RETÓRICADA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E TRIBUTAÇÃO – SUAS ORIGENS NA TEORIA PURA DE HANS KELSEN João Maurício Adeodato (Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife e da Faculdade de Direito de Vitória, Livre-Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Pesquisador 1-A do CNPq, autor de “Uma Retórica da Norma Jurídica e do Direito Subjetivo”, publicado pela Editora Noeses) 1. O contexto histórico e dois problemas O convite feito pelo IBET 1 a um filósofo do direito, em meio a tantos ilustres tributaristas, parte do pressuposto de que esse tipo de debate é considerado de alguma relevância para compreender a hermenêutica tributária. Por isso mesmo não quero analisar um tema específico do direito tributário, mas sim considerar o atual fenômeno brasileiro sobre os poderes supostamente legislativos exercidos pelo judiciário. E, ao mesmo tempo, prestar-lhe uma homenagem e chamar atenção para os 40 anos da morte de Hans Kelsen, tido por muitos como o maior jurista do século XX. Certamente pensava assim também meu mestre Lourival Vilanova, a quem agora também faço vênia. Para considerar nosso tema no Brasil de hoje, à luz do pensamento de Kelsen, deve-se ressaltar que a questão da jurisdição constitucional aparece intimamente conectada à do ativismo judicial e esse tema, no campo da análise retórica, levanta dois problemas importantes. No continente europeu, a princípio na França, o direito positivo passa por grande transformação, na passagem dos séculos XVIII a XIX, com a derrocada do absolutismo e um notável crescimento de importância da lei como a fonte do 1 Texto apresentado no X Congresso Nacional de Estudos Tributários do IBET (2013). Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 Friedrich. entre lei e norma: A aplicação do direito consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. Müller considera que toda norma jurídica é individual3. von Kurt Ringhofer und Robert Walter. Berlin: Duncker & Humblot. Livro XI. que criticaram a concepção iluminista dentro do positivismo. Paris: Garnier. Strukturierende Rechtslehre. p. Depois vem a contrarreação. Rio de Janeiro / São Paulo: Freitas Bastos. lei e norma são praticamente sinônimas e não há consciência da distinção linguística entre significante e significado. 1994. Kelsen defende que há normas jurídicas gerais e individuais. De l’Esprit des Lois. qual a relação entre o texto geral prévio (a lei) e o sentido desse texto diante do caso concreto.: 01244-001 . Submete às prescrições da lei uma relação da vida real. Baron de la Brede et. Charles Louis de Secondat.Higienópolis . Wien: Manz-Verlag. hoje. Hans. chamam atenção para a influência dos fatores sociológicos na determinação do direito. 1957. Com o aumento da complexidade social.CEP. p. a evolução do positivismo também pode tomar o exemplo da generalidade: na aurora do positivismo toda norma jurídica é dotada de generalidade. a princípio no âmbito do caso concreto (sentença) e depois com decisões de caráter geral (jurisprudência). o direito precisa ter objeto próprio. s/d. e Livro VI. com o legalismo exegético. a Escola do Direito Livre e outras. 1282 . Tanto essa ideia como essa prática eram novas e revolucionárias. depois. KELSEN. vão aparecer os dois problemas estreitamente conexos que se querem aqui destacar: primeiro. Hermenêutica e aplicação do direito. Allgemeine Theorie der Normen (hrsg.direito estatal por excelência. 3 Como paradigmas desses três estágios evolutivos: MONTESQUIEU. o enfraquecimento do princípio da separação de poderes diante da criação do direito pelo judiciário. Carlos. 3. procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado2. Então a Escola Histórica. 251 s.Fone/Fax: 11 3665-6445 . que Kelsen foi um dos primeiros a reconhecer. Rua Bahia.São Paulo/SP . MÜLLER. 1979. No começo do positivismo. nouvelle édition. 6. ser mais “puro”. p. depois. um debate aceso até 2 MAXIMILIANO. Em outras palavras. 19. 