dignitários nazistas. esse pesadelo torna-se cruelmente real logo após a saída dos campos e quarenta anos mais tarde. assim. nem seus ossos. 11 Este sonho é evocado inúmeras vezes por Primo Levi. Quarenta anos depois de Auschwitz. aquela da palavra. então. A “solução final” deveria. Essa ausência radical de sepultura é o avesso concreto de uma outra ausência. nem seus nomes. Os afogados e os sobreviventes: quarenta anos depois de Auschwitz. sobre a vontade nazista de destruir a possibilidade mesma de uma história dos campos. Primo Levi insiste. notadamente no centro de seu primeiro livro. Paz e Terra.vo. O pesadelo comum que assombra as noites dos prisioneiros no campo — retornar. com desespero. São Paulo. Os arquivos dos campos de concentração foram queimados nos últimos dias da guerra. Querendo aniquilar um povo inteiro. Quem ainda fala dos extermínios dos armênios.12 O esquecimento dos mortos e a denegação do assassínio permitem assim o assassinato tranquilo. Paris. p. a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que. sua denegação constante e ativa (até hoje esse genocídio não foi reconhecido pela comunidade internacional. cit. p. ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados.. perpetrado em 1915 pelo governo turco e. infelizmente. sobretudo. mulheres e crianças. a “solução final” pretendia também destruir toda uma face da história e da memória. 118. Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e Heródoto. de outros seres humanos cuja lembrança deveria igualmente se apagar. Sua “narrativa afirma que o inesquecível existe”13 mesmo se nós não podemos descrevê-lo. tenha fornecido a Hitler um argumento decisivo para sua política de exterminação: “Eu dei ordem às unidades especiais da SS de se apoderarem do fronte polonês e de matarem sem piedade homens. 12 Citado por Janine Altounian na sua bela coletânea Ouvrez-moi seulement les chemins d’Arménie. Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que. Essa capacidade de destruição da memória cobre uma dimensão política e ética a respeito da qual Hitler estava perfeitamente consciente. op. Tarefa igualmente ética e. os vivos. declara ele em 21 de agosto de 1939. Como diz Kirkor Beledian (tradutor do jornal de deportação de Vahram Altounian) em Altounian. especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. É absolutamente notável que o genocídio armênio. possa ser verdadeiro. manter viva a memória dos sem-nome. hoje?”. que poupa os interesses dos dirigentes turcos). o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial. Assim. hoje. nós. a nos lembrarmos dos mortos para melhor viver hoje. 1990. mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável. 1. num sentido amplo. se reproduz constantemente). para não esquecer os grandes feitos deles. Trabalho de luto que nos deve ajudar. 13 Verdade e memória do passado 47 . também. Les Belles Lettres. 48 Lembrar escrever esquecer . nas quais a memória traumática. simultaneamente impossíveis e necessárias. Jean-François Lyotard. de 1933 e “O narrador”. história. MEMÓRIA. Especialmente dois ensaios de Walter Benjamin. por sua biografia. Ver. às vezes literalmente semelhantes. dois ensaios quase contemporâneos. TESTEMUNHO Gostaria de pensar as questões que nos ocupam durante este colóquio — questões políticas e éticas. a gravidade da questão colocada. sejam a figura de nosso próprio exílio. Uma destas questões essenciais e sem resposta poderia ser definida. Ela se coloca com força em toda literatura moderna e contemporânea. por todas nossas cidades e que.4. Paris. Por que partir destes dois textos? Porque eles iniciam com descrições semelhantes. em particular (mas não só) no contexto da Shoah. Minuit. tenta se dizer — narrativas e literatura de testemunho que se tornaram um gênero tristemente recorrente do século XX. um representante desses exilados-refugiados sem papéis nem teto que encontramos hoje. 1 Memória. 1979. La condition postmoderne. HISTÓRIA.1 Esta discussão também sustenta as narrativas. como o fim da narração tradicional. escrito entre 1928 e 1935. precisamente. Benjamin não é somente. O pensamento de Benjamin se ateve a questões que ele não resolveu e que ainda são nossas. talvez. Com efeito. apesar de tudo. para chegar a conclusões que podem parecer opostas. questões que sua irresolução. contraditórias até. É a presença desta oposição que nos assinala. sobre o tema. Talvez nossa tarefa consista em colocá-las de forma diferente. em termos benjaminianos. nas discussões históricas e historiográficas e na reflexão filosófica atual — chamada ou não de “pós-moderna” — sobre “o fim das grandes narrativas”. torna urgentes. justamente. testemunho 49 . questões dolorosas — a partir de alguns conceitos emprestados à filosofia de Walter Benjamin. tratam deste tema: “Experiência e pobreza”. que os filhos respondem a uma palavra transmitida nesse limiar. maior que a simples existência individual do pai. sabemos que a Primeira Guerra Mundial foi somente 50 Lembrar escrever esquecer . culminaram com as atrocidades da Grande Guerra — hoje. aliás. Benjamin não nomeia essa dimensão e tal omissão também é o signo de um grande pudor. interpretar esta fábula como a ilustração da nobreza do trabalho e do esforço. As razões dessa dupla desaparição provêm de fatores históricos que. naturalmente. A perda da experiência acarreta um outro desaparecimento. confia a seus filhos que um tesouro está escondido no solo do vinhedo. segundo Benjamin. e reconhecem. mas sim uma preciosa experiência. em ambos os ensaios. suas vindimas se tornam as mais abundantes da região. o das formas tradicionais de narrativa. Ele insiste. algo maior que as pequenas experiências individuais particulares (Erlebnisse). aliás. mas nelas se diz. no sentido concreto de transmissão e de transmissibilidade. isto é. que é transmitido por ele. entretanto. que transcende a vida e a morte particulares. Uma dimensão que simultaneamente transcende e “porta” a simples existência individual de cada um de nós. na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho. algo. Em compensação. tradição retomada e transformada. no seu leito de morte. O que importa é que o pai fala do seu leito de morte e é ouvido. mas não encontram nada. Não é o conteúdo da mensagem paterna que importa. de narração. que algo passa de geração para geração. Benjamin. da experiência no sentido forte e substancial do termo. Podemos chamá-la “o simbólico” ou mesmo “o sagrado”. o pai promete um tesouro inexistente e prega uma peça a seus filhos para convencê-los. pela lenda muito antiga (provavelmente uma fábula de Esopo) do velho vinhateiro que. um pobre vinhateiro. muito mais na perda da experiência que a fábula de Esopo encenava. quando chega o outono. e que sua riqueza lhes advém dessa experiência. em seus atos. A importância desta tradição. não a usa para fins moralizantes. É a encenação da história que lhe interessa. algo que concerne aos descendentes. é ressaltada. que têm sua fonte nessa comunidade e nessa transmissibilidade. porém. que repousa sobre a possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana. Os filhos então reconhecem que o pai não lhes legou nenhum tesouro. Pode-se. portanto. cavam.Ambos os ensaios partem daquilo que Benjamin chama de perda ou de declínio da experiência (Verfall der Erfahrung). em cada geração. que a filosofia clássica desenvolveu. Os filhos cavam. que impede a privacidade e se opõe aos interiores aconchegantes. testemunho 51 . acolhedor e. Contra uma estética da interioridade. contrariando a regra de ferro que governa a vida moderna.2 Deve-se ressaltar que o 2 “Apague as pegadas”. Benjamin insiste justamente nas mutações que a pobreza de experiência acarreta para as artes contemporâneas. Não se trata mais de ajudar. sobretudo. fere. elemento frio. Os sobreviventes que voltaram das trincheiras. É nesse contexto que Benjamin cita o famoso poema de Brecht. por definição. a saber. da harmonia. não deixar rastros. porque este. voltaram mudos. do material moderno — o vidro. o trauma. “Verwisch die Spuren” (Apague os rastros). sobre a experiência do choque (conceito-chave das análises benjaminianas da lírica de Baudelaire). a marca de seus dedos. Em “Experiência e pobreza”. história. repletos de tons pastéis e de chiaroscuro. para a linguagem cotidiana e para a narração tradicional. exato oposto do vidro. reconfortar ou consolar os homens pela edificação de uma beleza ilusória. portanto. São seus famosos exemplos. porque é nele que o feliz proprietário deixa. em particular à linguagem. apesar da identidade do ponto de partida — a constatação da perda da experiência e da narração tradicional. Benjamin defende as provocações e a sobriedade áspera das vanguardas. traduz Paulo César de Souza em Poemas: 1913- Memória. com a maior facilidade. Nesse diagnóstico. profundamente impregnado de privacidade. transparente. sobre a impossibilidade.o começo desse processo. da suavidade e da graça. diz Freud na mesma época. sua marca. Por quê? Porque aquilo que vivenciaram não podia mais ser assimilado por palavras. É precisamente esta impossibilidade de uma resposta simbólica clássica que pode nos ajudar a compreender por que Benjamin desenvolve consequências tão diferentes nos dois textos em questão. cortante. nos quais o indivíduo burguês procura um refúgio contra o anonimato cruel da grande cidade (e da grande indústria). Emblema desse ideal ilusório: o veludo. corta ao sujeito o acesso ao simbólico. emprestados à arquitetura. observa Benjamin. separa. Benjamin reúne reflexões oriundas de duas proveniências: uma reflexão sobre o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica (em particular sua aceleração a serviço da organização capitalista da sociedade) e uma reflexão convergente sobre a memória traumática. o veludo macio. de assimilar o choque. 52 Lembrar escrever esquecer .)” 1956 (Bertolt Brecht. Quem não escreveu sua assinatura. Cito as duas últimas estrofes do poema: “O que você disser. 2000. de maneira simultaneamente sóbria e profética. não diga duas vezes. isso significa também que. por conseguinte. Editora 34. quando pensar em morrer Para que não haja sepultura revelando onde jaz Com uma clara inscrição a lhe denunciar E o ano de sua morte a lhe entregar Mais uma vez: Apague os rastros! (Assim me foi ensinado. São Paulo.poema é citado de maneira positiva contra as ilusões consoladoras e harmonizantes das práticas artísticas “burguesas”. Em razão do contexto da minha exposição. as práticas do Estado totalitário moderno. que a transmissão da tradição se quebra e que. infelizmente. mas esta é uma outra questão). quem nada falou Como poderão apanhá-lo? Apague os rastros! Cuide. prefiro traduzir “Apague os rastros”. quem não deixou [retrato Quem não estava presente. os bons sentimentos nunca bastam para reparar o passado. 57-8). Práticas que não levam em conta a ruptura essencial que a arte contemporânea não pode eludir: que a experiência — Erfahrung — não é mais possível. os ensaios de recomposição da harmonia perdida são logros individualistas e privados (resta saber se essa harmonia perdida realmente existiu. na esteira das análises benjaminianas. Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-o. como Benjamin e Brecht as chamam. Esse ponto me parece ter uma importância decisiva para refletirmos juntos. a citação do poema de Brecht também possui um valor crítico de denúncia porque evoca. pp. Claro. sobre as dificuldades objetivas que se opõem ao restabelecimento da tradição e da narração em nossas sociedades “pós-modernas” e pós-totalitárias. Kafka encarna. em particular. o mundo repousa sobre os sete Justos. movido pela pobreza. talvez eles mesmos o ignorem. é bastante claro a esse respeito. certamente. 4 Alusão ao poema “Le vin des chiffonniers”. Baudelaire é o primeiro poeta verdadeiramente moderno. sem dúvida. também em seu leito de morte. desse signo ou desse rastro que os homens inscrevem em memória dos mortos — esses mortos que o poeta e o historiador.. mas também esboça como que a ideia de uma outra narração. das Flores do Mal. não podem “deixar cair no esquecimento”. O que não significa reconstruir uma grande narrativa épica. a figura secularizada do Justo. adquire um peso essencial quando a lemos como contraponto cruel à fábula do vinhateiro no seu leito de morte. Podemos reter da figura do narrador um aspecto muito mais humilde. bem menos triunfante. heroica da continuidade histórica. testemunho 53 . aquele que trata dos reais habitantes das grandes cidades. uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas. 3 Memória. Muito pelo contrário. constata igualmente o fim da narração tradicional. mas também Para Benjamin. história. os restos. já assinalada pela citação de Heródoto: não deixar o passado cair no esquecimento. de sepultura. mas não sabemos quem são eles. essa figura da mística judaica cuja característica mais marcante é o anonimato. aliás muito mais conhecido. as famosas teses “Sobre o conceito de História”. do Lumpensammler ou do chiffonnier. É dessa tarefa que trata o segundo ensaio de Benjamin.4 do catador de sucata e de lixo. diz Benjamin.A última estrofe. para Benjamin.. que um imperador. portanto. transmite a um augusto mensageiro que nunca chegará até nós. Podemos nos lembrar da narrativa da “Mensagem imperial”. os detritos. O narrador também seria a figura do trapeiro. uma das possibilidades contemporâneas desse novo narrador. apesar de sua destreza e mesmo que não paremos de esperar por ele. uma narração nas ruínas da narrativa. esta personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos. Pode-se observar novamente que ambos os textos são contemporâneos e que devemos. Ele é. nas palavras de Heródoto. em suas semelhanças e em suas diferenças. “O narrador” formula uma outra exigência. lê-los em confronto.3 Deve-se ressaltar que tal proposição nasce de uma injunção ética e política. pois. o último texto de Benjamin. E também quando lembramos que o primeiro sentido da palavra grega “sèma” é justamente o de túmulo. “O narrador”. pior ainda. algo com que a história oficial não sabe o que fazer. justamente não recorda. algo que parece não ter nem importância nem sentido. que vários textos de Benjamin ressaltam com força. Paris. de recolecção de todas as almas no Paraíso). então. penso que um dos conceitos importantes que poderia nos ajudar a pensá-la é o conceito de cesura (comum a Hölderlin e a Benjamin) ou o de interrupção (comum a Brecht e a Benjamin). tal história não pode ser o desenrolar tranquilo e linear de uma narrativa contínua. numa fidelidade ao passado e aos mortos. aquilo que não tem nome. Em primeiro lugar. 1986. “Et cetera? De l’historien comme chiffonnier”. sobre a possibilidade da transmissão e do lembrar. mesmo — principalmente — quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação. na transmissão do inenarrável. numa espécie de celebração vazia. então o discurso sobre o dever de memória corre o risco de recair na ineficácia dos bons sentimentos ou. dificuldades que evocamos no início desta exposição. o sofrimento. Cerf. deve levar em conta as grandes dificuldades que pesam sobre a possibilidade da narração. aquilo que não deixa nenhum rastro. Sem querer entrar aqui em detalhes. A exigência de memória. aqueles que não têm nome. O que são esses elementos de sobra do discurso histórico? A resposta de Benjamin é dupla. 5 54 Lembrar escrever esquecer . não conheceu graças a seu suicídio). rapida- Ver o artigo de Irving Wohlfarth.). na crueldade dos campos de concentração (que Benjamin. o anônimo. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição. sobre a possibilidade da experiência comum. in Heinz Wismann (org. Se passarmos em silêncio sobre elas em proveito de uma boa vontade piegas. aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste — aqueles que desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus nomes. aliás.pelo desejo de não deixar nada se perder (Benjamin introduz aqui o conceito teológico de apokatastasis. Evidentemente. Walter Benjamin et Paris. Essa tarefa paradoxal consiste. oficial ou dominante. Esse narrador sucateiro (o historiador também é um Lumpensammler)5 não tem por alvo recolher os grandes feitos. o sofrimento indizível que a Segunda Guerra Mundial levaria ao auge. enfim. Em segundo lugar. Paris. ao esquecido e ao recalcado. assim traduzindo aquilo que Benjamin chama de Eingedenken. que os ouvintes se levantam e vão embora. Opusemos-lhe o poema de Brecht. constantemente. Sonha com a volta para casa. para dizer. e um outro conceito. solavancos. janeiro de 1999. que desliza perigosamente para o religioso ou. uma distinção entre a atividade de comemoração. testemunho 55 . Rio de Janeiro. A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente. com hesitações. em oposição à Erinnerung de Hegel e às várias formas de apologia. Essa ligação com o presente me leva a contar uma terceira história de transmissão e de morte. o de rememoração. está sendo feita. 60. com a felicidade intensa de contar aos próximos o horror já passado e ainda vivo e. na cena sempre repetida da narração que os outros não escutam?”. 7 Primo Levi. descobre ele. É isto um homem?. Na narrativa do sonho de Primo Levi. Rocco. indiferentes. ela nunca consegue realmente dizer a experiência inenarrável do horror. aos buracos. “Travail de mémoire 1914-1998”. nº 54. em nossos sonhos. Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que. Começamos pela fábula do vinhateiro que falava aos filhos do leito de morte. visa à transformação do presente. então. Memória. sonho sonhado. 6 Remeto aqui ao artigo de Gérard Namer que tem o sugestivo título de “La confiscation sociopolitique du besoin de commémorer”. Vou tentar justificar esta escolha.6 Proporia. história. Primo Levi pergunta: “Por que o sofrimento de cada dia se traduz. “Apague os rastros”. mas também de agir sobre o presente. aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. revista Autrement.7 Essa narrativa foi feita. em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente. mas. Já se teceram muitos comentários a respeito dessa irrepresentabilidade.mente confiscada pela história oficial. em vez de repetir aquilo de que se lembra. por quase todos os seus companheiros a cada noite. gostaria de me ater a um outro personagem. àquele que se levanta e vai embora. abre-se aos brancos. não sendo um fim em si. 1988. então. na indiferença. incompletude. A última figura de narração que gostaria de citar é a do sonho de Primo Levi no campo de Auschwitz. percebe com desepero que ninguém o escuta. A fidelidade ao passado. com paradas e bandeiras. como ressaltam todos os sobreviventes. pois não se trata somente de não se esquecer do passado. de repente. p. para as celebrações de Estado. inclusive o Brasil (Fragmentos: memórias de uma infância. mas. muito mais em restabelecer o espaço simbólico onde se possa articular aquele 8 9 Tzvetan Todorov. sendo ignorado e denegado pela comunidade política internacional. aliás. Companhia das Letras. Alusão ao livro Bruchstücke. na universidade). já tinha diagnosticado como um dos diversos sintomas do ressentimento (isto é. muitas vezes patológica. podem nos ajudar nesse contexto. publicado em 1995 pela Suhrkamp e traduzido para vários países. Paris.8 para retomar o título provocativo de Todorov. quando os últimos sobreviventes de Auschwitz. até hoje. talvez. na esteira dessa fixação. como tentar pensar um lugar fora desse círculo de fixação e de identificação? Não temos que pedir desculpas quando. Só citarei dois deles: uma fixação doentia ao passado — o que Nietzsche. filho ilegítimo de uma empregada e adotado. ademais. Saudado como um dos mais pungentes testemunhos sobre a Shoah. também a incapacidade de bem viver no presente). assistimos a um desdobramento de empresas de memória. foi denunciado posteriormente como sendo uma autobiografia fictícia — escrita pelo falsário ou esquizofrênico (?) Bruno Doessekker. São Paulo. Hélène Piralian e Janine Altounian. simbolicamente falando. não somos os herdeiros diretos de um massacre. 56 Lembrar escrever esquecer . pertencer hoje aos mortos. quase uma impossibilidade. Estes “abusos da memória”. e se. Agora. por sorte. atormenta os familiares dos “desaparecidos” na América Latina. uns depois dos outros. por indivíduos. Arléa. a um dos papéis da díade mortífera do algoz e da vítima: como se a busca de si tivesse que ser a repetição do (neo)nazi ou. por exemplo. a identificação. se podemos fazer do exercício da palavra um dos campos de nossa atividade (como.9 As reflexões de duas descendentes de sobreviventes do genocídio armênio. talvez. ainda criança. morrem de morte dita natural. tornando seu luto tão difícil — uma dificuldade análoga. Les abus de la mémoire.Hoje. Esse genocídio é tão mais terrível. 1998). não somos privados da palavra. 1939-1948. e. É como se houvesse herdeiros de mortos que. comportam vários perigos. no fim do século XIX. portanto. Bruno Doessekker). que não são necessariamente nem os herdeiros diretos de um massacre. então nossa tarefa consistiria. ao contrário. por um casal de médicos de Zurique. a construção de uma infância no campo de Madjanek (o famoso “caso” de Binjamin Wilkomirski. nunca existiram. que não pertenceram aos vivos e não podem. 1995. na medida em que continua. suíço de uns cinquenta anos. ainda mais dramaticamente. ). 10 Memória. dá novamente um sentido humano ao mundo”. mas somente assim poderia essa história ser retomada e transmitida em palavras diferentes. Ver também. a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão. a testemunha direta. “Maintenir les morts hors du néant”. história. Testemunha também seria aquele que não vai embora. mas porque somente a transmissão simbólica. os alcance. Paris. Nesse sentido. a inventar o presente. vão embora. penser les génocides. Albin Michel. Ver a este respeito. da mesma autora. 541. revista Autrement. 1999. do assassino e do assassinado. o histor de Heródoto. aquilo que. aquele que não faz parte do círculo infernal do torturador e do torturado. Hélène Piralian. não querem saber. em vez disso e para desespero do sonhador. somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente. deveria ser a função dos ouvintes. mas a ousar esboçar uma outra história. “inscrevendo um possível alhures fora do par mortífero algoz-vítima. não querem permitir que essa história. ofegante e sempre ameaçada por sua própria impossibilidade.que Hélène Piralian e Janine Altounian chamam de “terceiro” — isto é. in Catherine Coquio (org. nº 54. ameace também sua linguagem ainda tranquila. “Les héritiers d’un génocide”. que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante. assumida apesar e por causa do sofrimento indizível. cit. uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária. cit. Parler des camps. “Écriture(s) du génocidaire”. in Parler des camps. que. como num revezamento. testemunho 57 . testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos.10 No sonho de Primo Levi. de Janine Altounian. penser les génocides. p. 58 Lembrar escrever esquecer . mesmo que a questão fosse tão prática e pragmática. E Oswaldo I “Após Auschwitz”. Esse colóquio acabou de me convencer que “Auschwitz” — ou. agora. Tratava-se. entre elas a de ter participado de um colóquio interdisciplinar intitulado “L’homme. da falta de repercussões desse acontecimento. só se opõem reações de indignação ou mesmo de indiferença e paralisia. les camps”. não se tratava de uma celebração piedosa das vítimas do Holocausto. A problemática do colóquio parisiense era. as contribuições dos teóricos da linguagem e da literatura foram decisivas. mas é um marco essencial e pouco elaborado da história ocidental. profundamente prática e atual. o questionamento do grupo tornou-se mais preciso e levou à organização do colóquio citado. quem certamente foi um dos primeiros a ressaltar essa função de cesura de Auschwitz para a história de nossa razão. ao universo concentracionário. “Após Auschwitz” — não representa somente um episódio dramático da história judaica ou da história alemã. As razões de ter escolhido este título são várias. la langue. na Bósnia ou em Ruanda — e às quais. de nossa “Após Auschwitz” 59 . por exemplo. mas sim de sua rememoração. de uma memória ativa que transforma o presente. ao que parece. por alguns pesquisadores judeus e não-judeus. portanto. No entanto. de entender melhor a relação entre “a atualidade crítica. no sentido benjaminiano da palavra. Esse colóquio nasceu de um seminário organizado mensalmente ao longo de dois anos. melhor. e a atualidade política” de formas de violência coletiva que ressurgem. a respeito da Shoah e de suas repercussões na prática das ciências humanas. de maneira semelhante. ao estado totalitário. Ora. midiática e científica das questões ligadas à Shoah. Ou. “APÓS AUSCHWITZ” Para Márcio e Claudia. isto é. Durante esses dois anos.5. ainda. enfim. em textos de outros autores. mal e sofrimento vinculados. queria elucidar algumas das consequências desse acontecimento para um pensamento crítico de nossa cultura. No livro Auschwitz e os intelectuais. foi Adorno. vou tentar rastrear algumas interrogações em torno dos conceitos de mito e de mímesis: dois conceitos-chave da Dialética do Esclarecimento (1947). Cabe agora uma ressalva em relação ao que segue: não sou especialista em Adorno nem em antissemitismo. a fenômenos históricos e políticos precisos. Cerf. e. vou reler alguns dos trechos principais da obra de Adorno. simultaneamente. de nossa cultura e de nosso pensamento. entre filosofia e ação justa. Gostaria de analisar como ele pensa esse horror irrepresentável que escapa à linguagem ordinária. Em particular. no intuito de aprofundar algumas noções da reflexão adorniana.1 Enzo Traverso. A reflexão de Adorno nos interessa não só pela sua lucidez. 1 60 Lembrar escrever esquecer . Enzo Traverso. L’histoire déchirée. em particular de Adorno. Paris.arte. Primo Levi. no intuito crítico de sua recusa ativa. 1997. texto seminal da filosofia do autor e. nos quais ele fala de Auschwitz e da Shoah. Mas se me permito esse risco é porque essa problemática me questiona e persegue: é preciso pensar melhor as relações entre estética e memória do sofrimento. texto-chave da reflexão dos frankfurtianos sobre a experiência do nazismo e da Shoah. Cabe observar que essa experiência obriga a filosofia a pensar a realidade do mal e do sofrimento não só como fazendo parte necessariamente da condição humana finita. citarei Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe. um politólogo italiano que leciona na França. igualmente. nela também se evidenciam as relações profundas entre ética e estética. Apoiar-me-ei em textos de Adorno e. portanto. Enzo Traverso e Albrecht Wellmer. que devem ser investigados. também. relações que uma concepção meramente estetizante da estética ou meramente consensual da ética tendem a esquecer. Auschwitz et les intellectuels. mas como mal e sofrimento que foram impostos por determinados homens a outros. pouco comum nos anos 40. ressalta essa clarividência dos pensadores da Escola de Frankfurt. Por isso. a nossas descrições e a nossas deduções. passados no crivo. Num primeiro momento. em particular por sua tese do capitalismo monopolista de Estado.). in Max Horkheimer. Soziologie im Spätkapitalismus. o antissemitismo decorreria da necessidade. pp. 1985. em particular. 129-35. Jan Bransen. Adorno e Horkheimer abandonam. mas se esforçam em analisar qual é a estrutura racional e psíquica que torna possível a existência do algoz. em parte. isto é. de lutar contra formas de capital comercial e financeiro independentes. Schweppenhäuser (org. abordada nem a partir de uma contradição econômica específica do capitalisEssas discussões podem.. Zur Gesellschaftstheorie Theodor W. na(s) especificidade(s) dos judeus enquanto parte isolável de uma população. Willem van Reijen. Com a Dialética do Esclarecimento. Ein Kommentar zu den Textvarianten der Buchausgabe von 1947 gegenüber der Erstveröffentlichung von 1944”. Wissenschaftliche Buchgesellschaft. do antissemitismo e dos campos de concentração não é. Darmstadt. A realidade do nazismo. op. pp. 452-7. que Horkheimer ainda defendia num artigo de 1939. Essa análise repousa sobre duas características: uma certa ortodoxia economicista (isto é. para o capitalismo monopolista de Estado. Gesammelte Schriften. o antissemitismo deve ter como razão principal e última uma transformação da infraestrutura econômica) e a busca da especificidade do antissemitismo na escolha do seu objeto de exclusão. cit. predominante na época e no círculo do Instituto de Pesquisa Social. portanto. em boa parte. explicar as diferenças entre as versões de 1944 e de 1947 da Dialética do Esclarecimento. Fisher. Pode-se ler com proveito o artigo de Rolf Johannes. Não procuram detectar nos judeus o que os predestinaria ao papel de vítimas.II Na reflexão de Adorno e Horkheimer. e são analisadas na edição crítica das obras de Horkheimer. esses argumentos. em particular dos nazistas. Adornos. 5. Adornos Verhältnis zur Ökonomie”. Ambos autores se afastam paulatinamente de uma análise marxista ortodoxa. a Dialética do Esclarecimento assinala um corte na tentativa de pensar a questão do nazismo e do antissemitismo. representada sobretudo pelas teses de Max Pollock — a quem o livro é dedicado —. “Das Verschwinden der Klassengeschichte in der ‘Dialektik der Aufklärung’. “Die Juden und Europa” (Os judeus e a Europa). in G. Ver.2 Segundo essas tendências teóricas. tais quais os empreendimentos judeus. Voltam-se para considerações pouco econômicas e muito mais oriundas da filosofia (Marx e Nietzsche). “Das ausgesparte Zentrum. 1995. 2 “Após Auschwitz” 61 . Ver ainda Enzo Traverso. vol. Frankfurt/Main. da psicanálise e da etnologia. de uma repetição do horror. Ao colocar a questão do nazismo e do antissemitismo de maneira tão ampla. moralmente e esteticamente e não odiar Kant. mesmo que com alguns anos de intervalo. violência e aniquilamento — mecanismos que encontraram na Shoah sua expressão singular e insuportável. encontra sua expressão na antítese-mestra que sustenta o livro de 1947: a antítese Mythos-Aufklärung. Adorno e Horkheimer não se afirmam como arautos de uma identidade judaica a ser resgatada. o iluminismo e o idealismo alemães. Mito-Esclarecimento. Hegel. absolutamente central na Dialética do Esclarecimento. Adorno e Horkheimer as julgam. muito reais. justamente. p. não ficando nos Estados Unidos nem escolhendo o Estado de Israel. 225. assumem muito mais uma postura de pensadores críticos da tradição e da cultura ocidentais. intelectualmente.mo avançado nem a partir da “judeidade” dos judeus. 1993. insuficientes para realmente conseguir entender a especificidade do antissemitismo nazista. voltarão para a Alemanha.”3 Esse universalismo da postura crítica adorniana. Goethe ou Hölderlin. Beethoven. com o terror nazista. Frankfurt/ Main. mas sim uma retomada e uma reedição de mecanismos semelhantes de exclusão. É importante lembrar que ambos. Suhrkamp. uma repetição. e culmina depois ou além da filosofia. a respeito dos riscos. com a Odisseia. pois. pois não há repetições desse tipo na história. sem dúvida. em particular da cultura e da tradição alemãs (postura que era também a de Nietzsche). no entanto. Ademais. Eles continuam. não idêntica. a trabalhar dentro de uma tradição de autorreflexão crítica que caracteriza. 3 62 Lembrar escrever esquecer . como sua ascendência judaica teria permitido. herança da tradição iluminista. Bach. Sem negar esses aspectos. Nesse contexto queria retomar algumas afirmações muito citadas das primeiras páginas desse livro para apontar uma dificuldade — Albrecht Wellmer. Como diz Albrecht Wellmer: “É como se todos os esforços desses intelectuais banidos pelo nazismo tivessem se orientado na direção de salvar para os Alemães sua identidade cultural: com Adorno foi possível estar de novo presente na Alemanha. Trata-se de propor uma reescrita da história da razão ocidental e metafísica: começa antes ou aquém da filosofia. mas infelizmente não a única nem necessariamente a última. tais categorias se revelam incapazes de ajudar à reflexão. Endspiele: Die unversöhnliche Moderne. não digo erro nem contradição, mas sim dificuldade, isto é, algo que assinala uma indecisão, uma hesitação instigante, que provoca uma necessidade de retomada e de reflexão. Essa dificuldade se encontra na definição de um dos termos da antítese assinalada acima e que deve assegurar o alcance universal da reconstrução crítica empreendida na Dialética do Esclarecimento. Há uma certa oscilação na determinação do mito e da mitologia, entre sua definição como forma de pensamento já permeada de racionalidade, ou, então, como forma “primitiva”, tributária do medo originário e da crueldade ancestral. Cito as primeiras páginas do Prefácio: “A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do Esclarecimento [die Selbstzerstörung der Aufklärung]. [...] Acreditamos contribuir com estes fragmentos para essa compreensão, mostrando que a causa da recaída do Esclarecimento na mitologia [des Rückfalls von Aufklärung in Mythologie zurück] não deve ser buscada tanto nas mitologias nacionalistas, pagãs e em outras mitologias modernas especificamente idealizadas em vista dessa recaída [zum Zweck des Rückfalls], mas no próprio Esclarecimento paralisado pelo temor da verdade.4 [...] Em linhas gerais, o primeiro estudo pode ser reduzido em sua parte crítica a duas teses: o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia [schlägt in Mythologie zurück]5 [...] A discussão dos ‘Elementos do antissemitismo’ através de teses trata do retorno efetivo da civilização esclarecida à barbárie [Rückkehr der aufgeklärten Zivilisation zur Barbarei]. A tendência não apenas ideal, mas também prática, à autodestruição [Selbstvernichtung], caracteriza a racionalidade desde o início e de modo nenhum apenas a fase em que essa tendência evidencia-se sem Dialética do Esclarecimento, tradução de Guido de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 15. 5 Idem, ibidem. Note-se schlägt zurück (reverter, no sentido de regredir) e não, num vocabulário dialético mais neutro, schhlägt um (reverter, no sentido de transformar-se). 4 “Após Auschwitz” 63 disfarces. Nesse sentido, esboçamos uma pré-história filosófica do antissemitismo. Seu ‘irracionalismo’ é derivado da essência da própria razão dominante [...]”6 Como o vocabulário deixa transparecer, temos aqui dois modelos conflitantes: um modelo dialético lógico, o da Selbstreflexion e da Selbstzerstörung, segundo o qual Esclarecimento e Mito (ou, em termos mais contemporâneos, racionalidade iluminista e racionalidade mítica) se negam e se pertencem mutuamente; e um outro modelo, dialético também, mas num sentido mais linear e cronológico, segundo o qual a razão esclarecida recai, retorna, regride (todas expressões do texto)... aonde? Às vezes se diz na mitologia, outras vezes na barbárie, uma oscilação que não deixa de ser mais um indício dessa irresolução quanto ao estatuto do mito. Será ele o outro da razão, sua negação dialética e, portanto, algo tão racional como a razão é mítica? Ou ele é mais que o outro da razão, um fundo aterrorizante de crueldade sangrenta primitiva que a racionalidade iluminista se esforça por erradicar? Confesso que esta indecisão me parece percorrer o livro inteiro; ela reaparecerá a propósito do conceito de mímesis. Ora, essa indecisão é instigante não só por razões filológicas e filosóficas. Ela aponta para a dificuldade do pensamento esclarecido, em particular do pensamento esclarecido de esquerda, de se confrontar com a força dessa dimensão chamada de mítica e, no mais das vezes, associada ao irracional e ao absurdo. Associação, aliás, que só aprofunda o problema, porque se trata então de compreender por que o irracional é tão poderoso, de fato, nas decisões dos homens, esses animais racionais. Em outros termos: essa indecisão aponta para a necessidade do pensamento de esquerda elaborar melhor uma compreensão do mito sob pena de deixar sua teorização bem-sucedida ao pensamento reacionário. Ora, as dificuldades da luta contra o fascismo também tiveram a ver com essa propensão funesta dos teóricos de esquerda em julgar a ideologia nazista mítica, irracional, primitiva, portanto, sem sérias perspectivas de sucesso. O recurso desenfreado do nazismo a pseudovalores míticos, clássicos e patrióticos, e sua recusa da razão moderna e cosmopolita 6 Idem, p. 16. 64 Lembrar escrever esquecer (para não dizer de antemão, judia), denunciada como abstrata e superficial, são as duas faces inseparáveis da mesma construção ideológica. Para lutar contra essa ideologia, não basta rechaçar o mito e defender a voz da razão. Deve-se, segundo Adorno e Horkheimer, identificar no próprio desenvolvimento da razão os momentos de dominação que solapam seu ideal de emancipação e assemelham a racionalidade à coerção mítica. Uma coerção, aliás, mais ferrenha ainda, pois da coerção da própria razão como poderá a razão se liberar? Como pensar, então, a dimensão do elemento mítico não apenas como momento de inverdade da Aufklärung, misto funesto de dominação cega e ofuscamento? Qual seria, para o pensamento esclarecido e autocrítico, a verdade possível do seu outro, do pensamento mítico? Essas questões não me parecem explicitadas com suficiente clareza na Dialética do Esclarecimento, o que suscita um deslize constante e necessário entre uma concepção do mito como negação dialética da Aufklärung e outra concepção, na qual o mito constitui muito mais um fundo originário e sangrento de brutalidade e de barbárie. Podemos fazer duas ressalvas antes de prosseguir. Talvez essa teoria “positiva” do mito, pouco explicitada, deva ser procurada nas entrelinhas do livro. Uma primeira pista seria a relação do pensamento mítico/mágico com a transcendência, com o “fora”, como o denominam os autores. “Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do ‘fora’ é a verdadeira fonte de angústia”, dizem eles a respeito do pensamento esclarecido;7 podemos ler a contrario: o pensamento mítico tem o mérito, justamente nas suas categorias mais cruéis e inflexíveis, como as de necessidade ou de destino, de reconhecer que algo escapa do seu domínio conceitual; que ele, como sistema de representações, não pode nem explicar nem representar tudo. De maneira análoga, é justamente naquilo que faz da “simpatia” mágica um procedimento tipicamente irracional e cruel, que jaz um momento de verdade possível, a saber, “a manifestação do todo no particular”, que a obra de arte deverá novamente encarnar.8 Se a relação com a transcendência e a reabilitação do particular, dois aspectos tão essenciais da dimensão estética segundo Adorno, 7 8 Idem, p. 29. Idem, p. 32. “Após Auschwitz” 65 configuram momentos de verdade na inverdade mítica, por que não enfatizá-los nesse texto? Minha tentativa de resposta se apoia na leitura do livrinho polêmico de Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, Le mythe nazi.9 Haveria, nessa época, uma tal saturação do conceito de mito, devida à sua anexação quase completa pela ideologia nazista, que um pensamento de resistência ao nazismo não poderia ceder ao desejo perigoso de elaborar uma teoria positiva do mito, sob o risco desta ser usada em proveito da ideologia de plantão. Haveria, então, na Dialética do Esclarecimento, o mesmo interdito em relação a uma teoria positiva do mito como há em relação a Nietzsche: apesar de a reflexão de Adorno e Horkheimer ser impregnada pela filosofia de Nietzsche, eles não podem assumir explicitamente tal herança, porque “Nietzsche” foi anexado, enquanto emblema, pelo pensamento fascista. Assim ocorre também em relação a um conceito positivo de mito: este remeteria imediatamente aos mitologemas afirmativos de “Blut und Boden” (“Sangue e solo”). III O ensaio de Lacoue-Labarthe e de Nancy nos ajuda a compreender por que o mesmo tipo de ambiguidade ressurge, segundo me parece, na discussão do conceito, central em Adorno, de mímesis. Segundo nossos comentadores franceses, a eficácia dos elementos míticos anexados pela ideologia nazista se deve à componente mimética, isto é, identificatória, desses elementos. Ora, o maior problema ideológico para os alemães do século XIX e, depois de Versailles, do século XX, foi construir e manter uma identidade própria, originária e duradoura, que consiga se opor à dissensão interna, inerente às variedades linguísticas, históricas e culturais, e aos modelos exteriores já firmemente estabelecidos como o racionalismo francês e o pragmatismo inglês. Nancy e Lacoue-Labarthe interpretam a elaboração de uma Nova mitologia no Romantismo alemão, sua retomada e desfiguração pelo nazismo, como uma entre tantas tentativas de superar essa ausência de identidade popular e nacional — uma ausência vivida como 9 Jean-Luc Nancy, Le mythe nazi, Paris, Éditions de l’Aube, 1992. 66 Lembrar escrever esquecer da autora. Não pretendo discutir aqui essa interpretação bastante polêmica.” [E nossos autores observam. como a obra de arte que o explora. Ele fornece. por fim. aliás. menos porque o mito seria uma criação ou uma obra de arte coletiva. in Sete aulas sobre linguagem. Tradução de J. um ficcionar. se não em impor. um povo inteiro — pode usar para apreender e identificar a si mesmo. Imago.11 o conceito de mímesis sofre uma transformação instigante no decorrer do livro. de comportamentos irracionais e acríticos. um indivíduo — ou uma cidade.”10 Essa relação entre mímesis e identificação orienta as análises da Dialética do Esclarecimento e articula o co-pertencer do mítico e do mimético pelo viés da identificação. “Do conceito de mímesis em Adorno e Benjamin”. G.. M. que o problema do mito sempre é indissociável do da arte.] tipos que. no entanto. então. Ver Jürgen Früchtl. a probabilidade — do ressurgimento de comportamentos míticos.] “Por aí se indica. de ‘plástica’: ele é. a chave para entender tanto a rejeição da magia mimética pela razão esclarecida como também a possibilidade — mais do que isso. pp. modelos ou tipos [. algo que não deixa de lembrar a problemática de Adorno e Horkheimer. cujo papel consiste em propor. mímesis e identidade: “O mito é uma ficção no sentido forte do termo. miméticos e identificatórios. “Após Auschwitz” 67 . 34-5. ou. Königshaus und Neumann. ao imitá-los. no caminho que leva da análise da Odisseia aos “Elementos de antissemitismo”. Como observaram vários comentadores. Rio de Janeiro. Interessa-me. Pode-se consultar também. num con- 10 11 Idem. mas porque o mito. ressaltar a relação intrínseca que articula mito.falta dolorosa e como enfraquecimento político. no sentido ativo de dar uma feição. é um instrumento de identificação. 1986. memória e história. 