UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL LINHA DE PESQUISA: DIREITO, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO POLÍTICO: DAS ORIGENS AO DEBATE ATUAL ESTADO, DEMOCRACIA E CIDADANIA DEJALMA CREMONESE Ijuí, janeiro de 2008 SUMÁRIO SUMÁRIO..........................................................................................................................2 INTRODUÇÃO...................................................................................................................5 1. O HOMEM, O CONHECIMENTO E A IDEOLOGIA.....................................................9 1.1. O conhecimento é próprio do homem..................................................................................................................9 1.1.1. O conhecimento empírico..............................................................................................................................10 1.1.2. O homem da palavra sagrada.........................................................................................................................11 1.1.3. O homem do pensamento mitológico............................................................................................................12 1.1.4. O mito nosso de cada dia...............................................................................................................................12 1.1.5. O homem do pensamento filosófico..............................................................................................................14 1.2. Visões sociais de mundo.......................................................................................................................................15 1.2.1. A ideologia e a utopia....................................................................................................................................15 2. CONCEPÇÕES GERAIS SOBRE O ESTADO..........................................................19 2.1. Etimologia da palavra Estado.............................................................................................................................19 2.2. Diferentes entendimentos sobre o Estado .........................................................................................................20 2.3. Os elementos do Estado.......................................................................................................................................22 2.4. O Estado e o poder...............................................................................................................................................24 2.5. A função do Estado .............................................................................................................................................26 2.6. Justificativas teóricas do Estado.........................................................................................................................27 3. O PENSAMENTO POLÍTICO DAS SOCIEDADES PRIMITIVAS E ORIENTAIS......30 3.1. O Estado primitivo...............................................................................................................................................30 3.2. O Estado Oriental................................................................................................................................................32 3.2.1. Exemplos de teocracias orientais...................................................................................................................35 4. O PENSAMENTO POLÍTICO DA SOCIEDADE GREGA..........................................45 4.1. Os gregos: precursores da política e da democracia.........................................................................................45 4.1.1. A etimologia da palavra política ...................................................................................................................47 4.1.2. A origem do conceito democracia..................................................................................................................50 4.1.3. Uma democracia escravista............................................................................................................................55 4.2. A origem da filosofia na Grécia..........................................................................................................................57 4.2.1. A filosofia é “filha” da pólis..........................................................................................................................57 4.2.2. Os pré-socráticos............................................................................................................................................59 4.2.3. A contribuição dos sofistas na construção da política grega..........................................................................60 3 4.2.4. O método socrático .......................................................................................................................................63 4.2.5. Platão e a busca do Estado ideal....................................................................................................................65 4.5.6. A cidade como realidade perfeita em Aristóteles .........................................................................................68 5. O PENSAMENTO POLÍTICO DA SOCIEDADE ROMANA.......................................73 5.1. O Direito, o Exército e a Política........................................................................................................................74 5.2. Marco Túlio Cícero .............................................................................................................................................76 5.3. Políbio....................................................................................................................................................................78 6. O PENSAMENTO POLÍTICO DA IDADE MÉDIA......................................................80 6.1. O cristianismo primitivo......................................................................................................................................81 6.2. O fim do Império e a Idade Média.....................................................................................................................83 6.4. Santo Agostinho...................................................................................................................................................84 6.5. O fim do pensamento medieval e o início do Renascimento............................................................................86 7. O PENSAMENTO POLÍTICO RENASCENTISTA......................................................90 7.1. Maquiavel: contexto histórico ............................................................................................................................91 7.2. Estrategista da arte da guerra............................................................................................................................94 7.3. Fundador da Ciência Política Moderna.............................................................................................................96 7.4. A natureza humana..............................................................................................................................................98 7.5. A questão do Estado...........................................................................................................................................100 7.6. O estilo das obras de Maquiavel.......................................................................................................................102 7.7. Síntese das idéias de O Príncipe ......................................................................................................................103 8. A DEFESA DAS IDÉIAS ABSOLUTISTAS..............................................................105 8.1. O Leviatã: o deus mortal de Thomas Hobbes.................................................................................................105 9. A DEFESA DAS IDÉIAS LIBERAIS.........................................................................118 9.1. O liberalismo de Locke: o cidadão com direitos naturais..............................................................................118 9.2. O Estado democrático de Rousseau.................................................................................................................124 9.3. A democracia moderna: filha do Estado Liberal............................................................................................126 9.4. A sociedade civil e o Estado...............................................................................................................................128 9.5. O direito à resistência: a tese de Hume............................................................................................................131 4 10. PARTICIPAÇÃO E INSTITUIÇÕES: O DEBATE DA TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA.....................................................................................................135 10.1. Participacionistas e institucionalistas.............................................................................................................135 10.2. Participação na obra A Democracia na América de Aléxis de Tocqueville...............................................138 11. A DIFÍCIL CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL.....................................143 11.1. Brasil colonial: ausência de direitos e de poder público ..............................................................................144 11.1.1 A “conquista” da terra brasilis....................................................................................................................145 11.1.2. A escravidão...............................................................................................................................................146 11.1.3. O analfabetismo.........................................................................................................................................149 11.2. A Independência e a República no Brasil: participação incipiente.............................................................150 11.2.1. Um Estado sem nação................................................................................................................................150 11.2.2. Uma República sem povo..........................................................................................................................152 11.3. Os vícios das instituições e da cultura política brasileira.............................................................................153 11.4. Os direitos sociais emergem quando os direitos civis e políticos fenecem..................................................157 12. VICISSITUDES DA POLÍTICA BRASILEIRA .......................................................161 12.1. O caso Renan e a degeneração da política.....................................................................................................161 12.2. Maquiavel: o “Old Nick” anda solto!.............................................................................................................163 12.3. (In) fidelidade partidária.................................................................................................................................164 12.4. Reforma Política: entraves e perspectivas.....................................................................................................165 12.5. Seria o fim do petismo?...................................................................................................................................167 12.6. O lulismo é maior que o petismo....................................................................................................................168 12.7. Para quê Reforma Agrária?...........................................................................................................................170 12.8. Mais Estado e menos mercado........................................................................................................................173 12.9. O caráter individualista e pouco solidário do brasileiro..............................................................................175 12.10. O Capital Social: um ingrediente a ser considerado...................................................................................176 INTRODUÇÃO O homem é, por natureza, “um animal social e político” (zoon politikon). “Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou é um bruto (selvagem)”, são afirmações atribuídas ao filósofo grego Aristóteles e encontram-se na obra A Política. Também é lapidar, neste sentido, a afirmação da filósofa Hannah Arendt, escrita na obra A condição humana (1995, p. 31), enaltecendo o caráter social e político do homem: “Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida de um eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos”. Essas citações significam afirmar que nenhum de nós é uma ilha, que necessitamos e carecemos da presença do outro para a nossa realização e, mais ainda, toda ação do homem depende, inexoravelmente, da presença de outros. Seguindo o pensamento de Aristóteles, não basta a convivência em sociedade para caracterizar nosso aspecto social e comunitário, pois desta forma também vivem as formigas e as abelhas. Mas, então, o que pode nos diferenciar dos outros seres do mundo? Aristóteles aponta para a conotação racional do homem, a utilização peculiar do pensamento ( logos) para a construção e transmissão do conhecimento. Diz o filósofo que “todos os homens têm o desejo de saber”, pois só o homem conhece e tem consciência de si mesmo. 1 Além do aspecto racional, o homem diferencia-se dos demais seres pelo senso ético (bem e mal, certo e errado), senso estético (culto ao belo) e, o mais importante de todos, por viver na cidade ( pólis), pela politicidade (vida cívica). O homem foi feito, assim, para a vida da cidade (bios politikós, derivado de pólis, a comunidade política), ou seja, o fim último do homem é viver na pólis, onde se realiza como cidadão (politai), manifestando, o termo de um processo de constituição de sua essência, a sua natureza. Então, é próprio do homem não apenas viver em sociedade, mas viver na “politicidade”. A verdadeira vida humana deve almejar a organização política, que é uma forma superior e até oposta à simples vida do convívio social da casa ( oikia) ou de comunidades mais 1 Conferir Aristóteles (1969, I, 980a 1-2). 6 complexas. A partir da compreensão da natureza do homem, determinados aspectos da vida social adquirem um estatuto eminentemente político, tais como as noções de governo, de dominação, de liberdade, de igualdade, do que é comum, do que é próprio. Por fim, é possível perceber que a reflexão de Aristóteles sobre a política não se separa da ética, pois a vida individual está imbricada na vida comunitária; esta é a razão pela qual os indivíduos se reúnem em cidades (e formam comunidades políticas), não apenas para viverem em comum, mas para viver “bem” ou para a “boa vida”. Portanto, o fim da cidade é não só assegurar aos cidadãos a vida e sua conservação ( zein), mas o viver bem (euzein), (PRÉLOT, 1973, Livro I. p. 135). Deste modo, a vida política se destina a garantir a qualidade e a perfeição da vida. Para que isso aconteça, é necessário que os cidadãos vivam o bem comum, ou em conjunto ou por intermédio dos seus governantes; se acontecer o contrário (a busca apenas do interesse próprio), se dá a degeneração do Estado. Este livro serve como uma introdução ao pensamento político ocidental. Pretende ser um apanhado sobre os pensadores clássicos da filosofia e da ciência política. Expõe, de forma sucinta, as teorias mais significativas sobre o tema em questão. Mesmo o leitor com pouco contato com esta disciplina verificará que muitas discussões ocorridas, algumas há mais de dois mil anos, ainda têm muito a ser aproveitar para se compreender a sociedade e o mundo contemporâneo. Isso porque fazemos parte da cultura ocidental. Carregamos, ainda, muito das civilizações passadas, principalmente dos gregos e romanos. Sem contar a contribuição de mais de dois mil anos de religião cristã sobre nós. O primeiro capítulo trata da questão do homem e das diferentes formas de conhecimento: conhecimento empírico, mítico e religioso, filosófico-científico. Este capítulo trata ainda das visões sociais de mundo: ideologia e utopia. Trata-se de um apanhado das formas de conhecimento humano e, ainda, da concepção clássica de ideologia e utopia. Optou-se ligar o tema ideologia a este capítulo para que se perceba que no ato de conhecer nos influenciamos por nossos valores e outros interesses que, aparentemente, não fazem parte do objeto a ser conhecido: interesses econômicos, políticos, etc. É um capítulo fundamental para a compreensão das idéias e temas dos próximos capítulos. O segundo capítulo discorre sobre as concepções gerais do Estado. Neste capítulo, o leitor saberá da etimologia do termo e dos diferentes entendimentos sobre o Estado: seus elementos, forma de poder, funções, além das relações de classes em seu interior. Há, também, uma rápida exposição sobre os quatro paradigmas que justificam o Estado. O capítulo é uma O capítulo sexto tem por objetivo analisar o pensamento político da Idade Média. nesse período. também. O capítulo quarto trata do pensamento político da sociedade grega clássica. . É importante lembrar que Maquiavel viveu num período de reunificação dos Estados. da Igreja em todos os setores da vida. O capítulo também trata da teoria de um dos maiores pensadores políticos da história: Maquiavel. Platão e Aristóteles. O capítulo inicia abordando uma teoria sobre o Estado primitivo descreve. tema do capítulo seguinte. O leitor verá que o lugar comum de que os romanos apenas assimilaram a cultura grega não se confirma. W. o Estado oriental e o papel da teocracia. Se perceberá a grande influência. deram grande contribuição ao direito moderno e à política moderna. com as pesquisas experimentais. nos argumentos das Lições sobre a Filosofia da História do filósofo alemão G. dando ênfase a teoria contratualista. Conhecerá. O leitor compreenderá por que este período foi denominado de Renascimento. a “democracia escravista” dos gregos. para que se tornasse um Estado forte. Este capítulo deve ser bem compreendido para que se note a influência dessa civilização sobre o pensamento ocidental e. O pensamento cristão só perderá influência no século XV. Por exemplo.7 introdução às diversas teorias que justificam o Estado. O quinto capítulo versa sobre o pensamento político da sociedade romana. um pouco do pensamento dos doutores da Igreja. Compreenderá por que a teoria política é dividida em antes e depois de Maquiavel. também. pois seus autores serão estudados em capítulos posteriores. as características do poder do Estado Antigo. sendo que ao florentino também interessava a união da Itália. Importante destacar que a fundamentação teórica deste capítulo ampara-se. também. principalmente Santo Agostinho. Friedrich Hegel. Pensadores do período renascentista. o que os pensadores da época buscavam e contra o que “se levantaram”. Sócrates e os sofistas. Com o declínio do Império Romano. como o autor da obra Cidade de Deus e Cidade dos Homens aproveitou e adaptou para o pensamento cristão a teoria de Platão. basicamente. Nele verificar-se-á a etimologia do termo política. o Ocidente vê surgir o cristianismo primitivo. como os gregos influenciaram os romanos. por exemplo. além dos grandes pensadores dessa sociedade. além de uma melhor elucidação do conceito de democracia. o estudante conhecerá um pouco mais sobre a organização política das sociedades primitivas. Há uma abordagem sobre a origem da filosofia: pré-socráticos. principalmente de Copérnico e Galileu. Os romanos. No capítulo seguinte o tema é sobre o pensamento político no período renascentista. No capítulo terceiro. talvez. Que a leitura seja proveitosa não só para a formação acadêmica. são chamados de contratualistas. partidos. por exemplo. à maneira de Hobbes. Se perceberá a importância. O capítulo décimo primeiro aborda o tema da cidadania em relação ao nosso país. Temas que. reforma política. uma distinção entre direitos civis e direito sociais. O que é o estado de natureza para este pensador. Como o tema da cidadania foi tratado nos diferentes períodos da história do Brasil. Enfim. sua preocupação maior era com a melhor forma de governo. O pensamento de Hobbes choca-se com a teoria liberal. Hobbes também viveu num período conturbado da Inglaterra. é uma exposição sobre o maior teórico do Estado absolutista: Tomas Hobbes. mas que contribua para todos que se interessam pelo tema da política: das origens ao debate atual. por isso mesmo. do pensamento de Rousseau para os debates sobre participação popular. Lembrando sempre que este livro serve de introdução ao tema da política: ao tratar da questão do Estado. Basicamente. Desde o Brasil colônia. quais as diferenças entre o pensamento de John Locke e de Rousseau. referentes à democracia participativista e à democracia institucionalista. quem são seus maiores teóricos. pode recorrer à bibliografia disponível na última parte deste livro. O leitor acompanhará o quadro político brasileiro. O capítulo décimo analisa as diferenças entre duas escolas de pensamento. os políticos de hoje e seus comportamentos frente ao país. Por que esses pensadores. por que Hobbes é um contratualista. temas que não saem dos noticiários. Até hoje esses autores são referências para o Estado moderno. passando pela independência e república até os dias atuais. pelo hábito –. Temas recorrentes.8 O oitavo capítulo aborda o Estado absolutista moderno. não damos a devida atenção. O pensamento liberal é o que vai comandar a política moderna. também. Há. presidente da república. O último capítulo é um olhar crítico da política brasileira atual. . O leitor conhecerá os maiores defensores dessas duas escolas de pensamento. Para quem desejar aprofundar mais o conhecimento. reforma agrária. da Democracia e da Cidadania. por mais habituados que estejamos – e. fidelidade partidária. democracia e cidadania. Compreenderá por que esse tema tem muita relevância para os debates atuais em torno da melhor forma de democracia. O que significa o estado de natureza para esses pensadores. o que entendem sobre sociedade civil. como: ética na política. No capítulo nono o leitor verá os diferentes entendimentos sobre o liberalismo. qual a sua justificativa para o Estado. 1 É notório também que. possibilitando o progresso. hoje. Dom Edmundo Luís Kunz. criando e inovando tecnologias. desvela o sentido das coisas. Logo após veio a falecer no dia 12 de setembro do mesmo ano. avanços na aviação e na informação fazem do homem um ser global: o mundo tornou-se uma pequena aldeia: um exemplo disso é a rede mundial de computadores (Internet) que possibilitou a aproximação entre as pessoas das mais variadas partes do mundo. organizado politicamente. I. se aproxima da essência. 980a 1-2) expressava que “todos os homens têm o desejo natural de conhecer”. O homem. o homem vivia isolado nas cavernas sofrendo as mais variadas privações. Sabemos hoje muito mais do que os nossos antepassados sabiam graças ao espírito inovador do homem e ao seu espírito de conquista. o homem tem a capacidade de criar e inovar. 1 Este primeiro capítulo foi inspirado nas aulas do saudoso professor Dr. igualmente. O HOMEM. quando tive a oportunidade de conhecê-lo e ser seu aluno na Faculdade de Filosofia Imaculada Conceição de Viamão (RS) (primeiro semestre de 1988). por isso busca incansavelmente o novo. faz com que o mesmo se realize no mundo. do ser das coisas. Além de conhecer. Se o homem pensa. O CONHECIMENTO E A IDEOLOGIA 1. em síntese: que pode decidir o seu destino e os rumos da humanidade. Conferir. . do âmago. que é próprio do homem a descoberta. Ao pensar desoculta.1. quer dizer que é capaz de pensar por si mesmo. Ontem. O conhecimento é próprio do homem Já Aristóteles (Metafísica. com o avanço das ciências e das novas tecnologias. Foi a última turma a que Dom Edmundo ministrou suas aulas.1. como ser-no-mundo. Kunz (1986). o homem foi acumulando conhecimento. difere-se dos demais animais e das coisas pelo seu aspecto pensante: conhece e tem consciência de si mesmo. cria o conhecimento. vive organizado em sociedade usufruindo comodidades. com o passar do tempo. a curiosidade sobre as coisas. E mais. um novo ser cheio de esperanças. 630). isto é.10 Pensar é buscar o âmago das coisas. O conhecimento empírico Sabemos que o conhecimento segue uma escada de diferentes degraus. Assim. Em síntese.1. o homem. Essa forma de conhecimento é proporcionada pela experiência ou o contato imediato de nossos sentidos (audição. logo após a queda do Império Romano: “ Quid sum ego” (Quem sou eu?) Esta questão leva o homem inexoravelmente a um novo paradigma. Para os filósofos gregos o ser era denominado de logos2. pronto a consolidar uma nova mentalidade. É nesse momento de transição que a crise se estabelece e leva o homem a se perguntar: assim como fez Santo Agostinho. conhecimento ordinário. O primeiro desses degraus chama-se de conhecimento empírico ou. sempre acompanhados por um processo intermitente de profunda crise. pois houve épocas em que a busca da explicação para as origens das coisas não se dava pela razão (logos). No princípio. Os gregos chamaram este princípio fundamental de arché. pela experiência da vida. percepção) com os seres individuais da realidade do mundo. é se apossar da essência do objeto. também. É uma mentalidade da humanidade (civilização) que termina e outra que começa a surgir. o recolhimento do múltiplo na unidade. A passagem de um tipo de conhecimento para outro fez com que a imagem do homem também passasse por transformações (uma mentalidade para outra). 2 3 Conferir o trabalho de Abbagnano (2003. p. e mais. . nem sempre foi assim. uma nova civilização. Essa mudança não se deu de uma hora para outra. contato esse percebido e firmado pelo juízo e pela linguagem. surge a crise. E. princípio imperante de onde tudo nasce ou de que tudo vem a ser 3. 45-60).1. Longos foram os períodos de transformações. a alma das coisas. No entanto. quando o homem perde o fundamento sem ter ainda encontrado algo que realmente o sustente. as explicações para as questões naturais (mundo) e existenciais da vida humana se davam pelas idéias religiosas ou por narrativas mitológicas. p. Conferir a obra clássica de Gaarder (1995. 1. o fundamento dos seres. visão. desde o princípio se perguntou sobre as origens das coisas: de onde vem tudo e qual o elemento comum que tudo constitui. É o acúmulo de conhecimento adquirido pelas práticas da vida. do ser (aquilo que há de mais profundo). nesse momento. o conhecimento empírico é o conhecimento adquirido pelos indivíduos no dia-a-dia. 2. desordenado. assistemático e acrítico. Segundo. sendo por isso mesmo respeitado e valorizado. pode-se afirmar que o conhecimento empírico se fundamenta no senso comum. Foi assim nas sociedades primitivas com o comando dos sacerdotes (xamã). Dentro da comunidade. da mesma forma nas sociedades teocráticas orientais (povos da Babilônia). pois brota espontaneamente da natureza de todos os homens: são princípios ou verdades “sentidos” como evidentes. é um conhecimento individual – não universal – que vale rigorosamente só para casos vividos.1. Por exemplo: se uma determinada erva “curou” as dores de fígado ou estômago de Maria ou Pedro. Por fim. Inicialmente. enfim. pois ditou regras morais. “salvou” e “condenou” os hereges. como o conhecimento científico. “Fulano ou Beltrano é um homem de experiência”. No decorrer da história humana. é um conhecimento trazido pela vida e não buscado intencionalmente. conhecemos aquilo de que temos necessidade para viver: conhecer para viver e não conhecer por conhecer. por isso. “a experiência é a mestra da vida”.11 Por milhares de anos o homem se pautou por essa forma de conhecimento. O panteísmo . por isso recorria à experiência dos mais velhos para solucionar questões de ordem natural ou existencial. a religião sempre teve um papel fundamental. no Egito. do quotidiano. Terceiro. aquele que recorre ao sobrenatural para explicar os fatos da vida. 1. é um conhecimento alógico. é um conhecimento acima de tudo pragmático: brota das necessidades e dos interesses da vida. o que caracteriza esta forma de conhecimento. O homem de outrora carecia de informações mais apuradas (conhecimento filosófico ou científico). segundo os critérios das elites hierárquicas de cada instituição religiosa. foi capaz de determinar o caminho a ser seguido. os homens mais velhos detinham o saber. que consiste na apreensão de certos princípios e verdades por todos que possuem uma natureza racional normal. A grande questão era: qual é o sentido da vida humana e da natureza? É assim que surge o homem da palavra sagrada (homem religioso). O conhecimento empírico apresenta algumas características que lhe são próprias. não significa que os resultados sejam alcançados de maneira geral e universal e possam curar os males hepáticos e estomacais de toda a humanidade. ametódico. e no povo hebreu. estabeleceu juízos de valor (bem e mal). O homem da palavra sagrada O mistério sempre cercou o homem e o conhecimento empírico (da experiência da vida) não conseguiu responder às questões ligadas à origem e ao destino das coisas e da humanidade. Por essa razão hoje costumamos dizer: “vivendo e aprendendo”. Ver o trabalho de Campbell (1990). cujo objetivo é reger e manter uma comunidade unida e organizada. desde os primórdios. O mito nosso de cada dia O mito é histórico5. O mito. 4 5 Para um estudo mais aprofundado sobre o mito. a instituição da Igreja Católica Apostólica Romana (cristianismo). onde o referido filósofo fez uma clara distinção entre o mundo sensível (mundo real) e o mundo inteligível (mundo ideal). Prometeu acorrentado. Ele traz consigo uma resposta e. Por fim. Assim. Sísifo. o mito não é mera ilusão ou fantasia. entre outros. 1.4. os mais eminentes dramaturgos foram Sófocles e Eurípedes que escreveram Édipo rei. ou uma narração fictícia. o desconhecido. Só a reflexão pode explicar o mundo e entender a vida. . o tem utilizado para explicar o enigmático.12 antropomórfico dos gregos e romanos (deuses imortais) não deixava de influenciar e interferir diretamente na vida dos homens (considerados mortais). pode conduzir.1. na alegoria da caverna. crenças e estereótipos. Quase sempre é imbuída de um princípio de valor de cunho ético. Os gregos. Resultado de uma criação coletiva da própria sociedade. ele precisa ser examinado.1. desafiado e refletido. Ao contrário. é buscado pela reflexão. uma esperança para os problemas da vida. No entanto. Diante disso questiona:-se: Poderia o homem prescindir do aspecto sagrado? A fé advém do temor (medo)? Como podemos explicar tais fatos? 1. também. aceitos e justificados como algo imutável ou incontestável.4 Platão utilizou esse recurso na célebre passagem da República. ver Vernant (1973). O homem do pensamento mitológico O mito não é apenas uma história fantasiosa. por muito tempo se utilizaram da prerrogativa mitológica. islamismo) cumprem fielmente a conotação da dominação e controle das mentes e corações de boa parte dos seres humanos.3. O mito pode consistir em uma história que traz consigo um fundo de verdade. bem como outras grandes religiões do mundo (hinduísmo. os homens. para chegar ao conhecimento. costumes e hábitos passarão a ser considerados naturais. neste sentido. O mito serviu e ainda serve para abrandar e acalmar os temores da existência humana. uma mensagem. maoísmo. ditar valores e comportamentos em uma sociedade. A razão desvelou e transformou o mundo. O progresso fugiu do controle. graças às novas tecnologias da informática (GONÇALVES. O mundo tornou-se uma “aldeia global” (comunidade única). instituições. Além disso. milhares de pessoas estão na lista de espera por uma cirurgia que lhes faça sentir melhor (mais jovem). Não se tem um projeto de “Comunidade” (projetos comuns). em uma sociedade sem consenso. O conceito de progresso passa a ser questionado na medida em que. . como se o problema também fosse localizado e particularizado. plural e múltiplo. além da degradação do meio ambiente. Entretanto. a técnica e o progresso. A razão impulsionou o pensamento científico e. este. a promessa não pôde ser cumprida. o progresso veio para uma pequena parcela da população na medida em que cresce. Prevalece o individual em detrimento do coletivo. Com o ceticismo em relação à ciência e ao progresso. Lutando contra a natureza. juntamente com inúmeras perguntas que carecem de respostas convincentes. O homem passou da “idade das trevas” para a “idade das luzes”. para o mito da razão instrumental. Tornou-se um mito a salvação pela ciência e pela tecnologia 6. em nossos dias. órfãos de esperanças. por um lado. fragmentados. pagamos um alto preço pelo consumo de boa parte dos recursos minerais e naturais. a cada dia. avançamos. Para tentar preencher este vazio surge.13 Como veremos nos capítulos posteriores. ou contra a lei da gravidade. literalmente. a cada dia. 1995). No entanto. GONÇALVES. As soluções tendem a ser individualizadas (pessoas. seita religiosa. do pensamento único. os homens vêem-se cada vez mais isolados. uma nova terapia que promete a “salvação” ou “solução” dos problemas espirituais e existenciais de uma forma rápida e segura. por outro. Vive-se. a ansiedade e a insegurança. Vive-se como se esta fosse a última geração a habitar o planeta Terra. O certo é que as conquistas modernas passam. por um esgotamento e uma crise acentuada. países). vê-se aumentar a angústia. Apesar de todo o avanço dos últimos séculos. A ciência que emancipou o homem pode destruí-lo a qualquer momento: o perigo nuclear é iminente. para o pensamento diverso. O homem moderno acreditou que a ciência poderia resolver todos os problemas da humanidade. o homem pós-moderno procura preencher o vazio com novos mitos. Ninguém pode fugir do peso da própria existência humana. uma nova crença. a modernidade emergiu da superação do mito religioso medieval (razão teológica). ou parecer com aquela modelo ou atriz 6 Conferir Horkheimer (1976). ou. o abismo entre ricos e pobres. uma nova droga. Nunca as clínicas médicas de cirurgia plástica tiveram tanta procura. e mais é tomado de uma angústia e paixão. no princípio a humanidade se amparou no conhecimento mitológico para explicar as origens das coisas. Por isso. O ser da pessoa foi substituído pelo “aparecer”. mas. com a natureza e com o próprio universo. Ao comprar objetos e bens supérfluos. À Medida em que o homem mais desconhece a razão de ser de sua vida.7 Urge. O homem racional (filosófico) tem. O homem do pensamento filosófico Como vimos na seção anterior. tanto mais ele se agarra às pequeninas coisas do cotidiano. sem jamais descansar. ar. que deixam a impressão de uma pressa de chegar sem que ele saiba onde” (MENDONÇA. integram o grupo de filósofos denominados de pré-socráticos que procuravam explicar questões cosmológicas a partir dos elementos da natureza (água. só temos o “hoje”. Precisamos de uma nova roupa. 7 “Vivemos presos ao imediato. deste modo. . átomo)8. um corpo turbinado em detrimento dos neurônios. Tanto menos ele conhece o sentido de sua vida. 17). primeiro. Surge. utilizando a razão como princípio fundamental. O que importa é o hedonismo (prazer a qualquer custo). um novo carro. Paga-se caro pelo lazer. mas. Se os meus heróis são belos. procurando desvelar o ser alethéia (desocultação . por isso a padronização de narizes. então. Não para formar e moldar o cérebro e a razão. uma nova casa. juntamente com o conhecimento mitológico. espera-se comprar a própria felicidade. Foi o filósofo grego Tales de Mileto quem primeiro buscou elementos racionais para explicar a realidade cósmica. pois a “imagem é tudo”. nem mesmo uma razão instrumental individualizada. Não uma razão mitológica. Quando não podemos consumir nos sentimos fracassados e inúteis. seios e bumbuns. para o conhecimento da palavra sagrada. O que importa é a massa muscular.5. para malhar e moldar os músculos. o amanhã é uma incógnita. assim como Pitágoras.desvelamento). como faziam os gregos (embora também cultuassem o corpo belo). tenho que parecer com eles. a construção de um novo paradigma que restabeleça as relações entre os homens. fogo. aos poucos o homem evoluiu e com ele evoluiu o nível de conhecimento: do conhecimento empírico. curtir a vida o máximo possível. 1991. 1.14 famosa.1. surge o homem do conhecimento filosófico: aquele que procura explicar os fatos com argumentos lógicos. com características diferenciadas dos demais tipos de conhecimento. 8 Conferir Barnes (1997) e Os Pensadores (1999). Anaximandro. Anaxímines. p. No entanto. Mais tarde. Tales. “todos para a academia”. o homem do pensamento filosófico. É possível uma nova razão que se possa definir para além dos mitos e da instrumentalidade? O desafio está lançado. pois. num processo de coisificação do ser humano. . em sentido pejorativo. na obra A ideologia alemã (1846).15 uma visão da realidade a partir de si mesmo (autônoma). retoma o termo. W. 1983. A ideologia se constitui. Neste sentido. desvinculada do conhecimento transmitido pela tradição e baseado nas crenças e mitos..2. correspondendo a interesses de classe. p. positivista (Apud LÖWY. Essa primeira definição foi classificada como empirista e científico-naturalista. como processo de inversão que apresenta o imaginário como se fosse um ente real.1. terceiro. O proletariado é contaminado por elementos da consciência burguesa reificada. (OUTHWAITE. 9 O difícil é “matar” o pequeno burguês que existe dentro de cada trabalhador. A “falsa consciência” é a estrutura reificada da qual predomina o pensamento burguês. dentro de cada um de nós. e definida como “o estudo científico das idéias e as idéias são o resultado da interação entre o organismo vivo e a natureza. busca a essência (arché). tal como se evidencia em sua separação entre luta econômica e luta política (Apud McDONOUGH. Ou é uma verdade universal ou não é verdade (assim pensavam e se defendiam do relativismo dos sofistas). 9 A ideologia no sentido pejorativo esteve sempre ligada às idéias de que serviria para obscurecer a verdade e manipular as pessoas através do engano. A ideologia e a utopia De compreensão diversa e muitas vezes arbitrária e complexa. o meio ambiente”. assim. uma visão de totalidade (não parcial) que atinge a todos os homens e não a uns em particular. ou seja. ainda é pertinente discutir dois temas que integram as visões sociais de mundo dos nossos tempos: a questão da ideologia e da utopia. desvela. p. 53). definindo-o. É necessário. T. 1. 1998. um conhecimento que desoculta. isto é. O debate do conhecimento filosófico se fará presente nos capítulos que seguem deste trabalho. segundo. Por hora. portanto. a palavra ideologia foi literalmente inventada por Destutt de Tracy em (1801) na obra Eléments d’Idéologie (Elementos de ideologia). 10). p. BOTTOMORE. Visões sociais de mundo 1.2. 371).. como “ilusão ou falsa consciência”. 1996. a ideologia quase sempre leva à defesa do status quo. Mais tarde o filósofo Karl Marx. ultrapassar a falsa consciência para chegar à consciência de classe. uma parte da zoologia. Pode-se citar as Forças Armadas (Exército. a escola (elitismo. o rádio. 1983. o supérfluo. todo apoio necessário em caso de convulsão social. Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). da força e da violência. ainda. o poder da coerção. o descartável. isto é. para Lênin a ideologia estava vinculada aos interesses de classe. a televisão. Já para Gramsci a ideologia pode ser reduzida a “concepções de vida”. as revistas (a propaganda.).16 Ainda para Marx. 10). Por exemplo. é a acumulação de ‘conhecimentos’ populares e as maneiras de ocupar-se com a vida cotidiana – o que ele chama de ‘senso comum’ (HALL. Podem observar muitas instituições que são encarregadas pelo sistema de reproduzir as idéias dominantes. filosofias. a religião: distorção do real e aprisionamento das mentes. 64). para Gramsci. a ideologia designa o conjunto de concepções de mundo ligadas às classes sociais: “luta ideológica”. prestando. Além dos recursos da persuasão. os sindicatos. Para o filósofo italiano. o jornal. a ideologia. 65). o poder dominante detém. A ideologia é vista principalmente como ‘cimento’ que aglutina a estrutura (na qual a luta de classes tem lugar) e o domínio das superestruturas complexas (HALL. p. o efêmero. “ideologia revolucionária”. Essas instituições são chamadas de Aparelhos Repressivos de Estado (ARE). os Meios de Comunicação Sociais (MCS) dentre os quais. Marinha. formas de consciência e senso comum. a família (hierarquia e disciplina). a função da ideologia é aglutinar as classes: “A ideologia contribui para ‘cimentar e unificar’ o bloco social”. p. p. produzir o consenso e o entendimento entre as classes sociais e legitimar a ordem existente. p. Esses aparelhos ou instituições se utilizam das idéias e da persuasão (arte do convencimento ou da famosa “cantada”) para alcançar os seus objetivos. a Universidade (visão mercadológica do saber). a quem o autor chamou de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Para Althusser (1987). individualismo e competição). concepções de mundo. 71). a futilidade. “as idéias da classe dominante são em todas as épocas as idéias dominantes. sistemas de pensamento. a sociedade do espetáculo. a ideologia está institucionalizada em aparelhos que servem diretamente aos interesses da classe dominante e da supremacia do Estado capitalista. a classe que é a força material dominante da sociedade é ao mesmo tempo a força ideológica dominante” (Apud HALL. 1998. Na tradição da herança marxista. isto é. outro pensador marxista. a mediocridade. 1983. o culto à imagem. 1983. . entre elas. o direito: os tribunais. Em outras palavras. seja ela burguesa ou proletária (LÖWY. com seu aparato logístico e bélico. o consumo. “formação ideológica” são exemplos de entendimento dos significados de ideologia. p. Em outras palavras. o autor restringe o conceito definindo como “os sistemas de representação que se orientam na direção da estabilização e da reprodução da ordem vigente”. para ele. que se orientam para a estabilização. assim diferencia as visões sociais de mundo: Utópicas Visões sociais de mundo Ideológicas Quando têm uma função crítica.. Para Bourdieu. são todas aquelas doutrinas que têm certo caráter conservador no sentido amplo da palavra. Pode-se dizer que a ideologia é o instrumento de manipulação das massas populares. justificam. Michael Löwy. negativa. Que consciente. produto coletivo e coletivamente apropriado. bem como os diferentes tipos de polícia que existem para defender a propriedade privada ou os interesses dos poderosos capitalistas. 28)...). Quando legitimam. 1999. defendem e mantêm a ordem social do mundo. inconsciente. p. Apud CORRÊA. aspirações e imagens-de-desejo que se orientam na direção da ruptura da ordem estabelecida e que exercem uma função subversiva (Apud LÖWY. subversiva. servem a interesses universais. Ou seja. as diferentes classes sociais estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses. As ideologias (. 23).. legitimação ou ainda reprodução da ordem estabelecida. 11). teorias.17 Aeronáutica). Diferentemente da ideologia. segue a concepção de ideologia de forma semelhante a forma que Lênin. objetivando a manutenção da ordem social vigente defendendo os interesses particulares de . voluntária ou involuntariamente servem à manutenção da ordem estabelecida. Na obra Ideologia e utopia (1929) Mannheim. p. na obra Ideologias e Ciências Sociais. porém. Mannheim define utopia como aquela que define as representações. 1998. representações. quando apontam para uma realidade ainda não existente (LÖWY. comuns ao conjunto do grupo (Apud Corrêa. idéias. a ideologia é o conjunto das concepções. a ideologia é a coerção da persuasão. Por fim. 10 Ver Os Pensadores (1999). 29). No século XX. Thomas Morus: A Utopia (1516). Sem lugar. Já nos séculos XVIII e XIX surgem os filósofos utópicos: Charles Fourier. ou. além das visões sociais de mundo. a utopia passa a ser vista como forças subversivas e transformadoras da ordem histórico-social existente (p. especialmente o capítulo Utopia: a arte de cultivar sonhos? . Etiénne Cabet. a palavra utopia vem da etimologia grega topos = lugar + eu/ou (em parte alguma . Huxley: Admirável Mundo Novo. ainda não existente. para Mannheim e Bloch. Este capítulo discorreu sobre as diferentes formas de conhecimento.espaço que não existe). Bloch: O princípio da Esperança. a utopia é a representação daquilo que não existe ainda. mas que pode vir a existir10. O importante é perceber como os valores e interesses desempenham funções chaves no ato de conhecer. Ou seja.18 grupos e classes dominantes. a ideologia é a ocultação da realidade. lugar inexistente. É de fundamental importância a assimilação deste capítulo para a compreensão dos capítulos seguintes. A utopia é o grande motor das revoluções. Saint-Simon. p. Para Löwy e Herkennhoff. (Sonhos diurnos). 30). 1999. como diz Warrat (Apud CORRÊA. mas que poderá existir se o homem lutar para a sua concretização. de Maquiavel. Foi apenas no início da Idade Moderna (séculos XVI-XVII) que ele tornou-se uma realidade. Na modernidade. foram e são ou repúblicas ou principados”. Stato para o italiano. do modo que conhecemos hoje. . aparecendo pela primeira vez em O Príncipe. escrito em 1513.1. 1 2 Segundo Schwartzman (1970). p. é recente. existiu. CONCEPÇÕES GERAIS SOBRE O ESTADO 2. Conferir a obra O Príncipe. Inglaterra. 1 Maquiavel. França.2 No entanto. e Estado para o espanhol e para o português. o Estado surgirá com instituição que conhecemos atualmente: para o francês. denotando situação permanente de convivência e ligada à sociedade política. Para os romanos. inicia a discussão teórica sobre o Estado: “Todos os Estados.2. de Maquiavel (1983). que significa situação ou condição. Estado será État. 43) é que a palavra tem origem latina. na obra O Príncipe (1513). isso não significa que antes da formação do Estado moderno não existissem outras formas de governo e de poder. que é a ciência/arte de governar a cidade. principalmente o Capítulo I De quantas espécies são os principados e de que modos se adquirem. Staat para o alemão. Espanha e Portugal foram os primeiros Estados a se unificarem. a civitas ou res pública é chamada de status. que significa estar firme. Nem sempre o Estado. Etimologia da palavra Estado De pólis advém o conceito de política. Portugal em 1600 já era Estado absoluto. status. uma definição moderna. Portanto. o conceito de Estado. A denominação etimológica de Estado feita por Dallari (1995. todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens. na forma que entendemos hoje. começa pela definição do termo nação. assim. Por fim. 1971. O Estado impõe pesados impostos. aos indivíduos e à sociedade. impõe a lei mesmo contra a vontade dos cidadãos: “O Estado aparece. Para Queiroz Lima o “Estado é uma nação organizada”. a causa primária da sociedade política reside na natureza humana. Mesmo contra a sua própria vontade. entendendo-o como um conceito vasto e como a mais complexa das formas por que as sociedades humanas se apresentam (1957. racional e perfectível” (AZAMBUJA. desde seu nascimento. é uma criação artificial do homem. encontra-se submetido à tutela do Estado. Se acaso o homem transgredir as vontades do Estado. 3). Para Azambuja (1971). então. como governo e dominação. p. 3). Os termos Nação e Estado. estando subordinado à autoridade de um governo (poder jurídico e de coerção). para realizar um objetivo comum. Essa sociedade política é determinada por normas de direito positivo. sofrerá as sanções de tal procedimento. não existe nacionalidade onde não existir ordenamento civil.2. permanentemente. fica subentendido nos conceitos apresentados pelo mesmo nas afirmações de outros escritores. Queiroz Lima cita H. Assim. 2). O Estado emerge na tentativa de superar o instinto natural do homem e implantar definitivamente a sociedade política.20 2. é hierarquizada na forma de governantes e governados e tem como finalidade o bem público. 3 O Estado. Na visão de Azambuja. que a razão e a vontade criam e organizam (1971. Diferentes entendimentos sobre o Estado Entende-se o Estado como sendo um corpo de pessoas (unido por laços sociais) vivendo em um determinado território. 3). ou não acatá-las. obriga ao serviço militar (sacrificar a vida em uma guerra. 5). razão pela qual “da tutela do Estado o homem não se emancipa jamais” (p. . capaz de garantir a soberania e o bem comum. p. Hauriou. com governo próprio e território determinado”. como “a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público. O homem. o instinto social leva ao Estado. p. como um poder de mando. O conceito de nacionalidade. em Queiroz. também são tratados por Euzébio Queiroz Lima (1957). O referido autor ao iniciar sua obra. O aspecto coativo e a generalidade é que distinguem as normas por ele editadas. Azambuja sintetiza a sua noção de Estado. O que antecede a nação é uma ordem civil. “morrer pela pátria”). o Estado é uma sociedade que se constitui essencialmente de um grupo de indivíduos unidos e organizados. organizado politicamente. suas decisões obrigam a todos os que habitam o seu território” (p. o homem é obrigado a seguir os ditames do Estado. que entende o 3 “Assim. ou melhor: o Estado está a serviço do direito. Para Maluf o “Estado é o órgão executor da soberania nacional (. o Estado é um tipo especial de sociedade. é resultante de um certo estado de consciência” (1957. igualmente. 11). 167) define o Estado como sendo constituído de quatro elementos fundamentais: o Estado é um conjunto diferenciado de instituições e funcionários.. 19-22). tendo em vista sua fragilidade e impossibilidade de bastar-se a si mesmo” (1997. onde cria. 1997. o Estado é entendido ainda como a sociedade política necessária. Queiroz Lima entende que o Estado está igualmente ligado ao direito. evolução. em atenção aos diversos aspectos que apresente: método científico. dentro de um território bem definido. em Queiroz Lima. está ligado diretamente com a organização política.). p.” (1995. p. e que esses elementos lhe são próprios (. método filosófico. não existe uma definição única de Estado. o conceito de nação. Aderson Menezes (1996) diz que o Estado é uma sociedade de homens. psicológicas. embora complexo e não simples. político e jurídico. na qual um laço de parentesco espiritual desenvolve o pensamento da unidade do grupamento”.. Outro autor a definir o Estado é Sahid Maluf (1995). a exercer seu poder sobre uma população. p. Com vistas a explicar sua origem. O conceito de nação é essencialmente subjetivo. O conceito de Estado. dotada de um governo soberano. Já para José Geraldo Filomeno (1997). Ainda segundo Maluf (1995. intelectuais. visando o bem comum. morais e jurídicas giram em torno de um governo que administra sob o poder de coação uma autoridade que provém do uso incontido da força. onde as condições físicas.. portanto único. sendo fundamental analisá-lo nos aspectos sociológico. estrutura. executa e aplica seu ordenamento jurídico. 18). fixada em território próprio e submetida a um governo que lhe é originário: “O Estado é uma pessoa politicamente organizada da nação em um país determinado”. p. 17). no sentido de que as relações políticas se irradiam de um centro para .. econômicas. Cita.) O Estado é apenas uma instituição nacional. biológicas. um meio destinado à realização dos fins da comunidade nacional. segundo o entendimento de Jellinek: “quando um grande número de homens adquire a consciência de que existe entre eles um conjunto de comuns de civilização. p. expressando centralidade.. p. O Estado deve estar a serviço do homem: o Estado “é mero instrumento para a realização do homem. 4). Para Ele. cada um com uma concepção ou doutrina diferente. método histórico e método jurídico” (PEREZ Apud FILOMENO. fundamentos e fins: “o Estado é um ser social e. Michael Mann (1992.21 termo nação “como uma população fixada no solo. Há vários autores.. Já o conceito de nação é entendido como “indivíduos que se sentem unidos pela origem comum. segundo o autor. A idéia de Estado advém do desenvolvimento das formas de governo como resultante das diversas maneiras de dividir o poder entre governantes e governados.22 cobrir uma área demarcada territorialmente. O Estado é um conjunto de instituições especializadas em expressar um dado equilíbrio e uma condensação de forças favoráveis a um grupo e/ou uma classe social. pelos interesses comuns e. na qual a unidade de território . o grupo humano encarado na sua integração. língua e religião são conceitos coadjuvantes. é uma comunidade de consciências unidas por um sentimento comum. mas também estamentais. não constituem a característica fundamental da nação. 2. particularmente de classes. Uma definição de Mancini. Povo é. da classe ou do estamento dominante. Da mesma forma Azambuja define os conceitos povo e nação como sendo integrantes de uma população de um Estado. Tal posição encontra sustentação a partir de uma visão mista. 18). segundo a concepção de Azambuja (1971).3. 