CULTURAE SOCIABILIDADES NO MUNDO ATLÂNTICO Suely Creusa Cordeiro de Almeida Gian Carlo de Melo Silva Marília de Azambuja Ribeiro (Organizadores) CULTURA E SOCIABILIDADES NO MUNDO ATLÂNTICO Recife, 2012 Editora Universitária UFPE Universidade Federal de Pernambuco Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado Vice-Reitor: Prof. Sílvio Romero Marques Diretora da Editora UFPE: Profª Maria José de Matos Luna Comissão Editorial Presidente: Profª Maria José de Matos Luna Titulares: Ana Maria de Barros, Alberto Galvão de Moura Filho, Alice Mirian Happ Botler, Antonio Motta, Helena Lúcia Augusto Chaves, Liana Cristina da Costa Cirne Lins, Ricardo Bastos Cavalcante Prudêncio, Rogélia Herculano Pinto, Rogério Luiz Covaleski, Sônia Souza Melo Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lúcia Menezes Lima. Suplentes: Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Eduardo Antônio Guimarães Tavares, Ester Calland de Souza Rosa, Geraldo Antônio Simões Galindo, Maria do Carmo de Barros Pimentel, Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana Cavani Rosas. Editores Executivos: Afonso Henrique Sobreira de Oliveira e Suzana Cavani Rosas Catalogação na fonte: Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748 C968 Cultura e sociabilidades no mundo atlântico / organizadores: Suely Creusa Cordeiro de Almeida, Gian Carlo de Melo Silva, Marília de Azambuja Ribeiro. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. 544 p. Vários autores. Inclui referências bibliográficas. ISBN: 978-85-415-0084-5 (broch.) 1. História Moderna 2. Brasil – História – Período Colonial – 1500-1822 3. Igreja e o mundo. 4. Feminismo. 5. Escravidão. 6. Miscigenação. I. Almeida, Suely Creusa Cordeiro de (Org.). II. Silva, Gian Carlo de Melo (Org.). III. Ribeiro, Marília de Azambuja (Org.). 981.03 CDD (23.ed.) UFPE (BC2012-070) Agradecimentos Cultura e Sociabilidades no Mundo Atlântico e Poder e Administração no Mundo Atlântico são obras que resultaram de um trabalho coletivo iniciado em finais de 2008 quando as Universidades públicas pernambucanas, através de seus professores de História Colonial, aceitaram o desafio de realizar no Recife, em 2010, a 3ª versão do Encontro Internacional de História Colonial. Para sua edição nas antigas terras de Duarte Coelho, a comissão organizadora buscou articular os debates que norteiam a História Colonial, especialmente no espaço Atlântico, levando a temática central a intitular-se: Cultura, poderes e sociabilidades no Mundo Atlântico. Para realização do encontro, e consequentemente dos volumes que apresentamos ao público, contamos com o apoio de pessoas e instituição às quais desejamos expressar nosso agradecimento, pois sem elas teria sido impossível realizá-los. Em primeiro lugar a todos aqueles que participaram do evento em 2010 nas mais variadas atividades. Aos discentes das instituições envolvidas e que atuaram nos bastidores por meses. Aos que disponibilizaram seus trabalhos, fruto de pesquisas inéditas e ainda em andamento para compor os livros que hoje entregamos à comunidade científica. As instituições que abrigaram e financiaram o evento não podem ser esquecidas. Nosso agradecimento à Universidade Federal de Pernambuco, que através da Coordenação do Programa de PósGraduação em História e da Direção do Centro de Filosofia e Ciências Humanas nos cedeu o espaço físico e nos apoiou financeiramente. À Universidade Federal Rural de Pernambuco e ao Programa de PósGraduação em História, pelo apoio financeiro e acolhida à ideia, e à Universidade de Pernambuco pelo apoio. À FACEPE (Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco), instituição que sempre tem amparado nossas promoções acadêmicas e que não nos faltou também no 3º Encontro Internacional de História Colonial. E, por fim, mas não menos importante, ao apoio dado pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), sem o qual não seria possível a publicação destes livros que consideramos ser uma grande contribuição científica para o estudo do passado colonial. Sumário Apresentação....................................................................................11 Temas Introdutórios........................................................................15 Os canibais de Lisboa: da história colonial e imperial à história global..................................................................................................17 Serge Gruzinski “Será mesmo que somos modernos? A propósito de um livro sobre o modelo pré-moderno da política”...................................................35 António Manuel Hespanha PRIMEIRA PARTE - A Igreja Católica e o Império....................43 Os Jesuítas na Capitania do Rio de Janeiro e suas atuações no estabelecimento e na consolidação da cidade....................................45 Marcia Amantino Reflexões acerca da ação inquisitorial no Grão-Pará.........................69 Marcia Alves Mello e Maria Olindina Andrade de Oliveira Ensino e Missão Jesuíta no Oriente...................................................85 Leonor Diaz de Seabra e Maria de Deus Beites Manso Escrita e trajetória de um franciscano luso-descendente nascido em Macau (século XVII).........................................................................125 Patricia Souza de Faria “O vigário geral forense que foi processado pela Inquisição”: Frei Cosme Damião da Costa Medeiros no Piauí colonial........................149 Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz As Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco no Rio de Janeiro (c.1700-1822): Análise comparativa das estruturas administrativas...................................................................................163 William de Souza Martins Pregando e convertendo por “inspiración sensible” – estratégias jesuíticas de missionação: Província Jesuítica do Paraguai (Século XVII).....................................................................................189 Eliane Cristina Deckmann Fleck Sobre “agir muy poco á poco hasta tenellos ganados”: as Instruções do Padre Diego de Torres Bollo para a missão entre os guaranis......213 Maria Cristina Bohn Martins A circulação dos modelos retabilísticos entre Europa e Bahia: o retábulo-mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos de Salvador........233 Luiz Alberto Ribeiro Freire SEGUNDA PARTE – Estratégias Femininas de Sobrevivência..247 Espelhos de Esther. As mulheres e a resistência criptojudaica no mundo colonial..........................................................................................249 Angelo Adriano Faria de Assis As donas do poder: Práticas testamentárias de mulheres no Maranhão oitocentista (1800-1822)....................................................................265 Marize Helena de Campos Entre a proteção e o abandono: recolhimentos femininos na cidade de Lisboa no Período Moderno...............................................................287 Suely Creusa Cordeiro de Almeida Mulheres indígenas: saberes e poderes na América Portuguesa........303 Leila Mourão TERCEIRA PARTE – Escravidão e Mestiçagem........................323 Los negros esclavos como bienes heredables, según los testamentos de Toluca en el siglo xvii......................................................................325 Georgina Flores García e Belén Benhumea Bahena Pai zeloso, cristão e senhor de escravos: o caso de José Henrique Pereira Brainer - Pernambuco, limiar dos séculos XVIII e XIX..........................................................................339 Gian Carlo de Melo Silva Negros e mestiços nas guerras da Colônia do Sacramento (1680-1777)........................................................................................349 Paulo Cesar Possamai Exóticas denominações: manipulações e dissimulações de qualidades de cor no reino de Angola na segunda metade do século XVII.........369 Roberto Guedes San Martín de Porres: um santo mulato no vice-reino do Peru.........399 Eliane Garcindo de Sá A Irmandade de São Gonçalo Garcia em Pernambuco: a apoteose dos Homens Pardos em Recife (1745).....................................................425 Marcos Antonio de Almeida QUARTA PARTE – Cultura e Circulação de Saberes..................453 Homo Litteratus: o mundo e os modos da leitura na prática da justiça em Minas Gerais no século XVIII..........................................455 Álvaro de Araújo Antunes Contar coisas de todas as partes do mundo: as Relaciones de Sucesos e a circulação de notícias escritas no período filipino..............................................................................469 Ana Paula Torres Megiani As especiarias na cozinha e na botica: notas sobre o intercâmbio de plantas e sementes com fins alimentares e medicinais no Império Português..............................................................................485 Leila Mezan Algranti Claude D’Abbeville e a invenção do índio: cosmologia e silenciamento...................................................................................501 Ivânia dos Santos Neves Cosmologias e saberes afroindígenas na Amazônia marajoara.........525 Agenor Sarraf Pacheco como o próprio título sugere. O livro aborda o mais recente debate travado pelos historiadores que estudam o período moderno. ao fazer frente aos franceses e aos Tamoios com outros grupos indígenas e portugueses. estão articulados entre o campo da cultura e da história social. Na mesma sessão. bem como na organização da própria cidade. suas limitações e contradições. se ocupa da trajetória do frei franciscano Jacinto de Deus. o historiador francês Serge Gruzinski analisa a História Moderna numa dimensão que vai do colonial ao global. O capítulo trata dos espaços de formação criados pelos jesuítas. Patrícia Souza. Há toda uma desconstrução em torno das certezas de um paradigma que negava a autonomia de territórios. tribunal que tinha como objetivo civilizar e levar a salvação a índios. deputado do Santo Ofício de Goa. através do estabelecimento de um diálogo entre quatro obras recentes. Os autores e suas reflexões demonstram a dimensão da pluralidade e das negociações necessárias para a condução do cotidiano no espaço das conquistas. nascido em Macau. demonstrando seu caráter doutrinário. Marcia Mello e Maria Olindina explicam detalhadamente o processo de disciplinamento desenvolvido pela Igreja através de seu braço inquisitorial no Grão-Pará. António Manuel Hespanha trata do ocaso do Estado. Marcia Amantino investiga a chegada da Companhia de Jesus no Rio de Janeiro e demonstra sua importância na consolidação da presença portuguesa. Na parte introdutória. No trabalho de Maria de Deus Manso e Leonor Seabra aborda-se a atuação da Companhia de Jesus no Oriente português. mais precisamente em Goa. de seus direitos e da regulação estadual.Apresentação O volume intitulado “Cultura e Sociabilidades no Mundo Atlântico” é composto de trabalhos que. negros e mestiços. ideias e pessoas frente às normas e práticas emergentes do Velho Mundo. intitulada “A Igreja Católica e o Império”. por sua vez. com o intuito de fazer uma reflexão acerca do paradigma da modernidade. O mesmo foi 11 . O historiador reflete sobre a crise dos estudos da América colonial na França e em outros países europeus. Na primeira parte. Na segunda parte do volume. A autora realiza uma investigação sobre o 12 . Ele analisa os mecanismos de escolha dos dirigentes dessas instituições. William de Souza Martins trata. Neste caso as “donas do poder”. homem vil e acusado de crimes horrendos. mas foram elementos cruciais no desenvolvimento social e cultural da colônia.autor de uma vasta obra composta por vários gêneros que vão do espiritual à história. dedicada às “Estratégias femininas de sobrevivência”. das Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco no Rio de Janeiro. que aborda o papel desempenhado pelas mulheres na preservação e propagação do judaísmo no Brasil colonial. Partindo para uma compreensão social dilatada entre a colônia e a metrópole portuguesa. Martins trata das Instruções do Pe. religioso descrito como mulato. Já Maria Cristina B. são exemplos da inserção feminina no espaço econômico colonial e de como suas práticas testamentárias podem servir como uma fresta para entendermos um pouco da sociedade colonial maranhense. que foi processado pela inquisição no Piauí colonial. vigilância e afastamento dos feiticeiros. apontando para a importância dessas eleições. assim como analisa a circulação de gravuras impressas como meio de transmissão das formas estilísticas europeias. Diego de Torres Bollo para as missões guaraníticas no Paraguai no início do século XVII. Dentre as fontes disponíveis que nos foram legadas pelo passado. Eliane Fleck analisa a normatização do trabalho missionário junto aos indígenas guaranis no Paraguai. Representantes do gênero feminino não estiveram ligadas somente ao âmbito religioso. Luiz Alberto Ribeiro Freire demonstra a influência dos tratados arquitetônicos italianos na concepção dos retábulos baianos do século XVIII. frei Cosme e Damião da Costa Medeiros. encontramos escritos que examinam as ações empreendidas pelas mulheres no mundo colonial. numa abordagem comparativa. Tais fontes servem de base para o estudo de Ângelo Assis. Já Pollyanna Gouveia acompanha o percurso do Vigário Geral Forense. aquelas produzidas pelo Tribunal do Santo Ofício estão entre as mais ricas de informações sobre a sociedade e o cotidiano colonial. Por fim. missionação voltada principalmente para redução dos chamados pecados públicos. apresentadas por Marize Campos. Suely Almeida nos conduz pelo “mundo” do recolhimento. o texto de Leila Mourão trata do papel da mulher na colonização do norte do Brasil. 13 . econômico e cultural das sociedades americanas. Paulo Possamai. região que forneceu muitos dos africanos que foram escravizados nos séculos em que vigorou o comércio e o tráfico escravo. europeus e africanos nas Américas também favoreceu os processos de mestiçagens. bem como demonstra o papel que tal instituição exerceu na manutenção da honra feminina e consequentemente das famílias e da sociedade. realizado por Georgina Garcia e Belén Bahena. que extrapolam o âmbito sexual e estão subsumidos por todas as práticas sociais. as quais examinam testamentos do século XVII para observar como os escravos eram tratados como bens e serviam de herança para as famílias. O autor mostra as estratégias desenvolvidas para manutenção do controle de uma região que foi importante centro de vendas de escravos para a parte sul da América espanhola. nos traz um estudo sobre os negros e mestiços nas guerras pela Colônia do Sacramento. apresenta suas especificidades e suas regras de funcionamento. mas sempre contribuíram de forma ativa para consolidação dos ideários coloniais. o papel dos escravos africanos dentro da família branca. no Recife colonial. Sua abordagem tenta lidar com os silêncios da documentação e lançar luz sobre a história das mulheres ameríndias. A presença de indígenas. Deixando o Brasil vamos para o contexto da Angola setecentista. por sua vez. tentando entender como o funcionamento da família estava ligado ao trabalho realizado pelos seus cativos.Recolhimento de Lisboa. De volta ao âmbito dos domínios portugueses na América. mais especificamente o México. sendo eles a fonte de sustento e renda daquelas unidades domésticas. Deixaram marcas e foram marcados pelas regras da lógica escravista. Também a partir de fontes testamentárias. elementos ativos e de grande importância para o povoamento da região. servindo de exemplo para outras instituições similares em todo o Império Ultramarino. Os escravos estiveram presentes no espaço colonial desde o século XVI e desempenharam um papel significativo no desenvolvimento social. Gian Carlo de Melo observa. Esta parte inicia-se com um estudo das antigas colônias espanholas. A terceira parte do livro ocupa-se de “Escravidão e Mestiçagem” no espaço ibero-americano. realizado por Marcos Almeida. por seu turno. com cultura material. Já Ivânia Neves. Ao longo da narrativa a historiadora vai demonstrando como as drogas e especiarias foram sendo incorporadas às práticas culinárias e da medicina. A partir do exame dos significados da devoção a um santo mulato no Peru. memórias e literatura.Nesse espaço geográfico. Ainda no campo religioso. explicita os conhecimentos e leituras utilizados pelos advogados para amparar suas argumentações na prática da justiça. através de “Relaciones de Sucesos”. serve de fulcro para o estudo dos homens e mulheres pardos. culturais e raciais desenvolvidas na complexa trama colonial. Na quarta e última parte. Roberto Guedes examina o significado social das “qualidades” de cor atribuídas aos indivíduos. ampliando o processo de hibridização cultural. Leila Algranti estuda os intercâmbios dentro do Império Português: trata do interesse português por conhecimentos sobre a fauna e flora das regiões colonizadas. discute a criação de um imaginário discursivo repleto de estereótipos acerca dos índios como mecanismo de dominação política dos mesmos. através do estudo de ações judiciais em Minas Gerais no século XVIII. através da análise da obra do muito conhecido cronista Claude D’Abbeville. Usando de Foucault a Orlandi. dedicada à “Cultura e circulação de saberes”. Ana Paula Megiani. A devoção mestiça que existia em torno de São Gonçalo permite ao autor entender um pouco da sociedade que se desenvolveu na Capitania de Pernambuco. busca demonstrar a importância e o impacto da circulação de notícias nas sociedades ibéricas durante o período filipino. São Gonçalo Garcia. Eliane Sá debruçase sobre os santos e as mestiçagens na América espanhola. o santo de devoção da Irmandade dos Pardos em Recife do século XVIII. Álvaro Antunes. a autora constrói um estudo sobre traduções culturais e poder. Trabalhando. Agenor Pacheco tece uma reflexão sobre o papel das mesclas culturais afroindígenas como desarticuladoras das ações de poderes colonizadores na região Amazônica. a autora busca entender as relações sociais. Os Organizadores 14 . TEMAS INTRODUTÓRIOS . . historiadores europeus. apresentar algumas interrogações sobre a história colonial. Na medida. tão frequente e justamente acusados de eurocentrismo. Tanto os debates sobre a natureza do império lusitano e do antigo regime nos trópicos quanto as polêmicas que animam o cenário acadêmico brasileiro e português testemunham a riqueza e a diversidade dos estudos coloniais que dizem respeito a essa parte do mundo. obviamente.Os canibais de Lisboa: da história colonial e imperial à história global Serge Gruzinski CNRS/École des Hautes Études en Sciences Sociales De início não posso deixar de exprimir minha gratidão aos organizadores. Costumam ferver água numa grande panela. os impérios podem transformar-se em fronteiras e obstáculos que mantêm o pesquisador nas águas mornas da rotina e do academismo? Não disponho de uma resposta universal. aqui e agora. pelo convite que me fizeram e que me permite. ou seja. Só posso responder como historiador europeu. em especial à professora Suely de Almeida. Está relacionada com a necessidade de redefinir a contribuição desses estudos para as ciências sociais e para a história em particular. levantar hipóteses e privilegiar interpretações que possam dialogar com o mundo presente. Como escolher problemáticas. a nação. Minha preocupação é outra. em que nós. 17 . as colônias. Está relacionada com a crise dos estudos de história da América colonial na França e em outros países europeus. a identidade nacional. com um mundo globalizado no qual os nossos velhos horizontes historiográficos – a região. teríamos conservado a capacidade de contribuir para a construção e a leitura dos passados das outras partes do mundo… Os canibais de Lisboa Iniciarei as minhas reflexões com uma antiga receita: “Esta gente gosta de comer crianças”. . 1777. Paul in “Le Hoja et le Sayyid Husain de l’histoire des Ming”. Florestan. 119. São Portugueses. conforme o texto citado.2/5. ele era um especialista das gentes de fora. Não são testemunhos isolados nem afirmações exclusivamente chinesas4.quando borbulha. As crônicas portuguesas consignam semelhantes acusações. T. Yen Ts’ong-kien era um alto funcionário da corte Ming de Pekim encarregado das audiências imperiais. Paul. eles comem-na”1. 3 Pelliot. rasgaram os selvagens toda a pele do morto e tomando-o pela cabeça e pelos pés. 38.198. Revista do Museu Paulista. A criança está ainda viva. Foi redigida por Yen Ts’ong-kien em 24 capítulos com um prefácio datado de 1574. 1948. Jean de. Décadas da Asia. Belo Horizonte: EDUSP.. com um dente de capivara. o mantiveram à chama. Textos do século XVI. A função social da Guerra na sociedade tupinamba. João de. Então matam-na. e cozem [o corpo] a vapor. pp. vol. Vários textos chineses dessa época repetem que os Portugueses coziam crianças raptadas a vapor em recipientes metálicos antes de esfolá-las ainda vivas e de comê-las. p. cit. 5 d’Intino.s. XV. Livr. 4 Barros. retiram-na [da gaiola] e com uma escova de ferro tiram. esses canibais que gostam de comer crianças cozidas a vapor não são Tupinambás. Itatiaia. Raffaella. Ou seja. A citação lembra um texto famoso de Jean de Léry que escreve na Viagem à terra do Brasil: “chegam com água fervendo. Quando todo o suor saiu. Op. a pele danificada. Second series. T’oung Pao. Enformação das cousas da China.III. um texto chinês que pertence a uma crônica da segunda metade do século XVI. esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme. intitulada Chou-yu tcheou-tseu lou 3. IIa parte. Na metade Pelliot. e o tornam tão branco como na mão dos cozinheiros os leitões que vão para o forno2”. em particular das audiências concedidas aos enviados estrangeiros. Viagem à Terra do Brasil. 94. depois esfregando com as mãos. Lisboa.16-18. põem uma pequena criança numa gaiola de ferro e colocam-na em cima da panela e a escaldam usando o vapor para fazerlhe sair o suor. escovando. 2 Léry. Pois bem. Lisbonne: 1 18 . p. deixando-o em carne viva in Fernandes. p. Ou estas linhas do inglês Anthony Knivet: “Então. embora de maneira mais elíptica e modificando a receita: “[os Portugueses] os comião asados5”. lhe despregaram toda essa pele. livro VI. p. 293. retiram os intestinos e o estômago. racham-lhe o ventre. n. o famoso autor das Décadas da Ásia. cit. Casa da Moeda. Op. o cronista João de Barros. quem eram os Portugueses? Um povo de piratas. Raffaella. 1989. Op.. 9. fala desse rumor e procura mesmo encontrar uma explicação: “por que de gente [de quem os chineses] nunca tiveram noticias – e [nós] éramos terror e medo a todo aquelle oriente não era muito crerse que fazíamos estas cousas. Desta vez não são os Índios do Novo Mundo. Op. embora a substituição tornasse a acusação absurda. João de. “[Para eles] éramos ladrões8”. p. porque outro tanto cremos nos delles e de outras nações tão remotas. cap. e de que temos pouca noticia6”. como demonstram os famosos padrões que os navegadores lusos costumavam erigir nos lugares que abordavam e logo pretendiam ocupar. cit. Outras fontes portuguesas censuram a informação e preferem falar de “cachorros” assados e comidos pelos Portugueses. p. 8 Ibid. Ou seja. p. p. 119.. Guangdong tongahi. Franges queria dizer francos. Porém não pareciam caboclos idiotas nem visitantes inofensivos: eram vistos como espiões que queriam estabelecer-se nas terras do Filho do Céu.. 93. Para os Chineses. Para as autoridades chinesas. 7 D’Intino. 19 . trad. nota 17: Yueshan congtan. cit.. ibid. os Portugueses tinham tão pavorosa imagem na Ásia que não lhes parecia surpreendente serem acusados de antropofagia.do século XVI. As sentenças pronunciadas em Cantão em dezembro de 1522 contra os membros da primeira embaixada portuguesa os designavam como “ladrões piquenos Imprensa nacional. já que os chineses costumavam provar cachorros. como se os chineses estivessem devolvendo contra os Portugueses uma das obsessões ou um dos preconceitos mais enraizados entre os Europeus no seu trato com povos desconhecidos. mas os Europeus que são acusados de canibalismo e de barbárie7. Paul. p. 43. Percebidos como estrangeiros pouco educados. 9 e nota 17. francesa in Pelliot. p. eram uns “franges ladrões”. p. lamentava-se um dos Portugueses aprisionados em Cantão.14. 93. importunos. 6 Barros. o nome atribuído a todos os Europeus no Médio Oriente e na Ásia Medieval. tirânicos e arrogantes. os Portugueses recém-chegados na China não podiam enganar ninguém.. T’ianxia jungo shu. 10. Vejamos agora como esta anedota do canibalismo português. este pequeno detalhe da história sino-portuguesa. apesar dos preconceitos que conservamos contra nossos vizinhos. logo morrem10”.19. [que] falsamente vêm espiar nossa terra”9. Bartolomé de Las Casas tenta explicar a antropofagia indígena: para o dominicano. Las Casas fundava a sua interpretação sobre observações feitas no Novo Mundo 9 Ibid.. os antropófagos são os povos remotos do Oriente ou os naturais das Índias ocidentais. são africanos. o canibalismo americano podia ser um rito religioso. Seriam esses ladrões militarmente perigosos? Nem mesmo isso. Para muitos Europeus.do mar. como no caso dos índios Caribes ou dos índios do Brasil. porque eram bárbaros e selvagens. os aliens. A acusação de antropofagia tinha usos múltiplos: sublinhava a superioridade dos cristãos ou dos brancos e justificava a exterminação e a colonização. menos ainda como “os vencidos”. que o cronista mulato cabo-verdiano André Alvarez de Almada descreve como horríveis canibais que matam os homens “como se fossem vacas ou cordeiros”. p. Tampouco costumamos imaginar os Portugueses na pele de um povo de canibais. Os canibais são os outros Nós nunca costumamos pensar os Europeus como seres selvagens e primitivos. Vários Europeus criticaram esse discurso “colonialista”. uma perversão introduzida por indivíduos ou grupos. ou um acidente. Ibid. pode modificar a nossa abordagem da história colonial americana. Na sua Historia apologética sumaria. Para nós os canibais sempre são os outros. como os indígenas do Brasil e do México. São ameríndios. Na Europa do século XVI. A sua opinião é categórica: “não sabem pelejar [= lutar] em terra que são como pexes que como os tirão d’agoa ou do mar. como os Manes e os Sumbas da África Central. 10 20 . os Índios eram ou podiam ser canibais. já que os Chineses os consideravam péssimos soldados. 15. enviados pollo ladrão grande. p. como no caso dos índios mexicanos.. guerras que ele denunciava como muito mais bárbaras que as dos índios do Novo Mundo. Adotando uma visão global do fenômeno. politicamente poderosa. Bartolomé de. p. 211. não gastronômico.467-470. só o faziam para escravizá-las. p. 21 . não de cozinhar carne humana. II.e sobre dados recolhidos nos autores da antiguidade. anos depois. comparando as práticas indígenas com as guerras civis europeias. É verdade que eles capturavam ou compravam crianças. mas não o faziam para comê-las. Edmundo O’Gorman ed. Com as acusações chinesas. Ignorava o nosso dominicano que os herdeiros dos Tártaros. estamos confrontados a um discurso asiático. De qualquer ângulo que se considere. o debate europeu sobre a antropofagia permanecia um debate interno entre Europeus cultos que nunca eram acusados de serem eles mesmos canibais. A acusação provém de fora e não apenas enuncia-se de fora. o dominicano falava dos canibais de Java e mencionava as práticas dos Tártaros com termos que lembravam as acusações chinesas contra os Lusos11. Com as acusações chinesas. Admitia que a antropofagia fosse uma forma de bestialidade. os chineses da dinastia Ming. 187-188. para empregar as próprias palavras do defensor dos Índios. Eles gostavam de comerciar escravos em todas as partes. É óbvio que os Portugueses não eram antropófagos. T. mas lembrava que tinha sido praticada por várias nações europeias no passado e mesmo pelos conquistadores castelhanos na Flórida em situações excepcionais. Mexico: UNAM. 196. Na realidade. Apologética historia sumaria. acusavam os Portugueses de comportamentos e práticas ainda mais “cruéis e bestiais”. militar e economicamente forte. mas é produzida por uma sociedade muito antiga. Montaigne. muda tudo. elaborado e difundido por uma potência cujas forças eram naquele tempo superiores às de todos os países europeus juntos. essas acusações eram rumores espalhados pelas autoridades 11 Las Casas. eticamente admirável. I. 1967. O seu interesse era econômico. T. intervirá no debate sobre o canibalismo. Indianófilos ou colonialistas e “racistas” tratava-se de discursos exclusivamente europeus. Vários pontos chamam a nossa atenção: o paralelismo das reações entre o Novo Mundo e a China. ou seja. o escritor Saramago – é apenas a parte emersa do iceberg. Na realidade. pois os Japoneses acusaram os missionários espanhois de práticas antropófagas: diziam que os franciscanos comiam os corpos dos leprosos. Os Portugueses retidos nas prisões de Cantão aparecem como vítimas duma burocracia xenófoba.chinesas para aterrorizar as populações locais e apartá-las dos visitantes portugueses12. o que causa situações inusitadas para o especialista dos mundos americanos da era colonial: esta vez “os vencidos” somos nós os Europeus. 12 22 . 13 D’Intino. como vemos. “[aqui] toda a gente deseja revolta e vinda de Portugueses13”. os seres inferiores. Para entender a reação do poder chinês.31. a inversão das posições e a simultaneidade dos casos apresentados. Op. os selvagens. cit. Nós partimos de uma receita de crianças cozidas a vapor. Raffaella. eles eram os bárbaros. p. Um mundo ao inverso. No Novo Mundo. esta história de Portugueses canibais – de que talvez tivesse gostado o autor da Viagem do elefante. para que coman e engoliam as gentes”. De repente o velho espelho colonial que alimenta o nosso narcisismo e nossa culpabilidade pós-colonial. apoiando-se no “povo” chinês contra os mandarins. os canibais eram os invasores portugueses. o mestiço Diego Muñoz Camargo lembra que no momento da conquista os naturais acreditavam que os Espanhois traziam “grandes animais y bestias fieras y dragões. Cabe lembrar que os Castelhanos tampouco escaparam desta figura do alien devorador. Com efeito. Mas. “tomando como motivo que comen vaca”. segundo eles. para os chineses. e que continua fascinando os ex-colonizados. pois basta ler e reler suas cartas para perceber a angústia com que padeciam incriminações e humilhações. O mundo asiático inverte a Da mesma maneira. O cálculo tinha sentido.. é provável que os Tupinambás e seus aliados europeus utilizaram ao máximo a reputação de que eram temíveis antropófagos para afastar sempre que possível a ameaça portuguesa. estamos descobrindo um mundo ao inverso. torna-se opaco e incômodo. convém lembrar que os Portugueses esperavam poder conquistar Cantão. pois. será que podemos continuar a discutir questões como a da antropofagia. em muitos aspectos admirável. e sempre fortemente filtradas por eles. exatamente como David Brading esqueceu o 23 . Escassos são os trabalhos que propõem uma história colonial do continente americano considerado na sua integralidade: a última obra de John Elliott. compõem um mesmo universo histórico. mas a reduz. Nestas condições. já planetário. criado pela expansão ibérica. Ao contrário.situação americana. É fascinante confrontar as acusações chinesas com um quadro do museu de Arte antiga de Lisboa: trata-se da figuração do Inferno. A história colonial cultivou visões dualistas e redutoras do passado. da imagem do Outro. enquanto nos textos chineses são os Portugueses que preparam o banquete antropófago. os índios do Brasil e uma negra africana servem de carrascos cozinheiros. Satã e um dos ajudantes da cozinha infernal são índios do Brasil cobertos com vestidos de plumas. pois só reflete a metade dele. A pintura foi realizada exatamente em anos nos quais os Portugueses de Cantão eram tratados como ladrões. da dominação colonial. No quadro de Lisboa. Como explicar este silêncio ou esta cegueira? As historiografias “modernas” privilegiaram as histórias nacionais. principalmente quando hoje esta outra metade está se tornando a mais importante do globo? O velho espelho colonial não apenas deforma a imagem do mundo. raptores e comedores de crianças. coloniais e imperiais. Não são discursos independentes. esquecendo sistematicamente a metade do mundo. deixa de lado a América portuguesa. o discurso chinês sobre a antropofagia lusa e o discurso ibérico sobre a antropofagia indígena são contemporâneos. Ao discurso ibérico corresponde um discurso chinês. visões herdadas dos nacionalismos do século XIX. Empires of the Atlantic World. no qual um grupo de danados portugueses são torturados e cozidos em grandes panelas. pois na China os selvagens são os intrusos e os canibais são os Ibéricos. Cronologicamente. comenta-se mais uma vez a inscrição canibali que figura no lugar do Brasil sobre o famoso mapa de Sebastian Münster. The Spanish Monarchy. Sabia-se algo do Cathay de Marco Polo. a China foi descoberta e visitada pelos Portugueses nos mesmos anos nos quais os Espanhois exploravam as costas mexicanas15. Nas Quatro partes do mundo. 1991. chamado Marco Polo. Cambridge. reparar um detalhe que salta à vista.Brasil colonial em seu magnífico livro intitulado em espanhol Orbe indiano14… Mas o Novo Mundo foi também o produto das suas relações coletivas com a África. Agora queria insistir sobre o caso da China para estender mais ainda este percurso dos mundos ibéricos. Porém. Novus orbis. Brading. como sabemos. muitos historiadores brasileiros estão recuperando a história africana tão essencial para entender o passado americano.Britain and Spain in America. a China era um país tão desconhecido dos Europeus como o México. mas nada se conhecia da China dos Ming. 1492-1830. porém. Mas os americanistas costumam excluir a China da sua paisagem historiográfica. Com efeito. Elliott. Yale. John. 15 Até o início do século XVI. Empires of the Atlantic World. sem. Num artigo recém-publicado na revista Tempo sobre as imagens do canibalismo na Europa do século XVI. tive a oportunidade de explicar qual era minha maneira de ver os impérios e como se poderia revisitar a história ibérica. De maneira exemplar e única no contexto latino-americano. e logo quatro anos depois em Quelle heure est-il là-bas?. 14 24 . Contudo o mundo ibérico do século XVI era ainda muito mais extenso. 1492-1867. os Portugueses demorarão anos para compreender que a China dos Ming era o país que tinha sido visitado e observado por um mercador veneziano no século XIII. pelos cortes disciplinares e pelos etnocentrismos. sejam europeus ou latinoamericanos. Ele não pode ser reduzido às suas dimensões africanas nem atlânticas. Em outros termos. em 2004. David A. Die Nüw Welt (1540). Creoles Patriots and the Liberal State. A China foi uma das numerosas vítimas da fragmentação e da desconexão propiciadas pelas rotinas acadêmicas. 2006. The first America. parece difícil pretender analisar suas dinâmicas. suas especificidades e até sua modernidade sem reintroduzir o Islã e a Ásia na paisagem do americanista e de suas problemáticas. porém crucial na trajetória do Ocidente. a primeira tentativa oficial de penetração do império celeste pelos Europeus. “Canibais do Brasil: os açougues de Fries. esta história de Portugueses canibais é apenas a parte emersa do iceberg. Zipangu e Cathay16… Ou seja entre o México. o rei Manuel de Portugal tinha enviado uma embaixada à corte de Pequim na firme intenção de estabelecer-se nas costas chinesas. a cara chinesa. Elas tiveram lugar entre os anos 1517 e 1522. 25 . que os Europeus do século XVI achavam serem todos eles países vizinhos.a estranha proximidade entre Tenochtitlan. Dois dos maiores 16 Chicangana-Bayona. aconteceu exatamente nos anos da invasão do México por Hernán Cortés e pelos conquistadores castelhanos. Histórias paralelas Como sabemos. Tempo. um Espanhol de Cuba determinou transformar uma expedição de resgate. ou seja. apesar do silêncio generalizado dos historiadores sobre esses anos e essa conjuntura. Essas duas histórias foram paralelas e indiretamente ligadas. Elas têm muito em comum. uma incursão de saque na conquista (“na pacificação”. convém lembrar um pouco da cronologia. mais especificamente. que se chamaria Nova Espanha. Holbein e Münster (século XVI)”. a primeira embaixada portuguesa para a China. 28.165-192. a de Tomé Pires. O mapa de Münster e muitas outras fontes nos lembram que. para muitos Europeus o Novo Mundo não era mais do que a antecâmara da China. p. Estou convencido de que daqui em diante será cada vez mais difícil continuar dissociando esses fenômenos se quisermos renovar nossa compreensão da expansão europeia. Yobenj Aucardo. Para entendê-la. na Europa da primeira metade do século XVI. Por outro lado. e. Por um lado. Lembranos que a emergência da figura do Chinês é contemporânea à aparição da figura do Índio mexicano e do Índio brasileiro nos imaginários europeus. o Japão e a China. dizia ele) de um território imenso. Com efeito. o que nos levará a tomar mais a sério e em conta a outra cara desta história: a cara asiática. constituíram etapas prévias para acercarem-se das Molucas e da China. ambas realizadas no ano de 1511. pretenderam apoderar-se delas “a sangue e a fogo”. ricos e até então completamente desconhecidos.“choques de civilização” na história do mundo se produziram nesse momento. tanto Castelhanos quanto Portugueses. Os castelhanos. Assistimos ao descobrimento simultâneo de dois mundos civilizados. O futuro Carlos Quinto nunca tinha programado a conquista do México que Cortés impôs e realizou como uma iniciativa pessoal. Cortés iniciou a construção de uma armada nas praias do Pacífico para cruzar o Mar do Sul e chegar a Tidore e Ternate. ao mesmo tempo. Por isso. com os reis das ilhas das Especiarias. por seu lado. os dois povos ibéricos tiveram a oportunidade de confrontar-se com sociedades extremamente sofisticadas e. Quer dizer. Cabe lembrar também que pouco tempo após concluir a conquista do México. 17 26 . o dinheiro da coroa e do grupo conduzido pelo poderoso Cristovão de Haro foi invertido na flota de Magalhães. na medida em que todas contêm projetos paralelos de conquista e colonização. a Nova Espanha tinha-se tornado a base castelhana para organizar a ocupação das Molucas e o avanço até a China. em particular a pimenta17. Essas histórias não são apenas paralelas. ao mesmo tempo. São também ligadas e rivais. Nesse contexto. as tão cobiçadas Molucas. e o fabuloso Cathay de Marco Polo ficavam muito perto das costas da América Central. Por que são histórias ligadas? Qual foi o contexto das duas empresas? Tanto a coroa portuguesa quanto a coroa castelhana queriam se apoderar das ilhas das Especiarias. Ao contrário. a conquista de Malaca e a de Cuba. ambos. Em poucos anos. achamos uma clara ressonância entre as cartas dos Portugueses Vieira e Calvo e a segunda carta de relação de Hernán Cortés. urbanizados. eram convencidos de que o Oceano Pacífico era um lago e que as ilhas aromáticas. Tanto Manuel de Portugal quanto Carlos de Gante cobiçavam uma das maiores fontes de riqueza do momento: as especiarias das Molucas. imensos. a mesma família contribuía ativamente à expansão ibérica. que abrirá aos Espanhois as portas da Ásia. Teve um papel relevante em Malacca e Sumatra. De Cantão a Santo Domingo. no qual o feitor consignou parte das informações recolhidas sobre a geografia econômica e política da Ásia. Pires ainda não sabia que ia encabeçar a primeira embaixada portuguesa à corte de Pequim. do iceberg. e a mãe do vice-rei das Índias desde 1511. Carlos. Magalhães se familiarizou com os lugares. Outro contato chave para desemaranhar o que aconteceu nestes anos: quem achamos na recém-conquistada Malacca? Fernão Magalhães. que realizou a primeira viagem comercial para Cantão em 1514. Em segundo lugar. Rafael era nada menos que o primo de Filipa Perestrello-Moniz. um prático das coisas da Ásia. um português de origem italiana. os homens. as culturas do Extremo-Oriente. um dos textos portugueses mais fascinantes do século XVI. mandou o português Magalhães para que se apossasse das Molucas.Mas as autoridades castelhanas não esperaram a queda de México-Tenochtitlan. Em Malacca. que estava escrevendo a Suma oriental. Nas Molucas chocará com os Portugueses estabelecidos na região. É provável que ali tenha se encontrado com Tomé Pires. Pois bem. a expedição conseguirá chegar às ilhas depois de passar o estreito famoso e de cruzar o Pacífico. Diego Colón y Moniz Perestrello. Rafael Perestrello. esta vez imersa. que o discurso europeu e o discurso chinês sobre o canibalismo são constitutivos de um todo. o rei de Castela. Como sabemos. que os acontecimentos dos anos 1517-1521 marcam uma conjuntura crucial para o destino da Europa e a 27 . a parte. enquanto Cortés estava avançando para a capital asteca. o futuro traidor. Como sabemos também. a mulher de Cristóvão Colombo. um ensaio pioneiro. essas histórias relacionamse através de vários atores históricos: nos primeiros contatos comerciais entre a China e Portugal aparece uma figura intrigante. Além do comum tropismo asiático. [25] O que nos ensinam essas histórias paralelas e transoceânicas? Em primeiro lugar. seu desfecho.futura configuração do Ocidente: a criação das primeiras relações entre a cristandade Latina e duas das maiores civilizações do mundo. a preparação da conquista. enquanto a embaixada de Pires – exclusivamente apresentada na historiografia lusa como uma embaixada pacífica – escondia desde o início um projeto explícito de conquista. chinesas. castelhanas e mexicanas? Aqui estamos entrando mesmo no terreno duma história global. Uma história que permita repensar sistematicamente a história do choque entre os Ibéricos e os Ameríndios à luz dos acontecimentos contemporâneos no Extremo Oriente. As duas penetrações têm muitos elementos em comum. ou o enfrentamento militar. colonizada e ocidentalizada. Ao contrário. segundo. Trata-se. como sabemos. as penetrações ibéricas não são apenas paralelas e contemporâneas. Por que tentar a confrontação sistemática das fontes portuguesas. das suas sociedades complexas e das suas antigas civilizações. por exemplo. salvo sua conclusão. Apesar do seu peso demográfico. e depois. terceiro. Trata-se de utilizar o espelho chinês para quebrar uma série de clichês ligados à conquista do México e refletidos pelo velho espelho colonial. Que revela esse exercício de releitura? Mostra. a América pré-colombiana será em grande parte aniquilada. o deslizamento progressivo para o conflito aberto. Fique claro que não se trata simplesmente de desenvolver uma história comparada entre a China e o México. nos mesmos meses nos quais Cortés 28 . amplamente detalhado nas cartas dos Portugueses e anunciado pela tomada brutal de Malacca. Esta última etapa. de revisitar a conquista do México a partir do que nos ensina a conquista abortada da China. finalmente. o reconhecimento do terreno sob a forma e o pretexto de uma embaixada oficial ou fingida. a própria conquista. Na realidade. elas seguem o mesmo esquema: primeiro. Todos sabemos como acabou a história da América pré-cortesiana. permanecerá virtual para os Portugueses da China. no meu caso. que a famosa conquista espanhola demorou meses e anos para tornar-se conquista no sentido pleno do termo. as autoridades chinesas fecharam o império celestial aos estrangeiros antes de eliminar fisicamente os intrusos. a perspectiva chinesa. Em vez de abrirem-se aos invasores. entre junho e agosto de 1521. compensado pela vitória espanhola no México e logo no Peru – representou para a Europa e o Ocidente. ou seja. soberanos e independentes até a primeira metade do século XIX. Sabemos que os índios mexicanos consideraram os castelhanos como “teules”. os Chineses decidiram romper todas as relações com a embaixada de Pires e com os Portugueses.estava sitiando a cidade do México. ou seja. o termo indígena teules designava 29 . face à China e às Américas. enquanto se resignaram a ou escolheram a asiatização no Extremo-Oriente. e que podiam revelar-se extremamente nefastos. ou seja. Passando de uma visão bidimensional à quarta dimensão. a reexaminar o que este sucesso pela metade dos Ibéricos − fiasco português na China. índio. as percepções que tinham Chineses e Mexicanos dos Ibéricos eram bem distintas. Além disso. a tomada em consideração da outra cara do mundo nesta história nos obriga a repensar as modalidades da expansão europeia. tal como os Mexicanos. Os Europeus vistos pelos seus hóspedes É fascinante também observar as reações dos “indígenas”. Neste caso. ficando tranquilos. encontramos novamente reunidas as condições de uma história global. Pois bem. Aqui passamos do jogo habitual com apenas dois jogadores – espanhol/índio ou espanhol/ português – para uma partida mais complexa jogada com quatro jogadores: espanhol. chinês. os Ibéricos conseguiram improvisar estratégias de penetração simultâneas. porém completamente opostas: os Ibéricos inventaram e implantaram formas esmagadoras de colonização e ocidentalização na parte americana. é fascinante observar como. como seres não humanos. português. dos Mexicanos e dos Chineses. sobrenaturais. Dito de outra maneira. optando ali por uma presença clandestina ou marginal. enquanto os Portugueses eram diabos na terra do dragão! Os Ibéricos tiveram essa dupla cara que leva a revisitar a história linear e monolítica. E não lhes queriam dar outro nome. que deve ser constantemente redefinida. e também a história duma parte do globo no século XVI. Ronaldo & Bentes. p. da expansão europeia. 18 30 . Pour une histoire globale de La Renaissance.). os castelhanos teules eram ao mesmo tempo perigosas criaturas invasoras e alimento predileto dos deuses. A riqueza da categoria ibérica provém do patrimônio comum e único que representa diante do resto da Europa e da sua natureza eminentemente polimorfa. cit.. Tratado das coisas da China. Rodrigo (edit. Para os índios do México. Para parafrasear o Glauber. no noroeste de Sumatra? Ver Pelliot. Relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. Lisboa: Cotovia. 2009. ou seja. o autor do primeiro tratado impresso sobre a China. o dominicano Gaspar da Cruz. Império de várias faces. e Gruzinski. Para os Chineses. os castelhanos eram deuses na terra do sol asteca. compósita e móbil. Tampouco ibérico pode ser reduzido a uma mistura de muito Brasil com uma pitada de Oriente20. São Paulo: Alameda.as vítimas humanas que eram transformadas ritualmente em deuses para morrerem sacrificadas – elas eram os ixiptla dos deuses. os Portugueses não eram mais do que bárbaros. As fontes chinesas perdem-se em conjecturas sobre a localização do misterioso país:18 Eram os Portugueses canibais originários das ilhas perto de Borneo que eram povoadas por selvagens antropófagos? Pior ainda. como observamos em demais publicações coletivas com ambições comparativas. La guerre de Chine n’aura pas lieu. repensar a relação entre império português e império espanhol em vez de acreditar que o ibérico é apenas a justaposição de casos espanhois e de casos portugueses. 222. Op. Seria o reino dos Fo-lang-ki situado na parte sudoeste do oceano. Gaspar da. perto de Malacca? Seria localizado no sul de Java? Seria Fo-lang-ki o novo nome do país de Lambri. Paul. selvagens. explica que os Chineses chamavam os Portugueses de fancui. 19 Cruz. Como passar da história colonial à história global? Primeiro. seja triunfalista ou culpabilizadora. “gente do diabo”19. Serge. 20 Vainfas. 1997. cambiado no Brasil por escravos. hoje bem Balbuena. As histórias nacionais e imperiais raras vezes explicam ou tomam em conta o fato de que nos séculos XVII e XVIII a maior parte da prata americana acabou nas mãos da China. com toda razão. reservando sempre a posição dominante aos Europeus. hoje considerados. México. Por essa razão.Abordar a expansão ibérica como um todo enriquece e complica a reflexão sobre a expansão europeia. A nossa análise dos anos 1517-1521 no México e na China tenta responder a esta dupla exigência: privilegiarmos o ibérico e descentrarmos radicalmente o olhar. os mundos começaram a tornar-se “mundos encadeados”. Negativa ou positiva. seja para acusá-los de serem os coveiros dos povos vencidos. Porrúa: Luis Adolfo Domínguez edit. 1990. além disso. seja para exaltar a sua obra civilizadora. A maior parte dos estudos históricos na época moderna foi concebida e desenvolvida a partir de uma base europeia e de problemáticas europeias. Como ignorar as implicações do processo de mundialização que iniciou-se no século XVI. como uma das maiores consequências da expansão e da colonização ibérica. cabe lembrar. A fixação pela expansão ibérica não deixa de ser uma atitude incorrigivelmente eurocêntrica. levados a interagirem com outras sociedades e civilizações. liga profundamente o destino da América com o destino da Ásia. La grandeza Mexicana. sob o impulso dos Ibéricos? Um processo que.. Exportado através do Pacífico ou do Atlântico. Nesse período. essa visão permanece basicamente dualista já que centrada nos enfrentamentos entre vencedores (ou colonizadores) e vencidos (ou colonizados). porém esse esforço só não basta. o precioso metal propulsou a China dos Ming e dos Qing numa modernidade sui generis. 21 31 . Bernardo de. reintroduzir nos horizontes americanistas outros mundos onde prevalecem outras formas de relação. conforme a expressão do poeta novo-hispano Bernardo de Balbuena21. Ao mesmo tempo ela confirma e ilustra nossas hipóteses sobre a extensão da mundialização ibérica. dinamizadores e desestabilizadores. Ali essas montanhas de prata tiveram profundos efeitos. cabe. em segundo lugar. Leituras que passam por uma mudança de lentes. que inclui páginas magistrais sobre os inícios da Era Moderna e da expansão europeia (existe trad. 1998. Nesta fase. Sphären. que configuram uma literatura hegemônica frente a qual a produção europeia e latino-americana sobre Iberoamérica fica quase invisível. A. convém opor novas leituras dos séculos da dominação ibérica. Peter. O Novo Mundo tornou-se um elemento essencial da construção da Europa moderna e da formatagem do mundo ocidental. para não dizer insignificante. Russel-Wood. A vitória castelhana no México marcou o início de uma transformação radical do continente americano. J. 32 . The Portuguese Empire 1415-1808. combinando elementos oriundos de quatro continentes. o “trato dos viventes” foi um dos meios que contribuiu para extrair do Novo Mundo a prata que terminou nas caixas chinesas. Por isso. e sobretudo os três volumes de Sloterdijk. A essas sequelas da ainda viva lenda negra. R. hoje considerados como clássicos. como os de Bin Wong (China Transformed) e Kenneth Pomeranz (The Great Divergence). além das razões já ditas. A América. na paisagem atual da história global dominante as Américas coloniais ocupam um espaço minúsculo. a presença da América colonial é mínima e meramente passiva. Biblioteca de Ensayo Siruela). a confrontação do destino da Ásia com o destino do Novo Mundo aparece como um ponto de partida determinante para definir a natureza e a modernidade das experiências22 22 Sobre a definição da modernidade no século XVI. índios e negros escravos. O Novo Mundo aparece reduzido a uma mina fornecedora de prata e devoradora de homens. Nas últimas décadas. importantes livros amplamente difundidos. 1998/1999/2004. JHU Press. A world on the move. foi um laboratório pioneiro para a ocidentalização e as mestiçagens. Castelhana. Assim. em primeiro lugar a América ibérica. reflexão histórico-filosófica sobre o processo de globalização. Uma paisagem global Por que insistir tanto em repensar a história colonial da América ibérica nas perspectivas de uma história global? Porque.mais estudada e valorizada. analisaram e compararam as trajetórias da Europa e da China. Tanto para a implantação universal do catolicismo e do direito europeu. O processo da americanização Essas transformações correspondem a processos de americanização. Nessa perspectiva. bem mais complexos do que uma simples tropicalização23. que concluiuse com as independências dos séculos XVIII e XIX.que abrigou essa parte do mundo. Esses processos. Laura de Mello explica que “a especificidade da América portuguesa não residiu na assimilação pura e simples do mundo do Antigo Regime. os negros e os asiáticos os iniciadores de transformações decisivas para entender a mundialização de nosso tempo. de especificidades americanas no contexto planetário que se vislumbra a partir do século XVI. São Paulo: Alameda. inscrevem-se claramente numa história das mundializações que ainda não está terminada: ao tempo “colonial” trissecular sucede um tempo mais longo e ainda sempre aberto – o tempo das mundializações. estrutural e não institucional: o escravismo” (“Política e administração colonial: problemas e perspectivas”. são cruciais. A questão universal da diferença e a nossa 23 Falando da exportação do Antigo Regime nos trópicos. quanto para a criação de um universo musical mundial. Não são mais exclusivamente pontos de chegada ou cenas portadoras de uma história padecida. produtivas. pelo trabalho escravo de negros africanos. as periferias “coloniais” recebem um estatuto distinto ao daquele que costumamos a elas atribuir. 2009. alimentada pelo tráfico.. p. entendida por nós como o surgimento. africanos e ameríndios transformam-se e misturam-se continuamente. porque fizeram do espaço americano a antecâmara da mundialização atual. O governo dos povos. Enquanto na China os Europeus eram seres bárbaros. nas quais os traços originalmente europeus. captando qualidades e dinâmicas que os tornarão mundializáveis. In Laura de Mello e Souza et al. Nessa perspectiva as zonas “coloniais” deixam de aparecer como essencialmente receptoras para tornar-se áreas ativas. a formatagem americana constitui etapa obrigatória. pela introdução. na velha sociedade. na América os ibéricos foram com os índios. de um novo elemento. mas na sua recriação perversa.88 33 . intoleráveis ou só tolerados nas margens e nas periferias. ou a progressiva construção. Nosso presente nos confronta dia a dia com forças múltiplas que se desdobram entre as Américas. tampouco um presente reduzido à América Latina. é preciso que o historiador rompa fronteiras. faça um desvio. a Europa. porque sempre mais atenta aos desafios que nos rodeiam: o nosso presente já não é mais o presente dos estados-nações. É definitivamente o presente de um país emergente como o Brasil. que nos ajudem a encarar o nosso presente de maneira tanto menos antiquada quanto mais crítica. a África e a Ásia. descubra os temidos canibais de Lisboa e a receita das crianças chinesas à portuguesa. nem mesmo ao continente americano.maneira de enfrentá-la procede também das experiências americanas de mestiçagem e segregação. ou seja. Em outros termos. esta história global procura revisitar o passado com hipóteses e questões atuais. Para entender por que essa antecâmara da mundialização contemporânea se estabeleceu no Novo Mundo e não na Ásia. visite a China dos Ming. 34 . Mas é também o presente dos caboclos que vendem filmes chineses pirateados em Belém do Pará ou nas remotas beiras dos rios da Amazônia. Mostrando como a acomodação entre a ordem estadual e outros complexos normativos tem sido uma constante. não apenas nas sociedades de Antigo Regime. Yale Univ. La Découverte. Las Españas y las Naciones. para outros. Paris. De fato. Basicamente. os que creem que ao Estado compete ainda um papel regulador indispensável. Press 1998). 2010) e. Aproveitarei para falar das recentes releituras tradicionalistas do constitucionalismo oitocentista (Marta Lorente. isso é um acontecimento epocal.“Será mesmo que somos modernos? A propósito de um livro sobre o modelo pré-moderno da política” António Manuel Hespanha Universidade Nova de Lisboa O título desta intervenção é inspirado no de um livro do antropólogo francês Bruno Latour (Nous n’avons jamais été modernes. 1999). dos fracassos da modernidade. o tema reconduz-se a outro bem atual: o do alegado ocaso do Estado e do seu direito. visto agora do ponto de vista dos historiadores. Os historiadores podem esclarecer muitos dos mitos em que essa questão anda envolvida. Scott (em Seeing like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Para muitos. isso soa a tragédia. um dos temas mais atuais da reflexão de cientistas políticos e de juristas é o ocaso do direito e da regulação estadual. mas mesmo nas sociedades pós-constitucionais do séc. Essais d’anthropologa symmétrique. do qual partirei para uma interrogação da modernidade da política “moderna”. os entusiastas da sociedade civil. também. XIX. 35 . tão bem descritos por James C. confrontando-a com a política “perdida” (?) da pré-modernidade. adquirisse uma importância decisiva. Las Españas y las Naciones. O impacto da Constituição de Cádis na história política e constitucional da América Latina. com que os conflitos de competência não pudessem ser resolvidos por atos de governo ou de administração. como corpo e não como instrumento pontualmente dependente da lei. Cádiz. o corpo jurisdicional. ainda que abaladas pelas reformas iluministas. contribuíram muito eficazmente. 2007. mas antes por atos judiciais. Lorente. tanto ao nível dos estudos empíricos como no plano da interpretação teórica. Isso não quer dizer que as sociedades latino-americanas fossem mais Garriga. se sobrepusesse à Nação atomizada em indivíduos isolados. com que os estatutos tradicionais das repartições e dos oficiais inviabilizassem a pirâmide hierárquica da administração. 2010. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Dois livros recentes de Marta Lorente sobre o constitucionalismo de Cádis1: A constituição não consegue destruir a pluralidade de jurisdições que vinha do Antigo Regime. Isso fazia com que a nação histórica. Por isso. com que as jurisdições locais dos corpos competissem com a jurisdição da Nação. de sentido centralizador. A. Dois livros de uma historiadora do direito. dando a voz a quatro livros que. “naturalmente” organizada em corpos. um de um antropólogo e outro de um antropólogo da ciência e filósofo. La constitución jurisdiccional. e justamente em virtude de alguns dos fatores referidos. como instância de definição da ordem constitucional e jurídica vigente.A política perdida está realmente perdida? Alguns elementos para uma resposta Apresento este tema de uma forma menos habitual. LORENTE. Carlos. Marta. 1 36 . o argumento é o de que as características tradicionalistas da nova lei fundamental se adaptou aos marcados traços corporativistas das sociedades sul-americanas. 1812. para o ocaso da pré-modernidade e a instalação real da modernidade. Marta. Em resumo. recentemente. algumas das novas normas constitucionais (ou normas para-constitucionais. a explicação de seu sucesso americano foi sim o fato de na América Latina − um pouco mais do que na Europa − os modelos mentais corporativistas combinados com o fato político-social da existência de sociedades hierarquizadas. 2 37 . a possibilidade − aberta pela Constituição de Cádis − da criação de novos municípios em todos os municípios com mais de mil “almas” desencadeou uma revolução municipal. combinada com a multiplicação de nódulos corporativos de mais baixo nível. e que. como as relativas ao processo eleitoral). empregados domésticos. Those who were deemed to have African origin could only become citizens by special valuable actions. na verdade funcionavam como um reforço de algumas características corporativistas da América Latina espanhola. Como enfatiza Marta Lorente. Um desses níveis menos visível é a compatibilidade da nova Constituição com um reforço político das elites municipais. já bastante bem identificadas. 158). a partir de meados do século XVIII (p. por causa da distância do centro e das debilidades do aparelho administrativo periférico da coroa. literalmente contidas na Constituição: mulheres. Portanto. da cidadania. quer na Constituição. art. 22. O que ela pretende é desvendar outros níveis de sobrevivência de um corporativismo menos visível. as normas constitucionais Cádis foram geralmente favoráveis a uma transição suave do regime colonial para independências políticas elitistas e conservadoras. “castas”(africanos)2. não cessaram de aumentar o seu poder até o fim do Antigo Regime (e para além disso). dominadas por elites poderosas.próximas das fontes doutrinárias do corporativismo medieval e moderno do que os seus modelos inspiradores Europeus. Por um lado. quer no seu uso na América. naturalmente dominados pelas elites subalternas. Marta Lorente não está particularmente interessada nas restrições. um tema que ultimamente desperta o interesse das correntes mais inovadoras da historiografia latino-americana. mesmo que essa não fosse a vontade da ala mais progressista dos membros das Cortes. com a pequenez dos seus espaços. Como os fracassos de homogeneização e racionalização do modernismo (na política. mas formais dialogais e abertas de entender o mundo. na religião. no direito. Scott sobre os fracassos da modernidade3. A questio e o iudicium constituíam os procedimentos intelectuais centrais para decidir. etc. Mas também das divinas. A própria abordagem gnosiológica das coisas não buscava certezas certas e universais. nas políticas linguísticas. dos poderes e dos pontos de vista.levou a uma exclusão de todas as pessoas “impróprias” para a governança (tal como acontecia no Antigo Regime). Em todo esse Seeing like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Os eleitores eram objeto de uma seleção prévia por notáveis locais. com o caráter local (em múltiplos sentidos) das soluções. Um livro de James C. na organização da agricultura. Press 1998 3 38 . ou não se chamasse Sic et Non. B.) se explicam pela sua ignorância de uma escala de gestão adequada à variedade das coisas humanas. Yale Univ. em geral. A falta de qualquer tipo de controlo das entidades superiores abriu um espaço enorme para os notáveis locais imporem uma representação própria. o que . laicos e eclesiásticos. o célebre tratado teológico de Pedro Abelardo (1079-1142). com a natureza imbricada das competências. em qualquer coisa que fosse (quaestiones quodlibicae).Por outro lado. nas abordagens gnosiológicas. mas também nas questões complicadas da física e da matemática ou. induzindo um processo de refinamento sucessivo de representação num sentido elitista. sobretudo o mundo das coisas humanas. por falta de qualidade de cidadão ou de vizinhos. com a pluralidade da sua malhe jurisdicional. na gestão das florestas. Além disso. a eleição era organizada em fases progressivas. na política. Tudo isso os aproxima muito do mundo tradicional. Tudo isso somado à exclusão das camadas subalternas da população nativa.de acordo com os exemplos dados no livro . todo o processo eleitoral promoveu a supremacia das elites instaladas. 1998. 6 Com uma recente passagem pela antropologia do direito: La fabrique du droit. Arbitrium. de práticas. para extensões sul-americanas. Roma-Bari. Saggio Sul Diritto Giurisprudenziale. 1995. 2002. Laterza. aux particuliers du corps des conseillers d’État mais surtout à la diversité des ressorts qui permettent de bien juger” (ibid. Milan: A. na verdade. 5 Sobre a qual Francisco Suarez. Un aspetto sistematico degli ordinamenti giuridici in età di diritto comune. Massimo. V. A unificação desta constelação dispersa de conhecimentos. mas publicado em França (Lyon: Horatius Cardon. Giuffrè. Une éthnographie du Conseil d’État. escrito porventura em Coimbra. de pontos de vista. que hoje há quem se continue a perguntar se isso foi uma aquisição. ainda que esse mesmo estivesse envolvido naquela complicação da Trindade5 e fosse servido por nove categorias de anjos. ou seja. Casuísmo y sistema. bem se esforçou no seu Tractatus de Deo Uno et Trino. 4 39 . 1967. ele também. de uma forma de tal modo forçada. era levada a cabo mediante uma referência a uma natureza unificadora (a uma criação unificadora. Luigi. Meccarelli. Discretus – de onde colhemos a palavra discricionariedade – significa distinção. uma perda e se realmente teve lugar. Anzoátegui. Buenos Aires: Instituto de Investigaciones de Historia del Derecho. Paris: La Découverte. de normas. É a modernidade que reduz a modernidade. pelo seu tratamento (formas de escrita e de uso da palavra) e por un contínuo confronto com a produção de objetividade nas ciências exatas: «une grande attention est portée dans cette étude aux actes d’écriture.. Lombardi. Indagación histórica sobre el espíritu del Derecho indiano. E aqui chega o momento de falar do livro de Bruno Latour. L’ordine giuridico medievale. 1992. “localização” das soluções. como hoje tendemos a entender. Paolo. Milano: Giuffrè. sob a égide de um Deus único. pôr à parte. central. baseada na análise minuciosa do tipo de dados com que lidam as decisões do Conseil. também. não correspondia à irracionalidade.processo se infiltrava o arbitrium4 do decisor – que. separação. à la fabrication et manipulation des dossiers. aux interactions entre les membres. de instituições. Victor Tau.). Grossi. mas uma aferição mais sutil e mais adequada da regra válida para aquele caso. Um livro que se define como uma peça do “seu programa de antropologia sistemática das formas contemporâneas de «dizer a verdade» [véridiction]” (contra-capa). um conhecido antropólogo da ciência6. 1607). cuidadosamente definidas). 9 Análise científica da sociedade. no entanto. estão coisas em si mesmas. Se você lhes disser que somos livres e que o nosso destino está nas nossas próprias mãos. Latour. impossível de manter e incompatível com a constante construção de híbridos. e que você deve manter suas mãos fora dela. Este é o fundamento de sua definição da Constituição moderna: • a natureza está fora do alcance do homem. Latour descreve essa combinação da impossibilidade com a hipocrisia com uma frase significativa: “Se você os critica [os cientistas]. eles irão demonstrar que é ela transcendente. Nous n’avons jamais été modernes. análise social da ciência. procurando conferir a este corpo a solidez das coisas naturais Se você se virar de repente.. • Deus é expulso das ciências sociais e políticas. de pensar em temas. limitando-se a ciência a descobrir os seus segredos. a separação entre coisas e sujeitos. 8 I. Essais d’anthropologa symmétrique. eles irão mostrar-lhe que nunca confundem as Leis da Natureza com a inevitável liberdade humana. eles vão aproveitar isso para transferir milhares de objetos da natureza para dentro do corpo social. Se você objeta que eles estão sendo hipócritas. dizendo que a natureza é um mundo construído por mãos humanas. à direita. embora permaneça como fonte imanente (embora cientifica. acolá. Um livro de Bruno Latour sobre o caráter problemático da nossa modernidade7. Embora ambos os processos estejam intimamente ligados. o seu resultado é uma separação da natureza (e ciência) em relação à sociedade (e à vida quotidiana). posso?’ Eles vão parecer gelados. a fim de os “explicar” ou os “dominar”9. que a ciência é um mero intermediário que permite o acesso a Natureza. Latour é a caracterização da modernidade por um duplo processo de “purificação” e “hibridização”.e. separação porém atenuada (ou quase anulada) pela construção (escondida. à esquerda. 1999. Paris: La Découverte. como se não se tivessem movido: aqui. ou entre os mundos humano e não humano. 10 Algo. do discurso e do social. está a sociedade livre de falar. Bruno.e politicamente irrelevante) de intuições espirituais11. pois todos os fenômenos naturais se tornam em objeto de vários discursos e práticas. reprimida) de todo o tipo de híbridos8 de natureza-cultura. paralelamente com a correlativa separação entre os reinos do real. (p. e análise discursiva das duas. • estes dois mundos (natureza e cultura) devem ser mantidos afastados10. como no jogo infantil ‘Mãe. A pedra-chave do livro de B. 54) 11 Do ponto de vista espiritual foi reinventado: o Deus todo poderoso podia ter descido ao cora7 40 . Se você acreditar neles e direcionar sua atenção para outro lugar. valores e de sinais”. • só o homem constrói a sociedade e decide do seu próprio destino.C. com ar inocente. eles vão-lhe dizer que a sociedade é transcendente e que as suas leis nos ultrapassam totalmente. dos poderes. 12 V. World Bank. embora tenha tido precursores e extensões geográficas. 41 . 14 Sem ignorar que a globalização se faz à custa de processos de localização – “glocalização”.abstract. seres humanos e coisas. O livro de James C. outras. se desenvolve num cenário mais preciso – o mundo ocidental entre os finais do séc. nota 11. por outro. ção dos homens sem intervir em nada nos negócios externos desses. onde a tal divisão entre natureza e sociedade. Sugiro que estas constantes estão duplamente “localizadas”. Latour propõe para o que ele chama a não-modernidade (p. se encontra também noutras culturas (tradicionais. Shalini. 43 ss. temporal e espiritual. em http://csi. Refiro uma – “a da dimensão pluralista das ordens que nos comandam. elas teriam um lugar – a Europa do Sul e as suas extensões ultramarinas. não existe. de nós mesmos”. elas teriam uns tempos – a pré-modernidade e a pós-modernidade. é com isso que a minha temática de inventariar a estranheza do discurso jurídico e moral pré-moderno não tem como objetivo a recuperação da pré-modernidade para algum projeto jurídico do futuro. Assim que a “grande divisão” entre as constituições moderna / ocidental e pré-moderna/ histórica oriental é também um produto da modernidade e uma condição de sustentabilidade de sua constituição. enquanto que a modernidade. Realmente. não modernas). umas superiores. das normas. Insisto apenas em que nele há algumas caraterísticas que fazem uma ponte por sobre a modernidade. por isso.. Cf. a “constituição” da modernidade nunca foi realmente muito diferente da Constituição indiferenciada pré-moderna.Por causa de suas contradições ou ficções12. “Glocalization of Law: Environmental Justice. XVIII e a atualidade.. o destacar das semelhanças entre pré-modernos e pósmodernos (ou não-moderno) e a parte de direito no resgate do legado da prémodernidade. simplesmente. 61 ss. v. Scott mostra que a pulverização dos espaços.sagepub. embora a globalização a esteja por ora estendendo14. Por um lado. 13 Para a distinção. 134 ss. Randeria. 138 ss. não estamos tão interessados na constituição que B. NGOs and the Cunning State in India”.com/content/51/3-4/305. Creio que isso talvez deva ser problematizado.)13. O nosso foco é. camponesas ou. das técnicas. De momento. paradoxalmente. outras alheias. mais do que os dos Estados. Creio que. no governo elitista ou carismático da sociedade. a desconstrução dos mitos sagrados da modernidade já é. na verdade. o gigantismo e impessoalidade do Estado. Mas ajuda. na onipotência dos juízes. a perda de sentido de comunidade. de regular. mesmo quando não é recuperável. a principal utilidade desta comparação entre pré-modernidade e modernidade é a de poder dar eventuais sugestões para ultrapassar os fracassos da modernidade jurídica – como o hiper-individualismo. A pré-modernidade pode não dever ser restaurada em muitos aspectos: por exemplo. a alienação do direito (a colonização da vida quotidiana pelo direito burocrático). Numa época de poderes concentracionários – que hoje. 42 . na desigualdade jurídica das pessoas. ou as cataratas de senso comum debitadas pelos meios de comunicação de massa −. em si mesma. a introduzir um saudável relativismo nos nossos dogmas políticos e jurídicos. uma inestimável missão da história. os livros de Marta Lorente mostram que os projetos de modernidade jurídica estiveram largamente hipotecados a marcantes legados da pré-modernidade. são os das entidades supranacionais ou globalizadas. de organizar. a conversão da natureza num objeto disponível e meramente funcional. sobretudo. na menorização das mulheres. mas.Por sua vez. a submissão absoluta dos deveres aos direitos. deixa a lição da inevitável mutabilidade e pluralidade das formas de conviver. PRIMEIRA PARTE A Igreja Católica e o Império . . Rio de janeiro. Topoi. O Rio de Janeiro da pacificação: franceses e portugueses na disputa colonial. As alianças entre os dois grupos colocavam em risco o controle português sobre a região sul da América e solapavam as bases do Tratado de Tordesilhas. p. 2000. séculos XVI e XVII. o corso. ver FRAGOSO. 45-122. salientou a importância dos jesuítas para a efetiva dominação lusa: “Mais do que simples coadjuvantes.3 MENDONÇA. 3 BICALHO. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura. 1 45 . 1. Turismo e esportes. os jesuítas foram atores fundamentais na implementação do projeto expansionista luso”.Os Jesuítas na Capitania do Rio de Janeiro e suas atuações no estabelecimento e na consolidação da cidade Marcia Amantino Universidade Salgado de Oliveira A fundação da cidade do Rio de Janeiro em 1565 está ligada diretamente às atitudes tomadas pelos representantes da coroa portuguesa contra grupos de franceses e de índios Tamoios que não só impediam a fixação de colonos como também facilitavam o acesso às riquezas contrabandeadas pelos primeiros. n. 2 Sobre o papel das guerras de conquista e a relação dessas com a formação das elites fluminenses identificadas como conquistadores. Maria Fernanda. a conquista e a “peçonha luterana”. Paulo Knauss de. São Paulo. 27 (1): 2008. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro. 71-72. 1999. típica atitude do Antigo regime português ao lado do expansionismo católico2. p. História. essa história tem outro vértice que normalmente é deixado de lado nas análises sobre a fundação da cidade: a Companhia de Jesus e a atuação que seus religiosos tiveram ao lado das autoridades e o controle que exerceram sobre grupos indígenas. alicerçada nas ideias de que a conquista da baía de Guanabara propiciou aos envolvidos no processo a obtenção de mercês régias.1 Entretanto. auxiliando nas etapas de conquista da região. 29-50. João. p. A França Antártica. bem como questionavam a própria legitimidade da expansão ibérica baseada no expansionismo católico. Maria Fernanda Bicalho. 6 OLIVEIRA. p. ou poucos. Maria de Deus Beites. Tese apresentada à Universidade Estadual de Campinas. de autoridades e eram consultados por eles em assuntos políticos. cujas terras viriam posteriormente a formar a capitania do Rio de Janeiro.5 Desde o início do século XVI que franceses percorriam a costa da América portuguesa em busca de pau-brasil. os franceses travaram contatos com os Tamoios. Juan Carlos. nas áreas do entorno da Baía da Guanabara e no vale médio do rio Paraíba do Sul. A Companhia de Jesus estava inserida nessas estruturas e em suas redes até mesmo por suas próprias características supranacionais. Nanci Vieira de. poderes e contactos culturais. eram os que questionavam suas atitudes. pelo menos. é importante ressaltar que os religiosos eram homens que conviviam no interior de sociedades específicas e que estavam sob o domínio de diferentes coroas.4 Todavia. 2009. 144. 1987. identificados como Tupinambás e pertencentes ao tronco linguístico Tupi. de governadores. Ao percorrerem o litoral das capitanias de São Tomé e de São Vicente.6 Somente nos anos de 1547 e 1548 foram 14 ou 15 embarcações francesas a aportarem na região de Cabo Frio trazendo em suas cargas MANSO. Buenos Aires: Ediciones de la Flor. Garavaglia assinala que a ordem manteve uma relação estreita com o poder secular e religioso. Macau: Universidade de Évora e Universidade de Macau. p. colocando seus homens ao lado ou. 55. sociedad y regiones. animais e objetos exóticos que levavam para as principais cidades francesas. Eram confessores de reis. 2002. ainda que adaptadas às realidades locais. A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): atividades religiosas. Suas práticas de convívio com esses povos. econômicos e estratégicos e em decorrência disso muitas vezes inspiraram medo nos demais e ninguém. 4 46 . Esses indígenas ocupavam as terras que iam da Baía da Ilha Grande até a Ilha de Santana. podem ser identificadas mais pelas semelhanças do que pelas diferenças nas diversas partes do mundo onde estiveram.A ordem inaciana atuou sistematicamente na colônia ao tentar exercer o controle sobre suas populações através do cristianismo e da formação de súditos leais e cristãos. 5 GARAVAGLIA. muito próximos às pessoas essenciais ao sistema. Economía. São Barnabé: lugar e memória. Carmem. não foi suficiente para impedir as constantes entradas e permanências de franceses mais ao norte dessa região. Estudo histórico. Lisboa: Edição da Comissão Nacional das comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro.10 Tentando aumentar o controle sobre tão vasto território. Ouro vermelho: a conquista dos índios brasileiros. 1. mas que ele. 43-48. Para conseguirem se manter os franceses contaram com o trabalho dos índios aliados. E assim. Explicava que as embarcações que saíam de São Vicente carregadas de açúcar eram atacadas e queimadas por corsários franceses e naus portuguesas eram perseguidas ou aprisionadas transformando a região sul da América portuguesa em área perigosa aos interesses lusos. vizinha de São Vicente. Rodrigo Ricupero. o donatário da capitania de São Tomé. na capitania da Bahia. advertia ao rei de que se não socorresse a região em breve todos perderiam suas vidas e fazendas. p. Luiz de Góis. espadas e espelhos destinados à realização de trocas com os indígenas e voltando para a Europa carregados de pau-brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 10 SERRÃO. Paulo Knauss de. Tomé de Souza.ferramentas.9 A presença de um pequeno núcleo urbano português. ao elencar uma série de objetivos do Governo-geral. 9 HEMMING. Dois anos depois. 7 8 47 . GRUZINSKI. BERNAND. o primeiro governador– geral. p. o padre jesuíta Manuel Nóbrega e mais alguns companheiros.7 Nas suas inúmeras viagens. mas também escravizaram os inimigos deles que eram obtidos nas guerras inter-tribais que ocorriam na região. p.8 Alguns. inclusive. p. 1965. denominado de Vila de São Vicente. 191. História do Novo Mundo: as mestiçagens. Joaquim Veríssimo. aponta para o fato de que. Junto com ele. 71-72. perderia a terra. 2006. era Pero de Góis quem escrevia ao rei afirmando que a região era “a maior escala de corsários”. tornando-se intérpretes e mediadores culturais ao desposarem as índias e gerarem filhos mestiços. Serge. em 1549 chegou a Salvador. 492. se recusaram a abandonar sua vida com os índios para ficar com Villegagnon e os demais franceses dentro da fortificação quando essa foi erigida a partir de 1555. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Vol. O Rio de Janeiro da pacificação. o monarca. fundada em 1532. 2007. alguns franceses permaneceram entre os índios. John. O Rio de Janeiro no século XVI. em 1548. “dentro do MENDONÇA. Lisboa: Instituto de Intercâmbio Luso-brasileiro. criando ou consolidando as bases para que a própria colônia pudesse garantir sua segurança”. A formação da elite colonial: Brasil. p. como junto aos colonos ou às autoridades. era imprescindível a imposição da justiça e da centralização. apesar de não terem conseguido desembarcar no continente por causa dos Tamoios.1630. 11 48 . Rodrigo. Belo Horizonte: Itatiaia. “o desenvolvimento das estruturas produtivas. do governador Tomé de Souza e de algumas centenas de homens. 1530-c. acompanhado de alguns padres. o padre Nóbrega identificou que era necessário o estabelecimento de uma cidade para proteger a parte ao sul da colônia e para isso era necessário expulsar os mercadores estrangeiros que ali estavam realizando transações com os índios. 10 de março de 1553.12 De lá seguiram seu rumo. Cartas do Brasil. Os padres. 2009. marco e essência da ordem. estabeleceram uma pequena aldeia de índios Temiminós na chamada Ilha do Governador. assim.13 Em 1555. mas em vários momentos explicaram ao rei e aos superiores que as capitanias de São Vicente e do Espírito Santo estavam muito enfraquecidas e não teriam como impedir qualquer ataque.11 A presença atuante dos jesuítas tanto em relação aos índios. 13 NÓBREGA. facilitando. São Paulo: Alameda. os receios das pessoas que conheciam a região. Nóbrega e a fundação de São Paulo. São Paulo: Edusp. 227. que estavam indo para São Vicente. Assim que chegou a Salvador. p. 12 LEITE. quer fosse de índios inimigos ou de estrangeiros. sua RICUPERO. derrotar os inimigos externos e acabar com a instabilidade reinante ao longo da costa. Manoel da. 107. Explicavam ainda que o estabelecimento de um núcleo populacional forte impediria que outras coroas europeias tentassem se apossar da região.” Para tanto. [era necessário] derrotar a resistência indígena. Carta de São Vicente. Serafim. 1988. c. esteve sempre muito próxima a todos esses quesitos de ordem prática e política. 13-19. ele. 1549-1560. p. foi marcada claramente por essas mesmas preocupações. entraram na Baía de Guanabara. A catequese. 1953. Em 1552.contexto de defesa das terras. 49 . fundaram uma fortificação na Baía de Guanabara. Paulo Knauss de. não necessariamente por eles serem considerados aliados ou inimigos. Segundo Paulo Knauss de Mendonça. com o apoio militar dos Tamoios. que chegaram à Capitania do Rio de Janeiro durante as tentativas de expulsão dos franceses na segunda metade do século XVI. tiveram um papel decisivo neste contexto de criação de uma cidade 14 MENDONÇA. Os jesuítas. a França Antártica servia antes de tudo “para garantir uma parcela do mercado colonial de especiarias” para a Coroa francesa. a ocupação da Baía de Guanabara pelos franceses era um projeto que visava garantir. mas também em função de inimizades seculares entre os próprios grupos de índios que viviam na região. Tentando retomar a região. O Rio de Janeiro da pacificação. Ainda segundo esse autor.14 O apoio que havia sido dado por alguns grupos de índios Tamoios à permanência dos franceses na região foi essencial e. governador-geral do Estado do Brasil. no dia 15 de março de 1560. Mem de Sá. esta não deu todo o apoio necessário à manutenção do projeto e em fins deste século. então. 61. Estava oficializada. a presença dos inimigos em terras portuguesas. p. As alianças feitas e desfeitas entre os diversos grupos entre si e com portugueses e ou franceses foram peças essenciais no intricado processo de conquista da Baía de Guanabara. Essa proposta era totalmente contrária às monarquias ibéricas que queriam manter para si o domínio marítimo e dos povos coloniais. por problemas internos. rapidamente. por parte da Coroa francesa. Era o início da derrocada do projeto francês que questionava a divisão do Novo Mundo entre as coroas de Portugal e Espanha e cuja implantação da colônia intitulada de França Antártica em 1555 era apenas uma de suas bases. a Baía de Guanabara se viu dividida entre os que apoiavam os portugueses e os que estavam ao lado dos franceses.fragilidade e importância estratégica para o reino foram concretizados: os franceses. liderou o ataque ao forte Villegagnon na Baía da Guanabara. Entretanto. os conflitos no interior da colônia colocaram em lados opostos católicos e protestantes franceses. a liberdade dos mares (maré liberum). MENDONÇA. p. 20 ANCHIETA. a Virgem Maria e São Sebastião acudiram as tropas. de dois tipos de inimigos que então se aliam – hereges (“huguenotes”) e pagãos (“índios”.na Baía de Guanabara. na mesma carta endereçada ao Cardeal D.16 De acordo com Baeta Neves. leigos e religiosos)”. p. Petrópolis: Vozes. Há informações em cartas trocadas com superiores18. Como dois dos variados objetivos da criação da Companhia de Jesus eram impedir o avanço do protestantismo e promover a catequese de pagãos. 17 NEVES.. a “invasão francesa-protestante é uma rara conjunção de duas “guerras”. afirmava que Mem de Sá havia conseguido expulsar os franceses “todos luteranos”. p. 1984. p. ainda que em menor número e em vias de serem derrotados pelos Tamoios e franceses. Em vários momentos. Nóbrega. Na continuação de seu texto. Paulo Knauss de. Auto de São Lourenço. São Paulo: Loyola. Henrique. 1999.15 Os jesuítas identificaram a luta contra os franceses e sua necessária expulsão como uma guerra santa. José de. Crônica da Companhia de Jesus. Simão de. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Cartas. e segundo soube deles mesmos e pelos livros que lhes acharam muitos. em crônicas19 e no Auto de São Lourenço20 de que durante as batalhas os aliados portugueses. O Rio de Janeiro da pacificação. 72. 1977. MENDONÇA.17 Os relatos jesuíticos desse momento e mesmo depois demonstraram o papel da religião nesses fatos. a situação se prestava bem aos seus interesses. na qual o protestantismo precisava ser derrotado para a imposição do catolicismo nas terras que pertenciam por direito ao rei português e se “esqueceram” que havia também católicos no interior do grupo. São Paulo: Martins Fontes. protegendo os homens e tocando fogo nas embarcações inimigas. 18 ANCHIETA. 19 VASCONCELLOS. Luiz Felipe Baeta. 226. p.. 15 16 50 . O Rio de Janeiro da pacificação. vinham a esta terra semear estas heresias pelo gentio”. O Combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. 1978. Paulo Knauss de. 227. apesar de reconhecerem os méritos de Mem de Sá e das tropas. demonstrava que eles “seguiam as heresias da Alemanha principalmente as de Calvino. José de. 168-169. pediram a intercessão dos santos e foram atendidos. ao relatar a conquista da fortaleza francesa. 48. Os jesuítas. inimigos) – contra a cristandade (portugueses. V. Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira). deveriam ser escravizados ou mortos em embates nas chamadas guerras justas.21 Em junho de 1561. bailando e cantando com eles.creditaram a vitória aos desígnios divinos. caso se mostrassem realmente intransigentes com relação à catequese. Dissertação de Mestrado. bebendo. os problemas para os jesuítas iam além dos índios que já mostravam que não iriam facilitar o trabalho de catequese dos padres. Locus. os franceses que viviam nestas terras levavam uma vida Já não somente hoje apartada da Igreja católica. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional. Além do mais. Mas estes ainda eram vistos como criaturas boas e que estavam apenas sendo ludibriadas por seus líderes e pelos hereges calvinistas. LUZ. referindo-se aos franceses estabelecidos na França Antártica que “enviaram muitos meninos a Calvino e a outras partes para que. só com uns calções. 2010. vivem conforme aos Índios. voltassem a terra”. Serafim. como uma solução para os problemas enfrentados com a catequização dos índios. 22 LEITE. sécs. XVI-XVII. o padre Nóbrega escrevia ao Geral Diogo Lainez informando-o sobre uma série de fatos e. mas também feita selvagem. andando nu ás vezes. adornando-se com as penas dos pássaros. a presença dos “franceses hereges” que se comportavam de maneira errada era um problema de muito maior envergadura. Revista de História. p. jovens indígenas completamente cristianizados e que não voltariam às suas práticas habituais. Seropédica. CARDOSO. 21 51 . dentre eles. Guilherme Amaral. M. Nóbrega acreditava que os jesuítas também deveriam escolher alguns meninos e os enviar para os colégios da Europa porque assim teriam no retorno desses escolhidos pessoas capazes de entender a língua dos indígenas e ao mesmo tempo. e finalmente matando contrários. ensinados em seus erros. Para o padre José de Anchieta. sugeria que copiassem o que haviam feito “uns hereges franceses que povoaram certa terra do Brasil”. Emblema sagitado: os jesuítas e o patrocinium de São Sebastião no Rio de Janeiro. Para a moral cristã. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. comendo. pintando-se com suas tintas pretas e vermelhas. 1940. 7(1):63-78. Os justos fins da França Antártica..108-109. 2001.22 Entretanto. p. 1988. em 1560. 23 52 . era anterior ao estabelecimento da colônia e perdurou após a sua destruição. José de.108. Rio de Janeiro: Itatiaia. as embarcações de afastavam do continente africano e chegavam ao litoral da costa ANCHIETA. Mem de Sá e os demais representantes da coroa portuguesa sabiam que era necessária a retirada dos franceses porque não somente era uma afronta ao poder da metrópole. Célia Cristina da Silva. 34.segundo o rito dos mesmos índios. Aos que atrapalhavam a colonização e a catequese. p. fragmentos históricos e sermões. 1995. não significou que tivessem resolvido todo o problema. 25 LEITE. Belo Horizonte. Anchieta pregava que. Belo Horizonte: Itatiaia. a questão principal.23 A expulsão desses hereges. De acordo com Rodrigo Ricupero. a segurança desse ponto do litoral era importante para garantir a navegação rumo ao Oriente porque. Entre a cruz e a espada: jesuítas e a América Portuguesa. era preciso “domar” os Tamoios e estabelecer aldeamentos para os índios pacíficos e aliados. 2000. vol. mas também porque corria o risco de eles perderem o controle sobre uma região importantíssima para o abastecimento das embarcações que seguiam para o sul da colônia e para a Rota do Cabo. “Se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira. e tomando nomes como eles. de maneira que não lhes falta mais que comer carne humana que no mais sua vida é corruptíssima. em função dos regimes de ventos. na qual. Cartas: informações. São Paulo: Edusp. como os da região de Piratininga. História da Companhia de Jesus no Brasil. p. Serafim. mais que em nenhuma outra. Dissertação apresentada a Universidade Federal Fluminense. destruído o povoado francês. a conquista dos índios e a fixação dos colonos católicos permitiriam cumprir outro objetivo da Companhia que era o estabelecimento de um reino cristão na América portuguesa. 24 TAVARES. 1. não há melhor pregação do que espada e vara de ferro. a presença de franceses na região e seus contatos com os Tamoios. 291. com que sejam postos debaixo do jugo. com a ajuda de alguns grupos indígenas que já estavam aldeados pelos jesuítas em outras capitanias. ou seja.25 Apesar dos portugueses terem. é necessário que se cumpra o compele eos intrare”. Na realidade. porque para este gênero de gente.24 Para isso. p. p. 26 27 53 . Mem de Sá e seus seguidores iniciaram uma campanha de guerra contra as tribos dos Tamoios que continuavam a comercializar com os franceses ao RICUPERO. Serge. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. mas também receava-se que a partir de pontos específicos desse litoral. 95. A História do Rio de Janeiro. Atacavam também os aldeamentos jesuíticos e os grupos de índios tupiniquins. Maria Fernanda Batista. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Segundo Bernand e Gruzinski. 2003. p.29 Depois de ter destruído a estrutura da França Antártica. Além disso.27 Logo. A formação da elite colonial. os invasores conseguissem controlar as rotas do Rio da Prata. ENDERS. Espírito Santo e São Tomé. Rio de Janeiro: Gryphus. aliados dos portugueses. 28 Sobre a presença desses estrangeiros na capitania do Rio de Janeiro ver o capítulo 1 da obra de BICALHO.26 A presença de estrangeiros colocava em perigo o domínio não só sobre essa área. sabia que para isso a pacificação dos índios era essencial na medida em que eles controlavam as terras e consequentemente. Armelle.28 Mem de Sá. 29 BERNAND. Apesar de haver poucas pesquisas demonstrando o papel desempenhado pelos indígenas no processo de ocupação das terras americanas. “a resistência indígena ergueu um obstáculo mais insuperável ainda [para a colonização] que a falta de colonos”. 18.brasileira. essa era uma área estratégica que precisava ser mantida a qualquer custo. Rodrigo. diferentes grupos indígenas atacavam as propriedades dos colonos demonstrando que não cederiam suas terras facilmente e nem admitiriam a escravização de seus parentes. as riquezas que delas poderiam resultar. que tinha como um de seus maiores objetivos fazer com que o controle real se estabelecesse em definitivo nas terras da América portuguesa. GRUZINSKI. Carmem. organizados em uma espécie de confederação. com frequência. 482. Os Tamoios. 2008. Essa situação ocorria também em diferentes partes da América e no Rio de Janeiro não foi diferente. alguns dados já apontam para significativas políticas de oposições ou de negociações entre indígenas e europeus. impediam o estabelecimento definitivo dos colonos nas capitanias de São Vicente. História do Novo Mundo. Nóbrega e Anchieta conseguiram o sucesso nessa empreitada porque souberam jogar com os conflitos e diversidades culturais que marcavam os diferentes grupos envolvidos na questão e eram profundos conhecedores dessas tradições. Cartas. haviam se rebelado contra eles. Estácio de Sá. A ideia era selar um pacto de não agressão e os índios se comprometerem a não mais atacar os aldeamentos jesuíticos. porque os franceses que tratam com eles lhas dão em tanta abundância assim roupas. que até agora foram nossos amigos. O grupo Tamoio aceitou porque sabia que. como ferramentas.. queriam eles agora com o mesmo favor [dos portugueses] ser vencedores e vingar-se bem deles.30 Nesse mesmo ano. mas o desejo grande que tem de guerrear com seus inimigos Tupis. 54 . Nóbrega e Anchieta partiram em direção às aldeias dos Tamoios em Iperoig com a missão de tentar um acordo de paz. A paz selada entre o grupo Tamoio de Iperoig e os portugueses facilitou o ataque aos demais porque quebrou a unidade deles. o líder dos Tamoios percebeu que a aliança com os portugueses seria uma grande oportunidade para guerrear contra seus inimigos e que os novos aliados nada fariam para impedir.longo de toda a costa. aos quais sempre levaram de vencida fazendo-lhe muitos danos. nem necessidade que tivessem de suas coisas. Em abril de 1563. que as podem os Cristãos comprar a eles. p. chegou à Guanabara com índios Temiminós que estavam em aldeamentos jesuíticos no Espírito Santo em troca de proteção e que queriam voltar para suas terras. os Tupiniquins. matando e comendo à sua vontade. 209. sobrinho de Mem de Sá. arcabuzes e espadas. Sistematicamente os demais grupos de Tamoios foram subjugados. E a principal razão que os moveu a quererem a paz não foi o medo que tivessem aos Cristãos. pouco tempo antes. Assim. escravizados ou dizimados. e pouco há se levantaram contra nós outros. José de. de onde haviam sido expulsos anos antes pelos 30 ANCHIETA.. que eram aliados dos portugueses e dos jesuítas. a cidade do Rio de Janeiro com uma função claramente defensiva e para ser uma base de apoio à colonização lusa na região. 15-20. In: BERNARDES.34 Em julho desse ano. Lysia M. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura.35 Contudo. relata o pedido de socorro feito pelo principal dos Temiminós. escrita do Espírito Santo em abril de 1555. Armelle. para fugir com seu grupo dos constantes ataques que sofriam dos Tamoios na região da Baía de Guanabara. Nessa terra os jesuítas construíram o colégio do Rio de Janeiro e estabeleceram mais tarde o Engenho Velho. tomaram algumas aldeias que abrigavam não LEITE. Maria Therezinha de Segadas.32 Estácio de Sá mandou também buscar em São Vicente os padres Nóbrega e Anchieta. 1995. p. Estácio de Sá doou duas sesmarias: uma para a municipalidade que constava do Termo e das terras do Rossio e a outra para a Companhia de Jesus como reconhecimento por todos os serviços prestados à coroa. ao capitão do Espírito Santo. Lysia Maria C. Rio de Janeiro: Zahar. Outros jesuítas que estavam em São Paulo também contribuíram com índios interessados em lutar contra os Tamoios. viram no apoio aos portugueses uma forma de vingar os reveses impostos pelos seus inimigos Tamoios. o Engenho Novo e a Fazenda de São Cristóvão. Função defensiva do Rio de Janeiro e seu sítio original. p.31 Os Temiminós.33 Apesar desse ato grandioso. Nireu. os portugueses.Tamoios. assim. 2004. liderados por Martim Afonso. In: LEITE. A História do Rio de Janeiro..177. No dia 1º de março de 1565. 25. p. SOARES. a luta contra os Tamoios continuava. Formava-se assim. 31 32 55 . uma grande tropa disposta a implementar definitivamente um núcleo colonizador na Baía de Guanabara. 56-57. 33 BERNARDES. 34 ENDERS. portugueses e grupos indígenas variados. Estácio de Sá desembarcou no sopé do morro Pão de Açúcar e dedicou o acampamento a São Sebastião. Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira). Rio de Janeiro: Cidade e região. p. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. p. nome cristão de Araribóia. 35 CAVALCANTE. 233. para Armelle Enders a fundação da cidade do Rio de Janeiro deu-se em etapas sucessivas com avanços e recuos de franceses. e em 18 de janeiro de 1567. 33-36. A carta do jesuíta Luiz de Grã. Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Nascia. Serafim. liderados por Cristovão de Barros sob as ordens de Mem de Sá. O Grande Gato. Vasco Fernandes Coutinho. partiu em busca dessas aldeias com a ajuda do governador Cristovão de Barros. Entretanto. mas também franceses. ele não havia tomado posse das mesmas e. com jurisdição da Capitania de Porto Seguro para baixo. esses dois aldeamentos possuíam juntos cerca de três mil índios. onde foi criado o aldeamento de São Lourenço para abrigar os Temiminós.37 Essas terras haviam sido doadas a Miguel de Moura em 1567. em terras da Companhia de Jesus. a situação com os Tamoios na Baía da Guanabara ainda não estava resolvida plenamente. Chegando a Cabo CAVALCANTE. segundo Cardim. Fernão. Novas levas de Temiminós e de outros grupos indígenas que chegaram à capitania foram a causa para o estabelecimento de um novo aldeamento em 1578: o de São Barnabé. 25. Assim. de paulistas e de índios de São Vicente. hoje a cidade de Niterói. Nireu. Governador Geral das Capitanias da Banda do Sul. para evitar os ataques dos indígenas por aquela região. 36 37 56 . p. eles percorriam a distância que separava suas aldeias no litoral norte da capitania e atacavam a população. o hábito da Ordem de Cristo e uma sesmaria nas bandas d’além. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses. Em 1584. a mais importante foi a de Uruçu-Mirim. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Desta forma. In: CARDIM. depois de um desses ataques. Entretanto. desta vez nos fundos da Baía de Guanabara. impuseram nova derrota aos indígenas. as doou à Companhia de Jesus. em fins de 1571. O Rio de Janeiro setecentista. 266. a fazenda jesuítica de Macacu pôde ser estabelecida sem maiores problemas. Antonio Salema. os Tamoios que viviam nas proximidades da cidade de São Sebastião foram derrotados e os Temiminós foram colocados em pontos estratégicos para protegerem a povoação. portanto depois do estabelecimento do aldeamento de São Barnabé e da proteção que ele significava contra índios hostis. 1997.só os índios. que também não pôde realizar nada de efetivo por causa das guerras contra os índios Tamoios na região.36 No ano seguinte. De tempos em tempos. Martim Afonso de Souza. isto é. p. o Araribóia. A medição das terras só começou em julho de 1579. recebeu como recompensa pelos serviços prestados à coroa portuguesa uma pensão. Dentre elas. Em 1575. Foi o padre jesuíta Inácio de Tolosa quem explicou o que houve em sua carta ânua de 1576. 430-431. Uns foram enviados para São Vicente e outros para o Rio de Janeiro como escravos. p. Elysio de Oliveira. depois de conseguir furar a paliçada da aldeia.000 índios. com 400 brancos e 700 índios. p. Os mesmos foram condenados à morte e enforcados. O padre também presenciou a separação das mulheres e de seus filhos. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora. enfim.Frio. O governador explicou então ao principal que ele e sua família ficariam livres. os problemas com a segurança continuavam. o padre Baltasar Alvares. Os Tamoios estavam. o principal Japuguaçu foi obrigado a entregar dois franceses e um inglês que estavam lá. mas as tropas foram atrás e mataram mais alguns e capturaram outros tantos. 39 LEITE. Cerca de 500 pessoas foram entregues e amarradas.1. Serafim. Embarcações estrangeiras continuavam a percorrer o litoral da capitania e. acompanhado por 700 portugueses e 2. De acordo com o religioso. De acordo com as informações foram cerca de 4 mil capturados e escravizados. todos os índios que estavam aprisionados e que tinham mais de 20 anos foram mortos. vol. encontrou os Tamoios.38 No dia seguinte. praticamente controlados. 437.39 Em 1596 Martim Correia de Sá. Antonio Salema exigiu também a entrega de todos os índios que não pertencessem àquela aldeia e que estiveram lutando ao lado deles. mesmo ano da permanência de Anthony Knivet com um desses grupos. p. tentou batizar alguns. mas não teve tempo suficiente em função da urgência que tinha a tropa. 415. com o BELCHIOR. 1965. Depois desse ataque alguns Tamoios conseguiram escapar rumo às matas. Apesar de os Tamoios não significarem mais uma grande ameaça. Elysio de Oliveira. Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro. 40 BELCHIOR. mas que todo o restante da aldeia seria transformado em cativos. 38 57 .40 A última expedição contra eles parece que foi a de outubro de 1597. História da Companhia de Jesus no Brasil. O principal aceitou a oferta. O jesuíta que acompanhava a expedição. partiu para os sertões do Vale do Paraíba para encontrar outros grupos de Tamoios. Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro. Gaspar de Souza. interrogado na cidade do Rio de Janeiro no dia 30 de abril de 1619. foi o caso narrado pelo índio Antonio Potiguara. em Porto Seguro. In AMANTINO. RODRIGUES. 41 58 . mas foram impedidos pelos índios já aldeados em São Pedro e pela fortaleza situada em Cabo Frio. o Jesuíta João Lobato. 327.objetivo de tentar impedir novas invasões na área. Jonis. Como os franceses haviam levado muitos “resgates” deram os presentes aos Goitacazes. C. 43. ENGEMANN.41 Assim. ficaram sem saber onde buscar a madeira cobiçada. 2011. Completou ainda sua afirmação dizendo que o tal francês estivera algum tempo no CARVALHO.. Outras tentativas de desembarque de estrangeiros ocorreram nos anos de 1617. Augusto de. p. Apontamentos para a história da Capitania de São Thomé. fundou o aldeamento de São Pedro do Cabo Frio com 500 índios vindos da capitania do Espírito Santo. Macaé nos séculos XVII e XVIII: catolicismo e povoamento. o índio afirmara que conversava todo o tempo com um francês que sabia a sua língua por já ter estado outras vezes na sua região de origem. Marcia. superior da Aldeia de São Barnabé. FREIRE. M. em 1616. quando duas grandes embarcações seguidas de outras duas menores pararam na área. Rio de Janeiro: Apicuri. catolicismo e escravidão na antiga Macaé (séculos XVII ao XIX). Ele havia sido preso enquanto estava com franceses na região da Ilha de Santa Anna. Povoamento. Entretanto. Campos: Typ. não conseguiram nenhum tipo de comunicação com esses índios porque não sabiam a língua deles e assim. E Tith. estava em sua roça na aldeia de Parnembetiba.42 Um exemplo não só da presença estrangeira na região.. 42 AMANTINO. 1888. foi ordenado ao Governador Geral. Navegaram até a Ilha de Santa Anna e lá desceram próximo ao rio dos Bagres. litoral norte da Capitania.. p. Carneiro e Comp. C. que estabelecesse em aldeamentos índios Carijós trazidos da Vila de São Paulo na região próxima ao litoral da atual cidade de Macaé. 1618 e 1630.. mas também dos intensos contatos comerciais entre diversas partes do império português. Em seu depoimento. de Silva. Delas desceram franceses que o amarraram e o levaram à força para que ensinasse o caminho onde eles poderiam buscar pau-brasil. Segundo seu relato. Maranhão e quando seus compatriotas foram expulsos de lá. p. se não conseguissem. ouviu os franceses capturados dizerem ao religioso que queriam ir a Angola porque ficaram sem mantimentos. e plantaram nela artilharia e começaram a fazer e carregar pau com grande guarda e vigia”. onde haviam. Afirmaram também que não iriam ficar nas terras de Cabo Frio e nem chegariam à Baía de Guanabara por medo do capitão Martim de Sá. Para isso. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. ele havia voltado para sua terra. Metamorfoses indígenas: Identidade e cultura nas 43 59 .43 A região era alvo constante de tentativas de desembarques estrangeiros e. 45 ALMEIDA. n. em 1625.. 423 a 425. em 1 de outubro de 1625.44 Os traficantes não desistiam e as autoridades sabiam que se tratava de uma área estratégica que não poderia ser perdida. Enquanto o grupo esteve na Ilha de Santa Anna foi atacado por embarcações repletas de índios liderados pelos padres jesuítas João Lobato e Estevão Gomes. 270 e seguintes. em 30 de abril de 1619. Como ele estava em terra. Maria Regina Celestino de. In: MINISTERIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. O objetivo maior das autoridades para essa região era estabelecer núcleos populacionais que fossem não só capazes de desbaratar os contatos travados entre os estrangeiros e os indígenas. 1607-1633. conseguiu se esconder e fugiu ao encontro do padre. 1958. partiriam para Porto Seguro. mas também conquistar estes últimos e torná-los súditos da Coroa Portuguesa. 44 Oficio do Governador do Cabo Frio. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. para o Rei. Lá. p. Livro primeiro do Governo do Brasil. O ataque se deu de madrugada e os índios conseguiram matar trinta inimigos. 1853. Depois voltariam ao rio de Itapemirim para buscar o pau-brasil e. que o próprio capitão havia participado da batalha. o informante disse ter ouvido dos índios que estavam nas canoas junto com o padre. Constantino de Menelau. Constantino de Menelau informou ao Rei que tinham aportado em Cabo Frio cinco naus inglesas contrabandeando o pau-brasil e que tinham feito “uma fortaleza de . tempos antes. Sobre este. matado um homem. aliados. 20. os aldeamentos seriam as peças mais importantes. Mas agora estava de volta e queria vingança..45 Auto de perguntas que se fizeram por mandado do desembargador Antão de Mesquita de Oliveira a Antonio Potiguara. ou seja. tendo apenas morrido dois. pdf > Acesso em 22/11/2006. no litoral norte. nos fundos da mesma. eles receberam os índios que formariam o aldeamento de São Francisco Xavier de Itinga. 2000. 85-86. Juntos.ifch. onde. último dos aldeamentos jesuíticos da capitania. Em tese. o de São Francisco de Itinga. 130. eles formariam um cerco protetor à cidade do Rio de Janeiro contra as tentativas de ataques externos ou mesmo de outros grupos indígenas vindos dos sertões. 2001. o de São Barnabé. 60 . 1 – Os aldeamentos jesuíticos na capitania do Rio de Janeiro. Livro 1. Belo Horizonte.br/ihb/textos/RPBrandao. os jesuítas obtiveram por doação o início do que viria a ser a sua maior propriedade na capitania do Rio de Janeiro: a fazenda de Santa Cruz.Em 1589. a posição geográfica dos aldeamentos deveria ser impedimento a novos ataques de índios hostis: na entrada da Baía ficava o de São Lourenço. Disponível on-line em: <http:www. Tomo VI. p. As relações étnicas na conquista da Guanabara: índios e o domínio do Atlântico sul. Renato Pereira. no século seguinte. 46 Imagem n. Serafim. p. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. os jesuítas atuaram de maneira crucial para que os primeiros povoadores da capitania pudessem se estabelecer nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. 46 BRANDÃO.unicamp. História da Companhia de Jesus no Brasil. o de São Pedro do Cabo Frio e no lado Leste. Fonte: LEITE. Conforme já visto. Rio de Janeiro: Itatiaia. já que todas as formas de persuasão já haviam sido utilizadas sem qualquer resultado favorável aos interesses coloniais. escravos nativos em suas propriedades. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. portanto. mortos e/ou escravizados.47 Os jesuítas tiveram um papel de destaque neste processo de consolidação da ocupação do espaço e controle sobre seus habitantes. defenderam a liberdade indígena para “determinados índios” e usaram. foi o que Antonio Carlos Jucá de Sampaio denominou de “capital social básico que a sociedade utilizou para dar início ao processo de colonização. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.áreas mais afastadas do núcleo da cidade. Percebe-se que as guerras contra determinados grupos de índios e de estrangeiros formaram as bases para que a colonização lusa pudesse ser efetivada na parte Sul da colônia. p. tentando fugir da escravidão imposta pelos colonos ou dos ataques de outros grupos inimigos. Antonio Carlos Jucá de. A escravidão indígena. 2003. Alguns índios. 61 . ao permitir o controle sobre uma mãode-obra mais barata do que a africana. A relação dos jesuítas com os índios era bastante clara. Havia aqueles que poderiam e deveriam ser aldeados. associada ao domínio sobre extensas áreas obtidas através da doação de sesmarias. Para as 47 SAMPAIO. assim como qualquer outro colono ou ordem religiosa. posto que aceitavam o cristianismo e o trabalho nos aldeamentos e havia os que eram passíveis de serem exterminados e/ou escravizados. pelo menos no início do processo de ocupação da região. No caso da Capitania do Rio de Janeiro os jesuítas acompanharam as diferentes investidas das autoridades sobre os Tamoios e Goitacazes. acabaram buscando refúgio nos aldeamentos estabelecidos pelos jesuítas. 61-62. Os religiosos atuaram também trazendo grupos indígenas de outras capitanias para ocuparem regiões depois que os habitantes primitivos já estavam reduzidos. principais grupos indígenas que tentavam impedir o estabelecimento dos colonizadores em suas terras. Os jesuítas. 1650-1750). sendo a “submissão” [dos índios] o primeiro passo para a constituição de uma sociedade escravista colonial nestes trópicos”. O governador Martin de Sá. Maria Teresa Peixoto. Além dos perigos que chegavam pelo mar e dos problemas causados pelos índios havia também os conflitos políticos e por terras na região. mas também conquistavam estes últimos e os tornavam súditos da Coroa Portuguesa. variados grupos de índios Goitacazes. A insegurança da cidade e os benefícios para a Companhia de Jesus Em 1624 a população do Rio de Janeiro esperava uma invasão holandesa tal como havia ocorrido na Bahia. 69-97.48 Ainda que os aldeamentos fossem centros fornecedores de homens para quaisquer necessidades era imprescindível que as regiões fossem efetivamente povoadas por colonos e produzissem bens capazes de gerar dividendos aos cofres reais. o controle espacial e social na capitania do Rio de Janeiro não foi resolvido apenas com a criação dos aldeamentos. os invasores conseguissem controlar as rotas do Rio da Prata. acima de tudo.autoridades esses aldeamentos eram importantes porque estabeleciam núcleos populacionais que não somente eram capazes de desbaratar os contatos travados entre os estrangeiros e os indígenas inimigos. essa era uma área estratégica no Sul do Brasil que precisava ser mantida a qualquer custo. Gênese da rede urbana no Norte e Noroeste Fluminense. Ailton Mota de. porque contribuíram para a pacificação dos índios criando um “estoque” de mão-de-obra e. aliados. serviram como barreiras aos avanços de outros grupos hostis e impediam o desembarque de estrangeiros. 48 62 . Logo. sabendo que as forças da cidade seriam irrisórias caso os flamengos FARIA. a partir de pontos específicos desse litoral. Apesar desses. mas também receava-se que. O receio era que a presença de estrangeiros colocava em perigo o domínio não só sobre essa área. Os aldeamentos foram importantes nesse sentido. Tamoios e Guarulhos continuaram a atacar os colonos na parte norte da capitania tentando livrar essas terras e manter suas liberdades. TOTTI. ou seja. Todavia. In: CARVALHO. p. Formação histórica e econômica do Norte Fluminense. Maria Eugenia Ferreira (org). 2006. Rio de Janeiro: Garamond. mas também os preparavam para a possível guerra “melhor. velhos e crianças. p. Novamente a caridade dos padres foi reafirmada por Vieira: “mas a caridade dos padres ainda compadecerem muito.realmente tentassem desembarcar. 204. a produção ficou a cargo de mulheres. a todos remediou com a sua pobreza.com a brevidade e com a mesma chegaram e se distribuíram pelos moradores para que cada um com eles trabalhasse na parte que lhes coube”. se estabeleceu uma sensível diminuição nas colheitas. que os capitães com armas e exercícios militares”. De acordo com Vieira. começaram a faltar alguns gêneros e. XIX. Os padres.. Segundo suas informações. 1897. para lhe dar o de que precisamente tinham necessidade para sua sustentação”. vol. os jesuítas fizeram vir das aldeias por eles administradas os índios capazes. 63 . RJ: Typ. Todos “foram chamados. Logo. Com isso. estavam ciosos de suas responsabilidades e “animados com tais companheiros não só se exortavam e provocavam uns aos outros com muito esforço. os padres dividiram tudo o que tinham com a população. ainda segundo Vieira. tirando muitas vezes da boca.. Como os homens estavam na cidade esperando o ataque. e vendo se todos os nossos padres tão de dentro nestas preparações para a Guerra e que de dois em dois tinham tomado a seu cargo todas as estâncias”..49 As embarcações inimigas não chegaram.. 50 Ânua da Província do Brasil dos anos de 1624-1625 por Antonio Vieira.. pediu ajuda aos padres e aos seus índios. A situação nos aldeamentos também não estava muito boa. protegeram o colégio e levantaram uma fortaleza na barra. In: Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. tão logo receberam o pedido de ajuda do governador da capitania fluminense. assim como os navios vindos do Reino para ajudar a cidade. mantendo vivos os alicerces cristãos. mas também com grande alegria. contando apenas com a ajuda dos índios. 205. Foi Antonio Vieira quem relatou as principais informações acerca da Província do Brasil nos anos de 1624 e 1625 ao Geral da Ordem. Leuzinger. p. Os religiosos cuidavam do sustento dos nativos.50 49 Ânua da Província do Brasil dos anos de 1624-1625 por Antonio Vieira. para quando chegassem as naus inimigas”.. 2000. 190. teriam sido essenciais para a expulsão dos holandeses e para a manutenção da região. ponto de contrabando controlado pelas elites fluminenses. São Paulo: Companhia das Letras. Luiz Felipe de. eles precisavam de terras para criar seu gado. necessitavam mais espaço. peticionasse ao Governador do Rio de Janeiro.Indische Compagnie (WIC). Nessa data. como o aldeamento estava com uma população indígena numerosa. segundo o documento. e. em 1624 tomaram Benguela e Luanda e. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. por fim.De acordo com Alencastro. em 1624 ocuparam a Bahia. Reitor do Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro. Todavia. pedindo duas sesmarias para ampliar as terras desse aldeamento. p. o Capitão Mor Martim Correa de Sá. em 1630 invadiram Pernambuco.51 Mas o ano de 1630 é importante para o entendimento dos rumos tomados nesta região conhecida hoje como Norte Fluminense e novamente os jesuítas estão envolvidos nos acontecimentos. desde os anos de 1624-25 os interesses lusos começaram a ser questionados pelos holandeses ao capturarem navios negreiros portugueses e tomarem terras e riquezas pertencentes a este império. o padre Francisco Fernandes. Tais índios. os holandeses. nesse mesmo ano. 51 64 . nesse mesmo ano atacaram o Espírito Santo e Paraíba e. Havia o medo de que eles. aproveitando a boa graça em que tinham caído os índios. desejassem conquistar a parte sul da colônia. depois de várias investidas contra os interesses e terras lusas. ponto essencial da produção de cana-de-açúcar. A ideia era aldear outros índios ALENCASTRO. depois de terem conquistado regiões africanas que abasteciam o Brasil com escravos e de terem chegado a Pernambuco. no ano seguinte. que foi restaurada em 1625 e atacada novamente no ano seguinte. assim. logo depois dos índios do aldeamento de São Pedro do Cabo Frio terem expulsado e matado inúmeros holandeses que tentavam desembarcar para retirar pau-brasil na região. Não foi coincidência que. a região Mina. conseguiram invadir Pernambuco. o controle sobre a região do Rio da Prata. obtendo. A ameaça possível de uma invasão holandesa foi uma eficiente arma usada pelos jesuítas para obterem terras numa região que estava começando a ser conquistada aos nativos: a planície dos Goitacazes. Em 1621 os holandeses criaram a West. De qualquer forma. Serafim. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. 1968. Os índios que comporiam este novo aldeamento. deu despacho favorável a seus pedidos. 53 LEITE. Quanto aos aldeamentos nessa região. evidentemente. 52 65 . não haveria mais as possibilidades de desembarque dos inimigos da Coroa portuguesa e. 92. p. História da Companhia de Jesus no Brasil. como demonstram os números abaixo. estariam terminadas as incursões e contrabandos de madeiras.53 Paralelamente à formação de todas essas propriedades. doações e heranças. Livro de Tombo do Colégio de Jesus do Rio de Janeiro. Miguel Ayres Maldonado.que estariam dispersos na região e que poderiam auxiliar no controle daquelas terras. O governador. segundo o jesuíta. Antonio Pinto Pereira e João de Castilho. consequentemente. os inacianos obtiveram também. Petição e carta de sesmaria apresentada por Antonio Fagundes procurador do Reverendo Padre Reitor Francisco Fernandes em 20 de novembro de 1630. Duarte Correia. 290 e ss. seriam provenientes do Aldeamento de São Pedro do Cabo Frio e outros vindos da capitania do Espírito Santo. nunca saíram do papel. estando a região ocupada por indígenas catequizados. Miguel da Silva Riscado. os jesuítas obtiveram as terras onde algum tempo depois fundaram a fazenda de Sant’Anna de Macaé. a quantidade de índios administrados pelos inacianos na capitania do Rio de Janeiro ao longo do século XVIII era bastante significativa.52 Assim. por compra. Manuel Correia. a fazenda de Campos Novos e a fazenda de Campos dos Goitacazes. p. Note-se que desde o ano de 1627 a Capitania da Paraíba do Sul já estava dividida entre os Sete Capitães: Gonçalo Correa de Sá. neste ano de 1630. Alegavam também que. elevados números de escravos negros. 1. por que não. de Deus. Serafim. se nos séculos iniciais era uma força militar usada para proteger a cidade. no decorrer do tempo foi transformada em mão-de-obra capaz de gerar produtos e. submeteram índios e contribuíram efetivamente com os avanços da colonização na medida em que facilitavam o acesso e a entrada de sesmeiros em áreas até então ocupadas por grupos hostis. mas acima de tudo. Conclusão Os inacianos chegaram à região do Rio de Janeiro junto com o aparato bélico português destinado à conquista dessas terras. 6/II e ♦ LEITE. Belo Horizonte. 111. 2000. receberam inúmeras benesses. Br. Rio de Janeiro: Itatiaia.122.114. Em função do apoio que deram aos intentos de colonização na região. e a partir daí. Aldeamento São Lourenço São Barnabé São Pedro do Cabo Frio São Francisco Xavier de Itaguaí Aldeia Fluminense Totais 1738∗ 152 400 929 232 1743∗ 125 334 1200 230 1757∗ 110 330 1040 130 1759♦ 113 280 1250 250 Total − 1713 − 1889 200 − 1893 200 1810 500 1344 4419 842 7305 Fontes: ∗ Catálogos breves e trienais – 1737-1757 ARSI. Ao lutarem em nome da Coroa portuguesa.Tabela n. iniciaram a montagem de um complexo sistema econômico-administrativo que passava pelo estabelecimento do Colégio e seguia em direção ao controle sobre os aldeamentos e fazendas/engenhos controlados pela Ordem. História da Companhia de Jesus no Brasil. 66 . derrotaram franceses. Livro 1. renda para o colégio e para a manutenção dos próprios aldeamentos. p.População indígena dos aldeamentos jesuíticos na capitania do Rio de Janeiro. Esta população indígena que vivia nos aldeamentos e era administrada pelos inacianos participava de uma forma ou de outra na vida cotidiana da cidade e. Tomo VI.117. culturais e sociais. Atuaram como religiosos. mas. ainda que escravista. Este controle sobre terras e homens foi um dos pontos de constantes conflitos entre os religiosos e as autoridades e moradores na colônia. facilitando os trânsitos. Suas posturas estão ligadas diretamente aos rumos tomados pela própria cidade e seguem seus movimentos econômicos. de 1565 a 1630.Em 65 anos. a Companhia de Jesus conseguiu estruturar os seus principais elementos garantidores de poder na capitania do Rio de Janeiro: terras (aldeamentos. 67 . acima de tudo. ou seja. Os religiosos da Companhia de Jesus foram elementos de destaque no processo de ocupação e consolidação do poder na capitania e também intermediários entre culturas. fazendas e engenhos) e pessoas (índios e negros). as trocas e lutando a favor de um projeto cristão. usaram seu poder junto aos indígenas para que os mesmos lutassem ao lado das autoridades metropolitanas. . Ficando. o que nos levou a um universo de 133 pessoas. por meio de uma de suas principais instituições. Cadernos de nefandos e solicitantes. devido à natureza da documentação4.Reflexões acerca da ação inquisitorial no Grão-Pará Marcia Eliane Alves de Souza e Mello Universidade Federal do Amazonas Maria Olindina Andrade de Oliveira1 O presente trabalho visa contribuir com algumas leituras acerca da forma como ocorreu o processo de disciplinamento exercido pela Igreja no Grão-Pará. por exemplo. Inquirições e Processos. Partindo de um exaustivo levantamento da documentação inquisitorial existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 3 Delimitamos nossa busca aos processos e denúncias relativas a pessoas que nasceram e/ou viviam nas capitanias do Grão-Pará. O enfoque do nosso estudo consiste em saber de que maneira esses indivíduos foram tratados e vistos pela Inquisição e até que ponto suas sentenças foram influenciadas pela percepção que os agentes inquisitoriais tinham dessa população. Contudo. o que nos permitiu identificar 523 pessoas denunciadas ao Santo Oficio. selecionamos aqueles casos que diziam respeito a índios. 4 Os dados foram coletados em diversos tipos de documentos: Cadernos do Promotor. localizamos uma expressiva quantidade de denúncias2 referentes ao Estado do Maranhão e Grão-Pará3. Livro da Visitação no Pará. portanto. Maranhão. optamos por fazer uma análise somente da documentação processual em detrimento das informações provenientes dos Cadernos do Promotor. Do número total de pessoas denunciadas. fora desta contabilidade os degredados para a região e os processados que já estavam vivendo em outras capitanias quando foram denunciados. 1 2 69 . Por compreendermos que ela se compõe de documentos compostos e Mestre em História Social Totalizando 609 denúncias para um período compreendido entre 1617 e 1805. com a justificativa de levar a civilização e a salvação aos índios. negros. cafuzos e mamelucos. negros e mestiços. Piauí e São José do Rio Negro na época da composição dos processos. Correspondências. o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. todos são referentes ao século XVIII e.mais complexos. sacrilégio e fingimento (tabela 02). desse total. estando os demais inconclusos. bigamia. esses se circunscrevem a quatro tipos: feitiçaria e práticas mágicas. Destes últimos. No que resultou na seleção preliminar de 55 processos (tabela 01). 70 . no que diz respeito aos delitos cometidos. Entretanto. trabalhamos efetivamente com 17 processos por possuírem sentença. Mulato Índia Índio Mameluca Cafuza Preta Mameluco Índio Preto Índio Mameluco Índio Índio Pardo Mestiço Preto Índio Mameluco Raça Não Não Sim Não Não Sim Não Não Não Não Não Sim Não Não Sim Sim Sim Não Sentença . negros e mestiços processados na Amazônia Portuguesa.71 Não nominado Adrião Ferreira de Faria Alberto Monteiro Alexandre Ambrósio da Costa Ana Elena Anselmo da Costa Antônio Mogo Bernardo Pereira Crescêncio de Escobar Custódio Custódio da Silva Dionísio Domingas Gomes da Ressurreição Domingos de Souza Eleutéria Maria Faria Escolástica Benta Fabiana 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 Nome 01 N° Índia Índio Mulata Índio Mameluca Índio Índio Índio Mameluco Índio Mameluco Índio Índia Mameluco Índio Índio Mameluco Índio Raça Não Sim Não Não Sim Não Sim Não Sim Não Não Sim Sim Não Não Sim Sim Não Sentença 46 45 44 43 42 41 40 39 38 37 36 35 34 33 32 31 30 29 N° Pedro Rodrigues Narciza Miguel Maria Tereza Maria Joana de Azevedo Maria Francisca Marcelino ou Marçal José Ferreira Marçal Agostinho Marçal Manoel Manoel José Maya Manoel Manoel Luís Ribeiro José Felizardo José Joaquim Pedro João Mendes Pinheiro Nome Tabela 01: Número de índios. Organização: Marcia Mello e Maria Olindina Andrade.72 Florência Martins Perpétua Florêncio ou Lourenço de Sousa Francisco da Costa Xavier Francisco de Carvalho Ignácio Joaquim Jacinto de Carvalho Joana Joana Mendes João 20 21 22 23 24 25 26 27 28 Preto Mestiça Preta Preto da Mina Índio Índio Preto Cafuzo Índia Índia Não Não Sim Não Sim Não Sim Não Sim Sim 55 54 53 52 51 50 49 48 47 Xavier da Silva Vitória Vicente Ferreira Guedes Tomé Joaquim Timóteo Monteiro Teodósio Sabina Rosaura Raimundo Antônio de Belém Índio Índia Pardo Índio Índio Índio Índia Índia Índio Não Não Não Não Não Não Não Sim Não Fontes: Processos do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa (ANTT). Felícia 19 . em relação ao grau de culpabilidade dos réus. Por exemplo. pois observamos que. Para uma melhor compreensão desse processo. Ao analisar as sentenças inquisitoriais contidas nos dezessete processos. promovida pelo Santo Ofício no Estado do Grão-Pará. no geral. percebemos certa brandura na atuação da Inquisição na Amazônia portuguesa. somente quatro foram considerados como levemente suspeitos. 73 . nove receberam penas pecuniárias e quatorze penas espirituais (tabela 02). dois como veementes suspeitos. percebemos como ocorreu o processo de institucionalização de costumes. buscando perceber suas semelhanças e diferenças e de que maneira as decisões tomadas pelo Tribunal foram influenciadas pela percepção que seus agentes possuíam acerca da população que habitava a região. Constatamos que em relação às penas físicas/corporais somente um foi exposto à tortura e três foram condenados aos açoites e ao degredo às galés. fizemos uma análise comparativa entre os casos.A partir da análise da documentação. os réus não foram rigorosamente punidos pelo Tribunal. quatro foram condenados a Auto-de-fé e um apenas reconhecidamente como herege. galés. açoites. libertação condicional Penitências espirituais e instrução ordinária Penitências espirituais e instrução ordinária PENAS ESPIRITUAIS Feitiçaria e Cárceres práticas mágicas Fingimento Ana Elena 03 Pagamento das custas Alberto Monteiro 02 Feitiçaria e práticas mágicas PENAS PECUNIÁRIAS Pagamento das custas PENAS FÍSICAS/ CORPORAIS Auto-de-fé. negros e mestiços na Amazônia Portuguesa. cárceres Penitências espirituais e instrução ordinária Feitiçaria e práticas mágicas Pagamento das custas Instrução ordinária Cárceres. práticas mágicas cárceres DELITO Adrião Ferreira de Faria NOME 01 N° Tabela 02: Sentenças inquisitoriais aplicadas aos índios. galés. degredo. açoites. galés. tortura. tortura. cárceres Auto-de-Fé. Feitiçaria e açoites. degredo. cárceres Instrução ordinária Penitências espirituais e instrução ordinária Penitências espirituais e instrução ordinária Instrução ordinária Pagamento das custas Pagamento das custas Pagamento das custas Cárceres Auto-de-Fé. . degredo.74 Bigamia Feitiçaria e práticas mágicas Anselmo da Costa Crescencio Escobar Custódio da Silva Domingas Gomes da Ressurreição Felícia Florência Martins Perpétua Bigamia Francisco da Costa Xavier Ignácio Joaquim 04 05 06 07 08 09 10 11 Bigamia Sacrilégio Bigamia Instrução ordinária Sem pagamento das custas Cárceres Penitências espirituais e instrução ordinária Pagamento das custas Auto-de-Fé. 75 Maria Francisca Manoel Miguel 14 15 16 Bigamia Bigamia Bigamia Cárceres Cárceres Cárceres Feitiçaria e Cárceres práticas mágicas Pagamento das custas Pagamento das custas Instrução ordinária Instrução ordinária Instrução ordinária Penitências espirituais e instrução ordinária Feitiçaria e Cárceres práticas mágicas Pagamento das custas Instrução ordinária Feitiçaria e Cárceres práticas mágicas Fontes: Processos do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa (ANTT). 17 Joana 13 Rosaura Joaquim Pedro 12 . Organização: Maria Olindina Andrade. açoites. a índia Felícia também recebeu penas físicas/ corporais (auto-de-fé). no caso específico dos processos analisados. em sua maioria. Por outro lado. tortura. penas pecuniárias (pagamento das custas) e penas espirituais (penitências espirituais e instrução ordinária)7. pelo seu crime de bigamia. penas pecuniárias (pagamento das custas) e penas espirituais (penitências espirituais e instrução ordinária)6. sob o risco de se sujeitarem com maior rigor às penas de Direito que por ora estavam sendo aliviados. cárceres).Constatamos também que seis processos foram sentenciados como caso extraordinário de absolvição. Partindo da análise dos três processos anteriores a 1760 e tomando por parâmetro as penas previstas pelo modelo jurídico inquisitorial. a Igreja e a sociedade. apesar de assumir as tarefas relativas ao cargo de Vigário Capitular. Sobre estes últimos. cárceres). 6 ANTT/PT/TT/TSO-IL/028/1894 (Adrião Ferreira de Faria). degredo. o inquisidor Giraldo Abranches não se descuidou de suas obrigações inquisitoriais até o seu retorno a Lisboa. só eram processados pelo Tribunal aqueles indivíduos que eram considerados “culpados” pelos agentes inquisitoriais e. galés. penas pecuniárias (pagamento das custas) e Em nossa pesquisa encontramos evidências que demonstram que. o Tribunal exerceu a sua função pedagógica condenando-os às penas espirituais de forma que se reconciliassem com Deus. determinando que não cometessem novamente o delito. recebeu penas físicas/corporais (auto-de-fé. de acordo com o modelo jurídico inquisitorial. em 1773. 7 ANTT/PT/TT/TSO-IL/028/6689 (Custódio). 5 76 . observamos que os réus foram severamente punidos pelo Tribunal. embora absolvidos pelos crimes cometidos. e. açoites. constatamos que o mameluco Adrião Ferreira de Faria recebeu pelo crime de feitiçaria: penas físicas/corporais (auto-de-fé. Da mesma forma. foi observado que. galés. ficaram evidenciadas as culpas dos réus. o índio forro Custódio da Silva pelo crime de bigamia. Dos 17 processos analisados. Sabemos que. quatorze correspondem ao período da visitação (1763-1773)5 e três pertencem à fase anterior a 1760. degredo. especificamente pelo desprezo às “crenças dos ignorantes”. desordenado apetite (irracionalidade). mas.. foi exemplarmente punida pelo Tribunal. o Tribunal utilizou-se de um discurso repleto de “juízos preconcebidos” para justificar a sua sentença. embora tenham sido poupados da morte. Constatamos também que. em relação a Adrião Faria. que coincide com a atuação inquisitorial no Brasil. caracteriza-se como uma transição do Medo ao Desprezo. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. Faces da dominação: reflexões conceituais sobre intolerância e violência. o período compreendido entre 1640 e 1821. mesmo assim. HISTÓRIA: Guerra e Paz. os inquisidores destacaram a sua rusticidade e total ignorância nos conhecimentos da fé católica. Observamos que os réus foram severamente punidos pelo Tribunal. além de enfatizar sua ignorância e brutalidade e o fato de ter sido criado na América (condição colonial). com exceção de um. Tiveram de ir a Auto Público da Fé. sendo por isso condenado à abjuração de leve suspeita na fé. 23. resultando numa mudança em relação ao “sentido e significado na própria ação intolerante”9. Londrina: 8 9 77 . Daí a importância de estudarmos outros processos relativos a esse período. observamos a existência de um significativo padrão das sentenças proferidas pelo Tribunal.. sendo Adrião Faria notoriamente reconhecido como herege e Custódio da Silva com forte presunção de heresia. Carlos André Macedo & ASSIS. ou não. Ângelo Adriano Faria de. na aplicação de suas penas na primeira metade do século XVIII. Londrina.penas espirituais (instrução nos mistérios da fé)8. Mas quando analisamos os quatorze processos restantes. julho de 2005. todos referentes ao período da visitação. comparando-os e enfatizando suas semelhanças e diferenças. Esse segundo momento é denominado pelos ANTT/PT/TT/TSO-IL/028/2911 (Felícia). No caso da índia Felícia. CAVALCANTI. De acordo com Carlos Cavalcanti e Ângelo Assis. sujeito aos seus instintos sexuais. É evidente que esse número é insuficiente para chegarmos a qualquer tipo de conclusão determinante sobre até que ponto a Inquisição foi rigorosa. Anais do. destacando-o como um ser rústico dominado de ardente paixão. verificamos que a Inquisição passou a dar um tratamento diferenciado às culpas resultantes de feitiçaria no Reino e na colônia. Ou seja. A obediência à Igreja e ao rei era condição essencial para o triunfo da ordem monárquica. a partir de então. segundo Geraldo Pieroni. 10 PIERONI. era o Estado que se ocupava do delito da feitiçaria. revelava o oposto das leis divinas e humanas. Para Carlos Cavalcanti e José Ernesto Pimentel Filho. A feiticeira personificava o modelo supremo da subversão. Brasília: Unb. uma espécie de “contrapoder” misterioso que ameaçava o reino terrestre10. 2005. Sob influência de ideias iluministas. as práticas mágicas e as feitiçarias deixaram de inspirar medo e passaram a inspirar desprezo. não mais se admitiria o feitiço como culpa pertencente ao Santo Ofício. as autoridades inquisitoriais passaram a desprezar as crenças místicas e práticas religiosas. aos olhos dos legisladores da época. 165. Geraldo. período em que ocorre uma reconstrução e reformulação da intolerância exercida pelo Tribunal. é necessário salientar que antes da Inquisição. é fundamental destacarmos primeiramente o papel que a feitiçaria ocupava na fase anterior. manifestando-se como arquétipo da desordem universal. Universidade Estadual de Londrina. 03. Por essa ótica a feitiçaria representava a encarnação diabólica da desobediência. 2006. Para melhor compreendermos a importância desse período de transição. O comportamento dos feiticeiros. Assim sendo. por conseguinte. denominada de fase da Pedagogia do Medo. Dessa forma. essa mudança de paradigma fica evidente no regimento de 1774. p. Em meados do século XVIII.autores de fase da Pedagogia do Desprezo. mas principalmente devido às mudanças ocorridas no interior do próprio Tribunal. CD-ROM. 78 . ao desprezo a determinados grupos sociais por acreditarem em crenças mágicas. a quintessência da criminalidade sob todas as suas formas. p. Os excluídos do reino: a Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia. que levaram. pois. agora associadas à ignorância e superstição. no seu cotidiano. De breves e mandingas no caso de Matias Guizanda: intolerância inquisitorial e Estado no século XIX. negros ou mestiços. por sua vez. uso da arte do balaio. O resultado de tal percepção estará no conjunto de práticas processuais e princípios de mentalidade denominados de pedagogia do desprezo. compreendidos entre o final do século XVII e início do século XIX. predominante nessa região. Era o espírito iluminado do século XVIII11. Como consequência. Entre esses processos encontram-se os resultantes da ação inquisitorial no Estado do Grão-Pará e Maranhão. 16 (39). 2005. Antes. 11 79 . Piracicaba. em especial. sortilégios. ou seja. CAVALCANTI. cheios de superstição. Em relação ao primeiro aspecto. de cartas de tocar. Impulso. Se considerarmos que a Amazônia portuguesa. nesse período. ao fato de serem índios. podendo ou não ser de inspiração diabólica.O Tribunal não passara a ver na feitiçaria um bem. gerados justamente nessa fase. toda essa transformação resultou na “singularidade e riqueza” de determinados processos. 109-121. que se referem à qualidade das culpas. José Ernesto Pimentel. justamente porque traduzem esse período de transição do medo à pedagogia do desprezo. sem virtude. Carlos André Macedo & FILHO. Nos processos inquisitoriais analisamos as justificativas dadas para as sentenças proferidas. pelo contrário. definidas em geral como atos e palavras vãs. entenderam os reformadores que tais práticas eram impossíveis e que não parecia razoável se iniciarem processos a respeito de coisas impossíveis e absurdas. explícita ou implicitamente aparecem sempre associadas à qualidade do réu. as quais classificamos em dois tipos: as relativas à qualidade das culpas e à qualidade do réu. de práticas como benzedura. a importância desses processos enquanto fonte de pesquisa aumenta ainda mais. todos os casos por nós analisados dizem respeito ao crime de feitiçaria e práticas mágicas. e sim uma demonstração de ignorância. do uso de bolsas de mandinga. conjuro de demônio. Estas. era permeada. cujas práticas são ilícitas e desonestas e demonstram ignorância em relação aos assuntos da Religião. 