39 e 179 s. O segundo problema diz respeito à criação do direito pelo poder judiciário. São Paulo/SP . Por isso mesmo. mormente no Brasil do chamado “protagonismo” ou “ativismo judicial” e da “inércia legislativa”.CEP. o judiciário só pode se pronunciar ao ser provocado por terceiros. esses pensadores consideram que a interpretação do direito pode e deve ser evitada – o que sempre ocorre quando a lei é competentemente elaborada – ou pelo menos ser a mais literal possível. Na presente exposição. Nesse ambiente intelectual. que se refletia também no Brasil.Fone/Fax: 11 3665-6445 . restringir-me-ei ao normativismo kelseniano. Para quem defende a tese da única decisão correta. Na filosofia do direito. o romantismo de Rousseau e Savigny vai combater a única resposta correta ao enfatizar a vontade e o sentimento. a responsabilidade pelas escolhas éticas cabe ao poder legislativo.: 01244-001 .Higienópolis . com a influência da Escola da Exegese que passa pelo Conselheiro Ribas e por Lafayette Rodrigues Pereira. uma vez que o juiz é um funcionário burocrático que não pode ser responsabilizado por suas decisões. tenho sugerido em meus escritos analisar a evolução do positivismo ocidental em termos de três grandes tendências ou correntes. escolhido pelo povo. a separação de poderes é um princípio relevante no direito ocidental e uma metarregra tão importante no sistema brasileiro que foi alçada à categoria de cláusula pétrea. No plano hermenêutico. Com efeito. desde que tomadas de acordo com a lei. Na observação desses dois problemas. cada uma das quais com várias escolas: as teorias da única decisão correta. o trabalho de Hans Rua Bahia. contudo. as teorias da moldura e as teorias realistas. a separação de poderes é pré-requisito básico e determina que o poder legislativo crie o direito e o poder judiciário o aplique. quando for inevitável: in claris non fit interpretatio.hoje. 1282 . ao passo que o legislativo tem a iniciativa e o monopólio da criação do direito. No que diz respeito à iniciativa de agir. devendo haver uma inibição recíproca e harmônica nessa relação. em detrimento do otimismo da razão iluminista. e tendo em conta o debate em torno de o direito positivo ser ou não o único direito. servindo a lei para balizar e separar as poucas decisões corretas. o caso concreto pode ter decisões diferentes e igualmente corretas. tais como a sociologia ou a antropologia jurídicas. Desses temas devem cuidar as disciplinas não especificamente jurídicas que têm por objeto o direito. A tese aqui é que não há precisão teórica em acusá-lo hoje de fundamentar o ativismo judicial na atividade hermenêutica. literalmente no sentido de fazê-la raiz.Kelsen vai dar um novo alento aos debates sobre os problemas jurídicos que o começo do século XX enfrentava. transformando-a numa intransponibilidade entre ser e dever ser.São Paulo/SP . as experiências pessoais de vida.Fone/Fax: 11 3665-6445 . entre conhecimento e vontade. assim negando expressamente a possibilidade de uma única resposta correta. executivo e legislativo nas democracias modernas: a teoria da moldura.: 01244-001 . das muitas incorretas. A ideia de Kelsen é descrever o que efetivamente ocorre – não fazer uma pregação missionária por mais poder para os juízes – e defender que é uma ilusão achar que a regra geral determina a decisão individual. tais como a personalidade. as que ficam “dentro”. as diferenças entre as decisões igualmente corretas são devidas a fatores juridicamente irrelevantes. a consciência ou o ambiente social do julgador. que não devem ser levados em consideração no estudo do direito propriamente dito (numa teoria “pura”). e vai construir sua hermenêutica. a tese kantiana da separação. 1282 .CEP. até hoje a mais presente na prática decisória jurídica dos poderes judiciário. A resposta da teoria da moldura (Rahmentheorie) de Kelsen Kelsen radicaliza. quais sejam o de legislador negativo Rua Bahia. 2. as que ficam “fora da moldura” da lei.Higienópolis . Isso fica claro em dois conceitos sobre os quais insiste ao falar do Tribunal Federal Constitucional. do mesmo modo que no passado em acusá-lo de justificar o nazismo. a Rahmentheorie. Para Kelsen. por isso mesmo. pela teoria do Estado.CEP. ela descreve normas jurídicas (Rechtsnormen) por meio de proposições jurídicas (Rechtssätze).São Paulo/SP . de sua maneira de ser. Mas a ciência do direito.: 01244-001 . no sistema normativo jurídico. para usar uma expressão consagrada. além do logos. 1282 . a teoria pura. mas apenas fornece viabilidade – é o “pressuposto metodológico” ou gnoseológico – ao fato de um poder constituinte originário. Esse poder deve ser estudado pela sociologia. Eles mostram que Kelsen seria certamente contrário ao ativismo judicial e que só tem sentido relacionar sua hermenêutica com o ativismo na medida em que Kelsen “reconheceu” (não “advogou”. a norma fundamental não prescreve qualquer conteúdo ético. por extensão. quase como nos casos governados pelo princípio da causalidade. Seu objeto é um dever ser – a norma jurídica – e sua atitude é descritiva como a da física ou de qualquer outra ciência “da natureza”. um poder vitorioso na luta pela competência para criar normas jurídicas. não tem por objeto a conduta humana.Higienópolis . Afinal os antigos retóricos e o próprio Aristóteles reconhecem a importância do ethos e do pathos. o papel da história de vida do julgador.