1997. na medida em que somente o mimetismo é capaz de assegurar uma identidade. Mimesis — Konstellation eines Zentralbegriffs bei Adorno. isto é. Dito de outra maneira. como diz Platão.. a questão colocada pelo mito é a do mimetismo. Ele é mesmo o instrumento mimético por excelência. pois. os ardis da razão tais como Ulisses os desenvolverá. por exemplo. por sua atitude algo nômade. uma identidade que aprendeu a se dobrar às imposições do trabalho e da eficiência da produção capitalista. torna-se semelhante ao meio ambiente (assim como a borboleta sobre a folha) para abolir a diferença e a distância que permitem ao animal reconhecê-lo e devorá-lo. têm horror à mímesis não só porque esta lembra a magia e peca pela ineficácia. veste a máscara semelhante ao deus aterrorizante para apaziguá-lo pela sua imagem e semelhança. lúdica e vagabunda. ou. ao barro. pede a exclusão. me- 68 Lembrar escrever esquecer . na interpretação de Adorno e de Horkheimer. ligado ao êxtase da dissolução dos limites do próprio eu. funcional. contêm um momento essencial de prazer. Na tentativa de escapar ao perigo. Reconhecer esse momento tão central para a reflexão de Freud e de Nietzsche (ver o papel ímpar de Dionísio em Nietzsche) é igualmente essencial para a análise de nossos autores. bem definida. Sua tese é. a mímesis integra os procedimentos mágicos que têm por alvo a defesa do sujeito fraco e amedrontado contra os poderosos inimigos exteriores. Porém. Dialética fatal que prefigura. igualmente violenta. portanto. à sujeira. pois. para salvar a si próprio. Ela é cruel e regressiva porque implica o sujeito não enfrentar o perigo. simplesmente.texto histórico tão “evoluído” quanto a Alemanha da República de Weimar. Nos dois primeiros capítulos (“Conceito de Esclarecimento” e “Excurso I”). de sua identidade própria. Esse recalque coletivo tem consequências funestas: exige um processo de constituição subjetiva duro e violento em relação aos próprios desejos mais “originários” ou “inconscientes”. a um recalque individual e social dessas tendências miméticas que nos ligam ao animal. essa polimorfia tão perversa como prazerosa que solapa as bases de sustentação de uma identidade clara. Ou ainda: a Aufklärung tem horror à mímesis (às semelhanças. Vejamos mais de perto. perdendo-se a si mesmo. essas práticas mágico-miméticas. Assistimos. mesmo que ineficazes e regressivas. o homem “primitivo” se assimila. Essa estratégia mágico-mimética não é somente ineficaz. ou. daqueles outros que. mas também à gratuidade e ao desperdício erótico e lúdico — como o tematiza. então. por exemplo. mas porque faz ressurgir essa ameaça imemorial do prazer ligado à dissolução dos limites claros e fixos do ego. não sem razão. a civilização iluminista. toda a obra de um Bataille. às afinidades. diante do Ciclope. às metáforas) porque suspeita nela. mas desistir de sua posição de sujeito. a seguinte: o pensamento esclarecido. descompromissada. mais precisamente. A educação social e individual reforça nos homens seu comportamento objetivo enquanto trabalhadores e impede-os de se perderem nas flutuações da natureza ambiente. ser erradicada como uma epidemia ou como piolhos. enfim. segundo Adorno e Horkheimer. Assim designa os judeus como os culpados. esse enrijecimento é o modelo de uma outra forma de mímesis. “Após Auschwitz” 69 . Nesse mecanismo de identificação. dos portadores do perigo. cit. O nazismo as faz amadurecer pela ideologia racista que cristaliza os medos latentes diante da dissolução do quadro tradicional de orientação e de identificação do sujeito. Para se proteger dos perigos e dos encantos da mímesis originária. todo abandono tem algo de mimetismo. tem de ser simples (simplista) para ser eficiente. a uma pedagogia que desacostuma as crianças de serem infantis — é a própria condição da civilização. Insisto nessas metáforas de higiene. de limpeza sim. A definição das causas do mal. 169. de dedetização. uma “mímesis da mímesis”. denunciada por Adorno e Horkheimer. com gás Ziklon B. se sente fraco e desamparado. como uma raça parasita e hedionda que suja a pureza do povo autêntico e deve.. jazem. Toda diversão. um ideal tanto mais infalível quanto ele.nos clara e rigorosa. Foi se enrijecendo contra isso que o ego se forjou. a recaída em modos de viver miméticos — começando pela proibição social dos atores e dos ciganos e chegando. as sementes do fascismo e do totalitarismo.”12 Ora. poderiam ameaçar essa lei de trabalho e identificação forçados. Cito um parágrafo-chave dos “Elementos de antissemitismo”: “O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculos a seus próprios descendentes. o sujeito se assemelha a um modelo rígido e seguro. porque elas são a contrapartida dessa construção. p. nessa vontade de identificação. de um ideal pseudonatural e originário de 12 Dialética do Esclarecimento. bem como às massas dominadas. oriunda do recalque da primeira. cuja imagem primeira é o corpo de Ulisses atado sem movimento ao mastro do seu navio — e em decorrência da própria vontade —. por fim. portanto. o eu. esse “enrijecimento do eu”. Com esse conceito de autonomia fecha-se o círculo infernal da Dialética do Esclarecimento: ao tentar se livrar do medo. empregos. 1989. Ver a esse respeito o belo filme de Peter Cohen. sobre seus semelhantes e sobre si mesmo. assimilando-se ao que é mor- 13 A vertente dita médica da ideologia nazista é essencial. assegurar um longo empreendimento de destruição renovada dos outros e de fortalecimento duradouro do eu. desistindo de si mesma em troca de sua segurança. com a necessidade de uma identificação muito mais absoluta que as encenações primitivas.13 Enfim. tanto os ciganos quanto os judeus: formas múltiplas de “desvios” da norma rígida. que os alivia do peso e das penas da autonomia.pureza. igualmente. Assim. hierarquias. o homem fortalece seu domínio sobre a natureza. enfim. Ela condena tanto os homossexuais quanto os deficientes mentais. Mas só consegue se constituir como sujeito. 70 Lembrar escrever esquecer . no sentido forte da autonomia ilustrada. ou seja. ao rejeitar os feitiços e os encantos (Zauber) da magia. gerar ofícios. Arquitetura da destruição. Para ser mais eficaz. da religião e do mito. Essa (de)negação se vinga com o retorno violento do recalcado. de determinação viril unívoca. “a vida paga o tributo de sua sobrevivência. a mímesis recalcada volta sob a forma perversa e totalitária da identificação ao chefe único. que as práticas mágicas e miméticas encarnam. esse processo também deve se dirigir contra um inimigo facilmente identificável (daí a necessidade do porte da estrela amarela. ligada a Eros e a Thanatos. isto é. faz de conta que está morto. uma segunda e perversa vez. com uma sexualidade higiênica e familiar. A autonomia do sujeito não se estabelece apenas pela dominação do diferente. pelo recalque dessa dimensão mortífera e prazerosa. um ideal de “disciplina ritual” e de identificação ao Führer que se encarrega de liberar seus seguidores tanto de seus medos como de suas hesitações. o mecanismo originário de defesa mimética de que zombava nos rituais primitivos: para se manter em vida. suficientemente numeroso para que seu aniquilamento possa se transformar numa verdadeira indústria. de nitidez. fábricas e usinas. ela também “compra” sua manutenção pela identificação a um paradigma alheio e rígido. O sujeito esclarecido cumpre. dúvidas ou desvios. pois tem agora como tarefa assegurar e manter uma identidade sem fraquezas nem angústias nem recaídas nas delícias do infantil e do indeterminado. sem deslizes. pois a raça nem sempre se deixa diagnosticar à primeira vista!) e. fundamentalmente. dois conceitos-chave da estética de Adorno. a vida se assemelha à morte e a morte contamina o vivo. mas entremesclados com análises filosófico-políticas. dois conceitos que já se encontram aqui. 168. sua revisão crítica da tradição metafísica assim como suas críticas sempre novas do positivismo. toda a filosofia posterior de Adorno tentaria. Mas e a reflexão estética? Talvez a frase mais conhecida de Adorno seja justamente aquela que cito no título desta 14 Dialética do Esclarecimento. consiste numa longa discussão. velados ou não. p. IV Façamos uma pequena pausa para tentar reunir alguns fios soltos. tanto ética como estética. responder a uma única questão: como pode o pensamento filosófico ajudar a evitar que Auschwitz se repita? Ou ainda: como pode a filosofia ser uma força de resistência contra os empreendimentos totalitários. Mais precisamente. cit. para tentar livrá-los dos seus componentes de dominação e destruição. todas essas atividades se inscrevem nesse horizonte. portanto. “Após Auschwitz” 71 . que também são partes integrantes do desenvolvimento da razão ocidental? As pesquisas sociológicas e psicológicas de Adorno e de Horkheimer. numa longa briga com esses dois conceitos oriundos da tradição filosófica clássica. Segundo minha leitura. Nessa exposição. com uma autorreflexão crítica da tradição metafísica e iluminista: os conceitos de autonomia e de mímesis. O que obtivemos nesses meandros através dos densos enredos desse texto? No mínimo. pela experiência de que a razão iluminista emancipada possa ser reduzida com sucesso à mera racionalidade instrumental da lógica da aniquilação.14 A vida abdica de sua vitalidade e de sua vivacidade em favor de sua conservação. nesse texto de 1944/47.. e que a reflexão filosófica contemporânea desse desastre não soube encontrar forças efetivas de resistência contra a promessa de emancipação que o esclarecimento continha — e ainda contém. componentes evidenciados pela experiência da Segunda Guerra Mundial. gostaria de defender a seguinte hipótese: a reflexão posterior de Adorno.to”. numa longa confrontação. pp. Impuls und Negativität. do passado nazista recente nessa Alemanha em reconstrução). 1965. essa polêmica afirmação: em 1962. um compromisso covarde. no ensaio intitulado “Engagement”18 e.conferência. 26. tal sentença ressalta muito mais a urgência de um pensamento não harmonizante. 17 18 19 20 16 Idem. p. Hamburgo. “Crítica cultural e sociedade”. mas impiedosamente crítico — isto é. in Prismas. Frankfurt/Main. “Nach Auschwitz kein Gedicht?”. na última parte da Dialética negativa. ao contrário. Schweppenhäuser e M. um “documento da barbárie”. na visão radicalmente crítica da esfe- 72 Lembrar escrever esquecer . Ática.20 Cito a passagem bastante provocativa da Dialética negativa: 15 T. mas. sobretudo. usa-se muitas vezes essa citação também para denegrir a radicalidade crítica de intelectuais tachados de pessimismo e de intolerância. em 1967.19 Nos dois casos.). Argument. Noten zur Literatur III. essa afirmação peremptória de um ensaio de 1949: “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro.16 Ora. mas a própria cultura. 125-7. 47 ss.15 Uma frase polêmica. por duas vezes e explicitamente. Note-se que a segunda parte dessa afirmação. cuja recepção foi bastante infeliz. contra sua degradação a máquina de entretenimento e de esquecimento (esquecimento. 1970. Não é somente a beleza lírica que se transforma em injúria à memória dos mortos da Shoah. que é concluído por esta frase. uma autorreflexão de Adorno sobre sua própria atividade crítica.17 Adorno retomará. e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”. Adorno. Detlev Claussen. São Paulo. Frankfurt/Main. Wischke (orgs. pedindo desculpas aos poetas. Suhrkamp. de Walter Benjamin. num contexto de “bom senso” neoliberal. pp. na sua pretensão de formar uma esfera superior que exprima a nobreza humana. revela-se um engodo. a necessidade da cultura enquanto instância negativa e utópica. 45. como disse Walter Benjamin. Vários comentadores ressaltam a influência decisiva das teses “Sobre o conceito de História”. como se ela significasse uma condenação pura e simples da poesia contemporânea. 353-9. no contexto do ensaio sobre “Crítica à cultura e à sociedade”. quase sempre é esquecida. Negative Dialektik. 1998. tradução de Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. Detlev Claussen observa que hoje. 1995. ele não trata de amenizá-la. W. radicaliza e amplia seu alcance. in G. pp. p. Suhrkamp. inclusive a crítica urgente a ela. Não que ela seja perfumaria inútil. o de que não se precisa. 348-9) insiste. é lixo. tradução de J.”21 “Cultura como lixo”. como o afirmam tanto comunistas obtusos quanto positivistas de várias proveniências. Minha tentativa de compreensão se atém à definição. portanto. na pretensão enfática à sua autarquia. ali mora a não-verdade. pp. mas antes de mais nada é o que sobra. Rolf Wiggershaus (Die Frankfurter Schule. Negative Dialektik. sobre a proximidade da dialética da cultura e da barbárie em Benjamin e a “dialética do Esclarecimento” em Adorno e Horkheimer.. cit. op. significa mais que somente o fato desta. 22 21 Todas as expressões entre aspas são de Adorno na sequência imediata de “Após Auschwitz” 73 . essa expressão poderia gerar muito mais mal-entendidos do que aquela sentença sobre a impossibilidade da escrita poética.. pp. ver também Irving Wohlfarth. a menos polêmica possível. manuscrito. a cultura se condena à “ideologia”. Das Unerhörte hören. die anspricht. cit. daquilo que constitui o “lixo”: não é somente o que fede e apodrece.“Que isso [Auschwitz] possa ter acontecido no meio de toda tradição da filosofia. warum es unmöglich ward. 5-8. M. heute Gedichte zu schreiben” [isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas]. do espírito. da arte e das ciências do Esclarecimento. A expressão “samt der dringlichen Kritik daran” [inclusive a crítica urgente a ela] retoma o segundo termo da frase de 1949: “und das frisst auch die Erkenntnis an. quando se fortalece pela “oposição à existência material” — em vez de acolher dentro dela esse fundo material. no duplo sentido de bicho e de vivo. o que pode ser jogado fora porque não possui plena existência independente. A inverdade da cultura. de existência e soberania. Toda cultura após Auschwitz. não ter conseguido empolgar e transformar os homens. Detlev Claussen. cuja ordem se deveria a uma verdade intríseca. Observe-se que Adorno ressalta que a atividade crítica — mesmo que imprescindível — não escapa desse veredito severo. p. no seu excelente livro. Zum Gesang der Sirenen. G. animal. 357. Nessas repartições mesmas. p. esse fundo não-conceitual que lhe escapa — então. 49. Mas ela tão pouco constitui um reino separado. DTV. Quando a cultura consagra a separação entre “espírito e trabalho corporal”. estaria ligada à sua pretensão de “autarquia”. segundo Adorno.22 ra da cultura em Adorno. bruto. por exemplo. 1998. segundo Adorno. sempre defendeu a possibilidade e mesmo a necessidade da arte autônoma. não por acaso. daquilo que fundamenta a “filosofia moral negativa de Adorno”. inscrevendo uma ruptura no fluxo argumentativo. sua elaboração estética. onde encontramos essa polêmica definição da cultura como lixo. que não pode se subordinar. pois. mas que deve se afirmar como exigência incontornável. como emblema do intolerável. instaura dentro do próprio pensar. que nada de semelhante aconteça. Essa página da Dialética negativa consegue mesclar com maestria o vocabulário freudiano do recalque e o marxista da crítica à ideologia para denunciar as ilusões de pureza e de independência da esfera cultural. antes de mais nada. 74 Lembrar escrever esquecer . comanda. isto é. A instância ética. em oposição ao entretenimento da “indústria cultural”. Tentemos pensar essa aparente incoerência. Esse imperativo é tão resistente à sua fundamentação como outrora o ser-dado [die Gegebenheit] do imperativo kantiano. 1993). Podemos nos arriscar a dizer que “Auschwitz”. Argument. Adornos negative Moralphilosophie (Hamburgo. Ethik nach Auschwitz. o sofrimento provocado.23 domina. pelo mal humano. O segundo parágrafo das “Meditações sobre metafísica”. portanto. a reflexão estética. com a famosa transformação adorniana do imperativo categórico: “Hitler impôs um novo imperativo categórico aos homens em estado de não-liberdade: a saber. com sua sombra de cinzas. assim também a recusa da autarquia em relação à esfera cultural remete ao corte que o sofrimento. em particular o sofrimento da tortura e da aniquilação física.Não é simples compreender essa condenação da autarquia da esfera cultural em Adorno se lembramos que ele. à necessidade de resistência (e não a uma suposta independência da criação artística). 23 Segundo o título de Gerhard Schweppenhäuser. que nasce da indignação diante do horror. Proponho lançar mão de uma dimensão essencial nesse texto. direcionar seu pensamento e seu agir de tal forma que Auschwitz não se repita. Assim como o conceito de autonomia da arte reenvia. nem a uma postura estética nem a uma sistemática especulativa. Empresto vários argumentos desse livro precioso. começa. simultaneamente. a dimensão ética. Querer tratá-lo de maneira discursiva é blasfemo: nele se deixa sen- nossa citação. segundo Adorno. pp. “Adornos Verhältnis zur Mitleidsethik Schopenhauers”. Como Schweppenhäuser ressalta. sendo ao mesmo tempo a condição transcendental dessa liberdade. G. Schweppenhäuser e M. por uma figura histórica precisa. assim também. desenvolve as implicações pedagógicas desse “imperativo”. Wischke (orgs. Não que não se possa argumentar racionalmente a respeito. 1995. manifestação da crueldade e da contingência históricas. pp. tradução de Maria Helena Ruschel). de algo que vem por acréscimo [des Hinzutretenden]. construir éticas históricas e concretas orientadas pelo dever de resistência. antes de mais nada.. para Adorno. ainda que diferentes (ver Srebrenica etc. 1995. de um imperativo categórico que transcenda a história. Modelos críticos 2. não há possibilidade de uma fundamentação discursiva última do dever moral de resistência. como o era o imperativo de Kant. Vozes. O belo artigo de Adorno.. depois de Auschwitz. Argument. in G. 356.”24 Sem entrar numa análise detalhada dessa citação. mas sim retomadas e variações que podem ser tão cruéis quanto. a fim de que “Auschwitz não se repita. Mas o “blasfemo” consiste em querer. 26 25 Ethik nach Auschwitz. O conceito (bastante vago co- 24 Negative Dialektik. que nada de semelhante aconteça”. Hamburgo. 185-6. Impuls und Negativität. p. a ressalva é essencial: não há repetições idênticas na história. porém. “Após Auschwitz” 75 . Uma segunda observação: assim como não há mais possibilidade. de fazer algumas observações. Ele nos foi aufgezwungen (imposto por coerção) por Hitler.26 “Auschwitz” instaura na reflexão moral uma ruptura essencial (e. M. por assim dizer.25 gostaria.tir de maneira corpórea [leibhaft] o momento. tradução de J. Para isso remeto ao livro citado de G. calar os gritos dos agonizantes sob a tagarela e complacente disputa entre especialistas a respeito da fundamentação primeira. Petrópolis.). no ético. Esse novo imperativo categórico não é mais fruto de nossa livre decisão prática-moral. cit. Agora devemos nos contentar com as sobras dessa bela tradição — que provou sua impotência em relação ao nazismo como já afirmava a Dialética do Esclarecimento. cit.). Schweppenhäuser e ao belo artigo de Gunzlin Schmid Noerr. 13-27. “Educação após Auschwitz” (in Palavras e sinais. definitiva) com a tradição ética clássica em busca de princípios universais e trans-históricos. Devemos. Assim.. p. enquanto forma de reflexão intelectual. Agradeço a Marcos Lutz Müller essa indicação que também elucida por que Adorno introduz esse conceito na terceira parte da Dialética negativa. Ver Gunzlin Schmid Noerr. M. tradução de J. cit. de uma ética cujo fundamento não se encontra em uma norma racional abstrata. Adorno retoma vários elementos da “ética da compaixão” (Mitleidsethik) de Schopenhauer. porém. cit. p. welches die Materie einschränkt. op. elemento facilmente presente na categoria da “compaixão”. 356. 190. 2002. esteja em via de desaparecimento.29 Simultaneamente.. esses motivos são transformados materialisticamente. in Crítica da Razão Prática (tradução de Valerio Rohden.”28 A insistência dada à corporeidade do sofrimento e do impulso de indignação que lhe responde é notável. 28 29 30 Negative Dialektik. cit. mas não para pressupô-la”. 57). em particular. diese Materie zum Willen hinzuzufügen. 76 Lembrar escrever esquecer . Martins Fontes. mesmo que consensual. São Paulo. Ethik nach Auschwitz. da dor física da tortura e da aniquilação.30 onde sofrer remete ao corpo (Leib) no seu sentido mais originário de orga- 27 O termo “das Hinzutretende” remete à expressão kantiana “Also die blosse Form eines Gesetzes. p. A 61). que limita a matéria. tem que ser ao mesmo tempo uma razão para acrescentar esta matéria à vontade. aber sie nicht vorauszusetzen” (Kritik der praktischen Vernunft. numa tentativa de despojá-los de qualquer elemento de condescendência ou de aceitação do dado.mo o reconhecem os comentadores citados) de “das Hinzutretende”27 (o que vem por acréscimo) indica esse momento necessário de humildade (não de abdicação!) da razão raciocinante frente à realidade da dor. A moral somente sobrevive no motivo descaradamente materialista. G. a ideia de “impulso moral” é reinterpretada à luz de uma “teoria materialista da experiência do sofrer”. muss zugleich ein Grund sein. mas sim em um impulso pré-racional em direção ao outro sofredor. como o diz a sequência do texto: “De maneira corpórea porque ele [o novo imperativo] é o horror. Na tradução brasileira: “Portanto a simples forma de uma lei. a propósito da liberdade em Kant. que se tornou prático. isto é. diante do sofrimento físico. Expressão de Schweppenhäuser. mesmo depois que a individualidade. de Platão a Heidegger. então. passivo e tenaz. acarreta a violação do corpo como configuração física singular de cada sujeito individual (Körper). na Dialética do Esclarecimento (ver em particular p. como no caso do terremoto de Lisboa que levou Voltaire a recusar a teodiceia de Leibniz. vivo e indeterminado. 32 Analogia já presente na crítica à ciência contemporânea que Horkheimer e Adorno desenvolvem. A aniquilação de corpos humanos nessa sua dimensão originária de corporeidade indefesa e indeterminada como que contamina a dimensão espiritual e intelectual. objeto de experiências nos campos da morte como ratos ou sapos nos laboratórios da ciência. A palavra Leib reenvia ao mesmo radical que Leben (vida). dos acidentes etc. de uma reflexão sobre a arbitrariedade da infelicidade. precisa. permanecer o mesmo. sofredora. não pode. mas enfaticamente evocada nos relatos dos assim chamados sobreviventes: essa corporeidade primeira.nicidade viva. intacto em sua esplêndida autonomia. uma afirmação radical nasce nessas páginas de Adorno: a mais nobre característica do homem. ou. 25). esta sim clara. que uma vontade de aniquilação. O pensamento de Adorno sobre Auschwitz o leva a tematizar uma dimensão do sofrer humano pouco elaborada pela filosofia. 31 “Após Auschwitz” 77 . passando por Nietzsche. ela o fez geralmente no contexto de uma meditação sobre nossa finitude essencial enquanto mortais.. enquanto o vocábulo Körper remete à forma singular de cada corpo determinado. Forma-se aqui esse pacto sinistro entre uma racionalidade rebaixada à funcionalidade da destruição e uma corporeidade reduzida à matéria passiva. esse abalo da razão e da linguagem tem consequências drásticas para a produção artística. tem por efeito a destituição da soberba soberania da razão. após Auschwitz. pré-individual e pré-reflexiva. bruta.32 E a violação desse corpo primeiro (Leib). Como nos livros de Primo Levi ou de Robert Antelme. o logos. se esmera em pôr a nu para melhor exterminá-la. No domínio mais especificamente estético. no limiar da passividade e da extinção da consciência. essa outra face do ser humano. operacional. sua razão e sua linguagem. de maneira muito polêmica.31 Se a tradição filosófica analisou inúmeras vezes a experiência da dor e do sofrimento. Ou ainda: a violação da dignidade humana. das catástrofes naturais. em seu aspecto primevo de pertencente ao vivo. provoca uma sensação constrangedora como se se ferisse a vergonha/o pudor34 diante das vítimas. Algo de constrangedor acompanha a composição de Schönberg. “vergonha”. 125-7. remete a essa esfera da corporeidade primeira cuja integridade os nazistas conseguiram destruir em suas vítimas. apesar de toda dureza e irreconciabilidade.] Graças ao princípio de estilização artística. 35 Noten zur Literatur III. G.”35 33 “Rememoração” muito mais no sentido do Eingedenken benjaminiano do que no sentido da Erinnerung hegeliana. “Engagement”..33 essa presença do sofrimento sem palavras nem conceitos que desarticula a vontade de coerência e de sentido de nossos empreendimentos artísticos e reflexivos. que volta inúmeras vezes nos relatos dos sobreviventes. Escreve Adorno: “A afirmação de que continuar a escrever lírica após Auschwitz seja bárbaro. que o pensamento não consegue pensar.. no próprio movimento da rememoração. que isso seja transformado em imagem. uma peça escrita justamente em homenagem à memória dos mortos da Shoah. cit. à qual se entrega sem reserva. Mas. 78 Lembrar escrever esquecer . essa frase não quero suavizá-la.. pp. tivesse tido algum sentido... O trecho em questão é tanto mais instigante na medida em que discute uma ópera de Arnold Schönberg — compositor que Adorno admirava profundamente —. Der Überlebende von Warschau (O sobrevivente de Varsóvia). Adorno analisa essa exigência paradoxal de uma rememoração estética sem figuração nem sentido numa passagem-chave do ensaio de 1962. parece que esse destino. op. De jeito nenhum aquilo que incomoda na Alemanha porque não permite que se recalque o que se quer recalcar a todo preço. tarefa por certo imprescindível mas comum a toda tradição artística desde a poesia épica. como figuração autônoma da intensificação até o inferno da heteronomia. M. [. nela se diz negativamente o impulso que anima a poesia engajada.] Mesmo O sobrevivente de Varsóvia permanece preso à aporia.Criar em arte — como também em pensamento — “após Auschwitz” significa não só rememorar os mortos e lutar contra o esquecimento. [. portanto! 34 A palavra Scham. tradução de J. Significa também acolher. e mesmo através da reza solene do coro. um sublime por baixo. e que.36 Desenha-se assim uma tarefa paradoxal de transmissão e de reconhecimento da irrepresentabilidade daquilo que. Um paradoxo que estrutura. ele não mora só num além do homem. fällt es leichter. por sua impossibilidade linguística e narrativa. para citar somente exemplos oriundos do cinema). die den Mord gebar”. perpassadas pela necessidade absoluta do testemunho e. dentes arrancados. enfim. escura e ameaçadora. aliás. weiter mitzuspielen in der Kultur. isto é. transforme Auschwitz em mercadoria que faz sucesso (como fazem sucesso. simultaneamente. Mas o sublime não designa mais o elã para o inefável que ultrapassa nossa compreensão humana. portanto. digerível. proibição da imagem. toda discussão de uma estética do irrepresentável. justamente. sim. sem enlevo nem gozo. que gangrena o belo país da liberdade e da dignidade humanas. está muito presente nas pesquisas atuais sobre a literatura dos campos de concentração. diz Adorno no mesmo texto. com sentido. delineia uma outra região. mas habita também um território indefinível e movediço que pertence ao humano. 127. vários filmes sobre o Holocausto. Um “sublime” de lama e de cuspe. A transformação de Auschwitz em “bem cultural” torna mais leve e mais fácil sua integração na cultura que o gerou. afirma Adorno algumas linhas abaixo. assimilável. ou do sublime. desmoronamento dos princípios de formação e de estilo artísticos. do indizível. evitar. cabelos sem cabeça. Essas descrições da impossibilidade da descrição nos remetem à tradição da teologia negativa e da estética do sublime. Adorno tenta pensar juntas as duas exigências paradoxais que são dirigidas à arte depois de Auschwitz: lutar contra o esquecimento e o recalque. Aliás. aliás. mas não transformar a lembrança do horror em mais um produto cultural a ser consumido. as mais lúcidas obras de testemunho sobre a Shoah (e também sobre o Gulag). que “o princípio de estilização artístico” torne Auschwitz representável.Proibição do consolo. simultaneamente. impossibilidade do sentido. isto é. 36 “Indem noch der Völkermord in engagierter Literatur zum Kulturbesitz wird. pois homens sofreram o mal que outros homens lhe impuseram. Ele aponta para cinzas. lutar igualmente contra a repetição e pela rememoração. Essa ressalva incita a própria filosofia à autorreflexão crítica! “Após Auschwitz” 79 . há de ser transmitido porque não pode ser esquecido. Agora. sangue e excrementos. p. in Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne.. visa o próprio “telos do conhecimento”. são desenvolvidas nas últimas páginas da Teoria estética. 87. denunciada em sua crueldade na Dialética do Esclarecimento. pp. quando baseadas numa concepção não-dialética da imitação da natureza. como analisamos rapidamente.37 Nessa que é sua última obra. “Adorno. simultaneamente. “Methexis am Finsteren”. reflexões intituladas “Mímesis e racionalidade”. “Methexis/Participação no sombrio”. pp. As observações sobre Celan retomam várias reflexões que se encontram nas páginas centrais desse livro. “O comportamento mimético” autêntico.. Respectivamente: “Mimesis und Rationalität”. 201 ss. se configura nas bordas da ausência: o sofrimento e a morte sem nome nem sentido. daquilo que lhe escapa e que. pp. Suhrkamp. 203 ss.40 A descrição da lírica celaniana retoma essa ideia de um comportamento mimético verdadeiro porque tenta se aproximar. Adorno volta à questão da mímesis. 80 Lembrar escrever esquecer . quanto de seu recalque social perverso. cit. por algo que escape tanto da magia. Essas metáforas de uma tatilidade feliz. simultaneamente estética e erótica.39 Implicam uma dialética da distância e da proximidade que se desvencilha da ideia de posse para dar lugar ao reconhecimento do não-idêntico. 86 ss. com sobriedade e respeito. 1985. mas muito mais atingir. Frankfurt/Main. segundo o termo de Adorno. Suhrkamp. um fim muitas vezes ofuscado pelas categorias mesmas do conhecer. 38 39 40 37 Ästhetische Theorie. retomado por Wellmer.38 Ele instaura uma relação redimida entre “sujeito” e “objeto” na qual conhecer não significa mais dominar. p. “Mímesis do/ao mortal e reconciliação”. que já ocupava lugar de destaque na Dialética do Esclarecimento. Albrecht Wellmer.. Seu pensamento luta por formular uma dimensão verdadeira desse conceito. tocar. analisado nos “Elementos do antissemitismo”. Também rechaça as doutrinas da Estética clássica. e ser atingido e tocado de volta. Idem. 489-90.V Esse paradoxo rege a obra do grande poeta que Adorno homenageia no fim da Teoria estética: Paul Celan. Frankfurt/Main. escreve Adorno. Ästhetische Theorie. Anwalt des Nicht-Identischen”. 1970. pp. “Mimesis ans Tödliche und Versöhnung”. “Esta lírica”. tradução de J. por elas ser lembrado e transmitido: a morte sem sentido algum. A mímesis não serve mais aos fins de autopreservação do sujeito. [. porém. 477. Os poemas de Celan querem dizer o assombro extremo pelo silenciar.. Ästhetische Theorie. mas somente uma aproximação atenta daquilo que foge tanto das justificações da razão quanto das figurações da arte. G. “está atravessada pela vergonha41 da arte em relação ao sofrimento que se subtrai tanto à experiência quanto à sublimação.. ou. mas indica seu movimento de entrega43 à morte do outro. M. mas que deve. assim escreve Adorno. sim. porém. à língua do morto de pedra e de estrela. 41 42 43 “Scham”. “de pedra e de estrela” (duas imagens do reino inanimado que. O par conceitual autopreservação versus entrega (Selbsterhaltung Hingabe) está presente em cada filigrana do texto da Dialética do Esclarecimento. de uma assimilação ao morto. aludem aos judeus mortos). Eles se assemelham a uma língua debaixo das línguas desamparadas dos homens. “Após Auschwitz” 81 . uma morte que lhe escapa e de que deve. Não há mais aqui nem representação nem identificação.. em Celan. de todas as línguas orgânicas. no ritual mágico. ver nota 34. Mas não se trata mais de preservar a própria vida como acontecia na paralisia pelo medo. cit. Seu teor de verdade mesmo se torna um negativo. Ressurge aqui essa figura tão discutida na Dialética do Esclarecimento de uma mímesis da morte.”42 Os poemas de Celan se assemelham a uma língua inorgânica e morta. na rigidez do sujeito racional que garante sua dominação pela renúncia à vivacidade da vida. dar testemunho.] A língua dos sem-vida se transforma no último consolo diante da morte que perdeu qualquer sentido. p. uma língua sem vida. morte anônima e inumerável que homens impuseram a outros homens — e ainda impõem. então. 82 Lembrar escrever esquecer . toda filosofia posterior de Adorno tentaria. consiste numa longa discussão. na Ästhetische Theorie em particular. pois. sobre a ruptura que esse acontecimento instaura em nossa linguagem. base da análise adorniana do antissemitismo.6. Segundo minha proposta de leitura. e que a reflexão filosófica contemporânea desse desastre não tenha sabido encontrar forças efetivas de resistência contra a promessa de emancipação que o esclarecimento continha — e ainda contém. distante e próximo I No ensaio anterior tentei trabalhar a partir da polêmica afirmação de Adorno: “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”. em cujo centro situamos o conceito-chave de mímesis. tanto ética quanto estética. A hipótese de que a reflexão posterior de Adorno. pela experiência que a razão iluminista emancipada possa ser reduzida com sucesso à mera racionalidade instrumental da lógica da aniquilação. quanto para uma elaboração da experiência estética. fundamentalmente. numa longa confrontação. Gostaria de retomar aqui algo que foi então apenas esboçado. que também são partes integrantes da razão ocidental? Sobre as relações entre ética e estética 83 . As reflexões de Adorno sobre “Auschwitz”. Mais precisamente. uma função essencial tanto para uma teoria da identificação e da projeção. isto é. SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE ÉTICA E ESTÉTICA NO PENSAMENTO DE ADORNO Ao Ernani. em nosso pensamento e em nossa ação. numa longa briga com esses dois conceitos oriundos da tradição filosófica clássica. levaram-nos a um emaranhado de questões éticas e estéticas. para tentar livrá-los dos seus componentes de dominação e de destruição. portanto. responder a uma única questão: como pode o pensamento filosófico ajudar a evitar que Auschwitz se repita? Ou ainda: como pode filosofia ser uma força de resistência contra os empreendimentos totalitários. Esse conceito tem. velados ou não. como experiência da proximidade e da distância. componentes evidenciados pela experiência da Segunda Guerra. Essa naturalização de um processo socio-histórico de rejeição e de aniquilamento tem lá. Na assimilação mimética coexisReleitura na qual os trabalhos de Douglas Garcia Alves Júnior muito me ajudaram. comparável a uma alergia que acometeria a pele na proximidade dos gatos ou do enxofre. Relembro rapidamente a magistral argumentação de Adorno e Horkheimer. uma análise dos mecanismos de recalque e de projeção que caracterizam a gênese da mentalidade fascista e antissemita. os parágrafos V e VI. Ora. Essas transformações miméticas afetam a identidade do sujeito (que já se sentia ameaçado na sua integridade). II Gostaria de propor. da estética: mímesis. isto é. também. resistência. pois o tornam semelhante ao meio ambiente ou ao inimigo. num primeiro momento. e por respostas miméticas originárias de transformação física para escapar do perigo. medo que se traduz por reações corporais involuntárias tais como o calafrio. como vocês sabem. mesmo esquecidos e recalcados. até fazê-lo desaparecer na paisagem como nesses livros de brincadeiras para crianças onde se procura a figura do herói em meio a uma multitude de figuras e personagens. o suor. 1 84 Lembrar escrever esquecer . a sua verdade escondida. dizem os autores. reter esses três conceitos-chave do pensamento de Adorno nos domínios da ética e. no fim da Dialética do Esclarecimento. apagam a delimitação clara entre o sujeito e o resto do mundo. então. 2 Lembremos da famosa frase de abertura da Dialética do Esclarecimento na tradução de Guido de Almeida: “o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores”. autonomia. Quando quer se desculpar.Podemos. uma breve releitura dos dois parágrafos centrais dos “Elementos do antissemitismo/ Limites do Esclarecimento”. é o medo primevo2 perante o mundo ameaçador.1 O parágrafo V é. Ela nos lembra que a civilização humana também se edifica graças à repressão de tendências naturais e animalescas no homem. um dos elementos essenciais que devem ser reprimidos. o antissemita descreve sua intolerância militante como tendo sua fonte numa reação idiossincrática espontânea e irresistível. traduz Guido de Sobre as relações entre ética e estética 85 . III A análise de Adorno e Horkheimer é muito instigante. Às explicações que tentam elucidar como ou por que os judeus “provocaram” o antissemitismo. Numa sociedade de classes organizada pelo lucro. segundo suas angústias e necessidades. têm por obrigação seguir as leis da produção capitalista. de um lado. segundo Adorno e Horkheimer. Essa identidade rígida e civil se constitui. volta na figura paradigmática do líder/Führer único (le nom de l’Un. os indivíduos não podem se permitir nenhuma vacilação identificatória.tem. ela substitui uma questão radical. Assim. os preguiçosos. Essa identificação/projeção significa. a lei da sexualidade familiar e higiênica com papéis sexuais bem determinados. na verdade. os malcheirosos. diria La Boétie). por meio de um duplo processo: repressão e recalque da mímesis originária. intransigente. ist nur allzu vertraut” — “o que repele por sua estranheza é. tão ameaçadora para a reta edificação de uma sociedade regrada e de uma civilização luminosa. os piolhos. seus judeus. aqueles que são próximos dos bichos (e das bichas). segundo Adorno e Horkheimer. o nome do Um. seus travestis. situada na raiz do funcionamento psíquico e social humano: por que tal sociedade. Para se tornar realmente eficaz. limpo e puro (rein). identificação ao modelo do chefe duro e invencível. prazerosa e perigosa. precisa edificar esses arcabouços de exclusão e ódio? A resposta segue moldes freudianos claramente indicados na primeira nota do mesmo parágrafo V: “Was als Fremdes abstöbt. portanto. de outro. demasiado familiar”. mas sobretudo de inimigos: os não-autênticos. cada sociedade constrói e escolhe seus negros. portanto. de modo inseparável. os bastardos. os vagabundos. o êxtase da transgressão dos limites da individualidade (o sujeito se une com outro). dispersiva. e todos aqueles que não trabalham direitinho: os nômades. essa projeção não precisa só de herói(s). É precisamente essa estreita relação entre perda (da identidade) e gozo (da união) que torna. isto é. este grupo determinado de indivíduos históricos. a lei do trabalho em vista da mais-valia (e não da realização pessoal ou coletiva). o risco do desaparecimento (o sujeito se confunde com outro) e o júbilo. a experiência mimética tão perigosa. lúdica e barrenta. o retorno cruel e eficaz do recalcado: a mímesis primeira. claro. mais tarde. para assinalar a brutalidade da breve frase alemã. São os motivos do sofrimento/sofrer (leiden) e do corpo (Leib). enfim. como poderia se esperar. por uma 3 Dicionário comentado do alemão de Freud. 1996.” Traduzido literalmente: “Não posso mesmo te sofrer — não esqueça isso tão facilmente”. Notemos que ambos desempenharão. pode-se compreender por que o uso linguístico estendeu ‘o familiar’ (das Heimliche) para seu oposto. pelo lado das vítimas. na verdade. gostaria de ressaltar dois motivos que me parecem ligados à reflexão de Freud e que serão determinantes para a compreensão de Adorno e Horkheimer do fenômeno do antissemitismo. Imago. papel essencial na reflexão ética e estética de Adorno. o judeu) por idiossincrasia. com o corpo da mãe. A nota de Adorno e Horkheimer. porém algo que é familiar (Heimlich) e há muito estabelecido na mente. pela boca dos algozes): “Ich kann Dich ja nicht leiden — Vergiss das nicht so leicht. e que somente se aliena (entfremdet) desta através do processo de repressão. Proporia: “O que repugna no estranho é íntimo demais”. do íntimo. O sinistro. se é essa. a natureza secreta do estranho (Unheimliches). 170). pois esse estranho (Fremdes) não é nada novo ou alheio. este tema abre o parágrafo V pela voz do herói alemão Siegfried (isto é. A frase remete à desculpa dos antissemitas: eles não suportam o outro (no caso. daquilo que tem a ver com o lar (Heim) e com o país natal (Heimat). O estrangeiro. Aliás. nosso lugar/não-lugar originário e irrepresentável. por metonímia.” A partir dessa citação. 86 Lembrar escrever esquecer . O tema do sofrer não é introduzido. do familiar. esse texto “Elementos do antissemitismo” inaugura a grande tradição de não-vitimização dos mortos da Shoah (mas sim de sua exigente rememoração).Almeida (em Dialética do Esclarecimento. Cito Freud. O inquietante) termo que provém de Heimliche. p. conforme Luís Hanns:3 “Em segundo lugar. ‘o estranho’ (das Unheimliche). de maneira um pouco literária demais. suportar (como traduz Guido de Almeida). “Das Unheimliche” (O estranho. Há aqui uma exploração da ambiguidade do verbo leiden: sofrer. Rio de Janeiro. Provocativamente. cita o texto de Freud. expressões miméticas dessa corporeidade indiferenciada e viva (Leibhaftigkeit) que também nos constitui. quando individuação e fala novamente se perdem. no recém-nascido.. que nos é simultaneamente íntima e estranha. unheimlich. mas que não controlamos. enquanto tentamos nos esquecer dela.]. que solicita seu amor. não suportar a lembrança desse leiden primeiro. 168. mais profundamente. não suportar o outro. nessa primeira in-fância (de infans.. não Leib) ainda vagamente recorda quando é surpreendido. então. tal desculpa remete a algo muito mais profundo e inquietante. sem fala). dessa passividade e dessa indiscriminação originárias que nosso corpo estruturado e individualizado (Körper. à nossa origem orgânica.. Corporeidade quase vegetativa. a aversão. Os motivos a que responde a idiossincrasia remetem às origens. essa “nossa pobre vida” primeira e corporal (leibhaft) no sentido do corpo orgânico (Leib) não estruturado pela linguagem e pela individuação.”4 A reação idiossincrática remete. A velha resposta de todos os antissemitas é o apelo à idiossincrasia [. 4 Dialética do Esclarecimento. literalmente. antes de qualquer sujeito que possa dizer “eu”. Leib e leiden — se juntam neste parágrafo V para descrever a raiz do comportamento fascista e antissemita. significaria assim. mas também no limiar da morte. Eles reproduzem momentos da proto-história biológica: sinais de perigo cujo ruído fazia os cabelos se eriçarem e o coração cessar de bater. por reações involuntárias. sem palavras. ou melhor. Nós a reencontramos. no agonizante. por seu caráter natural incontrolável. Não sofrer. diz Siegfried a Mime. Todos esses conceitos — mímesis. na hora de morrer. passiva — leidend — no limiar da vida. a essa corporeidade primeira. p. do comportamento de exclusão e de aniquilação do outro a partir dessa componente antropológica originária de nossa corporeidade. algo que Adorno e Horkheimer chamam de “nossa proto-história biológica”: “‘Não se esqueça de que não suporto você’. invadido. Ora. Sobre as relações entre ética e estética 87 .espécie de alergia tão espontânea como particular que justificaria. algo Unheimlich. unheimlich. ainda não determinada e não individuada. cit. essa passividade e essa corporeidade. Mímesis e passividade estão assim estreitamente ligadas tanto no início quanto no fim de nossa vida orgânica. É na agonia da criatura. Sua figura mais extremada e perversa será o protótipo do paranoico. É contra isso que se dirige a idiossincrasia que serve de pretexto ao antissemita. não se pode dominar inteiramente: o impulso mimético. 88 Lembrar escrever esquecer . na nossa vida de indivíduo adulto. a mais nobre faculdade humana: “A para5 Idem. então. outra herança freudiana neste texto. p. aqui. a ele. 171. sem cessar. o sujeito determinado e consciente da Aufklärung. aliás. A paranoia é aqui analisada de maneira notável como o perigo que ronda. Passo. no polo extremo oposto à liberdade. desde sempre. Contra essa indiferenciação cega da tenacidade orgânica se constrói. faz-se necessário a violência. os gestos convulsivos dos martirizados exibem aquilo que. em nossa pobre vida. A reflexão do parágrafo VI lhe é consagrada.”5 Esse impulso mimético é. Cito: “Os proscritos despertam o desejo de proscrever. tanto nas tentativas de assimilação desesperada ao meio ambiente quanto na fuga caótica para sobreviver. IV Não encontramos aqui uma denúncia fácil do caráter “monstruoso” dos antissemitas pelo viés de um diagnóstico psiquiátrico. a formigação das multidões de insetos. No sinal que a violência deixou neles inflama-se. Ele remete aos gestos desordenados do torturado e aos espasmos dos agonizantes. Para garantir o êxito do recalque e bom funcionamento da exclusão. que aflora irresistivelmente a liberdade enquanto determinação contrariada da matéria. Deve-se exterminar aquilo que se contenta em vegetar.recalcá-la por completo. destituído de qualquer aura estética. a duras penas. como se todos os nazistas fossem paranoicos que se ignoram como tais. a violência. ativo e trabalhador. consciente e sujeito de si. apesar de tudo. As reações de fuga caoticamente regulares dos animais inferiores. 