PREFÁCIO1José Paulo Paes 1 {09}2 No ano da graça de 1764, Sir Horace Walpole, quarto Conde de Oxford e filho mais jovem de um célebre primeiro-ministro, dava à estampa um romance terrorífico que haveria de fazer longa carreira nas letras inglesas, projetando sua sombra sobre meio século de ficção. Surgido a um tempo em que Richardson e Fielding já haviam lançado os fundamentos do Realismo britânico, O Castelo de Otranto discordava radicalmente dos padrões literários então vigentes. Sua ação decorria na Itália medieval e estava repleta de lances, artifícios e personagens inverossímeis − fantasmas e usurpadores, passagens secretas e terrores sobrenaturais, elmos mágicos e castelos arruinados. A novela de Walpole caiu logo no gosto do público, dando origem a toda uma linhagem de imitadores, mais ou menos talentosos. B. lfor Evans parece sugerir uma explicação sociológica para esse êxito quando se refere a "uma sensibilidade muito disseminada no século dezoito, particularmente entre os ricaços das classes ociosas, cuja desilusão do crescente comercialismo e racionalismo então dominantes encontrava alívio na contemplação solitária das relíquias da arte medieval, encontráveis nas ruínas de abadias e castelos situados nas suas propriedades hereditárias". O caso de Walpole era típico. Desiludido da carreira política, de suas permanentes intrigas e de sua perpétua sede de poder, resolveu retirar-se para Strawberry Hill onde, graças aos proventos de várias sinecuras, pôde dar livre curso à sua paixão pelas antiguidades, ali fazendo erguer um castelo {10} gótico, para nele relembrar os dias do monasticismo medieval e da cavalaria andante. Dessarte, subtraía-se ao mundo da burguesia endinheirada, mundo acionado pela mecânica do lucro e pela lógica da razão prática, e entretinha um diálogo insofrido com o passado. Não faltaram imitadores ao exemplo de Walpole. William Beckford, outro aristocrata, ergueu também sua abadia medieval e escreveu, outrossim, sua novela terrorífica, Vathek, publicada em 1782 em francês e traduzida quatro anos depois para o inglês. Vathek era ainda mais fantástico e descabelado que O Castelo de Otranto; combinava, numa complicada receita, os ingredientes do horror gótico, do exotismo oriental e da ironia voltaireana. 1 In: SILVA, Fernando Correia da; PAES, José Paulo. Maravilhas do conto fantástico. Prefácio de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1958. 2 Os números entre chaves ao longo do texto referem-se ao número da página do texto original. um crítico chega. não obstante. Ann Radclifte. em 1799. da história do dr. Bertram. Os Mistérios de Udolfo e A Italiana. em 1801. Quando do seu exílio na Itália em companhia do . a modesta autora de Udolfo chegou a exercer ponderável influência sobre escritores do porte de um Shelley. de uma Jane Austen. alcançou êxito apreciável. dada à estampa em 1820. de um Byron. a par de Maturin. muito influiu sobre os pequenos românticos o alemão Hoffmann. levou à cena três melodramas. Fausto. que. obedeciam a um esquema mais ou menos fixo − havia sempre a ingênua heroína. Radcliffe tinha. encorajado por Byron e Walter Scott. Aliás. Seus cinco romances góticos. grupo liderado pelo estranho e talentoso Charles Nodier. a quem Lewis ainda haveria de brindar com os Contos de Terror. aos dezenove anos de idade. e os Contos Maravilhosos. é considerada a melhor de todas as novelas góticas. O mais literariamente qualificado dos novelistas góticos foi Charles Robert Maturin. Por incrível que pareça. de uma Emily Brontë. mestre do roman noir e autor de histórias terroríficas do tipo de Smarra e Trilby. Radcliffe foi um rapazola de boas maneiras. inclusive. Uma certa Sociedade {11} para Supressão do Vício abriu campanha contra o livro mas. apesar disso. uma rara facilidade para criar ambientes terroríficos e momentos de suspense. Trata-se de outra paráfrase do mito faustiano − o do homem que vende a alma ao Maligno em troca de riqueza e juventude eternas − e exibe sensível influência de Lewis. algo sensual. o Peregrino. Mrs. Respeitando embora as leis da verossimilhança (todos os mistérios encontravam explicação lógica no derradeiro capítulo). sem a falta de uma única coruja". que.Mas haveria de ser no crepúsculo do século XVIII que as histórias de terror encontrariam a mais habilidosa e a mais célebre das suas culturas na pessoa de Mrs. Melmoth. Ambrósio alcançou fervorosa recepção por parte do grande público. a gabar-lhe o talento para "pintar melancólicas ruínas góticas. um dos quais. Os críticos têm em pouca conta esse livro. O último representante de importância da novela gótica inglesa foi a suave e espiritual companheira de Shelley. ou talvez por causa disso. O sucessor legítimo de Mrs. que define como uma mistura incoerente de ingredientes góticos familiares e atabalhoadas reminiscências de leitura de Goethe e dos românticos alemães. o vilão desalmado e o castelo fantasmagórico. O tema da novela é uma paráfrase. clérigo inglês. escreveu uma novela de escândalo: Ambrósio ou o Monge. cujos Contos foram traduzidos para o francês por volta de 1830. Mary Godwin Shelley. Maturin foi muito estimado pelos pequenos românticos franceses. dos quais os mais conhecidos são O Romance da Floresta. que o filisteísmo da época reputou escabrosa. temperando-os com uma sentimentalidade bem ao gosto da época. Mathew Gregory Lewis. Sobrecarregando sua narrativa de inverossimilhanças. Foi pensando nesse tipo de leitores que Ray Bradbury. algo rigidamente. empilhando o inacreditável sobre