2001. p.A estigmatização das crenças e costumes vigentes na sociedade colonial paraense. A pedagogia da desconfiança. Seguindo esse raciocínio. 13 DOMINGUES. respaldado pela legislação civil do Antigo Regime que mantinha os privilégios de linhagem da nobreza. 12 80 . 97-98. 96. exercendo dessa maneira seu domínio em novas atividades. principalmente em relação às crenças e costumes de origem indígena e africana. Evandro. p. A pedagogia da desconfiança. Campinas. A pedagogia da desconfiança. tratou com preconceito índios. típica de uma sociedade escravista. Por último destaca o contexto em que todos esses aspectos estavam inseridos. exacerbando os conflitos e tensões sociais existentes13. legitimando a hierarquização social existente. além da própria política regalista do período pombalino14. associada à feitiçaria pelo Tribunal. práticas culturais que antes eram vivenciadas na sociedade e toleradas pela elite colonial. Evandro. Exercendo. p. Mas o inquisidor Giraldo Abranches. Como consequência. com a visitação passaram a ser reconhecidas como heréticas. com isso. O estigma da heresia lançado sobre as práticas de feitiçaria colonial durante a Visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará (1763-1772). ocorreu devido à capacidade do Tribunal em classificar novos fenômenos em desvios. associando-os ao processo de secularização das instituições religiosas que preocupava a Igreja. DOMINGUES. negros e mestiços. resultando na intolerância e estigmatização sociocultural das mesmas12. Evandro. Da mesma maneira. Na prática. uma vigilância e uma punição pedagógica especial aos “réus de condição inferior”. 14-18. Dissertação (Mestrado em História) Unicamp. contribuiu o fato de o inquisidor agir de maneira diferenciada ao manter os privilégios da elite colonial. Evandro Domingues afirma que o estigma de heresia a esses saberes e práticas populares só foi possível devido à participação da elite e do clero colonial nas denúncias e testemunhos apresentados à Mesa do Santo Ofício e à existência de receios e preconceitos. 14 DOMINGUES. as denúncias e as confissões ocorridas na Mesa da Visita atingiram indistintamente indivíduos de todas as classes sociais. Portanto. Direito e Inquisição. Dessa maneira. a despeito da gravidade do delito e de se ter confirmado as culpas dos réus. expressamente por serem índios. pode-se compreender a variedade das sentenças proferidas pelo Tribunal. 62. as sentenças proferidas listaram vários aspectos. em geral. tinha que determinar a reconciliação do réu com a Igreja e a sociedade e. mal sabendo fazer as orações tradicionais de todo cristão ou sabendo apenas as coisas necessárias e indispensáveis à salvação. para isso. era fundamental verificar o grau de instrução do réu. 16 CIDADE. era determinante a natureza do crime e a condição social do réu. a sentença. a sentença possuía uma natureza “multifacetada” devido ao seu “caráter plural”17. de natureza bárbara e selvagem. nascidos e/ou criados no sertão. 17 CIDADE. como o fato dos réus serem de indigna moral. por viverem nas trevas do paganismo e da gentilidade. Curitiba: Juruá. deveria constar “a satisfação pública pelos erros cometidos. p.No que diz respeito às justificativas relativas à qualidade do réu. Direito e Inquisição. ainda que juridicamente o Tribunal se baseasse no Regimento de 1640 para estabelecer suas penas. ao fato de não terem cultura. os réus ao cometerem os seus delitos agiram de acordo com a sua capacidade. Rodrigo Ramos Amaral. Essa justificativa também esteve atrelada. Em outras palavras. No caso específico do crime de bigamia. Rodrigo Ramos A. serem de natureza rústica. no entendimento do Tribunal. p. as penitências e as penas”15. em alguns casos. essa justificativa foi utilizada especialmente para o abrandamento da pena. pois. Nesse sentido. E. ou seja. 74. Direito e Inquisição – o processo funcional do Tribunal do Santo Ofício. Sabemos que no modelo jurídico inquisitorial. p. pois essas estavam condicionadas às especificidades de cada processo. por isso. quanto mais letrado na religião. 15 81 . além de estabelecer os castigos aos transgressores. a “rusticidade” do réu servia como “atenuante”16. 2005. 61. CIDADE. mais severamente era punido pelo Tribunal. Rodrigo Ramos A. nenhuma instrução na religião. neófitos e. O primeiro refere-se a Francisco da Costa Xavier. de natureza especificamente religiosa. meses e anos. No nosso entendimento. o fato de serem neófitos. continuava a punir com rigor determinados tipos de delitos. portanto. Nos processos referentes ao período da visitação. Ou seja. civilizar os costumes. viverem na extrema pobreza e miséria. pecuniárias. ignorantes nos assuntos da fé. recebendo por esse delito todas as penas previstas pelo modelo jurídico inquisitorial (físicas/ corporais. denunciado ao Santo Ofício em 1770 pelo crime de sacrilégio. portanto.Também encontramos nas sentenças o destaque à situação social e econômica vivenciada pelos réus. Verificamos que essas condições sociais foram utilizadas como atenuantes nas aplicações das penas. Fugindo. 82 . a despeito da rusticidade do réu. negro escravo. do padrão de sentenças estabelecido pelo Tribunal para os outros casos ocorridos neste período. a saber: de não saberem falar nem escrever na língua portuguesa. a exercer a sua função de órgão da 18 ANTT/PT/TT/TSO-IL/028/719 (Francisco da Costa Xavier). E como justificativa sempre ressaltou a qualidade do réu que as praticou. não saberem contar os dias. tanto nos crimes de feitiçaria e práticas mágicas como nos de bigamia. Compreendemos que as sentenças proferidas nos processos inquisitoriais analisados evidenciam o compromisso da Inquisição com a política de Pombal de civilizar essa população. esses aspectos revelam a preocupação do Tribunal em disciplinar. serviu como atenuante para justificar suas sentenças. enfatizando sua natureza bárbara e selvagem e o seu total desconhecimento nos assuntos relativos à Religião e à Fé Católica. pois o referido Tribunal. Isso demonstra que mesmo no final do século XVIII. sendo a maioria dos réus constituída por escravos. e evidenciam certa tolerância do Santo Ofício com esta população de neófitos que compunham o Estado do Grão-Pará e Maranhão. encontramos dois que se destacam pela sua excepcionalidade. continuando. espirituais)18. o Santo Ofício. privilegiou a imposição de penas espirituais e pecuniárias em detrimento das penas físicas/corporais. a despeito de todo o trabalho missionário realizado pelas ordens regulares desde o início do século XVII. por esse motivo. e o marido foram simplesmente liberados para viverem em sua roça. Segundo. No caso específico. por último. Primeiramente. que restringe a liberdade do indivíduo de ir e vir. contribuiu para o abrandamento da pena. ter passado quase um ano presa no aljube eclesiástico. pois nos possibilitou conhecer como foi exercida a ação pedagógica do Tribunal na Amazônia portuguesa.vigilância da fé. Esse desfecho também foi possível devido ao fato de a ré. a análise dos processos inquisitoriais nos proporcionou visualizar outro lado da ação repressiva do Santo Ofício. No processo é possível notar o desprezo com o qual foi tratada a índia Ana Elena e que. Incluímos como pena física. a despeito do caráter político e secular que a instituição passara a ter no governo de Pombal. denunciada em 1768 pelo crime de fingimento19. caso fossem convocados. 19 20 83 . por fim. se considerarmos o número geral de processos identificados. e que os restantes 38 não receberam. Portanto. E. que foi de 55. Determinava ainda a obrigação de comparecerem à presença do Vigário Capitular. pois diz respeito a uma libertação condicional. ainda que tenha sido estabelecida sobre eles a restrição de não se ausentarem do local onde viviam além de não poderem sair dos limites da Vila da Vigia onde moravam (penas físicas/corporais)20. constatamos que a ação repressiva ANTT/PT/TT/TSO-IL/028/7103 (Ana Elena). a saber: que o Tribunal do Santo Ofício atuou com certa brandura em relação à maioria da população que habitava a região. o processo referente à índia Ana Elena. observamos que a Inquisição constatou a debilidade do cristianismo existente na região. sendo que desses apenas 17 receberam sentenças. E. incluímos esse caso no grupo dos treze processos em que constatamos a existência de certa brandura do referido Tribunal para com os réus. além de ter confessado as suas culpas. no nosso entendimento. Temos. a ré. podemos observar que esses dados reforçam o que foi dito anteriormente. seja punindo com rigor em determinados momentos ou. 84 . em transformá-la de fato em vassalos do rei. Tudo isso nos demonstra principalmente o principal objetivo da visita. No caso específico. de acordo com a ortodoxia católica. evidenciando. então. a preocupação em civilizar essa população. cafuzos e mamelucos. negros. os processos inquisitoriais analisados nos revelaram a preocupação em disciplinar e normatizar os costumes de índios. que era de integrar essa população à sociedade portuguesa.do Tribunal foi preterida em função de uma ação mais pedagógica e tolerante em relação aos delitos de responsabilidade do Santo Ofício. assim. absolvendo em determinados casos. de presença jesuíta. não iremos utilizar os nomes oficiais com que. entre outros espaços Brasil. Malásia. A sua primeira atividade apostólica foi ao serviço da Coroa Portuguesa.Ensino e Missão Jesuíta no Oriente1 Leonor Diaz de Seabra Universidade de Macau Maria de Deus Beites Manso Universidade de Évora 1.Goa2 A Bula Regimini Militantis Eclesiae de 27 de Fevereiro de 1540 assinala a fundação oficial da Companhia de Jesus. apenas. 1 85 . devido à relevância que alguns “nomes geográficos e/ou administrativos” conseguiram ao longo do tempo. sobre o ensino. Assim. Indonésia.1 Província do Norte . que viria a alcançar o seu ideal apostólico de missão nas suas vertentes educativa e missionária. que agora se apresenta em co-autoria com a Profa Leonor Diaz de Seabra. António da Silva. Agência Geral das Colónias. Missões na Índia 1. para Macau. Japão e China. com o apoio da Fundação Macau-China – pela atribuição de uma bolsa de curta duração. tendo-me permitido a possibilidade de uma visão comparada sobre a ação dos jesuítas no Oriente e tornado possível a reescrita e ampliação do tema. Por opção própria. foram designadas. encontrando. uma das grandes polarizações e novidades do seu carisma e ordem religiosos3 ‒ chegaram a regiões distantes. ao longo dos anos. O seu trabalho originou uma nova ideia de missão que. Índia. O Padroado Português do Oriente. 2 Atendendo à complexidade da designação administrativa das regiões sob orientação espiritual ou. igualmente. O estudo conta. 2009. 1940. subjacente ao impulso evangélico das origens O trabalho conta com o Apoio da FCT. essencialmente. 3 REGO. Esboço Histórico. inseriram-se na estrutura missionária do Padroado Português e acabaram por irradiar uma imensa pregação dos espaços e sociedades não-europeus. Constituídos em torno de Inácio de Loyola deram origem a uma nova Ordem. Lisboa. resolvemos aplicá-los. O estudo incide. precisamente nos espaços ultramarinos concorridos pelas conquistas e tratos ibéricos. Seminário de S. Colégio do Topo (séc. 1935. Colégio do Espírito Santo de Diu (1601). Uma das características foi a construção de edifícios. 4 86 . A Companhia de Jesus em Portugal e nas Missões. atualmente. Colégio de Tuticorim (séc. Cruz de Vaipicota (1584). conferido ao termo colégio. Colégio de Ternate (séc. Pedro e S. Perscrutando as fontes não encontramos ou quase não encontramos referências em relação à sua atividade4. Colégio de S. XVI). Seminário de Meliapor (séc. Colégio de Malaca (1576). os jesuítas criaram a Província do Norte. e a do Sul. Malabar. Muitos deles ficavamIndependentemente da discussão. Colégio de Meliapor (séc. XVII). No entanto. XVII). Paulo de Chaul (1611). Colégio de Nª Sª do Nascimento de Agra (1630). seria um lugar no sentido amplo e não restrito do conceito tal como hoje o entendemos. Colégio das Onze Mil Virgens de Damão (1581). XVI). tomemos como exemplo os estudos recentes de Jin Guo Ping os quais questionam que não se tratava de um espaço de escolarização e formação para os jesuítas. Muitos deles não passaram de centros de propagação missionária. como locais de ensino: “ciência” e doutrina. Seminário de Cochim (1560). os seguintes colégios e residências nas duas províncias jesuítas. na Índia: Província de Goa: Seminário de Santa Fé de Goa (1542). Colégio de Santo Inácio de Rachol (1574). XVI). Colégio de Negapatão (séc. indicamos. XVII). Seminário de Coulão (séc. XVI). Colégio de Bengala (séc. Porto: Edições do Apostolado de Imprensa. Colégio da Madre de Deus de Taná (1599). XVI). Embora um novo conceito se tenha. Colégio de Cranganor (séc. se começou por organizar em torno de uma dinâmica concepção de «conquista espiritual» com que se procurava converter à fidelidade da Igreja de Roma todo aquele que «simplesmente» ignorava ou se havia afastado das doutrinas católicas. XVII). XVII). Usando a terminologia do padre Francisco Rodrigues foram muitos os Colégios e Seminários construídos pela Ordem. Colégio de Colombo (séc. XVI). mas nós iremos optar pela leitura tradicional e entendê-los. Colégio de Coulão (séc. Colégio de Ascensão de Moçambique (1613). Seminário de Taná (1551). Escola de Bandorá (1576). Colégio de Jafanapatão (séc. Na Índia. isto é.da Companhia. Goa. XVII). Colégio de Jesus de Baçaim (1548). baseadas na informação recolhida na obra de RODRIGUES. Francisco. Seminário de Ambalacate (1663). nem todos lograram a mesma notoriedade. Colégio de S. Colégio de Ambalacata (1633). onde se desenvolve ensino e uma base para as missões. Seminário de Tuticorim (séc. sobretudo. mas de uma espécie de agregado da Ordem. Província do Malabar: Colégio da Madre de Deus de Cochim (1560). Paulo (1548). XVII). Seminário de Rachol (ano da fundação desconhecido). Paulo de Nagasaki. sobretudo. jan. Estampa. mas também o centro econômico. de. na ausência de D. Lisboa: Difel. a 2 de Agosto de 1542. 8 A primeira atribuição das rendas dos pagodes foi feita pelo vedor da Fazenda. 804-808). p. Fac.se pelo ensino das primeiras letras e “humanidades rudimentares”5. três colégios fundados pelos jesuítas: S. A primeira instituição a ser formada foi a Confraria da Santa Fé (1540). Fernão Rodrigues de Castelo Branco. 7 THOMAZ. havia quase meio século que se tinha iniciado um processo de ocidentalização e cristianização das populações. 756-771. consignou-a aos Padres da Companhia (Ibidem. escreve: “Quando nos anos 40 do século XVI. os Portugueses destruíram quase trezentos templos hindus em cada uma das três talukas. A primeira experiência missionária que teve resultados de sucesso foi em Goa. Em 1533 foi criada a diocese de Goa e foi instituída em arcebispado metropolitano em 1557. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu. S. para se lavrar o respectivo tombo (Ibidem. tornando-se não só a capital política. Documenta Índica.177. Joseph (ed. obrigando as populações locais a submeterem-se à jurisdição portuguesa6. Paulo de Macau e S. Luís Filipe F. Era cativa de encargos para a restauração de algumas hermidas e capelães da cidade. WICKI. 1948. Paulo de Goa. não só para difundirem o Cristianismo. Essa provisão perdeu-se. 6 SOUZA. I: Índia”. adoptaram a política de conversão. Goa Medieval. Lisboa. p. Teotónio R. Na Ásia destacam-se. mas também para o desenvolvimento do clero e para a difusão das letras e da cultura ocidental. Domingos. p. na destruição das culturas locais. Estêvão da Gama. Jorge Cabral publicou. quando servia de Governador. criou-se um seminário em 1542 (Seminário da Santa Fé de Goa). favorecida com bens confiscados aos templos hindus8. pp. Era a primeira cidade da Ásia sujeita à soberania portuguesa. I. Martim Afonso de Sousa. 1994. p. então. Revista Portuguesa de Filosofia. 248-254. A Cidade e o Interior no Século XVII. . 801) permitindo-lhes que arrendassem a recolha dela ao brâmane Ramu Sinay (Ibidem.mar.1. 1994. construído pelo Vigário Geral Miguel Vaz e pelo padre MAURÍCIO. 87. sobretudo. Vol. De Ceuta a Timor. a 28 de Junho de 1541. “Para a História da Filosofia Portuguesa no Ultramar. Aqui. R. p. Uma média de quatro a cinco templos em cada aldeia sugere que terá sido exercido sobre a vida rural um inimaginável controlo religioso”. Lisboa: Ed. 498). 5 87 . incidindo. como foi o caso da fundação de colégios e seminários7. dando origem a uma série de fundações. obra de beneficência.). 1945. cultural e religioso da Índia Portuguesa. p. novo diploma de manifestação de terras. S. 11 FIGUEIREDO. vol. ” . nada se podria conseguir sin portugueses. Esses. “Para a História da Filosofia Portuguesa no Ultramar”. y segunda. doutrina cristã e música sacra. 1542. 312. Francisco . Documenta Indica. p. G. Salvo raras exceções. Bastorá: Tip. como reitores. a arrecadar nas rendas reais da cidade de Goa10. Francisco Xavier.SCHURHAMMER. 1935. João III doou-lhe uma tença anual de 800. Duas Lendas: O Cisma de Goa e Ignorância do Clero Goês. A Companhia de Jesus em Portugal e nas Missões. Epistolae S. Joseph (ed. excluindo portugueses e mestiços12. 254-255 também escreve que nessa altura se ministrava cátedras de Latim. tendo sido entregue aos Jesuítas no ano seguinte. Compañía de Jesús. porque los portugueses de la India solo querian confesarse com Padres portugueses y nunca com indios e mestizos …El padre Maestro Francisco estaba de acuerdo en lo referente a la fundación de los colégios para portugueses y nativos. pouco depois. Luís Filipe. o seguinte: “… habia dos razones por las que nom se podia reclutar de entre los nativos la Companhia de Jesús en la Ínida: primeira. 58.). 1992. 121. D. I. mas só em 1548 foi totalmente confiado à Companhia”: RODRIGUES. Francisco Xavier aconselhou a introdução do ensino da Gramática. Apostolado da Imprensa. Domingos. Numa nota. De Ceuta a Timor. 12 Documenta Indica. Francis Xaverri. carta do Padre Lancilote. de 1546. apurou que a maioria dos alunos só sabia ler. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu. MAURÍCIO. Joseph Wicki diz ser a Rationis Studiorum. publicada por WICKI. 10 SCHURHAMMER. filosofia e teologia.I. pp. para se evitarem discórdias e inimizade entre os alunos. A entrada dos alunos caía entre os treze e quinze anos de idade. Uma carta datada de Goa. Quando S. siendo la mayoria de ellos de carácter débil. “alguma cousa de Sagrada Escritura ou de Matéria de Sacramento”11 e. de Filosofia. apenas decidiram aceitar os nativos puros. WICKI. Francisco Xavier aqui chegou. T. rezar e escrever. essa regra manteve-se ao longo dos tempos. Roma: Insitutum Historicum Societatis Iesu. Francisco Xavier recomenda. 1948. vol. Paulo.108-109. I. III: Índia: 1547-1599. p. por causa do conhecimento que já tinham da língua. João de Castro criou as escolas paroquiais. pregariam o Evangelho nas suas próprias terras. Recomenda que os alunos sejam ensinados pelos livros e doutores mais apropriados à religião.000 reis. não nos fornece essas informações. 142. Gobierno de Navarra. Documenta Indica. lógica. p.9 A 8 de Março de 1546. Tomo I. Mas o principal colégio jesuíta na Índia foi fundado em 1548. p.Diogo Borba. Joseph. diz aí serem ensinadas: gramática. Su vida y su tiempo. Vol. Registrou o que o Padre Niceno Figueiredo escreveu e muitas dessas matérias só aparecem integradas no currículo do Colégio de S. 1939. 9 88 . 446. Rangel. WICKI. onde se ensinava português. Pelo Clero de Goa. p. Arzobispado de Pamplona. Niceno de. de Moral e de Dogmática e em 1545 D. 1945. Foi fundado por Miguel Vaz e Diogo Borba: “desde 1542 começaram os jesuítas a ter nele ingerência como professores e directores espirituais e. ordenados sacerdotes. THOMAZ. Georg. artes. J. Porto: Ed. p. Lisboa. baseado no fraco rendimento pedagógico e moral dos alunos. o colégio indígena foi restaurado. em breve. Jorge Cabral: Ceilão e Malabar”.Colégio de S. Nesse mesmo ano o Reitor. Chegados a essa idade. 15 Documenta Indica. na primitiva instituição15. Em 1549. a fim de que este os fizesse entrar no tombo do Colégio da Santa Fé e as respectivas rendas pudessem ser arrecadadas. vol. causando grande celeuma na cidade. “Vice-Reis e governadores xaverianos. II. A mobilização do pessoal começou logo. Paulo considerava-se como uma Escola apostólica da Ordem e como Seminário de missões para a formação do clero 13 THOMAZ. podiam voltar para suas terras como catequistas ou elementos cristãos de escol. mas limitando a permanência dos alunos até aos quinze anos. Álvaro Afonso. o número de colegiais abranger quarenta. 14 Documenta Indica. procedeu de imediato à sua reorganização. das quais nove eram da Costa da Pescaria. à formação superior. Tal fato levou à desistência dos estudantes indígenas. mas. mas todas as outras fontes referem 1548. aplicando sanções rigorosas aos ocultadores16. fasc. 1954. 16 MAURÍCIO. com o objetivo de completar oitenta crianças. LVIII. Broteria. Luís Filipe. simplesmente. devendo. ao qual ficou anexo o Seminário da Santa Fé. Juntamente com o colégio da Madre de Deus de Macau foi um dos principais centros de cultura europeia em toda a Ásia. sem trabalho. se não quisessem entrar na carreira eclesiástica. padre António Gomes. pp. 255. António Gomes. revista contemporânea de Cultura. Com a vinda do novo governador. vol.15. pp. De Ceuta a Timor. De Baçaim e Cochim. rezar e latim. 219. optando pela separação dos alunos indígenas dos alunos portugueses. Paulo. 142 e 148. p. Os colegiais indígenas passaram a viver à parte e defendia que esse estabelecimento de ensino se destinava. preferindo os colegiais portugueses14. 10-11. enviaram também algumas. Paulo de Goa13. 140. o Governador Jorge Cabral publicou uma provisão. O colégio de S. vol. Domingos. O padre Lanciloto encaminhou quinze crianças de Coulão. p. 2. para aprenderem a ler. indica o ano de 1557 como ano da construção do Colégio de S. pela qual sujeitava todos os portadores de bens dos antigos templos gentios e seus servidores a declará-los ao vedor da Fazenda. II. 89 . escrever. 7. nº 1. Lisboa. Latim. scilicet. Eu assumo-a como tal. en una universidad de la Orden para filosofía e teología”18. Aconselhamos a seguinte leitura: Monteiro. esse colégio “debía transformar-se en un segundo Coimbra. tornava-o diferente. citado por Almeida. SOUZA. Porto: Livraria Magalhães e Moniz Ed. p. T. escreve: “Nas Províncias do Oriente observavam-se programas idênticos. Sobre o Curso Conimbricense. Ibidem. Os Jesuítas e o Ensino Médio. Francisco de. ensinarem aos moços e estudantes.. Francisco. 13: “juntamente com a virtude e bons costumes. não tinha diferenças notáveis20. .dez. “Um Documento seiscentista da Companhia de Jesus na Índia”. 1957.” O autor não refere se esta comparação é relativa à Índia. p. p. Alfred. op. Oriente Conquistado. letras humanas e divinas. três lições de Teologia especulativa e moral e uma de Escritura Sagrada21. Texto policopiado. Ibidem.” 22 Rodrigues. Francisco Xavier. p. XLVII. 322. Idem. Revista Portuguesa de Filosofia. “continuando a tradição do humanismo com o método sólido e racional da ‘Ratio Studiorum’”. Filosofia em Portugal. no início. No Colégio de Goa os estudos organizavam-se em três classes de latinidade. conq. A sua organização. out. Filosofia e Teologia moral e especulativa. nele falavam-se entre oito e dez línguas distintas e. II. Contributo para uma análise da respectiva ação pedagógica. VI. devido à sua inserção local. Ibidem.. p.indígena para os países localizados a Este do Cabo da Boa Esperança. “Tradição e transição do Curso Conimbricense”. e em muitas partes também os meninos a ler e escrever. A Formação Intelectual do Jesuíta. p. 322. Adelino de Almeida no artigo “Um Documento seiscentista da Companhia de Jesus na Índia”. Segundo a opinião do padre Simão Rodrigues. quando comparada com os colégios na Europa. div. 1917. vol. 20 CALADO. 321. embora simplificados. 13. LXIII. I. 4. 19 Idem. quer nas funções educativas quer missionárias. Su vida y su tiempo. 445. aconselhamos a seguinte leitura: DINIS. 21 RODRIGUES. limitavam-se a repetir o que escutavam. Georg. Brotéria. 173. p. insistiu-se na importância de os padres estudarem as línguas locais. Fasc. quando os alunos não dominavam ainda o português. A fim de dispensarem intérpretes.17 Era destinado a alunos de Filosofia e Teologia da Companhia e a todos aqueles que frequentavam outros colégios e manifestassem capacidades para estudos de Filosofia. & 41. Braga. um curso de Artes. Por exemplo. 1991. T.22 SCHURHAMMER. Artes. Mas seu funcionamento. Lis17 90 . cit. Miguel Maria Santos Corrêa. e aquí “Enseñarán por los libros y doctores más acreditados en su Orden”19. p. Comemorando 450 anos da Companhia de Jesus. 18 Idem. Adelino de. Francisco. III. A Companhia de Jesus em Portugal e nas Missões. 1939. a não ser nos casos pontuais em que fosse de todo impossível harmonizar as posições do Estagirita com a ortodoxia da fé católica23. 178-179. 1999. Domingos. II. out. no Ginásio já liam Cícero. p. com a chegada do P. Artes. 1991. cit. Braga. a escrever e a contar. Filosofia. pois. escrita. Joseph. indica-nos o nome de professores associados às respectivas matérias: Professores de Teologia. Essa organização de estudos parece ter-se mantido até à saída dos Jesuítas. escrever e contar.. com três classes de latinidade. p. a organização dos estudos secundários compreendia Música. Um documento também citado por Wicki. Niceno de. Fasc. Revista Portuguesa de Filosofia. especulativa e moral. 181. o Colégio de S. Documenta Indica. Escola Elementar: ensino da leitura. Tem mais escolas de ler. Rangel. com Religiosos por Mestre e dous ajudantes seculares assalariados”. p. 24 Maurício. 23 Dinis. Alfredo. Braga.. p. 3.cit. um curso de Filosofia e uma cadeira de Moral. Documenta Indica…. contas e o ensino da doutrina cristã. dá-nos mais algumas informações. Domingos. vol. O Padre António Quadros foi o primeiro lente de Filosofia. Fernão Guerreiro refere que no Colégio de Goa se lê Latim. nessa altura. Virgílio. um dos eminentes professores da universidade de Coimbra.. Para Domingos Maurício. “Tradição e transição no Curso Conimbricense”. op. Gramática.dez. acrescentaram-se duas cadeiras de Teologia Especulativa24. Para uma melhor eficácia do ensino ultilizavam: discussões públicas. Casos. vol.A Ratio chama a atenção dos jesuítas para a necessidade de respeitar as Constituições quanto ao programa de estudos. Bstorá: Tip. Retórica. teologia. Goa Medieval. no século XVII. citando Mariano Saldanha escreve também que os estudos jesuíticos só começaram em 1555. Humanidades e Escola de Ler e Escrever. T. o que implicava o seguimento de Aristóteles corretamente interpretado. na introdução escreve que o Colégio tinha: Estudos Gerais: 2 classes de humanidades. Duas Lendas o Cisma de Goa e a Ignorância do Clero Goês. No colégio. Filosofia e Teologia. Figueiredo. Revista Portuguesa de Filosofia. 1991 e “Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599-1999)”. 1557. 91. 25 Citado por Maurício. 994. jul. op. Pelo Clero de Goa. LV. as aulas do colégio tornaram-se públicas. destinado aos alunos jesuítas e também a seculares. tres de Theologia. cit. Também um documento datado de 1666. . S. 538. pp.-set. Adelino de Almeida. Teotónio de. ensinavam-se as primeiras letras. O autor do texto escreve que essa obrigação não constituiu obstáculo à liberdade de investigação dos jesuítas. lógica. op. diz-nos que. escrito por Manuel Barreto. Souza. Tomás. Na Filosofia seguiam Aristóteles e na Teologia. conclusões e representações públicas. Teologia e casos de consciência e há também escola de meninos. A partir de 1556. mas 91 . Tomo XLVII. hum de Philosophia. 4. publicado e analisado por Calado. Fasc. António Quadros e consistiam em gramática e casos de consciência. Ovídio e Sédulo. XVI. 313. p. Acabado o curso de Artes. Paulo “Tem escolas geraes com tres mestres de Latim.25 Luís Filipe Thomaz diz-nos que aqui boa. cit. p. Na escola de S. embora simplificados”. Nas Províncias do Oriente observavam-se programas idênticos. destinadas a formar catequistas. na prática. ou sobre a natureza dos currículos. representa uma tentativa a valer que infelizmente não se efectivou”. 92 . o currículo incluía língua e literatura latina. e dos Franciscanos em Reis Magos. XIX. p. o historiador Ugo Baldini diz-nos que possivelmente (…) toda a província missionária deveria de dispor de um cursus studiorum completo. No que diz respeito ao ensino da Matemática não encontramos muitas informações. História do ensino médico na Índia Portuguesa. porque essa era uma área muito apreciada pelos nativos de mente voltada para os negócios. escreve na p. a data de 1691. que depois regressavam às suas aldeias e auxiliavam os sacerdotes das suas paróquias na conversão dos outros aldeões. conhecimentos religiosos artes liberais. quando elas foram introduzidas. Os relatos de Jesuítas da época dizem que não era raro encontrar adultos nas aulas de aritmética. com um triénio de filosofia incluindo um ensino anual de matemática e deveria formar automaticamente especialistas em todos os sectores. Por isso.. dos Jesuítas em Rachol. o Colégio de S. Paulo era formado por duas instituições. Alberto Germano da Silva. que não interessavam à finalidade da pedagogia inaciana. optei pela apresentação das diferentes citações e sou da mesma opinião de Teotónio de Souza que. os estudos que nós consultamos têm dificuldade em indicar uma data precisa para a inauguração do ensino da medicina em Goa até o séc. pode ser considerado como um esboço de tentativa de inauguração da aprendizagem médico-cirúrgica em Goa. e a outra para os que queriam ser literatos e saber matemática (aparece assinalada como contar). Paulo. uma para os que queriam ser padres. também para a lamenta a falta de fontes para o esclarecimento sobre a matéria: “Não há muita informação que nos permita alargarmo-nos sobre o modo como era conduzido o ensino. No entanto. Adelino de. Havia igualmente lições na língua vernácula. penso que se refere aos colégios da Índia. as fontes não são muito esclarecedoras e algumas matérias não estão suficientemente tratadas. Nova Gova: Imprensa Nacional. incluindo música vocal e instrumental. sem referir qualquer colégio e época. para rapazes. op. Mas nas escolas mais desenvolvidas. De fato. Luís Filipe. portanto não partilha da informação de Luís Filipe Thomaz: “ Ficavam excluídas a Medicina e o Direito (Leis). Por conseguinte. 3: “Se 1534.13. Paulo. dirigida pelos jesuítas na cidade de Goa. sobretudo. parece haver algumas diferenças nas matérias lecionadas e. 255.também funcionou durante algum tempo “secularizada e tornada a Aula de Medicina em 1703. a cargo das ordens religiosas na Velha Goa. Diz-nos que aí não existiu medicina. Parece-me que.. prestava-se atenção especial à aritmética. 26 Thomaz. op cit.” Do que citamos sobre as matérias lecionadas no Colégio de S. Mas dado o artigo se referir à Índia. constituiu assim o embrião da Escola Médico-Cirúrgica instituída oficialmente em 1842”26. Almeida. exceto ao referirem que nos dois colégios se ensinava a contar. sendo obrigados a aprender o latim clássico. Filosofia e Teologia Moral. generalizando todos os colégios jesuítas. infelizmente. 1917. Corrêa. depois reforçada por uma Aula de Cirurgia em 1716. quer a que se converteu na década de vinte do século XVI. o proceder dos missionários também se vai modelar por alguma peculiaridade. Tomo LIV. tanto no que toca ao comércio como à missão religiosa. 220-221. 1988. 1998. (…) Algumas vezes. abr. 205-206.189-289. Cosmos. O Cristianismo 27 Baldini. Diplomacia e Guerra (1498-1543). durante as viagens para a Índia. aconselhamos a leitura do texto em questão. 93 . Luís Filipe. abalam seriamente as pretensões lusas. Tomé.2 Província do Sul – Malabar Observando as características da presença portuguesa no Malabar. Trato. Só alguns colégios “máximos” das províncias asiáticas tiveram o “cursus” completo (só Goa e Macau com continuidade). Fasc. estudavam várias disciplinas. quando se encontrava em Goa. Também Cristóvão Bruno. e a ameaça holandesa na região. 1. “As Assistências ibéricas da Companhia de Jesus e a atividade científica nas missões asiáticas (1578-1640). logo. a Arábia e a Arménia: De nova mundi Constitutione juxta systema Tichonis Brahe aliorum que recentiorum mathematicorum. mas durante muito tempo isso não aconteceu. que deu a conhecer a teoria da tenuidade dos céus a áreas tão distantes como a Pérsia. 28 Sobre o assunto aconselhamos a leitura dos seguintes trabalhos: Flores. como nos colégios ibéricos. quer a que remonta aos tempos do Apóstolo S. 1998. os professores de filosofia supriram a ausência da matemática inserindo um tratado da “esfera” no curso de filosofia natural. p. op. Aqui. . p. a ação lusa subordinava-se à anuência dos reis locais. o missionário europeu ou tinha a sua ação cerceada ou resignava-se aos interesses da terra – adaptava-se28. Os Portugueses e o Mar de Ceilão. Assim também no século XVIII as missões dependeram da Europa para o pessoal matemático e quase totalmente para professores de filosofia e teologia”27. Ugo Baldini refere que os missionários jesuítas. Diz-nos também que as cartas trocadas entre as missões asiáticas e Roma contribuíram reciprocamente para a informação sobre a “ciência” em ambas as partes: o telescópio e as observações de Galileu no Sidereus Nuntius eram já conhecidos em Goa. em 1523.jun. cit. Lisboa: Ed. Alguns aspectos culturais e institucionais”. como era o caso da matemática. Jorge Manuel. escreveu um pequeno tratado. Thomaz.matemática se deveria desenvolver um automatismo reprodutivo. mas semelhantes tratados elementares não davam uma preparação técnica. As comunidades cristãs que aqui estavam. Braga. p. Ugo. em 1612. Revista Portuguesa de Filosofia. 2. Para maior esclarecimento sobre o assunto. percorreu o Malabar e visitou Cochim. obteve do capitão Francisco da Silva Meneses e da população cristã uma extensa chã. S. Press. cujo rei procurou também atrair à fé31. 1992. pelos Franciscanos. O projeto. p. apenas. History of Christianity in India. vol. a existência de grandes comunidades cristãs. fundado por Frei Vicente de Lagos. ainda em tempo de Garcia de Sá. teologia e cantochão. foi fundado o Colégio de Cranganor: Mundadan. Anthony. 32 Ibidem. no melhor sítio da cidade. Xavier passou por Cochim. Referimos. I. levava o intento de edificar um colégio da Companhia nessa cidade30. A.na Índia. estes aceitaram converter-se em troca de proteção do rei português. Tomé. P. por um fidalgo da família dos Mendonças e valeria mais de 1. 1989. entre 1521-1527. segundo a lenda. Com a finalidade de latinizar os cristãos de S. quando o P. destinado aos filhos dos cristãos de S. não se concretizou. da Costa da Pescaria)29. 30 Documenta Indica. atendendo à grande instabilidade na região. o colégio tinha 150 alunos portugueses. desde 1540. todavia. Aconselhamos a seguinte leitura: E. que fora fundada 40 anos antes. No entanto. prende-se com a conversão ao Cristianismo. com aulas de latim. I. António Gomes. vol. pois.100 cruzados. Bangalore: Church History Association of India. No caso destes últimos. Mais tarde. 323. Ernakulam: I. em Janeiro de 1552. com uma igreja adjacente. de milhares de Paravás (pescadores de pérolas. Isto não invalida que não tenha havido conversões individuais e convictas. 289-291. em 1549. um seminário franciscano. junto ao mar. 417. p. 29 94 . Embora alguma documentação refira que. em Dezembro de 1548. mestiços e indígenas32. Tomé ‒ cristãos de rito oriental e. coberta de palmares. mas política. I: From The Beginning Up To The Middle of The Sixteenth Century. The History of Latin Catholics in Kerala. Juntaram a essas ofertas mais de 600 pardaus. Na província do Malabar havia. com a finalidade de latinizar esta cristandade. 31 Ibidem. mais tarde. provocada pelos interesses portugueses e muçulmanos. p. pp. remonta ao tempo do apóstolo São Tomé ‒ Cristãos de S. Francisco Rodrigues indica 1560 como data da construção quer do colégio da Madre de Deus quer do Seminário de Cochim. Quando. M. as razões da conversão não foram de natureza dogmática. vol. já podiam albergar cinquenta pessoas e. Tomé. em Cranganor. 556. vol. O termo farangi. 33 34 95 . mas pela dificuldade que houve na conversão das populações locais . particularmente no interior. tornou-se uma rejeição social. a atuação missionária jesuíta alargou-se para interior. no entanto foi fundamental para a instrução dos cristãos locais. 521. A força das castas e a ausência de apoio militar português na região dificultaram a entrada do Cristianismo. O padre jesuíta Gonçalo Fernandes conseguiu consentimento do Naique – título do rei local – do Maduré para viver e doutrinar na região. que não respeitavam o preceito de pureza da casta.Maduré. A Companhia de Jesus em Portugal e nas missões. Pelo fato. Independentemente do número de alunos e do currículo lecionado. publicado por Wicki. Quando em 1605 foi criada a província do Malabar. XVI: (15421594).1000. Documenta Indica.alguma documentação aponta que em 1594 no Colégio da Madre de Deus33 já se lecionava o ensino elementar34 e aí havia dois professores de humanidade: primeira classe e segunda classe e aula de latim. não Documenta Indica. transformou-se o principal colégio. em Janeiro de 166335. Uma outra região do Malabar que aqui queríamos destacar. p. 60. O catálogo de 1594. I. no sul da Índia. Os missionários eram tidos como pertencentes às castas dos intocáveis. tendo 9 alunos. cessando com a tomada de Cochim pelos holandeses. Esse nunca atingiu o prestígio e nível de ensino do de Goa. não por aí se terem construído colégios. juntamente com o seminário que tinha anexo. que até o momento se situava nas regiões costeiras. Mas os resultados foram escassos. Francisco. que qualificava os Europeus. que obrigava à adaptação dos missionários e a uma maior exigência pelo conhecimento das culturas locais. Vol. p. centro da cultura Tamil. Em 1559. o poder era hindu e a ocidentalização conhecia uma série de obstáculos. tendo nove alunos. foi o principal centro de cultura em Cochim. 35 Rodrigues. p. Joseph. A província do sul. Aqui. o Malabar. o Maduré. era uma das regiões que exigia maiores cuidados na aplicação das metodologias missionárias. fundado pelos jesuítas. diz aí haver dois professores de humanidade: primeira classe e segunda classe e aula de latim. Os brâmanes não entravam em contato com tais missionários. no Maduré. em 1559. Fernandes. Pouco depois da sua chegada. Lisboa: Pedro Crasbeeck. com a anuência do provincial e do ordinário. Este era filho maior do conde Pier Francesco Nobili. três de Nayaks e de outros. Nobili começou a viver sozinho. estudou teologia no Colégio Romano e. se desencadeou uma outra missão. Diogo. Relaçam annual que fezeram os padres da Companhia de Jesus nas partes da índia Oriental & em algumas outras partes da conquista deste reyno no ano de 606 & 607 & do processo de conversão da christandade daquelas partes. Fernão. composta de dois brahamanes. muito personificada na tarefa individual dos missionários. ofereceu-se para a missão da Índia. Depois de ter vivido alguns meses com o padre Gonçalo Fernandes. a recém criada missão do Maduré. 1609. Francisco Ros. apercebeu-se de que a missão era totalmente inútil.será demais afirmarmos que. 1995. Munster. 1973. a continuação de sinais na testa que faziam a distinção das castas. nasceu a primeira comunidade cristã no Maduré (16061610). Chegou a Goa em Maio de 1605. o arcebispo de Cranganor. um dos paranguis (português). Gonçalo. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Aschendorffsche Verlangsbuch Handlung. método desenvolvido a partir da experiência de Matteo Ricci. amigo da família Nayak. Ler: Gonçalves. entre os costumes. Tratado sobre o hinduísmo. 36 96 . Para conseguir converter teve Sobre Nobili e a missão do Maduré ler: Guerreiro. iniciando uma adaptação à cultura local. Só. Entrou na Companhia de Jesus em Nápoles. general do exército e pertencia à nobreza romana36. duas famílias de Vellalas. O pioneirismo deveu-se a Roberto de Nobili. sem um único convertido. assim. O cuidado principal de Nobili foi assentar o Cristianismo e torná-lo aberto à gente de todas as castas. num total de sessenta neófitos. 112 e seguintes. sândalo nas fricções corporais. banhos rituais. História do Malabar. deteve-se mais três meses em Cochim e outros três meses em Tuticorin e só em 1606 chegou ao Maduré. Permitiu o uso de alguns elementos da cultura hindu aos novos cristãos: linha bramânica (tríplice cordão de algodão que os brâmanes traziam a tiracolo da esquerda para a direita). em 1601. D. p. aqui cursou filosofia. construindo-lhes uma igreja de ladrilhos em estilo dravídico e conseguiu o apoio e ajuda do capitão Rama Sakthi. Kudumi (tufo na cabeça). na China. Original.br/ acervo_digital/anais/anais_120_2000. . 1f. Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro encontra-se documentação sobre Roberto de Nobili (aparece erradamente Hobili) e a Inquisição: Anais da Biblioteca Nacional. Embora a sua ação tenha conduzido a um aumento significativo de conversões. pp. Ler: Tavares. Célia. Jerónimo de Sá. Resposta de Jerônimo de Sá em 25. na sua constituição apostólica Romanae Sedis Atist. Manuel da Cruz. Como grande conhecedor do sânscrito. mas tal não se concretizou. 171-174. 08/04/1649. 120 – 2000. 2006: http://objdigital. Depois de analisada a acusação. Goa. Cópia. Universidade Federal de Viçosa. solicitando que os direitos concedidos aos cristãos de Madurê pelo breve de Gregório XV sejam estendidos aos cristãos de São Tomé. Manuscrito. ao padre Roberto Hobili.004 nº161:Mesa da Inquisição de Goa.1. sobre a extensão dos direitos concedidos aos cristãos de Madurê e aos brâmanes para os cristãos de São Tomé. Levantaram-se vozes contra o seu método e a Santa Sé ordenou uma investigação debaixo dos auspícios da Inquisição de Goa37.Jerônimo de Sá. Vol. Assinam o documento Paulo Castelino de Freitas. a Inquisição.1. 2 f. aprovou o uso pelos cristãos brahmanes do linho sagrado. Agradecemos a informação dada pela Profa Patricia.de aceitar alguns dos costumes hindus e abandonar alguns costumes ocidentais. Liv. 37 97 .contém informação sobre os ritos gentílicos e as práticas defendidas por Roberto de Nobili. promotor e deputado da inquisição de Goa sobre os sinais gentílicos (1619).25. 474 . Conselho Geral do Santo Oficio. Rio de Janeiro. quis formar um colégio ou universidade de brâmanes. como foi o caso do que acabamos de escrever. inclusivamente nos ritos litúrgicos. Ofício não permitindo a autorização dada pelo governador de São Tomé. Manuel de Mendonça e [José Rebelo Vás]. Em 31 de Janeiro de 1623. Acompanha despacho favorável do governador Jerônimo de Sá.004 nº160 HOBILI.pdf. Gregório XV. nunca se conseguiu estabelecer um sistema de ensino semelhante ao que havia noutras regiões da índia.004 nº161A. São Tomé. ANTT. 07/11/1650. Jesuítas e Inquisidores em Goa. Roberto: Petição ao reverendo governador do arcebispado de São Tomé. Lucas da Cruz. Francisco de Barcellos.bn. como a utilização de saliva no rito do batismo. decidiu a favor de Nobili. com um curso de Filosofia ocidental. Manuscrito. da pasta de sândalo e das abluções.1.25. Parecer de João Delgado Figueira. . em 1621. devido à falta de recursos e ao desconhecimento do sânscrito. na prática. os jesuítas viam-se obrigados a participar do comércio da seda. 40 Pires. A Província do Japão Em 1543. em 1545. a “Nau do Trato” ou Kurofone (“navio negro”). Benjamim Videira. em 159039. comandada pelo capitão Tristão Vaz da Veiga. Atendendo à instabilidade política interna. Lisboa: 38 39 98 . o único ponto de contato entre o Japão e o resto do mundo40. Desde 1640 até 1848 – período conhecido por Sacoku ou “reino fechado” – Nagasaki foi mesmo o único porto aberto ao comércio holandês e chinês e. pois não era uma ordem mendicante. p. entrava na baía e porto de Nagasaki. A partir daqui. Benjamim Videira. que também foi doado aos Jesuítas. O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa. Pires. hoje um bairro de Nagasaki. Benjamim Videira. o único porto de comércio entre Macau e o Japão. confirmando o acordo feito pelo Visitador. tal como aconteceu com o daimio de Omura e de Arima41. naquela época. no reino de Satsuma. que. entre Macau e Nagasaki. 17. cit. Armando Martins. Foram os missionários que. Missões na China e no Japão 2. 41 Pires. 16. alguns daimios apoiaram e fortaleceram a presença jesuíta. Em 1571. Mogui. consequentemente.1. Alessandro Valignano. Op. Nagasaki ficou sendo. os primeiros portugueses chegaram à ilha de Tanegashima38.. Como as despesas no Japão eram muito grandes. pp. Macau: Instituto Cultural de Macau. de uma forma geral. p. Kagoshima (1549) e Tanegashima (1580). 1988. frequentaram foram os de Usuki (1544) e Funai (Oita). pelo daimio de Arima. com os comerciantes de Macau42. 42 Janeira.. o mesmo acontecendo com Uracami. no início. p. 23. cit. posteriormente. 1988. mas as condições da sua participação estavam fixadas pelo rei de Portugal por alvará régio de 1584.2. Pires. foi doada aos Jesuítas. A missão jesuíta. no reino de Bungo. ficava a uma légua de distância de Nagasaki e era a passagem natural do feudo de Arima para o de Omura. Embaixada Mártir. Op. 17-19. Embaixada Mártir. Benjamim Videira. Os portos que os portugueses. na esperança de defenderem as regiões em caso de ameaça. até a sua suspensão definitiva em 1639. para subsistir necessitava de grandes rendas. e Hirado ou “Firando”. Um Jesuíta Português no Japão e na China do Século XVI. 14.J. fala-nos sobre “as casas da Companhia. o qual foi substituído por Francisco Cabral. por José Wicki. Rodrigues. na sua Historia de Japam. especialmente o noviciado e o seminário para jovens japoneses (…)”. quando o daimio teve conhecimento Publicações D. p. com funcionários nomeados para administrar as províncias e recolher os impostos. Cf. p. 47 Sobre S. p. Depois. de 1590 a 1597. assim como pelo arcebispo de Macau. para Nagasaki. o rei revogou o decreto de proibição do comércio aos jesuítas. 129. 28. o Papa Urbano VIII proibiu definitivamente esse comércio aos jesuítas44. Cf. Rodrigues.contribuíram grandemente para o desenvolvimento das relações lusojaponesas. então. La Compagnie de Jesus et le Japon. em 157048. 153-246. Lisboa: Quetzal Editores. Todavia. pelo que. Historia de Japam (anot. Michael. pelo padre Alessandro Valignano. 43 Janeira. cit. mas iniciouse 20 anos antes. 2003. pois foi aberto em Funai (Oita). A participação dos Jesuítas nesse comércio foi proibida pelo rei de Portugal em 1610. Luís. 128. Mas como surgiram esses colégios46? Quando São Francisco Xavier partiu do Japão em 155147 deixou um dos seus companheiros. Lisbonne-Paris: Fondation Calouste Gulbenkian-Centre Culturel Portugais. em 1580. 1993.. 44 Ibidem. O Intérprete. Lisboa: Quetzal Editores. no ano seguinte. 45. Um Jesuíta Português no Japão e na China do Século XVI. Michael. mas foi a insistência daqueles em querer continuar no Japão mesmo após as proibições que tornou impossível a continuação desse mesmo comércio43. que tinham grande independência fiscal. Francisco Xavier no Japão veja-se: Bourdon. 99 . a cargo do empreendimento dos jesuítas. Léon. O colégio de Nagasaki foi fundado em 1598. 48 Cooper. pelo que estes senhores feudais governavam os seus “territórios a seu bel-prazer”. p. esteve em Kawachinoura (Amakusa) e passou. O Intérprete. 1988. Cooper. Cosme Torres. Armando Martins. que governava o Bungo49. Op. O próprio Luís Fróis. p. O padre Francisco Cabral veio a conhecer bem a família Otomo.). Quixote. em 1633. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa. 45 Ibidem. até 1614 (vítima das perseguições e do édito de expulsão de 1614)45. S. mas a sua autoridade foi sendo minada por poderosos clãs. p. até que. Fróis. 46 Esta designação de “colégios” é controversa. 2003. 49 O Japão era governado por um imperador. Em 25 de Julho de 1579. cit. 55 Ibidem. O noviciado situava-se num edifício próximo do mar e do Cooper. Michael. embora apagado”56. 1995. cit. Um Jesuíta Português no Japão e na China do Século XVI. Convocou uma reunião de todos os missionários jesuítas locais e foi decidido estabelecer um noviciado em Usuki e um colégio para os estudantes jesuítas em Funai (Oita). 51 Cooper. Op. 52 Costa. 53 Cooper. Francisco Cabral. Valignano dirigiu-se para o Bungo. 55. Foi ali que Francisco Cabral escolheu. O noviciado seria mantido. Valignano insistiu na necessidade da aprendizagem da língua japonesa. um período de grande instabilidade política. p. cit. Michael. Embora com a oposição do Superior dos jesuítas. embora essas fossem insuficientes para tal. p. 45-46.. um local adequado para o futuro colégio. Michael. 53. aceitou a resignação do padre Francisco Cabral. tendo visitado Otomo Yoshihige em Usuki. p. 54 Cooper. E. Michael. Op. insistiu para que ele fosse instalado no seu reino (Bungo)50. a cerca de vinte milhas daquela. 56 Cooper. Rodrigues. Op. 54. Seguiu-se. Lisboa: Instituto de História de Além-Mar. Otomo Yoshishige tinha transferido a sua corte para Usuki. V. A Descoberta da Civilização Portuguesa pelos Portugueses. “mais flexível. fazendo de Usuki a sua base51. 46. O Intérprete. Op. Disse-lhes mesmo para escolherem uma de entre as casas e templos existentes nos seus vastos domínios. em 1580.. p. junto ao mar. violência e perseguição aos jesuítas52. João Paulo A. Oliveira e. no entanto. substituindo-o por Gaspar Coelho. cit. pelas rendas de propriedades que os jesuítas tinham em Baçaim. Em 1580. 50 100 . bem como a “adaptação aos costumes e modo de vida japoneses”55. E foi durante essa primeira visita (das três que fez ao Japão) que lançou os princípios da sua política de adaptação missionária54. Alexandre Valignano chegou a Kyushu para a sua primeira visita à missão do Japão53.de que os jesuítas tencionavam abrir um colégio no Japão. Em virtude de distúrbios ocorridos em Funai (Oita).. p. financeiramente.. oferecendo-se para compensar os seus proprietários. Michael. Michael. traduzia essas exortações e transmitia as lições aos noviços japoneses58. p. em 1581. 58. tendo o próprio Valignano dado lições. Era dada especial importância ao estudo do japonês e mesmo os seminaristas japoneses recebiam instrução dessa língua e da sua escrita. Op. Aos estudantes era ensinado o Latim e Paulo Yoko dava aulas diárias de japonês. p. idas de Malaca – mil ducados/ano ‒ inicialmente não foram pagas60. Por seu lado. especialmente orientados para refutar as objeções budistas. Cooper. cit. p.castelo do daimio Otomo. esse noviciado encontravase pobremente equipado. Pedro Ramon. cit. Mas... com o titulo Fides no Doxi. nos primeiros dois meses.. que sabia muito bem a língua japonesa. pregando durante as missas. aos noviços portugueses. Luís Fróis. na imprensa dos jesuítas. Para além da abertura do noviciado em Usuki. assim como eram ministrados cursos de apologética cristã. Michael. p. Foi construído num lugar pouco agradável e as rendas reais prometidas. 57. Op. Valignano também abriu. E. em 1580. Michael. Também foi durante essa viagem que Valignano lançou a primeria pedra da Igreja levantada por Otomo Yoshishige ao lado do noviciado59. 60 Cooper. em 1592. Op. assim que os estudantes portugueses se tornavam razoavelmente fluentes em japonês. duas vezes ao dia. organizou a tradução de parte do livro de Luís de Granada Introduccion del symbolo de la Fé. foi o Superior da casa durante os cinco anos que ela existiu. cit. pelo que muita da instrução era dada na forma de lições e exortações. Para Cooper. 55. Op. possuindo poucos livros para auxiliar na formação dos noviços. altura em que o edifício foi destruído pelas forças de Satsuma57. Paulo em Funai (Oita). durante os primeiros anos da sua existência. Michael. E terá sido durante esta viagem ao Bungo que Valignano escreveu o livro Advertimentos e avisos acerca dos costumes e catangues do Japão. o Colégio de S. quer em Funai. 59. cit. impresso em japonês em Amakusa. 59 Cooper. um jesuíta de Saragoça. 57 58 101 . iniciavam o seu trabalho apostólico. quer nos seus arredores.. onde permaneceu até Dezembro de 1586. . Os alunos também recebiam lições de Cosmologia e Ciências naturais. O Intérprete. Michael. Michael. Cooper. com o objetivo de virem a ensinar o Cristianismo. 60. Os estudantes continuaram aqui até 1587. parecendo ter sido influenciado por esse primeiro trabalho. p. 63 Cooper. p. a gramática japonesa ou “Arte”. Michael. o colégio de Funai terá sido transferido para Nagasaki. baseada na estrutura de uma gramática latina. p. E. cit. que deve ter lido quando estudava no colégio de Funai. 66 Cooper. Embora os alunos tivessem completado os estudos de Filosofia. Michael.. 61 102 . 61. cit. respectivamente. p. 64. pois a situação política forçou uma paragem nos estudos. Op. sob a direção de Prenestino. Como havia falta João Rodrigues viria a publicar a sua Arte da Língua do Japan. altura em que o shogun Hideyoshi publicou o édito de expulsão (dos jesuítas)64. A invasão do Bungo pelas tropas de Satsuma levou à transferência do colégio e noviciado para Yamagushi. para Chijiwa e. p. Estas escolas tinham sido fundadas para o ensino de “uma educação cristã para os filhos de boas famílias que para ali os quisessem enviar”. referidos como Seminários)66. Também foram incluídos: curriculum de latim. não terminaram o curso de Teologia. Op. 67 Cooper. recebendo aqui “uma sólida educação cristã”.. cit. cit. Rodrigues. bem como etiqueta e cerimonial japoneses67.63 O primeiro curso de Filosofia Ocidental ensinado no Japão foi concluído em 1585. o curso abreviado de Francisco Toledo em lógica aristotélica62. artes e humanidades. 62. Op. 62 Cooper. provavelmente em cópias manuscritas. p. Um Jesuíta Português no Japão e na China do Século XVI. Michael. quer sendo leigos ou não (estes estabelecimentos são. bem como um dicionário de japonês e um catecismo61. numa versão abreviada. Michael. música. 60. nos finais de 1588. isto é. 63. p. 64 Cooper. A 21 de Outubro de 1583 foi iniciado o primeiro curso de Filosofia escolástica. nos finais de 1581.. 2003. Op. japonês e literatura chinesa.. 65. ciências. para Arie65. Op. em Funai. Cf. depois. Michael. em Funai. Os seminários de Miyako (Kyoto) e de Arima foram fundados por Valignano em 1580 e 1581. Op..auxiliar os estudantes foi compilada. normalmente. uma gramática japonesa ou Arte. 65 Cooper. Lisboa: Quetzal Editores. cit. cit. p.de livros. 70 Armando Martins Janeira. o seu filho Tokugawa Iemitsu. Quixote. terá tido origem na “opressão dos camponeses da região por imposos ou exacções tão pesadas que os levaram a uma situação desesperada”. 1997. A formação do clero nativo e. o shogun Ieyasu. p. publicou outro édito reforçando as medidas que tinham sido promulgadas por seu pai para banir o cristianismo. Quixote. espalhados por toda a região de Kiushu. O sucessor de Hitedata. 58-59. e. em 1637-1638. Lisboa: Publicações D.. 59. o shogun Tokugawa Ieyasu decidiu expulsar todos os missionários do Japão. Revista de Cultura. Paulo de Macau e a Igreja do Japão”. p. 1988. Ibidem. “O Colégio de S. 1988. 68 69 103 . Os seminários de Arima e de Azuchi (Miyako). O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa. que culminaria com a revolta de Shimabara73 Ibidem.000 sobreviventes”. especialmente os dois volumes: Christiani Pueri Institutio (1588) e De Missione Legatorum Iaponensi (1590)68. 72 Idem. Em 1616. encerrar todas as igrejas e proibir a prática do cristianismo pelos japoneses (édito de 1614). também eles perseguidos e oprimidos. Janeira. o que originou que muitos padres se disfarçassem de comerciantes para ficar no Japão70. 60-61. Em 1614. p. em 163572. os japoneses conseguiram desalojar os revoltosos do Castelo de Hara e “passaram à espada 37. 73 A revolta de Shimabara. Lisboa. foi ainda mais cruel para os cristãos. a dos jesuítas japoneses. que sucedeu a seu pai. 61. 71 Janeira. tendo confinado os portugueses à ilha artificial de Deshima (que mandara construir junto a Nagasaki). Hidetada. Armando Martins Op. a Imprensa: todos tiveram origem nesse mesmo projeto69. Yuuki. embora continuasse a permitir o comércio com os portugueses ‒ que era muito desejado pelos japoneses também ‒. o Noviciado. 127. cit. com a ajuda dos holandeses. o Colégio de Funai (Oita). pp. a que se juntaram os cristãos. O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa. 30. Cf. n. Publicações D. II série. Diego. era o objetivo principal do padre Alessandro Valignano para a Igreja japonesa. a imprensa jesuítica de Macau começou a produzir livros. mandando concentrar todos os estrangeiros nos portos de Nagasaki e Hirado (donde não podiam sair e onde podiam ser mais facilmente observados)71. em especial. Armando Martins. Esta jurisdição. 1992. 1957. a ordem de expulsão dos missionários do Japão74. p.. em 1874. em 1886-1887. em 1588. vol. mãe das Missões no Extremo Oriente. Armando Martins. Em 1639.. Macau: Tipografia Salesiana. 108-110. Manuel. crescimento e conservação de Macau79. V. o Bakufu (governo militar) pôs em execução as medidas que a sua política isolacionista já vinha anunciando há tempos. com jurisdição sobre a China. José de Singapura e de S. a jurisdição de Macau estendeu-se a Timor. Op. e. XII: Bispos. p.14. datada de 23 de Janeiro de 1576. Macau. 76 Boxer. A Companhia de Jesus desempenhou papel preponderante na fundação. em Agosto de 1639. com a vinda do padre Francisco Peres. com a ajuda dos holandeses. o centro da religião católica no Extremo-Oriente78. I. no século XIX. vol. assim como a Singapura e Malaca (paróquia de S. Macau: Tipografia da Missão. Cf. no entanto. assim como das dioceses de Pequim e Nanquim (na China). Igrejas e Escolas. 2. Op. p. Macau tornavase. Charles. Huang. Pedro de Malaca). 78 Alvarez. A Embaixada Mártir. um comissário do shogun Iemitsu partiu de Yedo (Tóquio) com o decreto que “anunciava o fim do comércio português com o Japão”76. O Grande Navio de Amacau. assim. 77 Silva. Fundação Oriente/Museu Marítimo de Macau. Macau e a Província da China Pela bula Super Specula Militantis Ecclesiae do Papa Gregório XIII. 80 Qichen. Cronologia da História de Macau (séculos XVI-XVII). 140. que aqui chegaram na companhia de Diogo Pereira80. p. Macau. Logo Janeira. cit. Os Jesuítas só se estabeleceram definitivamente em Macau em 1563. 62. in Religion and Culture: an International Symposium Commemorating the Fourth Centenary of the University 74 75 104 . Boxer. Benjamim Videira. foi criada a Diocese de Macau. 1976.2. Macau: Direcção dos Serviços de Educação. 138-139. 79 Pires. Missionários. Paulo”. subordinada ao Bispo de Goa (era sufragânea de Goa)77. p. foi reduzida pela ereção da diocese de Funai (no Japão). 1989. em 1690. Beatriz Basto da.e. No entanto. 53. cit. Eusébio Arnaiz. Macau e a sua Diocese. pp. do padre Manuel Teixeira e do Irmão André Pinto. em 1638. “The First University in Macau: the Colégio de S. Japão Coreia e “ilhas adjacentes”. Charles R. Teixeira. mas a principal razão teria sido o receio que o shogun Tokugawa Iemitsu tinha dos “efeitos subversivos do cristianismo”75. Ricci and his Work in China”. Macau. 1994. fundada pelo padre Peres. Japoneses em Macau. Valignano comunicou o seu projeto ao Superior da Missão da China (a cuja jurisdição pertencia o território). que era o meio português de Macau”. 87 Ibidem. 1999. o Colégio tinha quatro classes: uma of St. “A Conjectural Reconstruction of the Church of the College of Mater Dei”. Em 1592. F. iniciaram-se as obras para o novo Colégio de S. os jovens japoneses “só lucrariam em tomar contacto com o ambiente ocidental. 1999. 1993. in Instituto Português de Hong Kong. 7. 205243. a residência da Companhia de Jesus. integralmente cristão. Em 1579 os Jesuítas construíram outra residência e. perto da residência dos jesuítas88. Depois acrescentaramlhe os estudos clássicos de Latim83. Julho 1948.. devido às guerras civis ali existentes85. Obtida autorização de Roma. Primeira Universidade Ocidental do Extremo Oriente. Macau. que servia também de hospício e ajuda aos missionários que iam para o Japão82. Além das perturbações das guerras civis no Japão. foi ponderada a necessidade da fundação de um colégio para jesuítas japoneses fora do Japão. 85 Santos. p. acrescentou-se uma escola de “Ler e Escrever”. no local onde existem as atuais ruínas da igreja de S. Em 1594. Lisboa: Academia Portuguesa de História. Witek). p. padre Duarte de Sande. 10-11. à residência dos Jesuítas. p. onde aprenderiam a língua. Primeira Universidade Ocidental do Extremo Oriente. Macau: Macau Ricci Institute. Macau: Instituto Cultural de Macau/Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. p. nº. erigiram uma nova igreja na colina. 84 Teixeira. 253. Regressado a Macau. 1994. Domingos Maurício Gomes dos. 105 . p. 88 Santos. 96. em 1582. Lisboa: Academia Portuguesa de História. fundou. 86 Ibidem. Paulo. 8. 82 Pereira. Paul (ed. pp. p. na 1ª Congregação Vice-Provincial. Macau: Macau Ricci Institute. Op. Domingos Maurício Gomes dos. Paulo84. 83 Santos.em 1565 o padre Francisco Peres dirigiu-se a Cantão “a pedir licença para entrar na China”. tendo-lhe sido recusada81. 81 Cronin. junto à ermida de Santo António. Em 1572. John W. “Fr. Fernando António Baptista. Domingos Maurício Gomes dos. 1. costumes e modo de ser dos europeus86. 9. que aceitou totalmente a ideia87. cit. in Religion and Culture. Manuel. 18. no qual a vida institucional e pedagógica era baseada na Ratio Studiorum. Aqui vai reorganizar os Estudos Menores e Superiores do Colégio. Primeira Universidade Ocidental do Extremo Oriente. assim como uma enfermaria com a sua “botica” (farmácia). Havia também o seminário de S. Op. com mais de 250 meninos. Medicina. 91 Ibidem. c. cit.14. a partir de 1595. 94 Santos. Matemática. e. Benjamim Videira. mestres e substitutos. de 1603-1701). uma Livraria Geral (com mais de 5000 volumes) e o Arquivo da Província Jesuítica do Japão95. que fora publicada em Roma por Cladio Acquaviva. o primeiro curso de Artes (com jesuítas do Japão e Goa). 109-122. além disso. Revista de Cultura. 1732)94. Op. p. mas também no sistema e regulamentos da Universidade de Coimbra . outra de Gramática. p. em 159191. mas em Abril de 1597 voltava a Macau. o seminário de S. às 7 horas da manhã. 16.. Macau. O ano letivo começava a 15 de Setembro com a profissão de fé. 92 Ibidem. Primeira Universidade Ocidental do Extremo Oriente. Macau. Huang. Música. Domingos Maurício Gomes dos. p. Alessandro Valignano partira para Goa em Novembro de 1594. Física. mas de Humanidades. onde desembarcou a 20 de Julho desse ano e onde permaneceu até Julho de 159890. cit.. p. 95 Pires. Domingos Maurício Gomes dos. que eram adaptados às necessidades da China. Lisboa: Academia Portuguesa de História. segundo “a fórmula do Papa Pio IV”96. 1994. Retórica. 1994. Nas aulas de Latim. 89 106 . entre outras93. de 1559 e de 156592 -. 93 Qichen. “O Colégio de São Paulo: a Primeira Universidade em Macau”. Macau. o seminário de S. Instituto Cultural de Macau. Domingos Maurício Gomes dos. n. 17. Filosofia. II Série. ainda outra. havia classe de Casos (Teologia Moral)89. Domingos Maurício Gomes dos.de “Ler e Escrever”. p. Latim.do Regimento do Colégio das Artes de Coimbra. Teologia. 30. feita na igreja. depois da missa dos estudantes e era feita pelo prefeito de estudos. 1988. a lição inaugural constava de Santos. Francisco Xavier (para Portugueses). José (para chineses. Astrologia. p. 90 Santos. 31. A Embaixada Mártir. 96 Santos. sendo as disciplinas aí ensinadas a Língua Chinesa. Lisboa: Academia Portuguesa de História. Inácio (para japoneses. 104 Ibidem. 99 Santos. 25. p. Op. 28-29. A fundação do Colégio de São Paulo não foi só resultado do desenvolvimento econômico. pelo que as estruturas do Colégio de S. Os atos acadêmicos do curso de Artes. cit. mas era um verdadeiro centro acadêmico superior. A vida espiritual dos alunos merecia especial cuidado por parte dos mestres99. a origem dos estudantes e o objetivo da sua formação estavam ligados à divulgação do cristianismo105.A Companhia de Jesus em Portugal e nas Missões. Paulo de Macau não era uma universidade eclesiástica completa. p. existente nos recintos escolares97. nem sequer uma universidade civil (Estudos Gerais).. Op. 103 Santos. as suas disciplinas. p. IIa Série. de joelhos. Paulo. com a organização formal dos estudos superiores de Artes e Teologia104. n. 101 O feriado semanal. 97 98 107 . conferindo graus desde 1597. isto é. tal como na abertura das aulas da tarde. 19. 111. Ibidem. tal como acontecia no Colégio de S. o dia de folga. Também as férias e os dias de assueto101 estavam fixados. Ibidem. 105 Qichen. p. As aulas começavam e terminavam com uma curta oração. Veja-se. feita ante uma imagem. Aos estudantes era proibido o porte de armas no pátio das escolas e em qualquer aula100. também.. Domingos Maurício Gomes dos.um discurso de 15 minutos (em Latim). p. 100 Ibidem. A saudação entre mestres e alunos obedecia à etiqueta daqueles tempos98. 102 Ibidem. cit. Rodrigues. 30. Huang. 58. “O Colégio de São Paulo: a Primeira Universidade em Macau”. Domingos Maurício Gomes dos. Paulo de Goa e no Brasil103. O Colégio de S. revestiam-se de solenidade idêntica aos de Coimbra. Revista de Cultura. Porto: Tipografia Fonseca. cujo objetivo era a preparação de jesuítas para as missões da China. assim como os horários escolares para as várias classes102. Francisco . em Macau. mas também ‒ e principalmente ‒ fruto das necessidades da Companhia de Jesus. Japão e outras partes do Oriente. n. Fan Li-An (1539-1606): estratega da Missão Jesuíta na China”. no dia 26 de Abril de 1582. a cujo bispado (ereto em 1534) pertencia. Edward J. in Religion and Culture. Religião e Pátria. Cod. 49-V-7: “Cartas Anuas do Colégio de Macau (1616. Sião. p. Cod. antes de ir para Macau109. Malabar. BA. 678-680 e 771-773. em Cochim. Malaca. 1999. 52. Goa. Paulo. Lahor. Out.“Cartas Anuas do Colégio de Macau (1603-1621)”. S. vol. China. Bisnaga. J. e. 606-608. até ser ordenado sacerdote. Cambodja. Macau: Macau Ricci Institute.Deste Colégio de S. bem como à língua chinesa107. 1 Julho. 109 Janeira. Etiópia. o Colégio de S. “The True Significance of the College of St. p. 367-382. Madure. A maior parte dos missionários que iam para o Oriente ‒ incluindo Japão e China ‒ teve um período de treino e adaptação em Goa. Costa da Pescaria. “Alessandro Valignano. 32). Paulo de Goa saíram os missionários jesuítas que iam para as missões do Japão. 1994. 8 Julho. BA. 49-V-5 – Série Província da China (1600-1623): “Vida e morte do Padre Mateus Ricci”. Benjamim Videira . Lisboa: Publicações D. Paulo veja-se: BA. Quixote. 1956. Macau. p. Conchinchina. Revista de Cultura.“Jesuítas Beneméritos da Macau”. 27. Pegu. 49-V-22: “Cartas Anuas do Colégio de Macau e Missão de Cantão (1692)”. 29. onde Ricci passou três anos. 160. O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa. Paul”. Ceilão. Macassar. continuava os seus estudos teológicos religiosos. (1543-1607) e Matteo Ricci. E. Bengala. A 13 de Setembro chegavam a Goa. 49-V-5 . Cod.106. S. 1620-22)”. etc. 21. Diu. ensinando Grego e Gramática no Colégio dos Jesuítas. Salsete do Norte (Bombaim). (1552-1610) foram os primeiros missionários jesuítas a introduzirem as novas leis de adaptação à cultura. Solor. 626-632. p. IIa Série. ao mesmo tempo. XLII (26. aos usos e costumes.-Dez. Os padres Michele Ruggiere. Tidore. A meta era a conquista espiritual do grande Império do 106 Chang. Monomotapa (costa Oriental Africana). Amboino. Aloysius B. Sobre o Colégio de S. O próprio Ricci completou a sua educação em Coimbra e Goa. J. 110 Malatesta. 1988. Tonquim. Cod. Travancor. 108 BA. o padre Matteo Ricci foi enviado para Macau para estudar a língua e cultura chinesas110. 108 . Armando Martins. 107 Pires. Ternate. Paulo de Macau e do Colégio de S. 29 Julho e 12 Agosto. no dia 25 de Julho de 1580108. Michael. Cod. “O 350 Aniversário da Fundação da Missão de Shiu-Hing”. Veja-se. Teixeira. ainda. “Matteo Ricci e João Rodrigues. no dia 10 de Janeiro de 1583116. Revista de Cultura. 21 (IIa Série). 98. S. 114 Malatesta. J. Dois Elos de Interpenetração Cultural na China e no Japão”. 18. Jan.-Mar. Out. 16. Benjamim Videira. Macau: ICM. 115 Ibidem. como na tentativa de entrada na China. também. p. nº 18. Revista de Cultura. e. Macau: Repartição Provincial dos Serviços de Economia e Estatística Geral. Cf.Meio. Gonçalo. 1994. Jan. Esse foi o objetivo assinalado pelo Visitador. Vol. Macau. Out. p. 2003. BA. em Pequim. p. Ruggieri regressou a Macau em Março de 1583 e. 1994. Lisboa: Quetzal Editores. 142-143. 1996. Um Jesuíta Português no Japão e na China do Século XVI. o padre Alessandro Valignano. Ruggieri também estabeleceu relações amistosas com o comandante regional (Zongping). Revista de Cultura. Esboço da História de Macau. tratou-o muito bem e amistosamente. n. Manuel. p. Artur Levy. Veja-se. 49-V-5 – Série Província da China (1600-1623): “Vida e morte do Padre Alexandre Valignano” e “Vida e morte do Padre Mateus Ricci”. Mesquitela. 116 Pires. chegar à Corte. História de Macau. 16. 1957. também. Pires. 5. 1994. também. p.. IIa Série. em Shiu Hing (Zhaoqing). Ruggieri celebrou a primeira missa em Zhaoqing (Shiu-hing). a 27 de Dezembro de 1582115. 111 109 . Ricci e Ruggiere111. Este precedera aquele. Edward J. I. se possível. Quando o Haidao (Haitão. Fan Li-An (1539-1606): estratega da Missão Jesuíta na China”. p. funcionário costeiro) de Cantão percebeu que aquele era um homem de letras.-Mar. recebeu do Governador Geral de Ibidem. IIa Série. 5. Ano XXXI. a quem ofereceu um relógio. e. 260-276. o qual nem sequer permitia a entrada dos missionários no seu território. mas sem resultados imediatos112. p. Rodrigues. tendo-o visitado várias vezes114.-Dez. Benjamim Videira. “Alessandro Valignano. 1933. aos dois missionários. nº. que estava a estudar a língua e literatura chinesas. 113 Cooper. nº 355. 71. p. No Outono de 1582 as autoridades chinesas de Cantão convidaram Michele Ruggieri a estabelecer-se na China. O Intérprete. Dois Elos de Interpenetração Cultural na China e no Japão”. 112 Ibidem. Gomes. e a quem os portugueses obedeciam. Em 1581 Ruggieri acompanhou alguns comerciantes portugueses à feira de Cantão113. Veja-se. para onde foi com o padre Francesco Pasio. “Matteo Ricci e João Rodrigues. não só em Macau. Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau. Tomo II. passado pouco tempo. 18. Lisboa: Biblioteca Nacional. J. Cf. Em 1611 foi elevada à categoria de Província (da China). Isabel. 122 Witek. Pina. Revista de Cultura. 1994. após obter a respectiva permissão do Vice-Rei118. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau. nº. 6. Trata-se do diálogo entre um europeu e um chinês sobre o verdadeiro Deus e a verdadeira religião. de Michele Ruggieri & Matteo Ricci (dir. Lisboa: Biblioteca Nacional. Cartas Ânuas do Colégio de Macau (1594-1627). “Introdução”. 21.-Dez.). Artur Levy. p. 90. J. 2001. 17. Malatesta. 17. in: Dicionário de Português-Chinês. “Alessandro Valignano. Em Setembro desse ano. a oeste de Cantão.Cantão em Guangxi (o Vice-Rei dos Dois Guangs. João Paulo Oliveira e Costa). também. p. 1957. p. Os Jesuítas em Nanquim (1599-1633). Assim.). Revista de Cultura. onde construíram uma casa e uma igreja-missão. junto da torre de Chongning. de Michele Ruggieri & Matteo Ricci (dir. de John W. Esboço da História de Macau (1511-1849). Ruggieri e Ricci foram para Zhaoqing. Witek. conseguiu permissão para construir uma igreja e a sua residência. John W. em Macau foram criadas duas províncias: a do Japão e a vice-província da China. “Introdução”. 119 Ibidem. p. a leste de Zhaoqing. S. 25. 52 . 2001. In Dicionário de Português-Chinês. (dir. nº. 121 Pina. Isabel. Fan Li-An (1539-1606): estratega da Missão Jesuíta na China”. Out. p. Em 1584 o padre Michele Ruggieri publicou Tianzhu shilu (Verdadeiro Tratado do Senhor do Céu)121. “Matteo Ricci e João Rodrigues. 118 Pires. 28. onde foram ajudados por Wang Pan (prefeito ou presidente da Câmara) a arranjar um terreno117. E foi assim que se fundou a primeira missão católica na China e se erigiu em território chinês a primeira igreja cristã. Veja-se. 32. p. Cf. 117 110 . Jan. Dois Elos de Interpenetração Cultural na China e no Japão”. tendo esta como vice-provincial o padre Matteo Ricci120. Ainda devido ao grande incremento que haviam tomado as missões dos Jesuítas na China. 2008. Kuang-Tung e Kuang-Si) autorização para habitar na China. CTMCDP/ Fundação Macau. Ali. Edward J. Ricci preparou o mapa universal que Witek. sendo o seu primeiro provincial o Padre Valentim Carvalho. p. Macau: Repartição Provincial dos Serviços de Economia e Estatística Geral. de John W. também. 2008. 1999. em 1584119. IIa Série. Witek. 1994. S. 120 Gomes.-Mar. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau. John W. Esse foi o primeiro livro impresso por europeus em caracteres e idioma chinês122. Benjamim Videira. IIa Série. Os Jesuítas em Nanquim (1599-1633). p. Em Setembro de 1583 ambos se estabeleceram em Zhaoqing (Shiuhing). 1994. do Século XVI ao Século XVIII”. Assim. Decidiu. solicitar uma embaixada papal ao Imperador. Lisboa: Biblioteca Nacional. 126 Qichen. 1938. ou seja. pelo que escreveu uma longa carta ao Geral da Companhia. Michele Ruggieri deslocou-se para Shaozing. precisavam obter maior estima dos funcionários e dos letrados. tomou consciência de que os padres. 124 Foss. pois Ricci colocou a China no centro do mapa. Vol. In: Dicionário Português-Chinês de Micjele Ruggieri & Matteo Ricci (dir. 1938. não podendo aí permanecer sem a permissão do Imperador. IIa Série. Out. História de Macau. p. durante a sua terceira visita a Macau (1590). 146157. XV-XVI.R. para ali iniciar a sua atividade missionária126. S. Ponte de Intercâmbio Cultural entre a China e o Ocidente. V. Tomo II. Huang. de John W. I. Revista de Cultura. nº. sem medo de represálias religiosas. em Novembro de 1588.-Dez. “Introdução Histórica e Linguística”. IIa Série. na China. XV-XVI. 111 . J.R. Wan-li (1573-1620). pedindo-lhe ajuda e proteção. a convite do novo governador. 129-150. The Invasion of China by Western World. Gonçalo.Mien yang. The Invasion of China by Western World. nº. E. E. Essa embaixada papal não chegou a realizar-se devido a problemas internos no Vaticano (falecimento de quatro papas sucessivamente)128. 1994. Valignano estava atento aos avanços e recuos da Missão na China. em Zhejiang. New York: The Mac Millan Company. com os conhecimentos científicos sobre os cinco continentes e as cinco zonas125.tanta importância vem a ter no futuro123. de latitude e longitude. “Uma Interpretação Ocidental da China: Cartografia Jesuíta”. enviando Ruggieri a Roma para apresentar pessoalmente o seu pedido ao Papa127. pois. p. para agradar aos chineses124. 21. Ruggieri teve oportunidade de falar diretamente com o Papa. “Macau. Macau: ICM. Mas esTe foi o primeiro mapa-mundo da China. Revista de Cultura. p. que o Papa enviasse uma embaixada ao Imperador da China. 123 Mesquitela. p. 21. traçado segundo os métodos cartográficos. Witek. para que os missionários pudessem evangelizar livremente. p. Out. Em 1586. 128 Paul Fu . pela qual se garantisse plena proteção imperial para com a missão cristã. 1996. 115-154. Pediu ajuda física e prática para bens espirituais e terrestres. 125 Hugues. Theodore N.).-Dez. 127 Hugues. New York: The Mac Millan Company. Guo Yingping. Fan Li-An (1539-1606): estratega da Missão Jesuíta na China”. depois de uma inicial procura de analogias com o Budismo. Out. 29-77. 1994.Mien yang. onde acabou por falecer em 1607. 129 Ibidem. 134 Loureiro. obtido ao longo de mais de uma década de vivências no interior da China. p. 31. 2008. cit. apareceu pela primeira vez com o vestuário dos letrados133.. In Dicionário Português-Chinês de Michele Ruggieri & Matteo Ricci (dir. Rui Manuel. entendendo a importância dada ao mandarinato na sociedade chinesa.Ruggieri. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau. Isabel. passaram a identificarse com os letrados chineses. 250. incluindo letrados e altos dignitários130. a partir de 1595. Um conhecimento mais aprofundado da realidade chinesa. nº. 51-66. Op. Macau. “Introdução Histórica e Linguística”. que já ia com problemas de saúde. p. “Alessandro Valignano. Malatesta. fundou muitas igrejas e escolasmissões. tendo-se apercebido da importância que os letrados tinham na China.-Dez. 2001. Ricci. 133 Pina. p. Ricci começou a deixar crescer a barba e. e também converteu muitos chineses à fé católica. Nas partes da China. Em 1594. determinou mudanças significativas na estratégia missionária. os missionários jesuítas passaram a apresentar-se como xishi ou letrados. em Salerno129. Os Jesuítas em Nanquim (1599-1633). em Maio de 1595. passando a ser “mestres da religião do Senhor do Céu”134. IIa Série. os Jesuítas que iam para a Ásia começaram a recolher dados sobre a realidade cultural chinesa. Witek). Desde meados do século XVI. vestirem roupas adequadas – de seda – para visitarem e receberem letrados e funcionários)132. Ricci informou Valignano da necessidade de abandonar a aparência e as maneiras dos bonzos e adotar o estilo dos letrados (deveriam deixar crescer o cabelo e a barba. Assim. p. 28-29. que era a classe que possuía um estatuto mais elevado na sociedade imperial chinesa e. Lisboa: Biblioteca Nacional. Rui Manuel. John W. oriundos do Ocidente. 132 Edward J. ao contrário de Ruggieri. 131 Loureiro. 250. Revista de Cultura. p. já que toda a administração imperial lhes estava praticamente entregue131. passou o resto da sua vida na China: viajou por muitas cidades. 112 . p. 130 Paul Fu . 2009. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau. viu esses problemas agravarem-se em Itália. 21. Como se vê.. ofereceram-lhe. cit. 138 BA. p. Cod. dois relógios (que batiam as horas). concedeulhes licença para permanecerem na cidade. ainda. Os Jesuítas no Império da China: o Primeiro século (1582135 113 . 137 Loureiro.De 1595 a 1598 Mateus Ricci estabeleceu-se em Nanchang (capital da província de Jiangxi). conseguiram fazer chegar às mãos do Imperador Wan Li “preciosas peças europeias”. onde os missionários ainda eram identificados como bonzos)136. começou a escrever obras em língua chinesa e não só sobre temas religiosos. Ricci. Op. 254. 49-V-1: Ásia Extrema. graças a este. I. o que permitiu que Matteo Ricci ficasse mais livre para intensificar as suas relações e o intercâmbio cultural com os letrados. num barco do eunuco de apelido Lieu. Em 1599 Matteo Ricci transferiu-se para Siu-Chau (Shaozhou ou Shaochow). uma de Deus e uma cruz embutida de pérolas. alargando assim o espaço de missionação e as possibilidades de expansão do Cristianismo na China135. o Tratado sobre a Amizade. permitindo-lhe redigir a sua primeira obra em chinês. assim como os seus escritos iam circulando amplamente. Para a nova residência foram também enviados o padre João Soeiro e o Irmão Francisco Martins. ciente do contexto cultural em que se achava inserido. 31. e. pois. p. Horácio Peixoto de. Op. “Dicionário Português-Chinês de Michele Ruggieri e Matteo Ricci: Introdução Histórica e Linguística”..Mien yang. In: Dicionário Português-Chinês de Michele Ruggieri & Matteo Ricci (dir. a dar os seus frutos e a reputação de Matteo Ricci como homem de letras ia crescendo junto aos chineses. 136 Araújo. E. cit. partia rumo à capital chinesa138. Paul Fu . um atlas dos países e dois instrumentos musicais ocidentais. em 24 de Janeiro de 1601. no Império Celeste137. O “método aculturativo” começava. em 1600. fundando-se assim a quarta residência da Companhia de Jesus na China139. Horácio Peixoto de. 235. desde cedo que Ricci. acompanhado do padre Diego Pantoja. tais como uma “imagem do Senhor”. 116-117. p. duas da “Virgem Maria”. através dos eunucos e mandarins da Corte. 139 Araújo. seguindo-se-lhe o Tratado das Artes Mnemónicas e um novo Catecismo (para substituir o de Michele Ruggieri. Os presentes que levaram para o Imperador foram bem aceites e. Rui Manuel. pp.). Gaspar Ferreira e Sabatino de Ursis. 142 Ibidem. geografia.. pelo Império chinês140. I. 1680). pedira ao Geral dos Jesuítas. visando consolidar a posição e o prestígio dos religiosos europeus junto à Corte imperial chinesa para garantir uma certa liberdade de manobra às missões jesuítas que se iam espalhando. a pouco e pouco. Armando Martins.-Dez. 1579-1724. Liam Matthew. 145 Rae. Macau: IPOR. Valignano. deixando mesmo de ser considerado como um estrangeiro144. p. 140 Brockey. etc. de astronomia. Entre 1601 e 1610. BA. Revista de Cultura. bem como da língua chinesa e dos clássicos da cultura chinesa. que enviasse jesuítas com conhecimentos nessas áreas145. nº 21. Horácio Peixoto de. Ricci conseguiu fazer-se aceitar pelos letrados quase como sendo um deles. desenvolvendo uma estratégia diversificada. Ricci. p. p. IIa Série. 143 Ibidem. Matteo Ricci e alguns outros jesuítas. cit. 141 Araújo. 2007. 114 . João Rodrigues e Luís Fróis. 1994. p. tendo conseguido converter alguns acadêmicos e mandarins ao Cristianismo. Cf. os missionários jesuítas procuravam obter a simpatia e benevolência dos mandarins locais142. p. 160. 124. nas outras residências jesuítas já estabelecidas (Xaoquin. Op. Ian. ele próprio matemático e astrônomo. Ian. 144 Rae. 447. “A Abordagem Comunicativa Intercultural dos Primeiros Missionários Jesuítas na China”. 49-V-1: Ásia Extrema. tais como Diego Pantoja. Journey to the East: the Jesuit mission to China. p. Verbiest. 25-56. Cod. entre outros146. “A Abordagem Comunicativa Intercultural dos Primeiros Missionários Jesuítas na China”. 123. em Roma. Op. cit. Out.. 118-120. conquistaram a benevolência e consideração do Imperador Wan Li e de muitos mandarins da Corte141. 121. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press. ciências que eram muito apreciadas na Corte chinesa. gozando até à sua morte da intimidade do Imperador143. entre os quais se podem destacar Schall.. 146 Janeira. p. música.Desde 1601 Matteo Ricci não voltou a deixar Pequim. 2000. pelos seus conhecimentos matemáticos. Nanchang e Nanquim). Tal como em Pequim. Revista de Cultura. Foi o padre Matteo Ricci o primeiro a ser homenageado com o grau de mandarim e com a presidência do Tribunal das Matemáticas. 12 de Janeiro de 1549.. p. S. Mª Dominguez. J. “Vocaciones Indígenas”. assim como a existência de comunidades cristãs pré-Gama. A sua ação na Índia não pode ser limitada ao ensino ou aos currículos lecionados. não só da Ordem.4. ainda.I.I. Estas situações impediam ou dificultavam o sucesso de muitas das estratégias missionárias. 115 . e Joaquin M. portanto o processo de ocidentalização não enfrentava os mesmos obstáculos dos de Cochim. 2750: Carta de S. Enquanto em Goa a administração do espaço era portuguesa ‒ conquista. IV. protagonista que ha de configurar la Iglesia particular”148. Para López-Gay. Francisco Xavier. mesmo que esses possam ter sofrido ligeiras alterações em relação ao que se ensinava nos colégios jesuítas em Portugal. Acresce. Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús. mas de indivíduos dentro da mesma. “Vocaciones Indígenas”. “la primera exigencia para una verdadera adaptación es la formación del clero indígena. Quando falamos de Jesuítas na Ásia. Considerações Finais Demos a conhecer algumas orientações da Companhia de Jesus e situámo-las no contexto da expansão portuguesa no Oriente. Um outro dado que se assinala é no que respeita ao uso de determinados procedimentos. em parte. vol. Diccionario Histórico…. 2001. lembrar que os diferentes modelos de missão protagonizados pelas diferentes ordens religiosas – também dentro da mesma ordem ‒. veo claramente. associamos 147 López-Gay. 2705. padre mío único. Em todo o espaço ultramarino a Companhia propunha-se catequizar. cujas autoridades nativas tinham de aprovar ou não o mesmo. S. S. IV. 148 López-Gay. deveram-se. regular o secular. Roma: Institutum Historicum. ao tipo de ocupação portuguesa. que por los indios naturales de la tierra no se abre camino como por ellos se perpetúe nuestra Compañía”147. vol. directores: Charles E. O’nill. A ação e importância como centros de cultura dos Colégios de Goa e Cochim. motivavam desentendimentos entre elas. Madrid: Universidade Pontifícia Comillas. ocidentalizar..I. sendo os seminários e colégios meios para obter tais objetivos: “Por la experiencia que tengo de estas partes. p. J. sempre determinados conceitos que se generalizam para toda a região. vol. paralelamente à preparação e formação inerente ao missionário jesuíta. etc. escrita em Coimbra. as ciencias e as virtudes” eram determinantes na entrada na Ordem e particularmente na ida para o império150. 2000. Pensamos que. ou em fatores de natureza subjetiva: a disponibilidade missionária e o martírio. p. Mas. confessores. Silva. não anulamos as qualidades de bons pregadores. em 1600: “Y porque a esto no me mueve mas que el deseo de seguir la cruz y oprobios de Christo y los ejemplos délos S. Universidade do Minho. Com o continuar da missão. um forte “desejo” em partirem para as “Índias”. Um incendido desejo das Índias…. 151 Rego. Romo. a falta de rigor na sua aplicação. Documentação…. teólogos. y Gonçalo de la Silveira”149. Com isso. pelos menos inicialmente. isto é. cartas escritas entre os sécs. p. XV. Francisco Xavier. por vezes e mais na sua ação no Império. escritas pelos jovens religiosos que queriam partir. cujas capacidades intelectuais e morais entram na seleção dos candidatos. como nos dá conta o padre António Cabral. A Ordem era. Assim. Silva. Nessa coletânea encontramos muitos documentos.101. XVI-XVII por jovens religiosos jesuítas solicitando o envio para as missões. Se o “animo. o uso da adaptação pode passar pela aceitação. p. Antonio Criminal. 150 Rego. Centro de Estudos Humanísticos. 149 116 . o anseio por serem missionários em terras desconhecidas e seguirem o exemplo de “grandes” missionários. IV. p. aceitavam a entrada de alguns soldados que desencantados com a vida pretendiam ingressar.143. seletiva na aprovação dos seus membros. vol. aparece um pensamento: “desejo das Índias”. Aconselhamos este estudo que nos apresenta as Litterae Indipetae. a formação completava a parte necessária para a sobrevivência do projeto missionário151. depois de analisadas as presenças missionárias. Se. Lisboa. vivência das culturas e permissividade para com os convertidos face ao Massimi. há um fator individual e de origem social que é determinante na sua ação. nem sempre se verificou o mesmo empenho e “qualidade missionária”. no entanto. Das inúmeras cartas. 156. 556. Los Escritos Portugueses de San Francisco Javier. verifica-se. há. numa carta. por vezes. destacando-se a ciência e a adaptação. cujas razões se podem encontrar na procedência social dos membros. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente (Índia). no estilo e sentido missionário. Marina. Eduardo Javier Alonso. como Presidentes do Observatório Astronômico de Pequim153.. dali. 155 Leitão. em Pequim. p. Revista de Cultura. 154 Santos. João Paulo Oliveira e Costa). 124. 3º fascículo. em Madurai. que faleceu em Pequim em 1803154. exatamente. O método denominado por accommodatio (acomodação) foi concebido. Ferdinand Verbiest. “Alexandre Valignano: um Missionário Inovador no País do Sol Nascente”. Pelo que se iriam suceder vários Jesuítas na Corte. cit. mas através de uma substituição ou redefinição dos costumes “sociais” existentes. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 153 Rae. tendo sido nomeados. Out. etc. Ian “A Abordagem Comunicativa Intercultural dos Primeiros Missionários Jesuítas na China”. Ian “A Abordagem Comunicativa Intercultural dos Primeiros Missionários Jesuítas na China”. p. Como o poder temporal e eclesiástico português se situava muito longe do Oriente. as experiências de “adaptação cultural” progrediram com o conhecimento linguístico e a escrita de catecismos em línguas locais. p. Op.. P. 21 (IIa Série). (199?). tendo em vista introduzir o Cristianismo. por exemplo152. Tomás Pereira.que a Igreja Romana determinava ou pelo conhecimento das ciências. tendo sido depois levado para a China por Matteo Ricci e. 34. ou seja. Domingos Maurício Gomes dos. O último jesuíta astrônomo ao serviço do Império do Meio foi o padre José Bernardo de Almeida. Ana Maria R. para a missionação no Japão. cient. assim como de textos e tratados descrevendo e explicando as religiões 152 Rae. tais como: Adam Schall. matemáticos e astrônomos. 1994. 29-35. Esse método assentava no conhecimento da estrutura espiritual das culturas que havia na Ásia. n. in Encontro Portugal-Japão (coord. uma ação “interior” e “pessoal” concretizada por “meios persuasivos e não coercivos”. ciências que eram muito apreciadas na Corte chinesa.-Dez. 125. Gabriel de Magalhães. Revista de Cultura. Pode-se dizer que foi o encontro com a complexa cultura e sociedade japonesa que provocou uma importante alteração das estratégias missionárias155. como foi o caso da matemática e da astronomia. consideradas “pagãs”. mas também sociedades complexas e “civilizadas”. p. 117 . A conversão baseou-se nas ideias de Inácio de Loyola ‒ fundador da Ordem ‒ expressas nos Exercícios Espirituais. Manuel Dias. para a missão indiana de Roberto Nobili. muitos deles. 159 Rae. Ricci preparou-se ali. mas sim compreensão e respeito pela cultura dominante. pp. e passou a dominar o chinês e as matérias próprias de um letrado chinês de alta categoria. E. organizou uma embaixada japonesa para a Europa e obteve do Papa Gregório XII (1585) o direito exclusivo. Op.. p. 221-226. Ian. para prepararem os padres que continuavam a lutar para conseguirem penetrar no país e ali exercerem o apostolado. em especial. Rodrigues. no conhecimento que foi adquirindo dos chineses. Por outro lado. com o padre Ruggieri e o padre Pasio. Gonçalo. 158 Mesquitela. os Jesuítas já tinham organizado a aprendizagem do idioma chinês na sua expressão erudita. 152. As relações de Ricci com os chineses não nos mostra uma submissão unilateral ou de acomodação. muito mais interessados do que na religião. História de Macau. Cooper.. no Colégio da Madre de Deus. que chegou ao Japão em 1549. o que lhe permitiu estabelecer relações com chineses da mais alta hierarquia e entre os funcionários imperiais158. I. em Macau. incentivou a publicação de catecismos e obras históricas. também houve um esforço no sentido de educar o clero local e de procurar uma relação privilegiada com a elite política local156. Por isso. Abriu seminários e noviciados para a educação de padres japoneses. estavam nas ciências e. Macau: ICM.. apresentando também as qualidades da sua própria cultura159. um dos jesuítas italianos enviados para a Ásia. Tomo II. deu os primeiros passos para o novo método de conversão. Michael. p. na astronomia e na matemática. o verdadeiro arquiteto da accommodatio foi Alessandro Valignano. estudando os programas dos concursos para o mandarinato. Gonçalo. 148-150. aprendiam também os costumes chineses. Mesquitela.locais e os costumes sociais. verificou que.. A adaptação cultural já tinha sido adotada como estratégia pela Igreja desde os seus primórdios. Vol. o mandarim dos letrados. 1996. Com o idioma. sistema que no Japão se tinha revelado indispensável. “A Abordagem Comunicativa Intercultural dos Primeiros Missionários Jesuítas na 156 157 118 . opôs-se às interferências na política interna do Japão. da evangelização do Japão157. para a Companhia de Jesus. cit. o Intérprete. preparou-se também para poder discutir esses temas como letrado chinês. assim como na relojoaria. Se Francisco Xavier. anotada de José Wicki S. Francisco Xavier. escrito em Malabar. Recolheu muita informação até 1606. Gonçalo Trancoso escreveu a obra mais importante sobre o Hinduísmo. 122.. Nessa história aborda questões como divindades hindus. mas parte dela perdeu-se e. no Livro da seita dos Índios Orientais. A curiosidade pelas culturas e o desejo de combater o outro fizeram desenvolver um conjunto de práticas que se tornaram características muito próprias da Companhia de Jesus. 160 Lopéz-Gay. enquanto esperava embarcar para a Índia. no seu Oriente Conquistado. observações pouco lisonjeiras sobre as suas vidas e ciência. Esta preocupação aparece desde os inícios da missionação. Mais completo. “Encuentro con las Religiones no-cristianas del Oriente”. p. existiu um conjunto de atividades que foram desenvolvidas no sentido de se aproximarem de culturas que lhes eram tão contrárias na sua essência. cerimônias. IV. 119 . nessa altura. Nele estão incluídos trechos dos poemas épicos Mahabharata y Ramayana. Este fala-nos de algumas qualidades e costumes do índio oriental.Paralelamente. foi Giacomo Fenizio. fazendo. transmigrações das almas e outras cerimônias hindus. antes do século XIX (Maduré. como as que respeitam aos costumes da terra. Francisco de Souza. vol. aquando da sua estada na Índia. porque analisou com maior profundidade os assuntos sobre o Hinduísmo. com introdução e notas. e. Sebastião Gonçalves recebeu a tarefa de escrever uma história sobre a Província. Lisboa. Diccionario…. Revista de Cultura.J. Tratado sobre o Hinduísmo. Alessandro Valignano. foi o primeiro jesuíta a fazer uma síntese do Hinduísmo: História do Princípio e progresso da Companhia de Jesus nas Índias Orientais (1580-1583). mais tarde. ritual sati… Em 1594. J. de que se destacam a aprendizagem das línguas locais e as edições de obras. perguntou a Inácio de Loyola sobre o modo de lidar com os “infiéis”. 1616). ed. não só para o ensino e divulgação das letras e da doutrina. p. teve contatos com os líderes religiosos locais. tentou refazer os temas desaparecidos. Visitador do Oriente. 2706. considerando os Brâmanes como o grande obstáculo da conversão160. Centro de Estudos Históricos China”. religião. ritos de passagem. 162 Todas essas informações são tiradas do artigo de Maurício. 120 . em tamil. muito apreciado pelos letrados hindus. dando uma síntese exaustiva das obras e temas abordados por esses missionários. Diogo Gonçalves S. onde contrapõe a ideia bramânica do espírito encerrado no corpo com o conceito da forma aristotélica. cit. principium vitae. aconselhamos as entradas no referido Dicionário…. um trabalho filosófico. ed. p.. O padre Henrique Henriques. atacando muitas das superstições das castas inferiores e tradições em que eles se apoiavam. mas tal não se concretizou. queremos aqui destacar Roberto de Nobili. Grande conhecedor do sânscrito. História do Malabar. Os jesuítas manifestaram também interesse por outras religiões. um dos missionários que maior importância deu aos estudos filosóficos. A título de exemplo indicamos Manuel Barradas. Op. etc. O autor desenvolve esses e outros aspectos. Francisco Barreto. Para além de outros. os missionários jesuítas discutiram as obras do brâmane Gità Veaco. Joseph Dicionário. Mas na província do Sul o procedimento repetia-se. em Goa. traçar um roteiro para a história da penetração da filosofia ocidental através dos missionários europeus. em poucas páginas. tomo III. em 1609.Ultramarinos.. 2708-2708. 1955. no livro Contra as fábulas dos gentios. (ordenado alfabeticamente). pp. p. refutou a pretensa transmigração das almas. vol. já que são muitas as fontes que chegaram até nós. Tomos I. 2708-2711. ed.. III. Münster. Domingos. II e III. devido à falta de recursos e ao desconhecimento do sânscrito. Também na Bibliohèque de la Compagnie de Jesus. 185186. com um curso de Filosofia ocidental. Fernão de Queiroz. na missão do Maduré. quis formar um colégio ou universidade de brâmanes. p.. aparecem biografias de jesuítas que andaram pelo Oriente. Francisco Garcia. faz uma análise sobre a história e costumes malabares: casamentos. aconselhamos as seguintes leituras: Schurhammer. Lembre-se que tais descrições/análises não significavam o respeito ou adoção das culturas locais: quase sempre tinham como finalidade a sua refutação e a valorização da cultura europeia e uma forma de missionação. de Josef Wicki.J. A Norte. Op. etc.. O Livro da Ciência da Alma. Carlos Sommervogel S. cit. tendo muitos deles deixado testemunhos escritos. superstições. 591-627.I. 1973161).162 Em relação às obras filosóficas que pudessem ter saído desses 161 Para melhor esclarecimento e desenvolvimento da matéria. O missionário compôs. Torna-se difícil. Georg.. Baltasar da Costa. Wicki. festas. colégios. Magalhães & Moniz Editores. sabemos que da Europa iam muitas obras e havia numerosas bibliotecas espalhadas nos colégios e casas jesuítas. Não sendo objeto deste estudo. conhecedor da língua Tamil. as obras de Pedro da Fonseca. Como anteriormente escrevemos. tendo Francisco Xavier dado o exemplo. destacamos: o padre Henrique Henriques. Porto: Liv. Francisco.163 De seguida e para finalizar faremos uma pequena incursão pelo campo linguístico. Rodrigues. isto é. p.165 Tal preocupação visava o conhecimento das línguas com a finalidade de atingirem os objetivos missionários e culturais que a Ordem se propunha. Tomás. p. o padre Gaspar de Aguilar escreveu a Arte de língua Tamulica. p. para auxiliar o estudo. 1917. um Catecismo maior e outro menor. Na Língua Concani. Salsete. o padre Antão de Proença compôs: Vocabulário Tamulico-Português. dessa forma. Entre os muitos que se distinguiram neste campo do saber. Maria. Destacamos as Sumas de S. também não há referência.182-183. distinguiramIdem. não foi o apreço pelas culturas locais. não temos conhecimento delas. queremos. Ed. o Curso Conimbricense. Vidas de Jesus Cristo. Ambalacate e Vaipicota. rememorar esta componente jesuíta. não teriam atingido a mesma dimensão se não houvesse o conhecimento das línguas locais. sobretudo no Malabar. 165 Farinha. abriram várias escolas de línguas para os missionários: Punicale. a Ética de Aristóteles. 97. etc. etc. Ibidem. mas antes a sua destruição que os moveu neste propósito. as obras de Platão.164 Os resultados havidos. no entanto. a qual ganhou particular notoriedade na Índia. da qual se fez depois um Compendio. refutar as suas doutrinas. uma das principais preocupações dos missionários que para aqui partiram foi a aprendizagem das línguas locais. mas conseguiram. Vultos Missionários da Índia Quinhentista. dado a atenção ter sido dedicada ou à linguística ou à edificação religiosa. 341-343. Missões Cucujães. e. Pe António Lourenço. Segundo Francisco Rodrigues. que escreveu e imprimiu a Arte da Língua Tamulica e Vocabulário. 1955. quando consultamos a lista de obras impressas. A Formação Intelectual do Jesuíta. No entanto. 163 164 121 .. A Expansão da Língua Portuguesa no Oriente nos séculos XVI. e depois no Japão. em 1587. os padres Roberto de Nobili e Antão de Proença166. traduziu. Heike-Monogatari (Contos de Heike).. que residem na Christandade de Salcete e novamente acrescentado com vários modos de fallar pelo P. 2003. Aconselhamos as seguintes leituras: Rodrigues. Wakan-Roeishu (Colecção de Poesia Nipo-Chinesa). 143-358. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Ac Japonicum). ainda. a Cartilha da Doutrina Cristã do padre Ignácio Martins e compôs uma Grammatica da mesma língua. entre outros mestres. 159. Op. Notas sobre os catecismos em línguas vernáculas das colónias portuguesas (séc. por outros ramos do saber. 166 122 . feito pelos Padres da Companhia de Jesus. Armando. XVI . em concani. literatura clássica europeia (como as Fábulas de Esopo). Fizemos apenas um brevíssimo resumo sobre a matéria. como foi o caso da China. entre outras obras. Kinkushu (Colecção de Provérbios). 1936. destacamos um Dicionário Concani-Português: Vocabulário da língua Canarina. Indicamos. tais como Taiheiki (Crónica da Grande Pacificação). já que outros houve que enveredaram. assim como textos literários japoneses em caracteres latinos. impressa em Nagasaki (1603-1608). 1992. pois é uma temática que não pode ser esquecida ‒ e foram muitos aqueles que se distinguiram nestas regiões ‒. cit. Sobre o assunto foi feito o seguinte estudo: Barros. do padre Diogo Ribeiro. de que se destacam a gramática de João Rodrigues (Arte de Lingoa de Japam). 167 Janeira. Francisco. Leonor A Galáxia da Língua Malabar em Português. Max Niemeyer Verlag Tubingen. vários livros foram publicados. Lopes. Diogo Ribeiro. essencialmente. Com a imprensa levada da Europa para o Japão por Valignano. e muitos outros monogatari (contos). com Purâna. outros quiseram penetrar na literatura dos brâmanes e estudaram o Sânscrito. A Formação Intelectual do Jesuíta. Barcelos: Portucalense Editora. por exemplo. p. também havia obras traduzidas para japonês.XVII). Buesco. etc167. publicado em Nagasaki. Cândida. como livros religiosos (Imitatio Christi. XVII e XVIII. Lisboa: Ed. p. Revista Iberoromania. impresso em Amasuka (1595). mas todos eles tiveram um objetivo: a missão. publicado com o título Contemptus Mundi). primeiro em Macau. o Dicionário Latino-PortuguêsJaponês (Dictionarium Latino Lusitanicum. A escrita e uso dos catecismos são também um outro aspecto de grande relevância na atividade jesuíta. nº 57. o dicionário português-japonês (Vocabulário da Língua de Japão).se: o padre Thomaz Estêvão. onde a mesma esteve desde 1588 até 1590. David. 169 Matos. em Shaozhou. como embaixadores do Japão ao Papa e ao rei de Portugal e Espanha. Macau: Ricci Institute. Goa. Em 1595. Lisboa. Ricci. p. Vice-Provincialis Missionis Sinensis anno 1678 die 15 augusti. que significa Para um Novo Esferograma (Instrumento do Observatório Astronómico de Pequim). in Religion and Culture. Op.. Filipe II. Na segunda metade de 1587. o padre Duarte de Sande teria sido persuadido pelos jovens japoneses que tinham ido como embaixadores à Europa170. p. in Religion and Culture. Manuel Cadafaz de. o padre Matteo Ricci. em 1683. rebusque in Europa. em 1690173. a mais antiga publicação em Latim é a Epistola P. ‘The Missions of Portuguese Typography in the South of China in the Sixteeth and Seventeenth Centuries”. já em Nanjing (Nanquim). que publicou um catecismo.Na China. em Macau.. desde o século XVII (Daniel Bartoli. ‘The Missions of Portuguese Typography in the South of China in the Sixteeth and Seventeenth Centuries”. “Father Duarte de Sande. publicada nesse mesmo ano em Beijing (Pequim)174. Américo da Costa. p. Os Quatro Livros. p. 168 123 .. Ramalho. intitulado Christiani Pueri Institutio171. 79-80. 1999. Cf. num longo périplo que os levaria sucessivamente a Macau.ac totó itinere animadversis Dialogus. 170 Estes quatro jovens nobres japoneses tinham sido enviados por Valignano. Madrid e Roma. escreveu um Tratado de Amizade. cit. Manuel Cadafaz de. Em Dezembro de 1591. tendo passado também por Macau. O mesmo Verbiest é o autor de Yixiang tu. 84. que foi aí impresso169. Manuel Cadafaz de. Genuine Author of De Missionum Legatorum Iaponensium Ad Romanam Curiam… Dialogus”. a publicar o livro de Joannes Bonifacius. já em Matos. Visitador Jesuíta do Oriente. para daí regressarem ao Japão. 85. 1608-1695). 1999. 172 A autoria dessa obra tem sido atribuída. 171 Matos. muitas vezes. na prensa tipográfica que com eles viera. 83. 173 Matos. 89-101. intitulado De Missionum Legatorum Iaponensium Ad Romanam Curiam. p. ex-curia Pekinensi in Europam ad Sócios missa. Manuel Cadafaz de. J. cit. a imprensa cristã teria começado com o padre Michel Ruggieri. em 1582. Op. Ferdinand Verbiest. p. 174 Matos. 81-82. in Religion and Culture. decidiu começar a tradução dos clássicos chineses. Macau: Macau Ricci Institute. No século XVII. em caracteres chineses para o ensino dos chineses168. ao padre Alessandro Valignano. O mesmo Duarte de Sande escreveu – e publicou172 com a mesma imprensa – o relatório dos jovens embaixadores. Ibidem. Manuel Cadafaz de. onde chegaram seis anos mais tarde. S. Um outro europeu. povos e oceanos. 86-87. p. etc.língua chinesa175. simultaneamente em Latim e em Chinês. p. 87. Macau: Ricci Ins-titute. um outro estilo urbanístico. pp. a matemática. Sapientia Sinica Exponente P. Podemos. Jesu. Francisco Xavier)177. incluindo o túmulo de S. p. Eles deram a conhecer. cujos autores foram o padre português Inácio da Costa e o italiano Prospero Intorcetta. Matos. cit. No século XVII. p. publicou. in Religion and Culture. de construção naval e meios de navegação. Ignatio a Costa Lusitano. Manuel Cadafaz de. que chegou a Macau em 1697. Op. da qual não se sabe a autoria179. Nouveaux Mémoires sur l’État présent de la Chine (com um detalhado plano da ilha de Sanchoão. a configuração do planeta. 86. impresso pelos padres da Companhia de Jesus em Jianchang (China). a geografia. Soc. Manuel Cadafaz de. De 1717 há a edição de Informatio pro Veritate Contra iniqiorem famam sparsam per Sinas cum Calumnia PP. 175 124 . O padre Gaspar Castner. 178 Ibidem. Francisco Xaverio176. em Latim. 179 Ibidem. em Paris. foi publicado um outro trabalho bibliográfico. Manuel Cadafaz de.. afirmar que a ação cultural e missionária dos jesuítas no Oriente foi decisiva para a implantação e enraizamento da cultura e demais valores dos portugueses e europeus no Oriente (entre os séculos XVI e XVIII). assim como diversos produtos e técnicas que até então desconheciam. in Religion and Culture. Macau. a engenharia e a música. 176 Matos. 1999. 88. ao Oriente. teria preparado uma edição xilográfica intitulada Relatio Spulturae magno orientis apostolo S. dos continentes. em 1700. ‘The Missions of Portuguese Typography in the South of China in the Sixteeth and Seventeenth Centuries”. pois. melhoraram as técnicas metalúrgicas. o padre Louis Le Comte. usando o habitual método xilográfico178. ‘The Missions of Portuguese Typography in the South of China in the Sixteeth and Seventeenth Centuries”. 177 Matos. jesuíta. 87. bem como aí introduziram um novo tipo de farmacêutica e medicina. s. nem sejam descendentes de pessoas que tivessem algum dos defeitos sobreditos. judeu. isto é. 1585. nem fosse presos ou penitenciados pela Inquisição. para la familia cismontana. Madrid: Imprenta Realm. Além dessas exigências comuns 1 125 .. de la orden de nuestro seraphico padre. de la Regular Observancia de N. 2 Sobre a recepção de noviços na Ordem de São Francisco. 1622. Estatutos generales de Barcelona. & de segredo”.. 3 Acerca do regimento de 1640. Francisco. assim como não deveria ser descendente de hereges “modernos”. Francisco.3 vigente durante a vida do frade Agradeço ao CNPQ e à FAPERJ pelo auxílio financeiro concedido à pesquisa: Nobres vassalos entre virtudes e males da terra: escrita e identidade de clérigos nativos da Índia Portuguesa (séculos XVI e XVII). nos Estatutos Generales de Barcelona de 1585. o qual proibia a concessão do hábito franciscano àqueles que fossem descendentes de mouros. ou gente novamente convertida a nossa santa fé.. exigiam-se dos candidatos a deputado do Santo Ofício as qualidades descritas no título I. que não tenham incorrido em alguma infâmia publica de feito. dispuestos en la Congregacion general. bem como deputado do Santo Ofício de Goa. A interdição foi preservada no capítulo 1 (§ 9 e 10) dos Estatutos generales de 1622. de mouros nem de herege. sem raça de mouro. capazes para se lhe encarregar. Além da ocupação de cargos em instituições que realizavam inquéritos a respeito da pureza de sangue de seus candidatos ‒ como é possível identificar nos Estatutos da Ordem de São Francisco2 e no Regimento do Santo Ofício de 1640.P. definiu-se que o candidato fosse de boa linhagem e não fosse descendente de judeus.Escrita e trajetória de um franciscano luso-descendente nascido em Macau (século XVII)1 Patricia Souza de Faria Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro O objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre a trajetória e a escrita de frei Jacinto de Deus. contraíram matrimônio com mulheres nativas. & sem fama em contrário. com frequência. judeus hereges e gentios modernos “dentro del quarto grado de los linages sobredicho”. que fossem “naturais do reino e cristãos velhos de limpo sangue. qualquer negocio de importância. S. serão de boa vida e costumes. parágrafo 2. franciscano nascido em Macau em 1612. que. celebrada em la ciudad de Segovia en el año del Señor de 1621. o frade pertenceu a famílias de portugueses e seus descendentes estabelecidos na Ásia. Ver: Estatutos generales de Barcelona. ainda que fossem remotos. para la familia cismontana. ou seja.. México: Pedro Ocharte. A genealogia de frei Jacinto de Deus evidencia o pertencimento desse frade ao grupo social dos luso-descendentes. ou de direito. ‒, outra dimensão da atividade de Jacinto de Deus foi sua produção escrita, que se caracterizou pela diversidade de gêneros, pois redigiu um “espelho de príncipes”, uma obra sobre as origens e os estatutos das ordens militares, livros dedicados à espiritualidade franciscana e uma memória sobre a presença dos franciscanos da mais Estreita Observância (ou capuchos) no Oriente Português. Em trechos de suas obras, Jacinto de Deus fez alusões a elementos que fizeram parte das preocupações de luso-descendentes, como a genealogia, a busca por distinção (diante dos demais grupos sociais nativos) e a relação ambígua estabelecida com a terra natal (referências às qualidades e aos malefícios associados ao Oriente) ‒ o que sugere aproximações entre a escrita de frei Jacinto de Deus e a subjetividade criolla, que se manifestou, de forma similar, por meio de textos produzidos por descendentes de espanhois nascidos na América.4 As experiências históricas desenvolvidas nos espaços ibéricos ligados pelo Atlântico são mais bem conhecidas pela historiografia brasileira. Por essa razão, discuto, a partir da trajetória de frei Jacinto de Deus, uma problemática que se desdobrou no Índico, nas regiões centrais do império asiático português. Trata-se da inserção na ordem imperial portuguesa dos grupos sociais que – atualmente denominados lusodescendentes – eram definidos como casados e seus descendentes, filhos da Índia, castiços, indiáticos, mas que viveram sob o risco de serem classificados de forma pejorativa – ao ser acentuada a herança do sangue nativo, de negros da terra e de mestiços – e de disputarem, constantemente, o acesso a posições privilegiadas no Estado da Índia5 a ministros e oficiais do Santo Ofício, os deputados deveriam ser “pessoas nobres, clérigos de ordens sacras, de vinte & cinco anos de idade, licenciados por exame privado em uma das faculdades de Teologia, Cânones & Leis”. Ver: Regimento do Santo Officio da Inqvisicao dos reynos de Portvgal. Lisboa: Officina de Manoel da Sylva, 1640. 4 LAVALLÉ, Bernard. Las promessas ambíguas: ensayos sobre el criollismo colonial en los Andes. Lima: Instituto Riva-Agüero/ Pontificia Universidad Católica del Peru, 1993; BAUER, R. & MAZZOTTI, J. A. Creole subjects in the colonial Americas: empires, texts, identities. Virginia: UNC Press, 2009. 5 Estado da Índia foi a designação concedida ao conjunto de territórios, estabelecimentos, pessoas e bens administrados ou tutelados pelos portugueses que se estendiam do cabo da Boa Esperança ao Extremo-Oriente. THOMAZ, L. F. De Ceuta a Timor. Lisboa: Ed. Difel, 1994. 126 com os reinóis (nascidos em Portugal) ou com os demais nascidos no Oriente. Acerca da trajetória de frei Jacinto de Deus, em 13 de julho de 1630 o macaense recebeu o hábito da Ordem de São Francisco,6 instituição na qual ocupou vários cargos, pois foi custódio (em 1646) e provincial da Madre de Deus de Goa – nome da província dos franciscanos da mais Estreita Observância que atuaram no Oriente –, bem como guardião do convento homônimo. A condição de primeiro padre da província, ocupada normalmente por um ex-provincial, foi desfrutada por frei Jacinto de Deus a partir de 1664.7 O frade macaense foi jubilado em teologia e faleceu aos 69 anos em Goa, no dia 8 de maio de 1681.8 O franciscano foi deputado do Santo Ofício de Goa, cargo que deveria ser ocupado por não “mais que um deputado de cada” ordem religiosa “e este seja ou provincial, ou prior”, conforme o inquisidor de Goa Rui Sodrinho, em correspondência de 1589.9 O número de deputados deveria ser, portanto, quatro: “Nesta Inquisição há quatro ordenados de trinta mil reis cada um, que até agora se costumaram dar a quatro deputados religiosos”.10 Contudo, deputados adicionais que não recebiam salários também colaboraram com os inquisidores de Goa. Porém, a atração exercida pelo cargo de deputado não se limitou Boxer, C. R. Um macaense ilustre: frei Jacinto de Deus (1612-1681). Macau: Escola Tipográfica do Orfanato, 1937, p.1-12. 7 Jacinto de Deus ocupou o cargo de vigário provincial em 1649, ao suceder frei Filipe de S. Leoguarda, falecido no mesmo ano, mas o frade macaense recusou a reeleição: “o não quis aceitar para que o fosse o Ir. fr. Martinho de S. João, seu amigo e condiscípulo”. Consta informação de que no Capítulo Provincial, celebrado em 16 de julho de 1655, frei Jacinto de Deus era o provincial e que no ano seguinte, além de provincial, era comissário geral. Em 1661, Jacinto de Deus foi designado guardião do convento da Madre de Deus de Goa. Consultar a documentação transcrita por: Meersman, Achilles. The chapter-lists of the Madre de Deus Province in India: 1569-1790. Studia, Lisboa, nº 6 , p.121-349. Jul. 1960. 8 Boxer, C. R. Um macaense ilustre..., op.cit., p.1-12; SILVA, Innocencio Francisco da. Dicionario Bibliográfico portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, MDCCCLIX, t. 3, p. 238. 9 Baião, A. A Inquisição de Goa. Lisboa: Academia das Ciências, 1930, v. 2, p. 202-203. Carta do inquisidor de Goa Rui Sodrinho ao conselho Geral, Goa, 29/11/1589. Foi modernizada a escrita da documentação citada neste artigo. 10 Idem, ibidem, p. 345. 6 127 a eventuais remunerações, pois os oficiais do Santo Ofício desfrutavam de um conjunto de privilégios, que envolviam a isenção de impostos e de prestação de serviço militar, licença para portar armas e o direito à jurisdição privada. Aos privilégios mencionados adiciona-se a distinção social obtida pelo oficial do Santo Ofício.11 A investidura dos funcionários da Inquisição dependia de um processo de habilitação, no qual o grau de pureza de sangue se tornou um elemento a ser inquirido nas diligências, na medida em que conferia um grau de distinção social que se unia à qualidade da linhagem e do nascimento em famílias da nobreza.12 Frei Jacinto de Deus teve sua genealogia e a sua honra (bem como a de seus ancestrais) inquiridas, pois se tornou deputado do Santo Ofício de Goa. Jacinto de Deus consta na lista de deputados do Santo Ofício apresentada por Antonio Baião: “O Pe. Mestre Fr. Jacinto de Deus, dos Reformados da Madre de Deus, Comissário Geral da sua Ordem”, no Estado da Índia, em 30 de outubro de 1671.13 Os inquisidores afirmaram que frei Jacinto de Deus era conhecido “pelas obras que tem impresso, e trata de imprimir” e o Conselho Geral do Santo Ofício apresentou o parecer de que, sendo poucos os deputados, o franciscano ocupasse o cargo.14 Foram feitas as diligências sobre seus pais e avós, bem como passada a provisão de deputado do Santo Ofício de Goa para Jacinto de Deus.15 Após os tribunais de Évora, Lisboa e Coimbra não terem encontrado culpas contra Jacinto de Deus em seus repertórios, os inquisidores de Coimbra delegaram ao abade Manoel de Amorim BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 77, 134,139. 12 Idem, ibidem, p. 137. 13 Baião, A. A Inquisição de Goa. Lisboa: Academia das Ciencias, 1945, v. 1, p.174. Os livros de Jacinto de Deus que foram impressos são: Escudo dos Cavaleiros das Ordens Militares (1670), Tribunal da Província da Madre de Deus dos Capuchos da Índia Oriental (1670), Brachilogia de Principes (1671), Caminho dos frades menores para a vida eterna (1689), Vergel de Plantas e Flores da Provincia da Madre de Deus dos Capuchos Reformados (1690). 14 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 25,1,006, n.130 (adiante, BNRJ). Conselho Geral do Santo Ofício à Mesa da Inquisição de Goa. Lisboa, 20 de março de 1671. 15 BNRJ, 25, 1, 006, n.136. Lisboa, 24 de setembro de 1672. 11 128 Leitão, em 10 de novembro de 1673, a tarefa de confirmar a genealogia que o franciscano alegava possuir: ser filho de um português nascido em Pica de Regalados ‒ do arcebispado de Braga ‒ que se casou em Macau com Cecília da Cunha, bem como neto de Gonçalo Fernandes Soares (igualmente natural de Pica de Regalados) e de uma mulher nascida no Porto. Em dez de dezembro de 1673, em Pica de Regalados, na ermida de N. S. da Salvação, o abade Manoel de Amorim Leitão e o notário do Santo Ofício questionaram algumas testemunhas. A primeira inquirida foi Belchior de Abreu Filgueira, escrivão da câmara do Conselho de Pica de Regalados, de setenta anos, que não conheceu Jacinto de Deus, apenas o seu pai, Pedro Soares Vivas, mas não sabia se Pedro contraíra matrimônio. Eram passados cinquenta anos desde que a testemunha tomou conhecimento da partida de Pedro Soares Vivas para a Índia, pois tinham o hábito de conversar. Disse que conheceu o pai de Pedro, Gregório Fernão Vivas,16 e que tiveram muitos diálogos por serem vizinhos, malgrado o esquecimento do nome da esposa dele e do local onde ela nascera. Afirmou sobre Pedro e Gregório ‒ pai e avô de Jacinto de Deus, respectivamente ‒ que nunca tivera notícia sobre se tais pessoas tivessem sido presas pelo Santo Ofício e que eram: legítimos cristãos velhos, limpos, e de limpo sangue e geração sem fama, nem raça nem descendência de judeu, mouro, mulatos, mourisco infiel, ou de [outra] infecta nação dos novamente convertidos a nossa fé católica e por inteiros e legítimos christãos [...] são e foram sempre tidos havidos e comumente reputados17 A segunda testemunha ouvida foi Luzia Brás, viúva de setenta anos e moradora na Pica de Regalados, que também não tivera oportunidade de conhecer frei Jacinto, apenas o seu pai, cuja esposa se chamava Beatriz Gonçalves. Todavia, a testemunha soube que o O avô paterno do frade chama-se Gregório e não Gonçalo, o que divergia da informação inicial apresentada aos inquisidores. 17 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 12. Adiante, ANTT/TSO/CG. 16 129 avô de Jacinto enviou um filho para a Índia “por ter [... ] parentes com cabedal”.18 Luiza Brás informou que a família de Jacinto era dotada de cabedais e com negócios na Índia e que todos eram cristãos velhos. Antonio Brás, lavrador, 76 anos, foi outra testemunha que não conheceu frei Jacinto, somente o pai,“Pedro Soares, natural desta Pica de Regalados, o qual foi desta vila pera Índia sendo menino pequeno”, ainda que não soubesse com quem ele se casou. A testemunha conheceu, igualmente, o avô de Jacinto de Deus, quando ele era viúvo, pois tinha o hábito de frequentar a sua casa: “pela ir jogar a bola com seu filho Pedro Soares Vivas”.19 Ao passo que Pedro de Abreu, ferreiro e morador de Pica de Regalados, 63 anos, ao contrário das testemunhas anteriores, disse ter: notícia de um [frade] que não sabe o nome, o qual era filho de Pedro Soares Vivas, o qual está pera partes da Índia, e a razão desta notícia é por ouvir dizer que recolhendo-se o dito frade pera a Religião deixara os bens a seus parentes assim na terra aonde estava como nos que tinha neste Reino; e a poucos tempos há que um parente do dito frade se queixou a esta testemunhaa que lhe deixara o dito frade uma esmola e que lha não deram. E esta noticia tem ele testemunha de quarenta anos a esta parte.20 O relato de Pedro de Abreu confirmou o que Luísa Brás já havia afirmado: frei Jacinto de Deus provinha de uma família dotada de consideráveis cabedais. O ferreiro Pedro de Abreu disse que Gregório, o avô de Jacinto, teria enviado o filho (Pedro Soares Vivas) à Índia: “Em razão de lá ter tios e parentes ricos”. Afirmou ter lido muitas cartas que vinham da Índia escritas por Pedro Soares Vivas, nas quais contou que “tivera somente um filho, o qual se metera a frade”. A quinta testemunha, João Manoel Rebelo, lavrador, sessenta anos, disse “que teve noticia que nas partes da Índia havia um frade [...] o qual era da geração dos Vivas”, além de saber que Gregório Fernandes Vivas “tivera um filho ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 12-12v. ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 14-14v. 20 ANTT,TSO,CG , Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 15-15v. 18 19 130 ao qual diziam chamavam Pedro, ao qual embarcou pera a Índia, por quanto lá tinha parentes ricos”.21 As investigações foram realizadas também no Oriente, sob os cuidados do agostinho Miguel dos Anjos, governador do Bispado da China, comissário do Santo Ofício de Goa.22 Em 20 de outubro de 1674, a primeira testemunha ouvida foi [Pedro] Rodrigues Teixeira (natural de Lisboa, casado e morador em Macau, região em que foi juiz ordinário, vereador, capitão geral, 84 anos de idade), que afirmou ter conhecido frei Jacinto “sendo criança, e antes de ir a escola, lhe parece, e que é natural desta cidade”. A testemunha informou que o pai de Jacinto chegou a Macau no ano de 1618, era chamado de Galego por ser natural de uma região “d’entre ouro e minho”, mas não conheceu a esposa dele. O avô materno, Tomás Brás da Fonseca, era cidadão em Macau, onde ocupou funções de juiz e vereador algumas vezes e foi provedor da Santa Casa da Misericórdia duas vezes. Conheceu-o já bastante senil, mas não a esposa ‒ cujo nome desconhecia, nem estava convicto a respeito de sua naturalidade. Contudo, “lhe parece, era natural desta cidade casta china”.23 A segunda testemunha foi um sacerdote de missa branco, Diogo Martins de Aranzuela, natural de Macau, de idade de 67 para 68 anos. Teria conhecido frei Jacinto há mais de cinquenta anos, “por ter sido [...] decurião no estudo no convento de São Domingos desta cidade, do dito Rdo. Pe. Fr. Jacinto de Deus”. Essa testemunha teria conhecido os pais do frade, sabia que o genitor dele era português e a mãe, nascida em Macau, pois frequentava a casa dessa famíia; tivera oportunidade de conhecer o avô Tomás Brás da Fonseca, nascido em Portugal, ainda que não soubesse de que região, nem tivesse conhecido a sua cônjuge, porém “lhe parece, ser natural desta cidade da nação china, com que antigamente os portugueses se casavam, e cá ambos foram moradores naquela cidade”. O avô de frei Jacinto de Deus, que foi provedor da ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 16. ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 30. 23 ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl.32, grifo nosso. 21 22 131 Misericórdia, “se fora para cidade de Cochim”, na Índia.24 João Teixeira ‒ natural de Lisboa, juiz ordinário e escrivão da câmara, vereador, juiz dos órfãos e escrivão da Misericórdia, 73 anos ‒ afirmou que conheceu Jacinto quando ele tinha dez ou doze anos de idade e que o seu pai português que era chamado de “galego”, porém, não conheceu nem a mãe do frade nem o avô Tomás Brás da Fonseca que: tinha ido para Cochim, sendo já viúvo e que nele morreu, mas que ouviu sempre dele ser homem grave, que ocupou todos os lugares da cidade e que fora Procurador da Misericórdia duas vezes, homem esmoler, e caritativo, e bem reputado. O relato de João Teixeira revela que Jacinto de Deus provinha de uma família que possuiu membros, como o avô do frade, que ocuparam importantes cargos no Estado da Índia e, por meio do desempenho dessas funções, podem ter exercido considerável influência política e obtido o reconhecimento social, com destaque para a função de provedor da Misericórdia de Macau, o que reforçou a imagem da liberalidade, do homem pio, do bom cristão que acumulou o desempenho de funções cívicas e de assistência, qualidades que foram atribuídas a Tomás Brás pela testemunha citada: “homem esmoler” e “caritativo”. Fazse necessário destacar que o provedor era o mais importante dos funcionários eleitos que serviam na Misericórdia, dos quais eram esperadas a boa reputação e a pureza de sangue.25 Enquanto a esposa de Tomás Brás da Fonseca era provavelmente natural daquela cidade “como eram naquele tempo quase todas as mulheres sínicas”, disse a testemunha.26 A suposição de João Teixeira coadunava-se com as práticas que caracterizaram as uniões contraídas pelos portugueses no Oriente, especialmente na China, região em que os lusitanos se casaram habitualmente com mulheres asiáticas. Desse modo, era provável que ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl.33. BOXER, C. Império Marítimo português. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 279. 26 ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 34. 24 25 132 inclusive a esposa de um “homem grave” como o avô de Jacinto de Deus fosse uma mulher nascida naquelas terras. O que corrobora as suspeitas da primeira testemunha, que também acreditou na procedência chinesa da avó materna de Jacinto de Deus, além de insinuar que fosse uma mulher da “casta china”. Gaspar da Fonseca Terra, natural de Lamego e morador em Macau, 74 anos, disse que conheceu Jacinto quando ele era estudante “e sabe que é natural desta cidade de Macau, e que dela se foi pera Goa a se meter Religioso Capucho”. Gaspar da Rocha, branco, natural de Macau, juiz ordinário, escrivão da Misericórdia, cinquenta anos, explicou que não conheceu pessoalmente o frade, mas sabia que ele nasceu em Macau, que o seu pai era da Galícia e afirmou ser notória a fama do avô Tomás, por ter ocupado tantos cargos. Essas testemunhas afirmaram não ter ouvido infâmias contra aquela família, nem suspeitas de que não fossem cristãos-velhos.27 Destacam-se as posições políticas e sociais desfrutadas pelo avô materno de Jacinto de Deus, visto que Tomás Brás da Fonseca teria ocupado o cargo de provedor da Misericórdia local duas vezes. Ressalta-se a importância das Misericórdias nos espaços do império português.28 A função de provedor da Misericórdia conferia prestígio a seus ocupantes e, em Macau, influência política, pois a instituição exerceu um importante papel no financiamento dos negócios locais, de uma região do império português tão dependente do comércio marítimo.29 Mercadores de Macau poderiam preparar expedições destinadas ao comércio de ópio através dos mares asiáticos com o apoio da Misericórdia.30 A de Macau parece ter sido a única das Misericórdias ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 36-38; Fll 39. BOXER, C. Império Marítimo português, op.cit., p. 267-289. 29 SÁ, Isabel dos Guimarães. Ganhos da terra e ganhos do mar: caridade e comércio na Misericórdia de Macau (séculos XVII-XVIII). Ler História, Lisboa, v. 44, p. 45-57, 2003. A autora afirma que a atividade creditícia da Misericórdia de Macau esteve associada aos ganhos do mar (empréstimos aos proprietários de navios) e aos da terra (empréstimos para atividades ligadas ao mercado interno). 30 SÁ, Isabel dos Guimarães. Charity, Ritual, and business at the edge of empire. In: Brockey, Liam Matthew (ed.). Portuguese colonial cities in the early modern world. Ashgate, 2008, p. 152. 27 28 133 do Oriente que não se encontrava sob a alçada da Misericórdia de Goa ‒ essa autonomia, explica Isabel Guimaraes de Sá, associa-se à própria autonomia da cidade de Macau, em que o Senado da Câmara foi a autoridade mais significativa e que respaldou a atividade da Misericórdia local.31 O avô materno de frei Jacinto também ocupou cargos no Senado da Câmara de Macau, conforme o relato de uma das testemunhas, ao aludir à ocupação do cargo de juiz e de vereador, o que indica o grau de prestígio e de privilégio de que deve ter desfrutado esse antepassado de Jacinto de Deus. Enquanto as diligências realizadas em Portugal evidenciaram que os antepassados de Jacinto de Deus, da linhagem paterna, eram conhecidos pelos moradores da região de Pica de Regalados como homens de cabedais, que partiram para a Ásia, as investigações realizadas na China revelaram a preeminência político-social de membros da linhagem materna do franciscano, como o avô português Tomás Brás, ainda que as informações sobre a mãe e a avó materna ‒ provavelmente mulheres asiáticas, como declararam as testemunhas ‒ tenham suscitado dúvidas a respeito da qualidade dos ancestrais femininos de Jacinto de Deus, como a avó de provável casta china.32 A análise da genealogia de frei Jacinto de Deus evidencia que Idem, ibidem, p. 164-165, sobre a dificuldade de reconhecer os critérios precisos de elegibilidade para ocupação de cargos na Misericórdia de Macau; SÁ, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império português. 1500-1800. Lisboa: CNCDP, 1997, p. 171. 32 ANTT,TSO,CG, Habilitações, Jacinto, mç. 3, doc. 47, fl. 40. “Vi estas diligencias do pe. Fr. Jacinto de Deus que pertende servir o St. Officio e por ellas se prova ser filho e neto dos avós que nomea excepto o erro do nome do avô paterno por se provar chamar-se Gregório Fernandes Vivas e não Gonçalo Fernandes Soares e outrossim se prova ser este legítimo e inteiro cristão velho e sem raça alguma de nação infecta como tambem ser o pertendente pelas qualidades pessoais capaz de se servir delle o St. Officio. Porém visto não constar da pureza ou impureza do sangue dos mais avós nem se achar de suas pátrias originárias notícia alguma e dizer uma das testemunhas da diligência de Macao; o pe. Po. Martins de Aranzuela, que lhe parecia que a avó materna do pertendente era da nação china sem embargo de se não provar este defeito, por ser esta testemunha única e não depor com firmeza e ciência certa, contudo eram as ditas considerações causas bastantes para o pertendente não dever ser admitido ao serviço do St. Officio iato he o que me parece [...] não vê caminho de se alcançar a noticia necessaria do que se pretende.” Lisboa, 20/3/1672. 31 134 o frade pertenceu a famílias de portugueses e de seus descendentes que se estabeleceram na Ásia, por meio da ocupação de funções no Estado da Índia, da inserção nas redes mercantis locais e do casamento com mulheres nativas. As atividades dos ancestrais de Jacinto de Deus inserem-se em um padrão de formação de elites mercantis de origem portuguesa estabelecidas (a provável atividade desempenhada pelos parentes da linhagem paterna, dotados de cabedais) em Macau, que se casavam com mulheres asiáticas ou euro-asiáticas.33 Frei Jacinto de Deus pertenceu a uma família de casados. Na Ásia, as principais categorias sociais usadas por cronistas da época para designar a presença portuguesa foram: casados ou casado morador; soldado; religioso, ministro, arrenegado; chatim ou solteiro; alevantado ou lançado. Os portugueses que se casavam, fixavam residência e viviam sob a autoridade do Estado da Índia eram denominados casados ou moradores; aqueles que teriam sangue “puro” de portugueses dividiam-se em castiços ou indiáticos (se nascidos na Índia de pais portugueses ou europeus) e reinóis (imigrantes de Portugal).34 Todavia, a comunidade de casados não constituiu um corpo social homogêneo, pois foi composta por fidalgos, cavaleiros de ordens militares, mas incluiu, igualmente, indivíduos de baixa origem social, ex-soldados libertos do serviço régio. O sustento dos casados esteve associado, mormente, às atividades mercantis, com destaque para o comércio intra-asiático.35 Uma parte dos ofícios da câmara municipal de Goa era reservada aos casados e seus descendentes.36 George Bryan Souza destacou, em Goa, o papel conjunto da Coroa, dos casados e dos comerciantes indígenas. Enquanto em Macau, os administradores SÁ, Isabel dos Guimarães. Charity, Ritual, and business, op.cit., p.165. Subrahmanyam, Sanjay. O império asiático português ‒ 1500-1700: uma história política e econômica. Lisboa: Difel, 1995, p. 310. 35 Miranda, Susana Münch; Serafim, Cristina Seuanes. O potencial demográfico. In: Marques, A. H. Oliveira (org.). História dos portugueses no Extremo-Oriente. Fundação Oriente, 1998, p. 185. 36 Boxer, c. Portuguese society in the tropics. Madison and Milwaukee: University of Wisconsin Press, 1965. 33 34 135 1991. A. v. Conforme Ângela Barreto Xavier. 333. Madison and Milwaukee: University of Wisconsin Press. Uma forma encontrada pelos que concorriam com os lusodescendentes era a de não os distinguir dos grupos sociais nativos considerados ainda de menor qualidade. Nova História da Expansão Portuguesa. de forma análoga às reservas que foram nutridas pelos casamentos entre portugueses e judeus conversos ao cristianismo. como os mestiços. t.da Coroa frequentemente fracassavam nas suas tentativas de controlar as atividades locais. mas era administrada. pelo ouvidor e pelo Senado da Câmara. como Macau. em decorrência do impacto dos princípios da pureza de 37 Souza . filhos de uniões mistas. Nessa última instituição. 1965. à proporção que crescia o número de euro-asiáticos nascidos em Macau instituições como o Senado da Câmara local admitiam prioritariamente os cristãos velhos portugueses de “nação e geração”. Lisboa: Editorial Estampa. A. pois o Senado da Câmara detinha o controle dos casados sobre negociações político-comerciais com a China e os Estados asiáticos vizinhos. Império Oriental (1660-1820). dos “homens bons” da cidade. p. c. as uniões entre portugueses e asiáticos convertidos favoreceram as desconfianças no reino a respeito dos casados. Portuguese society in the tropics. Boxer considere que as exigências quanto à pureza de sangue nem sempre foram respeitadas em espaços coloniais. isto é. George Bryan. 39 Boxer. de fato. conforme determinação de final do século XVII. os luso-descendentes enfrentaram suspeitas a respeito da qualidade dos nascidos nos espaços coloniais.39 Entretanto. In: Marques. 2.38 Apesar da reduzida presença de homens nascidos em Portugal. Lisboa: Dom Quixote. ainda que C. A sobrevivencia do imperio: os portugueses na China: 1630–1754. 136 . Oliveira. 5. M. Martins do. H. Macau. 38 VALE. pelo governador local.37 Macau esteve submetida ao governador ou vice-rei do Estado da Índia. apesar dos espaços ocupados em instituições portuguesas criadas no império oriental. os funcionários eleitos ou nomeados localmente defendiam os interesses dos moradores. 31. nos tempos iniciais da presença portuguesa em Macau ‒ quando predominaram aqueles que tinham apenas residência temporária na região ‒. não deveria contar com nenhuma mulher europeia entre os moradores originais. 2009. SP: Editora da Unicamp. 419-449. Idem.43 Por conseguinte. citase como exemplo. as mulheres que acompanharam os lusitanos 40 Xavier. 42 COATES. 1998. Lisboa: CNCDP. 2007. 43 Boxer. p. fundada em torno de 1557. Bologna. 1550-1755. p. alimentou controvérsias sobre o significado político-militar e as implicações sociais dessa iniciativa.sangue. Ângela Barreto. Cultura. Campinas. A Cidade do Nome de Deus de Macau. predominantemente. no início da presença portuguesa na China. Cristianesimo nella storia. p. 1977. ao passo que a distribuição para outras partes do Estado da Índia foi bastante inexpressiva e. Diogo Ramada. 137 . 2010. Das mulheres que chegaram a Goa. soldados ambiciosos em busca de fortunas ‒ nem as filhas de uniões dessas genitoras europeias ou as descendentes legítimas de portugueses e mulheres nativas. p. adotada em Goa no início do século XVI. Matrimónio e império na Goa quinhentista. a política de casamentos mistos estimulada por Afonso de Albuquerque. Conforme Leonor Seabra. 41 CURTO. 89-118. Thimoty J. A mulher na expansão ibérica.40 Destarte. em escravas e aventureiras. “Conformes á terra no modo de viver”. 85. enquanto outras foram transferidas para as “províncias do norte”. Lisboa: Horizonte. “Nobres per geração”: a consciência de si dos descendentes portugueses na Goa seiscentista. Cultura Imperial e projetos coloniais: séculos XV a XVIII.42 Leonor Seabra considera que era pouco provável que as órfãs portuguesas que chegassem a Goa fossem conduzidas à China ‒ para o convívio com aventureiros. 106. os quais estimularam a depreciação dos grupos sociais que pudessem ser identificados como mestiços. n. a maioria lá permaneceu. c. os lusitanos não foram encorajados a levar suas esposas europeias nas perigosas viagens. Ainda que ocorresse o envio das denominadas órfãs d’el rei. o fato de em 1636 só haver uma mulher portuguesa em Macau.41 Em Macau. as uniões entre portugueses e as mulheres nativas da Ásia foram bastante recorrentes. 138-140. Degredados e Órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português. de modo que a companhia feminina consistiu. 24. 