19). Ele assegura a unidade de qualquer sociedade dividida em interesses. O elemento humano do Estado é sempre um povo. dos demais Estados. um território. em 1851. O patriotismo é citado por Azambuja como exemplo. é o conjunto de indivíduos sujeitos às mesmas leis. conceituou o termo nação da seguinte forma: “Nação é uma sociedade natural de um homem. ou quase. ainda que com ideais e aspirações diferentes. Cada elemento é essencial. Parte-se do princípio que o Estado é um conjunto de instituições decorrentes do desenvolvimento de desigualdades sociais quanto ao exercício do poder de decisão e mando. três elementos fundamentais: uma população. “não pode existir Estado sem um deles” (p. onde o passado comum é condição indispensável para a formação nacional (p. por ideais e aspirações comuns” (p. Os elementos do Estado Fazem parte do Estado. numa ordem estatal determinada. pois garante o monopólio (centralizado ou descentralizado) do uso da força nas mãos do grupo. mas o que une um povo até constituir uma nação é a identidade de história e de tradição. a qual foi referida originalmente por Max Weber. professor de Direito Internacional de Turin. sobre a qual ele exerce um monopólio do estabelecimento de leis autoritariamente obrigatórias. sustentado pelo monopólio dos meios de violência física. Os conceitos de raça. É classicamente identificado com a idéia de soberano. 22). um governo independente. O povo é uma entidade jurídica. principalmente. nação é uma entidade moral. O terceiro elemento é o Governo. sérvios. A Organização da Conferência Islâmica. Integram o Território: o solo. os elementos formais. tem 57 países – membros). centro ou direita. gregos e turvos (Chipre). É importante que a população de um determinado Estado torne-se uma nação. Ela representa a massa total dos indivíduos que vivem dentro dos limites territoriais de um país. religião.3 bilhão de muçulmanos. que formam a maioria da população ou minorias significativas em quase 60 países. Para isso sempre 4 Para Maluf. os elementos que constituem o Estado são os materiais. 23). muçulmanos (há no mundo cerca 1. Considerando ainda outros comentadores pode-se citar. de forma resumida. O segundo elemento do Estado é o Território. o espaço aéreo. mas não consistia ainda um Estado. albaneses e croatas – Guerra da Bósnia (bálcãs). os bascos na França. Por nação entende-se o conjunto homogêneo de pessoas ligadas entre si por vínculos permanentes de sangue.4 O primeiro elemento do Estado é a População. Exemplos de nações que não constituem um Estado: na Espanha. onde ocorre a validade da sua origem jurídica. o bem comum (1995. Por fim é possível afirmar que não existe Estado sem nação. idioma. as embaixadas. O Governo pode estar nas mãos de um partido mais à esquerda. catalaneses (Cataluña). os ciganos. nas mãos de líderes religiosos. que pretende "assegurar o progresso e o bem-estar de todos os muçulmanos do mundo". quatro elementos do Estado.23 de origem. . de língua e a comunhão de vida criara a consciência social” (Apud AZAMBUJA. e o elemento final. p. O Governo é uma das mais antigas invenções humanas. p. os judeus até 1948 não haviam constituído um Estado. principalmente. Espanha e Irlanda (ETA . cultura e ideais – ou um grupo de indivíduos que se sentem unidos pela origem comum. Azambuja cita o povo judeu como um exemplo de povo que até há pouco tempo era uma nação. por exemplo. por faltar-lhe um território. Por Governo entendemos a instituição (de caráter temporário) responsável para a efetivação de políticas públicas. no caso brasileiro. compostos pela população e território. o âmbito geográfico da nação. os curdos. os navios e aviões de uso comercial ou civil e o mar territorial (200 milhas). incluindo os nacionais e os nãonacionais. chefes tribais ou soldados com armas.Pátria Basca e Liberdade) procuram formar um Estado: os eslavos. 22). constituídos por um governo soberano (poder) e um ordenamento jurídico. O Território é a base física propriamente dita. 1971. Também não existe Estado sem Território. pelos interesses comuns e. Somente em 1948 formou-se o Estado de Israel. o subsolo. de costumes. por ideais e aspirações comuns. mas há muitas nações que não constituem um Estado. da mesma forma os nômades. temos último elemento do Estado denominado de Soberania. A Grã-Bretanha é um exemplo de Estado unitário. 169) descreve que . Nunca tivemos na história um Estado que interviesse tanto no quotidiano pessoal do indivíduo como na atualidade.24 nos voltamos para as primeiras civilizações orientais da Babilônia. Como formas de Governo. em última instância. O Governo é. 2. sem intervenções externas. Índia. Em outras palavras. dentro de seu território e sobre uma população. o conjunto das funções necessárias à manutenção da ordem jurídica e da administração pública. p. Já no Sistema Parlamentarista. México. positivamente. Exemplo: Estados Unidos (e seus 50 Estados). Alemanha. segundo Pinto (1975). sede do poder. a soberania significa autonomia. a oposição às vezes se encontra na alternativa de aceitar os procedimentos autorizados pelo aparelho do Estado ou de se arriscar a uma prova de força. criar. Síria e do Egito (6 mil anos atrás. o chefe maior é o Primeiro Ministro. para a realização do direito justo”. Legislativo e Judiciário (agindo de forma independente). Temos ainda Governos Confederados: que formam uma aliança de Estados independentes. O Primeiro Ministro é escolhido do partido majoritário ou da coalizão de partidos que fizeram maior número de acentos no parlamento.. Por fim. O órgão central do Governo Confederado tem o poder de tomar decisões pelos demais. A Comunidade dos Estados Independentes. Canadá. é um exemplo de Confederação.). Por soberania entende-se. Brasil. “a capacidade de impor a vontade própria. no mundo em mais de 50 Estados. como os extintos em 1991 após a queda da União Soviética. Pelo fato de aqueles que estão no poder gozarem de legitimidade. Austrália. A soberania é a forma suprema de poder: é o poder incontestável e incontrastável que o Estado tem de. executar e aplicar o seu ordenamento jurídico visando o bem comum. O Estado Democrático/Federal é quando o poder do governo é dividido entre um governo central e vários governos locais (divisão de poderes)..4. podemos citar o Unitário: governo centralizado. Podemos citar como Sistemas de Governo o Presidencialista e Parlamentarista. Michael Mann (1992. O Estado e o poder O Estado. torna-se palco de lutas políticas. O presidente é o chefe maior. O Presidencialismo está intimamente ligado à separação de poderes: Executivo. sua influência sobre a economia global é enorme. Em contrapartida. p. assim. pode fazer cumprir a sua vontade no mesmo dia em quase todos os lugares sob o seu domínio. Seu poder infra-estrutural cresceu enormemente. Mann (1992.). apenas um “deus” menor. O Imperador romano. como filho do Sol. recorrendo. a de impedir que a sociedade dividida em classes se transforme num estado de permanente anarquia. que. à força e. numa situação de escassez. as pensões previdenciárias. em princípio. sem o nosso consentimento ou o de nossos próximos ou parentes (o que o Estado. Alguns monarcas do início da Europa moderna também reivindicaram poderes absolutos. quem controla esses Estados? Mann afirma que é “uma elite estatal autônoma”. p. ele estoca e pode usar imediatamente uma maciça quantidade de informações sobre cada um de nós.25 . com a dos proprietários e a dos que nada têm. Mann apresenta três formas de poder: o econômico – os que detêm a riqueza. necessários ou percebidos como tais. inclusive. ele até provê diretamente a subsistência da maioria de nós (via os empregos que oferece. divinamente derivados (embora eles próprios não fossem divinos). adquiriu poderes que. A primeira seria o poder despótico da elite estatal. O poder econômico é aquele que se vale da posse de certos bens. o ideológico – os que se apossam do saber e o político – os que têm a força. nunca fora capaz de fazer). 168-169). que fundamenta a legitimidade e garante a continuidade do poder.. é também a condição para que possa afirmar-se a superioridade da competência dos governantes. o Estado. Com o nascimento da propriedade individual. 168-169) enumera duas características do poder do Estado. o poder infra-estrutural – segunda característica do poder estatal – “é a capacidade do Estado de realmente penetrar a sociedade civil e de implantar logisticamente as decisões políticas por todo o seu domínio” (1992. Não há um lugar para se esconder do alcance infraestrutural do Estado moderno. cuja função é essencialmente a de manter o domínio de uma classe sobre outra. Pode-se levantar um questionamento a partir dessas afirmações: mas afinal. também eram ilimitados fora da área restrita de afazeres nominalmente controlada pelo Senado. nasce a divisão do trabalho. etc. antes de 1850.. “possuía” a totalidade da China e podia fazer o que desejasse com qualquer indivíduo ou grupo dentro de seu domínio. A existência do Estado. O Estado atual penetra na vida cotidiana mais do que qualquer Estado histórico. a sociedade se divide em classes.o Estado pode avaliar e taxar nossa renda e riqueza na fonte. conclui o autor. O autor apresenta o exemplo do Imperador chinês. Dessa divisão nasce o poder político. para induzir os que não os possuem a adotarem . para exercer uma influência sobre o comportamento alheio e induzir os membros do grupo a realizar ou não uma ação. ou de códigos de conduta. pesos. em certa medida e com êxito. Assim. e em sábios e ignorantes. mas pelos meios utilizados para a execução desses fins.5. Logo. doutrinas. uma vez que para ele convergem as forças em choque. cunhagens. o Estado não pode ser definido pelos fins a que se propõe. a de defesa.. sistema de mensagens. O fim da política são tantas quantas sejam as metas a que se propõem os detentores do poder em um determinado momento. o Estado goza de certa autonomia. dirigida contra o ataque dos inimigos estrangeiros. a pretensão do monopólio da legítima coerção física. conhecimentos. 179). p. b) função ideológica: de criar o consenso e. mercados.). atuando sempre e garantindo sua reprodução enquanto tal. As funções do Estado podem ser: a) técnico-econômica: que tem por objetivo viabilizar o objeto econômico da(s) classe(s) dominante(s).26 uma certa conduta. Na posse dos meios de produção reside uma enorme fonte de poder por parte daqueles que os possuem contra os que não os detêm. a de agressão militar. Essas três formas de poder contribuem. (1992. em que o aparelho administrativo leva adiante. às vezes apenas de informações. Mann 5 apresenta outras funções do Estado como a de a manutenção da ordem interna.. c) função política: manutenção do nível da luta de classes através da coerção. a de manutenção das infraestruturas de comunicação (estradas. com base no poder econômico. 2. . por Estado se há de entender uma empresa institucional de caráter político. servindo diretamente à classe dominante. com vistas ao cumprimento das leis (Economia e Sociedade). rios. O fim último da política é a 5 Mann. que implica pensar a longo prazo. para instituir e para manter sociedades de desiguais divididas em fortes e fracos. conjuntamente. Para Max Weber. Só podemos entender um determinado tipo de Estado a partir da análise das classes que o compõem. A função do Estado Ao Estado compete manter o equilíbrio da sociedade de classes. O poder ideológico é aquele que se vale da posse de certas formas de saber. Ele tem a função de direção. “filtrando” as contradições em seu interior. com base no poder ideológico. O que temos é uma resposta aproximada. camelôs). podemos citar o proletariado (se dedicam ao trabalho manual: operários. valores. como os agregados básicos de indivíduos numa sociedade. profissionais liberais). segundo Theotônio dos Santos (1991. a burguesia agrária (empresas rurais) e a burguesia comercial (lojistas e atacadistas). 41). têm-se questionado sobre qual a possível origem do Estado. Vamos elencar as principais teorias que tentam responder a esta controversa questão. mas poucos chegaram a um consenso. Existem ainda camadas intermediárias compostas por pequenos empresários (prestação de serviços. o que dá origem a uma ideologia. entende-se. E. Por fim. Isto os faz tender a uma comunidade de: a) Consciência de classe: unidade de concepção de mundo e de sociedade segundo seus interesses gerais de classe. existem as camadas excluídas (sacoleiros. porém não-conclusiva sobre a origem do mesmo. .6 As classes sociais compõem uma comunidade de interesses em oposição aos outros agregados sociais (da mesma formação social ou sobreviventes de formações anteriores ou base de futuros agregados). podemos citar ainda a burguesia: industrial (indústrias). interesses imediatos. entre outros. distribuição de renda. O Estado legitimaria a divisão de classes sociais? Certamente.27 manutenção da ordem pública nas relações internas e da integridade territorial em relação aos demais estados. Como “classe dominada”. Justificativas teóricas do Estado Por séculos historiadores e teóricos da política. catadores de papel. taxistas. agregados. 2. 6 Analisar a obra de Santos (1991). Como “classe dominante”. bóias-frias. por classes sociais. a financeira (bancos). funcionários administrativos e não-manuais: trabalhadores automatizados). atitudes. Esta foi a crítica feita por muitos autores das Ciências Sociais. ação e interesse político diante dos partidos e do Estado.6. p. b) Situação social: modo de comportamentos. os quais se opõem entre si pelo papel que desempenham no processo produtivo do ponto de vista das relações que estabelecem entre si nas organizações do trabalho e quanto à propriedade. alfaiates. entre os séculos XV e XVIII. Para os teóricos que defendem esta teoria. para Bossuet. o uso da coação física (WEBER. Diz Bodin: Nada havendo de maior sobre a terra. A segunda teoria é a Teoria evolucionária. para Pateman. em certa medida e com êxito. Segundo esta teoria o Estado desenvolveuse naturalmente a partir da união de laços de parentesco. que os príncipes soberanos. de quem ele é a imagem na terra" (BODIN Apud CHEVALLIER. a fim de respeitar-lhes e reverenciar-lhes a majestade com toda a obediência. é necessário lembrar-se de sua qualidade.149). A terceira teoria é chamada de Teoria do direito divino. p. Jean Bodin e Bossuet defendiam o poder divino dos reis para administrar o Estado.7 Igualmente para Max weber. p. 1991. pois quem despreza seu príncipe soberano. e sendo por Ele estabelecidos como seus representantes para governarem os outros homens. ou seja. Na concepção marxista o Estado defende os interesses daqueles que pertencem a classe dominante (donos do poder econômico). . a fim de sentir e falar deles com toda a honra. tal como é peculiar todo outro agrupamento político. e Deus delegou o poder divino de governar aos reis (despotismo esclarecido). Para Marx o Estado é visto como dominação de classe. com vistas ao cumprimento das leis”. Consiste em uma relação de dominação do homem sobre o homem. onde o mais forte (guerreiro mais hábil ou caçador e pescador ou o mais velho) detinha o controle do poder. Esta teoria defende que o Estado nasceu da força. 56). 61). p. o Rei é a própria presença de Deus na terra: 7 Da mesma forma. o Estado nasceu na Europa. Evolução do bando – clãs – tribos (caçadores e coletores nômades) até agricultores e pastores (nascimento do estado). a pretensão do monopólio da legítima coerção física. fundada no instrumento da violência legítima. Defendem que o Estado foi criado por Deus.28 A primeira teoria trata da Teoria da força. Definição de Estado para Weber: “empresa institucional de caráter político onde o aparelho administrativo leva avante. “o Estado está inescapavelmente comprometido com a manutenção e reprodução das desigualdades da vida cotidiana. Como exemplo da Teoria do direito divino temos as experiências dos governos absolutistas de Henrique VIII e Luís XIV. o Estado não se deixa definir a não ser pelo específico meio que lhe é peculiar. depois de Deus. 1999. despreza a Deus. 1986. quando uma pessoa ou grupo controlou os demais (poucos submeteram muitos) o Estado surge com a luta de classes (visão marxista). enviesando decisões em favor de interesses particulares” (Apud HELD. Da mesma forma. dando ênfase a teoria contratualista. Vede um povo imenso reunido numa só pessoa. poderes. que será estudada nos capítulos seguintes. relações de classe). a Teoria do contrato social: a mais significante das teorias da origem do Estado. O Estado nasce do contrato social. assentado em seu trono no mais alto dos céus. 97-98). os cidadãos e os soldados. que governa todo o corpo do Estado.. considerai a razão secreta. as principais teorias que justificam o Estado. Por fim.29 Considerai o príncipe em seu gabinete. paternal e absoluto. . por mar e por terra. Abordou. as províncias e os exércitos. 8 Os capítulos 8 e 9 deste trabalho irão discorrer sobre a teoria do contrato social. bem como entre os Astecas e Maias. Enfim. Para a evolução do Estado conferir.. encerrada numa só cabeça: vereis a imagem de Deus nos reis. Do “estado de natureza” para o “estado civil”. a teocracia como forma de governo. Chinês. igualmente. reuni tudo quanto dissemos de grande e augusto sobre a autoridade real. Em outras épocas da história antiga. Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau desenvolveram esta teoria. 1986. p. governa a natureza inteira. Por isso se insistiu na análise do Estado (funções. Mais próximo dos nossos tempos tem-se a experiência do imperador Mikado que governou o Japão até 1945. Dali partem as ordens graças às quais procedem harmonicamente os magistrados e os capitães. Nos séculos XVII e XVIII os filósofos John Locke. o trabalho de Pasold (2004). como no Império Egípcio.8 Este capítulo teve por objetivo conceituar o Estado. Apud CHEVALLIER. Eis a imagem de Deus que. e tereis idéia da majestade real (BOSSUET. igualmente. forma de poder. também. tivemos. considerai esse poder sagrado. tudo o que o homem não entendesse. Esta evolução é evidenciada neste capítulo. p. como bando. ainda em tempos remotos. tribo. o trovão. agricultores e pastores. convém lembrar a fragilidade nas suas relações políticas.3. 84) afirma que a primeira civilização da história. Inicialmente. 82). O Estado primitivo Ao mencionarmos o Estado primitivo. as quais eram muito diferentes das que conhecemos na atualidade. as manifestações religiosas estavam ligadas essencialmente aos fenômenos da natureza. nem mesmo no aspecto coercitivo: todos tomam as decisões ao mesmo tempo (1992. No bando. No entanto. Crone cita o bando como o primeiro estágio da evolução política da humanidade. destruição e morte. a tribo ainda não alcança uma organização capaz de estruturar a comunidade no aspecto social e econômico. a lua. O PENSAMENTO POLÍTICO DAS SOCIEDADES PRIMITIVAS E ORIENTAIS 3. que julgamos consistirem passos fundamentais para compreender a evolução até alcançarmos o estágio final denominado Estado. alguns autores defendem que o Estado surgiu desde a origem da própria civilização. o inexplicável. são exemplos de divindades da época. Após 1 Importante lembrar que o Estado como nós conhecemos na atualidade é uma criação da modernidade (séculos XVI e XVII). foi produto da religião. caçadores e coletores. Embora sendo um estágio superior ao bando. p. que possuíam a terra”. as suas relações não estavam submetidas aos poderes de um chefe de ordem material. há desunião.1 Patrícia Crone (1992. a barbárie é uma constante.1. tudo o que fosse misterioso. as estrelas. era atribuído à força divina: o sol. A tribo é considerada o segundo estágio da evolução. 84). e não seus escravos. . é pertinente definir alguns conceitos. a organização é mínima. mas sim sob o domínio de uma imaginação dotada de autoridade suprema: “Quem detinha o poder eram os deuses. pois são sociedades ordenadas em referência a parentesco. em contrapartida. Em conseqüência. sexo e idade. isto é. Assim. pois “a atividade humana não pode ser coordenada em larga escala e a fissão é uma parte normal do processo político” (p. na América o trigo) e do pastoreio de animais (ovelhas. bois. o poder. A tecnologia estenderá seus benefícios ao homem na produção eficiente dos alimentos e dos agasalhos e. Da mesma forma. Assim. a crise e a fome em tempos de escassez. cavalos). dos caçadores e coletores. É possível perceber então as origens neolíticas como fases importantes onde aparece a domesticação dos animais e plantas como fator central na transformação da sociedade em relação à estatitude final. se igualando ao detentor do poder através da força física: nessa fase. segundo a descrição de Gamble (1992). passa-se à criação de normas. guiados pelo princípio do menor esforço e da eficiência na conservação de calorias de alimentos. abastecendo uma pequena população. desenvolve sua inteligência. evitando o desperdício e. com o passar do tempo. é muito . simplesmente. primeiramente. aos poucos. é necessário que a tribo seja destruída para que realmente aconteça a estruturação do Estado. tomando decisões perfeitamente sensatas. Utensílios que serão usados para a caça (garantindo a sobrevivência). e cuidar dos rebanhos. isto é. caracterizada por uma curta semana de trabalho e poucas preocupações. o homem. ainda na incrementação do cultivo intencional e organizado de plantas comestíveis (cultivo do arroz e do milho e. graças a uma despensa naturalmente bem estocada. a transição da selvageria para a parceria decorrente da revolução econômica e científica. são sociedades originárias da pré-história e formam as primeiras manifestações de poder objetivadas em uma comunidade humana. conseqüentemente. a qual proporciona o avanço tecnológico.31 iniciar pelo bando. os coletores e caçadores foram vistos como sábios econômicos. são os pioneiros na elaboração e na estruturação de uma forma precária de Estado. igualmente. oriundas das relações. direitos e deveres decorrentes dessa realidade. Surge. Neste sentido. para a agricultura e pastoris. temos a “sociedade de abundância original”. mas formavam os primeiros ‘caçadores’ de Estado”. Pode-se presumir então que o Estado não iniciou com os coletores e caçadores. mas com os povos que começaram a cultivar a terra. os primeiros líderes da sociedade primitiva eram. então. A partir do desenvolvimento da agricultura e de seu acúmulo. Com os coletores e caçadores. quem detém o machado ou as lanças tem. são exemplos de bons administradores de recursos. os mais fortes. Atualmente os estudiosos os recordam como povos providentes e previdentes. que acabavam negociando. Percebe-se então que “o poder não é só das forças ou das armas. certos privilégios. os agricultores. daí a afirmação: “Os caçadores e coletores não constituíram os primeiros Estados. para a proteção do grupo e para a conquista de novos territórios. Os coletores e caçadores. os pastores. com os demais membros. As relações de poder e a organização política parecem ser uma atividade constante desde as sociedades primitivas. VII a. banhada pelos rios Tigre e Eufrates.C. possibilitou a criação de uma nova classe. como 2 Mapa da Crescente Fértil.32 mais dos que detêm a tecnologia do cultivo e do pastoreio”. 1968. Mosca cita os povos Arianos.ul. a guerreira. O Estado Oriental Os estudos de Gaetano Mosca (1968) remetem para antes do início do terceiro milênio a. . 3. acenam para a região da baixa Mesopotâmia. a classe militar.pt/paginas/jpsdias/histfarm/crescentefertil.. e na escolha de um novo comandante na ausência ou morte do mesmo. 18-19). no Egito. durante o segundo milênio.2. Os constantes conflitos entre tribos primitivas. no segundo milênio a. Disponível em http://www.gif. p. o surgimento das primeiras manifestações de fundar corpos políticos capazes de organizarem-se sob uma direção única e fundarem vastos impérios com população numerosa.C.C. e. pelo Nilo. igualmente ao norte da Babilônia e na Ásia Menor. Acesso em dezembro de 2007. como formadores de Estados desenvolvidos. Crescente Fértil. Outras civilizações surgiram como uma forma de organização política e formação de um tipo de Estado. na modernidade. na Ásia Central e Meridional. como sendo as regiões onde se desenvolveram as primeiras civilizações.ff. A China apresenta-se sob o governo de Confúcio (séc.). Desta realidade surge a institucionalização e as relações entre os poderes como o comandante versus comandado. nasceram os impérios do Mitaneus e do Hititas (MOSCA. assim como os freqüentes ataques e saques aos rebanhos e ao armazenamento de alimentos.2 Estudos. Do ponto de vista cultural. herdamos a matemática e a astronomia. até o governo de Dário de Hestapses (485 a. O autor (p. servindo para a alimentação do homem. 2ª As dimensões territoriais eram grandiosas.33 importante organização social e política. os povos orientais nos legaram a domesticação de animais. o cristianismo e o islamismo.). da Arábia. o asno.). o que favorecia a diferenciação entre as classes. 19) apresenta algumas características comuns aos estados orientais. provindas do velho judaísmo. ao poder religioso: a autoridade se sustentava em uma religião (1988. do Irã e da Ásia Menor. chefe militar. juiz supremo e coletor de impostos. A unificação do império Persa compreendia os impérios da Babilônia. na agricultura. que serviram para o desenvolvimento do homem no decorrer da história: o boi. igualmente. compreendendo também o Egito. 90). . A religião dos povos orientais foi de suma importância para a humanidade: primeiro. “1ª O chefe do Estado era. ao mesmo tempo. p. Do ponto de vista material.200 a. de Ásia Ocidental ou Ásia Anterior – compreendiam os povos do Egito. da Mesopotâmia. numeradas e sancionadas as regras mais indispensáveis à moral social. cevada e arroz. não só para o transporte como para alimentação e proteção contra o frio (lã). em vigor na Babilônia. suprimindo qualquer resquício de liberdade dos súditos.C. o cultivo do trigo.C. p. essencialmente. O poder político oriental estava ligado. 87): As civilizações do Oriente próximo – chamado. Egito e Lídia sob o governo de Ciro (559 a. O império dos Persas foi o primeiro Estado a conseguir unificar todos os países de civilização mais ou menos antiga. faixa de terra que forma a Mesopotâmia. logo após. Sob a visão das leis. que acabavam subordinando-se umas às outras”. o cavalo e o carneiro foram úteis para o homem. da Síria. da Palestina. da Armênia. A forma de governo que dominante nos impérios orientais era a monarquia absoluta ou o poder despótico assumido pela autoridade de um homem que era a encarnação da própria divindade e governava despoticamente.C. Foi nessa região que surgiram as primeiras civilizações da Antigüidade (região chamada Crescente Fértil). Segundo Rubim e Aquino (1988. que se estendiam do mar Egeu até os confins da Índia. herdamos o Código de Hamurábi. o budismo. capaz de impor regras e propiciar a boa convivência entre as sociedades. a Síria e a Palestina. desde 2. ). 1995. O Estado Oriental é composto pelas civilizações mediterrâneas da Antigüidade oriental. a sua pessoa é a de um próprio deus. Como características principais desse modelo de Estado. sobre a posse e distribuição das riquezas. 53). restando aos demais súditos acatar suas ordens. a sua vontade é divina. O autor conclui afirmando que o Egito é o exemplo mais perfeito da primeira forma e o povo judeu é o exemplo da segunda. após a queda de Jerusalém. historiador judeu que viveu entre os anos 37 e 100 da era cristã. patriarca. da qual fazem parte a Babilônia. que desembocariam na Grécia (territórios compostos pelas realezas micenas e cretenses) e Roma (formada por realezas etruscas). descendente de deuses. decidindo sobre a vida e a morte de todos os membros do grupo. no final de sua vida. Além disso. o Egito. tribo. incontestável. Assim.34 O poder teocrático significa o governo de Deus (teo = Deus + cracia = governo. exercido por um chefe de família ou de famílias (clã. tendo. e conseqüentemente. Antigüidade dos judeus. segundo Chauí (1994). aldeia). monarca. exerce o poder objetivando a vontade divina. no Oriente podemse exemplificar duas realidades: “ora o monarca é o representante da divindade. Josephus teve atuação muito importante como intermediário entre romanos e judeus. O poder estava sempre nas mãos dos que detinham o poder econômico (proprietários da terra e dos rebanhos). com poderes ilimitados sobre a pessoa. o proibido e o permitido. 3 A palavra teocracia foi criada por Flavius Josephus. imortal. imbatível. o chefe era rei. o que o torna um ser transcendente. e o poder militar. Índia e Pérsia. ora o poder do monarca é subordinado ao poder divino e por ele rigorosamente limitado”. sacerdote e capitão. O Poder no Estado Antigo possuía as seguintes características. o Estado unitário. segundo Queiroz Lima. podemos citar: a larga expressão territorial. cuja autoridade era pessoal e arbitrária. . poder). p. ou seja. tendo chegado a assumir o posto de general e a exercer grande influência na Judéia. O poder nos impérios orientais era. China. em decorrência disso. adotado a cidadania romana. que servia de aparato ideológico para a perpetuação e a incontestável supremacia do poder. as alianças. o regime autoritário e totalitário. detinha o poder religioso. infalível. segundo a classificação de Chauí: a) despótico ou patriarcal: exercido pelo chefe de família sobre um conjunto de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar e por alianças matrimoniais. vivendo em Roma e recebendo uma pensão do Estado. C. é um repositório de informações sobre a vida do povo judeu desde a criação do mundo. povos Hititas e Hebreus (3º ao 1º milênio a. a guerra e a paz. faraó. é a participação da autoridade divina no governo dos homens. Sua principal obra. no ano 70. de caráter histórico. e a praticamente ausência de garantias individuais das pessoas frente ao Estado. o imperador. encontram-se aí também referências à organização e à vida de outros povos antigos (JELLINEK Apud DALLARI. concentrando a chefia do exército e a decisão sobre a guerra e a paz. a vida e a propriedade dos súditos. 3 A teocracia. centralizado no rei (monarquia teocrática). Essa divisão demonstra a hierarquia e a concentração do poder na cabeça e no peito do dirigente. fenômenos meteorológicos. A partir de agora a obra de Hegel Lições sobre a Filosofia da História Universal aparecerá no texto como LiFH. realidade em que se encontram inseridos os impérios do Oriente (China. encarnava a autoridade que dirige. e) transcendente: por ser de origem divina. a vitória ou a derrota na guerra. gestos e desejos do rei tinham força para matar e curar. c) incorporado ou corporeificado: o detentor do poder figurava em seu próprio corpo as características do poder.2. enclausurados em si mesmos. na falta deste. apresentando-se como manifestação da própria comunidade: a cabeça. 3.1. como condição da preservação da comunidade. tendo a Europa como centro: “a Europa é o fim da história universal. bárbaros. inicia no leste e termina no oeste. esses povos estão submersos no “puramente particular” (fechados aos conceitos universais). a um membro da família real4. África e o Novo Mundo (as Américas). os membros superiores . atrasados. que o obedeciam. militar e econômico. Exemplos de teocracias orientais Hegel. cataclismos. Dele dependiam a fertilidade da terra. conferir o trabalho de Hyppolite (1971) . em Lições sobre a Filosofia da História. Essa divinização o colocava acima e fora da comunidade. e a Ásia é o começo”. a-históricos. não alcançando a “liberdade subjetiva”.encarnava os delegados que o representavam (sacerdotes e militares) e os membros inferiores encarnavam os súditos.35 b) total: o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para decidir quanto ao permitido e ao proibido (a lei exprime a vontade pessoal do chefe): “Aquilo que apraz ao Rei tem força de lei”. sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele. o peito. Para um maior aprofundamento da teoria de Hegel sobre a Filosofia da História. Índia.6 4 5 6 Classificação de Chauí (1994). d) mágico: o detentor do poder possuía força sobrenatural ou mágica. A palavra. início ou fim de uma peste. 5 Podemos entender história universal como sendo o “disciplinamento da arrogância da vontade natural”. a vontade que ordena. o rei era divinizado e acreditava-se em sua imortalidade. Chefe do poder religioso. Pérsia). Para o pensador germânico. defende que a história universal segue um caminho definido. f) hereditário: era transmitido ao primogênito do rei ou. “porque é ali que as individualidades se formam”. pelo saber e pela religião.36 Seguindo o pensamento hegeliano. o terceiro momento da universalidade abstrata. o que não acontece com o homem romano. estabelece aquilo que denota o livre querer dos indivíduos: “Eis aí a união do princípio moral e da vontade subjetiva ou o reino da bela liberdade”. Hegel compreende “Estado” como . mas serve ao fim universal. a seguir. participa efetivamente nas decisões políticas da cidade. Dessa forma. Ocorre. não como fragilidade (natural). já no mundo grego e romano. O Oriente é considerado por Hegel como a infância da humanidade. Emerge o Estado moderno como força autônoma desapegada aos ditames da Igreja. autoritário e despótico sobre os súditos. Hegel apresenta o mundo germânico moderno como síntese da tese (Grécia) e da antítese (Roma). somente um é livre. a Grécia conquista Roma pela cultura. o cidadão (dono de propriedade e de escravos) filosófico (reflexivo). em que o indivíduo encontra o trabalho rude e áspero. A Grécia é “o segundo princípio da história universal”. e. o despotismo. com uma política laica: “o Estado não é mais inferior à Igreja. o conceito “liberdade” é acessível somente para alguns povos. o rei despótico. alguns são livres em decorrência da participação efetiva dos cidadãos nas decisões da pólis. “porque o varão não depende do arbítrio do senhor. por estar subordinado às determinações do soberano. mas velhice no sentido da perfeita maturidade e força. Comprova-se tal afirmação analisando-se as divindades romanas. temos. onde encontra a “alegria e a satisfação”. comprovando-se a inexistência da reflexão em sua própria liberdade subjetiva. logo após. isto é. uma vez que o homem grego. surgem a democracia e a aristocracia e. por último. que são as mesmas gregas: Roma torna-se um panteão de divindades e de todas as espiritualidades herdadas da cultura grega. na medida em que o seu povo contempla a união da moralidade com a individualidade. O império romano é considerado o “áspero labor da idade viril da história”. no qual o indivíduo atinge o seu próprio fim”. Cabe ao mundo grego ser comparado à adolescência da humanidade. uma mudança da perspectiva do indivíduo perante o Estado. no mundo europeu moderno (impérios germânicos) todos são livres. ou seja. inicialmente. Corresponde à velhice. ou seja. nem lhe é subordinado”. nem do capricho individual da beleza. finalmente. Nesse estágio. À internacionalização da cultura grega chamamos de helenismo. No quarto momento da história universal. Se Roma conquistou a Grécia pelas “armas”. visualiza-se um momento de estagnação e retrocesso em que os indivíduos permanecem como meros espectadores da história. que está no centro do poder exercendo o comando centralizador. No Oriente. a monarquia. não há possibilidade de síntese (superação) (WEBER. “A liberdade dos indivíduos existe somente como acidente de uma substância que é.37 uma palavra que expressa mais do que estruturas políticas de uma comunidade. a “Realidade da Liberdade”. O Estado é o “Todo Moral”. p. Hegel considera a China como sendo o princípio propriamente oriental. visto que este Estado se baseia exclusivamente sobre uma relação social patriarcal. é a base e o centro dos demais elementos concretos da vida de um povo. isto é. O que se nota é o contrário no homem chinês. para Hegel. 264). como não há oposição. Hegel conceitua a religião como sendo a interioridade do espírito. 204). do qual apenas um é livre. a “Objetividade do Espírito”. “É que os chineses veneram a natureza como se fosse o supremo” (HEGEL. arte. a consciência natural na pessoa do chefe supremo. O espírito se encontra ausente na religião. p. 1975. Dessa maneira. o ápice da liberdade é o Estado. 7 Conferir. igualmente. o déspota. o princípio da religião é de dependência a respeito de um poder superior. a Moral. O espírito dos demais encontra-se submerso na particularidade indiferenciada. e. na verdade. a Religião e a Ciência. Três nações fazem parte do mundo oriental: a China. é uma história fechada em si mesma. o teocrata” (FLOREZ. a “Idéia Divina. A dependência do indivíduo frente ao Estado é total. geometria e na medicina. A figura do chefe é confundida com a própria divindade. A história da China.7 O mundo oriental está caracterizado pelo despotismo. a Índia e a Pérsia. tal como existe sobre a Terra”. tendo pouca relação com o mundo exterior. ou a Cultura Nacional. de tal sorte que uma expressão de alcance maior como “cultura nacional” traduziria melhor seu significado. para Hegel. 1993. p. sustentada e caracterizada pela piedade familiar objetiva. não há oposição (contradição). porque. A China e a Índia não chegarão de forma alguma a atingir o status de povos históricos do mundo. visto que.101-126). . que é o objeto de estudo próprio da filosofia da história de Hegel. 254). Os chineses são denominados meros copiadores da cultura européia. p. Pode-se afirmar que o Estado. como se o próprio Deus fosse personificado para reger e comandar o Estado. comenta Hegel. como verdadeiro “indivíduo histórico”. 1983. o Direito. terá capacidade de chegar a uma subjetividade. a história propriamente dita de um povo começa quando este se eleva à consciência. uma vez que totaliza a Arte. Como não há consciência nesses povos. na verdadeira religião o indivíduo é livre. o chefe. Entretanto. a explanação e o entendimento de Hegel sobre o Estado nas LiFH (1975. somente a última terá a capacidade de intuir o “ser em si”. p. num modo geral. 116). “por isso. Hegel exclui a China da História Universal à medida que não existe a subjetividade da pessoa. Segundo Hegel. ao mesmo tempo. na concepção de Hegel. como o pensamento que penetra prontamente no objeto. igualmente. Os povos orientais não tiveram uma concepção definida sobre o Estado. mas subordinado ao despotismo do chefe do governo. 108). pois “no Estado. o elemento da subjetividade falta nesse todo do Estado. está inteiramente subordinado ao chefe. assumida e direcionada pelo chefe. A preocupação essencial da época não contemplava esse aspecto polarizador. Necessita. e o governo baseia-se no exercício do cuidado paternalista do imperador que mantém a ordem” (1975. p. ter algo mais interior. fica excluída qualquer mutabilidade. e ao povo cabe acatar as suas ordens. O povo chinês encontra-se subordinado frente ao poder estatal. p. e o estático que sempre ressurge substitui aquilo que chamaríamos de histórico” (1975. O que resta. é uma religião estatal. unicamente. Quem representa a convicção neste Estado é somente um sujeito. o imperador. encontra-se fora do processo que o pensador chama de histórico. a religião da China se refere a uma substância natural e particular. então. Não existem castas ou classes que defendam seus interesses. É notável a subordinação e a dependência dos súditos em relação ao governo patriarcal despótico exercido na China. a dimensão religiosa. pois nele predomina a relação patriarcal. p. uma vez que o substancial (que se apresenta como moral) não é parte integrante do sujeito. sendo que existe algo pensado que se transforma em algo universal e. Dessa maneira. 108). isto é. o chefe do governo e da religião” (1975. essencialmente com a filosofia política de Maquiavel (rompimento da política com os ditames morais da Igreja Católica) em que se sobressai o Estado laico sobre o poder eclesiástico. 105). Neste caso o indivíduo não possui liberdade e vontade. . mas sim o chefe versus os súditos que comanda e determina as leis. por lhe faltar a “oposição entre a existência objetiva e a liberdade subjetiva. o império chinês é o mais antigo de que se tem notícias e. A dependência dos súditos afeta.38 O homem não pode permanecer subordinado ao sensível. pois inexiste “o recolhimento do espírito em si mesmo na contemplação de sua própria essência” (1975. eles têm ainda menos personalidade. É mister entender também que a concepção de Estado que conhecemos na atualidade só passa a vigorar com o entendimento do Estado Moderno. 116). Hegel afirma que este não é o tipo de religião que o homem moderno europeu cristianizado conhece. assim como este não se baseia na convicção” (1975. desde o princípio. “o imperador é. p. “na Índia um despotismo sem qualquer princípio. atingindo o mais perfeito desenvolvimento para dentro de si mesma” (1975. que impõe diferenças entre si. p. Na Índia sobressai a imaginação como primeiro aspecto da subjetividade. é. sendo que esta nação é considerada como depósito de riquezas que. como a China. . mencionada pela maioria dos pensadores modernos ocidentais. Hegel afirma que os indivíduos precisam chegar a uma liberdade subjetiva. por isso mesmo. constituem “realidade espiritual em que se realiza o ser consciente do espírito. 280). pois a lei é a vontade moral do imperador. A segunda classe é a dos guerreiros Chatrias. Hegel afirma que esta nação se encontra da mesma forma que a China. A religião indiana. sobressai-se a religião hindu. a lua. p. 139). à medida que a mesma relaciona-se com os países europeus do mundo novo. 123). que apresentará a força subjetiva e a coragem para manter o domínio sobre o povo restante e perpetuar o Estado. é panteísta universal. p. Essa realidade não acontece na China. a troco de um salário que lhe garanta um meio de subsistência” (1975. o que é pior. fornecendo-lhe produtos que serviram de comércio. indústria e comércio. o Indo. o Ganges. intercâmbio cultural. ou seja. 139). onde as diferenças dão-se apenas entre classes. A Índia. isto é. A quarta é a classe dos Sudras. desde os tempos mais remotos. “cujo objetivo é trabalhar para os outros. Sobre a possibilidade de existir um Estado racional. Porém.39 Ao fazer referência à Índia. dominação e riqueza. p. A Índia foi importante e. O que se sobressai é o caráter da fantasia e do sentimento expostos em seu território. fechada em si mesma e estagnada. para o enriquecimento das nações ocidentais. a classe do serviço. tem servido para a exploração e. 127). na concepção hegeliana. “permanece estática e fixa. sem regra de moralidade objetiva e a religião tem por condição e fundamento a liberdade da vontade” (1975. que significa a unidade do natural mais o espiritual. p. em que buscam o sol. A forma de organização e o fundamento do Estado. os animais e as flores como deuses. A classe dos brâmanes é a principal. reprimindo e anulando a liberdade e a individualidade do sujeito. a liberdade da vontade como lei” (1975. uma terra fechada em si mesma. as estrelas. como um todo. à medida que o divino é proferido e aprovado (freqüentemente chegam ao poder). A terceira classe Vaisias encarregava-se da agricultura. a Índia tem relações externas com a história universal. igualmente. realidade que não acontece na Índia. “A Índia [conclui Hegel] só foi conquistada até hoje” (1975. Na China há um despotismo moral. o império persa é o primeiro povo histórico submetido às evoluções e revoluções. Graças ao cristianismo é que o espírito alcançou sua plena maturidade. 571). não adora as coisas individuais da natureza. Nesse confronto dialético. a história põe à mostra “uma dialética de princípios nacionais”. com a religião cristã. . que tem como conteúdo sua própria forma absoluta. No Estado israelita. Hegel coloca o Estado germânico num patamar transcendente.. juntamente com os demais súditos. p. mas o universal.40 O princípio de evolução inicia-se com a história da Pérsia. 60). O espírito germânico é o espírito do mundo moderno. O princípio do Império Germânico deve ser ajustado à religião cristã (HEGEL. subordinado aos preceitos da lei ditadas por Deus (QUEIROZ LIMA. surge o quarto momento do espírito. 149). p. Sendo assim. por exemplo. são vistos como formas antitéticas de uma tentativa de expressar a idéia de liberdade na sociedade. onde o rei era apenas chefe civil e militar. estando. Vê-se que. temos a presença de Deus (Javé) como poder supremo. Fazem parte do Império Persa: os assírios.. dessa forma. Com o império persa. 1975. Por isso a Pérsia é considerada o império que se inicia e desenvolve juntamente com o conceito de História Universal. por isso. p. sendo a última uma reação contra a visão da primeira. babilônios. “O espírito realizou-se e. o fim dos dias chegou: a idéia do cristianismo alcançou sua plena realização” (1975. enquanto o homem adquiriu a consciência em sua universalidade e infinitude. p. como autodeterminação infinita da liberdade. mas uma conexão de conceitos” (1975. p. Esta conexão. 323). por isso esta história constitui o verdadeiro começo da história universal. relacionando-o com a própria divindade. cujo fim é a realização da verdade absoluta. o qual alcança a totalidade na figura do Estado germânico. começa a franca conexão com a história universal. visto que sua religião não é a idolatria. únicos testemunhos de uma vida histórica. a Pérsia está “sujeita aos desenvolvimentos e transformações que por si só já demonstram uma situação histórica” (1975. medos e persas. o homem pode separar-se da natureza. o espírito superior encerrou a reconciliação e a libertação. como síntese concreta da individualidade livre dos gregos e do legalismo abstrato dos romanos. Hegel afirmou a superioridade da primeira sobre as demais. Os princípios da Grécia e de Roma. “não é aparente nem externa. Pode-se comparar as características de uma sobre as outras: enquanto que a China e a Índia encontram-se estáticas e fechadas em si mesmas. 1957. Ao comparar a Pérsia com a China e a Índia. 568). Na Pérsia. O que uniu os povos germânicos foi o cristianismo e. como faziam os indianos. afirma Hegel. Segundo Hegel. “Não há nenhum fim. A concretização do Estado hegeliano precisa de uma base que unifique os elementos da vida de um povo. por este ser pouco conhecido dos europeus. fechada em si mesma. p. é o país filho. simboliza a unidade da vontade universal e essencial com a vontade subjetiva. mas a excluiu da história universal. Todo o valor que o homem tem. é o momento mais elevado em que o espírito se realiza em um determinado povo. assim. nenhum Estado que possa seguir. toda sua realidade espiritual. católica. conforme Hegel.” O Estado é o fim e os cidadãos são os instrumentos (1975. Por fim. envolvido na escuridão da noite. Somente neste tem sua essência. não existe nenhuma subjetividade. 182). toda a confederação constitui apenas um Estado e tem os seus centros políticos. A América do Sul. como a realidade dos orientais. a tem mediante o Estado. Estado. físicos e políticos. “. Os africanos. 182). sendo que a situação do negro não é suscetível de desenvolvimento e educação.. p. O que nós chamamos de religião. O Estado. o povo germânico. moral. não têm chegado ao reconhecimento do universal. segundo Hegel. e esse povo é. a moralidade entre os indivíduos.41 O Estado.. estabelecendo. segundo a posição de Hegel. Hegel diferencia a América do Norte da América do Sul. Na África. dessa forma. pois somente o Estado tem no homem existência racional. A realidade da África é. evidenciado até mesmo nos caracteres próprios. como totalidades que estão unidas pelo Mar Mediterrâneo. da população. Progrediram graças ao desenvolvimento da indústria. direito. pois permanece estagnada até os dias de hoje. As 8 Sobre a ligação entre religião protestante e capitalismo ver Weber (2004). foi conquistada. A primeira constitui a prosperidade. à ordem civil e a uma firme liberdade. p. Por outro lado. religião e ciência. 264). Hegel a incluiu na participação da “trindade” Europa. o que tem validade absoluta.. em vez de ser colonizada. Ásia e África. distante da luz da história consciente” (1975. assim. ao se referir à África. O novo mundo compreende as Américas do Sul e do Norte e a Austrália. a “realidade da liberdade” e a “idéia do divino” tal qual existe sobre a terra. visto que foi colonizada por povos de religiosidade protestante 8 nos seus traços fundamentais. inexiste uma realidade histórica. mas em seu absoluto. não existe todavia para eles” (1975. diz Hegel. e que constitua... segundo Hegel.. “A África não tem interesse histórico próprio. apenas sujeitos que se destroem” (1975. “Sua natureza consiste em estar enclausurada em si mesma. pois este último é novo não somente no relativo. 101). espanhola. . Hegel distingue o velho do novo mundo. É essencial a separação do velho mundo do novo. p. o que é em si e por si. o “todo moral”. como arte. a ação de uma criava para outras limitações intransponíveis (VILLENEUVE Apud QUEIROZ LIMA. por isso o faraó era chamado de o “filho do sol” 10. o poder religioso. defendidos por poderosos colégios sacerdotais. Estados confederados separam-se. nem por isso lhe era fácil invadir o campo de privilégios dos outros deuses. a existência simultânea de muitos deuses determinava um engenhoso sistema de limitações das prerrogativas reais. p. decidindo sobre a arte da guerra e da paz.9 Outro exemplo de teocracia foi o Egito. Hegel reconhece que os povos que habitaram as terras no Novo Mundo tinham entre si uma cultura. deuses e que repetem em sua consciência. seus ritos. 9 Conferir a crítica de Enrique Dussel sobre o preconceito de Hegel ao se referir à África e às Américas como povos que não alcançaram a consciência histórica (DUSSEL. 61). limitada por suas tradições. um verdadeiro Estado e um verdadeiro governo somente se produzem quando já existem diferenças de classe. 175). No Egito. “A conquista desses países assinalou a ruína de sua cultura da qual conservamos notícia” (1975. ao entrarem em contato com os europeus. e sua autoridade era divina. em que o soberano era considerado um Deus (CHAUÍ. também fora da história universal. Os americanos não desejam formar Estados jurídicos e uma lei jurídica formal. unem-se de novo. 10 O faraó era um deus. pelos quais foram “descobertos”. desfrutavam de privilégios (isenção de impostos). exercia poder sobre o tempo de bonança e miséria. Para Hegel. detinha o poder centralizando-o em suas mãos.13-58). O Rei dirigia o Estado como divindade. exercido pelo faraó. 1993. da mesma forma. E como as diversas divindades tinham competência especializada. e todas essas mudanças são operadas por revoluções militares. onde controlava a produção dos alimentos. igualmente. acumularam poder e riqueza. Se o faraó tinha sobre as outras divindades a incontestável superioridade de ser uma entidade viva. Porém. “quando for grande a riqueza e a pobreza. . embora rude. toda a sua história é uma revolução constante.42 repúblicas repousam somente no poder militar. o poder teocrático. entretanto. pois é necessário que estes povos deixem o espírito dos interesses particulares e orientem-se pelo espírito da razão e da liberdade. cultos. O Estado detinha o poder de administrar a irrigação da agricultura do Rio Nilo. igualmente. incutia a ideologia de que tudo dependia dele. 1957. perderam a sua individualidade cultural. assim como a África. O Novo Mundo. pouco dispostos a consentir tais invasões. que detinha o poder do Estado dominando os demais. No Egito temos. comandava a natureza. e se der uma relação tal que uma grande massa já não possa satisfazer suas necessidades da maneira que estava acostumada” (p. p. p. p. 171). a monarquia despótica. ficará. filho de deuses. O soberano era dono de todas as terras dos círculos aristocráticos. 1994. É importante lembrar que o faraó detinha. e o poder militar. 96). estes eram responsáveis pelo culto das divindades. nomeando os demais sacerdotes como assistentes do “grande” sacerdote. Predominou neste povo. o grande rei. leis adivinhatórias. protegia e castigava os demais cidadãos. É necessário. mas à vontade do déspota real (encarnação visível de deus) (MARX Apud PINSKY. É. na Origem da família. é a ambição: “seu objetivo determinante é a riqueza . o indivíduo. 14). privatizando o excedente da agricultura. para confirmar o escrito acima. p. toda sociedade não-primitiva é uma sociedade de Estado. 97). 1984. 81-98). não é desse modelo que surgirá o poder despótico. o que não acontece ao restante do povo. pois encontra-se submetido à vontade não de si próprio. contudo. . então. E. serviu aos interesses da classe dominante: “uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada” (ENGELS Apud PINSKY. desde os tempos mais antigos. Neste sentido. p. Na sociedade primitiva. o que aconteceu no Egito no fim do IV milênio antes da nossa era. ser explorado. constata-se que o Estado surge na medida em que há diferenças de classe. 22). em oposição às sociedades primitivas. A produção excedente absorvida pelo Estado tornou possível a diferença de classes. segundo o entendimento de Engels. Para Marx. quase uma unanimidade afirmar-se que o Estado seja um instrumento que possibilita à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as demais classes dominadas (CLASTRES Apud PINSKY. as classes sociais e o Estado surgem em épocas e em condições diferenciadas. Tal situação será possível em sociedades que ultrapassarem o necessário para a sua sobrevivência. no decorrer da história. “que exista antes divisão da sociedade em classes sociais antagônicas. é a força de coesão da sociedade civilizada e que. o chefe não dispõe de “nenhum poder de coerção. à medida que começava a irrigação do Nilo propiciando o cultivo agrícola em seu vale. não importando o modelo social e econômico a ser seguido. priorizando o econômico. o Estado é o grande detentor da propriedade da terra. O Estado. de nenhum meio de dar uma ordem”. que lhe convém servir ao estado. inicialmente. 1984. 21). pagar impostos e trabalhar em serviços forçados (BARBOSA. e os que participam dele. Na visão de Diakov e Kavalev (1987. da propriedade privada e do Estado. MANGABEIRA. 1984. “não passa de um acidente ou um elemento puramente natural”. isto significa que a classe dominante exerça uma relação de exploração à classe dominada. automaticamente podem usufruir dos seus benefícios. na comunidade oriental. pois não se preocupam em acumular e a gerar desigualdades.43 No modo de produção asiático. o Estado só é possível nas sociedades civilizadas. 