182. Idem. tanto prática como teórica. Ora.noia é a sombra do conhecimento”6 porque ela acompanha. justamente. já que é ele. mas a ausência de reflexão que o caracteriza. mestre de si mesmo. Mas o fim dos deuses se reverte na adoração de um novo ídolo. o sujeito racional. isto é. p. O puro esquema do poder enquanto tal. o sujeito não se torna mais rico. mais pobre. a paranoia. que do- 6 7 Idem. a defender a “primazia do objeto”: não para voltar a um realismo pré-kantiano. Contra a crença mágica em ações dos deuses ou da natureza tramadas contra ou em favor dos pobres humanos. mas sim para operar a crítica. Sobre as relações entre ética e estética 89 . traçar os limites desse sujeito absoluto. 176. dessa auto-idolatria do sujeito. em sua reflexão filosófica posterior. porém. que constitui o objeto em objeto. porém. dono da natureza e senhor dos seus semelhantes. como possibilidade remota ou próxima. Não conseguindo mais devolver ao objeto o que dele recebeu. ele só consegue repetir seu eu alienado numa mania abstrata. é. Cito: “O paranoico no antissemitismo não é o comportamento projetivo enquanto tal. ele não reflete mais sobre si e perde assim a capacidade de diferenciar. Ele perde a reflexão nas duas direções: como não reflete mais o objeto. o Iluminismo promove a soberania do sujeito autônomo que conhece e age graças à espontaneidade da razão e à legislação do entendimento. o sujeito soberano. o sujeito. É a crítica a essa hipostasiação do sujeito iluminista que leva Adorno. p. a expressão patológica dessa hipostasiação. As descrições do caráter paranoico — caráter que culmina na “loucura” nazista — seguem neste parágrafo os caminhos trilhados nos capítulos iniciais da Dialética do Esclarecimento. Este. Pode. se libera da magia e do medo quando percebe que a organização da realidade também depende de sua atividade. incorrer no risco oposto: o objeto — o mundo que está diante dele — se vê desprovido de qualquer independência.”7 “Na medida em que o paranoico só percebe o mundo exterior da maneira como ele corresponde a seus fins cegos. a luz que o sujeito racional lança sobre o mundo. Ele não parece precisar de ninguém e. 177-8. unidas no sonho comum de uma totalidade absoluta e sem rasgos.”9 O brilho da loucura e da racionalidade extrema. seja mediante uma estratégia de extermínio cuidadosamente planejada. com total indiferença por suas peculiaridades. agarra o que se lhe oferece e insere-o em seu tecido mítico. O paranoico é o grande arquiteto dos sistemas perfeitos.mina totalmente tanto os outros quanto o próprio eu rompido consigo mesmo. já que nada resiste à sua voracidade semântica. que cria o mundo todo segundo sua imagem. Como escapar à sedução dessa totalidade. seja mediante um ato de terror individual. segundo Adorno. ele aniquila a vítima predestinada. feita pela serpente aos primeiros homens. 90 Lembrar escrever esquecer . nada pode deixar de ter uma relação com ele. Seus sistemas não têm lacunas. Cito novamente: “É como se a promessa. assim também os povos caem de joelhos frente ao fascismo totalitário. exige que todos se ponham a seu serviço. a tarefa simultaneamente política e ética do pensamento: lutar contra os sonhos (que se transformam rapidamen- 8 9 Idem. como resistir à sua atração mortífera? Essa questão determina. É assim que tem êxito. exaustiva e fantasticamente coerente. uma segurança e uma firmeza altamente atraentes em tempos de desorientação moderna ou pós-moderna. Idem. Sua vontade penetra o todo. esse brilho ilumina o rosto do paranoico. e mais. de se tornarem iguais a Deus houvesse sido resgatada com o paranoico. p. pp. [. ela oferece. Assim como as mulheres têm adoração pela paranoide impassível. portanto.”8 Adorno e Horkheimer observam com agudez que o paranoico é altamente sedutor: sua interpretação do mundo é completa.] Como louco consumado ou como ser absolutamente racional. sem contradições nem falhas.. no entanto. 177.. O ciclo fechado do que é eternamente idêntico torna-se o sucedâneo da onipotência. o reconhecimento feliz ou angustiado. É. 182. Notas para pensar o ódio ao estrangeiro”. cujo livro traz o título significativo de Ohne Mitleid. Adorno11 (Sem compaixão. pois. 1991. da independência do mundo — cosmos ou caos — e da multiplicidade sensível na sua exuberância. ao Unheimliche.te em pesadelos) de uma apropriação sem restos do mundo pelo sujeito onipotente. Zum Begriff der Distanz als ästhetische Kategorie mit ständiger Rücksicht auf Theodor W. traços de um conhecimento sem dominação nem violência. por algo que não lhe pertence. V A importância decisiva da reflexão estética na filosofia de Adorno me parece se situar aí. que lhe é estrangeiro. Se o conceito de mímesis desempenha um papel essencial e positivo na Teoria estética de Adorno é porque ele resguarda. São Paulo. mas de que pode se aproximar para inventar novas configurações de sentido. O estrangeiro. Enquanto o paranoico (que pode se esconder em cada sujeito autônomo do conhecimento) não deixa nada lhe escapar e. Isso não significa. justamente. pois. ao inquietante. À “paixão taxonômica”10 do fascismo e do xenófobo a arte opõe. a grandeza da experiência estética e da arte o fato de que ambas vivem do confronto com este estrangeiro/familiar que nos constitui e nos assusta. p. nesta renovação do pensamento por aquilo que não foi ainda pensado nem previsto. mas também o estimula. de aludir novamente ao estranho. Passagen. “O reconhecimento do próximo. porém. que a dimensão mimética possa ser assimilada a um consenso suave no qual sujeito e objeto encontrar-se-iam novamente numa fusão pretensamente originária. o deslocamento. enfim. Acabei. edifica sistemas onde tudo tem seu devido lugar. 11 Ulm. que marca a experiência estética. feliz e angustiado. in Caterina Koltai (org. é a mudança de lugar(es) habitual(is). Do conceito de distância como categoria estética 10 Segundo a expressão feliz de Marcelo Viñar. por aquilo que ameaça o pensamento. no seu delírio. Retomo aqui muitas das observações provocativas de Konrad Paul Liessmann. Sobre as relações entre ética e estética 91 . com essa descrição. Escuta/Fapesp.). ao contrário. abolir a separação entre sujeito e objeto. Segundo Liessmann. pois. numa reprodução calorosa do vivo. mas. mas muito mais num constrangimento da multiplicidade infinita do vivo nas formas finitas e fixas das obras. A tese. Ethik und Ästhetik bei Adorno. 1995. por assim dizer. em oposição à distância sempre mantida pelo conhecimento racional. ela culmina na relação muito específica que une atividade artística e morte. até a aumenta — porque a imagem artística vive de seu afastamento em relação à realidade concreta. e o canibalismo do Ciclope que devora crus os estrangeiros que atracaram na sua ilha.). Impuls und Negativität. Um Adorno soft. a arte não consistiria. Sem entrar nos detalhes da argumentação de Liessmann. segundo Adorno. dois perigos maiores ameaçam o pensamento: a sedução da dominação e do controle (a paranoia). sempre. Reconhecemos aqui os perigos que espreitam Ulisses na sua viagem formadora: os simpáticos lotófagos. mas que corre o risco da pieguice ao transformar Adorno num gentil apóstolo da proximidade e da suavidade contra os mandos da racionalidade. “Zum Begriff der Distanz in der ‘Ästhetischer Theorie’”12 (Do conceito de distância na Teoria estética). a sedução da abolição da distância. o esforço de conviver com o estrangeiro em vez de eliminá-lo e devorá-lo. 12 92 Lembrar escrever esquecer . artifício. comum e trivial. que ela transfigura mesmo que a “imite”. apenas quero ressaltar o que suas teses têm de instigante em relação à Teoria estética de Adorno. RecoG. em particular a concepção manifesta na Teoria estética. muito forte. a complacência. Liessmann polemiza com a interpretação que transforma a mímesis adorniana. Viena. mas também a sedução oposta. no “modelo de um conhecimento sem conceitos” que conseguiria. estes hippies da Odisseia. Ora. a tentação da indistinção fusional. de Liessmann é a seguinte: a arte não abole a distância. artigo que tomo por base nesta exposição. Argument. Adorno). cujas doces refeições floridas trazem o esquecimento e a dissolução da identidade subjetiva. Schweppenhäuser e Mikro Wischke (orgs. lido por Liessmann. esta distância pertence essencialmente à arte que também é. As teses principais deste grosso volume encontram-se resumidas num artigo recente do autor. Esse afastamento já era enfatizado por Platão para condenar os artistas como falsários que copiavam o paradigma ideal. isto é.com referência constante a Theodor W. porque desconhece as leis da hospitalidade. Elas permitem evitar uma leitura bem-intencionada. no contexto de uma crítica maior à empatia e à 13 Theodor W.”13 Esta longa citação de Adorno não tem relevância somente para a estética. ela consegue esta manipulação porque os impede sistematicamente de criarem uma distância. tanto mais próxima lhes está. 514-5. Martins Fontes. VII. Quanto mais a experiência estética possuir objectos. p. mas a experiência estética — justamente por causa do primado apriórico da subjetividade nela — é movimento contrário [Gegenbewegung] ao sujeito. É aí que a experiência estética. em certo sentido. por fim. a sua capacidade de abordar ou de perceber o que os objetos estéticos dizem ou calam por si mesmos. mas se articula a uma ética da distância e do reconhecimento da alteridade. Ästhetische Theorie. um espaço imprescindível. todos os ramos da indústria cultural se baseiam neste facto e reforçam esta ideia na sua clientela. na sua reprodução. desfaz o sortilégio da estúpida autoconservação [sturer Selbsterhaltung]. o status quo confirmado no falso brilho da projeção. São Paulo. Frankfurt/Main: Suhrkamp. e tanto mais também deles se afasta. pp.nhecemos também — e aqui a leitura de Liessmann é muito convincente — o leitmotiv constante da crítica adorniana à “indústria cultural”: esta não apenas manipula os indivíduos. Adorno. Tradução portuguesa de Artur Moura. Sobre as relações entre ética e estética 93 . É o que se quer dizer quando se pensa na contemplação desinteressada. 1982. A experiência estética estabelece primeiro uma distância entre o espectador e o objecto. Beócios são aqueles cuja relação com as obras é dominada pela sua possibilidade de se porem mais ou menos no lugar das personagens que aí ocorrem. Gesammelte Schriften. A vida banal e alienada é reafirmada pelo espetáculo midiático da sua repetição glamourosa. Frühe Einleitung. vol. Ela exige algo como a autonegação do espectador. Liessmann cita esta passagem exemplar da Teoria estética: “A experiência pré-artística necessita de projeção. à eclosão de um olhar crítico. como Schopenhauer sabia. o entusiasmo pela arte é estranho à arte. Teoria estética. por mínimo que seja. 382. modelo de um estado de consciência em que o eu deixaria de ter a sua felicidade nos seus interesses. 1970. os temas do corpo (Leib) na sua passividade primeira e do sofrer (leiden) na dupla acepção da palavra.projeção narcísica. 94 Lembrar escrever esquecer . com toda força. Não a frase: somos todos um. que não deixa lugar à identificação. mas sim num impulso quase físico-mimético. mas muito mais. Aqui também o pensamento de Adorno con14 Liessmann. Lembro que o livro de Liessmann se chama.”14 Só haveria. Tal ética não é. mas também aceitação desse sofrimento. G. p. um impulso em direção àquele que sofre. Human wäre nicht der Satz: wir sind alle eins. sondern: wir sind einander Fremde”. essa experiência pode configurar um caminho privilegiado para o aprendizado ético por excelência. Ora. 109. mas sim: somos todos estrangeiros uns aos outros — esta seria uma frase de humanidade. Neste contexto. porém. Tradução de J. aqui não cabem nem consenso nem reconforto. assim. sua ética não será uma ética da compaixão. neste sentido pré-verbal e pré-lógico. proximidade verdadeira. mas sim crítica e denúncia. ist der Einbruch des Fremden. Se o sofrimento ocupa um lugar essencial na reflexão de Adorno. das Identifikation gar nicht zulässt. M. por natureza. precisamente. quando há reconhecimento da estranheza e da alteridade em sua radicalidade não camuflada.. Diz Liessmann a este respeito: “Poder-se-ia concluir que somente a intrusão do estranho/estrangeiro. “Ohne Mitleid” (Sem compaixão). Reaparecem aqui. nem popular nem fácil de ser traduzida em ação prática. uma ética da resistência. que consiste em não recalcar o estranho e o estrangeiro. É claro que Adorno se inscreve numa tradição filosófica. so könnte gefolgert werden. mas sim em ser capaz de acolhê-lo na sua estranheza. “Heilsam. cit. é salutar. Talvez um eco da Fernenliebe (o amor pelo distante) nietzschiana contra os consolos pseudorreligiosos e ideológicos que vedam os rasgos e escondem os conflitos. Simultaneamente. experiência da distância do real em relação a nós. nas pegadas do melhor anticristianismo nietzschiano (e da dialética marxista). experiência também da distância entre o real tal como é e qual poderia ser. que não situa a raiz do ético na construção de um consenso racional. à qual Schopenhauer também pertence. A experiência estética. Adorno não endossa a ética da compaixão schopenhaueriana porque nela suspeita não só compaixão pelo sofrimento alheio. tentemos precisar melhor as relações entre a ética negativa (após Auschwitz) de Adorno e a ética da compaixão (Mitleidsethik) de Schopenhauer. uma certa complacência para com este “existente” (das Bestehende) que pede por consenso e reconforto. Porque sabe de sua fragilidade primeira. Não precisa mais nem de heróis nem de chefes. Também é menos gratificante.tinua “elitista”. tem força suficiente para resistir aos apelos totalitários das ilusões identificatórias e securitárias. Frankfurt/Main. com um delírio de onipotência. de ética do pensamento em Adorno.. essas virtudes são esboçadas de modo mais concreto. de maneira ousada. cit. ele não se torna cúmplice. pois. Cito: “Em outras palavras. em particular. p. Suhrkamp. Observações sobre o pensamento filosófico. Dois textos do último Adorno. a angústia que habita o sujeito. Trata-se ali da construção de um sujeito autônomo. de 1965. Sobre as relações entre ética e estética 95 . 16 Palavras e sinais. a título de indicação. Em “Educação após Auschwitz”. no reconhecimento daquilo que parece a contradizer: o medo. 1995. já que não pode contar com a gratidão de ninguém. duas virtudes do pen15 In Stichworte. receitas de ajuda ou de autoajuda nas páginas difíceis deste autor. VI Se não encontramos conselhos práticos nestes textos exigentes.15 de 1967.16 Saber conviver com a angústia e o estranho dentro de si mesmo. Vozes. portanto. faute de mieux. pois não as encontraremos. Ela se enraíza. Não busquemos. 114. pelo contrário. Petrópolis. e “Educação após Auschwitz” (Erziehung nach Auschwitz). pois é muito mais complicado resistir ao mal e à burrice do que ter piedade dos infelizes e querer “ajudá-los”. Adorno reúne. em dois textos: “Observações sobre o pensamento filosófico” (Anmerkungen zum philosophischen Denken). a educação deveria levar a sério uma ideia que de nenhum modo é estranha à filosofia: a angústia não deve ser reprimida”. No texto mais especulativo. algumas observações sobre aquilo que proporia chamar. só que essa autonomia não se confunde com o ideal de uma soberania absoluta. portanto. inscrito na reta linha da emancipação iluminista. num sentido preciso: ele tampouco precisa de projeções e identificações tranquilizantes. Penso. Palavras e sinais. ele “não vai junto” (Nicht mitmachen). Ele “não se deixa levar”. porém. gostaria de evocar. 1969. Tradução brasileira de Maria Helena Ruschel. O sujeito que não precisa mais recalcar a angústia pode se tornar verdadeiramente autônomo. Ambos insistem na virtude (Tugend) do pensar. ser perturbado [gestört werden: se deixar perturbar] por aquilo que o pensamento [der Gedanke] não é [.. p. como diz Adorno no mesmo ensaio. Neste sentido.]... o pensamento é preciosamente passivo e mimético. “Pensar filosoficamente é como que pensar por intermitências. e todo o seu sentido consiste na espera (Erwartung): é da incapacidade de esperar que surge a forma de reação paranoica”. somente este pensar paciente poderá também.. 186: “A reconciliação é o conceito supremo do judaísmo. paciente. o pensamento filosófico acolhe o objeto antes de querer subjugá-lo. A força do pensar [.] é a força da resistência contra o previamente pensado. porque espera sem impor. resistir ao existente e correr os riscos do desconhecido. que tenha a virtude da paciência. Lembremos que o termo alemão Geduld (paciência) remete a Dulden (sofrer. 96 Lembrar escrever esquecer . sem hybris. só dela. 17 Ver Dialética do Esclarecimento. cit. um pensar que reconheça essa dimensão de sofrimento e de corporeidade até no próprio pensamento. dessa paciência e dessa espera (dessa não-pressa) nascem a coragem e a aceitação do risco. Tal paciência é a fonte secreta da resistência do pensamento à violência do existente (das Bestehende).sar aparentemente opostas: a paciência (Geduld) e a resistência (Widerstand)..”17 Somente um pensar que saiba de sua passividade primeira. sem falso orgulho. Contra a voracidade e o ativismo embrutecedores. suportar). La mémoire collective. autobiografia e memória. 1984). oral. Adorno contribuíram sobremaneira para tais empreendimentos. Gallimard. Paris. números especiais.2 Na história. não lembramos de mui- 1 2 Título da coletânea organizada por Pierre Nora (Paris. falas e imagens. em salvar o desaparecido. o passado. Formen und Wandlungen des kulturellen Gedächtnisses (Munique. tradições. Walter Benjamin e Theodor W. vidas.3 e temos o sentimento tão forte da caducidade das existências e das obras humanas. 1950. Erinnerungsräume. 3 Ver Maurice Halbwachs. Em literatura comparada não se contam mais os colóquios organizados sobre as relações entre escrita e memória. resgate. 1999). fotografias. na psicologia o cuidado com a memória fez dela não só um objeto de estudo. desmemória. Cabe notar. É justamente porque não estamos mais inseridos em uma tradição de memória viva. Beck. na filosofia. Por suas reflexões filosóficas e políticas. Nos cursos de História estuda-se uma história dos lugares de memória — Les lieux de mémoire1 —. que a preocupação com a memória. como dizia Maurice Halbwachs. tradições. jogamos fora quilos e quilos de papel. recolhemos documentos. dos usos da memória. cheios de erudição. trauma e memória. Um trabalho recente e dos mais belos: Aleida Assmann. centros de memória. Criamos. na educação. mas também uma tarefa ética: nosso dever consistiria em preservar a memória. assim. em resgatar. assume hoje traços muito específicos. organizamos colóquios. PUF. que precisamos inventar estratégias de conservação e mecanismos de lembrança. restos e. O QUE SIGNIFICA ELABORAR O PASSADO? Existe hoje grande preocupação com a questão da memória: assistimos a um boom de estudos sobre memória. são publicados sob a égide de Mnemosyne. comunitária e coletiva. livros. como se diz. simultaneamente. O que significa elaborar o passado? 97 . entretanto. da relação entre memória e história. mesmo que seja tão antiga como a poesia homérica.7. Belos livros. a acumulação obsessiva e a erudição vazia do historicismo cujo efeito maior não consistia numa conservação do passado. Arte e crítica do esquecimento. uma não-permanência no ressentimento e na queixa. em particular. tradução de Marco Antônio Casanova. 33. 2003. “Sacralizar a memória”. várias figuras do esquecimento.”6 Ora. Não sei quais foram as reações do público.7 Harald Weinrich descreve. Relume-Dumará. 2001. Idem. 243 ss. p. Kunst und Kritik des Vergessens. de maneira exemplar. 1997. Zweite unzeitgemässe Betrachtung. Estas exigem uma certa forma de esquecimento. Lete. quando os raros sobreviventes dos campos de concentração nazistas morrem. Civilização Brasileira. Lethe. nas pegadas de Nietzsche. o seguinte título: “Auschwitz e nenhum esquecimento”. 1988. um virar a página. edição crítica Colli-Montinari. Só sei que até hoje o nome de “Auschwitz”. 98 Lembrar escrever esquecer . Nietzsche já descrevia essas transformações culturais dos usos e do valor da memória. Nos dias de hoje.5 no qual denuncia. um depois do outro. intitulado Os abusos da memória. num colóquio a respeito da Shoah. Berlim. traduzido para o português. mas numa paralisia do presente. não deve ser esquecido: daquilo que nos impõe um “dever de memória”. esse pequeno panfleto de Todorov foi. I. Beck. No fim do século XIX. pp. No seu belo livro. na comemoração do passado em detrimento do presente — da ação e da intervenção no presente. Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben. Edição brasileira: Lete. o linguista e ensaísta Tzvetan Todorov também escreveu um pequeno panfleto. Arte e crítica do esquecimento. Edição brasileira: Segunda consideração intempestiva. vol. 1995. “é uma outra maneira de torná-la estéril. Munique. continua sendo o emblema daquilo que não pode. DTV. de maneira positiva. intitulado “História e memória dos crimes e genocídios nazistas”. uma conferência pronunciada em Bruxelas. originalmente. diz Todorov. 5 6 7 Les abus de la mémoire. símbolo da Shoah. denunciava. em particular na tradição filosófica e poética. em 1992. Rio de Janeiro. a complacência em demorar-se na celebração.4 Recentemente. Rio de Janeiro. de morte dita 4 Friedrich Nietzsche. Arlea.tos nomes e perdemos a conta de outros tantos acontecimentos ditos importantes. O nono capítulo do livro traz. simultaneamente. Os sobreviventes. 1959. Paulo: a porcentagem de brasileiros que não sabiam o que era o Holocausto era altíssima. mas o transforma radicalmente. na sua filosofia moral. por exemplo. muitas pessoas entre nós nem precisam esquecer: simplesmente ignoram. Os afogados e os sobreviventes (São Paulo. numa tentativa de elaboração simbólica do trauma que lhes permitisse continuar a viver e. “Was bedeutet Aufarbeitung der Vergangenheit?”. Aliás. Em particular: “Kulturkritik und Gesellschaft”. dadas a distância histórica e geográfica que separa o Brasil da Europa do pós-guerra. Meio século depois. direcionar seu 8 Sigo o título de Primo Levi. Assim. nos anos de 1950 e 60. Neste ambiente de afirmação de uma nova identidade alemã.8 não conseguiam esquecer-se nem que o desejassem. aqueles que ficaram e não se afogaram definitivamente. esquecermo-nos de Auschwitz. a injunção à lembrança assume uma conotação bastante diferente do trabalho de memória tal como se desenvolveu no fim da Segunda Guerra Mundial. se quisermos.10 ele o faz num contexto histórico muito preciso: o da reconstrução da Alemanha e da progressiva instauração de um modelo capitalista triunfante na República Federal Alemã durante os “anos Adenauer”. 1949. 9 Tempos atrás li uma reportagem a esse respeito na Folha de S. 1966. “Erziehung nach Auschwitz”. Dito brutalmente: conseguimos muito bem. seu primeiro esforço consistia em tentar dizer o indizível. certa impaciência quando se insiste na rememoração da Shoah (sobretudo tendo em vista os conflitos presentes na Palestina). ignoram. É próprio da experiência traumática essa impossibilidade do esquecimento. 1990). Quando. muitas vezes. a situação mudou. Paz e Terra. numa atitude de testemunha de algo que não podia nem devia ser apagado da memória e da consciência da humanidade. o imperativo categórico kantiano.natural. essa insistência na repetição. Adorno retoma. Adorno escreve vários ensaios sociológicos e filosóficos sobre a necessidade de não se esquecer Auschwitz. o que essa estranha palavra “Auschwitz” representa. Diz ele na Dialética negativa: “Hitler impôs um novo imperativo categórico aos homens em estado de não-liberdade: a saber. 10 O que significa elaborar o passado? 99 .9 E mesmo na velha Europa surge. como aos olhos do anjo da história benjaminiano. restauradoras. de Srebrenica a Jenin. Não considero nuance irrisória de vocabulário o fato de que Adorno. Frankfurt/Main. Somente pode haver imperativos singulares e tanto mais imperativos ou necessários quanto não foram escolhidos. Nesse sentido. Imperativos nascidos da violência histórica. Adorno. de 11 Theodor W. mas semelhantes no horror e na crueldade — a lista é longa e continua se alongando.pensamento e seu agir de tal forma que Auschwitz não se repita. G.”11 Gostaria de fazer três observações a respeito dessa citação bastante famosa: Este imperativo categórico é novo. que nada de semelhante aconteça. homenagem à autonomia e à responsabilidade moral da humanidade esclarecida. Suhrkamp. Tradução de J. 12 100 Lembrar escrever esquecer . Walter Benjamin. porque ele nos foi imposto (aufgezwungen) historicamente por ninguém menos que Hitler. há muitos outros acontecimentos diferentes. A distinção entre idêntico e semelhante tem o mérito de ressaltar a singularidade dos acontecimentos históricos. Isto é: não o escolhemos. “Thesen über den Begriff der Geschichte”. ele não defende incessantes comemorações. p. nesse sentido restrito. ou seja. Essa dupla formulação é significativa. Gesammelte Werke I-2. fale muito mais de uma luta contra o esquecimento que de atividades comemorativas. de genocídios. única — mas não é o único acontecimento na longa cadeia de horrores. de aniquilações. 697-8. Frankfurt/Main. para que Auschwitz não se repita. não da escolha livre do idealismo. tese IX. a Shoah é singular sim e. Suhrkamp. mas semelhantes). o novo imperativo categórico não foi cumprido já que as ruínas continuam crescendo até o céu. 1970. em outros artigos já citados. 1974. pp. Negative Dialetik. porque não pode haver na história nenhuma repetição idêntica. 356. solenes. só existem horrores recorrentes e semelhantes (não iguais. Parece que não existe mais a possibilidade de formular uma legislação universal do imperativo categórico.12 Adorno não afirma que devemos nos lembrar sempre de Auschwitz. mas sim que devemos fazer tudo para que algo semelhante não aconteça. sobretudo. É importante observar que Adorno não diz que devemos nos lembrar sempre de Auschwitz. M. e antes de tudo. segundo Adorno? Porque o peso do passado era tão forte que não se podia mais viver no presente. Há um esquecer natural. clarificação ou atividade pedagógica racional de colocar claramente um problema (por exemplo. “Was bedeutet Aufarbeitung der Vergangenheit?”. explicitação. comum. devemos ressaltar novamente que. G. Adorno estabelece uma relação muito clara entre culpabilidade e vontade de esquecimento. aqui. Tradução de J. Lembro que essa palavra também é usada no sentido cotidiano. reagem a isso. fazer de conta que não se sabe. o desejo de esquecer. por exemplo. como se fala tanto hoje. de explicação. quando se fala em “sexuelle Aufklärung”. obrigados a ouvir seus filhos levantarem a desagradável pergunta a respeito de Hitler. feliz. dizia Nietzsche.“resgate”. 1997. saber mas não querer saber. texto escrito em 1959. mas também a vontade. recalcar. não foi tão ruim assim. in Gesammelte Schriften. O que significa elaborar o passado? 101 . da Schuld alemã. Enfim. Frankfurt/Main. E por que os alemães dos anos 50 e 60 desejavam tanto esquecer. o medo. denegar. 10-2. esclarecimento. na verdade. educação sexual). já para inocentar a si mesmos. é porque não só a tendência a esquecer é forte. de maneira demasiado fácil. a supersti13 Theodor W. mas Aufklärung. esse peso era insuportável porque era feito não apenas (!) do sofrimento indizível das vítimas. o esclarecimento a respeito do acontecido deve trabalhar contra um esquecimento que. quando pais. vol.”13 Mesmo quando Adorno fala nesse ensaio da “destruição da lembrança” (Zerstörung der Erinnerung) e da necessária resistência a essa destruição. o que ajuda a compreensão clara e racional — contra a magia. a palavra-chave não é memória ou lembrança. M. Mas existem também outras formas de esquecimento. 568. se torna sinônimo da justificação do esquecido. falando dos bons lados e dizendo que. duvidosas: não saber. Ele escreve: “Antes de tudo. necessário à vida. p. Aufklärung designa o que fala com clareza à consciência racional. No ensaio que inspira o título desta comunicação. Se essa luta é necessária. da culpa dos algozes. Adorno. “O que significa a elaboração do passado?”. mas também. da acusação a propósito do passado. numa posição superior. do presente do filho. da recriminação. tem um alvo certeiro. e o acusador. que sempre pode gabar-se de não ser o culpado. Em outras palavras: não há. de juiz. igualmente. já que denuncia a culpa do outro. a respeito do próprio presente. ibidem. no presente comum ao juiz e ao réu. da parte de Adorno. 102 Lembrar escrever esquecer . desde o início. Mas a questão candente. O que.ção.”14 Essa defesa do poder esclarecedor da consciência racional. e o outro. esse belo gesto iluminista por parte de um filósofo que. ele se poupa um esforço doloroso de explicitação ou de esclarecimento — Aufklärung — a respeito do passado. assim. de torná-lo presente na memória para permanecer no registro da queixa. nenhuma sacralização da memória. O filho que recrimina o pai coloca-se a si mesmo. na de réu. a repressão. a única que deveria orientar o interrogatório ou a pesquisa. da acusação. melhor que qualquer outro. se se permanece na mera recriminação ou se se resiste ao horror através da força de ainda compreender o incompreensível. sem dúvida. a violência. soube denunciar os limites do Esclarecimento. evitar que “algo semelhante” possa acontecer agora. mas uma insistência no esclarecimento racional que se torna ainda mais evidente na página seguinte: “A mim me parece muito mais que o consciente nunca pode trazer consigo tanto desastre como o semi e o pré-consciente. Como já o ressaltou Nietzsche (que Adorno leu muito bem). não é nem sequer mencionada. Justamente porque vai além dos papéis de juiz e de acusado. Não se trata de lembrar o passado. 14 Idem. pelo menos conceitualmente. esforço que deve se transformar num gesto de explicitação. ou na denegação. e quer amenizar as culpas passadas. a denegação. quando há um enclausuramento fatal no círculo vicioso da culpabilidade. a questão da culpabilidade da questão da elaboração do passado. não é mais possível nenhuma abertura em direção ao presente: o culpado continua preso na justificação. essa exigência iluminista visa separar. a saber. importa realmente é a maneira pela qual o passado é tornado presente. contenta-se em parecer honesto. são observações ligadas a técnicas terapêuticas a partir de observações práticas. 85. de falar rapidamente de um texto de Freud que. mas não lembrar por lembrar. é. ibidem. Um parêntese: Adorno sabe (talvez melhor que nós!) dos limites de uma “pedagogia iluminista”. como um palimpsesto. elaborar”. 18 19 Paris. Mas ela continua imprescindível. para sobreviver. numa espécie de culto ao passado. Studienausgabe. sim. de esquecimento. “Lembrar. de uma “aufklärende Pädagogik”. os próprios textos freudianos de análise cultural permitem. Idem. cit. 207-15. l’histoire. isto é. Gostaria.16 A defesa da necessidade e do poder da Aufklärung não significa que ela seja onipotente para lutar contra o racismo e o fascismo.18 Paul Ricoeur propõe apoiar-se nas “propostas terapêuticas” de Freud19 para melhor 15 16 17 Idem. O contexto freudiano é clínico. de repetição. pp. Cito a edição de Freud em alemão. repetir. que é judeu e sobrevivente. Frankfurt/Main. uma exigência de análise esclarecedora que deveria produzir — e isso é decisivo — instrumentos de análise para melhor esclarecer o presente. É um pequeno escrito de 1914 intitulado “Erinnern. mais do que disposições subjetivas individuais. aqueles que não precisam. usadas para pensar também. 1975. diversas vezes. 2000. Op. antes de concluir.17 Palavras e conceitos freudianos são reencontrados no ensaio de Adorno — em particular os conceitos de Arbeit. muito mais. p. perlaboração ou travessia. No texto de Adorno. Noutro ponto. por analogia. Fischer. Seuil. Assim. no seu último livro. O que significa elaborar o passado? 103 . Mas essas preciosas observações foram. retomada do passado. 568-9. pp. elaboração. l’oubli. com o dado. tal analogia. wiederholen und durcharbeiten”. a exigência de não-esquecimento não é um apelo a comemorações solenes. se não justificam inteiramente. uma pedagogia emancipadora geralmente só atinge aqueles que já estão abertos a ideais emancipatórios. Durcharbeitung e Aufarbeitung — respectivamente de trabalho. Ergänzungsband.Devemos lembrar o passado. La mémoire. processos coletivos: de memória.15 É a ordem econômica injusta que leva os indivíduos a aderir a ideologias racistas e fascistas.. Aliás. mesmo que não explicitamente citado. ressalta ele. habita o ensaio de Adorno. diz ele. “se identificar” a qualquer custo “com o existente”. 104 Lembrar escrever esquecer . igualmente. Para a passagem de Freud. p. Para o texto em francês. ver Ricoeur. deve ele. de enfrentar a doença.”20 Estabelecer uma analogia entre essa recomendação clínica de Freud e os processos da memória coletiva encontra. Para que o paciente consiga alcançar o processo de “perlaboração”. alguns limites: sobretudo porque é difícil não ver no racismo. no fascismo ou na tortura. tipicamente iluminista. denegações e volta(s) violenta(s) do recalcado. Em outra passagem de La mémoire. merece a atenção de Ricoeur. para que consiga sair da repetição compulsiva. o paciente deve ousar fazer uso do seu próprio entendimento para sair de sua menoridade autoculpada. de recusa ou de recalque coletivo: “repetições”. p.. “Luto e melancolia” (“Trauer und Melancholie”). cit. 212. que Freud relaciona num outro texto. mesmo que tal compreensão não passe por uma cadeia de argumentos lógicos e deduções meramente racionais. afinal. cit. isto é. Uma observação terapêutica de Freud. uma parte de sua essência. processos. sempre reencenada. Sua própria doença não pode mais ser para ele algo de vergonhoso. algo de vergonhoso e desprezível (verächtlich). diz Ricoeur citando Freud. p. instauração de comissões de pesquisa ou de investigação sobre os acontecimentos passados. op. de perdão. isto é. para esclarecê-los. 86. Mutatis mutandis.. o passado.compreender os processos coletivos e políticos de elaboração do passado: políticas de anistia. em particular. G.21 o filósofo francês estabelece uma relação entre esses dois ensaios de Freud. 20 Tradução de J. de Freud para criar coragem — “Mut gefasst!”. op. sair do registro da queixa e da acusação. M. cuja presença tem boas motivações e da qual poderá extrair elementos preciosos para sua vida posterior. de não-elaboração. l’oubli. naturalmente. de graça. dizia já Kant —. cit. 21 Op.. sair da complacência na queixa. 85. da queixa incessante que se baseia na lembrança infeliz. compreendê-los. igualmente citado por Ricoeur. “adquirir a coragem de fixar sua atenção sobre as manifestações de sua doença. para. Mas o que é instigante aqui é o apelo. l’histoire. da Klage e da Anklage. ela deve se tornar um adversário digno. no luto. A aproximação operada por Ricoeur entre o trabalho de elaboração. no fundo. sugere que haja muitas afinidades entre a compleição melancólica e a “obsessão comemorativa” que descreve Pierre Nora. da autoacusação e da autojustificação. lembra dos mortos. esse sentimento é o de desvalorização.. Adorno e Ricoeur. em ambos os textos. do conceito de “trabalho” (Arbeit). Em oposição a essas figuras melancólicas e narcísicas da memória. Essa ligação instigante se baseia na importância. realizado por meio de um esforço de compreensão e de esclarecimento — do passado e. então. O que significa elaborar o passado? 105 . uma complacência narcísica na melancolia. certamente. na melancolia é o próprio eu que se esvazia.22 obsessão denunciada por Todorov no seu pequeno panfleto citado no início deste texto. defendem um lembrar ativo: um trabalho de elaboração e de luto em relação ao passado. Uma obsessão que também pode reinstalar. de empobrecimento. infinitamente. seja no de “trabalho de luto” (Trauerarbeit). a distinção entre “trabalho de luto” e “melancolia” remete a um sentimento anterior à perda concreta. para se instalar na tristeza e na queixa infinitas. o sentimento do eu (Ichgefühl). Ainda segundo Freud. permanecer no passado em vez de ter a coragem de ousar enfrentar o presente. também. que possibilita uma nova ancoragem na vida. do presente. que não tem mais a força de se recompor. Segundo Freud. em suma. isto é. Na compleição melancólica. de novos investimentos libidinosos e vitais. Freud. mas também por amor e atenção aos vivos. que permite sair da repetição. é o mundo que se torna vazio devido à ausência da pessoa amada. e o trabalho de luto. 22 Les lieux de mémoire. cit. as críticas que o sujeito melancólico endereça a si mesmo. seja nos conceitos de “elaboração” ou de “perlaboração” (Durcharbeitung). 110. de esvaziamento: enquanto. que fornece ao sujeito a grande “vantagem” de desistir do trabalho de luto. que permite.mesmo que este não o tenha feito. de viver novamente. Um trabalho que. reino onde o eu pode reinar incontestado. acusações (Anklagen) contra o objeto perdido e amado porque perdido: haveria. cada um no seu contexto específico. Nietzsche. p. suas incessantes queixas (Klagen) contra si são. por piedade e fidelidade. os sujeitos sociais no círculo da culpabilidade. 106 Lembrar escrever esquecer . Erich Auerbach. que caiu dentro da bacia. Abril. 1 Homero. por assim dizer. que tomara na palma da mão a perna de Ulisses. Homero quebra. 393-466) entre o primeiro toque da velha escrava e sua exclamação de regozijo. a um tempo. Homero. a voz se lhe tolheu na garganta. E tocando no queixo de Ulisses. tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Edição brasileira: São Paulo. Com efeito. meu filho querido! E eu não te reconhecia! Foi preciso primeiro ter tocado no corpo do meu amo!’”1 O leitor terá certamente reconhecido os famosos versos da Odisseia que contam a volta de Ulisses a seu palácio. 1946. quando esta. tu és Ulisses. encaixa um longo episódio de 73 versos (v. foi tomado de tristeza e de alegria. Dedico estas linhas à sua memória. 2 O rastro e a cicatriz: metáforas da memória 107 . o vaso oscilou e a água derramou-se pelo solo. Perspectiva. toca a cicatriz de sua perna. o suspense provocado pela narração da cena de reconhecimento. Berna. Erich Auerbach inicia seu clássico estudo Mímesis2 por este episódio e ressalta a peculiar estrutura temporal da escritura homérica. reconheceu a cicatriz. Canto XIX. os olhos se lhe encheram de lágrimas. e seu reconhecimento pela ama Euricleia. não devem ter decorrido dez segundos entre a primeira apalpada de Euricleia e seu grito de susto e de alegria. Mímesis. Odisseia. foi assassinado. largou o pé. 1978. ao apalpá-la. seu coração. Antônio da Costa Santos. disse: ‘sem dúvida. versos 467-75. 1998. “A velha. disfarçado de velho mendigo sujo. Francke. prefeito de Campinas pelo PT.8. ao lhe banhar os pés. porém. o bronze ecoou. São Paulo. O RASTRO E A CICATRIZ: METÁFORAS DA MEMÓRIA Na noite em que terminei de escrever este artigo. Então. deixando uma cicatriz em seu corpo — introduz nesses 73 versos. mas ele nos poupa e a narrativa volta à sala do palácio e a Euricleia assustada e feliz. sem dúvida. em cujo reino acontece a caça. durante a caçada. mostrar seu valor de herdeiro varão numa caça. um javali o feriu com sua alva defesa. como seu herdeiro. no tema da filiação. Em seguida.3 Receamos que Homero conte a história da caçada uma segunda vez. aonde fora acompanhado pelos filhos de Atólico [seu avô]”. às “palavras mágicas”. simbolicamente. Há. A aliança estabelecida pelo convite ao palácio e pelos pre- 3 Odisseia. segundo Auerbach. Prefiro antes ressaltar alguns elementos da lógica narrativa que a descrição da caça ao javali — que feriu o jovem Ulisses. O primeiro consiste na continuidade das gerações. por meio do motivo do avô que dá nome ao neto e assim o reconhece. deveria visitar seu avô. “alegraram-se com o regresso do filho. grave. a relação entre o nome do herói e o ancião. mais precisamente. receber presentes e. à escritura homérica. considerada por alguns comentadores uma interpolação. mas também. são e salvo. as condições de sua tradição.Mas não me interessa tanto aqui o problema da interrupção da ação e da concepção de tempo subjacente. a relação entre Ulisses e seu avô materno. interrompe a ação do Canto XIX para realçar dois elementos que me parecem essenciais no contexto sociopoético da Odisseia. mas ela é rapidamente curada. Essa descrição traz alguns elementos instigantes para entendermos as condições de transmissão da narrativa da Odisseia. de Odysseus). para a casa de seus pais em Ítaca. um último motivo essencial: a ferida sofrida então pelo jovem Ulisses é. e sobretudo. não é mais um arranhão de menino. assim diz Homero. no Parnaso. versos 462-7 cit. que fazem o sangue estancar rapidamente — palavras que possibilitam o retorno de Ulisses. e quiseram ser informados de todos os pormenores relativos ao acidente e à cicatriz. escolhe para ele o nome de Ulisses (isto é. graças às encantações. 108 Lembrar escrever esquecer . ao conhecer seu neto recém-nascido. Estes. não só graças à atadura benfeita. pois é este último que. Essa — para nosso gosto moderno — longa descrição. Ele contou-lhes como. há o fato de que a caçada foi o resultado de um convite formal feito pelo avô ao menino na infância: quando este crescesse. também. em primeiro lugar. Enfim. também. de poder da palavra e de necessidade da narração. Ulisses. Na história da ferida que vira cicatriz encontramos. por assim dizer. suficiente e devesse ser assegurado enfaticamente em público. depois da errância. do herói. jovem. a eficácia da palavra compartilhada numa tradição comum e a temática da viagem de provações. mas desta vez herói feito e rei desconhecido. Brasiliense. promessa de reconhecimento e de realização.sentes oferecidos reforça este motivo da filiação — como se o laço de sangue não fosse. em sua volta. Livraria Duas Cidades/Editora 34. então. por si só. São Paulo. terminaria bem e parece que ainda hoje escutamos ressoar o barulho da bacia que Euricleia derruba. Encontramos também o motivo da viagem de provações e do regresso feliz à pátria. Reflexões sobre a obra de Nicolai Leskov”. Todos esses temas culminam no reconhecimento pleno. Essa conjunção feliz marca até hoje as narrativas do Ocidente. 1985. sem esquecer a tragédia e o romance. Quando Walter Benjamin fala do fim da narração e o explica pelo declínio da experiência (Erfahrung). de aliança. os textos “Experiência e pobreza” e “O narrador. em Walter Benjamin. mesmo que diferida. Nesta passagem ele faz uma narrativa que prefigura a outra longa narrativa que fará mais tarde. apesar de todos os sofrimentos. quando tiver regressado mais uma vez à pátria. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória 109 . em particular. no prelo). No episódio da caça ao javali. *** 4 Ver. O segundo elemento consiste na afirmação da força da palavra: da palavra dada pelo avô ao neto no nome e no convite. fonte da experiência autêntica — mesmo que seja para afirmar que estes motivos perderam suas condições de possibilidade na nossa (pós)modernidade. impacientes em saber o que aconteceu. narra.4 ele retoma exatamente os mesmos motivos: a continuidade entre as gerações. uma mini-odisseia dentro da Odisseia. na corte dos Feácios e. a Penélope. que a história. da palavra enquanto narração — o jovem Ulisses volta para casa e conta suas aventuras aos pais. as noções de filiação. Nova edição: São Paulo. desde os contos de fada até as novelas de televisão. então. das palavras mágicas que curam a ferida e. mesmo que postergado por ele mesmo. A cicatriz de Ulisses nos prometia. vemos a água esparramar-se no chão da sala escura e gostaríamos de acreditar nessa bela. Obras escolhidas I (tradução de Sérgio Paulo Rouanet. “Orte”. Formen und Wandlungen des kulturellen Gedächtnisses. este sonho de uma narração simultaneamente necessária e impossível substituiu a longa narrativa de Ulisses. “Schrift”. por sorte. de meio (Medium) e de modo de armazenamento (Speicher). De Mnemosyne à tecla save do computador. em seu próprio país. “Körper”. Na primeira parte. a temática do trauma torna-se predominante na reflexão sobre a memória. Rocco. A ferida não cicatriza e o viajante. e passam. consegue voltar para algo como uma “pátria”.6 No quarto capítulo. “Escrita”. “Lugares”. na corte atenta dos Feácios. 