46 Na diligência de habilitação de frei Jacinto de Deus para o cargo de deputado de Santo Ofício. Cristina Seuanes. em decorrência do comércio sino-nipônico. Desse modo. vendas e compras de escravos pelos portugueses suscitaram o descontentamento das autoridades chinesas e estimularam o surgimento de determinações régias que restringissem essa prática. Macau possuía uma população formada por 850 casados portugueses e pelo mesmo número de casados cristãos nativos. 150 mercadores e marinheiros.47 Em Macau. Na década de 1630. adquiridas seja nos mercados árabes. 33. social e jurídico do controle português. somados ao número de mercadores que tinham passagem temporária na região. o que se somou 44 SEABRA.44 Eram as muit-tsai. a comunidade de casados incorporou ‒ além dos reinóis ‒ os descendentes luso-asiáticos ou mestiços. ser natural desta cidade da nação china. os recorrentes raptos. Charity. Traços da Presença Feminina em Macau. p. em 1621. fl. 47. os lusitanos adotaram o padrão de fixação e de uniões contraídas no Extremo-Oriente. 3/4. havia aproximadamente 600 casados em Macau.45 Ainda que a escravidão fosse conhecida na China. Jacinto. Serafim. 45 Boxer. foram integrados ao universo político. pp. diante de uma população chinesa de 10 mil habitantes naquela cidade. havia aproximadamente 840 casados. doc. R. não havia mais que 300 casados em Macau. japonesas. C. mas eram predominantemente mulheres chinesas que poderiam atuar como servas domésticas. 46 Miranda. indianas e chinesas.cit. seja no de Goa. após a primeira geração. Macau: Fundação Macau/Museu e Centro de Estudos Marítimos. 2006/2007. unira-se com uma mulher que “lhe parece. p. Fidalgos no Extremo-Oriente: fatos e lendas do Macau Antigo [1968]. dos quais 437 eram portugueses e mestiços. além de possuirem concubinas mui-tsai. 2000. com que antigamente os portugueses se casavam. Em 1601. 195-196. 25-26. por meio da conversão. ao passo que o restante era representado por chineses cristianizados que.. 228. Susana Münch. ver: SÁ. em 1624. Ritual. 153-154. TSO. Op. p. em 1662 e 1669.cit. ao se unirem a mulheres malaias. Isabel dos Guimarães. como a emigração oriunda de Portugal foi predominantemente masculina. 47 ANTT. um homem português.foram escravas compradas na Ásia. 138 . CG. 197-208. mç. e cá ambos foram moradores naquela cidade”.. Habilitações. Campus Social. uma testemunha macaense afirmou que o avô de Jacinto. 3. a fixação dos portugueses no ExtremoOriente dependeu do casamento com mulheres nativas e. Leonor. entre 700 e 800 casados. adicionada à população escrava de 5 mil indivíduos. op. expressão que designava escravos domésticos de ambos os sexos. cit. Susana Münch. projetou-se sobre as populações nativas um conjunto de predicados acentuadamente depreciativos. convivia uma população multiétnica. A presença dessas temáticas na escrita de frei Jacinto de Deus pode ser concebida como um indício dos entraves encontrados pelo clero nativo.48 No interior de uma unidade familiar em Macau. sobretudo africanos. mulatos ou em descendentes de europeus nascidos nas colônias. Op. SÁ. de concepções forjadas na Antiguidade e difundidas ao longo do medievo. Serafim. que enfrentou a desconfiança do clero de origem europeia acerca da capacidade dos naturais para o desempenho das funções eclesiásticas. bem como as perspectivas médicas 48 49 Miranda.. em decorrência das supostas más inclinações transmitidas através do leite de mães e amas negras. noções inspiradas em teorias vigentes na época. a degeneração provocada em mestiços.. como as ideias aristotélicas a respeito dos tipos de escravidão (a legal e a natural.49 Em trechos de algumas obras redigidas por Jacinto de Deus é possível identificar a referência a questões relacionadas ao universo dos luso-descendentes. Cristina Seuanes. ainda que fossem descendentes de portugueses. na Idade Moderna.à entrada significativa de escravos de diversas origens. As premissas desse determinismo geográfico representam a apropriação. p. De modo geral. Charity. O frade enfrentou um desafio que atingiu os candidatos nativos ao sacerdócio. como o relaxamento moral. como a classificação do grau de “pureza” e “mestiçagem” dos nascidos na Ásia que fossem filhos de portugueses ou a ambígua atribuição de qualidades à terra natal. 195. que postularam a influência do clima sobre o homem e sobre os reinos animal e vegetal. situada fora das fronteiras do Velho Mundo. Isabel dos Guimarães. Ritual. 139 . p. 154. a última justificada devido à inferioridade física e intelectual de povos que sucumbissem diante do determinismo ambiental nefasto). noções que não deixaram incólumes os filhos e netos de portugueses que tiveram como terra natal a Ásia.cit. op. sob a alegação de que os primeiros eram propensos a sucumbir às más inclinações propiciadas pelo nascimento no Oriente. BAUER. À guisa de exemplo. caracterizou “o Oriente como um seminário de todas as diabólicas superstições e idolatrias do mundo”. A conquista espiritual da Índia: armas e evangelho na obra de Frei Paulo da Trindade.. R.. A. p. definida pela relação ambígua com a terra nativa.53 Ao passo que Jacinto de Deus afirmou. 2008. Lisboa: ICS.. mas o local onde eram abundantes as riquezas naturais. 104. 2-16. Bernard Lavallé e José Antonio Mazzoti. problemas e pesquisas em História Moderna (séc. n. As obras analisaram a experiência do Novo Mundo. há indícios tênues de uma característica dessa escrita criolla elaborada por franciscanos nas colônias ibéricas. 1.. que a “desgraça” de escrever na Ásia no LAVALLÉ. A. Bernard. In: MONTEIRO. J. São Paulo: Alameda. 50 140 . ao passo que o franciscano nascido na Índia frei Miguel da Purificação alegou que o Oriente era uma terra inferior. franciscano nascido em Macau.desenvolvidas por Hipócrates e Galeno. nas páginas iniciais de Vergel de plantas e flores. Ibidem. LAVALLÉ. R.. 52 XAVIER. 2008. B. Bernard. The American Historical Review. op.51 Lima. Vol. que relacionaram o tipo de psicologia e a fisiologia de uma pessoa com o meio ambiente ou as influências astrológicas às quais estivessem submetidos. B. Espelhos Deformantes: fontes.cit. mas que os filhos de portugueses lá nascidos e que fossem filhos de pais nobres superavam a propensão às más inclinações suscitadas por nascer na Ásia. J.52 Frei Paulo da Trindade. & MAZZOTTI. de autoria de frei Jacinto de Deus. A invenção de Goa. op.cit. 53 FARIA. Patricia S. Feb. XVI-XIX). de. New Stars: Patriotic Astrology and the Invention of Indian and Creole Bodies in Colonial Spanish America. CAÑIZARES-ESGUERRA. 51 CAÑIZARES-ESGUERRA. pois oscilou entre fazer apologia do local de nascimento e reiterar a ideia de inferioridade das terras situadas fora do Velho Mundo.. o franciscano nascido no Peru Buenaventura de Salinas e Córdova exaltou a sua cidade natal. mas estimulam a reflexão sobre processos similares que se desenvolveram no Oriente Português..). p. 16001650. Creole subjects. Ibidem. No início de Vergel de plantas e flores. New World. Las promessas ambíguas. 1999. 33-68.50 Essas percepções que sugeriram a degeneração dos nascidos fora do Velho Mundo e as respostas que foram enunciadas a elas ‒ por descendentes de homens ibéricos nascidos em espaços coloniais ‒ favoreceram a emergência de uma escrita marcada pela subjetividade criolla ‒ investigada por Cañizares-Esguerra. (Org. & fértil que manava leite. Esta é a terra que os seus divinos pés pisaram.. Nela obrou os mistérios da Encarnação. ambos os Testamentos [. a magnificência de seus edifícios. princípios da humana geração. um breviário dedicado ao príncipe cristão perfeito) que o frade ofertou 54 DEUS. & formou a primeira mulher. castelos [. & aljofres.].55 Frei Jacinto de Deus referiu-se ao Oriente em Braquilogia de príncipes como o local de procedência do “presente” (a obra escrita. que deu testemunho de seu eterno Filho. porque o continente d’Ásia.. p. 2-3..] a fragância de seus aromas.. a opulência de seus metais. & mel. & Redenção.54 Acerca da Ásia. Aqui mesmo tiveram principio as ciências reveladas. A imensidade de seus montes. Vergel de Plantas e Flores da Provincia da Madre de Deus dos Capuchos Reformado. com a variedade de sedas. Os acidentes a fazem muito mais digna. Jesus nasceu. como também as primeiras letras. & não faltou quem o situasse em Ceilão. além das vilas.].]. viveu. a multidão de seus rios. Criou o primeiro homem. este é o ar onde o eco respondia à sua celestial voz. que a representa maior que si mesma. 1690. Magos e Brâmanes. & algodão. a extensão de seus vales. desenvolveram-se grandes impérios. excede grandemente a Europa. 141 . produziram-se abundantes riquezas naturais. pois o Oriente teria sido o local em que: foi criado o paraíso terrestre. E nela contém a terra da Promissão tão abundante. que com propriedade é Índia.. afirma que os lugares devem ser estimados pela substância e pelos acidentes: Pela substancia. Fenícios. Nela nasceu Cristo Nosso Senhor. Nela tiveram principio as primeiras polícias. que está no âmbito daquilo.tempo em que ele viveu não pode esconder “o lume de todo passado”. porque nela plantou Deus o paraíso terreno.. & seus mares brincados de pérolas. & ciências que os gregos aprenderam dos Hebreus. que passam de cinco mil cidades populosas.. Lisboa: Miguel Deslandes. Jacinto de. ibidem. & jucunda perspectiva. & a África [. & nele se ouviu aquela voz do Padre. a preciosidade de suas pedras.. aldeias. fazem uma admirável. 55 Idem. deu a Lei Evangélica [. Um dos temas foi narrado no Antigo testamento e se trata do episódio em que Abraão ofereceu o seu filho a Deus e o outro consiste no dos reis magos do Oriente. a Deus humanado. mas não o produz a Índia para todos. narradas nas Escrituras sagradas. ainda muito pequeno. e pobre por rudeza própria. como Pai português. não pode o filho ser grande. o que está no segundo grau de uma diversa. p. Mirra e Incenso. 1671. 58 Idem. e castiço. Pedro.. ou em Portugal. Caminho dos frades menores para a vida eterna. Brachilogia de Principes. Jacinto de Deus postulou uma taxionomia dos grupos sociais existentes no império luso-asiático e o grau de “pureza” ou de “misturas” que os definiriam: Por mistiço a praxe comum entende aquele. Lisboa.ao príncipe regente de Portugal.57 No interior de uma obra de espiritualidade. melhor dera o Ouro e Incenso.56 Na dedicatória da obra. pelo que vai o filho pequeno. quem dá Incenso e Ouro não daria filho. nem pode ser alentado quem tanta pobreza se criou. e outro da Europa: e fallando juridicè. O Pai é pobre por profissão de frade menor. quando se tornou rei e governo até 1703.] Desde a Índia ofereço a Vossa Alteza este filho de meu entendimento e da minha curiosidade. 1-2. ou nascido na Índia. Ouro. e por castiços são entendidos. e mãe Índia sem alguma mistura de Europeu. os que têm um avô da Índia. [. se os tivera. 1689.58 Diogo Ramada Curto ressaltou os trechos da obra de espiritualidade citada ‒ Caminho dos frades menores para a vida eterna Regente de 1668 a 1675. que é filho de duas nações imediatamente diversas.. Jacinto de Deus menciona o presente oferecido ao príncipe regente após estabelecer as analogias e distinções entre outras situações de dádiva. Jacinto de. Miguel Deslandes. DEUS. denominada Caminho dos frades menores para a vida eterna. deram o que a Índia produzia. 56 57 142 . Lisboa: Antonio Craesbeeck. incenso e ouro ao Menino Jesus: Ofereceram os Reis do Oriente (um era de Calecute nesta Índia). mistiço é o que está no primeiro grau de duas nações diversas. Abraão ofereceu um filho. que ofereceram mirra. porque sendo o Pai menor. ou qualquer outro europeu. Os Reis que eram do Oriente. D. . J. Lisboa: Fundação Oriente/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Apresentou a taxionomia mencionada: os mestiços eram filhos de duas nações diferentes. a de São Francisco. 13. 59 143 . 1. H. Valignano estimava a qualidade dos japoneses. os primeiros eram gentios de primeiro grau e os outros. 90-91 e v. mas que excluía todos os mestiços. No Sumário das Regras para Provincial da Índia da Companhia de Jesus constava que os castiços ou portugueses nascidos na Índia fossem recebidos raramente e sob certas circunstâncias. Op. As antigas províncias franciscanas portuguesas na Índia. In: Seminários Franciscanismo em Portugal. por isso considerava que poderiam ser admitidos. 61 WICKI.59 E se referiu à dispensa jesuitíca aos portugueses nascidos na Índia. Documentos para História das Missões do Padroado Português no Oriente. de segundo grau. desde que “pochissimi”. p. Societatis Iesu. Diogo Ramada. 60 Curto. 62 REGO.62 com exceção de japoneses e chineses. 2000. p. 834-835. p. v. Acerca dos “castiços”. v. y parece como dixo Aristotéles de su naturaleza nacida para servir”. Documenta Indica. Actas. ainda que houvesse a possibilidade de serem aceitos os castiços. nascido na Índia ou em Portugal. mas autorizava a admissão de japoneses. com pai português.60 Acerca da Companhia de Jesus. ou qualquer outro genitor europeu e mãe índia. Antonio Montes. Arrábida.126. o frade recordou a proibição de entrada de mestiços e de castiços ‒ ainda que na prática a Ordem de São Franciso tenha recebido um número considerável do segundo grupo nos seus quadros. Portanto. ao passo que o castiço tinha um avô da Índia e outro da Europa. Acerca do ingresso na sua ordem religiosa. doc. alargada àqueles que “tinham alguma coisa de índio”. Silva.14.61 Valignano considerava que a gente da terra era “de poco primor y de poca capacidade. doc. Ainda que um catálogo da época evidenciasse que MOREIRA. Lisboa: Fundação Oriente.cit. Roma: M. 377-378.. 1991-1996. é preciso destacar que o Visitador Alessandro Valignano aconselhou que não fossem admitidos pela Companhia nem nascidos na Índia de pais portugueses nem mestiços. sem mistura de europeu. como foi frisado por Jacinto de Deus em Caminho dos frades menores.‒ em que Jacinto de Deus refletiu sobre tal classificação dos diferentes grupos sociais.1995. 12. p. 99-112. A. 1948-1988. seriam filhos de portugueses nascidos na Índia.. no início do XVIII.. Stanford: Stanford University Press. The making of an enterprise: the Society of Jesus. C.. pouco contritos.. Op. nascido no Oriente. casaram-se nestas partes com mulheres cristãs da terra. ignorantes.. mas como um descendente de portugueses nascido no Oriente ‒ o que para os grupos sociais envolvidos em disputas por primazia e reconhecimento social. 1996.] que adotaram a seita dos mouros de cujas gerações descendem do lado materno muitos filhos da Índia aqui nascidos. tendo em vista a coexistência com as populações judias e mouras ‒ se fosse adotada no Oriente. quando foram intensas as disputas entre frades ALDEN. hindus ou dos cismáticos cristãos de São Tomé!65 Porém. apesar de honrados portugueses. Diogo Ramada. deveria ser uma prerrogativa a ser reforçada. its empire. mas que há muitas gerações de gentios [. Dauril. adoção de uma legislação desenvolvida no contexto da península ibérica ‒ que proibia a admissão de descendentes de hereges e pagãos. admitiu que os mestiços se encaixavam nas mencionadas “categorias de Aristóteles”. frei Gaspar de Lisboa. 63 144 . por descender de muçulmanos.] se haviam tornado mouros. p. E isto é tão comum nestas partes que não se pode reprovar estes filhos da Índia. o próprio Jacinto de Deus. impediria o recrutamento de praticante todo o nativo da Índia. naquele contexto histórico. 64 BOXER. cujos avós e tetravós [.quase 15% dos que serviam à Companhia de Jesus no Oriente teriam nascido no ultramar. afirmou que os naturais da Índia eram rudes. 106-107. 65 MOREIRA. Op.cit. não se concebia como uma asiático natural. 377-8. p. e cujos pais.64 Ou seja.63 Enquanto o comissário geral dos franciscanos da Índia. Cabe ressaltar que a taxionomia dos grupos sociais elaborada por Jacinto de Deus em Caminho dos frades menores produziu impacto na escrita de outros franciscanos. Porto: Afrontamento. R.cit. Antonio Montes.66 O que denota como o frade não se identificava. and beyond. Relações raciais no império colonial português.. 1540-1750.. 1977. 66 CURTO. Ou seja. pois os últimos “podem ser recebidos à ordem [de São Francisco] com dispensação conforme os mesmos [.67 Em seguida. e que a estes se chamam Índios vulgarmente e na Europa chamam cabras da Índia. indagou-se o sentido da palavra “mestiço.. a partir da alusão ao Capítulo Geral de Valladolid.] que os filhos e filhas da China e Japão são brancos. Caminho dos frades menores para a glória página 177 é aquele filho nascido de pais de duas nações. isto é. que mestiço conforme explica fr. que são pretos..] logo os 67 ANTT. em Daugim. a fim de demarcar as distinções citadas adiante. 145 . O manuscrito setecentista tratou dos requisitos exigidos dos candidatos para que fossem admitidos nas províncias franciscanas da Ásia. Hiacinto de Deus na Lib.. Entretanto. ou na Índia. foi demarcada a diferença entre os filhos de portugueses nascidos no Oriente e os mestiços: “Quanto mais. O texto teria sido produzido no Convento da Madre de Deus. isto é. que se proíbe a lei de Valadolid a recepção para frade”. e vice versa”. em 14 de dezembro de 1742 e assinado por Frei Jerônimo de Belém. diz ou nascido em Portugal. ou Mãe preto”. ocasião em que foi expressamente proibida a admissão de mestiços. fl. e na América chamam Índios aos Caboclos e Tapuas.] Pai português e Mãe Índia. e si nela se compreendem os filhos de Pais Europeus e Mães naturais do Império da China”. n. Pais brancos. e vice versa fazem um filho mestiço. ainda que nascidos na Índia”.(nascidos no reino ou luso-descendentes) e o clero nativo negro. como os desta Índia”. ainda que Azianos [. 352-352f. pois.. “fallando do Pai Português. senão dos pretos. Manuscrito da Livraria.1131. e tendo filho de uma Índia. preta. Em seguida.] nascidos na Índia. “ao qual expulsou a dita Provincia” franciscana com base na mencionada lei. enquanto mestiços eram “os que têm Pai.com o [. de 1593. mas sim castiços”. a expressão filho da Índia significava aquele que “tem Pai e Mãe brancos. a “palavra Índia não quer dizer de qualquer [sic.. o autor do manuscrito explica que Jacinto de Deus. Desse modo.. era concebida a distinção entre mestiços e castiços. foi mencionado um caso de um franciscano que era filho de português e de mãe “filha da China”. mas “sendo os avós algum preto já não são mestiços. e a estes é. assim como era utilizado o termo nhons (senhores) para nomear aqueles cujos pais tivessem nascido em Macau (tanto os descendentes de chineses cristianizados ou filhos de uniões entre portugueses e mulheres euro-asiáticas). proferida para designar os filhos de pais e mães brancos nascidos na Ásia. 366-367. ao passo que pretos eram designados os nascidos naquelas terras asiáticas.68 A expressão luso-descendente não era a utilizada na época em que Jacinto de Deus viveu.70 Como classificar frei Jacinto de Deus a partir da taxionomia por ele mesmo proposta.69 O franciscano frei José de Santa Maria denominava os filhos de reinóis estabelecidos em Macau de mestiços.1131. 46. 68 69 146 .cit. Se mestiços eram geralmente definidos como aqueles que se originaram de uniões mistas. em seguida. op. mas. Boxer.. as identificações eram menos fixas e mais manipuláveis conforme os agentes que as utilizavam. fl. A defesa do poder imperial exercido pelos portugueses e o desejo de se vincular a essa linhagem de origem europeia aparecem nos escritos de luso-descendentes como Jacinto de Deus. 352. 70 VALE. n. os quais buscaram demarcar a diferença entre eles e as demais estirpes de nascidos naquelas terras: os pretos ou mestiços. nhons ou gente da terra (aqueles que não eram considerados portugueses. Portuguese society.cit. o termo jurubaça também era utilizado para designar os cristãos chineses nascidos em Macau. M. p. Manuscrito da Livraria.. c.. A.. jurubaças (chineses convertidos). na medida em que era filho de mãe chinesa e de avó paterna de provável “casta china”? Podemos considerar que frei Jacinto de Deus fez parte dos grupos que se identificavam (ou eram identificados) como filhos da Índia (filhos de pais ou mães brancos nascidos na Ásia). Martins do. Inicialmente.filhos destes e de Europeus não são mestiços. p. foi adotado para designar mestiços e euro-asiáticos que falassem português e uma língua chinesa. de que [fala] a Lei de Valladolid”. a fim de distingui-los de outras estirpes de nascidos: os pretos ou os mestiços. Op. ainda que tivessem sangue euro-asiático). na prática. Esse franciscano defendeu o papel dos portugueses na conquista ANTT. mas filho da Índia. miscigenaram-se e forjaram discursos peculiares sobre essa experiência.. 2008.71 Em estudo sobre a Nova Espanha. Jacinto de Deus pertenceu ao universo de famílias portuguesas. como indício de pureza de sangue. religion and gender in colonial Mexico. R.72 mormente estimulados pela ambição de ratificar a qualidade dos antepassados. a fim de tentar fixar hierarquias que fossem convenientes para si ‒ fixar ao menos no âmbito dos discursos e da representação daquela sociedade. C. de fluidas fronteiras étnicas e de imprevisibilidade das trajetórias que poderiam ser trilhadas nos espaços do império asiático português. na medida em que este era um requisito fundamental para se tornar habilitado à ocupação de significativos cargos eclesiásticos ‒ além de se tornar funcionário do Santo Ofício. No Oriente Português. Um macaense ilustre. exercer a função de magistrado ou ser aceito em universidades. fizeram parte da construção do aparato de poder e da sociedade luso-asiática. apenas nos espaços coloniais. foi possível identificar escritos elaborados por filhos de portugueses nascidos na Ásia que evidenciam o mesmo desejo de provar a limpeza de sangue e a ascendência ligada a genitores portugueses. a quem recomendou que não aceitasse os breves papais. Maria Elena Martínez evidenciou como a ascendência espanhola foi reivindicada pelos filhos de homens hispânicos nascidos na América. Pedro. 71 72 147 . D. Stanford: Stanford University Press. pois alegou que “não convém estrangeiros nestas partes” e que caberia exclusivamente aos lusitanos as conquistas espirituais no Oriente. E.. Genealogical fictions: limpieza de sangre.cit. M. à proporção em que essas instituições incorporaram os estatutos de pureza de sangue.e evangelização do Oriente em carta escrita em primeiro de outubro de 1671 ao príncipe regente de Portugal. op. Jacinto de Deus defendeu a ação missionária de portugueses. para que as investidas da Propaganda Fide e de missionários da Société des missiones etrangères não atingissem o Padroado da Coroa portuguesa. Boxer. que. criaram e resignificaram categorias sociais.. diante da experiência muito menos controlável. o que não implicava em nenhuma distinção no interior do reino espanhol. MARTÍNEZ. estabelecidas por mais de uma geração no Oriente. . a tempo que ministrava os Sacramentos com vezes e permissoens de Parocho” e “cazou com impedimento dirimente huns. que naquelle pais he sustento dos porcos”3. frei Cosme ouviu os gritos dos moleques que repetiam incessantemente “ahi vay o Padre que conxava mulheres no confessionário”2. 3 Ibid. ainda soube pelo próprio comandante da corveta que o vigário-geral mandou que lhe dessem de comer apenas “arros de moinha. 44. 1 149 .. Inquisição de Lisboa (doravante IL). fl. O desfecho desse caso mostra-se numa trama bem arquitetada que deixam evidentes as disputas de poder no interior do bispado maranhense. Quando seguiu pelas ruas de São Luís até o porto do embarque. Humilhado. os conflitos com a jurisdição civil e. o que lhe fazia Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT). 2 Idem. 80. “vendendo de vara. Na carta-denúncia que foi enviada pelo comissário do Santo Ofício consta que o frei Cosme. Tribunal do Santo Ofício (doravante TSO). 14880. solicitou no confessionário uma moça por nome Luzia Ignacia e ainda teria divulgado publicamente segredos de confissão.“O vigário geral forense que foi processado pela Inquisição”: Frei Cosme Damião da Costa Medeiros no Piauí colonial Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz Universidade Federal do Maranhão Quando foi entregue ao comandante da corveta Santo Antônio que o conduziria preso até Lisboa. frei Cosme Damião da Costa Medeiros foi comparado a um homem da pior espécie. finalmente. declarou excomungados e absolveo”. o frei era apenas “hum molato cheio de crimes mais orrendos”1. movido por seu gênio orgulhoso “embrenhouce pelos Certoens. cônego João Maria da Luz Costa. proc. fl. que a Inquisição podia muito bem ser palco para concretizar vinganças pessoais e forjar punições. e outros sem banhos corridos. negociando. nestes viveo irregular”. Nas palavras do comissário do Santo Ofício e vigário-geral do bispado do Maranhão. sendo obrigatoriamente eclesiásticos. mas também era conhecido como Tribunal Eclesiástico ou ainda Tribunal Episcopal. era uma função de muito prestígio e demonstrava.. 8 A partir da década de 1790. O tribunal do prelado recebeu o nome de Auditório Eclesiástico. entretanto. Todos os bispados possuíam tribunais desse tipo. Antes mesmo de cair nas malhas da Inquisição. do ano de 1790. 6. TSO. para atender mais prontamente as freguesias da região do Piauí e dinamizar a burocracia do Juízo Eclesiástico naquelas paragens. Quanto à pessoa. integravam o grupo de agentes inquisitoriais que não recebiam um salário fixo da Inquisição. acumulavam a função com outras atividades desempenhadas na igreja local.incorrer no crime de sigilismo4. de fingir-se de Comissário do Santo Ofício5 e bacharel pela Universidade de Coimbra. 4 5 150 . IL. 14880. porque havia comportamentos ilícitos que. fl. 7 ANTT. mas ganhavam seis tostões por dia de trabalho. procedidos sobre o irregular procedimento do Rdo. O vigário-geral de São Luís continuava sendo a autoridade mais importante da justiça eclesiástica no bispado e estava no topo da hierarquia de comando dos Auditórios e para ele poderiam agravar e apelar os que se considerassem lesados no tribunal inferior que tinha lugar no Piauí. 3 e 3v. Os comissários não atuavam na sede dos tribunais inquisitoriais e. no entanto. foi anexado na íntegra ao processo que corria na Inquisição de Lisboa. Nesse ponto fica mesmo clara a colaboração que tinha lugar entre esses dois tribunais. dentre outras coisas. pois apesar de funcionar de maneira mais independente. Ainda era acusado de ter falsificado os papéis do hábito de Avis. pois podia julgar os delitos cometidos por clérigos seculares. com sede em Oeiras. proc. Àquela época. mas antes pela natureza do delito. mas que ao mesmo tempo Ibid. a pureza de sangue desses indivíduos. Eles. ficavam sob alçada do foro eclesiástico. foi então instalada uma Vigairaria Geral Forense. Pe. os critérios de hierarquização foram obviamente mantidos. em São Luís. Por isso poderiam ser também vigários-gerais e/ou ocupar dignidades no Cabido da Sé. independentemente da pessoa que os praticava. o frade de São Bento foi processado no foro episcopal. fl. Quanto à matéria. já funcionava em Oeiras uma Vigairaria Geral Forense8 que atuava como um Auditório Eclesiástico dependente daquele da sede do bispado. O processo intitulado “Autuamento de huns autos Summarios vindos do Juizo Eccleziastico da Cidade de Oeyras do Piauhi. Em 1789 foi instaurado processo no Auditório Eclesiástico6 para conhecer e punir os crimes de que era acusado. 6 O bispo tinha jurisdição em duas situações distintas: quanto à pessoa e quanto à matéria. Frei Cosme Damião da Costa Medeiros”7. As atribuições e competências dessa Vigairaria Geral Forense foram dadas a conhecer pela própria documentação remetida do Piauí para o Maranhão. Ser comissário do Santo Ofício. Luzia Ignacia denunciou. o mesmo Padre Cosme Damião lhe escreveu huma carta em que a solicitava a que se desonestasse com elle. Afirmou ainda que o frade era acostumado a descompor os fregueses. e dias Sanctos11. e fosse arrendar huma caza. Tanto era assim que a testemunha disse ter ouvido o frei Cosme dizer a uma crioula chamada Izabel que ela levantasse logo do confessionário e quase aos gritos repetia “vá. e que na Véspera do dia de S. o frei Cosme porque ele a aconselhou que saísse da companhia de seo pai. onde ella vive. e falandolhe da parte de fora Idem. com que justissa e com que necessidade mandava trabalhar nos Domingos.. sem impedimento de alguém se prostituisse: e que passados dous dias. vá jejuar que está bem gorda”10. Pedro a noite andando assim armado xegara a tomarse de agoa ardente em forma que fora conduzido em brasos para sua caza”9.. fl 11v. 9 10 151 . fl 12. em São Luís..tinha autorização para proceder e julgar determinadas causas. o referido Padre a foy procurar a casa de seo pai. em que publicamente. 11 Ibid. ao que não dando a denunciante resposta alguma. Ibid.. onde vivia sem liberdade. “paceava de noite debaixo de armas. Outro depoente afirmou que [. fl. As oito testemunhas que depuseram no caso fizeram voz comum quanto ao mau procedimento e ao gênio revoltoso do frei Cosme... Um deles disse que o frei “freqüentava algumas cazas de suspeito”. 11.] o dito Padre revelava o segredo da Confissão direta e indiretamente porque axandose em desobriga na Real Inspeção de Nazareth e tendo Confessado alguns escravos da mesma Inspeção se levantou do confessionário e fora perguntar publicamente ao ajudante Fellis do Rego Castelo Branco. o frei pedira audiência para tratar de sua causa com os inquisidores. não deixou de enviar também essas denúncias que não eram da alçada do Santo Ofício. proc. frei Cosme passa a desfiar seu rosário de desenganos. celebrar missa de botas e esporas. sob a autoridade do prelado. 12 13 152 . apenas dois eram de alçada inquisitorial: o crime de solicitação e o de sigilismo. João. Questionado pelos inquisidores sobre os motivos que teriam levado à denúncia que ele considerava forjada. homem dos mais ricos e influentes das partes do Piauí. Ademais. a solicitante desprezou aquella solicitação12. não confessar fregueses e fazer desobriga sem licença – eram infrações corrigíveis em nível de diocese. Os demais – casar sob impedimento. casar sem banhos. o cônego João Maria da Luz Costa. como disse. João Maria da Luz Costa era comissário do Santo Ofício desde 1782 (ANTT . 14880. TSO.da janela sobre o mesmo objeto da carta que lhe escrevera. padre Mathias de Lima Taveira e Antonio do Rego Castello Branco. “arrastando o grilhão da indigência”14. Disse que chegou ao Maranhão meio que sem querer. Conselho Geral do Santo Ofício. disse que tinha sido remetido àquele tribunal vítima de uma tramóia urdida por seus inimigos. doc. mas que corroboravam ainda mais o péssimo comportamento do frei Cosme. benzer cemitérios sem licença. Já na capital da metrópole. E citou os nomes. maço 161. Na lista dos possíveis crimes cometidos pelo frade. o vigário-geral forense de Oeiras. não via correr seus autos. conseguiu proteção e abrigo no Convento das Mercês Ibid. IL. 1332). através do Juízo Eclesiástico.Tribunal do Santo Ofício. Habilitações. O comissário do Santo Ofício que era. também o vigáriogeral13 e decidiu por remeter preso o frei Cosme para que fosse julgado pelos inquisidores de Lisboa. 14 ANTT. 83. Já proferindo sua defesa. fl 5v. Ninguém menos que o próprio vigário-geral e comissário do Santo Ofício que lhe enviou preso.. Que o navio em que estava naufragou naquele litoral e. fl. Disse que estava nos cárceres do Santo Ofício desde 23 de Março de 1791 e que passados esses mais de um ano e meio em que estava detido. Em que pese o direito ao foro privilegiado e a insistente defesa que os prelados e vigários-gerais tentavam fazer das suas isenções e imunidades. A partir daí se instalou grande conflito entre as autoridades régias e o bispo. 16 No Maranhão. O processo do frei Cosme Damião.em São Luís. as mesmas figuras que aparecem no processo do frei Cosme como seus denunciantes. Fr. segundo conta. reascendeu os ânimos dos mesmos protagonistas. D. exigindo do prelado que mandasse investigar por meio de devassa o comportamento do clérigo. A isso se aliava o sempre anódino e indefinido limite entre os dois foros que era assunto de discussão e contendas no reino português havia séculos. Lá ficou sob a proteção do pároco da cidade. Mais forte tinha sido o Régio Tribunal da Coroa que suspendeu as ordens do bispo e ainda lhe aplicou as temporalidades. Aqueles foram anos de muitas disputas entre a autoridade prelatícia e os juízes civis16. Naquela ocasião. Buscando a proteção e o amparo do padre Dionísio em Oeiras. Maria I. não se pode negligenciar a força que o Padroado régio exercia nas instâncias do poder eclesiástico. Fr. quando foram remetidas a Lisboa queixas contra si pelos seus fregueses à rainha D. Sua Majestade então escreveu ao bispo. que foi enviado pelo bispo como comissário da causa e o ajudante Antonio do Rego Castello Branco. em 1784. Peças fundamentais naquele conflito foram o cônego João Maria da Luz Costa. o cenário de rivalidades entre as autoridades eclesiásticas e seculares foi constante durante todo o século XVIII. notadamente a partir da segunda metade do século. que ocorria já passados quase seis anos do que envolveu o padre Dionísio. 153 . Do mesmo vigário-geral que se tornaria mais tarde seu inimigo. padre Dionísio José de Aguiar. fora protagonista de um dos maiores episódios de conflito entre o prelado e o Juízo da Coroa15. Antonio de Pádua. Até que chegou em Oeiras onde se iniciaram. frei Cosme contava que os inimigos daquele passaram a lhe encarar 15 O clérigo Dionísio José de Aguiar era pároco em Oeiras em 1784. recebeu cartas que comprovavam seus bons procedimentos e foi ficando na terra que lhe acolheu ministrando aulas de Gramática e exercendo o ofício de pároco. que anos antes. o bispo D. em que a autoridade eclesiástica perdia o seu poder. que teve de volta a sua igreja em Oeiras. António de Pádua não teve forças para enfrentar as autoridades régias e foi obrigado a libertar e readmitir às ordens o padre Dionísio José de Aguiar. seus infortúnios. 113 e fl. fl. IL. que tinha lá cometido mesmo alguns erros. Disse que tinha feito a homilia na capela da igreja do Desterro. e hum mameluco João Batista. e em altas vozes que não ouvissem a missa delle Reo. padre Mathias de Lima Taveira a hum mestisso chamado Manoel Ribeiro derão quatro mil réis para depor contra elle Reo. 14880. afirmou diante dos inquisidores que Antonio do Rego Castello Branco e o vigário forense de Oeiras. Não era bacharel pela Universidade de Coimbra e também nunca fora comissário do Santo Ofício. fl. como o mesmo mestisso confessou publicamente e lhe pediu perdão. que elle Reo pello seo officio de Parocho evitou dos Sacramentos por ser publico e escandaloso em mancebia com huma escrava sua. 136. livro 24.também como inimigo. TSO. Confessou. respectivamente. 42 v. além do foro de fidalgo capelão desde o ano de 178819. 103. 17 18 154 . entretanto. mas que “nunca jamais fez diligencia alguma do Santo Officio”18. Registro Geral de Mercês de D. em um ANTT. como tão bem o Padre Manoel Antonio constrangido pello dito Rego para o mesmo fim e Felix Goncalves Machado. fl. em São Luís. e o Padre José Francisco Pinto innimigo declarado delle Reo por emolação e por ser parcial amigo do partido declarado. frei Cosme foi ainda mais detalhado nas descrições. proc. que estava excomungado17. fl. Confessou “que por vahidade meramente se encolcou como tal em duas únicas certidoens”. Mas ele tinha mesmo o hábito e tença da Ordem de São Bento de Avis. Idem. 44v. contra o qual elle Reo procedeo da mesma forma assima declarada. A respeito de seus conflitos com o vigário-geral de São Luís. chegando tanto mais o excesso do dito Vigário Foraneo que estando elle Reo dizendo missa na Igreja Matriz de Oeiras em o dia solemnissimo da Festa do Pentecostes mandou publicamente pello escrivão da vara Balthazar Pintos dos Reis retirar toda a gente da Igreja dizendo-lhe publicamente. Maria I. Isso posto. 19 ANTT. Afirmava veementemente que as testemunhas que depunham no caso não eram confiáveis e por lei canônica e direito natural deveriam ser descartados tais depoimentos. 14880. lhe causou muitos transtornos exatamente porque foi confundido com desobediência. 22 As Constituições da Bahia deixam bem claro a que foro pertencia o julgamento dos clérigos. No título I do livro quarto . e ao bispo do Maranhão sendo somente a pura verdade que elle reo não declarara pessoa alguma em particular no dito sermão e somente dissera que todos absolutamente. e isto pelos recursos da Coroa. do qual era innimigo o dito João Maria o governador do Bispado. a qual não podem estar sugeitos os que pela dignidade do Sacerdocio. TSO. seriam 20 21 155 . Idem. bem como do próprio juiz de fora de São Luís. O sermão sobre a obediência. 40v. “a Doutrina do dito sermão foi toda radicada na virtude da Santa Obediencia que a mesma Senhora praticara na sua fuga e sem animo algum mais do que o de promover a todos os seus ouvintes que imitassem a mesma senhora em tão soblime virtude”20. entretanto. e athe as pessoas sagradas devião obedecer aos principais soberanos pois o serem da Tribo de Levi não os exemia da qualidade de vassalos21. a relação conflituosa entre o governo eclesiástico e o governo secular. É certo que isso não deve ter agradado ao vigário-geral e aos defensores da soberania de poder e dos privilégios eclesiásticos22. O problema era. fl. O vigário-geral. Melhor dizendo. já que hum dos ouvintes era o Juiz de Fora daquela cidade Antonio Pereira dos Santos. pois. Frei Cosme não era amigo apenas do vigário de Oeiras que criara problemas anos antes exatamente por recorrer ao Juízo da Coroa e desafiar o bispo. proc. desconfiando que elle reo fizera huma sátira ao dito João Maria. Seu sermão tratava da fuga de Nossa Senhora e.domingo depois da Páscoa. os eclesiásticos estavam “isentos da jurisdição secular. as disputas de poder e de jurisdição entre eles. cônego João Maria da Luz Costa. em que não obtinha provimento chegando a proferir tinha convidado o dito ministro para o ouvir e na presença delle proclamar pella observância da Santa virtude da obediência.Da imunidade e isenção de pessoas eclesiásticas -. 39. IL. ANTT. estava presente e não gostou do que foi proferido pelo frei Cosme. fl. e Clerical Officio ficão sendo Mestres espirituais dos leigos” ou seja. segundo ele. A perseguição que a partir dali teria lugar deveria ser encarada como pedagógica e serviria de exemplo àqueles que buscavam amparo no poder real em detrimento ao respeito que deviam ao prelado. 1764. Em virtude desse sermão.. fl. p. Sebastião Monteiro da Vide. cuja devassa deu motivo ao recurso. dentre outras. tit. e do Conselho de Sua Magestade. Como disse o próprio frei Cosme no seu depoimento. Philippe I. àquela época já tinham sido declaradas as temporalidades contra o bispo “por não cumprir os provimentos da Junta da Coroa nas cauzas dos recursos”23. A legislação civil. Sobre a causa dos desentendimentos entre o frei e o vigário-geral disse que [. Lisboa: na Officina de Miguel Rodrigues. fl. 47-47v. por sua vez. Uma das testemunhas do caso não usou de meias palavras para ligar os fatos. 14a ed.. mas ao julgados em tribunais eclesiásticos com foro privilegiado. A atitude que o frei tomou depois que lhe foram confiscadas as ordens delimitou ainda mais os lados do conflito. tit I.] talves seria alguma indisposição. que ocasionou as temporalidades24. Constituiçoens primeiras do Arcebispado da Bahia feitas. 1870. n 639. o cônego lhe suspendeu do exercício das ordens ali mesmo na sacristia depois da missa e do polêmico sermão da obediência. demonstrava que havia exceções. livro IV. fl. com que o mesmo Frei Cosme Damião se achava contra o reverendo João Maria da Luz Costa Vigário Geral daquelle bispado. No livro I das Ordenações Filipinas consta o título “Dos Juízes dos Feitos de El Rei da Coroa”. em que se pode apreciar esses casos. Arcebispo do dito arcebispado. Livro I. que tinha sido Juiz Comissário da Devassa que por ordem do Excellentissimo bispo se avia tirado contra o Vigário da Cidade de Oeiras. que o dito Senhor celebrou em 12 de Junho do anno de 1707. X. 23 Ibidem. 156 . Ele disse que ainda tentou apelar da decisão no próprio Auditório Eclesiástico. Consta nessa legislação que o juiz da Coroa poderia proceder judicialmente em causas envolvendo pessoas eclesiásticas se as matérias coubessem ao foro civil como a apresentação das igrejas sob o Padroado. Codigo Philipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal recopilados por mandado d’El-Rey D. propostas. 24 Idem. e aceitas em o Synodo Diecesano. 47. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Filomenático. o uso de armas e de terras. E depois “de julgarem que o conhecimento pertence” à justiça secular “e não às Ecclesiasticas” mandavam que procedessem contra esses clérigos sem temer a excomunhão a que estavam sujeitos e com as quais eram ameaçados pela autoridade do prelado sob alegação de usurpação de jurisdição. e ordenadas pelo Illustrissimo e Reverendissimo Senhor D. 34. 248. de bom nascimento e ocupantes de cargos administrativos importantes no Maranhão. todas elas. gente notadamente mestiça e de nascimento humilde.mandar entregar o requerimento ao vigário-geral. Nesse caso foi mesmo. foram ouvidos um deputado da Fazenda 25 26 Ibidem. Alegar inimizade poderia ser um meio de defesa eficaz. Contrapondo as testemunhas de acusação. fl. inclusive. na alçada inquisitorial. As alegações do acusado e a denúncia de que havia inimizade entre as partes fazia mesmo sentido. 157 . não poderia proteger o frei Cosme como fizera antes com o pároco de Oeiras. e a calumnia”26. As razões que levavam eclesiásticos a recorrer ao Juízo da Coroa foram as mais variadas. e até mesmo contra o próprio Tribunal da Coroa que. Ibidem. este teria dito na frente de algumas pessoas que ele metesse aquele papel “em hua parte que a modéstia fas calar”25. A motivação de todas aquelas acusações que frei Cosme dizia serem falaciosas e que o levaram preso à Lisboa seria. 83. anos antes. 153v. a vingança.. depois daquela atitude “foi então. Esses argumentos serviam para contestar o privilégio de foro do prelado sobre seus ministros – em alguns casos – e demonstrar que apesar desse direito o Padroado régio era mais forte em muitas situações. As testemunhas que se seguiram eram. denúncias feitas por cartas anônimas. haja vista aceitasse. Restou assim apelar para o Tribunal da Coroa. no seu ponto de vista. O comissário e vigário-geral levou a questão para ser resolvida longe das vistas dos oficiais régios. A Inquisição era um tribunal menos rígido na escolha das testemunhas e também na maneira de receptação das denúncias. fl. Afinal. desde que o réu provasse que os delatores eram inimigos de fama pública. que se ingrosou mais a rayva. A alegação de que estavam sofrendo opressão dos seus superiores está entre as mais comuns. declarar inimizade com a parte acusadora era a única maneira de tornar nula uma denúncia. E a Inquisição estava sendo usada como o palco para se concretizar uma punição que não foi possível contra o padre Dionísio José de Aguiar. Segundo suas próprias palavras. Padre Fernando José Ribeiro de Freitas respondeu. bem como o papel de destaque do frei durante o surto de bexigas que assolou os sertões do Piauí durante aqueles anos.. que benignamente o recebe”29. frei Cosme conseguiu sair dos cárceres do Santo Ofício debaixo da proteção e responsabilidade de Francisco Xavier Gomes Rebello sob o juramento de “nunca se afastar daquelle lugar que lhe for destinado. dois ouvidores e alguns sacerdotes. TSO. Em 29 de outubro de 1792. IL. E que ainda mandou prender o padre Joze Luiz de Figueredo também em virtude do envolvimento do Juízo da Coroa31. 31 Ibid. 170-171. 29 Ibid. Não só foi alardeado o ótimo procedimento do frei Cosme. por exemplo. 14880. cuidando sempre em não por em cuidado ao seu fiador. que “o reputava como homem bastantemente vivo em suas paixões. fabricou-se uma inquirição: criminou-se e infamouse a innocencia na pessoa de hum Ministro do santuário: satisfes-se a payxão. 55v. Idem. As testemunhas chamadas a partir de então confirmaram a inimizade entre o frei e o vigário-geral. Em tom lamurioso o frei concluiu diante dos inquisidores que “chamarão-se testemunhas infames. e nutriu-se a baixa inveja: e emfim triunfou a injustiça”28. 30 Ibid. vigário de Itapecuru. Saindo da prisão dizia que teria mais condições de juntar provas de sua inocência. fl. 83.Real. os recursos que esses padres enviavam às autoridades seculares. O motivo daquelas perseguições seriam. proc. de conhecida probidade”30.. 70v. Os inquisidores perguntaram às testemunhas se o comissário e vigário-geral era homem que excedia em seu procedimento em virtude de paixões e vinganças. fl. de que lhe resultam alguns excessos. ANTT. a manipulação das denúncias. homens sem fé em Direito” e “formou-se auto. inclusive com a “compra” de testemunhas27. Todos os depoentes confirmaram ser o cônego João Maria um homem vingativo. no dizer dos depoentes. fl. 27 28 158 . em que não deveria romper como foi a perseguição do padre Joze Antonio Martins. Aquela audiência com os inquisidores mudou os rumos do processo. fl. Frei Cosme Damião. 197v. não tinham lá grande crédito para denúncias daquele tipo. 157 v.. e segundo consta. 32 33 159 . fl. trio denominado nos autos como “as tres piranhas”33. além das atribuições de vigário-geral forense intitulava-se com o direito de tomar conhecimento de denúncias que seriam matéria do Tribunal do Santo Ofício. A jovem era “mulherzinha bem conhecida naquella cidade pela alcunha de Piranha”32. as acusações contra o frei Cosme eram questionadas a ponto de ser anotado nos autos que “tudo foi ordido pelo Comissário do Santo Oficio por ódio. irmão do já citado Antonio do Rego Castello Branco. fl. fl. Numa das passagens do processo. IL. 35 Ibid. Ela e mais duas irmãs. Livre das acusações em 1794. vivia em tratos ilícitos com um sobrinho do vigário-geral. 14880. disse que era “vigário geral desta capitania com comição e delegação de vossa senhoria (o ANTT. As disputas judiciais não desconsideravam os critérios de nascimento e a qualidade dos envolvidos. que lhe não competia”35. as testemunhas diziam que possivelmente era outra armação.. TSO. Feliz Rego Castello Branco. proc.Acerca do crime de sigilismo. que sejão reprehendido por arrogar a si o título de Comissário do Santo Ofício. 171. Luzia era índia mestiça e sua condição de “gente de pouco crédito” foi logo colocada em evidência. Idem. os depoentes ainda trataram da fama de Luzia como prostituta. Ele saiu em auto de fé privado em 14 de Outubro de 1794 e o seqüestro de seus bens foi levantado. pesava a favor do frei Cosme o fato de ser o denunciante. e inimizade que cometeo contra o Reo. O religioso foi inteiramente absolvido pela Inquisição de Lisboa em 25 de agosto de 1794. Uma a uma. e por isso foi nullo tudo quanto esse Comissário fes”34. 34 Ibid. 179. frei Cosme regressou ao Maranhão e foi nomeado em Oeiras como vigário forense. Para piorar a situação da denunciante. inimigo do réu. Quanto à solicitação ad turpia que o frei teria feito à Luzia Ignacia. fl. Na sentença consta que “absolvem ao Reo Frey Cosme Damião da Costa Medeiros da Instancia e mandão. Sua provisão37 foi assinada pelo D. frei Cosme iniciou processo contra o advogado Joaquim Tibúrcio de Oliveira no ano de 1796. 4315. no entanto. Acusava-o de contestar e negar a sua jurisdição. fl. Mando aos meus súbditos da referida capitania do Piauhy em virtude de Santa obediência e sob pena de excomunhão maior por tal recebam. não deixou de dar a sua sentença. é possível ler: “Enquanto servir lhe confio os poderes em Direito necessários na forma da Constituição que são os mesmo de que trata a respeito do vigário geral de Sergipe d’El Rey. Na conclusão do processo. APEM. Uma das testemunhas disse que o dito Antonio do Rego he homem de ma índole e tem-se feito terror de toda esta capitania e que dispondo ao seu arbítrio das justiças desta capitania e cargos políticos dela tem aqui feito cometer violencias e injustiças. Eis que era a oportunidade de se vingar de um dos homens que foram responsáveis por sua denúncia e consequente prisão na Inquisição. por firmeza de tudo mandei passar a presente que se cumpra inteiramente”. assinada pelo bispo. 3v. e pouco serão ouzados de depor contra elle39. doc. doc. 36 160 . As testemunhas que depuseram no processo afirmaram que o advogado era protegido e patrocinado por Antonio do Rego Castello Branco. liberdades e izençoens que por Direito lhe são concedidos. e estimem ao sobredito Frei Cosme Damião da Costa Medeiros obedecendo aos seus mandatos. s/n. tt 2”36. Autos Sumários.bispo) como Ordinário do Bispado para conhecer nesta dos cazos privativos ao mesmo Sancto Tribunal e prender os réos parecendo-me conforme o disposto pela Constituição. Como vigário forâneo. Determinou que “pelo crime de dezobediencia formal Arquivo Público do Estado do Maranhão (doravante APEM). Autos e Feitos Diversos. em 11 de Março de 179638. Guardara inteiramente o seu Regimento inserto na Constituição e tudo o mais que for de sua obrigação em razão do dito cargo dezencarregando a minha e sua consciência e servindo debaixo do juramento e posse do officio Parochial. liv. honrem. 3v. 37 Pela sua provisão. 39 APEM. Gozara das honras e privilégios. fl. Sem numeração. 38 APEM. Frei Cosme Damião. doc. Fr. como cabia a seu foro de vigáriogeral forense. Autos e Feitos Diversos. 4507. consta que o caso competia à Inquisição de Lisboa e que o prelado do bispado deveria proceder no caso como considerasse conveniente. 4507. fl. ser desobediente e um refinado herege. fl. 4315. 5. doc. Antonio de Pádua. ainda teria que se apresentar à Vigairaria Forense do Piauí para se livrar das culpas40. A missiva denunciava novamente Joaquim e consta que ele praticara vários cazos contrarios a nossa Santa Fé Catholica. 5287. sintindo mal dos Sacramentos. e Censuras da Santa Madre Igreja. Indignado.. o obrigo depois de expurgado do crime de heresia perante o Juiz competente. s/n. logo tirou do frei Cosme o cargo de vigário geral forense da capitania do Piauí e colocou em seu lugar o padre Mathias Lima Taveira. E sendo no damno que tem o contagio deste veneno rezulta na nossa Santa Religião e o mesmo Estado. Acerca de suas péssimas relações com padre Mathias. e vendo provado. A tranquilidade do frei Cosme. ou seja. doc. o frade encaminhou para a Mesa da Consciência e Ordens uma petição em que se dizia inimigo do padre Mathias de Lima Taveira. Autos Sumários. acabou meses depois. ficando deste mal distante. A perseguição contra Joaquim Tiburcio não cessou.. Em 1798 em processo contra o padre José Afonso sobre desobediências às autoridades civis em Oeiras. incursa esta dita pessoa nas sempre detestáveis blasfêmias de Lutero e Calvino. Cosme Damião da Costa Medeiros em que relata um grande número de irregularidades que cabiam ao Santo Ofício. Frei Cosme disse: “fui prezo e estive no Santo Officio por alguns annos da onde por me mostrar livre fui provido por S. 161 .que cometeo em não querer aceitar a fraternal correção perante as duas testemunhas honestas. usando da authoridade que em Direito me he outorgada em similhantes cazos. ou fazendo remessa ao Santo Tribunal41. fl. se é que teve alguma. APEM. Novamente os inimigos estavam frente à frente.. Quando o cônego João de Bastos de Oliveira assumiu a vigairaria-geral do bispado do Maranhão. depois que o advogado fosse penitenciado pela Inquisição. e couzas Sagradas. Mag. consta uma carta avulsa do Fr. fl. 16. Autuamentos de Ofício. doc. 4507. 40 41 APEM.. a prizão e livramento neste meu Juizo”. pornunciei o Reo a ser prezo remetido sua culpa ao Prellado Diocezano para este deliberar sobre o cazo ou dando lhe livramento perante si. 2. Feitos Cíveis de Assinação de Dez Dias. deixa evidente muitos elementos. Que destino teria levado o frei é difícil saber. com vícios e virtudes.em Vigário daquela freguesia e tanto que la cheguei me entrou o dito padre com seus sócios a maquinar novas inposturas”42. aquelas disputas eram travadas por homens de carne e osso. Reclamava mais adiante que era “vexame grande” em ter que se sujeitar “a hum inimigo capital acomulandome com muitas injurias sob injurias. em São Luís. porque devia a Alexandre Rodrigues de Carvalho a quantia de 131. A partir daí nada mais se sabe. às vezes em um sentido de colaboração de poderes. Sua trajetória. que funções como a de vigário forense traziam consigo honrarias e direitos que enchiam os olhos dos eclesiásticos. em contextos de disputas entre as autoridades envolvidas. APEM. Acusações eram acolhidas em diferentes tribunais. e não menos importante. que o entrecruzamento dos foros de justiça era muito comum. mas. Idem. fl. 42 43 162 . especialmente. doc. 44 APEM. A última referência ao seu nome é um processo de 1797 em que foi condenado. Autos e Feitos Diversos. Finalmente. Concluiu dizendo: “jamais reconhecerei por meu superior e nem lhe obedecerei em couza alguma”43. já privandome do cargo de Vigario Geral que exercia e a nomeando para Vigário Geral a hum inimigo meu que por vingança procura todos os modos possíveis”. no entanto. 1. 2607. 4315. doc. O primeiro deles é. Relações de ódio e vingança tinham espaço mesmo sob batinas.300 réis44. sem dúvida. fl. Segundo. 129-157.As Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco no Rio de Janeiro (c. pretendo tratar de um assunto pouco explorado na minha obra. quais sejam: o cuidado dos irmãos doentes. A hipótese que se tentará sustentar aqui é a de que as eleições periódicas em que tomavam parte os irmãos leigos para escolherem os respectivos 1 MARTINS. um tema enfocado na análise foi o das estruturas administrativas mantidas pelas associações dos terceiros franciscanos e carmelitas na cidade do Rio de Janeiro.1 Neste trabalho. Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. Para ter uma ideia da importância de que se revestia na época tal eleição. às filhas dos irmãos que pretendiam se casar e aos órfãos. p. a caridade dirigida às irmãs viúvas.1700-1822): análise comparativa das estruturas administrativas William de Souza Martins Universidade Federal do Rio de Janeiro Em minha tese de Doutorado. basta referir que a data de realização da mesma frequentemente coincidia com a da realização das festas dos santos padroeiros das associações. os critérios de escolha dos padres comissários – religiosos dos conventos de Santo Antônio e do Carmo da cidade que as dirigiam no plano espiritual – e as atribuições dos mesários e dos funcionários remunerados pelas ordens. 163 . as despesas com o sepultamento e com as missas dos irmãos falecidos. Sem tais estruturas administrativas. William de Souza. 2009. Assim. isto é: o processo de escolha dos dirigentes das referidas associações. 1700-1822). o auxílio aos irmãos pobres. São Paulo: Edusp. foram discutidos os processos de admissão dos membros nas duas associações. e a manutenção dos rituais de culto divino. seria impossível àquelas associações se encarregarem das atividades caritativas e rituais por que se responsabilizavam. assim como em muitos estudos dedicados às ordens terceiras e às irmandades leigas no período colonial. está provavelmente associada ao ministro Manoel José da Costa Rego. no contexto do Antigo Regime. diminuiu a importância da participação dos colonos nos órgãos representativos do poder local. a dinâmica eleitoral em cada associação adquire um especial significado. desempenhando a ocupação de “negociante de grosso trato desta cidade”. Além disso. se for levado em conta que. segundo é possível apurar nos termos. Para iniciar a análise. A mesa justificou a elaboração de novas normas administrativas observando que “desde a sua criação se estava governando pelos Estatutos da Ordem Terceira da cidade 164 . torna-se mais relevante a escolha dos irmãos ministros. ao longo do século XVIII.líderes associativos constituíam instrumentos para legitimar a representatividade de cada associação. Serão comparadas não somente as fraternidades de São Francisco e do Carmo fundadas no Rio de Janeiro. isto é. da Bahia e das Minas. Outra possibilidade de comparação aqui também explorada diz respeito aos modelos europeus de escolha dos dirigentes das ordens terceiras. E. foram selecionados os estatutos das associações que foram o objeto principal da pesquisa. A iniciativa. priores e mesários das ordens terceiras. como também outras filiais das ordens terceiras fundadas nas capitanias de Pernambuco. os únicos estatutos que contém informações para o objeto deste trabalho foram os que a mesa administrativa organizou em 1801. Com relação à primeira. as ordens terceiras de São Francisco e do Carmo fundadas no Rio de Janeiro. pensando na inserção das ordens terceiras nas redes de poder local da América Portuguesa. na América Portuguesa e no Reino de Portugal. como eram tradicionalmente as câmaras municipais e as filiais das misericórdias. pelos escrutínios praticados pelos irmãos terceiros. As fontes utilizadas neste trabalho são constituídas pelos estatutos e manuais devocionais e administrativos elaborados para o governo das ordens terceiras. O método comparativo talvez seja o mais indicado para o estudo da dinâmica eleitoral das referidas associações. Esse irmão terceiro permaneceu no cargo máximo da Ordem por três anos sucessivos. Um dos objetivos aqui valorizados é a indicação da importância assumida. nos anos iniciais de funcionamento desta associação. os religiosos franciscanos organizaram os primeiros estatutos locais da fraternidade fluminense. 2 165 . No ano referido. responsabilizandose assim pela direção espiritual da associação local. S. p. Em 1675. os terceiros franciscanos do Rio de Janeiro teriam elaborado estatutos locais. Luís de São Francisco.2 Fundada em 1619. Outra possibilidade que não pode ser desprezada é que a mesa tenha se referido em 1801 aos estatutos locais que os terceiros franciscanos portuenses tinham publicado cinquenta anos antes: os Estatutos e regra da Ordem Terceira do Serafim Humano o Glorioso Patriarca S. aprovados na ocasião pelo ministro geral da Ordem franciscana. Este documento pouco informava sobre a organização administrativa da associação do Rio de Janeiro. Seráfico P. 45v. Luís de São Francisco. fora incumbido para a tarefa de organização dos estatutos válidos para todas as fraternidades de Portugal e Espanha. que teria fornecido à fraternidade do Rio de Janeiro algumas diretrizes administrativas de funcionamento. Em 1684. Regra. não há informações a respeito da adoção de estatutos dos terceiros do Porto pela filial do Rio de Janeiro. que desenvolveu em diversos bispados portugueses uma fremente atividade de organização de associações de terceiros franciscanos. Os estatutos de meados do século XVIII não foram localizados na documentação da Ordem do Rio de Janeiro. Livro 4º dos termos da Venerável Ordem Terceira de Nosso Seráfico P. 62-66.3 Assim. São Francisco. Como será visto mais adiante. Estatutos. 3 RIBEIRO. resumindo-se a comentários sobre pontos da regra dos terceiros franciscanos. em meados do século XVIII. 1952. Francisco da cidade Arquivo da Venerável Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro (AVOTSF). publicou o Livro em que se contém tudo o que toca à Origem. Bartolomeu. os quais pela alteração dos tempos e diversidade de Países se não podia observar inteiramente nesta cidade”. O frade mencionado desempenhou também durante 24 anos o cargo de comissário dos irmãos terceiros da cidade do Porto. Cerimônias e progressos da sagrada Ordem Terceira da Penitência de N.do Porto. Braga: Tipografia Missões Franciscanas. Sete séculos da sua história. f. provavelmente a mesa dos terceiros fluminenses deveria estar aludindo à obra de fr. cujo documento possibilitou aos irmãos terceiros de Vila Rica a redação de seus próprios estatutos. 1684). fr. Francisco (Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes. Os terceiros franciscanos portugueses. Tirados de Vários Estatutos da Ordem. Feitos. Nova ed. nas eleições para nomeação dos cargos da mesa da Ordem Terceira de São Francisco no Rio de Janeiro somente poderiam participar os mesários eleitos no ano anterior. ou então se apoiando em estatutos locais redigidos para específicas associações. por Damião Peres. Acrescentando neles o mais Útil e Necessário à Reforma Desta Nossa Província. comissário-visitador. o organismo administrativo estava formado pelos seguintes irmãos: ministro. 1751). vice-ministro. Antônio das. como andador. Lisboa Ocidental: na Oficina de José Lopes Ferreira. possuíam uma organização administrativa complexa. v. Segundo referem os estatutos de 1801. Porto-Lisboa: Livraria Civilização. nas reuniões capitulares. o documento dos terceiros franciscanos procurava ALMEIDA. De acordo com o que se pode apurar em informações dispersas encontradas na documentação da Ordem. Ordenados e Aceitos no Capítulo que se celebrou no Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro aos 7 Dias do Mês de Abril de 1710 [. III. 110. zeladores e outros. Os estatutos não são muito claros a respeito dos irmãos que compunham a mesa.. Irmãos que possuíam cargos de menor relevância. prep.]. secretário. e dir. “pela incorporação em que se acha a nossa Ordem à Religião do Santo Patriarca”. não tinham assento na mesa. A eleição do comissário-visitador. O cargo devia ser designado pelo provincial dos religiosos franciscanos e demais religiosos definidores da província. não se pautava pelos critérios definidos para a escolha dos demais mesários. 1970. Contudo... 169.do Porto novamente reformados e confirmados pela Sé Apostólica (Lisboa: Oficina de Manoel Soares Vivas. p. 4 166 . fica evidente de que maneira as ordens terceiras. como fraternidades de alcance universal. História da Igreja em Portugal. p. 1717. capelães. um religioso franciscano da província da Imaculada Conceição do Rio de Janeiro. 5 CHAGAS. Estatutos Municipais da Província da Imaculada Conceição do Brasil.5 Os estatutos de 1801 reconheceram a faculdade adquirida pelos religiosos. síndico.] dados à estampa por [.4 Seja como for. Tampouco participavam do organismo administrativo os funcionários contratados pela ordem. Fortunato de. etc. procurador geral e doze definidores.. Impressor da Sereníssima Rainha Nossa Senhora. pautando-se em ordenamentos gerais aprovados pela Sé apostólica ou pelos gerais das ordens. como organistas. 46v-47. Para tornar a escolha mais justa e menos repentina. fr. A última providência prática prevista para o processo eleitoral era a necessidade de reeleição de dois mesários. as listas nominais eram fixadas em pauta pública com um mês de antecedência. o terceiro carmelita deveria AVOTSF. se o comissário indicado não fosse satisfatório: “e quando a Religião não der os Religiosos a contento da Ordem. ou Bula de Sua Santidade para o dito efeito”.preservar os interesses da associação. 6 167 . seguindo o exemplo dos religiosos franciscanos. Tanto no caso da eleição do ministro quanto na dos demais membros da futura mesa. para conhecimento dos irmãos votantes. o ocupante do cargo mais elevado.7 Passando agora a tratar da associação dos terceiros carmelitas fluminenses. os mesários em exercício eram chamados pelo irmão andador a comparecerem à eleição. poderá esta Eleger um Irmão Clérigo Secular. f. São Francisco. a praxe adotada no Rio de Janeiro era que a eleição do ministro. o do irmão prior.. William de Souza. os terceiros do Carmo do Rio de Janeiro começavam elegendo o ocupante para o posto mais elevado da associação. se fizesse oito dias antes dos demais membros oficiais da associação. 8 MARTINS. em que o “Prelado maior se faz antes da Eleição dos menores”. O irmão secretário possuía a maior responsabilidade no processo de votação anual. 52v. Op. para facilitar aos que estavam ingressando o “Conhecimento dos negócios da Ordem em cuja demora se deterioram os mesmos”. 7 Idem. torna-se evidente a maior complexidade do processo eleitoral praticado nesta associação.8 De forma análoga ao ocorrido no exemplo anterior. cit. Os estatutos locais foram elaborados em 1697 pelo visitador dos carmelitas do Estado do Brasil. escrevendo em uma cédula fechada os nomes dos mesmos. obtendo aprovação do Prelado. Manoel Ferreira da Natividade. cabendo ao mesmo indicar três possíveis nomes para assumir cada cargo. p. 132. Para se candidatar a este cargo. Estes selecionariam os nomes de candidatos para cada cargo. Livro 4º dos termos da Venerável Ordem Terceira de Nosso Seráfico P.6 No que diz respeito aos irmãos seculares que compunham a mesa administrativa. f. totalizando doze irmãos seculares e um religioso carmelita ocupante do comissariado. entre outras obrigações. o prior em exercício e o padre comissário escolheriam dois irmãos candidatáveis ao priorado. A ordem do sufrágio seguia uma hierarquia institucional. Ordem do Carmo (OC).9 9 AGCRJ (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro). e os que assistem fora da Cidade lhe ocorrem a mesma obrigação que aos da Cidade”. de seis definidores. Após os mesários. acompanhado de diversas solenidades. da maneira seguinte: “saindo qualquer dos quatro nomeados com seis favas brancas. na véspera do dia dedicado à Santa Teresa. que se compunha então do irmão prior em exercício. Na manhã daquele dia. “ser Nobre. do padre comissário. ou por geração ou pelo trato com que viver. seriam nomeados três irmãos da mesa como escrutinadores da votação. O resultado da habilitação seria publicado no mesmo dia à tarde. a padroeira da Ordem do Rio de Janeiro. do tesoureiro. Administração 168 . ficará habilitado. votando em primeiro lugar o padre comissário. A eleição do prior tinha início a 14 de outubro. Os estatutos mencionam a obrigatoriedade do comparecimento de todos os membros da associação. Em seguida. Diante dos mesários convocados. de sorte que seja para maior Respeito e autoridade”. a votação continuava com a participação dos irmãos professos em ordem de antiguidade. sucedido pelo prior e demais membros da mesa em exercício. depositada em um vaso de prata. O voto dos irmãos seria mantido em segredo em uma cédula fechada. e saindo viceversa com seis favas negras ficará excluso”. do procurador e do enfermeiro. do secretário. deviam reunir-se na casa da sacristia os irmãos da mesa. os demais membros da mesa tinham a faculdade de habilitar ou de recusar com votos os quatro previamente selecionados. O resultado da eleição seria divulgado no dia seguinte ao da festa de Santa Teresa. cabedal para assistir aos gastos no desempenho do cargo. “salvo estiverem enfermos com enfermidade que os impossibilite a vir. Em seguida. e tendo em mãos uma pauta em que estavam inscritos os nomes de todos os membros professos na associação. do subprior.preencher alguns predicados: ter a experiência prévia de exercício em algum cargo administrativo da Ordem. 2. A eleição do comissário da Ordem seguia diretrizes diversas. cujos mandatos eram limitados pelo (AD). Assim.01. congregada a mesa “velha” no consistório da Ordem. devido às normas de recato e honestidade exigidas no contexto para as mulheres daquela condição. Diferentemente dos terceiros franciscanos. 3-3v e 21-21v. o religioso carmelita assumia certa tutela sobre tais irmãs terceiras. Um traço comum que deve ser assinalado nas duas ordens terceiras era a existência de religiosos comissários que não só participavam e votavam nas mesas administrativas. À diferença dos irmãos da mesa. Leis ou Estatutos da Venerável Ordem Terceira da Penitência da Sempre Virgem Maria do Monte do Carmo do Rio de Janeiro (1697. f. O comissário era visto como o único oficial da mesa apto a obter informações sobre as referidas irmãs. subprioresa e de mestra de noviças. o irmão secretário propunha três candidatos para cada cargo. 12. o religioso comissário tinha entre as suas atribuições propor nomes de irmãs para ocupar os cargos de prioresa. cópia de 1812).No que diz respeito à eleição dos demais mesários. 169 . que seriam selecionados pelos membros ali reunidos. a mesa devia enviar ao referido prelado uma nominata contendo três indicações de religiosos para assumir o comissariado da Ordem. Assim. Tais indicações passavam depois pela votação dos outros componentes da mesa.10 Uma vez escolhido. 17v e f. mas também tinham jurisdição exclusiva sobre a esfera espiritual das fraternidades. as terceiras carmelitas escolhidas para as três funções mencionadas não tomavam parte das deliberações das mesas. 18v. Atas. uma vez que os demais mesários não tinham “comunicação” com as ditas mulheres. 10 Idem. a escolha do comissário da Ordem Terceira do Carmo não era decidida no capítulo dos frades observantes. Apesar da equivalência formal com alguns dos cargos ocupados por irmãos. cód. f. A escolha do provincial incidia necessariamente sobre os nomes indicados. f. os procedimentos seguidos pelos terceiros do Carmo assemelhavam-se àqueles presentes entre os terceiros franciscanos. Assim. mas compartilhada entre a mesa da associação e o provincial dos religiosos. Tendo em mira as considerações do cronista e os dois processos eleitorais analisados mais acima... doutor em cânones pela Universidade de Coimbra. Mesas e Formas dos Atos Espirituais: a sua Regra. Democrático. Conservadores e Promulgadores. pode-se inferir que. na medida em que apenas os membros da mesa administrativa em exercício participavam do escrutínio. no caso das ordens terceiras seculares. Reis e Ilustres de todas as Províncias e Nações: as suas grandezas. os religiosos comissários eram escolhidos por triênios. Cardeais. Prelados.] Porto: na Oficina Episcopal do Capitão Manoel Pedroso Coimbra.tempo de um ano. na Ordem Terceira de São Francisco fluminense.12 O cronista acrescentou que. A vinculação dos irmãos terceiros aos religiosos mendicantes constitui uma das faces do “corpo místico” que ambos formavam no período. p. quando governa um só. na associação dos terceiros carmelitas. encontravam-se presentes o segundo e o terceiro modos de governo. Veneráveis.11 Com o propósito de aprofundar a comparação das estruturas administrativas nas duas associações. cit. FERREIRA. no sentido de integrarem um organismo simultaneamente unido e hierarquizado. 53-99. 47. quando governam os populares”. quando governam os nobres e sábios. p. William de Souza. Imperadores. o estudioso dos privilégios dos terceiros franciscanos observou que “está nas Mesas toda a economia com que se devem reger e dirigir as congregações seculares. privilégios e indulgências lucráveis em todos os dias do ano: o seu progresso e aumento em todo o Mundo com as memórias anuais de 534 anos [. Beatificados. que mostram a sua Instituição. A respeito das faculdades pertencentes às mesas administrativas. Por seu turno.. a escolha do maior dirigente envolvia uma combinação de MARTINS. prerrogativas. Manoel de Oliveira. nomeado em 1740 pelos irmãos terceiros do Porto como cronista geral da Ordem Terceira de São Francisco. cabe referir aqui os comentários do padre Manoel de Oliveira Ferreira. 1752. Pontífices. Expositores. Compêndio geral da história da Venerável Ordem Terceira de São Francisco: dividido em cinco tábuas. o processo de escolha do dirigente máximo e dos demais mesários assumia uma forma “aristocrática”. Três estados há de governo: Monárquico. com os Terceiros Fundadores e Patriarcas de Religiões: os seus Canonizados. 11 12 170 . Aristocrático. As atribuições espirituais eram comunicadas pelos religiosos provinciais ou por prelados superiores. graças. Op. 96. p. Conventual Life in Colonial Mexico. A escolha dos demais mesários para a Ordem Terceira do Carmo era praticamente a mesma daquela observada na outra associação. 121. conforme se pode apurar nas normas que pautavam o funcionamento do Convento do Desterro na Bahia. Evocando ainda as observações do cronista da Ordem Terceira da Penitência. Asunción. p. aristocracia (Senado) e democracia (Grande Conselho).14 Em síntese dedicada ao claustro feminino na Nova Espanha. 1994. definidos os nomes dos quatro selecionados que participariam do pleito. Brides of Christi. o tipo de organização administrativa descrito era muito semelhante. consistindo em monarca (doge). onde o interno correspondia às próprias mulheres e o outro era a hierarquia masculina”. que abrangia todas as freiras de coro professas”. Anna Amélia Vieira. também o sistema de governo conventual se apoiava na divisão de autoridade entre a abadessa.15 LAVEN. Salvador: Conselho Estadual de Cultura. um processo inicialmente conduzido pelas propostas dos secretários em exercício. encarregando-se o comissário e o prior em exercício da indicação inicial. “aristocrática” e “democrática” de governo podiam ser percebidas em outras corporações de natureza eclesiástica no período moderno. passando em seguida para o aval da mesa e. Virgens de Veneza: vidas enclausuradas e quebra de votos no convento renascentista. as formas “monárquica”. Rio de Janeiro: Imago. Uma estudiosa dos conventos femininos da época assinalou que “as constituições de um convento veneziano equiparavam-se de perto às estruturas do Estado veneziano. um grupo de idosas (‘as discretas’ ou ‘madres de conselho’) e o capítulo. ao discutir as características da administração conventual. 15 LAVRÍN. 13 171 . p. 75.formas “aristocráticas” e “democráticas”. Mary.13 Na América Portuguesa. Patriarcado e religião: as enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia (1677-1890). Stanford: Stanford University Press. finalmente. 2003. Assim como a república se baseava numa constituição mista. 14 NASCIMENTO. concluindo-se com a votação apenas dos membros das mesas. tais candidatos eram votados por todos os irmãos professos. 2008. uma autora propõe que esta pode ser concebida “como um duplo círculo. isto é. à medida que tais fraternidades vinculavam-se às instituições regulares.17 No interior da referida estrutura. funcionava ao mesmo tempo como órgão consultivo.. 220. No caso das ordens terceiras fluminenses. 16 172 .Esta imagem. 17 Id. p. com uma estrutura triádica de órgãos de governo: uma assembléia geral dos seus membros (que.. História das instituições: épocas medieval e moderna. Outro aspecto crucial mencionado pelo autor toca na questão dos mecanismos internos deliberativos próprios das instituições de poder local ou periférico: “os corpos contavam. sob a presidência do ministro ou do prior. Coimbra: Almedina. percebe-se que até o final do período em questão. comissários e religiosos aos irmãos terceiros. compreender o espaço de autonomia que cada instituição dispunha na intrincada rede do Antigo Regime. os exemplos analisados revelam as potenciais tensões dos corpos periféricos atuantes na esfera eclesiástica. um conselho deliberativo restritivo e um órgão (individual) executivo e de deliberação”. Seguindo as análises de António Manuel Hespanha. o único momento em que todos os membros de uma associação eram chamados a decidir consistia na eleição do prior do Carmo. 214. a opor. a mesa administrativa. dum modo geral. O intuito de comparar a administração das ordens terceiras à gestão dos estabelecimentos conventuais foi o de observar melhor o funcionamento dos poderes inerentes a tais organismos para. Ibid. apenas englobava de fato uma fração restrita. até certo ponto. a partir daí. “a estrutura política vai ser dominada por uma muito sensível pulverização do poder político por uma série de corpos inferiores”. p. em geral. deliberativo HESPANHA. o autor enfatiza as limitações das formas “democráticas” de representação.16 Se o comentário do autor pretende caracterizar a dinâmica existente entre os poderes do centro – representados pela soberania régia – e os poderes periféricos. como veremos). Em todas as demais situações examinadas. por exemplo. na medida em que os poderes locais no mais das vezes eram geridos por “oligarquias” administrativas. ajusta-se também à administração das ordens terceiras. António Manuel. OC. cit. selecionados entre aqueles membros da Ordem que já haviam servido em mesas anteriores. O documento observava apenas que. o que implicaria um esforço de pesquisa e de reunião de dados que não poderia ser feito aqui. deviam ser chamados os ex-ministros que tinham servido três anos “Com Despesa do seu Cabedal”.18 Na Ordem Terceira de São Francisco. f. pelas juntas de irmãos. Livro 4º dos termos da Venerável Ordem Terceira de Nosso Seráfico P... Esta diferença sutil parecia conferir à associação dos terceiros franciscanos um caráter muito mais “aristocrático” do que a dos terceiros do Carmelo.01. os estatutos previam que a mesa administrativa podia eleger seis irmãos para compor a junta.. 18 19 173 . Leis ou Estatutos. na medida em que na primeira a influência dos ministros jubilados se estendia às decisões ordinárias da associação. os estatutos não previam formalmente a constituição de uma junta. AD. Atas.19 Uma vez analisados os processos de escolha dos membros das mesas administrativas dos irmãos terceiros da cidade do Rio de Janeiro. cód. isto é.. a recepção de legados e a aquisição ou alienação de bens. f. e a aceitação de sepulturas perpétuas nas dependências do templo da Ordem. A proposta contida neste estudo tem um alcance mais limitado: a partir de alguns exemplos. A faculdade de aconselhar os executores antes da tomada de decisões era também desempenhada. quando os mesários se reunissem para as sessões ordinárias de decisão. quais sejam: a mudança de deliberações assumidas pelas mesas anteriores.. AVOTSF. 12. São Francisco. independentemente da convocação da mesa em exercício. Tinham preferência na composição das juntas os priores jubilados.e executivo. no âmbito das ordens terceiras. Foge ao propósito deste trabalho efetuar um estudo exaustivo dos critérios eleitorais observados na maior parte das ordens terceiras que possuem documentação disponível. Na associação dos terceiros carmelitas. os irmãos que haviam ocupado por três vezes o cargo máximo da associação. As juntas eram convocadas para dar maior autoridade a certas decisões tomadas pelas mesas em exercício. 45v. 21v-22. o foco deste estudo passará agora às filiais das ordens terceiras estabelecidas em diferentes partes da América Portuguesa. AGCRJ. cód. 1975. ao contrário. do PIO. na elaboração dos Membros do corpo místico. Estatutos da Ordem Terceira de São Francisco do Recife (1805).observados nas capitanias de Pernambuco. Além de merecer uma citação textual – ao lado da Palestra da Penitência. A base documental foi obtida em sua totalidade durante a pesquisa de Doutorado. A Ordem Terceira de São Francisco do Recife e suas igrejas. de autoria do padre Manoel de Oliveira Ferreira. O Conselho emitiu um despacho em maio de 1805 para que o ouvidor da comarca informasse com seu parecer o processo. p. recebendo logo no princípio o ingresso de mais de uma centena de irmãos. excluir “tudo o que for contra as Leis. Os estatutos dos irmãos terceiros do Recife foram influenciados pelo Compêndio geral da história da Venerável Ordem Terceira de São Francisco. Acima de tudo. Bahia e Minas. mas não há o relatório da autoridade pernambucana. tais fontes foram praticamente deixadas de lado. 20 174 . 21 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). 44. exploradas apenas de passagem ou visando a objetivos distintos daqueles agora buscados. Recife: Ed. ouvindo a Ordem. Os próprios irmãos reconheciam o grande intervalo cronológico existente entre o momento inicial da fundação e a formalização das normas específicas para o funcionamento da Ordem. as diferenças que as ordens terceiras daquelas regiões guardam em relação às associações do Rio de Janeiro. além de outras ressalvas pontuais. Entretanto. f. 12-14. ou não tiver a aprovação dos irmãos atuais”. achando-se “esta desde a sua fundação sem leis algumas econômicas por onde pudesse governar-se”. Fernando. Ordens e Costumes louváveis.21 O documento enviado pela associação pernambucana foi examinado no Conselho Ultramarino pelos procuradores da Fazenda e da Coroa. pretende-se observar alguns traços em comum ou. 1684. A filial da Ordem Terceira de São Francisco na vila de Recife foi fundada em 1695. Este último emitiu um longo parecer em 1804. ponderou em sua consulta que o ouvidor da comarca devia ser informado acerca do teor do documento e. 5ª ed.20 Os estatutos locais trazem a data de 1784. salvaguardando as atribuições dos oficiais da Coroa que julgava ameaçadas. da UFPE. totalizando quatro indicações para cada lugar. doze definidores. os definidores da mesa deveriam dirigir ao capítulo da província dos religiosos franciscanos uma lista contendo os nomes de três frades. 175 . os estatutos tentavam demarcar com clareza as esferas de competência da mesa e dos religiosos: “não devendo nós aceitar (sic) outro que contra a nossa vontade nos for dado fora dos nomeados. secretário. 28-28v e 5-5v. viceministro. também o não devem dar se o não pedirmos”. exceto quanto à votação para o cargo de ministro.frade Jerônimo de Belém – pode-se medir tal influência comparandose as atribuições das mesas administrativas que foram definidas mais acima no Compêndio com estas que constam nos estatutos de 1784: “na mesa consiste toda a economia com que se deve reger e dirigir esta santa congregação”. um ou dois vigários do culto divino e quatro procuradores. os membros mais 22 Idem. em que o sufrágio de todos os irmãos precedia e orientava a decisão da mesa. f. do comissário e dos demais mesários.22 Por fim. Os nomes dos três candidatos ao ministério mais votados seriam levados ao escrutínio da mesa. Um último ponto requer maior atenção nos estatutos da Ordem Terceira de São Francisco do Recife: as atribuições do irmão ministro e do padre comissário. que definiria a partir daí o novo ministro. ao tratar da escolha dos futuros mesários da associação. A mesa estava composta por padre comissário. síndico. No processo de escolha do primeiro. Quanto à eleição dos membros da mesa. A partir destas relações nominais. participavam todos os irmãos da associação. 21v-25v. Todo o processo eleitoral seguia muito de perto as normas contidas nos estatutos dos terceiros carmelitas do Rio de Janeiro. No documento em pauta. Neste processo que envolvia duas instituições muito ciosas de suas prerrogativas. importa aqui distinguir as escolhas do ministro. os definidores da mesa escolheriam os seus sucessores. embora evidentemente vinculadas. os estatutos definem que o irmão ministro e o comissário levariam à mesa em exercício os nomes de dois candidatos aos cargos. Quanto à seleção do padre comissário. irmão ministro. ainda que dela sejam os principais chefes”. sem que intervenha o preciso assenço (sic) da Mesa. Tratando da dependência que o comissário mantinha. no que for de sua inspeção deve convir com todos os Deputados da Mesa. cabendo ao padre comissário a direção no plano espiritual e ao irmão ministro “que os reja tão somente em tudo quanto for da economia política e temporal da mesma ordem”. Ver por exemplo: ALVES. História da Venerável Ordem Terceira da Penitência do Seráfico Padre São Francisco da Congregação da Bahia. e “só assim se dá a Deus o que é de Deus. “assim para mandar propor. e concordar com eles no que se propuser. como também o Ministro. os estatutos destacam a presidência que o referido irmão assumia nos assuntos temporais. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. canônicas e regulares todas as suas disposições”. 4v. f. 23 24 176 . consultar. 9v e 22.23 Na Bahia. a maior parte dos estudos enfatiza os aspectos artísticos e arquitetônicos presentes nas capelas das associações. às deliberações do conjunto da mesa. de modo a perturbar o governo político da associação. como também a característica da Ordem como um “corpo místico” em que diferentes partes se articulavam de modo orgânico e indissolúvel: “nas sobreditas espiritualidades deve o Reverendo Comissário consultar os pareceres do Ministro e mais Deputados da Mesa. Assim. deveria consultar os demais membros e “se conformar com docilidade ao maior número de votos”. em todos os assuntos discutidos nas assembléias. Marieta. Ao caracterizar as atribuições dos ministros. no temporal sem o Ministro. O comissário não deveria se intrometer nas atribuições do ministro. 10. Não obstante. no âmbito de sua jurisdição.24 Poucos autores Idem. Os estatutos se preocupam também claramente em limitar as competências do comissário e dos ministros para que não anulassem as prerrogativas das mesas. ambos “nunca obrarão despoticamente. pois é recíproca a dependência e inseparável a união para serem válidas. os estatutos realçam o caráter “oligárquico” das decisões. eleger e decidir. e conformar-se ao maior número de votos.destacados são definidos como prelados da associação. 4v. e a César o que é de César”. cabendo ao ministro a última decisão apenas em caso de empate. quanto lhe parecer”. e esta mesma nada pode no espiritual sem o Comissário. Hispanic American Historical Review. Assim. 1-46. Ana Palmira Bittencourt. há diferenças substanciais relacionadas à ruptura dos vínculos jurídicos com os religiosos. 1979. Socorro Targino. com duas exceções notáveis. pasta 15: Resumo cronológico-histórico da Venerável Ordem Terceira de São Domingos da Bahia. foi possível apurar maiores detalhes referentes às mesas. Os irmãos tinham a intenção de fundar na capital da Colônia um hospício ou pequeno estabelecimento conventual para os frades de São Domingos. isentando a associação dos terceiros dominicanos da jurisdição dos religiosos. o autor enfoca as contribuições monetárias que os irmãos escolhidos para as funções nas mesas deveriam oferecer.25 Em seguida. J. Salvador. estipulava que a escolha do 1948. Piety and Power in Colonial Brazil: The Third Orders in Salvador. desde a sua fundação em 1723 até o ano de 1781. 25 RUSSELL-WOOD. de São Francisco e de São Domingos. n. 1. subordinando-a ao arcebispo da Bahia. Na primeira. que foram priores dos terceiros carmelitas por oito e sete anos consecutivos. elaborado em 1771. 61-89. A pretendida fundação não se concretizou e. que não encontram equivalentes nas demais associações da Bahia e do Rio de Janeiro: os cônegos da Sé da Bahia Dr. A associação foi estabelecida em 1723. Antônio Rodrigues Lima.. as reeleições para o priorado não eram comuns. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia. 177 . p. foi expedido um breve pontifício.analisaram as estruturas administrativas e as formas de governo adotadas pelas ordens. e eram proporcionais à importância do cargo ocupado pelo irmão.26 No que tange à escolha do diretor espiritual da associação. por iniciativa do religioso dominicano Gabriel Batista. Mentalidade e estética na Bahia colonial: a Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis. sob a orientação de José Calazans. 26 Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Feb. Na documentação das ordens terceiras tais gastos aparecem designados como “jóias”. que ocupava lugar equivalente ao do padre comissário. Russell-Wood examina as atribuições e o processo de escolha das mesas administrativas dos terceiros do Carmo. 1989. João Calmon e o Dr. lata 68. Prestige. respectivamente. Durham. Dissertação de Mestrado apresentada à UFBA. 1996. A. R. fortalecendo assim o “corpo místico” formado por irmãos leigos e religiosos. Na síntese que dedicou às ordens terceiras fundadas na cidade do Salvador. mimeo. o primeiro compromisso da Ordem Terceira de São Domingos. Com relação aos terceiros dominicanos. CASIMIRO. MARTINEZ. 69. f. em 1742. Congonhas. Os terceiros dominicanos de Salvador. para indicar respectivamente aprovação e reprovação. Revista Eclesiástica Brasileira.. analisar os estatutos dos terceiros franciscanos em Mariana. em detrimento das atribuições do diretor espiritual. 28 Id. set. Samuel. de seções administrativas filiadas àquela associação. o irmão prior em exercício propunha três irmãos como ocupantes dos cargos da associação. a Ordem Terceira de São Francisco em Ouro Preto tem merecido constante interesse por parte da historiografia quanto às questões institucionais. p. pode-se concluir que há uma nítida concentração de poderes nas mãos do irmão prior. entre outras localidades. como as de Mariana. Depois. Ibid.diretor espiritual era uma atribuição da mesa. 29 TETTEROO. 27 178 . tais presídias tornaram-se associações independentes. Mais CAMARGO. Subsídios para a História da Ordem III de S.. No território das Minas.28 Comparando a estrutura administrativa e o processo eleitoral desenvolvidos pelos terceiros de São Domingos na Bahia com aqueles já estudados. utilizando para isso favas brancas e pretas. inclusive o seu próprio sucessor. depois disso. Mais tarde. p. 20-21 e 39-40. Francisco em Minas (parte 3). Petrópolis. Salvador. os membros da mesa iniciavam a votação a partir dos nomes propostos.27 As eleições para os lugares da mesa ocorriam dez dias antes da festa da padroeira da Ordem. sob a orientação de José Calazans. 6. em 1746. p. 671-681. Maria Vidal de Negreiros. Nesta ocasião. cujo documento foi possível consultar diretamente. a difusão de associações de terceiros franciscanos ocorreu a partir da fundação da Ordem na sede do governo da capitania. Assim.29 Devido à importância que assumiu no conjunto das associações de irmãos terceiros estabelecidas no território em pauta. O presidente de cada ramo administrativo local era designado pela mesa de Vila Rica entre os irmãos terceiros professos. Dissertação de Mestrado apresentada à UFBA. 10. n. mimeo. isto é. 3. importa aqui fazer uma rápida síntese dos tópicos administrativos relacionados à referida associação para. 1946. A difusão dos sodalícios vinculados à Ordem Terceira de São Francisco em Vila Rica ocorreu sob o regime das “presídias”. que o selecionava entre os terceiros dominicanos do clero secular.. 1979. como era a praxe adotada em diversas localidades da América Portuguesa. Crônica narrada pelos documentos da Ordem. Esta substituição foi devida às limitações existentes sobre a permanência de eclesiásticos regulares na região das Minas. p. e só mandamos se rejam e governem os nossos Caríssimos Irmãos terceiros pela Palestra da Penitência. damos estes Estatutos por de nenhum vigor. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde. Impossibilitada assim de manter religiosos como comissários residentes. impôs-se assim a seleção de padres diocesanos para assumir a referida função. 31 TRINDADE. Primeiramente. que não tinham sido ainda aprovados pela autoridade dos provinciais.adiante. foram encaminhados ao capítulo provincial dos religiosos franciscanos do Rio de Janeiro. 2. por haverem extraído cláusulas dos estatutos elaborados pela Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro. No ano seguinte ao da fundação efetuada pelo missionário franciscano fr. Samuel. pelas causas acima ditas. Antônio de Santa Maria. 7. São Francisco de Assis de Ouro Preto. serão analisados alguns aspectos administrativos tocantes à Ordem Terceira do Carmo na região das Minas. 333-356.31 TETTEROO. elaborados ainda durante o comissariado do padre Bernardo Madeira. O provincial fluminense. 25-26 30 179 . Subsídios para a História da Ordem III de S. 1947. Cônego Raimundo. e só esta se observe e guarde. estranhou o procedimento dos irmãos terceiros de Vila Rica. em documento datado de 29 de abril de 1756. sujeitas à nossa Seráfica Religião”. porque aquela ação interferia nas competências mantidas pelos prelados espirituais da Ordem: “e só a Nós pertence dar Estatutos para se regerem e governarem as veneráveis Ordens Terceiras a Nós sujeitas.30 Os primeiros estatutos dos terceiros de Vila Rica datam de 1754. Dois anos depois. Em segundo lugar. O cônego Trindade conferiu um importante destaque em sua obra aos conflitos de jurisdição entre a associação dos terceiros franciscanos de Vila Rica e os religiosos provinciais do Rio de Janeiro. este religioso designou para sucedê-lo no lugar de comissário o sacerdote Bernardo Madeira. 1951. para que fossem confirmados. Revista Eclesiástica Brasileira. p. Petrópolis. n. fr. Arcângelo Antônio de Sá. pois por ela se regem e governam tantas e tão inumeráveis Ordens terceiras existentes em todo o mundo. Francisco em Minas (parte 4). jun. que permanecia em Vila Rica desde o começo do Advento até o início da Quaresma. sob a orientação de Célia Maia Borges. p.32 Os estatutos de 1758 dos terceiros franciscanos de Vila Rica já previam a escolha dos comissários entre os irmãos terceiros do clero secular. Juiz de Fora. Pedro Juan de Molina. Inácio da Graça Leão (1764-1767). mas também o irmão ministro cujo mandato estava terminando. seis definidores e vigário do culto divino. Esta lista seria apreciada pelos religiosos reunidos no capítulo provincial. que escolheriam então o sacerdote mais capaz para o comissariado. que depois seria aplicada na prática. recorreu em Madri à autoridade de fr. 33 EVANGELISTA. Participavam da votação para os cargos não somente os irmãos mesários em exercício. representante do provincial do Rio de Janeiro. mimeo.. os estatutos de 1754 dos terceiros em Vila Rica estipulavam que a mesa administrativa era composta pelos irmãos ministro. que foram solenemente publicados em 1761 em Vila Rica. 180 . Ibid. Adriana Sampaio. 32 Id. Não obstante. 149-150. 2010.33 No que tange à composição e à escolha dos dirigentes seculares. síndico. secretário.A Ordem Terceira em Vila Rica não se deu por vencida e. este provincial propôs uma solução intermediária. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ciência da Religião da UFJF. que a mesa enviasse à província do Rio de Janeiro uma nominata contendo três indicações de sacerdotes seculares para desempenhar o ofício de comissário. Pela salvação de minha alma: vivência da fé e vida cotidiana entre os irmãos terceiros em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. 84-86 e 195-197. p. Além do comissário residente na região das Minas. viceministro. Os conflitos continuaram durante o provincialado de fr. isto é. que negava a faculdade arrogada pela mesa da Ordem Terceira de escolher seus próprios comissários. O momento da eleição ocorria a 16 de setembro. O geral da Ordem confirmou os estatutos em pauta. o ministro “que por eleição (grifos de Trindade). padre geral dos religiosos de São Francisco. véspera da festa das Chagas de São Francisco. para contornar a autoridade do provincial do Rio de Janeiro.. a associação em foco recebia a inspeção anual de um comissário visitador.. sob a orientação de Célia Maia Borges. etc. o documento em pauta trata de maneira vaga as atribuições da referida irmã. Este comentário se aplica bem provavelmente à assistência das cerimônias de culto divino. devia “assistir a todas as funções da Nossa Ordem. impressão reforçada pela participação facultada aos irmãos ministros jubilados das votações ordinárias das mesas. tendo sido enviado aos tribunais da Mesa do Desembargo do Paço e da Mesa da Consciência e Ordens para alcançar a graça da confirmação régia. na associação de Vila Rica. No período de mais de meio século a separar a elaboração dos dois estatutos das associações mineiras. p. surgiram mudanças significativas referentes à composição das mesas e à escolha dos membros que as compunham. Em seguida. O documento tem a data de 1811. Cristiano Oliveira de. Em cédulas secretas. secretário. Não obstante. os mesmos participantes colocariam em outra cédula o nome de um candidato para cada lugar da mesa. aspecto inédito entre todas as normas administrativas até aqui consultadas. vice-ministro. 34 181 .34 Prosseguindo com o enfoque comparativo. Assim. pode-se dizer que as estruturas administrativas e os escrutínios assumiam uma forma “oligárquica”. doze definidores. os ditos mesários propunham três nomes para ocupar a função de ministro. 2008. ao lado dos mesários que figuravam de costume nas associações de terceiros franciscanos (ministro. para que a seu exemplo o façam as Nossas Irmãs”.for o mais antigo” e os ministros que ocuparam o cargo em três ocasiões (jubilados). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFJF. assim como os nomes das irmãs que propunham para ministra e mestra de noviças. 86-90 e 179-192 (este último trecho contém a cópia dos estatutos de 1754). o processo distingue-se também daquele SOUSA. No que toca à escolha do comissário da Ordem. síndico. Em primeiro lugar. é o momento de iniciar a análise dos estatutos dos terceiros franciscanos da cidade de Mariana. Além dos requisitos morais e materiais exigidos para o cargo. A contagem e a proclamação dos resultados ocorriam no dia da festa das Chagas. conferidas pelo irmão secretário encarregado da apuração. com toda a modéstia e respeito.) os estatutos incluíam no âmbito da mesa a irmã ministra. Juiz de Fora. mimeo. Os membros da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila Rica: Prestígio e poder nas Minas (século XVIII).. o documento em pauta deixava evidente a diminuição dos poderes dos religiosos no processo eleitoral praticado pelas associações de irmãos terceiros. Uma vez escolhido para o lugar de comissário o candidato mais votado. que apresentava para cada cargo um irmão que tivesse os requisitos necessários. Os votos seriam conferidos pelo comissário e pelo ministro em exercício. “para se saber quais ficam aprovados”. 844. sob a presidência do padre comissário. 14. todas as propostas partiam do padre comissário. que depois passaria pelo escrutínio dos membros da mesa. Estatutos da Ordem Terceira de São Francisco da Cidade de Mariana (1811). torna-se perceptível a primazia do comissário e. O comissário devia ser escolhido a partir de uma lista contendo os nomes de doze irmãos terceiros sacerdotes.observado em Vila Rica. mandará o irmão Secretário escrever o seu nome em o papel da eleição”. aqueles irmãos lançariam em uma cédula os nomes de três proponentes ao cargo de ministro. saindo aprovado. f. cód. Esta segunda eleição era feita também em cédulas de papel.35 A eleição para as demais ocupações da mesa realizava-se a cada ano no dia 14 de agosto. na apresentação das propostas dos candidatos. O processo de habilitação dos candidatos efetuado pelos dois membros mais proeminentes da mesa ficava concluído com a indicação de somente três nomes. levando em conta as análises anteriores. ordenava “correr votos por escrutínio de feijões brancos e pretos e. 36 Idem. 3. mestras das noviças. Adotavam-se os mesmos procedimentos para escolherem os mestres de noviços.36 No âmbito do processo eleitoral. do ministro. onde seria confirmada pelo capítulo provincial. em menor grau. entre os quais os demais mesários escolheriam um para exercer o futuro ministério da associação. sacristães. a relação seria enviada para o Rio de Janeiro. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ). Assim. Reunindo-se todos os membros da mesa em exercício. O irmão secretário tinha a incumbência de preparar a relação nominal. Processo análogo era praticado para a eleição dos cargos de vice-ministro e de ministra. 35 182 . com a indicação de apenas um nome. Após o anúncio de cada candidato. Quanto à escolha dos demais membros da mesa. f. e outros cargos menores. 13 e 4. pelo fato de ser mencionada como modelo EVANGELISTA. o padre comissário propunha à mesa quatro irmãos com os requisitos para o cargo. falta examinar a organização administrativa e os critérios de eleição praticados nas ordens terceiras estabelecidas no Reino de Portugal. 8 e 62-74v.37 Outro processo eleitoral pode ser analisado nos estatutos elaborados em 1767 pela Ordem Terceira do Carmo fundada na Vila do Príncipe.. No que tange aos terceiros carmelitas em Vila Rica. AGCRJ. AD. os estatutos determinavam que a mesa fizesse uma “nominata de três Sacerdotes terceiros. que depois seguiam ao escrutínio da mesa. pois seria impossível. Após a habilitação da mesa. denominado de “cabeça espiritual do corpo místico” da Ordem. mas sem detalhar os critérios de eleição de cada mesário. cit. impõe-se aqui um critério rigoroso de seleção. cód. 37 38 183 .38 Para completar o plano comparativo de análise proposto neste trabalho. 7. p. OC. Para a escolha dos demais oficiais e definidores. A escolha dos mesários leigos era efetuada na véspera do dia da festa de Nossa Senhora do Carmo. Assim. de fr. o irmão secretário fazia propostas com três candidatos para cada cargo. a qual será remetida ao Reverendíssimo Provincial para ser aprovado um dos ditos”. Op.04. sequer compor um quadro semelhante ao que foi esboçado para a América Portuguesa. para a análise da Ordem Terceira de São Francisco. Estatutos da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo ereta na vila do Príncipe (1767). Exceto pela forma de seleção dos padres comissários desta. 12. uma autora analisou recentemente a composição dos quadros administrativos da associação.confirmando-se as indicações pelo sufrágio da mesa. Obviamente. A eleição da prioresa e das demais irmãs à frente de funções administrativas pautava-se pelas propostas do comissário. as eleições para todos os cargos seguiam de perto os procedimentos dos terceiros carmelitas fluminenses. Quanto à eleição do comissário. todos os irmãos professos deviam tomar parte do sufrágio. dentro dos limites do espaço disponível e da documentação consultada.. f. que depois eram submetidas à mesa. foi selecionada a Palestra da Penitência. Para preencher o futuro priorado da associação mineira. Adriana Sampaio. Jerônimo de Belém. 92-109. havendo-o na Ordem” – principiava com a reunião da mesa em exercício. No que diz respeito à eleição do futuro prior – que “será sempre Fidalgo de boa qualidade.. Por sua vez. o mesmo não pode ser dito do processo eleitoral efetuado para a escolha dos irmãos mesários. cit. autor e Mestre o milagroso Deus Menino. Jerônimo de. Entre os nobres.] Lisboa Ocidental: na Oficina de Antonio Isidoro da Fonseca. excluindo-se deste grupo o irmão que então ocupava o priorado. subprior. 39 40 184 . optou-se pela análise dos estatutos da associação de Lisboa.40 Quanto aos estatutos dos terceiros carmelitas da Corte. Esse corpo eleitoral reduzia-se depois à metade por sorteio. secretário. formando-se cinco pares de irmãos. de que se fez menção no início deste trabalho.. a Palestra menciona duas fontes jurídicas: os estatutos gerais elaborados em 1675 pelo geral da Ordem de São Francisco. cada MARTINS. cabendo doze aos irmãos leigos (prior. BELÉM. sendo dez nobres e dez oficiais. Com relação aos irmãos do Carmelo. nos quais entravam um nobre e um oficial. e seu legítimo substituto o Patriarca dos Pobres. deveriam existir obrigatoriamente seis ex-priores. A comissão formada pelos doze membros escolhia um corpo eleitoral de vinte irmãos.39 No que tange às diretrizes para o governo das associações dos terceiros franciscanos. e os estatutos aprovados pelo papa Inocêncio XI em 1686. A primeira norma determinava a participação nas eleições dos mesários em exercício. 49-50. ao ministro e aos mesários em exercício. o documento previa a existência de treze lugares na mesa.. William de Souza. o grande Pequeno São Francisco de Assis [. Palestra da Penitência. sendo corifeu. Se a quantidade e a hierarquia de cargos não diferiam muito do padrão encontrado nas associações coloniais. Não obstante. as eleições feitas pelo primeiro modo não deviam ser consideradas nulas. 1736. 336-337. etc) e um ao religioso comissário.de governo para diferentes associações coloniais. Op. Os vinte eleitores assim escolhidos eram selecionados entre os membros que tinham desempenhado ocupações na mesa. a legislação mais recente limitava a participação no pleito ao comissário. por ter sido a principal e de fundação mais antiga no Reino. p. p. do ministro mais antigo e dos irmãos ministros “que por três vezes tiverem exercitado a mesma ocupação”. Separadamente. p. No âmbito das associações franciscanas. pois as decisões fundamentais eram exclusivamente controladas por uma oligarquia institucional. 31-38 e 51-52. assim dos antigos. em outras regiões coloniais. divididos em três duplas. Talvez pelo fato de que a Ordem Terceira de São Francisco se apoiava em determinações administrativas de caráter geral. Ficava eleito para o próximo ano administrativo o irmão que contasse com o maior número de votos nesta última votação.. em Minas e. começando com o voto do prior. Impressor do Santo Ofício e da Sereníssima Casa de Bragança. 1715.dupla elaborava uma pauta com nomes de irmãos aptos para exercerem as funções da futura mesa. 2. 1. Novamente reformados. A importância dos dez eleitores no âmbito administrativo da associação fica reforçada ao se constatar que aquele colegiado formava as juntas da Ordem. na Oficina de Miguel Manescal. convocadas pela mesa em exercício para reformar as decisões das antigas mesas administrativas. os homens bons das localidades escolhiam um colegiado de seis cidadãos que. elaboravam pautas contendo os nomes daqueles considerados mais capazes de assumir as ocupações no governo local ou de maior popularidade para o desempenho dos Estatutos da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo desta Corte.41 Aplicando a terminologia utilizada para a classificação do perfil da mesa e do processo de eleição.]. sem a participação do conjunto da associação. este caso parece aproximar-se da forma “aristocrática”. não parece haver muitas diferenças entre os mecanismos representativos adotados no Reino e na América Portuguesa. complementadas tardia e pontualmente por estatutos locais. É nítida a distância encontrada entre os procedimentos eleitorais praticados pelos irmãos do Carmo em Lisboa e aqueles aplicados pelos terceiros carmelitas no Rio de Janeiro. muito provavelmente. como dos acórdãos das mesas e juntas [. Os nomes contidos nas cinco relações eram finalmente levados à eleição da mesa em exercício. Conforme a descrição de Boxer. O documento que prescreve o funcionamento dos pleitos eleitorais adotados pelos terceiros de Lisboa inspira-se diretamente nas votações para a escolha dos oficiais das câmaras municipais do Reino e domínios.. 41 185 . Lisboa. Madison and Milwaukee.42 Outra comparação permitida pelos estatutos dos terceiros do Carmo em Lisboa ocorre com as diretrizes adotadas pelas filiais das misericórdias.ditos postos. Juliana de Mello. Charles.44 Na Misericórdia do Rio de Janeiro. Nestas.45 Neste contexto. p. 2002. cit. MORAES. 314317. 1510-1800. 1550-1755. cit. Rio de Janeiro: Fundação Romão de Mattos Duarte. Portuguese Society in the Tropics. :1965. fortalecendo as atribuições dos vice-reis e governadores. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 46 MARTINS. The University of Wisconsin Press. 111-155. 15. 1981. jul.46 42 BOXER. Macao. eleitos anualmente “por uma comissão eleitoral de dez irmãos escolhidos pela totalidade da irmandade”. p. BICALHO. 351-358. 74-75 e 176-179. Brasília: Ed. 45 FAZENDA. no Rio de Janeiro e em outros domínios. 2003. Rio de Janeiro. Charles. Poder. 5-7. O resultado da eleição era definido por meio de sorteio. a mesa administrativa era composta por sete irmãos nobres e seis mecânicos. UnB. Ca. J. e GOUVÊA. William de Souza. 2008. Os provedores da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. As associações religiosas enquanto espaços de poder: as famílias paulistanas e a Ordem Terceira de São Francisco (século XVIII). The Municipal Councils of Goa. 1960. Op. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia. 1-12.43 No final do século XVII e princípios do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. autoridade e o Senado da Câmara do Rio de Janeiro. Maria Fernanda. Bahia and Luanda. R.. Op. n. as longas provedorias dos vice-reis Marquês do Lavradio e Conde de Resende atestam também a diminuição da autonomia governativa desta associação. Talvez seja este um dos fatores para explicar a atração que as ordens terceiras exerceram sobre as novas elites locais. O conjunto da irmandade foi inicialmente fixado em cem membros.. 44 BOXER. 186 . p. p. Maria de Fátima Silva. p. 13. ainda que as distinções entre os irmãos das duas condições tenham se tornado menos importantes na segunda metade do século XVIII. 237-240. José Vieira. alterações no processo de escolha dos representantes camarários enfraqueceram as atribuições dos homens bons na Bahia. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. 1780-1820. p. p. A. a preservação dos mecanismos eleitorais nas ordens terceiras pode ter contribuído para reforçar o caráter representativo de tais associações em relação a alguns organismos tradicionais do poder local. representadas pelos negociantes. Tempo: Revista do Departamento de História da UFF. Coloquios. 43 RUSSELL-WOOD. p. e se encontrava dividido segundo as duas categorias referidas. p. provedores e confrades: os agentes comerciais nos órgãos de poder (São Paulo. FURTADO. a remessa das nominatas era igualmente praticada. “Camaristas. ainda que as indicações para os comissariados fossem de sacerdotes seculares.). as estruturas administrativas das ordens terceiras podem ser analisadas a partir das formas de governo praticadas pelas associações. 187 . recebendo apenas a confirmação dos religiosos. como também entre os terceiros franciscanos do Recife. Em Mariana. Em Vila Rica e na Vila do Príncipe.Em resumo. Com relação à escolha dos dirigentes eclesiásticos. In: SOUZA. nestas e nas demais associações. BORREGO. Maria Fernanda (orgs. Assim. E. por fim. Não obstante. Maria Aparecida de Menezes. na Ordem Terceira de São Domingos da Bahia. O governo dos povos. sem necessidade de qualquer confirmação posterior. na medida em que os irmãos destas associações tinham algum grau de participação na escolha dos dirigentes temporais mais elevados. havia um predomínio das formas “aristocráticas” de governo. a escolha do diretor espiritual era efetuada inteiramente pela mesa. a forma “democrática” de participação foi constatada nos estatutos dos terceiros carmelitas do Rio de Janeiro e da Vila do Príncipe. o processo eleitoral já chegava definido pela mesa. Laura de Mello e. conforme o argumento já exposto. 2009. E. um dos caminhos para se chegar à tipologia das referidas formas pode ser encontrado nos processos de eleição dos dirigentes internos. Junia Ferreira e BICALHO. Os terceiros carmelitas do Rio de Janeiro e os irmãos franciscanos do Recife enviavam nominatas contendo três indicações de religiosos para a escolha final dos capítulos provinciais. São Paulo: Alameda. século XVIII)”. pois o papel das mesas administrativas estava presente em todo o processo eleitoral e em todas as iniciativas do governo interno. 319-333. os terceiros franciscanos do Rio recebiam dos superiores provinciais a indicação dos comissários. . já desde 1555. uma importância fundamental. que teve sua primeira experiência realizada no Peru. O termo redução –”reducci1 189 . Missionalia Hispánica. 2 MATEOS. A ideia de fundar missões no Paraguai. em 1603. entre os indígenas guaranis. 1969.. por estabelecer as metas a serem alcançadas pelos missionários. as orientações e os meios a serem empregados para “la enseñanza de la doctrina a los indios y la reforma de costumbres de los españoles”. F. 78. enfatizando a necessidade de “tirar-lhes os pecados públicos e pô-los sob policiamento”. n. no entanto. um referencial determinante para o trabalho missionário. e foi manifestada. pelos espanhois estabelecidos no Paraguai. Leonardo Nunes. somente em 1566 a Companhia de Jesus obteve licença para atuar nos domínios hispânicos. set. pelo Conselho das Índias. numa Província independente. 321. portanto. Esta. E apesar das solicitações feitas. refletindo-se nas duas Instruções do Padre Diego de Torres Bollo (1609 e 1610) aos missionários que atuavam junto aos indígenas guaranis no Paraguai. ocorrido em 1588. data de 1552. p. pela primeira vez. Madrid.2 As determinações resultantes desse Concílio tornaramse. neste contexto. com o nome de “Paraguay”.1 O 1º Concílio do Rio da Prata. o Superior Geral da Companhia de Jesus decidiu reunir as regiões do Rio da Prata. 3 Para “tirar-lhes os pecados públicos e pô-los sob policiamento”. realizado em Assunção.Pregando e convertendo por “inspiración sensible” – estratégias jesuíticas de missionação: Província Jesuítica do Paraguai (Século XVII) Eliane Cristina Deckmann Fleck Universidade do Vale do Rio dos Sinos “Para tirar-lhes os pecados públicos e pô-los sob policiamento” Em 1601.3 bem como Os primeiros jesuítas a lançarem as bases da ação missionária na América chegaram em 1549. o português Tomé de Souza. Tucumã e Chile. El Primer Concílio del Rio de la Plata en Asunción (1603). do envio de missionários jesuítas. do envio de missionários jesuítas para o serviço espiritual dos colonos e para a conversão dos indígenas já pacificados. Essas duas Instruções renovam as metas estabelecidas em 1603 e reforçam determinadas orientações quanto à metodologia a ser empregada pelos missionários. pelo Pe. foi proposto o modelo reducional. foi retardada até a aprovação. tem. acompanhando o primeiro Governador Geral do Brasil./dez. 4 Apud RABUSKE. 23. o conjunto de povoados considerados unitariamente por razões geográficas ou missionais. e na intercessão da Soberana Virgem e dos Anjos da Guarda […]. 5 LEONHARDT.4 Estes aspectos ficam evidenciados neste registro que expõe os objetivos da ação missionária jesuítica e as estratégias empregadas: De semejante modo les habló el Padre: Que había venido de España a estas remotas tierras.7 ón” –foi empregado em três acepções. n. ressaltando que os mesmos deveriam acreditar na justiça e bondade divinas e confiar na proteção dos santos e anjos: 2º artigo: Cuidarão Vossas Reverências de sua saúde e cada um pela de seu companheiro. sob a guarda do Instituto Anchietano de Pesquisas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS). Do Autor. por serem muito perniciosos e incitarem os índios a permanecerem em suas superstições. Por lo tanto. 25. que lo escuchasen con docilidad. Cartas Ânuas de La Província Jesuítica del Paraguai.. Arthur. não obstante o reconhecimento da importância do martírio. irían a los premios eternos. 1978.5 (grifo nosso) Na 1ª Instrução. por sus muchos pecados. unicamente para arrancarlos de las tinieblas de la gentilidad y conduzirlos a la admirable luz del Evangelio. y que hiciesen todo que les iba a enseñar. significando. contudo. o próprio povoado e. 34 (mimeo inédito. 7 Apud RABUSKE. sem faltar. A Carta Magna das Reduções Jesuíticas Guaranis. Entonces. p. o processo de congregar índios infiéis em povoados. p. em alguns casos. Estudos Leopoldenses. 190 . en lugar de marcharse al fuego del infierno. 1978. Carlos. e guardarão a devida prudência nos jejuns. p. v.de afastar os feiticeiros. ainda. 47. 14. no ahorraría trabajo ninguno hasta que saliesen de la miserable esclavitud del demonio. A. abandonando todo. de março de 1567. Op. há a explícita recomendação da observância dos cuidados necessários com a conservação da vida do missionário jesuíta.cit. São Leopoldo. vigílias e penitências. Francisco de Borja. Esto sólo era el deseo de su corazón y para lograr este fin. Buenos Aires. nuestro cruel enemigo comun. destacamos o segundo artigo que refere os cuidados que os missionários deveriam ter com a sua própria saúde6. em que for necessário na confiança que devem ter na Bondade divina e paternal Providência. 1927. bem como em abraçar e acometer os perigos. 6 Na Instrução do Pe. 8 9 191 . o período de 1714 a 1762. H. p. Buenos Aires: Talleres Casa Jacobo Preuser Tomo XIX. 1613. tanto que se puede decir con razón que su muerte fue muy semejante a la de San Francisco Javier. por cierto. a causa de tantos sufrimientos? ¿Qué remedio le podía proporcionar? ¿Qué alivio? Le hice una comidita más liviana. 10 C. preparándole una sopita con el afrecho de la harina de las hostias. Torres para todos os Missionários do Guairá. A. enquanto mais cuidarmos de nossa perfeição. 1614.). o apego às orações e o enaltecimento do martírio ficam evidenciados na Carta Ânua9 de 1613. que le causaron una fiebre grave y disentería. A. habiendo el sufrido esta última y dolorosa enfermedad con edificante paciencia. In: Documentos para La Historia Argentina (D. Elas têm sua base nos relatórios anuais que o Provincial recebia dos superiores das Residências. 1927. suas obras.Na “2ª Instrução do Padre. após um intervalo de cerca de 40 anos. después de solo seis años de Compañía y tres de misionero de indios. a sua salvação e a conversão dos índios. sendo que esta a havemos de negociar (conseguir) principalmente com orações contínuas. Universidades e Missões junto aos índios. A. In: D. 30. cit.8 O desamparo. A. tanto mais nos faremos instrumentos aptos de alcançarmos a de nossos próximos.. Tomo XIX.. Sucumbió tan pronto por los calores excesivos de esta tierra. 382. Tan extrema era su penuria que siquiera se halló un mendrugo de pan para aliviarle. H. 11 C. pessoas e atividades. Em relação às Cartas Ânuas deve-se observar que as “Litterae Anuae” eram a correspondência periódica que os Padres Provinciais enviavam ao Padre Geral da Companhia de Jesus. Paraná e dos Guaicurus” há recomendações que reforçam a crença na intercessão divina: “1º artigo: E que. p. relativas à Província Jesuítica do Paraguai.11 Apud RABUSKE. que refere que o Padre Baltasar: muerto demasiado temprano el 19 de julio. Colégios. Continham uma detalhada informação sobre as Casas de Formação. 1927. un banquete exquisito! Con el favor de Dios se compuso pronto. com sacrifícios e penitências”. p. 464. As Cartas Ânuas. A.10 O valor edificante dos sofrimentos pode ser também constatado nesta passagem que relata que o Padre Mateo: Cayó enfermo. 1978. cobrem o período que vai de 1609 a 1675 e. Op. a “morte ditosa” do jesuíta envolvido no cuidado dos corpos e das almas dos indígenas: Acudía a todos el Pe. In: MAEDER. 1929. 1929. como fica evidenciado na recomendação de que “repreendam nisso os culpados nos demais vícios públicos corrijam-nos e os C. do qual resultava. 12 13 192 .) Cartas Ânuas de La Provincia del Paraguay. Buenos Aires: FECIC .Fundación para la Educación. 14 C. A. conferindo a suas condutas um aspecto de “exibicionismo” das virtudes. Tomo XX. A. A. Embora fossem chamados a cuidarem da conservação de suas vidas. p.14 (grifo nosso) Demônios e feiticeiros Os feiticeiros eram o alvo preferencial da ação catequética dos jesuítas. Isto pode ser observado nesta passagem que ressalta o empenho dos missionários com o cuidado aos doentes: “Tienen tal celo que no me parece exageración cuando afirmo que ellos buscan la salud de las almas con tanto fervor como si se tratara de salvar su propia alma”.. Ernesto J.. garantiam o proveito espiritual. 1637–1639. 460. 1635–1637. A. A. (org. A. C. In: D. H. p. 1637-1639.12 […] murió dos años y ocho meses después de haber entrado en la Compañía […] los últimos meses de noviciado en oficio de enfermero y lo continuó después […] pego él la enfermedad en esto ejercicio de que murió […]. 30. Tomo XX. 1984. 476-469. la Ciencia y la Cultura. H. os missionários buscavam conscientemente o martírio. 1635–1637. muitas vezes.A dedicação incondicional dos missionários fica atestada no auxílio prestado aos enfermos. p. In: D.13 Nestes registros ficam evidenciadas as estratégias de divulgação dos valores penitenciais e espirituais das mortificações que. Graciano […] siendo necesario muchas veces pegarse al enfermo pa poderle oír […] sin tener su peligro ni haciendo caso se le pegaría a la peste […] y así andando en este ejercicio […] se sintió del mal y con calentura […]. por se caracterizarem pela aplicação virtuosa da abnegação. os magos e feiticeiros. Pediram-me remédio e. Pus num copo fechado um pedaço da sotaina de Santo Inácio e nunca mais voltou o demônio. 15 16 193 . que parecia ser de uma criança recém-nascida. Levei comigo ao povoado aquele índio. contudo foi que (os demônios) deixaram toda aquela plantação amarelecida e como se um fogo a tivesse chamuscado no domingo seguinte aconteceu o mesmo. sem se atrever a sair de lá. isto porque “[…] o demônio procura remedar em todas as partes o culto divino com ficções e embustes […] achou o demônio fraudes com que entronizar a seus ministros. bem como imitar as cabras. Começaram então ali os demônios a dar vozes como de vaca. bramidos como de touro e mugidos como de bois. 104. Porto Alegre: Martins Livreiro. eu fui até aquele posto […]. Antonio Ruiz de. cit.castiguem a seu tempo com amor e inteireza. 27. Conquista Espiritual. O pior. MONTOYA. por tomado de medo. no entanto. estando todos a ouvir o sermão e a missa. atribuída uma justificativa e. Revesti-me de sobrepeliz e tomei na mão a água benta e. o pobre índio se recolheu a sua choça. 1978. especialmente os feiticeiros […]”. Espantado. p. Vindo gente à tarde. cometiam adultério ou deixavam de frequentar a missa. Apud RABUSKE. 1985. uma função moral. principalmente. a fim de que sejam a peste e ruína das almas”16 À presença ameaçadora dos demônios foi. p.15 Sob a ótica dos missionários. Num domingo. A. depois da missa. […]. Op. como se observa nos registros feitos sobre os castigos que sobrevinham aos que roubavam. somente esse índio ficou em sua granja. Só não se tratou de confessar-se aquele índio mal habituado.. andando eles por aquelas plantações. O registro que transcrevemos informa ainda sobre a prática do exorcismo. viram várias pegadas de animais e uma delas de formato tão pequeno. em nome de Jesus Cristo […] mandei-lhe (ao demônio) que fosse embora daqueles lugares e que em povo algum fizesse dano. o índio lhes contou a respeito de sua aflição e. o demônio insistia em prejudicar o trabalho de conversão através dos incidentes promovidos por magos e feiticeiros. . y solos ellos muriéndose algunos y quedando los demás tan estropeados. para conseguir un feliz viaje […] Pagaron muy caro su impiedad. como nesta referência ao feiticeiro Zaguacari: MONTOYA. viu que. por um ângulo ou cantinho da parede. que para un viaje de veinticuatro dias echaron meses enteros. A este monstruo de piedra ofrecen los infieles dones. a do outro de vaca e do mesmo estilo as dos demais. A. 102-103. Op. 1929. foi cristão bastante exemplar. Op.. Estavam com as unhas compridas. p.17 (grifo nosso) Em outra ocasião. 80. p. como neste registro em que o padre informa sobre o castigo divino que se abateu sobre os transgressores: Unos cincuenta cristianos se habían ido a muy apartadas montañas para recolectar yerba.19 (grifo nosso) Neste sentido. onde criaturas grotescas com chifres e 17 18 194 . es decir frente del demonio. Montoya relata que presenciou a admoestação de cinco demônios a um jovem adoentado: Estando ele num aposento pegado ao meu […] e sendo já perto das onze da noite. de cabras e pássaros enormes. cit.. 693. En el camino encontraron una enorme peña. de lá em diante. H. entravam cinco demônios ferozíssimos ‒ […]. vale observar que as imagens dos feiticeiros mais frequentes nos registros são as que os identificam com demônios e realçam sua aparência monstruosa20.que fez uma boa confissão e. 1985. A cabeça de um deles era de porco. A. A. MONTOYA. 20 Estas descrições nos remetem aos pregadores medievais que temperavam seus sermões com histórias aterrorizantes das repetidas aparições do Diabo para tentar os fracos e levar os pecadores renitentes. Se enfermaron todos estos supersticiosos. 1985. 19 In: D. p. como também aos palcos medievais. llamado por los bárbaros aña ciba. un poco semejante a la figura de un hombre. Tinham os pés de vacas.18 (grifo nosso) O assédio do demônio era associado à reincidência nas antigas práticas rituais. cit. as pernas finíssimas e. despedindo de seus olhos raios como de fogo. porque ele era de estatura muito baixa e tinha a cabeça apegada aos ombros e. Imagem del Diablo en las Reducciones Guaranies. Op. 22 MAEDER. no entanto. Só se viam as canelas em suas pernas. Essa descrição revela que “tiene el demonio la facultad de mostrarse visiblemente”. que pretende significar o mesmo que “formosinho”. lhe convinha este apelido. 336-337. p. A.24 cauda encenavam num ambiente recendendo a enxofre. Monica P. impunha-selhe girar todo o corpo. 40. razão pela qual aparecia “con ocasionales figuras antropomórficas o zoomórficas” MARTINI. A. 23 Apud RABUSKE. sendo que tanto nos pés como nas mãos ele possuía pouca ou nenhuma força. 128-129. 1978. eram os demônios que levavam os indígenas a cometerem pecado. por medio del escudo de la fe y del santo temor de Dios”. muito se parecia ao diabo.22 Devido à sua função de introduzir os indígenas nos mistérios da fé. Os dedos de suas mãos e pés imitavam não pouco os dos pássaros. p. artigo ou mandamento. 1990. tidos como meios privilegiados e eficazes para a conversão religiosa e para a garantia de um comportamento virtuoso. que em sua existência e na disformidade de seu corpo. Pouco. p. 1985. “fuera de la típica del ser diabólico”. E. 21 MONTOYA. n. 1984. Chamava-se ele Zaguacari. 24 Partidário da concepção tomista de que o conhecimento penetrava no intelecto pela via dos 195 . os sermões empregavam largamente relatos edificantes. cit. Revista Investigaciones y Ensayos. cit..21 (grifo nosso) Predicando por “inspiración sensible” Segundo os missionários. reforçando a necessidade de – mediante os sermões – torná-los “unos buenos luchadores en los combates contra los enemigos invisibles” para que possam “defenderse contra las tentaciones de parte de las malas pasiones.146. Op.. 26. atendendo à recomendação feita pelo Padre Diego de Torres Bollo de que “[…] Sejam os sermões tais que se lhes declare algum mistério. Buenos Aires. repetindo-o muitas vezes e usando de comparações e exemplos”.. difundida pelos missionários jesuítas em seus sermões.23 Eram. cit. p. consequentemente. já que Deus se manifestava e transformava os homens através da “boca do pregador”. Op.Naquela redução […] havia um índio vivo. Cabe observar que “el indígena conformará su propia imagen del demonio cristiano”. para virar o rosto para trás. pois eram torcidos para baixo. 196 . 108-109. evidentemente. aquela gente começou a freqüentar com assiduidade a igreja. em especial”. Ignacio. aos conselhos e às advertências feitas aos transgressores ou vacilantes. Tirado esse estorvo. em razão disso.Entre os ágrafos guaranis. não apenas para demonstrar o “cambio de sus sentimentos”. para confusão dos sacerdotes desses ídolos e desengano dos povos […]. em que se tratou do verdadeiro Deus. cit. constituindo-se em verdadeiros espetáculos de exaltação religiosa. associados aos sermões. Ver mais em LOYOLA. predispunham os indígenas a externar publicamente suas culpas. Op. opondo o céu ao inferno e os anjos ao demônio. 25 MONTOYA. Asunción: Centro de Espiritualidad Santos Mártires.. Deve-se. Ejercicios Espirituales. bem como às encenações teatrais que.25 (grifo nosso) A permanente luta entre o bem e o mal se manifesta no discurso missionário jesuítico. A. que: sentidos. Reunida toda gente na igreja. através do recurso às alegorias celestiais e do medo do inferno. colaborando para uma percepção facilitadora dos elementos básicos do Cristianismo e para a implantação de uma estrutura perceptiva predisposta à materialização da sensibilidade religiosa. […]. Como pudemos constatar. 1977. fez-se-lhe um sermão. 1985. da adoração que lhe é devida da parte das criaturas. Isto fica expresso nas Constituições: “Todos tengan especial cuidado em guardar con mucha diligencia las puertas de sus sentidos. p. atingir os estados almejados de emoção religiosa: “[…] muito conveniente era fazer-se alguma boa demonstração pública. como se pode observar nestas passagens extraídas da Ânua de 1637–39. foram largamente empregadas imagens cristãs como a do céu e do inferno. e que nos relata. Inácio de Loyola recomendava um cuidado especial para com eles. os missionários se valeram amplamente da imaginação. e dos enganos do demônio […] das mentiras e ardis dos magos. mas também para “poner terror a otros”. seu arrependimento e seu louvor a Deus. buscando. considerar que as visões e os sonhos dos indígenas registrados pelos missionários jesuítas nas Cartas Ânuas estão. e os cristãos a confissão. 28 (grifo nosso) A visão do Inferno presente no sonho dessa indígena é descrita com colorações tão vivas que o temor que possa ter produzido nela deve ter ocasionado não só sua confissão. 1637–1639. 1637–1639.Cierto indio cayó gravemente enfermo.. As Cartas Ânuas do século XVII nos permitem. ainda. p. 28 C. In: MAEDER. 26 27 197 . Una india de muy mala vida. Soñó que fue llevado al borde de un terrible precipício. p. si Dios no hubiera tenido lástima de ti. sin que ella diera ocasión para ello. como después contó. E. 122. E. contó lo que había visto. 1984.. E. In: MAEDER. Desapareció el niño y la india se despertó. Vio allí unos monstruos negros. estaba tan obstinada que huía de la confesión. que la conducía por medio de unos precipicios hasta un pozo muy profundo y terrible. donde vio un joven que los detuvo y les dijo: Sin duda ya te quemarías en este fuego. llevándolo en aparencia a los fuegos eternos. 1984. Dios tuvo Misericórdia de ella. y no te confiesas. cit. Ya se le acercaba el último momento. A. si no te arrepentes de tus pecados tan sucios. Vio ella.. mas a internalização da permanente ameaça de experimentá-lo concretamente. que revoloteaban por unas espesas nieblas y el fuego que estaba chisporroteando en los abismos. avaliar o impacto dos sonhos e das visões sobre as condutas dos índios reduzidos: C. Al amanecer se apresuró a ir a la iglesia. y con gran dolor de su alma se confesó de sus pecados.27 (grifo nosso) Há ainda outro registro que evidencia que os sonhos faziam parte de um processo de exame de consciência e purificação espiritual pela confissão dos pecados. Op. de donde salían tristes gemidos y horribles aullidos. a un hermoso niño. Op. Entonces dijo el niño a la india: Allí te echarán abajo. 96. 1637–1639. p. cuando quedó un poco dormido. cit. Op.. In: MAEDER. Al instante aparecieron dos ángeles para sacarlo de las garras del demonio. 99. C.26 (grifo nosso) Así permitió que los demonios molestasen al enfermo. A. 1984. A. cit. Obstinadamente siguió aquel joven en su mala vida. Op. também. La Misericórdia de Dios. desfalece e sonha. y cuando despertó. 198 . dispuso sus cosas como quien en fin conocía era llegada su hora y delante de muchos que la asistían perdió los sentidos y quedó como muerta por tal la juzgaron los circunstantes por grande espacio de tiempo aunque ella no sabe o que verdaderamente en esto pasó. Sanó en alma y cuerpo. le atormentó el dolor en todo su cuerpo que no pudo levantarse. 1637–1639. Madre de Dios en su ayuda con lo cual se cobró del arrobamiento y parasismo y en breve sanó de su achaque. empero.. se halló en un lugar eminente de donde la subieron por unas gradas y en lo alto de ellas estaba una casa toda fabricada de oro y queriendo entrar por la puerta descubrió desde ella gran muchedumbre de gente y un altar y unos Padres con el traje de la Compañía y a sus dos hijuelos difuntos que asistían sirviendo a los dos lados los cuales acusaron la madre que no sabía las oraciones y que así no debía franqueársele la entrada (…) en la cual se volvió a Nuestro Señor invocando su favor y repitiendo muchas veces: Madre de Dios. Siguió el sumario y se pronunció la sentencia. o registro de uma indígena que. p. haciendo con sangre fría las más grandes barbaridades. 29 C. In: MAEDER. debilitada por complicações decorrentes de um parto. y persevera en el buen camino. Llamó el Padre e hizo una larga y buena confesión. A. O missionário não descuidou de valorizar a “morte aparente” e a fanática conversão que se seguiu: En su mocedad esta india después de haberle muerto dos hijuelos ahogo al ultimo trance de la vida de un revesado parto. había resuelto sacudir aquel corazón endurecido. 34. El gran sufrimiento le hizo volver a buen juicio y arrepentirse de veras.E. mas de que en este tiempo y sin parecerle se avía apartado de donde estaba. Sintióse el joven azotado barbaramente por los demonios. 1984. Estaba una vez durmiendo.29 (grifo nosso) Há. cuando se vio puesto. delante del tribunal del Eterno Juez. cit. por medio de unos demonios. 1990.A. 1632–1634. H. 32 In: D. fica expressa nas passagens abaixo: Aviendose una mujer ya defunta aparecido a su marido le mando fuese al Pe a pedirle de su parte una misa hiçolo el hombre: prometió se la el Pe mas olvidado cuando estaba en el altar ofreciola por otra intención. para que crean lo que vosotros predicáis y enseñáis de la otra vida. por sua vez. reparando a la noche en su descuydo le salteo algun recelo no fuese el alma de la difunta a darle el recuerdo al ponto le tocaron a la puerta y entendio claramente que aquella alma le pedia su socorro dixole la misa y no volvio más. 1632– 1634. esteve ligada até o século XIV a uma concepção judiciária do mundo. Buenos Aires: Academia Nacional de la Historia. na presença de todas as forças do Céu e do Inferno. In: MAEDER. p. Ernesto. 259. A ressurreição. 34-35. na qual o moribundo se via diante de uma audiência solene. con rostro risueño y preguntando de su estado en la vida le dixo si no fuera bueno no me vieras con esta alegría.32 (grifo nosso) Também os depoimentos dados pelos índios “ressuscitados” parecem apontar para um elemento fundamental para a garantia do êxito do trabalho de conversão: as advertências feitas em tom de conselho aos indígenas que resistiam ao modo de viver cristão e que acabavam por determinar comportamentos defendidos pelos missionários: “(…) que. 31 As aparições das almas do Purgatório – que vinham pedir aos vivos que rezassem por eles. a do Juízo Final.30 (grifo nosso) A crença nas aparições das almas do Purgatório. y para que se sepan confesar (…) y lo ruego que miréis bien la obligación que tenéis 30 C. cabendo a ele vencer as seduções dos diabos com o auxílio do seu anjo da guarda. 1927.. 199 . que vinham pedir aos vivos missas e orações para a reparação de erros por elas cometidos31. que coletassem donativos ou reparassem erros cometidos – foram transformadas em uma crença de significação moral pela Igreja.quedando tan aficionada a las cosas divinas que ahora vieja como es va de un pueblo a otro por asistir a los misterios de la misa donde saben que se celebran. Cartas Anuas de la Província del Paraguay. A. yo no vengo a otra cosa más que avisar a mis parientes. p. Otra vez estando solicito por la salvacion de un penitente suyo defunto se le mostro. durmiendo el Pe. cit. p. Op. eucaristia e extrema-unção visava ajudar o moribundo a ter uma boa morte. Assim. No discurso eclesiástico.34 Batismo e Confissão Significativas para a análise da construção dessa peculiar sensibilidade religiosa são estas passagens extraídas das Cartas Ânuas referentes à primeira década do século XVII – fase inicial da implantação do modelo reducional – e que registram o medo dos indígenas de morrerem infiéis e de irem para o inferno em razão disso35. 98. 181. Historia de La Compañia de Jesús en la Provincia del Paraguay. para que estos entrasen en fervor en pedir el baptismo fue. Morrer sem estar em pecado mortal facilitava a ajuda dos santos e do anjo da guarda na salvação da alma. incluindo a confissão no leito de morte. então os sacramentos. Morrer pecador significava ir para o Inferno. y asi queria ser hijo de Dios por el bautismo e irse al cielo. y haviendole dado el si. daba saltos de placer y gozo. A.36 (grifo nosso) MONTOYA. Op. porque no quedó persona en el pueblo que no se confesase. que acabandoles de predicar un día en que se les trató de los bienes grandes del baptismo. cit.de seguir la virtud..180. Madrid: Librería General de Victoriano Suárez. p. 35 Se o destino da alma causava o temor no homem setecentista. p. diciendo temia mucho morirse infiel e irse al infierno. perdoavam pecados e salvavam almas. 164. Sr. se levanto un niño de doçe a treçe años y hincado de rodillas y puestas las manos pidio por amor de Dios le baptizasen. culpas esquecidas durante a confissão. Han tenido ordinariamente sermones de doctrina xpana. Pablo. os últimos sacramentos. 36 Apud PASTELLS. diçiendo a todos que el Pe. onde a alma sofreria eternos suplícios. 1985. y de amar unos a otros. A administração dos sacramentos de penitência. con muy buenos deseos de imitarla”. Tomo I. o Padre Montoya confirma o aproveitamento da mística das aparições na modelação espiritual dos indígenas: “(…) los efectos que dejó fueron maravillosos. y dar buen ejemplo. y de cumplir los consejos que os dan los Padres”. 1912. os sacramentos da comunhão e extrema-unção dados ao moribundo perdoavam os pecados pendentes do enfermo. 