1985. para o surgimento do Estado.mas não a da sociedade e sim de tal ou qual mesquinho indivíduo” (p. acumulando produtos na propriedade privada. p. p. 73). p. ligadas entre si por relação de exploração”. que “são sociedades sem Estado”. O que faz a história mover-se. mas também as concepções de Estado para as diferentes sociedades e civilizações. é perceber as transformações do Estado não só nos períodos históricos.44 Este capítulo procurou analisar a “evolução” do Estado. para o estudante. O importante. Trouxe pensadores das ciências políticas e da filosofia que discorreram sobre o tema. . especialmente Hegel e sua Filosofia da História. 1995. em segundo lugar.C. 54). contemplação). podemos mencionar o século VI a. O PENSAMENTO POLÍTICO DA SOCIEDADE GREGA 4. consideramos que o mesmo inexista como Estado único. história. econômica e política da Grécia. ou seja. A história grega é dividida por Hegel em três momentos decisivos: Inicialmente. nas Lições sobre a filosofia da história . à medida que o conhecemos. temos na Grécia uma reduzida expressão territorial (na forma de pólis ou cidade-estado). 1975. vamos aos poucos notando as razões que nos aproximam desse povo. O litoral entrecortado e o mar favoreceram o intercâmbio comercial e cultural com outros povos (navegação. com a formação da real individualidade. Hegel. Os gregos: precursores da política e da democracia Partimos para a análise do mundo grego e. como o término da mesma. Ao se falar em Estado grego. como o início da civilização grega e o século III a. como a sociedade política de maior expressão” (DALLARI. isto é. Os conceitos de filosofia.1. que totalize toda a civilização helênica. “entre os gregos. com a autonomia e prosperidade na vitória externa e. sentimo-nos de imediato em casa. afirmava que. p. sua origem na civilização grega. “a pólis. em terceiro. Em termos cronológicos. O Estado grego apresenta algumas características fundamentais: a) Em oposição ao Estado oriental. . pois nos encontramos na região do espírito” e no referido povo dá-se a “verdadeira ascensão e por real renascimento do espírito” (HEGEL. p. como vimos no capítulo anterior. Por tal razão.4.C. 189). com o período de decadência. A característica que realmente harmoniza esta realidade é a cidade-estado. arte e política que conhecemos na atualidade têm. migração. O fator geográfico foi preponderante para a formação cultural. Para que os cidadãos gregos exercessem a participação efetiva na pólis. d) Surge o pensamento político. políticos e sociais contribuíram. A história começa com os gregos. até então. nas quais a história encontra-se submersa em uma consciência natural e particular. Superá-las significa elevá-las e guardálas. p. Hegel comenta que a “Grécia é a mãe da filosofia. O entendimento de Thadeu Weber vai nessa direção. Argumenta Hegel: A escravidão era a condição necessária de semelhante democracia. fazem um contrato e se definem como livres: é uma “obra-de-arte política”. o homem grego alcança o espírito universal na medida em que se desprende dos fatos de natureza particular e começa a produzir as coisas por si mesmo. p. para . a Grécia é considerada a adolescência. A cidade grega deixa transparecer a autêntica face do Estado. da consciência de que o ético e o jurídico se revelam no mundo divino e de que também o mundo tem validade” (HEGEL. porque com eles se inicia a consciência e a realização de um fim de natureza universal e não de qualquer fim. ao descrever que os gregos representam o espírito juvenil. orientava-se. as contradições. e) Os cidadãos usufruem intensamente dos direitos que a participação política proporciona. pela primeira vez na história. de exercitar-se nos estádios e tomar parte das festas (HEGEL. isto é. determinada e instituída por um acordo entre os indivíduos que. ao contrário das nações do Oriente. reconhecendo-se mutuamente. 460). seria necessária a permanência e a perpetuação de escravos para mantê-los e sustentá-los. para que a antiga Grécia fosse o berço da racionalidade ocidental. Os aspectos geográficos.46 b) O conjunto de cidadãos é que toma as decisões políticas. propriamente. 1975. Assim. 1975. Com a juventude começam. devem aprender o caminho para alcançar a história universal. c) O conceito e a prática da democracia surgem no tempo de Péricles. Foi na antiga Grécia que se iniciaram os argumentos lógico-racionais. intensamente. p. 208). Assim. que começa a negar o estabelecido e procura afirmar-se com uma identidade própria. ultrapassando. como os orientais são considerados povos infantis. porque começam a fazer-se livres. dessa forma. através da consciência. isto é. O homem grego. 400). 1993. onde todo cidadão tinha o direito e o dever de escutar e pronunciar na praça pública discursos sobre a administração do Estado. num nível superior (WEBER. a visão mítica mediante a qual o homem. 1. Ática. Sobre a “palavra” (a importância da discussão).1. e seja encontrada em outros animais. p. No entendimento de Marilena Chauí (1994. 4. A etimologia da palavra política A palavra “política” provém dos vocábulos gregos pólis. Argos. a formação da pólis grega resulta. deixando estes encargos para os escravos. Mileto e Corinto estabelecem relações comerciais entre si e através de todo o Mediterrâneo. . Em sentido comum. 7). as coisas políticas. – ê politikè (techné): a arte da política (PRÉLOT.000 a. – ê Pólis: a Cidade.. a luta em torno do poder. observa Aristóteles ( Pol. a política é essencialmente a vida política. isto é. à Soberania. pelos homens nascidos no solo da cidade. E é a associação de seres que têm uma opinião comum acerca desses assuntos que faz uma família ou uma cidade”. beócios e tessálios (1. É uma má tradução porque a pólis comum não se assemelhava muito a uma cidade e era muito mais que um Estado” (1970. Tebas. não faz nada em vão. Em torno de 1.. construídos em torno das fortalezas micênicas. a região. I.. entendida como comunidade organizada. 31-32). livres e iguais. E mesmo que a mera voz sirva para nada mais do que uma indicação de prazer ou de dor. A natureza. significava usufruir certas vantagens que nenhum 1 2 Para Moses Finley os gregos foram os verdadeiros fundadores da política (1998. da justiça e da injustiça. em diante). para os gregos. assim como o justo e o injusto. a Constituição. o intercâmbio comercial transforma-se num processo de colonização e escravização de outros povos. 1964. à Constituição. o regime político. Essa é uma característica do ser humano. entre outros fatores. Atenas. 371). “pólis é a palavra grega que traduzimos por cidadeestado.. Ser cidadão.200 a. pólis significa cidade. ou ainda a reunião dos cidadãos que formam a cidade. de migrações dos dórios.C. política. – ê politeia: o Estado. a cidadania (no sentido do direito dos cidadãos). formada pelos cidadãos (politikos). p. politikè. as coisas cívicas. deveria estar isento dos trabalhos manuais da vida cotidiana. o único a ter noção do bem e do mal. o poder da palavra tende a expor o conveniente e o inconveniente. é o fenômeno em si mesmo. Os núcleos urbanos. à República. 107).C. portadores de dois direitos inquestionáveis: a isonomia (igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a Cidade deve ou não realizar)2. 2): “É evidente que o homem é um animal mais político do que as abelhas ou qualquer outro ser gregário. politeia. como se afirma freqüentemente. p. tudo o que é inerente ao Estado.1 Para Kitto (1970).47 alcançar sua plena cidadania. e o homem é o único animal que tem o dom da palavra. ao regime político. p. se transformam em comunidades político-religiosas autônomas. Esparta. – ta política: plural neutro de políticos. a República. beleza e inteligência diversas. 5 Segundo Minogue (1998. significando. não existissem o poder e a autoridade política propriamente dita. a cidade. obras de irrigação. pela primeira vez. Segundo Jaeger (s.4 Dizer que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que. antes deles. Res publica é a tradução latina para ta politika. e muito. impostos e tributos. 98). o que vem antes deles. os patrícios ou cidadãos livres e iguais. como ente público e coletivo. a pólis. no vocabulário político atual. portanto. das sociedades anteriores. aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de sua aplicação. .48 outro homem conhecera. estradas e portos.) e das atividades econômicas da cidade (moeda. erário público. chamamos de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis. e mais. 13). ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos: costumes. leis. nascidos no solo de Roma. contemporaneamente por práticas políticas. Como afirma Minogue (1998. Pólis e civitas correspondem (imperfeitamente) ao que. administração dos serviços públicos (abertura de ruas. 19): “Os cidadãos tinham riqueza. os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus. Segundo a descrição de Chauí (1994. p. Sendo Estado e pólis equivalentes” (p. etc. é entendida como um dos produtos mais marcantes do “milagre grego”. erário público. 5 Para compreendermos o que se 3 4 O trabalho de Minogue (1998) é uma excelente síntese do pensamento político ocidental. organização da defesa e da guerra. é da pólis que deriva o que entendemos atualmente por “política” e “político”. 20). 371). isto é.3 É exatamente na pólis grega (cidade) que se tem uma forma mais acabada e apurada da vida social organizada. o que a diferencia. mas como cidadãos eram iguais”.d. a cidade grega. etc. tratados comerciais. Ta politika e res publica correspondem (imperfeitamente) ao que se designa. “foi com a pólis grega que apareceu.).). serviços públicos) e sua administração pelos membros da cidade. construção de templos e fortificações. p. Para Châtelet (1985. o que nós denominamos Estado . p. os gregos foram os pioneiros na política. referindo-se ao modo de participação no poder. o despotismo oriental. não é política. p.conquanto o termo grego se possa traduzir tanto por Estado como por cidade. portanto. no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da comunidade política às decisões concernentes ao erário ou fundo público. Civitas é a tradução latina de pólis. dá-se com os gregos e romanos. Assim. a história. A invenção da política. o pré-requisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que somente os ricos poderiam realizar. p. p. de modo a impedir a concentração do poder e da autoridade nas mãos de um rei.os escravos . conseqüentemente.49 pretende dizer com isso. Era o caso. . 371-381) sobre o conceito de política.os legisladores -.estava excluída dos direitos políticos e da vida política. senhor da terra. 376). a filosofia com todos os seus ramos.7 Afirmar que os gregos e romanos foram inventores da política não significa a instituição de uma “sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos nossos” (CHAUÍ. um conjunto de medidas foi tomado pelos primeiros dirigentes . de trabalhos artísticos. Para os gregos. no começo. a tudo que é urbano. no sentido originário. 1994. 14). das armas. p. A exclusão atingia também estrangeiros e miseráveis” (1994. o conceito política. 6 Conferir a análise de Chauí (1994 . feliz e justa. 376-377). p. 374). provém de pólis (politikos) cidade e tudo o que se refere a ela. conseqüentemente. a “economia era agrária e escravista.6 Chauí afirma que os gregos e romanos foram os pioneiros na política. patrocínios de jogos esportivos. A política é entendida pelos gregos como “vida boa”. Como nos diz Chauí (1994. segundo a autora. civil e público. a finalidade da vida política é a justiça (entendida como concórdia) na comunidade. Como vimos. Quem realmente participava da pólis? A cidadania era exclusiva dos homens adultos. mas “a poesia épica.tudo isto começa com os Gregos” (KITTO. bem como todo o vocabulário político que conhecemos atualmente refere-se aos gregos e romanos. p. de sorte que uma parte da sociedade . os gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômico-social de tipo despótico ou patriarcal. livres e nascidos no território da cidade. isto é. construção de templos e teatros. Em primeiro lugar. por exemplo. p. desde a metafísica até a economia. mesmo que. a matemática e muitas das ciências naturais . a sociedade era patriarcal e. 7 Não apenas a política inicia com os gregos. 377): A diferença de classe social nunca era apagada. Assim. para muitos cargos. da justiça. as mulheres também estavam excluídas da cidadania e da vida pública. de grandes doações em dinheiro à cidade para festas. Em segundo lugar. 1970. própria dos homens livres. da liturgia grega e do evergetismo romano. que era própria das civilizações orientais (1994. representante da divindade. como racional. convém examinarmos como era concebido e praticado o poder nas sociedades não greco-romanas. mesmo que os pobres tivessem direitos políticos. o drama. segundo a etimologia. já foram muito bem expostos nos trabalho de Held (1987) e Dahl (2001).. o poder político: pelo interesse de governantes e governados. Jaeger (s. Já as democracias modernas nascem com a formação dos 8 Sobre a questão do Estado em Platão.governar. 2001. em mais de um local [. Originalmente. 2003. Barker (1978). Com o desaparecimento das civilizações clássicas. Minogue (1998). Hegel (1975). Aquino (1988). 9 A proposição deste capítulo não é aprofundar o debate sobre a origem da democracia clássica dos gregos e romanos (democracia antiga).. para Platão o Estado nunca é o mero poder.. o poder despótico: pelo interesse do senhor e. pela etimologia. Arendt (1995)... 1996.d). a pintura ou a escrita. a política é apenas uma ciência do Estado.povo e kratein . Foi o historiador Heródoto quem utilizou o termo democracia pela primeira vez no século V antes de Cristo (OUTHWAITE.9 Há um entendimento unânime sobre as várias e possíveis “invenções” da democracia em períodos e espaços determinados da história e da geografia do Ocidente: “como o fogo. Aranha e Martins (1993). por um bom tempo ficará fora de cena no Ocidente. demos .1. Aristóteles tratou das três formas de poder: o poder paterno: pelo interesse dos filhos. a democracia parece ser inventada mais de uma vez. O desdobramento dos debates sobre o desenvolvimento do conceito de democracia. a democracia desaparece juntamente e. sugerimos alguns autores que tratam o tema: Anderson (1998). mas sempre a estrutura espiritual do homem que o representa”. No entanto. p. Também Aristóteles tratou sobre o tema na obra A Política. para Platão. A democracia grega era uma democracia direta em que os próprios cidadãos tomavam as decisões políticas na pólis. significa. tratou da política e do Estado ideal 8. funções e divisões do Estado sobre as várias formas de governo. Tratou das formas ideais e degeneradas de política. 4. p. pois consistia em uma sociedade com um número pequeno de cidadãos. . isto é. Grécia e Roma consolidaram por séculos seus sistemas de governos. “. na obra A República. Kitto (1970). bem como os limites de seus pressupostos desde a democracia clássica ateniense até as vertentes contemporâneas. Este foi o primeiro tratado sobre a natureza. 1330) afirma que: “. p. E o governante. que se reunia e administrava o governo de forma direta. das coisas de que vale a pena preocupar-se na ação” (JAEGER. possibilitando e permitindo a participação de um significativo número de cidadãos.. 179). de origem grega. entre outros. 19).1372). Jaeger. O modelo de democracia dos antigos foi denominado de democracia pura.50 O filósofo Platão. BOTTOMORE. na Paidéia (2003. Atualmente o conceito de política se ampliou e refere-se a atividades que de alguma forma têm por referência a pólis. deve conhecer os valores supremos. Pinsky (1984) e Coulanges (s/d).] depende das condições favoráveis” (DAHL. A origem do conceito democracia A palavra democracia.2. p. Chauí (1994). porém. a da democracia indireta (também chamada de democracia representativa): “essa combinação de instituições políticas originou-se na Inglaterra. É certo. 25). a democracia desapareceu por séculos e. mesmo que a democracia inventada pelos gregos nos séculos V e IV a. Impulsionado pelas revoluções liberais. lenta e gradativamente. ela não deixou de significar um avanço em relação às tiranias teocráticas das civilizações orientais que a antecederam. arte e arquitetura soberba. Uma boa parte dessas repúblicas. como Florença e Veneza. e a entusiástica redescoberta do mundo antigo da Grécia e de Roma (DAHL. fosse elitista e escravista (participação restrita). Nota-se que. A complexidade da sociedade moderna exige uma outra forma de organização política. liberdade e propriedade). mas só os homens livres participavam: “abaixo dos homens livres estariam os escravos” (p. desenho urbano incomparável. Tem-se aí a consolidação da democracia liberal. É assim que. faziam experiências com Assembléias Locais. 2001.. eram centros de extraordinária prosperidade. p. o direito de voto era para apenas 5% da população acima dos vinte anos de idade. a defesa dos direitos individuais (vida. como a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688/89). foi só no final do século XVIII e no século XIX . Bem mais tarde. convocadas esporadicamente.C. sob a pressão de necessidades. refinado artesanato. os Vikings. p. essas repúblicas floresceram em uma série de cidades italianas. por John Locke. Logo após este período. na Noruega. principalmente.C. Já do ano 600 ao ano 1000 d. em 1832. emerge o Parlamento Representativo das Assembléias. defendida. a democracia reaparece gradativamente nas cidades do Norte da Itália no período renascentista: Durante mais de dois séculos. nos Países Baixos. Também na Inglaterra. 29). 2001. a democracia vai consolidando-se nas sociedades avançadas da modernidade. depois disso. que tais direitos foram restritos a uma pequena parcela da população e que a desigualdade perdurou por muito tempo: na Inglaterra.51 Estados nacionais e tendem a configurar-se de maneira um tanto diferenciada. a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). na Escandinávia. durante o reinado de Eduardo I. nos séculos XV e XVI. 29). na Suíça e em qualquer outro canto ao norte do mediterrâneo” (DAHL. música e poesia magnífica. o homem moderno passa a ver garantida. de 1272 a 1307. nas suas respectivas Constituições. ainda no Período Medieval. O que está em jogo nas constituições liberais e nos sistemas políticos modernos são única e exclusivamente os interesses da classe burguesa e o freamento da participação para o restante da população. pois o mesmo era. que deu autonomia ao homem grego de pensar por si só. a democracia foi uma criação da genialidade dos gregos. A passagem da predominância do mundo rural da aristocracia (donos de terras) para o mundo urbano vem acompanhada de outras mutações igualmente importantes.11 No chamado período arcaico. ocorreram grandes alterações com o desenvolvimento das atividades comerciais. da moeda. 12 Em oposição à idéia aristocrática de poder. de certa forma. mas a afirmação da democracia é recente. É importante ressaltar que o termo “democracia” não pode ser entendido sob a tradução cômoda e reducionista de ser o “governo do povo”.C.52 que a idéia voltou a se tornar importante. das leis escritas e culminaram no aparecimento de uma nova racionalidade. . BOTTOMORE. 21). É inconcebível entender as civilizações antigas sem o mar. No século V havia talvez de uns 80 a 100 mil escravos em Atenas para 30 a 40 mil cidadãos (WETERMANN Apud ANDERSON. no final do século VI a. 1998. 176). sobretudo. e só no século XX é que ela se viu devidamente afirmada na prática10. como o surgimento da escrita. (séculos. desenvolveram-se as concepções de cidadania e de democracia. ainda. a filosofia (logos). 1998. segundo Anderson. O termo foi concebido a partir das profundas reformas sociais e políticas de Clístenes. p. mas a partir da própria razão do homem. É somente depois da Primeira Guerra Mundial que a desaprovação geral da democracia foi substituída pela aprovação generalizada (OUTHWAITE. sem as formas representativas das democracias modernas. Para os gregos. É necessário ressaltar. Como vimos. o que determinou o aparecimento de diversas pólis (cidades-estados) na Grécia Antiga.). A conseqüência de tais alterações para a política se faz sentir de maneira diferente conforme o lugar. o cidadão poderia e deveria atuar na vida pública independentemente da 10 É claro que houve muitas experiências democráticas. ou seja. p.C. A origem do cosmos e do homem não será mais explicada a partir dos mitos e das divindades. que eram um tipo de distrito territorial composto por homens livres capazes de tomar as decisões da “cidade” ( pólis) isto é. mediterrâneas. que as civilizações greco-romanas eram. Mas em Atenas. p. que viveram o seu momento de apogeu no século V a. “democracia” representava o governo dos demos. dependiam desse mar para o intercâmbio comercial e cultural: “O transporte marítimo era o único meio viável para a troca de mercadorias a média e a longa distância” (ANDERSON. uma forma direta de exercer a ação política. 1996. 180). VIII a VI a. p. 11 12 Conferir o artigo de Karnikowski (2000).C. mais precisamente da pólis (cidade-estado) de Atenas. como vimos na página anterior. 20). “condutor do brilho duvidoso da Antigüidade” (Idem. 41) apresenta uma diferença substancial entre a pólis e a família.000 pessoas. eram considerados cidadãos aproximadamente 10% da população ativa da cidade. totalizando mais de 160. p. Assim esse homem.do estudo e do poder (direito de comandar politicamente todos os interesses da pólis. de uma minoria.o ser da filosofia.. participa dos banquetes sagrados e recebe sua parte das vítimas. p.16 A mulher era considerada o “não ser”. na família há diferenças: “A pólis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer ‘iguais’. Segundo Anderson (1998. As mulheres. Atenas talvez tivesse uma população de 250 mil pessoas. o que daria dois escravos para cada cidadão” (BARKER. o pensamento filosófico. Segundo alguns teóricos. 62). de participar da academia (culto à beleza física) . no dia em que se inscreveu no registro dos cidadãos. 16 “O cidadão era o homem cujos pais fossem ambos atenienses natos. ii) os metecos. o governo restringiu o direito de cidadania: somente os filhos de pai e mãe atenienses seriam considerados cidadãos. ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade”.. e Atenas”. como leis e normas administrativas).14 No entanto.53 origem familiar. tendo o mesmo direito à palavra e à participação no exercício do poder. p. 110) que “só três poleis tinham mais de 20 mil cidadãos . “é todo o homem que segue a religião da cidade. apenas 10% dos atenienses eram considerados cidadãos (cerca de meio milhão de habitantes). Na verdade. 1988. 15 Segundo Aranha e Martins (1993. na pólis todos são iguais. “É verdade que havia ali uns 80. p. A fim de reduzir as despesas do Estado. na Cicília. cuidava dos 13 Hannah Arendt (1995. p. 1978. que honra os mesmos deuses da cidade. 200). escravos e bárbaros) de cada cidade-estado são divergentes entre os estudiosos. os outros 80% eram considerados ‘bárbaros ou comuns’ (THOMAS. Este total inclui: i) cidadãos. p.Siracusa. Os escravos e os bárbaros não podiam tomar parte dos ambientes sagrados.) o que tem o direito de aproximar-se dos altares e. ou estrangeiros . opondo a democracia à aristocracia e o ideal do cidadão ao do guerreiro. podendo penetrar no recinto sagrado onde se realizam as assembléias. classe ou função. 176). sendo 20% da população.15 O homem (cidadão) era detentor do saber . assiste às festas. (. p. e participa dos panegíricos. A produção cultural. segundo o teórico Coulanges (s/d).000 a 400. p. 14 Os dados sobre o número exato de habitantes (cidadãos. Acragas (Agrimento). 45). isto é. e apenas 40. Ainda sobre a população de Atenas: “A população total de Atenas na época pode ser estimada de 300. 135). a academia eram uma exclusividade dos varões. apenas 10% da população eram considerados cidadãos em Atenas.13 Todos são iguais. Equiparada aos escravos. as mulheres e os escravos. os metecos (estrangeiros) e os escravos continuaram desprovidos de quaisquer direitos políticos (AQUINO.000 habitantes.000 escravos de ambos os sexos. acompanha as procissões.000 cidadãos. Ser cidadão. 1967. jurou praticar o culto dos deuses da cidade e por eles combater” (s/d. trezentos mil eram escravos e cinqüenta mil metecos (estrangeiros). o importante é que se desenvolveu uma nova concepção do poder. 191). sendo excluídos os estrangeiros. tinha direito de filosofar. Diz Kitto (1970. suas esposas e seus filhos. igualmente.17 O filho.não somente porque eram propriedade de outrem. cujo número se estima em 80. Também Eurípedes e Isócrates deixaram seu testemunho em favor da democracia. das decisões da pólis.18 Algumas características principais da pólis grega: reduzida expressão territorial. nasce. o pensamento político e o Direito Constitucional. garantem a sobrevivência física da espécie. 32).000”. 196).56). Mulheres e escravos pertenciam à mesma categoria e eram mantidos fora das vistas alheias . dedicada a funções corporais” (ARISTÓTELES Apud ARENDT. que consistiam senão a maioria. “As mulheres que. e os trabalhadores escravos. 82-83). era uma democracia escravista. 19 Péricles faz o elogio da democracia. o grego é. Segundo o estadista. sendo candidato em potencial para exercer a cidadania. ou o conjunto dos cidadãos. p.19 Agora (Praça Pública) de Atenas. Diz Isócrates: “Estabelecemos entre os outros a nossa Constituição” (p. Livro I. 17 A função essencial das mulheres.20 residentes. incluindo as crianças. p. 1995. o centro da vida política é o povo.64) . da vida” ( Política 1254b25). 1973. p. mas porque a sua vida era “laboriosa”. de preferência.54 afazeres “domésticos”.000. o homem dado aos debates na Ágora. 1973. e que chegavam a 45. pois o trabalho escravo era a base da vida econômica da sociedade. a democracia ateniense é a escola da Grécia e ressalta seu aspecto original: “não imitamos a Lei dos nossos vizinhos” (PRÉLOT. ou a mais de 90. iii) os escravos. cuidavam das necessidades (físicas). contanto só os adultos. a quem os atenienses dispensavam tratamento generoso. não possuíam quaisquer direitos civis ou políticos. por excelência. portanto. O escravo servia de mão-de-obra para sustento e manutenção dos cidadãos (60 mil para 30 mil cidadãos). aos discursos e às discussões políticas (PRÉLOT. 18 A democracia ateniense. eram os trabalhadores que “com o seu corpo. deveria ser homem. Em síntese. o conceito e a prática da democracia ateniense (no tempo de Péricles). além de serem equiparadas aos escravos: Aristóteles descreve que mulheres e escravos eram mantidos fora da vista do público. na Grécia. servia como instrumento de procriação. Livro I. surge nas cidades-estado gregas. com seu corpo. segundo Aquino (1988. pela primeira vez na história. era apenas a procriação. não participando.000. pelo menos uma parcela considerável da população da Ática. os cidadãos gozam intensamente de direitos de participação política. p. 9). Uma democracia escravista A brilhante civilização grega no período clássico (séculos V e IV a. 26). na indústria. Para isso muitos pensadores da Antigüidade clássica não apenas aceitaram. Segunda: os escravos não poderiam ser maltratados. p. que viveu entre os anos de 447/433 A. Não existe cidadão nem pólis sem a contribuição massiva dos escravos. GG. Alguns afirmam que existiam de 3 a 7 escravos para cada cidadão. pois a massa de trabalhadores manuais é hoje escrava ou estrangeira” (ARISTÓTELES Apud ANDERSON. a prática da escravidão seguia algumas regras estabelecidas. Ictinos e Calícrates (arquitetos). são unânimes ao afirmar a necessidade do trabalho escravo para o ócio do cidadão: “O melhor Estado não fará de um trabalhador manual um cidadão.3. acima. dois grandes pensadores da Antigüidade. . mas justificaram a existência da escravidão. 1984. O Parthenon era um dos templos da acrópole de Atenas. Como vimos. na agricultura e na vida doméstica. costuma-se afirmar que a democracia grega era escravista. 27). p. Jaime Pinsky (1988) relata. se isso acontecesse. o seu 20 Ao centro a Ágora (praça pública = debate público). à direita. no capítulo primeiro de sua obra 100 Textos da História Antiga.55 4. Aristóteles e Platão. 278 / 282 Apud PINSKY.) emergiu sob o regime escravista.. símbolo do poder ateniense no fim do século V. Primeira: os escravos trabalhariam seis anos para seu patrão e. ele retornará a seu vendedor e o comprador que despendeu. Platão excluía os artesãos dos benefícios de participar da pólis: “O trabalho permanece alheio a qualquer valor humano e em certos aspectos parece mesmo a antítese do que seja essencial ao homem” (Apud ANDERSON. 1998. vindo. seriam libertos (ano sabático). Se um homem comprou um escravo ou uma escrava e (se) surgir reclamação. vê-se o Parthenon. é preciso considerar a democracia grega dentro da lógica da escravidão.C. que o comércio de escravos era uma prática comum entre os amoritas já no século XIX a. Fídias (diretor da obra). 1998. C. O número de escravos para cada cidadão difere de comentador a comentador. por isso. Os escravos eram utilizados na manufatura. e que o Código de Hamurábi justificava a escravidão: “Se um homem comprou um escravo ou escrava e (se) este não tiver cumprido um mês (de serviço) e (se) uma moléstia (dos membros) se apossou dele.C.1. p. seu vendedor satisfará a reclamação” (CÓDIGO DE HAMURÁBI. Entre os hebreus. no final do mesmo ano. “pois podemos observar que. “o escravo não pertence a si mesmo. 26-27). para Aristóteles.39-52). Os governantes deveriam ser os dotados de aptidões espirituais. 4.1-11. A política. e tudo aquilo 21 22 Pode-se conferir o Livro do Êxodo (21. apenas instrumento de ação.estavam reservados os trabalhos mais humildes. Esta norma já estava estabelecida como direito dos povos. 20-21. A visão que Aristóteles tem sobre a mulher. morais e políticos. sendo homem. bem distinta do proprietário” (ARISTÓTELES. 1984. é coisa de outro. O escravo é propriedade de seu senhor.22 A necessidade do Estado é decorrente. A família apenas dá ao homem a sobrevivência física. das necessidades individuais. aquele homem que. isto é. então o escravo pertence ao senhor por completo. utilitário. segundo Aristóteles. faz parte do mesmo.56 dono (o patrão. sendo que o escravo pertence ao segundo e as máquinas ao primeiro. O Estado é. de um modo geral. 1253b 25ss Apud PINSKY. Levítico (25. sendo utilizado como mão-deobra para a sustentabilidade dos cidadãos. os escravos e os estrangeiros (bárbaros) é de seres excluídos da cidadania. portanto. O escravo. Geralmente os escravos provinham dos hebreus de outras nações ou eram comprados como forasteiros que peregrinavam por terras hebraicas. 12). A escravidão não era só admitida como até justificada. Os escravos estavam submetidos ao poder de seus amos. a despeito de sua condição de homem. em todos os povos.escravos e estrangeiros . esse é naturalmente escravo.21 Até mesmo o grande filósofo grego Aristóteles justificava a escravidão por considerar que há homens escravos pela sua própria natureza e somente um poder despótico (legítimo) é capaz de governar. O escravo era considerado incapaz para exercer a cidadania. In. Só o Estado poderia dar ao indivíduo proteção para que ele realizasse seus ideais éticos. Livro I. 22). o escravo é uma espécie de homem de segunda categoria. Aristóteles difere os instrumentos de produção dos instrumentos de ação. p. Conferir Minogue (1998. Por natureza. BÍBLIA SAGRADA. No Império Romano. era considerado um bem animado que estava a serviço de outros instrumentos. a sofrer duras penas). . senão a outro. Àqueles que não possuíam dotes intelectuais . o amo tem sobre os escravos poder de vida e de morte. O homem só sentiu falta do Estado quando a satisfação de suas necessidades elementares não bastava. é uma propriedade e uma propriedade sendo de outra. p. Leis. s/d. COULANGES. o conceito de justiça deveria contemplar a justiça a todos os homens e.2. na verdade. da maneira mais íntima. p. A Política. XLVII. pois a cidade não lhe devia nenhuma justiça” (ARISTÓTELES. a mais antiga paidéia dos gregos. “Admitir um estrangeiro entre os cidadãos é ‘dar-lhe participação na religião e nos sacrifícios’ (DEMÓSTENES. 34. 12. não contém o mesmo significado que entendemos atualmente. 15). “O estrangeiro (bárbaro) não era cidadão” (AQUINO. o contrário: “O estrangeiro é aquele que não tem acesso ao culto. ou “pertencesse a alguma tribo selvagem da Trácia. estimá-lo mesmo se fosse rico ou honrado. p. não era um termo de desprezo ou repugnância. A filosofia é “filha” da pólis O homem grego abandonou. sendo estrangeiro23. p. O bárbaro que. Por isso a religião romana dizia que o túmulo do escravo era sagrado. de certa maneira. 136). 4. 92. nem ser humano era considerado. 4. 113.25 Os filósofos fundamentavam suas idéias em conceitos universais. para os gregos. mas apenas era considerado bárbaro “aquele que não falava grego”. era mais bem tratado que o estrangeiro. VI Apud COULANGES. 24 É importante mencionar que a palavra bárbaro. s/d. p. não tendo sangue grego. 1062) acrescenta Jaeger: “A filosofia grega só pode ser avaliada na sua importância como membro do organismo da cultura. 191). A origem da filosofia na Grécia Para Werner Jaeger (2003. velar por ele. 135). Por exemplo. s/d.7. 137). 136): “Podia-se acolher bem o estrangeiro. tratavam-no como um escravo e puniam-no sem processo. Apud COULANGES. 114 Apud COULANGES. s/d. especialmente o capítulo VIII. que. desde que seja ligada. . 24. ou do Egito. ou a uma das luxuosas cidades do Oriente. quando já o fosse de outra cidade” (PLUTARCO. I. da qual participava do culto.1. era punido com a morte.2. IN Neaeram. tít. à história da cultura grega”. sendo membro de uma família. 1062). tinha sido um país organizado e civilizado muitos séculos antes de a Grécia existir (KITTO. 2. p. Pro Caecina. não apenas a 23 Se ao cidadão dá-se o direito de participar das decisões e dos cultos da cidade. como os gregos bem sabiam. 89. mas não se lhe dava parte na religião e no direito. tít. “[em] última instância. Platão. 12). Liv. que tanto a Filosofia como a Retórica brotaram. p. 25 Sobre os gregos e a história da filosofia conferir o trabalho de Finley (1998). p. Em nota (nota 6. Sólon. Apud. “Ninguém podia naturalizar-se cidadão de Atenas. os deuses protegiam-no.57 que se adquire por intermédio do escravo pertence ao amo” (PINSKY. 24 4. As leis da cidade não existiam para ele. O escravo. 91. mas não considerava igualmente sagrado o do estrangeiro” (Digesto. Se entrava no recinto sagrado que o sacerdote havia delimitado para a assembléia. 1970. ao estrangeiro. 1984. estava ligado à cidade por intermédio de seu senhor. Cícero. 1988. p. III. XI. s/d.3. 136): “O estrangeiro não tinha direito algum. foi do ventre materno da poesia. Se cometesse algum delito. a explicação mitológica (religião) e passou a dar explicação racional para os problemas de ordem cosmológica (origem do mundo) e antropológica (origem do homem). p. liv. a quem os deuses da cidade não protegem e nem sequer tem o direito de invocá-los” (COULANGES. aos poucos. e à margem desta origem não poderiam ser compreendidas”. p. diz-se que “a Filosofia é filha da pólis” e muitos dos primeiros filósofos (os chamados pré-socráticos) foram chefes políticos e legisladores de suas cidades. nada mais nada menos que um cidadão. tão cedo se dedicará ao esporte como se sentirá mole e inativo ou entregue apenas aos interesses especiais. há um paralelismo entre Estado e Homem. na Grécia. cidadão por excelência: “O filósofo foi.28 26 Para Platão. outras vezes retira-se para o campo. até chegar ao tirano. pois permitia que a falsidade e a incompetência. Às “formas estatais da timocracia. da democracia e da tirania. Às vezes lança-se na política. p. foi chamado a “dar leis” à sua cidade ou a uma outra. Os filósofos trouxeram importantes contribuições para o pensamento político. oligárquico. Platão distingue um tipo de homem timocrático. da oligarquia. Críticos dos costumes e da sociedade do seu tempo foram também adversários do regime democrático. Aristóteles. A sua vida carece de ordem. Por serem contemporâneas. na sua oposição à democracia 27. estabelece diferentes graus de valor. Este homem é uma antologia de diversos caracteres e alberga um tesouro de ideais que se excluem uns aos outros” (PLATÃO Apud JAEGER. XVII. por exemplo. durante um longo período inicial. Por sua origem. sua finalidade e suas formas. às vezes. se impusesse26. mas ele a chama de vida formosa.entre estas últimas coloca os escravos. . desde que apoiada na vontade da maioria. tendem para o mando: outras para obedecer . como beberá água e emagrecerá. e entre esses tipos de Homem. como defendiam os sofistas. A visão negativa acerca da democracia perdurou entre os intelectuais até por volta do séc. por entenderem que a sua base não era o saber verdadeiro. 2003. p.58 interesse de grupos. levanta-se e fala. democrático e tirânico. 27 Sobre a concepção de “Homem Democrático” para Platão: “Tão cedo viverá entre canções e vinho. defendia a escravidão e o predomínio masculino como uma decorrência da própria natureza: há pessoas que. ou então dedica-se à especulação. A esses filósofos devemos a distinção entre poder despótico e poder político. 28 Ser filósofo é ser. último grau da escala e reverso do homem justo” (JAEGER. por natureza. p. segundo Castoriadis (1987. 928-929). por achar formosa a vida rural. a existência de concepções elitistas acerca da natureza humana: eles não acreditavam na igualdade fundamental entre os seres humanos. Sólon é o exemplo mais célebre”. 2003. Por isso. liberal e feliz. Política e Filosofia nasceram na mesma época. tal como as diversas formas de Estado. 950). a filosofia não cessou de refletir sobre o fenômeno político. Pesou também. por exemplo. elaborando teorias para explicar sua origem.114). a “arché” . pela razão. Os pré-socráticos Heráclito de Éfeso29 Pode-se afirmar. Outros importantes pensadores surgem neste período: Anaxímines teorizou que a natureza se desenvolveu a partir do ar (a própria alma é ar). O primeiro grande filósofo que a história apresenta é Tales de Mileto. Foi o primeiro a lançar as bases do materialismo espontâneo ou da filosofia da natureza: “Tudo na Natureza derivava de um elemento básico. Acesso em 28 de novembro de 2007. que procurou. Anaximandro é a figura mais importante dos físicos milesianos. Os Primeiros Filósofos.que pudesse explicar toda a realidade cósmica. que a preocupação essencial dos primeiros pensadores gregos era com o cosmos (natureza). é a água o elemento primordial de onde nascem todos os seres e que compõe os mesmos. Anaximandro 31. E chega a esta conclusão: uma vez que as chuvas geram a fecundidade e todos os seres vivos têm necessidades de umidade. São Paulo: Editora Nova Cultural. Remonta. 1999. cap. Foi ele também o criador do primeiro mapa da terra e da geografia científica. 212). aos tempos da filosofia nascida em Mileto. p. o primeiro princípio . afirmou que o apeiron (matéria) é a base do mundo. História da Filosofia. inicialmente. p.183).mx/images/fotos/tn_200411183168. 29 Disponível em http://www.yucatan. para elucidarmos o espírito daquela filosofia arcaica. 31 Para Jaeger (1993.2. a origem da Matemática grega. .gob. 30 Ver também OS PENSADORES. essência) de todas as coisas. no qual procuravam a arché (origem.jpg.educacion. Nele se revela a prodigiosa amplitude do pensamento jônico. Foi ele quem primeiro criou uma imagem do mundo de verdadeira profundidade metafísica e rigorosa unidade arquitetônica. igualmente. Especialmente.59 4. É o único de cuja concepção do mundo podemos obter uma representação exata. 1988.2. nascido no século VI30. a água” (AQUINO. 3. VI a. p. Acreditavam que o número era a essência do Universo.C. “a medida de todas as coisas” (a matemática = geometria e Aritmética) 32.com/fotos/968. Na visão de Aquino (1988. 33 Disponível em http://www.mundocitas. um acorde (ou harmonia) mais simples é produzido quando o comprimento das cordas está na razão de 3:4:5. é uma relação numérica. A contribuição dos sofistas na construção da política grega Protágoras: o mais iminente sofista. examinando a música. ligada aos números: “Conta-se que Pitágoras. 28).2. Com Heráclito (fim do séc. numa relação proporcional simples: diminuindo pela metade o comprimento da corda obtém-se uma oitava acima. e se desagradável.33 32 Pitágoras também esboça uma teoria da harmonia musical. é porque a relação entre os números não se encontra em uma proporção justa” (OS PENSADORES. Demócrito (470 a.C. Procurou distinguir aquilo que era objeto puramente da razão (o que chamou Verdade) e o que era dado pela observação.60 Na segunda metade do século VI a. foram criados os fundamentos da concepção dialética do mundo. Para Parmênides de Elea (fim do século VI a. devir (vir-a-ser). sem harmonia. teria descoberto que o som varia de acordo com o comprimento da corda.C.. surgiram os Pitagóricos (escola fundada por Pitágoras).C) afirmava que a natureza era composta de partículas sólidas e indivisíveis . Parmênides abriu a discussão que ainda hoje persiste. em suma. idealismo e materialismo.C.o que denominou opinião. entre teoria e prática. 213). o ser é e o não-ser não é (o devir é impossível).os átomos. pelos sentidos .jpg. p. – 370 a. como as questões entre a razão e a experiência. 1999. Acesso em 27 de novembro de 2007.). a música. . e começo do século V). pois “tudo está em constante movimento”. cujos arranjos e movimentos condicionavam a diversidade dos fenômenos naturais e sociais. 4. O desenvolvimento da nova ordenação democrática. Constataram a convenção humana. Esses novos mestres se chamavam sofistas.61 A partir da metade do século V. tornou possível a participação dos cidadãos comuns na administração da pólis. As técnicas de discurso não procuravam a verdade. os sofistas destacaram-se como mestres do saber político e da retórica37. em alguns casos. os mesmos caminhos” (JAEGER. Devem ter sido eles os seus criadores. . estabeleceram os fundamentos pedagógicos. após as guerras persas até o final do século seguinte. 1999. aos usos e costumes de diferentes povos e lugares. 16). falseavam-na 34 35 Ricos proprietários de terras (OS PENSADORES.. Como eles não tinham essa formação. assume a vida política de Atenas. éticas e religiosas. sem as quais um político estava privado de sua principal virtude. Para se ter esta instrução. Em decorrência dessa necessidade. Não educação popular. o poder político da antiga aristocracia e da tirania foi substituído. em conseqüência dessa observação. Esta é a capacidade da oratória de cada um que determina o que é justo e não o conhecimento profundo das leis. em grande parte. foi necessário educá-los para poderem competir em igualdade de condições e alcançar o objetivo colimado na pólis. mas provar um determinado ponto de vista. Música e Astronomia. tinham acesso a várias formas culturais. que. Com efeito. No entanto. “Os sofistas foram considerados os fundadores da ciência da educação.”. Esses mestres eram itinerantes. pela democracia escravocrata. circulavam de terra em terra. e ainda hoje a formação intelectual trilha. Escreve Jaeger (2003.366): “Antes dos sofistas não se fala de gramática. 36 37 Ver o livro de Cotrim (2002). Desde os últimos tempos da Antigüidade formam juntas o chamado trivium. pagava-se. assembléias e tribunais. p. bastante caro. de retórica ou de dialética. sobreviveram a todo o esplendor da arte e cultura gregas. essa participação estava limitada àqueles que tinham eloqüência e persuasão. acabaram difundindo a idéia de que tudo é relativo35. com comícios. pela primeira vez. cuja cultura e formação política provinham da tradição familiar. o que não é o caso dos novos detentores do poder. que juntamente com o quadrivium constituíra as sete artes liberais. costumes e leis. em várias cidades gregas. comandada pela oligarquia34 que. Segundo Cotrim (1995)36. 2003. Sofista significa educador. Geometria. por vezes. por acordo e pelo hábito. Atenas é o centro da vida cultural grega. p. p. como os antigos representantes aristocráticos. Eles deveriam propiciar aos alunos habilidades da polêmica e da oratória. p. na cultura. 349). surgiram em Atenas mestres que propugnaram a constituição de técnicas de persuasão. de chefes políticos. 368): “Unida à gramática e à dialética.. O quadrivium dizia respeito a Aritmética. Ainda Jaeger (2003. sob esta forma escolar. Desse contato tiveram oportunidade de comparar as diversas instituições políticas. a retórica tornou-se fundamento da formação formal do Ocidente. mas formação de elites (educação dos nobres). “tudo é relativo”. Pródico de Cléos. não acreditavam na possibilidade de os seres humanos chegarem a um saber objetivo. de modo que. Hipódamos de Mileto. exatamente por não . da prosa artística. acerca da administração e do Estado. precisamente. isto é. Numa sociedade em que as decisões são tomadas pela assembléia do povo e onde a máxima aspiração é o triunfo. Necessitava. Aritmética. a convicção de que as leis e as instituições são resultados do acordo ou decisão humana: convencional. E. O aluno deveria conhecer as disciplinas que consideravam a palavra como tal: gramática e retórica. mas também pelas necessidades criadas pela prática democrática da sociedade ateniense. mas a liderança política passava pela aceitação popular. Trasímaco de Calcedônia. o tipo de treino que os ensinamentos dos sofistas proporcionavam. de que eles são os iniciadores.o relativismo . tem-se o abandono do pensamento mítico-religioso. porém. Qual era a preparação idônea para o ateniense que pretendia triunfar na política? Um político necessitava. Os filósofos foram severos adversários dos sofistas. Astronomia e Música. não somente pela mudança na circunstância filosófica. destacam-se: Protágoras de Abdera. Geometria. Hípias de Hélade. regras básicas e valores humanos. da Matemática. tudo isso tendo em vista a eloqüência. Antifonte. Essa indiferença ao tema de que se tratava e a tese que se defendesse levou ao desprezo às doutrinas. Como contribuição dos sofistas. O advento da democracia trouxera consigo uma notável mudança na natureza da liderança: já não bastava a linhagem. devendo o aluno ser capaz de defender qualquer tese. segundo Górgias. Este era. Crítias de Atenas. o poder político. com o ritmo próprio e distinto da poesia. depressa se fez sentir a necessidade de se preparar para ele. O trabalho com a palavra dependia do ensino da gramática. da crítica literária. possuir algumas idéias acerca da lei. mas a capacidade de convencer os demais. indubitavelmente. Górgias de Leôncio. a aceitação do racionalismo heracliteano da ordem do universo (uso da razão). boa ou ruim. Os sofistas contribuíram para o abandono da filosofia da natureza. Persuadir era tão importante que Protágoras chegou a afirmar: “Devemos tornar a parte mais fraca em mais forte”. Esta posição . Dentre os principais sofistas. a palavra é o dom com o qual podemos fazer tudo. Não descuravam. ser um bom orador para manipular as massas.62 conscientemente. Os sofistas eram relativistas. ainda. Alicidamos. verdadeira ou falsa. Assim. Cálices. Lécrafonte.combinava com a sua forma de ensinar a argumentar: não interessava tanto o conteúdo científico. que é também criação deles. universal. envenenar e encantar. acerca do que é justo e conveniente. atribuíram relatividade a todas as noções. Com elas. inaugura-se o eterno debate acerca das normas morais. homens e mulheres da época. O debate começa com os sofistas na filosofia grega.wikimedia. 4. É fácil compreender a transcendência destas reflexões da Sofística. de conhecimento (ajudou os seus discípulos a pensar de maneira diferente). A profissão de sua mãe o influenciou a ser “parteiro” não de crianças.) foi considerado o homem mais sábio da antiguidade clássica. Enquanto os pré-socráticos perguntavam “o que é a natureza ou o fundamento último das coisas?”. Acesso em 28 de novembro de 2007. como veremos. Fascinou jovens. acerca da lei natural ( phisis) e da lei positiva (nomos). Sócrates perguntava: “o que é a natureza ou a realidade última do 38 Disponível em http://upload.39 O tema central de sua filosofia eram as questões antropológicas (o conceito que o homem pode ter do próprio homem). Outra característica era o convencionalismo das instituições políticas e das idéias morais (tudo se resolve por convenções). 39 Para maiores informações sobre a vida e a filosofia de Sócrates conferir a obra Sócrates: vida e obra (1999). . O método socrático Sócrates.jpg/300pxSocrates_Louvre. mas de idéias. mas não termina com eles.38 Sócrates (470-399 a.63 concordarem com o seu relativismo. Era filho de Sofronisco (escultor) e Fenarete (parteira). Sócrates não fundou escola filosófica.jpg.2.org/wikipedia/commons/thumb/a/a4/Socrates_Louvre. tinha o método do diálogo (na Ágora e nos ginásios).C.4. no caso. Ambos eram mestres da retórica.64 homem?”. Ambos desafiaram os poderosos. com o desenrolar das acaloradas discussões ia. Diz Sócrates: “é do aperfeiçoamento da alma que nascem as riquezas e tudo o que mais importa ao homem e ao Estado”. Sócrates tomou parte dos assuntos políticos de sua época. preferiu morrer. In: OS PENSADORES. Demonstrar publicamente que um escravo era capaz. Mileto e Licon) Josten Garden – no livro O Mundo de Sofia traça um paralelo entre Cristo e Sócrates: Ambos eram pessoas carismáticas e considerados enigmáticos em vida. Sócrates não deixou nada escrito. por isso.40 A característica da filosofia socrática é a introspecção: “conhece-te a ti mesmo” (torna-te consciente de tua ignorância). dava a entender que era ignorante. colocando o debatedor. a personalidade intelectual e moral. em sua alma. a qualquer cidadão” (SÓCRATES. foi perseguido e condenado à morte. inteligente e eticamente operanti. sob a acusação de corromper os jovens. pregar falsos deuses (ateísmo). 1999. fingia que não sabia. da antigüidade até os dias de hoje. de ter acesso às mais importantes e difíceis questões científicas era sem dúvida provar que ele era pelo menos igual. 27). o filósofo conquistou amigos e inimigos. nossa sede racional. ou se teria sido outro o conteúdo da conversação de Sócrates e o escravo. combateu os vícios existentes na pólis. conhecemos sua obra graças aos seus discípulos Platão e Xenofonte. Dessa forma. Ambos acabaram 40 “No diálogo Ménon. p. não importa: a situação descrita por Platão é certamente representativa do menosprezo de Sócrates pelos preconceitos sociais da própria democracia ateniense. que foi retirado do oráculo de Delfos (templo). Teve a oportunidade de fugir (pena do ostracismo = exílio político). É preciso. se bem conduzido pelo processo educativo. que era o processo da “maiêutica” o momento de dar à luz novas idéias. aos poucos. Foi também um crítico da democracia de sua época. O método de Sócrates seguia dois passos: primeiro ele adotava uma posição de ignorante frente ao interlocutor. A resposta a que Sócrates chegou é de que a essência última do homem é a sua alma. O sábio grego foi condenado à morte. que achava que sabia. bem como criticaram os costumes de sua época. . psyche. do relato de uma fato efetivamente ocorrido. ou consciência. Platão descreve Sócrates praticando a maiêutica com um escravo e levando-o a conceber noções sobre intrincada questão matemática (relativa aos ‘irracionais’). diz Sócrates. em contradição até o mesmo se dar conta de sua própria ignorância. Nenhum deixou algo escrito. mas. Quem o condenou foram os poderosos da época (os acusadores: Anito. o que sabemos deles nos vem dos seus discípulos. A partir desse momento provinha o segundo passo. O pensamento socrático influenciou todo o Ocidente. foi um combativo guerreiro. Mesmo que não se trate. “bem pensar para bem viver”. com conhecimento de causa. conseguirá impor. 89). p. Sabe-se que no ano 380 Platão funda uma Academia (Escola de Formação Filosófica). 43 Platão é um crítico da pólis: “Platão calunia Atenas o máximo possível: graças a seu imenso gênio de diretor de teatro. cuja preocupação era. esta imagem: os homens políticos de Atenas Temístocles.eram demagogos. Platão menciona que esta falta de interesse não deve ser combatida pela coação ou por medo servil ou por castigo. segundo se crê.C. quando a civilização grega se encontrava em declínio. ao contrário dos filósofos anteriores. 44 “Platão permanecerá. exclusivamente. Acesso em 28 de novembro de 2007. que se preocupavam com o cosmos (ver pré-socráticos).41 Platão nasceu em Atenas em 420 a. sofistas (no sentido que ele impôs).2. corruptores da cidade. de sofista e demagogo. 1973. p. 915). 2003. A falta de uma tradição biográfica confiável compromete a verdade sobre este ilustre filósofo. 42 Platão argumenta que todo processo educativo de uma criança. 1987.jpg. esbarra na falta de interesse em aprender. oito anos ao pé do mestre” (PRÉLOT.wikimedia. com as questões humanas. 42 O filósofo não tomou parte em assuntos políticos.65 pagando com a vida e. ou a iniciação cultural da mesma. um vil entregue às paixões e às ilusões. de retórico.5. paradoxalmente permanecem vivos. 43 Teve como mestre Sócrates. seus poetas. por séculos futuros. seu povo. seus pensadores. a história” (CASTORIADIS.. influenciando todo o Ocidente com a sua filosofia. Platão e a busca do Estado ideal Platão. . Platão falsifica. Péricles .44 41 Disponível em http://upload. 4. Livro I. 115). mas deve-se aplicar métodos condizentes aos alunos à medida que “aprendem como quem brinca” (JAEGER. p.org/wikipedia/commons/4/4a/Plato-raphael. governo dos ricos) e. Platão. dando-lhes saúde. os guerreiros e os que se dedicam aos trabalhos produtivos). Platão dividia o Estado em três classes: dos lavradores. a política como arte de tornar os homens justos e virtuosos. que protegem os lavradores e garantem a integridade territorial do Estado. que fornecem os alimentos. igualmente. p. ou seja.87-120). contentamento e descanso. pode-se concluir que o diálogo da obra é uma descrição da república ideal. capítulo II. A função principal dos governantes. satisfazendo-os. O mundo perfeito. Livro I.ou na lei. consiste em assegurar a felicidade aos governados. dos magistrados.2968) . aristocracia (governo bom de um grupo) e a timocracia (desejo de honrarias). e posiciona-se contra os ideais políticos sofísticos. 