(negative Gesetzgeber) e o de guardião da constituição (Hüter der Verfassung). Assim. Exemplo de Rechtsnorm é “Matar alguém. “pregou” ou “sugeriu”) o papel da vontade do juiz na decisão e. é fruto de um ato de conhecimento racional. também chamadas de proposições normativas ou juízos normativos. temas a que Kelsen também se Rua Bahia. Por isso apela à vontade que comanda o princípio da imputação. O que ele visa é combater a tradição dos estudiosos e intérpretes de seu tempo no sentido de que sempre haveria uma solução correta porque a decisão concreta é silogisticamente obtida a partir da lei e. que Kelsen caracteriza como “dinâmico”.Fone/Fax: 11 3665-6445 . na argumentação. exemplo de Rechtssatz é “O artigo 121 do Código Penal Brasileiro de 1940 estatui que o homicídio é punido com reclusão de seis a vinte anos”. Pena: reclusão de seis a vinte anos”. dedicou. Para uma teoria “pura” do direito é indiferente o que esse legislador diga. justamente porque uma norma não pode ser deduzida de um fato. devido à intransponibilidade entre dever ser e ser. 2000 (2.São Paulo/SP . Kelsen é também visionário no combate à tese dos exegetas de que há um silogismo lógico na relação entre a norma legal e a decisão judicial. Wien: Verlag Österreich. porém.. vez que há uma operação dedutiva que perpassa todo seu sistema. seja ético. 1282 . Daí a conhecida fórmula de expressão da norma fundamental: “obedece ao legislador originário”. 1960). desde a aplicação da lei pelo juiz até a relação entre a norma fundamental e a “primeira” (originária) Constituição. durch präzedentielle Entscheidungen auch generekle Normen zu erzeugen. que existe em todas as circunstâncias. quando sabe-se que o silogismo apodítico da lógica 4 KELSEN. não importa que conteúdo venha a ter a constituição da ordem jurídica consequente. Hans. ele precisa dizer quem (competência) e como (procedimento).CEP. Mas para a teoria jurídica o que interessa é a obediência a esse poder. A norma fundamental não tem assim qualquer conteúdo. surge com particular evidência quando um tribunal recebe competência para produzir também normas gerais mediante decisões com força de precedentes.. pois A função criadora de direito dos tribunais. sociológico. político. O fato social fundamental é somente a “instituição de um fato produtor de normas. a criação do direito pelo juiz que vai constituir o cerne da “teoria da moldura”. a atribuição de poder a uma autoridade legisladora.4 Apesar das críticas.Higienópolis .“ Rua Bahia. Reine Rechtslehre. Kelsen tem outro débito para com a Escola da Exegese – um aspecto pouco comentado –. além do texto formal de uma constituição escrita. wenn ein Gericht ermächtigt ist. p.: 01244-001 . Mas mostrar que o sistema de Kelsen é dedutivo não significa admitir que essa dedução seja lógica. “constituição” entendida em seu mais amplo sentido.Fone/Fax: 11 3665-6445 . Pensando no segundo problema destacado aqui na introdução.”. vollständig neu bearbeitete und erweiterte Aufl. 256: „Die unter allen Umstände gegebene rechtserzeugende Funktion der Gerichte tritt besonders deutlich in Erscheinung. no qual a norma fundamental fornece a premissa maior. Pode-se até dizer que há uma subsunção lógica da constituição à norma fundamental. E parte desses autores contrários ao ativismo judicial toma por base Kelsen. sobretudo no Brasil. constitui a premissa menor e a validade da ordem jurídica perfaz a conclusão.constitui somente uma das formas de dedução. Se a decisão concreta não se processa pela via de silogismos apofânticos. Já se percorreu um longo caminho desde que Kelsen afirmou que o juiz cria direito e contrariou o otimismo iluminista da Escola da Exegese. Rua Bahia. que lhe fornece validade. nos quais falha claramente a concepção silogística subsuntiva. estribado na ignorância de um povo carente. Para Kelsen.: 01244-001 .CEP.Fone/Fax: 11 3665-6445 . então. controlar o poder criador do juiz e evitar os chamados decisionismos. Um grande segmento da doutrina jurídica contemporânea tem procurado não apenas explicar essa evolução do direito positivo. no que assiste razão a Kelsen. mas também. mormente diante de um legislativo acovardado e de um sistema