33 34 200 . le queria haçer hijo de Dios. 1985. […] El medio que tomo Dios nro. A.33 Ao relatar um episódio de ressurreição. que contribuíam para a salvação. MONTOYA. adquiriam grande importância e o medo de morrer sem eles era avassalador.. 1990. que su madre se quería bautizar. a “vida é apresentada (…) já não como o objeto de um julgamento. 156-157). A confissão e o perdão. 201 .. encontramos destacada a sua vinculação com a garantia da salvação: […] estando dando gracias vino su hijo a llamarme a gran priesa.cit. a tradição cristã estabeleceu que a morte era uma espécie de sono profundo. São Paulo: Companhia das Letras. […] Sus parientes temían que se les iba a morir y al mismo tiempo que se condenase eternamente. 77. Em decorrência disso. p. […] por justo juicio de Dios fue privado en la hora de la muerte de los consuelos de la religión. In: MAEDER.A. Essa ideia introduziu uma nova percepção e poupou gerações ao longo de séculos da ideia aterradora do fim definitivo. p. (DELUMEAU. para servir de horrible escarmiento a los indios de la reducción. Pero no impunemente había provocado a Dios. 1991.38 (grifo nosso) Nos relatos que referem a administração do sacramento do batismo a moribundos. mas como a última oportunidade de provar a sua fé”. acaso tope en el camino sin ir yo a buscarle ni saber del un 37 É preciso considerar que para os cristãos dos séculos XVI e XVII. mediado pela expectativa da ressurreição. quando as almas voltariam a habitar os corpos. como se pode constatar em passagens da Ânua de 1637–1639: Hubo uno que se adelantó tanto en su temeridad que ni siquiera respetaba el Sacramento de la Confesión. […] Así murió impenitente y fue sepultado en el infierno.39 Caminando cinco o seis leguas de aquí en busca de un enfermo. H. na avaliação dos missionários. 38 C. E. 1632–1634. era o temor da morte sem a confissão e sem a absolvição dos pecados e a perene ameaça do inferno37 que levavam os indígenas a procederem de acordo com suas recomendações. 39 In: D. Fui y vi en ella eficasia de los medios divinos hallandola tan trocada que me espanto pidió que la bautizase e instruida en los misterios de nra santa fe y arepentiendose de sus peccados recebido el baptismo murió. p. Se enfermó gravemente.É conveniente ressaltar que. ya que se hizo el desentendido a todos sus caritativos consejos.. A. Jean. Op. 91. 1927. aunque a veces no tienen nada de importancia que confesar...42 Em relação. si no tenía otros pecados más. 1637–1639. retenido por un asunto importante que en aquel instante le ocupa. E. para ganar más gracias sacramentales. Temen la muerte imprevista y urgen para que sean oídos en confesión luego. negándo ella los pecados. In: MAEDER. 40 41 202 . aunque estaba gravemente enferma. 34.41 (grifo nosso) A observação do Padre Zurbano. y declaró que la causa de su malestar eran sus malas In: D. y no soportan la dilación cuando. E. o lo hayan confesado ya tantas veces. In: MAEDER. Op. 96. A. que alguien no quiera saber nada de confesión pues.. 42 C. 1984. Op. 1637–1639. ainda. p. los más son muy aficcionados a ella. cit. haciendo esto. lo que se comprende tomando en cuenta su rudeza e incapacidad para profundizar sus conocimientos religiosos”. cabe observar que se constituíram em preocupação recorrente dos missionários. p. bautize el y luego se fue al cielo.muchacho ya grande que estaba en una chozuela. p. y a al cavo de su vida. como revela este trecho da Carta Ânua de 1637–39: Es una excepción entre tanta gente. y próxima a morir. 1927. 1984.. y recibiendo tres veces la absolvición invalidamente.40 Já o apego à confissão demonstrado pelos indígenas parece sugerir que a associassem à cura ou ao “bem morrer”. como pode ser observado na Ânua de 1668: Fue preguntado en el tribunal de la penitencia cierta mujer. A. cit. de que os indígenas se confessavam “para ganar más gracias sacramentales” e que “son muy aficcionados” à confissão. 289. A. H. às “buenas confesiones” e às “malas confesiones”. não o impediu. instruile en los misterios de la fe que nunca avia oydo. por ejemplo. el confesor no acude pronto. no entanto. C. Felizmente recobró ella el ánimo para confesarse bien. Había sucedido esto ya tres veces.. de afirmar que “muy inclinados son los indios a hacer malas confesiones. que se convertirán por medio de nuestra solicitud y en consecuencia del remordimiento de su conciencia. que se utilizam dos sermões para instá-los ao 43 44 In: LEONHARDT. a promessa da absolvição dos pecados e a garantia das bênçãos divinas. devendo-se. aunque nos hayan hecho tanto mal […]. Op. Op. além de indicar a frequência com que ocorriam desvios de conduta ou transgressões. […] Esperamos. p. y el arbol por el huracán. empero. Decorridos alguns anos. indicando a interiorização de responsabilidade moral não identificada com a cultura e a ética guaranis. atestam o senso de oportunidade. que a tarefa da conversão não estava concluída e que as adversidades continuavam tendo uma função “educativa”. 1927. 20. que os livraria dos infortúnios.44 A necessidade de constantemente fazê-los sentir “el remordimiento de su conciencia”. como convenía. C. repetir a situação de constrangimento. muito provavelmente. 203 . que o que movia os indígenas à confissão era. os levasse a realmente abandonar as condutas indesejáveis. 1927. In: LEONHARDT. evitando. lo cual le había perturbado más todavía. manter as mesmas estratégias de conversão: Así como se ve en la naturaleza que la siembra se arraiga más por el cierzo. Así las cosas grandes se solidifican más por la adversidad. o Padre Juan Ferrufino deixa entrever em suas observações. ou. cit.. p. por “inspiracion sensible” dos jesuítas. com isso.confesiones. como preferem os missionários. Después de haberse confesado. por isso. C. cit. Procuramos ganar su voluntad con favores. É provável que a humilhação sentida.. ao se confessarem com vários confessores. murió.155. Sentimentos de “vergüenza” e “humillación” são expressões constantes dos registros. também. viéndose ella perseguida de noche por un perro de terrible aspecto. Deve-se ter em conta.43 (grifo nosso) Deve-se observar que na mesma Carta são mencionadas repetidas confissões e as razões apontadas pelos indígenas para tal prática. na Ânua de 1647–49. uma alteração significativa nas atitudes dos indígenas: Ay tan grande frecuencia de sacramentos.. en especial de la penitencia que comúnmente no pueden los padres dar oídos a tantos. ainda. das Letras. que se previenen mucho antes para recivirle. p.C. ya que sacrilegamente recibía los sacramentos. Un día vía como predicaba uno de los Padres Misioneros contra el crimen de la hipocresía y de ocultar pecados en la confesión (pues. Luego despues del sermón se puso a llenar tres hoyas de papel con las listas de sus pecados. Causóle a aquel infeliz tanto dolor que le costó contenerse para no con alaridos manifestarse como el hombre mas perdido del mundo. Con el del altar tienen tan grande fe y devoción. Echóse a los pies del confesor y le entregó el papel entre muchos sollozos y bañado de lágrimas. 77.. cit. p. Y a este temor es el provecho que sacan de la divina mesa. 1927. 45 204 . Op. “ela própria uma consciência graduada de culpabilidade” (DELUMEAU. tornando-se “aquilo a que chamamos a consciência moral”. ligando o sofrimento à maldade e a felicidade à justiça. entre torrentes de lágrimas. 1989. realmente. J. Libróle el confesor de la carga de su conciencia y desde aquel tiempo vivió con mucha edificación.“bom comportamento”45: Otro hombre perverso por largo tiempo supo ocultar el veneno de sus pecados que le consumía. p. na medida em que “Deus ameaça e protege”. desmayándose casi de dolor y arrependimiento. que campea en sus costumbres y se han visto en materia de honestidad muchos y muy illustres exemplos […] Y si alguna vez por la malícia del O simbolismo mais significativo da culpabilidade está associado ao tribunal “transposto metaforicamente para o foro interior”. como por inspiración se le había ocurrido predicar sobre esta materia).46 (grifo nosso) Os registros feitos pelos missionários parecem indicar. Graças a esta lei da retribuição. Jean. São Paulo: Cia. 264). 1989. “o deus que dá proteção é o deus moral: ele corrige a desordem aparente da distribuição dos destinos. Havia. y parecía irremediablemente perdido. o deus que ameaça e o deus que protege são um só e mesmo deus. História do Medo no Ocidente (1300–1800). e esse deus é o deus moral” (DELUMEAU. cit. a profunda “conexão entre acusação e consolação”. 444). 46 In: LEONHARDT. Op. o espírito se encontrava preso dentro do corpo. A disposição dos fiéis na igreja também era organizada: antes da missa. a natureza bruta. Op. a normatização de ações e a eliminação de comportamentos inconvenientes ficam evidenciadas nas referências que os missionários fazem à observância dos códigos de postura corporal. Depois. 1632–1634. civis (cabildantes.1990. e no espaço que sobrava espalhavam-se os homens. 125. cit. tais como os de curvar-se diante do santo em sinal de respeito. mas de um tempo próprio para cada coisa: um dia da semana específico para o batismo. os sentidos. durante a missa. A moderação das emoções. A. caminhar de uma determinada forma em procissão e ocupar um lugar específico dentro da igreja. outro para casamentos. p. In: MAEDER. mais ou menos dois metros atrás. pelas laterais. baixar a cabeça como forma de aceitar uma ordem. O resto da comunidade podia sentar no chão ou assistir ao ofício de joelhos. guerreiros e caciques) que tinham direito a cadeiras e podiam assistir sentados à missa.E. No fundo e nas naves laterais se colocavam as mulheres. acomodavam-se as moças. […] Cada día se juntan todos a rezar de comunidad el rosario.demonio han caido se han impuesto de su voluntad muchas penitencias muy graves y dados extraordinarias muestras de dolor que todos son buenos indicios de las veras con que se han dedicado al Señor estos nuevos cristianos. as crianças separadas em filas por sexo cantavam no átrio e repetiam orações em voz alta. Durante toda a missa havia pessoas responsáveis por fiscalizar o comportamento dos índios. 47 48 205 . a fim de que a alma se desenvolvesse da forma considerada a mais adequada através de espetáculos (que conciliavam a música e as encenações teatrais) e das procissões e das missas em que os indígenas demonstravam sua plena integração na ritualística cristã. A nave central era ocupada pelas autoridades. daí a necessidade de controlar e restringir a ação física. os desejos e vontades.. por lo qual hazen grande instancia para ser admitidos. os homens. A normatização cotidiana é observável nas referências à existência não apenas de um lugar adequado.48 Nas reduções – de acordo com os registros dos padres jesuítas C.47 (grifo nosso) Para os missionários jesuítas. oir misa. entravam na igreja pelas portas principais as mulheres adultas e. evitando que houvesse até mesmo um contato visual entre estes. Atrás das autoridades civis ficavam os rapazes e. dezir la letania de la Virgen y resplandecen entre todos con la inocencia devida. dias determinados para confissões e o ponto exato do dia ou da missa em que deveriam ocorrer. fazendo com que ao dobre dos sinos se juntem mais de mil almas que acompanham o cortejo para dar sepultura ao morto. Tinham muito arraigado o bárbaro costume de chorar supersticiosamente e intensamente os seus defuntos ao uso gentílico. de haber seguido viviendo. In: MAEDER. A. El Guaraní conquistado y Reducido. 49 50 206 . 1990.” MELIÀ. o apreço pela religião entre os bárbaros como atesta a solenidade com que a criatura morta foi conduzida à sepultura na igreja por um caminho coberto de flores e por C.49 A descrição de um funeral que consta da Ânua do período de 1672 a 1675 – decorridos já mais de 60 anos de atuação missionária junto aos indígenas – destaca tanto a ressignificação das manifestações tradicionais de sentimentos de emoção individual e coletiva dos indígenas guaranis. sendo que o cortejo fúnebre era acompanhado de “rezos y cantos de los músicos. Nas reduções. 1632–1634.–. Bartomeu. de sorte que em tempo de peste não se ouvia outra coisa pelo povoado a não ser lúgubres lamentos […] todos eram convidados a fazer coro sobre o defunto. o enterro ocorria sempre ao final da tarde. Ilustrativa neste sentido é a passagem que extraímos das Ânuas referentes aos anos de 1632 a 1634 e que descreve tanto os ritos guaranis que envolviam o luto e o sepultamento. as expressões da sensibilidade dos guaranis diante da morte teriam assumido uma uniformidade e publicidade bastante distantes das espontâneas manifestações originais. Asunción: Biblioteca de Estudios Antropológicos de la Universidad Católica. segundo Melià. 37. quanto a manutenção do cerimonial fúnebre tradicional dos guaranis:50 Aumentou.. desfazendo-se em choro por dias e noites. todavia. cit. pero también ‘desentonados’ lamentos de indias viejas – antigua costumbre que muchos años de misión no han podido desarraigar – y en los que lloran y elogian al difunto por lo que ha sido y ha hecho o al menos por lo que hubiera podido hacer y hubiera podido ser. introduzindo demonstrações de sentimentos cristãos e de piedade com os defuntos. quanto as demonstrações de sentimento e de devoção tidas como aceitáveis e estimuladas pelos missionários. E. Op. p. Ensaios de Etnohistoira. 1986. p. E todos cantam e rezam com muita devoção e compostura as orações na Igreja. Corrigiram os padres este costume. 207. p. p. Asunción: Centro de Espiritualidad Santos Mártires. em um ato de vontade. Neste caso. seu controle possui a função explícita de robustecer o espírito. n. deveria subjugá-los.51 Transgressões e Penitências Esta “civilização das condutas”52 dos indígenas será acompanhada de manifestações de fervor e de devoção. 1977. Belo Horizonte. a salvação da alma. Ignacio. Diego de Torres Bollo. I. (LOYOLA. 34-35. o que poderia comprometer não só “a fortaleza da fé” de muitos. a elevação espiritual e. O intelecto.55 C. 66. Vale lembrar a insistente recomendação de que os indígenas assistissem às missas. Muito divulgada é a crença em seu poder expiador. a “adesão corporal” a estas cerimônias evidenciava uma “adesão espiritual”54. Em razão disso.). reparador e na sua eficácia para aplacar a ira divina e alcançar a pacificação no plano social. os indígenas ausentes à missa e omissos na observância dos rituais de exteriorização da fé eram punidos com castigos físicos ou divinos. Contemplavam com curiosidade os bárbaros aquelas cerimônias fúnebres cristãs. […] Antes mesmo da Reforma. 26). Os sentidos são tomados como elementos a dificultar a salvação da alma. a missa constitui o rito central do Cristianismo na Europa. considerada a mais sublime oração nos diversos níveis culturais da época moderna. que recomenda que somente os fiéis assistam à missa. já que. uma vez que visa a reparar os danos que o pecado causaria à alma. 53 Loyola definia a autoflagelação como “castigar la carne. dándole dolor sensible. Vária História. In: LEONHARDT. 1977. para os missionários. em um cego gentilismo. Adalgisa Arantes. 1672–1675. Op. Para Loyola. demonstradas no “chorar copioso”. 1996. através do “disciplinamento dos sentidos”. de 1609. cit. sacramento por excelência de purificação. Logo. Ao desviante é apresentada a penitência. 54). à manutenção da “pureza corpórea”. 16.. a noção da pureza da alma ligava-se. ordenando os afetos e restringindo os prazeres considerados inferiores. p. para que os sentidos obedecessem à razão e para buscar uma graça ou dom que a pessoa desejava. es saber. porque estes índios procedem muitas vezes de outro modo com os seus. 1927.” (CAMPOS.arcos triunfais feitos de ramas de árvores em procissão solene. flagelándose o llagándose” (LOYOLA. Irmandades Mineiras e Missas. durante a assistência às missas e na prática de penitências e de autoflagelação53. mas também a conversão futura 51 52 207 . 54 É válido lembrar “a crença no poder expiatório da missa. necessariamente. 55 Cabe aqui retomar o décimo artigo da 1ª Instrução do Pe. a punição dos fiéis omissos ou ausentes se devia ao fato de potencialmente estarem retornando ao seu “antigo costume”. notadamente. Os motivos elencados por Loyola para que fossem feitas penitências eram três: para satisfazer os pecados passados. Ejercicios Espirituales. p. A. set. el cual se da trayendo cilicios o sogas o barras de hierro sobre las carnes. Chaco: Instituto de Investigaciones Geohistóricas.129.57 (grifo nosso) O Padre Francisco Lupercio de Zurbano registra os excessos de devoção religiosa de um índio que teria se imposto a autoflagelação: Sucedió que cierto joven. misa cantada y sermón. p. y no obstante querían vivir a manera de los gentiles. p. p. y fué refrenado en sus penitencias por nuestros Padres. Los domingos y fiestas se celebran con toda solemnidad. E. vagando por los campos. olvidando o depreciando las prácticas religiosas”. cit.R..58 (grifo nosso) Na Carta Ânua de 1637-1639 encontramos relato do de outros.). 1637–1639. A. além de qualificar como justos os castigos divinos. esto es poco […].. Op. Ya bastante maltratado por esto. Introducción del Dr. molestado por la tentación.56 A Ânua referente aos anos de 1641 a 1643 informa sobre como eram identificados os transgressores e como se procedia para determinar as penitências.G. 1996. Enfermose por esto. Resistência. E. Maeder. y por la tarde volviéndose a juntar dan los fiscales cuenta de los que han faltado en la semana a misa y a doctrina y se les da una suave penitencia que ellos reciben con extraña sujeción y rendimiento […] A uno se le dio una penitencia a su parecer pequeña. se echó en un hormiguero.. Op. Prefiero morir antes que pecar. A. A. y así reclamó con sollozos: Padre más. 58 C.Esta percepção transparece claramente neste registro que integra a Ânua de 1637–1639 e que.. y antes doctrina a todo el pueblo. 1637–1639. cit. 56 C. In: MAEDER. CARTAS ÂNUAS DE LA PROVÍNCIA JESUÍTICA DEL PARAGUAY (1641–43). 208 . 90. […] Señales son estas de que ya está profundamente arraigado en su corazón el santo temor y amor de Dios.77-79. se revolvó entre punzantes ortigas. 1984. Ernesto J. Contestó él: No importa. 57 Documentos de Geohistória Regional (D. In: MAEDER. define o que era considerado transgressão: “El castigo era muy justo. 1984. porque ya eran cristianos. 1637–1639.16. enlazada en sus manos.. p.59 (grifo nosso) A Ânua de 1668 também refere a prática da autoflagelação. o qual levava numa sacola alguns ossos de defunto […] assim o demônio foise aproximando dele […].. In: LEONHARDT. p. julgando bom o remédio. no dejando ni la cara sin su especial suplício. cit. toman ellos con entusiasmo sangrientas disciplinas. amarrado a ella con una larga soga. vendo-se ele atormentado de tal forma pelo hóspede. cit. que comenzó a tratar cruelmente su cuerpo con diferentes clases de asperidades. ya al entrar otra vez en el templo. y lo prohibió. In: MAEDER. O amor paterno fê-lo rejeitar semelhante ação. haciendo curar las heridas del penitente. 1984. que refere a prática da flagelação e do exorcismo: Havia meses que estava doente um moço de vida muito correta […]. 1927. mas a mãe. Op. profundamente conmovido por el dolor y arrepentimiento. se hizo disciplinar con azotes de puas. C. Pediu o enfermo que me chamassem. a internalização da noção de pecado e de culpabilidade chegava a extremos. lo descubrió uno de los Padres. A. Viu o moço diante de si um etíope desnudo.arrependimento de um jovem pecador e a descrição da forma como procurou expiá-lo: Cierto joven havía caído imprevistamente en un pecado carnal. destacando o rigor e o entusiasmo com que os indígenas a executavam: En su gran compasión con la Sagrada Pasión de Cristo nuestro Señor.. como neste registro extraído da “Conquista Espiritual”. acompañando alguno en la procesión la grande Cruz.60 (grifos nossos) De acordo com os missionários. hasta que. Entretanto. Ao mesmo tempo pedia-lhe este 59 60 C. Así preparado. 102-103. E. pois com isto sairia dele aquela besta. Op. Le dolió tanto. 209 . solicitou a seu pai que com força o açoitasse. agarrou umas cordas e começou a flagelar o filho. se acercó al tribunal de la penitencia. y en la Semana Santa sucedió que. 61 62 210 . na medida em que eram interpretadas como resultantes da internalização da noção de pecado e indicativos do êxito das estratégias por eles adotadas. que se hace de antemano. 63 In: LEONHARDT. E. empero. depois de várias demandas e respostas.62 Também na Ânua de 1663–66 encontramos menção à prática da penitência. saiu.61 (grifo nosso) Mais surpreendente. cit. e ao demônio ordenava que saísse. Pues. p. ya estaba la peste asolando los pueblos circunvecinos. Por fim. cit. C.. na opinião dos missionários. associada à purificação e às bênçãos divinas que dela decorreriam: La saludable penitencia. y se detuvo como espantada de su vista.. mucho más grande que la de las otras reducciones. A. Op.63 (grifo nosso) Apesar de registrarem como exageradas as manifestações de penitência a que os índios se submetiam. A. MONTOYA. era “la saludable penitencia” que alguns indígenas mantinham. p.. p. Sin embargo no dejaron sus acostumbradas penitencias corporales y sus sangrientas disciplinas. humedecida por la sangre derramada por los azotes. C.“no obstante la escasez de víveres” que levava muitos a abandonarem as reduções: Algunos permanecieron constantes en el pueblo y en las prácticas religiosas. previene la satisfacción que nos queda por hacer.que ela batesse com energia. que a su vez surcaban los cuerpos. deixando moído o pobre rapaz. no obstante la escasez de víveres […] Estos indios arrastaron pobremente su vida. 1985. extenuados hasta el extremo por un ayuno forzado. Op. comenzó a producir una riquísima cosecha. así que este pueblo pudo generosamente socorrer a los hambrientos de otra parte. La tierra. Op. 161. 102-103. castigadas por la sequía. In: MAEDER. 103. y no se atrevió a atacar precisamente este pueblo. defendido por la penitencia. 1984.. 1637–1639. os missionários não escondem sua satisfação em relação a elas. 1927. cit. com certeza. as penitências e as autoflagelações são tomadas. percebidas como ressignificação de práticas e representações tradicionais 211 . Assim. Acreditamos. como indícios da adesão dos indígenas aos valores cristãos e como demonstração pública da interiorização e da assimilação da “civilização dos afetos e da conduta” por eles pretendida. nesta perspectiva. no entanto.Considerações Finais A análise dos registros que integram as Cartas Ânuas revela a forte presença do imaginário cristão. batismos. procissões. visões. como também produziam o consolo e apaziguamento das consciências dos indígenas. penitências e demais disciplinas que antecediam feriados religiosos ou. bem como para sua apropriação pelos indígenas instalados nas reduções jesuíticas. sonhos. a partir do questionamento da sujeição absoluta dos indígenas aos valores cristãos e às condutas ocidentais. pelos missionários. confissões. a atmosfera trágica e o ardor carismático de que se revestiam as missas. Neles. predispondo-os a permanecerem nas reduções e a viverem de acordo com as normas da “policía humana”. a participação nas procissões e festas religiosas. então. os resultados estiveram condicionados. que as reduções jesuítico-guaranis devem ser compreendidas como espaço de acomodação de sensibilidades. os missionários definiram estratégias e manejaram símbolos e valores. De acordo com os missionários. curas milagrosas e ressurreições são referidos pelos missionários para ressaltar a intensidade do fervor religioso que os indígenas já convertidos manifestavam. às motivações e às aspirações dos indígenas. Se. no processo de conversão dos indígenas guaranis – e que implicou o “viver em redução” –. As manifestações de piedade e de devoção registradas nas Cartas Ânuas da Companhia de Jesus devem ser. os sacramentos administrados aos fiéis e aos recém-convertidos não apenas revertiam em intercessões divinas benéficas. as calamidades e as pestes “que Dios les envía por castigo de sus culpas”. como previam as estratégias missionárias. a assistência às missas. Permeados pela constante ameaça dos demônios ou pelas bênçãos de Deus e dos anjos. também. estão destacados a tensão emocional. como bem observado pelo antropólogo Melià.guaranis. através das quais os indígenas buscaram o atendimento de sua espiritualidade e a expressão de sua sensibilidade religiosa.64 64 MELIÀ. 209. sino precisamente por lo que eran estos Guaraníes”. 1986. El Guaraní conquistado y Reducido. Asunción: Biblioteca de Estudios Antropológicos de la Universidad Católica. Ensaios de Etnohistoira. pois. 212 . Bartomeu. o êxito das reduções jesuítico-guaranis não se dá “a pesar de lo que eran los Guaraníes. p. 3 Os primeiros missionários dominicanos chegam no ano de 1509. Em 1505 foi criada a primeira Província da Ordem nas Américas e em 1524 chegaram ao México os primeiros 12 missionários franciscanos. 2 Os franciscanos estiveram precocemente presentes nos territórios do Novo Mundo. os jesuítas chegaram tardiamente. em 1567 no Peru. Logo depois. em 1532 é criada a província dominicana da Nova Espanha. 213 . ao Rio da Prata. que dará início a uma ardente campanha de consciência dos cristãos em razão dos abusos cometidos contra os índios. 6 Ao Brasil eles chegaram em 1549. em seguida. agostinianos4 e mercedários5. 5 deles participaram da expedição de Bobadilla em 1500 e 13 embarcaram em 1502 na frota de Bobadilla. no que se refere ao conjunto das congregações religiosas que participaram da colonização espanhola. em 1593. Provavelmente por conta da influência do Cardeal Cisneros.Sobre “agir muy poco á poco hasta tenellos ganados”: as Instruções do Padre Diego de Torres Bollo para a missão entre os guaranis Maria Cristina Bohn Martins1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos Ao se constituir a Companhia de Jesus em 1540. não há como negar a enorme importância de sua atuação. Efetivamente. 5 Um membro da Ordem das Mercês acompanhava a segunda expedição (1493) de Cristóvão Colombo para a América. e não apenas nas cidades e 1 Professora do Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS. Bolsista Produtividade do CNPq. bastante depois de franciscanos2. Entre eles estará Antonio de Montesinos. Antonio de Almanza. Em 1526 eles chegarão ao México onde. recém nomeado governador da Hispaniola. Outro. Apenas em 1566 eles se fizeram presentes na Flórida6. apesar deste relativo retardamento. Sua atividade no Peru tem início mais tardiamente (1553) e o primeiro bispo de Asunción foi um franciscano. Pedro Fernández de la Torre. passaram ao Chile e. foi capelão da expedição de Diego de Almagro ao Chile em 1535. dominicanos3. Entretanto. mas a expansão de seus estabelecimentos data dos anos 30 do século XVI. em 1572 na Nova Espanha e em 1586 em Quito. algumas ordens religiosas tinham já uma sólida presença nos territórios americanos. 4 Os agostinianos chegaram à América através do México em 1533. Isto é. eles organizavam suas Residências. após a expulsão decretada por Carlos III em 1767. “quando os últimos jesuítas partiram do continente. bem como os meios através dos quais estas obras poderiam ser mantidas. Outros privilegiam problemas ligados à sua atividade no campo da educação. É ainda importante ressaltar que posições apaixonadas. em vários casos. Colégios e Missões. o que conferia características bastante especiais a este tipo de produção. algumas das quais se constituíam em verdadeiras “fronteiras” com o mundo indígena. de acordo com Artur Barcelos. eles viam-nos meramente como receptáculos passivos da ação dos jesuítas. Além disto. de crítica ou de elogio à Ordem de Loyola. estes autores eram eles próprios jesuítas. deixaram para trás muito mais do que pregações e conversões ao cristianismo”. ou das práticas de catequese e da interação que elas estabelecem entre os jesuítas e os índios. a necessidade de considerarse que o contato nem sempre ocorreu provocado exclusivamente pelos 214 . a este respeito. muitas vezes acabaram por dissociar a atuação de seus membros do contexto em cujo seio ela se desenvolve. Limitando-se a repetir e comentar as descrições dos cronistas da época. pois os jesuítas foram uma presença marcante também nas áreas mais afastadas dos centros coloniais. nem que seja muito variado o leque de abordagens que elas recebam. À medida que se estabeleciam. portanto. esses estudos geralmente oferecem visões estereotipadas dos indígenas. A literatura mais contemporânea tem destacado. a imagem que emergia de uma documentação lida acriticamente não levava em conta que circunstâncias diferenciadas criam campos de ações possíveis dentro da estrutura colonial. Desta forma.vilas. Muitos destes estudos se ocupam do trabalho missionário e do funcionamento das aldeias e reduções que os padres da Companhia dirigiram. suas estratégias econômicas e sua influência política. Até recentemente estes trabalhos resultavam dos esforços desenvolvidos por eruditos ou historiadores não profissionais. que suas atividades em território americano se constituam em um tema de forte atração para os historiadores. Não deve causar surpresa. vêm sendo estudados a partir de uma série de perspectivas originais. concluo avaliando as reduções do Paraguai. 215 . avaliar as características das reduções jesuíticas e. É assim que os “pueblos de indios” em que os jesuítas procuraram oferecer catequese aos nativos. uma certa recusa a perspectivas que compreendiam as “reduções” exclusivamente a partir da iniciativa e das marcas da Ordem. como característica comum. situações com forte incidência sobre a qualidade do que se produz. pois. Isto é. as interpretações atuais não mais percebem as aldeias e reduções como uma experiência significada exclusivamente (ou mesmo prioritariamente) pelos padres. as quais ajudam a colocar no centro das atenções os grupos indígenas entre os quais os padres missionaram. houve um importante movimento em direção a perspectivas antropológicas de análise. como também novos princípios de inteligibilidade aos temas estudados. os chamados “30 Povos das Missões”. finalmente. que a historiografia das últimas duas décadas do século XX experimentou algumas transformações substanciais. depois. Isto é. pretende não desconhecer este dado fundamental. embora tenha os missionários jesuítas como alvo principal de reflexão.padres e que os grupos nativos. foram protagonistas ativos das relações estabelecidas com os missionários. introduziram-se novos objetos de investigação. se pode dizer sem risco que eles apresentam. Embora o panorama destes estudos seja muito variado. No Brasil. para. Começo refletindo brevemente sobre as reduções e pueblos de índios nos marcos gerais da colonização espanhola. considerando que elas foram um espaço de intensas negociações. muitas dessas transformações derivam da expansão da pósgraduação e da profissionalização da atividade de pesquisa. de trocas e reelaborações culturais. os padres da Companhia não atuaram em meio a um vazio social. Paralelamente a isto. de formas variadas. Minha abordagem deste tema. Como já foi observado. Percebe-se. e suas estratégias e métodos de missão tiveram que se construir e reconstruir de acordo com os grupos indígenas em meio aos quais eles atuavam. também foram promotores de diversas experiências missionárias em praticamente todo o continente americano. há que se considerar que este “isolamento” nunca foi completo e que as reduções mantiveram diversos tipos de interação com a sociedade colonial. as mais visíveis. se fez presente desde o princípio da colonização. ou mesmo mestiços. costumam ser definidas por sua dupla dimensão: elas se constituíram em um modelo de evangelização posto em prática por algumas Ordens religiosas. isto é.“Pueblos” de índios e “reduciones” As chamadas “reduciones” através das quais povos indígenas americanos foram reunidos em “pueblos” de acordo com a legislação espanhola. eram hispano-americanos portanto. também. tendo os freis fundado na década de 1580 um conjunto de povoados nas O termo “espanhois” está sendo utilizado aqui em oposição a “índios” e sem considerar o fato de que muitos destes a quem ele se refere já eram nascidos na América. os vários “servicios” que os índios prestaram às autoridades coloniais. através de suas milícias. uma vez que uma das primeiras impressões cunhadas pelos europeus sobre eles foi a de que os índios viviam em um estado fora do social. talvez. No caso dos povos jesuítico-guaranis. de congregar os nativos em assentamentos de acordo com a legislação hispânica. ao lado delas podem ser citados. em um estado pré-civil (ou “primitivo”). Embora elas incluam a determinação de buscar-se separar os índios da sociedade dos espanhois7 em virtude dos “maus exemplos” pelos quais estes últimos seriam responsáveis. Ainda que as mais conhecidas e discutidas dessas reduções sejam aquelas que foram conduzidas pelos padres da Companhia. por exemplo. 7 216 . Os franciscanos. embora as relações econômicas sejam. por exemplo. É preciso lembrar que inclusive junto aos guaranis do Paraguai foram franciscanas as primeiras iniciativas neste sentido. mas também foram um instrumento de controle da monarquia sobre os habitantes de certas áreas de fronteira. Efetivamente o intento de “reduzir a pueblos”. os jesuítas não foram pioneiros em tais iniciativas e nem mesmo foram a única Ordem a empreender esforços neste sentido. no Paraguai. vizinha a Lima. Suas primeiras experiências no método de “redução” ocorreram no Peru. incentivadas pelo Vice-Rei Francisco de Toledo. pois. entre os quais estavam Los Altos. Desta sorte. de onde trazia. Contudo. foi recomendado aos missionários e párocos como instrumento para doutrina dos índios. as que mais tem atraído a atenção da historiografia. cada uma correspondendo ao espaço de assentamento de 4 famílias indígenas. Foi também um franciscano. A Província Jesuítica do Paraguai foi criada em 1607 e seu primeiro Provincial. na margem ocidental do lago Titicaca. A abertura de uma nova frente missionária derivou da iniciativa do governador Hernando Arias de Saavedra que acreditou que o trabalhado dos padres As reduções deveriam reunir um número em torno de 500 famílias de índios submetidos ao tributo. em 1576 os jesuítas assumiram a condução de Juli. Diego de Torres Bollo. Tal proximidade contribuiu para prejudicar a estabilização desses povoados. San Blas de Ita e Yaguarón. matéria que depois se constituiu. quem produziu em guarani um primeiro Catecismo Breve que. Frei Luis de Bolaños. na mesma medida. havia trabalho em Juli.cercanias de Asunción. Depois de alguns esforços na Missão de Santiago. eles eram abandonados pelos índios sempre que lhes fosse possível. 8 217 . de forma a se evadir dos abusos e trabalhos forçados. tendo sido recomendado pelo Terceiro Concílio Limense (1583) e assumido pelos Sínodos de Asunción de 1601 e 1603. pois os índios ali reduzidos ficavam ao alcance dos colonos espanhois interessados em submetê-los ao trabalho servil. Um dos traços distintivos deste “pueblo” foi a proibição de que nele residissem espanhois. em um dos temas mais polêmicos das reduções com os guaranis. alguma experiência na “missão por redução”. os “pueblos” fundados sob sua administração foram efêmeros. não há como negar que foram as missões dos jesuítas as mais duradouras e prósperas e. Embora os padrões urbanísticos8 das reduções toledanas tenham tido vida longa. o pueblo seria erigido segundo o modelo de “cuadras”. e no povoado indígena de Huarochirí na Serra. O escopo principal das reduções toledanas estava em concentrar os índios para organizar a distribuição de mão-obra aos espanhois e a coleta do tributo. reduziu-os a diligência dos padres a povoações não pequenas e a vida política e humana. (. o início da missão dos jesuítas neste território ocorre em um momento marcado por graves e constantes rebeliões dos guaranis assolados pela rápida desintegração de suas comunidades.. Em pouco tempo. Por esta mesma época. Outros jesuítas continuaram o trabalho e em 1628 existiam aí 13 reduções abrigando um número em torno de 100. que hoje separa os estados de São Paulo e Paraná. eles fundaram as Missões de San Ignacio Mini e Loreto. Nestas circunstâncias. Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai. passariam a ser. De fato. definiu na sua Conquista Espiritual (1639). Porto Alegre: Martins Livreiro. o Itatim e o Tape. escrevendo que os índios que viviam “à sua antiga usança em selvas.. território dessas missões. também. Antonio Ruiz. 218 . Uruguai e Tape. atual RS. Paraná. se dirigiu para a margem norte do Rio Paraná onde fundou San Ignacio Guasu. que já estavam instalados no Peru. Marcial de Lorenzana. o governador Hernandarias propôs aos jesuítas. 34.) separados uns dos outros. pelo declínio demográfico e pelas pressões para que atendessem ao trabalho “encomendado”..poderia contribuir para uma redução dos conflitos estabelecidos entre indígenas e espanhois em sua jurisdição. o que para os jesuítas significava a “missão por redução”. dando início a esta que seria a mais famosa das missões jesuíticas na América do Sul. um dos mais atuantes jesuítas desta Província. O Padre Antonio Ruiz de Montoya. Nas margens do rio Paranapanema. p.000 índios guaranis..”9. Ele é também o autor da mais citada explicação sobre o que deveriam ser estes pueblos de índios cuja história começava então a ser escrita: “chamamos reduções aos povos ou povoados de índios que foram reduzidos por nosso esforço 9 MONTOYA. o que veio a ocorrer em 1609 quando os padres Jose Cataldini e Simon Masseta se dirigirem para a região do Guairá. que enviassem alguns dos seus às regiões conflitadas. 1985. deixando o cargo de reitor do Colégio de Asunción e acompanhado do Padre Francisco de San Martín. Além disto. por exemplo. os religiosos também sustentaram que isto teria que ocorrer em uma esfera separada. e o número de índios que poderia ser “ganho para o Evangelho” era também maior do que esta prática itinerante permitia atender. Para que isto fosse possível. 10 11 219 . A própria Monarquia pensava para as Índias uma situação que articulasse relações complementares para estas duas esferas separadas da sociedade: as Repúblicas de Espanhois e de Índios. cit. Op.. A concentração dos índios em povoados maiores e que estariam diretamente sob a administração dos padres seria uma resposta a estas dificuldades. os jesuítas entendiam que a evangelização deveria ser precedida pela “civilização dos índios.10 A definição do missionário sugere algumas das diretrizes que orientariam o trabalho dos padres nesta forma especial de missão. na medida em que eles entendiam que o seu trabalho em favor da catequese dos índios era prejudicado pelo interesse dos colonos sobre sua mão-de-obra. p.50. Esta situação também foi assinalada pelo já referido Antonio Ruiz de Montoya: “Esta é a peste que segue o Evangelho”. “pois.” Isto é. os primeiros trabalhos de catequese jesuítica com os guaranis haviam adotado a forma de “missões volantes”. Tal percepção construiu-se pela experiência. haveria que ser promover a sua integração a um modelo de vida política e às regras sociais e morais adequadas ao ocidente europeu. Todavia. daquela dos brancos espanhois11. Ao contrário dos batismos em massa conduzidos.ou indústria a povoações grandes e transformados de gente rústica em cristãos civilizados com a contínua pregação do evangelho”. que consistiam em visitas às aldeias para a pregação. atrás da liberdade que os índios MONTOYA. Antonio Ruiz. o território imenso. pelos franciscanos no México do século anterior ‒ em boa parte guiados por um sentido de “urgência” diante as vastas populações pagãs a serem atendidas ‒. eles eram poucos. distribuição do batismo e demais sacramentos e cujos resultados eram insatisfatórios. havendo a necessidade de um outro tipo de intervenção que fosse mais sistemática. como já esclareci. ainda que complementar. escreveu ele. eles tinham que ser “reduzidos a povos”. Antes disto. 1985. fomentaram desconformidade por parte dos segmentos interessados no trabalho servil indígena. p.. Cuyo. -se establece el pago de una tasa anual de cinco pesos que podían ser pagados en productos de tierra o. 14 MONTOYA. Dissertação de Mestrado. Tendo estado no povoado de Maracaju.) . o padre Montoya denunciou os graves danos causados às comunidades que eram destinadas para a faina nos ervais. -se reglamenta la formación de pueblos indígenas (. atendendo à determinação de Felipe II para que ele inspecionasse as regiões da jurisdição de Charcas e produzisse um informe sobre o tratamento dado aos indígenas.. redigiu as “Ordenanzas” que levam seu nome. 2001. . 12 13 220 . p. para serem “devorados naqueles bosques pelos tigres”14.) el indio tendría libertad de elegir patrón. Maria Izabel. Antonio Ruiz. 27).) [e] la mita.alcançam pelo batismo. outros “despencavam com o peso por horríveis barrancos” para serem descobertos “lançando o fel pela boca”. 1985. em 1611.”. Op. Valendo-se da própria legislação espanhola para as Índias13. cit. p. p. cit. (. 41.. mas ainda de proteção contra os maus tratos dos encomendeiros.. 39. -se establece que no podían ser trasladados a mas de una legua de distancia de su residencia habitual. ele testemunhou que o “trabalho naquela erva tem consumido a muitos milhares de índios”.. Na cidade de Asunción. As tremendas dificuldades pelas quais passavam as comunidades guaranis foram um poderoso auxílio do esforço dos padres no MONTOYA. Especialmente as Ordenanças do Ouvidor Francisco de Alfaro que..12 Realmente.. aprovadas com algumas modificações.. que já não é uma invenção diabólica. 59)..se reitera la supresión del trabajo servil de los indios. apoiaram denúncias contra os encomendeiros.declara nula toda compraventa de indios. Op. pero no podía comprometerse a servir al mismo más de un año. UNISINOS. con treinta días de trabajo. Antonio Ruiz. percorreu as áreas de Tucumán. 1985. Montoya: Testemunha de seu tempo. Programa de Pós-Graduação em História.. concebiam as reduções não só como meio de civilização e controle dos indígenas..” (ARTIGAS DE REBÉS. Alfaro. (. os jesuítas chegados ao Paraguai assumiram uma posição abertamente contrária à encomenda e se converteram em seus severos oponentes. . de acordo com Rouillon-Arróspide (1987. en su defecto. mas humana . o que lhes valeu a hostilidade dos povoadores espanhois que eram os beneficiários do trabalho servil indígena. logo entra a servidão e o cativeiro. “En ellas el oidor Alfaro cumplió toda la legislación referida a la situación del indio: .. cujos corpos passavam a formar “matos de ossários bem grandes”. Na já mencionada Conquista Espiritual. Muitos morriam “recostados nas suas cargas”. Outros ainda arriscavam-se em busca de comida. Buenos Aires e Paraguai. As determinações. que esta tem sido atualmente uma das mais fecundas e atuais linhas de investigação sobre este tema. Elas se constituíram. em meio a circunstâncias singulares e em uma situação de fronteira. É o que se pode observar na dispensa do trabalho encomendado para os índios reduzidos. para os “pueblos” que se iam estabelecendo. por exemplo16. conhecidas sob o nome de “Trinta Povos das Missões”. e envolveram uma simbiose entre a legislação espanhola. entre outros aspectos. Tanto as Cartas Ânuas em que os Superiores informam as autoridades do andamento dos trabalhos conduzidos na Província. como outros textos produzidos pelos jesuítas. chamavam a atenção sobre as intensas negociações estabelecidas com os “principais” guaranis para que estes aceitassem seguir. o que lhes permitiu vantagens políticas e econômicas impensáveis em outra situação. por seu comprometimento com a “ação no mundo”. portanto. O que não quer dizer que isso fosse simples15. vai situar-se em uma área estratégica para a defesa das fronteiras dos territórios castelhanos. 16 A situação acabou sendo o argumento para a solicitação (que foi atendida) de que fossem formadas milícias armadas nas reduções de guaranis para a sua proteção. no controle da presença de não índios nas aldeias e na autorização para organizar milícias que fizessem a sua defesa. sentido esse que está intimamente associado à expansão colonial europeia a partir 15 Foge ao escopo da proposta deste trabalho analisar as perspectivas indígenas sobre o tema tratado.convencimento de que os grupos aceitassem abandonar suas aldeias para viverem nas missões. O conjunto destas reduções. Sobre um “modo de proceder” e modos de proceder A Ordem iniciada por Inácio de Loyola no século XVI singularizou-se. Este elemento contribuiu de maneira substancial para a constituição de uma das principais características dos jesuítas: o compromisso com a missionação. 221 . junto com suas “parcialidades”. contudo. Foram eles os primeiros a definirem a “missio” como a propagação da fé cristã entre não cristãos. Não posso deixar de apontar. as normas e instruções da Ordem e a cultura guarani. Seu fundador acreditava que as práticas monásticas de santificação poderiam ser substituídas por outras. a partir de exercícios individuais de oração. 17 18 222 . Ademais. Através das cartas os jesuítas comunicavam aos seus as notícias e fatos referentes à vida da Companhia e de suas Missões. as Constituições e os Exercícios Espirituais constituem-se nos textos fundadores da Companhia de Jesus. quando Inácio de Loyola faleceu. isto é. contudo. Ela prescrevia as obrigações dos jesuítas para a propagação da fé. Portanto. a meditação e a oração. O noster modus procedendi na formulação de Santo Inácio. as cartas eram uma forma de trocar experiências e informar aos superiores sobre as atividades desenvolvidas. Diz-se que ele sentiu o impulso para escrever os Exercícios após seu retiro em Manresa. também ela regulamentada pelos maiores da Companhia. Em outras palavras. os jesuítas foram responsáveis por importantes mediações com diversas culturas. 19 Não podemos deixar de referir a enorme importância da prática epistolar. desobrigando-os da vida conventual. porém a originalidade da formulação de Loyola explica-se pela estrutura pedagógica adotada a fim de conduzir a uma efetiva união do devoto com Deus tendo como meios o exame da consciência. garantindo um esteio comum. a dispersão. poderia ameaçar a união daqueles que a compunham. em tudo o que pudesse ser útil e interessar aos companheiros onde quer que estivessem. mas não os comprometia a recitar ou cantar as horas litúrgicas em conjunto. do ensino e dos exercícios espirituais. As Constituições começaram a ser escritas em 1547 e não deixaram de sofrer correções até 1556. em 1548. A elaboração das Constituições onde estavam os princípios gerais para que a Companhia de Jesus conquistasse suas metas. ocorrido em torno de 1521. Quando surgiu a primeira edição dos Exercícios Espirituais. como meio para defender esta unidade. que se constituiu em um dos elementos de força da Companhia. Daí a importância de um “modo de proceder”17 que conferisse identidade aos seus membros e que se constitui a partir de um conjunto de regras amparadas na Fórmula do Instituto. já existia um número considerável de manuscritos de outros autores cujo título sugeria a ideia de exercícios religiosos.da modernidade. como promotores da fé cristã nos “novos mundos”. a unidade jesuíta necessariamente tinha que comportar a grande diversidade de seu campo missionário em partes distintas do mundo. sem obstaculizar a devida adequação às condições particulares da missão19. o que se faria através das obras de caridade. Já os Exercícios Espirituais estão associados à própria experiência mística vivida por Inácio de Loyola. Desta forma. A Fórmula do Instituto significa para os jesuítas o que a Regra representa para as outras Ordens religiosas. contou também com o trabalho de João Alfonso Polanco. a sua presença em várias partes do mundo. entender que este “modo de proceder” articulava dialeticamente “obediência e prudência”. Devemos. nas Constituições e nos Exercícios Espirituais18. situação que não poderia deixar de comportar algum risco quanto à sua própria unidade e identidade. A Fórmula do Instituto. Torres Bollo inicia suas recomendações indicando a necessidade dos padres cuidarem da sua edificação espiritual frente aos desafios que enfrentariam. dos Concílios Limenhos. e a adaptabilidade das normas às realidades locais.Foi o delicado equilíbrio estabelecido entre a obediência. de outro. de um lado. não se pode mais considerar que a resposta dos guaranis à vida em redução seja o resultado de uma ingênua impressionabilidade e temor diante do aparato ritual que lhes era apresentado. e sim como o resultado da relação que se estabelece entre ordenamento (das Leis de Índias. deve-se estar atento às marcas impressas pelos guaranis àquilo em que se constituíram as reduções. bem como em abraçar e acometer os perigos sem faltar 20 Documentos para la Historia Argentina. p. diante do tanto que havia que laborar. A análise destes documentos ser o ponto de partida de minha tentativa de compreender as estratégias jesuíticas na “missão por redução”. Lit Anuae 1610 223 . que garantiu boa parte do êxito dos inacianos como missionários. das Constituições da Ordem e das Instruções dos Superiores) e experiência. muito poucos. Da mesma maneira. Ou da sua docilidade e obediência à rígida disciplina imposta pelos padres. Tomo XIX. que velem uns pelos outros e que não cometam abusos nem coloquem suas vidas em risco: “guardarão a devida prudência nos jejuns vigílias e penitências. 43. É por isso que os especialistas na matéria não mais vêem as reduções do Paraguai como a concretização de formulações utópicas. Mas ele também está atento ao fato de que os jesuítas eram poucos. Para “hacer una copiosa reducción en medio de toda aquella gentilidad”20 Os religiosos se dirigiram à missão dos guaranis orientados por duas “Instruções” elaboradas por seu Provincial em 1609 e 1610. dos Sínodos de Asunción. Daí sua advertência para que cuidem também de sua saúde física. a hierarquia e a unidade de ação. Embora não seja este o momento de aprofundar esta questão. haja vista os objetivos da discussão proposta. não alagadiças nem muito quentes. de forma a não expandir demasiadamente o número de povoados. 23 In: RABUSKE. fundamentalmente. FRITZ. Quito: Studio 21. A. São Leopoldo. mas sim permanecer naqueles já edificados. 14. Introducción de Hernán Rodrigues Castelo. e que se marque presença “nas Doutrinas que tenham.contudo em que for necessário na confiança que devem ter na bondade divina e paternal da Providência”21. Op. Estudos Leopoldenses. A. que reclamavam do afastamento dos padres diante da importância que davam à sua proteção frente às tropas de resgate dos luso-brasileiros. reside uma das características distintivas da aproximação dos jesuítas para com os índios. Diário. 1978. Ver sobre isso o “Diário” do Pe. a qual será a situação comumente encontrada nos povoados ao longo de sua existência. Torres Bollo esclarece que os pueblos não tivessem “anexos”. 23. ano XIII. A Carta-Magna das redulções do Paraguai. os quais os responsáveis tinham que visitar periodicamente. p. Adverte que os In: RABUSKE. Muitos destes acompanhantes eram adolescentes. procurando suave e fortemente que se reduzam os diversos agrupamentos a um só povoado”22. para neles afirmar a fé e “cultivá-la com vagar”23. complementando esta determinação. daquilo que ocorreu nas Missões de Maynas em que foram vários os “anexos” às Missões. 1977. Em suas “entradas”. 21 224 . cit. Aconselha que o local a ser assentado o povoado fosse escolhido com cuidado de forma que ele tivesse adequadas águas e pescarias. 1978. portanto. Samuel Fritz. educados pelos sacerdotes e fiéis a eles. missionário na Amazônia. Samuel. v. isentas de mosquitos e outros incômodos desta natureza. n. Era preciso “moderar o fervor e o zelo”. Os deslocamentos que esta prática requeria motivavam o descontentamento dos índios. Na busca da modulação entre força e suavidade desta forma sugerida.. Diferentemente. servem de mediadores entre os padres e os nativos que serão abordados. 31. os padres se fazem acompanhar de escoltas de guaranis já reduzidos que conduzem as embarcações e os defendem do ataque de animais e de grupos hostis mas que. p. 22 Idem. 47. Que fossem sempre dois os jesuítas em atendimento a cada uma das missões é outra das recomendações feitas. que as terras fossem boas. Na instrução do ano seguinte. Atrás do templo se localizavam o pomar e a horta dos padres. A redução pressupunha uma nova reordenação espacial e social da cultura guarani. A igreja. Recomenda ainda que os povoados não sejam muito próximos uns dos outros. respeitando-se sua experiência com o ambiente. o cemitério e o cotiguaçu. galinhas e pombas. A. Também era preciso que fossem ensinados a “criar porcos. Este pudor deveria ser mantido mesmo quando os jesuítas estivessem fora da casa e do “pueblo”. isto é. resgates e policiamento”26. Op. sendo que esta última seria vedada para mulheres e quaisquer hóspedes. Ainda que uma cédula real datada de 3 de julho de 1596 exigisse Idem. Também ficavam aí a escola. junto à praça. As duas instruções determinaram que os povoados seguissem certos princípios urbanos e que seu traçado tivesse “o modelo dos do Peru”. os armazéns e oficinas. uma residência a cada um. O plano geral dos povoados seguia o das cidades espanholas. p. a casa que servia de asilo para as mulheres sós. construídas em pedra ou adobe e cobertas de telhas para dificultar a propagação de incêndios tal como ocorria quando os tetos eram de palha. exceto religiosos. semear algodoais. plantar árvores frutíferas e todos os legumes. “para que estejam [os caciques] longes de outros com quem se acharem em guerra”24. 25. evitando se afastarem dos companheiros e andarem sozinhos. Inicialmente as casas que deveriam acomodar as novas famílias nucleares não eram mais que cabanas. 1978. cit. para que não se lhes falte o sustento e o vestido”. 24 25 225 . e que cada casa tenha sua hortazinha”25. “dando uma quadra a cada índio. a tecer. 26 Idem. In: RABUSKE. com suas ruas e quadras.. “A seu tempo” os guaranis deveriam ser ensinados a fazer “suas chácaras. como as viúvas e órfãs. depois foram sendo edificadas com aparatos mais sólidos.“naturais” sejam ouvidos quanto a isso. cujo centro era uma praça de onde saíam ruas retas. era ladeada pela residência dos sacerdotes. bem como que façam açudes de pescado e se apliquem em granjas. Desta maneira. Refirome aqui à opção por um modelo que não era o da “tábula rasa”. tivessem sobre elas um sólido domínio. para poderem melhor comunicar-se com os índios. exercitando-se nela sempre que fosse possível. são orientados a aprender a língua nativa. inclusive entre os não índios. e sim da valorização de alguns elementos rituais da religião tradicional dos índios. a tirar-lhes os pecados públicos e pô-los sob policiamento. diz respeito a uma outra questão importante das estratégias usadas pelos jesuítas. Nas duas oportunidades foi afirmada a conveniência de que os padres fizessem a catequese nas línguas aborígines e que. Rubén. ensinar para as crianças em espanhol. O primeiro (1551-1552) teve como uma de suas principais metas estabelecer normas para uniformizar a doutrinação dos índios e estabelecer os principais cuidados a serem tomados nesta matéria. seguindo o que foi estabelecido pelo Primeiro e Segundo Concílios Limenhos27. até tê-los ganho O I e o II Concílios Limenses foram convocados pelo bispo Jerônimo de Loaysa. o guarani era falado. de um modo facilmente inteligível para todos e ao mesmo tempo. terão que ir muito pouco a pouco. Concilios Limenses (1551-1772). Sobre isso ver: VARGAS UGARTE.o uso exclusivo do castelhano na Província do Rio da Prata. Uma importante indicação feita aos missionários foi a de que o trabalho de conversão e civilização fosse conduzido de forma a articular suavidade no trato com firmeza de propósito e conduta: “No tocante a doutrinar os índios. 3 v. bem como de signos que lhes eram familiares. os padres optaram por uma solução intermediária: comunicar as coisas essenciais da fé na língua materna dos catecúmos. O temor das autoridades de que os idiomas nativos não explicassem com propriedade os mistérios da fé cristã. O segundo (1567) se justificou pela necessidade de adaptar as decisões de Trento (1545-1563) à realidade do Novo Mundo. 27 226 . A adoção deste “método” sempre que possível. mas também etnológica e histórica sobre as regiões em que evangelizaram. para tanto. enfrentados com as necessidades práticas em uma região em que. Lima: 1951-1954. os jesuítas. determinou a necessidade de os jesuítas buscarem compreender os idiomas e a cultura guarani e resultou na produção de uma copiosa literatura linguística. as relíquias. A valorização de práticas rituais foi outra recomendação importante e elas faziam parte importante do dia a dia das aldeias. os quais deveriam ser efetuados solenemente. os quais mereceram elogios de quem teve a oportunidade de assisti-los. as missas e os sepultamentos.1978. cit. Sabemos que as oficinas das reduções fabricavam excelentes instrumentos musicais e que todas tinham seus coros. As Instruções do Provincial determinaram In: RABUSKE. O tema da poligamia era igualmente melindroso e afetava especialmente os caciques. as procissões e os ofícios religiosos solenes estavam entre as ocasiões em que os corais podiam exercer seu talento. estavam proibidas. 98. O mesmo valia para certos momentos especiais. In: RABUSKE. a extrema-unção. os crucifixos e a água benta. Sabemos. Os “feiticeiros” eram tidos por perigosos e deveriam ser desterrados. A.para si”28. p.. p. Os meninos deveriam receber atenção particular. 1965. 33. contudo. A recomendação acima referida sobre o cuidado em agir com cautela e suavidade não implicava em descuido quanto aos “vícios” públicos ou privados. Estimulou-se ainda a reverência para com as coisas sagradas como as imagens. como o do batismo. As festas. Este cuidado incluía inclusive a recomendação de que “por nossas próprias mãos. Mereceram especial atenção neste aspecto as práticas da poligamia.. A. cit. da feitiçaria e das bebedeiras. o qual. seria feito “fraco” para não embebedar30. Op. segundo o testemunho dos padres. Op. ocasião dos piores pecados. p. 30 FURLONG. enquanto as bebedeiras. aprendendo a doutrina e tendo entre eles alguns escolhidos para serem instruídos em cantos e danças sacras. 28 29 227 . que em ocasiões especiais os guaranis estavam autorizados a elaborar e consumir o seu “vinho”. Fiscais escolhidos entre os guaranis que davam melhores mostras de conversão deveriam percorrer o povoado à noite a fim de velar pela não ocorrência deste tipo de delito. não se castigue a ninguém”29. 25. o que parece estar intimamente associado ao gosto e à especial sensibilidade que tinham os guaranis para com a música.1978. 33. se isto fosse absolutamente necessário.1978. Isto é. 27. Foram honrados com o título de Don e mantiveram prerrogativas importantes como a isenção de certos trabalhos ou impostos e a de organizar o trabalho coletivo de suas parentelas. Op. abandonando os povoados por não aceitá-la. ao mesmo tempo em que eram preservadas algumas das características das lideranças guaranis tradicionais. A. p. por exemplo. Estes “tubichas” foram respeitados e valorizados. Na administração cotidiana eles perderam seu papel.. Muito significativa era a recomendação de que os padres não fossem “peso ou carga” para seus catecúmenos. Seus filhos eram batizados primeiro que as demais crianças e educados na escola. 31 32 In: RABUSKE. mantendo fora do campo de vista dos sacerdotes suas tradicionais relações poligâmicas. tais como os corregedores e os alcaides. que pagassem pelo que tivessem recebido31. In: RABUSKE. Insistia o documento para que os jesuítas fossem responsáveis pelo seu próprio sustento. Que providenciassem esmolas para os pobres e não aceitassem pagamento pelas missas rezadas ou pela administração dos sacramentos”32. ou mesmo aceitando-a apenas formalmente. quando eles detinham o mando militar. castigados em público] e dentre eles eram escolhidas as autoridades de cada “pueblo”.que fosse ratificado o matrimônio tido com a primeira esposa. cit. Op. mas sua autoridade era preservada quanto à organização das milícias. Eram tratados com grande consideração [não sendo. acabou se aceitando que eles escolhessem uma entre as suas esposas para com ela constituir famílias aos moldes ocidentais. cit. esta importância crescia durante as empresas militares. não se lhes pedissem nada e. diante da inconformidade de muitos “principais”. que não fossem “molestos” aos índios. Uma vez que eram seus capitães. mas esta regra foi relativizada e. plantando sua chácara e horta. p. 228 . Sabemos também que não poucos caciques rebelaram-se contra esta norma.1978. A. criando galinhas e porcos.. mesclava-se a elas o papel de funcionários da administração colonial hispânica. através das mostras de generosidade. tesouras. 33 É preciso esclarecer que. Enquanto os “espanhois” se aproximavam dos índios para capturar braços de trabalho. Emulando comportamentos tradicionais e estimados pelos guaranis. eles deveriam “mostrar sempre gosto em dar as coisas que consigo levarem”. na medida em que pretendiam dissociar os padres e suas práticas que deveriam ser afetuosas e generosas. facões. Além disso. de doenças e mortes) como elementos de advertência e edificação.Estas recomendações são particularmente importantes. entre os quais as desejadas ferramentas e utensílios de metal (facas. e a plenitude do Paraíso na outra33. Ao lado dos presentes. justamente a autoridade a qual deveriam suplantar e desterrar. também aí ocupando um espaço que antes era dos xamãs. também atribuíam valor à atitude dos padres e significados próprios aos presentes recebidos. Já os guaranis. Embora as Instruções esclareçam que os presentes serviriam de “prêmio” aos que fossem de mais ajuda ou aos melhores catecúmenos. os jesuítas mostravam-se capazes de conduzir eloquentes discursos. em que apresentavam aos índios promessas de proteção contra espanhois e portugueses nesta vida. entre outros presentes. apesar disso. a prática conferia prestígio aos religiosos que atendiam. por exemplo usando casos exemplares (de prêmio e cura ou. como também colocando em ação uma dinâmica pela qual interpretavam a cultura nativa.). contrariamente... assim como aquelas que lhes fossem depois enviadas. os padres também se mostravam aptos a dispensar cuidados médicos. um dos valores que os guaranis creditavam às suas chefias. funções sociais que antes cabiam aos “feiticeiros”. concedendo atenção e buscando a cura dos doentes. Ao doar esses objetos. os misisonários estavam não só praticando a caridade necessária para um cristão. nem todas as parcialidades guaranis aceitaram bem 229 . daquelas dos espanhois. Sempre que possível. agulhas. os jesuítas entravam nas aldeias levando presentes com que honrar aos caciques. anzois. os padres se valiam da esfera do sobrenatural. a quem os guaranis reconheciam como inimigos. ao receberem os objetos que lhes eram oferecidos. Alguns caciques rejeitaram francamente sua presença e reagiam contra ela.Fundamentalmente. Porto Alegre: Martins Livreiro. quando quiserem ou facilmente a proposição dos padres. Alguns deles chegavam a se autoproclamar como Deus ou papas e a parodiar as cerimônias cristãs. hablando entre dientes. De maneira nenhuma cooperem os Nossos a que se tirem índios das Reduções para trabalhos. sus vasallos le veneraban como si fuera sacerdote (Montoya. Alguns deles deixaram inscritos seus nomes na documentação. se for conveniente. muy pintado. “ … ponía sobre la mesa algunas telas y encima de éstas una torta de yuca y un vaso. mas não consintam que se demorem muitos dias. por fin. aparece a orientação de que os padres deveriam combinar “energia e prudência” para impedir os espanhois de entrarem nos povoados de forma a retirar índios para o trabalho. já nos documentos redigidos pelo primeiro Provincial do Paraguai. Eles acreditaram que eram os trabalhos forçados que afastavam os guaranis da sociedade cristã da qual se pretendia que passassem a ser membros. hacía muchas ceremonias. como é o caso de Potivara. 1985. uma vez que eles viam a estas duas faces como partes da mesma moeda. de modo que os índios tivessem conhecimento da postura assumida pelos padres. Conquista Espiritual. contudo. p. Juan Cuara ou Miguel de Atiguaje. con vino de maíz y. 230 . Assim. comía y bebía todo. Muitos indígenas enfrentaram seus “protetores” e incentivaram seus “vassalos” a fugir das reduções e retornar aos costumes tradicionais. Así. A pública condenação ao tratamento dado pelos colonos espanhois aos guaranis submetidos pela encomienda foi assim anunciada por Diego de Torres Bollo no momento em que a “missão por redução” ensaiava seus primeiros passos. 57). por exemplo. os padres da Companhia compreenderam que sua ascendência sobre os guaranis e o sucesso de seu ministério eram indissociáveis da liberação dos índios quanto ao serviço pessoal. mostraba la torta y el vino a la manera de los sacerdotes y. A notícia deste tipo de procedimento deveria percorrer toda a comarca. Antes. Antonio Ruiz de. nem que causem danos ou dêem exemplos de má vida. não deixou dúvidas sobre qual a posição que defenderiam dali em diante: Vindos eles às nossas Reduções. “defendendo a estes como verdadeiros pais e protetores”. talvez buscando tirar vantagem dos novos símbolos ou apropriar-se da força que eles pareciam deter: Miguel de Atiguaje. Embora ele alertasse aí que os religiosos fossem prudentes em confrontar os “espanhois”. recebam-nos com amor e convidem-nos. 1978. das autoridades temporais e do clero secular foi intensa. Entretanto. muitos índios iam e vinham. estabeleceu-se em torno delas zonas em que ficava vedada a posse de campos e gado a estranhos. De um lado ela permitiu que eles ganhassem estabilidade e prosperidade econômica. também. que era a exploração do trabalho dos índios. 34 35 231 .tirá-los. que alimentou fortes ressentimentos por parte dos colonos para com os padres e os índios. escrevam ao Padre Reitor desta casa para que ele avise ao Tenente-General e remedeie o mal34. peçam-lhes a ordem judicial e. das quais os serviços públicos prestados às autoridades coloniais foi a mais expressiva. embora constante e insistentemente os jesuítas tenham argumentado que suas ações ocorriam na esfera legal. os índios assumissem-nos como seus. 33.35 Esta posição não significou. Além disto. criassem laços e identificação com as comunidades de que participavam. a posição assinalada selou. a oposição de que foram alvo por parte dos colonos. p. Apesar de In: RABUSKE A. entretanto. circulando em meio à sociedade dos brancos e regressando para os pueblos. um radical e impraticável afastamento dos guaranis da sociedade mais ampla em cujo meio as reduções existiram. e que nem ao menos pudessem nelas pernoitar por mais de uma noite. Em virtude disso. ao proibir expressamente que não indígenas residissem nas reduções. não a tendo ou detendo eles muito tempo os índios. uma vez que as reduções negavam um dos princípios fundamentais do colonialismo espanhol. Aliás. Ao contrário.. foram várias as formas de inserção nelas. assim como outros tantos se evadiam permanentemente deles. como já se pensou. uma contradição insuportável. A postura politicamente assumida de oposição ao trabalho servil de alguma forma definiu a história futura dos povoados. Por exemplo. a começar pelas Leis de Índias. uma vez que o fruto do trabalho dos índios permanecia em boa medida neles próprios. Também possibilitou que. Op cit. desta forma. Na sua raiz estava a compreensão de que as suas reduções se erigiam num marco diferenciado daquele dos demais “pueblos de índios” em sua composição e administração. ou sobre a “República Guarani”. inclusive através de cartas dirigidas ao Rei. seria uma outra história. é fato que os jesuítas nunca se opuseram a outros elementos da ordem colonial. seus habitantes manifestaram desacordo com a medida. Quando o Tratado de Limites de 1750 determinou a entrega dos sete povoados que ficavam no território do atual RS aos portugueses. como Patronato ou a vassalagem ao Rei. Nelas podemos vislumbrar alguns dos elementos que podem ajudar a acessar a sua compreensão do que eram as reduções e que valoração davam a elas.muito já se haver especulado sobre o “Reino Jesuítico”. contudo. 232 . Isto. as gravuras avulsas podiam ser mais facilmente adquiridas e eram itens imprescindíveis às oficinas dos ofícios artísticos. das técnicas e métodos construtivos e da estética. Há consenso de que a demanda pelos Tratados Arquitetônicos ilustrados com gravuras à buril e as gravuras avulsas da mesma técnica se justificava pela necessidade de veiculação dos conhecimentos artísticos. que oferecia as vantagens da representação dos traços mais espessos aos mais finos. Embora tenha restado pouca documentação no Brasil alusiva à existência dos tratados e de gravuras nos pertences dos mestres entalhadores e pintores e às suas presenças nos acervos das dilapidadas e dispersas bibliotecas conventuais e públicas. não há dúvidas da 233 . a gravura nas suas diversas técnicas. Enquanto os Tratados Arquitetônicos eram mais caros.A circulação dos modelos retabilísticos entre Europa e Bahia: o retábulo-mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos de Salvador Luiz Alberto Ribeiro Freire Universidade Federal da Bahia Os estudos da arte ocidental do século XVI ao século XIX requerem a análise da difusão das soluções formais: estruturais e ornamentais pelo único meio de comunicação da imagem vigente até o aperfeiçoamento da fotografia. do sombreamento e permitia tiragens maiores. que viam nelas a forma mais acessível de ter na parede uma estampa do santo de devoção ou mesmo de uma paisagem ou outro motivo. pintores e ornamentistas. das sutilezas. As gravuras avulsas em particular veiculavam os novos gostos artísticos e garantiam aos escultores e pintores a representação religiosamente “correta” dos ícones santos e das passagens de suas vidas terrenas. de acesso mais limitado e dirigidos aos engenheiros. arquitetos. dos demais ofícios artesanais e dos particulares em geral. especialmente a gravura em metal. pois as relações diretas e indiretas têm confirmado o fluxo dessas informações. nº 64(76). tanto no espaço europeu. Marie-Thérèse. gravuras e séries delas com cenas da vida dos santos.1973. fachadas e plantas de edifícios e textos clássicos. André Soares. a exemplo da identificação das fontes iconográficas originais e gravadas e da verificação do grau de relacionamento delas com as concepções locais. Ao tratarmos os conjuntos ornamentais. Do mesmo modo há todo um campo de exploração acerca da imitação e da recriação de elementos ornamentais e de composições inteiras. No Brasil inúmeras pesquisas têm relacionado ilustrações de tratados. Terese Mandroux França1 provou através da análise das gravuras avulsas o papel que elas exerceram como meio de comunicação de massa na propagação do estilo rococó na arte portuguesa. da gravura que a divulgou e das obras decorrentes dessa divulgação.existência deles. figuras alegóricas. Revista cultural da Câmara Municipal de Braga. imaginária sacra católica. Information artistique et “mass-media” au XVIIIe. sem falar na importância do cotejamento iconográfico da obra originalmente realizada pelo artista europeu. Existe portanto várias possibilidades de exploração científica do cotejamento dos ícones gravados e das obras realizadas no Brasil. v. verificamos haver dois níveis de influência dos tratados arquitetônicos e das gravuras avulsas: um que poderíamos categorizar como decorrente da “imitação do modelo”. registro de santos. e o outro baseado na “sugestão ou inspiração”. MANDROUX-FRANÇA. séc. In Bracara Augusta – Actas do Congresso A Arte em Portugal. mas transformado minimamente. se mais íntimas ou se sugeridas. fruto da reforma ocorrida no século XIX no estado brasileiro da Bahia. XVIII. Siècle: La difusión de l’ornement grave rococó au Portugal. XXVII. quanto no espaço americano. entendendo sempre essa imitação como algo mais literal. II tomo. africano e oriental. É possível também verificarmos a frequência do uso das regras de proporção de determinado tratadista na arte local e se houve contribuições pessoais dos artistas na reformulação ou mesmo na formulação dessas regras. 1 234 . na mesma quadra da Igreja dos Jesuítas (atual Catedral Basílica) e da igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão. 1.No último caso os artistas se valiam da tradição formal para continuarem a conceber suas obras. O outro é o retábulo-mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos. mas que estilisticamente se adequa às realizações do último quartel do século XVIII. O frontão curvo com ressaltos nos extremos laterais e no centro. muitas vezes sem relações diretas com um modelo determinado. A talha neoclássica na Bahia. Entendemos por avanço e progresso formal a capacidade de os artistas acrescentarem inovações a partir das tradições. demolido juntamente com a catedral em 1933. 35 e 64 do primeiro volume do tratado de Pozzo. 205. localizada no Terreiro de Jesus. 2006. O retábulo-mor da igreja da Irmandade de São Pedro dos Clérigos. 3 FREIRE. Rio de Janeiro: Versal. Luiz Alberto Ribeiro. O de autoria e data documentalmente conhecidos trata-se do retábulo da capela do Santíssimo Sacramento da antiga Sé. p. 2 235 . As primeiras obras baianas são exemplificadas por dois retábulos: um comprovadamente obra do final do século XVIII. Dos retábulos concebidos na Bahia setecentista e oitocentista. ao progresso das soluções formais. que classificamos como “arrematados por frontão curvo com ressaltos”3. que nos revela boa parte de sua estrutura exceto uma pequena parcela do seu arremate. Roma: Typographia Antonii de Rubeis in platea Cerensi. decorre da imitação das figuras 33. ornado com dentículos e figuras femininas deitadas sobre os ressaltos laterais. é apresentado frontalmente com destaque na figura 33 do PUTEI. um dos modelos tem referências diretas das ilustrações do tratado Perspectiva Pictorum e Architetorum do Jesuíta Andrea Pozzo2. 1717. 2 v. v. do qual temos notícia iconográfica de uma fotografia realizada pouco antes da demolição. Andrae. 1792. e o outro datado aproximadamente por Germain Bazin como sendo obra dos fins do século XVIII e princípios do XIX. mas resultantes do conhecimento cumulativo sempre com vistas ao avanço. Perspectiva pictorum et architectorum. O frontão curvo de Pozzo assim como a sua estrutura para baldaquino foram do conhecimento e do gosto de uma oficina de entalhadores. arrematado por vasos chamejantes e mostrado em perspectiva. entre 1676-1678.). MARTIELLI. Giuseppe. 1680. no altar-mor pintado da Igreja de São Francisco Saverio. Andrea Pozzo. que na cidade da Bahia inaugurou esta plástica no retábulomor da igreja de São Pedro dos Clérigos. obra que desconhecemos a data da fatura e autoria do entalhe e douramento. ele é destituído das figuras. de 1706-17074. na figura 35. Esperienze e opere in Piemonte e Ligúria. Mondoví. Veneza. p. Valentino (org. ‘fabbrica quadrata’ esse frontão reaparece no contexto de um baldaquino com oito colunas e figuras. Il.tratado de Pozzo. e no altar-mor da “Franziskanerkirche’. O uso do frontão curvo com ressaltos foi maturado na obra retabular de Andrea Pozzo. em Viena. 255 p. que estão deitadas nos ressaltos das extremidades do frontão curvo. DARDANELLO. 1630-1674. mas na figura 64. no altar de Santo Inácio na igreja do Santo Mártir de Turim. 24-31. Fig. inclusive as femininas. 1996. 4 236 . entre outras experiências. Milano: Electa. 1 – Figura 33 do Tratado de Andrea Pozzo – “Perspectiva Pictorum et Architectorum”. Vittorio de. In: FEO. do qual citamos as principais realizações: Altar-mor da igreja de São João e São Paulo. 63 p. que se opõem às “rocailles tormenté”5. influenciada pelo altar de São João Batista da Igreja de São Roque de Lisboa. Paris: Librairie D’art R. 18 (La grammaire dès styles). 5 237 . Os ornamentos emergem sutilmente dos espaços a eles determinados e refletem a influência de “rocailles” simplificadas ou “moderadas”. Bahia. de várias cores. Fig. Ducher. p. o seu cromatismo imitando pedras semipreciosas. Esse estilo de transição entre o rococó e o neoclássico é identificado na França como sendo o estilo Luis XVI. pela ênfase na arquitetura das peças. que de alguma forma já denuncia o espírito neoclássico. MARTIN. il. 1944. com douramento. Henry (Dir. Além disso.) Le style Louis XV. aproxima-se do padrão da oficina lisboeta de Silvestre de Faria Lobo e da tradição cromática difundida a partir de meados do século dezoito. delgadas e elegantes.Se observarmos a lavra deste altar percebemos haver uma flagrante mistura de barroco e rococó de cariz francês com um nítido acento na estrutura arquitetônica. 2 e 3 – Retábulo-mor da igreja de São Pedro dos Clérigos de Salvador. 19m – 1. arquivolta do arco do camarim e frontão com os elementos decorativos. da base ao capitel. diminuiu-se o volume dos ressaltos do frontão curvo. ou seja.13m e 1. podemos estimar ser esse altar do último quartel do século dezoito. Fica bastante evidente que a altura do retábulo é aproximadamente o dobro da sua profundidade. tomando precisamente as medidas da planta baixa. é de 3. sua largura é de 6. mede precisamente 5. O embasamento composto de oito pilastras.0m. A profundidade do retábulo.03m.29m de altura.22m – 1. essas refletem uma elegância e equilíbrio próprios do rococó e do neoclássico. mede 3. das pilastras. totalizando a medida das colunas até as impostas em 4 metros. mais leve. dos dois primeiros degraus do trono e demais estruturas acessíveis. dispostas em dois níveis e sobrepostas duas sobre duas.Com base nos caracteres acima.18m. tendo as seguintes medidas da altura de cada degrau: 1.30m descontados os 20 centímetros das medidas imprecisas.06m. A medida aproximada das colunas. Todo o entablamento. Os degraus do trono eucarístico diminuem de baixo para cima. Das colunas para cima as dimensões foram aproximadas pelo programa de computação Auto Cad.16m – 1.81m.14m descontados os vinte centímetros. com possível diferença de menos de vinte centímetros. mas o certo é que apresenta uma versão do frontão pozziano menos teatral. sendo as do nível do chão mais retangulares e esguias medindo de altura 1. eliminaram-se os dentículos que contornam os frontões dos modelos de Pozzo. mede precisamente 3. que a relação de proporção entre o embasamento e a sustentação se faz aumentando-se em um metro a 238 . Promovemos o cadastro arquitetônico desse retábulo realizado pelo arquiteto Denilson Borges.25m – 1. Quanto à relação da proporção das partes com o todo do retábulo e à proporção do retábulo em relação ao espaço da capela-mor. embora mantenha os dentes na passagem dos planos e as figuras femininas e exiba quatro esculturas de santos bispos por cima do entablamento.74m e as do nível superior. da mesa do altar para o fundo. 1. Sua altura total é de 10. cuja característica é de depuração ornamental. se considerarmos o neoclássico nas suas origens europeias (França. o altar do Santíssimo da Sé da Bahia foi. O modelo de Andrea Pozzo da figura 64 apresenta outra relação de proporção. um marco inaugural deste estilo na 6 OTT. 1992. reinterpretando-a de maneira radicalmente simplificada. Quando comparamos esta realização com as de Pozzo concluímos que os entalhadores ativos na Bahia não ficavam aquém dos artistas dos maiores centros artísticos europeus. talvez. de ênfase na arquitetura do retábulo. cuja diferença em relação ao penúltimo é de 13 centímetros. constituindose. sendo a proporção do entablamento quase a mesma que a do embasamento. Se esse retábulo ainda apresenta uma estrutura barroca. 2. de exclusão dos motivos simbólicos de origem “pagã” e bicromia. a dimensão da base é duplicada para a sustentação (colunas e impostas). Trata-se do retábulo da capela do Santíssimo Sacramento da antiga Sé. Do estilo neoclássico esse retábulo tem ainda um elevado grau de depuração ornamental e colunas de fustes inteiramente retos e canelados sem qualquer marcação de terço. p. desenhado e entalhado por José Rodrigues Mendes em 1792. à exceção do último degrau. uma versão provavelmente bem mais posterior mantém a estrutura barroca pozziana. Inglaterra e Alemanha). 239 . v. diferenciando-se da proporção das colunas e impostas. sem dúvidas. Itália. na primeira investida retabilística neoclássica na cidade. repetindo a proporção da sustentação no entablamento. mas no sentido que o neoclássico teve na Bahia e em certas regiões portuguesas como Braga. nem tanto o é. ou seja. a proporção da base e do coroamento se equivalem. que diferem da parte superior e inferior em um metro. 15.sustentação. associada a elementos e espírito rococó e neoclássico. Embora Carlos Ott tenha considerado esse retábulo um exemplar de “puro estilo neoclássico”6. Os degraus do trono vão decrescendo de tamanho pela diminuição de 3 centímetros. Os capitéis das colunas e pilastras do retábulo dos Clérigos são da ordem compósita. predominante nos retábulos baianos. são interpretados com volutas simplificadas e destituídas de ornatos diferente do modelo romano presente no Arco de Sétimo Severo ilustrado no Idem. a cruz. as chaves em santor (chave do céu e da terra). O camarim desse retábulo possui uma elaboração extremamente requintada constituída de pilastrinhas estreitas com capitéis compósitos ornadas por reservas de molduras com pinturas imitando pedra na cor vinho e por reservas de molduras mais largas terminadas por motivos rococós e pintadas com marmorizado azulado e amarelado. mas podemos identificar semelhanças na proposta de número 160 de um retábulo rococó concebido por Franz Xavier Haberman (1721-1796). iconografia de los santos de La P a La Z – repertórios. 7 8 240 . O frontão do retábulo-mor dos Clérigos se aproxima em muito do modelo de Pozzo com a presença das figuras femininas deitadas sobre os ressaltos dos extremos da curvatura do frontão. a mitra. não repercutiu com grande intensidade no século dezenove7. o cálice com a hóstia. o evangelho e a espada)8 dispostas em ordem da direita para a esquerda do trono. 1998. t. Barcelona: Ediciones de Serbal. RÉAU. 2. As figuras que se posicionam nas laterais do trono eucarístico não seguem totalmente o formulário de Pozzo. o galo (arrependimento). As semelhanças aí são claras. No retábulo baiano as esculturas representam São Pedro portando uma cruz de três braços. vestes papais e tríplice coroa (triregnum) à direita do trono e São Paulo portando uma espada. que se adequou ao orago da igreja. Acima do cornijamento há friso com medalhões de molduras ovais douradas arrematadas por guirlandas de flores contendo as insígnias de São Pedro (a cruz latina. como observou Ott. com exceção da iconografia. 50-51. Louis. representando aí quatro santos bispos. Iconografía del arte Cristiano. à esquerda. essa segue as proposições de Pozzo. p. marco esse que.cidade de Salvador. v. 5. Quanto à colocação de escultura nas impostas que ladeiam a arquivolta do arco do camarim. como podemos ver existente no Tratado de Andrea Pozzo10. Diferem por serem compostos a DESGODETZ. Os ornatos das pilastras do retábulo de São Pedro dos Clérigos possuem clara inspiração rococó. que delimitam a área ornamentada e destaca as cornijas das pilastras. com degraus de recorte curvilíneo e abaulamentos delgados em “esses” elegantes. como toda peça do gênero. Les edifices antiques de Rome dessinés et mesuré três exactement. seja nas proporções. a pintura de fingimento. 11 D’AVILER. C. atingindo alguns. no qual compara as regras de Palladio com as de Scamozzi. a policromia alterna o dourado nos entalhes. 10 PUTEI. Composto por seis degraus de tamanhos diferentes. marmorizados em tons de vinho e amarelo (ocre) que ocupam o interior nos limites da talha e o fundo branco. Andrea. afunila-se para cima. O trono tem especial conformação. alto grau de didática. com pouca volumetria. sua talha é superficial. sobretudo nas faces fronteiras. M. cit. inclusive na policromia. esclarecendo que o módulo da coluna era tirado de seu diâmetro e deveria esse valor ser repetido 7. 9 ou 10 vezes para dimensionar a altura da coluna conforme a ordem adotada. Esses ornatos ocupam área limitada das faces das pilastras. presente também nos ornatos das faces dos degraus. Esses ornatos possuem simetria e mantém as características dos ornatos das pilastras. seja nos ornatos.. Abundavam nos tratados arquitetônicos quadros comparativos mostrando as regras de representação das ordens arquitetônicas. reservas de finas molduras com os cantos côncavos. I. 1760. os elementos são adelgaçados e filamentosos. A. 8.Tratado de M. V. como D’Avillez11. Op. Paris. A transmissão do conhecimento das regras de proporção das colunas e demais partes das ordens arquitetônicas se constituía na parte mais pedagógica dos tratados. 9 241 . 1779. observando que os dois autores dividiam o módulo em 30 partes. em conformidade com a estética rococó. onde os ornatos possuem elaboração complexa e expressiva. escorrega pela superfície do fundo. Desgodetz9. Cours d’architecture qui comprend les ordres de Vignole… Paris. Cours d’architecture qui comprend les ordres de Vignole… Paris. as colunas em número de quatro eram de fustes retos e canelados. Paris. Acima do entablamento havia uma tabela com mísulas acânticas ladeando a curvatura do arco e sustentando as cornijas do arremate.. não sendo possível através da fotografia existente conhecer a parte superior deste frontão.. Nas demais peças de decoração da capela-mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos verificamos elementos cuja sugestão podemos encontrar em alguns tratados. C. sobretudo na Recolha do arquiteto Neufforge12. 1760. Recueil élémentaire d’architecture qui represente divers exemples d’eglises et chapelles. DE NEUFFORGE. A estrutura do retábulo da capela do Santíssimo da antiga Sé respeitava a parede de fundo e aderia a ela numa concepção parietal. quando se trata das grades guarda-corpos de todas as tribunas e a do coro da igreja. constituídos na sua maioria por composições de folhas de acanto. sem marcação de terço. O entablamento pouco decorado marcava o início da curvatura do arco do camarim. seu embasamento constituía-se de duas ordens de pilares retangulares. contrariando os florões clássicos abundantes nos tratados. des grands batiments. Esse era curvo com ressaltos nas laterais. se anterior aos demais que analisaremos a seguir. Seria o girassol típico da talha portuguesa ou trata-se de uma contribuição local? Esse modelo do retábulo-mor de São Pedro dos Clérigos. A. a começar pelo retábulo do Santíssimo Sacramento da antiga Sé. 1767-68.. Notáveis são os florões do teto da capela-mor. peças entalhadas e douradas com labor de excelência e que representam a flor do girassol com pétalas abertas. Aí o entalhador compôs o gradeado com base nos entrelaces ovais muito semelhantes aos entrelaces circulares clássicos divulgados por Neufforges como faixa decorativa e como proposta para gradil de ferro e por D’Aviler13. 13 D’AVILER. parece ter inspirado outros retábulos em Salvador do final do século XVIII e do século XIX. fechadas e as sementes no centro. seus capitéis eram compósitos.partir de curvas e contracurvas esgarçadas em formato da letra “C” e arrematadas por delicadas flores e folhas de pequeno formato. 12 242 . Antônio de Sousa de Almeida. A cúpula ergue-se por cima do frontão com o formato de um bulbo liso branco. de os laterais serem eliminados e de ter os ângulos laterais mais oblíquos. determinou a cor branca para os fundos. fazendo com que o frontão seja uma secção de oval e não de círculo como no da Sé. v. 243 . Por último.Baseado em fotografias e em pintura de Presciliano Silva concluímos que o dourador do retábulo. 1956. Se o cromatismo deste retábulo repercutirá no século seguinte. um baldaquino ou semi-baldaquino com oito colunas é arrematado por um frontão curvo. sendo esta interpretação bastante próxima dos bulbos que arrematam as torres sineiras desta mesma igreja14. Nele. Sra. Tal bulbo. podendo ser do início do 14 BAZIN. encontra bastantes antecedentes na talha baiana e na arquitetura setecentista. onde o frontão curvo com ressaltos conjuga-se com uma cúpula bulbosa. mas em forma de baldaquinos. ornado com listas douradas nas laterais e festões no topo. 310. O retábulo datado que apresenta esta conjugação é o da Igreja de Nossa Senhora da Saúde e Glória. da Saúde e Glória. o cornijamento base do frontão encurva ligeiramente na altura da curvatura do arco do camarim. que somente aparecerá em dois retábulos oitocentistas. p. O segundo e último caso em que esta conjugação do frontão curvo com a cúpula bulbosa aparece é o do retábulo-mor da Igreja de Santo Antônio Além do Carmo. não mais na versão parietal. reaproximando-se do barroco e dos modelos bracarenses. sendo-o também os capitéis. entalhado por Francisco Hermógenes de Figueiredo entre 1814 e 1818. A diferença deste frontão para o do altar do Santíssimo Sacramento da antiga Sé está no fato de só apresentar ressaltos no centro. que pensamos ser anterior ao retábulomor da Igreja de N. como já vimos. 1. o mesmo não podemos dizer da sua estrutura. partes lisas e baixos relevos. enquanto somente os ornatos finos e delicados eram dourados. marcando mais uma diferença em relação ao da Sé. lançando aí o sistema bicromático que dominou no século dezenove. da Saúde e Glória. fornecendo-lhe portanto o modelo. 4 –Retábulo-mor da igreja de N. Sra. totalizando doze colunas. da Saúde e aproximando-se dele nos ângulos oblíquos. O baldaquino de Santo Antônio Além do Carmo é muito bem edificado. ainda não podemos comprovar. suspeitas que infelizmente. pois inclui volutas e folhas. Finalmente. Seu arremate é feito por um frontão curvo que se aproxima do retábulo do Santíssimo Sacramento da antiga Sé pelos ressaltos nas extremidades e no centro. 244 . diferindo do frontão do altar de N. sendo o baldaquino mais povoado de colunas da cidade. tem dez colunas e duas meias colunas. a cúpula é em bulbo semelhante ao da Saúde. Sra.século dezenove. sendo mais ornamentada. Fig. contudo. o frontão curvo em secção de círculo é interrompido no centro para dar lugar ao monograma da Virgem Maria sustentado por anjos meninos. O uso do frontão curvo na talha baiana cessa nestes três exemplos. dando-se especial atenção às novidades das gravuras mais recentes. Neste. que lembra os biscuits do rococó francês. não demonstrando a mesma vitalidade da família retabilística de “cúpula vazada sobre volutas”. policromia muito diferenciada do modelo do altar do Santíssimo Sacramento da antiga Sé e mais ainda do tipo que lhe é mais próximo. o da igreja da Saúde e provavelmente realizada muitos anos depois do entalhamento desse altar. inquestionável a influência das inúmeras soluções de Andrea Pozzo. A análise comparativa entre as fontes iconográficas presentes nos tratados e nas gravuras avulsas e nas obras realizadas tanto na Europa. a partir das condições locais de realização. Outro baldaquino que faz uso do frontão curvo com uma interpretação bastante distante dos dois analisados e que não parece se ligar à mesma tradição é o do altar-mor da Igreja do Hospício de Nossa Senhora da Piedade. com raras repetições literais dos modelos. Outrora. que certamente era constituído por tratados e gravuras de várias épocas. quanto na Bahia nos conduzem às seguintes conclusões ou suposições: 1 – As propostas dos artistas dos centros europeus de criação eram quase sempre adaptadas pelos artistas locais. sendo. pouco douramento e uma policromia naturalista nas folhas e flores com uma aparência porcelanizada. existia um tambor octogonal que sustentava uma cúpula em meia laranja fechada e ornada com escamas. 2 – Cada oficina artística mantinha o seu acervo iconográfico. erguido provavelmente na primeira metade do dezenove com alterações posteriores. nem dos arrematados por “sanefa”. 245 .A maior diferença desse baldaquino de Santo Antônio em relação ao da Saúde é a enorme quantidade de planos e ressaltos do entablamento e mais ainda na policromia representada por marmorizados de várias cores. por trás do frontão. 246 . 4 – Do mesmo modo.aquelas que definiam o gosto mais “moderno” e que serviam de argumento para a substituição dos antigos retábulos por novos. Depreende-se deste estudo que as relações centros – periferias não avassalavam a criação dos artistas na colônia brasileira. Os modelos eram pontos de partida. 3 – A multiplicidade de fontes enriquecia o vocabulário dos artistas locais. os estimulavam a reagir criativamente criando soluções plásticas que se tornaram típicas e que hoje identificam o gosto de cada localidade brasileira cuja vida urbana prosperou nos séculos XVIII e XIX. atuando em favor de um ecletismo formal e explicando o alto grau de hibridismo estilístico existente na talha brasileira do período colonial e imperial. entenda-se a tradição clássica. a existência de gravuras e tratados de épocas anteriores justificavam os arcaísmos formais que por vezes verificamos. dos quais podia-se guardar maior fidelidade nos projetos ou afastar-se deles mantendo-se sempre a tradição da arte ocidental. Ao contrário. SEGUNDA PARTE Estratégias Femininas de Sobrevivência . . a manutenção – nos índices de procura por vagas em cursos 249 . ainda é possível perceber uma grande carência de profissionais. o crescimento da procura de livros de romances históricos e outros exemplos que demonstram um interesse vivo e generalizado pelo passado. ganhou destaque o grande número de trabalhos científicos que contribuíram para dar nova ênfase ao estudo sobre a cultura e a religiosidade no mundo ibero-americano. Outro fato a destacar.Espelhos de Esther. por conta do aumento das publicações de livros na área das Ciências Humanas e da História. Introdução Nas últimas décadas. encontram certa dificuldade em preencher as vagas oferecidas nas universidades para os futuros historiadores. As mulheres e a resistência criptojudaica no mundo colonial Angelo Adriano Faria de Assis Universidade Federal de Viçosa 1. a curiosidade pela História tem permitido o aparecimento de outros filões editoriais e de entretenimento. Além disso. cabe dizer. pelo menos. ao contrário. seja por conta de já terem resolvido os problemas básicos de seu sistema de ensino. que repercute numa espécie de caminho na contramão de outros países: enquanto algumas nações. no Brasil. ultrapassaram os limites da Academia e chegaram até o grande público. Muitas destas pesquisas. é que o atual momento de crescimento econômico e desenvolvimento social do país assim como a democratização do acesso ao ensino – dos primeiros anos à formação superior ‒ nas últimas décadas demonstrou uma carência generalizada de professores nas mais diversas áreas – a História aí incluída. Apesar dos avanços. em particular. seja por conta da baixa demanda. incentivado a produção de filmes e programas televisivos. a realidade mostra o crescimento – ou. inclusive. como a publicação de revistas e magazines especializados. da mesma forma que pela maior frequência com que os arquivos destes países são visitados por pesquisadores do Brasil (e o inverso. No que diz respeito ao campo científico. mostraram-se pioneiros. também é verdadeiro!). por exemplo. perseguidos pela Inquisição como suspeitos de judaizar em segredo. nos mais variados níveis. Os estudos sobre a ação do Santo Ofício e a perseguição às suas vítimas têm avançado consideravelmente no Brasil. este processo é ainda alimentado pelo fortalecimento dos programas de pós-graduação no Brasil. inegavelmente. numa troca mútua de experiência que enriquece incontestavelmente o debate científico e propicia a disseminação de ferramentas e metodologias de pesquisa. pelo aquecimento do debate entre pesquisadores brasileiros com seus pares de outros lugares do mundo. ambos fundamentais neste resgate e reconstrução da memória do passado. o fato é que hoje se produz. e cada vez mais essa historiografia dialoga com centros de documentação e pesquisa e pesquisadores de outras nações. quanto com a pesquisa. a partir principalmente das décadas de 1960 e 1970.de terceiro grau para os que desejam trabalhar tanto com o ensino. Mas aqui nos interessa refletir sobre o ramo de pesquisa em que nos situamos – a presença sefardita e as origens da criação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal e a sua atuação no mundo colonial brasílico. Enfim. como se dizia no jargão da época. ou criptojudaizar. em boa parte. tendo como foco de análise seus alvos preferenciais: os cristãos-novos. mas podemos ter uma boa ideia do interesse que desperta e da pujança que continua mantendo ao citarmos algumas das principais obras. mas também. de traçar uma historiografia acerca dos estudos inquisitoriais no país. Não é o caso. para os limites deste artigo – pois correr-se-ia o risco de esquecer trabalhos importantes ‒. judeus batizados em 1497 e seus descendentes. dos trabalhos inaugurais de Elias Lipiner em Os judaizantes nas capitanias 250 . É o caso. Europa e América Latina. uma historiografia de qualidade no país. desde os trabalhos que. ainda bem. tais como Estados Unidos. Sonia Siqueira em A Inquisição portuguesa e a Sociedade colonial3. 17631769”. UFF. 1995. 10 CAMPOS. 1992. São Paulo: Brasiliense. as fontes inquisitoriais serviram de consulta para autores que mapearam. A partir dos anos 1980. UFRJ. 251 . 1997. Luiz. da Universidade de São Paulo. Ronaldo Vainfas em Trópico dos Pecados7 e Luiz Mott em Rosa Egipcíaca8. São Paulo: Companhia das Letras. 1542-1654. José Gonsalves do Salvador em Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680)4 e José Antônio Gonçalves de Mello em Gente da Nação5. Anita W. Anita Novinsky em Cristãos novos na Bahia2. Daniela Buono. Uma terceira leva de historiadores a trabalharem em suas análises com a documentação inquisitorial é representada pelo fortalecimento dos programas de pós-graduação pelo país e pode ser exemplificada nas pesquisas. Magia e Sociedade: Belém do Pará. 1972. Cristãos Novos na Bahia: 1624-1654. 1976. Editora Massangana. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil. 8 MOTT. 1996. “Inquisição. São Paulo: Perspectiva/Ed. Trópico dos Pecados: moral. 2ª ed. Sonia Aparecida. Rio de Janeiro: Bertrand. 2 NOVINSKY. Elias. Laura de Mello e. tendo como base a atuação do Santo Ofício em terras brasílicas. 5 GONSALVES DE MELLO. 9 CALAINHO. 2ª ed. Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680). São Paulo: Pioneira/EDUSP. 7 VAINFAS. de Daniela Buono Calainho9. 1986. Gente da Nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco. “Em nome do Santo Ofício: Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil Colonial”. 1993. influenciados pela Nova História. sexualidade e Inquisição no Brasil.de cima1. Recife: FUNDAJ. Ronaldo. Dissertação de mestrado. a religiosidade vivenciada na colônia. Pedro Marcelo Pasche de. 3 SIQUEIRA. 4 SALVADOR. como Laura de Mello e Souza em O Diabo na Terra de Santa Cruz6. 1978. Pedro Marcelo Pasche de Campos10. José Gonçalves. 1969. algumas delas publicadas posteriormente. José Antônio. Célia Cristina da Silva 1 LIPINER. Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos séculos XVI e XVII). O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. 6 SOUZA. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. São Paulo: Ática. Dissertação de mestrado. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. 1999. Dissertação de mestrado. UFF. com a facilidade de acesso aos arquivos da Inquisição. “‘Conventículo Herético’: cristãs-novas. Contam. Marco Antonio Nunes da Silva12. defendida na Universidade Federal Fluminense em março de 2011. então. onde estão localizadas as fontes do Santo Ofício ‒ no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. em Portugal. Carlos Eduardo Calaça Costa. digitalizados e disponibilizados para consulta on-line. UFF. e as pesquisas sobre a Inquisição e seus perseguidos encontram menor espaço. “O Brasil holandês nos cadernos do Promotor: Inquisição de Lisboa. Dissertação de mestrado. 2003. um apelo e um convite a que os novos pesquisadores portugueses redobrem os esforços e retomem os estudos sobre o funcionamento e a atuação inquisitorial portuguesa. entre tantos outros.Tavares11. Mais além. Hoje. Enquanto no Brasil os estudos sobre a ação e as vítimas do Santo Ofício ganham espaço. “UM ‘RABI’ ESCATOLÓGICO NA NOVA LUSITÂNIA: Sociedade colonial e Inquisição no Nordeste quinhentista . 14 FONSECA. Alex Silva. todos estes trabalhos contribuíram para que outros pesquisadores desenvolvam e venham a se interessar por pesquisas de mestrado e doutorado sobre a temática. Angelo Adriano Faria de Assis13. criptojudaísmo e Inquisição na Leiria seiscentista”. Angelo Adriano Faria de. “Cristãos novos naturais do reino e moradores na cidade do Rio de Janeiro (1650-1710)”. Tese de doutorado. 2011. Tese de doutorado. o quadro é outro. Para citar um único exemplo. século XVII”. “A cristandade insular: jesuítas e inquisidores em Goa (1540-1682)”. Tese de Doutorado. Fica. 15 MONTEIRO. 12 SILVA. 13 ASSIS. uma nova geração de pesquisadores dá continuidade aos estudos inquisitoriais na Academia. TAVARES. democratizando o acesso aos que desejam conhecer estes importantes conjuntos documentais referentes à Modernidade luso-brasílica. vide a recentíssima tese de doutoramento de Alex Silva Monteiro15. 2002. em Lisboa ‒. UFF. Carlos Eduardo Calaça14. Marco Antonio Nunes da. Célia Cristina da Silva.o caso João Nunes”. em que o autor estuda um grupo de mulheres judaizantes inserido na comunidade de cristãos-novos de Leiria. bem como sobre os indivíduos que foram denunciados à Misericórdia et Justitia. USP. 11 252 . 1998. USP. entre outras vantagens. em outubro de 1497. e a sociedade portuguesa rapidamente reconhecia no processo de implantação do monopólio católico a causa para a diminuição da pureza cristã no reino. dando um prazo de dez meses para que deixassem Portugal. Mas a conversão oficial não significava.2. ocultamente. João III. Com a instauração da Inquisição. Os cristãos-novos descendentes de judeus eram vistos. como a grande ameaça à pureza cristã. mantinham comportamentos tidos como desviantes da retidão cristã. Tanto os judeus quanto os mouros convertidos. a conversão de fato. Nos interessa. muitos deles mantinham. Os cristãos-novos passariam a ser vistos como cristãos de segunda classe. Transformados em neoconversos. aumentaria o clima de 253 . seja por fidelidade à antiga fé. seriam vistos como suspeitos de comungar as antigas crenças e. Em dezembro de 1496. as práticas e crenças dos antepassados. D. por conseguinte. durante o reinado de D. Palco para o acirramento das relações sociais. repetindo o que havia ocorrido quatro anos antes na vizinha Espanha. que colocavam em risco a pureza da religião dominante. pela população em geral. acabariam transformados em cristãos-novos e proibidos de sair do reino. e a posterior estruturação do Santo Ofício no reino. A necessidade de controle sobre as ameaças ao catolicismo – o criptojudaísmo considerado a maior delas – levaria a negociações da monarquia portuguesa junto ao papado para a instauração do Tribunal da Inquisição em território luso. uma reviravolta: consciente do papel que principalmente os judeus representavam para Portugal naquele momento de expansão ultramarina. o que ocorreria no ano de 1536. o monarca português. no mesmo grau. de falta de adesão completa e sincera ao cristianismo. E o fato é que. O tema A história dos cristãos-novos e da instauração do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal tem início em fins do século XV. Manuel I. focar o drama judaico. Finda esta data. em graus e formas variados. sendo por conta disso denominados judeus ocultos ou criptojudeus. decretaria a expulsão dos judeus e mouros forros do reino. seja por desconhecimento das normas católicas. aqui. tinha razão em perceber que o judaísmo continuava ativo em Portugal no período pós-conversão forçada. mouros e cristãos. todos os habitantes de Portugal!). na privacidade do lar. ínfimas ‒ a manter fidelidade à fé de Moisés. Assim. em família. em primeiro lugar. intensificando as hostilidades e as delações de comportamentos tidos como desviantes aos representantes do Santo Tribunal. Por conta disso. mas é verdade que uma considerável parcela dos neoconversos continuaram. punindo exemplarmente aqueles considerados desviantes da verdadeira fé – os cristãos-novos. com a conversão forçada. As denúncias. judaizando em segredo. a tentar manter vivas as tradições da religião mosaica. confissões e processos inquisitoriais são a prova disso. no século XVI. A máquina inquisitorial embora de forma intolerante e equivocadamente visse um judaizante em potencial em cada cristãonovo. em boa parte. a constituição da sociedade portuguesa era profundamente modificada: do milenar convívio relativamente harmônico entre judeus. fugindo do Santo Ofício. em menos de meio século (de 1496 a 1536). Guardados os exageros dos denunciantes e o olhar viciado tanto da sociedade quanto de muitos representantes do Santo Ofício. 254 . Claro. dentro das suas possibilidades. Mas. e o permanente controle inquisitorial acabaria por alimentar profundas transformações nas relações sociais e no convívio entre cristãos velhos e novos. o certo é que muitos judeus continuaram. tuteladas por um tribunal eclesiástico instaurado para moldar e controlar o comportamento religioso dos fiéis do reino (ou seja. que viam em qualquer comportamento diferenciado da prática católica uma prova inequívoca de judaísmo. principalmente nas primeiras décadas.perseguições e hostilidades contra o grupo neoconverso. não foram poucos os cristãos-novos que optaram por migrar para outras regiões. passava-se à implantação do monopólio católico e à perseguição aos que não eram considerados cristãos inteiros ou puros. não estamos a defender ou justificar a lógica de perseguição inquisitorial e as abomináveis medidas de punição impostas aos réus do Santo Ofício – muitíssimo longe disso! ‒. dentro das possibilidades – muitas vezes. no geral. ocupando papel primordial na divulgação deste judaísmo adaptado. por comportamentos menos denunciadores. das VAINFAS. Então. 2005. a ponto de alguns apelos pela conversão ganharem força. São Paulo: Associação Editorial Humanitas. alterações das mais diversas no intuito de ‒ adaptados à nova e hostil realidade – não só evitar a perseguição aos seus adeptos mas também impedir o seu completo desaparecimento. tendo suas bases bastante enfraquecidas devido às perseguições e impedimentos que lhe foram impostos. In: GORENSTEIN. algumas práticas mais denunciadoras da manutenção judaica foram sendo abandonadas em prol de outros comportamentos que permitiam aos criptojudeus manterem sua fé sem serem percebidos. Maria L. Ensaios sobre a Intolerância. Inquisição. como jejuns e orações realizadas em particular. quando muitos dos antigos judeus. como o texto-advertência de Frei Francisco Machado em 1541. a situação proibitiva e desfavorável criada no mundo português levaria as mulheres a subverterem esse quadro. de frei Francisco Machado”. uso de trajes típicos ou preparação de determinados alimentos. o judaísmo sobreviveu e foi repassado aos descendentes. aos homens eram destinadas as posições de destaque na prática cotidiana dos ideais hebraicos. inclusive os que foram rabinos. com a manutenção de algumas festas e práticas e o acesso a textos sagrados. ao longo do tempo. agiganta-se o papel destinado à mulher na preservação judaica. Deixai a Lei de Moisés!16 Contudo. ed. Conforme afastamo-nos do período de conversão forçada. sem dúvida.no momento anterior ao surgimento da Inquisição. Neste quadro. a prática do judaísmo ainda era evidente. acabavam por substituir celebrações públicas da fé. como festas. dissimulado e diminuto que se tornara possível. contudo. numa situação de normalidade. Lina: e CARNEIRO. Se. 2ª. inclusive na forma de tratados. Ronaldo. Mas. 16 255 . “‘Deixai a lei de Moisés!’ Notas sobre o Espelho de cristãos-novos (1541). Marranismo e Anti-semitismo. permitindo uma sobrevida em quadro de hostilidade. tornando-as. suficiente para que as novas gerações pudessem conhecer e comungar a fé e costumes dos antepassados. T. os rituais judaicos sofreriam. ainda continuavam vivos e guardavam a memória judaica. . Na colônia. transformados em destacados senhores de engenho. no limite. Guiné. Eram. imbricando-se nos mais diversos níveis sociais. Prova do bom convívio entre os cristãos novos e velhos na colônia encontra-se tanto na presença dos neoconversos em praticamente todos os espaços da economia. Aqui. estes cristãos-novos “enobreciam” como era possível. com a realização dos primeiros autos-de-fé no reino. mantinham ligações com outros cristãos-novos migrados para outros espaços do vasto império luso – Cochim.. muitos deles homens riquíssimos e com grande influência. como no grande número de casamentos mistos entre cristãos velhos e novos. a estruturação da Inquisição em Portugal e o consequente aumento das perseguições aos neoconversos a partir da década de 1540. Não raro. ratificando a maior aceitação social destes enlaces e a diluição dos atritos no convívio entre os grupos na região brasílica se comparado ao quadro vivenciado no reino. catapultados a figuras de destaque da sociedade colonial. ‒. Aqui. São Tomé. onde a produção de açúcar ganhava destaque e transformava o trópico luso-brasílico em ponta-de-lança da economia do império português. Goa. negociando seus produtos e circulando informações que. com ligações com os principais da terra. Madeira. Macau. Angola. preparando alimentos e cuidando da saúde e educação dos filhos.principais responsáveis pela resistência e organização de suas novas bases durante os séculos em que a crença mosaica só ganhava eco às escondidas. as longas distâncias a serem vencidas com dificuldade acabaram por intensificar ainda mais o papel que já no reino havia sido destinado à mãe neoconversa. tenham significado o aumento das migrações de cristãos-novos para a colônia luso-americana. reponsável por ensinar no abrigo do lar as primeiras lições mosaicas aos rebentos. visto as proibições legais para alcançarem cargos de nobreza: galgavam posições economicamente. responsáveis 256 . Não por acaso. Moçambique. eram responsáveis não só pela organização e limpeza da casa. não raro. Malaca. ajudavam a proteger o grupo neoconverso das perseguições da “Santa Forca”. p. e o núcleo familiar. Elias. pela provisão de mantimentos. com as mulheres à frente. seria enviada a primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. assumiam o comando da casa e da educação dos filhos. Foram essas mulheres. realizavam o rabinato diminuto. reunindo a família para celebrar os costumes de seus antepassados. procurando vencer as desconfianças generalizadas sobre sua real entrega ao catolicismo. sem dúvida. ao lembrar que se dizia à época das mulheres neoconversas que. os baluartes do judaísmo oculto. “mas nos sábados vestiam seus melhores vestidos”17. feminino e oral que se tornara possível e que.. Esta nova importância destinada à mulher cristã-nova não passaria em branco para os representantes do Santo Ofício. lutando por sua resistência em quadro totalmente hostil. As damas do rabinato diminuto na colônia: alguns rápidos exemplos Conforme vimos acima. Rapidamente. embora contrariasse o códice mosaico. os representantes da Inquisição perceberiam a necessidade de verificar a religiosidade vivida no Brasil. preparando-se para o sagrado dia de descanso dos judeus. em substituição às sinagogas. Op. a casa transformou-se lugar do culto. no ambiente de proibição que o judaísmo enfrentou a partir de finais do Quatrocentos em Portugal e seus domínios. 3. pela manutenção da ordem e ensino das primeiras letras e lições de moral aos filhos. “devotas e rezadeiras. era possível ser judeu. No Brasil Colonial. Na falta do pai. divididas entre a proteção dos filhos e do segredo da antiga fé. garantiu-lhe resistir. É o que afirma Elias Lipiner. vasculhando heresias e 17 LIPINER. Em 1591. 257 . 46. assumindo o tripé mãe-educadora-rabi. como na luso-Ibéria. é que tornou possível esta sobrevivência. 1969. cit. local dos preferidos pelos cristãos-novos portugueses que escolhiam a diáspora como forma de vencer as perseguições no reino.pela segurança do lar. Transmitindo os ritos religiosos ao praticálos nas residências. iam nos domingos e dias santos ouvir missa”. negações à religião dominante em seus símbolos e dogmas. Pernambuco e Paraíba até 1595. em sua grande parte ligado a ritos. como exemplo. de mandarem. um certo Francisco Soares. cultos funerários. Citemos. praticandoos de forma igualmente equivocada. 18 258 . p. Assim. tornando a enchê-las de água fresca da fonte18. de acordo com as conveniências e necessidades. por exemplo. divididas entre o catolicismo que lhes fora imposto e o judaísmo que lhes fora “arrancado a fórceps”. Coleção Pernambucana. Diretoria de Assuntos Culturais. obviamente. formas de benzer heterodoxas. interdições alimentares. acusaria a mãe. dissimulassem. prática da “esnoga” (reuniões judaizantes). praticando-o nos momentos de privacidade. nem sempre o fossem. que se dizia “cristão-novo que tem alguma raça de cristão velho”. ao morrer-lhe um escravo em casa. imbuídas dos temores que oprimiam os cristãos-novos. É variado o rol de relatos sobre mulheres que insistiam em manter fidelidade ao judaísmo. e a irmã. onde. Guiomar Soeiro. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil . embora publicamente. em 15/12/1593. Não foram poucas as denúncias a retratarem a dubiedade vivida pelas cristãs-novas na colônia. XIV. teria dado ordens para “vazar fora a água dos potes que estavam na cozinha” “Francisco Soares contra sua mãe Maria Álvares e sua irmã Guiomar Soeiro”. Itamaracá. embora. Também Isabel Vaz.maus comportamentos cristãos pelas capitanias da Bahia. 1984. Recife: FUNDARPE. Maria Álvares. 373-374. Na documentação oriunda desta visitação encontram-se inúmeros indícios do criptojudaísmo que era praticado. declarando-se verdadeiras cristãs. ora reunidas em torno das leis da Torá –. em caso de falecimento. a todo instante.Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1995. “lançar fora a água dos potes que estavam na cantareira da sala”. não só externamente – ora frequentando igrejas. a importância das mulheres salta aos olhos. vol. a confundirem muitas vezes a tradição cristã com os ensinamentos judaicos. alguns casos de comportamentos tidos como judaizantes pela população e denunciados ao Santo Ofício durante a Primeira Visitação. desconhecendo ambos em detalhes. mas também em seu interior. 2ª fase. quando é magra. “nunca comia coelho nem enguia quando o havia em casa”21. por sua vez. Idem. doentes de boubas. em 17/01/1594. seria denunciada pelo filho Gaspar do Casal de seguir algumas das leis dietéticas atribuídas ao judaísmo. enquanto era solteira. p. “tirou a lândoa do quarto traseiro à rês miúda”. o Moço. p. Branca Ramires. confessaria o mesmo costume perante o visitador: falecendo um escravo em um corredor da sua sala. A cristã-nova Gracia Fernandes. 106-107. donde ela confessante bebia”20. Idem. 117-118. morreram dois de seus filhos. “e quando lhe morreram. na graça”. cristã nova que tem parte de cristã velha. “Micia Vaz contra Izabel Vaz”. Mantinha ainda hábito que aprendera com outro cunhado “para ser saborosa a panela”: “muitas vezes. 22 “Confissão de Violante Pacheca. As precauções alimentares ganhariam destaque nos livros de confissões e denúncias.e que fosse trazida nova quantidade de água fresca19. “Confissão de Branca Ramires. Idem. Declarava ainda que. 19 20 259 . e quebrou os púcaros que estavam nos mesmos potes”22. lançou ela fora a água dos potes. três ou quatro anos antes. contra sua mãe Gracia Fernandes e sua irmã Isabel do Casal”. dizendo que coelho e enguia não comia ela”. em 09/12/1593. quando ainda morava na Paraíba. A recusa aos alimentos era repetida pela filha Isabel que. p. com cebola ou alho frito em azeite. “antes de o levarem a enterrar. os dias em que os levaram a enterrar. Algumas vezes. costuma cozer a panela de carne. 363-364. morando na mesma residência da mãe. embora já falecida à época da visitação. e que também isto faz sem ruim tenção”. cristã-nova. 147-148. Já a cristã-nova Violante Pacheca confessaria práticas atribuídas aos judeus. 21 “Gaspar do Casal. em 12/12/1594. como a preparação das refeições pelo modo tradicional judaico. em 17/12/1594. Idem. num intervalo de 15 ou vinte dias. na graça”. Segundo Gaspar: “havendo em casa algumas vezes coelho e enguia para comer. p. ela mandou vazar fora a água dos potes da cantareira da sala. nunca a dita sua mãe o comeu. o que informava fazer por aprender de um cunhado cristão velho “para se assar bem a carne”. e comendo-o os de casa. que inda o Messias não é vindo. estes cañis (sic) destes cristãos velhos hão de ser nossos escravos”24! Na Bahia. na graça”. senhor de engenho e “cavaleiro da casa del-rei”. em 10/12/1594. de que morriam muitos. Idem. todos casados com genros de “Confissão de Beatriz Antunes Mendes. guai. esperando o dia de sua redenção e preparando a vingança sobre os que considerava seus opressores: “guai. e como ele vier. na Beira interior portuguesa. depois que os levaram da casa para enterrar. filho. 142-145.O costume de vazar a água em caso de falecimento seria repetido por outras mulheres. Segundo diziam. “nesta vila deu uma doença de bexigas pelos escravos e negros brasis. é o da cristã-nova Ana Rodrigues Antunes. Heitor possuía sinagoga em suas terras no Recôncavo da Bahia há cerca de trinta anos. que informaria ter ouvido de uma sua comadre que uma certa Catarina Álvares mantinha-se à espera do Messias prometido aos judeus. cerca de quinze ou dezesseis anos antes. um dos mais estarrecedores casos envolvendo mulheres acusadas de práticas judaizantes na documentação referente à primeira visitação inquisitorial ao Brasil. p. Em conversa com um mancebo que fora criado de soldada no Espírito Santo. A cristã-nova Beatriz Mendes confessaria que. p. 23 260 . natural da região da Serra da Estrela. que foram os derradeiros que lhe morreram daquela doença peçonhenta e nojenta. teria Catarina Álvares pronunciado o seguinte juramento. Outro importante depoimento seria dado pela cristã velha Catarina de Lemos. e estamos esperando por ele. e moradora em Matoim. Ana Rodrigues viera do reino com Heitor Antunes. e lavá-los e tornar a trazê-los de água fresca para casa”23. Bárbara Luis e Fuão Cabreira”. O casal possuía sete filhos. Idem. no Recôncavo Baiano. E um dia em que lhe morreram dois em casa. de que bebia. em 13/01/1594. seu marido. por uma sua escrava. em parte cristã-nova. 24 “Catharina de Lemos contra Catharina Alvares. mandou ela confessante lançar fora a água de dois potes que tinha na cantareira. sem aceitar Jesus Cristo como o Verdadeiro Messias conforme a crença cristã. 102-104. da qual doença lhe morreram a ela muitos escravos. Judaizante ao extremo e mulher de mais de oitenta anos. clamando-se por Nossa Senhora. indo “[Antonio da Fonseca] contra Ana Roiz e Fernão Cabral”. ou seja. Quando em lucidez. Dentre os Antunes. em 06/08/1591. recebendo o auxílio de um filho para livrar-se da incômoda presença. dissera. dizendo: tirai-o lá”. Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo. p. não nos desonreis porque somos casadas com homens cristãos velhos e nobres”. ao todo.“sangue puro”. de longe. Conscientes de que seriam seguidamente denunciados. em terra virgem. seguidamente acusada de criptojudaísmo e de desrespeito à fé católica. O parentesco bíblico de que outrora se orgulhava o marido era agora símbolo do escárnio público de que era vítima ao lado das filhas. deputado do Santo Officio. 25 261 . sofrendo mais de quarenta acusações. Denunciações da Bahia 1591-593. “não me faleis nisso que não no posso dizer”25! Uma parenta cristã velha contaria sobre a octogenária matriarca que. cristãos velhos. 1925. mostrar boa vontade com o Santo Ofício e amenizar as culpas que lhes eram imputadas. tentava. O receio de ter a crença proibida desvendada e da rejeição social daí decorrente levaria uma de suas filhas a retrucar: “mãe. Ana Rodrigues o enterrara segundo a tradição. 275-276. arrumar desculpas pra tudo. guardando as jóias que usou no casamento para ser enterrada com elas quando morrer. sem sucesso. “suas filhas lhe mostravam um crucifixo e que ela o não queria ver. Suas histórias geravam escândalo. Morto o marido. pranteando-o pelo modo judaico e dizia-se dela que esperava o momento de poder se juntar novamente ao esposo. procurando. seria Ana. adiantandose à avalanche de acusadores do clã. São Paulo: Paulo Prado. chamadas pejorativamente de “Macabéias”. “sendo devotas de Nossa Senhora e fazendo romarias. A chegada da visitação da Inquisição acabaria com a tranquilidade da família. manter as aparências. alguns membros da família aproveitariam o período da graça para confessar os erros. teria Ana afirmado: “olhai que negro batismo”! Quando de um dos partos de suas filhas. adoecida certa vez. assim como as filhas. aquela denunciada com maior gravidade e insistência. No batismo de uma bisneta. era conhecida pelas blasfêmias que pronunciava. seria delatada por guardar o dia sagrado dos judeus. 250-251. jurar pelo mundo que tem a alma do marido e guardarlhe luto ao modo dos judeus. 26 262 . o “[Pero de Aguiar d’Altero] contra Ana Rodrigues. netos e sobrinhos nas acusações de judaísmo permite-nos vislumbrar o grau de complexidade do fenômeno criptojudaico entre os Antunes através da preservação de várias tradições do judaísmo de “portas a dentro”. mas para tudo apresentando desculpas. O envolvimento de filhos. onde ensinava as tradições da antiga lei aos filhos. cristã-nova de Matoim”. ficando “os primeiros oito dias sem comer carne”. não comer certos tipos de alimento. Com mais veemência. Idem. Apesar do esforço dissimulatório. com o abandono crescente de algumas dessas práticas pelos descendentes na tentativa de ocultar a fé proibida. mas que antes da doença os comia. Outros parentes próximos da anciã ‒ principalmente filhos e netos ‒ confessariam ou seriam acusados de algumas destas práticas.às igrejas. fazer jejuns e orações judaicas. A velha senhora seria acusada de judaísmo. dando esmolas e fazendo outras boas obras de boas cristãs”26. embora estes costumes sofressem uma espécie de “filtragem” na recepção. Ciente das críticas sociais ao seu comportamento e temendo as presumíveis denúncias contra seus desregramentos ao inquisidor. afirmando desconhecer-lhes a herética origem: não comia carne de arraia e cação fresco por fazer-lhe mal ao estômago. ao morrer-lhe um filho lançara fora a água dos potes. e benzer filhos e netos escorregando-lhes a mão pelo rosto. recusar um crucifixo quando doente. aos olhos populares sua residência era transformada em verdadeiro templo judaico. movimentando o corpo à maneira dos judeus. lançar a água de casa fora em caso de falecimento. em 30/07/1591. p. e seus denunciantes desfilariam o rol de suas culpas repetidas vezes. embora em nenhum caso tenha-se repetido o mesmo número de acusações que pesavam sobre a matriarca da família. a matriarca dos Antunes compareceria ao Tribunal para confessar algumas de suas práticas de judaísmo. reproduzidas no ambiente doméstico e transmitidas às novas gerações. pessoalmente. VAINFAS. jurava “‘pelo mundo que tem a alma de meu pai’. 263 . afora as complicações sociais para os membros da família. Para evitar que seu exemplo fosse repetido. Santo Ofício da Inquisição de Lisboa: Confissões da Bahia. procurando não só limpar o nome da família. ou de meu filho”. Idosa e doente. a velha senhora seria presa e enviada numa jaula ao Tribunal de Lisboa. seu falecido marido. enquanto seus genros cristãos velhos e fidalgos tentavam em vão provar sua inocência. Além da matriarca macabéia. cristã-nova. “e que por isso fica claro que ela é judia e que as fez como judia”27.que lhe ensinara uma comadre cristã velha. a mando do Santo Ofício. Beatriz. “queimados e feitos em pó em detestação de tão grande crime”. tão conhecidas e sabidas”. um outro agravante para seus descendentes: os bens em nome da velha senhora seriam confiscados pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras. na graça. outros familiares sofreriam acusações e alguns deles seriam processados pela Inquisição: Heitor Antunes. vingar-se-ia da prisão morrendo no cárcere. alertando-a de “que está mui forte a presunção contra ela. o que levaria os seus genros anos depois. Como define Elias Lipiner. p. “a jurisdição do Tribunal da fé não se extinguia com as labaredas da fogueira em que eram sacrificadas suas 27 “Confissão de Ana Rodrigues. suas filhas. mas recuperar os bens tomados pelos inquisidores para continuar os negócios do clã na Bahia. mas sem entender “ser juramento de judeus”. posto não ser “possível fazer todas as ditas cerimônias de judeus. que é judia e vive na lei de Moisés”. novamente alegando idade avançada e insanidade da velha matriarca. um quadro retratando-a entre labaredas e seres demoníacos ficaria exposto na igreja de Matoim. 1997. diversas petições em Lisboa para revisão da pena. afamados como judaizantes e/ou coniventes e acobertadores de práticas criptojudaicas. sem lhes conhecer a origem. Ronaldo (org). Desmascarada. o visitador parecia não aceitar as explicações. tendo sua memória amaldiçoada e os ossos desenterrados. em 1º de fevereiro de 1592”. Ana Alcoforado. e a neta. onde morara. o que não a livraria de ser condenada ao “braço secular” e relaxada em efígie. Violante e Leonor. a apresentarem. em 1600. Sua condenação traria. ou de meu marido. Estarrecido. 281-286. particularmente. Como elas. mas estendia-se aos descendentes vivos para serem diretamente atingidos. praticando ora um. dentre tantas e tantas outras. Elias. ora outro. Durante a segunda visitação inquisitorial ao Brasil. seriam ainda ouvidos ecos do irregrado comportamento dos Antunes.. foram das representantes máximas do criptojudaísmo brasílico no século XVI. e expondo-os. calúnias e discriminações enquanto lutavam para manter vivos os ideais da religião oculta a que insistiam em manter-se fiéis. Baluartes da resistência judaica na colônia. sofreriam pressões. ofensas. cit. na tentativa desesperada de preservar-lhe a memória e aos seus familiares. novamente apontados ao visitador como grupo judaizante. poupando os descendentes da velha Macabéia de maior infâmia. tanto nossa Ana Rodrigues quanto as outras mulheres aqui citadas. 28 LIPINER. Não parava em quem fora por ele condenado. p. proibindose-lhes o exercício de ofícios públicos e certas profissões liberais. As histórias sobre Ana Rodrigues e seus descendentes ainda permaneceriam vivas na memória e eram repetidas. alcançadas ou não pelo Santo Ofício. ocasionando o tal roubo da imagem que representava a matriarca queimando no inferno da porta da Igreja de Matoim. iniciada em 1618. Op. outras mulheres viveriam ambiguamente. 137. divididas entre o catolicismo que repudiavam e o hebraísmo que lhes era vedado. 264 . à malevolência pública”28. de acordo com o local e as conveniências.vítimas. 1969. Mártires da religião proibida. fazer doces para os maridos. paulistas e cariocas. Os dados desse conjunto documental são capazes de nos aproximar de um cenário para além de atraente. Gilberto. ou das minas. viveram e legaram seus bens sob o incremento das atividades ligadas à agricultura de exportação do algodão em terras maranhenses? Dentro da dinâmica econômica que cunhou aquela sociedade interessa-nos mostrar outras vivências para além daquelas defendidas por Gilberto Freyre. Para isso. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. sagüis. de abordar um período.1 Trata-se. Muito se tem falado sobre as “mulheres do açúcar”. então. p. brincar com papagaios. optamos pela manutenção da ortografia original das fontes manuscritas e impressas que traziam padrões do início do XIX. cuidar dos filhos. o que se sabe das que. “a não ser dar ordens estridentes aos escravos. coser camisinhas para o Menino Jesus ou bordar panos para o altar de Nossa Senhora”. Para além dessas. a partir de suas histórias no Maranhão colonial. recorreu-se a FREYRE. 1 265 .As donas do poder: Práticas testamentárias de mulheres no Maranhão oitocentista (1800-1822) Marize Helena de Campos Universidade Federal do Maranhão O trabalho aqui apresentado tem como preocupação central revisitar algumas mulheres. de meados do século XVIII ao início do XIX. 9ª ed. bem como daquelas dos “barões do café”. Todavia. Rio de Janeiro: José Olimpio. 349. mulequinhos. Com relação à escrita. 1961. foram utilizadas fontes primárias compostas por Testamentos depositados no Arquivo Público do Estado do Maranhão – APEM e Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão – ATJ. região e sujeitos pouco ou nada estudados buscando compreender mais um capítulo da complexa história da qual fazemos parte. as “mulheres do ouro”. onde as mulheres pouco tinham a fazer em seu dia-a-dia. Agricultura e Sociedade – CPDA.4 Para Mathias Röhrig Assunção. oriundas. de pesquisas de Mestrado e Doutorado realizadas no Brasil e em outros países. Em 1812 já operavam mais de 12 estabelecimentos comerciais ingleses em São Luís. 2 266 . Revista Brasileira de História. 68. n° 31 e 32. fazendo-lhe considerável concorrência. Exportação. org. se até por volta de 1790 a produção maranhense havia liderado a exportação de arroz e algodão.clacso. os Estados Unidos experimentavam investimentos produtivos que faziam cair custos e melhorar a qualidade de seu algodão. p.um conjunto bibliográfico. naquele fim de século. 56% das exportações maranhenses já iam diretamente para a Inglaterra JANOTTI. São Luís: Associação Comercial do Maranhão. Em contrapartida. Jerônimo de. A maioria se estabelecia com créditos do mercado de capitais londrino. 16. Tal interesse explica. as exportações pernambucanas e baianas. Mathias Röhrig.3 Ainda assim. mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão.1992. Três mulheres da elite maranhense. 1996. vol. lograram dominar o de importação e exportação. de 1807 a 1811.2 Ao entrar o século XIX. Maria de Lourdes Mônaco. 3 ASSUNÇÃO. Agricultura e Sociedade – DDAS. Departamento de Desenvolvimento. em sua maioria. a exportação média do algodão foi de 48. Em pouco tempo. Universidade Federal Rural Do Rio De Janeiro . In: http://bibliotecavirtual. 1800– 860.htm 4 VIVEIROS. SP: ANPUH / Contexto. Em 1812. Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento. Maria de Lourdes Mônaco Janotti observa que.000 sacas. História do Comércio do Maranhão. iniciando no mercado inglês uma gradual substituição do produto maranhense pelo norte-americano. o estabelecimento de comerciantes ingleses no Maranhão logo após a abertura dos portos. do qual fazem parte obras da historiografia recente que abordam questões correlatas às tratadas aqui.Instituto de Ciências Humanas e Sociais. entravam em cena.314 sacas e a de arroz socado superava as 50. a falta de inovações técnicas acabou por resultar em uma produção inerte. Revista Estudos Sociedade e Agricultura.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/quatorze/matias14. o algodão continuava representando o item de mais peso nas exportações brasileiras para a Inglaterra. a seu ver. 229. p. e 45% das importações provinham deste país. cit. Exportação. cit. Todavia. que compraram muitos escravos a crédito no intuito de expandir a produção.. a conjuntura econômica no Maranhão mergulhou em fase adversa. Assunção aponta que as taxas sobre exportação penalizavam principalmente o algodão. e mesmo na América latina: aqui os negociantes ingleses compravam mais do que vendiam.139 e ASSUNÇÃO. pois: “Enquanto outros produtos pagavam apenas o ‘consulado’ de saída de 2%. o algodão garantiu o valor médio de dez mil réis a arroba. O Maranhão constituía assim uma província atípica no Império brasileiro. 32. mas o fim da Guerra anglo-americana (1812-1815) possibilitou a retomada da produção deste país. no período 1812-1821. propiciando lucros ao comércio e à lavoura6. p. cit. Peter L. Op.8 Outro fator agrevava-se ao funesto quadro: o fato de os fazendeiros terem que pagar altos impostos durante a difícil década de 1820.138. 1800-1860. provocando verdadeira euforia entre fazendeiros. 5 267 . 1977. o algodão era tributado pelo ‘imposto do algodão em rama’. 8 VIVEIROS. fazendo despencar o preço da arroba do algodão para quatro mil réis e levando muitos fazendeiros e comerciantes a amargarem enormes perdas. p. em poucos anos.1808). Campinas: UNICAMP. Op. a partir de 1819.7 De qualquer modo. além de um imposto de 100 réis por arroba para a ASSUNÇÃO. 7 EISENBERG. Mathias Röhrig.07. 1800-1860. Em números absolutos. Jerônimo de. voltou a ser um dos grandes produtores mundiais de algodão e arroz. 6 VIVEIROS. o valor das importações inglesas não chegou. Mathias Röhrig. p. mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão. Rio de Janeiro: Paz e Terra. mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão.5 Entre 1815 e 1819. a alcançar o das exportações maranhenses. Op. os preços no Maranhão ainda mantiveram-se altos entre os anos de 1817 e 1819. que. estipulado em 600 réis por arroba (Carta Régia de 28. 1840-1910. Jerônimo de. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco. Op. cit. Exportação. Exportação. Regina Helena Martins de. Exportação. ou seja.Real Junta do Comércio. Op. mas que. através do monopólio comercial e do endividamento sistemático dos fazendeiros. A explicação dessa atitude pode residir em uma rede de ASSUNÇÃO. ainda que permaneça a interrogação sobre quais foram as consequências de o Maranhão ter se enveredado por esta via do escravismo colonial. Op. mas quando os preços baixavam. ficou claro que a decisão sobre o destino do patrimônio foi o privilegiamento de outras mulheres.cit. Mathias Röhrig.”9 Estes fatores rebaixaram os preços internacionais. o declínio das exportações determinava a diminuição da produção e a decadência da lavoura. Para o pagamento destes dois impostos não se levava em conta nem a qualidade do algodão. cit. cit. Por outro lado. Op. concordamos com Matthias Röhrig Assunção11 para quem não há dúvidas de que a Companhia criou as condições para o desenvolvimento de uma economia regional baseada na plantation escravista. nem o preço do mesmo no mercado mundial. p. Trabalho escravo e trabalho livre na crise da agroexportação escravista no Maranhão. p 32-71. Nesse sentido. 54. já que não havia indústria têxtil àquela época. 11 ASSUNÇÃO. este imposto de exportação representava apenas 7% do valor da arroba de algodão. dificultando a colocação da produção brasileira e comprimindo a margem de lucro dos fazendeiros. achavam-se envoltas nos aparentes silêncios dos testamentos. 9 268 . podia alcançar até 21%. até o momento. Do todo exposto. Em nosso estudo sobre a última vontade das testantes no Maranhão.. contrariando o sistema de sucessão igualitário. o próximo tópico tem como objetivo mergulhar no cenário até aqui exposto e nele encontrar aquelas que igualmente participaram das dinâmicas econômicas e sociais. Matthias Röhrig. 1800-1860. mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão. mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão.10 Como o consumo interno era muito pequeno. Em tempos de preço alto. 10 FARIA. confirma-se a pouca visibilidade dada pela historiografia às mulheres proprietárias naquele contexto. 1800-1860. ou parte delas. Maria Francisca (1809). Anna Joaquina Mouzinha. Maria Joaquina Rosa e Mônica Thereza da Costa Antunes (1811). Apolônia Thereza Gonçalves. Maria do Rozário. Francisca Apolônia Pahim. Maria de Castro Cavalcante. utensílios domésticos. casas. Tomamos por referências as narrativas constantes nos testamentos de Dona Anna Umbelina de Aguiar e Joanna Maria de Deos (1800). sobrinhas. Maria Isabel Freire e Rita Raimunda de Cássia C. Vicência de Oliveira e da Preta Anna Maria (1801). Izabel Caetana Botelho. Maria Thereza Pereira. Isabel Marinha de Mello. Joanna Michaella de Castro Janse Moller. Maria Luiza da Incarnação. Catharina Batista da Conceição. roupas pessoais e de cama. Genoveva Thereza de Oliveira. Observamos que grande parte das legatárias eram filhas. e Souza (1810).proteção e solidariedade que extrapolava os laços familiares. 