46 Norberto Bobbio (1997. o mundo ideal é o verdadeiro: “A terra é uma profunda caverna que a luz da razão não consegue atravessar. 45-48). Já as formas de governo consideradas corrompidas são: a tirania (governo mau de um só). Considera. A democracia é a pior das boas e a melhor das más formas de governo. O Político e As Leis (mais especificamente em A República e As Leis.46 Platão distingue um governo bom de um ruim pelo consenso e a força (legalidade ou ilegalidade). Durant (2000. a república/democracia (governo das multidões). diante de nossa vida. p. que consiste na composição harmônica de três categorias (os governantes filósofos.alguém que personifique a arte de governar .66 Uma das principais passagens da filosofia platônica está expressa na alegoria da caverna. porém sob o governo dos melhores). desapegados dos interesses 45 Sobre a filosofia política. a passar nas paredes escuras. composta de homens idosos. Conferir Rowe (1989.A República. para os quais o direito nasce da força. p. 26). A classe governante. “Platão: A busca de uma forma ideal de Estado”.45 Após a leitura da obra A República. o Estado ideal de Platão é o perfeitamente justo. Somos prisioneiros acorrentados nessa caverna e os objetos que vemos são meras sombras da realidade. Platão apenas questiona se a autoridade final no Estado deve recair num indivíduo . Platão elaborou três obras que mencionam e enfocam a política: . Platão. As formas ideais de governo são: a monarquia. Na obra Política. que o Estado de Platão inexiste no plano terreno. a oligarquia (governo mau de um grupo. Embora tenha tratado de temas políticos em outras obras. existe apenas no plano ideal. por fim. Conclui-se. considerada a melhor de todas (é o governo bom de um só). no Livro VIII da República. na República. o mundo real. que se encarregam do bem-estar geral dos habitantes do Estado. trata sobre as formas de governo e classifica em ideais e corrompidas. referente a Platão. dos guerreiros. Para Platão. p. na qual princípios éticos e políticos são combinados. Prélot (1973. existe numa idéia (no céu) e o mundo em que vivemos é apenas uma imagem imperfeita”. Platão concebe um Estado ideal onde a justiça atende aos desejos e necessidades humanas. na qual Platão faz oposição entre o mundo ideal e o real. é sobretudo nessas duas que ele desenvolve uma teoria do Estado. que Platão era adepto da sofocracia. Os magistrados fiscalizavam a educação para que o indivíduo fosse preparado a fim de exercer uma função para a qual tivesse melhor capacidade. no capítulo VIII “Platão. Bem pelo contrário (PRÉLOT. 2003. A convite do tirano de Siracusa. o Estado é que decidia quem poderia ter ou não ter filhos. ou os atuais governantes se tornassem filósofos” (ROWE Apud RECHEAD. p. também. nem Temístocles encontram mérito aos seus olhos. Seu modo austero de conduzir negócios públicos incompatibilizou-o com o governante. apresenta o idealismo platônico. 1973. 48 Para Platão. 1989. mais importância do que a dos trabalhadores e a dos guerreiros. Livro I. Nem Péricles. no entanto. p. p. “A proposta de Platão. Não durou muito. no que se refere ao governo filosófico: que os filósofos se tornassem governantes. assim. no livro A República. Platão como discípulo de Sócrates e menciona a obra A República como a primeira utopia da História. 49 Thomas (1967. ele incluía o filósofo. Platão teceu acaloradas críticas às lideranças políticas que conheceu ou que foram anteriores a ele. e o homem moralmente superior domina os seus sentimentos e. a poesia fala às paixões e instintos humanos. p. No Estado platônico. 17-28). entre os mais capazes. ele expressava uma confiança na força fundamental do Estado. quando se vê submetido a fortes emoções esforça-se por refreá-las (JAEGER. 104). Para assegurar uma “sadia” descendência. 72-82). Platão tentou pôr em prática seu ideário político. que sonhou com um mundo melhor”. preparar física e intelectualmente a juventude. o poder dos sábios.49 Assim como Sócrates. Platão entendia que só os mais inteligentes seriam capazes de governar e. 985). porque nenhum deles tornou melhores os seus concidadãos. ou seja. . O poeta. que o governo ideal seria o governo dos filósofos. Embora o pensamento político de Platão contivesse idéias utópicas. tem. para Platão. Era de competência do Estado. não há propriedade privada nem laços familiares.67 materiais e familiares. 47 Platão defende. não estava incluído na condução do Estado48. nem Címon. nem Milcíades.47 Vê-se. Eram os magistrados que escolhiam os mais notáveis para participar do grupo de filósofos e governantes. Somente eles teriam condições de administrar e comandar o Estado. p. A principal obra de Aristóteles sobre a teoria clássica das formas de governo é A Política. . o real. A obra também pode ser lida como uma história política de Atenas. nos seus objetos. estuda as várias formas de democracia e de oligarquia. construindo assim a primeira utopia da história. que está dividida.68 4. o primeiro.51 Para Aristóteles. a aristocracia (governo bom de um grupo). trata da origem do Estado.jpg. onde o filósofo registrou as várias formas e alterações constitucionais que passou a cidade de Atenas (PRÉLOT.arteblog. A cidade como realidade perfeita em Aristóteles Aristóteles. Destes. e a terceira aquela que se baseia sobre a vontade popular. o quinto.com. Aristóteles. Já Aristóteles. segundo a compreensão de Bobbio. trata das mudanças das constituições. 1973. 55). p. Foi autor da obra A Constituição de Atenas. o segundo da crítica às teorias políticas precedentes.5. “Platão simboliza o ideal. Platão representa a filosofia. três são as formas de governo e três são os desvios e corrupções dessas formas: As formas boas são a monarquia (governo bom de um só). dois (o terceiro e o quarto) são dedicados à descrição e à classificação das formas de governo. Segundo Prélot (1973. tal a sua observação metódica da realidade. 51 Aristóteles pode ser considerado como o fundador da Ciência Política. 175). o sétimo e o oitavo. afirmou que “este” é o verdadeiro mundo e a realidade está neste mundo. Livro I. 123). p. Foi o primeiro autor do direito Constitucional. o sexto. em especial a platônica. Livro I. ao contrário.br/images/mn/1181965835. tratam das melhores formas de constituição (lei fundamental de um Estado). acontecimentos e ações.50 Como vimos anteriormente.6. Platão projetou na República o Estado ideal. assim como Platão. que parece 50 Disponível em http://mundofilosofico. em oito livros (BOBBIO. Acesso em 28 de novembro de 2007. Aristóteles a ciência”. 1997. 69 apropriado chamar de “timocracia”, mas que a maioria chama apenas de “politie” que significa Estado ou Constituição. As formas más ou as degeneradas são: a tirania (governo ruim de um só); oligarquia (governo mau de poucos) e a democracia. Três são as formas boas de governo e três são os desvios e corrupção dessas formas: o Reino e o desvio tornam-se tirania; a Aristocracia e o desvio torna-se oligarquia e a Timocracia com seu desvio torna-se democracia. O critério para distinguir uma forma boa ou má de um governo é o interesse comum e o interesse pessoal, ou seja: quando um governo comanda pensando somente em seu benefício, temos o desvio e a degeneração; quando o governante governa em favor do interesse de todos, temos um governo bom e ideal. Aristóteles, na Ética a Nicômano afirma que das formas de governo citadas anteriormente “delas a melhor é o reino, e a pior é a timocracia (...) e a democracia é o desvio menos ruim: com efeito, pouco se afasta da forma de governo correspondente” (ARISTÓTELES Apud BOBBIO, 1997, p. 58). A reflexão de Aristóteles sobre a política é de que ela não se separa da ética, pois a vida individual está imbricada na vida comunitária. Diz Aristóteles que o objeto da ética é uma espécie de política52. A razão por que os indivíduos se reúnem nas cidades (e formam comunidades políticas) não é apenas a de um viver em comum, mas a de viver “bem” ou a boa vida. 53 Para que isso aconteça, é necessário que os cidadãos vivam o bem comum, ou em conjunto ou por intermédio dos seus governantes; se acontecer o contrário (a busca do interesse próprio), está formada a degeneração do Estado).54 O homem, para Aristóteles, é um “animal político”; isto significa que o homem tinha a necessidade de conviver na pólis, pois somente na “cidade” é que o homem pode realizar a virtude (capacidade), o que é peculiar dos gregos, sendo que os “bárbaros” não viviam assim.55 Para Aristóteles, a vida política destinava-se a garantir a qualidade e a perfeição da vida (PRÉLOT, 1973, Livro I, p. 135). O homem é o verdadeiro cidadão: “corajoso, moderado e liberal, 52 “E vê-se que esta conclusão está em conformidade com o que dizíamos, no início, isto é, que a finalidade da vida política é o melhor dos fins, e que o principal empenho dessa ciência é fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações” (Arist. Etic. Nic. 1099b; 30). 53 O fim da cidade, conforme a descrição de Prélot (1973, Livro I, p. 135), é não só assegurar aos cidadãos a vida e a sua conservação (zein), mas o viver bem (euzein). A vida política destina-se a garantir a qualidade e a perfeição da vida. 54 Aristóteles define a cidade grega como aquela que condiz em “viver como convém que um homem viva” (ARISTÓTELES Apud CHÂTELET, 1985, p. 14). 55 A pólis, para Aristóteles, é, segundo a descrição de Kitto (1970, p. 129), “o único ambiente dentro do qual o homem pode concretizar as suas capacidades morais, espirituais e intelectuais”; Barker (1978, p. 16), afirma que a “ pólis era uma sociedade ética”. 70 magnânimo, praticando a justiça, observando a eqüidade, comportando-se como perfeito amigo, em suma, o homem bom e belo” (p. 136). Nota-se que os filósofos gregos tratavam a política como um valor e não como um simples fato, considerando a existência política como finalidade superior da vida humana, como a vida boa, entendida como racional, feliz e justa; própria dos homens livres. A vida superior só existe na cidade justa e, por isso mesmo, o filósofo deve oferecer os conceitos verdadeiros que auxiliem na formulação da melhor política para a Cidade.56 Aristóteles justifica a escravidão por considerar que há homens escravos pela sua própria natureza57 e somente um poder despótico (legítimo) é capaz de governar. 58 Seu pensamento político está registrado nas obras A política e Ética a Nicômaco, e também nas cento e cinqüenta constituições que elaborou, das quais só restam fragmentos. O estilo prático, lógico e sistemático de Aristóteles contrasta com o de Platão, que era imaginativo, literário, poético e alegórico. A política (pólis - cidade), para Aristóteles, é uma ciência que deve procurar o bem-estar do homem59. Ela deve oferecer aos governantes, condições para adaptar sua forma de governo às necessidades do povo. Esse pensamento é decorrente do estudo e da observação dos diferentes métodos dos governos e das diferentes formas de condução de reformas administrativas. O seu livro A Política é resultado da observação dos governos de Creta, Cartago, Esparta e Atenas, e de estudos de obras de pensadores do passado, como Faleas, Hipódamo e Platão. Ele é um tratado da arte de governar. Sugere medidas práticas para superar impasses e aponta os defeitos dos sistemas políticos nas sociedades gregas. As necessidades dos indivíduos, segundo Aristóteles, são satisfeitas apenas dentro do Estado60. O homem só sentiu falta do Estado quando inexistia a possibilidade de satisfação de suas 56 Uma das razões para que o homem se una na pólis, “não é apenas a de viver em comum, mas a de viver bem” (ARISTÓTELES Apud BOBBIO, 1997, p. 58). 57 “É evidente, portanto, que alguns homens são livres por natureza, enquanto outros são escravos, e que para estes últimos a escravidão é conveniente e justa” (Arist. Pol. I; 20). 58 A visão que Aristóteles tem sobre a mulher, os escravos e os estrangeiros (bárbaros) é a de seres excluídos da cidadania. Conferir Minogue (1998, p. 22). 59 “Cumpre-nos tentar determinar mesmo que em linhas gerais, o que seja esse bem e de que ciências ou faculdades ele é objeto. E, ao que parece, ele é objeto da ciência mais prestigiosa e que prevalece sobre tudo. Ora, parece que esta é a ciência política, pois é ela que determina quais as ciências políticas que devem ser estudadas em uma cidade-estado...” (Arist. Et. Nic. 1094a; 25). 60 “A prova de que o Estado é uma criação da natureza e tem prioridade sobre o indivíduo é que o indivíduo, quando isolado, não é auto-suficiente; no entanto, ele o é como parte relacionada com o conjunto. Mas aquele que for incapaz de viver em sociedade, ou que não tiver necessidade disso por ser auto-suficiente, será uma besta ou um deus, não uma 71 necessidades elementares. Só o Estado poderia dar ao indivíduo proteção para que ele realizasse seus ideais éticos, morais e políticos, enquanto que a família apenas dava ao homem a sobrevivência física. O Estado é, portanto, utilitário. A escravidão não era só admitida como justificada. Os governantes deveriam ser os dotados de aptidões espirituais. Quanto à propriedade privada, Aristóteles não comungava com Platão pela abolição da mesma; ao contrário, pugnava por uma organização adequada da propriedade dentro do Estado. Para que o indivíduo pudesse realizar o seu bem-estar, o Estado deveria favorecer a liberdade individual para o progresso da instituição humana.61 Para cumprir bem suas funções, o Estado deveria: a) ter um governo que ordenasse e regulasse a vida do próprio Estado; b) distribuir entre os cidadãos os órgãos administrativos do Estado. Segundo Aristóteles, a forma de governo decorre de vários fatores: clima, riqueza econômica, situação geográfica, número de cidadãos e do “caráter” de um povo. Para classificar uma forma de governo, dever-se-ia verificar o número de pessoas que participam do mesmo, depois examinar quais os objetivos desse governo, ou seja, quais os interesses que eles defendem. Desse modo, Aristóteles entendia que havia formas puras e impuras de governo. Se o governo atendesse ao bem-geral de todos os cidadãos, o mesmo seria puro e, ao contrário, quando o governo atendesse ao interesse dos grupos que estão no poder, seria, então, impuro. Assim, se um governo representado por uma única pessoa atendesse ao bem-estar dos cidadãos, seria uma monarquia; porém, se o monarca agisse em benefício próprio, ter-se-ia uma tirania. A aristocracia era um governo de minoria que agia no interesse da comunidade; passando a usar o poder apenas no interesse do grupo, seria uma oligarquia. Quando a maioria participa do governo, tem-se a democracia; porém, quando ela é apenas pretexto para a defesa de interesses pessoais tem-se a demagogia. Para Aristóteles, cada povo é que deve escolher a sua forma de governo. Isso porque distinguia Estado e governo. O Estado é o conjunto dos cidadãos e o governo o conjunto de pessoas que ordenam e regulam a vida do Estado, mediante o exercício do poder. Para um bom governo, é parte do Estado” (Arist. Pol. II: 10). 61 Ver Aristóteles. Pol. II; 5 a 24. serve de referência até os nossos dias. evitar-se-ia que uns se tornassem muito ricos e outros. 69-107) . Política. A constituição é um modo de organizar aqueles que vivem no Estado”.. A idéia de um poder legislativo. Para a formação do Estado. sua democracia. “.. Para Aristóteles. O Estado é a soma total dos cidadãos” (Aristóteles. às esquadras permanentes e às relações internacionais (talvez porque admitisse guerras de conquista). 62 “Obviamente. com sua política. p. seus pensadores. com poucos habitantes. 63 Para um aprofundamento da teoria política de Aristóteles. Aristóteles apontou alguns critérios: ter um pequeno território. Por exemplo. Os que participassem do governo deveriam ser proprietários de terra.72 necessário bem distribuir o poder entre os órgãos que administram esse ente público. para facilitar o intercâmbio comercial. conferir o Capítulo II de Durant (2000. Porém. para que todos pudessem se conhecer e ter acesso à vida pública. é um capítulo que o estudante deverá compreender muito bem para que note a influência dessa civilização sobre o pensamento ocidental. 1 a 2). extremamente pobres.63 A Grécia clássica. ele não deu maiores atenções às questões tributárias. às dívidas públicas. as atividades do estadista e do legislador concernem de perto ao Estado. Com isso. a desigualdade social é fonte de injustiça. A cidade deveria estar perto do mar. III. no próximo capítulo o estudante verá como os gregos influenciaram os romanos. ao custo dos exércitos. executivo e judiciário nasceu dessa concepção administrativa62. Aqui. mas a velhice do espírito é a sua maturidade perfeita. “Graças ao cristianismo.5. pois o pensamento e a reflexão elevam-se ao nível universal. corresponde à velhice. 1975. a idade adulta é representada pelos impérios romano e germânico. com o objetivo de fortalecer o Estado. 68). senão duro e amargo labor (FLOREZ. 266). Com o mundo romano. esse povo alcançou a consciência de que o homem é livre como homem e que a liberdade de espírito constitui sua mais própria natureza” (HEGEL. Hegel considerou o Oriente como sendo a infância da humanidade. diz Hegel. sua permanência tornava necessária a mais severa disciplina e o sacrifício pessoal em prol do grande objetivo: a união de todos. somente o povo germânico estaria apto a identificar-se com a história universal. O homem romano. sendo a concretização da manifestação do espírito. o mundo grego. no período inicial. A formação do Estado romano deu-se da deliberada união de bandos predadores nômades e. Todo cidadão. na sua origem. submergida ainda no despotismo. vê-se submetido ao poder do império. 1983. como a juventude. p. Há.] não existe aqui alegria e brincadeira. A velhice natural é a fraqueza. por Hegel. O universal sobrepõe-se ao indivíduo [. com aspectos de virilidade inicial no desenvolvimento da personalidade. era incentivado à carreira militar. fundamentando o seu ser na mais pura exterioridade. . Como vimos. tem-se a terceira forma de realização do espírito.. O PENSAMENTO POLÍTICO DA SOCIEDADE ROMANA O mundo romano é caracterizado. não se deve tomar o exemplo biológico à letra. o mundo cristão. p.. dessa maneira. Assim. visando à conquista de outros povos através da luta armada. no mundo romano. uma submissão do indivíduo à constituição do Estado: aqui o Estado se destaca sobre os indivíduos e constitui um fim abstrato em si ao qual os indivíduos devem servir. 69). O Coliseu Romano. especialmente o capítulo 2. os patrícios ou cidadãos livres e iguais. ser filósofo não tinha muita importância na república romana. Ver Funari (1993).74 5. portanto a cidade como ente público e coletivo. . c) as águias romanas (força militar): davam proteção aos cidadãos contra agressões externas2. O Direito. em outras palavras.com. Acesso em 04 de dezembro de 2007. os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus. E. um espírito eminentemente prático. A partir destes fundamentos. à participação nos interesses da pólis. fundamentando sua segurança em valores externos.gif. b) a organização política: era o modelo admirável de administração. que dava unidade ao vasto império. o homem romano teve uma visão imperialista do mundo. p. o homem romano era um homem voltado para a práxis. Vista lateral do Coliseu.1. que garantia os direitos do cidadão e que apontava os seus deveres para com o Estado. significando. isto é. Disponível em http://www. o Exército e a Política Se o homem grego era um homem contemplativo com direito à reflexão filosófica. 1 2 3 Segundo Arendt (1995. a organização política dos romanos teve importância decisiva para a manutenção do seu poder. sem dúvida.ctiturismo. visto que perdurou por vários séculos. compilada no direito romano.1 A praticidade romana baseava-se em três sólidos pilares: a) a legislação social e individual: da qual os romanos foram mestres inigualáveis.br/figuras %20gerais/europa/italia%20coliseu. nascidos no solo de Roma.3 Civitas é a tradução latina de pólis. Res publica é a tradução latina para ta politika. símbolo do poder romano. portanto. tendo a cidade de Roma como centro do império. no vocabulário político atual. no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da comunidade política às decisões concernentes ao erário ou fundo público. sua estrutura representava avanços em relação ao pensamento grego. a idéia filosófica dos romanos procede da Grécia. Orientados para uma vida prática. porque a relação dos indivíduos com o Estado está fundada num “contrato” em que a delegação dirige o governo do Estado. aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de sua aplicação. Acesso em 04 de dezembro de 2007.com. portanto.br/mapas/mapa11.jpg>. segundo o entendimento da teoria platônica. por exemplo. Em termos gerais. não anula o indivíduo. . No Estado não se reconhece o direito à rebelião aos poderes públicos. chama-se de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis.4 4 Mapa do Império Romano no tempo de Cristo.pilb. serviços públicos) e sua administração pelos membros da Cidade. erário público. referindo-se ao modo de participação no poder. Os romanos entendem a lei como um pacto dos órgãos constitutivos do Estado. Ta politika e res publica correspondem (imperfeitamente) ao que se designa contemporaneamente por práticas políticas. não favorecia a reflexão filosófica. governamental e jurídica.t5. Disponível em http://www.75 Pólis e civitas correspondem (imperfeitamente) ao que. o Estado é um organismo necessário e vital à vida social. O ideário expansionista dos romanos com sua máxima divide et impera. Para os romanos. Mapa do Império Romano no tempo de Cristo. divide e reina. a 284 d. República (510 a. A expressão “Direito Romano” designa pelo menos três fatos: a) o conjunto de leis que vigoraram no Império Romano cerca de 12 séculos. que se tornou conhecido como Corpus Juris Civilis5.. O Direito Romano formado nesses doze séculos pode ser dividido em: Jus publicum (público) e privatum (privado). Marco Túlio Cícero Cícero (106-43 a. Nos doze séculos de existência do Direito Romano. dedicou-se aos problemas políticos. Ao contrário das leis da Grécia clássica – (. que se revezava no poder.C. Forma um todo coerente e sistemático.C. sofreu contínuas e sucessivas modificações em função do tempo e dos interesses da “classe dominante”. b) o direito privado. pelo contrário. a 510 a. 1999. no século VI.) e Dominato (284 a.76 O termo direito. c) o corpo jurídico organizado por Justiniano. epistológrafo e pensador.) foi um patrício romano e governante da República. o direito romano tem um caráter impessoal e técnico. desde a fundação de Roma. que atingiu grande esplendor. justiça. em 565 d. Em função dessas modificações políticas. de forma que cada parte não conflita com as demais. ele é de certo modo herdeiro do pensamento abstrato dos gregos.C. O Direito Romano também não era o mesmo nas diferentes regiões do Império.C. a 284 d. 85). com seu ideal de um todo harmônico e bem proporcionado” (OS PENSADORES. sem desvio. O jus privado divide-se em jus civile (direito civil). consagrado e sagrado. etimologicamente. Nesse sentido. e justiça é a “vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”.).C.C.C. Justo é o que está de acordo com jus.. 5 “A grande obra do pensamento romano é o direito. Sem contar que também as lutas sociais contribuíram para as modificações profundas no direito privado. em 753 a. orador. Em latim existe a palavra directus.C.). p. que significa ficar em linha reta. o Direito Romano pode ser dividido nos seguintes períodos: Realeza (754 a.).C. a 27 a. até à morte do Imperador Justiniano. porém. direito. Da mesma raiz vem justo.C. jus naturale (direito natural) e jus gentium (direito dos povos). sendo que o mesmo não ocorreu com o direito público..) –.C..2.C. Embora tivesse qualidades inerentes à atividade filosófica. ele não permaneceu imutável. 5. Principado (27 a. . a 564 d. estudioso da retórica. Império (27 a.C. escritor. vem da palavra latina jus e significa aquilo que é ordenado. como o gosto pela especulação e pela abstração.). Cícero segue a divisão tradicional no que se refere às formas de governo.dezenovevinte. Roma. Acesso em 28 de novembro de 2007.179). Senatto della Repubblica. no De República expõe a melhor forma de governo. especialmente o Livro II: Dos Impérios aos Estados-Nações. Livro I. 1973. Cícero é um romano helenizado. são leis de cada Estado. e que o homem é fonte de todos os direitos.jpg. 7 Cícero denunciando Catilina. p. Chevallier (1982). p.77 procurando agir sobre a opinião pública. 83 a 85) em: Os Pensadores (1999) e. políticas e metafísicas. até no título. de inspiração platônica. 204). Conclui que a República Romana é a melhor. Livro I. cidade.net/artistas/biografia_hbernardelli_arquivos/cicero. também. b) jus gentium (direitos dos povos). no entanto. ambas.6 O seu pensamento político está registrado em duas obras: De República e As Leis. Nesse livro distingue: a) jus naturale (direito natural). c) jus civile (direito civil). como também todos os homens são iguais por compartilhar da mesma comunidade humana. povo. .192). Considerado o maior orador latino. é a legislação elaborada pelo Estado. o bem-estar da cidade (PRÉLOT. quase sempre restritas à situação vivida pelos romanos naquela época. que o Direito Natural provém da natureza racional do homem. Pronunciamento de Cícero. para Cícero. No De Legibus. Data: 1882/1888. Divide-as em: realeza (todos os assuntos públicos estão na mão de um só). escreveu As Leis e A República. Disponível em http://www. O fim do Estado é. Escreveu. aristocracia (quando a autoridade pertence a algumas pessoas escolhidas) e governo popular (aquele em que o poder pertence ao povo). Afresco de Cesare Maccari (1840/1919). discute as relações entre o direito positivo e a justiça ideal. o ideal do melhor governo e do melhor cidadão (p. tal como para Aristóteles.7 6 Para Prélot (1973. Ver capítulo“A Filosofia de Cícero (p. Sob a forma de diálogo. onde estudou o Estado. várias obras morais. lei de acordo com a natureza racional e a ética do homem. Afirma. ) foi um homem de ação e historiador.C. A teoria das formas políticas como ciclo é deduzida da história das cidades gregas (crescimento. à sua própria custa. Nesse livro. 149). esplendor. 8 Escreve Chevallier (1982. 182).. p. acontece com as formas políticas. Encontra-a em sua Constituição e fez da análise desta a preocupação central de sua obra”. tornando-se assim o historiador de Roma vitoriosa da sua rival Cartago (PRÉLOT.. Livro I. decadência).).)..78 5. é explicitado: “Deve-se considerar a constituição de um povo como causa primordial do êxito ou do insucesso de todas as ações”. pois Roma teve êxito em suas conquistas em virtude de um governo misto9. Grego de nascimento foi deportado para Roma depois da conquista da Grécia. mas um historiador.. qual o melhor partido a seguir” (CHEVALLIER. A experiência tivera seu papel. no qual descreve as várias funções públicas. O motivo da descrição da constituição do povo.) até a tomada de Corinto (146 a. mas sofreu a influência direta da cultura romana.C. que. produto da mistura feliz de três formas puras. Políbio vê a história como cíclica (repetição contínua de eventos que tornam sempre sobre si mesmos . a aristocracia e a democracia). Era de origem grega.C.C. Do mesmo modo. Políbio viveu no século II a.3. A obra principal de Políbio é Histórias em que descreve os acontecimentos desde o princípio da II Guerra Púnica (no ano 221 a. 149): “Esse grego romanizado (. impondo-lhes o seu domínio. redigindo um pequeno tratado de Direito Público Romano. 1982. 1973. cuja história narra. o autor faz uma exposição pormenorizada da Constituição Romana.C. que se transformam com o tempo. Foi discípulo de Aristóteles. Políbio Políbio (201-120 a. Políbio aposta no governo misto (Rei “tirano”. não é um filósofo.) busca em suas histórias explicações para a superioridade de Roma. Foi em meio às numerosas lutas e dificuldades que os romanos aprenderam. subjugou quase toda a terra habitada. p. em meio século.o eterno retorno do mesmo). p. Acrescenta uma introdução até a época da I Guerra Púnica (246 a. 9 “De resto os romanos não haviam chegado a esta forma mista. através apenas do raciocínio.8 O historiador monstra a importância que teve a excelência da constituição romana para explicar o sucesso da política de um povo que em menos de 53 anos conquistou todos os outros Estados. .. A constituição mista romana é citada como exemplo. .79 Malgrado a influência dos gregos sobre Roma pode-se notar que os romanos deram importantes contribuições para o pensamento político e jurídico. A influência de Roma só decai com o nascimento de outro grande movimento espiritual: o cristianismo. Tema do próximo capítulo. 1982. porém. O PENSAMENTO POLÍTICO DA IDADE MÉDIA Tanto na teoria política romana . da mesma forma que lhe agradava um Império que instalasse a paz mundial e a justiça. Por exemplo. p. determinando a formação de facções opostas entre aqueles que defendiam o poder do papa e os defensores da autonomia do imperador. que acentuou novos valores desligados da tutela religiosa e fundados na vontade do povo. Mais tarde. Marsílio era um inimigo irreconciliável da 1 “A Dante (não nos iludamos sobre isso) agradava que o papado guardasse fidelidade ao seu papel. quanto na teoria política medieval. um ódio profundo. sem entregar-se à usurpação. Queria-os independentes um do outro. já afirmava que todo o poder vem de Deus. também na Idade Média se busca definir as virtudes do rei justo e bom. 1 Mais radical ainda é Marsílio de Pádua (1280-1341). cooperação e coordenação. ainda na Antigüidade -. também escreveu um livro sobre política no qual defendeu a autonomia do poder temporal. Como conseqüência. substituindo. Propõe-se a desmascarar a intromissão do poder eclesiástico na comunidade civil (numa palavra: Estado). Marsílio. 240). no final do Império Romano. Santo Agostinho.13). o monismo ‘teocrático’ por uma monismo laico” (CHEVALLIER. houve a ruptura. mas em harmonia. Marsílio de Pádua (1280-1341) e Guilherme de Occam contribuem para o rompimento com o pensamento político medieval. é mantida a preocupação normativa que prevalece no pensamento grego. p.como na de Cícero. sente pelo papado como instituição. Alighieri autor do clássico A Divina Comédia. e também por toda a organização e hierarquia clericais. Nas palavras de Prélot (1973.6. por uma notável inversão do estado das coisas. Nesse sentido. A interferência da Igreja nos assuntos políticos provocou diversos atritos entre papas e imperadores. Visa absorver ao máximo o eclesiástico no secular. as teorias políticas enfatizam a supremacia do poder espiritual sobre o poder temporal e toda ação se acha atrelada à ordem moral cristã. ao contrário. Livro III. Nomes como Dante Alighieri (1265-1321). inesgotável. . A Idade Média tem como característica fundamental a predominância do pensamento religioso. no curto período de sua vida pública. herdado da cultura grega. o escolhido. 208). Elas deveriam ser depositadas diretamente nos cofres do Império. o primeiro a “libertar a sociedade laica da pressão do clero”. a religião oficial dos romanos era o politeísmo panteísta (diversidade de deuses). Isaac. ao mesmo tempo. onisciente. É bem clara a mensagem de Cristo para os cristãos: conquistem todas as almas do mundo. 1973.3). O ativismo profético e libertador de Jesus o levaram aos tribunais.1. o Salvador. estava sob o domínio dos romanos.1). no dia da Ascensão.3 Este “enviado” de Deus deixou. “Essa doutrina revelada por Jesus Cristo foi ensinada e difundida pelos seus Apóstolos nos quatro Evangelhos. 6. São Pedro e São Paulo (romano convertido ao cristianismo) foram os mais importantes arquitetos do cristianismo 2 Como sabemos. Esse momento chegou. p. nas Epístolas e no Apocalipse” (NUNES. 1978. Por muito tempo esse povo esperava o Messias (enviado de Deus. Cap. na época. mas.2 A dependência se fazia valer na política e na economia. sendo o governador nomeado pelo próprio imperador romano. O mundo inteiro deve ouvir a palavra de Deus. Os israelitas habitavam a Palestina e tinham como crença religiosa a fé no Deus Javé (onipresente. fazendo parte da luta de seu povo). As taxas de impostos cobradas eram altas. . 3 4 Jesus Cristo nasce sob o reinado de César Augusto (PRÉLOT. Ao morrer. Jacó e descendência). O cristianismo primitivo A Palestina. nos Atos. “Os Homens e o Sobrenatural”. por um lado uma mensagem de amor e fraternidade. econômicos e políticos da época. “Antes de voltar ao Pai. segundo certos autores. p.81 hegemonia sacerdotal – precursor da liberdade de pensamento e da democracia moderna. por outro fez denúncias contra os poderes religiosos. o ungido) que teria a missão de salvar e redimir os pecados da humanidade. 15 a 20). o “Messias” deixou aos seus amigos mais próximos (apóstolos e discípulos) a missão de levar adiante seu projeto. 1978. Esse povo era regido por patriarcas (inspirados por Deus) que tinham a função de unir o povo e manter a crença no Deus Javé (desde Abraão. Livro I. p. Ver Funari (1993. Jesus ordenou aos discípulos que pregassem o Evangelho a toda a criatura através do mundo inteiro” (NUNES. Boa parte do povo de Israel acreditou que um homem chamado Jesus seria o messias. sendo julgado e condenado à crucificação (pena capital romana). 4 Foram os apóstolos e discípulos que formaram as primeiras comunidades cristãs. p. Teria sido. 1982. uma religião de escravos. p. O próprio Livro dos Atos dos Apóstolos evidencia isso. algo inédito até então. Usando as palavras de Prélot (1973. No entanto. que não tinham nenhuma organização no plano jurídico.). a religião cristã passa ser a religião oficial do Ocidente. o dever de obediência às ordens do soberano (PRÉLOT. no início do século IV o Império Romano começa a sua decadência. o imperador romano Constantino assimila os cristãos ao seu governo. adquirindo finalmente o direito de existência. em um novo período da história. aparecem as cartas de São Paulo e São Pedro às comunidades cristãs recém-formadas: Coríntios. Constantino concedeu a liberdade 9. Claro que o ato de Constantino foi mais um ato político do que propriamente um ato de bondade. assim. tem-se a unificação entre Igreja e Estado. se autodenomina Renascimento. que se estende por cerca de mil anos. assim como outros arrestados. os dias estão contados para a sua grande ruína. 170).5 O cristianismo surge. O próprio termo ‘Idade Média’ já traz embutida essa carga de desprezo: indica que o período. marca o fim das perseguições e inaugura a era da tolerância para com o culto cristão. Restituem-se às Igrejas os lugares de culto que foram objeto de confisco e alienação. Cristãos e pagão são colocados em pé de igualdade” (CHEVALLIER. O culto cristão passa a ter a mesma liberdade concedida aos demais.82 primitivo. Livro II. 9 “Pelo documento de 313 (Edito de Milão). 10 “A Idade Média é caracterizada como uma era de obscurantismo pela época seguinte. Vendo que o Império Romano entrava em decadência e o número de cristãos aumentava. arrogante.6 Nos primeiros séculos da era cristã. Chega-se ao fim do período clássico greco-romano e inicia o período denominado de Idade Média. 274). os bárbaros (Godos. Efésios. No fim do século IV da nossa era. 7 O trabalho de Lot (1980) discute de maneira detalhada o fim do mundo antigo e o princípio da Idade Média. Gálatas. lícita. a religião cristã torna-se legal. Livro II. Forma-se a Igreja Católica (universal) Apostólica (proveniente dos apóstolos) Romana. Livro II. como uma seita clandestina dentro do Império Romano. Visigodos e Estrogodos) estão prestes a tomar a grande capital Roma. 7 Com um golpe político extraordinário. p. após renhido e prolongado combate. 6 Prélot (1973. Essas perseguições levaram à morte milhares de cristãos. que 5 No Novo Testamento. partilhavam o pão. Romanos.. assim. 238-239). Tessalonicenses.. Entra-se. havia uma grande interação entre fé e política ou entre fé e vida cotidiana. 10 A mentalidade medieval. não passa de um intervalo entre o esplendor do mundo greco-romano e seu . 1973. p. A partir de então. isso foi em 313. ao afirmar que os cristãos tinham uma vida em comum. eram unidos pela oração e refletiam sobre a palavra de Deus. p. “houve uma cristianização do império”. 8 O Edito de Milão emitido pelo imperador romano Constantino.8 Isso significa afirmar que os cristãos ganham a liberdade condicional para exercer seu culto livremente. Unificam-se os poderes temporais e espirituais. que. 238) afirma que as primeiras comunidades cristãs eram células clandestinas. Esse estilo de vida e empenho social foi motivo de muitas perseguições contra os cristãos. Outra razão da decadência seria o desleixo de alguns imperadores. a queda do império 11. 104). 11 “A voz fica-me na garganta e os soluços interrompem-me ao ditar estas palavras. razão do sucesso imperial. E o sacro-império. finalizando o período medieval.2. O fim do Império e a Idade Média O homem romano não conseguiu dar continuidade ao seu poderoso Império. p. 103). desde o latim (língua oficial da Igreja). Foi conquistada a cidade que conquistou o mundo’. A visão do homem será marcada pelo dualismo: corpo e alma. o homem da segurança exterior e surge o homem da segurança interior. Como vimos. p. neste sentido. o imperador Constantino. O corpo era coisa ruim e só servia como morada do espírito. será sustentada pela característica teocêntrica (Deus como centro). ao mesmo tempo. Em 410 da era cristã. Essas idéias afetaram fortemente a Igreja. o ponto fraco da sua própria administração política. no século IV. 1999. bem e mal.83 perdurará por quase mil anos. Desde então. por influência de certas idéias filosóficas racionalistas. porém.. Aos poucos. Na política. Só mais tarde acontecerá a ruptura da unidade política e religiosa. quase sempre acusada como a principal culpada pelo retrocesso da cultura.. o governo e a Igreja começaram a se ajudar. Assim São Jerônimo (347-420) anuncia a invasão e a pilhagem de Roma” (OS PENSADORES. que tinha o imperador ungido pelo papa. A religião fará parte da totalidade da vida do homem europeu. foi. a música (gregoriana). decretando. 1999. ignorar as realizações culturais dessa época. foi formando-se a concepção de que a fé estaria desligada da realidade e da razão. Muitos povos acabaram reconquistando a sua emancipação. até a arte (gótica). voltados apenas para a satisfação de seus interesses pessoais (pão e circo ao povo). em 476. que haveria de “salvar” a humanidade do colapso total: o último dos romanos e o primeiro medieval na pessoa de Santo Agostinho. 6. é também responsável pela conservação de quase tudo o que se preservou do pensamento clássico greco-romano” (OS PENSADORES. surge o homem da transição. proclamava bem alto esta intenção: realizar a idéia medieval de cristandade pela cooperação harmônica dos dois poderes supremos. A própria Igreja. o poder do império no temporal e o poder do papado no espiritual. A grande extensão territorial. une-a com o Estado. o sonho foi sempre de realizar a “Cidade de Deus”. céu e inferno. assim como a separação entre o corpo e o espírito. Cai. os bárbaros invadiram e incendiaram a capital do mundo (Roma). É impossível. concedendo a paz à Igreja. que começou a praticar ‘renascimento’ posterior. Neste momento. mais tarde. . Uma das virtudes dos guerreiros romanos era a conquista de povos vizinhos sem destruirlhes a cultura (herdavam o que o povo havia conquistado de melhor). conquistador) para a virtude pessoal do cristianismo. Santo Agostinho Santo Agostinho de Hipona12 Santo Agostinho foi considerado o “último dos antigos e o primeiro dos modernos”. desde a decadência do Império Romano do Ocidente. Não custa lembrar que o Império Romano foi o centro e o coração do mundo. . assim. Esse homem conquistador fez de Roma sua própria casa e o mundo estava subjugado aos seus pés. 6. invadido pelos bárbaros do Norte da Europa.villanova. a prática de uma fé sem ação e uma política sem valores éticos. Acesso em 28 de novembro de 2007. construído por um homem essencialmente prático. Ao mencionar a Idade Média nos vem em mente um período histórico compreendido entre os séculos V e XV. Segundo esta concepção.84 um tipo de religião que desligava a fé da vida diária do cristão. o cristão poderia viver a fé sem se comprometer com a realidade em que estivesse inserido. imperial. Sobre a religião.jpg. do qual foi decretada a queda final em meados do ano de 476.edu/vu/heritage/history/saints/augustine1.4. que desde pequeno era treinado para a arte da guerra e o respeito à pátria. Viveu a transição do romano (inteiramente pagão. 12 Disponível em http://heritage. os romanos herdaram a mesma dos gregos (politeísmo panteísta). Criou-se. dono do poder temporal. onde os conflitos dão-se entre dois pólos bem fundamentados: corpo x alma. na política. p. Isidoro. dominium). o período medieval terá um tipo de pensamento. formada pelos padres da Igreja. conheceu a felicidade e a certeza da verdade na fé” (OS PENSADORES. assim. temos a privatização do poder político (em vez de imperium. 1999. tinha o sonho de construir a “Cidade de Deus” de Santo Agostinho. Duas correntes de pensamento destacam-se no período medieval: a patrística. Entre os nomes mais proeminentes. tudo está voltado para Deus em termos hierárquicos. que retoma a filosofia aristotélica. tudo o que pertence ao corpo é pejorativo e pecado (a negação do corpo). e a Igreja. por último. dono do poder espiritual). no plano material. 97). citamos Santo Agostinho. Em termos de política. pelo indivíduo. Boécio.85 Agostinho viveu até os seus 30 anos gozando dos prazeres do mundo. os padres herdaram essencialmente a filosofia de Platão. pecado x ascese. capítulo “Entre a Fé e a Razão”. é quase uma demonstração. temos a conciliação entre fé e razão 14. temos a unificação do Estado com a Igreja (O Estado. na prática. 1964. ou seja. dentro dessa visão. 22). o teocentrismo (Deus é o centro de tudo) na cultura. converteu-se ao cristianismo: a primeira frase de sua obra As Confissões expressa tal realidade: “Inquieto está o meu coração enquanto não repousar em vós”. neste sentido. O período medieval é marcante também no que se refere ao dualismo herdado. 14 Ver Os Pensadores (1999). comandada pelo Papa. na sociedade. sofreu o abismo do homem em pecado. aparece a filosofia como serva da teologia. os valores terrenos vêm em segundo plano. bebidas e mulheres. Após passar por crises existenciais e diversas escolas filosóficas. ou seja. pois tudo o que provém da natureza é essencialmente mau. e a salvação depende apenas da ascese individual e da graça de Deus. São necessários argumentos racionais para fundamentar a fé. São Tomás de Aquino elaborou a síntese magistral do cristianismo 13 “A vida de Santo Agostinho. bem x mal. já anteriormente. luz x trevas. Nas palavras de Arquillière (Apud PRÉLOT. João Damaceno e a Escolástica.13 Por mil anos. da tradição filosófica platônica e agostiniana. sob o comando do Imperador. Como um bom romano soube usufruir dos jogos. reencontrou a esperança na graça divina. . “o agostinismo político domina o pensamento medieval”. Em termos filosóficos. minuciosamente narrada por ele próprio em Confissões. seguidos pela política e. O homem medieval. Com o objetivo de defender os ideais cristãos perante os pagãos e convertê-los ao cristianismo. matéria x essência. p. de seu pensamento: experimentou o ceticismo quanto ao conhecimento. Já no Renascimento. Por fim. que ordenara uma mudança radical na visão de mundo na modernidade. temos a tecnologia e o progresso. A razão não será a contemplativa ou teológica. totalmente autônomo dos poderes da Igreja. O Deus medieval. A partir dos séculos XI e XII. que favoreceu a ciência. a característica principal da Idade Média foi centralizada no pensamento religioso (teocentrismo = Deus no centro de tudo). fornecendo bases filosóficas para a teologia cristã numa tentativa de compatibilizar a fé e a razão. Salermo. 6. agora. Cambridge. que dava sustentação à Revelação divina e ao poder da Igreja sobre os homens. finito e enclausurado em si mesmo dá lugar à transparência. aos poucos foi ultrapassado por outra "divindade". A instituição Igreja regeu a vida em todas as suas dimensões. A confiança na razão impulsionou a pesquisa pelo método experimental. Em conseqüência. religioso-cristão. inicia o crescimento do comércio. A expressão da beleza física do homem inspirou escultores e pintores renascentistas. O “humano” como forma negativa. juntamente com a filosofia humanista (expressão máxima do homem em suas diversas formas). a razão. As Universidades de Oxford. vista anteriormente na Idade Média. o que predominou foi o pensamento antropocêntrico (o homem no centro do universo). ela será instrumental. não tardando a constituição de um novo pensamento: o Renascimento e a Modernidade já embrionárias de um novo paradigma. antes. O fim do pensamento medieval e o início do Renascimento Como vimos. A visão de um mundo medieval limitado. Bolonha.5. a expansão das cidades e a inevitável ascensão de uma nova classe: a burguesia. no Renascimento teremos o heliocentrismo (o sol como centro) . A criação de centros culturais laicos impulsionou um novo conhecimento. clareza e inovação. modificar e transformar a natureza que. que durante vários séculos fora dominada pelos senhores feudais. Se antes tínhamos o geocentrismo (a terra como centro do universo).86 com o aristotelismo. era intocável. afim de objetivar. As Cruzadas foram fundamentais para o intercâmbio comercial com o Oriente. a ser exaltado. Paris e Coimbra são exemplos dos Centros Culturais Europeus. passa. o pensamento medieval dava sinais iminentes de fraqueza. 87 desde o método experimental de Copérnico (1473-1543) e da sua comprovação por Galilei (15641642)15. a magia. orientada e dominada pela figura de Deus 16. uma vez que as idéias do passado são colocadas em xeque e busca-se uma nova fórmula para dar sustentação ao novo pensamento. 1999. assim. Defendemse. Lutero contesta a autoridade papal e dos “representantes de Deus” na terra. Nela confluem: as pesquisas naturalísticas dos últimos Escolásticos que tinham dirigido a sua atenção para a natureza. o sonho da cidade eterna não se concretiza. possibilitando o comércio (mercantilismo) com outros povos. a doutrina de Telésio. não leva consigo a bagagem dos velhos valores. (OS PENSADORES. O homem passa e. surge a era das técnicas. 1982. passando. o homem europeu lançou-se à navegação conquistando as terras do Ocidente. a exigência de explicar a natureza por meio da natureza” (ABBAGNANO. especialmente o capítulo VII. p. A razão traz consigo uma nova imagem do mundo: com a criação da bússola e a descoberta da pólvora. Os antigos valores vão-se desmantelando. que havia patenteado e difundido as técnicas especulativas destinadas a subordinar a natureza ao homem. 176-177). Isso. que insistira na estrutura matemática da natureza. vol VI. substituindo a era medieval da contemplação. a descoberta das Índias. em certo sentido. 15 16 Ver Nicola Abbagnano (1982). não se cansam de afirmar os pensadores. A passagem de uma mentalidade para outra sempre gera a crise no ser humano. 7). que passa a ressaltar os rituais e as aparências em detrimento do conteúdo sobrenatural da religião”.17 Novas formas de interpretações bíblicas fazem do homem um ser com novas possibilidades frente ao mundo. Com as revoluções astronômicas de Copérnico e Kepler e a física de Galilei. “O resultado último do naturalismo do Renascimento é a ciência. A Reforma Protestante coopera com a fragmentação religiosa. que progressivamente foi adotando padrões mundanos de organização. mas serão explicados por eles mesmos: "a natureza é um livro aberto pronto para ser pesquisado e explorado". grandes rupturas acontecem na Igreja como o Cisma da Cristandade (1379-1417). que elabora o conceito de ordem necessária da natureza. 17 Reforma liderada por Matinho Lutero (1483-1546). o aristotelismo renascentista. quando um Papa comanda a Igreja de Roma e outro lidera a de Avinhão. cálculos matemáticos e princípios geométricos como instrumentos fundamentais para a compreensão dos fenômenos naturais. a observação e a experimentação utilizando hipóteses lógico-racionais. e é urgentemente necessário solidificar e fundamentar a sua vida em novos valores que dêem segurança a este “novo” homem. desviando-a do mundo sobrenatural considerado desde então inacessível à pesquisa humana. . p. que afirma a autonomia da natureza. finalmente. o platonismo antigo e novo. “O individualismo religioso de Lutero é uma reação ao forte enraizamento social da Igreja. explica-se pelas necessidades políticas do papado. e. ou o "Novo Mundo". Os fenômenos naturais não serão explicados pela teologia ou pela "vontade de Deus". a inovação da tipografia (imprensa). tem-se a afirmação dos grandes Estados monárquicos unificados (exemplo: França. 1982. a partir do século XVII. Como vimos acima. com O Príncipe (1513/ 1514): "todos os domínios que tiveram e têm impérios sobre os homens são Estados. cap. igualmente. Uns apresentam as particularidades desse período afirmando que o mesmo traz características próprias. num só corpo. a experimentação e a razão teórica. Na Modernidade. surge o cartesianismo (filosofia de René Descartes). como o entendemos hoje. uma política laica. temos uma rápida concentração dos poderes no Estado no Rei. a proa. Na filosofia. então fragmentados. ou seja.XVI). Espanha). a popa e o convés. do direito civil hobbesiano e da política laica ou profana de Maquiavel. a partir das idéias do direito natural. Tal é. Em conseqüência disso. o ponto principal e mais necessário para que se compreenda bem. que buscam fontes para argumentos históricos. ou seja. que sustenta o costado. logo existo". Rei ou Papa. quando lhe tiramos a quilha. ou comunidade política. a política estava diretamente ligada à Igreja. sem forma de embarcação. 316). Outros afirmam que o Renascimento representa um retorno às tradições greco-romanas. a razão do Estado cresce em decorrência desses teóricos. como poder supremo na ordem interna18. com poder soberano” (BODIN Apud CHEVALLIER. na expressão de Nicolau Maquiavel. p.88 A marca referencial da política moderna será a laicização. em suma: Estado): República é um reto governo de vários lares e do que lhes é comum. Depois de mil anos tendo o poder teocêntrico sido hegemônico na mentalidade do homem Ocidental. Pela primeira vez na história aparece expresso o vocábulo "Estado". ou. "a dúvida metódica" e a famosa frase: "Penso. sem um poder soberano que una todos os seus membros e partes. sendo que não diferia muito um Príncipe de um Bispo. . culturais. políticos e filosóficos visando à fundamentação desse novo saber. surge na história o Renascimento (séculos XV . partindo da definição notável e clássica que ele deu de república (evidentemente no sentido de coisa pública. não é mais República’. contra a submissão ao papado e do império. I). no século XVII dirá : "L'Etat c'est moi" (O Estado sou eu). desligada dos ditames autoritários da tradição da Igreja. 18 “Assim como o navio não é mais do que a madeira. Contra o feudalismo e o regime senhorial. o conceito de soberania de Jean Bodin (1576). e são Repúblicas ou Principados" (O Príncipe. e todos os lares e colégios. uma re-descoberta da Antiguidade clássica pelos humanistas. Na modernidade. para Bodin. a ciência da natureza de Galileu. Aparece. também a República. considerado por alguns cientistas como marco intermediário entre a Idade Média e a Modernidade. Inglaterra. bem como a elaboração acerca da origem e das formas de sabedoria política. Luís XIV. o poder político não é fruto de favor divino. Aumenta então a teorização dos filósofos em busca de um Rei competente e implacável que fosse capaz de unificar os Estados. possibilitando o enriquecimento da burguesia favorecido pelas navegações.89 No período renascentista. por outro. e. As transformações ocorrem em diversas áreas: nas artes (do gótico para o humanismo). . separação entre Igreja e Estado (política). O mundo europeu religioso. posteriormente. povo ou nação. perdendo os "valores" que lhe davam segurança e ainda não conseguia alcançar um porto seguro. aos poucos. às suas origens históricas. por um lado. 19 Estado Moderno como detentor da força/autoridade racional e territorialmente universal foi um fator chave no desenvolvimento dos Estados capitalistas contemporâneos. mas também na sua vida em sociedade. pois vai. fechado. ao descobrirem novas rotas comerciais com o Oriente e. nos conflitos entre os intelectuais ateus e religiosos nas universidades religiosas e laicas (cultural). como já vimos. na formação dos estados nacionais. dá sinais de esgotamento. com a revolução de Copérnico e de Galileu Galilei). Conferir o trabalho de Nunes (2003). com as Américas. em que o feudalismo é substituído gradativamente pelo mercantilismo. como regresso à base estável de toda e qualquer comunidade. às quais poderá ir buscar nova força e novo vigor. na economia. Pretende-se renovar o homem não apenas na sua individualidade. na visão de mundo (do geocentrismo = terra no centro do universo para o heliocentrismo = sol como centro do universo. o homem viverá uma profunda crise. entendido como o regresso de uma comunidade histórica determinada. O regresso às origens é.19 O humanismo renascentista encontra-se estreitamente ligado a uma exigência de renovação política. . São questões representativas do “espírito” do Renascimento. o regime feudal entra em falência. baseado na experiência de um homem que buscava a verdade na própria natureza e não somente na revelação divina. O PENSAMENTO POLÍTICO RENASCENTISTA O sonho de construir a "cidade terrena" torna-se irrealizável. 