partidário inoperante. mas essa subsunção não ocorre quando o juiz vai aplicar a lei ao caso concreto. desempenhando uma importante função pragmática. Isso não apenas nos casos de antinomias e lacunas. há um raciocínio silogístico lógico apenas nos pressupostos gnoseológicos da pirâmide dogmática. não se transfere “para baixo” na metáfora da pirâmide. A criatividade e a liberdade do judiciário parecem não ter limites. Positivismo não significa isso. É daí um erro atribuir ao positivismo como um todo a ideia legalista de que a decisão judicial decorre logicamente da lei. efetivamente aplicada e observada. tampouco a moldura parece enquadrar o juiz dos dias de hoje.São Paulo/SP . mas também no dia a dia do direito. o fato de haver uma Constituição. Mas tampouco a visão de que a lei fornece os limites (“moldura”) da criação do direito pelo juiz parece explicar devidamente a realidade contemporânea.Higienópolis . 1282 . A decisão se baseia em normas ocultas. Só o “aplicador” cria a norma. sim. nem nesse sentido da previsibilidade há uma racionalidade. tais como as circunstâncias do caso. Mais radicalmente ainda do que nas teorias da moldura. O legislador não cria a norma jurídica. há decisão efetiva. Voto do Ministro Direito no caso da pesquisa com célulastronco.Fone/Fax: 11 3665-6445 . lugares-comuns. primordial na filosofia do direito e importante na aplicação do direito. está presente apenas nos ativistas mais radicais. os discursos dos participantes ou os procedimentos e interpretações consolidados pela dogmática jurídica. Não há decisão correta. ainda que referidos como pontos de partida. a decisão se baseia em argumentos normativos.Outra parte defende que toda norma jurídica é individual. porém. e não se pode exatamente saber se e como uma decisão vai produzir efeitos no mundo da retórica material. A lei é apenas um texto. mas não naqueles contidos nos textos alegados. A tese de que qualquer decisão efetiva é correta. nesse sentido. componentes prévios do ordenamento jurídico.Higienópolis . irracional (Katharina Sobota). A questão axiológica envolve a noção de legitimidade. cuja evolução no Ocidente pode ser vista Rua Bahia.: 01244-001 . topoi de grupos. para quem a norma jurídica é criada no caso concreto. Para os mais extremados. 1282 . dados de entrada válidos. O realismo também enxerga diminuição de importância na atividade do legislador e exacerbação da função judicante.CEP. A decisão é casuística. mas é condicionada por uma série de fatores sobre os quais quem decide não tem controle. por exemplo. daqueles que decidem. Uma reflexão final deve ser feita sobre o problema do valor. cria textos. enfim. preconceitos e pré-compreensões dos próprios juízes.São Paulo/SP . não há sentido na separação entre criação e aplicação do direito em termos de legislador e decididor. Diferente é a visão de Müller. os quais têm função de justificar posteriormente. dos administradores. sim. individual e. por exemplo. um dado de entrada para construção da norma diante do caso concreto (Friedrich Müller). CEP. segundo um rito de elaboração prescrito pelo próprio ordenamento jurídico. é exigir das instâncias decisórias – e não apenas da judicial – uma fundamentação para suas decisões. Rua Bahia. 1282 . Kelsen percebeu muito claramente que o direito moderno perdia referências éticas externas e que a ideia tradicional de legitimidade passava a identificar-se não somente com a legalidade.Fone/Fax: 11 3665-6445 .São Paulo/SP . Assim. parece-me. legítimo é aquele direito produzido por autoridade competente. mas com a validade mesma do direito positivo: justo. Até no “juiz como superego da sociedade órfã”. Assim como Max Weber. num processo descontínuo. de Ingeborg Maus. um “progressivo esvaziamento de conteúdo axiológico nos fundamentos do direito positivo”. nas quais o texto da lei é um dos fatores importantes.: 01244-001 . como se ver de atitudes e mesmo de declarações expressas de magistrados mais ou menos deslumbrados. não vejo muito sentido em lamentar o ativismo. mas apenas um deles. porém facilmente perceptível. é certo. ético.Higienópolis . Claro que há exageros no Brasil. Daí as ilações superficiais feitas entre Kelsen e o nazismo. um fenômeno da sociedade complexa.como um caminho que vai progressivamente da crença em conteúdos éticos prévios dos jusnaturalismos até a total disponibilidade ética dos positivismos. O melhor que a sociedade tem a fazer.
Report "João Maurício Adeodato - Retorica da jurisdicao constitucional e tributaria.pdf"