269 . Custódia Nicácia. Jozefa Maria Cappitulo. Joanna Correa de Andrade. Maria Xavier da Gama. cobertos pela vergonha de estranhos ou em histéricos gritos de vontades mostram-se destoantes dos perfis emergidos naqueles documentos. jóias. Anna Maria Garcia. Laurianna Ferreira Gomes e Maria Magdalena de Jesus (1812). Maria de Nazaré (1806). Joaquina Maria Garcia. já que nem todas tinham herdeiros forçados e podiam dispor livremente de seu patrimônio. Dona Maria Raimunda de Moraes Cantanhede e Anna da Conceição (1802). Jozefa Maria da Encarnação. os arquétipos femininos franzinos. entregues à reclusão e ao silêncio. metidos em quartos. Apolônia Maria do Livramento. Anna Roza Gomes. Catharina Maria. Anna Joanna Dornelles. Roza Clara Correa e Roza Francisca Maria Berfort (1815). e os legados preferencialmente escravos. Apolônia Maria de Lemos e Dona Anna de Araújo Cerveira (1804). Nesse sentido. Apolônia Pereira da Silva e Maria Gertrudes Ferreira (1814). Mônica Joaquina Lopes. Maria Querubina de Morais Rego (1817). Francisca Xavier Bekeman e Maria Thereza de Jesus (1805). netas ou afilhadas. louças e dinheiro. Donana Caetana Pacheco Fernandez (1818) e Maria da Silva (1819). Maria Jozefa Lopes de Souza. Maria Jozefa Leitoa. Maria Jozefa da Anunciação e Anna Joaquina dos Reys de Aragão (1803). já que a condição ou opção de solteira revela uma sociedade com um intenso trânsito de mulheres não submetidas à tutela de maridos. filha de Francisca da Silva e pai não declarado... seguidas pelas casadas. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.. O mesmo pôde ser verificado acerca da filiação..”. e . de quem se libertou “comprando” sua liberdade. “filha legítima de. naturais da cidade de São Luís do Maranhão. e seu legitimo marido . Gilberto. seus contornos se (re)constroem em outras imagens... as que tinham outros tipos de união e as que não mencionaram seu estado civil.”. “filha do legítimo matrimônio de . o casamento parece não ter sido o único caminho seguido pelas mulheres. submissas. indecisas. estado civil... ex-escrava de Dona Ignez Alves de Andrade. filha legítima de Marianna da Fonceca e de pai inserto.. Joanna Correa de Andrade.. filha natural de Anastácia Alves e pai não declarado. de vida morosa. ainda viva. Sobre o estado civil.. parda forra. abandonos e mulheres que foram mães solteiras. 345 as referências sobre as mulheres coloniais em (mulheres brasileiras – índice remissivo). filha natural de Camélia Pereira e pai não declarado e Maria Gertrudes Ferreira.. Diante disso. da cidade do Maranham ou cidade de São Luís do Maranham. também descrita como cidade do Maranhão. Maria Joaquina Rosa... p... indolentes.cit. no revelar de filiação.e . Op..”. onde as referências eram em grande parte descritas como “filha do legítimo matrimônio de . “filha de . Apolônia Pereira da Silva. 12 270 . solteiras. o que se pôde observar é que a maior parte era composta por viúvas. em sua maioria. “filha legítima de.. e de sua legítima mulher.”. Maria Francisca. demonstram relações diversas.12 Observando os locais de origem daquelas senhoras donas notamos que eram. e . moleironas. dependentes e incapazes.. local de moradia e últimas vontades (práticas e justificativa das tomadas de posição). e pay incerto. como o caso de: Anna Joaquina dos Reys de Aragão. Ver em FREYRE. destoantes daquelas amarelas. tão recorrentes na historiografia. porém. Outros casos. frágeis.”.. filha de Quitéria Maria.Como se poderá notar. banzeiras. Anna Maria do Rozário. Em reclusão ou em celibato. Catharina Batista da Conceição. Maria Francisca. Dona 271 . provavelmente. temos: Dona Anna Umbelina de Aguiar. nem filho. teve um filho chamado Bento Luis Avelino. erdeyro por linha recta. declarou que. Maria do Rozário. Catharina Maria. a quem nomeou seus legítimos herdeiros e Maria Joaquina Rosa que. grávidas ou idosas. Todavia. ser solteira não significava ausência de relacionamentos e tampouco de filhos. Jozefa Maria Cappitulo. Rita Raimunda de Cássia Castro e Souza.Vicência de Oliveira. estava Apolonia Maria do Livramento que vivia no Recolhimento da cidade desde o principio da sua fundação e não possuía herdeiros forçados (o que nos leva a acreditar que. Maria de Nazaré. Maria Xavier da Gama. ainda que sempre tivesse se conservado no estado de solteira. Izabel Caetana Botelho. teve os filhos: Joaquim Jozé Moraes. Já as viúvas foram as que em maior número apareceram. sempre no estado de solteira e não possuindo assim herdeyro algum forsado. fosse solteira).Declarando-se verdadeiras catolicas romanas. Apolônia Maria de Lemos que. nem filha. João Nepomuceno e Jozé Raimundo. Laurianna Ferreira Gomes. Francisca Apolonia Pahim. Anna Roza Gomes. nomeados herdeiros universais dos seus poucos bens e de sua terça. Genoveva Thereza de Oliveira. embora sempre tivesse vivido em estado de solteira. Por outro lado. Anna Joanna Dornelles. por fragelidade humana. Joanna Correa de Andrade. apesar de sempre ter vivido em estado de solteira. Muitas nesse estado pela segunda vez. Anna da Conceição. Jozé e Manoel Maria. Maria Jozefa Leitoa. como demonstram os casos de práticas não normativas como os de: Anna Joaquina dos Reys de Aragão que. São elas: Joanna Maria de Deos. Maria Isabel Freire. afirmando ser verdadeyra catholica romana e casada a face da Igreja ou a face Ecclezia na forma do Sagrado Concilio Tridentino. encontramos Maria Thereza Pereira. tinha os filhos: Raymundo. Francisca Xavier Bekeman. Monica Joquina Lopes e Roza Clara Correa. Dona Maria Raimunda de Moraes. que vivia em sua companhia sem embargo de ser soldado do Regimento de Linha desta mesma cidade. Joaquina Maria Garcia. Francisca Apolonia Pahim 272 . Genoveva Thereza de Oliveira e Maria do Rozário. Mônica Thereza da Costa Antunes. Joanna Michaella de Castro Jansen Moller. Custodia Nicacia do Nascimento. todavia tinha duas filhas. A característica da maternidade como algo natural e concretizada em muitos filhos parece não ter sido realidade na vida daquelas mulheres. Além disso. Anna Maria Garcia. Jozefa Maria Cappitulo. Não mencionaram seu estado civil: Preta Anna Maria. Maria Luiza da Incarnação. com imensas proles. Isabel Marinha de Mello. Maria de Nazaré. Sobre o estado de saúde. numerosas.Anna de Araújo Cerveira. Do total. Apolonia Maria do Livramento. Maria de Castro Cavalcante. Genoveva Thereza de Oliveira. Rita Raimunda de Cássia Castro e Souza. Maria Thereza de Jesus. por nomes de Anna Margarida e Maria do Carmo Ferreira de Araújo. Maria Magdalena de Jesus. Custodia Nicacia do Nascimento. Apolônia Thereza Gonçalvez. Maria Xavier da Gama. de cujo matrimônio não teve filho algum. Apolônia Pereira da Silva. Maria Jozefa Lopes de Souza. encontrava-se casada com Manoel Ferreira Moreira. Maria do Rozário e Donana Caetana Pacheco Fernandez. Maria Querubina de Morais Rego e Silva. geradas em estado de solteira. tomando por base a média das que não tiveram filhos ou filhas questionamos o paradigma das famílias extensas. Anna Joaquina Mouzinha. Dessa forma. Ao menos no Maranhão no início dos Oitocentos. Maria Isabel Freire. à época de seu testamento. Joanna Michaella de Castro Jansen Moller. encontramos Francisca Apolonia Pahim que. Jozefa Maria da Encarnação. Maria Gertrudes Ferreira. Donana Caetana Pacheco Fernandez e Maria da Silva. que disse ter uma filha adotiva / 3 filhos → Dona Anna Umbelina de Aguiar e Izabel Caetana Botelho / sem filhos → Vicência de Oliveira. as casadas declararam ter: 1 filho → Dona Maria Raimunda de Moraes Cantanhede e Catharina Maria. cabe mencionar que Maria Thereza de Jesus. contrapondo-se à rigidez das práticas de rejeição a mulheres que tiveram seus filhos fora dos laços matrimoniais. Catharina Batista da Conceição. emferma ou doente de uma moléstia tão grave. o medo ou temor da morte. Anna Joaquina Mouzinha. Monica Joquina Lopes. enferma e de cama. Maria do Rozário e Joaquina Maria Garcia. descarregando assim suas consciências e evitando a ida ao inferno como Francisca Xavier Bekeman. Maria Magdalena de Jesus. sam de pê e sem moléstia alguma. com a saúde e juízo em perfeitas condições. Maria Thereza Pereira. temia a morte que se aproximava. e o desejo de pôr “a alma no caminho da salvação”. ou seja.afirmaram estar com saúde e em seu perfeito juízo e entendimento. Percebe-se então que. Maria Joaquina Rosa. Mas não foram poucas as que fizeram seu testamento dias ou mesmo horas antes de sua morte. Maria de Nazaré . doente. enferma de doença. Anna Joaquina dos Reys de Aragão. sem moléstia alguma. Roza Clara Correa. doente de uma doença grave. hum tanto molesta de humas febres. de cama e gravemente enferma. duente de duensa crônica. Anna Roza Gomes. porém em perfeito juízo e entendimento consciencia e pasciencia. algum tanto doente. antes com saúde perfeita e entendimento. Maria de Castro Cavalcante. Rita Raimunda de Cássia Castro e Souza. emferma e já com os sacramentos percizos. Maria Joaquina Rosa. porém de pé. Maria Francisca. Laurianna Ferreira Gomes. enferma de cama. Vicência de Oliveira. Jozefa Maria da Encarnação. que adiantada em annos. Maria Xavier da Gama. deitada em uma rede. Joanna Correa de Andrade. Mônica Thereza da Costa Antunes. Anna Maria Garcia. saa’ de pe e sem doensa alguma. doente em hua’ rede. doente de bixigas. encontram-se Dona Anna Umbelina de Aguiar. Apolônia Pereira da Silva. Apolônia Maria de Lemos. Declarando estar doente de cama. com saúde e em perfeito juízo e emtendimento. Maria Luiza da Incarnação. gravemente inferma. se algumas daquelas mulheres 273 . acamada por uma doença. gravemente enferma e em perigo de vida. enferma e de cama. Havia ainda aquelas que externaram de modo mais contundente o motivo que as empurrava a fazer o testamento. de pé e em perfeito juízo. molesta. podendo espirar em hum instante. Anna Joanna Dornelles. preta rapariga. moleca. pelo amor de Deus e pelo amor que lhe tinha huma criolinha de idade de cinco anos. seu filho Leonardo. recomendações. alforrias. criolla rapariga. escrava mulata. In: MELLO E SOUZA. por elas chamados machos. traduzindose nos testamentos pelo reconhecimento de laços afetivos. Maria de Castro Cavalcante e as escravas Francisca. Laura de (org. de pé e em perfeito juízo. Sem declarar maiores motivos. crias. Maria Thereza de Jesus que deixou forros seus escravos Anastácio. Marcos e a molatinha Anna. Isso porque. 274 . Mary del Priore observa que outros mais forravam seus escravos “por amor e perdoavam. chamada Maria Quitéria. destacamos: Vicência de Oliveira e as mulatinhas Quitéria e Paulina. seu filho Caetano. Maria Joaquina Velha e Rosa Velha. Mary del. pretta crioula. sem doença alguma. fêmeas. assim como a mollata Perpetua e sua filha Esmillia. mulata rapariga. Ritos da vida privada. Rita Raimunda de Cássia Castro e Souza que deixava forros e isentos do cativeiro a escrava mulata Simoa. a escrava Juanna. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. Joze Cabelleira e Ritta Angolla e Maria da Silva e os escravos Clara. Nesses registros.). limitando-se a determinar e conceder a alforria a seus escravos. ja velha.gozavam de boa saúde. acamadas e com grande temor de uma morte próxima. e Nicollau pellos 13 PRIORE. não poderíamos deixar de assinalar as relações estabelecidas com seus escravos. Anna Roza Gomes e a mulata Maria Izabel. pouco mais ou menos. debilitadas. SP: Companhia das Letras. molatinhos. para além da esfera do trabalho. Roza Clara Correa e a escrava por nome Thereza e seu filho Fábio. sabendo que a caridade era imprescindível à salvação13 como fica claro nas determinações de Maria Xavier da Gama que deixava forra livre de todo o cativeiro. 1997. Benedita. a maior parte não estava bem quando fizeram seus testamentos. encontravam-se moribundas. ou seja. a presença desses no cotidiano de suas senhoras marcava as relações pessoais e sociais. p 323-324. os escravos Miguel Mandiga. pretinhos. onde práticas e costumes desenham os perfis daquelas senhoras. Pedro Bujago. formas nominais de tratamento etc. oficial de ferreiro. rapariga. No caso desses últimos. ao genro. também foi possível observar comportamentos e relações econômicas. e bens. que disse conceder seis meses para sua escrava Juanna pagar cento e cincoenta mil réis por sua carta de liberdade. depois do seu falecimento. que concedeu um ano para o escravo João Angola conseguir cento e oitenta mil réis para a sua liberdade e dois anos para Quitéria Mina conseguir quarenta mil réis e receber sua carta de liberdade e a de Joaquina Maria Garcia. um preto crioullo por nome Francisco Joaquim e Jozefa Maria Cappitulo que registrou ser sua última vontade que sua escrava Claudina. bem como aproximarse de objetos de valores significativos como rolos e varas de algodão. levando-nos. etc. e Maranhão a liberdade das suas pessoas. inclusive. De modo específico. confiança e gratidão. as declarações de dívidas e devedores indicam as transações feitas com base em trocas e créditos. ao primo. libertos do cativeiro por falecimento do ditto meu marido. prestações de serviços ou ritos como a de Maria de Nazaré que deixava forros. ao caixeiro etc. e quando a mesma forrar seu filho dará quarenta mil réis.bons servissos e principalmente pello amor de Deos. gozando da sua liberdade como se livre nascesse do ventre materno. Observamos que. à botica. a clérigos. Joanna Correa de Andrade que deixava liberto. Por outro lado. nota-se 275 . mesmo após 1755. a tatear os montantes desses negócios que se mostraram comuns entre mulheres e homens. seus escravos Raimundo Manoel Crioullo e a preta Anna Angolla. Deviase à comadre. muitas foram as Cartas condicionadas a valores. à quitanda. escravos. quando passou a vigorar a Lei porque Vossa Majestade haja por bem restituir aos índios do Grão Pará. medicamentos. Através das frestas dos testamentos. a de Maria Magdalena de Jesus. tanto nos papéis de credores como devedores e os indícios de tensões provocadas pelo não pagamento daqueles que deviam. fosse liberta pelos bons servissos que lhe tem feito. ao sobrinho. e comércio suas presenças enquanto escravos eram confirmadas em testamentos como o de Dona Anna de Araújo Cerveira que deixa como legado em seu testamento um capanga por nome Jaurentena. ao cirurgião. Monica Joquina Lopes. Raimundo Joze Marinha. dinheiro que lhe deu para tratar de sua moléstia. que não se esquivou de reconhecer as dívidas de cem mil réis com Manoel Domingues Santos. da quantia de duzentos mil réis. 276 . pouco mais ou menos com João que tem quitanda ao pé do Desterro. que reconheceu ser devedora de dois mil quinhentos e sessenta réis e tudo o mais que fosse gasto deste dia em diante consigo em sua doença. e. Apolônia Maria de Lemos. vinte e tantos mil réis ou o que elle dizer e trinta e sete mil e quarenta réis com seu primeiro testamenteiro. que. ao defunto José Pereira três mil. oitocentos e quarenta réis de três varas de pano que lhe comprou.a prática de “comprar fiado” e a existência de dívidas contraídas para a satisfação das necessidades cotidianas. para o Senhor Joze Antonio de Castro Souto Maior. que declarou dever várias quantias de dinheiro a diversas pessoas. É o caso de: Maria Thereza Pereira. caixeiro de Jozé Gonçalves da Silva e a Luís Antonio Soares Mendes o que ele dissesse que a mesma lhe devia. Joaquina Maria Garcia. deixou a quantia de quarenta mil réis para a Virgem Nossa Senhora da Conceição dos Pardos. por fim. uma vez que confiava muito na sua verdade. vinte e cinco mil réis com Estevão Gonsalves Braga. Francisca Apolonia Pahim. quatro mil réis com Manoel Cacheiro. As cédulas testamentárias igualmente revelaram um cotidiano onde muitas dívidas daquelas senhoras eram feitas com a “corte celestial”. a Joaquim Antonio de Brito. que declarou ser devedora de quatrocentos mil réis de missa cantada para a Senhora Santa Anna. morador na cidade de Lisboa o que constasse no assento de Domingos José Martins. Laurianna Ferreira Gomes. Maria do Rozário. Isabel Marinha de Mello. como nos casos de: Joanna Correa de Andrade. que reconheceu dever ao Senhor Sam Jozé de Ribamar a quantia de dez mil réis. por promessa. que reconheceu ser devedora ao dito seu irmão. que reconheceu dever treze mil e quinhentos e vinte réis para seu compadre Francisco Gomes e da quantia de sessenta mil réis a João José da Costa. que reconheceu ser devedora ao senhor Joze Francisco de Figueiredo da quantia de vinte mil réis. que rogou para que seus testamenteiros pagassem a dívida que tinha com São Benedito de duas libras de cera. Apolônia Pereira da Silva. que disse ser Gregório Gonsalves seu devedor da quantia de quinze mil réis. da quantia de vinte mil réis de dinheiro de empréstimo para ajuste da sua alforria. porém. que foi escrava do Major. assim também Roza. Joanna Correa de Andrade. temos os casos de: Anna Joaquina dos Reys de Aragão. determinando que sua herdeira cobrasse as tais dívidas. Apolônia Pereira da Silva. que tomou nota de cento e oitenta mil e oitocentos réis que Mathias Filippe da Costa lhe devia. lhe devia. Maria do Rozário. que foi sua escrava. Custodia Nicacia do Nascimento. já que eram seus únicos bens. Monica Joquina Lopes. valor a ser cobrado por seu testamenteiro. não completasse a quantia para a compra de sua liberdade. que revelou ser sua única devedora sua sobrinha Anna da Piedade. dos duzentos mil réis pela qual prometia forralla. advertiu. que. homem preto morador no Itapecuru. a escrava Rozaura havia lhe dado setenta e seis mil e oitocentos. dentro de um ano. determinando que fosse obrigada a dar a ditta rapariga que comprou ou na falta será obrigada a dar o valor da ditta escrava ou a quantia de cem mil réis. que mencionou os setenta mil réis que lhe ficou devendo Joanna. Anna Joaquina Mouzinha. Mônica Thereza da Costa Antunes. da quantia de trinta mil réis.No que se refere a empréstimos destinados a outrem. que lhe havia pedido emprestado a quantia constante de sua obrigação. seu testamenteiro a venderá amigavelmente pelo que lhe parecer. que declarou serem seus devedores Doarte Nunes. registrou os dez mil réis que Francisco Correia. Luís Domingos. caso a dita escrava. Por fim Joaquina Maria Garcia também lembrou que. assim como sua comadre Lourença Correa de Jesus. que apontou Joze Gabriel Marques como seu devedor da quantia constante da sua obrigação. Observa-se que muitas dívidas conformaram-se a partir da solidariedade daquelas mulheres 277 . seu padrasto. devolvendo à dita escrava os ditos setenta e seis mil e oitocentos réis já pagos. até aquele momento. da quantia de cento e trinta mil réis de um escravo que comprou. pela compra da alforria. da quantia de doze mil oitocentos réis por huma obrigação e João Gualberto. da quantia de seis mil réis. que apontou Josefa Francisca de Mello como devedora de uma rapariga. Izabel. duzentos mil réis para cada sobrinha. uma cafeteira. quatrocentos centos mil réis para seu sobrinho Joze Lima Nunes Berlfort. Para finalizar o que chamamos “perfil identitário” destacamos alguns casos que nos chamaram a atenção. filha de sua irmã Luiza. Ao fazer seu testamento. uma leiteira e um açucareiro de prata para sua sobrinha Olímpia. nunca teve filhos. cem mil réis para o sobrinho Joaquim. filha da dita irmã Joanna. O primeiro deles é o testamento de Maria Isabel Freire. trezentos mil réis para seu sobrinho Cezar. Hum cento e duzento mil réis para sua sobrinha Cândida. já falecidos. seiscentos mil réis para sua sobrinha e afilhada Maria Magdalena. Trezentos mil réis para Amélia. seis escravos. Jozefa e Izidora. declarou encontrar-se em perfeito juízo e entendimento. Hum escravo ou escrava para sua irmã Ignácia. tres machos e tres femias para sua sobrinha Maria Magdalena da Serra Freire e a seu marido Raimundo Nunes. seiscentos mil réis para a sobrinha e afilhada Maria Raimunda.especialmente para com seus parentes. também filho da dita irmã. filha legítima de Joaquim da Serra Freire e de dona Maria Magdalena Belfort. um bule. filho do Capitão Thomas. uma bacia e uma jarra de prata para seu sobrinho Sebastião Gomes. Casada por carta de ametade com o Tenente Coronel João Paulo Carneiro Lourenço. No mesmo documento elencou os seguintes bens e herdeiros: seiscentos mil réis para a sobrinha Joanna. Legoa e meia de terra que tem no Rio Preto para todos os filhos e filhas da sua irmã Luiza. filha de sua irmã Izabel. filha de sua falecida irmã Francisca. quatrocentos mil réis para seu sobrinho Raimundo. filha da dita irmã Luiza. oitocentos mil réis para seu sobrinho Joze Joaquim Henrique. a saber: Luiza. também filho da dita irmã Izabel. motivo pelo qual não tinha herdeiro necessário dispondo da ametade dos bens do casal a seu livrearbítrio. filha de sua falecida irmã Izabel. natural de São Luís do Maranhão. filho da dita irmã Joanna. filho da dita irmã Joanna. todavia outras apresentavam caráter notadamente comercial. filho de sua irmã Ignácia. cinqüenta braços de terras de frente com uma légua de fundo em paraje da nomeada Santa 278 . um tabuleiro de chá de prata. Francisca. filha de sua falecida irmã Joanna. cinquenta mil réis para o filho de sua prima Maria Magdalena. dous contos de reis para Dona Anna Leal e dous contos de reis para Dona Maria Leal. viúva de Leonel Fernandes Vieira. filha do dito seu filho Joze Joaquim. Seiscentos mil réis para a afilhada Maria Izabel. cento e cinquenta mil réis para sua afilhada Julianna. filho de seu primo Francisco da Serra. seis contos de réis para as netas filhas de sua filha Dona Rita Joaquina Vieira Belfort. todos nomeados seus legítimos herdeiros. ter passado ao largo da letargia apregoada durante tantos anos pela historiografia é Roza Francisca Maria Berfort. porém em seu perfeito juízo e entendimento. filha de sua sobrinha e afilhada Donna Maria Joaquina Henriques. ditado um dia antes de sua morte. que a sua filha Maria Joaquina lhe devia. cinquenta mil réis para (sic!) de Santo Antonio. filha de sua prima (sic!). Joaquim Antonio Vieira Belfort. Dona Maria Joaquina Vieira Belfort e Dona Rita Joaquina Vieira Belfort. dois contos de réis para a sua neta Maria Rita Belfort. os aluguéis. No documento. cinquenta mil réis para a Capela de Nossa Senhora do Desterro. cento e cinquenta mil réis para a afilhada Raimunda. cem mil réis para ser repartido entre os pobres. para a sua filha Dona Maria Joaquina Vieira Belfort. cinquenta mil réis para a Igreja de Nossa Senhora da Conceição.Anna no Rio Itapecurú para a sua irmã Lourença. declarou estar doente de cama. cem mil réis para Marcio. Quando fez seu testamento. vallor das cazas em que morava na Rua das Mercês. do qual teve os filhos Joze Joaquim Vieira Belfort. pelo seu testamento. dois contos de réis para seu neto Augusto César Bandeira e hum negro que já o havia prometido e 279 . uma para a neta Dona Carlota Joaquina Bandeira e a outra para a neta Dona Líbia Bandeira. Outra mulher da família Belfort a demonstrar. a saber: dous contos de reis para Roza Antonia Joaquina Leal. deveriam ser repartidos em duas partes iguais. filha de seu primo João Carlos da Serra. Declarou mais que deixava libertas as escravas Andreza e a mulata Antonia Pernambucana. duzentos mil réis para (sic!). oito contos de réis. fez o seguinte elenco de suas posses e legatários: A casa e o sítio da fazenda na ribeira do Itapecurú para o seu filho Joze Joaquim Vieira Belfort. Também pediu que voltasse a escrava emprestada para o dito Manoel Antonio Leitão Bandeira. declarou 280 . no qual exigiu que mandassem fazer cinquenta missas de corpo presente. uma medalha e um anel de brilhantes do seu uso para sua filha Dona Rita Joaquina Belfort. Por fim. Seis varas de pano grosso de roupa a cada hum de todos os seus escravos e escravas. não teve filho algum e nem descendente ou antecedentes. o Doutor Joaquim Antonio Vieira Belfort. seu genro. a fim de que fosse incorporada ao monte do casal. Roza Francisca determinou que fossem libertos sua escrava Vitória do Rozario e o escravo Mathias de sua fazenda no Itapecuru. a dita minha neta. os quaes justarao contas com o meu testamenteiro. Declarou mais que seu filho. a quem tenho dado (sic!). pelos bons serviços que lhe haviam feito. cinquenta mil réis para Nossa Senhora do Monte do Carmo. Suas roupas para as filhas Dona Maria Joaquina Belfort Bandeira e Dona Rita Joaquina Vieira Belfort. filha legitima de João Lopes de Souza e de Elena Correa de Araújo. cem mil réis para o seu testamenteiro. o Doutor João Francisco Leal e Manoel Antonio Leitão Bandeira eram seus devedores e elles bem sabem o que devem. já falecidos. cinquenta mil réis de esmolla para Nossa Senhora das Mercês. à sua neta Dona Carlota Bandeira. à sua neta Dona Líbia. cem mil réis para as despesas da Igreja dos padres do Convento de Santo Antônio. para serem inteirados do saldo liquido das legitimas. batizada na Freguesia da Sé de Nossa Senhora da Vitória. Huma molata por nome Camilla e huma preta por nome Justina. Duzentos mil réis para o seu afilhado Leonel Filho de Joaquim Freire. Quando fez seu testamento. um par de brincos de brilhantes para sua neta Roza Maria Joaquina Bandeira Belfort. Outra mulher de posses foi Maria Jozefa Lopes de Souza.ratificava. casada com o Doutor Bandeira. sem excepçao. Viúva do falecido Joze Marques da Cunha. Huma crioulla também preta por nome Maria dos Reys. quatrocentos mil réis para sua sobrinha e afilhada Dona Arcelinda que se achava no dito Recolhimento. um anel de brilhantes de seu uso para sua neta Dona Carlota. duzentos mil réis para o Recolhimento desta cidade. Huma preta crioulla por nome Ignacia. gozar de saúde. Venancio que foi escravo. filhas de seu afilhado Theodoro. três contos e duzentos mil réis para seu sobrinho. trezentos mil réis para o seu sobrinho Antonio Joaquim Lamaignere. seiscentos mil réis para os filhos de seu sobrinho o Capitão Josquim. Teodora. seiscentos mil réis à sua sobrinha Dona Ignes Raimunda Lamaignere. oitocentos mil réis para o seu afilhado João Bento Correa Lopes. Jozefa Betancart. seu afilhado João Raimundo. duzentos mil réis à sua sobrinha Dona Maria Trindade. oitocentos mil réis para os filhos do seu compadre Valério Correa Lopes. 281 . Todavia declarou o que e para quem deixava os seguintes legados: trezentos mil réis de esmola para os pobres. Ignacia Maria de Goveia. outra casinha na Rua detrás dos Remédios para a mulata Clara. oitocentos mil réis para sua filha adotiva. Maria Magdalina Marques da Cunha. seiscentos mil réis à sua sobrinha Dona Anna Thereza de Souza Trindade. No documento. trezentos mil réis à sua sobrinha Dona Anna Vianna. cazada com Capitao’Agostinho Ignácio Rodrigues Sorres. e que instituía por herdeiro universal dos bens que restassem dos seus sufrágios e legados o seu sobrinho Capitão Pedro Miguel Lamaignere. duzentos mil réis à sua comadre Victoria Maria. a escrava Crioula Antonia com todos os seus filhos para sua comadre Victoria Maria. Seiscentos mil réis para a sua mana Rosa Clara. filho da sobredita mulata Clara. Victoria Maria Betancort. um terreno. não estabeleceu um rol detalhado de seus bens. Antonia Maria Correa e Claudiana. Registrou mais que deixava livre de todo o cativeiro seu escravo Antonio Caetano. a preta Maria com todos os seus filhos e uma casinha na rua detrais de Nossa Senhora dos Remédios para seu afilhado João Bento Correia Lopes. Uma casinha para seu afilhado Antonio Luis Lopes. alegando serem constantes e conhecidos dos seus testamenteiros. perfeito juízo e entendimento. Duzentos mil réis para Manoel de Assumpção. sua ex-escrava. o Capitão Pedro Miguel Lamaignere. seiscentos mil réis à sua sobrinha Dona Roza Elena Lamaignere. uma fábrica de descascar arroz e uma casinha para o seu compadre Valério Correa Lopes. seiscentos mil réis à sua sobrinha Dona Maria Henriqueta Lamaignere. duzentos mil réis para serem repartidos igualmente com Marta Caetana Borges. que eram: Huma escrava chamada Felícia. fez “ordenar” seu testamento. natural do Reino e morador em Cabello de Velha. hum par de botões do peito da camiza de ouro. Natural da Costa da Mina e batizada como verdadeira cristã. deveriam. morador em Oeiras. todavia. Anna Maria foi escrava do Reverendo Frei Florêncio Jozé de Brito. douz pares de botoenz de ouro dos punhos mais pequenos. Os mais móveis que se achassem em sua casa. trinta e oito mil e quatrocentos réis. hum taxinho de cobre. um lasso de ouro. pardo. havia acumulado significativos bens e dinheiro. ao morrer. Declarou. haver conseguido sua liberdade por cinquenta mil réis (com licencaz de seus Prellados maiorez) e que vinha gozando “pacificamente” de tal liberdade desde três de julho de 1778. huma Senhora da Conceiçam de ouro. essa mulher era uma ex-escrava que em seu perfeito juízo e entendimento. Hum pretinho chamado Domingos das Chagas. temendo a incerteza da morte a que estam sujeitos todos os viventes. Declarou como seus devedores José Gonçalves. dous pares de botões de ouro de punhos. os quais deixou à preta Roza. ser divididos entre o testamenteiro (que aceitasse seu testamento) e a dita preta Roza. Huma cruz de ouro. a quem havia emprestado trinta e dois mil réis para um negócio. por sua vontade.O testamento da Preta Anna Maria também apresenta a história de uma mulher que. no documento. a quem havia concedido alforria. dous pentinhos cobertos de ouro. da quantia de cinquenta mil réis. três varas de cordão de ouro divididas em três partes iguais. huma bacia de arame. uma volta de contaz de pezcosso com suas chapinhas. Anna Maria determinou que seu testamenteiro fizesse as 282 . os quais deixou ao rapazinho Peregrino. mas. o senhor Jozé da Rocha Luiz. hum Rozarinho misturado com contas de ouro e sua cruzinha de ouro. Joam da Cruz. com huma cria de peito chamada Urbano (os quais já havia vendido ao seu primeiro testamenteiro. por presso certo de duzentos mil réis). duas pessas de seis mil e quatrocentos réis. hum anel de pedra amarella e outro de ouro. seu ex-escravo. três pares de brincos. mercenário. pela boa companhia e servisso. Também esclareceu não ter erdeiro algum azcendentes ou dezcendentes para seus limitados beinz. Antonio Jozé. dentre as quais que dissessem por sua alma cinco capellas de missas. seis colherinhas de chá. Raimundo João de Moraes Rego. na ocasião em que se ausentou de sua casa. o Reverendo Jozé da Rocha Luz. a quem declarou sua universal herdeira e estava pejada de poco mais de hum mês. viúva de seu avô Joam Ignácio de Moraes. Maria Raimunda.Todas as disposições acerca de sufrágios e funeral Maria Raimunda deixou a cargo de seu primeiro testamenteiro. moradores na Ribeira do Itapecuru. por sua tenção e outra para a santa de seu nome. pelas almas do Purgatório. seis colheres. levou consigo quatro escravos: Violante. 283 . dois castiçaes e huma salva. seis garfos e seis facas. que faleceu quinze dias após ditar suas disposições testamentárias. mais huma a seu anjo de guarda. tanto secular como eclesiástica em depósito na casa de seu cunhado Raimundo João.“diligências” necessárias para cobrar as tais dívidas. tudo de prata. Maria e Dorotéa. a do testamento de Dona Maria Raimunda de Moraes Cantanhede decorre do mesmo apresentar parte de uma história cuja protagonista teve uma vida pontuada de conflitos. Dona Maria Raimunda encontrava-se gravemente enferma em casa de Dona Maria Lourença de Moraes. em razão das sevícias praticadas pelo dito marido contra sua pessoa. como se vê a seguir. acolhendo-se as forsas da justiça. pois estava fugida da companhia de seu marido. À época da feitura de seu testamento. Se a escolha dos testamentos anteriores deveu-se ao explícito poder material daquelas mulheres. Natural de São Luís do Maranhão. Disse que. a fim de que suas últimas vontades fossem satisfeitas. era filha legítima de Faustino Jozé Cantanhede e Anna Joaquina de Moraes Rego. Quitéria Crioulla. Casada a face da Igreja com o capitão Bruno Antonio Nunez. tinha uma filha de menoridade por nome Rita. ressaltou que apenas fugiu da cruel companhia de seu marido por sentir demasiada necessidade de socorros à sua saúde e à sua comodidade. batizada na Igreja da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória da catedral da mesma cidade. outra pelas pessoas com quem tinha contratos ou fosse responsável.Por fim. pelos muitos obzequios e favores que lhe era tributária. nomeou por universal erdeiro do restante de seus bens seu primeiro testamenteiro. de vontades. batalhadoras. de estratégias. situada na Ribeira do Itapecuru. Quando fez seu brevíssimo testamento. pediu emprestado a diversas pessoas algumas quantias de dinheiro. e que se via sem meios de alimentar-se a si e à sua família. destacamos o testamento de Maria Querubina de Morais Rego e Silva por declarar-se em “perigo de vida”. revelou que nas ocasiões em que seu marido lhe deixava só na fazenda de lavouras. porém em seu juízo perfeito. o qual supomos uma doença ou ameaça. Sobre seus bens. Ignez e Jozefa. estavam cuidando de suas 284 . Senhoras de posses. Por fim. Para tanto. afirmou que estava em perigo de vida. Conclusão O artigo que ora chega ao seu fim teve como intenção observar a presença de mulheres na dinâmica econômica e social do Maranhão colonial e contribuir para retirá-las do esquecimento. e ser proprietária de um negócio pouco comum às mulheres naquele momento: uma botica. Joze Candido. Olímpia. alguns escravos e alguns trastes. e que se destinasse uma esmola de quatro mil réis a São Benedito. entregou-lhe os bens que trouxera consigo para que os vendesse. disse apenas ser proprietária de uma Botica situada na Rua Grande. Por fim. expressou o desejo que rezassem cinquenta missas à Nossa Senhora da Conceição. ao valor de trezentos e vinte réis. onze dias antes de falecer. de cujo matrimônio teve os filhos Rita. a Santo Antônio e à Santa Luzia. que longe de passar os dias em sonolentas redes. aguerridas.para os quais se contratou com seu depozitário a não lhe desamparar com o necessário. enquanto sujeitos históricos. destemidas. De suas poucas vontades. ao grosso e morno ar do Maranhão. por esmola do costume. Clementina. Fora casada a face da Igreja com Joaquim Estevão da Silva. Nesse cenário desenrolam-se histórias de mulheres que agora rompem o cerco de uma historiografia que por tanto tempo as barrou. Maria Querubina era natural da Freguezia de Nossa Senhora do Rozario do Itapecuru. as quais ainda não havia pago por nam ter com que. tanto à sua saúde quanto aos funerais de sua morte. por serem mulheres. Rozas.. atuando na dinâmica econômica e social em que estavam inseridas. garantindo a posse de suas terras. Franciscas. Anas. “parecem” não ter história e nem ter participado da história maranhense. muitas Marias. Caetanas. Mônicas. 285 . Ledo engano.. Querubinas. Apolônias a seu modo participaram das engrenagens que movimentaram a economia naqueles 22 anos. enfim. Histórias escritas nos Testamentos. pois de Anna Umbelina a Maria. Sujeitos históricos que.lavouras. contabilizando suas cabeças de gado. . A incapacidade feminina fundamenta-se em dois pontos: primeiramente o de sua natureza.Entre a proteção e o abandono: recolhimentos femininos na cidade de Lisboa no Período Moderno Suely Creusa Cordeiro de Almeida Universidade Federal Rural de Pernambuco A condição feminina no Império Português do Antigo Regime é ambígua. Imbecillitas: as bem–aventuranças da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime. Jeanne da Silva.. 2 HESPANHA. não poderia ser fiadora. de cunho moral também tecido na tradição aristotélica. No entanto. A ele. Quanto aos bens. está calcada numa ordem social que privilegia as ações que. 2010. na qual ficava explícito que não podia ser presa por dívidas. gozava de atenuantes no que tangia à aplicação das penas. MENEZES. 2005. como argumentam Aristóteles. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Essa incapacidade foi grafada na legislação do Império.2 Não havia legalmente oportunidade para a mulher exercer plenamente uma capacidade jurídica. enfaixa sua incapacidade no pecado original1. não podia suceder.CAPES/Escola de Altos Estudos. por sua inferioridade e irracionalidade. 64. pois passava da sujeição paterna para a marital. António Manuel. Direito Luso-Brasileiro no Antigo Regime. necessitava de procurador para se representar. Florianópolis: fundação Boiteux. Também o casamento não a emancipava. conquista uma gama de privilégios. uma característica do período moderno. António Manuel Botelho. nomeadamente nas Ordenações Filipinas. (Tese de Doutorado em História). 1 287 . imbecilizado. era permitido castigar moderadamente sua esposa e até matar se a surpreendesse em adultério. MENEZES. 2010. Cf: HESPANHA. Apresenta-se a mulher como um sujeito inferiorizado. p. Sem embargo de ser fêmea – as mulheres e um estatuto jurídico em movimento no direito local em Pernambuco no século XVIII. Platão e Hipócrates no Tratado de la Generacion de los Animales. p. protegendo os insanos. um outro. o marido. PPGH/UFMG São Paulo: Annablume. Ibid. torna-se bem-aventurada e constituise como boa sociedade. Essa ambiguidade. não seria admitida nos cargos públicos. 129. embora essa interdição estivesse culturalmente estabelecida numa literatura jurídica. uma imagem de pureza perpassou todo o imaginário moderno. que. para agenciar sobrevivência. foram desejáveis como comportamento idealizado para as mulheres. A honestidade e a reclusão.. p. não necessariamente a conventual. O que comprova isso é a ação feminina em todas as partes do Império quando. dessa forma exercendo capacidade jurídica. configurando-se na representação desejável para o “sexo frágil”.além de prover o sustento do lar através do dote. fosse para casar ou se enclausurar. como sempre. não se abandona de todo a norma. as mulheres que se consideravam bem nascidas tiveram que lutar por toda a vida para manter esse lugar. fosse através dos bens materiais ou dos imateriais. preservando a boa fama. estava privada de administrá-los. cumprir as etiquetas e os preceitos cerimoniais. ou seja. passando pelo direito às obras literárias. e essas vão sendo incorporadas a um cotidiano. 135. Numa sociedade onde o aparentar ser valia mais do que o ser. como a honra. 136. é precário. todo esse aparato conviveu com uma ação feminina que nega pelo menos em parte essa incapacidade. Ibid.. Atender a uma imagem esperada. As mulheres do Império que estavam em estratos sociais abaixo da nobreza precisavam asseverar sua honestidade e sua boa reputação para conquistar os privilégios que sua inferioridade e incapacidade jurídica lhes conferiam. consolidada inclusive na jurisprudência dos tribunais.4 O que observamos é que a norma oriunda do Reino é sempre levada em consideração como parâmetro para qualquer nova necessidade. incorporar aos discursos elaborados os elementos esperados de uma cultura laica 3 4 Ibid.3 Mas. a oportunidade para a aquisição de bens fundiários. Das leis. prerrogativas unicamente masculinas. o que lhe era proibido pelas leis vigentes. mas uma realidade concreta impõe novos comportamentos e novas práticas. buscou na política da propriedade de ofícios a garantia de um dote. advogar honestidade e boa fama. p. 288 . E a imagem de honestidade repercutia na manutenção de bens e lugar social. MENEZES. como instituições do mundo português. Op. cit. elas vão negar isso na prática quando emancipadas pela propriedade de ofícios. passim. como cristãs e casadas. densidade… era quase palpável.5 Embora a ordem social e jurídica tenha definido. irmã do 7º Morgado do Cabo. um perfil de passividade e reclusão. fora das normas ou dos comportamentos idealizados. Conquistam um espaço de atuação civil (embora legalmente proibidas). 5 289 . Op. Estevão Paes Barreto. Temos como exemplo Brites Manuela. Suely Creusa Cordeiro de. em Olinda. Recife: Editora Universitária/UFPE. O grande medo que sempre rondou as mulheres bem nascidas foi o fantasma da prostituição. Saliente-se que ser honesta tinha materialidade.. Assim. p. as mulheres conjugariam em um mesmo estado as dimensões sagradas e profanas. O sexo devoto: normatização e resistência feminina no Império Português séculos XVI–XVIII. administradoras e proprietárias. Perder a tutela familiar e ter que agenciar a sobrevivência sempre assombrou a gente de qualidade. as Ordenações não faziam diferença entre a educação feminina e a masculina. acusada de prostituição. pois é mais do que sabido que um mau passo dado por mulheres importantes. Portanto para as mulheres no casamento era necessário viver em contrição com o divino. ou para prevenir.e religiosa foram estratégias usadas pelas mulheres para atingir seus objetivos junto aos tribunais ou às instituições do Império em geral. impedindo principalmente os homens de se incluírem na boa sociedade. 42 . para as bem nascidas. igualando-se em importância o estado de casada ao de religiosa. Hespanha define os estados como sendo de cristã casada e religiosa. ALMEIDA. tornando-se inventariantes.6 Embora consideradas imbecis. é claro. Direito Luso-Brasileiro. representava estar incluída na boa sociedade. p. que foi enclausurada no recolhimento de Nossa Senhora da Conceição. seria uma mácula para toda uma linhagem familiar.. os recolhimentos. Para remediar situações já impostas. para as mulheres bem nascidas. foram sempre uma saída à mão das famílias em geral. 2005. idade e bens. 6 HESPANHA. cit. 142. A busca de um estado. assim as mulheres precisaram de toda a assistência possível para conquistar estado. Não importa qual a configuração que cada casa alcançou ao longo do tempo. Questões que vão desde os desejos de devoção ao Salvador. o do Castelo de Lisboa. abria espaço para a luxúria e o adultério. Revista Faces de Eva. tema já estudado anteriormente por esta autora. na chamada “tradição cortesã”. como o da Paraíba. O fato de os homens se arriscarem em empreendimentos cada vez mais distantes das famílias. O mais famoso. aceitando. Universidade Nova de Lisboa: Edições Colibri. 7 290 . Suely Creusa Cordeiro de. em Filipéia de Nossa Senhora das Neves. atendendo aos múltiplos anseios da sociedade e. o controle amplo sobre a vida sexual dos casais. Brincando com fogo: contando histórias de amor no Brasil dos Setecentos. passando pela educação. 75-85. como o do Castelo de Lisboa. como demonstra documentação depositada no Arquivo Histórico Ultramarino para a capitania de Pernambuco. aos da família no Antigo Regime. p. a instituição Recolhimento Feminino surgiu em todo o Império Português e foi de suma importância para a solução de múltiplas problemáticas que envolveram as mulheres. n.7 Esse movimento vai criar uma zona nebulosa que provocará ações femininas na direção de contradizer as famílias no que tange à escolha de cônjuges. as afeições começaram a ganhar espaço. 23. Seus perfis foram diferenciados. até os enclausuramentos forçados. um cargo ou ALMEIDA. indo para as conquistas tentar a sorte nas novas praças portuguesas. até os mais simples. sem exceção. muitas vezes. as devassas imperiosamente realizadas pelos bispos em suas dioceses demonstram que os comportamentos tanto de homens como de mulheres na sociedade colonial fugiam e muito ao desejado! Assim. todas. Houve aqueles que buscaram recuperar prostitutas e mulheres perdidas. estiveram voltadas a proteger a honra feminina. que abrigou as filhas dos funcionários reais que feneceram nas conquistas. os chamados de Recolhimento das Convertidas e aqueles que se esmeraram em promover uma educação para o casamento. consequentemente. no norte do Brasil. tendo como base o afeto. esse amor cortês. 2010. Embora fosse uma interpretação que ele. As ações moralizantes por parte da Igreja. há certo encantamento pela constituição de laços.No século XVIII. Os recolhimentos. abandonadas pelos familiares e feridas pela vida. Assim o espaço do recolhimento acabou sendo um lugar abrigo para uma gama variada de mulheres que podem ser definidas como: Evas. 291 . cit. uma população excedente de mulheres brancas que tinham uma condição social intermediária e que se encontravam em uma situação de desproteção econômica nas praças imperiais. para as vivências de seu cotidiano.ofício alcançado por mercê real. as vocacionadas para a religião e que buscaram a devoção. econômicas e administrativas de interesse da coroa. ou as casadoiras. passando pelas jovens oriundas da uma burguesia nascente. levava-os a permanecer envolvidos com questões políticas. tanto do reino como das conquistas. e Madalenas. mas que atendia às necessidades apontadas pelas mudanças impostas. por muitos anos. híbrido. Surge. modernizando-a. não se voltavam completamente para a devoção. em sua estrutura. não eram casas reconhecidas canonicamente.. passim. pois não havia formas alternativas para o Estado desvencilhar-se de uma população feminina indesejável. até as escravas. Eles ficavam a meio caminho do convento: educavam. surgem para dar solução a essa problemática social. Op. os votos perpétuos. a formação de famílias ilegítimas. estabelecendo. ver suas filhas contrair matrimônio com pessoas de estirpe inferior ou ver a miséria de sua condição levá-las da dissolução dos costumes à prostituição. Marias. Esse espaço de encontro permeado pelos mais variados perfis 8 ALMEIDA. Sua organização interna foi um misto de convento e colégio. então. eles se apropriaram da disciplina conventual. O sexo devoto. Esse envolvimento provocou um distanciamento de famílias já constituídas. como instituições leigas. mulheres transgressoras. desconstruindo partes da estrutura do convento e fazendo-a ressurgir em parte como algo novo. Inaceitável era para a nobreza. uma hierarquia que englobava todas as camadas sociais.8 O abandono dessa camada de mulheres muito incomodava a sociedade. ou até a opção por não estabelecer vínculo de casamento com as mulheres reinóis. pois não contemplavam. desde senhoras fidalgas. mas não formavam freiras. forçavam a seguir uma disciplina rigorosa. já outros almejaram se tornar conventos. pretendemos analisar a instituição recolhimento. foi constituída uma irmandade devota à Nossa Senhora do Amparo.femininos tornou-se também um espaço de vivência e experiência dos conflitos interiores de cada uma.9 Foi fundado por Diogo Lopes Solis em 1598. irmãos necessários e sua hierarquia. 3) o criado para dar um estado. 9 AGUIAR. 8. por fim. mas que possuíam um tratamento específico para com as meninas no que respeita a casamento e dote. Eram sete as partes de que tratava o texto: instituição da casa. e eles serem reconhecidos canonicamente. em Portugal. principalmente às órfãs filhas de funcionários reais que morreram nas conquistas. a partir dos que surgiram na cidade de Lisboa na era moderna. cujo exemplo é o Recolhimento do Castelo de Lisboa. Vale salientar que o texto sobre as instituições é bastante confuso quanto às mudanças do século XVIII para o XIX. Espaço plural de proteção e realização. p. também conhecido por Recolhimento de São Cristóvão. Neste trabalho. José Pinto de. constituiu-se por doações de pessoas nobres e ricas. Nesse ano. mas também de prisão. porcionistas e sua aceitação. de as moças recolhidas fazerem votos perpétuos. exemplo dos quatro tipos de recolhimento aos quais a documentação colonial se refere: 1) o filantrópico. junto à Costa do Castelo. alguns desejavam apenas emendar mulheres perdidas. jul/out. n. 1966. Separata de Olisipo. 292 . direitos e deveres. situado na Rua da Achada. órfãs e sua aceitação. Lisboa. ou seja. O primeiro deles foi o Recolhimento das Órfãs Arriscadas da Casa de Nossa Senhora do Amparo da Cidade de Lisboa. que em seu compromisso normatizava o cotidiano da casa. existiram variações do modelo institucional do recolhimento. 2) os ligados às Santas Casas de Misericórdia e que receberam enjeitados de ambos os sexos. Recolhimentos da Capital. 4) e. No império português. Encontramos. os recolhimentos que surgem com beatérios. renda e condições em que ficou. atividades cotidianas. 115/116. preocupado com o destino das meninas órfãs pobres. tonando-se conventos. de negação e de sofrimento. livros de tombo. com a possibilidade de professar. um tesoureiro. Diogo Lopes Solis.Seu instituidor. escrivão e contador da mesa. 10 ANTT–Mesa da Consciência e Ordem. cuja mesa foi composta por: ministro da fazenda do rei. A população feminina que formaria o grupo residente e estudante não deveria ter mais de oito anos ao ser recolhida. Passou para a instituição várias propriedades. 293 . Por ter recebido muitas mercês em toda a sua vida. pedindo apenas para ser sepultado na capela que foi construída. que foram usadas para adquirir duzentos mil réis de juros em Lisboa e que seriam aplicados no sustento de doze meninas assistidas e doze mulheres para ensinar e administrar a casa. a bem da “República e de sua pátria”. desembargador da relação. para que. Para organização da casa. ensinadas em recolhimento. instituindo um dote. desembargador da mesa da consciência. nem deixado herdeiros. mas asseverando que os recursos não poderiam ser desviados desse destino pio. era definida como de plebéias e inclusive que não se fizesse diferença ou se perscrutasse se eram da nação. Segundo o relato. “nem disso se trate”. promover “boa criação”. foi cavaleiro e fidalgo do rei. depois de ouvir conselhos resolveu aplicar seus cabedais na obra de uma casa. fossem mulheres honradas. e não ter casado. Tencionava com sua proposta “dar remédio de vida com facilidade”.10 Em seu testamento. dignidade ou cônego da Sé de Lisboa. pessoas de posses. foi movido pelo “zelo do bem comum”. desembargador do paço. Diogo Lopes Solis dá inteira liberdade para os governadores da casa a venderem seus bens e aplicar na compra de juros para a manutenção do recolhimento. tesoureiro geral de sua santidade e câmara apostólica no reino de Portugal. que era de criar meninas desamparadas e arriscadas a se perderem. mas também desejando influenciar seus pares. Nessa sequência. desejando amparar a gente necessitada. resolveu-se a dar o primeiro passo. instituiu-se uma irmandade. vereador da câmara da cidade. Livro do Compromisso e Regimento do Recolhimento das Órfãs Arriscadas da Casa de Nossa Senhora do Amparo da Cidade de Lisboa que instituiu Diogo Lopes Solis na era de 1598. para que se desenvolvessem no campo das artes femininas. por tempo que estiverem disponíveis. O papel desses religiosos foi o de prestar um serviço espiritual às pessoas no recolhimento. foram designados responsáveis os religiosos da Companhia de Jesus da casa de São Roque ou outra. de entrada de órfãs com informações detalhadas sobre suas origens e posses. o mais detalhado possível. pobres. Deveriam ser jovens para que se pudesse encaminhá-las na 11 Idem. de idade de até oito anos. aos problemas mais complexos. há necessidade de eleições para que um provedor governe um ano ou dois. Deveriam ser órfãs ao menos de pai.11 Quanto às órfãs. promover a comunhão e assistir na confissão e extrema unção. No livro de entradas. no qual constassem os ajustes feitos quanto às propinas e aos fiadores. no que tange a escrivão. recursos para o sustento da regente e para as serviçais. sem lugar marcado. Também deveria haver um livro para as porcionistas. e. como lazer. informações acerca de seu passado. que fossem as mais desamparadas de favor humano. Em reunião se deveria tratar das questões mais simplórias e corriqueiras. A documentação organizadora e normatizadora da casa deveria ser registrada nos livros de irmãos. tempo em que chegaram. de origem plebéia. de seu modo de viver na vizinhança. Não deveria haver entre elas distinção. Tudo da casa deveria ser decidido por todos que compunham a mesa. de suas condições de pobreza e desamparo. bem como de discutir as questões que envolvessem o cotidiano da casa na mesa governativa. e para a dádiva do dote. naturais do reino. essa. livro de receita e despesas arrolando os detalhes sobre o mantimento das órfãs. Para a administração dos bens. 294 . para facilitar e esclarecer qualquer questão. como os de ordem moral e financeira.Para o governo espiritual da casa. como o de rezar missas. tesoureiro e contador. deveria haver cerca de doze meninas. de registros de escrituras e propriedades.. de tombo. e as que fossem de pai e mãe deveriam ter prioridade às que tivessem mãe. consertos etc. segundo critérios da mesa. deveriam constar. que estivessem ao alcance dos benfeitores. Ao deitar. a consoada deveria acontecer uma hora a mais que a ceia. lenço de cabeça e sapato de sola de cordão vermelho. Quanto à educação. entre os 15 e 20 anos. Logo a seguir. fiar. A orientação dada na casa buscava modelá-las a um comportamento discreto e modesto. ao modo de rezar o rosário. lençol e cobertores de pano grosso respectivamente. Nos dias de jejum. orações do tipo: terço. como preparar alimentos. fariam o jantar e a ceia às 7 ou às 8h. cozer. Vestidas e preparadas. uma hora de lazer e conversações. seguidos de um período de silêncio durante o qual se alimentariam. exceto quando estivessem doentes. no recolhimento vestir-se-iam muito simplesmente. A hora de dormir no verão seria às nove e no inverno às dez. rosário ou coroa de Nossa Senhora. Limpeza e todos os serviços necessários à sua manutenção. quanto à casa. de hábito. Como foi um recolhimento para meninas pobres. manto. Os rituais do refeitório se resumiriam a uma benzedura. sem descuidarem da higiene pessoal. às 10h30 no verão e às 11h no inverno. Deveriam dormir todas em uma casa. encomendar-se-iam a Jesus Cristo.vida. Em seguida. as chamadas coisas próprias de mulher. a intenção. Teriam camas levantadas. sempre tudo conduzido pela mestra. da mesma forma que. deveriam rezar por um quarto de hora no oratório. para tal. precisavam dominar os mistérios de governar uma casa. O cotidiano das órfãs repetiu-se nos regimentos pelo Império. amassar. além de casálas com homens mecânicos e transformá-las em esposas e mães de famílias humildes. E. fariam exame de consciência. lavar. era de torná-las criadas de famílias abastadas. cinco da manhã no verão e seis no inverno. também não fossem portadoras de doenças contagiosas e de nenhuma deformidade que impedisse o casamento ou o trabalho. Assim. essa atividade não deveria impedir que a mesma família entabulasse um casamento e ofertasse um dote. fosse junto às misericórdias fosse através de outros meios. e. Se fossem trabalhar em casa de família. 295 . Logo. Deviam logo cedo estar de pé. o provedor deveria buscar um dote. o cuidado com a casa era prioridade. Assim. antes de se deitar. resumia-se: no que tange à doutrina cristã. Recife: Editora Universitária/UFPE. Suely Creusa Cordeiro de. teriam controlados os acessos de conhecidos e parentes.13 Mas. a negociação só se concluiria quando fizesse depósito ao tesoureiro de um adiantamento de cinco mil réis.12 No Brasil. Era comum que casas de clausura feminina realizassem atividades para promover rendas para as recolhidas. que. História das Religiões no Brasil. ao contrário. deviam ser donas honradas e nobres. bem como de pessoas de forma geral. In: BRANDÃO. p. e forte de condição. também promoviam festas e banquetes por encomenda. pelo qual respeito se possa recear que inquiete a casa”. através de seus oficiais. ou de recolhidas.Depois de adentrarem a clausura. 2008. TODA OUSADIA SERÁ CASTIGADA!? O outro lado da clausura nos recolhimentos e conventos femininos nos domínios portugueses XVI– VIII. realizando-se os mesmos em suas dependências. no Convento das Dominicanas. sobre a pessoa e. Por isso. Franciscanas de Lisboa costuravam para fora vestidos para festas e eram exímias em fazer limpeza em peças de couro e pintar cabelos. tanto o Convento do Desterro como o Recolhimento de São Raimundo vendiam doces e flores em seus locutórios ou através de negras de ganho pertencentes à casa. a mesa deveria tomar informações. mesmo que houvesse uma produção na casa de produtos para a revenda como: comida. viessem a suprir as necessidades financeiras da casa. se as recolhidas eram mulheres desamparadas. No entanto. as porcionistas. 12 296 . que. Os trâmites para o recolhimento de mulheres porcionistas deviam ser os seguintes: assim que recebido o pedido de recolhimento. quantia que se cobrava ao ano ALMEIDA. parte dos doze mil. pobres ou cobertas pelos defeitos de sangue ou mecânicos. Falar com a mãe só com autorização da regente e. e que não é brava. 4. v. dar-se-ia um despacho favorável à sua entrada. “achando que é honrada e de boa vida e costume. 347-378 13 Idem. precisavam fazê-lo em comum acordo com a regente e com as autoridades religiosas que de alguma forma estivessem ligadas ao recolhimento. além de venderem comida na porta diariamente. com suas propinas. da mesa regedora. com outras pessoas. em Salvador. O exemplo vem de Guimarães. flores e artigos feitos a mão. Sylvana da Aguiar. A porteira. pois. a mestra e duas pessoas mais graves e velhas que vivessem na casa. controladora da chave que as ligava ou desligava do mundo exterior. ainda teriam que franqueá-la para os serviços da casa. Sobre a porcionista recairia o mesmo tipo de controle que havia sobre as órfãs. Assim.para o acolhimento. Esses arranjos feitos pela instituição colocavam em contado mulheres de diferentes qualidades. As portas se abririam no verão às seis e no inverno às sete e se fechariam no momento da Ave Maria por todo o ano. o que nos faz intuir que daí emergiram os mais variados problemas. Os parentes deveriam pedir por escrito e os encontros se dariam no locutório e em nenhum outro lugar do recolhimento. e a correspondência se faria por meio de um solicitador. viriam à porta a regente. a porcionista poderia entrar em comunicação com representantes da mesa e faria sua interlocução sem a presença da regente. da quinta-feira de endoenças até a sextafeira ao meio dia. No entanto. No entanto. sob a coordenação da regente. e. Se fosse necessário abri-las. As cartas que fossem entregues na portaria para serem enviadas eram abertas pela regente e lidas. Os encontros necessários deveriam ser rápidos e não deveria haver impedimento para que as autoridades da casa verificassem o que acontecia. Havia a possibilidade de levar criadas para o internato. Lá não poderiam acontecer conversas. condições e estados. poder-se-ia pedir licença à regente. a entrada na casa estaria condicionada à autorização da regente. como se pode imaginar. no que tange às comunicações com a rua. 297 . a qualquer momento. Esse montante se conformava como uma cobertura para atender a recolhida em todas as suas necessidades. se levassem mais de uma. Havia dias em que o locutório estava fechado: no dia da comunhão até ao meio dia. da mesma forma as que chegavam. para coibir pressões. mas deveriam pagar quatro mil anuais por ela. sempre foi muito assediada e passível de suborno pelas recolhidas. não era passível de devolução se houvesse desistência da interna antes dos primeiros seis meses. Já para as cartas de negócio. Por esse serviço. Após a ceia. em sua ausência. Já o capelão tinha a obrigação de dizer missa. O contador tomaria as contas do tesoureiro no final do ano e faria uma declaração esclarecendo todos os pontos. recebia dois mil réis por ano. A regente não tinha autoridade de recolher ninguém. O escrivão deveria ter atualizado e em bom estado os livros do recolhimento. cada uma tendo uma função específica. um a um. Teria a chave da portaria. A regente deveria ser nobre de virtude e entendimento e ter autoridade para ser obedecida e respeitada. a fiar e todas as demais atividades necessárias a uma mulher honrada. O tesoureiro arrecadaria e receberia todas as rendas da casa como: esmolas. seria facultada a uma mestra da casa. a não ser que fosse uma mulher que fugisse de seu marido. O dinheiro todo ficaria a cargo da mesa e ela decidiria se seria guardado na casa ou se ficaria com o tesoureiro. seriam acompanhados de mestra e órfã que tocariam campainha para avisar a alguma que estivesse descomposta que entrava pessoa estranha à casa. que. lugar onde não poderia entrar ninguém. dando logo informação à mesa. Todas as recolhidas deviam ouvir missa no coro. a costurar. Haveria uma mestra na casa que ensinasse às meninas: a doutrina cristã. Se alguma faltasse sem justificativa. teria a pena de não receber recados por três dias. rezar na igreja da casa todos os domingos e dias santos e confessar para todas as recolhidas que assim o quisessem. Algumas pessoas compunham o governo de uma casa como um recolhimento. Poderia ser substituída pela mesa. porções das porcionistas e doações as mais diversas. das despesas e das receitas. repartiria os cargos que deveriam ter. guardados em caixa ou armário com chave e uma cópia da mesma com o provedor. seria responsável pela administração de “portas adentro”. todas as mulheres da casa se juntavam para rezar as ladainhas. 298 . Teriam a quantia de 1200 réis para suas necessidades mensais. castigaria quando necessário e elas lhe obedeceriam em tudo. Teria autoridade sobre elas. O provedor proporia o que se deveria tratar na mesa e também faria executar as normas do regimento.Quando da entrada do médico e do sangrador. . sempre foi uma situação que tocou o coração pio das casas reais portuguesas. A casa destinava-se ao recolhimento de viúvas nobres. passim. Uma mulher de fora que fosse casada.. como buscar água e comprar o mais necessário. a regente e as demais autoridades da casa. foi principal da Santa Igreja Patriarcal. Em Pernambuco. no entanto o pagamento andava muito atrasado. pobres e honestas. Na verdade. espécie de secretário que avisava dos dias das reuniões. sem recursos ou protetores presentes e capazes de ampará-las. Seu pedido foi encaminhado a Dom João V. razão por que parcamente se alimentava e por consequência também lhe vinham a faltar recursos para realizar reformas no recolhimento. genros ou serventuários. ou seja. cobrava as rendas das casas alugadas e outras mais no miúdo e as entregava ao tesoureiro. mas tinham estado. cit. Tanto nas colônias como no reino. Op. e por isso receberia seis mil réis por ano. A condição de viúva e de origem nobre. passim. Op. em seu tempo.. Recebia seis mil réis ao ano e alimentarse-ia junto com as meninas. Um solicitador. começar com um perfil e transitar para outro de mais 14 ALMEIDA. essa sempre foi a trajetória dos recolhimentos no Império Português. 299 . O Recolhimento de Nossa Senhora dos Anjos foi instituído por Dom Lázaro Leitão Aranha que. ou arranjaram-se pedindo a propriedade de ofícios.. O sexo devoto. que deveria ser o mais próximo do recolhimento possível. MENEZES. cit. muitas assumiram a administração dos bens deixados por maridos já defuntos.A casa deveria ter um médico para cuidar de todas. que haviam perdido a condição econômica de sustentabilidade. Recebia anualmente seis mil réis para aluguel de sua casa. muito bem acostumada e que fizesse os mandados de “portas a fora”.14 O instituidor as consignou 1:900$000 réis anualmente nos juros reais livres da décima. para administrá-los nas mãos de filhos. viveria no pátio ou loja do recolhimento e teria o cuidado de fechar a porta da rua e a primeira porta da escada por fora com sua chave e a abriria no dia seguinte à hora determinada. os monarcas eram aquiescentes com os arranjos possíveis para garantir a sobrevivência dessas senhoras. levar recados etc. que o tomou sob sua proteção. e. ele. em perigo de desabar. As recolhidas estavam pedindo para deixar de rezar três missas diárias em favor da alma do instituidor por não poderem arcar com as despesas. docs. aluguel de lojas. propinas pagas por porcionistas. doações de benfeitores.15 No Livro de Receita da instituição foram arrolados os bens doados. tornou-se uma escola que ministrava saberes úteis à vida das mulheres de “portas a fora”ou. armazéns e cocheiras. Todo o patrimônio foi registrado em cartório e as certidões guardadas no arquivo da casa. juros reais e também os oriundos de empréstimos feitos a particulares. trabalhando para seu sustento e. As configurações do cotidiano distribuíam as gentes na casa da seguinte forma: no andar alto habitavam o professor de música vivendo gratuitamente além de algumas porcionistas que também não rendiam para o recolhimento. 101. o que colocava a comunidade em grandes dificuldades. o recolhimento. Maço 6. pois estava em ruínas. Anualmente o recolhimento teve uma renda de um conto e quatrocentos mil réis. cx. tutorando bens e filhos. quando esse trabalho foi deixando de ser desonroso. inclusive como alunas de música. As demais dependências eram divididas entre 15 ANTT–Mesa da Consciência e Ordem. Quando se fortaleceu a prática de agenciarem civilmente. A documentação preservada do Recolhimento dos Anjos demonstra que ele estava vivendo um momento de penúria. migrou para a condição de convento. nº 1 a 3 300 . O recolhimento foi uma instituição que perdeu suas funções à medida que as mulheres se emancipavam. As viúvas recolhidas também não eram mais nobres e os juros reais não estavam sendo pagos. enfim. desapareceu. em nosso caso. A situação da casa era precária.fragilidade e pobreza. Isso se deve às mudanças que foram sendo impostas aos costumes na sociedade moderna e. O sacristão também morava de graça. no andar baixo da quarta morada. tanto imóveis quanto os títulos comprados para o rendimento de juros. gozando dos favores do benfeitor. oriundo de casas de aluguel. a essa altura. setecentista. Livro de receita dos bens do Recolhimento de Nossa Senhora dos Anjos. renda de armazéns. o fazia perder não só os juros.as demais porcionistas.. órfãs assistidas e as mestras recolhidas que administravam a instituição. pagamento da cocheira. 17 Ibid. Eles foram enfrentando dificuldades em ANTT . marido pagando comedoria de mulher. pois as falências.Livro de Receita do Recolhimento de Nossa Senhora dos Anjos. rendimento da sucessão legítima da senhora. repartidas da apólice da Companhia Geral de Pernambuco. renda de loja. mas as alternativas. e os apurados (miudezas) no todo ou em parte eram entregues ao recolhimento. Além do pagamento de apólices.17 Vejamos um rol de atividades e bens que poderiam render a um recolhimento lisboeta: comedorias das porcionistas a mês ou em atraso. p. conseguiu sobreviver e ter um cotidiano ameno. da mesma forma que os recolhimentos. juros Reais do Conselho Ultramarino.Livro 307 (1767 a 1801) .18 Assim. artigos em geral que eram vendidos. pai pagando comedoria de filha. renda de casas em dia e em atraso. dívidas pagas por empréstimos. caixas de prata e outros mimos. Essa fórmula era quase sempre arriscada. enquanto houve uma boa administração e a instituição teve prestígio na sociedade.16 O recolhimento dos anjos viva principalmente de arrendar as propriedades deixadas por seu fundador que eram administradas por particulares. bem como de juros pagos por aqueles que porventura necessitavam da casa e recorriam à ela para empréstimos. 30 e 38 18 Livro 308 (1798 a 1819) . 16 301 . Citamos o caso de Dona Maria Ignácia de Macêdo que recebeu dote para casar com Antonio Martins Torres. foram sofrendo transformações. venda de pipas de vinho. como foi o caso do feito pela Companhia Geral de Pernambuco. na maior parte das vezes. tanto no que tange à caridade como às formas de viver das mulheres. Essa forma dava direito ao recolhimento a receber em termos de reversão de capital 400$000 por ano. mas também o principal emprestado. Outras formas de renda foram os dotes pagos pelo Conselho Ultramarino. seu cotidiano e a instituição foi perdendo suas funções e começou a desaparecer. 302 . Não por encanto. mas porque as ações femininas contra a reclusão e a busca por alternativas de sobrevivência a condenaram ao desaparecimento. significa. Recuperar o significado. a importância e o papel que as ameríndias tiveram na constituição das famílias e do Estado e propor uma reformulação metodológica acerca da identidade. vivenciada nos séculos XVII e XVIII. salineiras. A historiografia sobre o Império ultramarino português sobre as colônias americanas pouco têm abordado o papel e o significado das mulheres ameríndias na constituição da sociedade. apontam a importância e o papel que a mulher ameríndia desempenhou na colonização: mulher. as principais progenitoras da sociedade colonial. as ameríndias foram as nossas principais antecedentes. conhecedora da natureza (das estações e espécies utilizáveis da fauna e da flora. farinheiras. A pesquisa objetivou destacar a família e as mulheres no povoamento e na colonização do extremo Norte. nas lendas e mitos indicava as suas presenças. As notícias explícitas ou veladas na documentação dos viajantes. pensar e representar a sociedade e a natureza no Estado do Maranhão e Grão Pará no período de 1650 a 1840”. da cultura e das mulheres ameríndias é o propósito do presente artigo. Narrar uma história de mulheres e famílias no extremo Norte da América portuguesa. superando as abordagens limitadas à controvérsia metrópole/ colônia. da cultura e na manutenção das instituições e poderes coloniais. assim como nas crônicas. amas de leite. em especial. sexo e gênero feminino. concubinas. Como mulheres. administradores. para diferentes usos). elas foram. 303 . nos três primeiros séculos da colônia. As pesquisas recentes. domesticadoras e adaptadoras de espécies locais. amantes ou esposas. regionais e de outros continentes. da economia. na literatura. trabalhadora.Mulheres indígenas: saberes e poderes na América Portuguesa Leila Mourão Universidade Federal do Pará O presente artigo originou-se do relatório da pesquisa “Maneiras de viver. manteudas. clero e militares. Estupradas. que esteve na região durante quatro meses em 1612. a leitura e a descrição da natureza e da população no sentido de dar-lhes existência discursiva. finalidades.além de um retorno ao passado. Descobrimento del Rio de las Amazonas. D’Acuña.1 Dos documentos relacionados à atividade missionária inicial. à medida que recoloca em questão as versões historiográficas tradicionais ao desvelar outras histórias. Nelas estão contidos os discursos fundadores. XVII e XVIII sobre o processo de conquista. sobrepujava a cultura e a civilização dos conquistadores e prosseguir na trajetória até encontrá-las foi encantador. “História da Missão dos Padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas”. e nelas a presença e a participação de mulheres.2 Segue-lhes 1 Carvajal. 2 D’ABBEVILLE. Do conjunto das relações selecionamos os textos de frei Gaspar de Carvajal. Claude. Os primeiros documentos escritos são as “Relações de Descobrimento e Conquista”. cantada em verso e prosa. Christovão. 304 . História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. Esta documentação se distingue das demais pela sua natureza pragmática e organizativa e pela finalidade do discurso impresso na escrita. produzidos nos séculos XVI e XVII. descobrimento e colonização da região do extremo Norte da América portuguesa. e de Padre Christovão D’Acuña cronista da viagem do Capitão Pedro Teixeira(1638-39) no grande rio das amazonas. cronista da expedição de Gonçalo Pizarro e Francisco de Orellana (1541-42). selecionamos os trabalhos de Claude d’Abbeville. Para analisar e interpretar o conjunto de representações elaboradas nos séculos XVI. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico (1865 2° trimestre). escritores e as suas perspectivas simbólicas e históricas. ou seja. correspondências. Novo descobrimento do grande Rio Amazonas. entre outros. um empreendimento revelador. 1851. São relatos de viagem. e o texto de Yves D’Evreux “Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614”. Gaspar de Carvajal. según la relación hasta ahora inédita de Fr. Embarcar para esse passado remoto no qual a natureza. crônicas. tornou-se necessário a seleção e organização do “corpus documental” em suas múltiplas dimensões: tipos de documentos. Frey Gaspar de. Sevilla: Real Academia de História. suas atribuições e atribulações neste viver. mas também relatam algumas mulheres migrantes que para cá vieram.. São Paulo: Siciliano. acordos e semelhantes. termos. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. ameaçadoras. normatização. ou seja. assentamentos. ajuste de conduta. dóceis.). São Paulo: EDUSP. das visitações. 3 SEABRA J. nas cartas. mas também a traslados de autos e demais documentos. seu modo de viver e ser. apáticas. trabalhadoras.3 Essas obras relatam a natureza da região e descrevem com detalhes os ameríndios: sua aparência. seus casamentos. O ajustamento de conduta é abordado nos tratados. em especial as cartas. suas habilidades e atividades.as cartas e sermões do padre Antonio Vieira (1651-1692) e a “Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão” do padre João Fellipe Bettendorff (1661-1698). M. ANTUNES. T. 2002. regimentos especiais. resoluções e similares. Q. suas armas. comprovações e correspondências. Os documentos da administração foram analisados e sistematizados a partir dos seguintes tópicos: gestão. 1975. os que informavam sobre as maneiras de viver na colônia e sobre as mulheres. contratos. Lisboa: Typografia Da Revista Universal. sofredoras. suas comidas. dossiês e em certas circunstâncias relatórios e outros. (eds. Nos relatos das expedições. C. João Felipe. sua nudez. Cartas. alvarás. Destacam as mulheres e suas diferentes habilidades e atividades em diversos grupos de ameríndios. A seleção desse acervo documental se orientou pelos objetivos da pesquisa. São Belo Horizonte: Itatiaia. vingativas. provisões e projetos e relatórios de governo. nas crônicas elas surgem: são guerreiras. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves/SECULT. 1854. Viagem ao norte do Brasil: feita nos anos de 1613 a 1614. 1990. BETTENDORFF. as normatizações se expressam nas cartas régias. E o comprobatório diz respeito às certidões em geral. Yves. Aos assentamentos correspondem os autos civis. ainda que muitas vezes através de metáforas. especialistas e especializadas. provisões. 305 . as correspondências se referem aos tipos de comunicações entre as pessoas. Os primeiros são os regimentos dos senhores governadores. registros diversos. D’EVREUX. Obras do Padre Antonio Vieira. as farinheiras. e algumas vezes caricaturadas como representantes de todos os males. as índias tecelãs.jovens. as cantoras. Frei João de São José. 5 MENDONÇA. as índias trabalhadoras defendidas vigorosamente pelo Padre Antonio Vieira. senhoras ou velhas. requerendo ao rei medidas coibidoras e punições para os excessos ocorridos. A correspondência de Mendonça Furtado (1751-1759). saboeiras. de naturalistas e viajantes. mas registraram algumas vezes as injustiças cometidas por alguns colonos contra elas. II e III). A Amazônia na Era Pombalina. Rio de Janeiro: IHGB. Rio de Janeiro: Editora Melso Sociedade Anônima. E reconheceu o importante papel político que elas poderiam exercer na ocupação e na vida civilizadora da colônia. de leite. as urucuzeiras. 1961. urucuzeiras.5 Ressalta sua QUEIROZ. 4 306 . fiandeiras. Foram relatadas nas mais diversas situações como as índias guerreiras de Carvajal e Acuña. as anileiras. calineiras e principalezas relatadas por Bettendorff. com a árdua tarefa de laicizar a vida na colônia e executar o projeto de consolidação dos domínios portugueses. como Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792). governando a região na segunda metade do século dezoito. salineiras. dedicou especial atenção às mulheres indígenas. suas atividades e suas participações na colônia. quando cativas e separadas de suas famílias.4 As ameríndias também aparecem informadas e relatadas nas obras do padre João Daniel (1741-1757) e de João Francisco Lisboa (1812-1863). Visitas Pastorais: Memórias (1761 e 1762–1763). Marcos Carneiro de. alegres. farinheiras. as belas. 1751-1759. trabalhadoras e dedicadas mães de D’Abbeville e D’Evreux. as remeiras e as fujonas narradas sob ironias por João de São José de Queiroz (1761-1763). oleiras. A documentação dos administradores e militares também informa sobre essas mulheres. louceiras e artesãs dos cestos pintados na região do rio Tapajós. 1963 (Tomos I. Correspondência Inédita do Governador e Capitão-General do Estado do Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado. que registrou com minúcias o processo de produção das índias cuieiras. astros. pelo contrário. por suas 307 . as doenças e a morte. amores e romances. Elas inscreveram-se e participaram compulsoriamente e poucas vezes espontaneamente no processo histórico da colonização. relatadas e muitas vezes descritas detalhadamente. Elas foram descritas sobre o prisma das possibilidades e limites da cristianização e da civilização dos gentios e secundariamente dos escravos africanos. exceto como afirma Michele Perrot: “As que aparecem no relato dos cronistas são quase sempre por sua beleza. São escritas e relatadas por homens. águas. Os padres Antonio Vieira e Bettendorff relatam nas entrelinhas o romance entre o irmão Sebastião Teixeira e a jovem índia Beija-flor na missão do rio Tapajós. heroísmo ou.importância no processo de fixação do europeu e brasileiro na região através do casamento e no desenvolvimento da agricultura. Exerceram todas as atividades mencionadas como de mulheres. virtude. mesmo com suas oposições rigorosas. flora e outras gentes e suas cosmologias ainda por conhecer. outras. a tornando exaustiva e difícil. mas fez emergir um novo mundo com infinitos. Em se tratando do nosso objetivo de investigação – as mulheres e as famílias na colônia – essa trajetória se tornou ainda mais complexa. em quase toda a documentação. ao fim resultou na saída de Sebastião da ordem e em seu casamento com a jovem. Na documentação analisada encontram-se indícios e algumas vezes o registro preciso e prolixo sobre seus sentimentos no enfrentamento de situações adversas como o abandono. mas também de suas alegrias. E que. As mulheres nativas imaginadas e/ou reais foram largamente informadas. fauna. algumas vezes ironizadas. a solidão. valorizadas. As informações sobre as mestiças também foram amplamente registradas. pois à primeira vista elas não se manifestam: não falam e não escrevem. A jornada foi longa porque os séculos delimitados para a investigação estão distantes no tempo e o lugar investigado continua em larga escala desconhecido. mas são omitidas enquanto partícipes da história. 7. 2005. p. Organizado pelo Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa (FCSH) . 9 Idem. construindo tal conceito como uma categoria mais inclusiva.9 Buscou-se elaborar um novo olhar sobre o gênero. no sentido da escritura de uma história de mulheres.UNL. de início problemático e pouco satisfatório. tão presente na modernidade europeia. suas vidas escandalosas”6. Campinas: Cadernos Pagu (4). tradição e cultura. seus saberes e fainas. Escrever uma História das mulheres. O perigo é que o estudo sobre a história das mulheres revela-se. sobre suas histórias nada se diz.7 A inclusão da temática família na pesquisa foi interpretada como lugar privilegiado de realização da história de mulheres. Michelle. São Paulo. No sentido de ultrapassar esta limitação buscou-se redimensionar o olhar e o interpretar sobre o feminino e o gênero. aqui entendido como uma dimensão de análise da realidade social construído socialmente e produzido de forma relacional. Sonia. nada se registrou de modo explícito. 6 308 . ou seja. In: Dossiê: “História das Mulheres no Ocidente”. costumes. A inexistência ou a incipiência de um campo disciplinar historiográfico específico que trabalhe exclusivamente a articulação entre questões metodológicas e o gênero limita a interpretação. 5. percebendo-a no seu contexto ocidental e em suas sociedades específicas. Pierre.8 Tratou-se pois de descortinar as especificidades da história da vida no feminino. 1998. na perspectiva colocada por Bourdieu: a discriminação das mulheres foi intensa e longa com auxílio das ciências. p. mas também nos pressiona a apresentar e discutir alguns contributos que se relacionam com as nossas temáticas. 8 FERREIRA. em que homens e PERROT. em especial no sentido de evidenciar normas. Bertrand Brasil. O Poder Simbólico. 1995. Os seus viveres. p. Colóquios “Temas e Problemas em Antropologia – relatos na 1ª pessoa”. As famílias e mulheres foram analisadas enquanto grupo com especificidades sociais próprias que apresenta características distintas que lhes demarca a condição sócio-histórica de gênero e na interpretação de suas histórias. 7 BOURDIEU. Rio de Janeiro: ed. 9. pois resulta em textos etnográficos e por isso reducionista e essencialista.intervenções tenebrosas e nocivas. Reflete uma cultura que desvalorizou e negligenciou as mulheres e seus lugares na história. seleciona e hierarquiza as fontes e suas informações. E encontrá-las e com 10 PERROT. enquanto dimensões da realidade social. As dificuldades a serem superadas metodologicamente na pesquisa requereram atenção em várias dimensões.10 Michelle Perrot aborda essa questão e ressalta que. Ainda que se tome como pressuposto que as relações de gênero sempre foram estabelecidas a partir de relações de poder assimétricas e desiguais. mas falam sobre elas. 309 .mulheres coexistam. Op. O silêncio da história nesse sentido resulta da normatização de organização das fontes oriunda de uma história “oficial” que mutila pela ausência grande parte do passado. as fontes se apresentam como “zonas mudas” das falas das mulheres. O silêncio assim imposto é de ordem simbólica. níveis e subníveis dos registros pesquisados. a premissa aqui adotada foi de interpretá-las como um conjunto a mais a acrescentar aos das relações com base na idade. classes sociais e outros. pelos “silêncios da história”. As fontes e nelas os vestígios e as ferramentas de trabalho são escolhidas em função das particularidades específicas da temática na medida em que se fala delas e sobre elas. a visão androcêntrica impõe-se como neutra”. Bourdieu ressalta que “a força da ordem masculina deixa-se ver pelo fato de dispensar justificação. As fontes “oficiais” são de modo geral assexuadas e funcionam como se existisse um único gênero. A história das mulheres se propõe a procurar os vestígios que possibilitem reconstruir aproximações historiográficas sobre as suas existências e acontecimentos vividos no feminino. A começar pela identificação dos arquivos. 8. status. prestígios. estendendo-se da palavra omitida ao gesto contido no texto escrito. o que requer de quem pesquisa refletir sobre as fronteiras disciplinares e seus métodos. o que coloca em evidência a questão do ponto de vista oficial de quem guarda. excluindo a história de importantes parcelas da sociedade. p. cit. Articulando-os com outros documentos recuperou as trajetórias de vida e do viver de mulheres. 9-28. remete a problemas metodológicos e de abordagens específicas. com 11 Idem. em especial com as mulheres e famílias desse período. destacando o caráter hierárquico com que se reconstrói a história. agentes secundárias dos acontecimentos.11 Natalie Z. oficiais ou não. No que diz respeito às mulheres do extremo Norte. Nestes casos as fontes escritas. em especial nos séculos XVII e XVIII. foi gratificante. A documentação consultada revelou a emergência de uma sociedade e uma cultura. 310 . particularmente as situações criadas por demarcação de classe. que assumiram novas e interessantes formas que conduziram a investigação de maneira a explicitar informações que sempre estão ocultas nas sombras dos grandes eventos e dos momentos públicos como as festas oficiais registrados nos documentos. Há exceções. tendo como fontes os seus registros autobiográficos. filhos e outros. e dessa forma são colocadas nas fontes. uma dificuldade maior se coloca: a aparente inexistência de mulheres letradas no período referido e a imposição da legislação portuguesa que exigia que as mulheres falassem através de seus procuradores homens: pais.elas dialogar requer descobrir os vestígios. as mestiças e as escravas africanas (e afro descendentes). maridos. as “existências e as formas de ser e estar das mulheres do passado”. ficando as mulheres arredadas da maioria dos registros escritos. e a este tipo de reflexão que me refiro. p. como as ameríndias. As mulheres sempre foram colocadas numa posição subalterna. Procurar vestígios das mulheres na história da colônia requereu a capacidade de adaptabilidade dos métodos. os traços do passado. são muito mais marcadas pela invisibilidade histórica das mulheres. Dialogar com esses novos elementos. em especial quando falamos de mulheres que não pertencem às elites sociais. Pesquisar sobre essas mulheres. mas são raras na documentação. Davis no prólogo de seu livro Nas Margens escreveu sobre mulheres do século XVII. Irede. p. pois somente desta forma constituir-se-ão em elementos organizadores da história. de 2000. as imagens e as representações que os grupos sociais foram construindo sobre si e os outros. no abastecimento. omissões e não-ditos na historiografia tradicional. 12(2): 3-13. na construção de uma escrita que permita torná-las pensáveis. configurando situações sóciohistóricas específicas e definindo uma história cultural própria. O que segundo Irede Cardoso: “É trabalho insistente e doloroso que produz o pensamento e a fala sobre o que se calou”. São Paulo: Brasiliense. revela que as mulheres e as famílias pesquisadas aparecem na historiografia sobre a região de forma marginal. Nessa documentação destacam-se as narrativas.13 Para este trabalho selecionamos os relatórios dos ouvidores gerais Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio. nas doenças e nas transgressões. No sentido de tornar as ausências dessas mulheres e famílias em presenças. no sentido colocado por Claude Lefort: a reconstrução historiográfica ocorre em contextos complexos e geralmente reconstrói do passado aquilo que convêm e possibilita a sua representação no presente. modelando o seu próprio tempo. nov. Trata-se de uma nova configuração reconstruída no texto que possibilita o encontro do não explicitado. A referência da narrativa histórica nesta circunstância é o tempo presente mesmo que a meta seja a reconstrução de um recorte histórico do passado. inteligíveis e com sentido e historicidade próprios. produzidas pelos silêncios. Os silêncios da Narrativa. A invenção democrática.estratégias e práticas que expõem um modo de ser e viver singulares. São Paulo. sendo colocado em evidência. que realizou visitações e devassa em 1768 na Província do Rio Negro. USP. 13 LEFORT. no trabalho. Revista de Sociologia. Interpretar esta história é construir representações. 1993. Claude. geralmente para evidenciar problemas na conquista. 4.12 Expressa um modo de percepção e representação de algo que não está presente e que. 12 311 . Tempo Social. portanto uma narrativa. e Feliciano Ramos Nobre CARDOSO. na medida em que narra os acontecimentos como ausências. Tal fato demandou a construção de uma narrativa histórica que se propôs a desvendar alguns silêncios da história. Lisboa: Academia Real das Ciências (Sciencia) Typografia da Academia. 14 312 . Feliciano Ramos Nobre. a mando do governador do Gram-Pará. que realizou atividades similares em 1764 na Ilha Grande de Joanes (Marajó) e na região do Nordeste da capitania do Grão-Pará. 1997. Ressaltamos que tais visitas e relatórios eram muito importantes seja em nível pragmático. por informar leituras da “realidade dos lugares. em especial sob a orientação das determinações do referido Diretório. Belém: Secretária de Estado de Cultura/Arquivo Público do Estado do Pará. Vila Nova del rei. seja em nível discursivo. A metodologia de construção do texto organizou-se por critérios e categorias básicas de qualificação para a SAMPAIO. Na Capitania do Rio Negro as ações de colonização sistemática ocorreram a partir de meados do século XVIII. Colares. nas vilas e povoações de Monçarás. In: Anais do Arquivo Público do Pará. Diário da Viagem da Capitania do Rio Negro. As regiões visitadas na Capitania do Grão-Pará resultavam de ações colonizadoras desde o início do século XVII. no ano de 1764. 1825. vilas e gentes” sob a aplicação das políticas administrativas. Cintra.Mourão. A escolha destes documentos. Feliciano Ramos Nobre Mourão. Francisco Xavier Ribeiro. políticos e culturais do projeto reinol. Monforte. culturais e econômicas vigentes. Esses documentos foram elaborados no sentido de que seus conteúdos assegurassem a legitimação dos objetivos práticos. MOURÃO. Bragança. Os relatos se referem a situações distintas.14 Neles destacaremos as representações construídas sobre as mulheres ameríndias. o período em que foram realizados (1764 e 1774) pressupõe a necessidade de averiguação da aplicação e consolidação do “Diretório” (1758). além da opção pessoal. Os grupos ameríndios que viviam numa e noutra capitania apresentavam processos diferenciados de interação e inserção na colônia. Nesta perspectiva o olhar e o relatar a presença das famílias e mulheres informam situações e condições distintas de contato e de interação das mesmas na colônia e as múltiplas relações que se evidenciavam durante as visitações. teve como suposto as seguintes questões: são relatórios oficiais escritos para informar a administração local e metropolitana sobre as situações das vilas e lugares e seus habitantes na colônia. Ourém e Soure. Fernando da Costa de Ataíde Teive. Autos da Devassa tirados pelo ouvidor geral. Salvaterra. interpretação das experiências concretas a serem constatadas, a saber: aspectos físicos e raciais (estatura, cor, língua e beleza, em especial a feminina); culturais (hábitos de nudez e vestimenta, alimentos e dietas, remédios, bebidas, produção e uso de utensílios, comemorações, festas e rituais); sociais (moradias, igrejas, língua, formas de sociabilidades, organização familiar e social, cerimônias civis e religiosas); trabalho (distribuição dos índios(as), valor e pagamento dos jornais, cultivos, domesticação, pesca, extrativismo, pecuária, comércio, artesanato); político-jurídicas (administração dos poderes e dos direitos, aplicação da justiça, vigilância das fronteiras, meios de defesa militar e guerras internas ou externas); de educação (escolas, professores, alunos/as, aprendizados). As informações sobre as ameríndias durante o século XVIII foram retiradas dos relatórios que permitiram registrá-las sob os seguintes aspectos: contatos, grupos aldeiados ou missionados, características estéticas, habilidades e especialidades, modo de vida, produções, interações com a colonização. “Os Autos da Devassa tirados pelo ouvidor geral Feliciano Ramos Mourão, a mando do governador Fernando da Costa Ataíde Teive, no ano de 1764, nas vilas de Monçarás, Salvaterra, Monforte, Colares, Cintra, Bragança, Vila Nova Del Rei, Ourém e Soure”15 contém informações sobre o estado físico e “urbanístico” das vilas, lugares, suas edificações. E descreve, sob certos, as condições de vida e trabalho de seus habitantes: moradia, alimentos e sua obtenção, saúde e doença, tensões, crimes e justiça, atividades produtivas, prestação de serviço real e a particulares e os preços de alguns trabalhos. Abordam também aspectos socioeconômicos, político-administrativos, religiosos e culturais: estado das roças, das pescarias, das salinas, dos cultivos composição das câmaras, condições dos paramentos religiosos, presença do clero, das festividades, registra também as doenças e males que Carvajal, Frey Gaspar de. Descobrimento del Rio de las Amazonas, según la relación hasta ahora inédita de Fr. Gaspar de Carvajal. Sevilla: Real Academia de História, 1851; D’Acuña, Christovão. Novo descobrimento do grande Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico (1865 2° trimestre). 15 313 afligem a população em algumas vilas e lugares, como a desnutrição e os efeitos das epidemias. Faz algumas referências às condições naturais das regiões destacando a qualidade dos solos, da flora e fauna, das águas e dos ares. A linguagem e a escrita são formais e os temas abordados são: os termos das vilas e lugares habitados; o levantamento estatístico da população classificado por etnia, idade, sexo e estado civil; as roças comuns; os serviços reais; as relações entre os moradores, a aplicação da justiça; as tensões existentes; os crimes; o uso dos nomes portugueses e da língua ibérica; a existência e o funcionamento das igrejas, da câmara, das escolas e do aprendizado. Em relação às mulheres presentes nas vilas destaca que a maioria são índias e criou as seguintes categorias para qualificá-las: as casadas, as viúvas, as solteiras e as raparigas de treze anos ou menos. No que se refere às atividades por elas realizadas, destaca aquelas que se identificam com os princípios do projeto civilizatório em execução. Consta do documento um levantamento detalhado sobre os ameríndios e suas famílias, que sistematizamos e destacamos as mulheres, segundo sua classificação, no quadro a seguir: Vilas e Lugares Monçarrás Salvaterra/Condeixas Monforte Colares Cintra Ind. Casadas Ind. Viúvas Ind. Solteiras Raparigas (até 13 anos) 14 07 62 75 96 – – 55 126 41 04 96 19 – 16 – 131 30 44 31 Bragança 44 11 21 – Vila Nova del Rey 61 15 12 36 Ourém (Casa Forte) 19 – 04 11 Porto Grande 08 – 02 03 Soure 47 35 22 40 Modim 43 28 13 38 314 A classificação das ameríndias por sua condição civil teve objetivo e finalidade político-administrativa, na medida em que informa a constituição de famílias aos moldes europeus, imprimindo a ideia de civilidade constante do projeto. O relato do ouvidor revela a preocupação em ressaltar os saberes, habilidades e especialidades das índias. Registra a sua dedicação às atividades realizadas na agricultura, na produção e limpeza do sal, na produção de farinhas, na tecelagem do algodão e outras fibras, na olaria, no salgamento de peixes, mas em especial no aprendizado da costura e do fazer rendas. Evidencia aspectos importantes de natureza técnica, cultural, religiosa, social, política administrativa e da vida nas vilas e imediações. Revela também os processos de interação entre os(as) ameríndios(as) e os brancos, nos quais as tensões, os conflitos, a paz as sociabilidades interagem, e neles as mulheres. Foi um dos poucos relatórios que relacionou os indígenas com seus nomes portugueses, seus afazeres e qualificações e que explicitou participação dos ameríndios na administração como membros das câmaras, reorganizando e recompondo aquelas em que estavam ausentes. A percepção do ouvidor enuncia e informa sobre as mulheres ameríndias nessas vilas, mas a formalidade da narrativa não desvela as vivências cotidianas, os costumes, as festas e os afazeres da cultura ameríndia. Ressalta a submissão dos(as) ameríndios(as) aos padrões de moradias, alimentação, organização administrativa e disciplina para o trabalho, de modo geral. O que é interpretado pelo ouvidor como “estado de decadência” dos costumes bárbaros e selvagens e a não assimilação das diretrizes e práticas do reino. E para registrar simbolicamente tal situação descreve o péssimo estado das moradias, a quase inexistência de agricultura e criação de gado, de olarias, serrarias, pedreiros, oleiros, etc. em algumas das localidades visitadas. Preocupação que expressa sob certos aspectos a não consolidação do projeto do Diretório. 315 Foi nesse documento que apareceu de forma precisa a listagem de mulheres ameríndias com seus nomes portugueses e a indicação da expressão “Xoahi Pagan” para designar aquelas oriundas de recentes descimentos. Observa e destaca que as ameríndias dessas vilas se empenham nas diversas atividades, ainda que lhes falte conhecimento técnico e que os homens estão quase sempre ausentes.16 Ao relacionar ‘toda a gente desta Villa nova de El Rey’, apontou entre os habitantes 10 índios dos quais 5 eram ‘pagãos’, classificando os idosos e doentes como ‘índios velhos inúteis’. O esclarecimento sobre os “índios e índias inúteis” foi obtido ao retornamos a Bettendorff e às correspondências, constatando que essa doença era resultante principalmente dos trabalhos realizados nas salinas. Ao permanecerem por longo tempo sem qualquer equipamento protetor, havia forte tendência de terem destruídos os pés e a mãos, além de adquirirem doenças de pele provocadas pela alta salinidade sob o sol escaldante. Na vila de Cintra (Maracanã), antiga missão dos padres da Companhia de Jesus, habitada por elevado número de ameríndios “descidos” de várias regiões do Grão-Pará, já relatada por Bettendorff no século XVII, como a maior produtora de sal da capitania, e que à época de sua visita estava em “completa ruína”. Ao descrever essa vila informa sobre a escola das raparigas indígenas e o estado do aprendizado: “Visitei a escola das Raparigas, e as vi humas estarem aprendendo a fiar algodão e outras a fazer renda, de que vão juntas algumas mostras, das que se acham com algum adiantamento e são as ditas raparigas dezenove como se vê da relação”: Rellação da meninas da Escolla de renda e costura da villa de Cintra: Izabell Fernandes Izidora Peturnilha Na ilha de grande de Joanes quase todos ficavam ocupados no “Pesqueiro Real” e nas demais distribuídas nos serviços do vigário, do principal do diretor e do negócio “comum.” Anais do Arquivo Público do Pará – Belém: Secretaria do Estado da Cultura/Arquivo Público do Estado do Pará, 1997, p.10. 16 316 Lauteria Leyota Vicência Thereza Izabell da Concyção Crispiana de Souza Maria do Rozaria Maria da Silva Silveria Maria Luiza Maria Clara da Gama Dionizia Leyota Laura Maria Ursulla da Costa Lina Nogueira Sizilia da Costa Benta Roiz Maria Caridade Maria da Graça.17 Destacamos nos autos as salinas do lugar ‘Santarém’ pela quantidade informada, particularmente as pertencentes à Coroa: “tem mais no seu termo junto à costa do mar oceano as salinas em que se acham 333 marinhas, 227 que são pertencentes a Fazenda Real”, os mais são de Santos e pessoas particulares”. Nas salinas reais trabalhavam 26 índios, 30 índias e quinze rapazes.18 A vila de Bragança recebeu do ouvidor atenção especial tendo em vista que para lá por duas vezes haviam sido enviados migrantes brancos do reino (de Portugal e das ilhas atlânticas), o que lhe permitiu organizar a listagem das famílias, dos tipos de morada, principais atividades e costumes. Constata que na vila necessitava de casa da Câmara, cadeia, canoas, cavalgadeiras e que se organizasse melhor a distribuição dos índios e índias e requeria melhoramento nas moradas e nas condições deles. 17 18 MOURÃO. Op. cit. p. 109. Idem, p. 111. 317 Para reordenar a vida da vila e dos seus moradores instituiu as posturas, segundo as orientações do Diretório. Na vila de Ourém (antiga Casa Forte) encontrou desordens na aplicação da justiça em relação aos órfãos(ãs), salários e pouco povoada. Constata que dos povoadores enviados das ilhas, alguns já não moram lá mais, apenas 35 continuavam a ter residência. A população total era de 292 pessoas, entre brancos e índios, sendo estes últimos apenas 88 pessoas, e a maior parte desses moravam em outro lugar. Sobre Soure, informava o ouvidor, era bem localizada, saudável, abundante em peixes, com muito gado e carne, caranguejos. Tinha escola funcionando, na qual estudavam 21 meninos e 14 meninas. Os moradores, em especial as índias, faziam salga de peixe e carne que abastecia a cidade de Belém. Registrou que parte dos ameríndios que lá vivia fugia sistematicamente para o rio Araguari com o apoio dos franceses e requeria represália e controle. Mas ressalta-se que deveria ser feito com cuidado. Lembramos que o arcabouço jurídico que presidiu o processo de colonização no Estado do Maranhão não diferiu em essência do que orientou o Estado do Brasil. Sofreu algumas adequações ao longo dos séculos XVII e XVIII. A Legislação civil e criminal desde o início foi aplicada, encontrando dificuldades no que dizia respeito ao trato com os indígenas, em especial no que tangeu à sua submissão e escravização. Manuela Cunha assevera que a polêmica inicial foi a qualificação jurídica dos ameríndios, questão solucionada pela Bula de Benedito XIV, de 20 de dezembro de 1741, que reconheceu a humanidade do gentio, proibindo a escravidão. Entretanto as diferentes interpretações associadas aos interesses econômicos dos diversos grupos que atuaram na colonização do extremo Norte, à semelhança do Estado do Brasil, propiciaram condições férteis à promulgação e aplicação de legislações contraditórias, em particular no que dizia respeito aos indígenas sob o Diretório. O relatório do ouvidor geral Francisco Xavier Ribeiro Sampaio, “Diário da Viagem que em visita, e correição das povoações da Capitania 318 de S. José do Rio Negro fez o ouvidor, e Intendente geral da mesma, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio no anno de 1774 e 1775”, relata sua estada na região durante as visitas e devassas nas vilas e lugares da Capitania do Rio Negro. Dedicou a maior parte da narrativa à descrição da natureza: os rios, canais, lagos, florestas e fauna ressaltando a diversidade de espécies de pássaros, répteis, peixes, frutos e diversas caças. Abordou aspectos socioeconômicos, políticos, demográficos, etnográficos, religiosos e culturais utilizando-se do formalismo exigido pela atribuição. Mas na escrita incorporou impressões e julgamentos pessoais, relacionando episódios que possibilitam inferências sobre a cotidianidade, as maneiras de ser e estar das gentes dos lugares visitados. E destaca as mulheres ameríndias nos e dos diferentes grupos habitantes na região. Registrou sobre os ameríndios os seus aspectos físicos e estéticos, suas habilidades e especialidades, as sociabilidades, seus saberes, os comportamentos e costumes. Ressaltou a diversidade dos grupos e sua participação hegemônica na população residente. Revelou a mobilidade desses grupos na região e a necessidade de fixá-los, tendo em vista as ruínas de muitos lugares anteriormente prósperos e transformados em “taperas” à época de sua viagem. Privilegiou, sob certos aspectos, em sua narrativa, as mulheres, às vezes de forma explícita e outras através de sutilezas e elementos discursivos que ilustram seus modos de vida, seus viveres e formas de relacionarem-se com os colonos segundo suas posições hierárquicas de poder. Identificou e destacou as habilidades e especialidades desenvolvidas pelas ameríndias dos diferentes grupos, na medida em que expressavam saberes e técnicas de usos dos produtos e serviços da natureza na produção de objetos de interesse para o uso e comércio na colônia e na Europa. Visitou os lugares de Silves, Borba, Coari, Ega, Nogueira, Álvares, Fonte Boa, São Fernando, Castro Avelans, Olivença, São José do Javari, Tabatinga (São Paulo), Içá, São Matias (Japurá) e imediações; 319 registrou a presença de cerca de duas centenas de grupos ameríndios nesses locais. As mulheres mereceram no texto do ouvidor trechos detalhando suas aparências, atitudes e comportamento, em especial, em se tratando de sua presença como autoridade. Em Silves registrou que as mulheres dos Conanis eram as mais tratáveis. (...) As mulheres desta última nação são formosas e agradáveis. Como é costume de todas as índias presentearem o Ministro nestas ocasiões com frutas das suas roças, com mandiocas, bijus, que como é o pão feito delas, etc, mas o fim destes presentes é adquirir por eles algumas coisas, vindo ser assim humanas compras violentas; pois que, é necessário dar-lhes fitas, pentes, anzóis, pano de algodão, aguardente, a que todas são inclinadíssimas e o mais é que é necessário dar a cada uma de per si alguma coisa, já que costuma vir cinco e seis, ainda que seja só um presente.(...)19 Em Serpa impressiona-se com a beleza física dos Pariquis: homens e mulheres. Na estada em Borba onde predominavam à época os Maués, detém-se na descrição da preparação, uso e virtualidades do guaraná, discriminando as técnicas e os saberes do processamento, ressaltando ser atribuição das mulheres o preparo do mesmo para o consumo, assim como definição das dosagens que devem ser consumidas. Os Maués fabricam a celebre bebida guaraná, que já se toma na Europa. É conhecido por suas virtualidades: para diarréia, dores de cabeça, doenças de urinas, é remédio provado (...) Relaxa, porém o estomago o seu grande uso a algumas pessoas, e causa insônia, e dizem que impotência...20 Na vila de Trocano em Borba, registrou a total ausência de casais brancos e relatou todo o processo de produção do Paricá, também 19 20 SAMPAIO. Op. cit. p. 4. Idem, p. 21. 320 analisado por Alexandre Rodrigues Ferreira. Trata-se de uma espécie de pó usado à semelhança do tabaco. Relata também a produção de diversas espécies de vinhos espirituosos (alcoólicos) e sucos de frutas diversas, de bijus de mandiocas e milho. E destacou que os preparos dos mesmos são atribuições exclusivas das velhas ameríndias que “são muito ociosas de seus segredos”. Descreve a festa anual do Paricá na qual ocorrem os rituais de ‘maioridade’, de capacidade e especialidade da juventude ameríndia masculina. E, segundo Sampaio, é época excelente para o recrutamento de novos soldados para as tropas portuguesas. Na vila de Ega viviam os grupos Jamuná, Tamaciana, Sorimão, Jauná, Júri, Uayupi e Corina. Advertiu sobre a diversidade e diferenças existentes entre esses grupos, em especial, das línguas e costumes, o que dificultava a convivência entre eles e a comunicação das informações necessárias ao processo de civilização e civilidade, que garantiriam a colonização. Nessa vila registrou a produção e hábito de consumo de “Ipadú” (Coca), com propriedades similares ao louro da Europa e do mesmo uso, e notadamente evidencia seu potencial comercial. Descreveu em detalhes as técnicas e procedimentos utilizados na produção – atribuição das mulheres – e seu uso habitual entre os ameríndios para “aliviar o sono”. Em Nogueira também registrou a diversidade de grupos (nove ao todo), mas destacou o grande número de casais e de filhos existentes entre eles. Quanto às ameríndias registrou seus comportamentos em relação aos diferentes grupos e aos brancos. “As ameríndias desta povoação são menos bisonhas que costumam ser as de outras. Quando se passa pelas suas portas, saem logo a cumprimentar com tão agradável, com natural sinceridade; despidas das afetações europeias”.21 Registrou que durante o período em que lá permaneceu, diariamente, as mulheres vinham com presentes e em busca de objetos civilizados. 21 Idem, p. 36. 321 Eram contínuas as visitas das índias com presentes. A varanda das casas, em que residi, parecia huma feira. Estava cheia de paneiros de farinha de mandiocas, de galinhas, frangos, e outras aves domésticas, de frutas, principalmente ananazes, bananas, embaúbas. Bem entende que tudo isso se paga. Dizia, primeiramente que nada queriam; porém logo queriam tudo quanto se podia imaginar, e ao mesmo tempo se satisfaziam com o que lhes dava, respondendo peça sua língua Eré; que quer dizer, está bom.22 Impressionou-se com o canto de algumas dessas índias durante a missa: “As índias cantaram durante a missa = ‘Tatum ergo’= com harmonia não vulgar, e se admirar em tal qualidade de gente; mas é certo, que não só no canto, mas em qualquer outra arte, recebem os índios com muita facilidade as instruções, que se lhes dão”.23 As informações contidas nos dois textos revelaram as mulheres indígenas em distintas regiões, em processos e estágios diferenciados de inteiração na colônia do extremo Norte. Enunciaram suas aparências, alguns de seus saberes e fazeres e possibilidades de suas efetivas participações no processo histórico que se realizou na região. 22 23 Idem, p. 35. Idem, p 36. 322 TERCEIRA PARTE Escravidão e Mestiçagem . . ya se van después si va a dar ofrenda de la de una vez” Coplas populares2 A manera de introducción A la muerte de cualquier ser humano los descendientes esperan tener algo de lo que el difunto poseía en vida. amor. 2 Canto popular entonado los días 31 de octubre. La tradición testamentaria se hereda a América de Europa. un seguro. un bien mueble. población de origen africano. por pequeño que sea: una propiedad. un lote de joyas. mediana o pequeña. 1 y 2 de noviembre (Días de muertos) en Cuajinicuilapa Guerrero. en concreto de la península Ibérica. según los testamentos de Toluca en el siglo xvii Georgina Flores García Universidad Autónoma del Estado de México Belén Benhumea Bahena1 “Ya se van los diablos. agradecimiento. rencor. en ambos sentidos de la palabra: el muerto y el vivo.Los negros esclavos como bienes heredables. etcétera. El testamento es el documento legal mediante el que se formaliza la herencia de un muerto hacia los vivos ¿Quién testa? Quien tiene algo que heredar. Esta ponencia versa sobre el único bien heredable capaz de pensar y de sentir: odio. 1 325 . dolor para quien lo heredaba. dejan ver a las personas que poseían una riqueza grande. por supuesto la mayor parte de los pobladores de la Pasante de la Licenciatura en Historia de la Facultad de Humanidades de la Universidad Autónoma del Estado de México. Los testamentos del Archivo General de Notarías del Estado de México. por lo que no tenían dinero para pagar una escritura testamentaria. La esclavitud negra en Nueva España. por lo que es difícil encontrar miles de testamentos. hasta el momento no hemos encontrado un solo testamento de negros. se ha dado poca importancia a la presencia africana en la Nueva España.Toluca Colonial estaban desposeídos de riqueza3. por poco que fuera. durante el siglo XVII. exista alguno. como el pintor Juan Correa. Dentro de la historia social y demográfica. no tenían la cultura del testamento. se incluye el mestizaje entre negros e indígenas y negros y españoles. pero no dudamos que en algún archivo de México. no se les ha considerado. de la Nueva España. en lo tocante a la muerte. pero encontramos algunos que nos han permitido observar en el tiempo y a la distancia la práctica de la herencia en forma legal. porque los negros y mulatos libres. ni como bienes heredables y mucho menos como testadores. algunos indios aunque tuvieran algo que heredar. La ineludible muerte La muerte es un suceso que ocurre a todos los seres vivos desde que se tiene noción de su existencia sobre la tierra. algunos animales o un pedazo de tierra. llegaron a tener algunos bienes. El concepto que de ella se ha tenido a través de los tiempos es lo que ha variado. al igual que en toda la América Hispana se dictaron testamentos 3 Porque la mayor parte eran indios y mestizos. en esta ponencia consideramos el fenómeno socio-económico durante el siglo XVII. Las personas que testan son sujetos que tienen bienes que heredar. ¿Cómo la han visto los seres que sobreviven a tal acontecimiento? Esta percepción ha cambiado profundamente y mucho ha tenido que ver la presencia de las religiones que en el mundo se han cultivado así como las costumbres locales. fue un fenómeno presente desde el inicio de la época colonial. en la ciudad de Toluca. 326 . siendo que ésta constituye parte nodal de la raza mexicana y de la cultura que hoy tiene el país. hoy. Esta ponencia trata sobre lo que se heredaba. estudioso del tema. En algunos testamentos la postura de piedad que el testador manifiesta como evidencia que le permitirá lograr la salvación de su alma.que. al historiador. y cuando se trata de hombres casi nunca se encuentran hombres jóvenes obteniendo su libertad. por los servicios brindados. la primera y más común un objeto semoviente que se hereda como parte de la riqueza del testador. así se encuentran niños. Los protocolos del Archivo General de Notarías del Estado de México. sus resultados son muy cercanos a los de Vovelle. jóvenes. Las actitudes ante la muerte coexisten dentro del marco que él denomina “inconsciente colectivo” que se puede definir como el nivel de la conciencia donde se hallan los sueños. Hombres y mujeres. no sometidos al dominio de los cambios históricos. guardan los testamentos que nos han permitido elaborar la presente ponencia. en su mayoría niñas o viejas. / mi marido. Item quiero y es mi voluntad ahorrar y libertar / como por la presente liberto a Juan niño. en ocasiones desde los padres. las actitudes y los ritos que se expresan. el modo de pensar de los hombres ante la muerte. considerados semovientes: los esclavos negros que se heredaban. Para hablar de la muerte es fundamental considerar a Philippe Ariés. Sin embargo. se repite a lo largo de la historia. para él el sentimiento que los hombres experimentan ante el fenómeno de la muerte. permiten ver. mi esclava. hace que la persona otorgue carta de libertad a los esclavos. Considerando a los esclavos negros en dos situaciones. hijo de Francisca. bienes muebles y/o inmuebles. 327 . como queda dicho en la introducción. La mayor parte de estos casos corresponden a mujeres. / por cuanto es mi ahijado y por el amor que le tengo para que / el suso dicho sea libre y no sujeto a servidumbre y declaro que el / dicho niño Juan se le dio al dicho Diego Martínez de Solís. pero más allá dejan ver las costumbres y ritos que se manifestaban en las diferentes épocas de la historia. nosotras abordaremos los bienes humanos. adultos y viejos. 328 . Pide se cobren a los albaceas de su madre. vecina de la jurisdicción de Metepec. 13. ordena se le sepulte en uno de los conventos de la Orden de San Francisco de Metepec o Calimaya. a un monasterio o a los herederos que se designen. de todos los bienes que quedaren después de haber vendido los necesarios para pagar las mandas y legados estipulados en el testamento.. Francisca Muñoz. L. Atenco. 31-33 Testamento de María de Herrera. 2. Asimismo nombra albacea y heredero universal a su marido. huérfana criada en su casa.en ciento cincuenta pesos. Fs. remítome a la carta de / dote que tengo y me otorgó el dicho mi marido. por lo que ordena que de sus bienes se den 300 pesos de oro común en reales a Ana Muñoz. 9. y natural del pueblo de Azcapotzalco jurisdicción de Tlalnepantla. Deja 2 reales a las mandas forzosas. bajo condiciones claras que impone el testado a los herederos. Toluca. los cuales quedarán en manos del dicho Lázaro García hasta que ésta se haya casado. A su esclava negra llamada Dominga. Enero 2 de 1597. L. 174-175v. hija legítima de Melchor Gómez y Juana Muñoz y mujer legítima de Lázaro García.5 Dos son las dimensiones de que podemos hablar acerca de la muerte: A dónde creemos que van nuestros muertos después de abandonar el cuerpo? ¿Cómo actúan las personas ante el drama de la 4 5 C. hace su testamento en el que declara que no hubo hijos en su matrimonio.C. villa. 2. los bienes que ella le heredó. mayordomo de las haciendas del Conde de Santiago. Al tiempo cumplido lograrán su libertad.4 También aparecen testados los esclavos negros. haciendas del Conde de Santiago. Fs. (Testamento). Febrero 28 de 1638. le ordena sirva a su marido Lázaro García hasta que éste fallezca y entonces quede libre de manera que no pueda ser vendida ni enajenada. por ejemplo que el negro o la negra obtendrán su libertad después de haber servido durante determinado tiempo a un convento. fundación de cofradías y capellanías. vecinos que fueron de la misma villa. villa. es fuente primordial para el estudio de una sociedad determinada. difuntos. son el salvoconducto para tener acceso a la vida eterna prometida por la Iglesia católica. las costumbres. el estatus económico. la fe en la redención de los pecados. hija legítima de Marcos Sánchez y de María Martínez. vecina de la villa de Toluca. la muerte se presenta como un fenómeno que violentamente rompe la cotidianeidad obligando a las personas a pensar en el más allá. mujer legítima de Juan de Vilchis. (Testamento). si bien es de índole legal al garantizar el cumplimiento de la voluntad del testador como deseo hecho en los últimos momentos de su vida. solamente se le ha dado un negro criollo llamado José. sobre todo refleja el comportamiento de los individuos ante la cercanía de la muerte que es evidente desde la invocación en la que se destaca como la más mencionada a la Santísima Trinidad. Deja 2 reales a las mandas forzosas y un peso a la iglesia de Nuestra Señora del Carmen de México. Proporciona información sobre la estructura de la familia. vino y ornamentos – para obras pías. santos y monasterios. de 18 años de edad y 2 cuadros. Nombra como sus albaceas a su marido y a su hermano Lorenzo Sánchez 329 .muerte? Indudablemente. muestra el modo de pensar y de sentir de las personas. hace su testamento en el que pide sea enterrada en la iglesia de San Francisco e indica las misas que por su alma se han de rezar. Toluca. todas estas vías en las que como él mismo declara “firmemente cree”. para asegurar que sus bienes quedaran en manos de quienes disponía. El documento denominado Carta Testamentaria. Inés Martínez. las diferentes calidades de misas y la forma en que el testador desea se le amortaje. cera. anteriormente del difunto Juan García Figueroa. Declara que de la dote que llevó a su matrimonio y de los bienes que dejó su marido inventariados por el albacea Diego García Figueroa. religiosos. uno de la Concepción y otro de San Isidro. los donativos en efectivo o en especie – pan. cervantesvirtual. 5. Por ejemplo Isabel de Morales en su testamento declara: “…es mi voluntad se digan / por las ánimas del purgatorio cincuenta misas / porque Dios las saque de las penas en / que están y se digan donde mis albaceas / les pareciere y paguen por ellas la limos / na acostumbrada.6 En los testamentos podemos incidir la concepción que los testadores tenían sobre el Purgatorio cuando declaran “… deseando poner mi ánima en carrera de salvación elijo por mi intercesora y abogada…”. La mort et l´Occident de 1300 a nos tours. Actitudes colectivas ante la muerte en Murcia. A.C.C. abuelos y demás parientes al tiempo que se intentan aminorar los efectos de “cargos de conciencia” en vida y se recuerda en este tercer bloque de intereses del testador a las “ánimas del Purgatorio”. sin embargo Mayo 10 de 1644.com/FichaObra. 7-12. 2. 1 T. L. N. como elementos iconográficos de retablos. su presencia queda atestiguada en la forma en que se dejan las misas ya que junto a las que solicita el testador por su alma. Michel. Murcia: Universidad de Murcia. Anastasio. L.html?Ref=4593 6 7 330 . Ambos surgen a finales del siglo XIV y sobre todo en el siglo XV.y como legítimos y universales herederos en el remanente de sus bienes a José García Figueroa. disponible en http://www. Juan de los Santos. Fs. Luisa Antonia y Juan de Vilchis. 1983. 134-139. Fs. para que pida a su hijo le “quiera perdonar su pecados y lleve su ánima a su santo reino”. los términos “carrera de salvación” nos remiten a la idea de un recorrido del alma por el espacio intermedio: Purgatorio. 44-45. generalmente se pide por intercesora a la Virgen Madre de Dios.”7 La concepción del Purgatorio como prisión se conjunta con la concepción de éste como pseudoinfierno. Cristóbal García.8 Como el alma tarde o temprano será juzgada se buscan por ello abogados e intercesores que la defiendan. 8 Vovelle. 17. Tesis de doctorado. libros de horas y frescos de iglesias. . también se recuerdan las de los padres. De esta manera. Paris: Gallimard. 1992. p. 7. citado por Alemán Illán. Catalina de Castro […] Se presenta la memoria del testamento para comprobar el nombramiento del albacea. esto denota una fuerte devoción al santo de Asis. parte del pecunio y de las ganancias que se habían logrado en vida del testador. dado que el hecho te poseer un esclavo era signo de bonanza. Asimismo. Toluca. una llamada Nicolasa y otra Mariquilla. el hábito religioso cumple esta función y generalmente se escoge el hábito de San Francisco. ya fuera de la villa de Toluca o de la ciudad de México. presentando una real provisión compulsoria en la que anula el remate. dotarlo de una mortaja para su última morada. es decir. etcétera. villa. es entendido como objeto cargado por sí mismo de potencias benéficas. bienes muebles. ganado. ya sea haciéndose acompañar con los religiosos de alguna iglesia. un negro criollo llamado Francisco y dos mulatillas. p. Se incluye el libro de gastos de la hacienda así como el remate de la misma a favor de Juan Pérez Melo. curador ad litem nombrado por María de Salazar. litigo). semillas. Diego García Figueroa.también se pide la intercesión de los santos o toda la corte celestial. 303. El hábito en general. Esto con la finalidad de asegurar la llegada del alma al reino de Dios. seguros de vida espiritual. Mediante el testamento se busca un elemento de seguridad del cuerpo.9 En el testamento también se dispone la pompa del cortejo fúnebre con la que quiere se le acompañe en el momento de su sepultura. y el franciscano en particular. se incluye el inventario en donde figura un esclavo mulato llamado Domingo. (Herencia. Se agrega el 9 Ibid. Los esclavos negros se heredaban como una riqueza. la mayoría de los testadores prefieren ser enterrados en el monasterio del señor San Francisco. y que por su voluntad se dejan para que tengan una vida digna sus sucesores. etc. 331 . aperos. esta noción se traduce en indulgencias.. Melchor de Tapia reclama al mulato Domingo por ser parte de la dote de su esposa y protesta por la venta hecha a Juan Pérez. vecino de la villa de Toluca. Santo Domingo y las Mercedes y que a cada religioso se den 100 pesos de oro común de sus bienes y el resto se destine a sus albaceas para que lo distribuyan como les pareciere. porque el esclavo negro heredado. ambos de tierra Angola. obrajero o agrícola. Entre los bienes se encuentra un esclavo negro. hijo legítimo de Antonio González de Almeida y Marta Fernández. arrendamientos de la hacienda.Febrero 13 de 1652. Se incluyen varios documento como cartas de pago. en algunos casos era de mayor ganancia. (Testamento). autos. pide se le sepulte en el convento de Nuestra Señora del Carmen de esa ciudad. de la hacienda mencionada que fue de Francisco y Agustín Martínez. ciudad. 12.. 332 .arrendamiento que hizo Juan Pérez Melo a Marcos Barreto Quintana y el que hizo Melchor de Tapia a Juan de la Peña. L. podía ser especialista en algún oficio y trabajar de por vida para su amo. como 10 Marzo 21 de 1635 . además de ser una ganancia por el servicio doméstico. difuntos. ordena se den a Francisco Varela 100 pesos de oro común por haber acudido a sus negocios.C. recibos de adeudo y de pago y reales provisionales. 6. ganadero. Declara estar casado con Ana del Águila y que durante su matrimonio no tuvieron hijos. 228 Fs. Bartolomé González de Almeida. También ordena que se digan quinientas misas por su alma.10 La herencia en esclavos. oficial de zapatero nombrado Manuel de 26 años de edad y una negra llamada Sebastiana de 36. que el día de su entierro acompañen su cuerpo las Ordenes de San Francisco. se digan otras por sus familiares y se pague un peso a cada una de las mandas forzosas. Nombra como albacea y tenedora a su mujer y a Francisco Varela de Ulloa. vecino de la ciudad de México y natural de la ciudad de Gibraltar en los reinos de Castilla. Menciona a las personas que le deben diferentes cantidades. México. 11 La gran mayoría de los testadores solicitaban ser enterrados en el cementerio del convento de San Francisco de la villa o ciudad de Toluca. en los reinos de Castilla12 poseedor de propiedades muebles e inmuebles. esclavos. en la Mancha. El contexto y el texto en el que aparece Gracia. 13. desconocemos las causas por las cuales los bienes heredados de carne y hueso. son testigos a su favor personas españolas pertenecientes a las atividades mencionadas. 1. propiedades vivas e inertes.. Estas relaciones que en algunos casos mantuvo vía el compadrazgo. y todos los aperos necesarios para la labranza de la tierra y el usufructo del ganado. frailes y capellanes.M. 29. lugar en el supuestamente se enterraba a sus congéneres. muerta a golpes por su amo y enterrada de manera clandestina en otro cementerio a pesar de ser de la Hacienda de Cacalomacán. 365-367. con comerciantes. Fs. no podían ser enterrados ni siquiera en los cementerios de los templos que había en los barrios.heredera del remanente de sus bienes a la misma Ana del Águila. 333 . natural de Argamansilla.N. L. que se supone era para la liberación de los cautivos.E.G. burócratas. un pueblo que se encontraba a cinco leguas de distancia el convento mencionado. fueron esenciales para el juicio entablado por la muerte de Gracia. 92v-94v. políticas y económicas. C. Para ejemplificar con más elementos lo que afirmamos en el último párrafo. incluyendo el del Convento de la Merced. Sus haciendas ubicadas en la jurisdicción de Toluca mantenían en su haber: tierras. Fs. una niña esclava de dieciséis años. sacerdotes. ganado. 11 12 Septiembre 4 de 1636.6.C. sin embargo cuando morían los esclavos negros se pedía fueran enterrados en Cacalomacán. español. A. hablaremos de Gracia. L. negra esclava del hacendado de treinta y dos años de edad Sebastián Ximénez. Hombre que de acuerdo con los documentos del siglo XVII tenía una fuerte presencia en relaciones sociales. quien posiblemente nació en la hacienda de Clara de Medina. como limosna. no los esclavos o es que acaso el día de San Isidro labrador ¿no se llevan a bendecir semillas y animales de labranza?. los matrimonios y las defunciones. De lo anterior dan cuenta los registros notariales. hasta en las valuaciones de negritos otorgados. clasificados hasta el momento no registran la compra . evidente es que no son hijos de Dios. rentar. hipotecar. un hermano y ella en el año de 1631. 13 334 . subastar. las propiedades de la iglesia. y alcaldes – hombres de la iglesia . dan cuenta del gran valor humano y sentido cristiano de la gente de razón de la época. si no los bendicen serán ellos los que se condenen. en el que se afirma que tiene tres años poco más o menos. y al momento de su muerte.sacerdotes y frailes – hombres de empresa . de hipoteca. Si se considera al esclavo como propiedad del amo. 1643. a las iglesias. no hemos logrado saber si era bozal o era criolla.venta de esta esclava. del clero regular y del secular. Los esclavos fueron sujetos de todas las transacciones mencionadas. o incrementar en sus cantidades o cualidades. destruir. Documentos civiles y eclesiásticos. en los testamentos. viuda de Pedro de Illescas y hermana de la suegra de Sebastián Ximénez. sobre entendido estaba que la propiedad se podía vender. hasta el morir. regalar. Hasta hoy. ejecutadas por hombres de negocios –negreros.pregoneros y artesanos – así todo aquel que tuviera la posibilidad de comprar y mantener una pieza de ébano. Si la iglesia no reconoce alma en el negro. contaba con 16 años. para beneficio del propietario.obrajeros y hacendados – y por gente común . empero se bautizan y sepultan cristianamente y se casan para no vivir en ayuntamiento porque los dueños son los responsables de esos seres. a través de los bautizos. comerciantes – hombres del gobierno – virreyes. porque los documentos notariales. de dote. la legislación española daba poder para detentar en posesión a la propiedad adquirida. la podía poseer. desde el nacer. por supuesto que como lo marca el génesis La edad de Gracia se deduce por una carta de hipoteca de su madre.Gracia mujer negra nacida en 162713 fue muerta a causa de los golpes que le propinó su amo su dueño. en sus cartas de compra – venta. Los registros parroquiales son otra fuente que constata la propiedad de los hombres sobre los hombres y mujeres sujetos a la esclavitud. 14 15 A. a lo que le ayudó una india. curandero español. por Lucrecia. mujer de un negro esclavo. de la Villa de Toluca. 335 . además. quien tampoco encontró remedio para la enferma. quien solo visitó a Gracia una sola vez. afirmando vivir en el barrio de Santa Clara Coscatlán. Toluca. pidieron se llamara a Cristóbal Mejía. Nicolás de Tolentino respondió a las preguntas realizadas por la justicia juró: “haber encontrado a la negra con los brazos quebrantados. En la declaración de Juana de los Reyes ésta se autodenomina mestiza. declaró que habiendo ido él al monte a llevar unas mulas. Nº. Hernando Mejía de Lagos y Francisco de Angulo. no india. Gracia.14 La negra Lucrecia declaró. india15. moribunda. que posterior al augurio de muerte afirmado por el curandero Tolentino.H. Al declarar en el juicio entablado por Gabriel de Castro. Penal.J. auguró una muerte segura. concertándole los huesos que tenía desencajados. esclavo de Sebastián Ximénez. Como testigo de Gracia acudió Juan Nicolás negro criollo de Cartagena. marido de Juana de los Reyes. de Don Melchor de Villalobos. Gracia fue encontrada. indio. al igual que un cuadril del lado derecho. Muere por los golpes y azotes… En el año de 1643 Sebastián Ximénez mató a Gracia en la hacienda que tenía por el camino a Cacalomacán según la acusación de Gabriel de Castro. negra esclava.P. del mismo Sebastián Ximénez”. el curandero tuvo que recurrir a ‘los intérpretes.Dios creó a toda criatura viviente. pidió al amo llamara a un curandero. quien afirmó que el dicho Sebastián mató a la negra esclava a causa de los golpes y azotes que le propinó para desquitar su enojo por haber derramado la leche de una escudilla. y aún a las inertes como las montañas y los mares. Teniente de Alguacil Mayor. 30. quien al darse cuenta del estado en que se encontraba Gracia. acudiendo al llamado del amo Nicolás de Tolentino. 1601-1648. Negrillas eran consideradas las niñas. el amo azotó a una negrilla17 con las riendas de un freno con el que le dio veinticuatro azotes. cuando. su mujer le dijo que el amo había golpeado con un palo a la negra. Toluca. otras doce por las ánimas de los naturales que hayan estado a su cargo. 26 de agosto 1649. El testamento de Ximénez no deja lugar a dudas. Después se llamó a un curandero indio.16 También se le dio la palabra a la esposa del negro esclavo. y a un español después y a una mujer española18. L. de que era buen cristiano.19 de noviembre de 1643 Fs. 29 de noviembre de 1643 Fs. C.29. y cincuenta por la de sus padres. a partir de ese día la negra comenzó a quejarse del cuadril del lado derecho. quien declaró ser mestiza y dijo que el día de San Juan Bautista. porque había hecho acompañar el entierro de Gracia con cinco o seis indios cantores del convento de religiosos de San Francisco.P.J.T.H. mestizos y negros fueron en contra del amo.T. 92v-94v. en él se afirma que: “Se le sepulte en la iglesia de religiosos de San Francisco y que ese día se le haga una misa cantada. Manda se digan cien misas rezadas por su alma.21 Cuándo se le pregunta en el juicio sobre lo ocurrido en su hacienda. primero. Juzgado 1 de lo Penal. quien quedó coja y que al otro día la había azotado con un cuero. de cuerpo presente.P. hasta la última morada de la negra.5-6. porque si las declaraciones de indios. cuyo nombre no sabía.19 Los hilos del poder en la Historia siempre han ejercido su función y el caso de Gracia no sería la excepción.a su regreso.20 Deja dos reales a cada una de las mandas forzosas y dos pesos a la Casa Santa de Jerusalén”. Juana de los Reyes. Distrito.H. sin más razón que el que la negra dejara derramar una escudilla de leche y de que en el enojo de los acontecimientos la golpeó. la mayoría de los testigos se refieren a ella como tal. a pesar de los 16 años de Gracia. Toluca. en la huerta de la hacienda. que le dolía mucho y se comenzó a enfermar. 18 De acuerdo a uno de los testigos esta mujer española vivía en casa de Blas Hidalgo de Siera.6. Juzgado 1 de lo Penal. Fs. los tres trataron de curarla. arguyendo que era buen cristiano.J. Distrito. 19 A. 21 AGNEM. 20 Las negritas son nuestras. los españoles declararon a favor de él. 16 17 336 . 3v-4. Sebastián Ximénez dice que: “A mediados del mes de junio A. buscaron alternativas para ser libres. población negra de la costa Chica. testigo a favor de Sebastián Ximénez dice que “nunca encontró con las rodillas desconcertadas a la negra Gracia. aquellos que como bienes heredados continuaron sujetos a la esclavitud. 6 de diciembre de 1643 Fs. México. le dijo María de la Chica. sucios del rostro. para tener una descendencia que por calidad de vientre naciera libre.12-12v. lograban serlo.13. AH. que por aquella hacienda habían pasado unas mujeres. porque siempre anduvo en pie la dicha negra.M.J.22 En su declaración el curandero español.P. porque siempre anda borracho. ¿Qué herencia podían dejar a sus hijos? La libertad era la mejor herencia. sería bueno llamar al dicho Nicolás Tolentino”. Toluca.P. descalzos y con cadenas. su mujer. 22 23 AH. no podía ser culpable de nada. Juzgado 1 de lo Penal.J. en el caso en los hombres. Toluca.del presente año. en su testamento pide se rece por quienes estuvieron bajo su servicio. además el indio Tolentino miente. a una negra esclava que era su bien semoviente. Distrito. Guerrero.”23 ¿Cuál fue el castigo que recibió Sebastián Ximénez por dar muerte a una mujer? Fue encarcelado unos cuantos meses y después del juicio liberado por encontrarle inocente. en donde saltan simulando estar enterrados y al saltar lograr su liberación.E. 6 de diciembre de 1643 Fs. sin decirle quiénes eran y avían visto a la dicha negra Gracia y les habrá dicho que estaba mala y tenía hinchada una rodilla y que por si fuese de desconcierto que por alguna causa le hubiese dado. ¿De qué se le acusaba? Si al contrario dio sepultura como buen cristiano. con sus ropas hechas girones. Los muertos del ayer en los vivos del hoy En Cuajinicuilapa. Distrito. él tenía en propiedad a la negra. El significado de la danza es el ser libres después de morir. buscaban la procreación con mujeres libres.E. los días 31 de octubre. cuando volvió a su casa. 337 . Las mujeres solamente teniendo carta de liberación.M. Juzgado 1 de lo Penal. 1 y 2 de noviembre se presenta una danza denominada los diablos que emula a los esclavos negros del México novohispano. aviendo ido el confesante al monte. Danzan por la noche y van al cementerio. 338 . negro y esclavo. sin embargo no es general la apreciación.A manera de colofón Las representaciones sociales de la propiedad originan categorizaciones del yo por parte de los miembros del grupo de bajo prestigio sobre el modo de pertenencia (identidad social) y está aparece efectivamente asociada a una categorización de los miembros del grupo de alto prestigio sobre el modo de personalización (identidad personal) que el imaginario supone como una condición de sumisión al tener el estigma de ser. los documentos pueden hablar y decir lo contrario. 1795. entre outras coisas. Pelo Livro de Casamento I – Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio do Recife. muitos africanos e seus descendentes foram elementos importantes para construção e continuidade de gerações familiares no Brasil. sejam elas no núcleo urbano ou rural. tem com a escravidão e a vida de um “pai zeloso” em Pernambuco? Vejamos nossa argumentação. Mas. p. vindo da ilha de São Jorge nos Açores. pois no domingo. após um processo de banhos em que constam documentos sobre o não impedimento do noivo para o casamento – já que tinha vindo de Portugal adulto – Maria Rufina casa com Manoel Francisco de Siqueira Pereira Quadros1 e passa a constituir uma nova família. mais um pai que casa sua filha e garante que ela não fique para solteirona. alheio e desconhecido dos senhores. Dentro da existência escrava. inserindo sangue europeu na descendência da família Brainer. sendo só mais um casamento ocorrido na igreja.Pai zeloso.. Algo que pode passar despercebido. O papel desenvolvido por esses atores esteve ligado às funções exercidas no seio das famílias em que foram inseridos. Maria Rufina de Santa Anna Braine abandonava o mercado matrimonial da freguesia de Santo Antônio do Recife. vamos descobrindo que o escravo. limiar dos séculos XVIII e XIX Gian Carlo de Melo Silva Universidade Federal de Alagoas No ano de 1795. para nós historiadores tal cerimônia pode nos levar a conhecer um pouco sobre a sociedade da época. não necessariamente era um estranho. Assim. 1º de novembro.. simplesmente mais uma “peça” usada pelos seus donos. Puxando os fios e farejando os rastros deixados na documentação será possível responder o que o casamento de uma mulher branca com um homem português. cristão e senhor de escravos: o caso de José Henrique Pereira Brainer Pernambuco. 141. 1 339 . dia de todos os santos. no lar que passava a habitar. p. Os dotes fornecidos pelas famílias das noivas foi um costume existente no Brasil desde o século XVI e só declinou ao longo dos oitocentos. Tal fato ocorria através das doações feitas como parte dos bens dotais. Brasil. com o propósito de casá-lo com sua filha”3. em conversa com o Comandante do Sertão. famílias e mudança social em São Paulo. muitos em troca só teriam que passar para família da noiva sua ascendência do velho continente. sabendo ler e escrever. de bom aspecto e hábitos regulares. Aos olhos de 2 NAZZARI. muitos homens conseguiram garantir algum pecúlio e uma esposa. afinal. Tradução e Prefácio de Luís da Câmara 340 . móveis e escravos era um atrativo. que seria mãe de seus filhos e dona do lar. Falando em família. muitos foram os cativos que passaram a ser propriedade de um novo casal após terem recebido as bênçãos eclesiásticas. o seu uso foi uma forma de atrair bons maridos para as mulheres. Neste grupo podemos inserir especialmente homens vindos da Europa que não tinham raízes e familiares no Brasil. 