1999. se a terra não é o centro do universo. Dessacralizou-se o mundo. por outro. Por um lado. p. 153). atingível pela experiência externa 2. desocultada a partir de si mesma. A ruptura se dá também dentro do próprio Estado. Antes. é uma causa supérflua. "Deus está morto. Giordano Bruno1 e Campanella inovam no método de explorar a natureza através da experimentação. pois exalta a razão natural e a natureza. Os imperadores nomeavam bispos e influenciavam na escolha dos papas. Contra os aristotélicos. afirmava a necessidade do estudo direto da .. quer subtrair a investigação do mundo natural aos limites e aos estorvos da autoridade eclesiástica. A experiência está abrindo os segredos da natureza. para que buscar uma hierarquia? Por que não haveria outro mundo com outros sóis e outras vidas?. na Idade Moderna. tão esperada pelos reis e papas. A verificação dos fenômenos e dos fatos é o novo caminho para se chegar ao conhecimento da realidade. nós o 1 “Mas. por que insistir num centro? Se a hierarquia do mundo se rompe. que não é objeto físico. As nações. em virtude do esfacelamento da unidade político-religiosa. Com o descobrimento da pólvora.7. 2 “Galileu pretende desimpedir a via da investigação científica dos obstáculos da tradição cultural e teleológica. um novo modo de compreender o universo. Os filósofos da época dão início a um novo tipo de pensar (cultura). porque termina a segurança dos castelos. que perdeu o senso de mistério e não apela para uma causa transcendente de explicação: explica-se por si mesmo e para si mesmo.. pois a razão humana introduz. originárias da Idade Média. As indagações são de Giordano Bruno” (OS PENSADORES. polemiza contra ‘o mundo de papel’ dos aristotélicos. a natureza era apenas contemplada a partir da revelação divina. Deus. Pode-se afirmar que o homem moderno é o homem da razão experimental. organizam-se em Estados e conquistam autonomia completa. Galileu Galilei. pois a visão exclusivamente experimental e positiva não tem lugar para valores espirituais (Deus).. agora. representantes da entidade temporal e espiritual. p. 14). o Hispânico.com. logo existo" de Descartes. o Deus da ordem moral morreu.jpg. 14 a 17). 139). e não como fizeram os pensadores anteriores (Platão e Santo Agostinho). Nada é mais vergonhoso nas disputas científicas. terminavam por conquistar os próprios principados que deveriam defender. como o Franco.br/licaodecasa/ensmedio/historiageral/maquiavel. em Florença.. 43): o método de Maquiavel é a observação direta e indireta. mais tarde. 3 Imagem de Nicolau Maquiavel. .i. p. Maquiavel: contexto histórico Nicolau Maquiavel. 7. reinando uma grande confusão onde imperava a tirania em diversos e pequenos principados. Disponível em http://n.1. surge o realismo de Nicolau Maquiavel. 1982. nos dirá Nietzsche. Na política. A Itália era uma vítima impotente frente a diversos impérios. Também na área econômica a natureza. o fundador da ciência política moderna. Naqueles tempos. na Itália renascentista 4. o homem moderno é o homem da certeza matemática. a Itália sentia a ausência de um Estado central. no dia 3 de maio de 1469. p. feita de contatos e leituras. diz ele ( Op.uol. Estes não tinham dinheiro para financiar exércitos regulares. VII. que imaginaram a política como deveria ser (plano ideal). p.3 Nicolau Maquiavel nasceu em meio a uma grande crise econômica e política. Acesso em dezembro de 2007. O que é válido é a razão "penso. 4 Ver Sadek (1991. entre outros. e acabavam socorrendo-se de mercenários que. do que recorrer a textos que amiúde foram escritos com outro propósito e pretender utilizá-los para responder a observações e experiências diretas” (ABBAGNANO. ao bel-prazer e conforme seus próprios interesses. Diz Prélot (1973.91 matamos". o Germânico. Maquiavel tratou a política como ela é. Este personagem inspirou Maquiavel a escrever O Príncipe. é permitido-lhe retornar a Florença. e com o exílio de Soderini. O filho do papa Alexandre VI. ele é derrotado por um conluio envolvendo o papado e os espanhóis. ainda. Em 1494. Em 1512. foi considerado suspeito de participar de uma conspiração contra o governo dos Médicis. Maquiavel buscava a unificação da Itália. e estes estão em declínio. oferecendo produtos mais baratos. que então era dividida em uma série de pequenos principados. César Bórgia. Locke e Marx.92 decadência é visível. ele foi demitido e. juntamente com um levante interno exigindo a volta dos Medícis ao poder. com o apoio do papa Alexandre VI. Isso fazia com que ela fosse alvo de constantes conflitos e invasões por parte dos estrangeiros. Quatro anos depois. Procurando reconquistar os favores da família tirana. derruba e mata Savanarola. trabalhando em um cargo na chancelaria. Outro aspecto que atingia a Itália era a primazia dos espanhóis e portugueses nas descobertas além-mar. avançava sobre Florença exigindo o retorno dos Médicis. em ascensão está a burguesia. Exilado em sua própria 5 Sobre a concepção de Estado em Maquiavel. oportunizando a Maquiavel iniciar sua vida pública. conferir o trabalho de Gruppi (1996). Hobbes. quando Lourenço (o Magnífico) e Júlio de Médicis são expulsos de Florença. Aos 29 anos. sobrando para Maquiavel o cargo de chanceler. a oposição. torturado e exilado em sua propriedade particular em San Casciano. com o retorno dos Médicis ao poder. proibido de abandonar o território florentino por um ano e de freqüentar qualquer prédio público. Maquiavel escreve um discurso sobre a preparação militar florentina. cada vez com menos poder. destacando-se sua preocupação em instituir uma milícia nacional. porém. capaz de unir a Itália. opondo barreiras às intervenções estrangeiras. tanto fora da Itália como internamente. instala-se o regime republicano do monge Savanarola. A ordem comercial está calcada nos feudos. Ainda neste ano ele sai da prisão. com regimes políticos. onde cumpriu uma série de missões. não conseguindo seu objetivo. Em 1506. defendendo a criação de uma milícia nacional. Porém. . ele passou a ocupar o posto da Segunda Chancelaria. escreve O Príncipe e oferece-o a Lourenço de Médicis. sendo por isso torturado e condenado à prisão e a pagar uma pesada multa. Enfrenta inúmeros problemas decorrentes da decadência florentina em relação às cidades vizinhas. suas tarefas diplomáticas sofreram uma brusca interrupção. Em fevereiro de 1513. durante o governo de Soderini. mas não consegue retornar à vida pública. que Maquiavel acreditava que Bórgia seria o homem providencial. e impressionou tanto. No entanto. desenvolvimento econômico e cultura variados.5 A produção manufatureira instalada em antigos clientes da Itália amplia mercados. Maquiavel é preso. apesar de todos os esforços. mas que não dominou o grego. A oportunidade de voltar à política chegou em 1526. a França. acreditando que o saque de Roma pelas forças do imperador Carlos V libertaria Florença do jugo dos Médicis. Do fim da adolescência em diante. O pensador florentino percebeu que a instabilidade italiana estava na fragmentação do Poder (cada cidade tinha uma família no poder). com 58 anos de idade. um advogado pertencente aos ramos mais pobres da nobreza. Em 1527. A Itália e a Alemanha ficam atrasados quanto à unificação. In: MAQUIAVEL. Espanha e Inglaterra já haviam se unificado. o que traria a estabilidade. São Paulo: Abril. joga cartas numa hospedaria com pessoas simples do povoado. 8 Muito pouco se sabe de sua infância. . com homens ilustres do passado. Neste tempo em que ficou retirado em sua propriedade. sua biografia se confunde com a história de Florença e da Itália. Por isso faz o possível para voltar à vida pública. cargo no qual deveria cuidar das fortificações da cidade e tratar da defesa em geral. Neste ano. vestia trajes de cerimônia e passava a conviver. sobretudo. através da leitura. É nesse contexto de insegurança que Maquiavel se encontra em sua Itália. este exilado político ocupa-se todas as manhãs em administrar a pequena propriedade a que estava confinado e. 8 Ver Maquiavel – vida e obra. colocando em risco a soberania destes países sem centralização do poder e tornando-os alvos fáceis de constantes ocupações. da qual foi excluído em 1513. o que não acontece. Isso debilita sua saúde e provoca seu óbito no dia 21 de junho de 1527. Amava. muito semelhante às cidades-estados dos gregos. Nicolau. olhos penetrantes e lábios finos. à tarde. passa a morar na propriedade que herdara de seu pai em São Casciano. apenas que leu muito os clássicos latinos e italianos. (Os Pensadores). textos que resultam de sua experiência prática e do convívio com os clássicos. tenta voltar à Chancelaria. ao passo que as nações européias a fazem. Maquiavel faleceu sem ter visto realizado os ideais pêlos quais lutou toda a sua vida.6 O Vaticano estabelecia a unidade. Maquiavel era de estatura média. fronte larga. semelhantes às cidades-estados gregas. deixou um valioso legado: 6 7 A Itália no tempo de Maquiavel estava dividida. na cidade italiana de San Casciano.7 Maquiavel era filho de Bernardo. a cidade que o viu nascer e os assuntos de Estado. impedido de exercer sua profissão. A noite. magro. Enquanto a Itália permanecia dividida.93 terra. na República de Florença. quando foi nomeado secretário dos Cinco Provedores das Muralhas. O príncipe: escritos políticos. 1983. Maquiavel propõe a unificação da Itália criando um centro único de Poder. ele escreveu suas obras. Maquiavel. Porém. poeta e artista. bem típico da Idade Média. no século XV. do gênero milícia. estrategista. A guerra nesse tempo surgirá como um trabalho de arte. Porém. a guerra começa a ser uma preocupação essencial de mentes privilegiadas que a consideram como qualquer outra coisa à sua volta. dramaturgos. foi também historiador. filosófico e tático pela guerra. 7. p. Os problemas financeiros foram uma constante em sua vida. A Renascença italiana.ou assim pensava Maquiavel. principalmente o capítulo III “O Qüiproquó do realismo político”. Os homens influentes das mais diferentes áreas. O interesse pela guerra provinha do declínio de todo o sistema feudal na Europa e do limitado tipo de arte da guerra. a arte da guerra tornou cada vez mais importante o trabalho de soldados e oficiais mercenários. Muitas tropas mercenárias eram contratadas por cidades-Estados e principados. 70). estudioso. quando Maquiavel foi indicado como Chanceler. entre outros renascentistas . essencialmente na Itália. Ver Sadek (1991). 1982. Estrategista da arte da guerra Como vimos na seção anterior. 9 Conferir o trabalho de Sartori (1965. Apesar disso. isso em 1507. p.para que houvesse guerras em número suficiente.94 o conjunto de idéias elaboradas no seu exílio. Talvez nem ele mesmo soubesse a importância desses pensamentos. poetas. 10 . Com boa parte dos intelectuais renascentistas pesquisou sobre as guerras que aconteceram em momentos passados de sua época. Nicolau Maquiavel não foi apenas filósofo. pintores ou escultores.2. "escreveram sobre estratégias e táticas de guerra e sobre isso davam conselhos" (NISBET. músicos. além de ser reconhecida pelo seu brilhantismo artístico. com suas oportunidades de pilhagem e saques" (NISBET. os mercenários providenciavam . em que a guerra era o esporte de uma pequena classe: a cavalaria. Maquiavel viveu num período de constantes guerras e de fragmentações territoriais. revolucionou a história das teorias políticas.47). foi marcada pelo interesse literário. dividindo-a em duas fases distintas. a guerra era "providenciada" no sentido de tirar proveito de tal acontecimento: "Tendo tudo a ganhar com participação na guerra.9 Os fatos mais marcantes da sua biografia foram a precoce participação na política. Maquiavel também tornou-se um especialista em assuntos militares10. o príncipe deve estar preparado para ela. . passando a desempenhar um papel fundamental para a arte da guerra. Maquiavel. p. ou seja. às inovações e estratégias que contribuíssem para os tempos de guerra. o conceito moderno de individualidade buscava a ruptura a tudo o que era imposto pelas estruturas dominantes medievais e que acabavam confinando a individualidade humana. Leonardo da Vinci orgulhou-se não só de suas pinturas ou esculturas mas das contribuições tecnológicas e estratégias para a arte da guerra. a igreja e o solar" (NISBET. Em síntese. a "obtenção de fama e celebridade. do fundidor de armas e do artilheiro. a liberdade. o mosteiro. Os humanistas italianos contribuíram. bastando alguém pagar mais. 70). Surge a função essencial dos engenheiros. Era uma oportunidade nova que os humanistas vislumbravam como meio de libertação do homem. Os administradores renascentistas incentivavam. e acima de tudo. para que houvesse uma consagração literária à arte bélica. pois estes são muito ambiciosos. o que chegou a glorificá-la. seus talentos e poderes do sistema eclesiástico e feudal tido como inimigo número um dos humanistas. Maquiavel foi um observador. Mostra também que.95 1982. assim como na utilização de armas de fogo. Condenou as tropas mercenárias. conhecendo a história de outras batalhas. acreditava que o príncipe devesse confiar em um exército próprio e nunca ficar nas mãos dos mercenários. durante o Renascimento. os fortes castelos não resistiram mais aos constantes bombardeios. para corrigir os erros nas derrotas e imitar as estratégias vitoriosas. 1982. o que transformou a guerra numa atividade democrática. Maquiavel chegou a organizar e chefiar o exército florentino. sabendo por que tiveram grandes vitórias ou grandes derrotas. assim como outros “estrategistas” da arte da guerra escreveu a obra A arte da guerra. Como é sabido. p. Maquiavel propõe algo diferente ao escrever A Arte da Guerra. 70). liberdade de mente e imaginação das tradicionais obrigações para com a cavalaria. homens que pertenciam a classes sociais subalternas. pois até então as guerras eram feitas por mercenários que lutavam para quem pagasse mais. chegavam a pagar boas quantias. um mestre na tática da guerra. A Itália foi pioneira na utilização das tropas mercenárias como organização. para eles passarem para o lado dos inimigos. No Renascimento importante será a ousadia de atitudes. A própria guerra tornou-se um meio de brilhante realização individual na medida em que houvesse alguma contribuição para "o aperfeiçoamento da filosofia e da arte de guerra". mesmo não estando em guerra. tendo estratégias. publicado em 1521. bem como para com a guilda. Procura-se mais amplamente determinar a contribuição específica que ele deu à história das idéias. a busca do entender como as organizações políticas se fundam. como Erasmo de Rotterdam. Examina a verdade como ela é. Fundador da Ciência Política Moderna Maquiavel foi um realista. os estudos têm procurado romper com a tradição de crítica do ponto de vista moral. o autor florentino afirma que qualquer um pode chegar ao poder. . o estudo desses assuntos vinculavase à moral e era uma teoria de ideais de organização política e social. Considerou o homem como fundamentalmente mau. se desenvolvem. Maquiavel não tratou de valores espirituais. Tomás de Aquino ou Dante. sua preocupação era a construção do Estado italiano. tendo dinheiro. o indivíduo. Conforme Maquiavel. uma antes e outra pósMaquiavel. Aristóteles. ou com a utilização da obra de Maquiavel como instrumento ideológico. a política seguia em segunda ordem e. Em todas as obras. por último. Ele rejeitava o idealismo de Platão. ou Thomas More. que constroem modelos ideais do bom governante na base de um humanismo abstrato. de Aquino. o objeto de suas reflexões é a realidade política. Aristóteles e São Tomas.3. por isso tratou a política tal qual ela é seguidor de Tácito. na Utopia. ingrato e covarde. Com Maquiavel começa a ter importância a individualidade. Rompendo com todos dogmas da tradição religiosa. Os valores que antecedem a Maquiavel são de ordem religiosa: Deus era o centro. Acreditava numa realidade concreta. Tucídides e Tito Lívio. a política torna-se o valor mais importante juntamente com a valorização do indivíduo. persistem e decaem. A história política se divide em duas partes. Maquiavel lia muito sobre os antigos historiadores. no Manual do Príncipe Cristão. Atualmente. tal como ela é. Em Platão. Após Maquiavel. Observa que a experiência jamais engana e o erro é produto do pensamento especulativo. O universo mental de Maquiavel é bem diverso. a teoria do Estado e da sociedade não ultrapassava os limites da especulação filosófica.96 7. quem observa com cuidado os fatos do passado pode prever o futuro em qualquer república e usar os remédios aplicados desde a Antiguidade. não se preocupou com o que se deveria fazer mas com o que se faz. Políbio. corrupto. especialmente ao que se refere à ciência política. é claro. Até então. À mesma regra não fogem seus contemporâneos. e não como se gostaria que ela fosse. Maquiavel parte da experiência real do seu tempo. porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior da política (Deus. Essa divisão prova que a cidade não é homogênea e nem nascia da vontade divina. Maquiavel descortina um horizonte para se pensar e fazer política que não se enquadra no tradicional moralismo piedoso. diferente também dos renascentistas. mas o autor a percebia como um valor. O fundamento do seu pensamento político é o contexto moderno. às coisas públicas. Para Maquiavel. uma vez que poderia ser manipulada e utilizada como meio político. durante e depois das conquistas. A política resulta da ação social a partir das divisões sociais. oprimir e comandar o povo. homogênea. as pessoas podem destinar recursos que nenhuma outra pode. 1991. Não aceita a idéia de boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Para ele. Na realidade.97 Maquiavel separa ética de política. A sociedade é dividida e não uma comunidade una. 12 Extraído de Chauí (1994). da ordem natural ou da razão humana. A finalidade da política é a tomada e a manutenção do poder e não a justiça e o bem comum. Enviando isso à família Médicis. a cidade é feita por lutas intensas que obrigam a instituir um pólo superior que passa a unificá-la e dar-lhe identidade. Toda a cidade. por lidar com paixões e desejos humanos. diz ele. a imagem de una é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar. mandar atacar. dois pólos: o desejo dos grandes de exprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado 12. analisou onde estavam os erros e acertos das mesmas: neste contexto. a política é a divisão entre os grandes e o povo. fazer isto ou aquilo. pois. que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas. através dele. deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos. Já a política pode ser ética ou a-ética 11. O poder político fascina. que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas. natureza ou razão). 24). 11 “A política tem uma ética e uma lógica próprias. Diferente dos teólogos. analisou como os reis e príncipes agiam antes. A evidência fulgurante deste adjetivo acaba velando a riqueza das descobertas substantivas” (SADEK. a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade dar-lhe identidade. Quando Maquiavel eternizou seus conhecimentos. originariamente. A resistência à aceitação da radicalidade de suas proposições é seguramente o que dá origem ao ‘maquiavelismo’. . A ética é a-política. Assim. p. Já a religião é pouco citada em sua obra. que seus contemporâneos tentavam compreender lendo autores antigos. ele apenas observou o passado (as guerras). tem. dizendo que a primeira diz respeito às questões do indivíduo e a última. 98 expressou o que um príncipe deveria ou não fazer para conquistar novos reinos e mantê-los. Assim mudou a forma de fazer política, só que isso rendeu-lhe vários críticos à sua obra mais conhecida, O Príncipe, obra esta que relata suas "experiências" de governos. A democracia é a tentativa de horizontalizar o poder, tornar o indivíduo cidadão e isso implica ser responsável com a dimensão pública, o que torna difícil este processo, de fazer democracia, pois as pessoas não gostam de se comprometer com o público. Maquiavel não era democrata, pois em sua época não existia democracia; ele percebe o homem com seus interesses e ai a necessidade de um poder centralizado para evitar os interesses particulares. Maquiavel propõe a monarquia; na melhor das hipóteses, a Aristocracia como melhor forma de governo. Maquiavel, tendo convicções republicanas, participa do governo, é atuante e circula diplomaticamente pêlos países vizinhos e internamente em seu país. Vislumbra um modelo a ser seguido em César Borgia, condottiere empenhado na ampliação dos Estados dos Pontifícios. De regra, era o que a Itália precisaria seguir para chegar à unificação. Defensor das idéias republicanas, Maquiavel admite que a extrema corrupção (como a "instalada" na Itália) é a causa e o efeito da queda dos Impérios, e que com a virtude (virtú) de um grande homem, de "pulso quase real", somente assim, poder-se-ia restabelecer a ordem. Acreditava na república e referia-se a esta enfatizando a sucessão dos governantes. E, acima de tudo, preocupou-se com o exército. Ditador e sábio, percebia o valor do exército natural. Afirmava sua brutalidade e insensibilidade pela incansável valorização da guerra, e tinha como grande poder o conhecimento das paixões e fraquezas humanas, meios (considerados por ele) de dominação e atração do povo, que tinha de ser adaptado aos interesses do Estado, ou, então, aniquilado. 7.4. A natureza humana Uma das conclusões de Maquiavel, em 1513, quando escreveu O Príncipe, é de que os homens são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Que os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas as cidades e em todos os povos. E que, quem observa os fatos do passado pode prever o futuro em qualquer república. 99 Para Maquiavel, a natureza humana é intrinsecamente maligna. Os homens, os indivíduos, são dotados de atributos negativos, de paixões e instintos negativos, de paixões e instintos malévolos, tais como a ingratidão para com seus benfeitores, a volubilidade do caráter, a simulação das intenções, a covardia ante os perigos e a avidez do lucro 13. Não vê, pois, como Aristóteles, a sociabilidade como um impulso associativo natural ("O homem é, por natureza, um animal político", necessariamente ligado aos vínculos sociais). Pessimista, Maquiavel define seus semelhantes como inconstantes, egoístas e maldosos; mais propensos ao mal do que ao bem, fazendo este último somente sob coerção. Também são invejosos, ineficientes, mentirosos e ambiciosos. E, assim, também o são os governantes. Mesmo assim, ainda há esperança para ensinar aos homens um comportamento político efetivo. Maquiavel, usando-se do método comparativo em suas obras, comparou o comportamento presente com o passado, acreditando que o comportamento humano permanece o mesmo através da história14. A contradição básica está na sua visão da natureza humana. Os homens fazem o bem apenas por coação. São mentirosos e facilmente iludidos, sentem inveja, são mais propensos para o mal do que para o bem... “Os homens ‘são ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os perígos, ávidos de lucro’” (O príncipe Apud SADEK, 1991, p. 19). Com base em sua leitura e reinterpretação de textos clássicos da História Humana, Maquiavel conclui que os homens não mudam; em todos os tempos, as pessoas humanas são iguais, movidas pela apaixonada e intuitiva busca de poder, prestigio e posses, que os faz serem "ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os perigos, ávidos de lucro". Nesta visão negativa de natureza humana - que ele afirma ser realista - Maquiavel não está sozinho. Um provérbio de Confúcio já dizia "Porque me odeias, se nada fiz para ajudar-te?". A visão religiosa do Antigo Testamento também, é de um homem essencialmente mau, "pecador", que quer se sobrepor aos outros matando, roubando, cobiçando tudo o que é dos outros. Isto desde Caim e Abel. 13 “E é exatamente assim que Maquiavel os pinta. Sem deixar de acrescentar traços suplementares. Ávidos os homens, sim, e interesseiros: resignam-se mais facilmente com a morte de um pai do que com a perda de um patrimônio. E invejosos, ciumentos, insaciáveis nos seus desejos, eternos descontentes que só aspiram ao que não possuem. E ingratos, inconstantes. E dissimulados, mentirosos, velhacos: basta-lhes um pretexto para faltarem à palavra empenhada. E medrosos, covardes: somente uma coisa lhes cala fundo – é o medo do castigo” (CHEVALLIER, 1982, p. 267). 14 “Aquele que estudar cuidadosamente o passado pode prever os acontecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos meios que os empregados pelos antigos. Ou então, se não há mais os remédios que já foram empregados, imaginar outros novos, segundo a semelhança dos acontecimentos” ( Discursos, Livro I, cap. XXXIX Apud SADEK, 1991, p. 19). 100 Para Maquiavel, só o Poder Político, terreno, mundano, pode enfrentar o conflito e a anarquia decorrentes das paixões e instintos humanos, porém apenas de forma precária e transitória15. Para Maquiavel, o que detém o Poder Político - o Príncipe, o Chefe de Estado - pode aumentar o tempo de duração das formas de convívio entre os homens - e manter-se no poder. Para tanto, deve ele estudar cuidadosamente a história passada. Com o que, poderá prever os acontecimentos que se sucederão - dada a natureza humana imutável - e antecipar-se ou preparar-se para estes acontecimentos, tomando as mesmas medidas antes já tomadas por outros governantes, ou medidas (remédios) semelhantes. Pode-se aprender com a história: sobre a natureza humana, sobre como conquistar o poder, e sobre como mantê-lo. O poder é uma relação entre os homens, uma relação temporal, mutável e sensível que pode ser rompida a qualquer momento. Esse poder, que é exercido no mínimo por um homem sobre o outro, pode também ser exercido por grupos sociais, pelas classes sociais, para estabelecer uma ordem mais ampla conforme sua ideologia. Deter o poder significa ter a possibilidade de ser obedecido, gerando com isso também a detenção da faculdade de permitir. O que viabiliza o exercício do poder é a possibilidade real do uso da violência. O que, na verdade, viabiliza o exercício do poder não é o emprego direto e generalizado da violência, do poder nu e cru, mas a ameaça, a possibilidade de seu uso, após alguns casos de efetiva aplicação. O primeiro fator que se sobressai como determinante do poder é a força. Quem detém a força, detém a possibilidade de represália em caso de desobediência, Quem detém a força pode sancionar, ameaçar, punir e até mesmo matar, individual e coletivamente. A força pode se apresentar como força bruta, física, militar, religiosa ou econômica. O segundo fator determinante do poder é a influência. Regra geral, a influência advém da própria força, religiosa, econômica ou política. Mas, nas sociedades mais complexas, a influência pode advir de fatores mais inesperados, que vão desde a convergência ideológica até a corrupção ou chantagem. 7.5. A questão do Estado 15 “Mas onde fica a religião em tudo isso? Percebe-se facilmente que ela só interessa a Maquiavel sob o ângulo do Estado, da sua conservação e da sua grandeza. Serva da política, ela é uma insubstituível polícia do Estado, um admirável meio disciplinar do qual a coisa pública não poderia abrir mão” (CHEVALLIER, 1982, p. 270). Na hipótese de conquistar uma província com língua. Recomenda Maquiavel que o governante de um território estrangeiro (organizado em forma de colônia) deve liderar e defender os vizinhos mais fracos. sem nenhuma ligação com a Igreja). inimigos. mas tratou com a realidade da maneira como ela é. Os homens mudam de governantes com facilidade e sempre esperam melhorias. procurando debilitar os mais poderosos. afirma Maquiavel que o mal identificado no início é de fácil cura. onde Deus é o centro de tudo e os Papas exercem poder sobre os governantes e sobre o povo16. Maquiavel buscou exatamente o contrário.101 Maquiavel foi um dos maiores defensores do Estado independente. Dos principados mistos). partindo do pressuposto de que os Estados anexados são previamente existentes. e quando são da mesma região é mais fácil dominá-los. ele rompeu com a tradição religiosa e com a moralidade. o domínio é mais fácil. capítulo III. Para Maquiavel. leis e costumes diferentes. apoiaram os menos poderosos . recomenda. voltando-se contra os mesmos. Por isso. mas que é de bom alvitre não transgredir os costumes tradicionais e saber adaptar-se a situações imprevistas: "A dificuldade está nos principados novos" (O Príncipe. os domínios que existiram e existem sobre os homens foram ou são repúblicas e principados. Foi um pensador da modernidade. Ele afirma que é mais fácil manter Estados herdados cujos súditos já estão acostumados a uma família reinante. Maquiavel.sem aumentar-lhes as forças . percebem que não melhoram. pois não poderá manter a amizade dos que o ajudaram a conquistar o poder e também não poderá aplicar medidas drásticas contra os mesmos. ele defendeu uma política laica (leiga. Nesse sentido. para tanto. Porém. Buscou o conhecimento por si só. especialmente se não estiverem habituados à liberdade. como já foi mencionado. Esse período da história foi marcado pelo poder e pela influência da Igreja no Estado. deve-se extinguir a linhagem dos antigos governantes e manter as mesmas leis e os mesmos tributos. assim. que o príncipe se fixe na mesma. como meio para manter a dominação. do povo. . que o poder da Igreja estava em franco declínio no século XVI.e abateram os mais poderosos. mas difícil de diagnosticar e que. Quando se trata de mesma língua e costumes. onde instalaram colônias. impedindo que os Estados estrangeiros exercessem sobre suas colônias sua influência. O soberano fará. diz que para isso basta eliminar a antiga dinastia governante. Com isso. Os principados ou são hereditários (o príncipe é senhor pelo sangue) ou novos (récem-fundados). Ao passar do tempo. quando 16 É claro. do modo como as coisas realmente são e não como elas deveriam ou poderiam ser. preveniram-se de disputas futuras. Os romanos. o príncipe precisará sempre manter-se ao lado dos habitantes de um território para dominá-lo. como pensador político. 23). E que é isso que ocorre com os negócios do Estado. ou são Repúblicas ou são principados. de fato. torna-se de fácil identificação mas de difícil. atéia e satânica. História da Filosofia (1999). mas que. Dentre as principais obras de Maquiavel destacam-se: O Príncipe (1512 a 1513). escreveu a comédia A mandrágora. no entanto. a obra de Maquiavel é considerada uma idéia lunática. manter e aumentar o poder político. os príncipes devem escolher entre o amor e o medo. estudando o comportamento passado e presente. abre a politologia moderna. a atitude liberal ou a mesquinhez. Ver Os Pensadores. Esse príncipe triunfará apenas se dedicar suas energias à guerra: "pois a força é justa.102 não é logo identificado. uma biografia sobre Castruccio Castracani e uma coleção de poesias e ensaios literários. Com julgamentos sempre exatos e decisivos. Os soldados em batalha devem conquistar ou morrer. Para muitos. por último. sua História de Florença (1520 a 1525). O estilo das obras de Maquiavel As obras de Maquiavel são instigantes.) “Um príncipe maquiavélico”. quando necessária". Os discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1513 a 1519). é o título da obra que. contraditório em suas relações com os mesmos exemplos da história. explicá-la e estabelecer se poderia ou não ser remediada. segundo Prélot (1964. Utilizou um método comparativo em suas obras. a clemência e a crueldade. significativamente. as medidas extremas podem ser bem ou mal utilizadas. desconexas e paradoxais. também. torna-se historiador oficial da república indicado pela Universidade de Florença. considerada obra-prima do teatro italiano. A obra de Maquiavel prima por argumentos confusos e pela ambigüidade. cura. A preocupação de Maquiavel. e. senão impossível. Por exemplo: os Estados. destinada a mostrar ao "novo" príncipe dos Médicis como ganhar. Maquiavel é. . era documentar essa corrupção. a Arte da guerra (1519 a 1520). pois a idéia de que a finalidade da política é a retomada e conservação do poder e de que este não provém 17 Em 1520. 7. a sua principal obra é O Príncipe. Como já foi colocado. p. Esp. Cap.6. “Um Cenário de Luz e Sombra” (156 e ss.17 Ao lado destas publicações. A obra O Príncipe. Os súditos serão bem tratados ou oprimidos. os sentidos quase sempre se definem ocultos. usando de um número reduzido de palavras que podem dar vários sentidos em seu entendimento. discussão sobre a organização militar do Estado. quando ocupa um cargo na Segunda Chancelaria. cinco anos após a morte de seu autor. subdivididos em 5 temas centrais: apresentação das diversas espécies de principados e do modo pelo qual o poder pode ser adquirido e mantido. por entender que os mesmos não buscam a paz porque esta não lhes interessa. O Príncipe divide-se em 26 capítulos. buscando ensinar a arte da guerra. posição considerável na posição do Estado.103 de Deus nem de uma ordem natural feitas de hierarquias fixas exigiu que os governantes justificassem a ocupação do poder assumido. 15). exame da situação italiana da época. p. instituir uma milícia nacional (ver SADEK. 7. Nele o autor diz como conquistar. a violência será uma constante. Maquiavel condena as tropas mercenárias. além de suas realizações teóricas a respeito das milícias tenta. Neste livro. pois não se sujeitarão a tal prática. . além de destruir o verdadeiro conceito de cidadania. 1991. para a prática da guerra. a desonestidade. aumentar e manter o poder.7. e avisa também dos perigos que existem em se manter o poder. Os homens honrados e bons não combaterão. por fim. Descrédito com as tropas mercenárias: O descrédito com as tropas mercenárias aparece evidenciado em suas obras. era um desperdício e uma inutilidade. a utilização dos mercenários pêlos governantes. em termos militares. em 1498. Síntese das idéias de O Príncipe O Príncipe (1513) foi publicado somente em 1532. e. Para Maquiavel. bem como os generais que as utilizam. é pela arte da guerra que é possível o lucro. 18 Maquiavel. Uma leitura mais atenta da obra de Maquiavel A Arte da Guerra mostra-nos a preocupação com a estruturação de um exército de cidadãos e com a eliminação definitiva dos exércitos mercenários18. para isso as qualidades menos elevadas como a avidez. Maquiavel transmite todo o seu conhecimento e sua experiência. muito pelo contrário. debate sobre a conduta do príncipe. aconselhamento sobre assuntos de especial interesse para o príncipe. faz política. ainda assim. e de que nada pode contra isso a sabedoria dos homens. não se depara com a resistência da "Virtude Ordenada" e dirige os seus ímpetos para onde não houver defesa para contê-la. creio que. eu. “Não ignoro ser crença antiga e atual de que a fortuna e Deus governam as coisas deste mundo. A seguir. 19 20 Ver Sadek (1991. A ação humana . Maquiavel certamente não foi o único pensador deste período. admitindo embora que a fortuna seja dona da metade das nossas ações. à vitória da tarefa que lhe é cara20. A sorte mostra seu poder. p. O príncipe Apud WEFFORT. Mas sustenta como mais provável que a sorte (fortuna) seja árbitro de metade das ações humanas. O entendimento sobre o Estado Maquiavel foi o criador do termo Estado entendido na concepção moderna. . pode-se afirmar que diferentes foram as opiniões sobre o problema do Estado. 21 a 24). segue sua técnica e suas próprias leis". Mas. apresenta-se Thomas Hobbes. a realidade política e social como ela é. Trata-se já da linha do pensamento experimental: as coisas como elas são. outro nome a ser considerado na teoria política moderna.. a verdade efetiva. Sobre a compreensão de Estado em Maquiavel. 43). mas pode e deve eliminar as reviravoltas inconcludentes e transformar o risco numa possibilidade de êxito. Virtú x Fortuna. deixando aos homens o comando da outra metade (virtú)19. cada filósofo entendeu de maneira diferente o conceito de Estado. que os homens não possam corrigi-las nem remediá-las. para que não se anule o nosso livre arbítrio. Todavia. p. O homem que se compromete com a história tem uma tarefa precisa e jamais deverá desesperar: o resultado da sua ação transcende-o e pode conduzí-lo. ela nos deixa senhores da outra metade ou pouco menos” (MAQUIAVEL. certamente é possível dizer que foi o mais importante tal a pertinência de suas idéias em relação à política. 1991. "O Estado passa a ter suas próprias características. Maquiavel faz uma obra descritiva e prescritiva com alternativas ao poder para obter a estabilidade e unificar a Itália.não pode eliminar todos os riscos.104 A virtu e a fortuna: Maquiavel toma em consideração a hipótese de as coisas do mundo serem governadas pela sorte ou por Deus. de acordo com o pensamento e o contexto histórico da época: para Maquiavel.. por atalhos e caminhos distantes.parece dizer Maquiavel . 8. onde se formou em 1608. Hobbes escreveu O Leviatã.8.jpg. . Foi preceptor de uma família de nobres ingleses 1 Imagem de Thomas Hobbes.1. Disponível http://upload.1 Thomas Hobbes nasceu em 5 de abril de 1588 na cidade inglesa de West Port 2. especificamente. 2 em Sobre os dados biográficos e bibliográficos ver Hobbes (1997. um dos principais defensores das idéias absolutistas na modernidade.wikimedia. de Thomas Hobbes. Considerado um pensador contratualista (passagem do estado de natureza para o estado civil). no qual defende as idéias monárquicas da Inglaterra. A DEFESA DAS IDÉIAS ABSOLUTISTAS Este capítulo trata. Estudou na Universidade de Oxford. 1993). O Leviatã: o deus mortal de Thomas Hobbes Thomas Hobbes.jpg/250pxTomas_Hobbes_(portrait). Acesso em dezembro de 2007.org/wikipedia/commons/thumb/d/d8/Thomas_Hobbes_(portrait). ou seja. o homem livre é o que não é impedido de fazer a sua vontade. Em Paris. livro que englobava todo o seu pensamento. esta cisão. Entre a perda de um valor maior que é a vida e a limitação da liberdade. mas. O seu pensamento crítico. esta obra causou mal-estar a Carlos II. que também se encontrava exilado. Achava que a democracia era um perigoso sistema de governo. que lhe pede apenas que evite atritos. nas quais teve contato com Francis Bacon e René Descartes. onde a liberdade é a ausência de oposição. e sendo ela condição para a guerra. onde se encontrava devido aos descontentamentos que causou na Inglaterra. mas com paz e segurança. do mesmo modo como pode vitimar pela sua liberdade. viajasse pelo continente europeu. Existe. Filósofo e cientista político. De Cive e Os Elementos do Direito Natural e Poético. Apesar de defender o absolutismo monárquico. pois a qualquer instante pode perder seu bem maior que é a vida. dizia que um rei era mais capaz que uma república. principalmente. muitas vezes. Foi o primeiro teórico considerado contratualista.106 e esta ligação foi fundamental para a formação da base da sua teoria política. Hobbes. com quem viajou à França e à Itália. entre a liberdade. Com a volta da monarquia um tempo depois. para Hobbes. Portanto. por que limitá-la na constituição do Estado civil? Porque o homem livre torna-se o mais selvagem dos animais. Hobbes escreveu sua obra-prima O Leviatã. e fez outras viagens. defendia a idéia de que a origem do Estado e/ou sociedade está em um contrato. O indivíduo está amedrontado a toda hora. volta a gozar da proteção de Carlos II. como os que já havia promovido com o clero. Hobbes desgostou-se com a direção dos acontecimentos de sua pátria e desejava o restabelecimento da monarquia. portanto. fez com que se parecesse confuso: era cristão e criticou a Igreja. pois permitiu que ele se aprofundasse nos estudos e. Estudou em Oxford. que significa guerra geral e a limitação da liberdade. onde dedicou a maior parte do seu tempo à leitura de livros de viagens e a estudar cartas e mapas. era monarquista e criticou erradas formas de monarquia. para Hobbes. Há para ele. Suas principais obras foram O Leviatã. a segunda é a . optativa. fora do Estado é ilimitada. um estado natural. Hobbes volta então para a Inglaterra e vive em paz com o regime lá instaurado. humanitário ou ético. Hobbes era um defensor do regime monárquico. apesar da desconfiança. pode então acarretar a perda absoluta dela. se a ânsia por liberdade está em cada ser humano. A liberdade. Foi preceptor do Duque de Devonshire. Morreu em 4 de dezembro de 1679. Hobbes teve sua infância marcada pela ameaça da invasão espanhola. pode também ser vítima. tendo a liberdade como valor supremo. livre de qualquer princípio moral. inglês de origem pobre. Na obra. durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito. a saúde e o bem-estar dos súditos.3 A sua principal obra. o avanço econômico. que afirma ser o Estado formado pelo acordo hipotético entre os homens. Hobbes defende a idéia de que os homens primitivos viviam no seu estado natural. 4 “Com isto se torna manifesto que. Essa concepção é fruto do seu conceito de liberdade. O Leviatã é quem tem liberdade. Ele determina toda a postura de um Estado monárquico. para forçar os homens ao respeito. p. ele fala das características e dos recursos utilizados pelo homem. Seu maior objetivo era fundir a sociedade e o poder (Estado). segundo Hobbes. o príncipe. que significa monstro marinho. O ideal mais demonstrado nesta obra é a teoria contratualista. Leviatã é o governo soberano. 1993. O livro divide-se em quatro partes. Na primeira. sabedoria e tecnologia. Por isso. Em O Leviatã. oferecendo segurança. Na segunda parte. estavam uns contra os outros pelo desejo de poder. traído4. ou no ato de lutar. tem poderes ilimitados. 109). porque cada um se imagina (com ou sem razão) poderoso. dá o título a um estudo filosófico do absolutismo (centralização do poder de um monarca). Nele Hobbes firma o seu ideal de que o Estado é um monstro poderoso. ou "o homem é o lobo do homem"). p. Neste estado. cap.107 preferível. onde não existiam leis. pois contaria somente com as suas forças para defender-se de uma humanidade sem regras. apoiados na idéia de que só ele iria ficar exposto à barbárie. de riquezas e de propriedades (homo homini lúpus. Só existe liberdade. subordinando-se ao Estado” (ROSENFIELD. que tem a função de garantir a segurança. perseguido. dentro do Estado soberano. O Leviatã. 28). ou governante. onde cada um poderia proceder frente ao outro da maneira que as suas forças permitissem. . com o soberano freando as liberdades de cada um. O estado de natureza é uma condição de guerra. na sua relação com os outros. segundo a qual é preciso ter um Estado dotado de espada. um Leviatã. ele faz reflexões sobre os fenômenos que engendram as relações entre os homens. justifica a tese da vontade do Estado. armado. ele é absoluto. 3 “O dever do homem enquanto cidadão é renunciar ao poder indiscriminado e arbitrário sobre todas as coisas. Na terceira. de modo quee um não pudesse viver sem o outro. mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida” (HOBBES. XIII. apresenta uma espécie de síntese de seu pensamento. Hobbes explicita sua visão de Estado. 1997. e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Ela acontece na estruturação do Estado. Pois a guerra não consiste apenas na batalha. O Leviatã. Na quarta. eles se encontram naquela condição a que se chama guerra. reflete sobre a religião civil. Leviatã. ele é quem decide o futuro do seu povo (súditos). no início. Pensava que. concederia tudo pela grande bênção da segurança 6. por fim. chegando à conclusão de que ao poder assim formado é permitido governar despoticamente. Pois. Hobbes não reconheceu nenhuma lei da Igreja ou de Deus como limitação da autoridade do Príncipe. sujeitos não a uma lei. que impeça o egoísmo e a destruição mútua. todos os homens tinham vivido em estado natural. nasce o Estado com o intuito de refrear os lobos e impedir o desencadear dos egoísmos e a conseqüente destruição mútua. Hobbes escolheu o nome de Leviatã. como animais. Como o homem no Estado de natureza é um inimigo em potencial. De Cive. 6 “. quando tudo é permitido a todos. ninguém deve duvidar que os homens. universal. não por ter sido ungido por Deus. há a necessidade de um contrato que estabeleça um acordo entre eles. por uma necessidade natural cada qual deseja o que é bom para si. Muito longe de ser um paraíso de inocência e de bem-aventurança. . Um contrato para constituírem um Estado que refreie os lobos. embora não fosse uma parte do contrato. que fosse capaz de coagir todos os indivíduos para a prática da ordem. Desse modo. caso não existisse o medo.. se uniram entre si para formar uma sociedade civil. não havendo ninguém que considere um bem para si essa guerra de todos contra todos que é inseparável do estado natural”. um monarca suficientemente poderoso. submetendo todos os direitos naturais dos indivíduos a um único poder soberano. portanto. ainda. 1993. p. O Leviatã pretende dar uma justificação racional e. onde cada homem é um lobo para seu próximo. tornava-se a sede da autoridade absoluta. 5 Afirma Hobbes. declarava ele. A teoria do Estado em Hobbes é a seguinte: quando os homens primitivos vivem no estado natural. de riquezas. são meros "vermes nas entranhas do Leviatã". É o Estado o momento positivo do desenvolvimento histórico da humanidade. mas ao próprio interesse. o "estado de natureza" era uma condição de miséria universal. mas porque o povo lhe deu autoridade absoluta. 55): “Qualquer um que julgasse ser preferível ao homem ficar naquele estado. I. Contudo. cap. seriam levados por sua natureza mais sofregamente para a dominação do que para a sociedade” (HOBBES. Todas as associações dentro do Estado. de propriedades.108 Para o título de sua principal obra. eles se jogam uns contra os outros pelo desejo de poder. A essência da filosofia política de Hobbes está diretamente ligada à sua teoria da origem do governo. indicar as razões pelas quais os seus comandos devem ser obedecidos. por seu lado. da existência do Estado e. no De Cive (1993. Para escapar da guerra de cada um contra todos.. Nesse contexto. indicativo de sua concepção do Estado como um monstro todo-poderoso. o soberano. È um impulso à propriedade burguesa que se desenvolveu na Inglaterra. p. 5 O povo. 52). Hobbes pretendia a formação de um contrato. os homens. estaria em contradição consigo mesmo. A falta a este respeito chman-se orgulho” (HOBBES. assim como toda a sua teoria da natureza humana e da organização política. p. Segue-se uma luta de todos contra todos. por natureza. A religião é somente uma esfera do sentimento. O homem. dada à ausência de legislação. a guerra. 129). sendo sua natureza egoísta. deu valor somente ao que é provado pela experiência. que vê sua posição ou sistema sendo ameaçado. No estado natural o homem goza de liberdade total. as idéias absolutistas. tendo todos os direitos e nenhum dever. Portanto. são considerados. Hobbes se decidiu por defender as idéias da monarquia. no reinado de Carlos I. deu-se um período de crise na Inglaterra. porém aí surge a desconfiança. quanto a suas capacidades e faculdades8: inteligência e capacidade física. as idéias liberais tomam conta da Inglaterra. decorrentes de uma situação vigente.109 Thomas Hobbes foi materialista e empirista. Quando dois homens querem usufruir um só objeto ao mesmo tempo. As causas desta discórdia são a competição.. 17). não é um ser essencialmente político. Os homens. eles se tornam inimigos. No estado de natureza existe insegurança.. e que essas leis são simples nomes. Introdução. as teorias do homem e do Estado. segundo Hobbes. p. cada um busca satisfazer os seus próprios instintos. Em 1689. Antropologicamente. sem nenhuma consideração pêlos outros. Por um lado suas idéias constituem elementos que se vinculam à sua metafísica materialista e à sua teoria nominalista da natureza do conhecimento. contrariando a tese de Aristóteles. chora menos". Distingue o Estado Natural e o Contrato Social7. cada um faz o que bem entende. inserem-se num processo histórico de lutas sociais e econômicas bem definido: os conflitos entre o poder real e o poder do Parlamento na Inglaterra do século XVII” (HOBBES. Existe uma ausência de leis. a ciência explica tudo. afirma que entre o homem e o animal há apenas uma diferença de grau e não de essência. A própria disposição para o conflito já é uma guerra. Em sentido do agradável (sentimento. Em 1640. não podem ser compreendidas sem se levar em conta duas ordens de fatores. de todos contra todos. não há lei ou norma. se elimina a fé". . formuladas no Leviatã e em Sobre o Cidadão. a desconfiança e a glória. a melhor forma de precaver-se é antecipar-se. questionado por idéias liberais parlamentaristas. para Hobbes. 1997. uma antecipação tomando medidas para que não se transgrida alguma coisa. Capítulo XV. aprovamos ou reprovamos algo. desaparece a fé. Insegurança: "Quem pode mais. "feito para viver 7 “As idéias de Hobbes sobre a religião. 8 “Que cada um reconheça os outros como seus iguais por natureza . Afirma que há leis eternas. 1997. na qual o homem se porta em relação ao outro como um lobo. "Se se alcança a ciência. todos iguais. São iguais quanto a seus desejos e quanto ao fim. Os homens são iguais em capacidades de espírito e corpo e na esperança. Por outro lado. palavras vazias. sensibilidade). Mas. A guerra será justificada à medida que restaure a paz e a concórdia em um estado de natureza. em que o homem permanece num eterno conflito. afirma que por natureza alguns homens têm mais capacidade de mandar. preservar e proteger o homem do próprio homem. fazendo com que o conflito e a destruição seja inevitável no estado natural. 1993. Para a salvação do homem. ANTISERI. 1997. são separados entre si pelo egoísmo. 10 “O Estado deduz-se desta a-sociabilidade originária. é necessária a construção de um homem artificial. A condição natural em que os homens vivem entre si é uma condição de guerra de todos contra todos. no esforço de satisfazer o desejo e de afastar o indesejável. p. com o seu terror de poder a. perder a vida de modo violento" (REALE. Pois poucos há tão insenssatos que não prefiram governar-se a si mesmos do que ser governados por outros” (HOBBES. 129). para Hobbes. 239). no estado natural. mas pela diferença de inteligência. em que vive.. 237). nem pode cultivar as artes e tudo aquilo que é agradável. sendo uma instância ‘artificial’. por estar essencialmente preocupado com a ameaça do perigo de morte. ANTISERI. na mesma medida. ou seja. Assim o Estado não é natural entre os homens. 1999. evitando assim a guerra. 498). 1990. de inimizade constante e.). impera no homem a individualidade: "Cada qual tende a se apropriar de tudo aquilo que necessita para sua própria sobrevivência e conservação" (REALE. É importante lembrar que. 1999. p. O homem..). que está em constante conflito no estado de natureza. em suma. O objetivo principal do Estado é garantir a paz. p. 1990. acaba esquecendose de outros empreendimentos. que é o Estado Soberano10. 498). iguala-se em suas paixões. Assim ele se expressa sobre o conflito entre os homens: "O mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte. querendo com isso referir-se aos mais sábios (. e outros têm mais capacidade para servir (. os homens são diferentes uns dos outros. . (.. por isso é urgente que se construa um Estado artificial com a finalidade de organizar. p. 9 O argumento contra Aristóteles é: “Bem sei que Aristóteles.. Leviatã. Em síntese: "O Estado representa. cada homem permanece só. cujos frutos permanecem sempre incertos.. ódio e inveja. o fim do Estado de natureza e a inauguração da sociedade civil" (ABRAÃO. isto é.). o homem. o que é mais terrível. quer aliando-se com outros" (HOBBES Apud ABRAÃO. Para Hobbes. a instituição de um corpo político. o medo da morte. p. cap. não existe progresso nem empreendimento: "O homem trava uma luta constante na tentativa de sobreviver. quer por secreta maquinação. como as atividades industriais e comerciais. XV. 27). acaba confrontando-se com o interesse ou a vontade do outro. no estado de natureza. sob forma violenta. que marca a diferença específica dos homens em relação aos animais” (ROSENFIELD.. como se o senhor e o servo não tivessem sido criados pelo consentimento dos homens. cada instante. p. o que não só é contrário à razão. no livro primeiro de sua Política.110 com os outros em sociedade politicamente estruturada"9. mas também contrário à experiência. não-natural. por natureza. ele endossará Locke. jamais poderíamos ter ciência dele. tornando possível a construção de moradias confortáveis. a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito anterior e superior ao Estado: por isso. o comércio. dizendo que a finalidade do poder público consiste em proteger a propriedade. Se existe Estado. o Estado. Se houvesse sociabilidade natural. pela qual o homem afirma o pacto social. porque dependeríamos dos equívocos da observação. e ainda hoje. a Soberania centralizada. e quais as ações que pode praticar. o qual somente fica submisso ao Deus imortal. um Estado com organização. é porque o homem o criou. se encontra em estado de guerra onde a luta é de todos contra todos e que. . unindo assim as forças de todas as pessoas em uma só pessoa: o Leviatã. Mas o poder do Estado tem que ser pleno. Apresenta o Estado como monstruoso e o homem como belicoso. leis e que forma uma sociedade. que governa pelo temor que apresenta a seus súditos. estrutura-se o Estado (artificial). Porque antes da constituição do poder soberano (conforme já foi mostrado) todos os homens tinham direito a todas as coisas. mas é também porque nega um direito natural ou sagrado do indivíduo à sua propriedade privada. 