110 Lembrar escrever esquecer . Beck. quando. Munique. recalcados ou não. 6 Respetivamente: “Zur Metaphorik der Erinnerung”. São mudanças de função. Depois da Segunda Guerra Mundial não se reconhece mais o forasteiro pela cicatriz da infância — ele continua estrangeiro a si mesmo e a seus familiares. Erinnerungsräume. depois da Shoah. O trauma é a ferida aberta na alma. Rio de Janeiro. Assmann desenrola uma pluralidade de figuras que nos obriga a matizar nossas oposições básicas entre memória coletiva e memória individual. mas que não conseguem ser elaborados simbolicamente. “Corpo”. 1999. mas seus familiares mais próximos não o escutam. Ao que parece. entre memória e história. ou. “Imagem”. por acontecimentos violentos.Em seu livro sobre os “espaços do lembrar”. É isto um homem?.7 — ao voltar para casa. não podem ser curadas nem por encantações nem por narrativas. sob o título geral de “Meios” (Medien) se compõe de cinco capítulos: “Das metáforas do lembrar”. O sonho paradigmático de Primo Levi em Auschwitz. ele começa a contar seus sofrimentos. levantam e vão embora —. “Corpo”. fincada no tronco secular de uma oliveira. sobretudo. durante reiteradas noites de vigília e de vinho. entre memória e esquecimento. pelo sujeito. A segunda parte do livro. ou no corpo. na cama nupcial reencontrada. então. não encontra palavras para narrar nem ouvintes dispostos a escutá-lo. em particular sob a forma de palavra. o relato feito a Penélope. Aleida Assmann. ela expõe as transformações históricas por que passaram. 7 5 Primo Levi. as feridas dos sobreviventes continuam abertas. “Bild”. Ora. 1988. depois das duas Guerras Mundiais e. a memória (Gedächtnis) e a lembrança (Erinnerung) humanas.5 Aleida Assmann estuda aquilo que chama de “formas” e “transformações” da memória cultural. a temática do trauma chama a atenção. letras. aliás. a tábua de cera de Aristóteles. usando um vocabulário hermenêutico. Hoje. problemática fatal quando se tenta aferir o grau de fidelidade ao real de uma lembrança. nossas memórias. a escrita escape com mais facilidade da problemática da aparência e da realidade. particularmente. como veremos no final desta exposição.Aleida Assmann se detém ainda numa outra metáfora-fundadora de nossa concepção de memória e de lembrança: a da escrita. muitas vezes decifra. como se fossem sinônimos — o que não são necessariamente. 2a edição). desde as estelas funerárias até os e-mails efêmeros que apagamos depois do uso — sem esquecer. 2004. os papiros. pelo menos em nossos alfabetos europeus. naturalmente. lê as obras. Apesar das críticas de Platão. Aleida Assmann observa que os conceitos de escrita e de rastro foram empregados. a imagem da imagem justamente. como observou uma amiga curadora.8 Por que a dominância dessa metáfora da escrita? Talvez por ser mais arbitrária que a imagem. tomado de empréstimo às ciências da escrita e do texto. continuamos falando de escrita. a crítica especializada. até mesmo filológico. Como pode traduzir — transcrever — a linguagem oral. E. e apesar da tão comentada preponderância contemporânea das imagens sobre o texto. Gramatologia (tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória 111 . por sua vez colocados totalmente sob suspeita. nossa tradição e nossa identidade. os palimpsestos. escrita. remeto o leitor à obra de Jacques Derrida. rabiscar. este rastro privilegiado que os homens deixam de si mesmos. muitas vezes. São Paulo. inscrição quando tentamos pensar em memória e lembrança. fragmentos de texto e rascunhos invadem as artes plásticas como se o gesto de gravar. escritura. quando tenta refletir a respeito das práticas artísticas contemporâneas. Embora sempre tivesse havido uma outra imagem para dizer esses mecanismos. o bloco mágico de Freud. a escrita se relaciona essencialmente com o fluxo narrativo que constitui nossas histórias. traduz. literárias e psicológicas de descrever os mecanismos da memória e do lembrar. Perspectiva. bordar caracteres escritos ajudasse a reinventar os gestos miméticos tradicionais. como os de desenhar e pintar. parece que até hoje. para quem os caracteres escritos se asseme- 8 Sobre a importância decisiva dos conceitos de escrita/escritura — e de sua recusa — na constituição do discurso metafísico ocidental. os livros e as bibliotecas: metáforas-chave das tentativas filosóficas. a Guerra do Peloponeso.12 no século XVIII. 275d. palavra. mortos e sedutores —. contra a indiferença da morte. por exemplo. um tesouro para sempre.. Já no século XIX. Contemporâneo de Platão. às vezes. Livro I. A farmácia de Platão (São Paulo. como nos santuários da memória universal. de Jacques Derrida. o poeta tenta erguer um pequeno túmulo de palavras. tradução de Ana Lia Amaral de Almeida Prado. escrita. Iluminuras. 204-5. e não mais em oposição Platão. A outra refere-se. com rigor e paixão.10 isto é. todos lutam contra o esquecimento. orais e decoradas. quando alguém escreve um livro. l’amour. como se seu texto fosse um derradeiro abrigo contra o esquecimento e o silêncio. 1999. 22. cit. Jean-Pierre Vernant11 lembra que a palavra sèma tem como significação originária a de “túmulo” e. Tucídides. E. depois escritas e recopiadas. op. Martins Fontes. em particular. sob a suspeita maior que afeta toda atividade mimética — cujos produtos são. portanto. Ele lhe lega um ktèma eis aei. 1989. 70-3. uma aquisição. durante muito tempo. a escrita foi. pp. ver a este respeito. la mort. que inscreve um rastro duradouro no turbilhão das gerações sucessivas. A guerra do Peloponeso. mais seguro que a fama oral dos poetas. Fedro. a de “signo”. Tucídides critica a transmissão oral e escreve. 11 12 10 9 Ver L’individu. pp. uma marca capaz de sobreviver à morte de seu autor e de transmitir sua mensagem.9 e caem. Aleida Assmann. 112 Lembrar escrever esquecer . Essa aura de duração ainda hoje impregna as grandes bibliotecas em que penetramos. apostando no leitor da posteridade. Gallimard. túmulo. signo. ainda nutre a esperança de que deixa assim uma marca imortal. farrapos de um tecido que se rasgou. só depois. considerada o rastro mais duradouro que um homem pode deixar. os monumentos de pedra ou as imagens de mármore. Paris. fragmentos de um passado desconhecido. Tal confiança na escrita como rastro duradouro e fiel começa a ser abalada. em homenagem à glória dos heróis mortos. à “zoographia”. as fontes escritas não são mais consideradas documentos integrais e confiáveis. Pois o túmulo é signo dos mortos. simultaneamente. Acentua-se a consciência da fragilidade e da caducidade das criações humanas.lham demais à pintura. São Paulo. na ponta dos pés e em silêncio. Desde a Ilíada. mas sim documentos aleatórios. ao poeta William Wordsworth (1770-1840). com o historiador Thomas Carlyle. diz Aleida Assmann. 1991). 14 devem decifrar não só o rastro na sua singularidade concreta. em particular. de Carlo Ginzburg. referência linguística clara. portanto. mas no sentido preciso de um signo ou. o rastro reflete a atividade e os passos do animal que 13 14 Idem. mas em oposição à soberana indiferença dos ciclos naturais. p. ecoa na sabedoria de Dionísio e de Zaratustra em Nietzsche e nas alegorias de um Baudelaire. às vezes da violência. 1991). o arqueólogo e o psicanalista. decisivo até hoje. muitas vezes violento. que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória 113 . Agora a escrita não é mais um rastro privilegiado. Sobre este parentesco.13 Rastro que é fruto do acaso. Rigorosamente falando. de um sinal aleatório que foi deixado sem intenção prévia. a obra voluntária ou involuntária do criminoso. ele denuncia uma presença ausente — sem. rastros não são criados — como são outros signos culturais e linguísticos —. mas também tentar adivinhar o processo.à criação divina — como no Barroco. 209. O detetive examina como signo revelador tudo o que ficou marcado nos lugares do crime. sinais. Num contexto bastante diverso. o decifrar dos rastros também é marcado por essa não-intencionalidade. Companhia das Letras. O motivo da caducidade. Mas exerce também o papel de signo. de sua produção involuntária. Mitos. mais duradouro do que outras marcas da existência humana. emblemas. prejulgar sua legibilidade. “O rastro não é um signo como outro. o caçador anda atrás do rastro da caça. esses primos menos distantes do que podem parecer à primeira vista. por exemplo —. sim. no entanto. mas sim deixados ou esquecidos. Emmanuel Levinas ressalta com agudez as semelhanças e as diferenças importantes entre signo e rastro. O detetive. Ela é rastro. deixado por um animal que corre ou por um ladrão em fuga. o ensaio “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” (São Paulo. O que nos importa aqui é que tal consciência da fragilidade e do efêmero altera profundamente a significação da metáfora mnemônica da escrita. especificamente do traço escrito como rastro. talvez melhor. como observou Walter Benjamin. Pode ser tomado por um signo. da negligência. ver. que não possui. Como quem deixa rastros não o faz com intenção de transmissão ou de significação. ele quer abater. vol. Seuil. O exemplo do ladrão Emmanuel Levinas. tradução de Pergentino Pivato (ligeiramente modificada por J. No fim do capítulo consagrado a esse conceito.. própria da concepção técnica contemporânea. III (Paris. remete a uma figura que maquinações e significações humanas não podem apreender em sua integridade. vem como em ‘sobre-impressão’. Petrópolis. no cuidado de realizar um crime perfeito. 16 15 114 Lembrar escrever esquecer . Ser.”15 Levinas enfatiza nestas linhas o caráter não-intencional do rastro. aquele que quis apagar seus rastros. as civilizações antigas como horizontes de nosso mundo. um signo/sinal desprovido de visada significativa. é passar. onde cada coisa revela outra ou se revela em função dela. em um mundo. no qual Heidegger estabelece uma relação entre a vontade de tudo controlar.). publicado no Cahier de l’Herne consagrado a Heidegger (Paris.. A respeito do conceito de “rastro” em Levinas. pela organização e ordenação humanas — uma esfera de alteridade radical que. 1983). mesmo tomado como signo. 1985. na modalidade de deixar um vestígio.. pelos cálculos. nada quis dizer nem fazer pelos rastros que deixou. “Esquisses tirées de l’atelier” (1959). Vozes. pp. As análises desse capítulo foram retomadas por Paul Ricoeur. Sua significância original desenha-se na marca impressa que deixa. a partir dos vestígios que sua existência deixou.16 ele afirma a presença de uma outra esfera de realidade que a definida pelas intenções. Mas. Aquele que deixou rastros ao querer apagá-los. Tudo se dispõe em uma ordem. Antônio Abranches me assinalou o fragmento de Heidegger. num contexto de reflexão historiográfica. 1993. Humanismo do outro homem. pp. absolver-se. partir. por exemplo. Pois ele passou absolutamente. G. M.] O rastro autêntico [. o historiador descobre. e a recusa em perceber e buscar o rastro de uma presença outra. Mas não precisamos seguir Levinas nessas conclusões teológico-filosóficas para poder concordar com sua descrição do rastro como um signo aleatório e não-intencional. em Temps et récit. 75-6.. Ele decompôs a ordem de forma irreparável. 175-83).] decompõe a ordem do mundo. para Levinas. o rastro tem ainda isto de excepcional em relação a outros signos: ele significa fora de toda intenção de significar [de faire signe] e fora de todo projeto do qual ele seria a visada. [. a figura de Deus. a ilusão da posse e do controle de sua vida. às convicções. seu cachorro. de inventar resistências coletivas ao processo coletivo de alienação. mas também totalmente vão de resistência ao anonimato da sociedade capitalista moderna.. em vez de reforçá-lo por pequenas soluções privadas de consumo. deixa outros que não quis.17 Este poema abre o livro intitulado Aus einem Lesebuch für Städtebewohner (Manual para habitantes de cidades). é eloquente: enquanto os signos. sua pobreza. tentar desesperadamente ainda imprimir sua marca — deixar seu rastro — nos indivíduos próximos e nos objetos pessoais. 51-2 e nota correspondente. em sua família. Não há mais nenhuma experiência comum. “Verwisch die Spuren” (“Apague os rastros”). ao querer apagar seus rastros. em vez de consolar o indivíduo solitário e anônimo por um Ersatz. Segundo Brecht e Benjamin. aos desejos do seu autor. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória 115 . quando se trata. seus bens. quando esta escapou há tempos da determinação singular de seu dono. Em “Experiência e pobreza”. com seus filhos. um substituto. sobretudo os signos linguísticos. Não posso deixar de lembrar aqui o famoso poema de Brecht. de comunidade.. um título que também assinala a transformação do cenário lírico contemporâneo. a arte deve incitar cada um a contar somente com suas próprias forças e a recomeçar a partir do zero. esse gesto artístico iluminista se opõe às tentativas ilusórias de apropriação privada que deveriam compensar a desapropriação coletiva: recolher-se em sua casa. um gesto não só ingênuo e ilusório. 17 Ver pp. então. isto é. dizem Brecht e Benjamin. depois do trauma da Grande Guerra (na época em que o texto foi escrito.). assim. que permita reconstruir um mundo acolhedor. sua mulher. compartilhada por todos.que. ressaltam sua solidão. O poema também pode ser lido como um manifesto das artes de vanguarda que. Gesto vão porque restrito ao âmbito particular e individual. Em vez disso. ainda a Primeira. seus livros etc. Tentar ainda deixar rastros seria. Walter Benjamin interpreta esse poema como o emblema da solidão e da necessária sobriedade contemporâneas. citado no capítulo 4 deste livro. tentam transmitir uma “mensagem” relacionada às intenções. cultivar. sua desorientação e tornam impossível qualquer tentativa de retorno a valores ditos seguros ou a deuses já mortos. seu homem. 1933.. o rastro pode se voltar contra aquele que o deixou e até ameaçar sua segurança. assistimos hoje a mais uma transformação no conceito de rastro: desprovido da durabilidade que podia ligá-lo à escrita. mas. Em nosso continente. que o Reich alemão não seria o vencedor — que ele não seria. Paz e Terra. 116 Lembrar escrever esquecer . Segundo ela. entregue 18 São Paulo. Ela também enuncia. depois da Batalha de Estalingrado. *** Tais estratégias de aniquilação dos rastros apontam. os raciocínios negacionistas posteriores. Não se pode nem afirmar que as pessoas morreram. Quando se tornou claro. A ausência total de túmulo e de rastros que pudessem servir de documentos ou de provas prepara assim. mas não menos dramática. oferecida pelo belo livro de Aleida Assmann.” —. Em seu último livro. para a sugestão. depois. nega-se a existência mesma do assassínio. de certo modo. como diz Primo Levi — então deu-se início à destruição dos rastros da própria destruição. na lógica nazista. de maneira profética. portanto. acerca da interpretação das práticas artísticas contemporâneas. já que elas desapareceram sem deixar rastros. “o senhor da verdade futura”... de erguer um monumento que lembrasse os mortos. Tortura-se e mata-se os adversários. sem deixar também a possibilidade de um trabalho de homenagem e de luto por parte dos seus próximos. ele descreve de maneira premonitória os mecanismos de abandono e demissão da responsabilidade individual que os regimes totalitários do século XX iriam instaurar. a estratégia nazista de aniquilação não só dos prisioneiros nos campos.18 Primo Levi insiste na vontade explícita de aniquilação dos rastros pelos nazistas. quando pensar em morrer/ Para que não haja sepultura revelando onde jaz. Os afogados e os sobreviventes. Com efeito. a respeito da ausência de túmulo — “Cuide. Em particular a última estrofe. não significa somente um desmentido radical da antiga tarefa do poeta (e do historiador). mas ainda dos rastros de sua morte em massa. Os cadáveres já em decomposição nas fossas comuns foram desenterrados pelos prisioneiros sobreviventes e queimados. também a maior parte dos arquivos dos campos de concentração foi destruída ainda alguns dias antes da chegada dos aliados. a luta dos familiares dos desaparecidos também se opõe à mesma estratégia política de aniquilação.Podemos também ler esse poema de maneira menos militante. 1989. o próprio gesto é o mesmo em ambos. Trapeiro e poeta — os dejetos dizem respeito a ambos. se detém no seu caminho para recolher o lixo em que tropeça. Trata-se de uma passagem de Paradis artificiels: “Voici un homme chargé de ramasser les débris d’une journée de la capitale. do Lumpensammler. Tudo o que a grande cidade jogou fora. o sucateiro. mastigado pela deusa da Indústria. o lixo que. Cito Benjamin: “Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heroico. como um avarento um tesouro. deve ser também o passo do trapeiro que. Muitas práticas artísticas contemporâneas retomam o gesto do chiffonier. poema muito conhecido das Fleurs du Mal. in Walter Benjamin. ele o cataloga. a todo instante. solitários. 1989. pp. essa figura heroica da poesia de Baudelaire que Benjamin realçou. recolhe.”20 “Le vin des chiffoniers”. o trapeiro.à caducidade e mesmo à clandestinidade. tradução de José Carlos Martins Barbosa. Com isso. ele o coleciona. ambos realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregam ao sono. ele procede a uma separação. tudo o que desprezou. do lixo. tout ce 19 O rastro e a cicatriz: metáforas da memória 117 . Compila os arquivos da devassidão. da sucata. tudo o que quebrou. modificada pela autora (São Paulo. Um ano antes de ‘O vinho dos trapeiros’19 foi publicada uma descrição em prosa dessa figura: ‘Aqui temos um homem — ele tem de recolher os restos de um dia da capital. capítulo “A Modernidade”. tornar-se-á objeto de utilidade ou de gozo’. Nadar fala do pas saccadé [passo intermitente] de Baudelaire. no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um tipo comum. Benjamin cita este mesmo fragmento de Baudelaire no caderno J do Passagen-Werk. tudo o que ela perdeu. Essa descrição é uma única metáfora ampliada do comportamento do poeta segundo o coração de Baudelaire. 20 Walter Benjamin. é o passo do poeta que erra pela cidade procurando a presa das rimas. dos detritos. Tout ce que la grande cité a rejeté. a uma escolha inteligente. Paris do Segundo Império. Obras escolhidas III. 78-9). o rastro se aproxima dos restos. de Baudelaire. Brasiliense. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou Baudelaire tão assiduamente. o cafarnaum da escória. il ramasse.22 Hoje não existe mais nenhuma certeza de salvação. cit. ainda menos de Paraíso. na visão de Benjamin. Também cumprem a tarefa silenciosa. poetas. 1961. da miséria. 327. Oeuvres complètes. Suhrkamp. Frankfurt/Main. V-1 (p. Com aquilo que é jogado fora. poetas e artistas constroem suas coleções. No ensaio já citado “O narrador” (edição brasileira. essa reunião paciente e completa de todas as almas no Paraíso. o trabalho de apokatastasis. 390: “Ein kleines Museum für den Rest der Welt”. No entanto. Ao juntar os rastros/restos que sobram da vida e da história oficiais. do narrador autêntico e. ao mesmo tempo. montam suas “instalações”. comme un avare un trésor. le capharnaüm des rebuts.O chiffonier. il le catalogue. ainda possível: a tarefa. p. Il fait un triage. com esses rastros/restos de uma civilização do desperdício e. remâchées par la divinité de l’Industrie. podemos — e talvez mesmo devamos — continuar a decifrar os rastros e a recolher os restos. não efetuam somente um ritual de protesto. vol. trapeiros. anota Benjamin. tout ce qu’elle a dédaigné. rejeitado. Gallimard. mesmo hoje. il le collectionne. citado em mais de uma passagem por Benjamin. p. Il compulse les archives de la débauche. qu’elle a perdu. Paris. anônima mas imprescindível. 573. 216) e no trabalho inacabado do Passagen-Werk. Baudelaire. tout ce qu’elle a brisé. deviendront des objets d’utilité ou de jouissance”. seu “pequeno museu para o resto do mundo” na expressão do artista russo Ilya Kabakow. les ordures qui. segundo a doutrina teológica (julgada herética pela Igreja) de Orígenes. mesmo das mais humildes e rejeitadas. citado por Aleida Assmann. 21 22 Op. esquecido. é a figura provocatória da miséria humana. artistas e mesmo historiadores. fragmento N1a). p. Também é uma nova figura do artista.21 Poderíamos também evocar Arthur Bispo do Rosário e suas infinitas coleções de latas usadas ou de barbantes. un choix intelligent. 118 Lembrar escrever esquecer .. 1982. Gesammelte Schriften. ESCRITURAS DO CORPO Quando convidada a participar deste colóquio. na medida em que o obsessivo apego contemporâneo à memória — tal como esta se escreve e inscreve. entre elas porque gosto desse tipo de empreendimento interdisciplinar no qual contam mais as preocupações comuns do que as respectivas proveniências e especialidades. Vou proceder de forma quase escolar. sobretudo. na medida do possível. analisando mais de perto alguns motivos do texto.9. mas publi- Escrituras do corpo 119 . nem o texto nem o próprio Kafka conseguiriam encontrar uma resposta satisfatória. isto é. políticas ou psicanalíticas. lê-los como grandes alegorias religiosas. depois citarei as interpretações mais correntes e tentarei refutar determinados pontos. esta novela de Kafka como que se perfilava no horizonte de rastreamento de um motivo literário e filosófico clássico: escritas da memória. Na colônia penal é uma das novelas mais extensas de Kafka. hesitei porque não sou nem um pouco “especialista” no assunto “corpo”. Horizonte que compreende também a atual desagregação deste vínculo. Foi escrita em 1914. Acabei aceitando por várias razões. mas. Gostaria de aproveitar esta ocasião para reler com vocês esta narrativa. lê-los como significando algo diferente daquilo que dizem. uma das mais cruéis e enigmáticas de Kafka. memórias da escrita. tendo por ponto de partida o episódio da cicatriz de Ulisses. suspeito. Proponho então os seguintes passos: vou resumir a narrativa e indicar seu contexto na obra de Kafka. Depois de escrever um pequeno texto sobre o rastro e a cicatriz como metáforas da memória. nas grandes telas de Anselm Kiefer ou nos papéis translúcidos de Mira Schendel — pode ser entendido como um sinal de ameaça de seu desaparecimento. por exemplo. a mais longa depois de A metamorfose. Concluirei com algumas questões para as quais. porque associo a temática “escrituras do corpo” a uma narrativa de Kafka que sempre quis analisar melhor: Na colônia penal. a armadilha maior dos textos kafkianos: lê-los já os interpretando. tentando evitar assim. como seu início deixa muito claro: “— É um aparelho singular. atualmente republicado pela Companhia das Letras). 2a edição. mesmo que haja diferenças importantes no seu tratamento. 31. podemos afirmar que a máquina é a personagem principal do texto. Uma personagem também importantíssima. disse o oficial ao explorador. o novo se parece mais com um rei esclarecido. cujo discípulo mais fiel é o oficial. em termos histórico-antropológicos. Brasiliense. Neste sentido. também. Narrativa e romance têm vários motivos em comum. Sua descrição minuciosa — à qual o oficial se entrega com entusiasmo e com deslumbrada admiração. portanto. que só vêm temperar as exigências de um relato científico e objetivo — ocupa mais da metade da narrativa. O antigo não tinha somente poder político: era. engenheiro. incluída no volume O veredicto/ Na colônia penal (São Paulo. ainda durante a vida do autor. Sua evocação respeitosa pelo oficial lembra. a figura do rei absoluto.cada somente em 1919. simultaneamente. o condenado e um soldado. justamente por não ser uma pessoa. é a máquina. juiz supremo e mestre da verdade numa 1 Franz Kafka. mas forte. Cito aqui a tradução de Modesto Carone. Kafka escreve também um romance inacabado. A máquina foi inventada e construída pelo falecido comandante da ilha. juiz supremo e. 120 Lembrar escrever esquecer . um aparelho que resplandece ao sol. uma máquina de tortura e de execução. Ela é. Na colônia penal tem quatro personagens principais: o viajante (der Reisende.”1 Devemos mencionar ainda duas personagens ausentes. Uma relação de oposição surda. Em 1914. percorrendo com um olhar até certo ponto de admiração o aparelho que ele no entanto conhecia bem. as descrições de Marcel Détienne quando analisa. os caracteriza. inventor. Enquanto o antigo comandante se assemelha a um monarca absoluto. na Grécia arcaica. Narrada na terceira pessoa. montada num lugar isolado da ilha da colônia. O processo. traduz Modesto Carone). Na colônia penal. 1988. o oficial. o explorador. mas essenciais para o desenrolar da narrativa: o antigo e o novo comandantes. p. mesmo que de maneira parodística e ridícula. ao mesmo tempo. mas com um intervalo de cinco anos entre a redação e a publicação (veremos algumas razões dessa demora). ao reduzir os três poderes — do guerreiro. cit. vol. mas não se vale dele de maneira desimpedida para se livrar de seus inimigos. in Ein Landarzt und andere Drucke zu Lebzeiten/Gesammelte Werke in zwölf Bänden. construtor. pois trago aqui — bateu no bolso do peito — os desenhos correspondentes. 38-9. coloca em questão a autoridade e a competência do antigo comandante.3 pelo comandante morto. Maspero. — Então ele reunia em si mesmo todas as coisas? Era soldado. feitos à mão pelo antigo comandante. Escrituras do corpo 121 . ironia que o oficial não percebe. Fischer. Frankfurt/Main. aliás. meneando a cabeça com o olhar fixo e pensativo. o novo comandante espera se aproveitar da visita do viajante. estou nas melhores condições de esclarecer nossos tipos de sentença. juiz. — Desenhos feitos pelo próprio comandante? — perguntou o explorador. pp. 4 Na colônia penal. 1. químico.só pessoa. Paris. para se livrar dos poucos discípulos remanescentes do seu antecessor 2 Marcel Détienne. como eu dizia. químico. ainda segundo o oficial. 1994. Ainda tem grande poder. 3 Franz Kafka. “In der Strafkolonie”. da figura do rei esclarecido. Assim. portanto): “— Seja como for [é o oficial que fala].2 Assim também as sentenças judiciais instituídas pelo antigo comandante não remetem a um código de leis e de penas diferenciadas.”4 Diga-se de passagem: a enumeração “soldado. juiz. Citado a partir de agora como Ein Landarzt. promovido de repente a especialista. que cabem numa pequena bolsa de couro que o oficial traz sobre seu peito (perto do coração. desenhista? — Certamente — disse o oficial. mas a algumas poucas sentenças escritas ou desenhadas à mão (Handzeichnungen). 166. servir-se de argumentos racionais e científicos para reformar o Estado.. Les maîtres de vérité en Grèce archaïque. desenhista”. 1981. p. do rei e do juiz — a uma lista de profissões modernas especializadas. construtor. Quanto ao novo comandante — que também só conhecemos graças às falas do oficial — ele se aproxima. Prefere manobrar. isto é. o senhor está pelo segundo dia na ilha. não conheceu o antigo comandante nem suas ideias. p. desabafa o oficial. 57. Diz o oficial: “— Ontem eu estava perto do senhor. talvez seja um opositor decidido da pena de morte em geral e em particular deste tipo de execução mecânica. mantém-se preso à visão europeia das coisas. Esta curiosa vaidade sexual é. 122 Lembrar escrever esquecer . Ouvi o convite.”5 Além deste viés calculista. aliás. os negócios. como. Seus cálculos são cuidadosos. o novo comandante sempre aparece rodeado por um enxame de mulheres tagarelas e promíscuas. Idem. Torna-se claro por que o novo comandante da colônia é mais benquisto pela metrópole do que o antigo: em vez de manter na ilha uma ordem arcaica. em particular da máquina de execução. quando o comandante o convidou. bem de acordo com sua inclinação científica: as reuniões administrativas giram sempre ao redor de “temas de discussão sem importância. quer abri-la ao comércio internacional e ao turismo — pois o viajante também é um turista ao qual são mostradas as curiosidades locais. Entendi imediatamente o que pretendia com o convite. Para usar os conceitos sociológicos da época de Kafka. ele ainda não ousa fazer isso. Conheço o comandante. outras figurações do poder no Processo ou no Castelo. 62. mas quer sem dúvida me expor ao julgamento de um estrangeiro ilustre como o senhor. ridículos — na maioria das vezes são construções portuárias. que reforçariam o comércio. exploradores e empresários de outras regiões. construções que ajudariam a ilha a sair do seu isolamento. p.6 “Construções portuárias”. das instituições caducas por ele herdadas.e. a troca com viajantes. sobretudo. sempre as construções portuárias!”. contrabalançada por uma pulsão técnico-construtora. Embora o poder dele seja suficientemente grande para investir contra mim. baseada em ritos tão cruéis como exóticos de uma comunidade tradicional. o comandante quer substituir os ritos da comunidade de ou- 5 6 Idem. por assim dizer. Gesellschaft. O oficial se caracteriza. do mal-estar da modernidade — caracterizada pela rapidez e pela concorrência na oferta de “novidades” que. Briefe 2. Não posso mais cogitar nenhuma ampliação do processo. agem e reagem como representantes — um. domina a paisagem literária da época de Kafka. Escrituras do corpo 123 . antes de mais nada. que cita Tönnies. potencial (o viajante em relação ao novo comandante) — destes poderosos ausentes. As duas personagens principais. 205. segundo Benjamin. em termos de ação. Frankfurt/Main. p. seja o tribunal do Processo ou as autoridades do Castelo.”8 “Defender a herança do antigo comandante”: podemos ler essa narrativa como uma convincente ilustração do diagnóstico de Walter Benjamin sobre Kafka. são im- Empresto esta observação de Ritchie Robertson. é justamente sua ausência efetiva que torna sua presença numinosa mais ameaçadora e eficaz. aliás. dispendo todas as energias para preservar o que existe. 8 9 7 Na colônia penal. outro. a saber. assumido (o oficial em relação ao antigo comandante). 1988). um precursor da globalização! Insisto na importância desses dois personagens.7 O novo comandante é. cit. Essa questão dá provas. 53. que sua obra “representa uma doença da tradição”. aquele que defende sua memória e sua herança: “— Tanto o procedimento como a execução que o senhor está tendo oportunidade de admirar não têm mais nenhum adepto declarado em nossa colônia. Kafka.trora pela ordem mais racional. desde os debates do expressionismo alemão até as discussões dos escritores engajados de esquerda. como acontece com muitas figuras do poder em Kafka. 1966. embora eles não apareçam no palco da narrativa. Walter Benjamin. 763. Literatu (Stuttgart. o oficial e o viajante. Sou o seu único defensor e ao mesmo tempo o único que defende a herança do antigo comandante. p. diríamos hoje. anônima e universal da sociedade moderna.. carta a Scholem de 12/6/1938. como o último discípulo do antigo comandante. de maneira explícita. Metzler. p.9 A problemática da herança (Erbe) e dos herdeiros. Suhrkamp. Judentum. duas chaves de leitura frequentemente usadas para interpretar Kafka. também é. da tortura e da execução. como o uniforme. dois “nativos”. Quanto ao viajante. Idem. p.. O francês talvez seja uma alusão às numerosas colônias francesas na época. sua fidelidade. mesmo que defenda os “direitos humanos” do condenado! —. Acabará por se declarar adversário da máquina. esforça-se para prestar atenção nas suas explicações e tenta decifrar as inscrições labirínticas traçadas pelo antigo comandante. estes. seu interlocutor natural só pode ser o oficial. oficial e viajante tratam-se mutuamente como dois parceiros iguais. 124 Lembrar escrever esquecer . Enfim. A posição ambivalente do viajante se expressa simbolicamente nessa relação linguística: mesmo ao tomar finalmente partido contra a máquina. esse antropólogo em germe. em relação a seu passado (já caduco) e a sua tradição. a língua da burguesia culta. ao perceber a “desumanidade”13 (Unmenschlichkeit) da execução — isto é. Idem. separa de antemão o viajante e o oficial das duas outras personagens presentes. que só falam a língua do lugar e não compreendem a conversa dos “dois senhores”12 (Herren). 51. p. Mesmo que julgue o oficial “limitado”10 (beschränkt). Apesar das diferenças. um idioma comum.postas pela produção capitalista —. aliás. admira-se ao ver sua compostura no pesado uniforme apesar do calor tropical. o condenado e o soldado. ele é uma figura muito mais ambígua. por sua vez. pelo menos na época de Kafka. Mas tem ainda outra função essencial na novela: distingue. são naturalmente capazes de se comunicar. Idem. símbolo. também no idioma local. eles falam uma língua comum. capazes de manter um diálogo civilizado mesmo que não concordem entre si. da longínqua e amada pátria11 (Heimat). p. 10 11 12 13 Na colônia penal. cit. o francês. ele respeita sua dedicação. como veremos. Esse diálogo fornece a trama principal da narrativa. 43. mas nada faz para impedir o funcionamento do aparelho. p. Tal problemática pode assumir uma tradução teológica — a busca pelo Deus morto — ou psicanalítica — a revolta do(s) filho(s) contra o(s) pai(s) —. 45. 33. diríamos hoje. em particular de ordenar e de ameaçar. pp. Note-se: “tigela” (Napf) e não “prato”. e um soldado que segurava a pesada corrente de onde partiam as correntes menores. com as quais o condenado estava agrilhoado pelos pulsos e cotovelos bem como pelo pescoço e que também se uniam umas às outras por cadeias de ligação. quando o condenado já está deitado na máquina: “O soldado havia terminado o trabalho de limpeza na máquina e agora despejava papa de arroz de uma lata na tigela. grosseiras. Fischer. profundo e arenoso. 1976. Sokel. cabelo e rosto em desalinho. primitivas. pois sem dúvida a papa estava prevista para mais tarde. O soldado o repelia sempre. sendo preciso apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse. Franz Kafka. além do oficial e do explorador.”15 Temos uma descrição semelhante mais à frente.Como bem observa Walter Sokel. 15 16 Na colônia penal. cit.14 soldado e condenado são descritos por Kafka como duas figuras toscas. como seria adequado a um ser humano! 17 Na colônia penal. cercado de encostas nuas por todos os lados. mas era igualmente impróprio que o soldado enfiasse as mãos sujas na comida para comê-la na frente do condenado ávido. pp. cit.. Tragik und Ironie. estavam presentes. que já parecia ter se recuperado plenamente.16 Mal percebeu isso. 147 ss. 55-6. o condenado. pp. Pelo menos aqui no pequeno vale. apenas o condenado. começou a apanhar papa de arroz com a língua. Aliás o condenado parecia de uma sujeição tão canina que a impressão que dava era a de que se poderia deixá-lo vaguear livremente pelas encostas. Escrituras do corpo 125 . boca larga. 31-2. uma pessoa de ar estúpido..”17 14 Walter H. duas figuras mais animalescas do que humanas: “Certamente o interesse pela execução não era muito grande nem na colônia penal. Frankfurt/Main. A determinação animalesca do condenado e do soldado é reforçada pelo papel passivo que lhes cabe. 126 Lembrar escrever esquecer . Agora. no desenhador. que oscila entre as duas” e que “se chama de rastelo”19 — o aparelho é um precursor dos futuros grandes robôs. chamada de “desenhador” e a “do meio. não tomam nenhuma iniciativa. Segundo observações da linguista feminista Marina Yaguello em Les mots et les femmes (Paris. se introduz um dos rabiscos do antigo comandante como se fosse um tipo de “cartão perfurado”. que. pelo menos na descrição entusiasta do oficial. igualmente. parece ser sua virtude pedagógica. o termo “aparelho”. essas palavras inscritas na Vale lembrar que o oficial emprega. dos movimentos da própria máquina ou do aparelho. porque ameaçou seu superior. portanto. que o chicoteava. para a sentença se inscrever definitivamente no corpo da vítima e provocar sua morte. 1978). sua sentença. tempo necessário. porque não obedeceu à disciplina militar. o condenado aprende a sentença que ele não conseguiu. dizendo que iria devorá-lo — em alemão “fressen”. p. O processo de agonia também é. durante a vida. nas questões do viajante a seu respeito e na demonstração do seu funcionamento pelo oficial.. cit. simultaneamente. via de regra. Na parte de cima. a ação mesma da novela é fruto das deliberações do oficial e do explorador e. personagem central da narrativa. “essen”. realizar. Composto de três partes principais — uma “parte de baixo” que “tem o nome de cama”. uma vez “ligado”. maior complexidade e nobreza! 19 18 Na colônia penal. segundo o oficial. a característica essencial da máquina. graças a um sistema complicado de agulhas (umas furam o corpo.O condenado foi condenado porque cedeu ao sono em vez de se levantar a cada hora e bater continência na frente da porta do seu superior. preferencialmente. 34. outras têm pequenos canais de água que vão limpando o sangue) vai inscrevendo nas costas do condenado. funciona sozinho. uma “de cima”. Não se trata simplesmente de uma tortura lenta que leva à morte. Eles somente obedecem a ordens e sofrem o castigo. Payot. A escrita interior. este desencadeia o movimento do rastelo que. um processo de aprendizado: com seu corpo. Assim. deitado e amarrado na cama. então. O processo inteiro dura doze horas. de maneira autônoma.18 A trama consiste. mas ao impulso corporal. na descrição do aparelho. a palavra masculina indicaria. verbo usado para distinguir a ação de comer dos animais da dos homens. Mesmo o mais obtuso dos homens consegue decifrá-la: “Compreende o processo? [É o oficial falando. na agonia. Só na sexta hora ele perde o prazer de comer. Nesse momento. Começa em volta dos olhos. tinha falhado no decorrer de sua vida. por ser um produto de tipo especial. e minha experiência é grande. Aqui nesta tigela aquecida por eletricidade. o homem simplesmente começa Como observou meu amigo Edson Luis André de Souza. estanca instantaneamente o sangramento e prepara o corpo para novo aprofundamento da escrita. se tiver vontade. que a tradição filosófica chamou de consciência. apenas sofre dores. Eu pelo menos não conheço nenhum. à medida que o corpo continua a virar. agora. Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo. Então. A partir daí se espalha. Preciso então me abaixar. Depois de duas horas é retirado o tampão de feltro. Mas nada acontece. é colocada papa de arroz quente. o qual. a camada de algodão rola. a fim de dar mais espaço para o rastelo. Mas como o condenado fica tranquilo na sexta hora! O entendimento ilumina até o mais estúpido. da qual. essa escrita se exterioriza e se revela nas feridas do suplício. pois o homem já não tem mais força para gritar. o oficial também sempre quer lavar as mãos! 20 Escrituras do corpo 127 . todo o processo é muitíssimo limpo. quando o primeiro esboço de inscrição nas costas está pronto. apenas o revolve na boca e o cospe no fosso. na cabeceira da cama.] O rastelo começa a escrever. aliás. o homem pode comer o que consegue apanhar com a língua. os dentes na extremidade do rastelo removem o algodão das feridas. fazendo o corpo virar de lado lentamente. Nesse ínterim as partes feridas pela escrita entram em contato com o algodão. em geral eu me ajoelho aqui e observo o fenômeno. Nas primeiras seis o condenado vive praticamente como antes. senão o recebo no rosto.20 Assim ele vai escrevendo cada vez mais fundo durante as doze horas. Nenhum deles perde a oportunidade. Raramente o homem engole o último bocado. atiram-no ao fosso e o rastelo tem trabalho outra vez.alma ou no coração. para desgosto do oficial. portanto. o viajante começa a se perguntar se deve ou não intervir. não intervém quando entende melhor o processo da tortura. exige muito trabalho. cit. mas suas hesitações nascem do seu estatuto de estrangeiro e de observador imparcial (deveria ser ele um “observador participante”. Notemos: não intervém quando sabe da condenação sem julgamento. eu e o soldado. as mãos no bolso da jaqueta. faz bico com a boca como se estivesse escutando. não intervém quando o suplício tem início. 47-9. onde cai de estalo sobre o sangue misturado à água e ao algodão. poderiam lhe di- 21 Na colônia penal. como dizem os antropólogos?). O que o impede de agir? Suas dúvidas não dizem respeito à injustiça do processo e à crueldade do castigo. quando o condenado é deitado. pp. embora a ache injusta. Ordena ao soldado que tire as roupas do condenado e o estique na “cama” do aparelho. Dito e feito. arrebenta.”21 Depois desta longa descrição. ele precisa de seis horas para completá-lo. O soldado deve consertá-la. mas sem entender. como se pudesse aproveitar a ocasião para tecer algumas reflexões que o bom funcionamento da máquina teria tornado supérfluas. Mas aí o rastelo o atravessa de lado a lado e o atira no fosso. não substitui peças antigas. o enterramos. no aparelho. uma pequena interrupção não prevista no funcionamento do aparelho — e no desenrolar do suplício. Seja como for. Há. O explorador tinha inclinado o ouvido para o oficial e. o oficial passa à ação. já que o novo comandante. observava o trabalho da máquina. Ele não era membro [cidadão/Bürger] da colônia penal nem cidadão do Estado a que ela pertencia. 128 Lembrar escrever esquecer .a decifrar a escrita. isto é. nu. A sentença está então cumprida e nós. O condenado também olhava. mas o nosso homem a decifra com seus ferimentos.. Se quisesse condenar esta execução ou mesmo tentar impedi-la. O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos. Cito suas reflexões que me parecem instigantes: “O explorador pensou consigo: é sempre problemático intervir com determinação em assuntos estrangeiros. Mas uma correia. gasta demais. Somente nesse intervalo. não era seu compatriota e não demandava nenhuma compaixão [Mitleid]. não era adepto desse procedimento e se comportava quase com hostilidade em relação ao oficial. as coisas aqui se colocavam de maneira muito tentadora. pois estava viajando com o único intuito de observar e não. pois o condenado era uma pessoa estranha [fremd] a ele. Ao mesmo tempo. o respeito pela lei local deve falar mais alto (o que implica que leis podem ser injustas e desumanas). apenas acrescentar que não compreendia sua própria situação neste caso. ele deve calar-se por respeito aos usos e costumes de outra nação. pois o outro. A isso ele não poderia replicar nada. Ninguém poderia supor qualquer benefício em causa própria [Eigennützigkeit] por parte do observador. A injustiça do processo e a desumanidade da execução estavam fora de dúvida.”22 Vejamos mais de perto as dúvidas morais do nosso viajante: seu estatuto de estrangeiro é definido por um não-pertencer de ordem jurídica. mesmo que estes últimos sejam injustos e desumanos. pois. fique quieto [Du bist ein Fremder. o condenado. Isso era tanto mais provável porque o comandante. sei still]. ninguém poderia denunciá-lo por interesse. Texto alemão: Ein Landarzt. conforme tinha ouvido agora de maneira mais clara. “estrangeiro” e “estranho” são uma mesma palavra: fremd). Mas tampouco pode ele agir por compaixão. porém.zer: você é um estrangeiro. para mudar procedimentos judiciais estrangeiros. Sendo estrangeiro. se quisesse interferir. também lhe é estranho (em alemão. já que o outro lhe é indiferente. cit. Escrituras do corpo 129 . ele não pode incorrer na suspeita de querer falar em benefício próprio. Kafka alude aqui a dois conceitos 22 Na colônia penal. ele não é cidadão nem da metrópole nem da colônia. pp. Seja como for. justamente. pp. 175-6. já que é estrangeiro. de forma alguma.. fora recebido aqui com grande cortesia e o fato de ter sido convidado para esta execução parecia até sugerir que solicitavam a sua opinião sobre este julgamento. 51-2. O viajante só pode ser um mero observador. O explorador tinha recomendações de altos funcionários. são estranhos um ao outro. cit. Assim. a pensar e a calar. Adorno). de Rousseau a Schopenhauer (e. só lhe resta.oriundos da filosofia moral do idealismo alemão: o interesse próprio (Eigennützigkeit) que. Ele tinha acabado de enfiar. fechou os olhos e vomitou. de cidadãos de países diferentes). mas também como um outro homem (Mit-mensch). Quando a primeira definição de uma relação entre dois sujeitos remete a seus estatutos jurídicos respectivos (no caso. e a compaixão (Mitleid). a sujeira23 já escorria pelo aparelho. 