263. Viagens ao Nordeste do Brasil. inserindo sangue “azul” ou “nobre” e garantindo uma prole branca para a família da sua mulher. Mulheres. durante muitos anos. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. Porém. com a possibilidade de começar uma família e ainda receber um enxoval composto por ouro. Durante sua passagem por Pernambuco. casar era uma solução perfeita no caminho para conseguir inserção e reconhecimento social na localidade. os cativos eram o alicerce de sustentação e desenvolvimento das famílias de seus senhores. O Desaparecimento do Dote. 1600-1900. passando a ter bens que sem o consórcio nunca iriam alcançar. Em um só momento. Henry. numa das ocasiões em que o mesmo ficou hospedado na casa do inglês. 3 KOSTER. Segundo Koster. Para eles. Muriel. tanto para os homens que estariam inserindo alguma fortuna aos bens que possuíam ou em outras situações. com a expansão de um sentimento de “repúdio ideológico2” à prática de dotar uma filha.contrário. o inglês Henry Koster relata o caso de uma encomenda que tinha como origem o sertão pernambucano. bens imóveis. uma encomenda feita por um amigo no sertão e que deveria ser encontrada no litoral era de “levar para o sertão um português moço. utensílios domésticos. o pai não esquece a alimentação do seu genro e da filha. quando não completamente branca. concordou em casar a filha dando-lhe um dote4. para o novo casal Maria e Manuel são passados. Assim. afinal. como um homem branco representante dos costumes da época colonial. deixa alguns detalhes do cotidiano da formação de um novo casal. assim como ceroulas também eram passados por dote ou herança. o pai de Maria. 11. um pedido como esse seria algo que suscitaria revolta. 2v.hoje. 64-65. dotou-a de várias peças de ouro e outras de prata. casar suas mulheres com homens brancos vindos da corte era uma garantia de descendência mais clara. Porém. estudo introdutório e organizado por Leonardo Dantas Silva. fls. ambos com vinte anos de idade. 600-601. o pai zeloso também não deixa de torna-la atrativa para um matrimônio. embarcado em Angola e com trinta anos de idade. IHAGPE 341 . Joana e Bernardo eram escravos e propriedades de Henrique Jozé Brainer e foram doados às suas filhas por ocasião do Cascudo. entre outros bens: um relicário. de uma nova unidade familiar. seu foco estava em não deixar esvaírem-se os bens da família. A necessidade de clarear as gerações posteriores da família não foi uma das preocupações de Henrique Jozé Brainer. Micaela de Jesus Maria casada com João José de Souza Rangel. ele de nação Congo e ela Rebolo. O cuidado do pai para com suas filhas. Assim. porém no período colonial fazia todo sentido para os pais preocupados com o futuro casamento de suas filhas e no caso de famílias com algum traço de cor. que foram entregues no seu casamento juntamente com o escravo Bernardo. principalmente com relação aos escravos e que podemos analisar. um colar – todos estes bens de ouro. Massangana. ed. pois uma panela de cobre e um tacho são listados como parte do dote recebido na época do matrimônio. além de ratificar uma prática costumeira na sociedade colonial que foi o hábito de dotar. a parte mais valiosa do enxoval é composta pelos escravos Manuel e Joana. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. Atual. um par de braceletes. Para sua outra filha. No entanto. 2002. p. Começando pelos bens mais valiosos é possível observar que Manuel.1811. 4 Inventário de Henrique Jozé Brainer . Ed. com destinos que poderiam ser São Frei Pero Gonçalves e seu acesso para Olinda. uma freguesia movimentada e que tinha em seu cenário casas de comércio. a povoação dos Afogados ou a Freguesia da Boa Vista. LAPEH – UFPE. Planta Geográfica da Vila de Santo Antônio do Recife. afinal ambos eram moradores da freguesia de Santo Antônio do Recife e participavam direta ou indiretamente do burburinho existente naquela localidade. igrejas e moradias. localizado na freguesia de São Frei Pero Gonçalves. Planta Geográfica da Vila de Santo Antônio do Recife. 342 . lojas. Como é possível observar na imagem. Locais em que existiam muitos escravos de ganho. produtos. além de ser a ligação entre o continente e o porto. cruzando a ilha.casamento. negociantes e uma gama de pessoas indo e vindo cotidianamente. Acreditamos que tal doação foi pensada para um contexto de vivência em que o novo casal estava inserido. a distribuição geográfica dos bairros mais povoados do Recife na época colonial tinha seu trânsito facilitado pelas ligações existentes através das pontes e da proximidade das ruas. indo e vindo de um ponto ao outro. Devido à existência de vários herdeiros. os mais valiosos eram os cativos e compunham um total de onze peças que tinham os seus serviços determinados. 5 343 . no livro IV das Ordenações Filipinas. Para maior aprofundamento consultar o título XCVI. Escravos da Família Brainer Nome Manuel Joana Bernardo Antonio Matias Tereza Izabel Domingos Joaquim Manoel Vicente João Origem/Nação Congo Rebolo Angola Angola Angola Angola Angola Angola Angola Angola Angola Angola Idade 20 20 30 20 20 – Serviço Casa Casa Casa Casa Casa – 20 25 40 30 25 28 Casa Casa Sítio Sítio Sítio Sítio Valor 90$000* 110$000 30$000* 110$000 110$000 110$000 110$000 110$000 100$000 120$000 80$000* 80$000* Fonte: Inventário de Henrique Jozé Brainer – 1811. as filhas que tinham recebido dote tiveram que incorporar novamente seus bens na avaliação para divisão igualitária com todos os descendentes5.Em relação aos escravos que chegaram a compor o cenário da freguesia. Tal prática era costume no período e visava uma divisão justa dos bens da família. é possível observar que todos os que foram passados por dote para as filhas e os demais que pertenciam à família Brainer eram africanos e dedicados aos serviços da casa. com exceção do sítio de terras. detalhes que só nos são revelados por conta da morte do patriarca no ano de 1811 e a posterior abertura do seu inventário. Entre todos os bens deixados. IHAGPE Os valores identificados com * são referentes aos cativos que no momento da avaliação estavam doentes ou possuíam defeitos físicos. como podemos perceber na tabela abaixo. Mas essa tarefa ficará para outra oportunidade por exigir uma análise mais ampliada da história do tráfico de escravos entre as duas margens do Atlântico. por isso. pois como assevera a documentação eclesiástica composta por registros de batismos e casamentos para o período. Joaquim. pode não ter sido realizada ao acaso. transforma Joaquim em um possível feitor ou escravo de confiança da família. possui o sobrenome “Sauveiro Angola” que somado ao fato de não ter sido indicado ao “serviço da enxada” como os outros cativos. Fato significativo para pensarmos as ligações atlânticas que existiam entre o Pernambuco colonial e a região de Luanda na África. Chamavam-se: Joaquim.1811. dedicados às atividades rurais nas terras da família. Vicente e João são identificados apenas como “angola”. A presença de mulheres ‒ com exceção de Joana. identificada como “rebolo”. voltemos nosso olhar para os escravos dos Brainer. Enquanto Manoel. Com uma escravaria dividida entre os contextos das freguesias de Santo Antônio e o sítio de Bezerros. tem nas outras cativas. IHAGPE 344 . o escravo mais velho. que eram homens e mulheres ‒ todos moradores da freguesia de Santo Antônio ‒ . Os cativos do sertão eram somente homens.A escolha feita por africanos. podemos tecer um pouco do seu cotidiano a partir das entrelinhas da fonte. Manoel. Vicente e João. Tereza e Izabel. teoricamente vindos da região de Angola. mas também corresponder a um costume na região. Em relação aos cativos domésticos. a família Brainer estava inserida em espaços distintos. mais de 50% da população cativa africana existente era identificada como Angola. Porém o documento deixa um indício de diferenciação hierárquica entre os quatro escravos. onde estava situado o porto de embarque dos “angolas” trazidos para o Brasil. que cuidava da administração cotidiana do sítio Alagoa do Genipapo6. que foram designadas por “angola” ‒ pode caracterizar que essas estariam exercendo atividades cotidianas de 6 Inventário de Henrique Jozé Brainer . 61. fl. com funções complementares para o abastecimento e sustento das necessidades do próprio núcleo doméstico e de um comércio que poderia ser mais abrangente. provendo o sustento da família e realizando atos na terra que o poderiam salvar após a morte9. fl. no caso dos Brainer era um sobrado que ficava na Rua do Sacramento nº 4687. mas realizado pelos seus escravos. Existe também a chance de serem usadas para o comércio na rua. além dos serviços domésticos. Como bom cristão.um sobrado urbano. mas é algo que fica para segundo plano já que elas não são identificadas como “ganhadora” nas suas funções. fl. nos leva a acreditar numa fabricação de velas e na existência de um comércio nas proximidades ou dentro do espaço sagrado. talvez vendendo os produtos excedentes oriundos do sítio em Bezerros. Henrique Brainer tinha entre os seus escravos alguns que possuíam doenças. observamos o envolvimento desses nas atividades de uma possível fabricação de velas sob o comando da família. 44. por exemplo. Nas fronteiras do além: A secularização da morte no Rio de Janeiro – séculos XVIII e XIX. pois as quantidades estocadas de cera eram bastante significativas. Antonio. Mulheres escravas que estavam lavando. passando. uma designação que nos levaria a afirmar com segurança que exerciam as atividades nas ruas da freguesia de Santo Antônio. podemos identificar os cativos Bernardo. que compunham o restante da escravaria urbana de posse dos Brainer e que. A presença constante de Henrique Jozé Brainer na Igreja do Santíssimo Sacramento. cozinhando entre outras coisas que possibilitavam o bom funcionamento do lar. mais de 300kg8. Ibid. Domingos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 7 8 345 . tinha uma doença conhecida como Ibid. O escravo João. detectada pela frequência com que foi testemunha de casamento e batismo. 36. Quanto ao grupo de escravos. 9 Para entender melhor os aspectos acerca da boa morte no imaginário social no Brasil desde o período colonial e imperial observar a obra de Claudia Rodrigues. Claudia. afora o de cera amarela. Matias e Manuel “Congo”. sendo avaliados no momento do inventário com valores inferiores aos considerados sadios. RODRIGUES. que deveriam abastecer mais do que o núcleo doméstico. 2005. administrado de perto pelo senhor. quando associada ao estoque de cera bruta. 100.“lobas”. exercendo as mesmas funções. 10 346 . todos. podemos observar os demais escravos. algo que não podemos comprovar pela ausência de indicações nas fontes disponíveis. sua realidade só existia devido ao papel fundamental do elemento africano A enfermidade sofrida por João é uma inflamação da pleura. Tereza. tinham valores muito próximos. tinham valores iguais ou superiores ao de Manoel por terem idade inferior. dificultando a respiração. Izabel. continuavam exercendo atividades. uma membrana que envolve o pulmão e veste todo o peito por dentro. Após entender o motivo dos valores diferentes para escravos com idade e funções equivalentes. Os demais cativos. independentemente dos locais onde estavam. a doença Gota é uma enfermidade que ataca as juntas e causa muita dor. Porém. no momento da avaliação. 11 Segundo Bluteau. BLUTEAU. Acreditamos que os dois escravos doentes que estavam no sítio da família. seja na parte rural ou urbana. O caso específico do cativo Manoel o diferencia dos outros. o cativo Manuel tinha um defeito na virilha esquerda e Bernardo sofria de gota11. porém suas enfermidades os tornavam mais “baratos”. 549-550. pois mesmo tendo 30 anos e trabalhando no serviço da enxada tinha um valor superior aos demais escravos da família. Pelo que foi possível detectar sobre a família Brainer. já Vicente tinha “achaque no peito procedido de hum pleuriz”10 mas ambos não estavam impedidos de trabalhar no serviço da enxada no sítio da família. tiveram defasagem no preço em torno de 20% quando comparados com os sadios. Na parte urbana. Volume 6. Os cativos arrolados no inventário com quantias acima de 100$000 mil réis foram: Joana. Domingos. igualmente aos escravos rurais. que foram considerados com boa saúde e tiveram uma uniformidade em suas avaliações. inclusive os do meio urbano. Joaquim e Manoel. Matias. Antonio. Coimbra: 1712. Raphael. p. Vocabulario Portuguez & Latino . Talvez possuísse alguma especialização que o distinguia. Sua inflamação impede a extensão dos músculos. Vocabulário Português e Latino – (1712-1727). Ao observarmos os valores atribuídos aos escravos doentes somente Bernardo aparenta ter uma enfermidade que caracteriza uma desvalorização mais significativa em seu valor. p.volume 4. só que no serviço da casa. fabricando. Assim. 12 347 . Gian Carlo de Melo. suprindo suas necessidades e dos outros habitantes da região. Com isso. Especialmente o 3º capítulo em que são abordados dados e informações do contingente populacional. mas que tiveram um papel importante no cotidiano. usadas para devoção e iluminação. por exemplificarem como os africanos trazidos para o Pernambuco colonial estiveram inseridos nas estratégias engendradas por famílias brancas que não faziam parte de uma elite administrativa e nem tinham ligação direta com o engenho de açúcar. presentes na realidade da população mestiça da época12. que não estavam no poder de mando. uma Só Carne: casamento. movimentaram o vai e vem nas ruas. o fato de possuir escravos doentes pode apontar para algum costume do Sr. Estavam cozinhando. que somadas a uma possível rede de produtos de plantados no “sertão” de Bezerros os inserem cada vez mais no abastecimento da população do entorno.inserido no cotidiano familiar. perdendo em valor total somente para os bens imóveis. foram estes núcleos familiares que proporcionaram o funcionamento da sociedade. Recife: Editora Universitária da UFPE. Um Só Corpo. colhendo. uma suposição baseada na presença constante dos Brainer no espaço religioso. 2010. não vendendo seus cativos enfermos. Mas é algo que não é possível afirmar e deixo para imaginação do leitor. Além disso. a partir do fornecimento de itens básicos. cotidiano e mestiçagem no Recife colonial (17901800). Brainer de ser caridoso. movimentando o sustento de todos os membros ‒ inclusive das filhas casadas ‒ e representavam boa parte dos bens familiares. Brainer e sua família são significativos em nossa compreensão sobre o passado. Somadas a tantas outras famílias iguais ou menores em posses. plantando. que nos leva a crer na devoção e na obediência dos preceitos católicos por parte da família. não tinham sua importância diminuída por marcar ativamente sua presença na movimentação diária do contexto urbano da freguesia de Santo Antônio do Recife com a venda de velas. Sobre a população em Recife na época em tela observar a obra SILVA. . uma tempestade ainda maior dispersou a frota. 1680-1705”. por duas vezes. Hispanic American Historical Review. A relativa proximidade do Prata com os portos brasileiros e a facilidade da obtenção de escravos em suas feitorias na África eram os principais fatores da preponderância comercial dos luso-brasileiros em Buenos Aires durante a União Ibérica. onde deveria erguer uma fortificação na ilha de São Gabriel. D. Ainda abatido pelo malogro da expedição. Durham. Na terceira tentativa. Macedo foi informado de que deveria seguir para o Rio de Janeiro a fim de entrar em contato com o novo governador. tempestades obrigaram as embarcações a regressarem ao porto. Alice Piffer.2 Macedo optou pela viagem marítima. nº 2. 2 RODRÍGUEZ. o Príncipe Regente D. Maio. intencionavam expandi-lo até o Rio da Prata. XXXVIII. p. 187-188. São Paulo: Edusp. 1 349 .1 Em 1677. Belo Horizonte: Itatiaia. Mauro. O Comércio Português no Rio da Prata (1580-1640). porém. Pedro instruiu secretamente o tenente-general Jorge Soares de Macedo a visitar Paranaguá para determinar o valor de supostas minas de prata e de lá passar ao Rio da Prata. 1958. vol. voltados à retomada do intenso comércio com Buenos Aires na época da União Ibérica. Os principais elementos responsáveis pelo desenvolvimento da rede contrabandista eram os portugueses. “Dom Pedro of Braganza and Colônia do Sacramento. sendo que quatro embarcações conseguiram regressar a Santos enquanto outras três foram dar à ilha de Santa Catarina. Prejudicado mas não extinto durante as guerras da Restauração.Negros e mestiços nas guerras da Colônia do Sacramento (1680-1777) Paulo Cesar Possamai Universidade Federal de Pelotas A fundação da Colônia do Sacramento na margem norte do Rio da Prata buscava atender interesses tanto da coroa como dos comerciantes do Rio de Janeiro. 1984. Manuel CANABRAVA. Luís Ferrand de. 387-388. 3 350 . 21 de setembro de 1680. I parte. In: MONTEIRO. o governador iniciou o recrutamento de todos os homens disponíveis que encontrou: militares. 5 Regimento de D. negociantes. Jonathas da Costa Rego. pp. 51. Segundo Lobo. 4 MONTEIRO. In: MONTEIRO. ALMEIDA. Manuel Lobo que pagasse um mês de soldo adiantado aos oficiais e soldados. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. e com aquela calma que no Brasil costumam fazer todas as coisas”. soldados que. dando logo início à preparação da expedição que viria a fundar a Colônia do Sacramento.. 6 Das quatro companhias que formavam a guarnição de Sacramento no tempo de D. História das Missões Orientais do Uruguai. vol. o fundador não demorou a se queixar da “incapacidade da gente que trouxe do Rio de Janeiro”. vol. 42-43. Reclamou ainda que. os melhores soldados eram os reinóis. 1954. enquanto os efetivos da cavalaria deveriam receber dois meses adiantados. Jonathas da Costa Rego. 1937. enquanto as outras foram formadas no Brasil.4 Se houve violência no recrutamento. Porto Alegre: Globo.ª ed. Pedro para iniciar a fortificação. que se alistaram em troca do perdão de seus crimes. Manuel Lobo. p. 1.7 PORTO. 2.Lobo.. Porto Alegre: Selbach. Op. Aurélio. 2. Cf. até então. p. que era muito pouco. 7. 33. com poucas exceções. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Cit. p. No afã de conseguir seu intento com brevidade. operários aprendizes.3 D. 1973. os brasileiros “iam muito pouco às faxinas e nelas trabalhavam o que queriam. o que não surpreende se nos lembrarmos da forma como foi feito o recrutamento.5 Contudo. 7 Carta de D. 2. “considerava maus só no militar os experimentei malíssimos em todas as suas ações”. “os brasileiros se licenciaram tanto que desobedeciam a seus oficiais”. Cit. Manuel Lobo. o Príncipe Regente tentou garantir a boa vontade dos recrutas. Op. uma fora recrutada na metrópole. aproveitando-se da enfermidade que padecia. pp. ordenando a D. A Colônia do Sacramento (1680-1777). Manuel Lobo tomou posse do governo do Rio de Janeiro em nove de maio de 1679. v. Jonathas da Costa Rego. vagabundos e mesmo prisioneiros. que entrementes havia sido escolhido por D. Manuel Lobo ao Príncipe Regente.6 já que. além dos nomes dos oficiais. Um piloto português que o mesmo conheceu em Buenos Aires disse-lhe ainda que “trazia seis moleques para vender”. o Chile. 134. 32. 11 de fevereiro de 1680. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires. por mais pobres que fossem. Manuel Lobo não pôde resistir ao ataque combinado das forças coloniais espanholas e dos exércitos indígenas das missões jesuíticas. 1965.Até agora não encontramos referências sobre a composição das tropas de D. em Buenos Aires. 1931. Manuel Lobo. p. segundo depoimento de um soldado espanhol. os negros faziam os serviços domésticos. 20 de abril de 1730. o porto de Buenos Aires também abastecia de escravos um vasto território que compreendia as províncias do interior da atual República Argentina. atividade que necessitava de pouca mão-de-obra. os espanhois negavam-se a trabalhar. Veneza: Gianbatista Pasquali. grupos para os quais a presença portuguesa Declaração do soldado Fernando Antonio de la Fuente. In: Campaña del Brasil. 1743.9 Em 1730. tomo 1. Acrescentava ainda que se não houvesse tantos escravos não se poderia viver nas cidades da região platina. Portanto. Il Cristianesimo Felice nelle Missioni de’ Padri della Compagnia di Gesù nel Paraguai. trabalhavam nos campos e em outras atividades. In: MURATORI. 8 351 .10 Para além da cidade. p. principalmente. o jesuíta italiano Gaetano Cattaneo escrevia que. a economia baseava-se primordialmente na pecuária. É provável que contasse com pardos recrutados no Rio de Janeiro. enquanto que raros eram os índios que se sujeitavam à encomienda ou ao trabalho remunerado. o Paraguai e.8 No Rio da Prata. capatazes. Sobre a presença de negros sabemos que a expedição levou consigo escravos destinados ao comércio. 9 VILLALOBOS. nessa região. 10 Carta do padre Gaetano Cattaneo a seu irmão. as regiões mineiras do Alto Peru. cocheiros e em vários serviços domésticos. 171. enquanto que o capelão do mesmo navio queria vender-lhe seis ou oito escravos além de outras mercadorias. Lodovico A. Comércio y Contrabando en el Río de la Plata y Chile. Buenos Aires: Archivo General de la Nación. A fortaleza criada por D. Sergio R. como artífices. os escravos foram preferencialmente utilizados em trabalhos especializados. o filho do capitão de um navio português ofereceu-lhe dezesseis ou dezessete negros. p. pois. pois. Francisco Naper de Lencastre relatava que o número de escravos diminuíra sensivelmente em Colônia devido à venda de muitos deles em Buenos Aires. Luis Enrique. 11 352 . uma negativa do governador espanhol. A situação melhorou consideravelmente sob as administrações de Francisco Naper de Lencastre (1689-1699) e de seu sucessor. 1931. sob ameaça de guerra. 6 de dezembro de 1691. A fraqueza da Espanha obrigada a ceder por meio da diplomacia o que seus vassalos na América haviam conquistado pelas armas voltaria a se repetir em 1715 e ainda em 1763. porém. forçou a Coroa espanhola a restituir-lhe a posse do território conquistado no Tratado Provisional de 1681. foram vendidos em Buenos Aires. Recebeu. Madrid: Compañia Ibero-Americana de Publicaciones. In: AZAROLA GIL. Foram bastante difíceis os primeiros anos que se seguiram ao restabelecimento dos portugueses em Colônia em 1682. tendo sido capturados pelos espanhois. La Epopeya de Manuel Lobo. levada a cabo oito meses após sua fundação. Refletia a contradição que podia haver entre os interesses dos colonos e os da metrópole.11 Sacramento era então um importante centro de venda de escravos para os domínios espanhois. 12 D. irritou profundamente o Príncipe Regente que.no Prata constituía uma grande ameaça. 201-204. o governador D. Numa carta datada de 1691. A destruição de Sacramento.12 Também era frequente a tomada de escravos dos portugueses. região hoje dividida pela República Oriental do Uruguai e pelo estado do Rio Grande do Sul. quando as restrições impostas pelo governo de Buenos Aires na tentativa de impedir o contrabando e a exploração do gado selvagem que abundava na campanha se somaram à corrupção generalizada que marcou o governo de Cristóvão Ornelas de Abreu (1683-1689). p. com o incremento da política de povoamento e uma intensa exploração das riquezas pecuárias da Banda Oriental. Sebastião da Veiga Cabral (1699-1705). Francisco Naper de Lencastre ao rei. Em 1694 Lencastre escreveu ao rei que pedira a restituição dos escravos que haviam fugido e. somente conseguindo que o comandante da “Banda Oriental” era o nome dado pelos espanhois ao território situado na margem leste do rio Uruguai. vendas cujo montante ultrapassava a quantia de vinte mil pesos. y desalojo de La Colonia. Simão Pereira de. 560. nombrada el Sacramento. Universidade de Coimbra. se alvorotaron amagando. desseando se concluyessen los ajustes. reclamou ao rei que. cit. se alegro mucho la gente. que para aquietarlos. 1928. de. que estranhou a atitude do governador de Sacramento. In: ALMEIDA. de. Luís F. pois numa relação escrita pelos castelhanos consta que Sebastião da Veiga Cabral mandou espalhar o boato de que o governador de Buenos Aires queria reduzir toda a população sitiada à condição de prisioneiros e escravizar os mulatos das tropas da Bahia. e ocuparam postos”. O preconceito de Veiga Cabral contra os soldados pardos não deixou de ser severamente reprovado pela Coroa. por despidos e descalços. en que se hallavan los Portugueses desde el año 1680 em el Rio de La Plata à vista de las Islas de S. p. Montevidéu. e neste Reino. Vieram duas companhias de infantaria da Bahia uma tropa de auxiliares do Rio de Janeiro. A Diplomacia Portuguesa. 353 . p. Pedro II. Op. 14 Carta de D. “só doze eram capazes. como destes se componha a maior parte do Brasil. les dixo su Governador Portugues. e outros mulatos”.14 Veiga Cabral teve de se resignar com essa resposta e ainda mais quando solicitou reforços. y que à los Mulatos de la Bahia.. In: Revista del Instituto Histórico y Geografico del Uruguay. em que podia haver muito maior escrúpulo. 1957. que se passarian à nuestro Campo. respondendolhe que “ainda que fossem mulatos.16 13 Carta de D. 22 de outubro de 1699. In: ALMEIDA. e os mais inúteis. Luís F. Sebastião da Veiga Cabral.guarda de San Juan. o sucessor de Lencastre. que no se convenian los Governadores. serviram muitos. situada a cinco léguas de Sacramento.. pois era eminente um ataque dos espanhois tendo em vista que a Guerra da Sucessão Espanhola colocou Portugal e Espanha em campos opostos na Europa. Pedro II ao governador Sebastião da Veiga Cabral. 1957. los queria llevar à todos prisioneros. toma. y lo tenian à milagro. e não haverem muitos outros de diferente qualidade. 31. los harian esclavos. Gabriel”.13 Com relação aos pardos. que el Governador de Buenos-Ayres. dos soldados que pedira ao Rio de Janeiro. p. 1993. prometesse não dar refúgio aos escravos foragidos de Colônia.15 Dentre os soldados baianos havia homens pardos. “Relacion del sitio. que al oìr esto dixeron. Porto Alegre: Arcano 17. em 1699. A Diplomacia Portuguesa e os Limites Meridionais do Brasil. 25/01/1694. Francisco Naper de Lencastre ao rei D. y viendo. 15 SÁ. 536. que querian pelear hasta morir”.. História Topográfica e Bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata [1737]. 16 “Y quando se hizo de nuestra parte llamada. por não saberem o viver do Brasil”. C. para o governador de Buenos Aires.18 Escreveu também à Coroa sobre a grande quantidade de desertores que resultava da má qualidade da tropa. cit. pp. 19 Carta de Gomes Barbosa ao rei. 17 Carta do governador Baltasar de García Ros ao rei de Espanha. a Colônia do Sacramento foi evacuada em 1705. uns por ladrões e outros por vários crimes”.. o mesmo não passava de roubo. pois. n. se antes tinham o usufruto da campanha. In: Campaña del Brasil. nos quais Felipe V teve de fazer várias concessões a fim de obter o reconhecimento das nações europeias à ascensão dos Bourbons ao trono espanhol. O tratado de paz com Portugal. 15 de dezembro de 1718. 205. cit. o território de Colônia era somente o coberto pela artilharia da praça. A guerra da Sucessão Espanhola terminou com a assinatura dos tratados de Utrecht. enviando sessenta casais da província de Trás-ostomo VI. Op. Mas ainda achou necessário acrescentar que os recrutas não deveriam desembarcar no Rio de Janeiro “por não tomarem a língua da terra. 1 p.19 A Coroa portuguesa organizou então uma verdadeira política de povoamento na região. que só desta sorte me parece não desertarão. 18 Carta de Manuel Gomes Barbosa ao marquês de Angeja. segundo ele. 12 de abril de 1718. In: MONTEIRO. Op. p. composta por soldados novos e mulatos. Em 1718. [grifo nosso] sendo em sua maioria “degredados. vol. AHU_ACL_CU_012. 67.. Novamente o problema da composição das tropas aparece na documentação. o que seria evitado com o povoamento da margem norte do Rio da Prata. os portugueses se reinstalaram em Colônia. 453-457. 40. Jonathas da Costa Rego. Por isso achava melhor que se fizesse o recrutamento em Portugal e nas ilhas. Entretanto.17 Apesar das restrições impostas pelo governador espanhol. que então era entendido pelos portugueses como toda a margem norte do Rio da Prata. 7 de dezembro de 1715. o governador Manuel Gomes Barbosa (1715-1722) queixava-se ao vicerei do Brasil que muitos dos seus soldados eram aleijados e doentes.Tendo em vista a superioridade do inimigo. 354 . assinado em 1715. assegurou aos portugueses a devolução do território da Colônia do Sacramento. D. 2. 1. 2. 344v346. a política de implementar a colonização através dos casais estava intimamente ligada à instituição militar. 5 de abril de 1730. ff. 2006. AHU_ACL_CU_012.Montes em 1718 para dar início à agricultura e desenvolver a criação de gado. XXXIX.24 O aumento do número de escravos no decorrer dos anos relacionavase com o constante desenvolvimento agrícola. 21 Em 1722.25 Além de servir como mercadoria no comércio com os espanhois. 204 escravos e 90 escravas. As constantes deserções dos soldados que serviam em Sacramento levaram o Conselho Ultramarino a defender o envio de casais.21. argumentando que “à experiência de tantos desertores será melhor que vão casais porque não é tão fácil largarem suas mulheres e filhos e irem viver em reino estranho”. 13 de maio de 1726. AHU_ACL_CU_012. 369-370. 25 POSSAMAI. D. C. S-RS07. entre as quais a Consulta do Conselho Ultramarino de 21 de janeiro de 1726. Lisboa: Livros do Brasil. 45 índios. 172 mulheres. 16 índias. C. D. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. registrou-se a existência de 38723 escravos. 22 “Mapa geral. vol. Antônio Pedro Vasconcelos (1722-1749) relatou que a população foi calculada em 630 homens. Outra finalidade do povoamento era fixar os soldados na terra que deveriam defender. 1921. da mesma forma que o uso do sistema de degredo. Arq.20 De fato. 165. a Coroa já enviara trezentas armas para a formação de “algumas companhias de ordenança dos mesmos casais que ajudem a defesa da dita praça”.. 99 meninas. 4 de março de 1718. 220. ao tomar posse do governo de Colônia do Sacramento. 24 Carta de Vasconcelos ao rei. pecuário e comercial da Colônia do Sacramento. Cedo os civis foram enquadrados no sistema militar.22 Em 1726. 21 Registro de uma carta régia dirigida ao governador do Rio de Janeiro. em 1730.1627. os escravos desempenharam um importante papel como mão-de-obra em diversas atividades na Colônia do Sacramento. subiu para 687.1. 2. p. pois antes mesmo que chegassem ao seu local de destino.05. IHGB. 20 355 . 123 meninos. Paulo.” 24 de outubro de 1722. 23 Carta de Vasconcelos ao rei. Mapoteca do Arquivo Histórico do Exército. número que. marcando a fase mais próspera e dinâmica da história da presença portuguesa no Rio da Prata.. A vida quotidiana na Colónia do Sacramento. 1. Como alguns negros escaparam e. um importante negociante de gado e couro. a fim de caçar o gado selvagem. mais uma vez. III trimestre de 1945. p. SYLVA. Porto Alegre. p. 28 “Extrato das perdas e damnos. muitos cativos foram confiscados junto com couros e as carretas que os transportavam. 52. cit. 57. Silvestre Ferreira da. Simão Pereira de Sá nos informa sobre a devastação que. vários gêneros de negócio”.27 Somase ainda o apresamento de um navio vindo da Bahia em setembro de 1735 com “escravos. Facsímile da edição de 1748. p. chegando à Colônia.. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do RS. Relação do Sítio da Nova Colônia do Sacramento. conseguindo reaver seus bens após pôr em fuga os inimigos. este partiu no encalço dos espanhois com oito homens.26 Silvestre Ferreira da Silva citava entre os prejuízos do sítio espanhol a perda de “quarenta e seis pretos.agricultura parece ter sido a principal delas. a cavalaria espanhola causou num grupo de mercadores que supervisionavam o trabalho dos seus escravos numa lavoura situada a três léguas da praça. Porto Alegre: Arcano 17. as fontes poucas vezes fazem referência direta ao trabalho dos escravos. p.29 Em 1726 o governador Vasconcelos enviou um sargento com onze soldados para escoltar os quarenta carros que foram courear gado a cinquenta léguas de Sacramento. já que somente tomamos conhecimento da sua presença através dos relatos das investidas dos espanhois.”. Op. deram notícia do ocorrido ao seu senhor. um alferes e dez soldados espanhois capturaram sete carretas e quatorze escravos de propriedade de Cristóvão Pereira de Abreu. Nos frequentes ataques espanhois às expedições portuguesas que se afastavam de Colônia.28 Junto a seus senhores portugueses. Simão Pereira de.. durante o governo de Gomes Barbosa. 29 SÁ. Porém. 1993. escravos grandes lavradores”.. Segundo Pereira de Sá. os escravos sofriam os riscos decorrentes das incursões dos espanhois e dos índios das missões jesuíticas. nos primeiros tempos da administração de Antônio Pedro de Vasconcelos. 106. Simão Pereira de. Op. especialmente por ocasião das idas à campanha para a extração de couros.. 26 27 356 . “receando-se que os espanhois SÁ. cit. 55-56. sendo que o governador de Buenos Aires somente restituiu os sete negros que as guiavam.33 A atitude das autoridades espanholas variava conforme o momento político. Jonathas da Costa Rego.30 No ano seguinte. caso fosse possível aproveitar a confusão do momento. 357 . passando da cooperação. 362. D. 06/03/1746. 1. Arq. cuja origem podia encontrar-se na política da metrópole ou mesmo na salvaguarda dos interesses dos habitantes de Buenos Aires.26. 32 Consulta do Conselho Ultramarino de 05 de setembro de 1733. se os escravos viviam numa área onde o medo de um ataque inimigo constituía-se numa preocupação cotidiana.31 Quando.. cavalos e bois para o transporte. IHGB. Mas.1. IHGB.1. com o confisco de setenta carros carregados de couros. para a negação de qualquer pedido. 195195v. vol. Nos períodos em que a permanente tensão afrouxava e havia uma maior colaboração entre as autoridades luso-espanholas. Op. Arq. a mesma situação voltou a repetirse em 1733.32 Em 1749 o governador de Buenos Aires mandou entregar dois escravos que se refugiaram entre os espanhois depois de matar dois marinheiros em Colônia.26. 41. porém. f. 367. o que também é sinal de que esse era um negócio altamente rentável somente para os que dispusessem de cabedal suficiente para investir em escravos para a mão-de-obra necessária e em carretas. ff. quando as duas Coroas estavam em harmonia.com suas corredorias [sic] os represassem. 1. AHU_ACL_CU_012. 1. por irem os ditos carros com bastante número de escravos”. cit. quando as relações luso-espanholas eram marcadas pela tensão. um conflito hispano-português podia ser a desejada ocasião de fuga. p. o governador não procedeu à devolução dos escravos. Cx 4. Talvez por causa de tantos perigos os portugueses faziam grande uso de mão-de-obra escrava na extração dos couros. como já tinham feito a vários com grande perda dos ditos moradores. 31 Consulta do Conselho Ultramarino de 07 de fevereiro de 1728. 33 MONTEIRO. os espanhois tomaram aos portugueses treze carretas carregadas de couros. ficava mais difícil para os negros a resistência contra a escravidão através da 30 Requerimento do alferes Brás dos Santos Alves ao rei. quando Bernardo e Antônio de Freitas foram assassinados por seus escravos.. Apud: SYLVA. 36 Carta de Vasconcelos ao rei. Arq. como aconteceu em 1725. Silvestre Ferreira da. Cx 3. AHU_ACL_CU_012. que se estendeu até 1737. Parece mesmo que os escravos condenados ao degredo em Colônia passavam para a propriedade do Estado.38 O governador Consulta do Conselho Ultramarino de 25 de janeiro de 1726. f. Cx 3. em consequência de uma crise diplomática entre Portugal e Espanha.fuga. que tambien quizieren retirarse. adonde estuvieren las Tropas Españolas. p. quando Antônio Pedro de Vasconcelos escreveu ao rei dizendo-lhe que conseguira que o governador de Buenos Aires restituísse os escravos que haviam fugido de Colônia e que foram capturados pelos espanhois. IHGB. RIVEROS TULA. 164. AHU_ACL_CU_012. Montevideo. Em 1735 os espanhois impuseram um novo cerco a Sacramento.. Aníbal M. “Historia de la Colonia del Sacramento. o trabalho escravo foi muito utilizado nos serviços domésticos e mesmo em trabalhos especializados. 346v. como aconteceu a um alfaiate negro chamado Sebastião. 37 Carta de Vasconcelos ao rei. a resistência atingiu um desesperado grau de violência. 73.21. 38 “. tomo XXII. 303. 1959. 27 de fevereiro de 1735.34 Por vezes. 277. como aconteceu em fevereiro de 1730. Apartado de la Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay. Segundo o alferes Silvestre Ferreira da Silva. o qual foi alugado pelo governador ao mestre João Ribeiro e o valor do aluguel contabilizado entre as receitas da Fazenda Real na Colônia do Sacramento37.y los Negros de la Colonia. D. Op. oferecendo-lhes a liberdade caso desertassem e passassem para os domínios do rei de Espanha. D. 34 35 358 . 18 de fevereiro de 1734. Em outubro de 1735. 1.35 Além da presença marcante na agricultura e na extração e transporte de couros.. o governador Vasconcelos escrevia ao rei informando-o da chegada dos dois mestres curtidores negros que mandara vir de Pernambuco para trabalharem no curtume que pretendia instalar nas imediações do povoado36. Infelizmente o autor não dá maiores detalhes do ocorrido e não faz referência alguma à fonte que pesquisou. os espanhois procuraram tirar vantagem da presença dos escravos entre os defensores de Colônia. p. cit.1. gozaràn la libertad de su esclavitud”. 1680-1830”. Cx 4. Porto Alegre. Segundo o governador. 10/11/1746. p. 42 Carta do governador Vasconcelos ao rei. 23. 3. D. Foi o caso dos cativos do escrivão da Fazenda Real em Colônia. Op. 104. p. cit.39 Outras fontes nos informam que os espanhois queriam que os escravos e desertores portugueses ingressassem no exército espanhol. doc. os escravos foram armados e chamados para auxiliar seus senhores a defender a povoação.Antônio Pedro Vasconcelos também buscou favorecer a deserção entre as fileiras inimigas. 465. Silvestre Ferreira da. “Diario da Prassa e sitio da Nova Colonia do Sacram. Revista Histórica. Mais tarde. 217. 41 “Certificados referentes a los servicios y méritos funcionales de Caetano de Couto Vellozo. capturados pelos espanhois em sua estância. e no reparo da mesma foi o seu trabalho. fazendo rondas e sentinelas por toda aquela parte”. p. 417. dizendo que “não disputa aos escravos a fuga do domínio de seus senhores. onde continuou o serviço com “os seus dez escravos que a todas as funções o acompanhavam. siendo Gobernador de aquella Plaza Antonio Pedro de Vasconcellos”. n. o mesmo foi transferido para o porto.42 O mesmo teria perdido sete escravos. “Notícia práctica del sitio de la Nueva Colonia del Sacramento y demás operaciones de los enemigos desde el mes de septiembre hasta el 18 de diciembre de 1735. SYLVA.40 Durante o sítio de 1735-1737. nº 22. 75. por ser contra a moral cristã”.41 Outra pessoa que ajudou na defesa da praça foi João da Costa Quintão. tomo VII..” Archivo Regional de Colonia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Caetano do Couto Veloso que. IV trimestre de 1946.. apresentaram-se ao governador para ajudar a reconstruir a muralha. Os trabalhos estenderam-se por seis meses. Reg. f. com seu filho e dez escravos de sua propriedade. e dos seus escravos incansável”. 38 T5.. situada a três léguas da Colônia do Sacramento. que arrematou o assento para o fabrico de pão em 1732 e que se tornaria almoxarife em 1742. porém não prometia nada aos escravos. 1916. 611. Quintão auxiliou na defesa “fazendo uma perpétua assistência na muralha na parte em que [os espanhois] abatiam em brecha.to”. Montevidéu. 39 40 359 . AHU_ACL_CU_012. durante os quais Couto Veloso ainda recebeu a incumbência de defender o baluarte da bandeira com seus escravos armados de espingardas e chuços. Em 15 de novembro.45 Nessa companhia encontravam-se os cativos do escrivão de Colônia. guarnecia uma numerosa companhia de escravos a cargo de Silvestre Ferreira da Silva”. 44 SYLVA. p. referindose somente a “cem homens avulsos”. Na bateria de Santa Rita. 217. 38 T5. Antônio Lopez.46 Algum tempo depois. Curiosamente. Simão Pereira de. Silvestre Ferreira da. Ferreira da Silva omitiu a presença dos escravos na defesa da zona portuária. D. 43 360 . ajudou o pai. todo Requerimento de Manoel Almeida Cardoso ao rei. trabalhando de dia e de noite com seus irmãos. numa perigosa expedição. doc. quatro negros cuidavam da artilharia e na bateria de São Pedro de Alcântara estão relacionados mais sete negros.Manuel de Almeida Cardoso. pai e escravos na fortificação da mesma praça à custa da fazenda do dito seu pai”.43 Como vemos pelos exemplos acima. pois Sá acrescentava que nela serviam de oficiais Caetano do Couto Veloso. a qual foi encarregado de defender.. o governador mandou que Couto Veloso juntasse seus homens às tropas do capitão Pedro Lobo. Op. Os escravos continuavam a ter os piores serviços mesmo em tempo de guerra.44 enquanto Simão Pereira de Sá escrevia que “a mais parte da mencionada Marinha. p.. 51-66. Reg. 79. 02/03/1747. cit. Cx 5. “na ocasião do sítio dos espanhois. sem identificar se eram escravos ou não. a documentação indica que muitos dos escravos trabalharam na defesa da Colônia do Sacramento ao lado de seus donos. saísse do recinto fortificado para demolir o que restava das construções extramuros a fim de fornecer madeiras para a confecção de plataformas para a artilharia da praça. cit. 46 “Certificados referentes a los servicios y méritos funcionales de Caetano de Couto Vellozo.”. f. antes de sentar praça como soldado. 27. 422. Nos baluartes de Santo Antônio e no de São João estavam a postos “alguns pretos de préstimo para o manejo da lança e da artilharia do dito baluarte”. Silvestre Ferreira da Silva relacionou os negros que ajudaram a guarnecer a praça.. “compostas de sessenta homens pretos” para que. Archivo Regional de Colonia.. AHU_ACL_CU_012. 45 SÁ. 3. Pedro Lobo Botelho e Clemente da Silva Pais. Op. 1981. 3. Expostos à chuva e ao perigo de um ataque inimigo. C. 49 BOXER. Ásia e América. sobretudo. 50 BOXER. Lisboa: Edições 70. UFMG. cit. 38 T5. O Império Colonial Português. p.. C. 74. então os soldados mais famosos da Europa.50 O período final da administração de Antônio Pedro de Vasconcelos (1737-1749) e os governos de Luís Garcia de Bivar (17491760). como na repreensão feita ao governador Sebastião da Veiga Cabral. 217.o esquadrão de negros e uma parte da infantaria passaram quatro noites tapando a brecha que o fogo inimigo. os escravos cumpriram sua missão na defesa da praça. 288. Op. R.49 Entretanto. Pedro José Soares de Figueiredo Sarmento (1763-1775) e Francisco José da Rocha (17751777) foram caracterizados. 361 .” Archivo Regional de Colonia. No rastro dos dragões: políticas da ordem e o universo militar nas Minas setecentistas. 297. escrevendo que seu potencial militar era superior aos mercenários suíços. Um dos primeiros relatos é de João de Barros que. somado às chuvas constantes. no qual.48 Segundo Boxer. pois a preferência no soldo e na promoção era sempre dada ao militar branco. a discriminação não deixava de ser institucional. que havia recusado alguns recrutas por serem mulatos. continuava a existir um forte preconceito racial que impedia a integração entre brancos e negros no exército. 29.. 48 COTTA. segundo esse mesmo autor. apesar de servirem lado a lado.47 A mobilização dos escravos para atuar na defesa das comunidades portuguesas em momentos de perigo foi bastante comum nos domínios ultramarinos. “os portugueses confiavam muito mais nas qualidades guerreiras dos seus escravos africanos do que qualquer das outras nações colonizadoras europeias”. R. persistia a política discriminatória. f. Vicente da Silva da Fonseca (1760-1762). na África.. p. 2004. Reg. pela tentativa de preservar a lucratividade do comércio ilícito. Apesar da vontade da Coroa em favorecer a integração. p. doc. havia aberto na muralha. tese de doutorado em história. no século XVI. Francis Albert. exaltou a coragem e a lealdade dos escravos negros da Guiné. uma vez que desde 1737 a manutenção 47 “Certificados referentes a los servicios y méritos funcionales de Caetano de Couto Vellozo. 53 Em 1746.51 Apesar dos diretores do contrato pedirem ao governador de Buenos Aires que publicasse um bando ordenando a captura dos escravos contrabandeados pelos portugueses52 o comércio ilícito dificilmente era combatido com eficácia. pois. 1984. Mesmo porque muitas vezes as autoridades encarregadas de impedi-lo eram coniventes com ele. Uma das poucas referências que temos sobre o número de escravos contrabandeados data do tempo em que o brigadeiro José da Silva Pais ocupou o cargo de governador interino da Colônia do Sacramento (de primeiro de junho de 1744 a 31 de maio de 1745). estruturador do Brasil Meridional. Segundo Guilhermino César. 51 362 . nem mesmo a obtenção. O Brigadeiro José da Silva Paes. Walter F. quando o mesmo introduziu uma taxa de sete mil e quinhentos réis para cada escravo vendido aos espanhois. um dos mais lucrativos era o tráfico de escravos. a taxa já havia rendido à Fazenda Real a quantia de três contos e duzentos e sessenta e dois mil e quinhentos réis. O tráfico foi bastante intenso. Florianópolis: UFSC. de meados de 1744 ao fim do ano seguinte. do contrato de asiento. La Trata de Negros en el Río de la Plata. principalmente da atitude do governador de Buenos Aires. Buenos Aires: Libros de Hispanoamérica. que lhes delegou o monopólio do comércio de negros na América espanhola depois do Tratado de Utrecht. 1978. o governador Antônio Pedro Vasconcelos pediu ao rei se deveria continuar a cobrar a taxa sobre o comércio de escravos. pelos ingleses. p. CESAR. 53 PIAZZA. p. p. Caxias do Sul: UCS. valores que revelam a venda de 435 escravos. A participação dos moradores de Colônia na exploração da pecuária dependeu a partir de então da conivência das autoridades do campo de bloqueio e. Guilhermino. 1988. 106. 52 STUDER. Elena F. Porto Alegre: EST. S. Dentre o comércio ilícito com os espanhois. 226. conteve o tráfico de escravos efetuado através de Sacramento.do campo de bloqueio espanhol dificultou muito o desenvolvimento da agricultura e da pecuária. 19-21. O Contrabando no Sul do Brasil. em dezembro de 1745. vol. Actas do Congresso Internacional “Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades”. 409. sem embargo de me parecer que é só do direito real semelhantes impostos. Fabrício.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/corcino_medeiros_santos. alterar esta novidade”. 4. Acessado em 18 de maio de 2010: http://cvc. também não me pareceu. AHU_ACL_CU_012.dizendo que “a mim. Lisboa. com prejuízo dos vendedores. Fabrício Prado viu na atuação de Antônio Pedro Vasconcelos uma ligação com as atividades de Manuel Pereira do Lago. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América portuguesa. de uma embarcação sua à África para trazer escravos.56 Um anônimo espanhol escreveu em 1766 que “a média de negros introduzidos a partir da Colônia do Sacramento nunca era inferior a 600”. cit. alguns registros podem nos dar uma ideia do tráfico. 56 MONTEIRO. “Negros e tabaco nas relações hispano-lusitanas do Rio da Prata”. sabendo que teria que desembolsar dez pesos por cada escravo adquirido. 57 SANTOS. instituto-camoes. obteve segunda nomeação para o cargo de almoxarife e tesoureiro da alfândega.54 Alegava que. PRADO. Prado. 18 de junho de 1746. Salvou-se a tripulação abandonando no navio 27 negros. mas que em 1730 comerciava couros para o Reino e no ano seguinte obteve o posto de almoxarife e tesoureiro da alfândega da Colônia do Sacramento com o respaldo de Vasconcelos. Entretanto.pdf 54 55 363 . p. Op. 2 a 5 de novembro de 2005. Porto Alegre: F. C. em 1747. Em 1755 uma corveta portuguesa encalhou num banco de areia no Rio da Prata.57 Carta de Vasconcelos ao rei. o comprador espanhol conseguia rebaixar o preço. 2002. 1. temos poucas referências sobre a entrada de negros na Colônia do Sacramento. quando tornei a prosseguir no governo.55 Como o comércio com os espanhois era ilegal. O Conselho Ultramarino respondeu que tal tributo não poderia ser cobrado sem a expressa ordem do monarca e que. No mesmo ano Manuel Pereira do Lago obteve permissão para o envio. p. 179-181. não deveria continuar a ser exigido. Corcino Medeiro dos. que chegou a Sacramento em princípios da década de 1720 com o ofício de cirurgião. Em 1731. tornou-se por indicação do governador capitão de ordenanças e. pelo Rio de janeiro. 372. portanto. P. D. Jonathas da Costa Rego. vol. 2. Como dos outros ataques à Colônia. J. 59 Sob o pretexto de buscar lenha. p. o contrabando era passado. com os 59 moradores do bairro sul. No bairro sul deveria haver uma menor concentração de cativos. cuidadoso processo que. as exceções foram o alferes Manuel Pinto Santiago. 1947. ambos com quatro escravos.. D. se serviam dos inúmeros pequenos canais formados pelo delta do rio Paraná.60 Dois anos depois. p. que deveriam enviar 82 cativos.58 Em 1760. muitas vezes. ao delta do Paraná onde. libertos e escravos. não deixou de contar com a ajuda das autoridades encarregadas de impedi-lo. 60 MONTEIRO. 377. muitos contrabandistas. atacou a Colônia do Sacramento. Calpe. Jonathas da Costa Rego. em dias alternados. Pedro Gomes de Figueiredo e o sargento-mor Domingues Fernandes de Oliveira. Francisco. Rego. Op. 136139. aos poucos. Os 63 moradores do bairro norte ficaram encarregados de mandar 90 escravos. Cf. No bairro norte a maior parte da população deveria mandar um ou dois escravos. MILLAU. de fazenda em fazenda até chegar a Buenos Aires. em menos de uma noite. Com vento sudeste a este era fácil o retorno de Colônia. Durante a noite.. 58 364 . vol. pois nenhum morador foi obrigado a mandar mais de dois escravos ao campo. Pedro de Cevallos. ao tomar posse do governo da Colônia do Sacramento. com três escravos. voltavam a se esconder nos canais do rio e dali faziam o desembarque das mercadorias contrabandeadas na margem direita do Rio da Prata. Prevendo um novo conflito com os espanhois organizou companhias de ordenança e de pardos e negros. da C..Um documento importante para sabermos a quantidade de escravos na Colônia do Sacramento em 1749 é a relação na qual consta o número de escravos que os moradores dos bairros norte e sul deveriam enviar em busca de lenha no campo. cit. o brigadeiro Vicente da Silva da Fonseca sentiu que as restrições ao movimento dos portugueses pelos espanhois eram cada vez maiores. os espanhois anunciaram que concederiam a liberdade aos escravos dos portugueses que buscassem “Relação dos moradores do bairro. o governador de Buenos Aires. com o confisco de embarcações que iam às ilhas do delta do rio Paraná em busca de lenha59 e mesmo pequenas canoas de pescadores. Buenos Aires: Espasa. 115-117. Descripción de la Provincia del Río de la Plata. em consequência do alinhamento de Portugal aos inimigos da Espanha durante a Guerra dos Sete Anos. cit. 1. Op. p.” In: MONTEIRO. tanto portugueses como espanhois. por precaução. e Diario do seu ultimo attaque pelos Castelhanos. dessa vez. Anno de 1762”. p. vago por morte de António Alves Pacheco. 62 MONTEIRO. Simão Pereira. 188. 2009.64 Enquanto as tropas de ordenança não eram obrigadas a se deslocar de suas bases.. 175. Através da carta régia de 22 de março de 1766. 63 “Breve noticia da Colonia do S. mestiços. Rio de Janeiro: E-papers. In: SÁ.mo Sacram... ingênuos e libertos”. o governador de Colônia também ofereceu a liberdade aos escravos que se alistaram. os portugueses voltaram no ano seguinte. os auxiliares podiam ser enviados ao front durante as guerras. Alguns anos depois Lisboa reorganizaria o sistema defensivo de suas colônias. a Coroa portuguesa ordenava que se alistassem todos os homens válidos para o serviço militar: “nobres. O governador informava que nomeara João de Vitória capitão “sem vencimento algum da Fazenda Real”. p. José I a confirmação da carta patente que lhe conferia o posto de capitão de uma das companhias dos homens pretos e forros da Colônia do Sacramento. segundo Rego Monteiro.to.to. 143. Simão Pereira. Op. 1. 382. vol.62 Não sabemos se a promessa foi cumprida. Forças militares no Brasil colonial. Op. quando deveriam receber soldo e munição como os soldados das tropas regulares. In: SÁ. p. pretos. enviada ao vice-rei e aos governadores e capitães-generais do Brasil. 64 MELLO. brancos. Cevallos concedeu ao governador. 61 365 . Jonathas da Costa Rego.mo Sacram. na Colônia do Sacramento também se criaram companhias de libertos. o negro forro João de Vitória solicitou ao rei D. Anno de 1762”. Em 1770. cit. cit. pois nos termos de capitulação da praça. Christiane Figueiredo Pagano de. O objetivo era aumentar os efetivos das tropas de ordenanças e auxiliares para defender a colônia dos ataques dos inimigos. antes e depois da guerra na qual pospondo a vida ao real serviço deu provas “Breve noticia da Colonia do S.63 Obrigados a abandonar a Colônia do Sacramento pela força das armas. p. oficiais e soldados licença para que pudessem embarcar livremente com seus bens móveis e escravos ou vendê-los antes da evacuação. cit.refúgio entre eles. pois “tendo-se empregado diuturnamente nas faxinas da fortificação. pois o tratado de paz com a Espanha previa a devolução da praça a Portugal. Op. e Diario do seu ultimo attaque pelos Castelhanos. Particularmente exposta ao perigo de uma invasão.61 Entretanto. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Jonathas da Costa Rego. muitos deles roubados pelos espanhois encarregados do transporte. AHU_ACL_CU_012. Os demais foram obrigados a passar a Buenos Aires com seus bens. Porto Alegre. casado em Colônia em primeiro de setembro de 1773 com Maria do Carmo. segundo o cronista. assim como a tropa.67 Segundo a relação feita pelo padre Pedro Pereira Fernandes de Mesquita. D. Dentre os registros dos libertos nos livros da paróquia da Colônia do Sacramento. cit. 7. Diante da grande superioridade das tropas que D. C. Rheingantz. ali casado em 17 de outubro de 1769 com Maria do Rosário.. 1. Pedro de Cevallos trouxera da Espanha.de seu conhecido valor”. Na capital do recém criado vice-reino Requerimento de João de Vitória ao rei. 67 MONTEIRO. porém o documento acima analisado é claro em apontar a existência de mais de uma companhia de negros forros na dita praça. nascido em Colônia. parda forra. parda forra. coronel Francisco José da Rocha. que ocupou na sua nova investida contra a América portuguesa. pesquisados por Carlos G. filha natural da preta forra Simôa Maria.66 Em maio de 1777 os espanhois organizaram um novo ataque à Colônia do Sacramento. casado em Colônia em 06 de fevereiro de 1769 com Caetana Maria do Espírito Santo. p. n. Op. assinou a capitulação da praça em três de junho.65 Ainda não encontramos outra fonte que nos esclareça sobre a atuação das companhias de negros na Colônia do Sacramento. bispado do Rio de Janeiro. 604. no dia 25 os oficiais com suas famílias e alguns particulares que pagaram para obter a licença de partir embarcaram em quatro embarcações. José Joaquim da Silva. 1949. com suas famílias e escravos. Florêncio Álvares Brandão. encontramos os dados de somente três soldados forros. pardo forro. vol. “Os últimos povoadores da Colônia do Sacramento. 427-430. o governador. nascido em Lisboa. p. Antônio José Coelho. 65 66 366 . 113-116. Os oficiais. João de Icaraí. Carlos G. Os termos foram os mesmos que Cevallos ofereceu para a capitulação da ilha de Santa Catarina. nascido em S. Notas genealógicas”. 17/11/1770. 446. RHEINGANZ. seriam transportados por navios espanhois até o Rio de Janeiro. A mãe de Jacinto intercedeu pelo filho. Com a assinatura do tratado de paz entre as coroas de Espanha e Portugal. p. Em Buenos Aires foram presos cincos escravos. pedindo que o vice-rei o soltasse. 68 367 . pois avaliava o preço que o cativo valia em Sacramento e em Buenos Aires. que lhe respondeu dizendo “que os “Da relação da conquista de Colônia. os moradores de Colônia tiveram que apresentar seus escravos perante as autoridades espanholas. além dos custos do processo. mas a atitude de Cevallos mudou quando voltaram os capitães dos navios que haviam levado ao Rio de Janeiro os oficiais portugueses capturados em Santa Catarina. em outubro de 1777. primeiro trimestre de 1869. 452. Rio de Janeiro. tomo 32. Havia então uma lei que taxava em 20 pesos cada escravo vendido.68 escreveu Mesquita.do Rio da Prata. De fato. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 1. Mandou então soltar os escravos e prender Jacinto de Almeida que tinha ido buscar dois dos seus. Op. “E assim se viam obrigados a se desfazerem dos seus escravos pelo primeiro dinheiro que lhes ofereciam.. que foi processado.69 segundo as palavras de Rego Monteiro. aos quais não quis abandonar na desventura”. pelo Dr. sendo que a diferença do preço deveria ser paga pelo proprietário. P. Entretanto é provável que buscasse fugir de uma condenação por ter entregue a praça sem opor muita resistência ao inimigo. mas seus subordinados recusaram-se a fazê-lo. 69 MONTEIRO. Pedro Pereira Fernandes de Mesquita. Pedro de Cevallos a restituição dos seus escravos. Jonathas da Costa Rego. com notícia de que os prisioneiros espanhois eram maltratados pelos portugueses. cit. O governador da Colônia do Sacramento seguiu para Buenos Aires “com seus soldados. p. escripta em Buenos-Ayres em 1788”. O vice-rei mandou que se procedesse à devolução dos mais de trezentos negros que se encontravam no Real de San Carlos e em Montevidéu. pois não tinha culpa em executar o que fora ordenado pelo próprio Cevallos. para pagarem estes iníquos direitos”. ainda residentes em Buenos Aires. os oficiais que chegaram ao Rio de Janeiro puseram a culpa da rendição no governador. vol. mas os espanhois criaram um tribunal que praticamente obrigava os portugueses a desfazerem-se de seus escravos. pediram a D. 356. alguns dos antigos habitantes da Colônia do Sacramento. .. Ainda mais fragmentário é o nosso conhecimento sobre o lucrativo tráfico de escravos com Buenos Aires já que o contrabando raramente é documentado. que ele não tinha dado aquele nem outro despacho semelhante”.. apesar da importância da sua contribuição no desenvolvimento da praça. Juan José de Vértiz y Salcedo. servindo como mão de obra na agricultura e pecuária e auxiliando na sua defesa. Rocha foi “preso. que os escravos eram livres. condução para ele e os habitantes da Colônia do Sacramento que ainda se achavam na cidade para o Brasil. p. Entretanto. Maria I”. com a análise dos poucos dados de que dispomos.71 É somente através de fragmentos que conseguimos saber mais sobre a presença de pardos e negros nas guerras da Colônia do Sacramento. julgado e condenado à morte. MONTEIRO. Op. cit. 70 71 “Da relação da conquista de Colônia. onde morreu. que enviou à rainha D. Ao desembarcar no Rio de Janeiro. estava preso em Belém. sendo-lhe comutada a sentença em degredo perpétuo para Angola. acreditamos que conseguimos contribuir. pois. vol. depois de 1781. de onde datou a sua defesa. os documentos que consultamos raramente foram escritos ou se referiam exclusivamente a eles. D. Pedro de Cevallos no governo do vice-reino do Rio da Prata.70 O coronel Francisco José da Rocha Rocha se manteve em Buenos Aires até agosto de 1778. pois nesse ano.. para o estudo da presença negra no domínio português no Rio da Prata. 362. Jonathas da Costa Rego. quando pediu ao sucessor de D. cit. 1. 453.” Op. 368 .portugueses eram uns velhacos e uma canalha. p. a 5 de novembro. Vinho verso Cachaça: a luta luso-brasileira pelo comércio de álcool e de escravos em Luanda. tem apoio do CNPq. 2000. Mariana Pinho. 1765-1775. 3 CURTO. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1700-1836). contar as populações significava uma nova forma de classificar os povos das conquistas. 2009. dentre outros encarregados dos governos nas conquistas. governadores. São Paulo: Alameda. Então. 332). c.1800). Angola e o Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Para o Este estudo. Tese de Doutorado. 1 369 . calcado em listas de habitantes e mapas de população2. p. 1999. Álcool e escravos: o comércio luso-brasileiro de álcool em Mpinda. Enslaving frontiers: slaves. da FAPERJ e do Grupo de Pesquisa Antigo Regime nos Tópicos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.). Esse esforço de mapeamento produziu uma vasta documentação censitária em diferentes partes dos domínios portugueses3. ainda em desenvolvimento. 2006. Agradeço aos professores Nuno Monteiro e Mariana Cândido. Lisboa: Vulgata. 2007. BELLOTTO. In: PANTOJA. CÂNDIDO. São Paulo: Hucitec. Toronto/Ontario: York University. WAGNER. (1750-c. Maria Luiza. por indicar documentos. José Flávio (orgs. Saraiva. 1648-1703. Reconfigurar dispositivos de domínio. Caroline Pontes e Ingrid de Oliveira. Curitiba: Programa de Pós Graduação em História da UFPR. Em ambos os casos menciona-se a cor recorrentemente. População no império português: recenseamentos na África Oriental portuguesa na segunda metade do século XVIII. 2 As listas são as descrições nominais dos habitantes e os mapas são as tabulações feitas com base nas listas. José. 2005. Heloisa Liberalli. trade and identity in Benguela (1780-1850). Autoridade e Conflito no Brasil Colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo. fenômeno iniciado mormente a partir do reinado de Dom José I (1750-1777). sem excluir as comerciais” (CURTO. 2000. Um governo “polido” para Angola. MARCÍLIO. Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas: Lisboa. Selma. pelo debate e tratamento de fontes. SANTOS. Presídio era uma “unidade territorial colonial conjugando a atividade administrativa e as funções militares. José. a Ariane Carvalho da Cruz. Catarina Madeira.Exóticas denominações: manipulações e dissimulações de qualidades de cor no reino de Angola na segunda metade do século XVII1 Roberto Guedes Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Este capítulo analisa qualidades de cor em presídios africanos de fins do século XVIII. Ana Paula. Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. capitães-mores. quando secretários de Estado.1480-1830) e seu impacto nas sociedades da África Central Ocidental. voltaram suas atenções para o mapeamento dos povos. Peter. Op. 381-405. de “enclaves portugueses na África Centro-Ocidental (Lovejoy. 2004. saliento o emprego das cores em presídios africanos. ressalvas são importantes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.Reino de Angola do século XVIII. v. 1-59. CASTRO. The population history of Luanda duting the late transatlantic slave trade. 5 Trato apenas de áreas de “concentração de escravos nos enclaves europeus associados ao tráfico”. o que quer dizer que atenta para certas cores. Benguela e o Brasil no Final do Século XVIII: Relações comerciais e políticas. orientações e/ou percepções gerais. New York: Humanity Books. Slaving connections. Op. The Anatomy of a demographic explosion. José Flávio (Orgs. políticos. 1791-1796. do poder central da monarquia portuguesa sobre cor. 269-270. ao menos até o momento da pesquisa. Em segundo lugar. ainda SANTOS. n. José. p. In: CURTO. African Economic History. à polissemia dos termos. em correspondências administrativas e na elaboração dos censos. Das cores do 370 . cf. Mariana Pinho. encontrou 30 censos para Luanda entre 1773 e 1844. Catarina Madeira. destaca que. etc6. LOVEJOY. o maior volume deste tipo de corpus documental. cit. porém. necessariamente. 204. e não necessariamente se aplica fora dos presídios contemplados5. Antes de proseguir. se encontra no período de Dona Maria I (1777-1792) e na Regência de seu filho. Rosa. Rosa. Hebe Maria Mattos de. 1781-1844. mas sobretudo para as três últimas décadas do século XVIII (CURTO. expressas na legislação. diretas ou indiretas. SARAIVA. Dissertation submitted to the faculty to the graduate for the degree of Doctor of Philosophy. The International Journal of African Historical Studies. Para o Brasil. Paul. José C. Changes cultures of Africa and Brazil during the era of slavery. O estudo analisa qualidades e não as qualidades de cor. 1989. 2-3. Mas. bem como para Luanda e Benguela.). The saga of Kakonda and Kilengues. A escravidão na África. Op. Campinas: Editora da Unicamp.Séculos XVIII e XIX. qualidades de cor podiam estar associadas a fatores sociais. Selma. p. ainda que orientações e legislações provenham do reinado de Dom José I (1750-1777)4. impliquem europeização dos africanos. 29. p. 2002. cit. por exemplo. In: PANTOJA. sublinho. e CÂNDIDO. em fins do século XVIII. CRUZ E SILVA. 6 O assunto tem sido abordado por diferentes prismas. Cf. EISENBERG. 4 CURTO. 1844-1850. CÂNDIDO. p. como já demonstrado à América portuguesa e ao Brasil imperial escravistas. 381). Paul E. Raimond.). Dom João VI (1792-1816). Com base em tal corpus documental. 2001). Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. na primeira parte. José. ou melhor. Relations between Benguela na its interior. cit. Benguela e seu hinterland estavam mais para enclave brasileiro (CRUZ E SILVA. Em seguida. Homens esquecidos. Escravos e trabalhadores livres no Brasil . culturais. 1999 (p. Mariana Pinho. 341). Luanda. GERVAIS. 1999. 32. sem que tais enclaves. cf. aliança e mobilidade social. Roberto (2010). cit. 46. desprezando outros aspectos7. intensificados a partir de meados do século XVIII. Colour. 7 Segundo CURTO. veja-se MILLER.. 1730-1830.. Sociedade Escravista e PósAbolição (Dossiê). 1999. 14. não obstante variações.. cit. 192 e segs. Class and Identity on the Eve of the Haitian Revolution: Saint-Domingue’s Free Coloured Elite as Colons américaisn. Fortuna e família no cotidiano colonial. p. Catarina Madeira. inclusive. In: PANTOJA. p.. VENÂNCIO. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Santos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 1. FARIA. cit. Para São Domingos. Roberto.. Wisconsin: Wisconsin University Press. Op. p.. 1998. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. o que passo a analisar. mas sem que as demandas da Coroa deixassem de produzir efeito. p. família. o período contemplado vivenciou forte influência do tráfico atlântico de cativos e da escravidão americana e africana.). 183-224. Joseph C.1798-c. In: PANTOJA.1988. Cândido. 2009. Slavery and Abolition. Cruz e Silva. PANTOJA. A evolução de Luanda: aspectos sóciodemográficos em relação à Independência do Brasil e ao Fim do Tráfico. José. Três leituras e duas cidades: Luanda e Rio de Janeiro no Setecentos. Escravidão e Cor nos Censos de Porto Feliz (São Paulo. São Paulo. 112 e segs. Lisboa: Editoral Estampa. Século XIX). Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. As qualidades de cor e seu registro foram influenciados pela escravidão e pelos comércios africano e atlântico de cativos. Sheila de Castro. Um estudo de sociologia histórica.). Selma. como se verá. 93-118. A economia de Luanda e hinterland no século XVIII. n. critérios de classificação oriundos dos poderes centrais da monarquia nem sempre confluíam com os locais. 34-35. GUEDES.. A colônia em movimento. não raro associadas a outras (ocupacionais. Revista Especiaria. Selma.. ou seja.1850. 2010. p. silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. José Carlos. 138 e segs. Ilhéus: Universidade Estadual de Santa Cruz. cor. etc). 2008. p. Em quinto e último lugar. Rosa. MOURÃO. GUEDES. Em quarto. GUEDES. de sexo. p. 17. SARAIVA. desde finais dos anos 1790. Way of death. Fernando Augusto Albuquerque. Roberto (2009). Op. GARRIGUS. v. José Flávio (Orgs. Mariana Pinho. The Anatomy of a demographic explosion. 1996. John D. José Flávio (Orgs. p. Egressos do Cativeiro: trabalho. gênero e condição social eram as categorias 371 . Merchant capitalism and the angolan slave trade. Porto Feliz. Mudança e Silencio sobre a cor: São Paulo e São Domingos (séculos XVIII e XIX). 385. 1999. p.Em terceiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. as cores indicadas nos modelos de mapas de população vindos do Reino eram suscetíveis a apropriações e influências de hierarquias sociais locais. 195-224. p. Selma. v. 2004. Op. 20-43. Op.. p. Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ. cores são uma dentre outras classificações aos povos da conquista. Para Luanda e Benguela. 1996. c. devido à legislação sobre o tráfico e ao simples fato de estimular a classificação de cor. Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. Revista Africana Studia. cit. 1995. 248-250. Saraiva. mulatos e pretos calçados no sertão. E visto também o requerimento que me fez o contratador dos escravos desse Reino para efeito de mandar que se não alterassem os usos em que estavam os contratos. nem em uma e outra se fala mais que em Pombeiros. e cumprir as repetidas ordens que proíbem a entrada dos brancos e negros calçados do sertão. 372 . tomada em consulta do meu Conselho Ultramarino.I – Orientações gerais da Coroa: dissimulação de cores Em 9 de outubro de 1754. declarando vós que deveis continuar nesta importante diligência com a mesma eficácia e zelo como tendes principiado. mandar vos dizer que fazeis bem em evitar as desordens de que dás conta. e seus cobradores. antes estas se regulam e entendem pelos mesmos capítulos. uma carta do rei. e mulatos calçados mais importantes nas listas nominativas. se não encontra com as condições do Contrato. Tesoureiros da Bula da Cruzada e oficiais dos defuntos e ausentes que saem dessa Cidade [de Luanda] com esses títulos. sem se permitirem os brancos. são os que com as suas negociações cometem no sertão as maiores desordens. e juntamente que os Rendeiros dos dízimos. Fui servido por Resolução de [02/10/1754]. sendo tão justamente determinada a sua proibição. e a prática do Comércio a respeito da introdução dos brancos como pombeiros no sertão. expondo-se o principio que tinhas dado a sua devida observância. manifestou preocupação com os agentes do tráfico no Reino de Angola: Faço saber a vós Governador e capitão general do Reino de Angola que havendo visto a vossa Carta de [18/12/1753] sobre a dissimulação em que achareis a entrada dos homens brancos. em resposta ao governador Antônio Álvares da Cunha (Conde da Cunha). sem que vos embarace os Requerimentos do Contratador a quem não houve por bem definir. como diz a condição décima dos direitos novos que deve servir de inteligência e interpretação da condição 32 dos direitos velhos. e o que responderam nestas matérias os Procuradores de minha Fazenda e Coroa. descritas de forma sumária nos censos. porque [ilegível] e indispensável observância dos capítulos 17 e 18 do Regimento dos Governadores desse Reino. fora. e aos mais que se forem por vossas ordens prenderão. seus cobradores. no caso. devido Arquivo Histórico de Angola. Brancos.. mandou pelos Concelheiros (. Façais que pelos Ministros de justiça se lhes formem as culpas de sorte que se possam ser legitimamente Castigados como merecerem que sirvam de exemplo para os mais. burlando a lei que a proibia. executem retamente a sua Comissão obrigando os interessados a nomearem outra qualidade os primeiros não forem idôneos e mandareis declarar a todos que na volta do Sertão se mandará tirar uma exata averiguação do seu procedimento para se proceder rigorosamente contra eles. ou examineis a capacidade e qualidade das pessoas que são nomeadas para estes empregos.. e não admitais. El Rey N Sr.)8 [Lisboa. em 1738. e a mandeis praticar. estendida a mulatos. que inicialmente (1612-21) proibia apenas brancos de irem comerciar no sertão. a possibilidade de atuar no tráfico interno no Reino de Angola era estritamente associada à cor e à qualidade dos funcionários régios. E pelo que toca aos Rendeiros dos dízimos. nem dê licença senão aos que forem conhecidamente capazes de se fiar deles. a lei. pretos e mulatos calçados seriam desordeiros e agentes ilegais no comércio interiorano. Assim. Talvez por isso. em 09/10/1754] [grifos meus]. por meio da dissimulação de sua entrada no tráfico do sertão angolano. Secção: Governo. se vos ordena examineis a prática que havia nesta matéria antes de se relaxar a observância do Regimento. o que significa que dissimular ou registrar a cor de determinada maneira poderia ser crucial para as maneiras de atuação no comércio de gente. as qualidades de cor carregavam um sentido político-mercantil. e assim se vos ordena que aos delinquentes presos. quando o mereçam. no que El Rei explicita precauções contra desordens que desarticulariam rotas e prejudicariam a arrecadação dos reais direitos do Contrato dos Escravos. Datas: 1738/abril/11 e 1754/outubro/24. Como se observa na carta. Ofícios para o Reino. Códice 2-A-1-2. pretos e mulatos calçados estariam entre os causadores das desordens. e Tesoureiros da Bulla. depois.compreendidos na proibição. 8 373 . brancos. 154-155. em fins do século XVIII. de algum modo aproximava mulatos e pretos calçados a brancos. 9 374 .Porto. 17-41. p. p.. como bozerquins. 120. “calçar a alguém” era “pôr-lhes os sapatos”. 10 BLUTEAU. Estados Poderes e Identidades na África Subsariana. Calçado significa “todo o gênero de calçados que o pé de cada um calça. cit. pretos e mulatos calçados se mantiveram correntes no Reino de Angola da segunda metade do século XVIII. cit. p.. 152-153. Op. pantufos. Todavia. cf. onde sapatos marcavam uma diferença social e contribuíam para distinguir livres de escravos. e “cão calçado” era “o que tem brancos os quatro pés”10. 150. Lisboa: Ática.) certa gente. 14 CORREA. O Racismo ontem e hoje. denotando aspectos culturais.. 11 Evidentemente. VENÂNCIO. Mas o vocábulo também alude aos que vestiam “calções”13. 2000 [1728]. Papers of VII Colóquio Internacional “Estados Poderes e Identidades na África Subsariana. Igualmente. Op. 2004-5. Foi com esses significados que. na carta de 1754. 13 VENÂNCIO. o dicionário está longe de encerrar o uso social de um idioma. um dos significados de branco é “bem nascido”12. Elias Alexandre da Silva. José Carlos.. Para os termos em questão. Raphael. at FLUP .1996. p. Por sua vez. José Carlos. Elias Alexandre da Silva Corrêa afirmou que nos “sertões de Angola apelidam brancos aqueles negros cujo hábito e distinção os põem ao alcance de andar calçados”14. Vocabulário Português e Latino. A problemática cultural dos mestiços em África. 12 BLUTEAU. Rio de Janeiro: UERJ.. calçado.às sinuosas linhas de separação de cor9. alusões a brancos. 2006 (p. 2º Sem. VENÂNCIO. 150156. similar ao que ocorria na América portuguesa. 155. em relação aos que atuavam no comércio. Ilhas crioulas: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica. FERREIRA. José Carlos.. In: GONÇALVES. pode indicar uma condição social de pretos e mulatos. çapatos.. 11. ser considerado calçado onde quase todos andavam descalços. 2005. n. Fazer muitas viagens ao sertão angolano. História de Angola. Op. que fazia muitas viagens (. botas &c (.. Revista de História. 2 vols. António Custódio (org. Roquinaldo do Amaral. cit. O Racismo ontem e hoje”. 1996. mesmo que muitos livres andassem descalços. 1996.). cit. 1937. p. VENÂNCIO. Aliás.)”. Raphael. Mas deve-se também atentar para o termo calçado atribuído a pretos e mulatos. Op. José Carlos. p. 37). A sua comparação com a situação asiática. Século XIX. em 15 de maio de 1725. a prosperidade podia embranquecer15. preso em Benguela a mando do Ouvidor Geral de Angola. pretendia proteger um aliado e a menção à cor apenas referendava o objetivo do governador. In: CAMPOS. Mariana Pinho. opositor do mestre-de-campo17. Adriana. 2008. e a respeito também de se achar essa cidade falta de gente para sua guarnição e defensa. sua retórica acionou expressões de cor referidas na escravidão: CÂNDIDO.No Reino de Angola. A emissão do bando. 16 Arquivo Hitórico Ultramarino (AHU). Sociedade Escravista e Mudança de Cor. Antes mesmo do reinado de Dom José I. Aparentemente. bandos. FLORENTINO. O bando destaca o perdão a brancos e pretos forros criminosos e a necessidade de defesa e de sacramentos para os súditos de Sua Majestade. editou um bando no qual categoricamente afirmou: (…) porquanto me é presente que alguns oficiais e soldados e muitas pessoas brancas desta cidade [de Luanda]. ou seja. João. 138. Nas Rotas de Império. GUEDES. andam ausentes pelos matos expostos às calamidades que nele experimentam sendo a maior lástima que padecem a falta de sacramentos da Igreja. como no Brasil escravista.. 2006. 92. mestre-de-campo que exercia o governo de Angola. Joseph de Carvalho da Costa. doc. mas o bando reforça a soltura de um sargento-mor aliado do mestre-de-campo. Manolo (Orgs. cit. cf. Porto Feliz. Por exemplo. Roberto. dentre outros. decretos. FRAGOSO. Angola. até o tempo que tomei posse deste governo. Caixa 22. observa-se a emissão de leis. Coleção Conselho Ultramarino (CCU). tratar-se-ia de uma tentativa de aplicar justiça a populações locais. mais do que qualquer coisa. e mais presídios dele e do de Benguela.). Roberto. docs. Angola. p. com forte manipulação das cores da escravidão e do tráfico. Op.. ordeno e mando a todos os oficiais e soldados e mais pessoas brancas e pretas forras criminosas. 17 Para o conflito entre o mestre-de-campo e o ouvidor. Antonio Carlos Jucá. GUEDES. Op.. SAMPAIO. etc.. Caixa 22. 92 a 96. cujo remédio se lhe deve aplicar para que os logrem como filhos do grêmio dela. São Paulo. CCU. Vitória/Lisboa: EDUFES/IICTP. cit. AHU. 15 375 . se recolham a esta cidade e presídios a que tocarem (…)16. Angola. pois ambos seriam aliados do Rei.brancos e pretos forros. que de novembro de 1762 em diante foram expedidas aos dois Governadores e CapitãesGenerais de Angola. como alhures. 376 . a Coleção é uma apologia ao livre comércio e uma justificativa à edição das leis que extinguiram o Contrato dos Escravos de Angola. Assim. a segunda com um parecer do conde de Oeiras. de 1769. e motivos. talvez as maiores orientações sobre cor se manifestem na Coleção das Providências. que constituíram o espírito de cada uma das ditas Leis. quando “veio a descobrir-se que todas as sobreditas Providencias se achavam fraudadas”. dos grandes estragos em que S. 18 AHU. Códice 555. Em termos gerais. a “guerra preta”. compunha grande parte das tropas “portuguesas”. também aí as cores ganharam expressão política. os referencias da escravidão e do tráfico de cativos (atlântico e no interior do Reino de Angola). contingente militar africano. cores passíveis de manipulação. e a Disciplina Militar dos Reinos d’Angola. uma de 11 e outra de 25 de Janeiro de 1758. bem como as manipulações sociais e políticas de cor. incluíam súditos ou aliados do Rei – afinal. leis e providências. Documento findado em 1769. em África. Em síntese. a Polícia. Antonio de Vasconcelos (1758-1764) e Dom Francisco Inocêncio de Souza Coutinho (1764-1772). necessários à defesa. o vocábulo Coleção em seu título sugere a criação de uma memória sobre a administração dos Reinos d’Angola. a terceira iniciada com uma Introdução Prévia. Magestade a achou quando sucedeu na Coroa destes Reinos. com base em Cartas Régias. e Presídios daquela utilíssima parte da África. O documento é dividido em três épocas/partes: a primeira iniciada com duas grandes leis. Mas não há contraposição entre eles. No governo de Dom José I. frise-se. mas. Congo. também serviram como parâmetros gerais classificatórios. o Comércio. Benguela. e. Leis e Ordens que restauraram a Navegação. o que o caso demonstra é que estudos sobre qualidades de cor devem levar em conta os critérios e os objetivos que as produziram. Loango. resoluções. Ordens e Providências18. Loango. A cor sublinhava uma atribuição política pombalina em relação aos jesuítas. na qual Negros descalços seriam aliados dos religiosos no comércio de cativos. quando voltava a este Reino se achava perdido no conceito da Corte. que fazendo formar para o governo de Angola o Regimento de 12 de Fevereiro de 1676 (. Benguela. e ao verdadeiro espírito da Lei de 11 de janeiro de 1758”: Primeiro Motivo Que um dos primeiros e principais objetivos dos chamados Jesuítas desde a sua entrada em Portugal foi a de usurparem e fecharem a beneficio da sua insaciável cobiça todos os sertões dos domínios ultramarinos deste Reino: Que para assim o conseguirem estabeleceram um Tribunal com a denominação de Junta das Missões. em que consistiam as armas mais usadas na malícia Jesuítica. a Molatos. de sorte que qualquer Governador.Congo. Imediatamente após o preâmbulo. com as calúnias. eram carregadas de conotações políticas e mercantis. entrassem nos Sertões daquele continente. de que foram primeiros Presidentes os dois Jesuítas André Fernandes e Manoel Luiz. ou a Negros calçados para irem aos ditos Sertões. proibiram expressamente nos dois capítulos XVIII e XIX que pessoas algumas que não fossem os seus Negros descalços.. e tinha de se livrar de muitas culpas. e Presídios. Aquelas duas leis de janeiro de 1758 tiveram impacto na caracaterização das qualidades de cor associadas ao tráfico de cativos. que nas suas residências lhes eram imputadas. crioulos e negros calçados. confessores do Senhor Rei Dom João IV e da Senhora Rainha Dona Luiza: Que tiveram tal e tanta força de poder os ditos Jesuítas. e brancos seriam ligados a governadores. A se dar crédito à Coleção. E que desde então até o presente reinado Felicíssimo ficaram os referidos sertões fechados com um absoluto monopólio dos referidos Jesuítas. ao passo que mulatos. que desse licença a Brancos. [grifos meus] O trecho salienta que as cores. negros 377 .) por eles composto. a Coleção se reporta à “Primeira Providencia da Primeira época. acompanhadas ou não de adjetivos.. Crioulos. se pagasse oito mil e setecentos reis. 19 AHU.. crias de peito etc. enquanto os haviam dos tais monopolistas. 11-12..descalços. crias em pé. o que consta na “Segunda Providência”. com um comércio livre. No primeiro motivo. que os primeiros dos ditos escravos chegavam aos portos do Brasil mais baratos (.) sempre eram peças de índia. que se deviam pagar pelos escravos. que manifestam seu verdadeiro espírito”. que é “a Segunda Lei de 25 do mesmo mês de Janeiro de 1758 e motivos. [grifos meus]. E para desterrar da mesma sorte esta iniqüidade tão nociva ao bem comum do Comércio estabeleceu El Rei Nosso Senhor a lei de que se trata. ou fosse varão. era preciso também modificar a nomenclatura de cor vigente no comércio de gente. sendo adulto. E de tudo se seguia. ou fosse femia. quando os dos outros negociantes (.. lê-se: Para mais se segurar o dito monopólio. e franco. e seus propostos. Pela estimação de diferentes denominações. e nada pelas crias de peito19. Daqui resultava que os dos monopolistas sempre eram moleques – para pagarem menos.). 378 .. fl. teriam mais força política e maior atuação mercantil do que os de demais cores. moleques.. qualificadas pelos contratadores.). E mandando que por cada escravo. para pagarem mais. se avaliavam os direitos. Códice 555. abolindo por ela as sobreditas denominações e qualificações. debaixo de graves penas contra os que os embaraçassem.. A lei de 11 de janeiro de 1758 pretendia cessar com o (suposto) monopólio dos Jesuítas e dos Contratadores. por meio dos jesuítas. Para tal fim. abrindo os sertões a todos os moradores dos domínios. em que os contratadores e os jesuítas se achavam sempre associados. por cada cria de pé de quatro palmos para baixo quatro mil trezentos e cinqüenta reis. E se seguia não poderem os homens de bem vender os seus escravos. oprimindo e vexando os outros negociantes (. inventaram e introduziram uma forma de despacho de negros composta das exóticas denominações de peças da índia. cit. enquanto os dos monopolistas eram moleques. traficantes de moleques21. lei de 11 de janeiro de 1758. o governo pombalino assim procedia de duas maneiras: ao tentar impor uma denominação aos passíveis de venda e em caracterizar os aliados do governador e os dos jesuítas com base na cor. Regimento de 12 de Fevereiro de 1676. De um lado. Peça de índia. portanto. no Regimento dos Jesuítas. O que se observa nas duas leis é que.Cabe salientar que se trata do Primeiro Motivo da Segunda Providência da Época primeira. a Carta d’El Rei ao governador silencie sobre negros descalços e sobre os jesuítas serem causadores de monopólios ou de desordens. bem como as associavam aos agentes mercantis. Em 1754. enquanto na Coleção. “jovens escravos com barba”. mulatos e pretos calçados. 207. pois. p. peça de índia (cativo adulto) era o que mais onerava os comerciantes em impostos (direitos). 20 379 . orientaria a perpetuidade pretendida pelo legislador. Antes. em 1754. etc. mas manteve as demais e introduziu adultos. que tinha o ano de 1758 como marco inicial. crias. referia. é digno de nota que. José Carlos. em contraposição a moleque. ambos os grupos já estavam ligados politicamente e de forma pejorativa. Para isso. que nos dois momentos as qualificações de cor foram acionadas com critérios políticos e mercantis Moleque. para quem (supostamente) promovia e/ou combatia o monopólio. num segundo momento. o documento destaca a necessidade de modificar o vocabulário social corrente no tráfico. 1996. seriam aliados dos governadores. as desordens do tráfico eram atribuídas a brancos. O critério proposto seria etário e de altura dos cativos (4 palmos). Todavia. segundo Venâncio. que. Constata-se. na Coleção. seriam aliados dos negros descalços e. as cores e as exóticas denominações do tráfico definiam o tipo e o preço dos cativos vendidos. significa cativo adulto para o tráfico. no século XVIII. no comércio atlântico. 21 A propósito. Op.. a Lei de 25 de janeiro aboliu apenas as denominações peça de índia e moleque20. ou seja. os jesuítas teriam também se comportado com base na nomenclatura da escravidão e do tráfico. Para findar o monopólio. era uma denominação exótica dada por jesuítas e contratadores aos cativos dos demais comerciantes. no sertão angolano. De outro. coisa rara. podemos dizer que as leis de janeiro de 1758 foram as maiores orientações do período pombalino sobre qualidades de cor no Reino de Angola.directorio. Rita Heloísa de.lai. devido à política de povoamento e de integração da população indígena em projetos de civilização. filhos de pais todos pretos”. doc. Mesmo que fossem tangencias. Pedro de Quevedo Homem Magalhães.. AHU. ao silenciá-las ou mencioná-las. 22 380 . A partir da década de 1770 houve um ponto de inflexão no modo como a Coroa observou os povos das conquistas. para que sirvam “para bixos da sua cozinha”. 1997.1755. Sétima Providência. O Diretório dos Índios: Um Projeto de “Civilização” no Brasil do Século XVIII. de 1755. Brasília: Ed. O governador de Benguela. 25 A produção de mapas e listas se deve a reorientações na administração portuguesa sobre seus domínios a partir de meados do século XVIII. ressaltou-se “que todas as sobreditas Providências se achavam fraudadas”. Por isso continuemos a tentar entender as exóticas denominações de cor. AHU. preocupou-se em descrever a cor branca dos pretos. No desfecho da Coleção. ALMEIDA. “(. não atingia apenas Angola. fl. inclusive em qualidades de cor25. O Diretório dos Índios. De modo bem geral. http://www. Destaque-se que tal preocupação com a caraterização de cor.referidas no tráfico de cativos. a terceira época/parte. a menção a elas reforçava a argumentação para findar os monopólios. postulava que a cor negra não fosse usada para índios. A preocupação em se conhecer numericamente e sistematicamente a população das conquistas coincidiu com interesses da política mercantilista.pdf. ainda em alusão a monopólios e desordens. que julgava o secretário um entusiasta das “coisas raras produzidas por estes sertões”. contar implicava também classificar os povos em categorias. 46. mas “sendo eles brancos chamados ‘assas’. também as manipulava22. justificava a remessa de “um casal de pretos”.) se tem quase estinto naquele Reino os brancos que a eles foram transportados morrendo uns de fome e miséria na cidade e suas vizinhanças acabando outros nos sertões fugitivos e vagos e vindo assima prevalecer os negros de tal sorte que ainda os poucos brancos que existem olham para as mulheres da Europa com estranheza preferindo por quase geral abuso o consórcio das nergas”. salvo a grande preocupação com o povoamento de brancos23. Códice 555. Angola. da UnB. em agosto de 1786. já que mapas e censos eram um novo modo de observar. Martinho de Melo e Castro.. 24 Vale a pena uma nota sobre exóticas denominações sobre qualidades de cor dos povos das conquistas. que causavam admiração em governantes da monarquia portuguesa. 71. ou seja. Acesso em 10 de outubro de 2009. O governador. O governo pombalino em Angola. em carta ao secretário de Estado. Cx. mas ser branco ou preto não isentava ninguém da animalização. incluindo o etc24. no governo pombalino. 56v. em 1769.at/wissenschaft/lehrgang/semester/ss2005/rv/files/pombal. 23 Por exemplo. para o Pará e o Maranhã. 19-20. Provavelmente. Cf. Os objetivos da Coroa lusa eram “nitidamente militares e econômicos”. 31. Angola. esse atraso na produção de censos para Benguela se deve ao Regimento para o seu governo. e casas de sobrado. por exemplo. em 1796. inclusive visava servir à política de povoamento e de ocupação de terras (Marcílio. a falta de arquivos. Studia. 57. 22). 251 e segs. 62. p. doc. mas elaborou outro. 67) e o de 1773 (AHU.Todavia. consumo e exportação. os mapas deveriam informar: 1) número de habitantes. p. Caixa 83.. Ainda que de vida curta. CCU. Só se implementou arquivo em Benguela em 1791 (Cruz e Silva. Aí. a contagem tomou corpo28. 32 Note-se que o governador de Benguela já havia feito um mapa de “pessoas livres e escravos. previamente estabelecidos no Reino. 3) nascimentos. Cx. Santos. casamentos e óbitos. Carlos. p. o censo de 1781 (AHU. 4) volume de importações. Op. 37. 2) ocupações. de 1778 (AHU. ccu. Mariana Pinho. para Moçambique. 1981. p. CCU. p.. 6) produção. que orientaram a moldura dos mapas. 246). o Regimento não deixou de surtir efeito imediato.. 34). Op. 142. Angola. posto que suspenso em 179830. no. Ana Paula. Angola. doc. cit. mas chegado em Benguela somente em outubro de 1797. tal com listas. p. doc. 32-34). Rosa. somente 4 anos após das Instruções. no caso de Benguela e certos presídios. instruções “sobre os mapas que acompanham esta carta a fim de que se principie um trabalho por meio do qual se possa chegar a um conhecimento das colônias”26. Ainda conforme a autora. 26 Sociedade de Geografia de Lisboa – Arquivos de Angola. Op. Op. 7) preços. Cit. Catarina Madeira. 64. em 15 de Junho de 1796 (AHU. finalizado em 1796. 66). como hipótese. foram as Instruções de Dom Rodrigo de Souza Coutinho. 27 CÂNDIDO.. 4. p. contribuiu decisivamente. Como destacou Cândido27. 140-143. 8) entrada e saída de navios. e de palha de que se compõem a Cidade de Benguela”. 2004. 285-294. doc. Regimento de Governo Subalterno de Benguela. Cx. 28 Idem. 5) volume de exportações. ao menos. 381 . 45. Cx. e Wagner. Então. Op. cit. Maria Luiza. para o caso do Reino de Angola. Notas e Comentários. as estatísticas demográficas passaram a ser consideradas instrumentos de controle do Estado português. de 1792. devido à subordinação à Luanda. 31 Certamente. Nestes dois anos foram elaborados vários mapas e listagens sobretudo a partir de Pombal. cit. cit. 29. a questão territorialidade em África ganhou nova dimensão. 29 Para Luanda. 1938. terras de telha. CCU. no que concerne à produção de mapas e listas nominativas de habitantes para o ano de 1797-179832. veja-se. 30 COUTO. 382 . Op. pelo menos. Dato o censo com dois anos 1797-1798 porque há. cit. e as Provincias de Quitata[sic] onde se fundou a nova Caconda. a título de exemplo. ele afirma. com uma grande lacuna documental sobre censos e listas nominativas nas décadas de 1770.. DL 32. 36v. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). cf.. Angola. A Câmara e a Provedoria da Real Fazenda de Benguela registram o regimento e mandaram cumprir em a partir de outubro de 1797. Destricto de Novo Redondo. CCU.. 1780 e 1790. Angola. o responsável pelo distrito do Bailundo enviava a resposta aos pedidos do governador de Benguela. Huhita[sic]. a classificação dos povos das conquistas por meio dos centos. Angola. e dos sobas que tem (. não surtiu efeito.). A Coroa pretendia tomar ciência e realizar a contagem e fornecer outras informações. em alusão aos mapas. e as de Quilengues. portanto. 51). doc. como aos seus armamentos (. o governador de Benguela e regentes de presídios ou jurisdições. CÂNDIDO. a capitania de Benguela foi demarcada no regimento com a seguinte divisão: Benguela. doc. Cx. 51B). doc. sem descartar a possibilidade de classificarem a si mesmos.2.de presídios em áreas sob jurisdição de Benguela. 87. Cx. ou províncias – os termos nas fontes variam – classificaram povos das hinterlândia de Benguela. Mariana Pinho.) dando-me conta as pessoas existentes (.. e o de número 10º a extensão territorial desta capitania. Sobre o processo de elaboração dos mapas de Benguela.)”. DL 32. Cabo-negro. dividida em Norte e Sul. Logo. IHGB.. Bihe. cabe indagar como a Coroa. por efêmero. 87.. fl. Passados 20 anos do fim do período pombalino. a coroa mandava passar “mostra as duas companhias de Infa e Artilha.. CCU.)” (AHU. 87. Em uma das versões das correspondências enviadas pelo governador. Ainda em março de 1798. as terras desconhecidas exploradas pelos comissarios do Barão de Mossamedes. retoma-se. CCU. Cf. mesmo para Luanda. ao menos em Benguela. Cx. duas versões dele.2 e AHU.. e que muito muidamente examineis o estado da Fortaleza (. pois o governador afirmou que só recebeu o regimento em 10 de outubro de 1797 (AHU. demarcada segundo o capítulo 16 do novo regimento que Sua Majestade mandou para instruçao deste governo. que o “9º é da populaçao desta cidade. 51B. II – Qualidades de cor nos presídios Por meio do regimento do governador. terras do Sova Bailundo. tanto pelo q’ pertence aos individuos. afirmar que o regimento. Não se pode. Muxima. No entanto. Cambembe. A maior dependência. no que se refere ao fim das exóticas denominações. cujos prejuizos irreparaveis tem causado gravíssimo prejuízo ao comércio e reais deireitos de Vossa Majestade”35. o governador seguiu as instruções do regimento e dividiu Benguela em “7 partes. indagavam a sargentos e capitães-mores. a matar e roubar os sertanejos. a fim de “castrigar aqueles salteadores (…) para os debater logo que cometam os insultos (…) e se não animarão com tanta ousadia. do Galangue. 34 IHGB. DL 32. uma cadeia de informantes gerava as informações. o governador pedia a formação de um novo regimento. os governadores recebiam ordens do Reino. Encoge. Pedras de Pundo-Andongo e Benguela. doc. Para o Secretário de Estado dos Negócios Ultramarinos melhor “ver e conhecer o vasto continemte desta importante Capitania. do Balundo e do Bihé. do Ambo. Presídio de Caconda. de Quilengues. 35 AHU. Como se vê nas palavras do governador. logo que me cheagrem as noticias que mandei indagar por um sargento em cada uma das provincias. e espero com maior clareza e individuaçao dar nova relaçao a V Exa. 383 . e seus povos”. que podiam também ser os regentes das províncias. como vigia em 1758. o governador admitiu a precariedade dos dados expressos nos mapas de população: organizei como pude por informaçoes que mendiguei de muitos sertanejos. Angola. era em relação aos sertanejos. Aqui a expressão para traficante do interior é sertanejo e não há menção a negros calçados e descalços. 87. 51B. ou Provincias”. porém.2. o que não significa que as medidas pombalinas teriam vingado. esta última também referida como capitania. Cx. Massangano.19 de outubro de 1797. a saber: Província de Benguela. e que pedia a cada um de seus capitaes mores34. 33 Os presídios/juridições até agora analisados são os de Ambaca. Caconda. Novo Redondo. ou melhor. foram elaborados mapas e listas de população para outros presídios33. A partir deste mesmo ano. Quem seriam eles? Referindo-se aos ataques sofridos por comercaintes. pt. o que de ordinário acontece com frívolos pretextos. DL 76. 36 384 . redundando todos a maior aperto dos miseráveis Negros com deterimento cruel da Humanidade36. fretes. Fontes históricas de Direito Português. Para além da desumanidade do tráfico que ceifava vidas nos apertados porões dos negreiros. ao invés de brancos. para venderem na Praça ou embarcarem de sua conta nos Navios de bando. destacando trechos presentes também na Coleção.). cuja liberdade lhes conservará sem se intrometer no ajuste. A lei de 11 de janeiro abria o comércio com o sertão a todos Cf. qual a intenção do governador em usar a palavra sertanejo. Acesso em 10 de setembro de 2009.. retorno ao Regimento de 1797. como aos efeitos do seu negócio. ou seja. pardos e negros calçados? Para entender tal aspecto. o Regimento do Governador de Benguela de 1797 no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). “e sendo o negocio da costa de Africa. reduzindo-se a vigiar escrupulosamente sobre a sua qualidade não comprometendo por huma simples atestação do Patrão Mor o sustento necessário a tantas vidas.02. na forma do Álvara de 25 de Janeiro de 1758.. evitando todo o gênero de contrabando”. que afirmava que toda a exportação de Benguela se reduzia a três gêneros (escravos. o governador deveria: facilitar gratuitamente os despachos que couberem na sua Alçada. permitido a todos os Portugueses pelo Alvara com força de Ley. abundantes na capitania de Benguela. marfim e cera).unl. http://www. devendo pelos deveres do Cargo só velar na igualdade do Comercio Nacional na devida contribuição dos Direitos da Coroa.incluindo o &ca. o regimento remetia às leis de 11 e 25 de janeiro de 175837.fcsh. excetuado o Governador a quem absolutamente proibo. estas leis em Ius lusitanae. Mas. 37 Cf. tanto a respeito de Sertanejos que sobem para o centro com fazendas de permutação. directo e indereto (. pelas ordens e costumes. e dos mais oficiaes. então. e mantimentos do embarque. de 11 de Janeiro de 1758. sem se ter atendido aos comodos do capitão. nem poderá permitir que o numero dos embarcados exceda o da arqueação do navio. 02. Ao mesmo tempo.iuslusitaniae. e escrita em data posterior. Caixa 87. p. ainda vigente em meados do século XVIII. segundo a sua opulência. quiçá por meio de seu escrivão. 153 e segs. o que é pouco provável. Mais ainda. sertão por partes. Sovetas seus Vassalos (…) Cada Souva tem vários sovetas seus vassalos. seguiu ao pé da risca a 38 39 VENÂNCIO. Op. chegou mesmo a. à revelia da abertura do comércio e do desuso da lei.. Assim. 1996. e Parda que se espalhem por todos aqueles sertões os farão conhecer pelos seus nomes (…) Relação dos Sovas Potentados. constante da Coleção do Conselho Ultramarino do AHU. cit. As versões de um documento demonstram que o governador. insistiu no termo sertanejo.. doc 51B. de um lado. O governador de Benguela. Ao que tudo indica seguiu o seu regimento. DL 32. Roquinaldo do Amaral. p. 385 . e cada soveta governa uma ou mais povoações (…) além do grande número de povos (…) e havendo muitos sertanejos que se espalhem por todos aquelas partes os farão conhecer pelos seus nomes e tratáveis. uma vez que a número 1 se encontra no IHGB. pois. o que é mais factível.os súditos portugueses38.2. FERREIRA. substituiu. caira em desuso39. ou. ou o governador ignorava as leis de 1758. Op. presente em seu Regimento. José Carlos. de outro. 2006. Fonte: AHU. CCU. (…) [10 de Janeiro de 1798] [28 de Março de 1798] Fonte: IHGB. cit. e cada soveta governa uma ou mais povoações (…) além do grande número de povos (…) e havendo muita gente branca. branco e pardo por sertanejos e. manipular as exóticas denominações. Sovetas seus Vassalos (…) Cada Souva tem vários souvetas seus vassalos segundo a sua opulência. ou seu escrivão. Além disso. porém. pois foram mencionadas em seu regimento. a proibição de brancos e pardos em comerciarem no sertão. Em suas titubeantes palavras: Versão 1 Versão 2 Relação dos Sovas Potentados. 37. foi esta a versão que com certeza chegou a Lisboa. cit. 112 e segs. aliás. Para o Brasil.) Em resumo. cit. que usava a palavra sertanejo. 195-224. Op.). 2009.. cujo registro na documentação resulta de diferentes objetivos41.. considerando-se como revogadas pelo costume (. Op.. tratam-se de qualidades. 1988. Catarina Madeira. Joseph C. Guedes. 41 O assunto tem sido abordado por diferentes prismas. uma outra possibilidade na troca daqueles termos é que o governador oscilou entre as ordens do regimento e o costume no emprego das qualidades de cor.. Fernando Augusto Albuquerque. certamente pela força do costume. Cândido. José Carlos. 138 e segs. 2004. Venâncio. cit. 40 386 . Aliás. Selma. Hebe Maria Mattos de. Op.. Como os costumes nos presídios. Santos.. Op. p. cit. 34-35. cit... 269-270. 2004. Como se viu na Coleção. António Manuel. Isabel Castro. 174-175.. Cruz e Silva.. veja-se Miller. na tabulação geral das populações dos presídios expressa nos mapas usa-se quase sempre um sistema trinário de cor. Guedes. Op. política. Peter. cit. Pantoja. Faria. p. Op.. Para Luanda e Benguela. Rosa. p. a doutrina oscilava. Relações Portugal-África. Mariana Pinho. claramente favorável ao costume”40. familiar. Op. 248-250. p. Roberto. Op.. mesmo nos mapas. também presente em seu regimento – Deve em conciquencia o Governador facilitar gratuitamente os despachos que couberem na sua Alçada. 183-224. 46. cit. p... de status. afinal. Ou melhor. mas não se deve esquecer que. mulata e preta. Mourão. 1998. etc. Guedes. tal como exemplificado no quadro 1: HESPANHA. antes. Castro. cit. Op. cit. Na prática. não é raro vê-la recusar como obsoletas as normas legais. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. cit. cor está longe de expressar apenas aparência da tez. tudo somado. p. São Paulo: Annablume. Op. Imbecillitas. todas as sobreditas Providências se achavam fraudadas. o balanço era. p.. em 1769. 2010. 192 e segs. Destarte. Op. p. cit.. tanto a respeito de Sertanejos que sobem para o centro com fazendas de promutação (.orientação do regimento. que inclui branca. indica condição social. p.. Os pilares da diferença. Eisenberg. Op. Por exemplo. p. Roberto. Roberto. oscilação. HENRIQUES.. de qualidades de cor que perpassam todas as demais categorias. Op. 2008. na prática. Sheila de Castro. p.. cit.. cit. “relativamente às normas do direito escrito do reino. Lisboa: Caleidoscópio Edição e Artes Gráficas. Guedes.. séculos XV-XIX. 1999. 2010. pelas ordens e costumes. cf. 1996. Roberto. registravam as cores? Como é corrente e sabido. 78. Até o momento da pesquisa. Brancos 1 3 1 3 1 1 3 1 1 3 1 1 1 1 1 3 1 Qualidades Pretos 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 Mulatos 3 1 3 1 3 3 1 3 3 1 3 3 3 3 3 1 3 Total 6 6 6 6 6 6 6 6 6 6 6 6 6 6 6 6 6 Fonte: AHU.Barro e Pao dos Pretos Ofícios mecânicos Presbíteros Diáconos Subdiáconos De ordens menores De prima tonsura Carpinteiros Serralheiros Ferreiros Pedreiros Oleiros de fazer telha Oleiros de Fazer panela Sapateiros Alfaiates Barbeiros Esteireiros Saqueiros Quindeiros ou cesteiros De adobe com palha Eclesiásticos De adobe com telha Casas Ermidas Igrejas Paróquias São Felipe de Benguela o 1 de Janeiro de 1798 Quadro 1 Mapa da Cidade de Benguela e suas mais próximas vizinhanças relativo ao estado dela em o ano passado de 1798. os mapas elaborados pelo governador.) Senhor Dom Miguel Antonio de Melo [1797-1802]. porém. o registro da qualidade de cor não era aspecto de menor importância. Cx 91.. Além das categorias eclesiásticas e ocupacionais. Os números são fictícios. as cores usadas em diferentes presídios nem sempre eram as mesmas. suprimidas por questões de espaço. há outras abrangidas pela cor. provavelmente feitas também pelos regentes de presídios. seguiam a norma sumária das três qualidades. Mapas e listas. tinham mais cores. Governador e Capitao General do Reino de Angola e suas conquistas. CCU. ou regentes de presídios.. mas não só nos mapas. e ao em que fica no 1 de Janeiro do corrente. Nas listas de habitantes também. não raro se servem de expressões diferentes para os registros das qualidades de cor. melhor dizendo. Doc 41. já que. certas qualidades de cor eram usadas em determinados locais. tendencialmente. feito segundo as ordens e modelo dado pelo (. Pelo exposto. mas não em 387 . ao passo que as listas de habitantes. Angola. outros. 247. bem como os status delas derivadas. cit. Rosa. Considerando a autonomia política dos presídios perante Lisboa42 e a permanência do costume a par de leis escritas. Apropriação. não empregam sempre as mesmas cores para descrever os moradores (quadro 2). as demais fazem parte do vocabulário classificatório local. pela Coroa. p.. forçava uma classificação?43 Dito de outro modo. hierarquias. ou. 42 43 388 . até certo ponto. 2004. que. talvez. sim. a qualificação de cor de acordo com a posição social? Muito provavelmente. Op. valores. em suas listas de habitantes. as possibilidades distintas de atuar no tráfico. ainda. CRUZ E SILVA. que cria e qualifica a cor das pessoas/famílias. ou. Baseio-me em Tavares e em Santos. que se serviam de termos distintos. bem entendido. dando-lhe outro significado. se há apenas três qualidades de cor vindas do Reino. escrita stricto sensu) pelos africanos. sobre apropriação da escrita (códigos. uma vez que os presídios. certamente estimulada. nos modos de registrar a qualidade de cor não poderia residir uma um caminho para o entendimento de criação de hierarquias locais. pelos censos. 389 Branco Branco feirante Cor honesta Pardo Pardo escravo Pardo forro Mulato Mulato forro Mulato descalço Mulato escravo Preto Preto forro Preto forro descalço Preto escravo Preto escuro Preto calçado Preto meio calçado Preto descalço 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 Qualidades de Cores 1 X X X X X X X X X X X X X X X X 2 X Senzala X* X X X X X X X X Casa Parte Norte da Cidade Senzala Casa Parte Sul da Cidade 1 Benguela X X X 3 X X X X 4 X X X X X X X X* X 5 Jurisdição X 6 X X X 7 X X X 8 X X 9 X X X X 10 X X X X X X 11 Outros Presídios Quadro 2 Emprego de Qualidades de Cor e outros termos da escravidão e do tráfico em Presídios (1797-1798). X X X X 12 . 11 = Muxima. doc. AHU.2.10. 51 Preto cativo Negro 19 20 . 7 = Cambembe. CCU. 6 = Distrito do Dande.390 Negro forro Negro escravo Fusco Fusco calçado Caboclo Forro Escravo Escravo negro velho Escravo peça da Índia Escravo barbado Escravo barbado moço Escravo moleque Escravo molecão Escravo peça Escravos machos Escravos fêmeas 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X Legenda: 2 = Bailundo ou Balundo. DL29. 10 = Pedras de Encoge. DL 31.02. DL 31. 4 = Caconda e seus vários sítios. DL.05.17. Fontes: IHGB. DL 31. 57. Angola. 32. 8 = Novo Redondo. DL81.6.27. DL 31. DL 31. 12 = Massangano * Emprego apenas uma vez. 3 = Quilenges . 5 = Bihé ou Bié. 9 = Ambaca. Cx.9.7.8. DL 31. Como se nota no quadro 2, a utilização de vocábulos de cor variava nos presídios e nas províncias de Benguela, o que indica hierarquizações locais expressas em cores distintas, aludidas – quem sabe auto-aludidas? – para habitantes com condições sociais, poder, status, etc. desiguais. Muito provavelmente foi a hierarquia e a classificação social local o que mais contribuiu para as diferentes maneiras de registrar qualidades de cor, mas, com efeito, para referendar tal hipótese, ainda é preciso saber como as cores eram produzidas e registradas. Primeiramente, cabe ressaltar que mapas e listas expressam singularidades no emprego dos termos, já que mapas são tabulações e listas de habitantes são descrições nominais de pessoas. Todavia, não é descabido supor que mesmo que um funcionário registrasse as cores nas listas de um certo modo, lançava-as de forma diferente nos mapas. Nos mapas, a expressão mais corrente é mulato, ao passo que nas listas nominais de habitantes usa-se a palavra pardo com mais frequência. Para compreender tal aspecto, retorno às Notícias de Benguela, de 1797-1798, que dividiu sua jurisdição em 7 Províncias: 1) Cidade de Benguella (separada em Norte e Sul), 2) Quilengues ou Quilenges, 3) Presídio de Caconda, 4) Amba, 5) Galangue, 6) Balundo, 7) Bihe. Destas províncias, priorizarei duas para efeito de exposição um pouco mais detalhada, a de Benguela e a de Quilenges. Na província de Benguela, descrevem-se as casas e, separadamente, as senzalas. O enunciado das Notícias de Benguela, da Parte Sul, se intitula Relação dos moradores da cidade de São Felipe de Benguela de ambos os cexos com repareçam de brancos, pretos, mulatos. Além de brancos, na lista de moradores há mulatos, e nas senzalas também há mulatos, empregando-se também o termo pardo, além de preto. Quem assinou a lista de moradores e a das senzalas foi um certo Tenente Manoel José. A parte Sul da cidade de Benguela e a província do Bihé, levando em conta as 7 províncias, foram as únicas onde se usou, recorrentemente, o vocábulo mulato em listas nominais de moradores, salva uma casa da parte norte da cidade, que também o utilizou, mas uma única vez. 391 Na parte norte da cidade44, o enunciado da lista nominal de moradores é Relação de Moradores que existem na Cidade de São Fellippe de Benguela de ambos os sexos de brancos, pretos, mulatos os seus Nomes empregos e estados a 28 de Novembro de 1797. Porém, na listagem de habitantes só há o termo mulato uma vez, todos os demais moradores, exceto pretos e negros escravos, eram pardos ou brancos. O mesmo ocorre nas senzalas. Assim, mulato só consta no enunciado e na tabulação do mapa. Quem assinou a relação nominal de moradores foi o Tenente Antonio José Carneiro. Quais os critérios para ser branco em Benguela? Na parte Sul da cidade, nota-se que não há branco agregado de preto, pardo, negro ou mulato. Todos os brancos tinham escravos. Quando não tinham, suas mulheres ou caixeiros possuíam. Não havia branco filho de preto ou mulato, mas havia pai branco com filho mulato. Nenhum pai branco tinha filho preto. A habitação também foi crucial para caracterizar a cor. Das 23 habitações com telha (casa de sobrado ou térrea), 17 eram de brancos, 5, de mulatos, e 6, de pretos, mas dos 23 homens brancos, só 6 moravam em casa de palha. Mudando de cor, dos 14 mulatos, 7 moravam em casa de telha, assim como apenas 8 dos 18 pretos (quadro 3). Por outro lado, nas 57 senzalas da parte Sul não viviam brancos, mas os “chefes” (que encabeçavam as senzalas) eram referidos como pretos, pretos forros ou mulatos, todos frequentemente senhores de escravos. Os escravos das sanzalas, em geral, eram registrados sem cor, contrariamente aos seus senhores. A cor preta na senzala não raro denotava alforria ou liberdade, estando ou não acompanhada dos termos destas condições: forro, liberto ou livre. Em suma, a habitação foi um critério importante para carcaterizar a cor em Benguela de fins do século XVIII, tal como o quadro 3 demonstra: 44 Para efeito de cálculo, a parte Norte da cidade ainda está em análise. 392 Quadro 3 Cabeças de Casal, Casas e Senzalas (Cidade de Benguela, parte Sul, 1797-98). Habitação Casas de sobrado Casas térreas de telha Casas térreas de palha Total Habitação Cabeças de Senzalas Cabeças de ‘domicílio’ na Cidade Branco Mulato Preto Total 7 1 1 9 10 6 7 23 6 7 10 23 23 14 18 55 Branco Mulato Preto Total 0 2 55 57 Fonte: IHGB, DL 32.2. Para a província de Quilenges, o capitão regente, Miguel Antonio Serrão, findou as notícias do presídio em 28 de fevereiro de 1798, em resposta às ordens do governador de Benguela em carta de 11 de Novembro de 1797. Disse que ia informar tudo o quanto pudesse obter com as suas pequenas forças e grande impossibilidade, que a cada passo se encontra nas asparezas do Certáo, mas sobre a cor afirmou que os “moradores brancos, pardos, e pretos, que moram nesta Província, vão notados na relação Nº. 1 com bastante clareza”. De fato, não usou o termo mulato, apenas pardo. Na tal relação número 1, descreveu os “moradores brancos, pardos, e pretos de ambos os sexos, que se acham nesta Provincia de Quilengues, seus escravos, e gados, e mais forros que os servem, e gados destes [forros]. Na ordem de sua listagem nominal, primeiro agrupou os homens brancos, depois os pardos, depois um caboclo e, por fim, os pretos. Todos livres. Por último as mulheres, pardas e pretas, também livres. Ao associar ocupação e cor, o capitão regente foi enfático ao fazer uma co-relação entre tais variáveis: os membros brancos que aqui se acham vêm voluntários a seu Negócio, e os mais existem nesta província por ser sua pátria, e estes são os que pela maior parte se ocupam em cultivar as terras com os seus escravos, o que não sucede àquelles, que se 393 empregam em negócio, pois para o mesmo ocupam os escavos que possuem45 Com efeito, nas listas de habitantes os 8 homens brancos de Quilenges viviam de negócio. Miguel Antonio Serrão fez questão de anotar que um deles, Francisco Xavier Alvares de Carvalho, de 48 anos de idade, era sapateiro, mas não usava do ofício, preferia viver de “seu negócio”. Diferentes eram as atividades desempenhadas pelos 17 pardos, pois só 5 eram comerciantes (viviam de seu negócio), 8 viviam de cultivar seus arimos, 3 viviam à sombra de alguém e o restante era escrivão da Provedoria da Fazenda Real. Ao comparar brancos e os demais provavelmente nascidos em Quilenges – por ser sua pátria –, Serrão afirmou que a maior parte dos naturais de Quilenges se dedicavam à agricultura, mas não era o caso dos pardos. Também não era o dos homens pretos, porque 15 dos 33 viviam de cultivar, em geral os seus arimos; 6 viviam de negócio, 10 à sombra de algum parente e 2 eram oficiais mecânicos. Nem somados pretos e pardos se dedicavam, preferencialmente, à agricultura; entre os 50 não-brancos, 23 viviam de cultivar. Assim, o descompasso entre os números e os dizeres de Serrão indicam que os brancos eram descritos com alusões a atividades mercantis, viviam de seu negócio, sem que tal atividade lhes fosse apanágio. Certamente, não nascidos na pátria, iam para o Reino de Angola para comerciar e também procriar. Dos 8 homens brancos, 3 tinham filhos pardos. Com ou sem filhos, a não monopolização de qualquer atividade por grupo de cor foi acompanhada pela ‘posse’ de escravos46 e, suponho, pela agregação de forros. Homens pretos, por serem maioria, concentravam cativos e forros, mas, proporcionalmente, brancos concentravam mais, inclusive suas respectivas médias de escravos e de forros eram maiores, no que eram acompanhados, na seguinte ordem, pelas 3 mulheres pretas, pelos homens pretos, homens pardos e pelas mulheres pardas (quadro 4). Quem mais possuía escravos em Quilenges 45 46 IHGB, DL 32.2. Não cabe aqui adentrar nos significados dos termos escravo, forro e livre na África. 394 era João Vieira de Andrade, homem branco, de 46 anos de idade, solteiro, que vivia de negócio. Quiçá, também comerciava cativos47. Quadro 4 Qualidades de cor, posse de escravos, de gados e agregação de forros (Quilenges, 1798). Escravos Sexo Homens brancos Gado o N % Média N 8 N o o Forros % Média N o % Média 159 24,0 19,9 301 40,0 37,6 178 23,6 22,3 Homens pardos 17 105 15,9 6,2 104 13,8 6,1 91 12,1 5,4 Homens pretos 33 336 Mulher parda Mulher preta Total 50,8 10,2 310 41,2 9,4 422 55,9 12,8 6 10 1,5 1,7 0 0,0 0,0 0 0,0 0,0 3 52 7,9 17,3 37 4,9 12,3 64 8,5 21,3 67 662 100,0 55,2 752 100,0 11,2 755 100,0 11,3 Fonte: IHGB, DL 32.2 Em Balundo, na relação de moradores que o capitão-mor Antonio José Fernandes enviou ao governador de Benguela não consta o vocábulo mulato, só pardo. A especificidade desta província é o uso concomitante dos termos preto, preto escuro e fusco, que, a rigor, seriam semelhantes na cor. Por sua vez, na lista de habitantes de Caconda, assinada pelo alferes Alexandre José Coelho de Souza, também não se usa a palavra mulato, antes pardo, preto e negro. Quase sempre negro era empregado a escravos, ao passo que preto, frequentemente acompanhado dos termos livre ou forro, aludia a livres, tal como a descrição de Luzia: Segue-se mais hum Arimo pertencente a uma preta forra, Luzia de Amaro, com um negro e uma a negra, que lucra o mesmo, dis ter de seu rendimtento onze casangues de milho, e dez de feijão48. No dicionário de Raphael Bluteau, no verbete branco, consta a expressão “homem branco”, que é o “bem nascido, e que até na cor se diferencia dos escravos, que de ordinário são pretos, ou mulatos” (Bluteau, Raphael. Op. cit., p. 183). 48 Fonte: IHGB, DL 32.2 47 395 No Distrito de Dande, não há alusão à outra cor senão à preta. Só se descreveu os sobas e as libatas com seus respectivos escravos (pretos machos e fêmeas), gados, produções agrícolas. Quem assinou a lista foi o tenente de infantaria Antonio Fernandes da Silva, com moléstias. A província do Bihé só usou o termo pardo uma vez. Nas demais, recorreu à palavra mulato. Utilizou a palavra preto e, especificamente, fuscos calçados, mas não fusco descalço. Há pretos descalços. Curiosa foi sua ordenação das cores: brancos, fuscos, mulatos, pretos calçados, pretos descalços, pretos que trabalham por gente forra, pretos, pretos calçados, um preto meio calçado, mulheres pretas descalças casadas com homens com patentes, pretas descalças viúvas e solteiras, pretos descalços solteiros. Depois os herdeiros de Fulanos, os arrimos de Beltrano. Considerações finais A variação do emprego de qualidades de cor nos presídios analisados demonstra que qualquer análise das formas de classificação/ hierarquização de cor em enclaves portugueses e brasileiros na África deve atentar para a polissemia dos significados dos vocábulos de cor e de suas formas de manipulação. As expresões de cor que as medidas pombalinas tentaram combater continuaram, mas com certeza com outros significados. São qualidades locais manifestas em um rico e complexo vocabulário de cores, ladeadas ou não por condições jurídicas, ocupações, gênero, etc. Posse de escravos, de gado, agregação de forros, viver calçado, de negócio, do cultivo de seus arimos, etc, combinados, ou não, e com certeza influenciados pelo tráfico e pela escrivão nas Américas e na própria África, serviram de parâmetros classificatórios. Se em cada presídio, província, paragem, sertão, distrito, capitania, etc. prevaleceu uma maneira de registrar as cores dos habitantes, com critérios que variam, elas quase sempre foram assinaladas, mereceram registro, demonstrando sua importância para a classificação social e dos povos das conquistas. Nesse último aspecto, o sistema trinitário de cor vindo do Reino, conquanto se prestasse aos interesses da Coroa, não foi capaz de dar conta da complexidade das qualidades de cor em cada 396 presídio. Sendo assim, africanos, portugueses, brasileiros, mestiços, pardos, mulatos, pretos, brancos, fuscos, calçados, descalços, lusoafricanos, etc. inventaram, manipularam, com interesses diversos, suas próprias qualidades de cor, suas exóticas denominações. Foi uma época em que o sistema trinitário de cor (branco, preto e pardo/mulato) não se impôs por modelos estatísticos imperiais, de cima para baixo, com fins políticos travestidos de racionais; uma época em que não se racializava a existência humana, tão a gosto de certas análises anacrônicas em voga hoje em dia. 397 San Martín de Porres: um santo mulato no vice-reino do Peru Eliane Garcindo de Sá Universidade do Estado do Rio de Janeiro À guisa de introdução Invocações, patronato: Afro-americanos, Infestação de ratos, Barbeiros, Povos biraciais, Negros, Justiça inter-racial, Justiça social, Cabeleireiros, Povos mestiços, Mulatos, Pobres, Educação pública, Saúde pública, Relações raciais, Harmonia racial, Peru, Juristas. San Martín de Porres El santo mulato nació en Lima en 1579 de padre español y madre panameña. De caballero y mulata nació el santo. Tardó su padre en reconocerlo pero al final asintió, teniendo de todas formas que partir dejando al pequeño al cuidado de su madre. Son misteriosos los caminos del Señor: no fue sino un santo quien lo confirmó en la fe de sus padres. Fue Santo Toribio Mogrovejo, segundo arzobispo de Lima y actual patrono del Episcopado Latinoamericano, quien hizo descender el Espíritu sobre su moreno corazón, corazón que el Señor fue haciendo manso y humilde como el de su Madre. Martín aprendió el oficio de barbero y también algo de medicina. El muchacho era inteligente, y fue tal su amor por los hermanos que no tardó en aprender para poderlos servir mejor. Desde niño sentía predilección por los enfermos y los pobres en quienes reconocía sin duda el rostro sufriente de su Señor. A los quince años la gracia recibida y el ardor por vivir más cerca de Dios en servicio completo a sus hermanos humanos lo impulsó a pedir ser admitido como donado en el convento de los dominicos que había en Lima. Pronto la virtud del moreno dejó de ser un secreto. Su servicio como enfermero se extendía desde sus hermanos dominicos hasta las personas más abandonadas que podía encontrar en la calle. 399 Su humildad fue probada en el dolor de la injuria, incluso de parte de algunos religiosos dominicos. Incomprensión y envidias: camino de contradicciones que fue asemejando al mulato a su Reconciliador. En 1603 le fue concedida la profesión religiosa y pronunció los votos de pobreza, obediencia y castidad. Hombre de gran caridad, unía a su incesante oración las penitencias más duras. Era mucho el amor, eran poco el sueño y la comida, lo sostenía la oración, la infinita Misericórdia de Dios. Es muy probable que haya conocido a Santa Rosa de Lima. El Señor tiene sus caminos, y los tuvo de dolor y alegría para nuestro mulato. Así nos ama el Señor, como a su Madre. La virtud del santo, su intensa vida espiritual, sostenían su entrega, pero sin duda alguna, aquello que más recuerda el pueblo de Lima son sus numerosos milagros. A veces se trataba de curaciones instantáneas, en otras bastaba tan sólo su presencia para que el enfermo desahuciado iniciara un sorprendente y firme proceso de recuperación. Muchos lo vieron entrar y salir de recintos estando las puertas cerradas. Otros lo vieron en dos lugares distintos a un mismo tiempo. Todos, grandes señores y hombres sencillos, no tardaban en recurrir al socorro del santo mulato: «yo te curo, Dios te sana» decía Martín con grande conciencia del inmenso amor del Señor que ha gustado siempre de tocar el corazón de los hombres con manos humanas. Enfermero y hortelano herbolario, Fray Martín cultivaba las plantas medicinales que aliviaban a sus enfermos. Su amor humilde y generoso lo abarcaba todo: su amabilidad con los animales era fruto de su inmenso amor por el Creador de todas las cosas. El pueblo de Lima venera hoy su dulce y sencilla imagen, con su escoba en la mano dando de comer, de un mismo plato, a perro, ratón y gato. Tras una vida de honda respuesta a la gracia de Dios, de intensa y perseverante entrega vividas al calor de la caridad y el sacrificio, ya a los sesenta años de edad, Fray Martín cayó enfermo y supo de inmediato que había llegado la hora de encontrarse con el Señor. El pueblo se conmovió, y mientras en la calle toda Lima lloraba, el mismo virrey fue a verlo a su lecho de muerte para 400 besar la mano de quien decía de sí mismo ser un perro mulato, tal era la veneración que todos le tenían. Poco después, mientras se le rezaba el credo, besando el crucifijo con profunda alegría, el santo partió. Pero esta partida no lo alejó de su pueblo quien esperanzado le reza a diario aguardando su tierna intercesión y agradeciendo sus milagros. Fray Martín de Porres, el mulato «santo de la escoba» fue canonizado el 6 de mayo de 1962 por el Papa Juan XXIII.1 O texto acima se encontra no site da Arquidiocese de Lima, indicado em Advocaciones y santos peruanos. San Martín de Porres é um dos 6 mencionados, entre santos e beatos, de que o Vice-Reino do Peru foi pródigo entre os séculos XVI e XVII. Entre esses, San Martín (1579) e Santa Rosa de Lima (1586), o primeiro beatificado em 1837 e santificado em 1962, e a segunda canonizada já em 1671, são nascidos em Lima. Originária do ViceReino é também a beata Sor Ana de los Angeles Monteagudo, nascida em Arequipa em 1602 e beatificada em 1985. Ao que indicam os períodos de vida assinalados, os santos conviveram, possivelmente na mesma Lima, com exceção da beata Sor Ana. O texto menciona mesmo que San Martín recebe o sacramento da Crisma pelas mãos de Santo Toríbio. Fora batizado pelo padre Juan Antonio Polanco, na Igreja de São Sebastião. São profundas, no entanto, as diferenças entre a construção dessas santidades, assim como as reapropriações e expansão das devoções a esses santos, em distintos momentos e regiões. A construção da santidade de San Martín de Porres, santo mulato, pode se apresentar como um relevante e significativo objeto de análise histórica, não apenas em relação ao perfil hagiográfico do Peru e das Américas, mas enquanto acontecimento que suscita questões de ordem sócio-cultural, relacionadas às temáticas das relações raciais, representações e práticas sociais na complexidade da sociedade colonial. Arzobispado de Lima. San Martín de Porres. Disponível em http://www.arzobispadodelima. org/index.php?option=com_content&view=article&id=42&Itemid=114. Acesso em 27/08/2010. 1 401 As devoções a santos negros, tal como São Elesbão e Santa Ifigênia, estudados por Anderson Oliveira2 no caso brasileiro, remetem, segundo este autor, a contextos de construção de santidades bastante distantes das condições da escravidão experimentadas no período em que San Martín constrói a sua trajetória. Segundo Anderson, São Elesbão e Santa Ifigênia, de origem nobre, vinculam sua santidade a uma África mítica, evocada no imaginário ocidental a realidades bastante distintas daquelas que configuravam a dos negros nas Américas e ao que mais diretamente nos compete, aos negros na Lima Colonial. Outro Santo negro, São Benedito, “O Santo Mouro” (1526 - 1589), nasceu na Sicília, em 1526, e era filho de escravos em uma propriedade próxima de Messina, tendo sido libertado, ainda muito jovem, por seu Senhor. Foi canonizado em 1807 e cognominado «O Santo Mouro», por causa de sua cor negra. Pode-se observar que, também nesse caso, o contexto de inserção tenha produzido uma construção bastante particular da condição negra, que embora tenha sido um fator de manifestação da humildade e resignação do Santo, não constituiu uma referência específica com a condição negra e a escravidão. Isso não interferiu na expansão da devoção de São Benedito como uma devoção negra. O que nos interessa é assinalar a particularidade da construção da santidade de San Martín, no contexto das relações sócio-culturais em que a escravidão negra a as origens de sangue e linhagem constituíam fatores determinantes nas representações sociais. Embora o perfil de uma identidade nacional peruana não incorpore a presença do contingente negro que constituiu significativo contingente populacional para o repovoamento da colonização, é interessante verificar que não são poucos os peruanos que se rejubilam da presença de San Martín, o santo “negro”, no altar nacional. Giuliana Cavallini menciona um encontro que teve com uma senhora peruana em Roma, a qual perguntou se conhecia o então beato San OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra: santos pretos e catequese no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2008. 2 402 Martín. A senhora teria respondido que todos os peruanos conheciam Frei Martín. Também segundo Cavallini, é com ênfase na condição negra que a devoção e Martín de Porres tem se expandido nos Estados Unidos, onde pela capacidade de adaptar-se às necessidades contemporâneas, conquistou os corações dos norte-americanos e “has become a citizen of the United States, without renouncing one iota of his native rights in South America.”3 Nas palavras do Reverendo Martín Stanislaus Gillet, citadas por Cavalli, a canonização de Frei Martín seria um triunfo para toda a Igreja Católica, porque seria mais uma prova de que a caridade transcende as barreiras de raça e classe. Cavallini acrescenta “peacemaker among diverse races: that is what St. Martín is, principally, for the people of North America.” A seguir, comenta uma propaganda em que as palavras “Blessed MartínPeacemaker” compõem um conjunto com uma imagem pintada de Martín, com os braços abertos abraçando dois jovens, um branco e outro “colored”, que estão se dando as mãos.4 Segundo esta autora, a devoção a San Martín, que data principalmente do século XIX, em Washington e alguns estados do sul dos Estados Unidos é recurso precioso para o tratamento da difícil questão racial nesse país, sobretudo, entre negros e brancos. San Martín neutraliza as interpretações marxistas que pregam a animosidade e demonstra a superioridade da resignação e da paz social. Algumas representações de Frei Martín, entre atuais e mais ou menos antigas, apresentam índios compondo as cenas de convívio racial. Essa expansão da representação referente à santidade de Martín de Porres provoca indagações quanto aos sentidos e significados sócioculturais que constituem esta específica “santidade” e suas apropriações em diferentes circunstâncias e, portanto, entre as múltiplas possíveis 3 4 CAVALLINI, Giuliana. St Martin de Porres. EUA: TAN Books ans Publushers, 2000, p. 236. CAVALLINI, Giuliana. Op. cit., p. 236, 237. 403 leituras dos acontecimentos históricos, seja no seu próprio tempo de registro cronológico, seja no longo tempo de sobrevivência e constante reconstrução de tradições e memórias em que pode se inserir. As reflexões aqui apresentadas foram suscitadas, principalmente, pelas seguintes referências provenientes de sistemáticos estudos sobre a mestiçagem como registro cultural na formação das Américas e no processo de mundialização/ocidentalização: 1. As condições sociais de negros e mulatos no universo colonial (bastante distintas das posteriores condições de inserção e de representações sociais dos termos) e a consequente inviabilidade da presença de um negro na Ordem Dominicana; 2. As relevantes e estimulantes observações sobre o universo negro e a escravidão apresentados no texto de Felipe Guaman Poma de Ayala, “Nueva Corónica y Buen Gobierno”; 3. A apropriação de San Martín na conjuntura dos problemas e conflitos raciais nas Américas, com ressalva para penetração dessa devoção nos Estados Unidos, a partir do século XIX. Essas são observações e reflexões preliminares de um projeto de investigação em curso. Remetendo ao contexto e à biografia Jose Ramon Jouve Martíns observa que cinquenta mil, trinta mil, ou milhares de negros, cifras mencionadas por diversas fontes, incluindo os dados de Barnabé Cobo, para o ano de 1639, eram mais que números. Eram representações literárias das proporções que tinha da República, “da harmonia entre seus distintos membros e da percepção destes do ponto de vista do cronista”5. A ojos de los oficiales coloniales, por tanto, Lima había adquirido unas dimensiones monstruosas y se había convertido hacia mediados de siglo en una ciudad fudamentalmente negra, Martíns, Jose Ramon Jouve. Esclavos de la ciudad letrata: esclavitud, escritura y colonialismo en Lima, 1650-1700. Lima: Instituto de estudios Peruanos, 2005, p. 24. 5 404 una impresión que se vio sin duda reforzda por al creacíon de la reducción y pueblo de Indio de Santiago Del Cercado, en que la poblacíon indígena de Lima fue obligada a reasentarse e partir de 15906. Concorre para essa percepção o fato de que a proximidade física entre negros, mulatos e espanhois é intensa, também por força de legislação do Cabildo, que visando o controle dessa população, em 1560 determina: Primeramente que todos los negros y negras horros que hay en la dicha ciudad de los Reyes al presenta o hubiere de aquí en adelante, dentro de ocho días primeros siguientes despues que esta nuestra carta y provisión fuere pregonada, asiente con amos españoles, no siendo las dichas negras casadas con españoles, so pena de destierro perpetuo de los dichos nuestros Reinos del Perú, y que no puedan tener, ni tengan casas propias suyas para dormir ni residir en ellas, antes duerman y residan de noche y de día en casa de los dichos amos con quien asenten…7 Ressalte-se que a população negra em Lima, de acordo com o censo realizado por Juan Canelas Albarrán em 1585 estimada em 4000 negros e mulatos indicava um percentual de 25% de livres. Em 1700, entre 10260 negros e mulatos cerca de 30% (3120) eram considerados livres.8 Deve-se ainda observar que a população negra não dispunha de ordenamento jurídico-político similar ao que representava a republica de índios. As autoridades eclesiásticas criaram disposições que visavam garantir e regular a vida religiosa dos escravos, sobretudo na população Idem. KONETSKE, Richard (ed.) Colección de documentos para la Historia Social de Hispanoamérica. 5 vols. Madri: CSIC, 1958. Apud MARTIN, Jose Ramon Jouve. Esclavos de la ciudad letrada: esclavitud, escritura y colonialismo en Lima, 1650-1700. Lima: Instituto de estudios Peruanos, 2005, p. 33. 6 7 8 Martíns, Jose Ramon Jouve. Op. cit., p.41. 405 p 59 10 406 . A Igreja. para resguardar sua influência. diante das duras penalizações que sofriam. assim como a procura das instituições religiosas para refúgio.. criadas pelos jesuítas10. entre outros motivos. por parte de negros.. onde os proprietários mais se eximiam da educação religiosa e estavam amparadas pela legislação civil: Y aquello en que sus amos les imponen eso como vemos muchos negros. mulatos e zambos. Op. que retiraram o referido Juan da catedral: mando se notifique a los señores de la sala del crimen de la real audiencia de esta dicha ciudad que dentro de veintecuatro horas siguientes a la dicha notificación vuelvan y restituyan. a la dicha santa iglesia o a otro lugar sagrado de 9 Konetske. manden volver y restituir. Martíns Jouve assinala que. Martíns. p. Uma consequência dessa situação era a busca da Igreja. incurra en pena…9 No contexto urbano a prática religiosa era mais regulada e em Lima assinala-se a presença de congregações de negros. 58-59. cit. siendo impuestos ser muy Buenos cristianos y muy devotos y virtuoso y amigos de toda razón: y si se la probare haber tenido descuido en esto y que se le ha pasado el dicho término y no ha procurado hacer lo que ansí arriba se declara.rural. Richard (ed). os escravos recorreram aos tribunais e. quando injustamente acusados de crimes pelas autoridades coloniais. sobretudo aos tribunais eclesiásticos. a Igreja foi uma das principais proprietárias de escravos e muitos pequenos proprietários de escravos eram presbíteros ou outras pessoas associadas à Igreja. contava com suas próprias cortes e preservava-se do poder civil. administrando-lhes a excomunhão e expondo seus nomes publicamente. como se pode observar no caso de Juan Moreno. 1958. Op. Jose Ramon Jouve. A posição da Igreja podia ser bastante dura com as autoridades coloniais e com os proprietários de escravos. cit. incluindo livres. porque. em que a Arquidiocese enfrenta os ministros da justiça. y celosos sacerdotes. previstas em ordenanzas. mulato. ou enforcamento “hasta que mueran naturalmente”12. 407 . en aquella época en que la religion cristiana.los desta corte al dicho Juan Moreno. A la verdad. desde que rayó en ella la luz del Evangelio. mulato. Jose Ramon Jouve. varones sábios y santos. é indemnizarse con ventajas de sus lamentables pérdidas. en virtud de santa obediencia y so pena de excomunión mayor late sentencia canonica pronitione premisa ypsofato yncurrenda [. sano libre. cit. reincidências. voló al nuevo mundo para reinar en él sin inquietudes. 103. despues de haberse conservado por mucho siglos sin mancilla en casi todo el continente de la Europa. que indicavam para os casos de desobediência grave. afrenta ni tortura alguna para que goce de la dicha imunidad o dentro del término los dichos señores den razón porqué no deban hacer y en el interin y hasta que esta causa de sustentación fenece y acaba por todos los grados.. viéndose desechada y perseguida en varias naciones setentrionales.. que. en los claustros y fuera de ellos. 