148). regras. que.111 O Leviatã contempla conceitos que até então não haviam entrado em cena: vislumbra o monopólio da força utilizada pelo Estado. A igualdade é um fator que leva à guerra de todos. onde todos concedem seus direitos para o Estado governar. sem ser molestado por nenhum de seus cidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade. onde todos têm direito a tudo e. p. o Leviatã. Com o medo da morte violenta e da 11 “Pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras sobre através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar. o que necessariamente provocava a guerra” (HOBBES. pois sem esse temor ninguém abriria mão da liberdade natural. de permitir a convivência harmoniosa na sociedade. ninguém tem direito a nada11. que cria o Leviatã (o Estado). O deus mortal. Hobbes se opõe à visão aristotélica. surge a necessidade de um pacto social. na verdade. No seu tempo. a propriedade privada não existe no estado de natureza. o desenvolvimento do Homem e da Terra. constituiu-se o Estado. tornando-o o deus terreno. Levando em conta que a natureza do homem não é amigável como a dos animais que vivem em comunidade. dizendo que o homem está em estado de natureza. é a condição para existir a própria sociedade. 1997. a supremacia dos territórios nacionais. através de um pacto ou contrato social. Para Hobbes. Ele deixa de lado o seu estado de natureza e passa a fazer parte de uma nova sociedade. terá a função de proteger o homem. onde "o homem é lobo do homem". a sociedade nasce com o Estado. um contrato realizado entre súditos. Em sua teoria. Desse modo. Outro fator fundamental para o autor é a liberdade. terceiro. É desse modo que o Estado consegue reinar e passar por cima de qualquer um. os homens fazem um pacto. O estado de natureza é uma condição de guerra . Nisso. e. lei natural é um ditame da reta razão sobre as coisas a fazer ou omitir para garantir-se. Assim. há insegurança. o homem busca o lucro. pois não pode alguém se queixar do que ele mesmo construíra e. a preservação da vida e das partes do corpo” (HOBBES. a intenção não é a morte. e. ou seja. há perigo constante. . devido ao medo da morte violenta. é impossível conseguir a felicidade. no estado de natureza os indivíduos vivem isolados. Nada que o Estado faça pode ser chamado de injustiça. é a autodefesa. Assim nasce o Estado. com razão ou sem. A lei natural é um preceito ou regra geral estabelecida pela razão. haverá castigo. segundo. 58-59). leis artificiais que permitem ao súdito escolher qual a sua profissão. por isso. o qual lhe deu todo o poder de decidir o que é melhor e a força para fazer cumprir a decisão. ou seja. se alguém rebelar-se. o lugar onde vai morar. um contrato social. p. mediante a qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la12. O que leva as pessoas a organizarem-se é o medo da morte. o homem vive em estado de guerra. no qual renunciam a alguns direitos colocando-os nas mãos de um só homem. por isso o que vigora é o poder da força. caso necessária. Hobbes foi identificado como o ideólogo do Estado Absoluto. A razão sugere sempre a vida. Mas somente essas garantias não eram suficientes porque havia uma percepção social. age por antecipação. onde os homens não podem levantar-se contra o soberano. porque todos vivem perseguidos pelo temor de serem atacados uns pêlos outros. Pela teoria de Thomas Hobbes. e a Glória: o homem busca a reputação. estão em luta permanente. Nesta situação. causada por três motivos principais: Competição. Para se proteger. 12 “Definindo. pois ele é o soberano instituído pelo povo. o Soberano. traído -. Três pontos são importantes na lei natural: primeiro. quando possível. 1993.112 dor. usavam armas e cercavam as propriedades. portanto. criaram-se. perseguido. é de procurar a paz e seguir. é que os homens cumpram os pactos que celebram. poderoso. como a luta entre fracos e fortes. mesmo que seja servo do soberano. o súdito aparenta-se senhor de sua vida. a Desconfiança: o homem busca a segurança e. para os súditos terem um pouco de liberdade. todos se refugiam no Estado.porque cada um se imagina. através de pactos mútuos. elas são imutáveis. mas somente entre si. 13 “E os pactos sem a espada não passam de palavras. o uso da força para se obter um resultado esperado. mas da razão que procura os meios de conservação do homem. A obediência moral é um meio para uma "vida social pacífica e confortável". apenas em sua própria força e capacidade. 141). As leis não são deduzidas. Faz se necessária a entrega dos direitos particulares à mão de um único homem ou de uma assembléia capaz de governar.113 A alternativa para que o homem possa salvar-se em comunidade e não perecer é a instituição de leis naturais. Portanto. e poderá legitimamente confiar. não é firmado entre os súditos e o soberano. respeitados e mantidos entre os homens. então. sem vínculo com a Igreja. a terceira lei. sem a força para dar a menor segurança a ninguém. Três delas são essenciais: a primeira regra é que se esforce para buscar a paz. a segunda. diante dos acordos previamente estabelecidos. depois que o homem renunciou a todos os seus direitos. "Não existe pacto sem a espada" 13.. a injustiça é a transgressão dos mesmos. As leis. . se não a obtiver é justificável que a busque sob todos os recursos e benefícios da guerra. e representar os anseios de todos os homens. A primeira. p. Torna-se. de um instinto natural. da qual decorrem dois conceitos fundamentais: a justiça e a injustiça. "O poder do soberano ou da assembléia é indivisível e absoluto" (REALE. ANTISERI. por Hobbes. é a imposição de renúncia do direito sobre tudo. que o homem deverá cumprir. 1990. indispensável um governo que fosse seguido por todos os componentes do corpo social. É importante ressaltar que esse pacto é apenas hipotético. como proteção para todos os outros” (HOBBES. se não for instituído um poder suficientemente grande para a nossa segurança. para o cumprimento desses acordos. Porém.. O soberano é excluído do pacto. mas.). é necessária a coação. Talvez esteja aí a novidade do Estado Absolutista. p. é quando os acordos são feitos. por constituírem conclusões tiradas do raciocínio. é "que se cumpram os acordos feitos". tendo em vista que o direito individual é causador de todos os males. ou seja. necessitariam de um reforço como garantia de seu cumprimento em salvaguarda do pacto social. e isto haveria de requerer que esse governo tivesse toda a força. mas sim como conseqüência de um Pacto Social. nem de um consentimento universal. no entanto. 1997. sendo governado por reis com direitos ilimitados. para que a lei seja aplicada e respeitada. cada um confiará. 500). apesar das leis da natureza (. cada homem deve abrir mão de todos os seus direitos. porque somente assim seria capaz de corresponder à sua finalidade de exercício despoticamente. cabendo a ele cumprir a paz e o governo. para que este governe a todos. É preciso que exista um Estado dotado da espada. segurança e direção à conduta da vida social. O Soberano se conserva fora e isento de qualquer obrigação. (HOBBES. destrutiva da própria essência do Estado. um acordo. armado. p. sem exceção. o que somente surgiu depois de um pacto firmado por eles. que é uma renúncia do estado de natureza para então estabelecer regras e leis. porque cada um receberá o que o soberano determinar. impondo ordem. priva a soberania dos meios para proteger-nos. É um pacto. com cada um dos outros. pois. tendo o consentimento de todos os súditos. para forçar os homens ao respeito. cada um. Por essa liberdade. pode ser um homem ou uma assembléia de homens que reduz suas diversas vontades.o Estado . pois reconhecem serem deles mesmos tais ações.114 Hobbes define que "uma lei de natureza é um preceito ou regra geral. Daí surge a necessidade de um pacto. ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la". pacto social é o processo intermediado do estado de natureza para o Estado artificial. Portanto. ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles. Para pôr fim a esse conflito. estabelecido pela razão. O Leviatã. Desta maneira. a uma só vontade. Acredita que a origem do Estado está no contrato. Os súditos acatarão todas as ações do Soberano. que a qualquer homem. 113) Hobbes é um contratualista. que surge devido ao contrato. mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la. por pluralidade de votos. estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política. no momento da realização do contrato não existe ainda o soberano. O contrato social ocorre quando uma multidão de homens concordam e pactuam. tal como se fossem seus próprios atos e decisões. seja culpado ou inocente. o autor apresenta o contrato social. portanto. formando. Os súditos têm garantia de serem protegidos pelo . a imaginação será regulada melhor. a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos do restante dos homens. Os homens viveram naturalmente. deverão autorizar todos os atos de decisões. É produto de uma convenção. governo. o estado artificial. Esse pacto social consiste na transferência do poder de governar a si próprio a um terceiro . não faz parte do Pacto Social. O contrato é feito entre os súditos. Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado em defesa de outrem. O contrato social é um Estado artificial. sendo. 1997. sem poder e sem organização. assim. Hobbes afirma que não existe pacto sem espada. O contrato só é possível quando há noções nascidas de uma longa experiência da vida em sociedade. feita por contrato de todo homem com todo homem. O único meio de realizar este propósito. tem poder de interferir nas opiniões. nem transferir o poder a outro. isto é. assumindo tudo o que diz respeito à paz e à segurança comum. voltar à confusão da multidão desunida. 144). Já em relação ao homem dá-se um acordo artificial. somente ele detém todos os direitos. O resultado é a verdadeira união de todos na mesma pessoa. está acima da justiça. reduzir todas as vontades a uma só vontade. impotentes para garantir a segurança dos homens. A formiga e abelha. ou seja. ou um acordo natural. O Estado resulta de um contrato social e os contratos sem ameaça de espada são apenas palavras. quanto por um governante que o julgou concedendo-lhe a mais ampla defesa. aprovar ou proibir determinadas idéias. porque devem fidelidade a este. do legal e do ilegal nas ações. o Soberano deve ser juiz das opiniões e das doutrinas. conferindo todo o poder e potência a um só homem ou a uma só assembléia de homens. A ele compete o direito de julgar. Todos . de maneira alguma. Pelo contrato. com a condição de transferir a ele teu direito. O Estado Soberano é o Deus mortal. magistrados e oficiais. que consiste em defendê-los da invasão dos outros Estados e defendê-los de si mesmos. as regras do meu e do teu. É como se cada um dissesse a cada um: "Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem. a lei do mais forte é que vence. ou a esta assembléia de homens. O homem tem certas diferenças em relação aos animais. "julgar.115 Soberano. ouvir e decidir todas as controvérsias que surgem a respeito da lei. exercem uma sociedade natural. A ele compete o direito de declarar e executar a guerra e a paz com outros Estados e tomar as providências para realizá-la. nomear um homem ou uma assembléia de homens para representar a pessoa de todos. ao que se denominam lei civis. p. Para que um Estado funcione. o povo é obrigado a permanecer fiel ao compromisso assumido e não pode. por isso. o que é chamado de Estado. dá-se então a competição. conduzir a paz e regulamentar as ações. tanto faz a sua vida ser ameaçada por um Soberano impiedoso e ímpio. civil ou natural. por exemplo. a multidão se une de tal maneira em uma só pessoa. ou com respeito aos fatos. ministros. A ele cabe escolher todos os conselheiros. É ao Estado que compete prescrever as regras sem as quais ninguém teria segurança na posse da propriedade. 1997. de onde resulta a concórdia. pois todos são instituídos a serem uns mais que os outros. do bem e do mal. O súdito prometeu obedecer a fim de não morrer na guerra generalizada. autorizando de maneira semelhante todas as suas ações" (HOBBES. Feito isso. todos devem obediência às leis do Estado. este leva ao desejo da paz. o Estado também pode interferir em matéria de religião. 1997. não pelo beneficiário. não basta o fundamento jurídico. do Soberano. tudo o que prejudique a concórdia. a segurança. um governo absoluto que fosse seguido por todos os integrantes (súditos) do corpo social.116 os poderes devem se concentrar em suas mãos" (REALE. Mas o Soberano deve resolver todas as pendências e arbitrar qualquer decisão. ele próprio é o autor da sua morte. Todos os poderes encontram-se nas mãos do Soberano. ANTISERI. Hobbes diz que o Soberano governa pelo temor que impõe a seus súditos. inclusive o poder de decisão em matéria religiosa. No Estado Artificial. Porque. Não há alternativa: ou o poder é absoluto ou continuamos na condição de guerra. Os homens não poderiam contrariar o "Leviatã". A liberdade e a garantia da vida estão no cumprimento e obediência às leis. Hobbes vai beber na fonte de Jean Bodin . O instinto de conservação é peça fundamental na filosofia de Hobbes. No Estado absoluto de Hobbes. Governa também no homem o instinto de conservação que. Hobbes diz que o Estado tem que ser absoluto. A sociedade nasce com o Estado. os insultos. Por uma razão simples: no momento do contrato não existe ainda soberano. como razão para a conservação dos homens.primeiro teórico a afirmar que no Estado deve haver um poder soberano. XXI).condição absoluta e necessária para existir a sociedade.século XVI . Hobbes desenvolve essa idéia. o orgulho. ou seja. p. porque cada um receberá o que o Soberano determinar. 1990. Hobbes foi o pioneiro do utilitarismo. como vimos anteriormente. portanto. sem . cap. o indivíduo conserva um direito à vida talvez sem paralelo em nenhuma outra política moderna. assim. que só surge devido ao contrato. é que cada um "não faça aos outros o que não gostaria que lhe fizessem a si" (HOBBES. enfim. quanto à sua idéia de força genética do comportamento. O Soberano não assina o contrato. Nem mesmo a Igreja lhe submete o poder. o seu poder deve ser pleno . Disso resulta que ele se conserva fora dos compromissos e isento de qualquer obrigação. entre poderes que se enfrentam. por Hobbes. este é firmado apenas pêlos que vão se tornar súditos. e monta um Estado que é condição para existir a própria sociedade. pois ele garantia a paz. a imaginação será regulada melhor. a liberdade. 501). E preciso que exista um Estado dotado de espada: aliás. Em nível de relações morais. E preciso evitar a ingratidão. As leis são deduzidas. Era indispensável. por sua vez. Se alguém tentar destruir ou conspirar contra o Soberano e for morto. porque justificava a obediência moral como meio para uma "vida social pacífica e confortável". 5° . a função do Soberano é garantir: 1° . com a condição de que tu lhe cedas o teu direito e autorizes todas as tuas ações da mesma forma". que o teoria hobbesiana choca-se com a teoria liberal e que o principal nome da teoria liberal também era inglês. e viveu quase no mesmo período de Hobbes. que se dará nas mãos de um homem (ou assembléia) na medida em que representam toda a vontade coletiva. se não temesse a morte violenta. o interessante é que o estudante perceba que o desejo de Hobbes por um estado forte decorre de sua filosofia da natureza humana. 4° . Hobbes é considerado o maior teórico do Estado absolutista.117 medo. no próximo capítulo. . que garantirá a segurança e o direito à vida.a centralização dos poderes. por meio da pluralidade de vozes. Trata-se de John Locke. 3° . que é fundamental para a estruturação de um governo Soberano: "Eu autorizo e cedo o meu direito de governar-me a mim mesmo a esse homem ou a essa assembléia de homens.o pacto entre os homens.a superação do medo e da morte pela esperança. o homem não renunciaria ao direito que possui por natureza.a defesa dos ataques estrangeiros e das injúrias recíprocas. O estudante verá. ninguém abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente. a uma só vontade. 2° . Segundo a teoria de Thomas Hobbes.a paz e o progresso (industrial) e a satisfação do bem viver. o conceito é ambíguo. inicialmente pretende-se definir o que se entende por liberalismo. detentora de velhas e novas liberdades civis. o termo indicava uma atitude aberta. A DEFESA DAS IDÉIAS LIBERAIS Há vários entendimentos sobre o conceito “liberal”. principalmente a livre iniciativa econômica. Tolerante e/ou generosa. Ou as profissões exercidas por homens livres. Por isso. O liberalismo político trata da luta política parlamentar. refere-se à esquerda. O liberalismo é um fenômeno histórico que se manifesta na Idade Moderna e tem seu epicentro na Europa. em síntese. A primeira idéia nos diz que o liberalismo está ligado à democracia burguesa. mas que exerceu influência notável nos países colonizados pelos europeus. de acordo com o país. Na Itália. O liberalismo econômico defende que o máximo de felicidade comum depende da livre busca de cada indivíduo. em termos de idéias. da própria felicidade. capaz de garantir direitos aos indivíduos. Na Inglaterra e Alemanha. O liberalismo de Locke: o cidadão com direitos naturais . Antes do século XIX. capaz de promover mudanças. os liberais são os defensores da livre iniciativa econômica e da propriedade intelectual.9. prioriza o indivíduo em contraposição ao coletivismo. O liberalismo. 9.1. porém nunca a revolução. designa um posicionamento entre a esquerda e a direita. O liberalismo jurídico preocupa-se principalmente com determinada organização do Estado. na área Atlântica. baseada no chamado “justo meio” como expressão da arte de governar. Hoje. a palavra assume muitos significados. Síntese entre conservação e inovação. Nos EUA. Assim. Nasce. no instante do nascimento. (1983. Locke publicou pela primeira vez. . neste sentido. Acesso em dezembro de 2007. Tomo II. A Inglaterra. ou melhor. o homem já trazia consigo (ao nascer) o conhecimento impregnado em sua alma. Locke combateu duramente a doutrina das idéias inatas defendidas por Platão e Descartes. Ensaio Filosófico sobre o Entendimento Humano e a Carta sobre a Tolerância. no ano de 1632 2.jpg. Ver Chevallier. sendo Locke o seu teórico.1 John Locke nasceu na Inglaterra. justamente com a Inglaterra. Locke combateu ferozmente tais idéias. ao qual teria acesso através da reminiscência (recordação). é como uma tábua rasa (papel em branco) que vai adquirindo conhecimento na medida em que os sentidos se confrontam com a realidade: “nada existe em nossa mente que não tenha sua origem nos sentidos”. Essa obra foi considerada a Bíblia do Iluminismo. 2 3 Ver Almeida Mello (1991). três grandes obras: Dois Tratados sobre o Governo Civil. os direitos cidadãos. Defendeu que nossa mente. começa a ascender economicamente e a buscar os direitos individuais. Disponível em http://www.119 John Locke. Em 1689. da capacidade de conhecer. a partir da segunda metade do século XVII. Locke defende a idéia 1 Imagem de John Locke. Para Platão. o cidadão.geocities. transformou-se num império mercantil promissor. como classe social. Nesse período a burguesia.3 O Ensaio Filosófico sobre o Entendimento Humano é a principal obra de Locke e versa sobre a sua compreensão do espírito humano.com/rationalargumentator/John_Locke. p. 29). adquirimos as nossas idéias de fora. são verdadeiras? Quanto pode o entendimento humano compreender e que tipo de conhecimento está ao seu alcance? Conhecer para Locke significa perceber uma relação entre as idéias. “As idéias que se gravam nessa tabula ou nessa folha só podem promanar da experiência. Também. assim surgidas. De fato. com uma habilidade infinita” (CHEVALLIER. . como também todo o pensamento a priori. onde nada está escrito. já nascem com a idéia que irão dominar e explorar o povo e então isso nós devemos aceitar? Vê-se algumas críticas que Locke cerra contra os teóricos que defendem as idéias inatas (já nascemos com o conhecimento). Afirma também que as capacidades do conhecimento são inatas. que se desenvolve quando a mente se debruça sobre si mesma. uma dominação. O conhecimento humano começa com a experiência sensível e é condicionada por ela. as idéias são de dois tipos: há idéias simples. Nada está na mente sem antes passar pela experiência. Nota-se que Locke lutará para derrubar as idéias inatas. se houvessem idéias inatas. 1983. A reflexão é o nosso “sentido interno”. É nela que o espírito vai buscar todos os seus materiais para depois os modelar. torna-se impossível verificar o seu valor como também distinguir o verdadeiro do falso. transformar. mas nunca lhe acrescenta nada4. Para Locke. elas podem confirmar o nosso conhecimento. combinar. 32. analisando suas próprias operações. existem idéias complexas que são combinações das idéias simples. de nada valem a observação e a experiência. Assim resta indagarmos: De onde vieram nossas idéias se não são inatas? Como poderemos saber se nossas idéias. p. mas as idéias são adquiridas pela experiência. pois. Ora.120 empirista de que tudo provém da experiência. não provenientes da experiência. que podem justificar uma ideologia. o espírito humano é uma tabula rasa ou um white paper. A sua verdade não pode ser averiguada: admitida a existência de idéias inatas. Na melhor das hipóteses. se a verdade é inata em nossas mentes. Tomo II). No momento do nascimento a alma é uma tábua rasa: não tem nenhuma idéia. Locke também examina o processo cognitivo (intelecto). porque não podemos confrontá-la com a experiência. todas as nossas idéias provêm da sensação. Antes de experimentarmos a 4 Para Locke. Mas a experiência mostra claramente o contrário. Locke ataca frontalmente o princípio das idéias inatas. elas deveriam estar presentes na mente das crianças e do selvagem crescido longe da civilização. os poderosos têm idéias inatas. que derivam imediatamente da sensação ou de uma experiência interior que é a reflexão. que é o único modo de estabelecer se alguma coisa é verdadeira ou falsa. Por exemplo. reprimindo os que fazem o mal – direito natural de punir5. 5 “O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano. Locke contesta o acordo universal dos inatistas e refuta-os dizendo que isso não prova o que é inato. se fosse inata deveria permanecer. pelos sentidos. quanto à vida. o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que provém originalmente no estado de natureza. Locke também parte do estado de natureza. 86). à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o manto da lei. O estado de natureza de Locke não é de inimizade e guerra como o de Hobbes. não há concordância entre ambas. do arbítrio e da força comum de um corpo político unitário” (ALMEIDA MELLO. Não há princípios práticos inatos. . até chegar ao governo civil. a natureza autorizou cada um a proteger e conservar o inocente. os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual. Isto é. trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã. já não é evidente ou deveria sê-lo. liberdade e propriedade privada. a sociedade civil moderna será instituída e organizada a partir de um contrato entre todos os indivíduos. nenhum deve prejudicar o outro. o aborto. John Locke é considerado um pensador contratualista. se fossem inatos teriam que permanecer sempre. sendo todos iguais e livres. No estado de natureza de Locke os indivíduos estão regulados pela razão. p. pois tudo aquilo que se encontra no intelecto deve passar. que é uma idéia adquirida. à saúde. Procurava ele um contraveneno que fosse capaz de destruir tais idéias. pois estes não alcançam uma recepção universal. Em Locke. Vislumbramos como princípio moral. de prova e exemplarmente. ao próprio bem”. E. não podemos pensar. antes primeiramente. No princípio teórico. Um princípio prático precisa de prova. Assim como Hobbes e Rousseau. o que é evidente não é inato. Considerava Locke a teoria do direito divino dos reis de governar um veneno para a política. Notemos que os princípios práticos são passageiros. transferem a um terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva da comunidade. Em Hobbes. que. É nela que Locke teoriza contra as idéias absolutistas. passando pelo contrato. para que ninguém empreenda ferir os direitos alheios. 1991. diz que a razão não descobre coisa alguma. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida. há uma organização présocial e pré-política onde todos nascem com os direitos naturais: vida. A outra obra importante de Locke chama-se Dois Tratados sobre o Governo Civil. visando a preservação de suas vidas. à liberdade.121 sensação. A vontade intelectual de Locke é de demolir a doutrina do direito divino dos reis de governar. sendo que é impossível para uma mesma coisa ser ou não ser. O não matar é um princípio evidente. mas não é inato. Sobre a razão natural: “Ensina a todos os homens. é a extensão de terra que cabe a cada homem. O estado de natureza de Locke é diferente do estado de natureza hobbesiano (uma vez que este é baseado na insegurança e na violência: “guerra de todos contra todos”). é o que ele tem capacidade de lavrar. ou até mesmo ser feliz. filósofo e político. ou para a mesma garantir direitos. Locke não fala em acumulação da propriedade para fins especulativos. só retornando à sua pátria após o triunfo da Revolução Gloriosa. para Locke. tendo como representante a burguesia ascendente. O contexto histórico em que nasceu John Locke não foi o de uma aparente tranqüilidade. Jonh Locke é também chamado de filósofo contratualista. o século XVII foi marcado por constantes lutas entre a “coroa”. Locke afirma que os homens se juntam em sociedades políticas e submetemse a um governo com a finalidade principal de conservar suas propriedades. principalmente ao governo Stuart. A idéia de Locke é que se forme estados por livre associação para produzir mais. Sustentou que o poder não é somente do Soberano. semear e cultivar. tendo o rei como representante do poder soberano (representado na Inglaterra pela dinastia Stuart. o estado . a falta de um Estado) não garante a propriedade. vindo a ser perseguido. o triunfo do liberalismo político sobre o absolutismo. com a implantação da República na Inglaterra. muito pelo contrário. ou seja. segundo Locke. mas. partidária do liberalismo. mas sua autoridade vem somente do contrato que o faz nascer: este é o fundamento liberal do pensamento de Locke. Em toda a sua vida. Na época de Locke nota-se a ascensão da burguesia que. Locke teorizou contrariamente ao absolutismo. mais tarde. defendeu idéias liberais e influenciou o sistema político da época. O Estado natural (isto é. o que o levou a se exilar. Assim. Na visão de Locke. Locke foi um teórico relacionado com a monarquia parlamentar liberal. Locke parte do estado de natureza onde o homem vive num estágio pré-social e pré-político com liberdade e igualdade. de todos. estará à frente da Revolução Francesa (1789). pois o estado natural não a garante. uma vez que entende que para a boa regulamentação de uma sociedade. O Estado é soberano. os homens se juntam em sociedades políticas e se submetem a um governo com a finalidade principal de conservar suas propriedades.122 O direito de propriedade. John Locke foi médico. defensora do absolutismo) versus o “Parlamento”. Tornar-se necessárias a elaboração e a construção unânimes de um contato social que conceda de fato todas as garantias possíveis para a realização concreta de tais empreendimentos. 1973. entende-se a posse de bens móveis e imóveis. 77. Diz Locke: pode ser qualquer forma de governo. Como a razão natural na compreensão de Locke ensina que todos os homens são iguais e livres. 127). o homem concebe “a sociedade política ou civil”. Assim. sendo uma instituição anterior à sociedade. Então. 6 “Em suma. 96. a proteção do direito de propriedade pelo governo. o contato social é a realização da passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil e visa exclusivamente preservar e proteger a comunidade tanto dos perigos internos quanto externos. Um dos direitos do homem no estado natural é a propriedade privada. os principais fundamentos da sociedade civil” (ALMEIDA MELLO. 1991. a propriedade já é realidade no estado de natureza e. a fim de limitar o poder e mudar o domínio de cada parte e de cada membro da comunidade. para Locke. A saída é estabelecer um contrato entre os homens que dê total segurança e proteção aos proprietários. Em Hobbes. O próximo passo é a escolha de uma forma de governo capaz de garantir efetivamente os direitos dos cidadãos. sempre surge o perigo iminente da invasão e da tomada dos bens de uns sobre os outros. concórdia e harmonia. igualmente. O contrato é. p. A ele caberá a elaboração das leis. quem detém a propriedade é o soberano e os súditos não têm direito algum. na medida em que todos são proprietários. o livre consentimento da comunidade para a formação do governo. um “pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza”. Como vimos. porém com direitos aos bens. (LOCKE. . p. 87). tendo como sustentação o poder delegado pelo povo. desde que “o governo não possua outra finalidade a não ser de conservação da propriedade”. tornando possível a existência de “leis e regras estabelecidas como guarda e proteção às propriedades de todos os membros da sociedade. Por teoria da propriedade. é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado.123 da natureza é de relativa paz. o controle do executivo pelo legislativo e o controle do governo pela sociedade. em Locke. em Locke o objetivo final é que o Estado garanta o direito de propriedade6. não vindo a acontecer a usurpação de uns sobre os outros. pois não se poderá nunca supor seja vontade da sociedade que o legislativo possua o poder de destruir o que todos intentam assegurar-se entrando em sociedade e para o que o povo se submeteu a legisladores por ele mesmo criados”. são. O Governo civil contará com o poder Legislativo como sendo o mais importante entre os demais. o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade. ao mesmo tempo. liberdade. Para Rousseau. Assim como para Hobbes e Locke. o poder Executivo é delegado ao Rei pelo Parlamento. Locke defende também que a religião seja livre e que não dependa do Estado. a Legislativa e a Executiva. está o da propriedade privada. propriedade). na dupla distinção entre as duas partes do poder. o Parlamento e o Rei. 8 . que é fruto de seu trabalho. também para Rousseau existe uma condição natural dos homens. 9. mas é uma condição de felicidade. bem como na correspondência quase perfeita entre essas duas distinções . e entre as duas funções do Estado. de virtude e de liberdade. O Estado deve. portanto. a função do Estado é garantir os direitos naturais (vida.8 É a concepção oposta àquela de Hobbes. que é destruída e apagada pela civilização.124 Em síntese. justamente.7 Com Jean Jacques Rousseau (1712-1778) nasce a concepção democrático-burguesa do Estado. como o teórico da monarquia constitucional.o poder Legislativo emana do povo representado no Parlamento. reconhecer e proteger a propriedade.2. Locke passou para a História. um sistema político baseado. o homem possuía quando no estado de natureza. para Locke. segundo Locke. é a civilização que perturba as 7 Imagem de Jean Jacques Rousseau Ver Nascimento (1991). O Estado democrático de Rousseau Jean Jacques Rousseau. Entre os direitos que. 125 relações humanas, que violenta a humanidade, pois os homens nascem livres e iguais (eis o princípio que vai se afirmar na revolução burguesa), mas em todo lugar estão acorrentados. A sociedade nasce, igualmente, de um contrato, ele apresenta a mesma mentalidade comercial e o mesmo individualismo burguês. O indivíduo é preexistente e funda a sociedade através de um acordo, de um contrato. Para Rousseau o único órgão soberano é a Assembléia, e é nesta que se expressa a soberania.9 A assembléia, representando o povo, pode confiar a algumas pessoas determinadas tarefas administrativas, relativas à administração do Estado, podendo revogá-las a qualquer momento. Mas o povo nunca perde a sua soberania, nunca a transfere para um organismo estatal separado.10 A afirmação da igualdade é fundamental para Rousseau. O homem só pode ser livre se for igual: assim que surgir uma desigualdade entre os homens, acaba-se a liberdade. Para o liberal, há liberdade na medida em que se leve em consideração a desigualdade entre proprietários e nãoproprietários: sendo que a igualdade mataria a liberdade. Ao passo que, para Rousseau, o único fundamento da liberdade é a igualdade: não há liberdade onde não existir a igualdade11. Rousseau não compreende que o surgimento da propriedade privada foi um grande progresso em relação à sociedade dos bárbaros - embora um progresso doloroso. O que originou a propriedade privada não foi um ato isolado, em que um indivíduo colocou um marco e se declarou proprietário da terra: a propriedade é fruto de um processo econômico de desenvolvimento das forças produtivas. Rousseau não soube indicar como se superaria a propriedade privada. Rousseau tem em vista a democracia da Antiga Atenas, porém, vê, igualmente, limitações neste modelo (cidadão versus escravo). Afirma Rousseau: “a democracia de que falo não existe, nunca existiu e talvez nunca existirá; também essa condição natural, a que devemos aspirar, não 9 Escreve Nascimento (1991, p. 197-198): “Rousseau não admite a representação ao nível da soberania. Uma vontade não se representa. ‘No mundo em que um povo se dá representante, não é mais livre, não mais existe’”. 10 “O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: ‘Isto é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para crê-lo, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos seu semelhantes: ‘Guardai-vos de escutar este impostor; estais perdidos se esquecerdes que os frutos são para todos, e que a terra é de ninguém (ROUSSEAU Apud WEFFORT, 1991, p. 2001). 11 “Um povo, portanto, será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas leis signifique, na verdade, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos” (NASCIMENTO, 1991, p. 196). 126 existe, nunca existiu e nunca vai existir”. A sociedade, para Rousseau, nasce de um contrato, também com uma mentalidade comercial e o mesmo individualismo burguês. Em síntese, algumas idéias conclusivas de Rousseau: tem-se, com o autor, o debate da democracia ideal e pura (a sabedoria do povo e o governo democrático); o pacto social dá origem à vontade geral do povo soberano; o contrato social faz nascer a sociedade civil, que, por isso, enraíza-se sempre na vontade geral do povo; a idéia de soberania liga-se à idéia de vontade geral; a vontade geral soberana é inalterável e pura; em seu dever-ser, que é sua única maneira de ser, ela não pode falhar nem errar; todo governo legítimo é republicano, seja ele uma monarquia, uma aristocracia ou uma democracia e, por fim, a conclusão de que “nunca existiu verdadeira democracia nem jamais existirá”.12 9.3. A democracia moderna: filha do Estado Liberal Pode-se apresentar duas diferenças básicas para o termo democracia. Para os antigos, a democracia era entendida como democracia direta; já para os modernos, como representativa.13 O termo democracia, vai além do entendimento simplista de um conceito que é lembrado apenas no tempo de eleições, quando, num “gesto” democrático, todos vão às urnas “exercer a democracia”. Ou, quando se ouve, pela mídia que “caiu um governo ditador e instaurou-se um regime democrático”. Para Bobbio, “o voto não é para decidir, mas para eleger quem deverá decidir”. Isso significa afirmar que a maioria da população votará consciente ou não em um grupo, delegando, assim, a esta minoria o poder de governá-los. Democracia não significa que “todos” participem do processo eleitoral. Para Kelsen, um dos maiores teóricos da democracia moderna, a eleição é o elemento essencial da democracia real, pois possibilita a seleção dos líderes para o progresso (2000, 372). Bobbio cita uma frase ilustrativa da Corte Suprema dos EUA, por ocasião das eleições no ano de 1902, para demonstrar o caráter “sagrado” do processo eleitoral daquele país, mesmo que quem dela participe seja apenas uma minoria: “A cabine eleitoral é o templo das instituições americanas, onde cada um de nós é um sacerdote, ao qual é confiada a guarda da arca da aliança e 12 13 Para aprofundar o debate sobre Rousseau conferir a obra de Goyard-Fabre (2003). Este debate segue a idéia de Bobbio (2000). 127 cada um oficia do seu próprio altar” (2000, p. 272). É possível perceber que a democracia ocidental é um processo relativamente novo. As revoluções Americana e Francesa datam seu início.14 A democracia na Modernidade, fez algumas “promessas” que até agora, na visão de Bobbio (1997, p. 27), não foram cumpridas. A primeira é de que a democracia ainda continua subordinada a um poder “invisível”, isto é, interesses que subordinam os poderes políticos. Aqui se pode entender a superioridade de um grupo ou pessoa, que detém o controle do poder econômico ou ideológico: “A democracia não conseguiu derrotar por completo o poder oligárquico, é ainda menos capaz de ocupar todos os espaços nos quais se exerce um poder que toma decisões vinculatórias para um inteiro grupo social”. A segunda, os “mesmos” permanecem no poder. De eleições em eleições acabam se elegendo sempre os “mesmos”. Terceiro, “ausência do crescimento da educação para a cidadania”, cada vez mais o povo vê-se desacreditados, dos meios políticos, a apolitização virou uma constante. Bobbio remete a Alex de Tocqueville para justificar a ignorância política da maioria da população em relação à política e denúncia a usurpação dos “eleitos” aos bens públicos. Tocqueville lamenta a degeneração dos costumes públicos em decorrência da qual “as opiniões, os sentimentos, as idéias comuns são cada vez mais substituídas pelos interesses particulares” e pergunta “se não havia aumentado o número dos que votam por interesses pessoais e diminuído o voto de quem vota à base de uma opinião política”, denunciando esta tendência como expressão “de uma “moral baixa e vulgar”, segundo a qual “quem usufrui os direitos políticos pensa em deles fazer uso pessoal em função do próprio interesse”. Quarto, os “mais sábios, os mais “honestos” e os mais “esclarecidos” são escolhidos (BOBBIO, 1997, p. 27). Seguindo a concepção de Bobbio, pode-se definir a democracia como “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem ‘quem’ está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”. Para que se realize a “verdadeira” democracia, deve-se dar as reais condições para se escolher. Para que isso, “é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião; de associação, etc” (BOBBIO, 2000, p. 20). A democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade e do Estado. Para isso, ocorreram três eventos que caracterizaram a filosofia social da Idade Moderna: o contratualismo 14 Bobbio apresenta o conceito de democracia em dois sentidos: a democracia pode ser entendida no sentido “ideal” e no sentido “real”. o nascimento da economia política (Smith) e a filosofia utilitarista (de Bentham a Mill). O terceiro obstáculo é a “ingovernabilidade” da democracia. e de outra parte. O estado liberal é o pressuposto não só histórico. 34) que “a democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos possam decidir a respeito de tudo.. Como vimos. A sociedade civil e o Estado O conceito “sociedade civil” vem sendo muito utilizado por comentadores e teóricos das Ciências Sociais e Ciências Humanas nos diais atuais. é pouco provável que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia. Portanto. p. de uma economia de mercado para uma economia protegida. ao contrário. Ou seja. p. Porém.. o conceito “sociedade civil” aparece hoje como sendo exatamente o oposto do que era no princípio.. pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos”. estado liberal e estado democrático são interdependentes. 34). tem-se a tecnocracia. inverteram-se os termos. A tecnocracia. Um dos principais obstáculos do projeto político-democrático atual é a complexidade das sociedades “que passaram de uma economia familiar para uma economia de mercado. Defende Bobbio (2000.4. há uma “sensível” mudança nos rumos da política atual. mas jurídico do estado democrático. foi o Estado liberal que alargou o estado democrático e ambos contribuíram para emancipar a sociedade civil do sistema político. 34).128 (séculos XVI e XVII). 2000. . é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais (BOBBIO. Neste sentido. planificada. p. Isso significa que o Estado é incapaz de solucionar as demandas oriundas da sociedade civil.. 20). ao invés da democracia. 9. regulada. O segundo obstáculo citado por Bobbio é o crescimento do aparato burocrático: “estado democrático e estado burocrático estão historicamente muito mais ligados um ao outro do que a sua contraposição pode pensar” (2000. que aumentaram os problemas políticos que requerem competência técnicas” (2000. Tecnocracia e democracia são antitéticas. a democracia é uma criação da classe burguesa. p. 1983. existe uma constituição. 1983. a ciência e a benevolência. É importante perceber que “civilizada”. a paz. p. tem uma conotação negativa. a Sociedade Civil é a sociedade política e ao mesmo tempo a sociedade civilizada. como sendo uma sociedade de “civilizados”. após haver cercado um terreno e passou a dizer isto é meu e achou os outros tão ingênuos que acreditaram. a decência. em que não existe progresso. permanecendo até a posição de Kant. Segundo tratado. A sociedade civil nasce com o jusnaturalismo de Hobbes. sendo sinônimo de sociedade política. que garanta a propriedade. não tiveram nem rei.15 Da mesma forma. Hobbes assim se refere: “Em muitos lugares da América.129 Primeiramente.. Entende-se por “estado de natureza”. Diz o teórico: “o primeiro que. nos remete para o início da Modernidade (XVI-XVII). os selvagens não tem nenhuma forma de governo. (Apud Bobbio. 1983. pré-político. ou seja. . a não ser o governo de pequenas famílias. 1207). que surgirá do contrato social e será uma recuperação do estado de natureza e uma superação da Sociedade Civil 15 16 Conferir HOBBES. Quando os teóricos contratualistas querem dar um exemplo do “estado de natureza” citam os povos da América. John Locke afirma que “em muitos lugares da América não havia nenhum governo” e de que “aqueles homens. no sentido original. XIII.16 Assim. 1206). para Rousseau. cuja concórdia têm como fundamento a concupiscência natural”. a paz está sempre ameaçada. nem técnica e o medo da morte é uma constante. sem perder o seu sentido original. Para os contratualistas. a Sociedade Civil é a sociedade civilizada. Conferir LOCKE. p. mas de “civilitas” (civilizados). 1207). cap.. a tudo o que se refere a um estágio de pré-sociedade. parágrafo 102. apenas em bandos”. o conceito de sociedade civil adquire um novo significado. Para os mesmos. vivendo. Para Rousseau. a segurança.. de modo geral. como sendo o próprio Estado (BOBBIO. por longo tempo. Já para Hobbes e Locke. mais precisamente para os teóricos jusnaturalistas como Thomas Hobbes e John Locke. o termo “sociedade civil”.. “sociedade política” e “sociedade civilizada” são dois significados que se sobrepõem. J. nem repúblicas. p. mas não necessariamente ainda a sociedade política. varia sensivelmente entre os pensadores posteriores. a sociedade civil contrapõe-se à “sociedade natural”. (Apud Bobbio. Já a sociedade civil é entendida como a constituição do Estado propriamente dita. T. foi o verdadeiro fundador da Sociedade Civil”. O Estado se contrapõe ao estado de natureza e ao estado selvagem. Leviathan. onde civil não é mais adjetivo de “civitas” (cidade). Rousseau usa o termo “sociedade civil” no sentido de “sociedade civilizada”. a participação. a Sociedade Civil compreende a esfera de relações econômicas e. Sendo assim. 1208). Hegel trata da questão da Sociedade Civil no livro Filosofia do Direito. A Sociedade Civil. Para Marx a Sociedade Civil é o espaço onde têm lugar as relações econômicas. que acompanha e se integra de fato . ao mesmo tempo. ou a “base real” sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política. Diz Marx: “A emancipação política foi. significa “burguês”. 1206). A Sociedade Civil não é mais a família (sociedade natural) e ainda não é o Estado (forma mais ampla da eticidade). p.130 (1983. portanto. ou seja. Particularmente. Para Locke. a partir de Marx. do ponto de vista hobbesiano. Sintetizando. É necessário afirmar que o conceito “civil”. que se distingue do momento do puro domínio como momento da direção espiritual e cultural. é o conjunto de organismos vulgarmente denominados privados. A Sociedade Civil de Rousseau é. já possui algumas características do Estado. em alemão bürgerlich. a Sociedade Civil e o Estado diferem-se entre ambos. a Sociedade Civil. K. a Sociedade Civil. para Gramsci. A Sociedade Civil se coloca em Hegel entre a forma primitiva e a forma definitiva do Espírito Absoluto. o da hegemonia. uma sociedade natural. p. p. 1209). passa a significar a sociedade pré-estatal. as relações que caracterizam a estrutura de cada sociedade. Hegel define-a como “Estado externo”. Apud BOBBIO. por isso. Em Marx é que se dá a passagem do significado de Sociedade Civil em sociedade burguesa. insuficiente de Estado. ou “Estado do intelecto”. enquanto a sociedade política ou Estado é o conjunto de organismos que correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e ainda ao domínio direto ou de comando que se expressa no Estado ou no Governo Jurídico. mas não é ainda propriamente Estado. Para Hegel. pertence à estrutura. portanto. sendo. A Sociedade Civil de Hegel é mais extensa e abrange também a regulamentação externa (estatal) dessas relações. já uma forma preliminar e. Na visão de Gramsci. que não passa de uma associação de proprietários. em Hegel. a Sociedade Civil é a sociedade política (Estado). a emancipação da sociedade burguesa da política e da aparência de um conteúdo universal” (MARX. Para Marx. O que falta à Sociedade Civil para ser um Estado é a característica da organicidade (1983. a Sociedade Civil é o momento preliminar para a estruturação do Estado. bem diferente da concepção hegeliana de Estado. 1983. Gramsci entende por Sociedade Civil apenas um momento da superestrutura. gif. p. mas à superestrutura. por definição. que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as instituições estatais. não à estrutura. na transformação das realidades sociais em que se encontram. como a esfera das relações entre indivíduos. Hoje. O direito à resistência: a tese de Hume David Hume. e que deve acompanhar e integrar nas classes que tendem ao domínio. Bobbio cita Max Weber para explicar a Sociedade Civil nos nossos dias. . em suas respectivas atividades. sendo sinônimo de Estado. Acesso em dezembro de 2007. às quais deu particular relevo e modificou o significado marxista da expressão. A Sociedade Civil organizada garante a possibilidade do surgimento e organização de inúmeras instituições e movimentos sociais capazes de atuar. Disponível em http://www. entre grupos.131 nas classes efetivamente dominantes. segundo o qual a Sociedade Civil. a Sociedade Civil é o espaço das relações do poder de fato e o Estado é o espaço das relações do poder legítimo. De fato.5. Sociedade Civil e Estado não são duas entidades sem relação entre si. 1210).centrofilosofia. segundo Marx. Gramsci chama de Sociedade Civil o momento da elaboração das ideologias e das técnicas de consenso. o espaço das lutas sociais. 1210). pois entre uma e outra existe um contínuo relacionamento (1983. entre classes sociais. Assim entendidos.17 17 Imagem de David Hume. p. o momento da força pura força (1983.org/images/david_hume. pertence. voltando parcialmente ao significado tradicional. a Sociedade Civil é. 9. entende-se a Sociedade Civil. Segundo Weber. Para Hume. caso contrário. Da mesma forma Hume condena a subordinação irrestrita dos homens em relação à lei.. revela uma idéia absurda da subordinação dos deveres” (p. se acaso a execução da justiça implicar conseqüências altamente perniciosas. é possível haver alguma manifestação de resistência e direito de rebelar-se? São legítimas tais posições? David Hume (1711-1776). é evidente que. se acaso tal execução da justiça implicar conseqüências malévolas para a maioria do povo. essa virtude deve ser suspensa e substituída pela utilidade pública. em casos extraordinários. lhe é permitido. na possibilidade e na aceitação incondicional do direito de rebelar-se. o absolutismo (direito divino de governar da monarquia) e. pois a mesma só é válida quando considerar o bem público. da coação através de todo tipo de atos de violência.132 Frente à imposição de uma cultura dominante e dos possíveis descasos e desmandos do Estado. na prática. a fim de preservar a paz entre os homens. Fica evidente que a obrigação da justiça é servir aos interesses da sociedade. igualmente. sacrificando os fins aos meios. como o governo nos obriga à obediência apenas porque esta é favorável à . as origens do governo são normalmente obscuras e freqüentemente legitimadas através do uso do controle da opinião e. o homem tem o direito de rebelar-se e resistir: “A máxima que a justiça seja cumprida mesmo que o universo seja destruído é evidentemente falsa e. 213). entre outras. filósofo empirista escocês. de maneira irrestrita e muitas vezes de maneira unilateral. Políticos e Literários. trata sobre a questão. nessas emergências extraordinárias e urgentes” (p. ao mesmo tempo. isto é: como é possível um pequeno grupo. Refutou. cumprindo sua função. O senso comum nos ensina que. mas.a maioria? Para Hume (1996). a teoria liberal de John Locke. governar. A função essencial da justiça é a promoção da paz entre os homens e a busca pelo interesse coletivo: “Dado que a obrigação de justiça assenta inteiramente nos interesses da sociedade. 213). que pregava a idéia de que a sociedade funda-se num contrato primitivo. o governo obriga o homem a ser obediente e fiel aos seus ditames (mandos e desmandos) desde que o governo esteja cumprindo a utilidade pública. da obediência passiva. desobedecer e ser infiel: “. em seu livro Ensaios Morais. ela deverá ser imediatamente suspensa e substituída pela utilidade pública. Na visão de Hume.. caso contrário. instituído de poder. tal teoria implicaria na “possibilidade de revogação de contrato”. isto é. os quais exigem a mútua abstinência da propriedade. isto é. mas chegando até a negá-las expressamente. nada poderia ser mais absurdo do que enumerar com excessiva preocupação e cuidados de todos os casos em que se pode permitir a resistência” (p. Hume condena os filósofos que trataram de maneira acentuada a questão da resistência. atos de revolta aconteçam: “Nos casos desesperados em que o povo encontra-se em perigo iminente de sofrer violência e tirania. Nestes casos de abusos. para que em último refúgio. considerar que sendo a obediência um dever. e acredita que esses filósofos teriam maior êxito acaso se dedicassem à difusão da doutrina geral do governo: “Devemos. Admitindo-se. ou não. . em circunstâncias normais. não só nunca referindo as exceções em casos extraordinários (o que poderia ser discutível).133 utilidade pública.. É função de um governo. portanto. tornando-a legitima e recomendável” (p. o filósofo admite e recomenda resistência em casos extraordinários. “assenta na natureza da constituição e da forma de governo da Inglaterra”.) e assim. 214). Nada mais surpreendente.. 214). Uma das questões que mais surpreendia e intrigava o pensador era sobre a facilidade com que a minoria pode governar com o consentimento da maioria. Quando o povo não tem mais a quem recorrer e se esgotam todas as alternativas possíveis. que se tornou necessário insistir nessas exceções. imunes de qualquer questionamento e punição por qualquer injúria ou delito que possam cometer. diz Hume. preocupar-se com o andamento de sua administração e deixar de lado a preocupação excessiva e os cuidados de quando se pode permitir. diz Hume. além disso. 214). à obrigação primeira e original” (p.. O pensador refere-se aqui aos magistrados e príncipes ingleses que estão acima das leis. Assim. Dessa forma. sobretudo se deve insistir. fica uma lacuna. 213). é lícito prescindir das regras da justiça em caso de necessidade urgente. em defesa do direito à verdade e de liberdade ofendidas”. a resistência em casos extraordinários. Embora Hume opte para que se conserve a fidelidade dos homens perante o governo. A segunda. o único problema que merece ser discutido entre bons pensadores é qual o grau de necessidade capaz de justificar a resistência. esse dever terá sempre que se submeter. nos casos extraordinários em que a obediência acarretar de modo evidente a ruína pública. é nela que. é legitima a prática da resistência: “(. a resistência. Hume se pergunta: Por que alguns pensadores insistem no direito à resistência? Ele mesmo tenta responder-se ao apresentar duas razões fundamentais para tal resistência: “A primeira é que seus adversários levaram a doutrina da obediência a tais extremos. pode-se organizar a insurreição.. sempre que se chegue à situação extrema de só por esse meio se poder defender a constituição” (p. para este caso há a solução excepcional da resistência. os governantes se apóiam unicamente na opinião. Vimos que. . e esse meio é o controle da opinião: “Se investigarmos que. estes temas não perderam a relevância. e essa máxima se aplica tanto aos governos mais despóticos e militares como aos mais livres e populares” (p. por um lado. diz Hume. No período contemporâneo. apenas na opinião. Hobbes. refutados por estudiosos da democracia. são temas atuais que. na modernidade. portanto. Locke e Rousseau. são defendidos e. 217). O governo assenta. o tema da participação e da representatividade ocupou um espaço substancial nas teorias de Maquiavel. assim como a implícita submissão com que os homens abdicam de seus próprios sentimentos e paixões em favor dos seus governados” (p. como a força está sempre do lado dos governados. por outro.134 “do que a facilidade com que os muitos são governados pelos poucos. 