130 Lembrar escrever esquecer . poder começar. Para afastá-lo do tampão. não sem esforço. Continua. Em outras palavras. isto é. Entretanto. Na colônia penal. uma certa falta de interesse. portanto. e o novo comandante. sendo definido e se autodefinindo como “estrangeiro” (porque cidadão de outro país) em relação a outros estrangeiros. somente é possível sentir compaixão (Mit-leid) por um outro que não é definido só como cidadão de um outro país. cit. quando este. enquanto tentava virar sua cabeça para o fosso. Já que o viajante não pode recorrer nem à comunidade de interesses nem à compaixão. mas era tarde demais. 52. segundo Kant. não consegue tomar. Não é uma iniciativa 23 24 Ver nota 20. que as autoridades superiores tomem a decisão que ele. quando acontece mais um imprevisto: “Nesse momento o explorador ouviu um grito de raiva do oficial. talvez.”24 Enganei-me quando disse que o condenado era sempre passivo e não desencadeava nenhuma ação decisiva. o oficial o ergueu rapidamente.. uma certa imparcialidade é garantida. a observar. fundamento pré-discursivo da relação com o outro. esperar que os altos funcionários que o enviaram à ilha. por estar neste lugar atópico. então. num acesso irresistível de náusea. Ora. a correia já foi consertada e o processo vai. enfim. o viajante escapa das atitudes interesseiras. que parece mais esclarecido. o tampão de feltro na boca do condenado. mas não pode recorrer à compaixão: esta só é possível numa relação com o outro que não é definida primeiramente pelo pertencer jurídico de um e outro a uma cidadania específica. mas também uma certa falta de interesse no sentido de indiferença. não pode orientar nossas ações morais. p. o oficial exasperado perde seu autocontrole e se deixa levar por uma evocação saudosista e grandiloquente dos tempos passados. contesta o peso de sua influência. então. Ele. que diga de maneira clara. A evocação desse passado glorioso só faz parecer mais deserto e abandonado o lugar atual da execução. quando perguntado pelo soberano. seu vômito. algo sujo e vergonhoso resiste e não funciona. a herança sagrada do comandante morto. de sua observação imparcial. para depor a favor ou contra a máquina. também estará na assembleia e saberá acrescentar as palavras necessárias no momento oportuno para ajudar a resgatar o antigo esplendor do aparelho negligenciado. enfim. mas sim algo ligado à má digestão. que dê sua opinião. Notemos: o “processo” atrasa novamente não porque a técnica do aparelho falha. que vai atrapalhar toda a sequência. também não porque o viajante intervém e argumenta. simultaneamente política. então. Enquanto se limpa a máquina. é obrigado a responder: “Para o explorador estava desde o início fora de dúvida a resposta que precisava dar. Que ele vá. não quer responder. Nova interrupção: o aparelho deve ser limpado. algo que não tem a ver com a nobreza do espírito humano ou com as conquistas da técnica. no dia seguinte. tenta ainda ser evasivo. o viajante. que tudo merece continuar assim. ele lhe propõe. de sua competência internacional. certamente será chamado na corte para dar sua opinião. mas que diga o quanto o procedimento antigo é digno de admiração. a ordem antiga. o oficial acredita ler no olhar vago do viajante os mesmos sentimentos. pressionado pelo oficial ofegante. com ênfase ou com simplicidade. Mas. o oficial. era Escrituras do corpo 131 . diretamente interpelado. civil e religiosa. Já que suspeita que o novo comandante quer se aproveitar da presença do viajante. Emocionado e indignado por essa discrepância. e que ele. na sua vida havia experimentado coisas demais para que pudesse vacilar aqui. finalmente. asqueroso. mesmo que não entusiasta. mas uma reação orgânica. Descreve a festa.consciente. primitivo. para ter argumentos decisivos — um parecer científico de fora — que permitam a supressão do aparelho e deste tipo de pena. tarefa do soldado. O explorador. O que impede o bom (!) funcionamento é algo corporal. do suplício e da execução públicos quando todos os moradores da ilha se amontoavam no vale para assistir ao martírio. uma aliança. não quer tomar posição nem se comprometer. à reunião e. O oficial. então. Todas 25 Não ouso interpretar essa última frase. depois uma outra. produz efeitos inesperados e decisivos.25 Mas finalmente disse o que tinha de dizer: — Não. então.”26 Quando ouvimos este simples “não”. 64. respiramos aliviados: enfim tomou posição. Liberta o condenado. que por firme convicção pessoal. Tomei a liberdade de alterar aqui alguns detalhes da tradução. Escolhe com cuidado um rabisco e o dá a ler ao viajante. Sobe em cima do aparelho. Aí. dobra com cuidado suas roupas. ela me parece abissal. escuta um ruído esquisito e percebe. cit. depois uma terceira e assim por diante. de maneira enigmática. deita-se ele mesmo na cama da máquina e pede ao soldado para ser amarrado. soletra solenemente a seguinte sentença: “Seja justo”. honestos e covardes como o próprio explorador. muito mais porque não quer se envolver com nada. que “chegou a hora”. com efeito. 26 132 Lembrar escrever esquecer . Reconhece que “o procedimento não convenceu” o viajante e conclui. Troca a folha de papel com a sentença antiga pela nova. O soldado e o ex-condenado olham muito excitados. E. todos nós. tudo se precipita. este não consegue decifrar nada. começa a funcionar. que o desenhador da parte de cima do aparelho está se abrindo.um homem basicamente honesto e não tinha medo. mas não consegue. A partir desse momento. efeitos que as dúvidas morais do nosso observador estrangeiro não deixavam prever. O aparelho. acrescido de algumas explicações que o viajante expõe com muito respeito ao oficial. Apesar de toda sua boa vontade e de muitos esforços. Apesar disso hesitou um instante à vista do homem e do soldado. o viajante quer expulsá-los. Na colônia penal. leitores esclarecidos. O oficial não tenta continuar a discussão. p. subitamente silencioso (antes rangia bastante). Desce.. esse pequeno “não”. uma engrenagem é expulsa pela tampa aberta. Reforça uma suspeita: o viajante dirá finalmente “Não”. despe-se totalmente. a civilização sobre a barbárie (e a democracia americana sobre o terrorismo árabe!). enfim o bem vai prevalecer sobre o mal. porque se sente desagradavelmente pressionado pelo oficial e não quer se comprometer com ele. Pouco a pouco. isto é. Procura uma nova folha na carteira de couro que contém as instruções do antigo comandante. os olhos abertos tinham uma expressão de vida. sua presença indica uma falta mais profunda. o viajante tomou uma posição firme. os lábios se comprimiam com força. terminar aqui. percebe que é tarde demais. e sim assassinato direto”. não se descobria nele nenhum sinal da prometida redenção. 27 28 Idem. Essas três páginas. Venceu a razão. Um happy end relativo: o condenado de maneira injusta foi salvo. sem êxito.27 O oficial. sem nenhuma inscrição mas atravessado pelas agulhas do rastelo. como pretendia o oficial. Seu descontentamento em relação a elas explica por que a novela só foi publicada em 1919. p. pela testa passava atravessada a ponta do estilete de ferro. o olhar era calmo e convicto. que queria publicar a narrativa: “As duas ou três páginas um pouco antes do seu fim são fajutas. o que todos os outros haviam encontrado na máquina. não cessarão de atormentá-lo (mas ele não cogita a possibilidade de concluir a novela sem elas. trabalhara rapidamente demais e já havia massacrado o oficial. O viajante ainda tenta desprendê-lo da máquina. O desmanche rápido da máquina também absorve a atenção do viajante. Kafka escreve a seu editor Kurt Wolff. escreve ainda três páginas muito esquisitas. Estava como tinha sido em vida. 74. para nosso alívio. no entanto. vários anos depois de sua redação. quando se volta para cuidar do oficial. o oficial não encontrou. aliás. totalmente fascinados. A máquina havia ficado totalmente fora de ritmo. E vê: “Nesse ato viu quase contra a vontade o rosto do cadáver. o oficial torturador morreu.as peças despencam aos pés do soldado e do condenado. Idem. A respeito dessas três últimas páginas. porém. penso. Escrituras do corpo 133 . somente com a cena da morte do oficial). Kafka. p. “já não era mais uma tortura. como se não conseguisse concluir ali. 75.”28 A narrativa poderia. está pendurado sem vida. p. o viajante. mas não consegue. da qual lhe havia falado o oficial. para a cidade.”29 Ainda em 1917. O viajante ali entra e respira o sopro do passado. parecido com o ar de catacumbas ou de um grande edifício mor- tuário. numa terceira. op. à frente dos seus acompanhantes. Apesar de suas dimensões modestas. cit. finalmente. que torna oco mesmo o pleno da história. aspirando o ar frio e pesado31 que vinha do interior. e ele sentiu a força dos velhos tempos. G. Tradução de J. Fischer. fica tonto por causa do calor tropical e. exausto. passou pelo meio das mesas desocupadas que se achavam na rua diante da casa de chá.30 Por insistência dos amigos e do editor de Kafka. 3. acompanhado pelo soldado e pelo condenado. ela causou no explorador a impressão de uma recordação histórica. 152-5. 29 Carta de 4/9/1917. 134 Lembrar escrever esquecer . Chegam a uma casa simples. Kafka esboça várias outras possibilidades de conclusão da narrativa. 1994. citada por Walter H. em seu diário. desfalece ao lado da máquina e. Tagebücher 1914-1923/Gesammelte Werke in swölf Bänden. 31 Isto é. O que diz ela? Descreve o viajante voltando para a colônia. que estavam muito deterioradas até onde começavam as construções do palácio do comando. numa outra. a novela foi finalmente publicada com sua primeira conclusão. Aproximou-se mais e.. Sokel. não entende como o condenado traz suas bagagens para o navio enquanto é o oficial que está morto. parece ser um lugar sagrado. pp. 1. o viajante ainda tenta enterrar o oficial.há aqui em alguma parte um verme. M. começa a andar de quatro e a latir como um cão (ver o fim do Processo?). quando encontrado por dois funcionários. Frankfurt/Main. conhecida como “a casa de chá”. Cito essa passagem: “Embora a casa de chá se distinguisse pouco das demais casas da colônia. vol. nova forma feminina (deve ser chamada “Madame”!) de poder. Numa delas o novo comandante exorta seus concidadãos a preparar tudo para a chegada de uma gigantesca serpente. 30 Franz Kafka. mas o viajante se recusa a levá-los consigo. como o fazem os turistas. gravada em letras “muito miúdas”. Idem. provavelmente trabalhadores do porto. Quer ir embora o mais rapidamente possível. Diz ela: “Aqui jaz o antigo comandante. O viajante precisa se ajoelhar para conseguir ler a inscrição. ressuscitará e chefiará seus adeptos para a reconquista da colônia. cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Mas quando chegaram em baixo. pp. Leio as últimas frases da narrativa: “Enquanto o explorador negociava com um barqueiro a travessia até o navio a vapor.— O velho está enterrado aqui — disse o soldado. Quando chega na escadaria perto dos barcos. que haviam ficado na casa de chá com uns conhecidos. cit. o explorador já estava no barco e o barqueiro acabava de soltá-lo da margem. 75-6. escondida embaixo de uma mesa.”32 Alguns homens simples.. entra num barco menor que deve levá-lo ao navio. Ainda teriam podido saltar dentro da embarcação. então. distribui alguns trocados. 77. Seus adeptos. uma lápide simples. Acreditai e esperai!”33 O viajante ergue-se de volta. Descobrem.. depois de determinado número de anos. os dois desceram a escada a toda pressa. percebe que o soldado e o condenado.] — Ele quer visitar o túmulo”. levantam. correm atrás dele como se quisessem embarcar junto. O viajante apressa-se mais ainda. que agora não ousam trazer nenhum nome. quase o alcançam. Condenado e soldado correm...] — Onde está o túmulo? — perguntou o explorador. p. pois não ousavam gritar. sem dizer nada. que não podia acreditar no soldado. [. e sai apressadamente para o porto. Escrituras do corpo 135 . mas o explorador ergueu do fundo do barco uma pesada 32 33 Na colônia penal. fortes e pobres.. Existe uma profecia segundo a qual o comandante. empurram umas mesas e murmuram: “É um estrangeiro [. sem dúvida nenhum happy end. pelo contrário. a teológica. Um dos seus eminentes representantes é o amigo de Kafka. através dos temas da culpa. Paris. *** Imagino que não fui uma observadora suficientemente imparcial e que minha releitura desse texto já aponta para algumas hipóteses de interpretação. que processo e justiça se tornaram tão enigmáticos. M. é. L’ange de l’histoire (Paris. A primeira é a religiosa. a presença paradoxal de uma “transcendência morta”. eis um fim muito estranho. ameaçou-os com ela e desse modo impediu o seu salto. ele só se tornou mais temível e mais invulnerável porque não está mais a nosso alcance. Modifiquei as últimas palavras da tradução por razões que veremos no fim.35 Essa interpretação se apoia na seguinte hipótese: a obra de Kafka representaria. ver Stéphane Mosès. G. certamente um dos leitores mais perspicazes de Kafka. 36 136 Lembrar escrever esquecer . Maurice Blanchot. O deus morto não foi vencido. desta narrativa. de maneira mais sutil. Seuil. o grande pesquisador da mística judaica. em particular na leitura de Scholem. não se manifesta mais no esplendor de sua verdade. De Kafka à Kafka. como uma versão secularizada do processo de justiça divina. na Colônia penal. 78.amarra.”36 34 Idem. p. é um imperador morto que é representado pelo funcionário da Muralha da China. p. Gershom Scholem. Deus se tornou ausente. Tradução de J.”34 Com certeza. da justiça e da redenção. 1992). numa teologia negativa: é justamente porque. escreve: “É com uma transcedência morta que estamos lutando. Gallimard. 1981. 35 Sobre a interpretação de Kafka por Scholem e a discussão com Benjamin. em particular. Max Brod. na obra de Kafka. Maurice Blanchot. na nossa modernidade. 70. Gostaria de mencionar rapidamente duas chaves de leitura frequentemente usadas quando se trata de Kafka e. também a defende. ou melhor. Tudo anunciaria. o antigo comandante defunto que a máquina de tortura ainda torna presente. então. Essa interpretação soteriológica se desdobra. Nova edição: São Paulo. isto é. uma despedida do pai e de Deus. Minuit. como O veredicto e A metamorfose. Pour une littérature mineure (Paris. assim. in Gesammelte Schriften.38 Nessa linha de interpretação.) 37 Escrituras do corpo 137 . Tradução de Sérgio Paulo Rouanet: “Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. se desdobra numa outra vertente de interpretação. 38 Walter Benjamin. na arbitrariedade e no poder. 1975). Obras escolhidas I. simultaneamente. um processo de secularização e de disseminação anônima do poder. 411: “Viel deutet darauf hin. degradação e imundice. uma luta contra Deus e contra o pai todo-poderoso e. um processo típico da modernidade: a saber. pode ser derivada da figura paterna. Essa leitura. no início. Essa semelhança não os honra. 139. assim também os textos de Kafka elaboram o luto paterno e divino.Esse motivo do deus morto. Com efeito. é. dass die Beamtenwelt und die Welt der Väter für Kafka die gleiche ist. Schmutz macht sie aus”. 1985. mas sufocante. II-2. fonte de proteção e fonte de terror. podem ser lidos segundo a grade do modelo familiar e edípico. Stumpfheit. Frankfurt/Main. vol. que a famosa Carta ao pai vem reforçar. 1977. Die Ähnlichkeit ist nicht zu ihrer Ehre. desaparece em proveito de um aparelho burocrático anônimo e todo-poderoso — e os fiéis crentes se tornam filhos e funcionários obedientes e aterrorizados! Já nos anos 1930. por sua vez.” (Walter Benjamin. A obra de Kafka assinala. Walter Benjamin anotava que os pais e os funcionários kafkianos eram irmãos na sujeira. matizada por um certo consenso entre os pesquisadores. Zur zehnten Wiederkehr seines Todestages”. depois Mas essa grade não pode ser exclusiva como Deleuze o ressalta em Kafka. O processo. Suhrkamp. A figura do Deus supremo como que se retira e se transforma na figura do pai tirânico que. Ela é feita de estupidez. publicar as três novelas em conjunto. São Paulo. para Freud. Na colônia penal ocupa um lugar de destaque. Verkommenheit. A novela se situa entre as narrativas de juventude mais explicitamente familiares (O veredicto e A metamorfose) e o grande romance da administração assassina. Brasiliense. p. no prelo. Livraria Duas Cidades/Editora 34.37 os grandes romances inacabados como O processo e O castelo já mostrariam que Kafka soube transpor a análise da repressão e do poder paternos para uma análise da repressão e do poder burocrático-administrativos. porém. mais ligada à psicanálise: como a figura de Deus. o próprio Kafka quis. “Franz Kafka. se os primeiros textos de Kafka. p. Aliás. o motivo tão central da escrita parece também aludir à escrita sagrada. cit. 138 Lembrar escrever esquecer . 40 Na colônia penal. É preciso portanto que muitos floreios rodeiem a escrita propriamente dita. à Escritura. Na colônia penal. As várias alusões intertextuais ao relato da Paixão de Jesus (as doze horas de agonia. resquício do monarca/pai todo-poderoso feito à imagem de Deus. de fazer a seguinte observação: se esses motivos remetem à tradição religiosa. podemos também nos perguntar se não haveria aqui uma descrição parodística da escrita hebraica. Podemos observar ainda. o mandamento “Acreditai e esperai”)39 confirmam essa vertente interpretativa. o tratamento parodístico 39 “Glaubet und wartet!” lembra o título de uma cantata de Bach: “Glaubet und wachet!”. nesse contexto. É preciso estudá-la muito tempo.. a promessa de ressurreição inscrita na lápide do túmulo. que quase desaparece sob a profusão dos comentários posteriores: “— Muito engenhoso — disse evasivamente o explorador. em particular à teologia judaica. no oficial. esta só cobre o corpo numa faixa estreita. porém. Quando lemos a descrição das linhas labirínticas rabiscadas pelo antigo comandante nas folhas preciosamente guardadas pelo oficial. Sem dúvida o senhor também acabaria entendendo. Enfim. em particular dos comentários talmúdicos: uma página coberta de signos escritos que rodeiam um único versículo central. que a figura do comandante morto. O senhor consegue agora apreciar o trabalho do rastelo e de todo o aparelho? Veja!”40 A respeito desse tema da escrita e da escritura. Naturalmente não pode ser uma escrita simples. não consegue mais. ela não deve matar de imediato. gostaria. mas em média só num espaço de tempo de doze horas. filho também morto no final. — Mas não consigo decifrar nada. 46-7. o ponto de inflexão é calculado para a sexta hora. — Não é caligrafia para escolares. sobreviver no seu único filho fiel. pp.desistiu em razão da hesitação na publicação da terceira. — Sim — disse o oficial rindo e guardando de novo a carteira. o resto é destinado aos ornamentos. morte e redenção. simultaneamente. rabiscos labirínticos nos quais nada há para ser decifrado. 1999. aliás. “Gekritzel”. Munique. mas que talvez não haja nem sentido oculto nem signo sagrado. 43 42 Escrituras do corpo 139 . até agora. 245. aliás. sempre encontrará um hieróglifo desconhecido e um sentido escondido. Formen und Wandlungen des kulturellen Gedächtnisses. Erinnerungsräume. trazendo. p. muitas vezes acompanhados por pequenos desenhos de figuras humanas que ele depois rasgava e jogava fora (como um aluno que não toma notas. Lembro aqui que Kafka usava a mesma palavra “rabisco”. sempre encontrará algo a ser decifrado — mas isso não prova que haja mensagem sagrada (essa desconfiança cortês poderia. atitude verdadeiramente pedagógica! Significa: “o homem que não foi esfolado não é educado/formado”! Aleida Assmann. fruto do seu desejo em encontrar sentenças. para aprender. somente rascunhos. Como o observa Aleida Assmann no seu belo livro. Esse motivo pode ser lido também como uma irônica variação do velho adágio. Frankfurt/Main. A sabedoria grega já proclamava: “ho mè dareis anthrôpos ouk paideuetai”. justiça e redenção? Por que pressupor com ele que há realmente algo escrito aí? A escrita do comandante morto deveria encontrar sua realização na inscrição da sentença no próprio corpo do condenado. não encontrei em nenhum comentário da Colônia penal — não seriam as sentenças decifradas nas folhas rabiscadas pelo antigo comandante somente fruto da imaginação do oficial.43 Nietzsche desloca a antiga e serena re41 Ver G. Como se quisesse dizer que quem quer ter algo a decifrar. Ou ainda: quem quiser crer numa mensagem sagrada.lhes confere muito mais um caráter de esquisitice que de saudade sagrada. segundo o qual. Uma sentença (!) que minha professora de grego antigo escreveu no primeiro dia de aula na lousa. ajudar a ler os textos do próprio Kafka). Ouso mesmo arriscar uma hipótese de leitura que. p. aos olhos do viajante. Gespräche mit Kafka. Na Genealogia da moral.42 E várias religiões retomam esta ideia de um sofrimento na carne necessário à purificação da alma. Janouch. Nietzsche denuncia esta ligação entre dor e aprendizado. escritura e memória. mas rabisca figurinhas durante uma palestra!). 48. é necessário sofrer. isto é. Kafka insiste nas ínfimas precauções que o oficial toma para manusear essas velhas folhas de papel que. Fischer.41 para descrever seus próprios textos. só trazem desenhos caóticos. ou melhor. Beck. 1968. Essai sur Auschwitz et les intellectuels. com dor incessante. aliás. M. simultaneamente obtuso e distraído?’ [. Nietzsche (Freud. Adorno. Foucault) e o oficial da Colônia penal de Kafka. ele lembra. Paris. 295. Num livro intitulado L’histoire déchirée. p. do irmão de Max Weber. como se pode imaginar. Ed. citado por A. com respostas e meios muito suaves. V. 1988. DTV/Gruyter. Colli-Montinari (Kritische Studienausgabe). aluno. uma das metáforas prediletas para descrever os processos mnemônicos sempre foi a da inscrição na alma: esta última podendo ser uma tábua de cera ou um bloco mágico. Assmann. Desde Hannah Arendt.lação da memória e da escritura. mesmo que com intenções diferentes. op. Tradução de J. Zur Genealogie der Moral. Friedrich Nietzsche. p.. e Bertolt Brecht. 245. 45 44 140 Lembrar escrever esquecer . em particular do nazismo. Cerf. que gostava de Kafka.. com proveito. pp. Com essa ressalva sobre a escritura como forma de inscrição violenta e cruel. até George Steiner. ‘Grava-se algo a ferro e fogo. para que fique na memória: somente o que não cessa de doer fica guardado na memória’. talvez não haja nada de mais terrível e de mais sinistro em toda pré-história do homem que sua mnemotécnica. chego à segunda grande hipótese hermenêutica na leitura da obra de Kafka.] Esse problema muito antigo não foi resolvido. a obra de Kafka é lida como uma descrição profética dos mecanismos cruéis e anônimos dos totalitarismos modernos. 1997. Nietzsche chama a atenção para a violência imanente ao processo de inscrição: “‘Como fabricar no animal-homem uma memória? Como imprimir algo que continue presente nesse entendimento do instante. afirmam juntos. Com efeito.”44 Os mandamentos morais que transformam os “homens-animais” em seres dotados de memória e de obediência devem ser inscritos. Enzo Traverso. que não gostava dele. que Kafka conhecia as teorias de Max Weber sobre o desencantamento do mundo e o crescimento da burocracia na modernidade. vol. Por sua vez. e passando por Günter Anders e Theodor W. G. na faculdade de direito de Praga. L’histoire déchirée. Kafka foi. cit. na alma — e no corpo —. 50 ss.45 o cientista político Enzo Traverso retoma e reforça essas leituras.. Munique/Berlim. Alfred Weber. tradução de J. num pequeno volume de vários autores sobre Kafka (Interpretationen. G.”47 Algumas linhas depois. de 1899). Der Beamte (O funcionário). p. proposta por Traverso. nos quais a matança se torna uma operação técnica cada vez mais subtraída à intervenção direta dos homens. Escrita no início da Primeira Guerra Mundial. dada pelo oficial com minúcia detalhada ao visitante da colônia penal. sem que a vítima possa olhar para seu algoz. de Hans Dieter Zimmermann. 84. igualmente político. lembra a Amtsprache [língua do ofício] pela qual se designavam as diferentes fases da execução nos campos nazistas. ensaio apontado por vários pesquisadores como uma das prováveis fontes de nossa novela (ao lado de uma obra “pornográfica sádico-anarquista”46 de Octave Mirbeau. Escrituras do corpo 141 . G. Le jardin des supplices. 53. que não trata da guerra. pp.). diante do qual a humanidade europeia sucumbiu” (tradução de J. que gravava na pele de suas vítimas sua sentença de morte. M. Traverso cita Os afogados e os sobreviventes. M. cit.] A descrição técnica do funcionamento dessa engenhoca. este número indelével que fazia sentir. remete de maneira impressionante à tatuagem dos Häftlinge [presos] em Auschwitz. [. (a grafia do termo “sem sujeito” segue o original). me parece mais apropriado: “Pela primeira vez veio à existência esta ligação entre racionalidade técnica e barbárie extrema que louva o oficial na Colônia penal. Franz Kafka. no qual a execução da pena cabe a uma máquina.. Na colônia penal parecia anunciar os massacres anônimos do Século XX.. Essa narrativa. de Primo Levi. segundo Primo Levi. O comentário. retoma e reforça essa visão profética do nazismo em Kafka: “O caráter premonitório desta novela de Kafka reside sobretudo na sua descrição de um procedimento de destruição s e m s u j e i t o. Romane und Erzählungen. O ‘rastelo’ imaginado por Kafka. op. Traverso afirma que a execução descrita na Colônia penal também lembra uma variante da “sombria festa 46 Segundo os termos de Modesto Carone no seu posfácio à tradução da Colônia penal.. 47 Enzo Traverso.ele certamente leu o ensaio deste último. apresenta a constelação que determina a guerra moderna: o acoplamento entre técnica e barbárie. de 1910. Toda interpretação da Colônia penal. Stuttgart. 1994. p. ‘sua condenação escrita na sua carne’. Reclam. 166-7). Poderíamos. leitores.48 O que incomoda. com o poder da razão e da tolerância. e. Devo. e a nós. A famosa cena do espancamento. mas somente aquilo por que o oficial. a resposta do espancador (“Fui empregado para espancar. imbuído de multiculturalismo. exemplar de nossas covardias cotidianas. então? Em primeiro lugar. por minha parte. não só elementos “premonitórios” (do nazismo) nesta narrativa. a nós que gostaríamos de poder nos identificar melhor com ele. Haveria. que gostaríamos de poder achar um pouco mais simpático esse viajante/explorador/estrangeiro/cientista social/pesquisador. cit. esse viajante europeu bem-educado. ciente do seu lugar.. ver Zimmermann. Algo. Mas chama a atenção que seu “Não” finalmente arrancado pelo oficial — pois o viajante resiste o maior tempo possível a tomar posição ou a se intrometer — desencadeia tanto a destruição da máquina como a do seu servidor-algoz. que fecha a porta para ninguém escutar os gritos (e descobrir que as vítimas são os funcionários que vieram prendê-lo de manhã. sem dúvida. pois. demissões e torturas cotidianas futuras.. confessar que essas interpretações político-proféticas não me convencem.punitiva” antiga. no quinto capítulo do Processo. essa cena me lembra. portanto. ficava com “as mãos no bolso da jaqueta”49 e não pretendia interferir. cit. Exprimo uma dúvida: e se o “Não” pronunciado pelo viajante não fosse nenhuma palavra de corajosa resistência. por isso espanco”) e a reação temerosa de K. concluir com a vitória das luzes sobre as trevas da barbárie? O texto de Kafka não parece permitir essa esperança. trabalha. que reescreve várias vezes as últimas páginas da narrativa. tal como a descreve Foucault em Vigiar e punir. Na colônia penal. consigo aceitar melhor tal leitura quando se trata da descrição da engrenagem burocrática infinita do Processo ou mesmo do Castelo. portanto que ele. Kafka. p. num quarto de despejo do escritório no qual K. mas também a lembrança de procedimentos arcaicos. Agora. 47-9. o fato dessa palavrinha “Não” ter tido tanta eficácia assim. continua incomodando a ele. 142 Lembrar escrever esquecer . enquanto o viajante literalmente não mexia nenhum dedo até aí. último 48 A falta de simpatia para com a personagem do viajante é comum à maioria dos intérpretes da novela. então. 49 Na colônia penal. há uma personagem essencial que não existe em Auschwitz: o visitante. temeroso e honesto. é tido como culpado). op. enfim. neste sentido sim. K. 78. o viajante só deseja fugir desse lugar sombrio e. essa separação não diminui. “Ursprung”. assim também como dos trabalhadores portuários da casa de chá. possam dar o salto (“Sprung”)52 para fora da colônia penal. esses “homens-animais” como diz Nietzsche. “Tigersprung”. Escrituras do corpo 143 . Em segundo lugar. em conservá-la: ameaça os dois comparsas com uma “pesada amarra”51 quando querem alcançá-lo e embarcar no mesmo navio: isto é. quando quase conseguem deixar a ilha. 50 51 52 Idem. ver as famosas teses “Sobre o conceito de História”. o próprio viajante se esforça. com irritação e violência. p. a quem só sabe distribuir uns trocados. impedir algo realmente decisivo: que outros homens.discípulo de um comandante morto e representante de uma ordem caduca.. trata-se da última frase da novela. também. esse representante dos “direitos humanos”. de Walter Benjamin.. Com todas as suas luzes. Aliás. Eles são seres humanos descritos como animais e percebidos como tais pelo viajante. incomoda a distância que separa o explorador culto e educado do soldado e do condenado. tampouco justiça e redenção. portanto.. 65. secretamente sempre esperou para ver confirmada sua dolorosa suspeita: “chegou a hora”. Com a morte do oficial e a destruição da máquina. não há mais crença — e. “Sprung”. Idem.50 acabou. p. mas continua inalterada. 144 Lembrar escrever esquecer . pp. situado no fim do primeiro capítulo do primeiro livro de Em busca do tempo perdido. devemos nos perguntar sobre o 1 Maurice Blanchot. produz uma impressão como que mágica na alma do narrador. depois de um longo esforço de atenção espiritual. em particular por Paul Ricoeur). frescas como o olhar da criança de outrora. há pouco ainda submersa pela melancolia e pela escuridão de uma triste tarde chuvosa. cujo nome é “madeleine”.10. Proust opõe a ressurreição casual e involuntária dessas lembranças autênticas. vivas. Um dos grandes perigos da interpretação dessa passagem é transformar Em busca do tempo perdido num longo romance constituído pela procura e pela descrição desses reencontros felizes entre sensação presente e sensação passada. 31 ss. Proust já havia escrito esse romance: um livro inacabado de mais de oitocentas páginas. uma das chaves da estética proustiana. alegria. portanto. sente calor. O primeiro gole de chá. o escritor aceita a oferta de sua mãe de lhe preparar um chá. De repente. ele vê luz. Le livre à venir. O RUMOR DAS DISTÂNCIAS ATRAVESSADAS Para Mônica Marcel Proust é conhecido demais pela sua “madeleine”. Paris. Gallimard. desencadeia uma avalanche de lembranças que vão constituir a matéria-prima dessa imensa obra. na casa de veraneio de sua família. 1959. Esse episódio. que a “madeleine” ressuscitou uma lembrança. O episódio da “madeleine” oferece. aos Domingos. quando ia cumprimentar sua tia-avó. a Tante Léonie. Jean Santeuil. Como Maurice Blanchot já fez1 (sendo retomado por vários intérpretes. O rumor das distâncias atravessadas 145 . Mesmo quem não leu Em busca do tempo perdido conhece o famoso episódio: voltando para casa numa noite fria de inverno. Ora. Percebe. Ele é servido com um bolinho seco. tipo nossa broa de milho. então. um prazer intenso o atravessa cuja causa ele ignora. misturado ao sabor desse bolo bastante comum na França. ao vão esforço voluntário e inteligente do adulto que tentava lembrar de sua infância e só encontrava detalhes insignificantes e mortos. esquecida no fundo da memória: o sabor do mesmo bolinho misturado ao chá que ele tomava enquanto criança. isto é. No caminho de Swann.que separa e diferencia esse primeiro romance inacabado do romance “definitivo” da Busca (Jean Santeuil data dos anos 1896/8. Falo em corresponder porque o grande modelo explícito de Proust é o poema de Baudelaire.3 2 Marcel Proust.2 Podemos observar que as últimas páginas da Busca foram escritas na mesma época em que as primeiras: a “madeleine” e a calçada desigual do pátio do hotel de Guermantes (que provoca no narrador a mesma experiência de felicidade) se respondem e se correspondem mutuamente. Tentarei mostrar aqui. que vários outros autores antes dele descreveram a mesma experiência: Chateaubriand. da Pléiade. 3 Ver as análises de Walter Benjamin a este respeito em “Sobre alguns te- 146 Lembrar escrever esquecer . literariamente falando. sobretudo. em Flores do Mal). de lutar contra o tempo e contra a morte através da escrita — luta que só é possível se morte e tempo forem reconhecidos. 1987. nesta breve apresentação. 46 e da p. um romance de “climas”. as “Correspondences”. Devemos. I. e o primeiro volume. Jean-Yves Tadié (org. vol. também cita um texto de Ernest Renan. A la recherche du temps perdu. por exemplo. por Proust. e ditos. Trata-se. Gallimard. como dizia uma aluna minha ao ler Proust. em passagens do último volume. a alegria de curtos momentos de graça. de instantes quase místicos nos quais os diversos tempos se condensam na intensidade da sensação presente. Proust começa a versão “definitiva” da Busca em 1909. em toda a sua força de esquecimento. os poemas “L’Horloge” ou “L’Ennemi”. um romance que captura e transcreve esses momentos de felicidade — como o fazem as telas luminosas e despreocupadas de Renoir. Ou. ficar atentos para não reduzir a Busca a um novo Jean Santeuil. respectivamente. Um romance “impressionista” por assim dizer.). O tempo redescoberto. ver notas 1 da p. Ele mesmo nos indica. Paris. muito próximo). ou melhor. de 1906. é publicado em 1913). que há muito mais nesse livro. Nerval. 1123. em todo o seu poder de aniquilamento que ameaça o próprio empreendimento do lembrar e do escrever. Um primeiro ponto a ser ressaltado: a experiência da “madeleine” não foi inventada. Baudelaire (o editor Jean-Yves Tadié. reduzir Em busca do tempo perdido a um belo romance que enumera e descreve vários instantes privilegiados e felizes que chegam ao acaso e pegam o herói de surpresa. Du côté de chez Swann. a experiência privilegiada de tempo que elas traduzem: contra a morosidade mortífera do tempo cronológico devorador (cf. no fundo. et au moment où je mis le pain grillé dans la bouche et où j’eus la sensation de son amollissement pénetré d’un goût de thé contre mon palais. Et le hasard fit qu’elle m’apporta quelques tranches de pain grillé. avec leurs matins [. Adorno. et ce furent les étés que je passais dans la maison de campagne que j’ai dite qui firent irruption dans ma conscience. comme je m’étais mis à lire sous la lampe. des odeurs de géraniums. et m’attachant toujours à ce bout de pain trempé qui semblait produire tant de merveilles. de laranjeiras. nascidos de ressurreições sensíveis.Assim. étant rentré glacé par la neige. e. tendo retornado congelado pela neve. Habermas. Leio o trecho decisivo deste prefácio: “L’autre soir. no “Prefácio” do livro que devia ser. une sensation d’extraordinaire lumière. et ne pouvant me réchauffer. odores de gerânios. Molhei uma torrada na xícara de chá. 29-56. de felicida- mas em Baudelaire”. de bonheur. je ressentis un trouble. temos não apenas várias descrições de vários autores desses instantes de felicidade.. minha velha cozinheira me propôs preparar uma xícara de chá. E o acaso fez com que ela trouxesse junto algumas torradas. craignant par un seul mouvement d’arrêter ce qui se passait en moi et que je ne comprenais pas. Horkheimer.. Coleção Os Pensadores. São Paulo. como tinha começado a ler sob a luz da lâmpada. d’orangers. redigido em 1908. 1980. mas também o próprio Proust nos dá páginas muito parecidas num outro texto. je restai immobile. ma vieille cuisiniére me proposa de me faire une tasse de thé. Abril. breuvage dont je ne prends jamais. Benjamin. Je fis tremper le pain grillé dans la tasse de thé. e não conseguindo me aquecer. antes de tudo. O rumor das distâncias atravessadas 147 . uma sensação de luz extraordinária. bebida que nunca tomo. o Contre Sainte-Beuve. quand soudain les cloisons ébranlées de ma mémoire cédèrent. pp. um ensaio de crítica literária. no momento em que coloquei a torrada na boca e tive a sensação de seu amolecimento impregnado de um gosto de chá contra meu palato.]” “Outra noite. senti uma perturbação. mas. temendo. 1. No seu livro sobre Proust. remetem ao amor pela mãe. a um breve confronto entre as duas versões do episódio: a “madeleine”. entre a Tante Léonie e o avô. por sua mãe). Gallimard/Folio. permaneci imóvel. e me apegando sempre a este pedaço de pão molhado que parecia produzir tantas maravilhas. invenção romanesca e trabalho de lembranças confluem e se apoiam mutuamente. 5 148 Lembrar escrever esquecer . misturando em sua composição os gêneros literários do ensaio e do romance. com suas manhãs [. no Contre Sainte-Beuve. G. Segundo sua interpretação. 1994. pois. na Busca. segundo Kristeva. pelo deslocamento. Proponho abordar tal passagem pelo viés privilegiado das diferenças entre ambas as versões. contado por mais de três páginas. difere de ambos. essas diferenças. Não me aprofundo na diferença entre a “madeleine” e a torrada. por um único movimento. quando.. Ou seja. p. textos anteriores e inacabados. os reúne. Paris. 1954. ao longo episódio da “madeleine”. Proust et l’expérience littéraire. na Busca. parar aquilo que acontecia em mim e que não entendia. na qual reflexão estética.. M. criando uma unidade nova e essencial para a literatura contemporânea. Vamos. a torrada. da autobiografia e da ficção. algumas páginas anteriores a nosso episódio. e à problemática do incesto — pois a “madeleine” tem o mesmo nome que a mãe de François le Champi. cap. e foram os verões que eu passava na casa de campo de que falei que irromperam na minha consciência. à primeira vista menores.de. lido em voz alta pela mãe do narrador. podemos tentar entender Em busca do tempo perdido como um texto que difere do ensaio crítico Contre Sainte-Beuve e do mero romance de sensações Jean Santeuil. de repente.5 Júlia Kristeva disserta longamente a esse respeito. romance de George Sand. Le temps sensible. 44. adotivo. na obra máxima de Proust.]”4 Este pequeno trecho corresponde. as paredes trêmulas de minha memória cederam. Paris. A problemática do incesto seria ressaltada. na descrição da famosa noite em que ela acaba ficando no quarto do menino nervoso (em François le Champi trata-se do amor de um filho. simultaneamente. Julia Kristeva. Tradução de J. da aten- 4 Marcel Proust. Gallimard. Contre Sainte-Beuve. em 1905. ou. na versão de Em busca do tempo perdido.. Ao comparar ambas as passagens. o cenário estritamente necessário (como esses que se veem indicados no O rumor das distâncias atravessadas 149 . em palavras freudianas usadas por Proust. a esse lembrar inconsciente). temos uma introdução muito maior sobre a miséria da memória voluntária. em franca oposição ao que ocorre em Contre Sainte-Beuve. ao poder da morte.] em suma. mas também a expressão dos dois maiores obstáculos a essa felicidade: o poder da morte e. destacando-se sozinho na escuridão. menos proibida que a mãe. as fontes da escritura proustiana. não somente a descrição de uma sensação repentina e da felicidade que ela provoca. na versão “definitiva” de Em busca do tempo perdido. em última instância. dito de maneira menos amena. vários longos parágrafos que ressaltam a extrema dificuldade de identificação da lembrança que se diz por meio dessa sensação. nunca pude ver mais que aquela espécie de lanço luminoso. o lugar privilegiado da figura da mãe na obra de Proust. quando despertava de noite e me vinha a recordação de Combray. do esforço consciente de lembrar o passado (em oposição à felicidade da memória involuntária que o episódio da “madeleine” ilustra). também muito maiores. a respeito da morte do passado para nós. por assim dizer. Em outros termos — e é assim que me proponho a ler esse episódio — temos. enfim. recortado no meio das trevas indistintas. e em substituição do avô do Contre Sainte-Beuve. assim como alguns desenvolvimentos. sempre visto à mesma hora. Indicaria. como se o evento da morte maternal liberasse. isolado de tudo o que pudesse haver em torno. observamos que. “Assim. Vamos ao primeiro desafio. semelhante aos que o acender de um fogo de artifício ou alguma projeção elétrica alumiam e secionam em um edifício cujas partes restantes permanecem mergulhadas dentro da noite [. Depois da descrição da emoção suscitada pelo bolo e pelo chá. o enigma que cerca a relação entre a morte da mãe. a força da resistência a esse lembrar involuntário (talvez possamos dizer.ção para a tia-avó. temos. Tudo isso pode ser muito provável. Leio alguns trechos imediatamente anteriores à descrição da experiência da “madeleine”. por muito tempo. ao redor do núcleo central que descreve a experiência propriamente dita. e o início da redação do romance.. Tradução de Mário Quintana. num animal. cit. todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. para as representações na província). mas num contexto bastante diferente. como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados por uma estreita escada. nos chamam. venceram a morte e voltam a viver conosco. de Em busca do tem- Marcel Proust. e. nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. e um segundo acaso. e como se nunca fosse mais que sete horas da noite. que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Na verdade. Esse objeto. Trabalho perdido procurar evocá-lo. Porto Alegre. no volume A prisioneira. 43-4. ou que não o encontremos nunca. o de nossa morte. pp. 1981. pp.. Morto para sempre? Era possível. poderia responder. Du côté de chez Swann. Há muito de acaso em tudo isso. tudo isso estava morto para mim. fora do seu domínio e do seu alcance. É assim com o nosso passado. a memória da inteligência. a quem me perguntasse. Está ele oculto. e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste. Libertadas por nós. logo que as reconhecemos. um vegetal. ao drama do meu deitar. entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão. 6 150 Lembrar escrever esquecer . temos uma passagem muito semelhante. em que nos sucede passar por perto da árvore. uma coisa inanimada. Globo. No caminho de Swann. nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. só do acaso depende que o encontremos antes de morrer. não nos permite muitas vezes esperar por muito tempo os favores do primeiro. que para muitos nunca chega.”6 Ora. Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas nalgum ser inferior. efetivamente perdidas para nós até o dia. Então elas palpitam.princípio das antigas peças. 44-5. Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária. está quebrado o encanto. Na verdade. teria sido preciso passar várias camadas de tinta. Diante dele. o escritor. Bergotte. Passa na frente de vários quadros e tem nitidamente a impressão “da secura e da inutilidade de uma arte tão factícia” antes de chegar à Vista de Delft. os visitantes acorrem. em particular da pintura. cai do sofá no qual se segurava. Meus últimos livros são demasiado secos. Os guardas. é proibido pelos médicos de sair de casa. Porto Alegre. Morto para sempre? Quem o poderá dizer? Certo. Bergotte. dizia consigo. ele tenta se tranquilizar. gravemente doente. Está morto. e se prende. melancólico. Gallimard. La prisonnière. a preciosa luminosidade de um pedaço de muro amarelo. que é também um grande amante das artes. sozinho. vol. O rumor das distâncias atravessadas 151 . as experiências espíritas não fornecem a pro- 7 Marcel Proust. deve ficar de repouso e só comer coisas leves. 1987. toda a obra. com várias camadas de cor. pensando que sofre apenas de uma indigestão de batatas malcozidas. III. Globo.po perdido: na descrição da morte de Bergotte. como um náufrago a uma tábua. A la recherche du temps perdu. musical. O autor da crítica chama a atenção para um detalhe da tela Vista de Delft: um pequeno pedaço de muro amarelo tão maravilhosamente pintado que valia. tornar a minha frase preciosa em si mesma. ao pedaço de muro amarelo. Cito outra vez: “Estava morto. pp. Cada vez mais sacudido por tonturas. lê no jornal a crítica de uma exposição em que se encontra um quadro de Vermeer van Delft. ao mesmo tempo transparente e espessa. Almoça algumas batatas cozidas e vai ao museu onde tem. alguns momentos de tontura. 