9.]11 As condições da vida urbana de negros e escravos eram duras e restritivas e as penalidades rigorosas. cit. Uma outra dimensão da cidade de Lima parece conviver com a estranheza apontada pela sua feição negra: Lima. p. 2005. Causas criminales. sobretudo fugas e contatos com cimarrones. tuvieron el consuelo de ver enarbolado en estas regiones el estandarte de 11 12 AAL. se admiraron como dechados de la mas sublime perfeccion. que probablemente serán canonizados con el tiempo. Op. Mucho se complace Dios en Lima. 13. instancias y sentencias. Op. Metrópoli del Perú. ha sido justamente mas célebre por su piedad que por su opulencia. Aun no se habían pasado muchos anos después de la conquista . sin lesión. pues à un mismo tiempo se hallaban en ella tres grandes santos y muchísimos siervos de Dios. Apud MARTIN. y ya florecian en su privilegiado suelo innumerables personas de uno y otro sexo. 5r-v. Martíns. p 165. decía un francés historiador de América. no obren ni procedan contra el dicho Juan Moreno... en cuyas empinadas copas se elevan hasta el cielo. cuyos nombres. é um mulato livre. Vida admirable del Bienaventurado Fray Martín de Porres. Pero es indudable que en ninguna parte del Perú. tan sazonados frutos de perfeccion y santidad. como en Lima. mulata e zamba se apresenta ameaçadora. derramada por sus obreros apostólicos. que Martín de Porres se constituirá como um santo. negros. filho de um espanhol que chegou a ser governador do Panamá e de uma negra forra. segundo os mesmos relatos. p. que vivieron y murieron en olor de santidad. 13-14. cuya historia se perpetúa en las crónicas de sus respectivas religiones. A mas de esos admirables varones.13 É nesse contexto de conflitos e contradições. ó trepando montañas nevadas y escabrosas por convertir à los infieles. índios. autoridades civis e eclesiásticas. volaban à esta parte de América. 13 408 . A postulação de sua santificação foi quase que imediata à sua morte. forros. VALDEZ. Lima: Huerta y Cia Impressores. em que a população negra. en el libro de la vida. Su ejemplar vida y ardiente caridad pobló conventos de uno a otro sexo de muchos centenares. desconocidos ú olvidados. segundo os testemunhos. ó sepultándose en los desiertos. al modo que multitud de hombres sedientos de oro y la plata.Editores. sob cujos cuidados Martín esteve vinculado muito mais intensamente do que aos do pai. pobres. 1863. escondiéndose en el retiro de sus casas. se verán algún dia escritos por el dedo del Eterno con caracteres de luz. dio la semilla evangélica. San Martín.la cruz. nunca foi uma presença constante na vida de Martín. con mas ardor abandonaban su país natal los que. Y. que inicialmente o renega e. mas também alvo da evangelização. sempre reafirmados. surcaban el océano. Jose Manuel. y que à su vista se precipitase en el abismo la infame idolatría. mulatos. oculta en los minerales. se santificaron otros muchos. acosados de la sed de justicia. reconhecido em vida por todos os grupos sociais da cidade. embora tenha se efetivado apenas no século XX. em detrimento dos serviços do mestre. sobretudo. em italiano “I Fioretti Del Beato Martíno”. Em 1594. era justo que ella recogiese sus primeros frutos. ex-Prior do Convento do Rosário e ex-Provincial da Província de São Batista do Peru. Para tanto. na prática da profissão. escrito no século XIX. e publicadas em um fólio impresso em Roma em 1721. como opina el padre Melendez en su obra titulada Tesoros verdaderos de las Indias. sobretudo com relação às ações de cura. já citada.14 Esta explicação é encontrada no texto de Valdez. A demanda é de “una historia fiel de la vida admirable de este heroe limeño”15. Idem. bien porque habiendo sido la primera que derramo la semilla Del evangelio en el Perú. foi ser aprendiz de barbeiro. Valdez recorreu à leitura da vida do Beato impressa em Lima e na Europa e. professa os votos como irmão da Ordem. Valdez atribui a escolha da ordem dominicana a uma inspiração da Virgem. em 1835. bien sea porque ninguna outra rinde tanto culto. 14 15 Idem. diante da proximidade da beatificação de Frei Martín. á lo menos en Lima la predilecta de Maria. quando. juridicamente. sendo muito requisitado. 25. como donado e. destacou-se no aprendizado e.. em distintas épocas até 1686. 409 . sobretudo.Convivendo diretamente com a população dessa Lima negra. Martín seguiu o destino a que o conduzia sua origem materna e sua condição de mulato. ingressa no Convento de Santo Domingo. pues desde muy de mañana hasta las nueve de la noche concurre el pueblo á rezar el rosário. No puede dudarse de que la religion dominicana es. p. publicada pela primeira vez. em 1603. 5. por solicitação do Padre Balaguer y Cubillas. à coleção de todas as informações tomadas.. Essa argumentação sobre a primazia da ordem dominicana aparece na Biografia de San Martín de Giuliana Cavallini. às vezes. ainda segundo os testemunhos. Doutor e teólogo da Universidade de São Marcos. p. y poco versados en los caminos de Dios. para acreditar la grandeza de su fé y de su esperanza. el consuelo que inspiraba á los atribulados. Porque. aunque fuese á costa de su vida. 4. Procuraba 16 CAVALLINI. O então Frei Martín se devota a uma intensa vida religiosa e cuidados com doentes e pobres. 410 . como esta se dirige al bien eterno y temporal de todos los hombres. e reconhecida e apresentada na edição de 2002. a Universidade de São Marcos e a primeira santa. no solo instruía en la fé y en la moral evangélica á los párvulos. las instrucciones que daba este siervo de Dios á los ignorantes. Impõe-se uma rígida disciplina de orações. Giuliana. Asi es que los hechos referidos anteriormente. Salienta que outras ordens seguiram os dominicanos. mas reitera que a Divina Providência reservaria para o primeiro missionário os mais finos frutos.posteriormente traduzida para o inglês. Observam-se as virtudes exaltadas em San Martín: Mas. p. cuja entrada na ordem parece ter sido resultado de um convite de Frei Juan Lorezana. Santa Rosa de Lima. para radicarlos en su fé. confirman el ardiente amor de fray Martín por el bien espiritual de sus prójmos. sus vivos deseos de propagar la Religion Católica en las naciones paganas. cit. y principalmente con los novicios. Op. A autora salienta que foram os dominicanos os primeiros a pregar o evangelho para os incas e partilhar os perigos da conquista com Pizarro. Pero. su eficaz celo por convertir á los pecadores. A busca de vocações pode ser observada no caso de Martín. hacia lo mismo con los religiosos tibios. prueban también su heroica caridad. Observa ainda que o primeiro bispo da região foi um dominicano. como uma biografia oficial de San Martín. jejuns e autoflagelação.. y sus fervorosas preces y cruentas mortificaciones por la salvacion de todos los redimidos. no obstante su disimulo.as necesidades agenas hacian traicion á su humildad. o primeiro centro cultural.16 Pode-se considerar que a ordem dominicana tivesse uma atuação intensa. á los indígenas y negros. Jose Manuel. porque enseñaba mas con e ejemplo que con las palabras. 44-45. fue el bienaventurado Porres humilde de corazón. 1863. se reputaba el peor de los nacidos. acreditaban que el espíritu de Dios las inspiraba. cit. ó si no le proporcionaba sitio para la disciplina. diciéndose al tiempo de castigarse: ”Perro mulato”. que naciste para esclavo de estos 17 Valdez. Conforme á este divino modelo. vosotros que sois espirituales. Por lo cual eran tan fructuoso sus consejos. y que renunciasen su vocación los que aun no se habían consagrado á Dios con los votos religiosos. dulzura y modestia. según aconseja San Pablo en sus Epistola á los Gálatas pro estas palabras: Hermanos. modestia y los efectos que estas producían en sus corazones. Y cuando se veía honrado de algunas personas. distinguidas por su clase ó dignidad. Humildade que pode desviar-se para a resignação com a humilhação. p. y considérate a ti mismo. y amó la humillación hasta la muerte. Op. Exhortaba con mucha suavidad. y no perdió ocasión de humillarse.. y se disciplinaba fuertemente. No disgustaba ni á los seglares ni a los religiosos el ser reprendidos por un pobre donado. y porque su humildad. que les impidiese de adquirir la perfeccion á que los obligaba su estado. no seas también tentado. Sin embargo de haber conservado la gracia bautismal. que convertían á muchos pecadores y fervorizaban á los tibios y disipados. se abofeteaba con dureza. amonestadle con espíritu de mansedumbre. corria al lugar mas oculto. ¿Cuánto mereciste? No seas soberbio: pues bien conoces que eres un perro. recibiendo las injurias y oprobios como beneficios. y de affliccion y congoja á los que le alababan. sin mision ni letras. é indigno del hábito humilde que llevaba. dando claras muestras de amor y gratitud á los que lo abatían. si alguno como hombre fuere sorprendido en algún delito. 411 . […]17 A humildade é uma forte referência na representação da santidade de Martín.que los profesos no pusiesen ni el menor obstáculo voluntario. corria prontamente al convento para barrer y asear los sitios mas asquerosos. que. se sentaba en el suelo. Jamás tomó asiento en la celda de ningún religioso. lo honraban y servias los criados de esta señor. p. solo pro Misericórdia de Dios. 412 . diciéndole un religioso corista que de su valimento con’dicho señor Arzobispo esperaba que se de dispensase la edad para ser ordenado. le contestó el siervo do Dios:“hermano: bien sabe que yo no merezco el que nadie me estime y aprecie. para llamarse mulato. que no era personal. A expressão perro mulato parece ter origem em mais uma das historietas sobre Martín.señores. Solo por su mucha bondad puede el señor Arzobispo admitirme en su palacio. Ao tempo em que exercia as funções de barbeiro estaria cortando o cabelo de um estudante. En los días que visitaba por orden de su prelado al señor Arzobispo de Méjico. como uno de sus criados” De este modo se conservaba siempre humillado y 18 Idem. Asi es que no debo ocuparme de nada. y recelando que pudiese recomendarle civilmente el que su padre fuese un ilustre personaje. solo se decía hilo de una negra esclava. á fin de que lo tuviesen por el mas despreciable ente dos de su clase. pueden sufrirte tantos religiosos santos18. Asi es que. con el epíteto de perro. les contestaba que él era mas ruin que todos los esclavos. y diciéndole algunos que ese oficio pertenecía á los esclavos del convento. y cuando le instaban que lo tomara. sino solo servirle en cuanto me mande. y mis costumbres tan estragadas. Essa expressão passa a fazer parte de vários relatos em que se assinala a humildade manifestada pela humilhação de Martín. sempre bem recebida por ele. Como en aquellos tiempos se vituperaba commumente á los que no tenían blanco el color de la piel. siendo mi nacimiento tan vil. supo aprovecharse de este defecto. y que. Barria los claustros y limpiaba los lugares inmundos. irritado com o sorriso de Martín. y temiendo envanecerse con esas distinciones. aunque ya fuese liberta. o teria agredido verbalmente. 90. chamando-o de perro mulato e hipócrita. y vendiéndome se socorrerá. y con la lenidad de vuesa paternidad. diciendóle. no se aflija vuesa paternitad por la urgente necesidad del convento. le reputaban los mas un religioso ejemplar.” […] Faltándole en una ocasion dinero al prior para el socorro de la enfermería. Yo soy esclavo de la religión. reservaban en su interior ese piadoso concepto: por lo cual no es extraño que padeciese en el convento muchas vejaciones. Supolo fray Martín. le respetaban.abatido. 413 . […] Insultóle un religioso sin motivo. sino en un presidio. como enfermero y religioso. p. resolvío solicitar entre los comerciantes quienes le diesen la fiado lo que necesitaba. me enseñe a vivir bien. y buscando al prelado. “perro mulato. y derramando lágrimas le dijo: “Vuelvete fray Martín. le dijo que “mucha mayor pena merecía por sus iniquidades. otros un hipócrita. Es tan pequeño mi servicio. si logro un amo.” Postróse á sus pies el siervo de Dios. de las cuales apuntaré algunas. sino que tal vez me proporcionará mayor bien. tú no debias estar en el convento. le habló de esta manera:“Padre prior. que alcanzó la gloria de ser perfecto humilde. que tratándome como merezco. y besándoselos con el semblante alegre. Y no solo será remediado el convento con el dinero que reciba por mi venta. 19 Idem. porque necesitamos de tu servicio. Hasta que Dios se dignó manifestar parte de los dones sobrenaturales con que había enriquecido su alma. Y como muchos años se notase en él fidelidad. fue tal su prudente cautela. que no compensa lo que gravo á la comunidad en alimentos y demás auxilios. conversando del mismo modo con los que conociendo su sólida piedad. 91. ya Dios remedió la necesitad”19. y si algunos traslucían algo de su eminente virtud.” Enternecióse el prior. y viviendo en su convento grande entre una numerosa comunidad. entretanto. A consagração da santidade de Martín em Lima e no âmbito da Monarquia. Giuliana. da Igreja do Rosário para a cripta em que foi inicialmente enterrado o arcebispo da cidade do México. após a transferência solene do corpo de Martín. uma das testemunhas diante da Comissão do Apostolado para recolhimento de dados visando a beatificação de Martín. cit. está constituída. Estas quase sempre escritas por dominicanos ou pessoas ligadas à Ordem. sejam próximas à sua própria vida. Felipe IV escreve ao Papa e envia um embaixador. 107. marcadas pelos períodos de beatificação e canonização ou as várias versões mais recentemente publicadas. a mais importante delas foi escrita por frei Bernardo de Medina. Nova Iorque: Orbis Books. como os relatos acima. Essa vida exemplar é narrada através de “pequenas histórias”. 1995. Em 4 de novembro de 1639. onde se registram biografias em Valencia 1647 e Roma 1658. p. Feliciano de la Vega declara: “This is the way Saints should be honored”21. Martín de Porres. Essa morte foi seguida de manifestações e ampla mobilização para o reconhecimento oficial da Igreja. p 211. 414 . como observa Valdez. nos séculos XX e XXI. embora iniciados ainda no século XVII. publicada em 1673 em Lima e em 1675 em Madri. Os processos de beatificação e canonização de Martín de Porres. só levaram o santo ao altar em 1962. Ainda em 1659. um solene encomium no Capítulo provincial é pronunciado e sua vida de santidade é proclamada não só na América como na Europa. St. pelo exemplo. Luis Guzmán Ponce de Leon. acompanhada por todas as autoridades de Lima. que compõem os testemunhos do processo de sua beatificação e canonização e são parte substancial das várias biografias de Martín. OP.A trajetória de Martín de Porres na construção de sua vida. Alex. enquanto santo. Op. não esperou nem pela sua morte. principalmente nos Estados Unidos. para apresentar as razões 20 21 GARCÌA-RIVERA. Dois anos após sua morte. Cavallini. Segundo García-Rivera20.. Brother Martín de Porres. Tierra Firme and Chile… Doctor Joseph de Lara Galán left the palace of the archbishop. accompanied by me. the Council of our Lord King. o rei volta a solicitar a causa. Prior of the monastery of Our Lady of the Rosary of this city and Vicar Provincial of this Province of St. John the Baptist of Peru of the Order of Preachers. do Vice-reinado e da Coroa. The Viceroy. Governor. Embora muito cedo se possa observar em registro oficial a relação entre a santidade de Martín com o contingente mulato. Transcrevemos abaixo esse registro. uma vez que contém informações relevantes para a linha de argumentação que buscamos seguir: “By order of the most illustrious and most reverend Melchior Lignan y Cisnero. all manifesting the joy they felt at seeing the day arrive on which the work the cause of the beatification and canonization of the Venerable Servant of God. knights of the said city. das autoridades eclesiásticas e civis de Lima. by the Very Reverend Fathers of the same Order. by the Very Reverend Father Gaspar de Saldaña. our Lord Archbishop of Lima. Em 1661. and Captain General of the Kingdom and Provinces of Peru. em 1678. the present public and apostolic notary. em significativa menção transcrita no processo.para beatificação do irmão Martín de Porres da ordem de São Domingos. and accompanied by many secular priests. O que se pode observar é que o reconhecimento tornou-se um objetivo da Ordem. and by all members of the ecclesiastical tribunal. embora na sua versão para o inglês. and by great part of the people commonly called in America pardos (mulattoes). all clad in festal clothing. And from the said palace of 415 . was to begin by apostolic authority…. argumentando que a exaltação das virtudes de Martín significaria um estímulo para a divulgação da fé na Província do Peru. pelo notário Pedro Del Arco é preciso cuidado ao tratar de elementos de identificação entre os diferentes componentes étnicos dessa população. priests and layman. Brother Martín de Porres. no artigo “Santificação: o religioso e o político no processo de Canonização da rainha Santa Isabel”. Já se observou que o Vice-Reino do Peru foi pródigo na produção de santos no período colonial. incluindo os nascidos na sede do ViceReino. trumpets and other similar instruments to bring attention of the said city the apostolic letters ordering that the apostolic authorities should be informed of the life. and from there they passes through many and principal streets of the same city. Santificação: o religioso e o político no processo de canonização da Rainha Isabel de Portugal. n. que mencionava o Papa a Felipe IV. GIMENEZ. Jose Carlos Gimenez23. Ano 1. and many of the streets where the procession passed were covered with fragrant herbs and flowers…”22 O registro aponta a repercussão do início do processo de reconhecimento oficial da santidade de Frei Martín. and every section there was a crier. para a consolidação política do reino. p. proceeding the said passage with drums and cornets. and at the crossing of the said was a crier. p. o Papa Urbano VII. Revista Brasileira de História das Religiões. na tramitação da referida santificação. evidencia a iniciativa da Ordem e das autoridades eclesiásticas e civis nas condições das relações da monarquia católica. virtues.… And the number of men and women of all stations and qualities gathered in the streets was greatest I have ever seen in my life in this city. 76-83. death and miracles of the Venerable Servant of God. mas articuladas pelas estruturas complementares. rico. após fazer referência às riquezas e tesouros do Peru falava da importância do reino espanhol para a Igreja e incentivava a canonização de Isabel. aquelas que garantiam a expansão da cristandade. em mais e melhores tesouros do que aqueles materiais. José Carlos.archbishop they passed before the royal palace and from there to the house of the governor and ruler of the said city. 18-19. observa que. Idem. portanto. Maringá. 22 23 416 . 1. nem sempre despidas de conflito. em correspondência a Felipe IV. mulato. O outro lado da moeda é a legitimação e a legitimidade da conquista. negra. Jouve Martins observa que apesar das limitações os negros. Nessa descrição recebeu especial menção a presença e participação dos mulatos. Ainda é Jouve Martins que atenta para expressiva presença de negros e mulatos na vida das ordens religiosas como membros dos mais baixos postos e salienta a diferença entre o caso de São Martín e de 24 MARTIN. cit. assim como sentimentos de pertencimento. O notário registra criteriosamente os presentes. 417 . parda. O júbilo da população é uma expressão da sociedade forjada no projeto de expansão da fé. entretanto. em grande parte pela constituição de santidades. as táticas desenvolvidas como mediações e possibilidades de inserção social. Não parecem. referendada pelo Patronato. São muitos e variados os interstícios da sociedade colonial para o ajustamento das hierarquias. como se vê.Essa relação entre a expansão da fé e da cristandade passava. mulatos e zambos. A expansão da monarquia católica. encontraram na cultura notarial e nas cortes coloniais uma forma de tentar negociar sua situação dentro de uma sociedade que lhes relegava a uma posição subordinada. pode mostrar os frutos de sua atuação. que se constrói como ação evangelizadora. Op. serem rígidas. por parte da gente comum. papéis e funções discriminadas.24 Podemos considerar que a vida religiosa também constituiu espaço para negociação. mas variáveis. p. o que reforçaria não só os exemplos. manifestando a sua alegria pelo encaminhamento da causa da beatificação e canonização de Martín. mulata mestiça. As formas de inserção na sociedade supõem soluções individuais.. como parece sinalizar a manifestação dos mulatos relatada por Pedro del Arco. 186. Jose Ramon Jouve. mas atestava a vitória e a eficácia da ação da Igreja. A inserção desse registro estabelece uma relação evidente entre a causa de Martín e a maior parte do povo comumente chamado pardo. perceptível nas narrações das pequenas histórias que se referem às relações de Martín com os animais. 67. Esse tratamento mereceu. na segunda metade do sáculo XVII25. Valdez. Seus atos e hábitos conferiam-lhe particularidade. 69. p. relevante menção. O reconhecido grau de educação e domínio. portanto. 68. y medios extraordinários de socorrerlos”. item “Su compasion de los animales. já citada. os esforços de buscar a solidão tornavam-no cada vez mais visível. dedicado às “Virtudes heróicas de fray Martín”. Segundo os relatos. pela experimentação dos degraus e serviços considerados mais baixos no convento. A trajetória de Frei Martín está marcada pela forma de inserção predominante. essa questão compõe o terceiro capítulo. eran efluvios de su caridad con la que glorificaba al Señor. ya resucitando a uno. 418 . ya curando a otros.outro mulato. o desejo de passar despercebido. Francisco de Santa Fé. item II “Su heróica Caridad”. se deben descubrir 25 Idem. inclusive da língua latina. É precisamente pela humildade e dedicação com que os exerce que se constitui numa exceção e atrai sobre si a atenção cada vez mais ampliada da sociedade. Na história de Martín escrita por Valdez. foram os recursos que permitiram à Santa Fé uma inserção incomum. Manuel Antonio Urismendi. ya sustentando a muchos reunidos contra su antipatía natural. enfrenta a questão cuidadosamente. Este último enfrentou diretamente as regras solicitando ser aceito como sacerdote e ser dispensado do “defeito dos naturais”. Entre as narrativas privilegiadas na biografia de Martín destacase ainda a sua relação com os animais. da parte do censor da obra. por lo tanto. resgatando fundamentos bíblicos e teológicos para discutir o tema. indicando o tema: A esta manera los estupendos prodigios obrados por el bienaventurado fray Martín com varias especies de animales. y. Essa virtude de San Martín parece ter sido muito observada entre os testemunhos e ter provocado sempre algum estranhamento. como lo aconsejaba en arcángel: opera autem Dei revelare ed confiteri honorificumest26. que. antonymic. Animal symbols represent the antinomies 26 Valdez. As core symbols. immoral and moral. os testemunhos e permanecem como o cerne da divulgação da devoção de Martín de Porres. used simultaneously to capture and display many different images and meanings at many different levels. mundane and divine. cit. Jose Manuel. They are symbols of core values and categories. quando o próprio Martín se auto referencia aceitando o epíteto de “cachorro mulato”. they also serve to link other domains of symbolic discourse. p. As core symbols.. natural and cultural. wild and civilized.y propalar entre los hombres. levam à superação do debate teológico de Valladolid. se lidas pela semiótica cultural proposta como caminho teórico metodológico. they are multivalent complex. animals provide the basis for many other dialectic aspects of human thought and may represent categories of sacred and profane. sobretudo de cachorros. ainda segundo o autor. deve ser encaminhada diante das seguintes considerações: “Wherever they appear. […] Para Alex García-Rivera as pequenas histórias que sustentaram. animal symbols are used to convey the deepest and most abstruse dimensions of human existence. 419 . inchoate and formed. em essência. creating juxtapositions and contrasts of images from which people derive meaning and from which they generate narrative forms… Animal symbols are often used to express the fundamental ideas of selfness and otherness that lie at the basis of moral and religious thought.4. representations of the most fundamental ideas and images of a culture. em grande parte. García-Rivera propõe uma interpretação de caráter teológico em que a presença dos animais nas histórias de Martín. material and essential. In being both similar to humans in some ways and dissimilar in others. era a busca para uma nova categoria do ser humano. Op. St. Apud GARCÌA-RIVERA.” Así se verificó. y no permitiendo que lo matasen. y que se retiren á la huerta á donde yo les llevaré diariamente el sustento que necesiten. no se les hubieran comido los ratones. já desde os primeiros testemunhos da vida de Martín.27 As conclusões teológicas a que chega García-Rivera merecem ainda esforços de compreensão histórica e sem dúvida seu texto aporta importantes contribuições. Vol I. ni haber hecho daño en ella. a quien habia acogido fray Martín em su celda. sin que en adelante se hubiese visto ninguno en la ropería. que como já mencionamos é reiteradamente salientada. pusieron al fin trampa. 27 420 . le dio libertad diciéndole: “ vaya hermano. Os relatos que escolhemos se diferenciam pelo teor da ação. Stanley. vamos enfatizar duas situações específicas. Vióle fray Martín. con asombro de los religiosos. le dijo. y veian salir á los ratones luego que fray Martín entraba á ella con la comida que les llevaba. Nova Iorque: Orbis Books. que si las hubiera guardado bien. Alex.of living. y diga á sus compañeros. the immoral in the moral. No lo permitió el siervo de Dios luego que lo supo. aproveitando o caminho aberto em relação à questão. Ed Mircea Eliade. New York: Macmillan. que iban á la huerta. 62. the wild in the civilized. Muitas das pequenas histórias de Martín com relação aos animais relatam situações de cuidados. “Animals” in The Encyclopedia of Religion. dizem respeito ao poder de Martín para controlar o comportamento destes animais: Quiso um pobre. Mas. p. Walens. como esos animalillos royesen también la ropa de la enfermería. Martín de Porres. Thus. poner trampas á los ratones. 291-6. que no hagan ningún daño. Aqui. 1995. y atribuyendo á descuido del pobre el daño en las medias. porque le habian roído sus medias. y cayó en ella un ratoncito. the existence of the sacred in the profane. people are able to use animal symbols to create analogies that can be extended to relationships of humans to divine. cura e até mesmo ressurreição. fray Martín. índios. ordenándoles que no riñeran. mestizos. y que comieran juntas en el plato que les llevaría. me parece que necesita alimento. nas condições de complexas referências culturais. cuando comían pacíficamente los dos animales el sustento que les había llevado el siervo de Dios. que no se le hará ningún daño. para atender às observações de Stanley Walens. negros. Temos a perspectiva da relação direta de Frei Martín com os animais. Llegaron á este tiempo algunos religiosos. brancos mulatos.” y al mismo tiempo mandó á la perra y á la gata. y dejándole comer los otros dos en un mismo plato sin alteración alguna. Que significava para Frei Martín o convívio com os animais? Uma proximidade que causava estranhamento entre os que conviviam com o frei? Que significava para os que conviviam com Frei Martín esse contato tão próximo com os animais? Que tipo de ação e relação se estabelece entre Frei Martín e os animais e entre os demais atores sociais? Ainda seria necessário registrar o significado simbólico dos animais. por el temor que le inspiraban sus dos mortales enemigos. y en uno de los días. p. Obedeciéronle.Habiendo partido á un tiempo una perrita y una gata. á pesar de su apetito. y otra prueba clara de la santidad de fray Martín28. Compadecido. Jose Manuel. pobres.65. entretanto: Frei Martín estabelece com os animais uma relação próxima e dedica-lhes o mesmo amor e cuidado que aos humanos. 421 . las colocó fray Martín en un sótono de convento. Op. que dejasen comer en el plato al raton sin hacerle mal.. hablóle en estos términos: “hermano ratoncito. divertidos y admirados. abastados. reparó este que un ratoncillo se asomaba por un agujero sin atreverse á salir. Essa “igualdade 28 Valdez. los que. Algumas ponderações podem ser adiantadas. cit. Temos muitas possibilidades de enfrentar a questão. venga sin recelo. Obedeciéronle los tres. tuvieron un rato de entretenimiento. saliendo el uno del agujero. irmão leigo. E como? Com a mesma atitude de amor e cuidado que apresenta com os homens. um mulato. mestiço relegado pelo pai espanhol. respeitando e não disputando o lugar do outro. onde convivem brancos. circulando entre os homens e os animais. como tantos. como as narrações apontam. Assim a convivência pacífica é assegurada. O mulato. No recolhimento do convento dominicano esse mulato não encontrou apenas a possibilidade de inserção e conforto espiritual e emocional na conflituosa sociedade mestiça hierarquizada por origem de sangue. nascido da estirpe do colonizador e da negra liberta da escravidão que trouxe para as índias uma gente que veio para servir aos espanhois. a quem parece destinado um ofício e um lugar sem prestígio na sociedade constrói nas suas próprias e particulares condições uma versão de legitimidade da conquista cultural e religiosa que sustenta o projeto político da monarquia espanhola. referência fulcral na dinâmica da expansão evangelizadora. na cidade de Lima. realiza-se o projeto da Cristandade: manifesta-se a graça divina através de um homem santo.de tratamento” parece ser o cerne de um estranhamento que faz de Martín um diferente. Frei Martín não reivindica um lugar diferente daquele que lhe é atribuído naquela sociedade para atuar de acordo com o modelo de virtude na vida religiosa e se esmera na busca do modelo. O ponto de partida parece ser a aceitação das diferenças naturalizadas das posições e o amor e a dedicação não condicionada às diferenças. cada um no seu próprio lugar. da Ordem Dominicana. da atuação da Igreja. o que é extraordinário. como assinalou o Inca Garcilaso de la Vega. tantos outros. Mais uma vez os argumentos de que se utiliza são da aceitação da ordem da diferença. Construiu um espaço de visibilidade para si mesmo e para 422 . índios. mulatos e mestizos. todos os tipos de castas. Nos domínios conquistados aos idólatras. mas ainda é capaz de controlá-los. negros. Martín atua com reconhecimento das posições definidas. Não somente atende aos animais e assim se diferencia. Nas apropriações contemporâneas das devoções a São Martín. nem seria possível se apresentar nas condições da sociedade colonial. que certamente Frei Martín não se colocou. de Cavallini. o gato e o rato. os braços abertos abraçando dois jovens. por decreto. publicado pela Paulist Press de Nova York. A santidade de Martín não cessa de se (re)construir. um branco e outro “colored”. Observe-se que várias publicações recentes enfatizam que San Martín de Porres é um santo de nossos dias: “Martín de Porres: A Saint of our Time” é o título de um texto de Joan Monahan.”29 “Blessed Martín-Peacemaker” pode ser uma versão das representações recorrentes de Frei Martín junto aos animais que se alimentam no mesmo prato: o cachorro. patrono mundial da causa da justiça social. A nova iconografia construída para São Martín. 4. em 2003. nesse contexto contemporâneo. na ocasião de sua canonização. p. que estão se dando as mãos é uma nova possibilidade de leitura da construção histórica da santidade de Frei Martín. A anteriormente citada representação de San Martín ‒ “Blessed Martín-Peacemaker” – composta por um conjunto de uma imagem pintada de Martín. igualmente já citado.essas complexas relações de múltiplas representações e leituras. Estamos longe e perto da sociedade colonial. conforme expressa o texto. o papa João XXIII o torna. A procissão descrita por del Arco estava composta por personagens que certamente não construíram uma leitura única do acontecimento que festejavam. atribui-se-lhe um protagonismo de pacificador entre as raças. ainda menos com a feição que se institui quando.. se explica quando nos remetemos aos comentários de censor Manuel Antonio Arismendi sobre a convivência pacifica dos animais sob a guarda do Frei – “ya sustentando a muchos reunidos contra su antipatia natural. Está relacionada com a capacidade que o santo demonstra de se adaptar aos tempos atuais.. 29 Idem. 423 . . brancos. 30 425 . as diversas camadas sociais. em 1745. culminando com uma procissão. Transportando a Ásia para Pernambuco. Em torno do santo.31 A devoção a um santo mestiço inspira e provoca a reflexão sobre a condição da população do Brasil no século XVIII. revela uma sociedade em transição. Serge. Os Homens Pardos do Recife veem seus rostos. uma série de eventos “acadêmicos”. No ano de 1745. religam o Brasil à Ásia através da figura do franciscano mestiço martirizado no Japão em 1597. São Gonçalo Garcia: um culto frustrado. mas duvidam que eles possam representar a comunidade mulata por duvidarem da qualidade mestiça da estátua que lhes é apresentada. o complexo processo de mestiçagem pode ser apreendido pela “colonização do imaginário”.30 A que surge no Recife. Rachel Caldas. Segundo Serge Gruzinski. 1986. La colonisation de l’imaginaire. 1988. A que se estabelece no Recife antecede. A pesquisa sobre esta devoção mestiça nos permitirá abrir novas abordagens sobre a compreensão da formação da sociedade brasileira. Sociétés indigènes et occidentalisation dans le Mexique espagnol (XVI-XVIII siècle). 31 GRUZINSKI. ricos e pobres. Gilberto Osório de. por ocasião da transferência da imagem do santo da igreja dos franciscanos do Recife para a igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Livramento. A procissão em honra de São Gonçalo Garcia nos revela um grupo em ascensão haja vista a dimensão simbólica do cortejo sagrado nas ruas do Recife. Recife: FUNDAJ/Editora Massangana. pardos e negros.A Irmandade de São Gonçalo Garcia em Pernambuco: a apoteose dos Homens Pardos em Recife (1745) Marcos Antonio de Almeida Universidade Católica de Pernambuco A Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos do Rio de Janeiro já tem sido alvo de pesquisas e estudos. ainda não despertou interesse nos historiadores. Paris : Gallimard. Acreditamos que só repertoriando esse grupo poderemos traçar algumas pistas mais consistentes sobre a evangelização LINS. ANDRADE. a Irmandade de São Gonçalo Garcia cruza os distintos mundos separados pelo pigmento da pele. a do Rio de Janeiro. portanto. no que tange à questão de situar HOORNAERT. 1991. O cristianismo Moreno do Brasil. Considerando que os Homens Pardos de Recife tornaram-se um grupo referencial de ascensão social e econômica no século XVIII. O cristianismo moreno do Brasil. A cor suscita outras questões mais profundas de pertença identitária e de crença. Colóquio realizado em Paris. o reconhecimento da sociedade. em maior ou menor grau. Serge Gruzinski. acreditamos que teriam existido nessa sociedade mecanismos que possibilitaram uma tomada de consciência desse grupo e. em La pensée métisse. L’expérience américaine. Eduardo. sobretudo. Nathan. nos anos 90. Em sua obra original.). do mulato ou do mestiço no Brasil. Monde Nouveaux. 1996. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão é o pregador escolhido para apresentar São Gonçalo Garcia. Esse é o ponto de partida a partir do qual pensamos a sociedade pernambucana. Esse sermão poderia esclarecer algumas questões acerca da mestiçagem no Brasil e. sobretudo.colonial como a base da criação do Homem Pardo. sugere que o historiador não pode mais escapar às preocupações do presente.2 As conquistas modernas provocaram mudanças nas concepções até então críveis sobre o mundo e sobre o homem. Segundo Gruzinski. 92. em 1992. GRUZINSKI. Serge. O Tempo Moderno apresenta pontos fundamentais do processo de trocas culturais com o advento das Américas. O árduo trabalho do homem moderno consistiu em se situar nas novas formas de compreender e articular os tempos vividos e suas consequências. WACHTEL. Eduardo Hoornaert traz à tona uma evangelização que colaboraria no processo histórico de uma mestiçagem alicerçada pelas práticas religiosas de negros e pardos1. Em 1745. A problemática da cor impunha dificuldades às gentes. (Org. ele poderia nos descortinar as várias faces da sociedade colonial brasileira. p. Petrópolis: Vozes. A devoção a um santo pardo (mulato) incomoda o cotidiano da “nobreza da terra” e da plebe. 1 2 426 . pois elas se revelam cada vez maior amplitude num contexto de globalização e mundialização. muitas problemáticas resultantes do encontro cultural dos continentes permanecem. Paris : Éditions de l’EHESS. Le Nouveau Monde. principalmente aos brancos. significações distintas. François. dessa forma. entretanto. ele se aproveita de todas as brechas possíveis para se afirmarem nos diversos segmentos sociais. resultado da união entre a Europa e o Brasil ou a África. capacidades de se inserirem num momento preciso de transição política e religiosa no Império Português. por outro lado. Pardo é utilizado para designar um grupo social reconhecido por sua ascensão social. Serge. 2003. é frequentemente empregado para indicar o caráter suspeito de um indivíduo. no século XVIII as contradições presentes na sociedade colonial brasileira toma rumos inesperados: a ascensão do grupo de pardos vai progressivamente se impondo. eles devem primeiramente se impor em face aos que lhes são diferentes. 4 HARTOG. Eles são legitimados por sua importância nas confrarias religiosas que os congrega e os ajuda a superar as contradições sociais da vida colonial. Essas palavras têm. O drama da exclusão a partir da cor se acentua com mais visibilidade nas Américas no século XVII e XVIII. há grupos que resistem em inclui-los no seio GRUZINSKI. se situa no final do reinado de Dom João V (1706-1750) e às vésperas do início do reinado de Dom José I (1750-1777). passado e futuro sublinhando que o presente se consolida como o referencial e não mais o passado nem o futuro. Régime d’historicité. François Hartog mostra a relação entre presente. em 1745. Présentisme et expériences du temps. Grupo sócio-econômico em processo de consolidação na América Portuguesa. Mas.4 Pardo e Mulato são utilizadaos no século XVIII para identificar o memo grupo.as Américas em face ao local e ao global. Mulato.3 Em Régime d’historicité. Les quatre parties du monde. Histoire d’une mondialisation. Paris : Seuil. O que se passa em Recife. pessoas de pais Brancos e Negros. Paris : Éditions de La Martinière. Os pardos de Pernambuco parecem querer encontrar um lugar na nova configuração da monarquia portuguesa. os pardos interagem com os outros grupos. os Homens Pardos mostram seu poder de mobilização revelando. 2004. 3 427 . O fato de serem pardos os obriga a superar obstáculos. Se por um lado. em contrapartida. Cotidiano e solidariedade. 1994. Antonia Aparecida. 7 BOSCHI. São Paulo: Brasiliense. Da vila de Recife ao Japão. BONETT. Pouvoir indien et société coloniale (XVIe-XVIIIe siècles). Cotidiano e solidariedade no século XVIII.as confrarias tiveram uma notável ascensão. a Ásia e sua produção religiosa prefiguraria um sinal de inclusão dos Pardos de Pernambuco. 2002. La vem o meu parente. Julita. 1986. Les hommes-dieux du Mexique. as Confrarias reagrupavam as pessoas pela pigmentação da pele. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais.7 No que concerne aos estudos sobre as Irmandades em Pernambuco. Negros na terra do ouro. temos um longo caminho a percorrer. Nas Minas Gerais. guadalupanismo. Margarita Moreno. São Paulo: Annablume/Fapesp. Idem. Paris : Éditions des Archives Contemporaines. uma Procissão. Uma devoção. 1983. A Igreja que durante todo o período colonial nunca se pronunciou 5 GRUZINSKI. fundación de Puebla. 1985 . Elas se desenvolveram em todas as regiões do Brasil6. I – As confrarias Associadas ao ciclo da economia das minas de ouro. México : Universidad Nacional Autónoma de México. Caio Cesar. 2002. Os leigos e o poder.5 Em Pernambuco. as Irmandades tiveram um papel fundamental na sociabilidade entre as diversas classes sociais. 428 . sobretudo. São Paulo: Ática. Vida diária de gente de cor nas Minas Gerais (Século XVIII). As irmandades de pretos e pardos no Rio de janeiro e em Pernambuco (século XVIII). Serge. São Paulo: Brasiliense. a longa distancia não é obstáculo para se apresenta novas formas de encarar a questão da mestiçagem no Brasil. O que parece comum em todos os espaços ocupados pelas Irmandades é que através de uma economia interna e pelas estruturas que elas criaram. As minas e o ouro contribuíram para uma ascensão social local como também para uma intervenção na colônia como um todo.socialmente. 6 QUINTÃO. aspirar a um lugar no conjunto da sociedade colonial. SCARANO. produzindo elos de solidariedeade que lhes permitiram seguir e. pela origem social e/ou pela profissão. uma missa e um sermão. uma festa e encontros de eruditos são pontos de partida para constatar a resistência dos Homens Pardos do Recife face as tensões que os afligem. Nacionalismo novohispano. Mariano Veytia : histoira antigua. Filho de Baptista Campelli e Brites Bandeira de Melo. RUBERT. 62-63. endereçada a Antônio da Apresentação. foi nomeado para o arcebispado da Bahia. mas infelizmente dessa carta só conhecemos o título. esta « Carta ao author do Discurso prégado na nova celebridade do B. Por outro CARVALHO. Ouro Preto/MG: UFOP/Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Por ocasião da mudança de Dom José Fialho para o bispado da Guarda. também. em Valadolide. 8 429 . MACHADO. 1988. das celebrações da beatificação de Gonçalo Garcia. Dom José Fialho insistiu fortemente acerca do seu clero não mencionando em nenhum momento a existência das Irmandades. vol. 1988. 9 Nascido em 13 dezembro de 1673. Lisboa: Officina de Antonio Isidoro da Fonseca. 15 de junho. Em 1740. pp. ele estudou na Bahia com os jesuítas. O destinatário dessa carta seria. cresceram e criaram um rosto próprio. paradoxalmente foi o espaço no qual elas nasceram. 1741-1759. critica. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. II. o bispo de Pernambuco.8 Basta lembrar que. Jose Geraldo Vidigal de. Em 1730. Ele foi apresentado por Dom João V para ocupar o bispado de Olinda em 25de novembro de 1722 e foi confirmado por Bento XIII em 21 de fevereiro de 1723. em Portugal. 729. p. Foi professor nos conventos de Olinda e de Recife. III. negro e pardo. o Sínodo da Bahia confirmou a prática da escravidão sob o prisma e do senhor. provavelmente. José Fialho9. frei João da Apresentação Campelli participou do Capítulo Geral da Ordem. Bibliotheca lusitana: historia. Em 3 de outubro de 1739. José Fialho entra no mosteiro cisterciense de Alcobaça. indica possuir entre as suas correspondências uma em particular. e das obras. franciscano que teria escrito e realizado um sermão na catedral de Salvador por ocasião. o seu secretário particular. 1988. em Braga. Santa Maria/RS: Editora Palotti A Igreja no Brasil. no Recife. João da Apresentação Campelli o levou consigo e o nomeou professor de Teologia Moral na sua diocese de Guarda. apresentava para a sua diocese quarenta e cinco paróquias e quarenta missões. Trabalho apresentado no Intituto Histórico Geográfico Brasileiro.. 10 Nascido em 1690. ele ingressou na Ordem franciscana. Gonçalo Garcia ». Arlindo. vol. e cronologica na qual se comprehende a noticia dos authores portugueses. Ele chamou a atenção do bispo que o tomou por seu confessor e Examinador Sinodal da diocese de Pernambuco. A Igreja e a escravidão. Diogo Barbosa. em 1707. Entretanto. que compuseram desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até o tempo presente.contra a escravidão africana. Em 20 de novembro de 1708. Expansão territorial e absolutismo estatal (1700-1822). O rosto branco. o franciscano pernambucano João da Apresentação Campelli10. Essa carta poderia nos fornecer informações mais precisas sobre os devotos pardos de São Gonçalo Garcia. em Portugal. que em nossa Gentilidade fomos Bonzos.” CONCEIÇÃO. o serafico padre Saõ Francisco. Memorias historicas dos religiosos da ordem serafica. em 1755. vol. VIII.lado. aos “ de dezembro de 1711. Procurador Geral em Lisboa pela Província franciscana da Imaculada Conceiçéao do Rio de Janeiro. 431p. vos pedimos pelas entranhas de Deos. 75-76. e rendas. Volumes 1 a 23. Diccionario Bibliographico Portuguez. Cabe ao rei nomear bispos. em São Paulo. Um outro franciscano. Lisboa. luso-brasileiro. os rogamos que venhaõ a buscar almas a esta terra. a impede de colocar em prática um dispositivo eclesiástico mais eficiente e dinâmico13. e natural da Cidade de Lisboa Occidental. Segundo Aranha. Apolinario da Conceição. 1990. 13 A Igreja está sob a tutela do rei. Vozes. Gonçalo Garcîa do bendito habito de S. pp. Apolinário vivi. Vida Franciscana. A hierarquia católica conhece momentos de instabilidade interna. sem communicar pessoa alguma. p. Brito. Depois de decisão tomada. e outros muitos por suas Cartas pedem o mesmo. frequentemente em conflito com a cúria romana. Nessas circunstâncias particulares percebe-se frequentemente o interesse do Padroado português em nomear bispos portugueses nas principais dioceses do Brasil. ele teria morrido no terremoto ocorrido em Lisboa.. « Religiosos franciscanos da Província da Imaculada Conceição do Brasil na colônia e no Império ». que são três mil. que pois nos fizestes deixar nossos Templos. e montes. Parte I dedicadas ao grande Patriacha. e escrita por Fr. vivia ainda no Brasil. A máquina administrativa portuguesa. Coordenação Científica de André Belo. nos apresenta a tradução de um trecho de uma correspondência de um cristão japonês a São Gonçalo Garcia12. Cf. o rei apenas notifica a cúria romana – para receber a confirmação. Apolinário da. Para Sebastião Ellebracht. Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses. 1754. E porque sabemos que os frades dessa Religião tem muita lhaneza e são muito pobres. Revista da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. párocos e missionários para as Aldeias. sustentandonos com a fructa silvestre delles. O século XVIII é o século mais movimentado da história da implantação e do desenvolvimento da Igreja no Brasil. grandes no ceo. aos 23 de julho de 1692 et ingressou na Ordem franciscana no convento de São Francisco. Os Christãos de Firando. Pequenos na terra. 300. no Rio de Janeiro ELLEBRACHT.. na Officina do Doutor Manoel Alvarez Sollano. Lisboa. Dos cinquenta e sete bispos do 11 430 . O Padroado lhe dá total autonomia para instituir e destituir quem quer que seja. que do humilde estado de Leigos subiraõ ao mais alto gráo de perfeiçaõ. Antesignano de Jesu Christo. Francisco. e os de Xique. Religioso Leigo da Provincia da Immaculada Conceição de nossa Senhora do Rio de Janeiro. que andamos pelos dezertos. em sua obra Pequenos na terra.grandes no céu. 2001. e nos convertestes á Fé. Sebastião. onde se perdem infinitas por falta de Pregadores. em 1759. tenhais misericórdia de nós outros. A vós Fr. 12 “Nóssoutros os Christãos. Apolinário da Conceição11. Apesar das constantes crises entre a Igreja Apolinário nasceu em Lisboa. do Instituto Capucho. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. SILVA.. Innocencio Francisco da & ARANHA. das confrarias. em 1735. Sebastião Monteiro da Vide. esses bispos possuíam titulações acadêmicas diversificadas: os religiosos predominavam no campo da Teologia.a as autoridades portuguesas14. dez eram Brasileiros. no final do século XVIII elas contavam mais de duzentas. III. Reforçando e reestruturando seu clero. Cit.. As antigas missões indígenas são erigidas em vilas ou paróquias. À medida que a colônia expandia a sua geografia e estruturava o território do Brasil. a Irmandade de São Benedito e de Santa Efigência para os Negros e São Gonçalo Garcia para os Pardos. Expansão territorial e absolutismo estatal (1700-1822). Formados em Lisboa. 227. Ocupando espaços e realizando atividades evangelizadoras nos conventos franciscanos. trinta e seis do clero diocesano e vinte e um de Ordens religiosas diversas. em suma. arcebispo da Bahia (1706-1722). Arlindo. No arcebispado da Bahia. sempre assistidas por clérigos das Ordens e pelo clero secular. Em Pernambuco. das Ordens religiosas. de toda a Igreja do Brasil. 15 RUBERT. 14 RUBERT. era doutor em Direito Civil e Direito Canônico. 357-358.15 As igrejas das Ordens religiosas eram os espaços onde as confrarias normalmente se apoiavam. dez anos mais tarde. constata-se uma progressiva expansão das circunscrições eclesiásticas através das criações de novos bispados e de novas paróquias. pp. elas atingem o número de 279. Expansão territorial e absolutismo estatal (1700-1822). III. 431 . o clero diocesano se especializava em Direito Civil. essas Irmandades parecem ter construido novas formas e práticas de sociabilidade. Cit. No convento do Recife. a devoção século XVIII. p. Direito Canônico e Filosofia. A primeira metade do século XVIII é marcada pela tentativa de uma reforma e renovação eclesiástica: reforma do clero diocesano. Sua capacitação nesses dois campos do Direito lhe permitiu promover e realizar o Sínodo da Bhai. Arlindo. a Igreja – apoiada no Estado Portugês – consolidava também o seu campo de ação evangelizadora. o bispo retoma o seu poder em face à Igreja local até então quase totalmente conduzida pelas Ordens regulares.. As Ordens religiosas perdem paulatinamente a hegemonia na Igreja do Brasil e o clero secular vai encontrando um espaço cada vez mais avantajado. conhece seu ápice no século XVIII. Op. Op. em 1707. Nos conventos franciscanos. As confrarias coloniais. existem 264 e. seguindo de perto as orientações do Concílio de Trento (1545-1563). elas eram numerosas: a Terceira Ordem da Penitência para os brancos e ricos. vol. vol. 16 O texto apresenta a evolução que antecede e se desenvolve a festa celebrada pelos homens pardos de Recife. Typ. de Maximiano Gomes Ribeiro. Sotério da Silva Ribeiro. Lisboa: Imprensa Nacional. Brasiliense. SILVA. Fr. para homenagear e fundar a Irmandade do Bem-aventurado Gonçalo Garcia. precisamente de Baçaim. também era mulato. nomeado pela coroa para administrar os bens e a economia do convento. comerciante e morador da vila do Recife. e invicto martyr. de pai português e mãe da Índia Oriental. obra publicada em 1753 narrativa escrita por um ex-franciscano. amigo dos frades. Duvidando que Gonçalo Garcia seria de cor parda. Essa devoção teria sido introduzida no Brasil pelos Jesuítas. Impressor da Augustissima Rainha nossa Senhora. Os homens pardos instituíram imediatamente seu culto em Recife. IV. Havia um grupo considerável de pardos em SILVA RIBEIRO. razão suficiente para que os mulatos de Recife o tivessem adotado como protetor de sua cor”. ele próprio. Após a morte de Antônio Ferreira. o último a guardá-la foi o síndico18 do convento franciscano do Recife. retornando a Pernambuco. o beato Gonçalo Garcia. Segundo Sotério da Silva Ribeiro17. Antônio Maris de. 18 Leigo. t. 1. pois Antônio. e grande celebridade do glorioso. 220-221. era da cor parda. Eles organizaram uma comemoração sem precedente na história das confrarias de Pernambuco. tendo nascido na Índia. os homens pardos do Recife foram consultar um franciscano versado em história. natural da Índia. frei Antonio de Santa Maria Jaboatão. 1858-1862. esse Bemaventurado.dos Homens Pardos da vila do Recife ao Bem-aventurado Gonçalo Garcia os leva a instalar naquele convento uma devoção até então desconhecida. pelos homens pardos de Pernambuco. t. A Summa Triunfal. Inocêncio Francisco de. Summa Triunfal da nova. 17 JABOATÃO. I. Lisboa: Officina de Pedro Ferreira. em 1º de maio de 1745. Rio de Janeiro. Sotério da. Novo Orbe seráfico brasílico. dedicado ao Sr. revela estratégias sociais para superar a barreira da separação pela cor. Segundo eles. a imagem ficou sob a guarda de várias pessoas. Cada convento possuía seu próprio síndico 16 432 . pp. Dicionário bibliográpico portuguez. com a colleção de varios folguedos e danças e a oração panegyrica que recitou o padre Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão na igreja do Sacramento de Pernambuco no dia 1 de maio de 1745. 369-370. Esse confirmou a cor do santo e lhes explicou que. o mulato Antônio Ferreira. Capitão José Rebello de Vasconcellos pelo seu autor Soterio da Silva Ribeiro. 1753. Gonçalo Garcia “tinha a cor parda. p. ele trouxe consigo uma imagem do Bem-aventurado Gonçalo Garcia. foi a Portugal e. 23 Não esqueçamos que nós estamos ainda numa cristandade católica que vê tudo a partir da ótica religiosa que legitima os eventos. 13-14. analisada e inserida no seu tempo suscita uma série de questões acerca das relações sociais no Brasil. Bahia. 2a. naquele momento. São Paulo: Editora Brasiliense. a quem vay consagrado. Orbe Serafico Novo Brasilico. edição. se ele tinham o direito a ter um santo de tal cor. estabelecido. por Fr. 1994. em 1761.19 Pela primeira vez na história da cristandade brasileira a evangelização era colocada em questão: seria possível existir um santo mulato? Questão aparentemente ingênua. 19 20 433 .. mas que revelava a exclusão e a negação de um grupo notoriamente relevante na sociedade pernambucana. Um Brasil que se interroga sobre o seu próprio rosto. Antonio de Santa Maria. A Summa Triunfal parece ser a única obra de Sotério da Sylva Ribeiro. pois a festa se tornou um espaço de sociabilidade e de sonhos de liberdade22 A circularidade das ideias. 23 JABOATÃO. Luzido Sol de Padua. Astro Mayor do Ceo de Francisco. Lisboa: Officina de Antonio Vicente da Silva. Índia e Japão. 1993. como Theatro glorioso. para retomar a terminologia da Academia dos Renascidos. Qual a imagem do Brasil naquela metade do século XVIII? Uum Brasil que quer renascer das cinzas. e cultivado a influxos da nova luz de Italia. São Paulo/Brasília. descoberto. novos horizontes para a compreensão da formação social colonial do brasileira. Op.Recife e ele refletia. mas no Brasil não havia lugar para santo mestiço. e Thaumatturgo Portuguez Santo Antonio. estrella brilhante de Hespanha. Antonio de Santa Maria Jaboatão. Um pouco mais adiante. 21 BAKHTIN. A intervenção de um outro SILVA RIBEIRO. A festa religiosa se imbrica com a ação política. Ela nos abre. dos corpos e das cores aproximam Pernambuco. Summa Triunfal .21 Da mesma forma podemos dizer para o Brasil. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Festas e utopias no Brasil colonial. surge a expressão Novo Brasilico. Cit. Mikhail. e Parte Primeira da Chronica dos frades menores da mais Estreita Observancia da Provincia do Brasil. Mary del. Essa Summa Triunfal estudada. Eu sublinho o largo número dos Bem-aventurados e santos Negros e Brancos presentes na Igreja católica. Sotério da. inclusive no seio da instituição eclesiástica20. festa caracterizada por seu aspecto carnavalesco e que nos remete às ideias de Mikhaïl Bakhtin em sua obra sobre François Rabelais no século XVI. pp. Fr. realizada em Salvador. Edunb/Hucitec. 1761. 22 PRIORE. assim. 1. Antonio de Santa Maria Jaboatão. Todas as confrarias. Ordens religiosas e as repectivas autoridades administrativas foram convidadas. José Correa de Melo. pregador. Mas a ocasião era.franciscano. uma momento de encontro de intelectuais ávidos por demonstrar suas capacidades literárias nas métricas em honra do santo. A Summa Triunfal : um olhar local. cronista da Província de Santo Antônio do Brasil e membro das duas Academias literárias fundadas na Bahia (1724 e 1759). tecidos finos (seda e damasco) e multicoloridos davam o clima de festa. Tudo foi dirigido pelo Dr. presidente das diversas sessões. homem erudito. Todos os poemas convergiam para o reconhecimento da santidade de um mestiço. objeto de uma devoção intercontinental. A Summa Triunfal é composta de três partes: a primeira descreve as festividades. a segunda tem por título Descriçam Metrica da vida e martyrio do Glorioso Martyr S. Gonçalo Garcia. O ambiente foi cuidadosamente preparado para a ocasião. O padre secular Manuel Félix da Cruz nasceu em Recife e foi vigário da paróquia de Nossa Senhora do Ó. A sessão literária aconteceu na igreja de Nossa Senhora do Livramento dos Homens Pardos. um futuro global. a terceira parte a presenta as poesias recitadas por ocasião da assembléia dos eruditos de Recife em honra do Bem-aventurado.1. nome que se deu às atividades literárias. antes de tudo. será fundamental para a compreensão da criação da « mulatês » brasílica. Frei Jaboatão. Todos responderam positivamente e estiveram presentes durante uma dezena de dias às solenidades religiosas e às assembléias « acadêmicas ». Todas as atividades realizadas foram meticulosamente registradas e impressas na Summa Triunfal. Ele foi contemporâneo de Soterio da Sylva Ribeiro e cabe a ele a honra de anunciar a existência do grande número de Homens Pardos em Pernambuco. Recife e Olinda estavam representadas pelos seus mais ilustres eruditos. Em 19 de setembro de 1745 vários letrados se reuniram para declamar seus louvores ao Bem-aventurado São Gonçalo Garcia. onde foi entronizada a imagem do santo. Como Missionário 434 . pregador e poeta de grande reputação.. p. ele foi eleito para compor o Conselho. p. 29 Ele nasceu no dia 14 de maio de 1714. Dicionário de Autores no Brasil colonial. Fernando. Correa Mello presidiu a reunião solene. PIO. revelando sua capacidade de pregador. Apontamentos biográficos do clero pernambucano (1535-1935). Palmira Morais Rocha. Seus talentos artísticos se revelaram na música e nos instrumentos que ele dominava com maestria (rabeca. Domingo do Loreto. em 1762. Fundação de Cultura Cidade do Recife. p. 28 ALMEIDA. Palmira Morais Rocha. Palmira Morais Rocha.24 Ele era também membro da Ordem Terceira da Franciscana Penitência. Op. 246. Conhecedor da língua latina e de poetas notórios. 1981. Présentation de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife. Ele foi professor público de gramática e de latim.25 José Correia Melo. Manuel Félix da Cruz teria criado e sustentado um curso de latim na vila de Recife. em 1761. Op. e na qual. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. p. II.. Op. Segundo Domingos do Loreto Couto. Dicionário de Autores no Brasil colonial.. Filho do capitão Francisco Correia Gomes e Izabel da Silva Figueiredo. eles eram « pardos de honrado procedimento ». 1994. COUTO. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco.26 Correia Melo era capelão da Irmandade de Nossa Senhora do Livramento dos Homens Pardos do Recife. No dia 19 novembro de 1745. ele percorreu toda a diocese de Pernambuco. Lisboa: Edições Colibri.28 Ele próprio era padre pardo29 e. Domingo do Loreto. COUTO. 25 PIO. confraria composta pela classe nobre da cidade. Cit. em 14 de junho de 1719.. p.27 Outras figuras de destaque se fizeram presentes. realizada nas dependências da igreja da qual era Correa Mello era capelão. No curso ele encorajava os alunos a seguirem a vida presbiteral. Segundo Domingos do Loreto Couto. ALMEIDA. 373-374. Dicionário de Autores no Brasil colonial.Apostólico. também prestou homenagem ao Bem-aventurado Gonçalo Garcia. harpa e viola). Filho de Francisco de Almeida Pessoa e Maria Botelho Campelly. ele foi presidente COUTO. vol. pp. 2003. 439. vol. Ele teria se dedicado ao ensino das « humanidades » (Filosofia) na vila de Sirinhaém. Op. Fernando. 27 ALMEIDA. Apontamentos biográficos do clero pernambucano (1535-1935). 281. p. Ele estudou com os jesuítas e recebeu o título de Mestre em Filosofia. Recife. Filipe Neri da Trindade declamou suas métricas em honra do Bem-aventurado pardo. 26 Esse padre nasceu em Recife. padre secular. 562. 159. Cit. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. à época chamada de “Academia”. 373. Cit. Cit. Domingo do 24 435 . I. 67. Dicionário de Autores no Brasil colonial. de 1745 para 1597. p. 256. Dicionário de Autores no Brasil colonial. Jaime C. nós estamos persuadidos de que a sociedade de Pernambuco inicia uma reflexão singular sobre a realidade que os circunda.37 Francisco de Sales e Silva.. Dicionário de Autores no Brasil colonial..36 Manuel Ribeiro. vol. p. Palmira Morais Rocha. p. de Pernambuco para o Japão. Op.. COSTA. X. Palmira Morais Rocha.. Op. assim. p. Dicionário de Autores no Brasil colonial. Dicionário de Autores no Brasil colonial. 436 . Cit. Cit. 168. 167. Palmira Morais Rocha. 305. p. p. 1882. Dicionário de Autores no Brasil colonial. I. 37 Membro da Companhia de Jesus. Sua inclinação para as artes literárias se desenvolveu na poesia e na música.. p. Loreto.31 Antônio Bóia Benavide.38 Seja como for. ALMEIDA.33 Francisco de Sousa Magalhães. Precisamos retomar o objeto de devoção e compreender em que consite esta particularidade que distingue a sociedade de Pernambuco. Cit. p. Op.35 Antônio Pereira. Ibid. Rompe-se a geografia e supera-se o tempo. Palmira Morais Rocha. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. vol. 34 ALMEIDA. 97. p. 376. Pe.. Cit. p... Op. 348. ele participou da “Academia” realizada no Recife. pp. Palmira Morais Rocha. 38 Capitão da armada de Pernambuco em 1745. 30 PIO. Repertoriamos alguns deles.. Cit. Cit. p. ALMEIDA. 35 Nascido em Recife em 1688. Cit. Cit. O ponto de partida está no outro lado do mundo e num tempo aparentemente distante. Dicionário biográfico de Pernambucanos célebres. Apontamentos biográficos do clero pernambucano (1535-1935). Palmira Morais Rocha. 31 ALMEIDA. Op. 36 ALMEIDA.. 32 Ele participou da “Académie” realizada em Recife por ocasião das festividades consagradas ao Bem-aventurado Gonçalo Garcia. p. II.268. V. Recife.. 322. Palmira Morais Rocha.da Irmandade de Nossa Senhora do Livramento. eles são os representantes de uma sociedade em transição: António Planger Aranha. 860. Fernando. 227. Op. ALMEIDA. VI. DINIZ. Op. com um elevado número de sacerdotes seculares. Francisco Augusto Pereira da. Cit. Dicionário de Autores no Brasil colonial. ALMEIDA.32 Inácio Duarte. Recife: UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).30 A reunião de eruditos contou. Op. 33 ALMEIDA. Dicionário de Autores no Brasil colonial. Op. Cit. ele foi Leitor de Teologia no Colégio da Bahia. 1969. t. Op. vol. Palmira Morais Rocha.34 Inácio Ribeiro Nóia. ele ali viveu ainda por volta de 1757. p. vol. 19-40. Músicos pernambucanos do passado. 403. Ibid. 52.-F. 41 Ibid. seguindo o exemplo dos missionários que ele tanto escutou. Antes de se tornar Bem-aventurado. p.) apesar da sua condição de comerciante. A procissão. o bem aventurado Gonçalo Garcia. Segundo Frei Jaboatão. SILVA RIBEIRO. p. que constituem o sangue mais ilustre. provavelmente no ano de 1557.40 Segundo o mesmo Frei Jaboatão. ele estava sempre atento aos sermões de franciscanos que pregavam naqueles portos. e o varão mais aplaudido..41 1. “(. Paris : Fayard. Os temas cuidadosamente escolhidos anunciavam definitivamente uma nova devoção católica popular. L’histoire du Portugal. Op. As várias alas representam os temas mais importantes para relembrar as atividades e a importância do santo mestiço. 2000. LABOURDETTE. J. Os detalhes do cortejo encantam pela originalidade e pelo teor de apologia à mistura dos povos. 39 40 437 .3. Circulando pelos portos mais importantes do seu tempo. p. Summa Triunfal .. Cit. Afinal... ele [Gonçalo Garcia] procurava a perfeição.39 na Índia Oriental. Sotério da. 47.2. povos que se distinguem por suas forças bélicas e pela excelência de suas produções literárias: …pois são estes os dois únicos polos. Seu pai era um comerciante português que.1. 169.. a vida missionária que o levara ao Japão também o conduz ao martírio no dia 5 de fevereiro de 1597. A descrição da procissão em honra de São Gonçalo Garcia é grandiosa. se instalou em Baçaim e sua mãe era de uma distinta família da Índia. A vila de Recife para e parece estar atônita com o que vê. por força do trabalho. as origens de Gonçalo Garcia estão associadas a Portugal e à Índia. Quem era Gonçalo Garcia? Ele nasceu em Baçaim. Ele entrou para a ordem dos franciscanos e. Gonçalo Garcia: mestiçagem biológica. deu continuidade àquela tradição. Gonçalo Garcia era também um dos comerciantes mais importantes do Oriente. Graças a São Gonçalo Garcia. carro resplandecente pelo cintilar do ouro. anjo seráfico. os degraus que compunham a pirâmide pareciam convidar o público a galgá-los e a alcançar o santo. no pescoço um colar de diamante arrematava a riqueza da Ásia. do clero secular e religioso. seguiam no final do cortejo. por esse motivo. os nobres de Pernambuco. vestidos de branco.os habitantes de Pernambuco se davam conta do poder local e do elo que unia as duas geografias: a Ásia e a América Portuguesa. Os temas eram: aplauso. Para finalizar. Pelo contrário. Seus sapatos em tecido branco com fivelas de prata. cada ala foi patrocinada por alguma pessoa de posses da vila do Recife. combinavam com seus sapatos também em seda aveludada vermelha cuidadosamente atacados com fivelas de ouro. martírio. Abria o cortejo da Ásia uma bela mulher ricamente vestida sobre um cavalo. uns vestidos de vermelho e. a Mulher-Ásia exibia seu poder através de jóias à base de ouro e diamantes. Nos braços e dedos. sabedoria de Deus e a fé. cores do martírio e do céu. amor perfeito. seguindo todos os temas. 438 . Tudo convergia para demonstrar a riqueza da Ásia e do patrocinador pernambucano. meditação. O santo foi entronizado no alto de uma espécie de pirâmide. zelo. poder de Deus. Suas vestes de seda vermelha e azul. Procissão dispendiosa. surgia majestuosamente Gonçalo Garcia. Esse carro alegórico foi conduzido pelos Negros. amor divino. A sua riqueza revelava a riqueza dos seus patrocinadores. Cabia aos patrocinadores prover os ricos ornamentos que embelezariam o cortejo. A Ásia onde o Bem-aventurado havia sido martirizado em nada lembrava tristeza. prêmio. mérito. Estes tinham à cabeça uma espécie de cocar com plumagem branca. do outro lado. De um lado. A Irmandade do Bem-aventurado Gonçalo Garcia e os demais grupos. O carro que levava a imagem do Bem-aventurado Gonçalo Garcia foi adornado com as cores vermelha e verde. A mulher carregava na cabeça um diadema ornado por quatro broches de diamantes. brincos também incrustados de diamantes iluminavam suas orelhas. o santo mestiço a apresentava a Pernambuco. Coube ao capitão Mariano de Almeida a apresentação da Ásia ao público de Recife. Em torno do Bem-aventurado Gonçalo Garcia. O padre secular Pedro Fernandes de Azevedo42 realizou as pregações durantes três dias43. Sermão do admiravel martyr do Japão S. 43 AZEVEDO. entre eles o de Guardião e de Definidor. ALMEIDA. Todavia. 1747. no anos de 1710. Irmandades demonstravam a força de suas redes associativas. esse franciscano professou seus votos em Igarassú. que permite a união das partes mais remotas do mundo: união da Ásia com a América.. 163. E dedicado ao Illustrissimo Senhor Manoel de Saldanha. os Homens Pardos também realizaram festejos em honra de Gonçalo Garcia. da Índia com o Brasil e da vila de Baçaim com aquela Pedro Fernandes de Azevedo estudou no colégio dos jesuítas onde ele obteve o grau de Mestre em Artes . ele foi vigário da paróquia de São Felipe Nery de Maragogipe durante uma dezena de anos e em seguida ele foi capelão do Regimento da soldadesca da Bahia. Pernambuco. candelabros com velas e vasos de prata com flores as mais variadas exalavam perfumes. Cit.44 As pregações aconteceram na igreja dos jesuítas. Em Salvador. P. Essa era a característica simbólica da santidade. Pedro Fernandes insiste sobre a ideia de que a beleza do mundo reside na sua diversidade. Por seu Author O Padre Pedro Fernandes de Azevedo. ALMEIDA. ela está à serviço da Igreja e da sua evangelização. Ele foi também Examinador Sinodal no bispado de Pernambuco e do arcebispado da Bahia como também exerceu o cargo de Qualificador do Santo Ofício. Dicionário de Autores no Brasil colonial. Prégado no primeiro dia do Triduo. Exerceu vários cargos na Província franciscana. 44 Nascido na Bahia em 1694. Ele entrou no clero secular e entre seus trabalhos sacerdotais. o sermão principal da festa coube ao franciscano frei José dos Santos Cosme e Damião. Cit. fundadores da devoção. Pedro Fernandes de.. de Retórica e de Teologia. Impressor do Santo Officio. Lisboa: Officina de Miguel Manescal da Costa. Mais do que um evento local.Filosofia. sacerdote do Habito de S. membros da Irmandade do santo homenageado. p. Palmira Morais Rocha. Op. 74. no dia 24 de novembro. A devoção aos santos parece confirmar que a santidade na Igreja extrapola as instituições. 42 439 . Em um dos seus sermões aos Homens Pardos da Bahia. Os responsáveis por essa ala foram Manoel dos Santos e Francisco Correya. p. conhecido pelos seus talentos de oratória. Sendo Protector da mesma solemnidade. Gonçalo Garcia. que lhe consagrárão os Homens Pardos na Sé Cathedral da Cidade da Bahia aos 24 de Novembro de 1746. As festividades na Bahia aconteceram de 24 a 26 de novembro de 1745. Dicionário de Autores no Brasil colonial. Palmira Morais Rocha. Op. capital da América Portuguesa. Pedro. Ele foi Leitor de Artes (Filosofia). 45 II – O sermão de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. por Fr. insultarem e proscreverem vosso nome como infame.. de sua carne e de seu sangue”. Op. p. o pregador retoma o mesmo discurso do Recife. tornou-se uma palavra boa. quando vos rejeitarem.47 Segundo Frei Jaboatão. 22-23 Bem aventurados sereis quando os homens vos odiarem. O sermão foi impresso pela primeira vez em 1751.. O objeto do sermão demonstrará que a palavra Pardo. Dicionário de Autores no Brasil colonial. ao illustrissimo e excellentissimo Senhor Luiz Jozé Correa de Sá. Corrente Primeira Panegyrica. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão prega aos Homens Pardos de Recife. Alegrai-vos naquele dia e exultai. um sermão tem de ter um tema. pela solenidade e circunstância que se apresenta. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. debaixo da Protecçaõ da Milagrosa Imagem do Senhor Santo Amaro. e este que ele pronunciará. qualificada e considerada como má. Esse é o seu sermão mais longo : ele conta 56 páginas. Lisboa: Officina de Antonio Vicente da Silva. Fr. 45 440 . Filho da Provincia de Santo Antonio do Brasil. promessa realizada por Deus em seu servidor o Bem-aventurado Gonçalo Garcia. 46 JABOATÃO. 167. Cit. Op. pregados em outras ocasiões e em geografias distintas46 O pregador franciscano sublinha que seu “discurso será Histórico. 47 JABOATÃO. Palmira Morais Rocha. por causa do Filho do Homem. Cit. Geográfico. Governador de Pernambuco. Anno de 1758. pp. Dirigindo-se aos fiéis. 74-75. Frei Jaboatão continua ALMEIDA. offerecida. Político e Apologético”. Seu ponto de partida é Lucas 6. Antônio de Santa Maria. Fr. p. e Moral. porque no céu será grande a vossa recompensa. venerada na sua Igreja Matriz do Jaboataõ. e compilado posteriormente a outros sermões. No dia 12 de setembro de 1745. pois do mesmo modo seus pais tratavam os profetas. a aspiração dos Homens Pardos de “ter um santo de sua cor. 168. Antônio de Santa Maria.da Bahia. soa como uma profecia: “Hoje toda honra e glória seja dada àquele que se assemelha a todos os mulatos porque ele tem a mesma cor”. Antonio de Sta Maria Jaboatam. tudo aquilo [injúrias.. O pregador franciscano observava o fato de a diferença da cor ter um papel preponderante no Brasil.) hoje [1745]. Enviado por Deus. no início do cristianismo a palavra cristão foi mal compreendida e interpretada pelos opositores de Cristo. ela os associa a glória restauradora trazida pelo Bem-aventurado Gonçalo Garcia. ele é o Restaurador e Redentor das calúnias sofridas pelos mestiços.lembrando à assembléia que antigamente os mulatos eram desdenhados porque eles não tinham nenhum santo que representasse a cor deles. difamações. “ (. como se a cor.48 Frei Jaboatão estava convencido de que a falta de um santo protetor com a mesma cor dos homens pardos sempre foi o motivo das acusações. pudesse definir a essência do sujeito. p. 169. Para Frei Jaboatão. 168. Frei Jaboatão retoma a etimologia do adjetivo cristão para explicar que o sentido dado a uma palavra revela tudo o que ela é : um contexto pode esclarecer a palavra. A palavra Pardo não é mais motivo de desdenhamento. o Cristo. não terem nenhum santo da respectiva cor canonizado. 441 . pelo fato de serem Pardos. de não terem um protetor que pudesse também santificar aquela cor. raciocina ele. p. Segundo 48 49 Ibid.. ele é um santo de cor Parda. acusações] não tem mais sentido porque apareceu um santo de vossa cor e já canonizado”. Ibid. explica Frei Jaboatão. escreve ele. Ele confessa que outrora essa palavra Pardo representava o que há de mais vil no mundo.. a cor Parda. A palavra cristão designava aquele que seguia o Crucificado. Frei Jaboatão constata que os Pardos eram acusados de. que esta palavra era tomada e empregada frequentemente para condenar e injuriar. das desconfianças e das calúnias dirigidas a esses homens. Gonçalo Garcia restaurou não somente a cor como também a significação da palavra Pardo. Por isso. naquele momento preciso aquela palavra só significava um ato de pertença..49 A analogia que o pregador faz a partir do NOME é interessante porque ele nos remete a um argumento utilizado para refutar o preconceito contra a palavra Pardo. ao contrário. Portanto. 52 “Hoje é o tempo.. pois Ele é a significação do Nome cristão. Antônio de Santa Maria. 51 Idem. Por analogia. ser Pardo é a causa final da alegria e da glória deste povo. 170-172. O pregador confessava a sua perplexidade em face a esse comportamento da sociedade. e apertaraõ mais as tribulaçoens dos calumniadores do seu Nome. pois ele é a significação do Nome Pardo. ao contrário. pois as atribulações impostas pela sociedade cada vez os atormentavam: Os Pardos esperaraõ menos hum Santo da sua cor. São Gonçalo Garcia é o santo o mais ofendido pelas calúnias que são dirigidas contra os Homens Pardos. não são aquelas da Pátria JABOATÃO. injuriados e perseguidos.51 Os impasses sociais vividos pelas gentes de cor “Parda” pareciam inquietantes. Fr. Frei Jaboatão está persuadido que é preciso superar e derrubar as mentiras dos detratores dos Pardos. é a São Gonçalo que acusam e insultam. 50 442 . p. 52 Idem. Frei Jaboatão testemunha que ele já tinha escutado alguém que duvidava da verdadeira santidade de Gonçalo Garcia. éo Cristo que também o é. e nunca tanto como agora os apuraraõ.. Frei Jaboatão considerava o seu tempo particularmente difícil para os Pardos.Jaboatão.50 A cor da pele incomodava as pessoas. As Bem-aventuranças que fala o Senhor. Neste sentido. Eles aguardavam um santo também pardo. Cit. na terra. os cristão que são insultados.” As palavras do pregador evidenciam uma “espera” aguardada há muito tempo por Frei Jaboatão e por aqueles que o escutavam. Op. Ele sublinha que as Bem-aventuranças não acontecerão apenas no céu. pois para ele ser Pardo não tem em si nenhuma significação má. é o dia aguardado. do que na presente occasiaõ. todos tratavam esse tema de uma maneira vulgar e desrespeitosa. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. e ele irá provar pelas Sagradas Escrituras que. O motivo da dúvida era a desconfiança que residia no fato de ele ter uma origem mestiça. mas desde aqui embaixo. diz ele. o mesmo Jaboatão afirma que os Pardos que sofrem acusações ímpias e são insultados. diz o pregador. cit. ao menos nenhum autor o menciona: Só nos dizem. que incomoda e que causa repugnância na maior parte da população. segundo ele. Antônio de Santa Maria. Frei Jaboatão não pretende falar das bem-aventuranças vividas por Gonçalo Garcia no céu. O tema do seu sermão ele conhece bem.54 Frei Jaboatão começa então a descrever a vila de Baçaim. e consequentemente negro .53 Segundo Frei Jaboatão. Cit. cor. JABOATÃO. Ele supõe que a assembléia já escutou falar delas. e outro natural da terra. não existe conteúdo que não possa ser apresentado e analisado. op. e declarar que a sua côr parda naõ só he tam bemaventurada. Por outro lado..pp. e por consequencia branco. e ditosa como as demais. Fr. mas ainda alguma coisa mais. diz-se que toda a nobreza portuguesa tem uma extensão em Baçaim. e descendencia. que deve ser declarada Bem-aventurada (…) venho mostrar como o Beato Gonçallo Garcia he Pardo por nascimento. a composição e a retórica para expor aos habitantes do Recife. natural JABOATÃO. que hum era Portuguez. mas aquelas que se podem ver neste mundo. ele se fundamentará nos autores os mais eloquentes que já expuseram em seus livros sobre o tema da diversidade da scores das gentes no mundo.celeste. É a cor mulata. aliás. 53 54 443 . Para Frei Jaboatão o mais importante é insistir sobre a polêmica da cor parda do santo. O motivo da sua observação é simples: a diversidade da assembléia que o escuta.” Paradoxalmente – diz ele – nenhum título de nobreza nunca foi outorgado ao Bem-aventurado Gonçalo Garcia. diz ele.. 174. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. Op. será a de conjugar a forma. uma das vilas mais nobres da Índia. há temas que é melhor não falar sobre eles. Isto explicaria porque as pessoas a chamam de “Don Baçaim. O franciscano está convencido que ele não pode satisfazer toda a assembléia haja vista a diversidade de compreensão e de julgamento. A tarefa mais árdua. 172 e 173. p. esta era a mãy. 175-176. portanto. segundo Frei Jaboatão. tal qual os primeiros cristãos.56 Com base em fontes não apresentadas. e aquelle o pay. Esta embaixada franciscana não realizou apenas uma tarefa política como também implantou uma atividade evangelizadora. existir uma relação estreita entre a conquista de Baçaim e a mestiçagem biológica de seus habitantes com os Portugueses. Cit. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. JABOATÃO. no dia 5 de fevereiro de 1597. Jaboatão afirma que Gonçalo Garcia teria escrito cartas encorajando os cristãos japoneses a permanecerem firmes na fé e que essa prática escriturária. O desfecho da evangelização franciscana foi trágica. 5 franciscanos.57 Ibid. teriam motivado o início de uma perseguição sistemática aos franciscanos e aos japoneses convertidos. pp. a idade de 63 anos. é certo que em 1593 Gonçalo Garcia já era franciscano. Jaboatéao. Gonçalo Garcia conhecia e falava a língua japonesa muito bem. ele integrou a embaixada franciscana enviada por Filipe II ao imperador japonês Taycozame.. no dia cinco de Fevereiro. 178. Frei Jaboatão supõe que ele teria. ou Calendario Portuguez.de Baçaim. portanto. 176-177.. além dos Escritores da Ordem. as causas do martírio do Bem-aventurado gonçalo Garcia. Para Fr. quando morreu. o Agiologio Lusitano. juntamente com outras práticas evangelizadoras. efetivando também a implantação da Ordem no Japão. nem tampouco o ano exato da sua entrada na Ordem franciscana. neste ano. 55 56 444 .. a evangelização e as conversões japonesas seriam. pp. Frei Jaboatão não encontrou muitas notícias sobre o início da vocação de Gonçalo Garcia. A embaixada político-religiosa franciscana conseguiu ligar a Espanha e o Japão. 57 Ibid. três jesuitas e vinte e três japoneses convertidos pelos franciscanos foram crucificados. ele tinha sido escolhido para integrar o grupo missionário enviado ao Japão. filho de Portugal : Assim o trazem. Parece-lhe. do Licenciado Jorge Cardoso. Antônio de Santa Maria. motivo pelo qual.55 Visto que a conquista portuguesa de Baçaim aconteceu em 1534 e que o Bem-aventurado Gonçalo Garcia havia morrido em 1597. Op. Fr. Fr. p. Entretanto. . Os Homens Pardos ou Mulatos do Brasil têm os cabelos Idem. Ele escolheu seguir a definição dada por Raphaël Bluteau : “Mulato é aquele que é filho de um branco e de uma negra”. Frei Jaboatão estava convencido que seu discurso poderia ser como uma apologia da cor Parda do Bem-aventurado Gonçalo Garcia haja vista que ele descendia de uma Negra e de um Branco.59 O pregador provoca a assembléia remetendo à legitimidade da condição mestiça de Gonçalo Garcia. portanto. Portanto. Todos parecem incomodados quanto ao fato da cor Parda do santo. JABOATÃO. dizem que ela era natural de Baçaim. as origens de seus pais são evidentes. O mesmo autor diz que a palavra Pardo qualifica aquele que não é nem branco nem negro. pp. Antônio de Santa Maria. o Pardo participaria de duas cores e a palavra que melhor o definiria seria a palavra mestiço que. Agora para associá-la à mãe do Bem-aventurado. pp. A lógica do povo é que os habitantes das Índias não tinham os cabelos cacheados. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. quer dizer a mesma coisa. Ele. porque significa metade-metade. Cit. 58 59 445 . Frei Jaboatão. ter os cabelos cacheados e a cor mulata seria sinônimo de Etíope. informa Frei Jaboatão.. em Goa e no Reino de Malabar todos são negros. Seu pai. Os escritores. acrescenta que ela era de cor Negra. 178-179. 179-181. Frei Jaboatão levanta uma série de questões concernentes à cor dos habitantes da Índia. segundo Bluteau. assim. mas também no sentido comum e popular. Op. Este ponto lhe parece fundamental e perturbador. o santo não poderia ser considerado nem negro nem pardo porque ele não possuía cabelos cacheados.Frei Jaboatão retoma a questão da cor. é necessário um procedimento introdutório para melhor definir a palavra Pardo não somente no sentido clássico. Por esse motivo. Difícil é aceitar a origem da sua mãe. eles não poderiam ser considerados negros. Ibid. Para o povo. Fr. Pardo tal como nós o dizemos. A partir das resistências locais em relação à cor da mãe do santo.58 Nenhuma dúvida que Gonçalo Garcia seja mulato. diz ele. um português branco. assim. Na Índia. na sua obra Ethiopia Oriental. Rio de Janeiro: Topbooks. Segundo José dos Santos. da qual a Ásia parecia até então ter sido poupada. Op. Mais ainda.60 As pessoas continuavam a se interrogar sobre as origens e o desenvolvimento de um tal fenômeno..62 As evidências sublinhadas são primeiramente o cabelo. Antônio de Santa Maria. Estes argumentos são falsos.cacheados. A palavra Etíope designava a origem africana e consequentemente à escravidão. 185. existe em Brava e em Magadacho. 2e éd.61 O sangue e o nome. Frei Jaboatão recorda o exemplo de um povo mozambicain revelado por um outro franciscano. onde havia um esforço de manter uma genealogia imaculada e inquebrantável. o tema incomoda a todos. 217-271. 63 JABOATÃO. MELLO. Seja como for. a saber.. Sandoval afirma que há negros com cabelos cacheados semelhantes aos habitantes da Guiné. Mas. Estudos Históricos. afirma veemente o pregador. duas grandes vilas. os cabelos cacheados não são uma característica de todos os negros. Lisboa: Difel. Evado Cabral de. entretanto. em Molucas. Na Índia. Eles são negros como azéviche (bastante negros) e eles têm os cabelos lisos. a assembléia desconhece como esta cor havia entrado na vila do Recife. Fr. o da mestiçagem. pp. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido.. de uma hora para outra todos se viam tocados pelas evidências que começavam a saltar aos olhos. 2000. Da América Portuguesa ao Brasil. se tornaram o centro das discussões. o que significaria que a mestiçagem aqui estabelecida teria acontecido por outro elo. p. 60 61 446 . uma nação de etíopes Machacatos. Nuno Mota). Stuart B. Portanto.63 Neste Ibid. p. Frei Jaboatão tentava chegar ao ponto nevrálgico da questão escondida: a da cor.. O Nome e o Sangue. 2003. os dois principais atributos que ninguém podia colocar em questão. outro aspecto perturbador que a palavra Mulato remete era a possibilidade de uma origem Etíope. os primeiros não são originários da África nem da Etiópia. nas Filipinas. eles são verdadeiros etíopes negros. 62 SCHWARTZ. entre o branco e a negra africana. Uma parábola familiar no Pernambuco colonial. de repente. Em seguida. 184. João dos Santos. (Trad. Cit. Ela é fruto da união das cores branca e negra. Segundo ele. Frei jaboatão. 20 . Ele se vale das palavras empregadas pelos portugueses para designar a cor das Índias da Índia Oriental: trigueiros. outros autores as chamam de Cafres ou Canarios. continua ele ainda. censebantur cum Indes specie nihil admodum caeteris differentes. Fr. estes são diferentes daqueles. 66 Ibid. 64 A mãe do Bem-aventurado Gonçalo Garcia é “uma verdadeira etíope”. Frei Jaboatão qualifica 64 “ Hi Aethiopes. 68 Ibid. 192. qui ex Africa crespissimos inter homines habent. acrescenta ele. qui sunt ab ortu solis sub Pharnarsatre. pp. qui ab ortu solis sunt. pp. está na origem de numerosos povoamentos (Gn 13. o Rei de Vrangnor na costa do Malabar. Caso os assitentes pensem que ele. p. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. 447 . basta lembrar o lugar ocupado pela Índia Oriental e pela Etiópia na Bíblia. Cit.. diz ele.momento da exposição. 65 Ibid. Santo Epifânio.. está exagerando. 26. baços. diz ele.66 Pouco a pouco. Frei Jaboatão esclarece o que ele quer enunciar. Esta Índia Oriental. eles são negros”68 Frei Jaboatão quer convencer a assembléia da cor Parda de São Gonçalo Garcia. Op. 67 Ibid. atque capilatura . segundo os autores mais importantes. dentre eles. todos citados por Solorzano em sua obra Jure Indiarum. JABOATÃO. 188-189. “os nossos são vermelhos. É verdade também que a cor Parda tem alguma coisa a mais. morenos. 185-186. A cor Mulata. É verdade. Santo Anastácio de Nicéia.65 O primeiro etíope ou negro que homenageou Deus feito homem foi Gaspar. assim o afirmam alguns autores. 194. Antônio de Santa Maria. permixtos crines. nam Aethiopes. afirme Frei Jaboatão. sed sono vocis duntaxat.. p. havia notado Raphael Bluteau. ”.. que são estas duas cores que devemos a formação dos principais povos do mundo. p. todos devem saber que a primeira parte do mundo que recebeu o nome de Etiópia foi a Índia Oriental.67 A cor dos Índios da América é diferente daquela dos Indianos da Índia Oriental. 190.. dizem que ela se estendeu até o Japão e à China. Frei Jaboatão retoma Heródoto que também é utilizado pelo padre Antonio Vieira em sua História do Futuro. 20). se assim como lhe sabemos os nomes. poranto. Fr. Mauritanos (Mauritânia) ou Mauron que quer dizer quase negro. pp. que talvez se naõ conheceraõ. Antônio de Santa Maria. mas os reis Pardos são mais numerosos. como afirmam os textos sagrados (Gn 25. Curas. Fr. podiamos de todos fazer hum catalogo muito bom.69 As primeiras monarquias foram. Ismael se casou com uma egipcia e eles tiveram doze filhos. Manoel receberam uma embaixada de um rei etíope. segundo ele. eles são descendentes de realezas sagradas. e ainda de Pernambuco. 16). huns.. que conhecemos. deram ao mundo o rei Salomão. 198-201. todos os seus filhos se dispersaram na África e se tornaram reis poderosos. Jaboatão relembra que o papa Clemente VII e o rei D. Há muitos reis brancos e negros. ao desposar a rainha de Sabá. pode-se dizer de Davi que. onde. 205. Nemrod. rainha negra da Etiópia.71 Ibid. cit.. o que se orgulhava de ser descendente de Davi. sexto filho de Chus.70 Frei Jaboatão nos dá informações esclarecedoras sobre a sociedade e a Igreja de Pernambuco. Este. Da mesma forma. outros. Certamente para surpresa da assembléia que o escuta. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. sem irmos muito longe de Pernambuco. era pardo. naõ achassemos alguns com côres mudadas. 1). Jaboatão anuncia que os pardos são. encontram-se muitos pardos: sem sahirmos do nosso Brasil. Na Jerarchia Ecclesiastica tambem tem a côr Parda sujeitos assinalados : Sacerdotes sem numero. Vigarios. Fr. op. Estes descendentes são conhecidos como Ismaelitas. 71 Idem. yimha a cor negra do lado do pai e branca do lado da mãe (Gn 10). numerosos e poderosos.Ismael de Pardo porque ele era filho de Abraão (homme blanc) e de Agar egípcia negra. e outros ainda de mayor Jerarchia também. De Ismael descendem os Pardos e eles excedem em número os brancos e os negros. podiamos fazer de todos huma boa lista. Para corroborar a sua lógica. portanto compostas por Pardos. sua escrava (Gn 16. pois era fruto de pai branco e mãe negra. Agareus. p. JABOATÃO. 69 70 448 . portanto. ela é a mais perfeita de todas as cores: . Segundo ele. 72 73 449 . também de Pernambuco. e por principios.saiba agora a côr preta. doutor formado na universidade de Coimbra. cõmunicando-se. 206-207. na Itália. e mais a branca. Cit. Existem muitos outros eruditos poderíamos nomear. mas saiba que ainda o he alguma cousa mais . virtuosos e santos tal como é o caso do irmão Inácio. por meyo da mesma natureza. nascido em Pernambuco.72 Fr.74 Aqui se encontra a ideologia subjacente no sermão de Frei Jaboatão.. como o padre Manoel Gonçalves. Ele foi aplaudido na corte portuguesa e estimado por dom Pedro II como homem virtuoso e humilde. pois ja tem tambem Santos da sua côr. Porque a côr Parda. 208. doutor nos dois Direitos (civil e canônico) pela mesma universidade. a natureza se encarregará de misturar as cores. ela possibilitará à cor negra e a cor branca toda a sua perfeição: Mas como a natureza sempre aspira a aprefeiçoar-se. diz Frei Jaboatão. por isso que Parda. Ele foi advogado da Casa da Suplicação. Tudo havemos ver sem offensa das partes. Antônio de Santa Maria. e ditosa como ellas.. 74 Idem.73 A finalidade da cor Parda é a de restaurar a cor negra. mas Manoel Gonçalves não aceitou. JABOATÃO. ou misturando-se a cor preta com a branca. assim se vai com a branca Ibid. falecido em 1744 na Bahia e muito admirado.As constatações de uma plêiade de nobres mestiços são então apresentadas: entre os letrados. Fr. Theologico.. Jaboatão explicita então a sua opinião sobre a cor parda. homens notáveis. pp. O mesmo rei quis nomeálo bispo de São Tomé. p. Op. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido. por isso que he Parda. e que a preta. que a côr Parda naõ só he taõ bemaventurada.. O padre Domingos de Sá e Silva. e bemaventurança vem á côr Parda. Moral. o venerável padre Pedro Soares Pereira. e mais a mais. nascido no Rio de Janeiro e passado a Gênova. Filosofico. natural. he mais perfeita que a branca. e Divino ou da Sagrada Escritura. e saiba que esta mayor dita. qual he a vermelha. os rostos JABOATÃO. senaõ outra côr meya. o grupo dos Homens Pardos existiam e eram injuriados e difamados. para Frei Jaboatão. A cor parda é um ponto de partida para se repensar as diferenças entre os Homens e as resistências sociais a tudo o que não se enquadra no pensamento hegemônico. diz ele. relegados à condição de inferiores. 75 76 450 . id est Ruber. 211. Op. Antônio de Santa Maria. até tornar ao seu principio. Cit. 165. Fr. e mista. 211. Frei Jaboatão segue padre Antonio Vieira. Deus não quis dar ao primeiro homem nem a cor branca nem a negra. não é um legado do passado e muito menos um discurso meramente retórico. e ficar no seu natural. 78 JABOATÃO. p.77 Segundo o franciscano. p. JABOATÃO. 209.Op. mas podemos estendê-la a todas as partes do mundo. Esse dado bíblico estaria. Cit. Trata-se da sociedade brasileira. 210. A resposta. portanto.76 Neste sentido. Ibid. Se a mistura dos grupos etnícos tem cores múltiplas.78 A leitura do sermão jaboatiano no Recife. é por que a cor Parda é a mais perfeita. raciocinava o padre Antônio Vieira para descrever Adão. A lógica do seu discurso vieirista é a criação do novo homem.. Se no passado. Op. Por quê? Interroga-se Frei Jaboatão. em 1745. quantos grupos sociais contemporâneos também não passam pelas mesmas condições. certo. Cf. § 177.. Deus criou o primeiro homem do barro vermelho: Adam. Deus teria escolhido a cor vermelha como a mais apropriada para a criação do homem. quaes saõ a branca.75 A mestiçagem seria. e a preta. revelando a opção de Deus pelos homens de cor Parda: Naõ quiz Deos que aquela côr fosse alguma das extremas. 20 do Rosario. que se compuzesse de ambas. A condição de Pardo de São Gonçalo Garcia seria uma luz para consolidar o fundamento da santidade e da perfeição. Jaboataõ Mystico em correntes sacras dividido.. p. p. Assim. 77 Serm. o meio para alcançar a perfeição. segundo o raciocínio de Frei Jaboatão.Cit..aperfeiçoando-se a preta. p. O sermão em honra ao Bem-aventurado Gonçalo Garcia nos revela surpreendentemente que o Brasil. Paradoxalmente. falarmos sem compromisso de um passado/presente. entre a verdade histórica e a mentira social. parece que nos ocultamos no presente para esquecermos o passado. 451 . em 1745. ou. começa um novo percurso de autonomia individual e coletiva.desfigurados pelas injúrias as mais sórdidas de hoje não escolhe cor. gênero nem idade. quando muito. . QUARTA PARTE Cultura e Circulação de Saberes . . aquele que era douto. foi analisado um grupo de advogados que aturam na administração da justiça como advogados ou juízes. Em razão da conjunção desses anseios particulares e necessidades públicas. letrado. nos livros que leram. mas. sobretudo. filósofos. os advogados constituíram. O objetivo desta comunicação é distinguir o peso das letras nessa prática da justiça em Minas Gerais. ao lado dos clérigos. médicos. Havia um desejo de tornar-se bacharel ‒ o que foi caracterizado por Sergio Buarque como um verdadeiro mal do bacharelismo ‒‒. nas suas bibliotecas e. No universo português. especialmente.. a comunicação busca distinguir o uso que os advogados faziam dos conhecimentos que adquiriram na universidade coimbrã. como em Mariana e Vila Rica.. 455 . daqueles que tinham o domínio sobre uma determinada literatura. os advogados. ainda pouco explorada no campo da história das práticas de leitura ou mesmo na história da administração e da Justiça. na prática administrativa da Justiça revelada pelas ações judiciais.Homo Litteratus: o mundo e os modos da leitura na prática da justiça em Minas Gerais no século XVIII Álvaro de Araújo Antunes Universidade Federal de Ouro Preto Litteratus. mas também demanda contida de serventuários capacitados para desenvolver atividades administrativas em órgãos do Estado e da Igreja. esses termos em latim serviam para designar a capacidade daqueles que sabiam ler e escrever. Leituras explícitas nas citações que esses advogados faziam para amparar seus argumentos nas ações judiciais que patrocinavam. litterosus. especialmente em algumas regiões do Império português. os principais agentes da administração dos órgãos centrais e também dos periféricos. O registro dessa atuação pode ser encontrado. essencialmente. Minas Gerais. No século XVIII. Mais precisamente. Dessa região crucial à “economia mundo”. compunham o segmento dos “homens de letras”. principal fonte desta análise. ao lado de clérigos. A ordem do Discurso.” significando “provará que”. de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim não permitir que todo mundo tenha acesso a eles”. 39. da práxis dos auditórios. a prática jurídica envolvia procedimentos. na segunda metade do XVIII e início do XIX. 3 ed. mas seu uso cotidiano abreviaria Conforme Foucault. de signos e fórmulas definidos pela instrução. da sua astúcia argumentativa. Imperava uma formalidade estabelecida por leis. bem como os dispunha em posições específicas de onde proferiam um enunciado carregado de autoridade que reproduzia um poder coercitivo. Michel.1 O ritual dos auditórios demandava dos letrados esse saber. da literatura jurídica. Alguns recursos eram extremamente comuns nas ações judiciais e faziam parte de um habitus ou prática dos auditórios. tais procedimentos faziam parte de um terceiro conjunto de elementos de controle dos discursos e das “condições de seu funcionamento. operações e manipulações técnicas que configuravam uma linguagem própria. dos libelos às apelações. Por meio dessa linguagem o crime era produzido. Em Minas Gerais. 2 FOUCAULT. faziam suas acusações. os letrados estavam presentes. A ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. natural ou ilustrada buscava dar um sentido ao ato desviante. p. Eles teciam seus argumentos. Parece-me. assentos e estilos que ordenavam o funcionamento do campo jurídico e a estrutura dos processos. evidente que a linguagem jurídica rústica. FOUCAULT. p. mas também pela prática jurídica. regimentos. São Paulo: Edições Loyola. Por meio dessa linguagem os crimes eram nomeados e dispostos conforme uma grade de classificações que dependia de um conhecimento especializado e que tinha a função de produzir efeitos jurídicos. Não pretendo com essa afirmação ou provocação negar a existência prévia da ação contraventora das normas escritas e/ou costumeiras. dando mostras do seu conhecimento das “melhores formas de Direito”. 21. contudo.2 Tratava-se de um discurso construído a partir de princípios. 1996. no início de cada proposição. apresentavam suas defesas. 1 456 .No século XVIII. nas ações cíveis ou criminais. Uma espécie de anáfora que deixava clara a intenção de convencer o juiz. os advogados dispunham a abreviação “P. Michael. Nas articuladas.q. Essa era a função da retórica adquirida na escola e nos livros. por exemplo. 3a ed. Luís Antônio. “intempestiva devassa”. “oh soberana senhora!”. quando o advogado. várias adjetivações visando sobrecarregar nas cores os delitos ou as qualidades das partes: “indigesto ato”. Antônio da Silva e Souza. ser absolvido”. hipérboles. p. tais como fiat justitia. “escandalosos procedimentos”. a prolepse era usualmente utilizada quando Silva e Souza antecipava e decompunha o argumento que poderia ser lançado pela outra parte no processo. s/d. o dilema. É possível encontrar. advogado de Mariana. exclamações e admirações úteis à oratória aprendida nos bancos de Coimbra também apareciam nas escritas dos advogados. Verdadeiro Método de estudar. enumeração subjeção.. há de o R. quando escrevia: “sim. ou ainda. Dentre as figuras de sentença. que estudei em meu mestrado e doutorado. “homem pacífico e quieto”. Os exemplos se multiplicariam. Ou ainda.essa locução e a transformaria em um recurso rotineiro e formal. que poderiam remeter a fundamentos jurídicos e tinham a função de induzir o juiz a favor da causa defendida. 3 457 . ainda.4 Convencer. São elementos da argumentação: a indução. fazia uso dessas figuras de sentença em alguns dos seus arrazoados. Dizia ele: “replico por negação e afinal convencerei”. sorites. tinham a função precípua de convencer o juiz. Códice 190. soberana senhora!”. Fórmulas recorrentes aos processos revelavam parte dessa prática discursiva que se constituía. como bem revela uma intervenção de um advogado de Mariana. Porto: Domingos Barreira. “fabulosas devassas”. Auto 4750 e VERNEY. o que era mais comum: terminava-se a articulada com expressões latinas. especialmente entre os “advogados velhos e experimentados” como Antônio da Silva e Souza. 4 ACSM 2 Ofício. chamado José Pereira Ribeiro.3 As estratégias argumentativas e retóricas. gradações. 87. a raciocinação. Também não faltariam metáforas. As interrogações. ao fim das articuladas. por comuns ou variadas que fossem.. ironias. reclamava a sentença a favor de seu cliente: “pelas razões expostas e pelo mais que fica no conhecimento de uma Justiça bem administrada. “excitar os afetos”. Em um caso de adultério. estavam subordinados à intenção de provar determinado tópico. Outrossim. p. como uma pele”. Ângela Barreto. a apresentação de provas concretas era um argumento superior que colocaria fim a qualquer celeuma. No campo da lógica jurídica. O trabalho da Citação. mais adiante. acabava reconhecendo a existência da amizade entre as partes para sustentar alguns dos seus argumentos. colocavam em cheque a coerência do conjunto da articulada. prática com a qual ela se sustentaria. e. 1998.5 Nesse sentido. 6 VERNEY. o discurso de Silva e Souza careceu de uma coerência interna ao método de raciocínio tópico utilizado. os “ornamentos”.6 Tais contradições enfraqueciam o cerne do argumento. a prova nunca parecia ser suficiente e tudo se afundava em um mar de artificialismos. 87. que o discurso tivesse nervos fortes e não fosse apenas um amontoado de palavras descoladas e fúteis. Era “preciso que as palavras.7 A prática verborrágica foi duramente condenada por Verney. Verdadeiro Método de estudar. Todavia. que comprava as coisas valendo-se do crédito que o marido possuía no mercado. alegou que o marido induzira a esposa ao adultério e à prostituição. se colassem às coisas. Porém. que se antepôs ao excesso de ornamentos estilísticos e à afetação. p. ou seja. Silva e Souza negou a existência de qualquer proximidade entre as partes envolvidas no processo. XAVIER. ainda que as palavras. isto é. 7 COMPAGNON.Nem sempre a retórica desse advogado mostrou-se coesa e fortalecida por uma organização lógica. Silva e Souza apresentou uma série de argumentos contraditórios frente à alegação do Dr. porém. perdendo sua força persuasiva. Lisboa: Edição Colibri. uma traição de amizade. 5 458 . Ou seja. ACSM – 2 Ofício. mais adiante. os argumentos lançados se adaptavam às necessidades. El rei aonde póde & não aonde quer: razões da política no Portugal setecentista. Auto 4716. p. contrariando a boa razão e mesmo a lógica. os “nervos do discurso”. figurassem como uma bela roupagem. 86.Antônio Pires da Gaia de que o crime em pauta envolvia traição aleivosa. Códice 288. bem como à retórica jesuítica que reduzia a inteligência a tropos e figuras. argumentou que a mulher passava fome e. logo após. 55. diante da “retórica afetada”. no caso apresentado. Verdadeiro Método de estudar. In: DESCARTES. São Paulo: Companhia das Letras. José Américo Mota. Norberto.12 Fato é que os argumentos desse advogado eram apresentados de maneira esquemática. Tropos metáforas ou metomínias. são recursos para encurtar o discurso e fazer mais gostosa a conversação. 10a ed. 150. Portugal: Publicações Europa-América. 11 VERNEY. mas há de haver proporção e adequação. Verdadeiro Método de estudar. Trad. da divisão de cada coisa em parcelas analisáveis. Maria Celeste C. Panorama histórico da cultura jurídica européia. 8 459 . tropo é um termo grego que significa “transposição. buscando a clareza das ideias. p. o que contribuía para a clareza HOLANDA. Sérgio Buarque de Holanda. 1999. Teoria do ordenamento jurídico. p. As paixões da Alma. Sérgio Buarque de. por Verney. o qual possuía em sua livraria e fazia parte do programa do curso de Leis da reformada Universidade de Coimbra. e o “preceito da síntese”. 99-101. Vida e Obra. e estes modos de falar chamaram-se figuras”. p. J. chegar aos mais complexos. A forma dos seus argumentos parece influenciada pelos Elementos de Euclides.como acusou José Murilo de Carvalho e. 26a ed. ao tratar do “mal do bacharelismo”. António Manuel.8 Em geral. nas articuladas que produzia. 18-20. Rene. elogiado. 1997. ressalta o padre oratoriano. José Pereira Ribeiro não fazia uso de um “estilo sublime”. p. 10 “E uma vez que o exemplo clássico do sistema dedutivo era a geometria de Euclides.11 O método se assentava na pronta aplicação do “preceito da evidência” que poderia ser completado ou preparado pelo “preceito da análise”. gradativamente. p. Raízes do Brasil. mas de um estilo simples.9 Essa adequação e proporção. p.10 Outra influência no discurso de Ribeiro poderia advir do método cartesiano. por meio de um argumento firme e de poucos e adequados tropos. ainda que com ressalvas. 77. Euclides foi um autor que contribuiu para a constituição de uma lógica dedutiva que permeava a concepção racional de Direito dos jusnaturalistas dos seiscentos e setecentos.” BOBBIO. Santos. 1997. 12 PESSANHA. que conduz o pensamento dos objetos mais simples para. HESPANHA. repleto de ornamentos. São Paulo: Nova Cultural. VERNEY. antes dele. 1995. bem como o predomínio da lei e da lógica sobre a retórica pomposa se evidenciam em todos os escritos desse advogado. 159. 82-83. a pretensão dos jusnaturalistas de elaborar um sistema jurídico geométrico more demonstatum. 9 Segundo Verney. Brasília: Editora UNB. Discurso do Método. Meditações. A filosofia do Iluminismo. Belo Horizonte: Editora UFMG.15 O método tópico parte de uma proposição que se converte em problema o qual. o historiador aponta uma influência de autores clássicos. Campinas: Editora UNICAMP. ciência do raciocínio. Álvaro Cabral. ciência da elocução. como Voltaire. segundo Luiz Carlos Villalta. agudezas. seguindo uma convenção poética rococó. Analisando os discursos jurídicos do século XVII. somado ao acesso aos livros e a um esforço de adequação aos novos padrões e valores. valoriza a razão [. 14 VILLALTA. nessa ordem. como Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa. Quanto às influências mais gerais que perpassam a obra de Cláudio Manuel da Costa. que pode ser localizado nos procedimentos e discursos de alguns advogados. todavia. Ribeiro era advogado novo e construía seus argumentos com uma lógica quase matemática.]”. p. Luzes e Trevas: Minas Gerais do Século XVIII. especialmente entre aqueles que estudaram antes e depois da reforma da Universidade de Coimbra. Universidade de São Paulo. El rei aonde póde & não aonde quer: razões políticas no Portugal seiscentista.Trad. Fábio. Ângela Barreto. explicariam uma espécie de “estilo misto”. como Virgílio. é sentimental. e o da tópica. 1999. por outro. é analisado.. o da retórica. 1998. Sobre as poesias dos inconfidentes ver: LUCAS. no exercício dos auditórios e. o mesmo historiador observa que “se.13 Não é despropositado. em seguida.. 472. Analisando sua poesia. Xavier observou que no gênero judicial o método tópico assim se 13 CASSIRER. p. 82. Este aspecto. limpa as lágrimas dos paradoxos.14 Entretanto. Ângela Barreto Xavier distinguiu dois campos. Reformismo ilustrado.de suas acusações ou defesas. p. 327. conjugou em seus escritos elementos dos “velhos paradigmas” às novidades das luzes e do arcadismo. na falta de um estudo sistemático. o que se nota é a utilização do método tópico. supor que houvesse um intercâmbio de ideias e estilos entre os advogados. apresentando os argumentos e as soluções. por um lado. Tese (Doutorado em História) ‒ Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Luiz Carlos. Este.São Paulo. Ernest. censura e práticas de leitura: usos do livro na América Latina. 15 XAVIER. 2a ed. hipérboles seiscentistas. 460 . 1994. e de autores da Ilustração. 17 Nas obras e nos processos judiciais. a partir de seu horizonte de conhecimento. que faz referência aos autores adotados pelo pombalismo. solução. Luiz Carlos. ainda que. Editora UFMG. Vária História. bem como seu uso na sustentação dos argumentos. argumentos desfavoráveis. em especial S. principal razão favorável. p. 2004.. desconstrução das razões desfavoráveis. n. coordenando a autoridade desses autores para constituir seu argumento na conformidade do método tópico.organizava: proposição. El rei aonde póde & não aonde quer: razões políticas no Portugal seiscentista. Rio de Janeiro. os vassalos e os impostos: concepção corporatica de poder e método tópico num parecer do Códice Costa Matoso. 224. 17 GOMES. 28. menciona: o Velho Testamento: o Êxodo e o Levítico. em geral. Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga seria um autor de transição. Inocêncio XI.. Gonzaga cita: S. Gonzaga poderia ser considerado um advogado formado nas escolas jesuítas. 16 461 . revela uma pequena fração do universo das leituras e das práticas do seu autor. Além desse pensador. p. As letras da tradição: o tratado de direito natural de Tomás Antonio Gonzaga e as linguagens políticas na época pombalina (1750-1772). retroagindo em outras. José I seguiram ritmos distintos. Belo Horizonte. o Concílio de Niceno etc. Da Bíblia. Dissertação (Mestrado em História) ‒ Instituto. o papa Alexandre VII. XAVIER. mesclando-se e se afirmando. os argumentos dos advogados formados nos bancos das escolas inacianas seguissem as linhas mestras dessa forma de raciocínio. o Novo Testamento. problema. compositor do Ius Eclesiasticum universum e pensador adotado pela reformada Universidade de Coimbra. Rodrigo Elias Caetano.16 Há de se considerar que as mudanças promovidas no reinado de D. avançando em determinadas áreas. 118. as referências aos livros e leis indicam as leituras efetivadas pelos advogados. VILLALTA. conclusão. Universidade Federal Fluminense. “A Carta Sobre a Usura”. Nela consta a presença de autores como Van-Espen.. mas também era um advogado que procurou novas referências bibliográficas e. Ângela Barreto. p. esse modelo poderia variar. argumentos favoráveis. Conforme as exigências impostas pelas causas ou a capacidade do advogado em lidar com as formas textuais. incorporou novas leituras à sua obra. Ambrósio. por exemplo. 1999. 87. El-rei. CHARTIER. isto é. Atos de Censura: ensaios de história do livro e da leitura na América Portuguesa (1750-1821). Porém.19 Assim concebidos. Enfim. as leituras e seu uso se revelam por meio das citações implícitas e explícitas de obras e autores. a autora observa que a leitura demanda um exercício de interpretação e de troca entre o leitor e o material impresso.. Segundo Leila Mezan Algranti. p. Carta sobre a usura. Da leitura como produção de sentidos. inovadora e inventiva. que corresponderia às necessidades do uma questão envolvendo a moral. p. como a censura institucionalizada ou informal. Livros de Devoção. o que incluiria formas de controle do sentido. uma prática cultural. cultural e político.18 Observa-se uma tradição literária assentada no Direito Canônico. Para Goulemot. Tomás Antônio. mas também de repressão. Para além da relação que se estabelece entre o leitor e o livro. 221.20 Essa concepção plural da leitura e dos leitores aponta para inúmeras variáveis que poderiam intervir na interpretação. In: CHARTIER. na “Carta Sobre a Usura”. Roger. 19 Chartier especifica dois tipos de protocolos de leitura: o constituído pelo autor e aquele que é formado pelo editor. que abarcaria um sentido fisiológico. 21 Se existe a “ordem do livro”. afetivo.Mateus e S. Os livros tinham uma ordem. Leila Mezan. Lucas. a leitura deve ser pensada enquanto uma relação que envolve variáveis que remetem à própria existência do leitor..10-11. In: GONZAGA. ressaltando ainda que “tudo pode ser através do termo história”. Práticas de Leitura. Roger.108. GONZAGA. com seus protocolos impostos pelo autor e pelo editor. 2004. como quando menciona “o vaidoso Gama com as vitórias da Índia”. os livros tinham um componente de libertação. p. a leitura e o leitor adquirem uma dimensão histórica. Tratado de direito natura. O Campo das Práticas de Leitura. os leitores deveriam se ater ao óbvio. uma ortodoxia que não deveria ser quebrada. São Paulo: Hucitec/Fapesp. 18 462 . que tomava corpo na própria prática dos auditórios. Gonzaga faz ainda algumas referências históricas veladas. o leitor na relação com o texto “define-se por uma fisiologia. 21 ALGRANTI. uma história e uma biblioteca”. especialmente em um “estado autoritário e censor como Portugal”. Esses protocolos são concebidos a partir da imagem de um leitor ideal e visam estabelecer balizas. 20 GOULEMOT. de onde se pensar em práticas de leitura mais do que em um leitor ideal. 157. p. estratégias para nortear a leitura. Rio de Janeiro: Bertrand. inscrita em um espaço. Culture Écrite et Société: Lorde des Livres: XIVe -XVIIIe Siècle. p. o universo relacional de um advogado setecentista. Chartier afirma que o melhor método para o estudo das leituras é “não recusar nenhuma das percepções que permitem reconstruir.22 O leitor não se enquadra. é extremamente volátil. A história cultural: entre práticas e representações. 1981. Lisboa: Edições 70.19 e 46-47. suas interpretações e subversões do sentido estrategicamente impingido pelo texto e pelas disposições gráficas”.171. Maria Manuela Galhardo. 25 BARTHES. todavia. isto é. 24 Diante destas dificuldades. mas transborda pelas margens do escrito que querem contê-lo. 1990. a censura institucionalizada ou o sentido literal. Roger. Trad. quando muito. p. à margem dos impressos resta uma ou outra anotação do leitor. o que os leitores faziam das suas leituras”. raramente deixa rastros. Em ambos casos. 22 463 . a escrita perdura embalsamada.25 As citações nas ações judiciais indicam dois procedimentos de apropriação. 23 ANTUNES. Essa apropriação inicia-se com uma operação quase CERTEAU. Espelho de cem faces. pelo menos parcialmente. A invenção do cotidiano.23 Para além dessas pequenas pistas ou dos relatos sobre a prática da leitura entre os advogados. 61. Neste sentido. p. produzido por outrem que não aquele que o cita. as citações dos livros nos processos servem para identificar quais os livros que leram e que uso davam a essas leituras. de inscrição no espaço: o primeiro. CHARTIER. é a citação literal. “O movimento dos olhos a decifrar os sinais não fica gravado no texto. p. CHARTIER. Roger. mais do que um leitor inscrito e encerrado nas grades do texto. O grão da Voz: entrevistas 1962-1980. Paris: Albin Michel.seus “protocolos de leitura”. sua astúcia e tática. 9. mais evidente. O segundo é uma apropriação do discurso alheio. normalmente. 1996. Roland. Sua astuta atividade. Michele de.24 Diferentemente da prática da leitura e mesmo da voz empenhada no exercício da oratória. existe também a “inteligência e inventividade do mais fraco”. a leitura consiste em uma operação de depredação e de reconstrução do objeto pela memória ou pela cópia. não se encaixa. as ações judiciais se apresentam como uma dentre as possibilidades de resgatar o que os leitores/advogados faziam de suas leituras. o que consiste em uma grande dificuldade para as investigações. O leitor é mais do que o ideal. com a identificação da autoria. 27 Por meio da leitura. foi a solicitação: um pequeno choque perfeitamente arbitrário.cirúrgica de seleção. mais adiante.26 Essa operação cirúrgica de seleção. p. Michel de Certeau dá a dimensão da importância dessa prática para o letrado ao considerar que “a citação é o meio de articular o texto com sua COMPAGNON. Stuart B. a consulta do excerto registrado ou destacado no texto garante um acesso mais ligeiro ao conteúdo. SCHWARTZ. o que faz com que me interrompa. extração e transposição pode ser localizada nas ações judiciais analisadas. que o fragmento acima ilustra. totalmente contingente e imaginário”. um argumento ou sentença. Stuart B. O ato de grafar um trecho do argumento era também uma intromissão num espaço estruturado do texto. para citar um termo de Compagnon. “Quando leio. Em algumas ações judiciais é possível notar todo esse processo a partir da seleção de algum trecho de arrazoado ou testemunho que comporia. extração de um excerto e transposição para outro ambiente ou outro texto. O trabalho da Citação. p. Mas o que antes despertou esse tropeço? Bem anterior à citação. 20. que deveria ser explorado e/ou transladado. O trabalho da Citação. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. uma subversão da ordem do escrito pela asseveração da leitura. da memória ou grifando um trecho de livro ou do processo. o leitor/advogado buscava dominar o conteúdo do texto para utilizá-lo nas ações ou no exercício de oratória das audiências. com que pare diante de determinada frase e não de outra? O que esse tropeço desperta em mim? Ele põe em movimento todo o processo da citação. Grifos nos processos revelam a seleção de um trecho para citação. Grifar os textos. p. Schwartz indica essa prática quando trata dos instrutores que “supervalorizavam a memória capaz de decorar trechos e a habilidade do estudante que mosqueava as margens de sua argumentação ou tratado com citações cultas e referências clássicas”. 59. produzidos ou não por outrem. 26 27 464 . ou mesmo intervir com considerações à margem dos processos era uma prática relativamente comum entre os advogados. pode notar os que são de maior utilidade e pôr-lhe um sinal para se aplicar a eles com o tempo”. Trata-se de uma espécie de “metáfora”. 14-15 e 101. 28 Tratando do século XVII. COMPAGNON.28 Em que pese a força do tempo e do esquecimento. mais profunda e obscura. Verney aconselhava a prática de se grifar textos como um elemento importante no estudo: “quando o moço vai lendo. no excerto apresentado o que se revela é uma prática cotidiana que engendrava o conhecimento de uma literatura jurídica.. p. 768. CERTEAU. como João Rodrigues Cordeiro.. Algumas dessas armas ficavam camufladas nas formas de citações implícitas. só escreveram uma obra de cunho jurídico e poderia dispensar especificação quando citada nos autos. Códice 190.. Nasceu em meados do XVII.] a citação introduz no texto um extratexto necessário. uma credibilidade referencial.30 Alguns autores. Michele de. mencionava os “doutores de Direito significantes. Cânones em Coimbra.exterioridade semântica [permitindo] uma credibilidade referencial”. Cabalo. sobretudo. a multiplicação dos nomes próprios. Auto 4750. e o grande Conciolo e todos os mais doutores verb testis que muito bem conciliou o nosso português Ferreira em sua Prática Criminal e Cabral no seu Epílogo Jurídico”. 32 ACSM – 2 Ofício. como quando o Dr. Auto 8811. essa prática demandava estudar os processos e. que “ninguém por direito é obrigado a ressarcir casos fortuitos”.. assim. Códice 402. Júlio Claro. “[. ainda assim. para encurtar suas argumentações sem perder a força das citações. p.32 As leis também eram mencionadas de forma velada e incorporadas à argumentação. Códice 190.. de permitir-lhe fazer de conta que assume uma parte da cultura e de lhe assegurar. Ribeiro alegava. Auto 4750. responsável por completar as lacunas deixadas por essas citações. por exemplo. por exemplo: “resolve Farinácio. Silva e Souza. 31 João Rodrigues Cordeiro. 30 ACSM – 2 Ofício. Escreveu Dubitationes in foro. 29 465 . Reciprocamente a citação é o meio de articular o texto com sua exterioridade semântica. das descrições [.33 Essa forma de Segundo Michel de Certeau.29 Crucial aos advogados. O conhecimento livresco e a autoridade alheia eram armas essenciais às escaramuças jurídicas. poderiam ser identificadas por aqueles que detinham o conhecimento bibliográfico próprio do ofício..]”. no já mencionado roubo dos “Calhambolas”. volume II. Sob este aspecto a produção da “ilusão realista”. A invenção do cotidiano.31 Apesar disso. mas que. especialmente criminais”. 33 ACSM – 1 Ofício. 102. Os advogados poderiam citar diversos autores sem especificar a quais obras estavam se referindo. consultar uma livraria fornida de autoridades em Direito. AUXILIAR jurídico. 34 Apesar de argumentar que o “Direito nasce do fato”. Manuel Álvares Pegas. citou explicitamente as Ordenações e vários autores. alegando sua incompatibilidade com o caso e questionando o argumento do Dr. autor do século XVI que escreveu sobre a prática do Direito Civil e Eclesiástico. e Macedo. v. Panorama histórico da cultura jurídica européia.164 e 165.. Se a citação implícita requeria um vasto conhecimento da bibliografia da época.). Manoel Brás Ferreira fez uso de uma série de citações de doutores em Direito Sacro e Civil. Antônio Pires da Gaia. Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. António Manuel (Org. possivelmente o decisionista Antônio de Souza Macedo. HESPANHA. Miguel de Reinoso. como foi visto. 174. sendo a referência às obras a prova de que tais livros foram lidos. ao menos em parte. 36 MACHADO. 21. 1984. e o também já citado Manoel Álvares Pegas. p. entre eles: Manuel Mendes de Castro. comentarista do século XVII e famoso por sua memória. constavam nas livrarias dos advogados. decisionista seiscentista. v. Manoel Brás Ferreira também fez menção às Ordenações Livro 4 título 4. autor de Comentaria as ordinationes regni. sob a forma de um comentário quase de verbo ad verbum”. pelo contrário. nascido em 1606. 393. p.1. Gaia. tais como: Agostinho Barbosa. 482.. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. o que poderia representar à população um alto grau de sofisticação da Justiça ou. 309.citação era usual deste e de outros advogados indicando uma difusão de saber comum à profissão.. autor da Practica Lusitana.. 54. o já mencionado praxista do século XVI. 296.. refletir a imagem da desorganização. 34 466 . Mendes de Castro.35 Todos os autores citados. as explícitas dispensavam um saber mais acurado. Manuel Thenudo. § 1. Biblioteca Lusitana. 3.36 Não obstante as citações remetessem às leis e aos “doutores de Direito”. advogado do autor. cuja obra consistia em uma “mole imensa de dados. Na já mencionada ação em que Gaspar Manuel solicitava de volta o escravo que havia cedido por pressão de intermediários. Nessa mesma ação. p. é possível distinguir algumas poucas peculiaridades quanto As dissenções em torno das leis e das doutrinas favoreciam a morosidade e a complexidade dos tramites processuais. 35 HESPANHA. p. envolvendo. Códice 413. fazendo lembrar a comédia Eufrosina onde o advogado “desenfardelava” o latim e “desta maneira sustentava sua malícia e vaidade da nossa inocência e parvoíce”. ACSM. (inédito). todavia. O autor apresenta o caso do Desembargador João Figueiredo. Códice 412. 38 Vasconcelos. Esse conhecimento permitiu-lhe identificar. termo que era muito comum entre os advogados. 1 Ofício. ser condenado na forma pedida”. fez uma referência à história bíblica quando escreveu: “por que é tal a miséria dos lisonjeiros que por satisfazerem aos lisonjeados e ganhar-lhes a benevolência e honras aparentes do mundo que são como fumo que passou no tempo de Abrão”. por exemplo. Trad. as Novelas apareciam como sendo “Direito subsidiário”. Códice 375. apud. Auto 5722. 1 Ofício. ACSM. ACSM. Auto 9020. Introdução a História do Direito. Pela classificação que o próprio desembargador deu à sua biblioteca.38 Todo esse aparato. Auto 9863. leitor de romances. 1 Ofício. de “João Jacques Roussó”. ACSM. Códice 481. ACSM. Comédia Eufrosina (1561). p. 1 Ofício. ACSM. 3a ed. Jorge Ferreira de. história e estilo. Luiz Carlos. Auto 9267. GILISSEN. Auto 8989. Macaísta Malheiros. Auto 10745. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Ou pela conclusão de Antônio Pires da Gaia: “em cujos termos e pelas doutrinas e razões referidas deve o R. 2 Ofício. revelado na expressão latina de Manoel Brás Ferreira: “facta de more solito justitia” ou ainda “Fiat Justitia”.aos advogados. 1 Ofício. ACSM. Auto 5722.M. Códice 375. O que se evidencia nessas conclusões de arrazoados é que ambos advogados tinham o mesmo objetivo: convencer o juiz de seus argumentos. John. tanto Antônio Pires da Gaia quanto Manoel Brás Ferreira copilaram longos trechos em latim das obras que consultaram ou tinham na memória. romance. 1 Ofício. O desembargador justificava a leitura dessas obras pela necessidade de reprimir os leitores de livros defesos. romances. Auto 8205. ACSM ‒ 1 Ofício. 39 Antônio Pires da Gaia e Manoel Brás Ferreira se enfrentariam pelo menos em outros seis processos e novamente lançariam mão dos livros que possuíam para sustentar seus argumentos. buscava um fim prático. 380. 467 . Códice 229. 2001. a recopilação de trechos de Júlia ou Nova Heloísa. em umas cartas que chegaram à sua avaliação.37 No geral. Luiz Carlos Villalta destaca que o conhecimento dos letrados não se restringia à tradição literária jurídica. bem como na recorrente utilização de autores como Pegas e Mendes de Castro. Códice 428. Ademais. todavia. inclusive proibidos.39 Recorria-se aos autores respeitados e às Ordenações com o objetivo de “cingir” 37 Em um trabalho recente e ainda inédito. Manoel Brás Ferreira. 1 Ofício.Viagens e práticas de leitura no Brasil Colonial: Robinson Crusuoé. Códice 229. por exemplo. António Manuel Hespanha e L. Códice 454. ACSM. Auto 8205. os arrazoados se assemelham na forma. VILLALTA. A Invenção do cotidiano. utilizando mais da legislação em detrimento de seus comentadores.40 Nos pleitos. Fazer crer é fazer fazer”. Michehe de. Ela produz praticantes. Nesse sentido. E nesse processo. Nesse sentido. a citação era a arma ferina e decisiva. é de essencial relevância um estudo que se volte para a prática da Justiça. observa Certeau que “uma credibilidade do discurso é em primeiro lugar aquilo que faz os crentes se moverem. no cotidiano dos auditórios. as citações serviam de armas ferinas em escaramuças que poderiam ser tão acirradas quanto as tradições em embate. Os advogados formados na reformada Universidade de Coimbra seriam mais comedidos nos usos das citações e avessos ao uso ornamental das palavras. Conforme explicitou João de Souza Barradas ao se referir à função das citações que fazia: “nos mais que quiser. 40 468 . É preciso considerar a circulação de conteúdo. 241 e 290. Por outras vias. com os quais me cinjo e conformo”. de modo a dotá-la de consistência e persuasão. referências literárias entre os advogados. Auto 10491 e CERTEAU. por aqueles citados. p.e dar forma à exposição judicial. não obstante os conhecessem. informação. José I. que considere os diversos fatores que interferiam no ambiente vivo da Justiça. procurava-se promover uma isometria de procedimentos mais ou menos adequados às diretrizes estabelecidas no reinado de D. ACSM ‒ 1 Ofício. Códice 472. Rita Marquilhas. conexão e contato entre pessoas. Trata-se. como o livro. de conhecer e entender um complexo conjunto de meios que se tornaram. o jornal as revistas. Nelson Schapochnik e Márcia Abreu no Brasil. Leila Mezan Algranti. entre muitos outros. dos Reis Miranda em Portugal. Daniel Roche e Robert Darnton. espanhola e brasileira. o modo privilegiado de transmissão. A estes “pioneiros” da história do livro e da leitura como objeto e fato cultural devemos acrescentar alguns nomes da historiografia portuguesa. ideias e ordens de pensamento. e do conteúdo no segundo. política e cultural dos processos de transmissão. circulação. P. Os tempos atuais nos oferecem grandes e novos desafios.Contar coisas de todas as partes do mundo: as Relaciones de Sucesos e a circulação de notícias escritas no período filipino Ana Paula Torres Megiani Universidade de São Paulo A história da escrita e da leitura na cultura ocidental pode hoje ser considerada um campo bastante consolidado no conjunto daqueles temas que se colocaram na pauta da história cultural das últimas duas ou três décadas. ou liquefação. a partir do século XVIII. Fernando Bouza-Álvarez e António Castillo Gómez na Espanha. coevas e/ou transtemporais. tais como José Tengarrinha. grupos. Estudar as diversas formas de manifestação escrita não constitui uma reflexão simples ou meramente pragmática. e que não necessariamente aportam as dimensões social. João Luis Lisboa e Tiago C. dos impressos de maneira geral. Diogo Ramada Curto. não se trata de um conhecimento de caráter literário ou de bibliofilia. Ana Isabel Buescu. sim. e transformação da escrita propriamente dita. Luis Carlos Vilalta. abordagens que podem prescindir de aspectos da materialidade no primeiro caso. tal como foi proposta por Roger Chartier. cujos processos de composição encontram- 469 . já que vivemos uma espécie de desmaterialização. bibliotecas e arquivos acessáveis e acessíveis. XV-XIX vigorou entre 2005 e 2009. É nosso papel.1 Nossa contribuição a este projeto teve como ponto de partida entender a relevância da coexistência de diversos circuitos e variados níveis de comunicação nos impérios coloniais da Época Moderna. com a disponibilização de cada vez mais acervos raros de bibliotecas e arquivos de todas as épocas e partes mundo. Há algo da imortalidade perdida nessa ânsia pelas coleções de livros e documentos. leitores e professores deste tempo aportar contribuições à reflexão. Dra. Laura de Mello e Souza. pelo contrário. quanto em dimensões vinculadas e alternativas O projeto Dimensões do Império Português – sécs. foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e coordenado pela Profa. impressas. têm nos mostrado o oposto. comunicação e transmissão virtual de textos pela rede em portais. abrigado na Cátedra Jaime Cortesão da FFLCH-USP. Essas mudanças. ou seja. mas é inegável que o próprio trabalho do historiador foi profundamente favorecido pelos processos de reprodução digital de fontes. manuscritas e visuais. a ponto de nos imaginarmos a caminho da composição de uma espécie de “biblioteca de Babel”. 1 470 . O Núcleo de Cultura era coordenado por mim e pela Profa. como imaginou Jorge Luis Borges no conto de 1944.se cada vez mais modificados pelas tecnologias da informação. presentes tanto no nível oficial das relações de poder da monarquia. Há alguns anos tivemos a oportunidade de integrar um grupo de pesquisa. sites e plataformas. do século XVI ao XIX. que cada vez mais a escrita e a leitura fazem parte da vida humana em todas as suas dimensões. mas que não garante o domínio total do conhecimento universal. durante o qual coordenamos pesquisas no campo da História da Cultura e organizamos um colóquio sobre a cultura escrita e suas dimensões no mundo ibérico. enquanto autores. confirma a dimensão mortal e limitada da nossa existência. mas que nos angustia posto que jamais conseguiremos percorrê-los integralmente. Leila Algranti da UNICAMP. pois previu-se que os livros em papel iam desaparecer (e com eles desapareceria o amor pela leitura entre as novas gerações). que inicialmente foram prognosticadas com pessimismo. Dra. o Projeto Temático Dimensões do Império Português. Não pretendemos enveredar por esta linha de reflexão. A prática epistolar e as cartas de D. a palavra escrita diferenciou-se como meio de comunicação em relação às dimensões oral e visual. o texto de prensa não pode ser tratado como mera evolução dos registros manuscritos. Sentir. tanto nos espaços das conquistas como na própria corte.a ele.Universidade de São Paulo. impressos e manuscritos integraram a construção de culturas multifacetadas na dimensão imperial. revelando-se como sustentáculo das funções administrativa e governativa das monarquias ocidentais. na temporalidade do chamado Antigo Regime. 2011. 3 Sobre a prática de governar por escrito à distância ver recente tese de CONCEIÇÃO. 2009. Formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico. sermões ou literatura de devoção estão entre aqueles que formaram um amplo conjunto de obras impressas. onde o registro escrito foi ganhando intensidade e multiplicando-se – quer pelo uso da imprensa.2 Diversas foram as formas de escrita e leitura que desempenharam papéis fundamentais na transmissão de ideias. nesses espaços. ou eram copiadas e enviadas para longe a familiares e amigos distantes como O encontro resultou no livro ALGRANTI. Adriana Angelita. tal como se dava no coração das metrópoles. declamadas ou ditadas em voz alta por letrados àqueles que não conheciam a virtude das letras. Ana Paula Torres (Orgs.). embora todas as formas de impressos tenham sido centrais na problematização da história da escrita e da leitura. Como sabemos. manuais de etiqueta. tal como se pensava há algumas décadas atrás. Leila M. Tese (Doutorado em História Social) .3 Nesse sentido. e MEGIANI. normas. Luis de Almeida. secs XVI-XVIII. costumes e saberes entre a metrópole e suas colônias. A partir dos debates ocorridos ressaltamos que. bem como no interior e entre as diferentes possessões ultramarinas que integravam os impérios coloniais. escrever e governar. ao longo dos séculos XVI e XVII a tradicional oralidade medieval se manteve presente em ambientes cortesãos europeus. cujas práticas de etiqueta e comportamento manifestaram-se em consonância aos gestos e ações marcados pela presença física do emissor. 2 Marques do Lavradio (1768-1779). quer através de oficinas de copistas profissionais e amadores –. 2 471 . muitas vezes lidas. São Paulo: Alameda/FAPESP. espelhos de príncipe. Nem sempre. valores. O Império por Escrito. muito comum na cultura escrita dos séculos XVI.4 Um trabalho recente realizado a partir deste tipo de fonte. TALIA DIXT 6 (2011). vale lembrar que impressos e manuscritos possuem específicas materialidades. listas e relações de obras que encontramos desde o século XV. bem como seus aspectos físicos. As diversas formas de utilização desses artefatos.espécie de fio de lembranças inesgotável. XVII e XVIII. imprescindíveis nos modos de governar à distância entre funcionários das Coroas e os colonos. foram também descritos e transmitidos por meio da palavra escrita a exemplo dos catálogos. O tema deste breve artigo não é novo nem inédito. mas merece atenção. Andréa. Relações de sucessos como elementos da cultura da vitória na Restauração portuguesa. ou por uma instituição. com grande interesse para o período que aqui destacamos. 4 472 . A circulação de notícias acerca dos eventos. em consonância com os especialistas. ao universo dos artefatos e das relações dos indivíduos com as coisas e seus gestos relacionados. Além disso. acerca da relevância desse tipo de documento. que remetem ainda para além das palavras. semelhantes às existentes na ampla variedade de objetos de uso religioso. é o de DORÉ. 121-137. dessa forma chega-se até a formação de ricas coleções de volumes impressos e manuscritos de uso de letrados nos reinos e nas regiões de conquistas. tem sido cada vez mais abordada em pesquisas e edições de fontes específicas do período colonial e da época moderna em geral. Nosso interesse aqui é refletir. In. p. O conhecimento e análise desses conjuntos de escritos. permite aprofundar a reflexão acerca de modos de fixar. além de gravuras e mapas que circularam e foram objetos de coleções. sucessos como eram denominados os acontecimentos que ocorriam em todas as partes do mundo. ou entre representantes das diversas ordens religiosas distribuídas nos recônditos territórios ocupados pela religião católica em comunicação com seus principais. doméstico ou científico que cruzaram os mares ao longo dos séculos da expansão e conquista europeias. mas que durante muito tempo foi considerado de menor importância. circular e colecionar saberes à distância. Novos estudos têm demonstrado a intensificação da circulação de relações impressas e manuscritas. reunidos por uma pessoa. Fernanda (eds. Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora. 33. dos Reis. fols. entreter e comover o receptor sobre “coisas que têm sucedido”. Foram extremamente frequentes nos séculos XVI e XVII. o Chantre da Sé de Évora. nos quais são relatados acontecimentos com o objetivo de informar. ambas em 1625. códice Severim de Faria. parcialmente.Com esta notícia Frei Bernardo de Gost relata a Manuel Severim de Faria. 2002. sobretudo quando se tratava de Correspondência remetida em 2/07/1625 por frei Bernardo de Gost a Manuel Severim de Faria. foram celebrizados pelas pinturas de Diego Velázquez e de Juan Baptista Maino. 5 473 . Lisboa: Colibri.1 6 Episódios bélicos do início do reinado de Filipe IV. sem periodicidade regular. 33. 7 Sobre Gazetas Manuscritas ver: LISBOA. relações de sucessos podem ser definidas como textos ocasionais. respectivamente. 1 (17291731). continuariam a existir até o século XIX. que me deu o secretario de Dom Fradique e pode ser q já terá ahi o rol dos mortos e feridos. A forma impressa das relações se consolida e ganha ampla divulgação na primeira metade do século XVII. Não le devem de faltar a VM relações famosas. com tudo lhe mando com esta. a partir da segunda metade do seiscentos. e que posteriormente ganhariam versões impressas e pictóricas. Tiago C. q por este respeito lhe não mando hua.P.”5 Tratam-se dos acontecimentos da tomada da cidade de Breda pelos espanhóis e da expulsão dos holandeses da Bahia.6 De modo geral. contudo. mas sabidos por meio de relatos escritos e preciosamente conservados. As relações. João Luís.7 Vale observar ainda que as relações impressas surgidas no XVI não substituem as manuscritas. 005. 2 (1732-1734). Vol.. que vieram substituílas. OLIVAL. Mss Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.) Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora. 2005. “Eu mandei em chegando á esta cidade a nova da tomada da Bahia com o sangue na guelra. I.. MIRANDA. Vol. antecedendo as Gazetas manuscritas e impressas. Lisboa: Colibri. os quais Gost ficara conhecendo por meio de relações que teriam circulado inicialmente em forma manuscrita. e também a de Breda. eventos não presenciados. acompanhando a expansão da cultura escrita no ocidente. e com o dito messante de quatro meses. Destacamos aqui somente dois deles que foram utilizados na elaboração deste artigo: da Universidade de Sevilha http://bib. Das artes da pena e do pincel: caligrafia e pintura em manuscritos no século XVIII. p.). o que dificulta o aparecimento de projetos de pesquisa sobre o assunto. Rio de Janeiro. ou mesmo sua presença muito efêmera. mas de onde ela não poderia oficialmente partir. Das palavras e das coisas curiosas: correspondência e escrita na coleção de notícias de Manuel Severim de Faria. e MEGIANI. Ver Apresentação do livro ALGRANTI. 