213). Muito pelo contrário. Apresentar este debate é o que propõe fazer o próximo capítulo. Como a maioria pode resignar-se? Como podem consentir aos mandos e desmandos da minoria? Só há um meio para tal êxito. maior será a possibilidade da existência de uma sociedade desenvolvida política e democraticamente.1. desenvolvido politicamente. Entre os teóricos institucionalistas. A vertente institucionalista (elitismo democrático) foi inaugurada por Weber (1968/1987) e Schumpeter (1961). Os dois teóricos advogam que a ampliação da democracia poderia ter como conseqüência a ineficácia administrativa. A primeira considera a necessidade de maior institucionalização das instituições políticas democráticas (partidos políticos. que definem a democracia como um arranjo institucional para chegar a decisões políticas e constituiu-se antes de mais nada numa competição entre elites. 1 Para os institucionalistas. poderes Legislativo. Executivo e Judiciário) como condição indispensável para a conquista de tal estado.10. como condição fundamental para a construção de um Estado democrático. Rover e Seibel (1998). Quanto maior for o grau de institucionalização das instituições democráticas. PARTICIPAÇÃO E INSTITUIÇÕES: O DEBATE DA TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA 10. A segunda concepção vê o maior grau de participação da sociedade civil. na função de governo. . conferir Limana (1992). Samuel Huntington é seu maior representante. eleições. diretamente. Participacionistas e institucionalistas Um debate que tem pautado a discussão da Ciência Política nas últimas décadas diz respeito a duas concepções sobre a democracia: a corrente institucionalista (também chamada de elitismo democrático) e a corrente participacionista. A 1 Sobre o debate entre as teorias participacionista e a institucionalista. o problema central da construção da ordem política democrática refere-se à criação de mecanismos que assegurem o processo de institucionalização de políticas democráticas. mas rejeitam a idéia da liderança exclusiva das elites. surgem teóricos contra-modelo da esquerda que desenvolvem a teorização da “democracia participativa”. as concepções de Hayeck (1960) e Nozick (1974). assim como Hobbes e Locke. um estado democrático politicamente desenvolvido só é possível de ser construído se houver participação direta. A origem da teoria participacionista pode ser encontrada em Rousseau na defesa teórica da democracia direta do Contrato Social e em Tocqueville. pois os homens nascem livres e iguais (eis o princípio que vai se afirmar na revolução burguesa). onde o nível de desenvolvimento político pode ser medido pelo grau de participação” (p. nunca a transfere para um organismo estatal separado. Contra esse projeto elitista de direita (democracia legal). Considerado como um dos mais importantes teóricos contratualistas. mas. que representaram as idéias liberais de Locke e John Stuart Mill. pode confiar a algumas pessoas determinadas tarefas administrativas. Para Rousseau. um antídoto contra o avanço totalitário da burocracia (Weber) ou uma proteção contra a tirania (Schumpeter). 176) de “democratas empíricos”. . para Rousseau. antes de mais nada. é uma condição de felicidade. de virtude e de liberdade. renomeada por Held (1987. Mas o povo nunca perde a sua soberania. Assim. Mais recentemente. existe uma condição natural dos homens. diferentemente de Hobbes.2 Limana (1992). Rousseau defende que “a 2 Sobre as atuais concepções de democracia e os limites da participação de atores sociais. é a civilização que perturba as relações humanas. relativas à administração do Estado. que violenta a humanidade. que é destruída e apagada pela civilização. Também. insistindo que a democracia ancora-se num complexo processo de consensos sobre valores que estipulam os parâmetros da vida política. representando o povo. conferir Rover e Seibel (1998). podendo revogá-las a qualquer momento. ao tratar da teoria participacionista. mas em todo lugar estão acorrentados. Dahl (1956) e Lipset (1963) herdaram essa vertente. na abordagem que trata do associativismo e da participação em A democracia. como Poulantzas (1980).136 democracia seria. Macpherson (1977) e Pateman (1970). os que Held denomina de “Nova Direita”. Como nos diz Limana: “para os autores que se enquadram nesta teoria interpretativa. surgem na esteira da concepção elitista. p. respectivamente. Rousseau entende a participação dos indivíduos de maneira primordial na estruturação do contrato social para instituir o Estado democrático. 4). e principalmente em função da crise do Estado de Bem-Estar. do conjunto dos cidadãos na gestão da coisa pública. o único órgão soberano é a assembléia e é nesta que se expressa a soberania. recorre às idéias de Rousseau e Montesquieu desenvolvidas no Contrato Social e na obra A democracia na América. Eles aceitam a visão de Schumpeter sobre a democracia como um processo de seleção de lideranças. A assembléia. por fim. argumentos de desprezo pelo regime representativo de governo. não existe. Encontramos. 43-44). no capítulo XV do Livro II do Contrato Social. a que devemos aspirar.137 soberania não pode ser representada”. Talvez por essa razão o próprio autor reconheça o caráter utópico de sua teoria: “a democracia que de fato não existe. ao mesmo tempo em que a entende como o exercício da “vontade geral” (soma das vontades individuais). 6). nunca existiu e nunca vai existir”. além de tratar de conceitos como igualdade de condições. nem podem ser seus representantes. Rousseau tinha como modelo a democracia direta dos atenienses. p. discute algumas idéias que podem nos aproximar da teoria participacionista. Deste modo. mesmo vendo certas limitações nesse modelo na medida que a sociedade era dividida entre cidadão e escravo. também essa condição natural. liberdade e participação cívica. p. nada podendo concluir definitivamente. “desde que o serviço público deixa de constituir a atividade principal dos cidadãos e eles preferem servir com sua bolsa a servir com sua pessoa. Apud LIMANA 1992. que fundamentam sua concepção sobre a democracia. Sobre a representação dos deputados em relação ao povo. diz Rousseau que “os deputados não são. o Estado já se encontra em ruína. A vontade geral (aquilo que há de comum em todas as vontades individuais) “jamais pode alienar-se”. só pode ser representado por si mesmo” (ROUSSEAU 1978.. Rousseau argumenta que. É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar. À força de preguiça e de dinheiro terá. Da mesma forma. . em absoluto não é lei” (p. Rousseau deixa clara sua preferência por um regime democrático que tem na participação direta dos indivíduos a virtude maior. na medida em que o soberano (um ser coletivo). em A democracia na América. soldados para escravizar a pátria e representantes para vendê-la” (ROUSSEAU.. nunca existiu e talvez nunca existirá. não passam de comissários seus. 6). Aléxis de Tocqueville. esvazia o cidadão de 3 Imagem de Aléxis de Tocqueville. constitui o verdadeiro sinal da democracia”. Limana (1992). idéias expostas na obra clássica de Tocqueville já fora discutida suficientemente por outros teóricos como Putnam (2000).frostburg. Tocqueville chegou a Nova Iorque. A democracia na América (La démocratie en Amerique). 5 Para Tocqueville. o que mais impressionou a Tocqueville foi a igualdade das condições entre os americanos: “a igualdade. de Aléxis de Tocqueville.3 Vamos tratar nesta seção sobre as principais idéias da obra A democracia na América (1962). em 1831. Tocqueville procurou construir teoricamente um “tipo ideal” de democracia. cujo primeiro volume é impresso em 1835 e o segundo. liberdade e igualdade significam o mesmo que democracia. com 25 anos de idade. Participação na obra A Democracia na América de Aléxis de Tocqueville Aléxis de Tocqueville.4 Com o objetivo de estudar o funcionamento do regime político e analisar a vida sóciopolítica dos norte-americanos. a qual não convém aprofundar neste momento. e não a liberdade. Tocqueville se contrapõe à aristocracia e ao individualismo.2.gif. Galvão Quirino (2001). À primeira vista.138 10. Disponível em http://faculty. Munido de instrumentos empíricos. Nesta obra o autor tratou das condições sociais (organizações sóciaio-política) como fundamento da construção da democracia norte-americana. Acesso em dezembro de 20007. afirmando que o individualismo é a ‘ferrugem das sociedades’. 5 Ao mesmo tempo em que exalta a igualdade. em 1840. surgiu a sua principal obra. 4 É importante destacar que a conexão entre os costumes de uma sociedade e suas práticas políticas. Como síntese dos seus estudos.edu/phil/forum/Tocquevillealt. . Higgins (2005). 19). Tocqueville estudou a democracia norte-americana com o objetivo de compreender e tirar proveito dos exemplos bemsucedidos daquele país. como todos os homens. servem ao seu desenvolvimento. estanca-lhe a fonte das virtudes públicas. Tocqueville discordou. mas observa a diferença: a democracia quer a igualdade na liberdade e o socialismo quer a igualdade na sujeição e na servidão (p.149-188). Para ele. no qual a liberdade dos cidadãos tende a desaparecer. 6 Conferir o artigo intitulado “Tocqueville: sobre a liberdade e a igualdade”. de suas instituições políticas e das relações do Estado com a sociedade civil. em que a autora comenta as principais idéias de A democracia na América (p. assim como a organização social e política dos americanos. principalmente os princípios sob os quais repousam as constituições americanas de ordem e equilíbrio de poderes e de profundo e sincero respeito ao direito. assim como condenou o Estado intervencionista como sendo o único responsável pela direção política da nação. 10). que são indispensáveis a todas as repúblicas e que a todos devem ser comuns. em outra passagem. chegaremos como os americanos. para depois tratar da estrutura de dominação. cedo terá a república deixado de existir (p. da democracia no mundo. das várias formas de socialismo da época. esse Estado interventor é um Estado despótico.6 Tocqueville. durável e todos os acontecimentos.139 toda substância. No Prefácio de sua obra. oscilando sem dignidade entre a servidão e a licença. O objetivo do autor foi estudar os hábitos e os costumes dos americanos na intenção de abstrair os ensinamentos fundamentais daquela experiência democrática. Da mesma forma. Tocqueville (1962) atribui um caráter sagrado à democracia ao afirmar que querer detê-la seria como lutar contra o próprio Deus. apresenta-o como um processo universal. Tocqueville deixa claro que o objetivo central é tratar do próximo advento. e só restaria às nações acomodar-se ao Estado social que lhes impõe a Providência. ao elaborar o conceito de democracia. a igualdade. Já na Introdução de A democracia na América. Tocqueville cita a América como exemplo e deseja ver a França tornar-se como os Estados Unidos: “Parece-me fora de dúvida que. Na referida obra. onde não se encontrarem. se não um escravo. Tocqueville inicia descrevendo os hábitos e os costumes. de civismo. e pode afirmar-se desde logo que. irresistível e universal. à igualdade quase completa” (p. 187). . Tocqueville acredita que a democracia e o socialismo não se vinculam senão por uma palavra. dele torna a fazer um súdito. de Célia Galvão Quirino (2001). cedo ou tarde. nos Estados Unidos. “na América. pela escolha dos legisladores. igualmente. Diz o autor que a América é o país do mundo de onde mais se tirou partido da associação e onde se tem aplicado esse poderoso meio de ação à maior diversidade de objetos. aonde. Nada há que a vontade humana se desespere de atingir pela ação simples do poder coletivo dos indivíduos. aonde os habitantes apenas ontem chegaram ao solo que ocupam. Sobre o tema da soberania do povo. tudo sai do seu seio. como se explica que todos se mostrem interessados pelos negócios de sua comuna. da sua aplicação mediante a eleição dos agentes do poder Executivo. pois. Percebe-se. Esse interesse coletivo dos norte-americanos é enaltecido pelo autor francês: Como se explica que. indústria. aonde não levaram nem costumes nem lembranças. que nasceu junto com a Colônia e permanece até nossos dias. o instinto da pátria pode apenas existir. A associação visa alcançar vários fins com o objetivo de obter a segurança pública. 52). que a América é sempre tratada como o exemplo da democracia ideal. Tocqueville entende que é o povo que tem o controle do governo em suas mãos: “é o povo que governa”. pode-se dizer que ele mesmo governa. igualmente. de seu cantão. Essa tradição associativa dos norte-americanos vem de berço. tão frágil e restrita é a parte deixada à Administração. 146). É ele a causa e o fim de todas as coisas. da situação social dos anglo-americanos e da origem da democracia. aonde se encontraram pela primeira vez sem se conhecer.140 Tocqueville tratou. “desde o seu nascimento. Outro tema que Tocqueville considera importante é o da associação política. 147). e do Estado inteiro como se fossem deles próprios? (p. 183). aprende o habitante dos Estados Unidos que precisa apoiar-se sobre si mesmo para lutar contra os males e os embaraços da vida” (p. O autor descreve que o poder emana do povo e observa que este participa da composição das leis. constitui ele mesmo o júri que pune as infrações à lei” (p. “O povo reina sobre o mundo político americano como Deus sobre o universo. conclui Tocqueville (p. no decorrer da obra. comércio. . o povo designa aquele que faz a lei e aquele que a executa. 136). A associação é causa de união e progresso: “A associação enfeixa os esforços dos espíritos divergentes e os impele com vigor para uma única finalidade claramente indicada por ela” (p. moral e religião. sobre o princípio da soberania do povo na América e as leis que estão subordinadas à soberania do povo. e tudo se absorve nele”. Argumenta. tanto se ressente esta da sua origem popular e obedece ao poder de que emana. numa palavra. pelo exemplo da América. não se pára de repetir aos habitantes dos Estados Unidos que constituem o único povo religioso esclarecido e livre [. Ou seja. que as leis. onde todos os nobres tinham direito igual ao governo (p. porém. 360). é o interesse coletivo que mais se sobressai entre os imigrantes: Mal desembarcamos no solo americano. o orgulho. ao passo que outros se reúnem a fim de proclamar que os homens da administração são os pais da pátria. 287). Reúnem-se cidadãos com a finalidade exclusiva de declarar que desaprovam a marcha do governo. eleva-se um confuso clamor. noutra parte.. havia ali. na manutenção das suas leis. inclusive acreditam que são um povo “escolhido”. mais além. Sobre a democracia dos gregos. os delegados de um cantão dirigem-se à cidade a toda pressa. vemo-nos no meio de uma espécie de tumulto. . Nos estudos de Tocqueville. ali.] acreditam que se constituem uma espécie à parte do gênero humano (p. Em nossa volta. Atenas. pois. A idéia principal da obra A Democracia na América resume-se na importância que Tocqueville atribuiu à experiência prática dos americanos. podiam permitir a um povo democrático permanecer livre” (p. mil vozes chegam ao mesmo tempo aos nossos ouvidos. a fim de deliberar sobre certos melhoramentos locais. cada qual a exprimir algumas necessidades sociais. aos seus costumes. Há cinqüenta anos. não era. trabalha-se para escolher um representante. Tocqueville tem a seguinte idéia: Em Atenas. estão separados de todos os demais povos por um sentimento.141 Assim. apenas vinte mil cidadãos.. senão uma república aristocrática. em mais de trezentos e cinqüenta mil habitantes. com o seu sufrágio universal. são os agricultores de uma aldeia que abandonaram seus arais para discutir o plano de uma estrada ou de uma escola. e. E eis que outros ainda. afinal de contas. os hábitos e os costumes dos americanos são as bases da manutenção das leis: “A minha finalidade foi mostrar. percebe-se também o orgulho dos anglo-americanos em pertencer àquela nação. aos seus hábitos. 242). de todas as partes. vêm comprometer-se solenemente a dar o exemplo da temperança (p. tudo se movimenta: aqui é o povo de um bairro que se reúne para saber se há de construir uma Igreja. às suas opiniões. diferente dos demais povos do mundo: Ao mesmo tempo que os anglo-americanos estão assim unidos por ideais comuns. sobretudo os costumes. todos os outros eram escravos e desempenhavam a maior parte das funções que hoje em dia pertencem ao povo e mesmo às classes médias. 187-188). considerando a embriaguês como a principal fonte dos males do Estado. todos os cidadãos tomavam parte dos negócios públicos. assim também criam hospitais. fica ainda mais explícito o caráter associativo da vida civil dos americanos: Os americanos de todas as idades. edifícios. Os americanos associam-se para dar festas. além do apoio mútuo. Neste mesmo argumento. prisões. quase nunca se furtam de prestar fiel apoio uns aos outros” (p. 393). e observei cem vezes que. 391-392). Não só possuem associações comerciais e industriais. fundar seminários. morais.142 Todo o empreendimento pessoal e comunitário dos americanos está em manter a democracia através de uma cada vez maior igualdade e liberdade. Da mesma forma. No próximo capítulo trataremos da difícil construção da cidadania no Brasil. 394). estão constantemente a se unir. “para que os homens permaneçam civilizados ou assim se tornem. por isso. Tocqueville descreve que a ação recíproca é fundamental para a edificação do sentimento comunitário: “Os sentimentos e as idéias não se renovam. muito gerais e muito pequenas. Este capítulo trouxe ao conhecimento os debates atuais entre democracia participativista e democracia institucionalista. Mais à frente. de todas as condições. 391). escolas (p. nas quais tomam parte. como ainda existem mil outras espécies: religiosas. É o grande debate dos pensadores da atualidade sobre a melhor forma de democracia. . é preciso que entre eles a arte de se associar se desenvolva e aperfeiçoe na medida em que cresce a igualdade de condições” (p. igrejas. distribuir livros. construir hotéis. procuram se esforçar para manter a coisa pública e a ajuda mútua: “Devo dizer que muitas vezes vi americanos fazerem grandes e verdadeiros sacrifícios à coisa pública. O espírito público dos americanos sobressaía aos olhos de Tocqueville. fúteis. enviar missionários aos antípodas. graves. o coração não cresce e o espírito não se desenvolve a não ser pela ação recíproca dos homens uns sobre os outros” (p. Foi esse espírito cívico que fez dos Estados Unidos uma democracia participativa. quando necessário. de todos os espíritos. os ares da democracia e da cidadania iriam pairar no cenário político-social nacional. pensava-se que.. Passados mais de 500 anos da chegada dos portugueses por estas paragens. descrita pelo cientista político Robert Dahl (2001) (eleições livres. a cidadania é incipiente num país onde predominam a exclusão social e econômica. moradia. lazer. Frente a essa situação. finalmente. emprego. Por essa razão. mas. partidos políticos consolidados.11. Após a ditadura militar (1964-1985). A DIFÍCIL CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL Falar na construção da cidadania no Brasil é tocar num ponto nevrálgico da nossa história. Muito se tem discutido na academia e fora dela. não garantiu avanços significativos e a democracia social (igualdade étnica. Para tanto.. concretamente. o jargão da cidadania está na moda nas instituições políticas e na opinião pública. reconhecidos estudiosos do tema. . a democracia poliárquica. Da mesma forma. No entanto.) ainda é utopia para milhões. Prevalece apenas uma democracia eleitoral sobre a democracia social (cidadã). pergunta-se: Quais os principais obstáculos para a construção da cidadania brasileira? A difícil construção da cidadania no Brasil está ligada exclusivamente ao “peso do passado” (herança maldita). a desigualdade social e a violência difusa. comparadas com outros países? Procurar responder a algumas dessas questões é o objetivo maior deste capítulo. saúde. ou outras variáveis podem influenciar essa realidade? A cidadania está meramente ligada à conquista de direitos sociais. recorremos à fundamentação teórica de autores das Ciências Sociais. é um conceito ainda a ser construído. civis e políticos? Como se deram as conquistas desses direitos no Brasil. Congresso Nacional autônomo). percebe-se que a consolidação da cidadania ainda é um desafio para todos os brasileiros. as instituições políticas e os políticos têm passado por um alto descrédito junto à opinião pública do país. 1789).C. liberdade) do homem liberal burguês. . Moisés (2005) e Marshall (1967).144 A origem do conceito “cidadania” no contexto histórico-cultural e político provém dos gregos.2 Junto com a cidadania moderna nascem os direitos naturais (vida. a evolução e a real consolidação da cidadania dá-se na Modernidade. 1997. a construção da cidadania não seguiu a lógica da trajetória inglesa. Males como o patrimonialismo. a Independência e a República. A segunda seção apresenta os dois fatos históricos mais relevantes do Brasil do século XIX. Estados Unidos (emancipação política. 4 Para esta seção foram utilizados argumentos dos seguintes autores: Vianna (1955. Coulanges (s/d). Carvalho (1996.1 No entanto. Barker (1978).2002). o latifúndio. tanto a democracia quanto a cidadania grega. 1688-89). é preciso afirmar que. propriedade. especificamente. pelo menos duas diferenças importantes: a primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos. sendo que o mesmo tem sido suficientemente tratado por renomados teóricos como Minogui (1998). diferentemente de outros países. (período do pogeu daquela civilização). principalmente. Por fim. o analfabetismo e a escravidão são “pesos negativos do passado” que ainda determinam a vida social. segundo José Murilo de Carvalho (2002). 2 3 Sobre a evolução do conceito cidadania na modernidade conferir o trabalho Domingues (2001). o objetivo deste artigo não é tratar deste ponto. Prado Júnior (1994) e. Aquino (1998). A terceira seção discute os vícios institucionais e culturais da política brasileira. em 1 No entanto. Brasil colonial: ausência de direitos e de poder público Inicialmente. no Brasil. por volta do ano 380 a. populismo. Holanda (2000) Faoro (2001). garantidos pelas consecutivas “Declarações de Direitos” elaboradas a partir das revoluções liberais na Inglaterra (Revolução Gloriosa.1. entre outros. o social. 2000A. Da mesma forma. A primeira trata da ausência de direitos e de poder público no Brasil colonial. Houve no Brasil.3 Este texto está dividido em quatro seções. os direitos sociais emergem no Brasil em regimes políticos ditatoriais.4 11. não deixam de ser conquistas inéditas e avanços significativos para a História Ocidental. serão discutidos a partir de alguns clássicos das Ciências Sociais do Brasil. descreve-se que. Kitto (1970). A conquista lusitana. Pode-se aprofundar este tópico com os seguintes autores: Saes (2000). econômica e política do Brasil. pode-se afirmar que. Leal (1975). coronelismo. considerando a quase nulidade da participação de grande parte do povo neste processo. 2000. a monocultura de exportação. não nos convém tratar aqui deste assunto. que excluem inexoravelmente os direitos políticos e civis. 1956). 1776) e França (Revolução Francesa. Embora a cidadania fosse limitada a uma parcela social minoritária. foram 322 anos sem poder público. o índio tinha suas normas morais e seus ritos religiosos. mas. O encontro dessas duas culturas (a européia versus a dos povos nativos das Américas) foi o confronto trágico de duas forças em que uma pereceu necessariamente. como nos diz Carvalho. lingüística. considerada “bárbara”). sim. sem Estado. os portugueses chegaram. Mas tinham deixado uma população analfabeta. acabou se apossando. Ele respeitava a si próprio e aos outros. a espada para a conquista.29) argumenta que as sociedades Ibéricas (Espanha e Portugal) foram marcadas pelo “hibridismo do absolutismo autoritário contra-reformista católico. ao “peso do passado”. por isso mesmo. por conhecer certas tecnologias (a irrigação. à mãe-terra. conforme comumente menciona-se. varíola. no caso. Em suma. 6 Grande parte da 5 6 Sobre o encobrimento do outro. na outra. sem nação e cidadania. escravidão e doença (sífilis. mais tarde. ficando dono. Até mesmo a palavra “índio” foi o nome dado pelos europeus ao se confrontarem com o "outro" e quem deu o nome. impuseram sua força e conquistaram com a violência (armas) e a ideologia (religião): em uma das mãos. . de milhões de índios. O resultado foi o extermínio. um encontro pouco amigável entre duas civilizações: uma considerada “desenvolvida”.1 A “conquista” da terra brasilis Já no princípio da história do Brasil. as estrelas. com a cruz do Cristo europeu. quando “os portugueses tinham construído um enorme país dotado de unidade territorial. Primeiro. Uma das razões fundamentais das dificuldades da construção da cidadania está ligada. as contradições apareceram. simbolizando o poder da Igreja. p.145 relação aos outros. gripe). com uma religião diferente do cristianismo europeu. mais especificamente ao período colonial (15001822). pode-se dizer que o Brasil não foi “descoberto”. um Estado Absolutista” (p. 18). “conquistado” pelos europeus (portugueses). a segunda refere-se à alteração na seqüência em que os direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros (p. Os espanhóis e. uma economia monocultora e latifundiária. conferir Dussel (1993). 11. Suas crenças eram mescladas com os elementos da natureza: a lua. uma sociedade escravocrata. pela guerra. o sol.1. o ferro e o cavalo) versus a nativa (“desconhecida” e. Callage Neto (2002. às águas e à natureza como um todo. Os nativos viviam ensimesmados com a natureza. o despotismo corporativo muçulmano dos séculos que o precederam na Península Ibérica e um incipiente liberalismo que se gerava com a presença judaica nos marcos da Revolução Mercantil”.5 Bem antes de o europeu chegar a estas terras. 12). cultural e religiosa. XVIII). 19). Outros ciclos de exploração se sucederam no Brasil. do café. da borracha. Calcula-se que até 1822 tenham sido introduzidos na colônia cerca de 3 milhões de escravos.gov. Segundo o censo de 2000. 9 Sobre o tema da questão racial no Brasil. 19). Acesso em junho de 2005. apenas como fornecedor de matérias-primas à metrópole (Portugal).146 população indígena foi dizimada rapidamente pelo homem “civilizado”.2% dos brasileiros) se diziam indígenas. um crescimento absoluto de 440 mil indivíduos em relação ao censo de 1991. servindo assim. Foi por volta de 1550 que os escravos começaram a ser importados. “o fator mais negativo para a cidadania foi a escravidão” (p.. Atualmente a demografia indígena.4% dos brasileiros) se auto-identificaram como indígenas.. 8 Para esclarecer este tema. é fundamental a leitura de Raymundo Faoro (2001).. A escravidão No período colonial.8 11. os mais afetados foram os escravos negros provenientes do continente africano. Este estudo está disponível em http://www. por muito tempo. Calcula-se que havia no Brasil. na época da “descoberta”.7 Outra característica do período colonial está ligada à conotação comercial. 734 mil pessoas (0.1. do gado. Principalmente o capítulo IV “O Brasil até o governo Geral”. Na época da Independência. a cidadania foi negada à quase totalidade da população. havia mais de 1 milhão de escravos (Idem.2. consultar relatório do IBGE intitulado: Uma análise dos indígenas com base nos resultados da mostra dos censos demográficos .ibge. do IBGE. É importante destacar que em todas as classes sociais desse período havia escravos. numa população de cerca de 5 milhões. p. conferir o trabalho de Fernandes (1972). restavam menos de 1 milhão (CARVALHO. 20). porém. No Brasil. Essa prática continuou até 1850. cerca de 4 milhões de índios. quando apenas 294 mil pessoas (0. Em 1823. tem crescido de forma significativa nos últimos anos. depois de ter sido reduzido drasticamente. Para Carvalho (2002). se configurou o latifúndio monocultor e exportador de base escravista. p. Isto exigia largas extensões de terras e mão-de-obra escrava dos negros africanos. fornecendo a cana-deaçúcar. O Brasil serviu à produção de monocultura para resolver o problema da demanda européia. 2002. como o da mineração (séc.9 7 Para maiores informações sobre a situação do indígena na sociedade brasileira atual. 28 anos após a Independência. incluindo 800 mil índios.br/home/estatistica/populacao/tendencia_demografica/indigenas/indigenas.pdf. . dentre vários. Isso significa afirmar que as condições estruturais dos negros . não pelo amadurecimento da consciência do povo brasileiro. na conquista. a noroeste de Porto Calvo. Pela utilização da mão-de-obra escrava nas colônias. foi um grande engodo. O Brasil foi o último país de tradição cristã ocidental a abolir a escravidão. com 5 mil habitantes. como se suas mãos tivessem construído as docas e fabricado as máquinas a vapor”. o quilombo dos Palmares (região acidentada e de difícil acesso no interior de Alagoas). seu anseio por liberdade e sua verdadeira participação na sociedade. Por isso. sendo. p. no saque e na exploração. data da morte de Zumbi. essencialmente por interesses comerciais. devido à importação de negros africanos. 160) descreve que a acumulação de riquezas deveu-se “ao trabalho e ao sofrimento do negro. a abolição da escravidão no Brasil. centra-se no dia 20 de Novembro. que significa a força do espírito presente. Sucupira. A Inglaterra. que eram mestres ferreiros. com 8 mil habitantes. o término do comércio negreiro. aquele que ocupou a maior extensão de terra e o maior tempo de existência (1600-1695). martirizado em 1695 sob as forças expedicionárias do bandeirante Domingos Jorge Velho. na época. Neste sentido. foi possível a formação e o desenvolvimento dos Estados Nacionais na Europa e a construção das cidades. Esse quilombo foi a mais importante organização de resistência do povo negro no país. no noroeste de Serinhaém. Eis o nome de algumas comunidades: Macaco. em 1850.147 Depois de mais de 300 anos. o Brasil chegou à abolição da escravidão. Além disso. Huberman (1986. exigiu. foi o principal líder da resistência da comunidade de Palmares. e o Senga. na pirataria. era composto por muitas aldeias onde os negros viviam em liberdade. atingiu mais de 20 mil habitantes. Por volta de 1654. Zumbi. realizouse a Revolução Industrial na Inglaterra. marceneiros e carpinteiros. mais por pressão externa do que por um amadurecimento da consciência social da população. à 20 km de Macaco. uma farsa. sendo que essa apenas ocorreu.que só viria a acontecer 38 anos depois. mas da própria elite pressionada pelos interesses econômicos internacionais.9). os negros e os mulatos foram os que tiveram “o pior ponto de partida” na transição da ordem escravocrata à competitiva. à 80 km de Macaco.10 10 Segundo o sociólogo Florestan Fernandes (1978. na Serra da Barriga. Zumbi. que se constituiu num passo importante para a abolição . A população total de Palmares. O sistema capitalista soube tirar proveito dessa situação. o que representava 15% da população do Brasil. no dia 13 de maio de 1888. p. sua cultura. a data mais significativa para celebrar a história do povo negro. instituído com a Lei Eusébio de Queiroz. o que propiciou o acúmulo de riqueza gerador do capitalismo. Amaro. 1% dos pardos e apenas 1. Na questão do acesso ao trabalho. a taxa de analfabetismo das pessoas com 15 anos de idade ou mais era de 8. hoje.7% das pardas (IBGE. A situação do negro. há a necessidade de medidas não apenas afirmativas. Para vencer os dilemas entre redistribuição e reconhecimento. Essas informações confirmam a existência e a manutenção de uma significativa desigualdade de renda entre brancos. escreveu a obra Filosofia da história universal. principalmente na questão da educação. podem-se adotar medidas afirmativas ou transformativas. no início do século XIX. superficial e eurocêntrica do filósofo alemão em relação à África. mas. Hegel. além de sofrer a dominação econômica e religiosa. enquanto os pardos chegam a 8. Quanto ao rendimento mensal familiar per capita e à distribuição das famílias por classes. causando marginalidades e desigualdades na sociedade brasileira. continua sendo de marginalização e exclusão. 2004). acesso ao trabalho e à renda. 2. Segundo ainda os dados do IBGE.3% para brancos e de 21% para pretos e a média de anos de estudo das pessoas com 10 anos de idade ou mais é de quase 6 anos para os brancos e cerca de 3 anos e meio para os negros.12 e mulatos foram inferiores em relação aos brancos. em 1999. de afirmação ou de transformação. as diferenças são expressivas: 6% de brancos com 10 anos de idade ou mais aparecem nas estatísticas da categoria de trabalhador doméstico. irracional. Já os remédios transformativos têm por fim a correção dos resultados indesejados mediante a reestruturação da estrutura que os produz (MATOS. 11 Nancy Fraser (2001) analisa as estratégias. igualmente. transformativas na emancipação da etnia negra no país. também. que maculam a história da filosofia mundial. Páginas preconceituosas. onde percebe-se a ideologia racista.6% dos chefes das famílias pretas e 27. editada também pelo IBGE.1% dos pretos.11 Há muito que fazer para que a verdadeira abolição da escravidão aconteça. As medidas afirmativas têm por objetivo a correção de resultados indesejados sem mexer na estrutura que os forma. a população branca que trabalhava tinha rendimento médio de cinco salários mínimos. Por outro lado. podem-se encontrar outras estatísticas sobre desigualdades raciais na publicação Síntese de Indicadores . Por isso. não tendo condições de ascender ao “espírito universal”. Foi considerado povo a-histórico. foi excluído. bárbaro.148 O escravo africano.2000. pretos e pardos na sociedade brasileira. os dados indicam que 20% das famílias cujo chefe é de cor branca tinham rendimento de até 1 salário mínimo contra 28. Pretos e pardos alcançavam menos que a metade disso: dois salários. em 1999.6%. 1999).7% dos brancos. 12 Além desses dados. por ela. Dados demonstram que o analfabetismo ainda é maior entre os negros: segundo dados do IBGE. do pensamento filosófico europeu.4% e os pretos a 14. chamadas. na categoria empregadores encontram-se 5. . fechado em si mesmo. segundo Carvalho (2002) era analfabeta: em 1872. enquanto o analfabetismo predominava nas classes mais pobres: “quase toda a elite possuía estudos superiores. A maioria da população.000 pessoas tinham-se formado nas universidades da América Espanhola. Os cargos políticos ocupados na esfera estatal pertenciam à elite. as segundas diplomatas. principalmente.242 estudantes brasileiros matricularam-se em Coimbra entre 1772 e 1872”. principalmente aos proprietários rurais. de imediato. em 1808 (p. Somente em 1879 houve uma reforma que o dividiu em Ciências Jurídicas e Ciências Sociais: “A reforma de 1879 dividiu o curso em Ciências Jurídicas e Ciências Sociais. Legislativo e Executivo. a burocracia foi a vocação da elite imperial brasileira. Portugal proibiu o Brasil de abrir universidades em seu território. Além disso. 70). O analfabetismo Outra marca registrada do período colonial foi o analfabetismo.367 estudantes até a independência. administradores e políticos” (p. desde o início. .1. Entre os letrados. entre Espanha e Portugal. 76). era comum a formação jurídica feita em Portugal: primeiro em Coimbra e. Apenas a elite brasileira da época era portadora do conhecimento. buscando assegurar vantagens pessoais. 90). as primeiras para formar magistrados e advogados. a criação de universidades em suas colônias (p.85% da população brasileira entre 6 e 15 anos freqüentava a escola (p. a formação de bacharéis em Direito desde o início de nossa história. apenas 16% da população era alfabetizada. o que acontecia com pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos” (CARVALHO. 16).149 11. “que podia referir-se tanto a médicos como a doutores em direito” (p. no que se refere ao número de matrículas: “Calculou-se que até o final do período colonial umas 150. quadro esse que será revertido apenas após a chegada da família real ao Brasil. apenas 1. p.3. 129). Em vivo contraste. Como conclui Carvalho (2002. É importante mencionar ainda que somente os advogados e médicos receberam o título de doutores. depois. somente 16. No final do século XVIII. p. 62). Essa mesma elite circulava pelo país e por postos no Judiciário. a Espanha permitiu. É notável. em Lisboa. 2000A. Tal contraste pode ser percebido. meio século após a Independência. Só a Universidade do México formou 39. 55). em contrapartida. ocorreram sem a real participação da maioria da população. Um Estado sem nação Acredita-se que a construção da cidadania esteja ligada essencialmente à construção de uma nação e de um Estado. No Brasil. Portugal aceitou a independência do Brasil mediante o pagamento de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas” (p. Isto é. A primeira manifestação de nossa nacionalidade ocorreu. O objetivo desta seção é demonstrar tais acontecimentos. com a construção de uma nacionalidade ou. na formação de um Estado. p. 11. religião. segundo Carvalho (2000A). o culto ao símbolo nacional (a Bandeira) e a união dos voluntários de todo o Brasil possibilitaram o advento de um . como veremos. Assim. 12).1. o sentimento de pertencer a uma nação é um indicativo importante para tal construção. Ao contrário. na Guerra do Paraguai. A Independência e a República no Brasil: participação incipiente Inicialmente. sob o aspecto jurídico. apenas em 1865. a Independência e a República. tem a ver com a formação de uma identidade entre as pessoas (tradição. As pessoas se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado” (CARVALHO. língua. a elite portuguesa. o Estado precedeu a formação da nação. respectivamente.2. A relação de dependência da colônia com Portugal não permitiu formar uma identidade própria. nem edificar uma nação propriamente dita.2. tomou as decisões políticas necessárias para a manutenção dos seus próprios interesses. é preciso afirmar que os dois fatos históricos de maior relevância do Brasil no século XIX. que aceitou e negociou com a Inglaterra e com a elite brasileira a “independência” do país: “Graças à intermediação da Inglaterra. Sentir-se parte de uma nação e de um Estado é condição fundamental para a construção da cidadania: “Isto quer dizer que a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. a formação de uma liderança política (chefe inspirador). A formação do Estado deu-se exclusivamente pela vontade da elite portuguesa. 2002.150 11. 27). A luta contra o inimigo externo. aliada à elite nacional. costumes). estadocêntrico. sendo que os capitães-gerais eram nomeados diretamente pela Coroa e a ela respondiam (p. a jurisdição compulsória sobre um território e a monopolização do uso legítimo da força são características essenciais do Estado moderno”. ou de pequenos grupos hegemônicos. Para Faoro. centralizado no poder da autoridade. José Murilo de Carvalho trata. logo na introdução. partindo da Economia e da sociedade. a diferença básica é que os territórios espanhóis fragmentaram-se politicamente. Alguns anos mais tarde. no entrechoque de interesses pessoais. Celso Furtado. tornando-se Estados independentes. o Brasil herdou. Enquanto os espanhóis passaram por períodos anárquicos (instabilidade e rebeliões). de paixões mesquinhas e de sonhos de liberdade. conforme fora descrito por Max Weber: “A ordem legal. É importante afirmar que a notícia da emancipação política do Brasil só chegou a lugares mais distantes após três meses do fato ocorrido. a burocracia. O autor apresenta. em 1808. à revelia do povo. . Para ele. 65). Os principais fatos políticos do Brasil ocorreram para atender interesses individuais. a formação do Estado português está na origem do Brasil. do Brasil Imperial e da elite política. a diferença entre a evolução das colônias espanhola e portuguesa na América. como nos diz Costa (1981): “as coisas vão simplesmente acontecendo: no jogo das circunstâncias e das vontades individuais. a criação de legitimidade e a homogeneização da população dos súditos (WEBER Apud CARVALHO. 2000A. entre outras questões. com o materialismo histórico tendo servido de fundamento teórico para explicar o Brasil. O domínio político português sobre a colônia foi intenso. Nestor Duarte e Raymundo Faoro herdam a vertente do patrimonialismo de Weber. 11). Já Sérgio Buarque de Holanda faz sua análise em Raízes do Brasil. 13 Caio Prado Júnior procurou entender o país sob o enfoque da interpretação marxista. do processo de colonização. o que veio a ocorrer em 7 de setembro de 1822. as condições se mostravam favoráveis para a independência do Brasil. o monopólio da força. faz-se a independência do país” (p. na construção de seu Estado. pois é dela a distribuição do mesmo. Assim foi na Independência. a burocratização do Estado moderno. p. ao passo que os portugueses concentraram-se.13 Em sua obra A construção da ordem (1996). essencialmente. A vinda da família real para o Brasil. Deste modo. os portugueses não recorreram a essas formas violentas. O Estado moderno utilizou quatro mecanismos: a burocratização. igualmente.151 sentimento comum: o orgulho e a criação da primeira idéia de identidade nacional: “não vejo consciência nacional no Brasil antes da Guerra do Paraguai” (p. 23). não passou de uma manobra (abertura dos portos) para beneficiar os ingleses e franceses. O poder político concentrou-se nas mãos dos proprietários. 12). de Max Weber. que é. porém. representada pelos comerciantes (domínio urbano) (p. que vitimou 30 mil pessoas). 80) O processo eleitoral (participação política) da população durante os períodos imperial e republicano foi insignificante. O povo. 1969. Sobre o caráter golpista da Proclamação da República. neste sentido: “O povo assistiu àquilo bestializado. Diz Carvalho que. 182). Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada militar” (LOBO. O primeiro defendia os interesses da burguesia reacionária proveniente dessa mesma classe. por sua vez. até 1837. o Contestado em Santa Catarina e a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro.152 No período imperial. A frase de Aristides Lobo é bastante elucidativa. enquanto o segundo defendia os interesses da burguesia progressista. a grande maioria da população ficou excluída dos direitos civis e políticos. assim como na República Velha (1890-1930). não se pode falar em partido político no Brasil. haja vista o seu caráter golpista e elitista. além de Canudos na Bahia. com um reduzido sentimento de nacionalidade. No período colonial. votavam apenas 13% da população livre. p. Apud CARONE. 11. não só não participou como foi tomado de surpresa com a proclamação do novo regime. De 1822 até 1881. 289).. dos donos das terras e senhores de escravos (domínio agrário). no entanto. luta pela terra. a Proclamação da República brasileira apresentou características sui generis ao ser instituída. existiam dois partidos políticos com ideologias semelhantes: o Conservador e o Liberal. surpreso..). todos os movimentos foram duramente reprimidos e aniquilados pelo poder central: a Balaiada no Maranhão e a Cabanagem no Pará (a mais violenta. Uma República sem povo Assim como a emancipação política (Independência).2. monarquistas. atônito. a Farroupilha no Rio Grande do Sul. Isso não significa que não houve resistência por parte de alguns grupos oposicionistas (abolicionistas. sem conhecer o que significava.2. Foram muitas as formas de luta. assim também se expressou Murilo de Carvalho (2002): “Além disso. separatistas. Em . anti-republicanos. são alguns exemplos de revoltas localizadas. o ato da proclamação em si foi feito de surpresa e comandado pelos militares que tinham entrado em contato com os conspiradores civis poucos dias antes da data marcada para o início do movimento” (p. existindo apenas a maçonaria. está ligado aos “males” ou “vícios”.93). sem povo. Cabia ao Estado organizá-la e fornecer-lhe esse propósito” (Apud CARVALHO. Os grandes acontecimentos na arena política eram protagonizados pela elite. 1970 – 24%. Como bem afirma Renato Janine Ribeiro (2000. até o final da República Velha (1930). os votantes não passaram de 5. a participação política popular foi restrita. de certa forma. Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. p.fim da Primeira República -. defendia o fortalecimento do Estado para fazer as mudanças sociais necessárias. privou-se o analfabeto de votar. 1998 – 51% (CARVALHO. p. p. Investigação de opinião realizada nos últimos vinte anos na América Latina tem mostrado que mais de 60% dos eleitores. 2004. “a sociedade brasileira era desarticulada. ou um “salvador da pátria” desça do Olimpo e resolva os problemas da população. 14 Quanto à participação política dos brasileiros no processo eleitoral.17). Foram cinqüenta anos de governo. 156).14 Assim.3. não tinha propósito comum. 94): “O Brasil. até hoje.15 11. p. p. nem mesmo um sentimento nacional consolidado. 1986 – 47%. assim como em toda a América Latina. nossa história política atual. não apenas no Brasil. 80). Não havia propriamente um povo politicamente organizado. como Alberto Torres. o coronelismo. levam em consideração muito mais a pessoa do candidato e não o partido ao qual pertence (Apud BAQUERO. imperial e republicano. segundo DaMatta (2000). Os vícios das instituições e da cultura política brasileira Outro aspecto da vida política brasileira que marcou não apenas o período colonial e republicano. cabendo ao povo o papel de mero coadjuvante. 17 Entende-se por messianismo a esperança da salvação coletiva posta nas mãos dos indivíduos vistos como dotados de dons especiais. Francisco Campos. 15 Nos anos de 1920 e 1930. 1989 . não tinha centro de referência. Para Alberto Torres.49%. 66). assistindo a tudo sem entender muito bem o que se passava. 16 O tema do clientelismo e do personalismo também é discutido pelo antropólogo Roberto DaMatta (2000. como o patrimonialismo. 2000A. . boa parte da intelectualidade. uma boa dose do elemento messiânico.153 1881. De 1881 até 1930 . As lideranças políticas carregam consigo. mas. tem-se os seguintes dados: em 1950 – 16%. além do personalismo. o populismo está vivo. combina clientelismo com liberalismo e personalismo com lealdade ideológica”. Vive-se ainda esperando que algum “herói sagrado”. 17 que tem suas longínquas raízes históricas no sebastianismo português. 2002.6% da população. o populismo e o personalismo das nossas instituições e lideranças políticas. as pessoas carregam a “expectativa messiânica no surgimento de algum pai da pátria que as livrará do desamparo”. o clientelismo. É preciso parar de esperar por um milagre sobrenatural: “a questão brasileira é a necessidade da laicização” (p. na hora de escolher seu candidato.16 Por exemplo. 1960 – 18%. como o clientelismo e a dependência da metrópole. conferir o trabalho de Andrade (2005). Da mesma forma. E da promiscuidade entre o público e o privado na vida política do país. O patrimonialismo também não sofreu contestação no momento da independência.19 A análise de Caio Prado Júnior evidencia. igualmente. p. tratou. quem sabe se um novo Dom Sebastião não o pode fazer por nós” (CARVALHO. para Raymundo Faoro (2001). era constituída de escravos (totalmente excluídos) e mulatos (com possibilidade de ascender socialmente através da Igreja). prevaleceu a cultura do cacau e da Companhia de Jesus. e continua sendo. surgiu um Estado de natureza patrimonial. que priorizavam uma cultura personalista (responsabilidade individual) onde imperavam os vínculos pessoais nas relações sociais e políticas. era baseada na monocultura junto com o trabalho escravo.154 DaMatta.24). Este autor insiste na herança lusitana. evidenciando os pecados capitais do país: latifúndio. em que o ócio é mais importante do que o negócio. Caio Prado Júnior buscou explicitar. o bandeirantismo. do Tratado de Tordesilhas e do Tratado de Madri. no período colonial. em sua obra Formação do Brasil contemporâneo (1994). . 2006). cerca de 60% da população ainda vivia no litoral. a base material do Brasil. das origens da sociedade e da cultura política brasileira. alguns vícios da política brasileira. graças à natureza do processo de transição” (CARVALHO. Com a implantação do capitalismo. houve uma migração para o interior (ciclo da mineração). volta-se para o litoral novamente. em São Paulo. da repulsa ao trabalho. trabalho braçal/desqualificação e escravidão. ainda. 24). segundo o autor. p. Refletiu ainda sobre a aliança entre Espanha e Portugal. vendo nelas a continuidade da herança das nações ibéricas (Espanha e Portugal). o patrimonialismo é um dos principais eixos da cultura política brasileira. deixando os interesses coletivos em um segundo plano. 19 “O Estado português delegou poderes da metrópole. No Norte. esta.20 No período colonial.]. 104). cuja estrutura estamental gerou uma elite dissociada da nação: o patronato político brasileiro. aos poucos. preferiram manter a vinculação patrimonial a rebelar-se [. assim. 18 Sérgio Buarque de Holanda. igualmente. corrupção. Buarque de Holanda tratou. 20 Caio Prado Júnior (1907-1990).. discorreu acerca do povoamento do Brasil. A colônia apenas devia fornecer matéria-prima à metrópole. 2000. A economia. clientelismo e patrimonialismo parecem se perpetuar na terra brasilis..18 Depende-se sempre de um líder: “Já que somos incapazes de construir nossa grandeza. com a decadência desse modelo econômico. Quanto à organização social do Brasil. 2000A. afã fiscal da metrópole. que achou terreno fértil por estas paragens para crescer e proliferar: o exemplo mais evidente foi. deixando a maioria da população brasileira com os parcos excedentes. que atua levando em conta os interesses particulares do estamento burocrático ou dos “donos do poder”. em Raízes do Brasil (2000). Para Faoro. Sobre o clientelismo. da mesma forma. porém. O sistema patrimonial coloca os empregados em uma rede patriarcal na qual eles representam a extensão da casa do soberano. a promiscuidade entre o público e o privado. essa estrutura política e social tem permanecido na política brasileira desde o Estado Novo (BAQUERO. mas. igualmente. In: CORDEIRO e COUTO. trata da esperança messiânica da sociedade brasileira ao afirmar que “espera-se um salvador da pátria” (p. monocultura. enxada e voto. que expandia sua influência na proporção em que diminuía a dos donos de terra. sem a intermediação do coronel. o controle do cargo público era visto como importante instrumento de dominação e não como simples empreguismo. evidenciado. que fora implantado em substituição ao centralismo imperial. A manutenção desse poder passava. então. que também é comentada por Carvalho: esta decadência acarretava enfraquecimento do poder político dos coronéis em face de seus dependentes e rivais. foi tratada por Victor Nunes Leal. quando a relação passa a ser diretamente entre políticos e setores da população. Encontramos tal vício em diferentes momentos do cenário político. o coronelismo é visto como um sistema político. sobretudo. No âmbito econômico. O coronel entrou na análise por ser parte do sistema. O clientelismo aumentou com o fim do coronelismo. No Império. Na vigência do coronelismo. O emprego público irá adquirir importância como fonte de renda nas relações clientelistas (CARVALHO. O coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o . incrustado na conjuntura política e econômica do Brasil no período da República Velha (1889-1930). mas acabou prevalecendo o clientelismo político através da doação de sesmarias. 1997). mas o que mais me preocupava era o sistema. na obra Coronelismo. o sistema. o Presidente de Estado. O clientelismo não foi uma prática recorrente apenas do Brasil Colonial. a estrutura e as maneiras pelas quais as relações de poder se desenvolviam na Primeira República. 1997). Apud CARVALHO. Para ele.155 Na Evolução política do Brasil (1993). Prado Júnior tratou da colônia e do processo de ocupação da terra através das capitanias: para ele. Na concepção de Leal. que perdeu sua capacidade de controlar os votos da população. Esse fenômeno é mais amplo e atravessa toda a história política do país. publicada em 1948. criou-se um novo ator político com amplos poderes. a partir do município” (LEAL. uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o Presidente da República. vivia-se a decadência dos fazendeiros. outra característica da política brasileira. na qual o coronelismo estava inserido. cria-se o federalismo. o coronelismo surge dentro de um contexto histórico específico. estimulou-se a agricultura e a pecuária. A questão do coronelismo. a exigir a presença do Estado. envolvendo compromissos recíprocos. A partir do federalismo. segundo Leal. inclusive nas últimas eleições gerais (2006). O autor tratou da relação entre o poder local e o poder nacional. É um tipo de relação que envolve a concessão de benefícios públicos entre atores políticos. “um ensaio de feudalismo que não deu certo”. No âmbito político. Leal se expressa da seguinte forma: “o que procurei examinar foi. que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece” (p. um necessitava do outro para sobreviver: O governo estadual garantia. As relações entre o poder local (coronéis) e o governo podem ser descritas como um caminho de duas vias. a todo e qualquer potentado. que o coronelismo foi um sistema político nacional baseado na “troca de favores” entre o governo central e os detentores do poder local. na verdade. Junto ao coronel está ligado o voto de cabresto e a capangagem (p. ou quase. até hoje recebem popularmente o tratamento de ‘coronéis’ os que têm em mãos o bastão de comando da política edilícia ou os chefes de partidos de maior influência na comuna. O coronelismo é a fase de processo mais longo de relacionamento entre os fazendeiros e o governo (LEAL. não lendo jornais. O coronel hipoteca seu apoio ao governo. o trabalhador rural. 23). 1997). tem o patrão na conta de benfeitor. o filhotismo. Leal acredita que o mandonismo. sobretudo na forma de votos. sem assistência médica. os governadores dão seu apoio ao presidente da República em troca do reconhecimento deste seu domínio no Estado. . nas quais se limita a ver as figuras. isto é. desde o delegado de polícia até a professora primária.21 Fica explícito. o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais. para baixo. Os trabalhadores rurais. A troca de favores era a essência do 21 O artigo de Carvalho (1997) também encontra-se disponível em http://www.156 governo e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do coronel. 