157-8. com efeito. A prisioneira. pp. o escritor de estilo elegante. decide sair para ver a exposição. pintor que ele sempre amou e colocou acima de todos os outros. num surto de lucidez crítica: “Assim é que eu deveria ter escrito. 692-3. Cito a tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar.”7 Ele se sente mal novamente. já na escada. 1983. que não se lembrava desse muro. em que observa. que o herói adora ler na adolescência e do qual tenta tomar suas distâncias na idade adulta. prestes a desmaiar. como este panozinho de muro. repassa toda a sua vida e toda a sua produção literária. Ora. Paris. um no início do romance. a importância do acaso. separados por duas mil páginas. 1987). As duas desenvolvem a possibilidade da sobrevivência da alma. no quadro de Vermeer. e é por isso que traço este paralelo. a questão da morte e da ressurreição. mas também de uma verdadeira recriação artística. Ver a distinção de Deleuze entre signos sensíveis e signos artísticos em Proust et les signes (Paris. opõe-se ao segundo. a resposta será encontrada na atividade estética. este pequeno pedaço de muro que propiciam somente os acasos da memória involuntária. é. ela é colocada pelo viés da sensação. uma cor e uma matéria luminosas e espessas que nasceram não só do esforço do pintor. a partir deles. pois. No início. Proust e os signos (Rio de Janeiro. 152 Lembrar escrever esquecer . Um dos temas comuns a ambas as passagens é. Sobretudo. A questão central. temos a evocação de um pedacinho de muro — o primeiro. como também não a fornecem os dogmas da religião. no primeiro: “Morto para sempre? Era possível”. no fim do romance. temos frases quase idênticas nos dois textos. Forense.va de que a alma subsista. conforme crenças célticas ou espíritas. portanto. que volta como um refrão incisivo. Essa questão suscitou várias discussões. que é tudo que a memória voluntária consegue reproduzir.”8 Vocês certamente observaram paralelos curiosos entre estes dois trechos. que sua arte fina. Walter Benjamin.9 Como se o escritor Bergotte (uma das múltiplas figuras do escritor Proust) descobrisse. o “lanço luminoso. Duas frases cuja brevidade chama a atenção na prosa proustiana tão labiríntica. recortado no meio das trevas”. PUF. 1964). já criticava esse ponto-chave da teoria estética 8 9 Idem. e nunca alcançou a espessura do “panozinho de muro amarelo”. na tradução de Roberto Machado. feito de uma “preciosa matéria” muito acima dos produtos da inteligência. o outro mais ao fim. tarde demais. que ela só conseguiu descrever um “pedaço luminoso” de muro graças à memória voluntária. no segundo: “Morto para sempre? Quem o poderá dizer?”. antes da experiência crucial na biblioteca de Guermantes que retoma o episódio da “madeleine” e é decisiva para a vocação de escritor do narrador. assim como o trabalho com eles. ibidem. Nas duas vezes. inteligente e sensível era demasiadamente seca e artificial. nos anos 30. algo que surge e se impõe a nós e nos obriga. vol. paradoxalmente. que levam de volta ao espírito um objeto outrora possuído por ele e que dele tinha saído. pelo menos em vista do resultado que terão) que aporta ao nosso espírito um objeto novo. Ao mesmo tempo. Temos uma variante muito esclarecedora a esse respeito. au moins en vue du résultat qu’elles auront) qui amène dans notre esprit un objet nouveau. Je trouve très raisonnable la croyance celtique [. I..]”10 Proponho uma primeira tradução literal: “Se é muitas vezes o acaso (entendo por isso circunstâncias que nossa vontade não preparou. um conceito. digamos. après des épreuves éliminatoires. o acaso é algo muito maior. 1122. uma ascese da disponibilidade. ele é aquilo que não depende de nossa vontade ou de nossa inteligência.]” O acaso não é. op. a dar um tempo. o de nossa morte. um exercício. Na obra de Proust (e na belíssima interpretação de Deleuze citada).. não nos permite muitas vezes esperar por muito tempo os favores do primeiro”. p. e um segundo acaso. no sentido mais profundo da reflexão proustiana.. Acho muito razoável a crença céltica [. portanto. depois de provas eliminatórias. a pensar — como faz o gosto da “madeleine”. um acaso selecionado e submetido a condições de produção difíceis. é um acaso mais raro.proustiana e lhe opunha a necessidade. ele só pode ser percebido se há como um treino. un hasard sélectionné et soumis à des conditions de production difficiles. c’est un hasard plus rare. da construção de possibilidades do acaso/dos acasos. a irrupção estatística de coincidências. cit. por assim dizer. qui ramènent dans l’esprit un objet possédé autrefois par lui et qui était sorti de lui. O rumor das distâncias atravessadas 153 . trivial de acaso. Diz a variante: “Si c’est souvent le hasard (j’entends par là des circonstances que notre volonté n’a point préparées. umas “provas” 10 Ver variante da edição da Pléiade.. Essa crítica ia. no primeiro texto. quando Proust escreve: “Há muito de acaso em tudo isso.. nos força a parar. uma “seleção”. a transformação. Acaso. mais apto a acolhê-lo. mas de empreender um duplo trabalho: contra o esquecimento e a 154 Lembrar escrever esquecer . não percebemos. Não se trata simplesmente de reencontrar uma sensação de outrora. antes de termos sequer suspeitado dessa outra vida. esse imprevisto. na nossa propensão a passar ao lado dessa “vida verdadeira”. da sensação em sentido. via Proust. pelo trabalho da criação artística. mas sim de enfrentar. era extremamente rápida no Contre Sainte-Beuve (“quando de repente. paradoxalmente. talvez vocês se lembrem. a busca espiritual do seu nome originário. por covardia (como ele o assinala algumas linhas abaixo) e. geralmente. dessas outras vidas. a escrita desse imenso livro. a morte. a ameaça do esquecimento. Para ele. a única fonte de nossos conhecimentos necessários e verdadeiros: necessários não no sentido clássico de uma coerência por nós estabelecida. segundo Proust. de Contre Sainte-Beuve: essa demorada descrição do trabalho. muito mais próximo das noções de atenção e de kairos (e de toda tradição. portanto. da elaboração psíquica necessária à identificação da sensação — ou melhor. do silêncio e da morte. mas no sentido de que não podemos escapar a eles. que desencadeia um gigantesco processo de conhecimento e de produção — ou seja. Segundo Deleuze. jogamos fora.que tornam o espírito mais flexível. O risco maior consiste. Insisto nesta concepção bastante elaborada do conceito de acaso em Proust pois ela permite explicar uma das diferenças maiores entre o texto de Em busca do tempo perdido e o texto. à passagem da sensação enquanto tal (o gosto da “madeleine” misturado ao chá e o contato das migalhas com o palato) para a sua nomeação. era rápida demais — poderíamos arriscar essa hipótese — para satisfazer a exigência de Proust. aí sim. as paredes trêmulas de minha memória cederam. da mística à psicanálise. anterior e paralelo. que esses conceitos orientam) que da ideia de uma coincidência exterior. seu reconhecimento. da sensação em linguagem. do esforço espiritual. por inatenção. essa ocasião — kairos! — que. por meio da atividade intelectual e espiritual que o exercício da escrita configura. sim. o perigo de sermos surpreendidos pelo acaso maior. este acaso é. não se trata de escrever um romance de impressões seletas e felizes. mas sim a elaboração dessa sensação. Em outras palavras: não é a sensação em si (o gosto da “madeleine” e a alegria por ele provocada) que determina o processo da escrita verdadeira. e foram os verões”). que jazia escondida no signo casual e ocasional. Essa passagem. por preguiça. portanto. rechaçamos e recalcamos. na “madeleine” ou no chá.morte. contra a preguiça e a resistência. sejam eles as sensações que nos preenchem de alegria ou as mulheres pelas quais nos apaixonamos —. depois. isto é. somente sua superação permite uma verdadeira aprendizagem espiritual. permite ao herói ultrapassar o estágio da desilusão cínica (tipo: “nenhuma mulher serve para mim!”) para entender a necessidade de uma construção espiritual e artística. o lado “subjetivo” do escritor que se põe à obra. Leio a passagem em francês e. o lado “objetivo” do tempo aniquilador. tout à l’heure. Resistindo. C’est à lui de trouver la vérité. pour un éclaircissement décisif. mais ne la connaît pas. Uma luta tensa e árdua que o emprego do indicativo presente. nos termos de uma luta do espírito consigo mesmo. durante várias páginas. bastante raro nessa obra. avec de moins en moins de force. mais qu’elle le dépassait infiniment. D’où venait-elle? Que signifiait-elle? Où l’appréhender? Je bois une seconde gorgée où je ne trouve rien de plus que dans la première. ainda agora. procurar a verdade nos objetos. Il est temps que je m’arrête. Ilusão que o narrador rejeita rapidamente. Je pose ma tasse et me tourne vers mon esprit. Tal busca é evocada. pois esse combate não é ganho de uma vez por todas. essa tentação se repete no decorrer da obra. à ma disposition. um. à escritura do livro. a essa primeira tentação de facilidade — encontrar a lembrança no gosto mesmo da “madeleine” —. ce même témoignage que je ne sais pas interpréter et que je veux au moins lui redemander et retrouver intact. A primeira tentação que deve ser vencida consiste na ilusão de que a resposta se encontraria no objeto que despertou a sensação. mais en moi. la vertu du breuvage semble diminuer. ne devait pas être de même nature. pois. como ele mesmo diz. Mais comment? O rumor das distâncias atravessadas 155 . “a virtude da bebida parece diminuir”. mas preside. une troisième qui m’apporte un peu moins que la seconde. nos termos clássicos da tradição filosófica e mística. então. Il est clair que la vérité que je cherche n’est pas en lui. Il l’y a éveillée. ressalta na sua atualidade. Gilles Deleuze ressaltou que essa tentação objetivista — isto é. à possibilidade de existência desse livro que estamos lendo. sua tradução que corrigiremos: “D’où avait pu me venir cette puissante joie? Je sentais qu’elle était liée au goût du thé et du gâteau. et ne peut que répéter indéfiniment. outro. o eu se volta para si mesmo em vez de se dispersar nos objetos. toutes les fois que l’esprit se sent dépassé par lui-même. e só o que pode fazer é repetir indefinidamente. 156 Lembrar escrever esquecer . Il est en face de quelque chose qui n’est pas encore et que seul il peut réaliser. É claro que a verdade que procuro não está nela. mas em mim. 44-5. É tempo de parar. pois este não possui essa qualidade por si mesmo — quem diria que havia tanta coisa numa simples xícara de chá? —. A bebida a despertou. todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo. o explorador. 1. I. Edição brasileira. parece que está diminuindo a virtude da bebida. Chercher? Pas seulement: créer. O espírito deve fazer mais do que interpretar um signo exterior.” “De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo. pp. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz. 45-6. um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. quando ele.Grave incertitude.. Explorar? Não apenas explorar. mas não a conhece. esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intacto à minha disposição. est tout ensemble le pays obscur où il doit chercher et où tout son bagage ne lui sera de rien. Mas como? Grave incerteza. criar. mas que o ultrapassava infinitamente e que não devia ser da mesma natureza. ele só adquiriu esse estatu- 11 Op. cit. le chercheur. vol. cit. é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. puis faire entrer dans sa lumière. quand lui. pp. Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. vol.”11 O vocabulário que descreve essa busca tensa e densa oscila entre a ideia de interpretação (“ce même témoignage que je ne sais pas interpréter”) e a ideia de criação (“Chercher? Pas seulement: créer”).. op. para um esclarecimento decisivo. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada de mais que no primeiro. cada vez com menos força. É a ele que compete achar a verdade. porém. mas de maneira profundamente paradoxal. o espírito. esta potência é própria do meu espírito. São Paulo. Como diz Proust. a uma lembrança. de maneira ainda confusa. Esse herói continua. Coleção Os Pensadores. ele é um viajante numa região escura procurando por algo esquecido em sua bagagem. Abril. Confissões. 1980. e as quais ele gostaria de poder atravessar. Não chego. é ao mesmo tempo o sujeito. o de signos convencionais como os sinais de trânsito). Metáforas do país e da viagem — a única viagem. 12 O rumor das distâncias atravessadas 157 .” Santo Agostinho. pois é ele o próprio espírito que será simultaneamente origem e meio dessa criação: “Chercher? Pas seulement: créer. a apreender todo o meu ser. e pertence à minha natureza. puis faire entrer dans sa lumière. O santo responderá por uma doutrina da iluminação divina e da reminiscência. que será verdadeiramente realizada pelo narrador de Em busca do tempo perdido! — que retomam os paradoxos da memória e do esquecimento. de Santo Agostinho ao bloco mágico de Freud: “É grande essa força da memória. cap. imensamente grande ô meu Deus. a uma imagem psíquica portanto. em reta linha de Platão. o objeto e o território da busca. cujas limitações ele experimenta dolorosamente. Il est en face de quelque chose qui n’est pas encore et que seul il peut réaliser. É um santuário infinitamente amplo.to de signo por estar ligado. aliás. porém. falando em criação. Quem pode sondar até o profundo? Ora. em busca e em iluminação espiritual. 8. livro X. 15. A atribuição do índice de significação já provinha de uma atividade psíquica individual e particular (o estatuto de signo da xícara de chá não é o mesmo que. O espírito se debate aqui dentro de suas próprias fronteiras. Não há mais luz divina para iluminar os caminhos de Swann e do herói da Busca. Será porque o espírito é demasiado estreito para se conter a si mesmo? Então onde está o que de si mesmo não encerra? Estará fora e não dentro dele? Mas como é que não o contém?”12 Assim a exclamação de Santo Agostinho nas Confissões. e que não consegue lembrar o que ele deveria encontrar nesse país ao mesmo tempo estrangeiro e próximo. Ele. por exemplo. do vir à tona. 46. 46. toda ideia estranha. até Descartes. como se houvesse um navio afundado que. cit. agir como um mergulhador emérito e passear como um turista em férias. dos reflexos.. fazer ingressar em sua luz. p. Du côté de chez Swann. afastamento e “turbilhão ininteligível”.. Marcel Proust. a do subir. Edição brasileira. muito mais. Ao paradoxo desse “algo” que ainda não existe e com o qual o eu se confronta corresponde a imagem de um deslocamento aquático e escuro. cit. O espírito deve. a evocação de toda essa massa de água muito mais pesada e espessa que o poderia deixar suspeitar a clara superfície do mar — e da consciência. pela gramática. cit. que se fecha em seu quarto: “E para que nada quebre o impulso com que ele [o espírito] vai procurar captá-la [a sensação fugitiva]. 45.” A metáfora da luz — aqui maravilhosamente ambígua pois não podemos decidir. que se retira da cidade. 158 Lembrar escrever esquecer . pouco a pouco.. se se trata da luz do espírito ou da luz desse algo desconhecido — volta reiteradas vezes nesse trecho do texto. depois. desde Platão. O primeiro movimento é o gesto clássico da concentração espiritual. ibidem. abrigo meus ouvidos e minha atenção contra os barulhos da peça vizinha. alternadamente. 46. regiões turvas e confusas. das formas e da clara consciência. Edição brasileira. emerge do fundo do mar para alcançar a “superfície de minha clara consciência”. essa metáfora se desdobra numa comparação muito menos clássica. mas sim. e. presente na filosofia de Platão a Descartes e ainda hoje. p. afasto todo obstáculo. p. Idem. Du côté de chez Swann. Ele está diante de algo que ainda não é e que somente ele pode realizar..Alterando um pouco a tradução: “Procurar? Não apenas procurar: criar. cit.”15 13 Marcel Proust. a metáfora da luz.13 Em outros termos: a metáfora clássica da metafísica. Ela é reforçada por uma outra metáfora. 14 15 p. numa topologia psíquica onde o fundo (“no fundo de mim”)14 não significa nobres profundezas essenciais. o gesto da distração. A mudança essencial consiste no reconhecimento. A lembrança que o gosto da “madeleine” assinala como estando. como muitas vezes se interpreta. de escuta. da dinâmica do esquecimento e da memória involuntária. pelo contrário. ao mesmo tempo. a aceitar essa distração que lhe recusava. j’éprouve la résistance et j’entends la rumeur des distances traversées. isto é. quelque chose qu’on aurait désancré. da força da resistência e do poder da morte. a verdade não pode ser encontrada somente pelo esforço voluntário do sujeito soberano. O que existe é muito mais o trabalho de travessia.” 16 Idem. essa lembrança não será reencontrada por uma espécie de insight mágico. forço-o. voudrait s’élever. je fais le vide devant lui [mon esprit]. de exploração tateante de um imenso território desconhecido. em Proust. ibidem. mais cela remonte lentement.Mas há um segundo movimento. no seio da própria escritura e por ela tematizado e elaborado. em quê precisamente a introdução ao Contre Sainte-Beuve e estas páginas do primeiro capítulo de Em busca do tempo perdido diferem. como vimos. pois. Aliás. presente e perdida.”16 Podemos tentar resumir. que colocam em cheque a soberania da consciência voluntária e clara. Proust ressalta que muitos signos são emitidos sem que jamais sejam decifrados. Cito a passagem da qual tirei o título para esta palestra: “Puis une deuxième fois. Daí a necessidade de um outro gesto. à une grande profondeur. agora. de prova. embora possam parecer. dizer o mesmo. da dispersão. O rumor das distâncias atravessadas 159 . da “perda”. a refazer-se antes de uma tentativa suprema. je ne sais ce que c’est. je remets en face de lui la saveur encore récente de cette première gorgée et je sens tressaillir en moi quelque chose qui se déplace. mas sim. em particular da perda de tempo: “Mas sentindo que meu espírito se fatiga sem resultado. não há nenhuma garantia para esse reencontro. sua capacidade de identificação imediata. a pensar em outra coisa. à primeira leitura. da aceitação dessa dinâmica que nos surpreende e nos escapa. ela precisa também da ajuda do “acaso”. Podemos acrescentar: é porque Proust percebeu a insuficiência dessa resposta que ele conseguiu passar do romance impressionista (Jean Santeuil) e da tão rápida cena de reconhecimento. G. que seria simplesmente a resposta da memória involuntária”. Seuil. que as frases proustianas 17 18 Idem. 160 Lembrar escrever esquecer . à escritura de uma obra verdadeira e inconfundível que é Em busca do tempo perdido.). dizer que não requerem o labor de nenhuma arte”. de perdas. A elaboração estética e reflexiva. descrita nos parágrafos anteriores em seu duplo movimento de concentração e distração. mas aquilo sobe lentamente. a presença do tempo e da morte. continua Ricoeur. não sei o que é. Mas ele seria uma criação menor. faço o vácuo diante dele [meu espírito]. Paul Ricoeur ressalta que a tentação de reduzir Em busca do tempo perdido à busca e à descrição de experiências específicas. no prefácio do Contre Sainte-Beuve. vol. fosse apenas “a busca de revivências similares. Se a busca. mas sim sua lenta procura. Só se tornou uma obra de arte. algo que teria ido desancorado. Paris. experimento a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas. Como descrever tal armadilha? Segundo Ricoeur. a uma grande profundeza. 202. p. cheia de desvios. constitui a grande armadilha em que tanto o leitor como até mesmo o autor perigam cair. das quais se deve. porque se confronta com as dificuldades dessas revivências felizes.”17 Esta frase nos ajuda a entender por que o romance não termina aqui. no momento imediatamente seguinte ao reconhecimento da lembrança e da alegria por ela trazida.18 é a “armadilha de uma resposta curta demais. agradável e bem escrita (talvez como os livros de Bergotte). no mínimo.“Depois. uma criação que tem a ver com a verdade. do tipo “madeleine”. torno a apresentar-lhe o sabor ainda recente daquele primeiro gole e sinto estremecer em mim algo que se desloca. de meandros. o livro poderia terminar aqui. por uma segunda vez. Paul Ricoeur. porque toma a sério a presença da resistência e do esquecimento. que se desejaria elevar-se. M. isto é. ibidem (tradução modificada por J. em última instância. 1984. II. como um leitor incauto esperaria. La configuration dans le récit de fiction. sem mais. é imprescindível justamente porque não há reencontro imediato com o passado. Temps et récit. mimetizam, atravessando as numerosas, diversas, irregulares e heterogêneas camadas do lembrar e do esquecer. Hora de concluir. Esse longo trabalho, essa ascese do desvio em oposição à rapidez da linha reta, é o princípio de crescimento da obra que vai, pouco a pouco, se fazendo, se rasurando e se reescrevendo entre o episódio inicial da “madeleine” e sua retomada e explicitação no último volume, O tempo redescoberto. Nessa primeira passagem, com efeito, resta ainda algo que não foi explicitado, algo no fim desse capítulo a que alude discretamente um parêntese absolutamente essencial, para o qual Ricoeur chama nossa atenção. Cito: “Et dès que j’eus reconnu le goût du morceau de madeleine trempé dans le tilleul que me donnait ma tante (quoique je ne susse pas encore et dusse remettre à bien plus tard de découvrir pourquoi ce souvenir me rendait si heureux), aussitôt la vieille maison grise [...]” e, traduzido: “E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta [...]”19 Com efeito, o leitor encontrará a resposta a essa questão deixada em suspenso muito mais tarde, umas três mil páginas depois. O segredo dessa felicidade, assim como o segredo da sensação, não se desvela de imediato apesar de nossa impaciência e de nossa voracidade. Não há soluções ou receitas nesse livro, mas sim a elaboração lenta, conturbada, às vezes alegre e engraçada, outras vezes angustiada e sufocante, elaboração de um confronto com a perda, com o esquecimento, com o tempo e com a morte. Marcel Proust, Du côté de chez Swann, op. cit., p. 47. Edição brasileira, op. cit., p. 47 (tradução modificada por J. M. G.). 19 O rumor das distâncias atravessadas 161 162 Lembrar escrever esquecer 11. UMA FILOSOFIA DO COGITO FERIDO: PAUL RICOEUR A tradução de várias obras de Paul Ricoeur nos últimos anos1 oferece uma ocasião privilegiada de apresentar ao público brasileiro a trajetória, simultaneamente excêntrica e exemplar, desse filósofo contemporâneo. Trajetória excêntrica com relação ao suposto centro que figuraria o Hexagone, a França, e em particular, Paris. Ricoeur é um dos poucos filósofos franceses atuais que não só lê e traduz do alemão e do inglês, mas também dialoga com correntes internacionais de pensamento tão diversas como a fenomenologia alemã (traduziu as Ideias I, de Husserl, já em 1950), a hermenêutica de Gadamer ou a filosofia analítica inglesa e norte-americana. Esse diálogo múltiplo, aliás, constitui parte considerável de seus textos. Em Tempo e narrativa, por exemplo, a discussão com Agostinho e Aristóteles, com Husserl e Heidegger, mas também com Braudel, Danto, White, Propp, Greimas, Weinrich, sem falar em Thomas Mann e Proust, ocupa mais da metade da obra. Tal confrontação com pensamentos alheios levou à crítica muito frequente de que Ricoeur não teria um pensamento próprio. Só saberia, como um bom professor (meio chato como muitas vezes são os bons professores!), expor as ideias dos outros e corrigir-lhes os excessos. Gostaria, aqui, não de defender uma originalidade estonteante da filosofia de Ricoeur — originalidade, aliás, que me parece pertencer a pouquíssimos, apesar das afirmações mercadológicas contrárias —, mas de ressaltar sua coerência e sua generosidade. A questão central da obra, pois, poderia ser tematizada como a tentativa de uma hermenêutica do si pelo desvio necessário dos signos da cultura, sejam eles as obras da tradição ou, justamente, as dos contemporâneos. A discussão aprofundada de outros pensadores 1 Os três tomos de Tempo e narrativa, publicados pela Papirus em 1994, 1995 e 1997; e os três de Leituras: Em torno ao político, A região dos filósofos e Nas fronteiras da filosofia, lançados pela Loyola em 1995, 1996, 1996, respectivamente. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 163 aponta não só para um hábito acadêmico e professoral, mas, muito mais, para uma abertura e uma generosidade no pensar que vão em direção oposta a certo narcisismo jubilatório e esotérico, característico de muitas modas filosóficas (e outras) contemporâneas. Trajetória exemplar, portanto, se considerarmos como seu início a recepção da fenomenologia husserliana nos anos 50 e seu último livro mais sistemático, Soi-même comme un autre,2 que já traz inscrita no seu belo título a questão da identidade (Soi-même) e de uma invenção da identidade através das figuras da alteridade (comme un autre), insistindo tanto na dimensão metafórica como também ética dessa invenção. Ora, essa questão já se encontrava, segundo Ricoeur, no centro de seu interesse pela fenomenologia husserliana. Com efeito, seu impacto sobre o jovem filósofo não provém de sua pretensão a uma fundamentação originária e imediata da fenomenalidade pela consciência pura — pretensão certamente presente e importante —, mas de sua insistência na intencionalidade dessa mesma consciência, isto é, da relação essencial e primeira da consciência para com o mundo fora da consciência. Em outras palavras, a fenomenologia husserliana rompe “a identificação cartesiana entre consciência e consciência de si” ou, ainda, permite “escapar ao solipsismo de Descartes [...] para levar a sério o quadro histórico da cultura”.3 Desde o início, portanto, Ricoeur se situa numa posição de combate às versões mais exacerbadas do idealismo, em particular à pretensão de autossuficiência da consciência de si, para ressaltar os limites dessa tentativa. Limites entendidos, seguindo a empresa crítica de Kant, como as demarcações intransponíveis da racionalidade e da linguagem humanas, sob pena de cair nas aporias ou, pior, na hybris (des-medida) de um pensamento que se auto-institui em absoluto; mas limites também no sentido de uma fronteira que aponta, por sua pró- 2 A tradução brasileira, O si mesmo como um outro (Campinas, Papirus, 1990), deixa, infelizmente, bastante a desejar. 3 Réflexion faite. Autobiographie intelectuelle (Esprit, 1995), versão francesa do ensaio publicado em inglês no início do livro The philosophy of Paul Ricoeur (Lewis E. Hahn, org., Chicago, Open Court, 1995). Para entender a história intelectual de Ricoeur, consultei, além deste, uma coletânea de entrevistas do autor a F. Azouvi e M. de Launay, La critique et la conviction (Paris, Calmann-Lévy, 1995); e ainda um livro consagrado ao pensamento de Ricoeur, Paul Ricoeur, por Olivier Mongin (Paris, Seuil, 1994). 164 Lembrar escrever esquecer portanto. o mal. fonte de sua reflexão ética e política — e um caminho de acesso privilegiado — os símbolos. em cada obra. mas reconhece. que existe algo fora dela. de seus símbolos primários e de seus mitos. Já nessa obra inicial. entre o sujeito e o mundo. dupla na reflexão de Ricoeur: ao mesmo tempo crítica e aberta. Ao reconhecer seus limites. Finitude et culpabilité: 1 — L’homme faillible. vol. 2. Delineia-se assim. Paris. como Ricoeur mesmo o assinala. as invenções linguísticas e narrativas que os homens elaboram para tentar converter em sentido(s) o real que encontram e que os submerge. justamente figuras dolorosas do involuntário. a apreensão de uma unidade muito maior. 4 Philosophie de la volonté. e mais. cheia de curiosidade. portanto. A luta contra os exageros da tradição idealista.pria existência. Em termos heideggerianos. que esse algo é tão fundamental como apaixonante. para uma outra região que não seja o território da consciência autorreflexiva. À “exaltação do Cogito” se opõe um Cogito “quebrado” (brisé) ou “ferido” (blessé) como escreve Ricoeur no prefácio a Si mesmo como um outro. que Ricoeur aponta como o motivo primeiro de sua filosofia. daquilo que coloca radicalmente em questão a onipotência da vontade humana: a finitude. Essa problemática das fronteiras e das regiões (ver os subtítulos dos volumes 2 e 3 de Leituras) é. a consciência filosófica não se restringe à autorreflexão solipsista. 2 — La symbolique du mal. desemboca assim numa pesquisa apaixonada das relações dessa consciência — e desse sujeito — com o mundo que os circunscreve e os constitui por inúmeros laços. é digno de menção que os primeiros livros de Ricoeur tratem de uma Filosofia da vontade4 ou. Notemos também que o problema do mal é abordado desde já pelo viés de sua simbólica. Mas essa quebra é. mesmo que nunca totalizável pelo sujeito: a unidade que se estabelece. para um outro país. 1. alguns temas-chave da reflexão de Ricoeur estavam postos: a não-soberania do sujeito consciente e sua relação simbólica e cultural com esse outro que lhe escapa. Le volontaire et l’involontaire. isto é. 1963. vol. Nesse contexto. a culpabilidade. os mitos. melhor. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 165 . com certo alívio e alegria. que Ricoeur gosta de usar: a pesquisa das inúmeras maneiras do sujeito humano habitar o mundo e torná-lo mais habitável. em cada ação. Aubier-Montaigne. simultaneamente. uma questão essencial — o mal. Sua desconfiança concerne à pretensão de totalização que alguns usos desenfreados do estruturalismo e de outros ismos sugerem: 166 Lembrar escrever esquecer . mas que se reforçam mutuamente nessa denúncia do humanismo metafísico (tal como Heidegger. o inconsciente. Esse debate. ao contrário. mas distanciado. depois. para o qual a versão althusseriana do marxismo deverá também contribuir. o estruturalismo tanto linguístico como. com sua ênfase nos conceitos de responsabilidade e de decisão. como alguns de seus colegas. A discussão filosófica dessas décadas é marcada por várias tentativas de destronar não só a filosofia clássica do sujeito autônomo (Descartes e Kant). enfim. Mas tampouco aceita um certo entusiasmo desvairado pelos novos modelos teóricos. mas que o discurso do sujeito representa muito mais o veículo através do qual algo. as análises estruturalistas. como se possuísse liberdade e soberania sobre ela. o sistema de relações que estruturam o corpo social. Como já vimos. o confronto com as ciências humanas e a filosofia dos anos 60 e 70. Sua resistência não diz respeito às aquisições descritivas que tais metodologias oferecem. encontra em Ricoeur um observador atento. portanto. permite a Ricoeur afinar melhor dois conceitos centrais: os de sujeito e de interpretação. Ricoeur distingue três correntes distintas. que deviam engendrar muitos fanáticos. Os três movimentos têm em comum a convicção de que não há sujeito algum que seja mestre de sua fala.Enquanto o primeiro livro ainda era bastante tributário da fenomenologia da religião — em particular de Mircea Eliade —. um pensamento poetizante que se reclama. o tinha definido): primeiro. sobretudo. tradicionalmente atribuída à pessoa do sujeito individual. sobretudo de textos. essas tendências teóricas tendem a transferir a dinâmica de liberdade e de invenção. para uma entidade sistêmica tão eficaz como impessoal. antropológico (Lévi-Strauss). Olhando retrospectivamente para essa época. a necessidade de sair apressadamente em defesa dessa figura contestada. na França. muito maior que ele. o existencialismo e o personalismo. mas também seus sucedâneos e contemporâneos. Mesmo que não neguem as variações pessoais e estilísticas. precisamente. e. Não sente. se diz: a dinâmica de encobrimento e de descoberta do Ser. do segundo Heidegger. nas pegadas de Nietzsche. a renovação da psicanálise com a doutrina lacaniana. Ricoeur andava desde sempre desconfiado com relação à afirmação idealista clássica da soberania do sujeito. serão amplamente discutidas e aproveitadas por Ricoeur. de deslocamentos. de crítica à ideologia. Ricoeur observa que seus primeiros escritos repousavam sobre uma noção amplificante de interpretação: uma “interpretação atenta ao acréscimo de sentido incluído no símbolo e que a reflexão tinha por tarefa liberar”. ou seja. o da obra e o do intérprete.5 O embate com “esses três grandes mestres da suspeita”. certo apagamento do intérprete em 5 Réflexion faite. em Freud. tematizados ou inconscientes. o destaque recai na discussão muito elaborada do próprio conceito de interpretação. Ricoeur tira ainda mais munição para a sua empresa de desmistificação das pretensões teóricas totalizantes. Dessas leituras. novamente. cit. que não reconhece seus limites — dos recentes paradigmas anticartesianos. e com o pós-heideggerianismo —. Freud. instrumentos privilegiados de análise da relação temporal que subjaz à prática hermenêutica. mas surgem também de conflitos. Aqui. de disfarces e de transferências. Frutos dessas controvérsias são os dois livros: Da interpretação.como se esses modelos pudessem não só descrever e analisar as produções culturais e linguísticas. de descoberta do recalque e da repressão. A dinâmica da compreensão comporta. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 167 . Marx e Nietzsche — via o confronto com a psicanálise. Como as manifestações culturais. Ele ganha. Ricoeur desconfia da mesma tendência a uma hybris totalizante que já denunciava no solipsismo cartesiano e que ele fareja na aplicação acrítica — isto é. A própria transmissão da tradição obedece a motivos e interesses diversos. o marxista). individuais ou coletivas não se constituem a partir de uma produção linear e tranquila de sentidos acumulados. Ensaios de hermenêutica. portanto. de 1965. em Nietzsche. leva-o a admitir outra possibilidade de interpretação: uma interpretação redutora. explícitos ou implícitos. porém. igualmente. assim também a relação entre o presente do intérprete e o passado (mais ou menos longínquo) da obra interpretada não se resume à mera relação de aceitação e transmissão. de denúncia das ilusões. Como o leitor pode perceber. com o estruturalismo (entre outros. Ambos devem ser refletidos. No processo interpretativo confrontam-se sempre dois mundos. mas também explicar suas formas históricas de surgimento e de invenção. Ensaio sobre Freud. e O conflito das interpretações. em Marx. que interferem no processo hermenêutico enquanto tal. de 1969. Em Tempo e narrativa.favor da obra. da produção de um sentido novo através de procedimentos linguísticos (procédures langagières)”. permite uma reelaboração da noção de sujeito sem cair nas rédeas do individualismo costumeiro. desapropria duplamente o sujeito da interpretação: obriga-o a uma ascese primeira diante da alteridade da obra. Contra um estruturalismo estreito que defenderia a extinção da noção de sujeito. Munido desses instrumentos linguísticos mais finos. uma “desapropriação de si” para deixar o texto. nesse livro cerrado. então. nos três imponentes volumes de Temps et récit (respectivamente de 1983. Ricoeur dará a essa transformação da experiência do intérprete (e do leitor) o nome de refiguração. lembremos. que é La métaphore vive. 168 Lembrar escrever esquecer . Ricoeur enfrenta agora a problemática da criação do sentido em duas etapas distintas: primeiro. à retomar a problemática do sujeito e sua relação para com outrem e para com o mundo. nos interpelar na sua estranheza e não só nos tranquilizar naquilo que nele projetamos. Não é o lugar. mas também produzir. de tecer comentários detalhados sobre esse livro difícil. através de um estudo muito mais preciso e circunscrito: a análise do “fenômeno da inovação semântica. e. Com certo receio em relação às vagas noções de símbolo e de mito que ele mesmo usou. em particular sua definição do discurso como um enunciado estruturado pela relação entre aquele que toma a palavra e aquele a quem se endereça essa palavra. 6 Idem. já se encontrava em germe nas interpretações da Symbolique du mal.6 Tal proposta. O processo hermenêutico. 1984 e 1985). a semântica de Benveniste. mas também da maneira de ver do sujeito da interpretação. que é o La métaphore vive. mais tarde. dito de outra maneira. Em certo sentido. por exemplo. graças ao confronto entre o universo do intérprete e o universo interpretado. num segundo momento. de 1975. Ricoeur é mais radical que Gadamer quando esse falava de uma reapropriação (Aneignung) da obra pelo intérprete. Mas fiquemos ainda nessas discussões dos anos 70: a ênfase dada aos processos de transformação não só da visão do objeto. leva Ricoeur a trabalhar em detalhe a linguística da enunciação de Émile Benveniste. poderíamos dizer. desaloja-o de sua identidade primeira para abri-lo a novas possibilidades de habitar o mundo. uma transformação de ambos. e. às vezes de leitura ingrata. aqui. ou. Ricoeur se propõe. 7 remetem a uma definição da verdade da linguagem em termos predominantes de adequação e de referência unívoca. isto é. porém. como sustentam alguns filósofos herdeiros de Frege.Dificuldade tributária das discussões técnicas muito agudas com diversas correntes da filosofia analítica e da linguística. Ricoeur adota uma posição mediana — tal postura lhe atrai tanto o ódio dos desconstrutivistas fanáticos. a metáfora sempre é vista como um desvio perigoso porque ameaça a transparência (ideal. pois nunca alcançada) da linguagem com relação ao mundo. 247-324. a metáfora constitui um problema crucial para qualquer definição da linguagem que tente estabelecer uma partilha definitiva entre o sentido literal e o sentido figurado.] transforma” essa função referencial.8 Como muitas vezes. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 169 . observar que na tradição filosófica clássica. La métaphore dans le texte philosophique”. “La mythologie blanche. de uma “rede de relações puramente internas ao texto” em oposição à sua dimensão referencial. 1972. mas muito clara. Contra uma glorificação do sentido. “Entre filosofia e teologia II: nomear Deus”. como diz Ricoeur). pela opacidade esplêndida do discurso literário que só remeteria a si mesmo. Minuit. isto é. Ricoeur afirma que a “escrita” — em particular a escritura literária — “não abole. 8 La critique et la conviction. cit. essa função não pode ser reduzida unicamente à adequação de uma linguagem descritiva a um objeto preciso. certas teorias filosóficas e literárias contemporâneas pecam pelo excesso oposto: optam pela não-referencialidade de princípio da literatura (à diferença da linguagem comum). pode ser lida no artigo de 1977. também entre o real (ou o verdadeiro) e o fictício (ou o falso). como o desdém complacente dos analíticos xiítas! Uma tomada de posição sumária. Nesse contexto. Por sua vez. Essas resistências. num jogo textual e intertextual simultaneamente infinito e encerrado “na clausura de sua própria textualidade”. exercício de rigor que visa corrigir a amplitude do conceito de símbolo (mis à toutes les sauces. in Marges. Podemos. mas [. Ricoeur propõe a amplificação da noção de referência. que Derrida analisará com brilho no seu famoso artigo sobre “A metáfora no texto filosófico”. de tal maneira que esta não signifique somente uma relação de manipulação dos “objetos” do discurso pelo 7 Jacques Derrida.. Paris. Em reação a essa condenação tradicional da metáfora. pp.. publicado agora no volume 3 das Leituras. ele questiona a redução da função referencial ao discurso descritivo e abre o campo de uma referência não-descritiva do mundo. Percebemos agora que a tarefa hermenêutica no sentido clássico da interpretação da tradição se desdobra numa tarefa mais ambiciosa: a da interpretação e da compreensão não apenas do(s) sentido(s) já dado(s). hüsserliano de uma transparência do sujeito a si mesmo”. 170 Lembrar escrever esquecer . trata-se de. Nos dois casos. o reconhecimento prático da impossibilidade.. fichtiano e.” Agora que situamos Ricoeur na paisagem movediça dos anos 70. Vemos aqui. entendemos melhor o que está em jogo (l’enjeu) em La métaphore vive e Temps et récit. tal como Hegel e Freud já o ressaltavam. com nitidez. cit. definido pela adequação a um real de objetos e submetido ao critério da verificação e da falsificação empíricas. “Se nos tornamos cegos para essas modalidades de enraizamento e de pertencimento que precedem a relação de um sujeito com objetos é porque ratificamos de maneira não-crítica um certo conceito de verdade. Para- 9 Réflexion faite. igualmente. de se apreender imediatamente a si mesmo. mas também dos processos de criação de sentido(s). da desconstrução e. Ao fazer isso. O estudo dessas definições e inovações da identidade no plano poético e no plano narrativo são. O discurso poético questiona precisamente esses conceitos não criticados de adequação e de verificação. para o sujeito. como a vertente fenomenológica do pensamento de Ricoeur o resguarda dos encantos entrecruzados do estruturalismo.seu “sujeito”. Em última instância.9 A ideia de uma compreensão de si e do mundo passa necessariamente — eis uma nova definição da hermenêutica — pela análise dos signos e das obras que encontramos no mundo e que precedem nossa existência individual. e a “ruína definitiva [. pesquisar as transformações que os homens podem instaurar na experiência complexa por meio da qual se situam no mundo. em boa parte também. na França. é o caráter fundamentalmente linguístico (langagier/sprachlich) da experiência. também. através da análise da inovação semântica.] do ideal cartesiano.. da filosofia analítica. mas também — e talvez mais originariamente — uma relação de pertencimento (appartenance) desse sujeito ao mundo. que permite a compreensão de si e a compreensão das possibilidades de transformação de si e do mundo. . nas pegadas de Agostinho. O tempo na narrativa (São Paulo. por conseguinte. apenas quando redescobre. Entre a questão aporética sobre a essência do tempo — nas palavras de Agostinho: “Que é. seja de textos de ficção. de “que o tempo é estruturado como uma narrativa/narração”. essa dimensão tão inescrutável como essencial do agir humano. Tal afirmação pode parecer paradoxal: não teríamos aqui análises predominantemente discursivas.lelamente. Constança Marcondes Cesar. como o faz. representação da ação. cit. se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta. a ligação íntima entre tempo humano e narração. XI: 14-17) — e a 10 Nesse contexto. de maneira correta. a temática do tempo o perseguia.] O que é. Mas o título comporta uma outra — e primeira — palavra: Tempo. cresce o interesse de Ricoeur pela temática ética e política. igualmente. 12 Prefiro a tradução enredo a intriga. Enredo também remete a rédeas e a outros fios tecidos pelo texto! Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 171 . da sua teoria do mythos e do enredo12 narrativo como mimesis praxeôs. 1988). essa passagem Do texto à ação. preferiria acentuar o lado ativo da palavra récit e traduzir Temps et récit por Tempo e narração em vez de Tempo e narrativa. o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender. Desde sempre. para depois nos traduzir com palavras seu conceito? [. mesmo só com o pensamento. O empreendimento dos três volumes de Tempo e narrativa testemunha. confessa o filósofo. Outro elemento teórico decisivo dessa construção provém da Poética de Aristóteles. seja de textos históricos? Sem dúvida. por uma teoria da ação. Ricoeur dá cursos regulares na Universidade de Chicago). aludindo à famosa definição lacaniana do inconsciente. mas só conseguiu aproximar-se dela através da retomada da belíssima interrogação de Santo Agostinho. o tempo? Se ninguém mo perguntar..11 somente nesse momento pôde se desdobrar a construção comparativa entre as estratégias narrativas da história e da ficção. Ática. Uma boa interpretação dessa temática pode ser encontrada no precioso livrinho de Benedito Nunes. pois. já não sei. título de uma segunda coletânea de ensaios hermenêuticos publicada em 1986. eu sei. Mais precisamente.10 ou. no Livro XI das Confissões.” (Confissões. 