10 Existem muitos grupos de pesquisa dedicados ao estudo das Relaciones de Sucesos castelhanas e em outras línguas. Leila M. Ana Paula Torres (Orgs. Os resultados e a periodicidade dessa circulação não foram ainda estudados suficientemente. 9 Enquanto foi predominante a ideia de que a ausência de imprensa no Brasil colonial. v. 2011. 2007. Revista Topoi. Sobre a rede de correspondência de notícia de Manuel Severim de Faria. incentivando o uso da imprensa desde o início.es/relacionesdesucesos/ e o da 8 474 .Universidade Federal de Minas Gerais.us. O Império por Escrito. Op.9 As notícias desta parte do mundo eram então recolhidas. onde muitas vezes era difícil ou interdita a instalação de prensas. permaneceram ignorados os mecanismos de circulação e a reprodução de livros manuscritos. e como. por razões já tantas vezes apontadas pelos historiadores. 8. e ainda a tese recente de: ALMADA. Nos últimos anos tem aumentado o interesse por essa produção e circulação e cremos que em pouco tempo o tema será de grande conhecimento entre os historiadores brasileiros. publicamos: MEGIANI.divulgar notícias de distantes lugares. O volume disperso de fontes e o caráter efêmero dessa informação exige grande esforço.10 Por isso. No império espanhol. a produção e remessa de relaciones tornou-se uma prática irrefutável a partir do reinado de Felipe II (1556-1598). compiladas e difundidas nas línguas vernáculas europeias. fixado em Évora. Ana Paula Torres. Tese (Doutorado em História) . teria sido um fator de “atraso” cultural.8 Este era o caso de toda a América portuguesa. cit. sobretudo para os séculos iniciais da nossa colonização. tal como ocorre com a comunicação entre os freis Bernardo de Gost e Manuel Severim de Faria. 24-47. para além dos espaços restritos dos tribunais e conselhos das monarquias e igreja. fazendo a ligação oficial entre os vice reinados e difundindo de modo rápido as informações necessárias aos governos locais e central. que adotara uma política de registros impressos diferente dos portugueses. onde a notícia impressa chegava. Consideramos a necessidade de desenvolvimento de pesquisas nesta área para que se possa ter uma dimensão do que era informado. Marcia. Destacamos ainda os acervos das ordens religiosas. ajudam a explicar como sobreviveram tais fórmulas orais. além dos arquivos privados. relembrar as ligações entre a escrita do passado e a escrita do presente durante a Alta Idade Moderna (sécs. incorporadas ao texto. Cultura Escrita. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais. Sécs XV a XVIII.11 Mesmo as modalidades mais elevadas. Escribir y leer en el siglo de Cervantes. linguísticos e de história das formas escritas. Barcelona: Gedisa. embora menos sistematizados e catalogados. Diogo Ramada. Universidades. a ideia pode ser assim exposta: Universidade de La Coruña http://www. Nesse período as principais modalidades de escrita narrativa e memória na Península Ibérica eram a crônica. oralidade e visualidade tão característica da cultura em que a escrita era a forma menos usual de comunicação e expressão. 1999 475 . pantomimas e autos religiosos.). Academias e à própria monarquia encontravam-se atreladas a padrões retóricos formalizados. oriundos de práticas orais tradicionais. conjuntos preservados de relaciones de sucesos. as epístolas e os arbítrios.es/relaciones/ 11 CURTO. Desde o século XV encontramos nos reinos ibéricos a consolidação de várias formas de narrativas dedicadas à exaltação do passado e perpetuação da memória do presente. manifestações do maravilhoso. posteriormente nacionalizados. eram também comuns as práticas de escrita que podiam ser representadas como peças de teatro. tais como relatos históricos de batalhas.encontram-se nos arquivos de Estado como Simancas e Sevilha. Contudo. na passagem da época medieval para a moderna. praticadas por letrados eruditos e vinculados às instituições de saber. acontecimentos milagrosos.bidiso. Antônio (org. desde logo. Os estudos filológicos. XV-XVII). a mescla de escrita. 2007 12 Ver: CASTILLO GÓMEZ. o panegírico. os relatos de viagem. a ponto de organizarem o próprio relato escrito ainda em pleno século XVII. que guardaram em larga proporção essa documentação. e por toda a Espanha. Para entender o significado e a especificidade dessa modalidade de escrita e seus mecanismos de circulação é necessário.12 Sintetizada por Paul Zumthor. naturais ou fabulosos. estes também existentes em Portgual. podendo referirse a técnicas. Índias Orientais. p. Trad. o que se observa nos relatos que circulavam. etc. é que não guardavam segredos de Estado.o sentido do termo escritura não é uniforme. de menor intensidade narrativa. (. os lugares e os contextos eventuais. das Letras 1987. Espanha.) Entre a mensagem a transmitir e seu receptor. Milão. de prensa ou de mão. fator que muito provavelmente contribuiu para a intensificação do desejo de conhecer mais os rumores de outras partes. a distância – em termos de antropologia cultural – é provavelmente tão grande quanto manuscritos e oralidade primária. atitudes e condutas diversas..13 O interesse das pessoas pelas notícias veio somar-se a esse contexto de hibridismo das formas e práticas correntes. e podemos arriscar a hipótese de que o fenômeno foi incentivado pelo adensamento populacional urbano. Inglaterra. Flandres. pelo contrário. São Paulo: Cia. portanto. quanto pelos que as liam em voz alta. Daquilo que designamos e praticamos como escritura (com a intenção ou a pressuposição de uma passagem para o impresso) à manuscritura medieval.. Segundo a pesquisadora Carmem Espejo. Caberia.. Outro aspecto a ser destacado é que as relações de sucessos diferenciaram-se das relações de avisos. ZUMTHOR. almejadas tanto pelos que as reuniam em suas miscelâneas. em decorrência desta constatação. eram mesmo inflamados por um certo teor de curiosidade e encenação. mas que. conforme os tempos. 13 476 . A letra e a voz. Roma. organizados a partir de locais de origem como França.. Nápoles. e que serviam para informar em um só texto sobre os acontecimentos ocorridos em diversas partes. em contrapartida. a investigação acerca do comportamento do público das relações de sucessos. 99. são estreitamente análogos aos ruídos que parasitam a comunicação oral. Mesmo que a notícia fosse um elemento fundamental na estruturação de novos sistemas de governança.. a produção do manuscrito introduz (tanto na transcrição do texto como tal quanto na operação psicofisiológica do escriba) filtros que a imprensa em princípio eliminará. que por sua vez caracterizamse por serem relatos mais sintéticos. A “literatura” medieval. nascimentos. Mas. Uma batalha distante e um batizado na corte poderiam ser assuntos integrados na mesma relação. acontecimentos da natureza ou do sobrenatural como: festivos. catástrofes naturais. p. hoje. pois as narrativas davam conta. Antes de que existiera la prensa. sem contudo apresentar seu caráter original e inédito. mais estável. Carmen. e seus objetivos eram claramente estabelecidos. ou desejamos tê-la. 14 477 . elas mesmas. a política. entradas régias –.é muito provável que as relações de avisos fossem alimentadas pelas relações de sucessos. políticos religiosos (guerras. 15 Aqui arriscamos um pequeno anacronismo para enfatizar as diferenças do uso da notícia na nossa cultura e na do Antigo Regime. A inconstância no modo de descrição é uma das características que faz esse tipo de objeto ainda mais interessante. embora as mais ESPEJO. tinha extensão variável. cabendo aos indivíduos mais críticos fazerem as pontes e ligações. mas não é raro encontrarmos vários assuntos reunidos em uma só relação. Os temas poderiam girar em torno de assuntos internacionais. sociedade. como estamos tratando de um tempo em que as classificações eram diferentes das nossas. autos de fé).14 Cada relação costuma referir-se a um só acontecimento ou tema. desde que se tratassem de fatos ligados a um mesmo contexto de poder. que intencionalmente associava os fatos hoje separados em cadernos especializados nos periódicos diários. de que essas dimensões podem não estar relacionadas entre si. El mercado de noticias en Sevilla: de las relaciones a las gacetas. a guerra e o sobrenatural eram partes de um todo ordenado por Deus e vivido pelos homens segundo seus desígnios. Ao separarmos. extraordinários (milagres. nacionais. catástrofes naturais e quedas de governantes usurpadores. sua compreensão deve passar pelas lógicas de ordenamento hierárquico características da cultura do Antigo Regime. os fatos sociais dos políticos e bélicos temos a sensação. desgraças pessoais) e ainda relatos de viagens imaginárias ou reais. 1. como um evento da corte – casamentos.15 A forma. de integrar milagres de santos e batalhas vencidas. No Antigo Regime os críticos de plantão não teriam tido tanto espaço. bem como um casamento real e uma rebelião local. In: Relaciones de Sucesos en la BUS. A natureza. comuns fossem a relações de dois fólios frente e verso. mas principalmente em prosa. 17 PENA SUEIRO. eclesiásticos e mercadores. A primeira inicial do texto geralmente era capital ou gravada. podendo ocorrer também as de uma folha. tendo alguns deles se tornado conhecidos por possuírem uma rede de informantes e realizarem essa atividades de recompilação e edição na primeira metade do XVII.17 A escrita podia ser em verso. quando o tema se mantém semelhante. mas eram encontradas relações manuscritas copiadas de impressas quando estas se esgotavam. El mercado de noticias en Sevilla: de las relaciones a las gacetas. Os especialistas em relaciones de sucesos espanholas demonstraram em suas pesquisas que. geralmente. 13 (1er trimestre de 2001). com imagens em xilogravuras relacionadas ao tema tratado e anúncio do título. Nieves. Antes de que existiera la prensa. In: Pliegos de bibliofilia. podendo ser aproveitadas imagens que não prejudicariam o conteúdo. As relações se difundem nos ambientes letrados onde eram lidas e colecionadas por cortesãos. por exemplo. dependendo do nível e condições financeiras do impressor em possuir letras de diferentes tamanhos e formas. In: Relaciones de Sucesos en la BUS. As impressas geralmente possuem portada. eram recorrentes nessas relações. Estado de la cuestión sobre el estudio de las Relaciones de sucesos.16 Ao longo dos tempos as relações impressas apresentam características formais mais estáveis e comuns do que as manuscritas. um editor encarregava-se de recolher um ou vários relatos de acontecimentos para publicá-los. Carmen. no caso dos lugares onde havia censura régia ou inquisitorial. um pequeno livro de cordel ou até um livro volumoso quando se tratava de um evento com vários episódios. dentre eles Juan Serrano de Vargas e Juan Gómez de Blas. letra miúda economizando espaço. 16 478 . mas a declaração de autoria também pode ser frequente. e se são em verso aparecem em colunas separadas por ornamentos tipográficos. um pliego. É comum encontrarmos gravuras reaproveitadas. No caso ESPEJO. A maioria é de autoria anônima. com as seguintes características: texto compacto. Naufrágios e aparições da virgem. Na parte inferior da primeira página aparecem os dados tipográficos e as licenças de impressão. associadas às câmaras de maravilhas e gabinetes de curiosidades nos reinos ibéricos nos séculos XVI e XVII. foi o momento em que as relações mais se difundiram. os pesquisadores são unânimes em afirmar que as populações europeias viveram uma espécie de “febre” pela informação na primeira metade do século XVII. É nessa mesma época que ocorrem 18 Sobre coleções de impressos e manuscritos. p. fato noticiado e difundido por meio de relações de diversos tamanhos e formatos. Ana Paula Torres. Festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal. 20 ESPEJO. Ana Paula Torres. Carmen. 2004. El mercado de noticias en Sevilla: de las relaciones a las gacetas.1. sobretudo a jornada e entrada de Filipe III em 1619 que contou com muitos impressos e alguns folhetos avulsos explicativos sobre a arquitetura efêmera e os arcos de triunfo. In: Relaciones de Sucesos en la BUS.18 Nosso interesse por esse tipo de fonte surgiu durante a pesquisa para a tese de doutoramento sobre as visitas dos Filipes a Lisboa (1581 e 1619).19 Embora tenha sido designado cronista oficial da jornada. impressos e manuscritos nas livrarias de Portugal e Espanha. 1581 e 1619. tais como Juan Serrano e Francisco de Lyra. v. séculos XV-XVII. XVI para o XVII. Os impressores de Sevilha dedicaram especialmente a esse evento uma parte significativa de suas prensas. 19 MEGIANI.20 A partir deste estudo interessou-nos a pesquisar os ritmos de circulação da informação na passagem do séc. 17. demonstrando o grande interesse em conhecer episódios do conflito.ibérico encontramos as relações mais difundidas nos meios cortesãos e eclesiásticos desde finais do século XV e compunham muitos conjuntos de miscelâneas reunidas em diversos lugares. Anais do Museu Paulista. ver nosso artigo MEGIANI. 479 . 2009. por exemplo. N. relações e esboços de terceiros. O Rei Ausente. Antes de que existiera la prensa. Esta festa ficaria perpetuada na obra de João Baptista Lavanha. Nesse sentido. São Paulo: Alameda. tendo sido encarregado de compor a Viagem com base em relatos. já que eram lidos em voz alta. o que teria incentivado o aumento da demanda por esses gênero de relatos baratos e acessíveis também aos não alfabetizados. publicada por Tomas Junti e com gravuras impressas em Antuérpia. Lavanha não acompanhou o rei. Isso explica porque a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Memória e conhecimento do mundo: coleções de objetos. ao Senhor Rey Dom João o IV. Estudos Históricos. italiana e inglesa. A Aclamação de D.br/projetos/francebr/. Testemunhos de bibliofilia ou interesse geo-estratégico?. “Embora constitua uma antologia de manuscritos. em A jornada dos vassalos: poder real. na Coleção Mazarin . 1625. em recente levantamento. Os manuscritos de Jules Mazarin sobre a expulsão dos holandeses da Bahia (1625). francesa21. Portal A França no Brasil. espanhola.no Brasil as guerras contra os holandeses e que suscitaram também uma intensa procura por relatos. 23 Para a Restauração de 1640. PASTORE. os relatos da jornada de 1625 constituem um momento de virada nas relações entre os vassalos e as coroas unidas sob os Habsburgo. ver o texto de Andréa Doré referido. http://purl. o Fogo e a Tinta: a batalha de Salvador nos relatos de guerra.24 Segundo Mariana Sales. os episódios naturais concomitantes aos acontecimentos bélicos explodiram nas prensas e oficinas de copistas.Em Lisboa : por Iorge Rodrigues : a custa de Domingos Alures livreiro. 2003. &c. Lisboa: DIFEL. In-4). 21 480 . 22 CAMENIESTZKI. os pontos de relação desses grupos com o Estado”. http://bndigital. compostos por soldados que participaram nas tropas de combate. e que já destacamos acima. escritos em diversos gêneros. vol. 261-288. holandesa. q[ue] delle se fez a sua Magestade que Deos guarde. p. as batalhas. Topoi. 11. Da América Portuguesa ao Brasil. nele também se encontra um exemplar impresso do texto de Francisco de Avendaño y Vilela. 144-45 apresenta a relação completa de textos impressos sobre o episódio de expulsão dos holandeses da Bahia.bn.-dez. menciona a existência de manuscritos localizados em arquivos espanhois e mesmo napolitanos. Para Schwartz. a echar de alli los enemigos que lo ocupavam (Sevilla. Além dos impressos. e a partir da análise desses textos apresenta. 24 Schwartz. a luta entre certos grupos sociais na sociedade ibérica e. Mariana. BnF.Manuscritos Ibéricos encontra-se um volume dedicado a esses relatos da expulsão dos holandeses do Brasil. por outro. & nas mais do Sul. n.” SALES. Gianriccardo Grassia.. 1625. p. em língua portuguesa. 1624-1640. Trad. Relacion del viaje y sucesso de la armada que por mandado de su Magestad partio al Brasil. Francisco Lyra. jul. & Senhor do seu Reyno de Portugal. em castelhano e português.pt/12091. 2005. podendo ser encontradas em qualquer acervo relativo ao período. Exemplar de la Biblioteca Nacional de Portugal. Carlos Ziller. 1641. Stuart. João IV no Brasil está descrita em Relaçam da aclamação que se fez na Capitania do Rio de Janeiro do Estádo do Brasil. . Narrativas sobre as esquadras e contingentes de soldados de diferentes nacionalidades. por verdadeiro Rey. com a felicissima restituiçaõ. BN-Rio. geralmente escritos por soldados presentes na batalha. como relata Bernardo de Gost a Severim de Faria. “por um lado. entre eles uma peça de Lope de Vega. deveres nobres e capital mercantil antes da Restauração. Desse modo. as notícias sobre a invasão e expulsão dos holandeses da Bahia (1624-1625)22. a invasão de Pernambuco pela WIC em 1635 e a Restauração portuguesa de 164023 tornaram-se temas frequentes nas relações de sucessos impressas e manuscritas. 6. preservada integralmente na Biblioteca Nacional de Madrid. Jerónimo era o sexto filho de D. condenados à morte por D. Esta coleção. mas. contudo. local onde faleceu e está sepultado. Marquês de Montalvão e primeiro Vice-rei do Brasil. Trata‑se da Coleção Mascarenhas. entre as milhares de livrarias privadas hoje conhecidas. além de compilações de 25 Fernando Bouza comenta “Este filho de Jorge de Mascarenhas. além da escalada. tem sido pouco estudada como corpus integral. Trad. poderia continuar a tirar algem proveito da graça regia (. Portugal no tempo dos Filipes. Nascido em Lisboa em 1611 e falecido em Segovia. Formada por um conjunto de códices compostos por impressos dos mais variados tipos. Oriente e Ocidente. 2000. Em 1647.)” BOUZA.25 Jerônimo Mascarenhas foi um incansável colecionador de relações de sucessos. se constitui un bom exemplo do que a obediência a Felipe IV podería proporcionar a um fidalgo português que por culpa dessa obediencia havia ficado sem patria e sem fazenda. Os cerca de cinquenta códices que formam a Coleção Mascarenhas estão ainda repletos de cartas – originais e cópias – enviadas de todas as cortes mais importantes da Europa. um dos acervos mais importantes para os estudos do século XVII. foi nomeado Bispo de Segóvia. já em 1641.. tornou‑se capelão‑mor e limosnero‑mor da casa da rainha D.Na Espanha. Mariana de Áustria e. Diferentemente de seu pai e de um de seus irmãos. destacamos uma coleção especial formada por um português que se transferiu para Madrid logo após a anexação de Portugal à Coroa espanhola e sobre a qual pretendemos dedicar um trabalho mais sistemático em breve. Masques de Montalvão e antigo Vicerei do Brasil. sua adesão a Filipe IV como clérigo da Casa Real e cortesão rendeu‑lhe. em 1667. optando por permanecer ao lado da Coroa espanhola após a Restauração de 1640. em 1672. teve uma carreira eclesiástica condizente com o status social de sua família. Lisboa: Cosmos. p. junto ao monarca. 481 . Fernando. apesar disso. João IV por traição. Formado e doutorado em cânones em Coimbra. um título da Ordem de Calatrava. notícias e toda sorte de avisos. 282. manuscritos autógrafos e cartas de notícias.. Jorge de Mascarenhas. movido pelo desejo de se consagrar como um historiador da monarquia. de postos como summilier de cortina e membro do Conselho de Portugal. As novas tecnologias de digitalização e diponibilização de acervos documentais deverão auxiliar nessa empreitada.documentos antigos. Mascarenhas. estão os anexos impressos e manuscritos. este era anexado ao volume do ano da elaboração. Crônicas e até mesmo Gazetas noticiosas. a partir dos quais pretendiam elaborar Anais. 26 482 . cabendo-nos a tarefa de recomposição das camadas desse passado. mapas e listas de todo tipo. ou seja. Alguns de seus escritos chegaram a ser impressos. na tentativa ao menos de entendê-los. Organizados segundo critério cronológico de interesse do autor. Severim de Faria e muitos outros fidalgos da corte os reuniam para construir novos volumes. Assim como os impressores Serrano e Gómez de Blas. a síntese de acontecimentos das relações recebidas. isto é. responsáveis por reunir os relatos e transformá-los em pliegos para serem vendidos.26 O desafio é grande. entre os quais muitas relaciones de sucesos. o material bruto do trabalho. a No caso de Manuel Severim de Faria a livraria infelizmente se dispersou. Na primeira parte dos seus códices de miscelâneas encontramos os anais do próprio Mascarenhas. Seus métodos de arquivamento e classificação próprios foram modificados ao longo dos séculos subsequentes por arquivistas e bibliotecários. mas grande parte permanece até hoje manuscrita. provavelmente por copistas que o auxiliavam em arquivos e cortes de Itália e Portugal. misturados a cartas. mas devemos estar atentos aos riscos da perda do fio muito tênue que nos liga a esses raros conjuntos informativos já tão alterados e descaracterizados. na última parte de cada códice. Nosso grande desejo em reconstituí-los deve ser constantemente vigiado. o que exige um trabalho ainda maior de localização e identificação dos códices dispersos pelas bibliotecas e arquivos na Europa e no Brasil. em seguida. os textos enviados. quando reunia os sucessos de um determinado ano e necessitava de um documento copiado mais antigo. e neste momento nosso trabalho apenas engatinha. Seus textos autorais foram compostos em língua castelhana. ou seja. especialmente relativos às monarquias de Espanha e Portugal. gravuras impressas. opção feita pela totalidade dos autores que se transferiram de Portugal para a corte espanhola no período. antes que esta memória se perca nas nuvens. 483 . para podermos perceber no detalhe as ricas dinâmicas de circulação de informação nos séculos da Alta Idade Moderna.cada passo. . o interesse por conhecer e dominar a fauna e a flora das diversas regiões foi imperativo. (1619).. 60.” e “. Relação Sumária das cousas do Maranhão dirigida aos pobres deste reino de Portugal.. pepinos..As especiarias na cozinha e na botica: notas sobre o intercâmbio de plantas e sementes com fins alimentares e medicinais no Império Português1 Leila Mezan Algranti Universidade Estadual de Campinas Introdução Desde os primeiros contatos dos portugueses com a natureza de suas Conquistas ultramarinas.”. São Paulo: Editora Siciliano. coentros e endros.”2. que já há muitos lavradores que tem cem cabeças e são muito grandes e de boníssima carne”.. Quanto às aves. abóboras de diversas castas. nas viagens posteriores. mas o próprio sucesso do empreendimento.. rabãos. Simão Estácio da Silveira informava: “. não só a sua sobrevivência. comentava que havia “muitas e excelentes galinhas caseiras.. eram geralmente transportados do Velho Mundo animais e plantas a fim de serem domesticados e aclimatados para o consumo das populações. Escrevendo sobre o Maranhão nas primeiras décadas do século XVII. 54. que também tinham muita criação de perus. ele escrevia que havia excelentes melões. Se no primeiro momento tratava-se de proceder ao reconhecimento dos recursos alimentares. pombas mansas que lá ficaram dos franceses.. Enfim. p 51.. Sobre a disponibilidade de legumes. Silveira. couves. Estácio Simão da. muitas vezes. o comandante da esquadra que aportou em São Luis emitiu uma série A pesquisa para a elaboração deste ensaio contou com o apoio do CNPq. nem ovelhas: os porcos multiplicaram tanto. hortaliças e temperos. haja vista que desse saber dependia. 2001. além de “segurelha e cebolas “que se dão também naquela terra.não há lá ainda cavalos. 1 2 485 . melancias. qualquer que fosse o objetivo... br/online/ index. um conjunto de produtos que permite refletir sobre as mudanças no gosto e nas formas de conservar os alimentos. Isto é. selecionarmos alguns produtos para efeito de uma análise mais detalhada. In: Ferrão. tecnologia. Em Portugal. Especiarias . dada à importância comercial e cultural que essas assumiram no império português.asp 4 Cf. Dicionários on line Instituto de Estudos Brasileiros – USP: http://www. 1712-1728. Drogas da Floresta e Especiarias do Oriente O termo especiaria ou espécias. 1993. das especiarias do Oriente e das drogas do sertão. que na baixa latinidade se dizia antigamente por drogas”. segundo Rafael Bluteau “deriva de species. por exemplo. na época Moderna. para. Mas de acordo com Ferrão não existe uma uniformidade de critérios quanto à aplicação do vocábulo especiaria. E. Mendes. como foi o caso.usp. “por especiarias entendemos drogas aromáticas”3. no Novo Mundo. Lisboa: Biblioteca Nacional. na Europa e na América. comércio.de observações que permitem perceber que os europeus introduziam rapidamente. definirmos o objeto de estudo. J. Neste caso incluem-se. em seguida. p. 33. seguindo outros uma definição mais lata e incluindo nela diversos produtos estimulantes do apetite que não tem qualquer relação com as características das especiarias orientais”4. na Amazônia. É sobre esse intercâmbio de plantas através do Atlântico que o presente estudo se aterá. J. explica o autor do Vocabulário Portuguez e Latino. E. mas também sobre as concepções médicas quanto aos significados da alimentação na terapêutica das doenças. portanto. 3 486 . Cabe. seus produtos alimentícios. as ervas aromáticas e alguns Bluteau. enfocando os usos das especiarias. Vocabulário Portuguez e latino. optando uns por um âmbito restrito e atribuindo-o apenas às especiarias orientais. Mendes. Versão digitalizada. num primeiro momento. por exemplo. Ferrão. “Introdução”. Coimbra. Raphael.cultura. Entre os produtos das Conquistas que despertavam grande interesse destacamse as ervas e plantas devido ao valor que poderiam atingir na Europa.ieb. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical. se empregavam como simples ou compostos”5. baseada na fisiologia humoral. 6 Idem. fleuma. fria e úmida. quente e seca. p. A Epopéia das especiarias. As especiarias na cozinha funcionavam. portanto. 112. A doença seria decorrência do desequilíbrio de um desses humores. É no seu sentido mais amplo. III. A terapêutica indicada seria corrigir o desequilíbrio com a ingestão de alimentos com qualidades contrárias. as quais sujeitas a determinadas operações. devido às suas propriedades medicinais. a bílis amarela. portanto. as especiarias tiveram uso difundido na preparação de elixires e em procedimentos de cura. “O Odor e o sabor da farmacologia galênica” In: Guerreiro. Na terminologia quinhentista. na época moderna. sem observá-lo atentamente em uma receita. corre-se o risco de não se identificar as mudanças profundas Andrade. utilizadas para realçar o sabor dos alimentos ou estimular suas propriedades. Isto é. mas também a própria natureza dos alimentos. a bílis negra. Desde a Antiguidade. Assim. a vida era mantida pelo equilíbrio entre os quatro humores: sangue. aromáticas ou de sabor forte e picante. que as especiarias serão consideradas no âmbito deste estudo. p. Antônio Alberto de. As alterações eram derivadas dos alimentos. 5 487 . “Drogas do Oriente” In: Arquivos do Centro Cultural Português. 7 Dias. 93. “ou especiarias farmacêuticas. Inácio. Vol. a associação entre práticas de cura e culinária esteve sempre muito presente na utilização e no comércio das especiarias6. 1971. substâncias vegetais. a fleuma. p. como temperos que modificavam os sabores. estas eram as chamadas drogas. Cada um desses humores tinha diferentes qualidades (o sangue era quente e úmido. 1999. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian. bílis amarela e bílis negra. “um conjunto estruturado a ser aplicado a cada prato” e. Como enfatizou Antônio Alberto de Andrade. Na farmacologia galênica. José Pedro Sousa. 37. originárias do Oriente ou da América. o tempero constitui.frutos das regiões tropicais e temperadas da América. fria e seca). Lisboa: INAPA. os quais quando assimilados pelo organismo davam origem aos quatro humores7. a qual permaneceu em uso até fins da Idade Moderna. mais do que os costumes trazidos pelos cruzados. No entanto. as mudanças ocorridas no paladar europeu na Idade Média e o desejo por novos produtos. ao descrever os tipos de farinha confeccionados a partir da mandioca mencionou. teria a ver “com a introdução no Ocidente dos textos médicos traduzidos do árabe e com eles todo um arsenal farmacêutico do qual faziam parte as especiarias” 9. algumas culturas já se encontravam bem estabelecidas e seus produtos eram exportados para a Europa e a África atingindo boa aceitação. Os mercadores transportavam não só temperos e drogas. pode-se dizer que a incorporação das práticas alimentares europeias na América ocorreu de forma mais rápida do que o processo inverso. sendo que a cronologia dessa incorporação variou. 43. biscoito. História da Alimentação. “La revolución Alimentaria Del siglo XVI em América y Europa. Antonio Aranda. p. Estácio Simão da. Jaén: Dipuation de Jaén. como o milho. Simão Estácio da Silveira. entretanto. 8 9 488 . 452. que escreveu a Relação Sumária das cousas do Maranhão. In: Flandrin. e “cuscuz muito excelente”. uma vez que várias das espécies animais e vegetais europeias foram introduzidas rapidamente na América e passaram a fazer parte do sistema alimentar dos seus habitantes. Rocha. 11 Siveira. as especiarias ocuparam papel de destaque. 1999. p. o açúcar de cana e a mandioca. Rui. em 1619. “Cozinhas Medievais”. enquanto os europeus opuseram resistência a certos produtos americanos. como a noz-moscada. M. por exemplo. ou a malagueta. J. 2005. No processo de trocas culturais e de produtos que se estabeleceram entre as localidades do império português. conforme o produto e de região para região10. L. 48. In: Antopologia y Cocina – gastronomia de ida y vuelta. Bruno. mas o modo de fazer e de consumir tais produtos. cit. p. Essa era enviada também a Angola em grandes quantidades para alimentar os escravos transportados para a América11. Lisboa: Edições INAPA. 44-45. o cravo-da-índia. Laurioux.1998.. 10 Garrido. pão. São Paulo: Estação Liberdade.que ocorreram no tempo e nas diferentes civilizações em termos de concepção de alimentação8.. a farinha de pau da qual os colonos faziam bolos. p. Em meados do século XVII. A Viagem dos Sabores. Montanari. trad. Op. De acordo com Bruno Laurioux. Por essa época. ano 1. Br História. Elas adquiriam os produtos através da coleta nos sertões. Do Dinheiro da terra ao bom dinheiro – moeda natural e moeda metálica na Amazônia colonial (1706-1750).Outros produtos da América portuguesa. 65. o cravo. pois desde o século XVII encontramos propostas nesse sentido. p. na região Norte e Nordeste do Brasil. 489 . 14 Lima. Belém. recomendando a D. “as notícias sobre as drogas nos escritos do século XVII eram muito vagas e gerais. De acordo com Luis Ferrand Almeida. 72. 15 Idem. a ideia de aclimatar plantas do Oriente. comércio direto com o Reino15. Dissertação de Mestrado. realizada pelos índios aldeados. Outros produtos típicos da Floresta também possuíam boa aceitação no mercado interno e externo como a canafístula. o urucum. antes da introdução da moeda14. Rafael. 2007. De acordo com esse autor. Entre essas drogas podemos citar algumas de maior destaque como a baunilha. se encontrava bem divulgada e surtia alguns efeitos. baseadas mais em presunções do que na própria experiência dos portugueses na região”. ou em suas fazendas. o cacau. foram revelando aos portugueses seu valor e qualidades aos poucos. Somente no final dos anos 1640 é que as notícias mais concretas começaram a aparecer13. 110. conhecidos como “drogas do sertão”. Na primeira metade do século XVIII. como grandes produtoras e comerciantes dos gêneros da Floresta. o padre Antônio Vieira e Duarte Ribeiro Macedo teriam sido grandes defensores da ideia. além de numerosos tipos de madeira. até meados do século XVIII.1. João IV e seu sucessor o envio de plantas e práticos 12 Chamboleyron. “As Especiarias da Amazônia”. UFPA. Alam José da Silva. a salsaparrilha. inclusive. p. 2006. p. algumas das drogas do sertão já faziam parte da economia da região amazônica e correspondiam a uma das principais fontes de receitas da coroa portuguesa. especialmente aqueles de caráter extrativista. mar. como apontou Rafael Chamboleyron ao se referir às especiarias do Estado do Maranhão12. o puxuri e as sementes oleaginosas. o pita. 13 Idem. estabelecendo. circulando como moeda corrente no Estado do Maranhão. n. As ordens religiosas de forma geral aparecem. o mesmo historiador referiu-se a experiências com pimenteiras. o mesmo historiador referiu-se a experiências com pimenteiras. mencionou experiências semelhantes em outras regiões da América portuguesa. em 1708. Acreditavam que. quina). “Aclimatação da plantas do Oriente no Brasil”. 18. a noz-moscada. cuja exploração havia sido prejudica pela concorrência holandesa e inglesa. Com relação ao século XVIII. Paralelamente a essas experiências. conforme destacou Ferrand de Almeida. canela. Sobre a aclimatação das especiarias do Oriente no Brasil. Almeida. canafístula. o viajante francês La Condamine fez referência a um comércio regular entre as capitanias do norte do Brasil Apud. desde a alimentação (cacau. 19 Lapa. pimenta. por sua vez. 16 490 . como a Bahia. “O Brasil e as drogas do Oriente”. Studia. pois há muito tempo eram conhecidas as riquezas do Maranhão e da Amazônia. Em meados do século XVIII. José Roberto do Amaral Lapa mencionou experiências semelhantes em outras regiões da América portuguesa. José Roberto do Amaral. baunilha. Coimbra. 358-360. 1975. Entre tais produtos destacam-se a canela. no geral. Essas eram principalmente de origem vegetal e. Ferrand de Almeida esclarece que experiências nesse sentido foram feitas com mudas de Goa entre 1680 e 1690. p. o gengibre. em 1708. 17 Idem. carajuru) ou à farmácia (salsaparrilha. pois em 1743. utilizadas para muitos fins. n. Luis Ferrand de. sendo de notar que algumas drogas tinham empregos variados18. Com relação ao século XVIII. uma vez havendo abundância. Tomo XV. a situação parece ter mudado significativamente. enviadas de São Tomé e às medidas da Coroa para a exploração de recursos semelhantes no Maranhão. ago. a despesa com a viagem seria muito menor e os produtos poderiam ser vendidos mais baratos do que pelos holandeses16. cravo. Tratava-se.da Índia ao Brasil para o cultivo de várias espécies. enviadas de São Tomé e a medidas da Coroa para a exploração de recursos semelhantes no Maranhão. especialmente canela e pimenta 17. como a Bahia19. a Coroa procurava desenvolver as atividades econômicas da região norte do Brasil intensificando a busca de drogas do sertão. Revista Portuguesa de História. a pimenta. José Roberto do Amaral Lapa. urucum. 18 Ibidem. 375. gengibre) à tinturaria (anil. p. de especiarias oriundas de territórios e rotas comerciais dominados pelos portugueses. 1966. a tendência do movimento comercial foi aumentar ainda mais devido ao interesse científico que a região despertava. Rodrigo de Souza Coutinho que remetia uma pequena amostra da erva linhaça. Informava. Ásia. que ela estava ainda muito verde. naturalista que visitou a região entre 1783 e 1792. 491 . África e. vol. algo muito escasso no século anterior20. A Amazônia representou um foco de interesse significativo como atestam. Rio de Janeiro: Editora Pan-Americana. além de sementes e raízes. Saúde . Diogo de Souza – informava a D. 69. 1944. por exemplo. sobretudo. quer a estudos mais específicos sobre as suas propriedades medicinais. Como observou Ângela Domingues. cit. Muitas madeiras. as narrativas de viagem de Alexandre Rodrigues Ferreira. Viagem na América Meridional descendo o Rio das Amazonas. Op. Apud LIMA. Ângela. sob as ordens de Pombal. vulgarmente chamada São Caetano. Alam José da Silva. VIII (suplemento). quer fossem destinadas ao Jardim Botânico da Ajuda. “mas em chegando à maturação irá quantidade bastante com que V. eram embarcadas para o Reino a pedido das autoridades. Esse intercâmbio ganhou maior destaque com as modificações políticas na região e a presença de Mendonça Furtado na cabeça da administração do Estado do Grão Pará e Maranhão a partir de 1751. “cientistas e funcionários criaram e sustentaram uma rede de informação que permitiu ao Estado português Setecentista conhecer de forma mais aprofundada e precisa os seus domínios na Europa. Exa mande fazer experiências e calcular 20 La Condamine Charles Marie de. ou as correspondências dos governadores com a Corte. ‘Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em finais dos Setecentos’. p. 126-17. e que se produzia em tanta quantidade que podia “ficar a preço de trapos”.e a metrópole. no qual os produtos da Floresta tinham participação importante. 823. Nas últimas décadas Setecentistas. História. o governador do Maranhão – D. a qual poderia servir para as fábricas de papel. contudo.x No início de 1800.Manguinhos. Ciências. na América”21. nos primeiros anos do século XIX. levando a Coroa a fomentar expedições científicas e a coleta de espécies para serem enviadas para Portugal. 21 Domingues. 2001. p. 24 Cf. Enviava também.1. que tinha agradável cheiro e era boa para pinturas. e classificadas primeiramente na Capitania do Piauí. Em 1803. embora a dose ainda não estivesse bem determinada. segundo informava o governador ao ministro ilustrado23. contendo detalhes para se atentar às forças do doente. 02/06/1800. ofício 36. Não eram. Diogo de Souza dava conta a D. pois D. Ss. Seis meses depois era a vez de dois caixotes contendo plantas medicinais e outro com a planta cochonilha seguirem para Portugal. Do ano de 1800 datam vários ofícios referentes a remessas de arroz do Maranhão para a Real Ucharia. que fossem expedidas ordens semelhantes àquelas expedidas no Piauí em 19/09/1799. Seguia tudo muito bem explicado em uma carta do cirurgião mor do Regimento de Milícias de Alcântara. informando. A novidade ficava por conta de 5 pés de um arbusto denominado manacá. apenas plantas medicinais o que a capitania fornecia. Tudo ia muito bem embalado. 23 APEMA. segundo o governador. proibindo a queima de matas onde houvesse quina.1. as explorações de ervas medicinais continuavam a ser desenvolvidas no Maranhão pelo mesmo bacharel. Rodrigo de Souza Coutinho. Rodrigo pedira informações em carta anterior22. Arquivo Público do Estado do Maranhão (citado a partir de agora como: APEMA). 67v. fl. inclusive.1. Dizia por fim o governador que havia outro arbusto chamado mururé “também muito eficaz contra o mencionado vírus”24. contudo.2 Correspondência do Governador com a Metrópole Livro 287. no mesmo lote. Propunha. Secretaria do Governo. a questão da quina. 21/05/1803 de D. ofício n° 60. entre as quais também quina piauiense que assim como as mais se pode exportar daqui a menor preço que daquela capitania. 78. Secretaria do Governo. Ss. 22/02/1800. f. ofício n° 33. Antonio Ferreira de Gouvea Pimentel. ao que tudo indica. Diogo de Souza para D. uma amostra de óleo da árvore merim. s. s. f. APEMA. com desenhos e observações do Bacharel Vicente Jorge Dias Cabral. “contra o vírus siphlytico”. por fim. Abordava.1. Livro 285. sobre a qual D. observava o governador. 2. Correspondência do Governador com a Metrópole Livro n° 285. 22 492 . 37-37v. então.-68.os interesses que dela resultarão”. Rodrigo da “existência nesta Ilha de muitas plantas medicinais achadas. descoberto nesta colônia. fl. fl. bem como nas quantidades administradas. Rodrigues escreveu o primeiro livro português de culinária. por exemplo. Divisão de Publicaçãoes da Biblioteca Nacional. 1975. eram temperos e aromas muito utilizados na culinária dos séculos XVII e XVIII. 25 26 493 . fl. Se tomarmos o gengibre e a pimenta. 95. gengibre e pimenta. 92v-93 e fl. com exceção do primeiro. a fim de identificarmos os usos e as propriedades que lhes eram atribuídos. o jesuíta João Daniel que viveu na região durante mais de vinte anos. apresentou em seu Tesouro Descoberto no Máximo Amazonas uma lista considerável de produtos explorados sem que fosse preciso cultivá-los26. em função das mudanças ocorridas na culinária ocidental entre um século e outro. vol. 129 (mandioca) e fl. Visando captar o movimento e intercâmbio de saberes e produtos no sentido inverso (de lá para cá) procederemos da mesma forma em relação ao gengibre e à pimenta. peixes e aves presentes no famoso livro de Domingos Rodrigues. Rio de Janeiro. os quais foram objeto de experiências de aclimatação no norte da colônia americana. tomo 1. na primeira metade do século XVIII. embora tenham sofrido alterações nos seus usos. Daniel. Comentando a natureza da Amazônia e seus recursos inesgotáveis.a disposição de se realizar frequentes envios do produto de melhor qualidade disponível. notaremos que sua presença era marcante na maior parte das receitas de carne. A correspondência com a metrópole informava também sobre muita farinha de mandioca embarcada de São Luis para o Reino25. pois ambos eram exportados em quantidades significativas para o Reino. João. o qual foi editado em 1680: Arte de Cozinha. Usos e qualidades das especiarias Os produtos selecionados para uma abordagem mais detalhada: salsaparrilha. Livro 285. Entre esses selecionamos a baunilha e a salsaparrilha. Anais da Biblioteca Nacional. baunilha. “Tesouro Descoberto no Máximo Amazonas”. no século XVII. 143v (arroz) 1800. Idem. cozinheiro da Casa Real. Esta passou a ser menos condimentada do que era na Idade Média. “para Rodrigues. 2004. Op. mas por ser um remédio muito medicinal” usado. João V e autor do livro A Âncora medicinal. supostamente por razões de Estado. Característica que justificava. 27 494 . participavam também dos pratos salgados e. Curava “o fastio que procedia de matérias frias que ocupam o estômago”29. 29 Henríquez. Domingos. Arte de Cozinha. além da canela e da noz-moscada. uma característica do gosto e da culinária medieval ainda presente no livro do famoso cozinheiro português27. Para o médico de D. inversamente. nos campos do Amazonas havia tanto gengibre que se podia chamar de produto próprio da região. o louro e os cheiros (salsinha e cebolinha). Ateliê Editorial. bem como seu alto valor no mercado. tomo I. 1987 (1680). p. João Daniel informou que não se cultivava na Amazônia a espécie indiana. “mas menos seco que quente. com uma umidade indigesta. como a da pimenta longa”. inclusive. segundo o jesuíta. 28 Daniel.” Especialmente recomendado para “a doença da bicha e para toda a casta de corrupção da via. p. Francisco da Fonseca. João. o gengibre era quente e seco. De acordo com João Daniel. Campos de capim “que não é outro do que gingibre (sic) da natureza. por brancos e índios “sendo um dos “mais buscados provimentos para as suas doenças da via posterior. 406. cit. Quanto à pimenta. 210. a noz moscada e a pimenta compunham os ingredientes das receitas de doces.. disponíveis na Floresta Amazônica. a cebola. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda. a grande demanda de especiarias e drogas do sertão. Cotia. Isso se explica devido à comida excessivamente condimentada na época.”28. Âncora Medicinal par conservar a vida com saúde.Junto com o alho. não só por ser tempero mui usado das ucharias (despensas). Mais interessante é perceber que tanto o gengibre quanto a canela ‒ produtos indispensáveis nos pratos doces e agridoces. Servia para confortar o estômago e “ajudar no seu cozimento”. e alguns o fazem úmido. Gosto e valor incentivaram os portugueses a explorar não só as espécies nativas de gengibre e pimenta. esses formavam a base dos temperos da cozinha portuguesa da época. como os levou a tentativas de aclimatação de espécies vindas do Oriente. quanto à pimenta. Na cozinha.30 João Daniel comenta. é que o autor lhe atribuiu uso medicinal. Diz ainda que a malagueta abria o apetite e proporcionava uma “galantaria” aos guisados. Isso sem falar na malagueta que seria a mais estimada no Amazonas e que todos a cultivavam para uso doméstico e não para negócio. 31 Daniel. muitas outras espécies. e por isso “se mandava arrancar a muita hortense. ainda. Jean-Marie. de acordo com o jesuíta. em uma colher de caldo de carne ou de peixe”. 407-408. De acordo com Pelt. há tanta como mato”31. Especiarias e Ervas aromáticas. a qual acreditava ser nativa da terra porque dava nos matos e crescia como hera. as quais. porém. substituía os azeites e vinagres “com só machucarem uma ou duas ou três. João. tanto em relação ao gengibre. 30 495 . que “a pimenta longa que também vem da Índia é a mais usada nas boticas e. Às vezes acrescentava-se ao molho umas pedrinhas de sal. embora não tenha explicado exatamente qual era. mas vencem a ordinária”.. não havia iguaria ou sopa na qual não estivesse presente. Mais interessante. trad. porém. pois nem mesmo a origem da planta o autor conseguiu determinar.” o que sugere estarem já aclimatadas algumas castas de pimenta indiana. João Daniel considerou estranho o fato desta não ser cultivada. tomo I. por muito tempo se acreditou que a pimenta preta e a pimenta branca eram fornecidas por duas espécies diferentes. cit. observa-se o intercâmbio de saberes e técnicas portuguesas. Descreve-a como um cipó e seus frutos pequenos e em cachos. 84. Nas descrições de João Daniel. uma vez que era tida como a mais picante. no Maranhão e Amazonas. Já a pimenta branca. para o mesmo autor. Op. conforme querem. porém. p. a pimenta preta não é outra senão o fruto inteiro colhido antes da maturação completa e posto para secar. p.. Havia. Passa então a descrever a pimenta preta “ou da Índia”. Diferentes tipos de Pelt. 2003. Tida como o molho ordinário dos índios e dos brancos. Na verdade. “não só suprem. onde se dá com muita facilidade e abundância. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.que a da Índia não perdesse sua estimação”. que já havia na América portuguesa. orientais e indígenas em tal estado de incorporação que fica quase impossível discriminar a origem desses usos. 414. p. talvez pudéssemos pensar serem esses os mesmos do puxeri.pimentas. produtos originários da América. considerado “eficientíssimo para as doenças procedidas do frio”33. Algo perfeitamente compreensível na lógica dos contrários que orientava a medicina praticada na época. ou seja. 32 33 496 . foram reunidos em algumas classificações pelo observador que colocou a ênfase de seu comentário na divulgação da existência de várias pimentas na Amazônia e no Maranhão. segundo o mesmo observador. Havia. caso houvesse o cuidado de se fechar bem o vasilhame toda vez que fosse usado34. por sua vez. tomo I. Op. João Daniel comentou de forma breve suas utilidades destacando. distribuídos ao longo do livro. talvez a pimenta seja um dos temperos mais celebrados por Domingos Rodrigues. entretanto. porém. p. aqueles que se dedicavam à exploração de apenas um desses produtos da Floresta. vinagre. seu valor econômico. João. 412. mostarda. de cacau. como ofereceu uma receita que considerava poder ser usada na Europa. 413. o qual não só comentou sua eficácia. concluindo que seu uso era semelhante àquele instituído em Portugal32. mas incorporados na botica e na culinária europeias.. Idem. o fruto de uma grande árvore da região. cenouras e couve-flor que podiam durar anos. pois sua presença pode ser observada em vários segmentos da culinária portuguesa. cravo e salsa. a salsaparrilha levava os moradores a grandes coletas nas matas “e a carregar os seus barcos de todas as três (espécies) juntas”. Informava que com gengibre e salmoura. De fato. p. repolho. se fazia conservas de nabos. Considerada pelo autor um dos três principais gêneros da região. o qual era tão picante como a pimenta. Os benefícios do gengibre e da pimenta malagueta como conservantes observados nas receitas dos séculos XVII e XVIII também chamaram a atenção do jesuíta. Quanto à salsaparrilha e à baunilha. espécie de tempero em pó que podia ser conservado por muito tempo. No tocante aos atributos medicinais. isto é. Ibidem. alhos. 34 Daniel. Isso sem falar no seu uso como preparado seco. além de muita pimenta malagueta. cit. indicava 56 arrobas e 2 libras de salsa. 417. 39. evidenciando o significado econômico de cada um dos gêneros. além da muita que se gasta na terra”37. 61. 54 arrobas de peixe seco. avaliados em arrobas. confirma as palavras do representante da Companhia de Jesus. na segunda metade do século XVIII. o que resultava no fato de todos os anos se consumirem “muitas mil arrobas que costumam embarcar para a Europa. de ambos os lados do Atlântico. Em 1761. período 1768. Op. p. em 7 de agosto de 1769. João. A lista dos negócios realizados pela vila de Barcelos elaborada para a cobrança dos dízimos. período 1761. dos três produtos mencionados (salsa. Bem detalhada. a salsaparrilha não era muito estimada como Arquivo Público do Estado do Pará (a partir de agora citado APEP). doc. 35 497 . a salsaparrilha era o mais difícil de beneficiar devido aos espinhos. Antônio Roiz Mzo. o dízimo cobrado e também o preço pelo qual foram vendidos junto à almotaçaria. 37 feixes com 165 canudos de salsa que pesaram 42 arrobas e mais 4 arrobas de salsa (deve ser feixe) que pesaram 1 arroba. códice 107. 27 alqueires de castanha e 26 tartarugas. 132 arrobas de cacau. o produto do trabalho de 24 índios com as drogas do sertão: 11 paneiros de cacau relativos a 49 arrobas. a canoa originária da mesma localidade de Barcelos levou para ser entregue ao tesoureiro geral do comercio das Índias. doc.36 Para o autor do Tesouro Descoberto do Maximo Amazonas. destacavam-se em relação aos demais gêneros da Floresta. 36 APEP. 37 Daniel. Ou seja. embora a considerasse excelente remédio para as doenças do gálico. códice 198. seu uso era semelhante.. cravo e cacau). pois ao contrário da baunilha. pois as listas dos produtos das canoas que chegavam das mais diferentes localidades da região continham invariavelmente grandes quantidades de cada um desses produtos.35 Alguns documentos desse tipo oferecem detalhes que permitem perceber como era extraída e transportada a salsa. 40 tartarugas e 21 paneiros de castanhas. cit. A salsa e o cacau.A documentação relativa à cobrança dos dízimos das aldeias do interior da capitania do Pará. a lista apresenta os cálculos brutos e líquidos dos produtos. da qual se extraía um bálsamo de suave perfume. L.38 Abundante no México e descoberta pelos espanhois no século XVI. quando foram incorporados novos produtos e aromas à bebida produzida a partir do cacau. cuja obra foi reeditada várias vezes ao longo do século XVIII e estava ainda em voga quando o Tesouro foi escrito. enquanto os mexicas apreciavam-na amarga e com pimenta40. Op. Do que se conclui que o cozinheiro português propunha consumir a bebida de forma distinta daquela divulgada no México. Domingos. p. sua presença também não é muito evidente nos receituários portugueses mencionados. tais como: açúcar. 38 39 498 . Ou seja. O cozinheiro português não faz menção à essa erva nas receitas selecionadas. 2009. bem como as formas de transmissão dos saberes culinários e médicos. no século XVI.tempero. Op. de acordo com os padrões de consumo europeu. Por outro lado. Com relação à baunilha. Rodrigues. Ana Paula. baunilha e canela. 40 Algranti. São Paulo: Alameda. a baunilha também apresentava propriedades medicinais. 414-415. Pelo menos é o que se depreende das palavras de João Daniel e do conjunto de receitas de Domingos Rodrigues. O Império por escrito – formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XIX). a única receita de chocolate do livro de Domingos Rodrigues traz entre seus ingredientes “oito baunilhas pisadas e peneiradas”39. 162. Jean-Marie. Seu uso parece ter sido fundamentalmente terapêutico. que só emite fragrância quando madura. Bebida dos deuses: técnicas de fabricação e utilidades do chocolate no império português séculos XVI-XIX” In: Algranti. pois esta pode funcionar como uma chave de aproximação com os agentes históricos na época da colonização. p. O exemplo do chocolate permite avaliar o intercâmbio das práticas culturais relacionadas à comida. a baunilheira é uma liana da América Central pertencente à família das orquídeas e produz um fruto que se apresenta como uma espécie de “vagem”.. Nesse sentido. Leila Mezan. embora Pelt.. especialmente a incorporação de novos produtos na forma de confeccionar e consumir os alimentos. todo um campo se abre ao historiador no domínio da alimentação. 126-127. No entanto. p. Megiani.. Cit. cit. foi publicado em Portugal o segundo livro de culinária. além de detalhar suas propriedades. Op. Como disse João Daniel. a variedade e preciosidade dos haveres da região Amazônica eram seu maior tesouro (título do livro e também do Tratado Quinto: “Principal Tesouro do Rio Amazonas”. usos e consumos. mas não deixou de registrar o imenso potencial cultural que os produtos ofereciam. Essas indicam questões significativas sobre o comércio de determinados produtos. as receitas sugerem uma comida mais simples na qual os temperos e as ervas aromáticas ressaltavam o sabor dos alimentos. ao invés de escondê-los por meio do gosto forte das espécies. entende-se para consumo alimentar41. a serviço da corte. pois a comida excessivamente condimentada havia saído de moda. conforme pregava O Cozinheiro Moderno ou a Nova Arte de Cozinha de Lucas Rigaud42. Daniel.João Daniel mencionasse que poucos faziam uso dele porque o comércio era muito intenso na região e as baunilhas valiam por si mesmas. Para efeito de conclusão deste estudo sobre o intercâmbio de plantas e drogas no império atlântico português e seus usos na cozinha e na botica. Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha. De fato. em 1780. ao descrever desde seu aspecto físico à forma de produção e de coleta.. 41 42 499 . conforme procuramos ressaltar. pois eram estimados em todo o mundo. p. 1999 (1780). João. além de intercâmbios culturais mais amplos que ocorreram no espaço do Atlântico Sul. 392. cabe lembrar que. Talvez essa seja a diferença mais marcante entre os dois livros de receitas e suas propostas culinárias no que toca o segmento dos temperos ou das drogas e especiarias. Seu tratado evidenciava uma nova maneira de cozinhar. cit. na qual as especiarias ocupavam um lugar bem diferente daquele presente no livro do século XVII. Sintra: Colares Editores. Rigaud. O jesuíta certamente se referia ao valor que esses produtos poderiam atingir. de autoria de um cozinheiro francês. Lucas. . tanto dos índios como dos negros e a proibição da produção de bens manufaturados nas colônias traduzem bem a ideologia desta primeira fase do capitalismo europeu. mas que se estruturavam na construção de cidades. 1 501 . As várias faces do colonialismo europeu. inventados por seus antepassados Claude D’Abbeville Polifonias na América Ibérica Não é possível pensar que existiu um único sujeito particular que planejou o sistema colonial. tanto na América como em outras partes do mundo. as grandes empresas que começavam a surgir e desejavam abrir novas frentes de exploração econômica1 e a Igreja Católica. e que também estabeleceram os processos de sujeição impostos às sociedades A rigor. Para alcançar seus objetivos. não se formaram mercados consumidores na América. nos dois primeiros séculos de colonização. um lugar para saques. chamam-nos todos por seus nomes próprios. inicialmente. Nem mesmo uma única instituição ocidental pode ser responsabilizada individualmente. eles só surgiram de fato a partir do final do século XVIII. estas instituições ocidentais criaram uma série de estratégias de dominação. O trabalho escravo. se impuseram a partir de uma multiplicidade de interesses.Claude D’Abbeville e a invenção do índio: cosmologia e silenciamento Ivânia dos Santos Neves Universidade da Amazônia Poucos entre eles desconhecem a maioria dos astros e estrelas de seu hemisfério. em um lugar de apropriação e acumulação primitiva de capital. O interesse destas empresas transformou a América. com seus exércitos e seus anseios de se tornarem impérios. na imposição de línguas oficiais. dispositivos que agenciavam a exploração de riquezas florestais e minerais. Os Estados europeus. com o suposto objetivo de aumentar o rebanho de Deus são alguns dos mais visíveis fatores que impulsionaram as práticas coloniais. Para Foucault. 502 .indígenas. Os índios que resultaram desta invenção ocidental são absolutamente estereotipados: preguiçosos. Em suma. leis. Michel. sem roupas. ela se discursivizou. sua racionalidade não produz conhecimento científico e suas representações são classificadas apenas como religião e arte. Embora muito poderosos. viajantes. o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. Esta invenção do índio se materializou nas palavras. expedições de outras nações europeias e diferentes ordens religiosas também chegaram à Província do Brasil e à Província do Grão-Pará e Maranhão. nas cartas dos cronistas que eram endereçadas aos reis de Portugal e de Castela e pelos textos produzidos pelos primeiros jesuítas que junto com eles chegaram. Os poderosos interesses coloniais. Com mentalidade primitiva. com seus 2 FOUCAULT. proposições filosóficas. nos corpos. cronistas. A Microfísica do Poder. desde a chegada das primeiras embarcações. Esta história começou a ser registrada. Conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos. morais. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos2. filantrópicas. decisões regulamentares. a resistência indígena e as transformações resultantes deste jogo de forças são os discursos que circulam entre nós sobre as sociedades indígenas. organizações arquitetônicas. medidas administrativas. p. antropófagos. de pele “amarela”. São Paulo: Graal. um dos principais dispositivos que contribuíram para o silenciamento das sociedades indígenas diz respeito à forma como se escreveu a história das relações entre a metrópole portuguesa e os índios. Ainda que muito pouco se conheça da versão que os índios contariam destes séculos de colonização. 2007. os discursos coloniais ibéricos não foram os únicos que circularam no território brasileiro. enunciados científicos. naturalmente. 244. dispositivo é um determinado agrupamento de práticas que constituem um sujeito em uma trama de saberes e em um jogo de forças que lhes são imanentes. nos artefatos culturais. instituições. Quando se fala em história colonial no Brasil. 1994. Sabe-se atualmente que de fato eles constituíam grupos tribais distintos. com rigorosidade metodológica Segundo Florestan Fernandes (1963). nas brechas. Os senhores do litoral. havia muitos grupos espalhados pelo litoral brasileiro quando os portugueses chegaram3. espacialmente segregados e solidariamente diferenciados. E é justamente por estes espaços que muitas vezes conseguimos desconstruir discursos hegemônicos e possibilitar a escuta das vozes indígenas. Porto Alegre: Editora da UFRGS. Mas todos faziam parte de um grupo étnico Mário Maestri. Mário.próprios interesses. ela jamais vai impedir que outras vozes. Para os cronistas. 3 503 . representam a brecha no discurso colonizador sobre os Tupinambá. guardadas algumas pequenas diferenças. atribuída pela crítica especializada. com diversos nomes. comunidades tupinambás ocupavam. podemos afirmar que eles produziam conhecimento. refere-se a grupos Tupi que na época da colonização viviam no Rio de Janeiro e na Bahia e foram os primeiro a serem contactados pela colonização. que falavam de outros lugares. “no início dos Quinhentos. Os Tupinambá foram os primeiros índios contactados pelos portugueses e não fossem os registros feitos pelo frei capuchinho Claude D’Abbeville sobre a astronomia desta sociedade. Estes registros. Por mais autoritária e violenta que seja uma ordem discursiva. A partir da descrição do céu destes índios. Conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasileiro (século 16). ainda que apenas nas frestas. falem junto com ela. no litoral paulista” (MAESTRI. o que teria sobrevivido sobre eles estaria restrito à “selvageria” dos rituais antropofágico e à “imoral” nudez de seus corpos tão propagadas pelos discursos ibéricos. que os chamou de “Os Senhores do Litoral” (1994). que durante minha pesquisa de doutorado tive oportunidade de comparar com o conhecimento que sociedades Tupi contemporâneas apresentam sobre o céu. estes grupos tinham uma língua comum e partilhavam de uma cultura muito semelhante. A denominação Tupinambá. a maior parte da faixa litorânea que ia da foz do rio Amazonas à ilha de Cananéia.43). Outro grande contingente localizava-se no Pará e no Maranhão. p. Caeté etc.. foram diferenças que perturbaram a memória católica do europeu. a poligamia como organização matrimonial.. de dois aspectos das práticas discursivas que inventaram a tradição indígena que habita o imaginário brasileiro. as guerras contra os portugueses e outros grupos indígenas inimigos são algumas das razões que levaram ao desaparecimento destes grupos. distinguiam-nos assim de outros grupos Tupi (Tupina. holandeses etc. São Paulo: Instituto Progresso Oriental. Muitos deles foram exterminados. 16-17.básico. Inventando discursos. Na segunda parte. analiso as primeiras cartas enviadas aos reis europeus. Outras coisas foram ditas antes e outras FERNANDES. Na primeira parte. O trabalho de catequese dos jesuítas. outros migraram para o interior do país. no século XVII e suas correlações com as referências de astronomia de sociedades Tupi contemporâneas desestabilizam a ideia de que as sociedades indígenas eram destituídas de racionalidade. que revelam como portugueses e espanhóis inventaram um índio genérico e selvagem.)4. Doutro lado. 1969. a pajelança e os rituais de antropofagia. a partir da análise do discurso. localizavam-se nas áreas em que os contatos com os brancos foram mais intensos e regulares. portugueses. Em relação à cultura Tupinambá. Os colonos franceses. revelando em seu sistema sócio-cultural os mesmos traços fundamentais. 4 504 . passando a viver nas missões. Potiguar. desde o início da colonização. incompatíveis com o sistema colonial. Este artigo vai falar. mostro como os registros sobre a astronomia dos índios Tupinambá. Florestan. alemães. Tupiniquim. A organização Social dos Tupinambá. onde provavelmente deram origem a outros grupos. O discurso é um processo contínuo que não se esgota em uma situação particular. feitos pelo frade capuchinho francês Claude D’Abbeville. o caráter nômade dos núcleos populacionais. p. muitos se converteram ao cristianismo e ao sistema colonial. serão ditas depois. que nasce dos interesses coloniais mas se mantém no Estado brasileiro. que instituiu um índio genérico. 92) 6 FAULHABER. defendo a ideia de que a aparente condição de passividade das sociedades indígenas foi determinada pela superioridade bélica dos europeus. porque penso que seja importante conhecer as condições de produção em que ele se constituiu. p. 2008. NIETZSCHE. Neste sentido mais construtivo. Eric Hobsbawm7 fala sobre dois tipos de tradição inventada: uma seria fortemente institucionalizada. 9. Ainda hoje. 88. In: Anuário Antropológico/96. Rio de Janeiro: Nova Cultura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. resistiram. Em relação à invenção do índio. A invenção do índio implica pelo menos dois sentidos da palavra invenção. Por outro lado. & RANGER. A partir de Nietzsche5. Acredito mesmo que os índios. enquanto a outra se constituiria gradativamente. F. sem que fiquem claros os interesses aos quais ela se colocava a serviço. O que temos são sempre “pedaços”. 1978. continuam reinventando suas tradições e demarcando suas novas fronteiras culturais. Os Pensadores Obras Incompletas. Rio de Janeiro. A reinvenção da Identidade Indígena no Médio Solimões e no Japurá. pela educação e pela falta de políticas públicas efetivas. T. trata-se de uma invenção fortemente institucionalizada e bastante duradoura. podemos entender que se trata de uma falsificação forjada pelas relações de poder do sistema colonial. 5 505 . estados do processo discursivo. A invenção de tradições. p. p. 7 HOBSBAWM. E. quando foi possível. a invenção é um exercício de resistência e de criatividade das sociedades indígenas6. 1997. Ele também assinala que estas tradições nem sempre conseguem se estabelecer por um longo período de tempo. Paz e Terra. Eni Orlandi Estou chamando este processo discursivo iniciado pelos europeus de “invenção”. ainda hoje alimentada pela mídia. apesar das inúmeras dificuldades que enfrentam. “trajetos”. Priscila. con la armada que los Ilustrísimos Rey e Reina nuestros señores me dieron donde yo fallé muy muchas Islas pobladas con gente sin número. y dellas todas he tomado posesión por sus altezas con pregón y bandera real extendida. y no me fué contradicho. tão cuidadosamente descrito em seu diário. a princípio pelos jesuítas revela um processo de repetição de normas de comportamento relacionadas à alimentação. automaticamente uma continuidade em relação ao passado8. que se dá pelo contato do olho com o materialmente visível. vos escribo esta. visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição. O trabalho empreendido. normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas. Na carta endereçada aos reis de Castela e em seu Diário. ao monoteísmo cristão. Carta de Colombo O olhar de Colombo. porque sé que habreis placer de la grand victoria que Nuestro Señor me ha dado en mi viage. pela primeira vez por Cristóvão Colombo. o olhar não se resume à simples capacidade da visão. às relações matrimoniais. que tinha o objetivo de constituir novas práticas discursivas entre as sociedades indígenas. tais práticas. Colombo olhou de sua posição 8 Idem. que implica. Este empreendimento colonial entre os índios da América teve como principal articulador as missões católicas. Pensaram ter chegado às Índias A palavra índio é atribuída aos povos nativos da América. por la cual sabreis como en 33 días pasé a las Indias. Para Hashiguti. entre outros. 506 . de natureza ritual ou simbólica. ele é uma forma de interpretação particular. Colombo contundentemente afirma ter chegado às Índias e reforça que suas hipóteses a respeito do Oriente estavam certas: Señor. é também um gesto de interpretação oticamente possível no discurso.Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas. que chegaram à América junto com as primeiras expedições. cit. Ele não afirma ter chegado a um continente e nem fala das Índias Orientais. que não poderia ser outra. o segundo foi enviado pela Corte portuguesa para tomar posse de uma terra que já se sabia não serem as Índias.e nomeou coisas dessa posição. No Brasil. Colombo também descreve os índios com uma “cor” diferente. O corpo em sua localização (espaço histórico-social) determina sentidos. Em nenhum momento Caminha usa a palavra índio. Enquanto o primeiro precisava provar suas hipóteses aos reis de Castela.” E o corpo do índio começa a ser descrito e interpretado pelo genovês. Tese de Doutorado. Em sua primeira viagem. 10 FOUCAULT. p. dadas às condições em que chegou à América. o próprio Colombo escreveu aos reis. E quando olhou para os índios e para as índias. Simone. Campinas: Unicamp. Os dois navegadores chegaram à América em situações diferentes. posições discursivas. 2008. 9 507 . funcionando como espessura material significante. o que deixa ver sua preocupação em documentar sua “descoberta”. Uma espessura material que é estrutural. Mas a perspectiva é outra. Corpo de Memória. Op. Estas primeiras definições. Esta sua afirmação é a gênese de toda uma série de discussões sobre diferenças raciais em relação aos índios. as diferenças entre o Ocidente e aquelas sociedades com quem entrava em contato pela primeira vez se materializava nos corpos destas mulheres e destes homens.. É Colombo quem olha os habitantes da nova terra pela primeira vez e começa a construir sentidos sobre eles. mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos.71. Para Foucault10: “Não é o consenso que faz surgir o corpo social. Michel. os índios passam a ser contados a partir da Carta de Caminha. vistas pelo olhar de Colombo estão ainda muito próximas daquilo que o Ocidente define como índios e ainda hoje há nos discursos que circulam sobre eles a ideia de que são “amarelos”. Cabral e Colombo agem de formas diferentes em relação à escritura das primeiras cartas. HASHIGUTI. simbólica e imaginariamente constituída como linguagem9. 46. p. p. UnB. Muito mais decisivas para a versão oficial européia são as correspondências de Américo Vespúcio. “qualquer um deles era mais alto estando de joelhos que eu em pé”11. A partir destes cenários descritos por Colombo. não foi esta versão que determinou o rumo que os discursos sobre a América e sobre seus moradores. E esta história que passa a ser contada por uma única versão representa o primeiro grande silenciamento das histórias das sociedades indígenas. dado que sua segunda viagem à América. O Brasil de Américo Vespúcio. Riccardo. 130-131). definitivamente. que a carta foi tratada como um segredo de Estado. para fugir de uma classificação sobre estas pessoas que ele estava vendo pela primeira vez. nessas passagens. tocou o território norte do Brasil (ao longo da costa entre o Amapá e o Rio Grande do Norte) antes da chegada de Cabral a Porto Seguro. (Vespúcio 1500 – In FONTANA. Dá a impressão que não se sente à vontade com a imprecisão da denominação. em 1499-1500. E. anunciam com bastante alarde a antropofagia: “vivem de carne humana”. lançaram-se as bases da memória discursiva do Ocidente sobre os “índios”. A Carta de Caminha ficou desaparecida por séculos. a serviço da Espanha. Primeiro os portugueses avistam dois homens. Em seu processo de escritura. Outro aspecto bastante fantástico de sua descrição diz respeito ao encontro que supostamente teve com gigantes. Brasília: Ed. na Torre do Tombo e só foi publicada pela primeira vez em 1817. e é o primeiro a fazer isso. Para os portugueses a forma cautelosa como o escrivão se referiu às novas terras era tão diferente do que diziam os outros navegadores.Na Carta de Caminha os índios aparecem como “homens”. reapareceu em 1780. mulheres. 1994. pessoas e abusa dos verbos com sujeitos ocultos. de indígenas em território brasileiro. Os registros feitos por ele. 11 508 . Caminha usa como estratégia textual se referir a eles apenas com pronomes ou com palavras neutras como homens. seguindo o modelo de Colombo. Ela encontra D’Angelis (comunicação pessoal) chama a atenção ao fato de que Vespúcio fala. Vespúcio e outros cronistas que chegaram primeiro à América. tinha por objetivo estabelecer no Rio 509 . que o rastro de destruição deixado pelo sistema colonial francês não foi muito diferente do que veio a acontecer na América em relação às populações nativas. em 1555. Neste tópico. eles implantariam uma prática colonial “humanizada”.. como eram conhecidos os portugueses. e tirando a irrefragável consequência que estes acabariam por onde acabaram aqueles. Sabemos. em terras brasileiras. apoiado por Calvino. Robert Southey Entre os séculos XVI e XVII. uma resposta de tocar no vivo (. Há regiões na África que foram colonizadas pelos franceses. como Reunion. fez duas tentativas de estabelecer colônias. pacíficas com os índios Tupinambá. Supostamente. adverti-os que. por razões diferentes. vou tratar especificamente de duas situações relacionadas a estas tentativas francesas que deixaram ver. com a intenção de estabelecer relações. à procura de novas conquistas.) que os portugueses tinham principiado exatamente por onde agora principiavam os franceses. A primeira investida francesa. um índio racional. Uma das principais estratégias francesas consistia em prometer proteção aos índios Tupinambá em relação aos pero. nas regiões do litoral brasileiro onde viviam sociedades Tupinambá. foram levados pelo tráfico de escravos.. comandante de uma expedição composta por soldados e artesãos. os que não morreram. Duas frestas discursivas: franceses e sociedades Tupinambá Numa das aldeias. no entanto. desconfiassem de todos estes estrangeiros. aproveitando da experiência. a princípio. Nicolas Durand de Villegaignon. deu um velho por nome Momboré-Wasu. nas frestas dos discursos europeus sobre os índios Tupinambá. aportou no litoral fluminense. em que não sobreviveu um único negro.fortes ecos em uma Europa ocidental etnocêntrica. a França. onde. suas relações foram estabelecidas com sociedades Tupinambá. a 510 . Desta vez. a Histoire d’un Voyage Faict en la Terre du Brésil. É bastante etnocêntrico acreditar que os nossos rituais também não causam estranhamento a outras culturas. já que Deus. Neste grupo estava Jean de Léry. parecia bem estranho que os católicos comessem seu próprio pai. se de fato aconteceu. autor de um dos mais importantes relatos sobre o Brasil do século XVI. no início do século XVII. que eram antropófagos e comiam os inimigos que julgassem virtuosos. Então eles não traziam em si mesmos as virtudes de seu pai? Para eles. ainda que permeada por seus próprios interesses de huguenote. Ele deixa ver um cacique Tupinambá questionando a simbologia da hóstia. a França Equinocial. os perseguidos huguenotes poderiam viver em paz. Mas. Para aqueles índios. os calvinistas deixaram o forte e procuraram abrigo junto aos Tupinambá em terra firme. o Espírito Santo e Jesus Cristo representam a mesma pessoa. Em consequência destes desentendimentos. o projeto da França Antártica fracassou. não pertencia aos domínios de Portugal. comer o inimigo fazia muito mais sentido. dificilmente seria revelada nos registros ibéricos. Mas o processo discursivo instituído pelo Ocidente faz da antropofagia uma prova cabal de que se tratavam de mentalidades primitivas.de Janeiro a França Antártica. Mas diante das divergências religiosas e das tiranias de Villegaignon em relação aos seus colonos. Como sabiam que haveria uma reação portuguesa diante de suas ambições. Também nesta região. se fossem banidos da Europa. a primeira atitude dos franceses foi a de construir o forte de Coligny numa pequena ilha na entrada da baía de Guanabara. Nesta obra. nasceria de razões diferentes. o corpo de Cristo. os franceses tentaram se estabelecer no litoral do Maranhão. no futuro. Jean de Léry mostra. ainda que tentasse a intermediação de outros seguidores de Calvino. A região. não fazia parte do Brasil. uma situação entre os índios Tupinambá que. portanto. A segunda tentativa francesa. de acordo com Tratado de Tordesilhas. que nomeou os Senhores de La Ravardière e de Razilly “lugares-tenentes do Rei de França na ilha de Maranhão” e designou missionários da ordem dos capuchinhos. nunca aconteceu no Brasil. A proteção prometida pelos franceses. Lá viveram. mas uma parte da tripulação permaneceu entre os Tupinambá. no litoral norte brasileiro. 511 . D’Abbeville segue para Paris com seis caciques Tupinambá. apadrinhados pelos reis. Pouco tempo depois. ele decidiu voltar à França e tentar convencer Henrique IV a estabelecer uma colônia francesa na “Ilha de Maranhão”. o resto de suas vidas. O trabalho discursivo empreendido por eles estava voltado para convencer os reis franceses de que valia a pena investir no Brasil e que a convivência com a população nativa era possível. O capitão foi obrigado a voltar para França. entre eles o frade francês Claude D’Abbeville. Em 1612. dispostos a servir a coroa francesa e devotos da fé católica. à viagem. Para ratificar diante da coroa francesa o suposto desejo dos Tupinambá de conversão à fé católica e aos reis da França. As intenções de Des Vaux. era fabricar uma imagem dos índios Tupinambá como gentis. Não lhes interessava mostrar um índio selvagem e indomável. no entanto. no entanto. se concretizariam somente no reinado de Maria de Medicis. começava a breve tentativa de estabelecimento da França Equinocial. Por sua duradoura convivência pacífica com os índios e pela ausência ibérica naquela promissora região. foram batizados em um espetáculo público na cidade. Ele fazia parte da desastrosa expedição do capitão Jacques Riffault para o Brasil. para exercerem o apostolado junto aos Tupinambá da região. no início deste processo.União das Coroas Ibéricas configurava a América do Sul como uma única e grande colônia espanhola. Um dos principais objetivos da congregação dos capuchinhos. a reação portuguesa em defesa do território e os interesses da coroa francesa levariam à retirada definitiva dos franceses da região. entre eles. em 1594. Os três que sobreviveram. de fato. O projeto da França Equinocial partiria da iniciativa Charles Des Vaux. Des Vaux. embora haja outros aspectos significativos descritos. Histoire de la mission des pères capucins en l’isle de Marignan et terres circonvoisines où est traicté des singularitez admirables & des moeurs merveilleuses des indiens habitans dece pais.. Neste livro. muita vez desperto E abro as janelas. para ouvi-las. no Maranhão entre os Tupinambá. há um capítulo inteiro destinado à astronomia dos Tupinambá de que vou tratar a seguir. espalhadas pelo Brasil. Que.) Direis agora! “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem.O frade capuchinho esteve por quatro meses no norte do Brasil. A partir desta sua experiência. trabalho já muito bem realizado pelos pesquisadores 512 .. Os céus Tupi e a contribuição de Claude D’Abbeville e “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso”! E eu vos direi. no início do século XVI. uma boa parte das referências da astronomia Tupinambá registradas por Claude D’Abbeville. (. pálido de espanto.. Este estudo realizado por D’Abbeville representa uma das mais importantes frestas por onde passaram discursos que deixavam ver um índio racional. durante a pesquisa.. quando estão contigo?” (. sociedade indígena a quem se atribuem as descrições feitas nas cartas de Américo Vespúcio como os terríveis e monstruosos antropófagos. com tonalidades diferentes das pintadas pelos interesses que a coroa portuguesa agenciava. no entanto. ao invés de fazer uma descrição destas constelações.. D’Abbeville escreveu uma das mais importantes referências sobre estas sociedades.) Olavo Bilac Minha pesquisa de campo no doutorado aconteceu entre 05 sociedades Tupi. Aqui.. Encontrei. à lua e às estrelas. embora haja diferenças de uma língua Tupi para outra. O conhecimento que as sociedades Tupi produziram e produzem sobre o céu revela um número considerável de regularidades. associado-as ao estudo das sociedades Tupi contemporâneas. denominações que estas sociedades dão ao sol. Em relação ao sol. porque estão muito distanciadas no tempo e no espaço. a primeira diferença entre o céu ocidental e o céu Tupi que deve ser assinalada diz 513 . Entre os Suruí. podemos observar o parentesco linguístico bastante próximo. analiso discursivamente estas constelações.tatá Zahy-tatá Sahy-tatá Jay-tatá Jacy-tatá Em todos os grupos a palavra fogo é tatá e a denominação de estrela sempre se constrói a partir da denominação de lua. das línguas elencadas. Algumas delas surpreendentes. do século XVII aos nossos dias. Para eles as estrelas são feitas de fogo. são palavras semelhantes. No quadro a seguir. da região norte à região sul. acrescida de tatá. por isso elas não são iguais à lua. Lua Jaceí Zahy Sahy Jay Jacy Tupinambá século XVII Tembé Suruí Aikewára Asuriní do Xingu Mbyá-Guarani RS Estrela Jaceí. pude perceber que eles diferenciam os astros pela intensidade do brilho. quase todas as sociedades Tupi o chamam Kwarahy ou Coaracy. Em relação à lua.do Mast. que se revela nos termos cognatos para “lua” e “estrela”. Se pensarmos o céu como uma grande escritura. Há historicidade na forma como estas sociedades compreendem o universo e as diferenças e as regularidades vão tecendo um céu muito particular. Quadro 01 – Tronco Tupi: lua e estrela. que não é feita de fogo. Entre as regularidades mais evidentes há. um céu marcado pela memória discursiva Tupi. por exemplo. Segundo seus registros existiam. algumas das quais representam um bico. formada de estrelas muito grandes e brilhantes. na sequência a tradução e por fim os comentários feitos por Rodolfo Garcia. É muito provável que todas as sociedades indígenas brasileiras tenham produzido conhecimento sobre céu. as seguintes constelações: YANDOUTIN13/Iandutim Conhecem uma constelação denominada Iandutim.respeito ao fato que no Ocidente se identificam as constelações traçando linhas imaginárias de uma estrela a outra. pois existem vários registros da identificação de estrelas e de narrativas orais relacionadas a ele. todos de grupos Tupi.br/arquivos_sbhc/22. que é. 13 No artigo “Tradições astronômicas tupinambás na visão de Claude D’Abbeville”. os Tupinambás não diferenciavam planetas e estrelas. Para o Tupi. dizem os maranhenses que elas procuram devorar duas outras estrelas que lhes estão juntas e às quais denominam uirá-upiá. embora tenha ficado apenas quatro meses entre eles. Neste artigo eles fazem algumas críticas à tradução e no momento de apresentar as constelações. fez o registro de várias constelações. ou Pirapaném quando aparece no começo da noite. Flávia Pedroza e Ildeu de Castro Moreira fizeram uma análise detalhada do livro de D’Abberville e sua tradução para o português. Na época em que escreveu seu livro sobre os Tupinambá. entre outras. em seguida a descrição feita em francês. na edição em português de 1945 http://www. D’Abbeville faz uma descrição cuidadosa da astronomia Tupinambá. de certa forma o que aqui estou propondo em relação às sociedades Tupi. algumas definições da astronomia ocidental eram diferentes e ainda não se tinha uma definição mais clara de sua órbita. ou Avestruz branca.mast. quando aparece logo pela manhã. primeiro aparece a denominação. chamada por estes índios de Jaceí-tatá-uaçu.pdf 12 514 . É até possível falar em astronomia indígena comparada. Segundo D’Abbeville. as constelações são os espaços negros que estão dentro dos limites das estrelas. em função das recorrências encontradas sobre este tipo de conhecimento. como é o caso de Vênus12. Os registros a seguir. remontam ao século XVII e chegam até as minhas pesquisas realizadas recentemente. E. de algumas estrelas e de alguns planetas que são compreendidos como estrelas. ) SEYCHOU/Seichu Temos entre nós a ‘Poussinière’ que muito bem conhecem e que denominam seichu. com o objetivo de conferir as medidas do centro da Terra. 14 D’ABBEVILLE. Introdução e notas: Rodolfo Garcia. 515 .. em seu hemisfério. 246. fez contato com vários grupos indígenas. para a América do Sul. Claude. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. aqui. e mal a enxergam afirmam que as chuvas vão chegar. (.) SYMBIARE RAIEUBOIRE/ Simbiare ra jeiboare [.. Eles chamam as Híades. no quadro das regularidades da memória Tupi sobre o céu. maxilar. porque são elas que vou correlacionar mais a seguir.. Anuncia a chuva14. La Condamine fez o seguinte registro (1745): Notei também que eles conheciam diversas estrelas fixas. e que davam nomes de animais a diversas constelações. Trata-se de uma constelação que tem a forma dos maxilares de um cavalo ou de uma vaca... Tradução: Sérgio Milliet. ou cabeça de touro “Tapiira Raiufa”. destaquei apenas estas três constelações. Começa a ser vista.. Ele entrou na América do Sul pela Guiana Francesa. como chegam efetivamente pouco depois. o navegante francês La Condamine foi enviado pela Academia de Ciência Francesa.(. na nascente e percorreu com a ajuda de vários índios e trocando várias vezes de embarcação todo o rio Amazonas no sentido Oeste-Leste. começou sua viagem pelo Peru.. E. ou que aparecem em outros registros. 1945. dum nome que significa hoje em sua língua “Queixada do boi”. p. Em sua viagem. São Paulo: Livraria Martins Ed. em meados de janeiro.] isto é. Embora seja possível relacionar quase todos os astros que ele registrou com aqueles que encontrei durante minha pesquisa. Antas e Veados no Céu Norte Em 1735. O Céu dos Índios Tembé. 1a ed. algumas estrelas. Ivânia et al. não tinha como objetivo estudar especificamente a astronomia. por causa da palavra Tapi’ir.em muitos momentos. no zodíaco ocidental. assim como outros pesquisadores. Embora no livro ele não fale qual era o grupo que conhecia as estrelas. demonstrou que considerava os índios uma raça inferior. Em “O Céu dos Índios Tembé”15 aparece catalogada a constelação Tembé Tapi’ir Hazywer. daí aparecer “boi”. Revelava até uma certa surpresa por perceber que eles identificavam. Ele. D’Abberville provavelmente também passou por esta dificuldade quando registrou Simbiare ra jeiboare como maxilar da vaca ou do boi. no século XVIII demonstra como o conhecimento de astronomia era importante para índios brasileiros. O registro feito por La Condamine. 1999. que significa o Queixo da Anta e ela está localizada. com precisão. mas ela acaba aparecendo em seus registros. já que em Tupi Tapi’ir significa anta. na constelação de Touro. CORRÊA. a palavra tapir ainda não havia sido incorporada à língua francesa e a tradução que eles faziam buscava semelhanças. provavelmente esses índios pertenciam ao tronco linguístico Tupi. é bem possível que tenha se equivocado. Quando ele fez este registro. 15 516 . Quando La Condamine tentou traduzir o nome da constelação identificada pelos índios. devido à sua importância na vida cotidiana dos índios. Belém: Imprensa Oficial do Estado. eles vêem nesta região do céu o Queixo do Veado. do cavalo Queixo do boi Queixo da anta Tapi’i rainhykã Guarani Queixo da anta MIxára Dil Asuriní do Xingu Suruí Queixo do Veado Veado Mixára Registro D’Abbeville La Condamine Germano Bruno Germano Bruno Ivânia Neves Ivânia Neves Esta constelação é conhecida entre nós como as Híades. do touro. Durante as minhas pesquisas. todas as denominações. (realidade geográfica de todos os povos relacionados.Quadro 02 – Os queixos de veados. boi. Entre os Suruí e os Asuriní do Xingu encontrei uma outra denominação. cavalo. logo no início. Os dois últimos registros foram feitos durante minha pesquisa de campo no doutorado. Esta região do céu aparece no início da noite. Curiosamente. menos dos Guarani) no período das chuvas. Todas as traduções do quadro são traduções culturais. os dois procuraram fazer uma aproximação e traduziram como vaca. a dificuldade é evidente em relação à anta. Nos registros dos dois franceses. cuja disposição das estrelas tem forma de “V” e que se localiza no Céu Norte. inclusive a ocidental projetam nestas estrelas a forma de um queixo. ficou bastante evidente que havia regularidades entre as referências sobre o céu e sempre que encontrava 517 . da anta. como não existe este animal na Europa. antas e similares nos céus. nas proximidades do equador. Conheci primeiro o “Queixo da Anta” dos Tembé e desde o mestrado saí à procura desta constelação em outras sociedades. falam de universos diferentes e nem sempre as equivalências são possíveis. do veado. Denominação Simbiare ra jeiboare Sociedade Tupinambá Tapiira Raiufa Tapi’ir Hazywer Indeterminada Tembé Tradução Maxilar da vaca. eu me valia destas regularidades para poder começar um diálogo com eles sobre o céu. composta por um conjunto de estrelas que forma uma grande sinuosidade no céu. mas o queixo era do Veado. no hemisfério sul. Figura 01 – Escorpião. E o queixo que viam no céu também era de um Veado. Ema ou Avestruz: problemas da tradução cultural no Céu Sul Agora vou falar de uma outra região. Fonte: Stary Night. uma das constelações mais conhecidas e mais visíveis é o Cruzeiro do Sul. 518 .pela primeira vez um grupo. Quando cheguei aos Asuriní. apenas o identificavam como o caminho da anta na floresta. perguntei sobre o queixo e sobre a anta. o Veado foi a novidade. é possível que apareça nos céus de outros grupos. mas eu não o conhecia. mas eles falavam em Tapirapé. Também se localiza no Céu Sul. Eles não conheciam Tapirapé como um caminho no céu. a constelação de Escorpião. Nas representações ocidentais. o Céu Sul. semelhante a um ponto de interrogação “?”. Insisti com os Suruí no Queixo da Anta. que havia uma grande Anta lá. Em relação a esta região do Céu Norte. podemos ver este movimento descrito por Couto de 16 MAGALHÃES. significa ave. a mesma região da constelação de Escorpião é chamada de Móy.16 Os índios Tembé identificam uma constelação em condições idênticas à constelação mencionada por Magalhães e por Frei D’Abbeville como Avestruz. figurava uma cabeça de avestruz. Não me envergonho de dizer que neste tempo eu conhecia muito menor número de constelações que eles. Infelizmente o General não disse como era em Tupi o nome da constelação. Entre os Tupi. em vários momentos aparecem referências a esta região do céu. o General Couto de Magalhães produziu. Wira. São Paulo: Companhia Editora Nacional. muitos textos sobre os índios brasileiros.Esta região do céu é identificada por vários grupos indígenas. trata-se da constelação da Ema. 519 . General. em latitudes próximas ao Equador. em Tupi. Nos registros sobre as constelações indígenas. O Selvagem. Uma noite eles me fizeram observar que uma das manchas do céu (que fica junto à Constelação do Cruzeiro). A seguir. Entre os Suruí. No século XIX. com precisão que bastava perfeitamente para regularizar as marchas. que chama-se ixci-tata-uaçú e a constelação das Plêiades ceiúxu figuram frequentemente na contagem do tempo durante a noite. e que ao passo que a noite se adiantava – aparecia na Via Láctea a continuação da mancha como o pescoço e depois como o corpo dessa ave. No trabalho com os Asuriní não tive oportunidade de ver o céu Norte e não consegui saber como chamavam esta região. a cobra e não tem relação com nenhuma espécie de ave. 1940. talvez centenas de noite pelo Araguaia com guarnições de selvagens Carajás – e sempre eles conheciam a hora da noite por meio das estrelas. O bico da Ema é formado pelo Cruzeiro do Sul e nos meses de Julho a Outubro. Couto de. dentro de uma perspectiva acentuadamente evolucionista. uma passagem em que deixa ver as habilidades indígenas em relação ao céu: [v]iajei dezenas. o planeta Vênus. vaca e cavalo. Os europeus também não conheciam a ema. No capítulo mostro como estas traduções interferem na tradição indígena e colocam em circulação novos sentidos. Neste caso. A mancha de que Couto de Magalhães fala. então fizeram uma equivalência com avestruz. Uma das pernas da Ema é formada pela constelação de Escorpião. animal originário da África. e aos poucos vai aparecendo o resto do corpo. Estas traduções interferem nos sentidos culturais destas palavras. Ema Avestruz Branco Cobra Avestruz Wiranu Iandutim Móy ? Tembé Tupinambá Suruí Carajás D’Abbeville também fala sobre a constelação. Op. Ivânia et al. Os índios Tembé também identificam suas constelações observando as manchas pretas no céu17. 520 . traduzida como Avestruz Branca. Ainda no Céu Norte aparece a constelação mais constante dos céus Tupi. inclusive muitos religiosos que se valem das traduções para interferir no universo cosmológico das sociedades indígenas. Primeiro surge o Cruzeiro. mas há outros. a Ema passou a ser Avestruz.Magalhães. o avestruz e pelo mesmo processo que a tradução de anta se transformou em boi.Constelações do Céu Norte. provavelmente é o Saco de Carvão. 17 CORRÊA. do Cruzeiro do Sul. trata-se de Eixú. localizada entre as estrelas Magalhães e Formosa. alguns pesquisadores podem fazê-las apenas pela falta de equivalências. Quadro 3 . cit. sem ter por objetivo alterar os sentidos. Plêiades. Seichu Ceiúxu Eixú Eixú Seixú Zahy-tatá-pei-pei Tupinambá Carajás Guarani Asuriní do Xingu Suruí Tembé Esta constelação. situada no céu Norte. Desenho: Patrícia Brasil.Figura 02 – Seixú/ Suruí. visível. Quadro 04 – As Plêiades no Universo Tupi. portanto. apresenta uma irregularidade 521 . no período das chuvas no hemisfério Sul. Figura 03 . Todos os grupos Tupi identificam esta constelação. A denominação Eixú aparece catalogada no vocabulário Tupi traduzida como Casa de Abelha. No zodíaco ocidental esta região do céu é conhecida como as Plêiades. Fonte: Software Starry Night Enthusiast DD. Ainda que os europeus desconhecessem as constelações do hemisfério Sul. portanto. O céu que brilha na região continua sendo o dos índios. às estrelas. através dos processos de sujeição a que foram submetidas estas sociedades. A memória discursiva Tupi sobre o céu representa um espaço de resistência do conhecimento indígena. e em grande medida dialoga profundamente com o céu discursivizado pelos Tupinambá nos primeiros séculos de contato. processo no qual os índios continuam se constituindo como sujeitos na escritura e nos gestos de leitura que fazem no/do céu. de fato. revelando serem formas cognatas. no singular. que ainda hoje não foi explicada pela astronomia ocidental. quando precisei falar sobre o céu visto na Amazônia. o fato de ainda existirem sociedades que mantêm sua própria memória sobre o céu marca a identidade destes índios.em sua trajetória. A astronomia Tupi assinala um processo de subjetivação destas sociedades. num processo de resistência que chega até os nossos dias. O conhecimento dos índios se impôs ao europeu. 522 . Eixú desaparece por quase dois meses. os outros grupos usam denominações muito semelhantes. formavam uma única nação. pensar em uma memória Tupi sobre o céu é pensar em um céu constituído por muitas vozes que se afinam e encontram novos tons. as sociedades Tupi. Cada sociedade escreve no céu suas singularidades. em novos caminhos. Se por um lado os processos de sujeição impostos pelos europeus e pela própria sociedade brasileira conseguiram silenciar e alterar profundamente a tradição indígena. À exceção dos Tembé. A memória Tupi sobre o céu é uma colcha de retalhos costurada por todas estas constelações. as estrelas indígenas poderiam ter sido apagadas do firmamento Tupi. O estudo das constelações nos leva a reforçar a hipótese do professor Aryon Rodrigues de que. antes de se dispersarem pela América do Sul. Assim como acontece em relação à lua. Mesmo quando o céu Norte está visível. ao sol. com suas semelhanças e diferenças. foi à astronomia indígena que recorri. Não se pode falar em um céu Tupi. Em 1998. Há inclusive sociedades indígenas que já perderam suas próprias referências sobre o céu. Por outro lado. podemos também rever nossas previsões. 523 . escrevem seus próprios discursos no céu. a maioria dos índios mais jovens já freqüenta as escolas. onde aprende a astronomia ocidental. Hoje. já que por elas era pouco provável que no século XXI ainda houvesse tantas sociedades indígenas que inventando e reinventado suas tradições.Talvez as previsões do que vá acontecer com este conhecimento indígena sobre o céu não sejam muito boas. . conhecidos como os primeiros estudiosos da presença negra na Amazônia Paraense centraram suas preocupações em visibilizar o “enegrecimento das paisagens humanas”1 nesta parte norte do Brasil.Cosmologias e saberes afroindígenas na Amazônia marajoara Agenor Sarraf Pacheco Universidade da Amazônia A escrita da história em questão As mesclas interétnicas no cenário amazônico entre índios e negros e a composição identitária oriunda desses encontros. 2005. Flávio dos Santos. por não se enquadrar no modelo da plantation verificada no centro-sul do Brasil. quase sempre. Vicente. danças. Polis. Anaíza & FIGUEIREDO. A Presença Africana na Amazônia Colonial: Uma notícia histórica. A hidra e os pântanos: mocambos. Anaíza Vergolino-Henry e Arthur Napoleão Figueiredo. UNESP: Ed. cantos. rev. O negro no Pará sob o regime da escravidão. a escrita da história indígena e das diásporas africanas em contexto colonial versou. Belém: IAP. ampl. Enfrentaram percepções apressadas e restritas de estudiosos nacionais e internacionais que procuraram reforçar o mito da “Amazônia: Terra de Índio” e “paraíso isolado e parado no tempo”2. 1 525 . pela temática do mundo do trabalho e suas diferentes atividades. Igualmente mergulhou nas relações de poder e nas formas de resistência agenciadas por essas populações que deram existência e movência às fronteiras coloniais. São Paulo: Ed. quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (Séculos XVII-XIX). 2 SALLES. Programa Raízes. Ainda que as perspectivas abertas pela Nova História Francesa com seus novos sujeitos. Inspiração em GOMES. VERGOLINO-HENRY. religiosidades e práticas de sociabilidades foram pouco estudadas mesmo pela historiografia mais recente. Arthur Napoleão. 3ª ed. temas. Belém: Arquivo Público do Pará. Intelectuais de ponta e de peso como Vicente Salles. 1990. saberes. fontes e problemas tenham alcançado forte ressonância nos departamentos de ensino da região. bem como suas trocas e empréstimos culturais em torno de cosmologias. 2005. Porém. lazer e religiosidade. visuais e gestuais para visibilizar práticas “decoloniais” em território da “diferença colonial” experienciadas por índios. 3 526 . com parecer do renomado estudioso amazonense Arthur César Ferreira Reis. que não somente recomendou à Comissão do evento para que publicasse a tese na íntegra. como lhe conferiu voto de louvor. Deste modo é preciso dizer que. solidariedades. realizado no Rio de Janeiro em 1944.Vicente Salles. que saíram em 1952. negros e afroindígenas4. negociações e conflitos. empreenderam práticas de exploração. saberes subalternos e pensamento limitar. pois representaram grande descoberta sobre a história da Amazônia e contribuíram para recolocar a região nas rotas das diásporas e contatos interétnicos. mesmo tendo apreendido a dinâmica e o caráter multifacetado e multiétnico das fugas e suas redes de contato. esteve muito mais preocupado com as relações de força entre poderes constituídos no controle da mão de obra indígena e africana. Essa pesquisa foi publicizada no X Congresso Brasileiro de Geografia. perseguição e extermínio contra populações nativas e diaspóricas. poderes locais e metropolitanos para fazer valer seus interesses econômicos e políticos. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade. não explorou em seu vasto estudo o trânsito. neste artigo exploraremos outras memórias escritas. moradia. 4 MIGNOLO. Sem desvalorizar a importância e o lugar dessas pesquisas frente ao modelo tradicional de escrita do saber histórico. sua pesquisa não examinou a organização do modo cultural de ser e estar no mundo dessas populações em deslocamentos. Mapeou o negro em muitas de suas expressões: trabalho. no contexto colonial Amazônico. nos Anais do Congresso. Com O primeiro estudioso da temática é o etnólogo maranhense Manoel Nunes Pereira. as mediações e negociações culturais. Walter D. 2003. tradicionalmente batizado como o inaugurador dos estudos da diáspora africana à Amazônia3. com seu “Negros Escravos na Amazônia”. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. foi mais longe do que Vergolino-Henry e Figueiredo. Apesar de ter trabalhado exaustivamente a dinâmica da vivência material dessas populações em luta por sua liberdade. Belo Horizonte: UFMG. especialmente em termos de cosmologias e saberes forjados por essas populações em intercruzamentos contínuos. Flávio Gomes com sua Hidra e os pântanos. em outras fronteiras coloniais. surpreende-se animal hibridamente composto. olhos. pensar. enquanto modos de ser. esses sujeitos sociais recriaram. extraída de uma urna funerária marajoara pré-colombiana. A parte inferior assemelha-se a um sapo. Fundamentando-se nos Estudos Culturais Britânicos. este texto pretende visibilizar como índios e negros e seus descendentes. nariz. redes de solidariedades e mediações culturais. expressando ambientes da terra e da água. sustentados por mãos e pés que lembram instrumentos de arar a terra. Linguagens da história em inscrições marajoaras Populações ameríndias. Esse animal pode ser interpretado como um camaleão ou um macaco por apresentar longos braços e orelhas. tecidas à luz de suas cosmologias e saberes ancestrais. situados em diferentes territórios do arquipélago de Marajó. Na imagem abaixo. habitantes da Amazônia Marajoara. cujo destaque encontrase na parte superior – enorme cabeça. Outra possibilidade de ler essa representação visual é assemelhá-la com um animal do sexo feminino em arte de parir. desarticularam ações de poderes colonizadores operando com suas cosmovisões e mesclas culturais afroindígenas. desde os tempos mais longínquos. assim como habilidades e destrezas constituintes nas vivências de populações marajoaras de matrizes orais. língua e ouvidos em formato de longas cobras. Latino-Americanos e no pensamento Pós-Colonial. crer e viver relações sócio-culturais. 527 . utilizaram diferentes instrumentos de sua cultura material para inscrever cosmovisões e sabedorias.o afã de enfrentar e resistir a esses doloridos mecanismos de controle e submissão. Daí. paladar(falar) e olfato. expõe concepções de equilíbrio e respeito homem e meio ambiente. esses guardiões das matas e dos rios recriaram e deixaram ver. traduzida no tato. dada a excludente expansão do letramento. cerimonial. visível nesta inscrição.A relação homem e animal. hábitos e costumes entre si e com outros grupos humanos de contatos. terra e água. socializar e preservar narrativas orais. especialmente. visão. em objetos de uso doméstico e. Por serem herdeiros de um modo de vida pautado na tradição oral. 528 . como suas culturas estavam assentadas numa sensibilidade e espiritualidade dos sentidos. cultura e natureza. Tais práticas hoje se encontram em conflitos. dos suicidas projetos de industrialização. a grande importância atribuída a esses órgãos que permitiram transmitir. ensinamentos deixados pelas primeiras comunidades humanas que viveram na Amazônia antes do contato com o mundo europeu. audição. modernização e globalização insensivelmente instalados na região. assim como instrumento contra o esquecimento. p. engrossaram e transformaram-se no grande rio Amazonas5. que. no universo indígena esse animal é sinônimo de fertilidade e de vida. Estas fendas tornavam-se inicialmente regatos com a queda de águas das chuvas. Obrigados pelas secas. Rio de Janeiro. Imiscuídos nesta cosmologia. reafirma esse ancestral sentido e a importância do animal na vida dos antigos habitantes da Amazônia Marajoara. ano VII. saberes e crenças. especialmente. a partir da invasão do oceano para dentro do mar. Alexandre Rodrigues. identidades. Ali vivia apenas uma infinidade de cobras. indeterminados e difíceis novos tempos da conquista das Amazônias em seus Marajós de campos e florestas. deram visibilidade à tradição oral. portanto. Dentro deste entendimento. um dos canais reveladores da imortalidade da alma e prolongamento da história. frequentemente. na terra. inscrições e desenhos em peças e cacos da cerâmica marajoara tornaram-se. inscrições de objetos de cerâmica trazem. suporte vivo da cultura material ameríndia. no século XVIII. devido ao peso e grandeza de seus corpos. deixavam impressas. 1964. 147. “Notícia Histórica da Ilha de Joanes ou Marajó”. os ofídios corriam do centro para a costa em busca do precioso e sagrado líquido.Se no imaginário cristão-ocidental a cobra representa o pecado e a condenação do homem. suas figuras tortuosas. Em “galante teoria” para sinalizar o mito de origem dos rios amazônicos. em corpos de animais anfíbios que. povos ameríndios reinventaram suas culturas. Rio de Janeiro. Revista do Livro. Já em passagem do romance Três Casas e Um Rio. 529 . ventres maternos que resguardam cobras. nº 26. combatido com o vir a ser dos incertos. p. ficamos sabendo que no princípio a ilha não tinha aquele labirinto de rios. mãos como guardiães da memória e arrimo do corpo. como verificaremos na parte final deste texto. Com esse conjunto de fragmentos do passado 5 FERREIRA. Não por acaso. a queixa do rio a cobra que o abandona e o deixa sem vida. Instituto Nacional do Livro. Dalcídio Jurandir (1909-1979). 147. evidenciando pés e. a perda e a destruição da ancestralidade de um modo de viver sui generis. recuperada pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira e narrada por um sobrevivente dos índios sacacas. No percurso realizado. do romancista marajoara e modernista. Corpo território da cultura. com indígenas. negociar e socializar-se. mestiços e colonizadores. 2005. que legou aos tempos contemporâneos a presença e persistência dessa rica cultura material e imaterial originária. em solo amazônico. V. E. foram desrespeitadas e desqualificadas como primitivas e irracionais. Maria Antonieta. Rio de Janeiro: Zahar Editora. A tradição oral como um modo de ser amazônico. pp. Este texto destaca a partir de agora a importância da literatura nessa luta contra o esquecimento de nossas tradições nativas e das novas tradições deixadas e sustentadas pelas diaspóricas africanas a partir de 1644. crenças. presente na colônia e em ressonâncias contemporâneas. Corpos Negros: desafiando verdades. comportamentos e visões de mundo. São Paulo: Annablume. In: BUENO. resistir. brancos pobres. 7 ANTONACCI. 1.). apesar do extermínio da maioria de seus integrantes pela voraz ganância de poderes colonialistas. Raymond. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2 e 3. legaram para a posteridade outras memórias. THOMPSON. costumes. bem como o conjunto de narrativas orais. falares. ganhou consistência e vivência em outras formas de registro. Ana Lúcia (org. cuja racionalidade assenta-se em outras cosmologias que. fazeres. quando negros bantu e sudaneses passaram a interagir. 6 WILLIAMS. Contudo. pois não separam o homem da natureza e da dimensão cósmica7. Tal discurso justificou formas de domesticação de seus corpos e mentes. fosse pela própria boca dominante contaminada pelos contatos com essas memórias.pré-colonial. A Formação da classe operária inglesa. 530 . Marxismo e literatura. 1987. por tornaram-se incompreensíveis para a lógica cartesiana e iluminista europeia. danças. 1979. Maria Lucia & CASTRO. Trata-se de vivências. fosse pela boca daqueles que resistiram. P. resultando em extermínios e genocídios dessas ancestrais populações amazônicas ainda em contexto colonial. ensinamentos. suportes materiais como objetos de uso doméstico e cerimonial. o historiador tem em suas mãos forte indício para se interpretar todo um “modo de vida e de luta”6 dessas populações atávicas que. 27-62. cantos rasgaram os tempos da colonização. Dalcídio. no Rio de Janeiro. um frequentador assíduo do acervo do pai. em 10 de janeiro de 1909. Marajó. como um rumor de tambor surdo nas palhoças. reatualização e defesa de tradições frente às fragilidades de ser e estar no mundo impostas pelas forças provinciais e metropolitanas. o filho do todo poderoso coronel Coutinho. Era a batição. local onde o pai exercia o cargo de Secretário da Intendência Municipal. daí em diante. das enchentes e vazantes do Coração da Amazônia. bater algodão. nessa passagem. ritmadas pelas performances do corpo interconectado às suas energias cósmicas10 são experiências sociais capazes de remeter a saberes e fazeres de grupos de tradições orais que desde o período da Amazônia Portuguesa sustentaram as fronteiras coloniais e. marajoara. Migrou para a Vila de Cachoeira do Arari. JURANDIR. 1992. que fim levaram Catarina. cit. vindo a falecer em 16 de junho de 1979. Op. acordando a vila nas madrugadas8. Torcido e fiado saía o algodão para os velhos e rústicos teares em que as negras trabalhavam fazendo redes. negros. Missunga. Passou a infância vivenciando o movimento das águas. fenômeno que aparece com muita intensidade em toda sua narrativa. Seu envolvimento com os códigos do mundo letrado vieram da intensa relação com sua mãe afrodescendente. um ano depois do nascimento. Nascido no seio de Marinatambalo. Viveu em diferentes lugares. romancista negro da Amazônia Marajoara. pp. 3ª ed. fazendo-se. Margarida.Rasgando as fronteiras coloniais: Literatura e Memória O açaí de nhá Benedita trazia o sabor do antigo tempo quando havia escravos em Ponta de Pedras. netas de escravas? Batiam algodão na madrugada com dois maços de palmeira caraná sobre um almofadão. 10 ANTONACCI. Dalcídio Ramos Pereira foi filho de Alfredo Pereira. tecer redes. na vila de Ponta de Pedras. Dalcídio Jurandir9. Belém: CEJUP. explora. Maria de Nantes. Apanhar e amassar o açaí. 8 9 531 . nome indígena da Ilha de Marajó. 47-8. Maria Antonieta. Dialogar com essas evidências históricas captadas pela sensibilidade. sabedoria e experiências concretas de literatos regionais permite sondar experiências sociais vivenciadas por índios. as desestabilizaram. lembranças de tempos coloniais vividos por um de seus principais personagens do romance Marajó. português e Margarida Ramos. Neste enredo recompõe práticas culturais de populações nativas e diaspóricas em suas lutas cotidianas pelo sustento. ao mesmo tempo. Leonardo Affonso de Miranda. Para trabalhar a obra romanesca como fonte da história é preciso compreender que as fronteiras a separar ficção e realidade são tênues e vivem profundos processos de intermediações11. SEVCENKO. fragmentos. Por ora. cosmologias foram negligenciadas pela escrita de documentos oficiais. São Paulo: Companhia das Letras. Neste texto.brancos pobres e afroindígenas em tempos da Amazônia colonial. precisam ser explicitadas e enfrentadas quando nos propomos a explorar indícios. Como dialogar com a ficção literária para aprender os retratos de realidade que ela desenha e explorá-la na narrativa histórica? De que maneira podemos identificar o tempo histórico da experiência do passado e cotejá-lo com o tempo histórico da narrativa literária sem incorrer em anacronismos? Quais leituras documentais e experiências vividas tornaram-se aportes na construção da obra romanesca? Essas. cujas formas de registro de seus saberes. Nicolau. fazeres. A literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2003. citamos alguns destes pesquisadores que sustentam esse debate: CHALOUB. especialmente de grupos sociais. permite indagações e indicações em torno do ofício do historiador. 1998. trabalhamos na perspectiva da literatura como uma das memórias distinta e fundamental para a escrita de uma história social e cultural A bibliografia sobre as relações entre história e literatura é vasta e diversificada. religiosidades. A história contada: capítulos de História Social da Literatura no Brasil. 11 532 . na escrita literária elas são recompostas com toda sua riqueza e complexidade. entre outras questões. A preocupação em registrar essas formas de vida e de luta de grupos de tradições orais amazônicos. como é o caso de Dalcídio Jurandir. São Paulo: Nova Fronteira. Sidney e PEREIRA. Essas narrativas podem ser interpretadas como memória que procuraram perenizar modos de vida. sinais ou centelhas do passado presentes em narrativas literárias. mesmo que não sejam respondidas com posições definidas. por parte de determinados literatos politicamente comprometidos com a democratização e escuta dos saberes populares. Se em relatórios e correspondências de presidentes de províncias essas vozes do passado são quase inaudíveis ou requer do pesquisador grande habilidade para captar o popular na pena do dominante. registrar e compartilhar. Soraia R. 12 NUNES. Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia – Literatura e Memória. vendedor de açaí no Ver-OPeso. formação intelectual. Em outras palavras. b) identificar o tempo histórico da produção da obra e os tempos históricos que ela procura recuperar. uma pequena vocação literária é coisa que não se bota fora. PEREIRA. o circuito de leitura. Entre aquela gente tão sem nada. p. mas com obstinação e verdade12. alguns pressupostos são fundamentais: a) conhecer a trajetória de vida. Belém: SECULT. não menos importante que os anteriores. barqueiro. no viés de uma história comprometida com o social. Um terceiro aspecto. política. se me coube um pouco do Dom de escrever. Benedito. uma responsabilidade assumida. Se posso tocar a viola. assim como saber inquietações. se não fiquei por lá. objetivos e interlocuções experimentadas/explicitadas pelo escritor. 2006. Em várias passagens de seus depoimentos. Para se explorar as vozes populares e suas experiências presentes em uma obra literária. religiosa e cultural do literato. RJ: Fundação Casa de Rui Barbosa/ Instituto Dalcídio Jurandir. Em nossa tese de doutoramento elegemos como epígrafe uma passagem capaz de sintetizar essas questões e revelar qual tipo de literatura o maior romancista das cosmologias e saberes da Amazônia Marajoara esforçou-se. para servir aos meus irmãos de igapó e barranca. o pequenino dom eu recebo com privilégio. As poucas letras que me cabem. cujo direito ao registro de suas expressões. com quem. sua visão de sociedade e formação política. A eles tenho que dar conta do encargo. Ruy & PEREIRA. em produzir. pescador. é assimilar a forma como o literato interpreta sua realidade. para quem e por quem fala. manifestações e falas foi quase sempre posto nos subterrâneos da história ensinada. 533 . mesmo de orelha.comprometida com a vida de populações. bem ou mal. durante toda sua vida. Modéstia a parte. tenho de tocar com ou por eles. Dalcídio Jurandir sempre procurou marcar o lugar social de onde. s/n. faço tudo por merecê-las. Os palcos de suas criações foram. Haroldo Maranhão. dos vaqueiros. depois de décadas de silêncio. Dalcídio valeuse de um conjunto de artefatos materiais e imateriais. Meu romance é um romance político. lendas. etnólogos e folcloristas também marcaram seu círculo de leitura. costumes. parentes e amigos contarem sobre habitantes dos municípios de Ponta de Pedras. Asas da Palavra. nº 04. 13 534 .Outra passagem incrivelmente esclarecedora da posição e postura assumida pelo literato captamos em entrevista cedida a Torres e Galvão: “A visão que eu tive era que a realidade social é feita de lutas. tornou-se um dos maiores literatos paraenses. Não por acaso. dos colhedores de açaí” 13. Antônio e GALVÃO. p. jun 1996. Não seguiu esse caminho para checar os fatos numa orientação positivista. numa espécie de etnologia e etnografia dos pensares. De forma que eu tomei uma posição política. Para esquadrinhar enredos e criar personagens. O romancista impressiona na forma como. (. Unama.. com o irmão Ritacínio. com destaque especial para Cachoeira do Arari. falares e agires amazônicos. Por meio de frequentes correspondências com a esposa Guiomarina. Jurandir solicitava informações sobre crenças. adolescência e narrativas que ouviu a mãe. amigos como o etnólogo Nunes Pereira. naquele determinado espaço. os “Marajós”. Um escritor no purgatório – Entrevista com Dalcídio Jurandir. entre outros. Interações com obras nacionais e estrangeiras. dos 13 iniciais em que habitou nesse lado na Amazônia litorânea. mitos. fatos sociais e políticos com os quais pretendia operar.) Os temas vêm do meio daquela quantidade de gente das canoas. sempre esteve preocupado em levantar informações e constatar narrativas populares. Ecoou como uma voz que. Muaná. a Belém e seus bairros empobrecidos. vizinhos. nascido no início do século XX. portanto. 29.. ou já estavam em desuso. durante cinco décadas (1929 a TORRES. para dar luz às suas narrativas. correspondências com amigos literatos. lugar onde ficou durante 12 anos. Baseou-se em vivências de infância. Belém. enredos festivos para retrabalhar em sua ficção. o pai. mas saber se as práticas culturais que pretendia explorar eram recorrentes. Revista do Curso de Letras. A trajetória desse romancista centrou-se especialmente no Marajó dos Campos. quando as águas do oceano invadem a paisagem. trabalhadores do rio e da terra reorganizam suas vidas. historicamente. agricultores. Imbricadas a esses eixos temáticos. por populações locais. muitos deles. Marajó e Três Casas e Um Rio. Agenor Sarraf. FACES DE IDENTIDADES MARAJOARAS:“Zonas de Contato” Afroindígenas nas Fronteiras Atlânticas. em romances e artigos jornalísticos. da colheita. o artesão Jurandir trabalhou as palavras como barro. Maestro em orquestrar histórias e fazê-las vivas em seus personagens. bem como suas diferenças. quase sempre descendentes de índios. do festar tem as marcas dessa inextrincável relação cultura/natureza. vaqueiros. vocal. Falar em populações afroindígenas e não em mestiças visibiliza quais os principais grupos que sustentaram a economia colonial. o abandono. Recriou. com aguçada habilidade. os campos. novembro de 2009. falares regionais marajoaras de tradição oral. a leitura de suas três primeiras obras. também permite acompanhar. as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia”. com riqueza de detalhes. em escritos carregados de uma poética das conflituosas vivências na região. ainda hoje. Nesses distintos tempos. em confrontos com outros códigos de Em nossa pesquisa de doutorado. tornou-se necessário cunhar a expressão afroindígena para evidenciar como. Acre: UFAC. denunciou. reencena tempos de secas. rítmica. na sessão temática: Diásporas negras e afroindígenas nas fronteiras Atlânticas.1979). encharcando em prolongado período. a perene dificuldade enfrentada. Por isso. Linguagens e Fronteiras” e II Colóquio Internacional “As Amazônias. sua literatura traz um número muito grande de representações daquele universo. a exploração social. 14 535 . situadas nos mais diferentes espaços do imenso arquipélago. o termo expõe trocas. Chove nos Campos de Cachoeira. O tempo do trabalho. do plantio. pescadores. Texto apresentado no III Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia Ocidental “Línguas. na Amazônia Marajoara. Sem negar seus conflitos. Para maiores aprofundamentos ver: PACHECO. Fala de tempos de cheias. falares. quando o Amazonas expulsa as águas salgadas do mar tenebroso. fazeres. dançares. é quase impossível discutir a presença africana descolada das redes de mediações tecidas com grupos nativos da região. negros ou em mesclas afroindígenas14. empréstimos e negociações. cantares de populações pobres. atribuindo-lhes ou recuperando sua vida sonora. decretando sua fase de reinar. As histórias. PEREIRA. “Guardava no oratório atrás da imagem de S. conquistas. 10.comunicação do ocidental mundo letrado. por exemplo. Cit. quando discutindo a produção etnocêntrica de Goody. de uma linguagem cujas marcas da oralidade regional são preservadas. Utilizando-se. peitos. Nas obras desse nosso romanceiro. intrigas. p. mas fortemente ligadas a traços e experiências de culturas diaspóricas. filho dele. em suas desiguais maneiras de viver as contraditórias dimensões de miséria social. muito nova ainda. Quando trabalhava. Em Marajó. traz à tona dimensões de vivências de diferentes grupos sociais. suas cadeiras de almofada buliam e rebuliam no tempo do lundu. partideira de lenha. gritar. Apelidava as galinhas. Quando jovem. ralhava e batia o pé “com o vento que.. Marajó. Dalcídio. trabalhava sempre cantado. Cit. Benedito. podem-se flagrar momentos em que relampejares de culturas africanas em mesclas com culturas indígenas expressavam encenações e celebrações populares. cozinheira. Benedito a carta de alforria que o coronel Coutinho. cosmologias e racionalidades entre culturas da voz e culturas letradas18. aventuras e desventuras da região são contadas a partir da valorização de ações e reações de personagens do seu mundo real.. Nhá Benedita. amassadeira de açaí. 18 Para aprofundar entendimento dessas injunções. mexendo nas mangueiras. preta doceira. recompondo sinais da permanente luta por valores. seus quartos se mexiam. lhe dera quando a escrava ia ter o Elesbão. morto aos 12 anos” 17. Op. tinha a boca torta de cachimbo. braços indo e vindo no velho alguidar. ler: NUNES. em meio a uma natureza peculiar que dita regras de convivências. Soraia R. JURANDIR. que considera as sociedades iletradas em 15 16 536 . Op. Sá Rosália. importa trazer considerações de Antonacci. Já idosa. Em Três casas A esse respeito. consentindo-lhes o direito de falar. 17 Idem. colocava nome nos bichos. conversava com os carneiros. perpetuados e retrabalhados pela economia de mercado em expansão na região15. 47. com virtuosidade. de riqueza e de esbanjamento. p. do coco. vinha tirar a roupa das cordas”16. Ruy & PEREIRA. de negros braços. projetos. Dalcídio recupera “vozes isoladas no tempo e no espaço”. reclamar e deixar conhecer seus sofrimentos. Vitor W. alegrou. não se usavam tambores nos bois-bumbás. jun. Que os pariu. Situba. In: SILVA. Tomaz Tadeu da. gerou conflitos e colocou em liminares22 questionamentos visões de moradores que. Que vá bater tambor com os jacarés”. Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais. 2002. “Tambor somente o do Rufo na banda e os da Coroa do Divino Espírito Santo. Cit. O processo ritual. RJ: Vozes. Martha.). Tomaz Tadeu da (org. p. Cf. 05. Em tom satírico. recolhidos pela polícia à ordem do arcebispo”19. p. 537 . São Paulo. representando vozes de improvisos surpreendentes. embebidos por padrões oficiais. 19 JURANDIR. Petrópolis. 2000. baixo do Arari. A chegada do boi mobilizou. A produção social da Identidade e da Diferença. analisadas por suas ausências. Um bêbado chamado Farinha D’Água começou a xingar o Boi: “É boi ou batalhão? Ou é astúcia do Divino entrando de contrabando em Cachoeira? Isso nunca que é boi. levou seu filho Alfredo para assistir a chegada do Boi-Bumbá. Cit. que vinha do igarapé do Puca. p. Metam essa lancha no fundo. 169-222. Três Casas. devido a possíveis controles exercidos por poderes políticos e eclesiásticos locais20. Cit. Maria Antonieta. em Cachoeira.111. Maria Antonieta. ANTONACCI. se tal apresentação não era a chegada do cordão do Divino Espírito Santo. p. Op. uma noite.. proclamou: “É o Espírito Santo brincando de boi-bumbá para enganar a polícia do bispo”21. Cit. dono do boi. não suportam formas de batuque de grupos populares porque desestruturam domesticados silêncios urbanos e desarranjam seus controles. o literato conta que. Dalcídio. 24. O Império do Divino. questionou o padrão dominante utilizado para pensar populações com índices de oralidade. A respeito de identidades em relacionais conflitos. PUC-SP: Educ.e Um Rio. p. ‘Que os pariu’. Op. Situba tem parte com o mal-assombrado. Isto é pura pajelança do Puca. 89. próprio do espetáculo de culturas orais. 22 TURNER. moradores questionaram Situba. “de um pretume que a tornava mais amorosa” ‒. Desacostumados com a prática de tambores em brincadeiras de bois. O enredo dalcidiano primou por recolocar desvantagem às letradas. Ver: ABREU. Op. Artimanhas da História. 21 Sobre questões que dizem respeito a táticas da religiosidade popular para driblar prédicas da igreja romana. ANTONACCI. Op. 20 Sobre essas formas de controle. dona Amélia.. Projeto História. Tradições de oralidade. Nesse tempo. SILVA. sem levar em conta diferenciações. em vibração contagiante. 108. Tornados cristãos. depois de fazerem de conta que falavam e cantavam língua de índio. p. Cantou numa voz rachada: “Batiza caboco”. Sob sua regência. ao ar livre. com fortes marcas de expressividades em seus permanentes falares e performáticas gestualidades. pois não namorariam mais. Projeto História. Não namoro mais”. (. desde os tempos da colônia. importados por religiosidades catequéticas do Velho Mundo.) Desfiou. tolher a língua e os sentidos de populações nativas e de africanos escravizados. São Paulo. mas submisso. ligeiro de língua. (. aterrorizado25. 25. PUC-SP/EDUC. contritos. fizeram uma evolução e desapareceram à procura do Pai Francisco. ajoelhados em círculo. 24 Árvore de fruta amazônica. respondiam: “Não namoro mais. Apareceu o padre. a batina era uma saia de tinta na casca de muruci24. o seu rosário de contas brancas. tentaram. As águas marajoaras. Maria Antonieta. em coro. benzidas pela cultura eclesiástica eurocêntrica.. 25 Três Casas e Um Rio. inserindo ao palco gentes de diferentes lugares para reviver cenas de pelejas históricas. Surgiram na roda os índios. 2002. Cit.) Não demorou muito e chegava o negro velho tocado pelas flechas batizadas. primeiro submetidos a batismo. negros e colonizadores brancos. Nessa trama. desta vez descalço. Dalcídio reuniu tradições orais em verdadeira polifonia de vozes de cantadores de boi. Dalcídio deixa perceber como culturas de matrizes orais.. ao entrarem em contato com poderes domesticadores de seus corpos e culturas. Op. no passo e na provocação. Os índios.. reconstruindo.. dez. 23 538 .. eram continuamente forçadas a recuar em silenciosos rituais. Corpos sem fronteiras.. Já não era o Pai Francisco do começo. diante dos índios. O expressar consciente dessa peleja histórica indica que. estratégias de dominação branca sobre populações aborígines e negras para sinalizar consciência histórica do que representou o encontro/ confronto entre o Velho e o novo Mundo23. para ANTONACCI. em tom de escárnio entre índios. 116..encontros e tensões entre dimensões de festivas vivências afroindígenas no corredor da Amazônia. Em meio a essa profusão de vozes que faziam distintos comentários.) É boi criado por anta. foi recebida pela população cachoeirense e pelo grupo do boi Caprichoso. elaboraram entendimentos peculiares daquilo que lhes era transmitido. iniciando a caminhada à cidade. regendo a orquestra daquela comédia de rua. 117. 539 . que boi. p. Dalcídio escreveu que “era uma conversação aos gritos e entre injúrias. sincronizados no compasso de tocadores de tambor. “Mas minha Nossa Senhora.. maracá. voltas de miçangas. do igarapé do Pucá. Situba canta a chegada do boi.. personagem do enredo.. era parente. no dia de São Marçal. quase geral na sua primeira aparição. fitas. primo de sua mãe. negro velho. populações afroindígenas. (. Plumas.) Mas isso ai é boi? Ou bezerro de chifre? É uma cutia?(. Com estes laços de parentesco. escárnio e risos nos espectadores. “caboclas”. penas de guarás nos chapéus. espelhinhos no peito. questionando a prática de usar. vestidos com indumentária caprichada. quando se faz fogueira de paneiros. Um boizinho. o cordão do “Garantido” conquistou os moradores de Cachoeira à medida que apresentava suas qualidades com numerosos figurantes. em que as visagens e as lendas transfiguravam os homens”. calção de cetim.. Além dos instrumentos de batuques que os diferenciava. tangas cor de sangue.além de silêncios. Dalcídio fez Alfredo pensar 26 Idem. simbologias afroindígenas e a capacidade de improvisar cantorias de seu amo. anéis grossos de tucumã. ribeirinhas.. flores de papel. o tamanho do boi inicialmente gerou espanto. mas ficasse no chão de areia e restos de calçada. traz para o centro do espetáculo um momento de revelação para Alfredo – a descoberta de que Cazumbá.. mantos de seda. em festa junina. beiços tintos de urucu e papel encarnado. O chiqueiro deste bezerro é no fundo”26. ofensa. com o advir de crendices populares. Depois das restrições do poder público para que Garantido não usasse o salão do chalé. cocares de sarapantar. Mamou na mãe-d´água. A chegada do boi Garantido. um boi daquele tamanho. Ultrapassando uma situação hilária. Situba. Um bezerro. configuram uma profusão de adereços. como que em transe.. cantando e dançando. A sonoridade da cantoria. p. Surpreendendo a todos com uma atitude desconhecida para quem acompanhava seu cotidiano em Cachoeira. como o amo do Boi. Cazumbá era seu parente. Aproveitando o intervalo da comédia..) Afinal pessoa de sua família pertencia também ao ‘Garantido’. Negro sem nenhuma atenuante. “(. pediu ao violista que a acompanhasse e se pôs a cantar baixo entre um silêncio geral. A melodia tornava-se inteligível para quem compartilhou lembranças e heranças vividas em idas e vindas entre territórios de culturas africanas em seus encontros com culturas amazônidas. sorrindo compreensivamente. em passo lento. dona Amélia após cantar e dançar com o som da orquestra do bumba. lamparina de pavios enormes nos esteios. incorporada por uma entidade africana. “Tu já vais/ Tu já me deixas/ Deus te leve a salvamento/ Que por cá torne a voltar”27. mesmo sendo esposa do secretário da Intendência Municipal. arrancou dos ombros de uma cabocla um pano azul. contemplou-a. Situba. num canto da saleta de seu chalé de morada. Dali vinha sua mãe e havia nisso talvez o segredo de seu domínio. Sua família perdia-se em fundas e insondáveis origens negras. no salão de terra batida. a performance e a voz de dona Amélia fizeram Alfredo abandonar sua súbita cólera e vergonha. O garoto passou a construir imagens onde aparecia embalado numa rede. 132. adormecendo pelo 27 Idem. ao ver a mãe sozinha no salão interpretando aquele desconhecido papel. enfaixou a cintura e surgiu no meio do salão. e enquanto o dono da casa servia café e cachaça aos brincantes. que. de suas extravagâncias”. apanhou o maracá de um índio. teto de palha. de seus repentes. subitamente. mas que não se perdeu de suas vibrantes memórias. 540 .na forte negritude conformadora de sua família e nas implicações para o emergir de comportamentos que desconhecia na mãe negra. Negro. ao voltar da cozinha. Dalcídio narra que dona Amélia. depois de consertar a garganta. recompõem pólos de partidas e chegadas e podem ainda situar memórias negras em diáspora. “Tu já vais/ Tu já me deixas/ O mar se vire em areia/ que não possa navegar”28. que. Idem. separações (mar/rio) e perdas (liberdade ou filho tragado pelas águas). em comunicação gestual para o violão. quanto aos cantos de encantarias em religiões afro-brasileiras. como em rituais da floresta praticados por benzedores marajoaras. Esse canto tem um lugar especial no ritual de incorporação. Ao final desse primeiro ato. especialmente nos versos “tornarei para teus braços. Os elementos expressos nestas cantorias e dançares correspondem tanto às características do lundu. município entre a floresta e os campos – . constantes em cantos de liturgias incorporativas. Ibidem. Inspirado pela comédia do boi Garantido. deixando portos africanos. p. o transe vivido pela mãe negra ainda permite comparar versos de seus cantos com prédica de Antonio Conselheiro. 541 . das memórias de Alfredo brotavam novos versos que eram cantados no salão. – talvez pela distância daquela prática que foi tão familiar quando habitava Muaná. amazônicas e marajoaras. a personagem conduziu os espectadores para outros universos de práticas culturais negras recriadas nos espaços marajoaras. ou “aparelho”. “Estive num delicioso baile/ na fazenda Arari/ Donde tinha uma menina/ Muito dançadeira de valsa/ De lundu e contradança”. tomaram rotas para alçar portos e praias brasileiras. expondo encontros (Áfricas/Marajós). p. 132. Ibidem. Sintonizado com as melodias puxadas por sua mãe. dona Amélia “emendou 28 29 Idem. “cavalo” como se diz no candomblé.ninar da mãe negra. que a fez reencontrar suas raízes identitárias. pois se refere à partida ou despedida da entidade do seu receptor. 133. para sempre te adorar”. “Se o mar se virar em areia/ que não possa navegar/ Tornarei para teus braços/ Para sempre te adorar”29. no sentido de que “o mar vai virar sertão”. As referências ao mar e à areia. Inspirada em meio a palmas que nasciam do salão. ó limo da cobra grande. lá vão. “Numa voz evocativa soltava a história no silêncio da sala e envolvia todos numa atmosfera de sortilégio”. os aningais. ainda donzela. os caruanas. alaga as margens. se estreitavam e as margens se fundiram. O rio se queixava. quero viver. Tudo indo embora pra águas grandes. cenários de rios. se queixava. marés. A cobra dormia no fundo do rio e de repente acordou. Até a lama há de partir. as velhas guaribas. tudo vai embora pras águas grandes. Lá vão. mea mãe cobra. sua mãe. Ouvia-se a voz das garças mais brancas do que nunca. Adeus. Era a queixa de um rio à cobra. Jurandir reconstitui um enredo carregado de um misticismo amazônico. A terra crescia na água. Lá vão. as almas dos afogados. A cobra foi se arrastando. adeus. seco e desolado. adeus ó peixes. Lá vão. O rio se lamentava soturnamente no meio do mato. Ninguém ouvia o agonizante rio. embandeirada de aves. em companhia do irmão cortava seringa e engravidou misteriosamente”. mãe cobra grande. secando o rio. Os restos de cemitério que tombavam nas beiradas também partiam pras águas grandes. um filhotão de garça. e os guarás não trariam mais nas asas a vermelha madrugada para mirar-se na enchente. todos os bichos. secando sempre: não me abandones. enche os meus poços. com toda a vida do 542 . quero as marés. tudo seguindo pras águas grandes. aprendida nas ilhas quando. Os estirões. E também uruás. com seus lendários personagens de vida aquática. Então os peixes. Trazia a queixa do rio em virtude da partida da cobra que o deixou sem vida. vomita em meu peito o teu vômito. ninhos de tucunarés. me amamenta nos teus peitos. era meia noite e deu um urro: vou-me embora pras águas grandes. caranguejos.para uma história meio cantada meio falada. balançando na rede dos cipoais. Contavam que duas piaçocas iam pousadas na sua cabeça. pras águas grandes. Cobra grande não me abandone. florestas e animais. pras águas grandes. largos outrora. as montarias também seguiam pra águas grandes. Os assistentes como que viam a cobra grande caminhando como cedro do Amazonas. muçuns. e sua tripulação de bichos. O rio secava. Neste canto. os restos de trapiches. siris. Cobra grande não me abandone. que o abandonava. de bubuia. interrompida e associada a dificuldades de sua infância e adolescência. caboclo sentido. a composição permite lê-la como uma espécie de profecia indígena dos descaminhos trilhados pela Amazônia quando o Atlântico português. fossem águas vivas. a seringueira. frente ao avanço do mar.rio no seu bojo. chamava-o. águas pros peixes-bois e matupiris. natural e histórico da região. Dalcídio permite entrever como o filho morto em afogamento pode transformar-se em entidade das águas para livrar os habitantes de sua região das malinezas do mundo terreno e aquático. quando habitou a região de Ilhas. se abraçava com o leito do rio. á beira do rio morto. a mulher. semente de ilha no bico de jaçanã”. Op. Chorava com o rio. pp. Na reconstituição da cosmologia marajoara. chamando30. formadores de sua comunitária identidade negra. Dalcídio. o qual teria se transformado em “pele de mururé. seguido de outras nações europeias e dos Estados Unidos. o portinho no seco e lá da lonjura chamando se ouvia ainda. o cachorro. ficava com ele. Só ficou o caboclo. trocas culturais e formas de destruição do patrimônio humano. Nesse sentido. tragado pelas águas. 543 . Três casas e um Rio. Além da perda do filho e de saudades de experiências comungadas com seus familiares. cit. polpa de aninga. como a chorar a perda de seu primeiro filho. A expressão de sofrimento e os olhos cheios de lágrimas da mãe negra ao encerrar a “estranha história e velha cantiga” pareciam traduzir não apenas uma história de personagens lendários a se distanciar. 133-134. interpreta a narrativa como o aflorar de lembranças de dona Amélia.. passou a estabelecer contatos. O texto evidencia uma representação do encolhimento do rio. enquanto afrodescendente. ainda é possível ler a “velha cantiga” entoada como evocação de um passado 30 JURANDIR. na tapiri. E apenas o caboclo. mano. ah. mas. as águas grandes. Quem lhe dera que as suas lágrimas o enchessem de novo. inversamente. lhe dessem marés. através do personagem Alfredo. uma evocação de fenômenos da dominação duramente submetida a africanos em suas diásporas para terras amazônidas. Ah. meu mano. Dalcídio. gestos. em contraposição à negação de seus códigos comunicacionais. hegemônica e globalizante. linguagens e expressões comunicativas e comunitárias pudessem ser lidas como manifestações de sutis e astuciosas resistências.). Certamente valorizar. Rumores do que só pode ser relembrado com traumáticos sussurros e murmúrios31. SP: Editora da Unicamp. Stella e NAXARA. BRESCIANI. Campinas. saberes e fazeres pela racionalidade letrada. Apesar de nossos limites. Márcia (orgs. Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. demonstra que precisamos desadormecer nossas sensibilidades para interagir com vozes. A profusão e inesgotabilidade dessas narrativas orais inscritas em suportes literários. 2001. 31 544 . gestadas por filhos dos encontros afroindígenas.de difícil convivência. cosmologias e saberes impressos em outros indícios do passado. acreditamos ter realizado importante esforço para reconfigurar ambientes nos quais outros códigos. enfrentar e tentar dialogar com práticas sócio-culturais desses grupos de tradições orais não é tarefa das mais simples para inexperientes nessas temáticas. cujas representações expõem trocas e mediações culturais vividas por populações de matrizes multiétnicas agenciando novas identidades culturais em territórios da diferença colonial. . br .740-530 | Fax: (0xx81) 2126.br •
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