20-21). E é dele. o falseamento do voto e a desorganização dos serviços públicos locais sejam características próprias do coronelismo.br/scielo. nem revistas. desprovidos de qualquer estrutura que lhes possibilitasse mudança de vida. Para cima. Leal (1975) seguiu a definição de Basílio de Magalhães para explicar a origem do conceito de coronelismo no Brasil: o tratamento de um ‘coronel’ começou desde logo a ser dado pelos sertanejos a todo e qualquer chefe político. os mandões dos corrilhos de campanário (p. ou seja. Acesso em 10 de março de 2005. eram dependentes do coronel: “completamente analfabeto. a não ser em casos esporádicos. a partir das considerações de Leal.scielo. Apud CARVALHO. sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos. 25). na década de 1930 o Brasil vê emergir. como o processo crescente de urbanização. percebe-se que muitos outros vícios permanecem na vida política brasileira. 23 Fica evidente que. industrialização. da parte da situação estadual. que consistia em apoiar os candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais: “enquanto que. Indústria e Comércio e a Consolidação das Leis do Trabalho em 1943. que devem prestar contas dos seus atos”. conforme o caso. acabam modificando as relações econômicas e políticas no Brasil. 50). a história começou a andar mais rápido” (p. além da participação dos setores organizados da sociedade civil e do olhar crítico e imparcial da mídia. que podem empreender ações que vão desde o controle rotineiro até sanções legais ou inclusive impeachment. “que quer dizer autoridades politicamente responsáveis. 87). vinha carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município. O accountability (controle democrático) pode ser vertical (relação governantes e governados) e horizontal: quando poderes externos podem punir o próprio governo. houve aceleração das mudanças sociais e políticas. Os tempos agora são outros. copiada da “Carta del Lavoro” adotada pelo regime fascista italiano. uma nova era na história política nacional. os direitos sociais: “A partir desta data.4. principalmente com a criação do Ministério do Trabalho. influências internas. autoridades que podem ser responsabilizadas pelos seus atos. sim. inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar” (p. Os direitos sociais emergem quando os direitos civis e políticos fenecem A partir dos anos 20 inicia.157 compromisso coronelista. em grande parte. . paulatinamente. no Brasil. aumento do operariado. Assim. pois em 1937 Vargas instaura uma 22 23 Ver estudos de Marenco dos Santos (2003) e O’Donnell (1998). gradativamente. conseqüência de concessões de governos centralizadores e autoritários. os direitos sociais não foram conquistados. Ao concluir esta seção. Através da autonomia dos poderes. Trata-se aqui de inserir o conceito de accountability. Diferentes autores que tratam do tema da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) são unânimes em afirmar que essa legislação foi. Os sindicatos foram atrelados ao Estado de aspiração fascista. mas. São necessárias. a crise da Bolsa de Valores de Nova Iorque. criação do Partido Comunista e a Semana de Arte Moderna. Em termos políticos tivemos retrocesso. autoridades estatais podem controlar o próprio poder.22 11. outras formas de controle e responsabilização dos atos administrativos das pessoas que ocupam cargos públicos. bem como influências externas. tortura e assassinatos das principais lideranças políticas. Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). Foram criados o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). apesar dos avanços políticos. Logo após esse período. aboliu a eleição direta para a Presidência da República. Os Atos Institucionais (AIs) deram a tônica do governo. de forma negociada. artistas e da população em geral. sociais e religiosas. em 1974. No que se refere aos direitos sociais. os militares deixam o poder. do ponto de vista dos direitos civis e políticos. cassação dos direitos políticos. houve cassações de mandatos. Novos partidos foram criados e a nova Constituição Federal foi promulgada em 1988. o período da ditadura militar dá sinais de esgotamento e os ares de novos tempos começam a soprar no cenário político do Brasil. da opinião pública. Há precariedade na questão da segurança e no acesso à Justiça. 162). de 1965.158 ditadura apoiada pelos militares instituindo o Estado Novo. Essa Constituição. 172). Já o AI 5. dissolveu os partidos políticos criados a partir de 1945 e estabeleceu um sistema de dois partidos. apesar da resistência de alguns setores conservadores da sociedade (como o “Centrão” – deputados que defendiam as grandes propriedades rurais). no ano de 1985. além da demissão sumária de funcionários públicos. a governar ditatorialmente. tendo como principal característica política o populismo e o nacionalismo. Depois da pressão política da oposição. suspensão de direitos políticos de deputados e vereadores. Banco Nacional de Habitação (BNH) e. Houve perseguição. que só termina em 1945. foi considerada a Constituição mais liberal de todas. o da ditadura militar. na época a designou como a “Constituição Cidadã”. cassou os direitos políticos. o país passou pela primeira experiência democrática (1945 até 1964). censura à imprensa e a instituição da pena de morte por fuzilamento. passando o presidente. general Costa e Silva. nos anos mais sombrios da sua história. o que mais fundo atingiu direitos políticos e civis. de intelectuais. Ulisses Guimarães. No entanto. de 1968. os direitos civis e sociais são deficientes desde 1985. o Ministério da Previdência e Assistência Social (p. os Brasil entrou. foi considerado o mais radical de todos. Aos poucos. percebe-se que houve uma sensível melhora na época dos militares. O Congresso foi fechado. porém. O AI 1. além das altas taxas de homicídios: “A taxa nacional de homicídios por 100 mil habitantes passou de 13 em 1980 para 23 . No entanto. depois da breve experiência democrática. O presidente da Constituinte. Foi suspenso o habeas corpus para crimes contra a segurança nacional (p. O AI 2. de 1964. e. . Pensa-se que. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial. especificamente. Na ordem política.. durante a modernidade (conquistas da sociedade liberal burguesa). até hoje. depois os políticos e civis. tanto civis (individuais). também. a base da seqüência de Marshall. políticos e sociais) não obedeceu à mesma lógica seqüencial no Brasil. Somente em 1824. Constatou-se que o latifúndio agro-exportador do período colonial.159 em 1995. permanecem ainda algumas mazelas históricas como o patrimonialismo (promiscuidade entre o público e o privado). ainda hoje muitos direitos civis. sejam contempladas tais questões. a lógica inversa: primeiro os direitos sociais. quanto políticos e sociais.24 Este capítulo procurou apresentar argumentos que comprovam a difícil construção da cidadania no país. o caso aqui exposto (experiência do Brasil). Depois vieram os direitos políticos. principalmente. quando é de 8. outras razões foram e continuam sendo entraves para a consolidação das instituições políticas. marcaram negativamente nossas origens e. bem como o escravismo e o analfabetismo. o coronelismo com sua nova roupagem. o clientelismo.. O Judiciário não cumpre seu papel: além da morosidade nos trâmites e decisões.2 nos Estados Unidos” (p. deram-se de maneira tardia e inversa. No entanto. continuam inacessíveis à maioria da população. comparadas com as de outros países. Deu-se no Brasil. optou-se em responder quais os principais obstáculos para a construção da cidadania brasileira. Além dessas. Percebe-se isso na história das civilizações clássicas (greco-romanas). além da corrupção. o conceito cidadania sempre esteve e ainda está ligado à conquista de direitos. os direitos civis continuam inacessíveis: “Finalmente. Como sabemos. de maneira também bizarra. o personalismo (messianismo). 220). há. Como bem argumenta Carvalho: “Aqui primeiro vieram os direitos sociais. dificultam avanços no âmbito político-social e econômico. no debate teórico atual da questão da cidadania global e da cidadania cosmopolita. mais de 320 anos após a chegada 24 No entendimento de José Murilo de Carvalho. Tem-se consciência de que o capítulo poderia ter avançado. que impedem os avanços necessários para uma cidadania plena. implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Além disso. entre outros. a ordem de institucionalização clássica dos direitos de cidadania com base em Marshall (civis. um número reduzido de defensores públicos. em outra oportunidade. Percebeu-se também que as conquistas dos direitos no Brasil. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo” (p. 220). 212). em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime” (p. diferentemente de outros países. ou de uma cidadania passiva ou sem “povo”. . é necessário recorrer à defesa de mecanismos institucionais. a expressão ‘democracia semidireta’” (p. adoto. através de canais institucionais. Aos poucos surgiram os direitos sociais. surgiram os primeiros direitos civis e políticos (antes disso estávamos submetidos à lei da Coroa portuguesa). 2000).160 dos portugueses. Este capítulo abordou o tema da cidadania com referência ao nosso país. é possível reverter o processo através da educação política – entendida como educação para a cidadania ativa e plena. ao afirmar que. no período da ditadura de Vargas (1937-45) e na ditadura militar (1964-1985). haveremos de concordar com Benevides (1994. exatamente no momento em que os direitos civis e políticos estavam sendo negados. o plebiscito e a iniciativa popular para a construção do que a autora chama de uma cidadania ativa ou democracia semidireta: “Assim. Como esse tema foi tratado nos diferentes períodos históricos. discuto a participação política. a votação (o referendo e plebiscito) e a apresentação de projetos de leis ou de políticas públicas (iniciativa popular): Como defendo a complementaridade entre representação e participação direta. no sentido mais abrangente: a eleição. Por fim. no intuito de reverter a realidade político-social excludente. em decorrência. 10) Embora com grandes dificuldades. mas. como o referendo. a questão da fidelidade partidária. O governo se revelou. o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a posição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que o voto dado pelo eleitor pertence ao partido e não ao político. com ocupações. Outro tema que esteve na mídia foi a questão da reforma política: essencialmente. Por duas vezes. ainda. exemplo seguido por muitas lideranças políticas atuais. de forma sucinta. o PT. VICISSITUDES DA POLÍTICA BRASILEIRA Este último capítulo apresenta. o caráter pouco solidário e a necessidade de construir capital social no Brasil também foram abordados. que acabou renunciando à Presidência da Casa para escapar da cassação. acusado de quebra de decoro parlamentar. Constatou-se que os candidatos do PT têm declinado sensivelmente sua votação no Congresso Nacional. omisso. Presenciamos. 12. De um lado.12. novamente. Não houve avanços na dita reforma. a questão do Estado. os senadores absolveram Calheiros. mostrando pouca eficiência nesta problemática. Outros temas. mas. marchas na luta pela terra.1. apresentamos os “ensinamentos” de Maquiavel para conquistar e manter-se no poder. como a democracia. as milícias armadas dos fazendeiros. a pressão do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). o afastamento do Governo Lula à proposta ideológica de seu partido. o lulismo. O capítulo inicia tratando do caso Renan Calheiros. enquanto o voto dado ao candidato Lula tem evoluído. presidente do Senado. caracterizando uma nova onda de populismo. por outro. O tema polêmico da reforma agrária voltou a ser manchete. Ainda tratando sobre os desmandos da política brasileira. O caso Renan e a degeneração da política . um debate sobre os principais temas que estiveram na pauta da política e da opinião pública no segundo semestre do ano de 2007. pois. isto é. a partir de sua etimologia. o bem comum é substituído pelo bem privado e os vícios e mazelas tão antigos das instituições e da cultura política. temos assistido exatamente ao inverso da proposta grega sobre o real entendimento da política. Por isso o elogio de Péricles: “não imitamos a Lei dos nossos vizinhos”. bem pelo contrário. o lobbysmo. como o clientelismo. perdem as instituições políticas. Analisando a conjuntura política brasileira atual. Como nos diz Prélot (1973). também perdem todos os eleitores e cidadãos do país. emendar e aprovar as propostas legislativas e as normas das agências reguladoras. corromper. . “o fim da política não é. o patrimonialismo e. mentir. Fica apenas o sentimento de impotência misturado com o sentimento de frustração e impunidade pairando no ar. Isto é. Foi o caso do Presidente do Senado Renan Calheiros (representante das velhas oligarquias regionais alagoanas). agora. mas prolonga-se”. foi acusado de utilizar dinheiro de uma empresa privada (empreiteira) para pagar despesas pessoais. Por isso o Conselho de Ética do Senado recomendou a votação da perda de mandato de Renan por quebra de decoro. o homem dado aos debates na Ágora. é o que domina. e a triste constatação de que tudo é possível e permitido no Brasil: enganar. cidade-estado) e se refere a tudo o que é urbano. perde a democracia. o lobbysmo consiste em dirigir todas as energias de quem o pratica a obstaculizar. O homem político é aquele que não apenas vive na cidade. a conquista ou o enriquecimento geral. Também é da genialidade grega a criação da democracia (demos + cracia). mas faz desta a sua principal preocupação. Renan foi absolvido por duas vezes consecutivas por seus pares no Senado. os interesses individuais sobrepõemse aos interesses coletivos. Com sua absolvição. governo do povo que garantia ao homem a isonomia (igualdade perante a lei) a isegoria (liberdade de opinião) e a filantropia (fraternidade entre os cidadãos). Os lobbystas operam ante governos locais. a corrupção. aos discursos e às discussões políticas. provém do grego politikos (pólis. Por aqui. estaduais e federais. E o homem grego era. No entanto. a política é a arte de tornar melhor os cidadãos. Neste sentido. civil e público. apadrinhar. como testemunha Isócrates: “Estabelecemos entre os outros a nossa Constituição”.162 A origem da palavra política. mas sim a virtude coletiva. Entende-se por lobbysmo a prática que representa o interesse de grupos (empresas) e procura influenciar nas votações legislativas e nas decisões dos administradores governamentais. Ela não está acima da moral. por excelência. a vida política entre os gregos destinava-se a garantir a qualidade e a perfeição da vida. Depois de Maquiavel. Maquiavel. Aristóteles. Santo Agostinho. Enquanto Platão. 12. precisava de uma liderança política (príncipe) destemida. O . literalmente. aumentar e. antes e depois de Maquiavel. Talvez por esta razão o seu Príncipe tenha sido indexado. ser resumida na questão do poder: como conquistar. a literatura passou a designar Maquiavel: como o próprio “Velho Diabo”. na lista de livros proibidas (Índex).2. A história política pode ser dividida em duas partes. principalmente. na Inglaterra. a expressão “Old Nick” significa. tal qual ela é. seguidor de Tácito. examinou-a com objetividade. traiçoeiro. A essência de sua obra pode. então. É do sentido pejorativo dado pela Igreja à obra de Maquiavel que surgiu o adjetivo maquiavélico. tratou a política de maneira diferenciada dos teóricos anteriores. para isso acontecer é necessário que os cidadãos vivam o bem comum. a ordem se inverte. desde a época elizabetana. o teocentrismo dominava e ela seguia em segunda ordem. Para isso. engenhosa. pela Igreja Católica. recomendou estratégias para manter o poder político. São Tomás de Aquino. mesmo que. Políbio. e que. em 1559. fosse necessário empregar certos meios pouco lícitos (pois os fins justificam os meios). ou mesmo os seus contemporâneos. ou em conjunto ou por intermédio dos seus governantes. conhecido até nossos dias como aquele que tem um procedimento astucioso.163 Por fim. a política estava ligada aos valores religiosos. Em inglês. Considerado um dos primeiros cientistas políticos da Modernidade. Tucídides e Tito Lívio. a política torna-se o valor mais importante. uma abreviação de “Velho Nicolau”. para alcançar este fim. está formada a degeneração da política. Maquiavel: o “Old Nick” anda solto! O renascentista Nicolau Maquiavel (1469-1527) ganhou notoriedade na História e nas Ciências Sociais por ter escrito O Príncipe (O Principal) (1513-1514). se acontecer o contrário (a busca do interesse próprio). Erasmo de Rotterdam e Thomas More. entende-se que a vida política no sentido originário destina-se a garantir a qualidade e a perfeição da vida. Infelizmente essa é hoje a realidade política brasileira. O objetivo de Maquiavel era a unificação da Itália. habilidosa e forte (virtu). Até então. Dante. imaginavam. termo com o qual. Maquiavel não tratou de questões e valores espirituais. e idealizavam e conjeturavam sobre como a política deveria ser (ou como gostariam que fosse). velhaco. juntamente com a valorização do indivíduo. acredita-se que os “ensinamentos” de Maquiavel e seu Príncipe foram assimilados e postos em prática por uma boa parte das nossas lideranças políticas atuais. 12. Neste sentido.9% não acreditam nos políticos.3.. esta “naturalidade” do “trocatroca” tem causado prejuízos às instituições políticas. que as práticas do “velho diabo” têm encontrado guarida no coração e mentes de muitos. libertinagem. No entanto. Infelizmente trocou-se a ética pelo ardil. Na segunda gestão (1999-2002). leva-nos a crer. roubo. 302. mudaram de partido na Câmara dos Deputados. ele anda solto pelas bandas do “planalto” e até nas mais recônditas “planícies”. de 1985 a outubro de 2001. chega-se a 28. acusado de diversas irregularidades (tráfico de influência. favorecimento a empresas) e o esforço empreendido pelo partido do governo para salvá-lo. velhacaria.média de 67 por ano. rapacidade (avidez de lucro). No primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). Traduzindo esses números em percentuais. O mau exemplo do Senado brasileiro absolvendo o presidente da Casa. perfídia. Muitos o têm como livro de “cabeceira”. todos os meios são considerados honestos. estamos bem arrumados. sendo a principal causa do descrédito dos políticos frente à opinião pública. entre titulares e suplentes. (In) fidelidade partidária A migração partidária ou o conhecido “troca-troca” é a prática por que os políticos procuram “acomodar-se” a um partido em que possam tirar proveito pessoal. dolo. Em nome do poder. traição. um manual de sobrevivência na política. independentemente de manter a fidelidade à legenda pela qual foram eleitos. quando foi encerrado o prazo de filiação partidária tendo em vista a eleição de 2002. A infidelidade partidária tem sido uma marca da política brasileira desde o período da democratização.. Renan Calheiros. foram registradas 854 migrações partidárias . nada menos que 846 parlamentares. enriquecimento ilícito. Sim. Nos últimos 12 anos (desde 1995). a astúcia e o cinismo. Estudos monstram que. 81. fraude.164 príncipe (liderança política) situa-se para além do bem e do mal. dissimulação.8% dos políticos que assumiram uma cadeira na Câmara dos Deputados e trocaram de legenda durante o mandato. deboche. E. por isso. tudo se justifica: cupidez. foram 211. no primeiro Governo . Segundo a pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMD). infelizmente. Tudo é permitido desde que se alcance o resultado desejado. já contabiliza 50 (Dados do Acervo da Câmara. O TSE decidiu também que a fixação de regras de fidelidade partidária recaiam sobre os cargos majoritários: presidente da República. beneficiar as instituições políticas do país. governadores. Esta decisão foi aprovada. Diante disso . na Câmara. na opinião pública e nas organizações sociais nos últimos anos. são apenas dúvidas. pouco se tem avançado no consenso e na efetividade da mesma. com o tempo. prefeitos e senadores. há claramente o crescimento de um tipo de migração que pode ser interpretada. a lúcida decisão dos magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF) em ratificar a posição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que o voto dado pelo eleitor pertence ao partido e não ao político pode. na atual gestão. 12. Reforma Política: entraves e perspectivas "Você conhece alguém que fabrica uma chibata para apanhar com ela?" Ex-Deputado João Caldas (PL-AL) O debate sobre o Projeto de Lei (2. aos poucos. Essas siglas têm juntas. segundo o estudioso. 80% de suas bancadas formadas por deputados que trocaram de partido com o mandato em curso. Por fim. Especialmente a partir de 1995. já haviam pertencido a mais de um partido no mesmo sistema partidário. tem evoluído nas últimas legislaturas: quase 60% dos deputados. a migração partidária era insignificante no primeiro sistema multipartidário brasileiro. Ou seja.679 de 2003) da chamada reforma política tem ocupado um lugar de destaque no meio político. mas. Por exemplo. partidos da base aliada acabam sendo cobiçados e inflados por parlamentares da oposição obcecados por emendas e cargos públicos. O que temos.4. especialmente entre 1950 e 1962. até o momento. Segundo o cientista político André Marenco dos Santos. No entanto. desconfianças ou mesmo ceticismo sobre tal reforma.165 Lula (2003-2006). quando eleitos. publicados na Folha de São Paulo de 07/10/2007). como “adesão ao governo”. que começou em fevereiro. A atual legislatura. 291. o PR e o PTB (base aliada do governo) são os destinos prediletos dos infiéis (oposição). e todos os parlamentares que trocaram de partido a partir de 27 de março de 2007 (quando o TSE decidiu que o mandato pertence ao partido e não ao candidato eleito) poderão perder o mandato (salvo quando o parlamentar alegar perseguição interna do partido ou que o partido mudou a sua ideologia). a isenção e a imparcialidade dos novos constituintes nas tomadas das decisões: estariam eles defendendo os reais interesses dos eleitores ou continuaria sendo meros lacaios dos grupos privados? Considerando o momento atual das instituições e dos atores políticos (alta desconfiança por parte do eleitorado: 82% não confiam nos políticos).737. A idéia também foi defendida pelo próprio PT no último Congresso do Partido.166 pergunta-se: se a reforma política vier a ser realizada. é preciso manter a mobilização e não desacreditar. acredita-se que a reforma política tenderá a manter os vícios culturais e institucionais da política brasileira (personalismo. a propaganda eleitoral. caímos num círculo vicioso: não consolidamos a democracia porque nos falta verdadeiros partidos. Qual a saída? Acredita-se que somente com a participação popular e a sociedade civil organizada a reforma política chegará a bom termo. Assim. da Comissão Especial de Reforma Política. o financiamento de campanha e as coligações partidárias. A frase do exdeputado João Caldas.º 4. são mínimas as chances de que a reforma política venha a ser realizada. citando Gramsci: É preciso ser absolutamente pessimista no diagnóstico. dispõe sobre a fidelidade partidária. O próprio presidente Lula acredita que a reforma política só sairá do papel caso seja convocada uma nova Assembléia Constituinte (paralela). mas. pesquisas eleitorais. Como se fosse possível a neutralidade. Nem mesmo a idéia esdrúxula de convocar uma nova Constituinte resolveria o problema. . No entanto. é elucidativa. o funcionamento parlamentar. a Lei n. Como nos diria Eça de Queiroz: estamos bem arranjados. do PL de Alagoas. de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral). ou seja. a instituição de federações partidárias. Sem a participação popular (diálogo com os eleitores).096. Apesar do quadro desolador. pode-se esperar que ela resolva as mazelas culturais e institucionais da política brasileira? O Projeto de Lei. porém. não temos partidos porque nos falta a verdadeira democracia. ou nas próximas eleições. de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições). de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos) e a Lei n. possa prejudicar ou comprometer a sua (re)eleição. alterando a Lei n. com novos representantes escolhidos pelo povo para tratar especificamente deste assunto. mas manter a mais acesa esperança na ação . Como nos ensina Comparato (1993). ninguém vai aprovar um projeto que. haveremos de concordar com a afirmação de Benevides: a julgar pelo andar modorrento dos pretensos reformistas.º 9. será pouco provável que alcance o êxito esperado. clientelismo. o voto de legenda em listas partidárias preordenadas. se vier.504. daqui a alguns meses. do jeito que a reforma política está sendo proposta é pouco provável que alcance resultados satisfatórios.º 9. tendo a ética e a luta social como sua principal bandeira. das principais Centrais Sindicais do país. respectivamente. Durante as décadas de 80 e 90..5. As lideranças do partido eram provenientes. fundamentadas na Teologia da Libertação (ala progressista da Igreja Católica). o problema do troca-troca de partido (infidelidade partidária). No entanto. Chegou um dia em que alguém me convenceu de que eu não precisava mais ficar fazendo discurso para agradar ao PT. 50 parlamentares trocaram de partidos: 46 deputados na Câmara Federal e 4 senadores (alguns. velhos conhecidos da política brasileira. foram cruciais para mudar os rumos do partido. credenciou o candidato petista a sonhar sim. e cada eleição que eu perdia.167 patrimonialismo e tantos outros “ismos”). com o cargo máximo do país. o PT consolidou-se como um dos principais partidos de oposição do Brasil. No entanto. inclusive a de chegar ao centro do poder (Presidência da República).. de onde emergiu seu principal líder. as derrotas nas eleições gerais de 1994 e 1998. O próprio presidente reconheceu. principalmente. inclusive. em parte. concretamente. a sua própria mudança e a mudança no programa do partido: “Eu perdi três eleições. A mudança da “esquerda” para o “centro” do espectro político foi uma questão de tempo. Somente neste ano (2007). das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). dos movimentos sociais. trocando mais de uma vez de partido). Luiz Inácio Lula da Silva. o partido cresceu e aspirou a maiores possibilidades. com uma proposta ideológica socialista e com bandeiras alternativas aos partidos tradicionais da história política brasileira conhecida até então. Por fim. recentemente. prática comum no meio político. vindo a enfraquecer ainda mais nossas instituições políticas. A expressiva votação do candidato Lula para presidente em 1989. a coerente e acertada posição do Supremo Tribunal Federal ao decidir que o voto dado pelo eleitor pertence ao partido e não ao político (embora não tenha punido os políticos infiéis) ameniza. Seria o fim do petismo? O Partido dos Trabalhadores (PT) surgiu no início dos anos 80. 12. Sem contar os parlamentares que trocaram de partido por mais de uma vez. indo ao segundo turno e desbancando nomes como Brizola e Quércia. ainda. de boa parte da intelectualidade brasileira e. que eu não precisava mais ficar fazendo discurso para agradar aos 30% ou . perdia por 15%. . para onde caminha o PT? Voltará às suas origens socialistas ou dará continuidade ao seu governo de coalizão? O eleitor poderá esperar ainda um projeto de desenvolvimento ao país. Na segunda tentativa.. Conceito que anda meio escasso ultimamente no próprio partido. Em 2006. democrático e popular do partido. a tendência é permanecer “tudo como dantes. a única “novidade” foi a aprovação do código de ética do partido. depois de quatro anos no poder. ou assistirá a práticas de rentismo à elite financeira nacional e internacional e ao assistencialismo aos mais pobres (Bolsa Família)? Ao que tudo indica. o partido totalizou 11. fazendo mais de 60% dos votos válidos. o partido até acenou inicialmente para a possibilidade de uma candidatura própria para a Presidência em 2010. no primeiro turno para a Presidência da República.168 35% que eu tive em todas as eleições.6. Embora tenha sido aprovada uma resolução reafirmando o caráter socialista. o que não interessa à democracia brasileira.”. foram 17. O lulismo é maior que o petismo .5%) no primeiro turno e venceu as eleições. e se reelegeu. Era preciso que eu me preparasse para ter do meu lado os 15% que faltavam. pode-se afirmar que assistimos. em 1994. mas. no segundo turno. 21. 16. Dentro desta lógica.1% do total dos votos válidos. sempre faltavam alguns percentuais e. 12. sim..4 milhões de votos (46..1 milhões de votos (27%). Aliás. pressionado por Lula.662 milhões de votos (48. parece que nada mudará. o candidato petista fez 46. No entanto. depois de uma mudança radical no programa. E eu me preparei e ganhei a eleição”.6 milhões de votos. bem como a formação de alianças com partidos de centro e até de direita (PL).7%). a evolução do voto petista de 1989 a 2006 foi bastante expressiva: em 1989.4 milhões de votos (31. depois do 3º Congresso do partido (3/9/2007). logo após. em 1998. em 2002. recuou e aceitou a possibilidade de apoiar uma candidatura a partir de partidos da base aliada (coalizão governista). o candidato Lula somou nada menos do que 39. bem como no meio político como um todo. pois é preciso manter tudo do jeito que está pra ver como é que fica. No quesito manter as coisas como estão. com mais de 52 milhões de votos (61. De fato. à morte da ideologia da esquerda do petismo para ficarmos apenas com o “lulismo”.6%) no primeiro turno. amenizou o discurso. no quartel general de Abrantes. no segundo turno.2%). Mas e agora. Foram 2. 675 mil a menos (-22%) e no Sudeste.1 milhões de votos a menos.169 Segundo pesquisa do Instituto Sensus (12 de outubro de 2007). percebe-se que os votos dados ao PT no Câmara Federal têm declinado. Não se descarta. quem sabe. Ciro Gomes ou Nelson Jobim (da base aliada). quando totalizou 16.062 milhão de votos (-21. em 2010. A pesquisa encomendada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) mostra números positivos. no Norte 207 mil votos (31%). Se o cenário político e econômico se mantiver estável nos próximos anos. Alguns nomes já estão sendo cogitados: Dilma Rousseff. Somente no estado de São Paulo o declínio foi de 1. tanto para a avaliação do presidente quanto para seu governo. se comparados com as eleições de 2002. muito presente no cenário político da América Latina. No Nordeste (influenciado pelo Bolsa Família).5% avaliam o desempenho do seu governo como positivo. Marta Suplicy e Tarso Genro (do próprio PT).990 milhões de 2006. O fenômeno do lulismo pode ser associado a uma nova onda de personalismo (culto à pessoa) e populismo (fenômeno político caracterizado pela liderança de uma pessoa que geralmente expressa carisma .094 milhões contra 13. As perdas mais significativas deram-se no Sul. o PT. também. se traçarmos um paralelo entre o voto petista no Congresso Nacional com o voto petista para presidente. não vá tão bem assim. Lula fez. Isto significa que o PT perdeu no Congresso Nacional 13% de seu eleitorado entre uma eleição e outra. nas eleições de 2006 mais de . a popularidade do presidente Lula e a aprovação do seu governo continuam altas. o PT fez 374 mil votos a mais (13%) e. Apesar de ter conquistado a Presidência da República. é bem provável que. constatamos que a votação de Lula foi duas vezes maior do que os votos atribuídos aos candidatos petistas a deputado federal. Por outro lado. mesmo que a do próprio partido. cinco governos estaduais e ter eleito a segunda bancada da Câmara de Deputados (83). prevalece a imagem carismática e messiânica do presidente Lula. menos 1. ou.902 milhão de votos (-23%). no Brasil. a imagem de Lula continua inabalável.popularidade).5%). a possibilidade de que Lula volte a concorrer à Presidência da República em 2014.% dos brasileiros aprovam o governo do presidente Lula e 46. Apesar das crises e turbulências por que o partido do presidente (PT) passou nos últimos tempos. o presidente Lula venha a fazer seu sucessor ao Palácio do Planalto. Mais de 61. Por exemplo. O declínio poderia ter sido maior caso as regiões Norte e Nordeste do país não houvessem incrementado a votação pró-Lula. o dele próprio (caso mexa na constituição). O culto à pessoa é maior que a ideologia dos seus próprios partidos. disse o coronel. Neste sentido. antes que seja parada pela força da bala ”. Mas. Enquanto os Estados capitalistas desenvolvidos efetivaram a reforma agrária diversas vezes no tempo e nos referidos espaços territoriais (pois entendiam que a distribuição da terra beneficiava o próprio sistema). a questão agrária é um problema histórico que nos remete ao período colonial (capitanias hereditárias) e permanece até nossos dias como uma das principais mazelas sociais do país. Se compararmos ainda os votos recebidos por Lula nas eleições de 2002 com as eleições 2006. e. marchas e ocupações ocupam espaço na mídia em geral.26%). o lulismo pode ser caracterizado como uma forma de administração voltada para a manutenção das políticas de mercado (política econômica ortodoxa: controle da inflação. ao pedir o fim da marcha dos sem-terra à fazenda Guerra no município de Coqueiros do Sul (314 km de Porto Alegre): “Estou fazendo este pedido para que a marcha seja parada pela força da lei. em 2002. Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). coronel Paulo Roberto Mendes (20/09-07). retrógrada e inconseqüente afirmação do subcomandante-geral da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. em 2006. gerenciado pelos companheiros sindicalistas (45% dos cargos de confiança são compostos por sindicalistas). remessas recordes de lucros ao estrangeiro. pela prática populista assistencial do “Bolsa Família” (beneficiando os extremamente pobres). benefícios aos banqueiros). é correto afirmar que. . do burocratismo estatal. agronegócios. a necessidade da Reforma Agrária ser implantada no Brasil se justifica pelas seguintes razões: a) Gera desenvolvimento. Foi o caso da infeliz. o PT não consegue o mesmo êxito conquistado pela sua principal liderança.662. no Brasil.7.170 46 milhões no primeiro turno contra 13 milhões de votos para o Congresso.207 milhões de votos (18. Para quê Reforma Agrária? Novamente a questão agrária está na pauta das discussões da opinião pública brasileira. Diante disso. Talvez por essas razões deu-se a vitória da reeleição e a manutenção dos percentuais de avaliação tão positivos. o Estado brasileiro opta pelo atraso. que pode sobreviver politicamente sem o PT. Por outro lado. Reforma Agrária. o presidente Lula. percebe-se que houve um crescimento de 39. Em síntese. um crescimento de 7. pergunta-se: o PT. Via Campesina. trata a Reforma Agrária com desdém e até com coação e violência. para 46.455. sobreviveria sem Lula? 12. Ao mesmo tempo em que a vocação do Brasil é a agricultura. imaginem se a população urbana aumentar drasticamente: não aumentaria o desemprego. não só direitos privados. Dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) comprovam. percebe-se que o governo Lula tem priorizado mais o avanço do agronegócio no Brasil do que a agricultura familiar. que cerca de 10% dos 4. o latifúndio não . menos de 3% da terra. Por exemplo. Neste sentido. Indicadores comprovam que os pequenos agricultores produzem mais.1 milhões de produtores rurais (muitos). sai uma parte relativamente pequena do que se come. 1990). em face do Estado. enquanto uma pequena parcela. Dados estatísticos mostram que quase metade da terra cultivável está nas mãos de apenas 1% dos fazendeiros (poucos). a função do Estado é garantir os direitos públicos de todos e não apenas os direitos privados de poucos. c) Os minifúndios são produtivos. ocupam pouco mais de 20% dessa área total.171 Entende-se que no Estado Democrático de Direito o indivíduo tenha. Já os pequenos imóveis. a metade desta área é disponível para a criação de gado. que representam cerca de 90%. a marginalidade. Ou seja: eles produzem menos. o que é otimizado para a produção é coisa ínfima. educação e emprego. embora tenham 100 vezes mais terra. no plano safra 2006/2007 foram cerca de R$ 50 bilhões destinados aos grandes produtores. agrega pouco valor e os lucros não são socializados. Este setor foi o que mais recebeu incentivos do governo. a violência? O que faremos se o êxodo rural acentuar-se ainda mais? Como serão nossas cidades? . É importante que as pessoas possam viver no campo tendo condições dignas de plantar e colher.000 hectares. No entanto. d) Ajuda a resolver os problemas sociais. Existem mais de 371 milhões de hectares disponíveis para a agricultura no país. Dos donos de mais de 1. Boa parte dos alimentos vem dos proprietários que possuem até 10 hectares de terra. além do mais. pertence a 3. saneamento. Se as nossas cidades já apresentam déficits habitacionais. Neste quesito. O latifúndio (agronegócio) produz monoculturas de exportação gera poucos empregos. tem-se uma população faminta. igualmente. ocupando quase 80% da área total das terras cadastradas. mas também direitos públicos.9 milhões de imóveis rurais cadastrados no Brasil correspondem à média e grande propriedade. b) Resolve o problema da concentração da terra . O Estado de Direito é o Estado dos cidadãos (Bobbio. autonomia para associações e cidadania inclusiva). “até que ponto se permite que esse sistema seja substancial?”. A democracia ideal pressupõe que a participação pública e o espírito cívico dos cidadãos (associativismo. agora.1% concordam. segundo a pesquisa do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) feita na América Latina. trata-se. 54. essencialmente marcada por governos oligárquicos.7% dos cidadãos estariam dispostos a aceitar um regime autoritário se este resolvesse a situação econômica de seus países e respondesse às suas demandas sociais. é mais do que um método para eleger e ser eleito. de avançar para a consolidação de uma democracia cidadã e inclusiva (é preciso passar da condição de meros espectadores para a de cidadãos participantes). Algo inédito até então. O sujeito. uma democracia formal poliárquica (eleições livres e freqüentes. no Brasil. Os desafios da democracia na América Latina Vive-se um momento peculiar no cenário político nacional. até o momento. é preciso aprimorar o regime democrático. liberdade de expressão. é cidadão.172 Por esses e outros motivos acreditamos que a Reforma Agrária. Entretanto. possa contribuir para o desenvolvimento econômico e social. mais do que eleitor. No entanto. resolvendo os problemas de ordem estrutural (econômico e social). Isso representa um avanço na história política do Brasil. político e social. populistas e autoritários. 12. junto com outras políticas mais audaciosas. como questiona Saramago. De que adiante democracia se os problemas sociais e econômicos da maioria da população ainda persistem? Talvez por isso. Ao concluir o segundo mandato do Governo Lula. sem Reforma Agrária estamos fadados ao atraso econômico. fontes de informações diversificadas. A democracia é muito mais que um regime governamental.8. alcançamos uma democracia eleitoral e suas liberdades básicas. também. isto é. além de fortalecer a democracia do Brasil. confiança e cooperativismo) sejam aprimorados em busca de justiça social e da emancipação .3% avaliam que o desenvolvimento é mais importante que a democracia e 58. segundo o pensamento de Robert Dahl. Pode-se dizer que se conquistou. que o presidente possa ignorar as leis para governar. 56. completam-se 24 anos de democracia ininterrupta. A eleição geral de 2006 foi a quinta eleição direta consecutiva para Presidente da República. com a sua equipe pessoal. ou. como diz Hélgio Trindade: “a construção da democracia participativa supõe uma combinação entre cidadania democrática e representação política plena”. uma democracia dos de baixo onde os pobres vejam garantida a segurança social e econômica. Mais Estado e menos mercado . personalistas e patrimonialistas entre os representantes eleitos. a que Marcello Baquero chama de democracia inercial: com inexistência de instituições sólidas. porém fracassa.8. nas palavras de Pablo González Casanova. Prevalecem a centralização política e a personificação do poder do presidente. 12. pode-se afirmar que impera uma típica democracia delegativa (Guillermo O’Donnell). suas decisões políticas”. a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso de suas políticas é exclusiva do Presidente da República que.173 humana. especialmente no que se refere à política econômica. da sociedade. a que Larry Diamond denomina democracia iliberal (illiberal democracies). corrupção do aparelho do Estado e violência generalizada. A proposta de eleição ininterrupta de Hugo Chaves na Venezuela e a cogitação de um plebiscito para o terceiro mandato de Lula no Brasil diminuem as chances da consolidação e do fortalecimento da democracia no continente. A democracia latino-americana não pode ser uma democracia que facilita os procedimentos. são o alfa e o ômega da política (o presidente isola-se da maioria das instituições políticas) e os problemas da nação são tratados por técnicos e burocratas. falta de fiscalização e predomínio de traços clientelísticos. A oposição e a resistência das ruas. Isso significa afirmar a existência de frágeis instituições políticas. do Congresso ou de associações de representação de interesse são silenciadas ou ignoradas. para proporcionar liberdades cívicas e garantir os direitos humanos. Além do autoritarismo democrático que se vive na cultura política latino-americana. igualmente. deterioração da autoridade presidencial. É necessário que se estruture na América Latina. o que Hélgio Trindade chama de hiperpresidencialismo: “o presidente se considera legitimado por um poder delegado pelo voto para implementar. comportamento político emocional e subjetivo. ainda. por mecanismos autoritários. Isto é. em que se sucedem crises de ordem sócioeconômica (sucessivos planos econômicos). alternância de poder. A democracia pressupõe. E mais. mas. em artigo publicado na Folha de São Paulo (2002). como fizeram todos os países que iniciavam seu desenvolvimento. deixamos que a entrada de capitais valorizasse nossa moeda e aumentasse artificialmente salários e consumo”. que causou. o tamanho e a função do Estado. os serviços . Porém. houve a “flexibilização” do mercado e a multiplicação da dívida: “em vez de controlar a entrada de capitais e reduzir a dívida externa. o próprio Bresser-Pereira. Bresser-Pereira lamentou que sua Reforma Administrativa não tivesse alcançado os resultados esperados. O Brasil. nos anos 90. precariedade e. A principal delas foi a chamada reforma administrativa. conclui Bresser-Pereira. Porém. ampliamo-la. mais tarde. flexibilização dos direitos trabalhistas.174 Nos anos 90. sendo que as mesmas reduziram. com o apoio do FMI. Fizeram parte desse Programa de Reestruturação (ajustes) a reforma administrativa e previdenciária. do Banco Mundial e dos mercados financeiros internacionais”. essa política tem encontrado resistência na opinião pública: até há pouco tempo os serviços prestados por empresas públicas eram considerados ineficientes. de joelhos. Talvez por isso. endividamo-lo ainda mais”. conflitos sociais. então Ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso). em vez de reconstruir financeiramente o Estado. de baixa qualidade e mal administradas. consideravelmente. recessão econômica. Seguimos. o desmonte dos sistemas de seguridade social. que exigiram um rigoroso esforço de equilíbrio fiscal. reclamava da baixa confiança dos mercados internacionais frente à economia brasileira e da vulnerabilidade da mesma frente às constantes crises econômicas mundiais. a partir das políticas de livre mercado impostas pelo Consenso de Washington. desde os anos 90. No Brasil. a redefinição do papel do Estado na economia. ao invés de mantermos um câmbio relativamente desvalorizado. as normas das instituições internacionais: “E tudo. A política das privatizações foi a principal medida das reformas estruturais. aumento do trabalho informal. No Brasil. Em relação ao processo de privatização. Bresser também reclamou: “em vez de privatizarmos apenas setores competitivos. privatizamos também monopólios naturais”. de saúde e de educação. também conhecida como reforma “BresserPereira” (coordenada por Luiz Carlos Bresser-Pereira. ao contrário do que seus defensores alardeavam. Em suas palavras: “cumprimos uma parte desse programa. tem privatizado mais de 70% de suas empresas estatais. desemprego. Por outro lado. ao mesmo tempo. a América Latina passou por profundas reformas estruturais (neoliberais). as políticas de reestruturação do Estado deram-se em meados dos anos 90. ingresso do capital externo. Podem-se atribuir esses percentuais. presenciamos a uma onda que pregava o afastamento do Estado das funções e do gerenciamento dos serviços públicos. 12. telefonia. entre 2003 e 2007. ao examinar efetivamente as atitudes individuais da região. Por outro lado. entre outras razões. Oliveira Vianna (1955) havia percebido tal característica. os percentuais ligados à dimensão da solidariedade têm piorado. O autor considerou o insolidarismo como o traço mais marcante de nossa gente. Há uma evidente tensão entre as atitudes coletivas e as atitudes individuais. Segundo dados do Instituto Ipsos. Em síntese. equatorianos e paraguaios são os mais individualistas. Essa percepção parece estar mudando em nossos dias. Apenas 25% a aprovaram. Vianna escreveu Instituições políticas brasileiras (1955). a maioria da população quer um Estado forte com maior proteção social. melhor distribuição de renda. O caráter individualista e pouco solidário do brasileiro O Informe do Latinobarômetro 2007. esse caráter pouco solidário do brasileiro não chega a ser novidade. Os brasileiros ocupam a 11ª colocação no quesito solidariedade. Se.175 prestados pela iniciativa privada eram sinônimos de qualidade e conforto. ao alto custo e à questionável qualidade dos serviços privados. Os chilenos. nos anos 90. mediante um estudo realizado em 18 países da América Latina. estradas. a maioria do eleitorado brasileiro prefere que o Estado controle os serviços. água e esgoto. razão pela qual defendia o papel coativo e educador do Estado na formação do que ele chamava de um comportamento culturológico. Já nos meados do século passado. nos setores da energia elétrica. Houve uma redução da pobreza. agora pede-se que o Estado volte e cumpra sua função social. monstrou que. O estudo mostra que. encontram-se os venezuelanos e porto-riquenhos. sendo que 62% se mostraram contrários à política de privatizações. capaz de sobrepor-se ao espírito insolidarista. 74% acreditam que o Estado deve ser responsável pelos serviços essenciais da população. redução da inflação e um aumento no nível de consumo da população. Segundo a mesma pesquisa. o desempenho econômico e social dos latinoamericanos tem melhorado nos últimos 25 anos. no . Entre os mais solidários. principalmente. diminuição do desemprego.9. Aliás. ficando abaixo da média dos demais países do continente. ela se situa como pouco solidária e individualista (as pessoas têm-se ocupado apenas com seus próprios problemas e não tratam de ajudar os outros). até os nossos dias. ou. não necessita da ajuda comunitária e vive de forma isolada. Para o autor. individualista. em nosso país – ao contrário do que aconteceu no mundo europeu – sempre foi essencialmente particularista e individualista: centrifugava o homem e o impelia para o isolamento e para o sertão” (p. Dessa maneira. na segunda parte.10. suplantado. na verdade. desde que se mantenham os interesses fechados entre as famílias dominantes: “Essa solidariedade inter-familiar e clânica é. o pioneirismo dos estudos de Oliveira Vianna. por que não dizer. Além disso. Por fim. a carência de motivações coletivas. assim. rústico e anti-urbano”. O Capital Social: um ingrediente a ser considerado A aplicabilidade das políticas neoliberais globalizantes trouxe relações verticais autoritárias. que obtiveram crescimento econômico pouco . Não houve a formação da solidariedade social. Em relação a outros povos latino-americanos. No âmbito do comportamento político-partidário. caracterizou-se pelo particularismo e individualismo: “O trabalho agrícola. na pior das hipótese. Sem a dimensão da solidariedade. peculiar e exclusiva à classe senhorial” (p. nem mesmo espírito público. 12. O que existe. e também na formação social e econômica. no Brasil. no Brasil o homo colonialis. igualmente. hábitos de cooperação e de colaboração. criou-se. um estudo pertinente sobre o significado sociológico do anti-urbanismo colonial (gênese do espírito insolidarista). foi uma solidariedade social negativa. essencialmente. impostas pelas leis do mercado. do deserto. o homem brasileiro. do civismo e do espírito público. Na questão do trabalho. comparado com outros homens do mundo. o brasileiro é. tendo como característica fortes traços de individualismo e desconfiança: “um amante da solidão. segundo Vianna. 272). é apenas uma solidariedade parental. são muitas as citações em que Oliveira Vianna queixa-se da inexistência da cooperação do povo do Brasil. o espírito insolidarista tem sua origem nos primórdios da “colonização”. Estas manifestações têm raiz na tradição cultural. o projeto da construção de um Estado-nação estará sendo novamente adiado. O que houve. percebe-se. isto é.176 qual efetuou. da sua pouca participação na vida pública (que se mantém desde o Império até a República) e. mais os dados do Informe do Latinobarômetro 2007 evidenciam que práticas individualistas e insolidárias persistem nas relações interpessoais dos brasileiros. intitulada Morfologia do Estado. 151). há uma conclusão geral. através do capital social. de que a consolidação e solidez da democracia de um país dependem de uma sociedade civil dinâmica e participativa. redes de cooperação. em outras (Sul). na moral e nos costumes. a temática do capital social tem evoluído para um nível de acalorados debates entre os teóricos das Ciências Sociais: alguns o têm utilizado como instrumento para suas pesquisas. Teóricos. que passam a utilizar os benefícios do capital social. as instituições públicas e a diferença do funcionamento do sistema democrático italiano. associativismo e voluntarismo. Os resultados evidenciaram que. Desta maneira. conseqüentemente. o capital social. se possa pensar estratégias que recuperem a credibilidade das instituições frente às demandas e exigências dos cidadãos contribuintes. O debate em torno do capital social não é propriamente novo nas Ciências Sociais. baseada na ética. aos poucos. mais solidário e participativo. maior seria a contribuição positiva para o funcionamento e consolidação da democracia. solidária e coletiva. bem como um elevado descrédito e desconfiança dos cidadãos frente ao desempenho dos governantes e instituições políticas.177 significante e. aceita no meio acadêmico. é com a obra Making democracy work: civic traditions in Modern Italy (1993). indicar novas relações sociais que direcionam para um novo modo de agir. que o conceito ganha notoriedade no meio acadêmico. orientada para a valorização das normas democráticas. proliferando relações horizontais de confiança mútua. Como afirma Baquero (2003). o capital social tem sido um instrumento eficiente para se contrapor à hegemonia da política econômica e. frente à crise por que passam as instituições democráticas. Putnam investigou. Tocqueville e Coleman. Por fim. nada melhor que. levaram a um agravamento dos problemas sociais em boa parte dos países latino-americanos. outros se empenham na crítica e na contestação do . com a valorização das normas e regras democráticas. já haviam sugerido que. suscitou a criação e o fortalecimento de antigos e novos movimentos sociais contestatórios. Neste sentido. é importante mencionar que. fortalecendo a sociedade civil e o processo democrático. foi possível o bom funcionamento da democracia. baseado na cooperação recíproca. nos últimos anos. surge como um bem público capaz de gerar um novo contrato social. Ao mesmo tempo em que se constata uma desilusão com o desempenho da democracia. não se evidenciou o mesmo sucesso. Como resposta. quanto maior a participação dos indivíduos em associações comunitárias. como Adam Smith. de autoria do cientista político norte-americano Robert Putnam. por mais de 20 anos. No entanto. em algumas regiões (Norte). Projetou-se este capítulo para o fim do livro para que o leitor.178 conceito. Este capítulo final faz uma análise crítica da política brasileira. uma inspiração teórica entre os cientistas sociais (para o bem e para o mal). Depois de ter lido uma introdução à história do pensamento político. É possível aplicar as teorias vistas para explicar o caso brasileiro? Ou os pensadores e teorias nada têm de relevante para nossa realidade? . acompanhando o quadro político brasileiro. O certo é que a análise do capital social continuará sendo. com quais “olhos” o leitor percebe a realidade política brasileira atual. por um bom tempo. pudesse refletir como as teorias políticas dos capítulos precedentes podem explicar (se podem?) tal quadro. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico. 4. Porto Alegre: Globo. Os clássicos da política. 5. Marcello. Porto Alegre: Globo. ed. História da Filosofia. Siqueira B. Leila Maria. BAQUERO. 1969. Metafísica. In: Revista Equador Debate. Nicola. 1993. ed. ANDERSON. 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Report "Livro Completo INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO POLÍTICO DAS ORIGENS AO DEBATE ATUAL"