11 La critique et la conviction. ainda. em razão das conotações palacianas dessa última palavra. interesse que o contato com a filosofia analítica norte-americana deveria reforçar (desde 1970. Só queria ressaltar o sentimento muito forte que se apodera do leitor. isto é. ainda que nunca definitivamente. da historiografia. por fim. Para melhor entender as diferenças e as semelhanças entre narrativa ficcional e narrativa histórica. portanto. no sentido forte da palavra. 172 Lembrar escrever esquecer . “as operações narrativas elaboradas no interior mesmo da linguagem” e do texto (as formas do enredo e a construção das personagens). os elos de uma reflexão sobre o caráter narrativo da experiência temporal e sobre a disposição ou ordenação narrativa (mythos) dos diversos momentos da ação. em particular na tradição alemã (Weinrich. entre tempo da narração e tempo narrado. intervêm. 13 La critique et la conviction. mas não necessariamente explicativa. O sentimento de que somente a arte da narração poderia nos reconciliar. Em busca do tempo perdido. portanto. A montanha mágica. Ricoeur lança mão de dois conceitos complementares: a configuração. com as feridas e as aporias de nossa temporalidade — marca inequívoca de nossa morte e finitude e. cit. “a transformação da experiência viva sob o efeito da narração”. Dalloway. de Virginia Woolf. von Wright e Danto). Greimas) e nos trabalhos consagrados às relações entre tempos verbais e tempo (Tempus e Zeit) ou. Müller). e a refiguração. que insistem na dimensão narrativa. O segundo volume apoia-se em várias pesquisas estruturalistas (Propp. de Marcel Proust.13 O primeiro volume de Tempo e narrativa estuda mais especificamente a configuração das narrativas históricas — em particular o debate que opõe os partidários do eclipse do acontecimento na historiografia francesa contemporânea aos argumentos da filosofia analítica de língua inglesa (Dray. sem cair nos abismos vizinhos do ceticismo e do imediatismo. no sentido forte do termo. ainda. ou seja. Somente esses elos narrativos intermediários permitem pensar. de Thomas Mann. para desembocar em esplêndidas análises da “experiência temporal fictícia” de três romances modernos sobre o tempo e do tempo: Mrs. Não é o caso aqui de entrar nos detalhes desse trabalho gigantesco. e. enredado (!) pela estratégia argumentativa e narrativa de Ricoeur. de nossa incapacidade em dar de nós mesmos outras imagens e outros conceitos que as formas efêmeras da história.interrogação ansiosa sobre as condições e as possibilidades da ação justa. a temporalidade e a prática humanas. A primeira: mesmo que o tempo se torne tempo humano e psíquico pela sua estruturação narrativa. as maiores diferenças entre narrativa histórica e narrativa ficcional. em particular essa arte do tempo que é a música. É justamente nesse momento de refiguração. 1985. por ele. “não seria o produto instável do entrecruzamento entre história e ficção?”. de tempos distintos ou entremesclados).15 a partir de uma ausência. no que toca à sua experiência temporal. o enigma do tempo cronológico e da relação entre tempo humano e tempo 14 Ricoeur não exclui. ao criar sentidos. Paris. portanto. Uma nova apreensão que. Se ambas podem usar estratégias narrativas semelhantes. mais especificamente. que se situam. sobretudo. deverá retomar tal discussão. segundo Ricoeur. A essas diferenças e semelhanças. tanto dos indivíduos como das comunidades históricas”. uma inter-ação com ele(s) (o plural quer assinalar um dos efeitos dessa interação: a descoberta de várias espessuras do tempo. mas a retomada dessa fuga na matéria frágil das palavras14 permite uma apreensão nova. o momento da refiguração do mundo do leitor difere. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 173 . a seus cruzamentos. A história remodela a experiência do leitor por “uma reconstrução do passado baseada nos rastros por ele deixados”.17 O próximo livro. Seuil. Réflexion faite.O tempo nos escapa e. as outras artes. cit. O si mesmo como um outro. mas suas análises restringem-se à linguagem verbal. mecanismos de configuração parecidos ou mesmo idênticos. isto é. enquanto a ficção transforma a experiência temporal a partir de sua preciosa irrealidade. cit. diferente da queixa costumeira sobre a vanidade do tempo e da vida. Duas observações se impõem no fim desse rápido percurso consagrado a Tempo e narrativa. Temps et récit III. sobre a identidade narrativa. como que escapamos a nós mesmos. 15 16 17 Réflexion faite. de ritmos diferenciados. é consagrado o terceiro volume de Temps et récrit16 que culmina com uma nova interrogação sobre o sujeito. Le temps raconté. graças ao texto. fugazes eles também. permite jogos ativos com o(s) tempo(s) e no(s) tempo(s). pergunta Ricoeur. mais próxima da linguagem conceitual filosófica. de remanejamento da experiência temporal. “O que chamamos de identidade narrativa. é evidente. que a liberdade subjetiva de invenção. para Ricoeur. na minha opinião. 240 (tradução modificada por J. Porto Alegre. os meus leitores. não só o tempo escapa à empresa de totalização do sujeito. meu livro não passando de uma espécie de lentes de aumento como aquelas que oferecia a um freguês o dono da ótica de Combray. convergem as reflexões oriundas tanto da estética da recepção de Jauss quanto da hermenêutica de Gadamer. Globo. eles oferecem uma coletânea preciosa de artigos dispersos em diferentes revistas de acesso nem sempre fácil.). Em outros termos. não seriam meus leitores mas leitores de si mesmos. é testemunha justamente de uma certa leitura que o 18 19 La critique et la conviction. vol. Marcel Proust. na tradução cuidadosa de Perine e Campanário. isto é.cronológico permanece. Ricoeur resguarda a inescrutabilidade (Unerläutbarkeit) última do tempo. p. 174 Lembrar escrever esquecer . O tempo redescoberto. mas também. G. de jogo com o imprevisível e o imprevisto. apela para um conceito enfático de leitura como atividade específica de recepção e de reapropriação transformadora. 1981. paradoxalmente. pois. meu livro graças ao qual eu lhes forneceria o meio de lerem a si mesmos. à qual Kant já aludira. VII. Segunda observação no nosso percurso: o conceito de refiguração. pensava mais modestamente em meu livro. a totalidade do tempo “presa nas redes do narrativo” seria devolver ao sujeito esses poderes absolutos que lhe emprestava o idealismo. e seria inexato dizer que me preocupavam os que o leriam. M. A escolha. Nesse conceito.”19 Esse conceito forte de leitura ressurge no título dos três volumes lançados pela Editora Loyola. efetuada pelo próprio Ricoeur. como se ele mantivesse encerradas na narrativa todas as significações das quais o tempo é suscetível”. cit. Mas ele já tinha sido esboçado nas últimas páginas de Em busca do tempo perdido que Ricoeur gosta de citar: “Mas. Porque. de transformação da experiência temporal do leitor. nasce dessa não-manipulabilidade última (um dos capítulos de Temps et récit III traz o eloquente título: “Renunciar a Hegel”!).18 Poderíamos dizer que. para voltar a mim. Manter. Em busca do tempo perdido. como se ele “fosse senhor do sentido. aliás. a reflexão política de Ricoeur evita propostas totalizantes e desemboca numa reflexão ética sobre o justo (artigos sobre Rawls). por exemplo. Não só porque a prática dos homens sempre escapa de sua previsão e ultrapassa sua autorreflexão — nesse sentido. como também os debates dos anos 50 e 60 com as diversas correntes da existência. que. Uma pequena análise desses três subtítulos já revela o cuidado de Ricoeur em delimitar tal território. também essencialmente. a questão do político é tão essencial ao pensamento filosófico como. é aporético no sentido que ele suscita impasses que o pensamento tem por dever meditar”. Chama também atenção.. Assim. em particular os filósofos. Assim também a preocupação com os conceitos de violência (artigos sobre Eric Weil) e de resistência (a propósito de Jan Patocka). filósofos ou não. seguindo sem dúvida o ensinamento aristotélico. o extrapola. pp.filósofo faz de si mesmo. aqui. a ênfase dada por esses últimos e por Ricoeur à questão do mal. se comprazem em construir. a explicação do mal escapa ao pensamento. apesar de todas as tentativas e tentações de teodiceia que os homens. a do lugar contemporâneo da filosofia. Os artigos do segundo volume têm um interesse histórico em um duplo sentido: documentam o itinerário e a evolução do próprio Ricoeur.20 Como o tempo. 209-10. Mas a tripartição das Leituras — Em torno ao político. op. cit. de sua trajetória intelectual através da leitura de outros autores. Seu grande interesse por Hannah Arendt ou por Jaspers — ambos pensadores da experiência da segunda Guerra Mundial. muito mais à sabedoria prática que ao saber ou à ciência. a faz avançar. cujo estatuto epistemológico remete. mesmo a contragosto —. Fiel a essa denúncia de qualquer justificativa daquilo que permanece injustificável. deverá 20 Olivier Mongin. Essa junção de humildade epistemológica e de responsabilidade ativa caracteriza a filosofia política de Ricoeur e a inscreve na linhagem da filosofia prática de Kant. como o tempo. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 175 . mas de maneira muito mais dramática. sua retomada da problemática do Mal radical (Kant) — atesta essa motivação primeira. “O mal. Nas fronteiras da filosofia — também remete a outra questão. mas porque a questão do político para Ricoeur se enraíza nesse insondável do pensar que representa o problema do Mal. em particular da realidade do nazismo e do horror inominável da Shoah. A região dos filósofos. Nesse contexto. numa vertente mais refinada. Nas fronteiras da filosofia. de sua fé. parafrasear Walter Benjamin a propósito de Kafka: “Já se observou que na 176 Lembrar escrever esquecer . creio eu. como Deus ex machina ou. poderíamos afirmar dos leitores de Ricoeur. Continua ele. a pecha de filósofo cristão foi. como observa Olivier Mongin. em vez de compreender a interdição essencial que a estrutura. permanece em um suspense [melhor: em suspensão] que podemos chamar de agnóstico”. em particular com os domínios da religião e da teologia. tanto daqueles que reivindicam seu cristianismo como daqueles que o rechaçam. que seu pensamento filosófico não oferece fundamentação racional para crença alguma. a propósito de Ricoeur. que marca. A segunda parte desse segundo volume oferece uma amostra do confronto de Ricoeur com questões estéticas e narrativas em artigos que preparam as obras maiores como La métaphore vive e Temps et récit. conduz a uma filosofia da qual a nominação efetiva de Deus está ausente e na qual a questão de Deus. em geral sem estudá-la minimamente — a reflexão de Ricoeur. [como] um discurso filosófico autônomo”. porque é nele que encontramos o confronto com os domínios limítrofes da filosofia. como o Deus dos filósofos. mostrar que sua filosofia não se reclama. um dos motivos mais frequentemente alegados para rejeitar — aliás. segundo sua bela expressão sobre seu amigo Pierre Thévenaz. Rejeitado como criptoteólogo por alguns. reivindicado como pensador cristão por outros. Gostaria de me demorar um pouco mais na problemática do terceiro volume das Leituras. toda a minha obra filosófica.voltar no terceiro volume. no prefácio a O si mesmo como um outro. citado por Mongin na nota editorial do terceiro volume das Leituras: “Observar-se-á que esse ascetismo do argumento. afirma que sempre tratou de distinguir cuidadosamente entre seus trabalhos mais teológicos (sobretudo de exegese bíblica) e filosóficos. Pelo contrário. Em outras palavras: a fé cristã (que Ricoeur nunca negou professar) não intervém como fundamento mágico-religioso. E poderíamos. que ambos se assemelham aos intérpretes bem-intencionados de Kafka. Ricoeur teve de lutar em ambas as frentes: contra seus críticos. uma “filosofia sem absoluto”. na sua argumentação interna. cujas pequenas notas editoriais são sempre elucidativas. e é. A reflexão de Ricoeur poderia ser chamada. que ele sempre quis e quer “manter. enquanto questão filosófica. contra seus admiradores. Ora. o filósofo suíço prematuramente morto. até a última linha. que liam sua obra como uma alegoria religiosa disfarçada. mas muito mais — é a hipótese que gostaria de defender por fim — nessa separação estrita entre os domínios da fé e da razão. que ele não é o senhor do sentido”. Ricoeur retoma várias vezes essa especificação. Seuil.21 Seria. cit. Na mesma resposta. sendo que essas “três noções são constitutivas da maneira como sou precedido no mundo do sentido”. intimamente ligada a essa economia da dádiva ou da graça. nos precede e nos ultrapassa. nessa ascese.). 22 23 21 La critique et la conviction. 1990. ao reconhecer seus limites. a definição por Ricoeur do religioso como “a referência a uma antecedência. Quem não entende o que proíbe a Kafka o uso desse nome não entende nenhuma linha dele”. a saber. mas.22 aponta não tanto para uma confissão determinada. segundo ele. não no sentido habitual de uma resposta da fé às aporias da razão. não teme em lembrar a crítica de Heidegger ao humanismo e o questionamento das pretensões do sujeito em Foucault. In Temps et récit de Paul Ricoeur en débat. simultaneamente. oriunda de Kant (e da tradição protestante em Kant também!). E nada mais habitual que introduzi-lo na sua interpretação. Suhrkamp. Gesammelte Schriften II-3. porém. 1977.obra inteira de Kafka o nome de Deus não aparece. Nesse contexto. talvez até psicanalítica. de aceitação da própria finitude Walter Benjamin. muito mais. Paris. p. p. simples demais afirmar que a reflexão filosófica de Ricoeur não tem nada a ver com sua fé religiosa. na mesma direção que “minha convicção. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 177 . que o sujeito não é o centro de tudo. se dispõe também a reconhecer a possibilidade de um Outro que lhe escapa. Frankfurt/Main. mais fundante que uma economia estritamente racional da troca ou do lucro. em particular quando se lhe perguntou sobre o papel do cristianismo para seu pensamento. 1219. Tem sim. para o reconhecimento do sagrado como aquilo que. pois iriam. e cuja consequência essencial é destronar o sujeito desse lugar central outorgado pela tradição filosófica moderna desde Descartes. Responde pela presença de uma economia do dom. da argumentação racional que.23 Resta saber se essa convicção aponta exclusivamente para a noção de sagrado ou se ela não poderia também remeter a uma realidade mais secular. e por uma relação com o sagrado. 35. a uma exterioridade e a uma superioridade”. Christian Bouchindhomme e Rainer Rochlitz (orgs. em oposição à comunidade maior dos vivos — e dos mortos. Resta saber também se essa receptividade em relação a um sentido. aliás. ele recorda à filosofia uma luta antiga. eu diria que. sua inscrição na história e sua finitude. um pensamento que chacoalha a gloríola do sujeito e lhe lembra. assumindo de vez o tom polêmico. recoloca paradoxalmente o sujeito no centro desse palco efêmero. talvez obscuro mas anterior à existência individual do sujeito. Agora. só pode ser bem-vindo. que não se tornou vã depois de Nietzsche e da morte de Deus: a luta contra os ídolos. nesses tempos de triunfalismo neoliberal e de narcisismo de príncipe e de princípio. pois somente o brilho do seu desempenho devastador é motivo de gozo. simultaneamente. pode ainda competir com o rejúbilo irônico e glorioso do relativismo pós-moderno que. em particular contra aqueles que o próprio pensamento tende a erigir para si mesmo em substituição aos deuses mortos. 178 Lembrar escrever esquecer . Epistemologia” e “A condição histórica”) têm. a Temps et récit. tomo III. 1984) e Temps et récit. “História. talvez com demasiada modéstia. 332-46 (Paris. de “uma política da justa memória” e que se explicita. pp. Ele afirma. pior ainda. l’oubli. a respeito do esquecimento. respectivamente.12. seus livros anteriores — uma “lacuna” ou um “impasse a respeito da memória e. um esquecimento. além das análises filosóficas e epistemológicas. l’oubli. Seuil. estes níveis medianos entre tempo e narração”. sobre Proust ou sobre Nietzsche. em termos subjetivos. quase fatigantes em sua exaustividade — procuram delimitar? Não seria. desde a primeira página. pacientes. da história. 2000. por assim dizer. e até de sua fundamental positividade. 194-225 (Paris.2 para citar somente dois exemplos extraídos de suas últimas obras? Ricoeur fala há muito tempo — tenho vontade de dizer: desde sempre — da memória. tomo II. Seuil. como a conquista de uma “memória feliz”. OS PRELÚDIOS DE PAUL RICOEUR Já na abertura de seu imponente livro La mémoire. também. 1985). é porque deles deseja falar de outra maneira? Por ora. cada uma. l’histoire. aquilo que Ricoeur chama. Devemos então nos perguntar: se deles não fala novamente. Seuil. p. a primeira parte (“Da memó- 1 2 Paul Ricoeur. Paul Ricoeur comete. tal qual o epílogo da obra promete? Um outro indício do enfoque preponderante concedido à memória. até mesmo pessoais. do esquecimento. que havia uma “lacuna” na “problemática de Tempo e narrativa e em O si mesmo como um outro”.1 Será que Ricoeur não se lembra de suas próprias páginas. 1. é fornecido por uma curiosa assimetria na organização da obra: enquanto a segunda e a terceira partes (respectivamente. tão belas. Os prelúdios de Paul Ricoeur 179 . l’histoire. pp. Paris. Refiro-me. La mémoire. um prelúdio. uma hipótese de resposta: qual é o novo objeto que as pesquisas desse livro — pesquisas minuciosas. podemos reter uma questão e. essa “memória de papel”. a suspeita principal — que poderia ser formulada. não tem como alvo oculto a desvalorização do presente — e talvez queira. conforme o título da Segunda consideração extemporânea de Nietzsche. por explicitar e.ria e da reminiscência”) não tem. Seuil. de desconfiança. sobretudo. No ocaso de sua vida. da narração). indício de questionamento. novo na sua obra. dúvidas que inscrevem na margem dessas páginas tão meticulosas um risco de tinta vermelha. do tempo. A saber: será que a escrita da história. por celebrar. 180 Lembrar escrever esquecer . com uma espécie de alegria tranquila. cit.. com isso. l’histoire. As suspeitas. que acompanham os outros temas. Ricoeur citando Leibniz. para atá-lo firmemente. não parecem existir quando se trata da memória. depois de uma “nota de orientação geral” (notas que estruturam o conjunto do texto). l’oubli. p. começa por um capítulo intitulado “Memória e imaginação”. uma ligação implícita que sua leitura tornará explícita: entre memória e vida existe uma relação privilegiada que a obra inteira se esforça por reconstruir. talvez mesmo. esses “prelúdios” fazem muito mais do que enunciar um tema musical ou conceitual mais tarde retomado pela exposição principal. op. Ambos significam uma “mise en réserve”. Esta união se manifesta no duelo. na primeira parte. Dúvidas que nos impedem de seguir com total serenidade os longos desenvolvimentos sobre a verdade na história ou sobre a temporalidade existencial e histórica. não há nenhum “prelúdio”. 2000.3 eles formulam uma dúvida. Ricoeur. Ora. nesta construção da obra. nos impedir de assumir os riscos da verdadeira vida? Ora. na sua obsessão com o passado. que lançam um colorido ambíguo sobre os desenvolvimentos posteriores. La mémoire. 525. tema presente em tantos de seus livros anteriores.4 não termina por destruir a memória viva em vez de servi-la? Será que a ciência histórica. in Paul Ricoeur. por afirmar. é claro. 172. uma ameaça. p. esta suspeita não existe quando se trata de memória (mesmo se Ricoeur analisa. por exemplo). Paris. entre o pensamento da finitude e do ser para a morte de Heidegger e a filosofia da 3 4 Paul Ricoeur. Ricoeur retoma o tema da memória (do esquecimento. uma suspeita. como a suspeita da “utilidade e das desvantagens” da atividade histórica e da escritura “em relação à vida” —. Há. ao tema da vida. da história. as perigosas relações entre memória e ilusão ou memória e melancolia. quatro linhas em versos livres e defasados.”] É esta ligação entre vida e memória que me parece. diz Nietzsche. Ricoeur convoca dois irmãos inimigos — um no início da história da metafísica. ao escolher Platão e Nietzsche como porta-vozes. por Nietzsche. orientar o empreendimento monumental deste livro e. Proponho-me a analisar esta releitura e tomarei a liberdade de formular algumas interrogações. que formam como que uma clausura aberta no epílogo: “Sous l’histoire. portanto. Sob a pena de Ricoeur. críticas sem dúvida diferentes quanto ao objeto e à visada. antes de mais nada. mas presentes em ambos os filósofos em cena. la vie. Sob a memória e o esquecimento. a vida. Mais écrire la vie est une autre histoire. mais ainda. em quatro linhas fora do corpus do texto (fora. Esta aliança é tanto mais notável quanto Nietzsche pretendia lutar contra a influência nociva de Platão/Sócrates sobre todo o desenvolvimento ulterior do pensamento ocidental. A mesma união se diz.vida e da memória de Bergson.” [“Sob a história. Assim — esta é a minha suspeita! — Ricoeur não elucida as críticas enunciadas por Platão e. que realça os abusos e os perigos da história como graphè (escrita) e como disciplina. em particular. Platão e Nietzsche travam Os prelúdios de Paul Ricoeur 181 . Notemos. duelo do qual este último sai como vencedor inconteste. Mas escrever a vida é uma outra história. em reabilitar a plenitude. orientar a releitura de Platão e Nietzsche que Ricoeur opera nos dois “prelúdios” já citados. cruel e jubilatória. da vida no presente e para o presente. a memória e o esquecimento. com pudor mas com força. da vida contra as dicotomias do ascetismo platônico. em relação à memória. Inachèvement. outro no seu fim — para formular uma desconfiança semelhante em relação aos excessos de um saber que sufoca o jorrar da memória viva. tende a proteger a memória ao livrá-la desses riscos e ao ressaltar sua vitalidade essencial. diz Platão. do sumário!). porém. segundo Nietzsche. Sous la mémoire et l’oubli. la mémoire et l’oubli. que. inclusive. Essas questões partem da seguinte hipótese: a interpretação de Ricoeur. luta que consistia. Inacabamento. ne devrait-on pas se demander si elle est remède ou poison?” 5 Marcel Détienne. Esse perigo ameaça nossa modernidade. elle aussi.5 o famoso mito da invenção da escrita no Fedro6 é o exemplo perfeito de um mito inventado por Platão. remédio e veneno. Depois de Derrida. também. in La Dissémination (Paris. contra as pretensões da escrita a ser uma ajuda para esta memória enfraquecida. 1978. traçando. Em primeiro lugar. Logos. Gallimard. para melhor fundamentar a autoridade da memória oral viva. Yerushalmi. Le renversement platonicien. La question des étrangers (Paris. Jacques Derrida e Henri Joly. Vrin. Phèdre. “La pharmacie de Platon”. edição da Les Belles Lettres. os limites do empreendimento mortífero que escrita e ciência podem — por excesso de zelo ou por uma proliferação incontrolável — significar para a memória e a vida. portanto. É para este fim que Ricoeur retoma as advertências de Platão contra o encantamento de seus contemporâneos pelos discursos escritos e as polêmicas de Nietzsche contra o historicismo devorador da ciência de sua época. de crítica de suas respectivas contemporaneidades em vista de um outro futuro.o mesmo combate que orienta o livro inteiro: salvar a verdadeira memória viva e a verdadeira vida. 182 Lembrar escrever esquecer . Jacques Derrida. Nietzsche e Ricoeur compartilham do mesmo gesto filosófico de crítica cultural ou. pois a tradição mitológica corrente fazia derivar a invenção da escrita de Prometeu ou de Palamedes. 1992). isto é. Assim. 1974) e. pondo a seu serviço as aquisições da escritura e da ciência. Les savoirs de l’écriture en Grèce ancienne (Lille. ainda por cima. Retomemos em detalhe esses dois textos da tradição filosófica. segundo Marcel Détienne. Platão utiliza o gênero narrativo “mito” e. Platão. cuja famosa interpretação elogia. “mito egípcio”. 6 Platão. que se traduz por inatual ou extemporâneo). e sua releitura por Paul Ricoeur. e pergunta: “de l’écriture de l’histoire. para retomar o famoso conceito de Nietzsche. unzeitegmäss. muito antigo e venerável. polis (Paris.). L’invention de la mythologie (Paris. episteme. Presses Universitaires de Lille. 1972). 1988). Paris. talvez mesmo a ser seu suplemento. transmitida de mestre a discípulo. Ricoeur ressalta a ambiguidade da escrita como pharmakon. 274c. Henri Joly. que cita os debates historiográficos contemporâneos sobre a oposição entre memória e história (Nora. Seuil. de “inconformidade a seu tempo” (Unzeitmässigkeit. Vrin. Halbwachs. entre outros). 1981) e Marcel Détienne (org. vale lembrar que. diz Ricoeur. o parentesco entre discurso escrito e discurso oral recebido na alma (mesmo que o primeiro seja apenas um bastardo) e o estatuto de divertimento útil concedido ao escrito podem. que trazem a morte) e a vida do discurso interior à alma. cit. p.. esterilidade (a figura de Adônis) e fertilidade (a figura do bom agricultor). enfim. Paul Ricoeur. op. cit. Phèdre.. ainda que o contexto do diálogo não seja o de uma discussão sobre a historiografia. da “memória viva”. o texto do Fedro autoriza o desdobramento da questão. 276d. mas sim o de uma definição da justeza do discurso (logos). Paul Ricoeur. entre cópia e modelo. De maneira assaz surpreendente. sem dúvida — caracteriza a memória verdadeira. uma reabilitação possível da história escrita. nas pegadas de Derrida.8 Ricoeur retoma. 175. ser lidos como “uma reabilitação prudente da escrita”11 por Platão. tal qual nela se desenvolve graças ao diálogo filosófico bem compreendido. op. Assim. cit. segundo a analogia estabelecida por este “prelúdio”. p. então. 10 11 Os prelúdios de Paul Ricoeur 183 .. Paul Ricoeur. p. desde o mito do Fedro até a última obra de Ricoeur. ainda segundo Ricoeur. do “destino da memória”. op. 179. cit. filho bastardo e filho legítimo. 175. entre os signos exteriores (como aqueles dos caracteres escritos.7 Segundo Ricoeur.(“a respeito da escrita da história. p.. op.. 178. um “divertimento” para idosos declinantes. apesar de todos os excessos da obsessão 7 8 9 Paul Ricoeur. da “memória autêntica”. todos três ameaçados pela invenção da escrita. op.9 Este “jogo bem-vindo”10 atenua a ideia de uma condenação definitiva da escrita por Platão. Ricoeur interpreta bastante positivamente (e não de modo irônico como a maioria dos comentadores) a descrição platônica dos “jardinzinhos em caracteres escritos” que deveriam constituir um “tesouro de lembranças/rememorações” (hypomnèmata) para a “velhice esquecida“. Tal desdobramento é possível porque se trata. a série de oposições sabiamente construídas por Platão entre hypomnèsis e anamnèsis (memória por deficiência e rememoração verdadeira). isto é. ainda mais que a mesma metáfora da inscrição (graphein) — na alma. cit. pintura morta e ser vivo. não deveríamos também nos perguntar se ela é remédio ou veneno?”). Ora. Exils. da qual o diálogo trata no seu conjunto. mas sim como sua ajuda eficaz. sem dúvida nenhuma. Mencionemos rapidamente alguns aspectos do texto platônico que a interpretação de Ricoeur não apenas não aborda — o que é amplamente justificável. Les Êmpecheurs de Tourner en Rond. que deveria nos ajudar a melhor conhecer. a nos aproximar cada vez mais de sua verdade. Historia ancilla memoriae. em particular desde Platão. Se Platão a usa aqui para definir a ambiguidade específica da escrita. revista Multitudes. instaurada por Platão contra a linhagem sofístico-retórica. como pharmakon que produz efeitos — uma concepção defendida por Górgias. Barbara Cassin. essa elisão me parece dificultar a consistência da analogia entre nascimento da escrita e nascimento da história sobre a qual repousa este “prelúdio” intitulado “A história: remédio ou veneno?”. assim também a história seria bem-vinda quando se compreende não como o oposto ou. set. o Fedro responde implicitamente. O elogio de Helena. sofística e filosofia nascente. a imagem do pharmakon designa também os poderes ambíguos. A ambiguidade mesma do pharmakon. curativos e maléficos. entre uma concepção antes de tudo “performativa” do logos..arquivista e do historicismo nivelador. Paris. op. mas parece mesmo elidir. Nicole Loraux. Hélène en toute femme. Não preciso dizer que esta última concepção é aquela da tradição filosófica clássica. é o que permite a Ricoeur delimitar o papel positivo da história: assim como Platão aceitaria a escrita exterior como divertimento útil para anciões esquecidos. 13 12 184 Lembrar escrever esquecer . cit. Paris.12 A oposição entre o escrito e o oral no fim do Fedro inscreve-se na oposição maior. e ele o faz num texto ao qual. pior ainda. mas sim de uma leitura orientada por uma estratégia textual bem maior —. em particular. primeiro. atribui esta imagem ao logos para melhor descrever sua onipotência sobre a alma. pois não se trata nessas páginas de um comentário filológico. 2000. Paris. a melhor definir o real. 1989. Quanto à extensão da metáfora do pharmakon. capítulo IX. Le féminin et l’homme grec. de sofistas. Ver artigo de Barbara Cassin. como o corretivo da memória viva. Des traitements de la haine”. no fundo. Górgias. não há dúvida de que.13 Ver Jacques Derrida. Lysias e outros pensadores que chamamos. Galimard. quer ele designe a escrita ou a historiografia. e uma concepção mais epistêmica do logos como instrumento (organon). 2001. no contexto do debate entre retórica. nº 6. do próprio logos. “Politiques de la mémoire. 15 16 17 18 Paul Ricoeur. em termos filosóficos e conceituais atuais. mas sim numa espécie de “saber pré-natal”. Mas então. por assim dizer. o famoso “intermédio filosófico” das Cartas VII e os comentários de Luc Brisson a respeito em sua nova edição. com sua habitual honestidade: “comme miracle. de que o logos não só é fértil. a verdadeira anamnèsis não encontra sua fonte última na temporalidade da imagem ou da linguagem — dessa última Platão dirá sempre que ela é imprescindível. como Platão. mas fraca. Ricoeur me parece se debater implicitamente com essa questão. p. p.. Garnier Flammarion.. 176.16 tese também privilegiada no Banquete. ligada a uma tradição mítico-religiosa. cit. op.18 e depois acrescenta. op. 33. ainda. Phèdre. mas igualmente imperecível. uma espécie de evidência primeira da memória verdadeira? No decorrer de seu longo livro. contra o saber livresco e o fetichismo do texto. independentemente de sua materialidade semântica. cit.15 anterior a qualquer palavra e a qualquer rastro escrito. 277a.17 característica da escrita e de outras técnicas. aceitar a certeza dessa anamnèsis esplendorosa. ou. p. Paul Ricoeur. entre a “verdadeira” memória viva e a reconstrução a partir de rastros mortos (ou de imagens ilusórias)? Em outras palavras: como tornar sua a suspeita de Platão a respeito da escrita/pharmakon. Os prelúdios de Paul Ricoeur 185 . Paul Ricoeur. com razão. asthénès14 —. até doente. A este saber pré-natal corresponde a afirmação enfática do Fedro. sobretudo. Ele reafirma igualmente uma concepção veritativa da linguagem e também da memória.. entre a fonte e a derivação. se não é mais possível. o legítimo e o bastardo. imortal [athanaton]. É a certeza de uma tal anamnèsis que possibilita a Platão o estabelecimento dos limites de uma memorização incompleta. Lettres (Paris. uma “memória por deficiência” como diz Ricoeur para traduzir a hypomnesis. op. iluminação divina escondida profundamente na alma e à qual as Ideias dão forma e nome. o mito egípcio do Fedro não somente nos previne.Assim. 1993). e isso. il peut lui aussi faire défaut” (“como mila14 Ver. sem pressupor. em oposição à esterilidade do escrito. cit. sobretudo quando insiste no “reconhecimento” como sendo “o pequeno milagre da memória”. como poderia ainda ser possível distinguir claramente entre anamnèsis e hypomnèsis. 644 e muitas outras. 19 Paul Ricoeur. Essa prudência é apropriada. o da ciência histórica alemã em Nietzsche — em favor da vida verdadeira. já que. que precede a terceira parte do livro. Ricoeur estabelece uma analogia muito estimulante entre o mito do Fedro e as reflexões de Nietzsche sobre “a utilidade e as desvantagens da história para a vida”. em seguida.. e Platão bem poderia chamar os brilhantes discursos de seus concorrentes. sofistas e retores. Nietzsche poderia muito bem usar a ambiguidade preciosa do pharmakon para denunciar os perigos do historicismo. Ele mostra o quanto esses dois textos.19 Não seriam justamente as falhas do milagre e os defeitos da memória que justificariam. mesmo que cuidando para não transformar tais suspeitas em condenações definitivas. mas sim de limitar suas pretensões para melhor preservar a precedência da memória. de maneira afirmativa.gre. 644. 186 Lembrar escrever esquecer . também ele pode vir a faltar”). vida da verdadeira memória em Platão. seja a Atenas do século IV ou a “modernidade” alemã. não só tratam de problemas semelhantes. como Ricoeur consegue apropriar-se. como tentarei explicitar. A ambição terapêutica e a ambição crítica se unem no pensamento filosófico dos três autores. num primeiro momento. retoma a Segunda consideração extemporânea de Nietzsche. Nos dois filósofos. e igualmente em Ricoeur. por assim dizer. Ricoeur relê Nietzsche de maneira extremamente positiva e faz suas muitas das suspeitas em relação à ciência histórica. É precisamente esta última intenção que separa Ricoeur de Nietzsche. “A condição histórica”. cit. a necessidade da inscrição de rastros e o perigo da proliferação ameaçadora? O segundo “prelúdio”. Analisemos então. p. das reflexões nietzschianas sobre os limites da ciência histórica para. op. ambos advogam contra os excessos de um pretenso saber — o da escrita e dos livros em Platão. vida da ação verdadeira no presente em Nietzsche. Com efeito. de doentios e decadentes em suas pesquisas estilísticas exacerbadas. Essa insistência no tema da vida esclarece também a semelhança de vocabulário e das metáforas terapêuticas. o elogio da vida (e da saúde) motiva a denúncia crítica da cultura ambiente. não se trata de denegrir a ciência histórica. mas também utilizam o mesmo corpus metafórico. tão afastados pelo tempo e pela hostilidade do filósofo moderno contra seu antigo predecessor. pelo menos para Ricoeur. parcialidade inseparável do verdadeiro agir. de maneira geral. pp. de louvar a “glória” (kleos) dos heróis. só pode ser caracterizada pelo louvor e pela admiração em relação às grandes figuras do passado. Nesse sentido. a importância excepcional do presente do hermeneuta ou do 20 Paul Ricoeur. justamente por ser parcial. de toda obra do autor. Mas quando se transforma em uma espécie de narcisismo do presente. particularmente. portanto. Ela se torna perniciosa quando. op. ela é insuportável e nociva em razão de sua complacência com o contemporâneo. A virulência de Nietzsche e as pacientes análises de Ricoeur concordam em realçar. Sua justeza provém da reflexão sobre os vínculos que nos ligam àquilo que nos precede. Essas descrições de Ricoeur. Ela o julga segundo a medida do presente. ela ensina veneração e conservação piedosas. que as formas precedentes. 379-82. ela é mais justa e mais lúcida. modelos para o presente — modelos a serem admirados. numa espécie de “presentocentrismo” cego. por sua vez. Os prelúdios de Paul Ricoeur 187 . A primeira.20 que retomam as de Nietzsche. 885 ss. permite-se julgar o passado. ela sufoca a força de invenção do presente reduzido ao papel de imitador. pp. com muito acerto. a muitas reflexões. sufoca novamente a força plástica do presente. l’oubli (sobretudo em páginas consagradas à “filosofia crítica da história”.ressaltar as diferenças — silenciadas. Ela insiste na ancoragem da tradição e nas raízes do presente. Porque ela insiste na necessária parcialidade do presente. cit. conservar. tema eminentemente hermenêutico (e ricoeuriano!). Enfim. Mas ela pode se tornar nociva quando o gesto de conservação se transforma em recusa da inovação e. o filólogo Nietzsche certamente retoma a tarefa. a história “crítica”.. l’histoire. A história monumental se atém à rememoração da grandeza dos heróis do passado e propõe. em oposição às duas anteriores. cara aos poetas gregos. a serem mesmo imitados. A história “tradicionalista”. ao que parece — entre seus respectivos desígnios. deseja. hermenêuticas e éticas. por excesso de admiração (e de melancolia!).) e. corta e recusa tudo o que não pode servir ao crescimento de forças do presente. e com boas razões. a “monumental”. remetem a numerosas e importantes preocupações de La mémoire. antes de mais nada. Ricoeur retoma rapidamente os três tipos principais de história (e de historiografia) que Nietzsche distingue e descreve. sua “sede de justiça” e seu desejo de “construir o futuro”. pp. 248.historiador para seu empreendimento de releitura. cit. p. É porque o presente é o lugar da ação e das escolhas tão práticas como teóricas do intérprete que ele não pode ser esquecido sob pretexto de objetividade. Nietzsche.. 382-3. op. no término de um largo percurso e no limiar de um novo projeto: “em direção a uma hermenêutica da consciência histórica”. p. porém. fonte de pesares. no qual Nietzsche exalta a felicidade do “rebanho que pasta sob teus olhos”. Paul Ricoeur. Mas não transformemos demasiadamente rápido Ricoeur em um nietzschiano convicto.24 e a infelicidade do homem.. op. remorsos e arrependimentos. cit. op. Paul Ricoeur. que a polêmica nietzschiana contra a ciência histórica também incide sobre a atividade rememorativa em geral. atado à “estaca do instante”. retomado por Ricoeur. não há dúvida. l’histoire. cit.21 contra a indiferença preguiçosa que se gaba de imparcialidade. Todo o início provocativo da Segunda consideração extemporânea. Ricoeur “deixa de lado. mais ainda. 382.. Nietzsche.23 Vale observar que essas mesmas declarações já foram comentadas por Ricoeur no volume III de Temps et récit. 188 Lembrar escrever esquecer . para uma discussão ulterior. mas deve constantemente ser objeto de uma autoavaliação crítica. Contra a “neutralidade dos eunucos”. projeto que encontra sua realização em La mémoire. in Paul Ricoeur. que cita Nietzsche: “Ressoam então tanto a maior declaração do ensaio (‘É somente a partir da mais alta força do presente que vocês têm o direito de julgar o passado’) quanto a última profecia (‘somente aquele que constrói o futuro tem o direito de julgar o passado’)”.22 Citemos Ricoeur. KSA I. pp. o comentário exigido pela compa21 22 23 24 Ricoeur citando Nietzsche. ela tem sua origem numa defesa do esquecimento contra a memória. para citar somente alguns dos seus delitos. se Ricoeur e Nietzsche atacam ambos o historicismo exangue e defendem um pensamento que assuma “a força do presente”. este ser dotado de linguagem e de memória. 382-3. No seu “prelúdio” sobre esse texto. Com efeito. todo este início é um hino — certamente paródico como ocorre muitas vezes em Nietzsche — em homenagem à felicidade muda do esquecimento e um ataque forte contra a memória. l’oubli. reinvindica o direito do presente. Nietzsche não constrói uma antropologia a partir do ser humano enquanto ser de linguagem. 291. KSA I. Quando o animal específico “homem” aprende a falar. Gostaria de lembrar muito rapidamente dois aspectos do pensamento de Nietzsche que explicitam essa desconfiança. 379. 633-4. 248 e KSA V. mas ele é dispensado quando a crítica da história põe em risco uma concepção afirmativa da memória enquanto fundamento. portanto. Nietzsche. e sobre as instituições do direito. primeiramente.28 declara Nietzsche que joga com a am25 26 27 28 Paul Ricoeur. Tanto na Segunda consideração extemporânea como na segunda dissertação da Genealogia da moral. p. e a relação entre memória e Schuld (culpa e dívida).ração provocativa proposta no início do ensaio entre o esquecimento do bovino” [. isto é. Esses dois aspectos parecem.. A ausência de linguagem é também a condição de uma felicidade que não pode saber de si por si mesma. com efeito. p.. que não sabe falar. que. KSA I. 249. esclarecer as consideráveis divergências que separam as respectivas conclusões de Ricoeur e de Nietzsche a respeito de nossa “condição histórica”. e lhe recorda que sua existência. de outro. op.] e a “força do esquecer”.25 Se ele retoma o tema do esquecimento (capítulo III.26 Como Platão. “Ela [a criança] aprende a compreender a palavra ‘isso era’. não é nada mais do que um eterno imperfeito”. fórmula que entrega o homem aos combates. ao sofrimento e à náusea. eis nossa hipótese. Nietzsche é convocado por Ricoeur. no segundo. Esse animal genérico. cit. no fundo. no primeiro texto. p. Os prelúdios de Paul Ricoeur 189 . em razão de suas críticas aos excessos da história enquanto escritura e enquanto saber. não sabe senão viver no presente. à consciência de sua transitoriedade e de sua finitude. essa aversão mesmo em relação à memória: a ligação entre memória e linguagem. essa serenidade se esvai: a linguagem entrega o homem à consciência de sua temporalidade. mas a partir do ser animal do homem. em oposição a toda tradição metafísica clássica. da terceira parte). Segunda consideração extemporânea. p.27 é com uma descrição do animal em geral (das Thier) que se inicia a reflexão genealógica sobre a ciência histórica. Observemos.. Ricoeur não explicita as críticas virulentas de Nietzsche em relação à memória humana. de um lado. Com uma exceção: a nota 39 das pp. ela só se instala quando o animal-homem é arrancado de um esquecimento primeiro. A história como ciência do passado e o 29 30 “Ein Thier heranzüchten. como a educação para a memória. um empreendimento infeliz de melhora desse “imperfeito”. das versprechen darf”. Segundo Nietzsche. de um presente sem consciência nem palavras. Quanto à necessidade da promessa. fundamentalmente. o texto da Genealogia da moral o evoca como esse animal obrigado a estabelecer uma relação com o futuro porque ele deve ser capaz de prometer. ainda segundo a Genealogia da moral. A memória é assim. depois. diz Nietzsche. da capacidade humana de invenção e de ação. um aliado decisivo da “força do presente”. que descreve o homem como esse animal que lembra. p. mas somente segunda.biguidade do termo “imperfeito” (Imperfektum): falta de perfeição e tempo verbal do passado. Esse acesso à linguagem e à temporalidade também é evocado na Genealogia da moral como sendo um processo oriundo da violência: esse texto trata. o sentimento de culpabilidade. o obriga a não se esquecer de sua dívida. p. mas provém da coerção (sem nobreza moral nenhuma) à qual o credor submete seu devedor. em vão ela se esgota querendo agarrar o passado. do adestramento (heranzüchten)29 de um animal para a faculdade de prometer. supõe uma luta feroz contra o esquecimento que. Ricoeur cita p. não é somente uma força inercial. KSA V. O adestramento tendo em vista a promessa. Nietzsche tece uma rede genealógico-conceitual estreita a partir da qual se pode. mas sim “uma faculdade de inibição ativa e uma faculdade positiva em toda a força do termo”. segundo Nietzsche. 291. na origem. uma troca consensual entre iguais. do processo de domesticação. mas um contrato violento pelo qual o mais forte obriga o mais fraco. portanto. ela não provém de jeito nenhum de uma moralidade intrínseca que tornaria o ser humano mais nobre. Simetricamente ao texto da Segunda consideração extemporânea. 190 Lembrar escrever esquecer . com efeito. o sentimento de ter cometido uma culpa (Schuld). Não há. KSA V. Entre dívida. 