o inacreditável. No seu entender. é preciso dosar a pílula da fantasia com extremo cuidado para que ele aceite engoli-la. de intenções alegóricas. que nutre o máximo respeito pela inteligência e pelo bom gosto do leitor. Aliás. adverte Bradbury que um contador de histórias fantásticas não pode aspirar a outra coisa que não seja induzir no leitor a sensação da "irrealidade da realidade". aproveitou apenas "o rude mecanismo do melodramático e do sobrenatural". indispuseram-no para as fantasmagorias descabeladas do roman noir. conquistar pela "casualidade" dos seus enredos. Agora. organizador de uma excelente antologia de contos fantásticos. ao mesmo tempo. O fantástico e o real devem estar de tal maneira entretecidos no argumento. a quem deve. No entender de B. É que o conto fantástico é o herdeiro legítimo das tradições legadas à posteridade pela progênie espiritual de Sir Horace Walpole. narrativa pseudo-científica. Os magazines de divulgação científica e as novelas realistas ensinando-lhe o respeito à verdade objetiva. esquecendo toda a angustiosa poesia. Frankstein [sic]. enunciou. que haveria de celebrizá-la. 2 Esta longa digressão sobre a novela gótica tem cabimento no prefácio de uma antologia de contos fantásticos. "a novela de terror ou {12} gótica leva diretamente àquele submundo da ficção que se prolonga até hoje nas histórias de crime e de terror". Mary Shelley é considerada hoje uma das precursoras da literatura de ficçãocientífica. Frankenstein3. uma digna espécie literária. que se torne praticamente impossível isolar um do outro. somente quando adere à realidade. e seriamente.poeta. Esta era uma espécie de pastiche do Macbeth. Por fim. que começa a ameaçar. é que a fantasia alcança qualificação estética. o novelista perde contato com o leitor. escreveu. fantasia pura e simples é pobre fantasia. Para Bradbury. antes. Claro que são grandes as divergências entre o moderno conto de fantasia e a novela oitocentista de terror. o leitor de nossos dias é um freguês difícil de satisfazer. 3 No original. o fim primacial desta é mostrar a "irrealidade da realidade". Se procurar inculcar-lhe. o indisputado prestígio popular até agora desfrutado pela literatura policial. por um processo de "osmose literária". aquele. de vez que ao leitor dos nossos dias aborrece tudo quanto não traga a marca do real e do verossímil. . as regras a que deve obedecer a moderna história de fantasia. do qual. lfor Evans. teve o antologista sempre em mente um cuidado precípuo − o de fugir ao medalhão. É natural: aqueles falam mais de perto à nossa sensibilidade do que estes. no seu entrecho. Gerald Bullet e Cristopher Ishewood. num mundo onde o fanatismo corrompeu todas as doutrinas até à desumanização − mas de parábola tão sabiamente contada que seu moralismo não chega a enfarar. que os autores modernos comparecem em maior número que os antigos. A esta categoria pertencem os contos de Nelson Bond (primoroso pela originalidade da concepção). Furnas. Miguel de Unamuno. Exceções a esta regra existem. Spencer Whitney. inferiores. não quanto à valia estritamente literária. Munro). 3 {13} Ao selecionar os contos que deveriam compor este volume. J. Ray Bradbury. tem muita de parábola − o tema. enfileiram-se as histórias cujos autores. C. de Saki (pseudônimo literário de H. entre outros. não faltam aqui os dois clássicos da narrativa fantástica − o alemão Hoffmann e o norte-americano Poe. antes. se inserem diretamente na tradição da novela gótica. cuidaram de emprestar maior verossimilhança ao fantástico. F. mais ou menos fiéis ao esquema de Bradbury. Quanto às histórias propriamente ditas. no leitor. Duas das histórias aqui reunidas merecem referência especial. O Último Julgamento. Laura.qualquer mensagem moralizadora. de Koestler. circunstância que limita. Holloway Horn. numerosas e foram devidamente levadas em conta. Guillaume Apollinaire. numa simbiose tipicamente britânica. de regra. suas tentativas são. profundamente koestleriano. a importância da sua contribuição. Russel Maloney. entretecendo-o numa trama de pormenores realísticos. o leitor encontrará aqui nomes ilustres como os de Giovanni Papini. mas no que respeita à originalidade da concepção e à habilidade de introduzir. Embora grandes escritores tenham cultivado o conto fantástico. Entretanto. necessariamente. Comparadas às histórias de profissionais do gênero. Jacques Casembroot. . De outro. De um lado estão as que. H. Benson. a sensação do fantástico. {14} foram combinados o fantástico e o humorístico. destaca-se pela habilidade com que. observe-se que oscilam entre dois pólos. Cabe observar também. Maurice Leval e Stephen Vincent Benét. Lafcádio Hearn. fizeram-no quase sempre em caráter acidental. é o caso das narrativas assinadas por Williams Hines. do cruzado sem cruz. E. pela dose mais ostensiva de fantástico puro. Adrian Alington. estará desvirtuando um gênero cujo maior encanto reside. na capacidade de divertir que na de ensinar. tributário daquele cienticismo que empolgou nossos escritores em fins do século passado. o funéreo e o prosaico num amálgama de melancólico lirismo. mestre na arte de fundir o humorístico. o realista Aluízio Azevedo. sofisticado e hoffmaniano. .O conto fantástico brasileiro está representado por três escritores de três épocas diversas e de três diversas orientações estéticas: o romântico Álvares de Azevedo. muito característico do seu gênio de alto e autêntico poeta. e o moderno Carlos Drummond de Andrade.
Report "José Paulo Paes e a Literatura Fantástica"