634.30 Não devemos esquecer (!) que esta força ativa do esquecimento será. 291. portanto que instaura uma relação com passado. culpa e promessa. nota 39. E a dívida concreta é a origem inconfessada desta dívida (Schuld) psíquica que aprisiona igualmente o homem religioso. a prometer que lhe devolverá tudo o que deve. a memória não é primeira. elaborar a ampla rede do direito. Assim também o peso do passado poderia se tornar mais leve sobre os ombros dos vivos de hoje. constroem seus castelos de areia. os recomeçam e continuam a brincar. finalmente. E se a linguagem advém ao homem como o instrumento privilegiado que o faz sair de sua animalidade primeva e de seu esquecimento primeiro. os destroem. apesar dos mortos. o esquecimento da criança e do artista que. esse estranho animal que pode dizer: “eu me lembro” e “eu prometo” (isto é: “eu me lembro da minha promessa” ou “eu prometo me lembrar”!). por conseguinte. indício de nossa animalidade opaca. contra a virulência de Nietzsche. mas apenas indicar o abismo que os separa. passado e pre- Os prelúdios de Paul Ricoeur 191 .direito como sistema de obrigações (presentes e futuras) repousam ambos sobre a capacidade linguística do homem. um deslocamento doloroso em relação à simplicidade da vida animal — mesmo que esse deslocamento. ambos fundamentalmente determinados por sua função em relação a uma memória posta como desejo primeiro de persistência. sem dúvida cruel na sua indiferença. E pedimos a ele também que não distinga somente dois tipos de esquecimento: o esquecimento por apagamento dos rastros e o de reserva. este poderia ser o seguinte: vamos pedir a Ricoeur que retome a ligação entre Schuld/culpa e Schuld/dívida. contra algumas leituras tendenciosas do seu pensamento. Esta sumária exposição das concepções nietzschianas não tem por alvo defender Nietzsche contra Ricoeur nem Ricoeur contra Nietzsche. segundo as palavras de Heráclito tantas vezes citadas por Nietzsche. l’oubli. Mas talvez fosse o caso de reconquistar um esquecimento positivo. apesar daquilo que Ricoeur toma emprestado a Nietzsche. esse rasgo possa ser também o lugar privilegiado da criação artística. apesar também do horror. mas sim uma inadequação fundamental. se for possível lamentar uma lacuna nesta obra tão considerável que é La mémoire. E. formular um desejo. e. um “esquecimento feliz”. de cores ou de sons. Vale observar. que para Nietzsche não se trata de voltar a esta primeira animalidade triunfante. às vezes alegre na sua despreocupação. l’histoire. isso não significa uma nobreza inerente ao animal-homem (zoon logon ekhôn). entre a problemática da culpabilidade e do perdão e aquela da tradição e da herança para melhor assentar. como essa espécie de impulso primeiro. que faz com que os vivos continuem a viver apesar da morte. Mas que ouse pensar o esquecimento de modo ainda mais radical. sua essencial diferenciação. eternos. Num sentido ao mesmo tempo paradoxal e trivial. in Paul Ricoeur. mas se o historiador luta contra o esquecimento (Heródoto) e trabalha para cavar um túmulo. cit. gostaria de dizer que os homens não são animais tão específicos porque possuem uma memória: mas somente porque se esforçam em não esquecer. isto é. pp. op. Assim..31 seu gesto recorda simultaneamente aos vivos que nenhuma memória poderia torná-los inesquecíveis.sente. a história luta igualmente contra este esquecimento primevo que nos é tão caro: o esquecimento de nossa própria morte. A escrita da história é sim atravessada pela morte. como afirmava o deus solar do Fedro. 192 Lembrar escrever esquecer . 476 ss. 31 Paul Ricoeur citando De Certeau e Rancière. teria implicações para a filosofia enquanto gênero discursivo específico? Não vou responder aqui a essas questões. Porém. será amplamente feito neste encontro. nas Confissões de Santo Agostinho e de Rousseau). estava doente” 193 . O fato da tradição filosófica geralmente não tratar da enunciação subjetiva do discurso (fora. Essa problemática suscita várias questões. é claro. por exemplo. O sujeito do discurso filosófico. aliás. nos casos muito instigantes de autobiografia assumida. geralmente. Qual é a relação entre o sujeito de um discurso filosófico determinado e as figuras de autor e de narrador que imperam nas outras práticas de fala contemporâneas a esse discurso? 2. para citar o grande linguista Benveniste. e a definição do conceito de sujeito nesse corpus filosófico particular? 3. ESTAVA DOENTE” Ao Bento. que enuncia o discurso filosófico. que às vezes também adoece Já faz algum tempo que tento estudar uma questão que. não no discurso filosófico. não se costuma dar muita atenção a um outro sujeito: aquele que toma a palavra ou. Elenco a seguir algumas: 1. “PLATÃO. portanto. Gostaria somente de abordar essa problemática pelo viés de alguns diálogos de Platão.13. não é sequer colocada pelos filósofos ou pelas histórias da filosofia. Isto é: discute-se e analisa-se os conceitos de sujeito e de subjetividade na filosofia — o que. descreve-se como sujeito e subjetividade são definidos de maneiras diferentes pelas várias correntes filosóficas. Há uma relação específica entre o sujeito de um discurso filosófico particular (o modo de enunciação desse sujeito). Analisa-se o conceito de sujeito dentro de tal sistema filosófico. dentro de tal texto. A obra de Platão nos oferece um material privilegiado porque “Platão. CREIO. creio. ela reivindica a criação de um tipo de fala e de escrita que se chama, justamente, filosofia em oposição a outras práticas de fala e de escrita vigentes na época. Platão elege terminantemente um certo tipo de discurso e um certo tipo de “intelectual”, como diríamos hoje,1 para lhes atribuir os nomes de filosofia e de filósofo. Tal escolha é necessária para ressaltar a especificidade de sua atividade (e da de Sócrates), especificidade que se contrapõe a outras práticas de fala muito poderosas na polis: aquilo que se chamava, respectivamente, sabedoria e sábio, retórica e retor, e, sobretudo, poesia e poeta e, também, sofística e sofista. Mas realçar a especificidade da própria atividade discursiva não significa somente que Sócrates e Platão tenham “inventado” a filosofia num lance de gênios. Significa, antes de mais nada, que precisam delimitar seu discurso, porque esse poderia ser facilmente assimilado a outros tipos de fala mais conhecidos pelo público, vale dizer, pelo povo ateniense. Poder-se-ia, por exemplo, assimilar, ou pior, confundir facilmente filosofia e... sofística, Sócrates e Protágoras, ambos condenados em circunstâncias muito semelhantes (durante crises da democracia ateniense) e sob acusações muito parecidas (ateísmo, educação antitradicional para os jovens). Com isso, quero dizer que a insistência platônica em propor novos nomes para um certo tipo de discurso e um certo papel social — a filosofia e o filósofo — também testemunha as dificuldades dessa diferenciação. Dificuldades essas, aliás, que parecem ser nossas até hoje, quando teimamos em dizer, por exemplo, que o colega x faz talvez “história das ideias” ou “teoria da física” ou, pior ainda, “literatura”, mas que ele não faz “filosofia”. Parece que até hoje precisamos defender uma definição restrita e específica daquilo que seria a verdadeira filosofia, necessidade que também prova a precariedade dessa distinção! Mas voltando a Platão: qual é, na sua época, o grande paradigma do autor e do educador? É, como vocês sabem, o poeta épico, em particular Homero. Vou examinar aqui alguns traços que determinam a função do sujeito/autor do poema épico e do sujeito/autor do diálogo filosófico platônico. Vou me restringir, portanto, a alguns aspectos dessa relação conturbada que a obra platônica entretém com a obra homérica, relação de amor e ódio que sustenta todo o texto da 1 Eric Havelock, Prefácio a Platão, Campinas, Papirus, 1996, pp. 299 ss. 194 Lembrar escrever esquecer República, sendo que esse texto é não só uma obra de filosofia política, mas também um tratado de educação contra os sofistas, e, mais ainda, contra a influência de Homero, o “educador da Grécia”. Quero, num primeiro momento, mostrar o quanto Platão retoma, de maneira surpreendente, várias atribuições do poeta épico e, depois, indicar como ele também as transforma. Quais são as atribuições essenciais da função do poeta épico, função tematizada e refletida no seio do próprio poema? Se seguirmos as belas análises de Jean-Pierre Vernant,2 podemos destacar três conceitos-chave interligados: os conceitos de kléos — a glória do herói —, de memória do poeta e de túmulo. A palavra do poeta, palavra de rememoração e de louvor, mantém viva a glória do herói morto, cuja lembrança mergulharia, sem ela, no esquecimento pior que a morte física. Ao manter vivos a glória e o esplendor dos mortos, o poeta preenche a mesma função sagrada das cerimônias fúnebres descritas tantas vezes na Ilíada. Como a pedra do túmulo, erigida em memória do morto, assim também o canto poético luta contra o esquecimento e, fundamentalmente, contra a morte. Simultaneamente, reconhece, por essa luta mesma, a força do esquecimento e o poder da morte. A palavra grega sêma tem um duplo significado: túmulo, pedra funerária e, também, signo. Túmulo e canto poético se unem na mesma função primordial de evitar que os mortos sejam definitivamente esquecidos. A obra poética é, por assim dizer, um monumento funerário feito de palavras em memória e para a glória dos heróis mortos. O poeta como mestre de memória e de verdade (a-létheia) preenche simultaneamente o papel de sacerdote (de ligação às origens e aos mortos) e de virtuose (com domínio da memória e das técnicas de memorização), uma função essencial que Ilíada e Odisseia realizam. Ora, não deixa de chamar a atenção o fato de que o gesto inaugural da filosofia na obra de Platão, principalmente nos diálogos ditos socráticos, retoma vários desses elementos. Podemos seguir aqui as instigantes sugestões de Nicole Loraux no seu artigo “Socrate est un homme, donc Socrate est immortel” sobre o Fédon.3 Podemos ar2 Ver os três primeiros capítulos de Jean-Pierre Vernant, L’individu, la mort, l’amour (Paris, Gallimard, 1989). 3 Nicole Loraux, Les expériences de Tirésias, Paris, Gallimard, 1989, cap. VIII. “Platão, creio, estava doente” 195 riscar a seguinte hipótese: o impulso para filosofar em Platão — em particular para escrever diálogos filosóficos, apesar de suas numerosas críticas à escrita —,4 provém não só de uma “busca da verdade”, meio abstrata, mas também da necessidade, ligada a essa busca, de defender a memória, a honra, a glória, o kléos do herói/mestre morto, Sócrates. Essa temática é onipresente nos três diálogos centrados nessa morte, a saber, Apologia, Críton e Fédon. Na Apologia, essa defesa de Sócrates é escrita por Platão como se fosse a transcrição da defesa de si mesmo por Sócrates no tribunal: Sócrates compara sua escolha (uma vida consagrada à busca da verdade, mesmo que essa escolha lhe acarrete numerosos inimigos e até o exponha à morte) à famosa escolha de Aquiles na Ilíada.5 Advertido por sua mãe, Thétis, que se ele vingar seu amigo Pátroclo e matar Heitor, ele mesmo morrerá em breve; mas que, se ele deixar de lutar, voltará para a pátria e morrerá na velhice depois de uma vida longa e feliz, Aquiles escolhe sem titubear a vida curta — mas gloriosa e lembrada no futuro pela palavra poética — em detrimento da vida longa e obscura. Esse episódio paradigmático institui uma linhagem heroica na qual Sócrates se inscreve explicitamente, ou melhor, na qual Sócrates é colocado explicitamente por Platão. Nesse contexto, podemos também dizer que Platão assume, em relação ao mestre morto, a mesma função que cabia ao poeta em relação aos heróis mortos: lembrar suas façanhas e suas palavras para que a posteridade não se esqueça dos seus nomes e de sua glória. Arrisquemos uma fórmula analógica: Platão está para Sócrates assim como Homero está para Aquiles. Nicole Loraux fala dos diálogos de Platão, em particular do Fédon, que celebra a morte do mestre, como de tantas “pedras funerárias comemorativas”,6 cuja matéria não seria mais nem o mármore nem os versos, mas sim uma nova forma de prosa, a prosa do logos filosófico. Podemos observar aqui que essa função comemorativa e rememorativa em relação à figura do herói/mestre Sócrates oferece novas pistas para analisarmos a questão controvertida da distinção entre o pensamento socrático e o pensamento mais genuinamente platônico, 4 5 Ver Carta VII e Fedro. Ver Platão, Apologia, 28b-d; alusão à mesma cena de Homero (Ilíada, XVIII, v. 94-139) em Platão, Banquete, 179c-180a. 6 Nicole Loraux, op. cit., p. 199. 196 Lembrar escrever esquecer ou, ainda, da “influência” de Sócrates sobre Platão e da “emancipação” deste último em relação ao mestre. Poderíamos, talvez, deslocar levemente essa problemática e afirmar que há um período da produção platônica consagrado à preservação da memória de Sócrates, e, de certa maneira, a um trabalho intenso de luto por meio da escrita e da lembrança. Após a conclusão, por assim dizer, desse trabalho de rememoração e de luto, a produção platônica poderá assumir outras funções e outras preocupações. Dizia, há pouco, que alguns diálogos platônicos constituem “pedras funerárias comemorativas”, construídas numa matéria nova, na prosa filosófica. Esse novo material indica a diferenciação entre discurso filosófico nascente e canto poético. Gostaria de apontar aqui para uma dupla transformação: tanto da função da memória como também da função do autor. Em relação à memória. Devemos notar que sua função, ainda que essencial para a reflexão filosófica de Platão, mudou. No caso específico da rememoração de Sócrates, o discurso platônico não deve só preservar, mas, antes de tudo, defender a lembrança de um homem condenado injustamente. Isto é, deve mostrar que essa condenação foi injusta e cuidar, portanto, da reabilitação do mestre morto que não tem seu lugar assegurado na memória da polis, como o tinham os heróis antigos ou os guerreiros mortos pela pátria. Antes de poder celebrar a memória e a glória/honra do mestre, Platão deve em primeiro lugar mostrar que este não é aquele que o povo ateniense pensa ser (isto é, um sofista a mais ou um tagarela subversivo). Deve defender Sócrates contra as acusações de ateísmo, de ser um sofista (na Apologia), ou, então, de ser covarde e passivo por não tentar fugir da prisão (toda argumentação inicial do Críton). Platão deve, por assim dizer, construir a morte exemplar de Sócrates contra a opinião da maioria da polis. Ele não pode, portanto, celebrar os feitos do passado que formam a tradição da cidade, mas deve se contentar em narrar, em construir uma versão diferente do recém-acontecido. A voz do filósofo não pode mais reivindicar para si a função sagrada da ligação com o passado e com as origens, como podia o poeta. Deve, sim, propor e defender uma outra interpretação para um episódio singular. Essa mudança de tom e de condição também indica uma mudança no estatuto da verdade da palavra. Se a palavra poética, por sua origem sagrada, podia prescindir de uma partilha clara entre verdade e mentira/ficção, pois o que a caracterizava era seu poder numinoso, “Platão, creio, estava doente” 197 a ficção de uma verdade factual. Platão. as encenações iniciais dos diálogos. Porto Alegre. ou.. Maspero. mas sim o relato verdadeiro e fiel. caracterizar os diálogos de Platão como um gênero literário muito específico que oscila entre ficção e relato. Les maîtres de verité dans la Grèce archaique (Paris. Epígenes. simplesmente.8 ou. Globo.7 a prosa platônica se vê entrincheirada entre um discurso mentiroso.’ ‘Além do mencionado Apolodoro. claro. Chama a atenção o fato de que o autor Platão sempre se ausenta de seus textos como autor. 1981). estava doente. às minhas indagações iniciais sobre o modo de enunciação do sujeito no discurso filosófico. Vale a pena estudar as estratégias retóricas muito sutis que Platão emprega para nos convencer de que seu texto não é. que constrói sabiamente. 198 Lembrar escrever esquecer . estava doente”. não estava presente nos últimos momentos do mestre por ele maravilhosamente descritos: “Platão. e um discurso verdadeiro que não consegue impor sua veracidade. “Platão. estava fraco (demais)” para assistir ao último dia de Sócrates. quais foram?. estavam lá. consiste na denegação sistemática do possível caráter autobiográfico dos diálogos. “‘Mas os que então estiveram a seu lado [de Sócrates]. e das mais bem-sucedidas. tradução e comentário de Jaa Torrano (São Paulo. creio. Uma dessas estratégias. Ésquines e Antístenes. pela boca de Fédon. como narrador e até como personagem. nesse contexto. Crisóbulo com seu pai. Diálogos. por exemplo. 8 Platão. Ver também Hesíodo. II. sofisticadas!). Isso a ponto de o próprio Platão afirmar. para melhor cumprir seu papel de narrador objetivo. Volto. acho. mais precisamente. creio. 59b. sabem dessas construções complexas (para não dizer. Edusp/ Iluminuras. tradução de Jorge Paleikat e Cruz Costa. 26-28. v.’” Platão. dos acontecimentos. uma versão (aliás. 1955. Platão. vol.sua eficácia efetiva. de sua terra. Teogonia. e também Hermógenes. mas que parece verdade. que ele. Menéxeno e alguns outros da mesma região. Todos os estudiosos de Platão que analisam.. Lá se encontravam ainda Clésipo de Peânia. Poderíamos. aqui. uma narrativa subjetiva. Fédon. instigante e genial) do autor Platão. Fédon. por meio de uma narrativa subjetiva e singular. como o propõe Nicole Loraux. 1991). ainda. Como se fosse necessária essa fraqueza do sujeito-autor para garantir a força de verdade do discurso 7 A esse respeito ver o livro fundamental de Marcel Détienne. hoje diríamos “objetivo”. não necessariamente contraditórias. M. a mentira) da ausência do sujeito-autor permite a constituição de um discurso que reivindica uma verdade e uma validade não subjetivas. Uma interpretação especulativa mais respeitosa consiste em dizer. 193. creio. seria muito mais o próprio logos que o move e não o sujeito-autor particular que se apodera e se assenhora do logos. G. Paris. 10 11 9 Monique Dixsaut. por um perpétuo fazer de conta que não há ninguém atrás do palco do diálogo.. é gerar (um) logos sem autor. p. Tradução de J. não é deixar a si mesmo em seus escritos. Dito de maneira ainda mais provocativa: só a ficção (o disfarce. 1994. op.”10 Concordo com essa belíssima — e platônica — interpretação. Monique Dixsaut. muito platonicamente: “Ser imortal. a meu ver. Esse gesto de elisão pode ser interpretado de maneiras diferentes.9 que esse “anonimato vertiginoso” é condição necessária para um vaguear-passar verdadeiramente filosófico. Vrin. não é o fato de os homem se lembrarem. Ele não faz questão de possuir seus pensamentos. mais crítica e mais irreverente. Fundamentalmente. Dixsaut afirma. Essai sur les dialogues de Platon. p. op. sem assinatura e sem data. cit. tò òn ontôs. Belles Lettres. cit. com Monique Dixsaut por exemplo. Le naturel philosophe.. portanto. pois esse palco filosófico seria o próprio real. Nicole Loraux. Mas não há como se furtar a uma outra leitura.filosófico. “Platão. a essa relação fetichista que o escritor pode ter com os seus escritos). mas. Esse gesto propriamente ficcional é instaurado pela filosofia platônica com uma radicalidade que a distingue das outras práticas discursivas vigentes na época (a retórica. gesto que a tradição filosófica varia de inúmeras maneiras: o sujeito que enuncia o discurso filosófico deve se apagar em proveito da coisa mesma. 24. o filósofo não é o sujeito soberano de seu discurso. de ser o senhor dos seus lógoi. estava doente” 199 . a sofística. ou melhor. Esse “divaguer” seria caracterizado por uma relação de não-posse do autor filósofo em relação a seu discurso. de ser o proprietário exclusivo de seus livros e de seus escritos (como sustenta toda a crítica de Platão à escrita.11 Essa elisão do sujeito-autor só é possível por um refinamento extremo da estratégia retórico-literária. 200 Lembrar escrever esquecer . fadada a ser a escrita de nenhum sujeito singular para melhor ser a linguagem — universal? — da verdade. e até a história. mesmo Tucídides reivindica sua visão. racional. a prática da escrita filosófica. Esse gesto acompanha até hoje.a poesia. da Guerra do Peloponeso). com sua bela e incômoda ambiguidade. Metzler. refletir sobre as transformações históricas destas “partilhas” do saber. me parece imprescindível refletir criticamente sobre a constituição histórica destas definições mesmas. a presença de Spinoza em Goethe. uma grande amiga! O título desta palestra é emprestado a uma coletânea preciosa. Uma abordagem bastante comum da problemática filosofia/literatura consiste em analisar a presença de teorias ou de doutrinas filosóficas na obra de um escritor ou de um poeta: por exemplo. não só quais “conteúdos filosóficos” estão presentes ali. a priori. Mesmo que existam definições claras a esse respeito. antes de querer proceder ao estabelecimento de novas distinções mais finas. Tal recorte tem a vantagem de não colocar de antemão uma questão normativa sobre as diferenças. isto é. mas como são transformados em “conteúdos literários”. Literarische Formen der Philosophie. os domínios respectivos dos discursos literários e filosóficos — o que pressuporia ter. sobre as cambiantes definições de “filosofia” e de “literatura”. 1990. então. Mas trata-se. B. na obra literária específica. Não nego o interesse dessas análises quando apontam para a elaboração estética de elementos históricos singulares. de Adorno ou Nietzsche em Thomas Mann. isto é. J. filosofia e literatura. distingui-las com clareza e determinação. justamente. como diz Foucault. retomados e transformados pela escritura literária. organizada por Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht. de Heidegger em Clarice Lispector. AS FORMAS LITERÁRIAS DA FILOSOFIA Para Salma. Este tema permite um recorte instigante dentro da problemática muito ampla das relações recíprocas entre literatura e filosofia. Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht. Stuttgart. os direitos. de também mostrar como se dão.14. 1 As formas literárias da filosofia 201 .1 já há alguns anos. tal retomada e tal transformação. de Schopenhauer ou Bergson em Proust. isto é. definições claras daquilo que é literatura e daquilo que é filosofia para poder. e os escritores. e a concepção da filosofia como algo verdadeiro. e que os escritores sabem falar bem. por exemplo na academia. tem seu oposto simétrico numa representação da filosofia como “pura” atividade intelectual. aliás. Ora. passa muito bem sem ela. Geralmente. ornamentos estilísticos prescindíveis. reina certa desconfiança em relação aos aspectos formais mais apurados de uma palestra oral ou de um texto escrito de filosofia. superficial. esses dois clichês complementares perpetuam. mas ornamental. social e historicamente constituída. ainda. de “conteúdo”. Assim. No limite. dogmática e mesmo trivial das relações entre pensamento e linguagem: como se o pensamento se elaborasse a si mesmo numa altivez soberana sem o tatear na temporalidade das palavras que. o leitor certamente concordará que esses clichês constituem ainda representações corriqueiras das figuras e dos ofícios respectivos do filósofo e do escritor/poeta. Nesta estranha atividade.Usei de propósito a noção. mas vazia. Até no próprio meio filosófico. entre vários tipos de saber. que precisa de “recheio filosófico” para não se reduzir a uma brincadeira tão graciosa quanto fútil. a afirmação implícita da existência de uma dimensão “meramente metafórica” ou “meramente retórica” repousa numa concepção acrítica. séria. mas não têm nenhum pensamento próprio consistente. privilégios estabelecidos e territórios de poder no interior de uma partilha. complicada e incompreensível para o comum dos mortais (que. no entanto. supérfluo. os escritores e os poetas poderiam se dedicar ao sucesso e ao entretenimen- 202 Lembrar escrever esquecer . Assim. incompreensível e profundo. estes aspectos são vistos como concessões ao público. mas difícil. ou. como se diz às vezes. Apesar da descrição caricatural. só caberia aos escritores e aos poetas traduzir de maneira mais agradável aquilo que os filósofos já teriam pensado de maneira complicada ou “abstrata”. mas não conseguem comunicar seus pensamentos. isso significa que os filósofos sabem pensar. a comunicabilidade não importa tanto. profunda. discutível. A imagem da literatura como sendo uma linguagem bela. sabem se expressar. o que torna questionável sua reiterada importância). no mais das vezes. especialistas em “formas linguísticas”. mais ou menos rebuscadas. para apontar o que me parece o grande perigo dessas análises. Dito de maneira mais simples: a concepção da literatura como algo belo. mais ou menos incompreensíveis. que não sabem nem falar nem escrever bem. o constitui. a saber: tornar os filósofos especialistas na invenção de “conteúdos teóricos”. como algo meramente metafórico ou meramente retórico. reservada a poucos. 3 As formas literárias da filosofia 203 . sich von der Dichtung zu unterscheiden. observar um movimento pendular: quando se aproxima demais da poesia. sob configurações e refigurações históricas diversas. Paris. und in ihrer Sorge. em particular do pitagorismo. Sie hat nicht nur die Poesie immer wieder ablösen wollen. enquanto os filósofos continuariam aureolados pela busca desinteressada da verdade. cit. Esta ambiguidade também pode ser vista como fonte de riqueza. mas sim de refletir sobre este estatuto ambíguo do discurso filosófico e. na polis democrática. oriunda da tradição religiosa de sabedoria. Maspero. sie sollte auch ihrerseits immer wieder in Wissenschaft aufgehen. a ciência no sentido mais rigoroso. Na introdução ao livro citado no início deste artigo. Neste contexto. “Einleitendes Vorwort”. von dieser vereinnahmt zu werden. Devemos mencionar aqui que Gabriel não é discípulo de Heidegger ou de Hölderlin. ela se volta novamente para uma dimensão de sabedoria mais poética. a filosofia envereda novamente para o lado da ciência — e quando esta última ameaça abocanhá-la. mas sim especialista em Wittgenstein e Frege. Marcel Détienne. A hipótese de princípio consiste em afirmar que tais formas não são indiferentes ou exteriores aos enunciados filosóficos. desde seu início grego. podemos.to. No decorrer de sua história. entre a Dichtung (a criação poética no sentido amplo) e a Wissenschaft. de enunciação — Darstellungsformen — e a constituição de conhecimento(s) ou de verdade(s) em filosofia. hat sie sich poetisiert”. op. mais especificamente. cuja cadeira ocupa na Universidade de Iena. oscila entre duas formas de saber/sabedoria. Marcel Détienne3 lembra que a figura do filósofo é uma formação híbrida. então. de apresentação. Não se trata de estudar alguns aspectos formais episódicos. p. falar das formas literárias da filosofia adquire um sentido preciso. hat sie sich verwissenschaftlicht. ela perdura até hoje. da afirmação.2 Esta observação tem o mérito de apontar para o estatuto ambíguo da atividade filosófica. Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque. simultaneamente. In ihrem Versuch. desde seu nascimento. de explicitar a íntima relação entre formas de exposição. e. mas. da dignidade e do poder da palavra racional — logos — e da autonomia da organização política. VII. Gottfried Gabriel afirma que a filosofia. 1981. como formas de exposição ou de apresentação (Dar- 2 “Die Philosophie steht von Anfang an zwischen Dichtung und Wissenschaft. Gottfried Gabriel. stellung), que participam inseparavelmente da transmissão de conhecimento ou da busca de verdade que visa o texto filosófico.4 Um exemplo torna esta hipótese mais clara: qual seria a “verdade” que almejam os Diálogos de Platão? Se esquecermos a forma literária “diálogo” para procurar estabelecer um “sistema” de afirmações platônicas e, a partir delas, extrair algumas proposições essenciais que formassem a verdade procurada, encontraremos muitas contradições, muitas incoerências, poucas certezas e poucas evidências. Mas se levarmos a sério a forma diálogo, isto é, a renovação constante do contexto e dos interlocutores, o movimento de idas e vindas, de avanços e regressos, as resistências, o cansaço, os saltos, as aporias, os momentos de elevação, os de desânimo etc., então perceberemos que aquilo que Platão nos transmite não é nenhum sistema apodítico, nenhuma verdade proposicional, mas, antes de mais nada, uma experiência: a do movimento incessante do pensar, através da linguagem racional (logos) e para além dela — “para além do conceito através do conceito”, dirá também Adorno.5 O movimento autorreflexivo da filosofia sobre seu caráter de linguagem, seu caráter linguístico no sentido amplo do termo, isto é, sobre sua forma literária, permite, em termos de história da filosofia, uma leitura renovada, mais atenta à singularidade dos textos. Gottfried Gabriel cita o exemplo do texto da “prova ontológica”: quando se lembra que o escrito de Anselmo é um tipo de oração (proslogion), o caráter de prova (onto)lógica não desaparece, mas passa a ter um outro peso, porque tratar-se-ia aqui muito mais de confirmar a própria fé do que de provar logicamente a necessidade da existência de Deus.6 Poderíamos também dizer que ler o Zaratustra de Nietzsche como um poema teatral, com indicações de ritmo e de palco, suscita uma nova compreensão do papel dos animais ou mesmo do além-do-homem. Sem falar de todos os mal-entendidos oriundos de uma leitura que faz do Tractatus de Wittgenstein um manual de epistemologia, ou das Teses de Walter Benjamin, lições de filosofia da história. Gottfried Gabriel, “Literarische Form und nicht-propositionale Erkenntnis in der Philosophie”, op. cit., pp. 1-4. 5 “Die Anstrengung, über den Begriff durch den Begriff hinauszugelangen.” Theodor W. Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1970, p. 25. 6 4 Gottfried Gabriel, op. cit., p. 16. 204 Lembrar escrever esquecer A autorreflexão da filosofia sobre sua “literalidade” não traz apenas proveitos metodológicos ou hermenêuticos. Mais do que isso, remete a três conjuntos de questões que sempre acompanharam a filosofia, desde seu nascimento em Platão — cuja obra pode ser vista como o palco privilegiado deste embate. Trata-se de questões ligadas à filosofia enquanto gênero discursivo diferente de outros gêneros discursivos em vigor. Na época de Platão, a filosofia tentava se distinguir de dois tipos principais de discursos muito importantes do ponto de vista cultural e político em Atenas: primeiro, a poesia épica e trágica — encarnada por Homero (a poesia épica), o Mestre da Grécia, estudado pelos meninos em seu aprendizado de futuros cidadãos; e por Sófocles e Eurípides (a poesia trágica), encenados anualmente para o conjunto dos cidadãos (as críticas de Platão às práticas pedagógicas vigentes e aos saberes artísticos e miméticos de seu tempo pressupõem esse papel central da poesia na formação pedagógica dos cidadãos e na vida política da cidade,7 papel que, hoje, a poesia deixou totalmente de ter). Em segundo lugar, a retórica e a sofística, ambas práticas discursivas ligadas ao nascimento de formas jurídicas codificadas, à instituição do tribunal e de uma esfera do direito (instituição da acusação e da defesa) diferente do domínio de poder do soberano; práticas igualmente relacionadas com o peso crescente da palavra, do saber falar e do saber persuadir (isto é, também do saber “manipular” pela palavra lisonjeira e enganadora), na assembleia democrática dos cidadãos. A luta incessante de Platão contra os “sofistas”, estes mestres de retórica — em particular suas reiteradas tentativas, da Apologia de Sócrates até O Sofista, de estabelecer uma diferenciação essencial entre o “filósofo” e o “sofista”,8 — dá provas do prestígio do qual gozavam retórica e sofística em Atenas. Ver a este respeito as instigantes pesquisas de Eric Havelock em Prefácio a Platão (Campinas, Papirus, 1996). 8 A necessidade desta diferenciação por Platão não mostra somente o quanto a filosofia seria, ontologicamente, diferente da sofística, como a história (bem-comportada!) da filosofia sempre repete; se esta diferenciação era uma tarefa tão necessária assim, é que ela não era nem clara nem evidente para o povo ateniense, que, aliás, condenou Sócrates em termos e por motivos muito semelhantes aos da condenação de... Protágoras! 7 As formas literárias da filosofia 205 Hoje a filosofia não precisa se diferenciar, em primeiro lugar, do epos, da tragédia, da retórica ou da sofística; nem da teologia como na Idade Média. Ela tenta muito mais afirmar sua especificidade discursiva — e conceitual — em contraposição aos discursos das ciências naturais e de seu pretenso ou autêntico “rigor”, aos discursos das ciências humanas e seus territórios de pesquisas práticas, ao discurso da literatura e de sua ficcionalidade. Essas transformações históricas ressaltam a hipótese principal desta comunicação: a saber, que uma reflexão sobre as formas literárias, isto é, também sobre as formas linguísticas (no sentido amplo de sprachlich, que é inerente à Sprache, língua e linguagem) da filosofia significa também uma reflexão sobre sua historicidade como gênero específico de discurso e de saber. Dizia há pouco, seguindo aqui também as indicações de Gottfried Gabriel, que podemos determinar três conjuntos de questões que esta autorreflexão da filosofia sobre seu caráter de linguagem, sobre sua literalidade, levanta. Enumero estes três conjuntos para, depois, retomá-los em detalhe. Há, primeiro, o fato de que, em filosofia, não se trata somente de analisar linguagem, mas, mais precisamente, de analisar textos escritos. Em segundo lugar, a diversidade das formas literárias dos textos filosóficos também indica uma separação entre dois tipos de exercício da filosofia: uma filosofia ligada especificamente ao ensino e uma filosofia como exercício de meditação ou de reflexão, sem relação obrigatória com práticas pedagógicas institucionais. Enfim, em terceiro lugar, a multiplicidade destas formas também indica que há várias maneiras possíveis de tentar abordar, em filosofia, aquilo que excede a linguagem racional discursiva (logos), linguagem por excelência da filosofia. Retomemos estes três complexos de questões. O primeiro e o segundo podem ser abordados em conjunto. Tratar da filosofia como gênero discursivo distinto e analisar suas diversas formas literárias, seus diversos modos de apresentação, restringe, pois, a pesquisa a um corpus de textos, isto é, ao território da escrita. Tal restrição pode nos parecer evidente porque estamos acostumados a ela, em particular no contexto do ensino da filosofia que, no mais das vezes, se confunde com o ensino da história da filosofia, com o estudo de textos dos “grandes filósofos”, ensino e estudo baseados, portanto, na transmissão escrita. Mas se pensarmos na constituição da filosofia em Platão, autor de diálogos escritos, copiados e transmitidos por escrito até nós, e, simultaneamente, autor de críticas contundentes às pretensões de 206 Lembrar escrever esquecer verdade da escritura, defensor da transmissão oral através da discussão viva, se lembrarmos disso, então perceberemos que esta relação entre filosofia, texto e escritura advém de uma partilha anterior entre tradição oral, mítica ou poética, transmissão oral da sabedoria, e transmissão escrita, no seio de instituições socioculturais diversas.9 A questão da prevalência da transmissão escrita em filosofia recorta, portanto, a questão da progressiva separação entre uma filosofia ligada especificamente a seu ensino, da Academia de Platão até as universidades de hoje, uma Schulphilosophie, diz Kant, mais técnica e erudita, e uma Weltphilosophie (Kant igualmente) ou filosofia universal, isto é, um exercício de meditação, de reflexão, uma prática teórica que retoma os problemas fundamentais da existência humana e, em particular, pode assumir uma posição ético-política no debate da cidade, no espaço público comum aos cidadãos. Podemos estabelecer uma lista provisória de algumas formas literárias em filosofia; perceberemos, então, que estas formas são ligadas a dois fatores principais: a épocas históricas precisas e à separação entre Schulphilosophie e Weltphilosophie. Hoje, ninguém mais escreve uma summa formada por uma série de questiones; antes de Montaigne, não parece ter havido necessidade de escrever ensaios. O ensino e o aprendizado acadêmicos da filosofia passam pela redação de monografias, trabalhos, dissertações, teses, apostilas, aulas, resumos, lições e manuais cujas regras científicas estritas acarretam consequências estilísticas e literárias específicas. Não se usam citações, por exemplo, da mesma maneira numa dissertação de mestrado, restrita ao rastreamento claro de uma temática bem definida, exercício típico de Schulphilosophie, ou num ensaio mais amplo, obra de maturidade de um pensador singular, meditação própria de Weltphilosophie. Não há o mesmo tipo de argumentação nas Confissões de Santo Agostinho, na Crítica da razão pura ou em Além do bem e do mal — e isso não só porque Agostinho, Kant e Nietzsche são três pensadores individuais diferentes, mas também porque as formas literárias confessional, sistemática e aforística implicam exigências específicas. Como entender, 9 Talvez assistamos hoje a uma reconfiguração de formas orais na transmissão da filosofia (“café-philo”, entrevistas e bate-papos televisivos etc). A análise dessas formas deveria se inscrever numa análise (crítica!) das transformações dos meios de comunicação social e não se restringir à defesa irada de uma única forma autêntica. As formas literárias da filosofia 207 digamos. que se apoia em Heidegger. nem pode ser nomeada. segundo a famosa expressão de Derrida. no 208 Lembrar escrever esquecer . seu fundamento tão necessário como inacessível. comum à tradição judaica e à tradição platônica. mesmo que as definições deste logos também variem no decorrer de sua história. do logos. o teologocentrismo da metafísica. e pela linguagem. uma reflexão mais apurada sobre a historicidade das formas literárias da filosofia nos ajuda a compreender melhor a historicidade da própria filosofia. com o qual gostaria de concluir. é constitutivo da filosofia. sempre deslocados e reinventados. a tentativa de ruptura operada por Nietzsche (se Nietzsche conseguiu realmente operar esta ruptura é uma outra questão). A multiplicidade das formas literárias em filosofia também assinala as diversas tentativas filosóficas de abordar aquilo que excede a linguagem discursiva racional. mas não é o mesmo pensador em termos de concepção filosófica. Tal afirmação paradoxal assume várias formas de apresentação. Enfim. muitas vezes. de inúmeras maneiras. interpretado como sendo a fonte divina da linguagem e da existência humanas. simultaneamente. a rigor. este estranho exercício em torno de algumas questões e de alguns conceitos. lhe escapa. Ao chamar este indizível de “Deus” e ao saber da insuficiência desta nomeação.por exemplo. Esse motivo teológico primordial. a passagem de uma forma para outra também assinala transformações nada acidentais do pensamento: o Wittgenstein do Tractatus e o Wittgenstein das Investigações filosóficas é o mesmo pensador em termos de pessoa individual. o logos. o florescimento do gênero “diálogo” ou “carta” na Antiguidade. Mas esta questão assume várias figuras. como a figura de Deus ou do Bem supremo que. indica que se negligenciou o fundamento inatingível do qual. linguagem da filosofia por excelência. sua transformação no Renascimento e seu quase completo desaparecimento na filosofia contemporânea? Podemos observar igualmente que. Desde a Carta VII de Platão até o Tractatus de Wittgenstein o tema do dizível e do indizível na linguagem. que seu fundamento último. Esse motivo caracteriza. através dessa falha. o discurso da metafísica também afirma. várias formas literárias: o diálogo aporético não chega a nenhum resultado e. no interior da obra de um mesmo filósofo. nele está presente e. fonte da linguagem e da razão. sempre retomados e recolocados. percorre toda a tradição filosófica até. já que a nomeação restringiria sua infinitude. Estas observações me levam ao terceiro e último complexo de questões. Aquilo que não pode ser dito foi. certamente se encontram. filosofia e literatura contemporâneas. já que somente o movimento em busca da transcendência dela consegue dar uma representação imanente (conforme a Fenomenologia do Espírito). definir. já que não podemos sair nem da linguagem nem do mundo para observar e descrever como se relacionam. fundamento e fonte de nossa existência e de nossa linguagem. ou o sistema se edifica e se totaliza. As formas literárias da filosofia 209 . também se afirma. com todas as suas diferenças. e mais ainda a contemporânea. sempre haverá um abismo que ela pode. numa vertente mais ligada à herança crítica. a filosofia moderna. de “Deus” não parece mais ser adequado. Ora. Entre a palavra que enuncia e a realidade que ela quer apreender. Tenta-se transformá-la. mas nunca abolir. sim. nesta figuração da ausência. dever-se-ia ter partido (conclusão do Crátilo). este real que só se mostra (conforme a expressão de Wittgenstein) quando se desenha a figura de sua ausência.entanto. simplesmente. outros nomes (re)surgem: o Ser. Ali. na própria apresentação do pensamento. Algumas formas literárias bastante fortes da filosofia contemporânea como o ensaio. chamar este indizível. em oposição crítica à concepção totalizante dos grandes sistemas clássicos. E. o Sublime. Assim. mas nunca se aquieta num resultado definitivo. Mas a questão persiste. não pode dizer. o Real. sofre um processo de secularização que caracteriza toda a modernidade em sentido político amplo. o fragmento tentam. atravessar (Blanchot). surgem outras tentativas de respostas. explicitar sua relação à realidade do mundo. tematizar na própria exposição. o aforismo. que a linguagem humana não pode dizer sua origem. neste lugar paradoxal. 210 Lembrar escrever esquecer . 2001. Rio de Janeiro. Publicado em Cultura. julho/dezembro. Substantivo plural”. realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. ligeiramente modificada. setembro de 1997. 2001. de um artigo em francês. Paris. Stella Bresciani e Márcia Naxara (orgs. 5. Agradeço a Ana Cláudia Fonseca Brefe pela tradução. 6. Campinas. Rodrigo Duarte e Virgínia Figueiredo (orgs.). 4. Sobre os textos 211 . “‘Após Auschwitz’” Apresentado originalmente no congresso de estética “As Luzes da Arte”. Bruno Pucci (orgs. 3. em Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. história e testemunho” Apresentado originalmente no colóquio “Memória e Desaparecimento”. na Universidade Federal de Minas Gerais. “Memória. Publicado em Teoria crítica. Editora 34. ano II. nº 4. Substantivo plural. Antônio Álvaro Soares Zuin. realizado na Universidade Metodista de Piracicaba. “Verdade e memória do passado” Este artigo é a versão brasileira. o Estético — Adorno”. em 1998. Belo Horizonte. novembro. Opera Prima. “Sobre as relações entre ética e estética no pensamento de Adorno” Apresentado originalmente no colóquio “O Ético. publicado no número de junho de 1998 da revista Autre Temps.). Posteriormente o artigo também foi publicado. 2. no Rio de Janeiro. em versão ligeiramente modificada.). PUC-SP. Publicado em As luzes da arte. 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Quanto ao processo de escrita. em particular no que diz respeito à reelaboração destes textos para o formato de livro. passando por Piracicaba e São Paulo.AGRADECIMENTOS Quero agradecer aqui aos companheiros que foram imprescindíveis no processo de realização deste livro: aos membros do Grupo de Trabalho em Estética da Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) e ao Grupo de Estudos e Pesquisa Teoria Crítica e Educação que. 222 Lembrar escrever esquecer . 1994) e Sete aulas sobre linguagem. Sobre a autora 223 . 2006). na Alemanha. publicado no Brasil como História e narração em Walter Benjamin (São Paulo. em 1949. literatura alemã e grego antigo na Universidade de Genebra. memória e história (Rio de Janeiro. L’Harmattan. Perspectiva. 1978). Após estudar filosofia. Palm & Enke. em 1977. Histoire et narration chez Walter Benjamin (Paris. Walter Benjamin: os cacos da História (São Paulo. Vive e leciona no Brasil desde 1978. Brasiliense. Berlim e Paris. nova edição. É professora titular de filosofia na PUC-SP e livre-docente em teoria literária na Unicamp. 1994).SOBRE A AUTORA Jeanne Marie Gagnebin nasceu em Lausanne. Atualmente prepara um livro sobre o tema da “justa distância”. 1982). É autora de Zur Geschichtsphilosophie Walter Benjamins (Erlangen. tendo realizado estágios de pós-doutorado em Constança. 1997. na Suíça. concluiu o doutorado em filosofia na Universidade de Heidelberg. Imago. COM CTP E IMPRESSÃO DA EDIÇÕES LOYOLA EM PAPEL PÓLEN SOFT 80 G/ M2 DA C IA. PELA BRACHER & MALTA. SUZANO DE PAPEL E CELULOSE PARA A EDITORA 34.ESTE LIVRO FOI COMPOSTO EM SABON. EM AGOSTO DE 2009. 224 Jeanne Marie Gagnebin .
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