James Rachels - Elementos de Filosofia Moral

March 17, 2018 | Author: andresousaramos | Category: Organ Transplantation, Argument, Death, Morality, Feeling


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ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORAL James Rachels Atenção: este livro foi apenas escaneado, não foi corrigido.TRADUÇÃO F. J. AZEVEDO GONÇALVES REVISÃO CIENTÍFICA DESIDÉRIO MURCHO SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA Título original inglês: The Elements of Moral Philosophy (c) The McGraw-Hill Companies, Inc., 2003 Edição portuguesa: (c) Gradiva - Publicações, L.íta, 2004 Todos os direitos reservados Tradução: F. J. Azevedo Gonçalves Revisão científica: Desidério Murcho Revisão do texto: Soares dos Reis Capa: pintura: Omnia Vanitas, William Dyce (1806-1864) Design gráfico: Armando Lopes Fotocomposição: Gradiva Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu Reservados os direitos para a língua portuguesa por: Gradiva - Publicações, L.'*' Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. -1399-041 Lisboa Telefs. 21 397 40 67/8 - 21 39713 57 - 21 395 34 70 Fax 21 395 34 71 - Email: [email protected] URL: http://www.gradiva.pt 1.a edição: Janeiro de 2004 Depósito legal n.° 203 318/2003 Colecção coordenada por DESIDÉRIO MURCHO E GUILHERME VALENTE Índice com o apoio científico do Prefácio 9 CENTRO PARA o ENSINO DA FILOSOFIA Sobre a quarta edição (americana) 11 (Sociedade Portuguesa de Filosofia) 1. O que é a moralidade? 13 gradiva 1.1 O problema da definição 13 Editor: Guilherme Valente 1.2 Primeiro exemplo: a bebé Teresa 14 1.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary 19 1.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer 23 1.5 Razão e imparcialidade 27 1.6 A concepção mínima de moralidade 31 2. O desafio do relativismo cultural 33 2.1 Culturas diferentes têm códigos morais diferentes 33 2.2 Relativismo cultural 35 2.3 O argumento das diferenças culturais 37 2.4 As consequências de levar a sério o relativismo cultural 40 2.5 Por que razão há menos diferenças do que parece 43 2.6 Como todas as culturas têm alguns valores em comum. 45 2.7 A avaliação de práticas culturais indesejáveis 47 2.8 O que se pode aprender com o relativismo cultural 51 5.5 O erro mais grave do egoísmo psicológico 110 3 O subjectivismo em ética 55 3.1 A ideia de base do subjectivismo ético 55 3.2 A evolução da teoria 57 3.3 A primeira fase: o subjectivismo simples 58 3.4 A segunda fase: emotivismo 61 3.5 Existirão factos morais? 65 3.6 Haverá provas em ética? 68 3.7 A questão da homossexualidade 71 4. Dependerá a moralidade da religião? 77 4.1 A suposta ligação entre moralidade e religião 77 4.2 A teoria dos mandamentos divinos 80 4.3 A teoria da lei natural 84 4.4 Religião e questões morais particulares 90 5. Egoísmo psicológico 97 5.1 Será o altruísmo possível? 97 5.2 A estratégia de reinterpretação de motivos 99 5.3 Dois argumentos a favor do egoísmo psicológico 103 5.4 Esclarecer algumas confusões 107 9. Haverá regras morais absolutas? 171 9.1 Harry Truman e Elizabeth Anscombe 171 9.2 O imperativo categórico 175 6. Egoísmo ético 115 6.1 Teremos o dever de ajudar pessoas que morrem à fome? 115 6.2 Três argumentos a favor do egoísmo ético 119 6.3 Três argumentos contra o egoísmo ético 127 7- A abordagem utilitarista 135 7.1 A revolução na ética 135 7.2 Primeiro exemplo: eutanásia 139 7.3 Segundo exemplo: os animais não-humanos 143 8- O debate sobre o utilitarismo 151 8.1 A versão clássica da teoria 151 8.2 Será a felicidade a única coisa que importa? 153 8.3 As consequências são a única coisa que importa? 155 8.4 Deveremos ter toda a gente igualmente em conta? 160 8.5 A defesa do utilitarismo 162 3 Regras absolutas e o dever de não mentir 178 13.3 Algumas vantagens da teoria contratualista da moral 214 11.5 Dificuldades da teoria 222 12. A ética das virtudes 245 14.13. A ideia de contrato social 203 11.3 Implicações para a teoria ética 242 13. O feminismo e a ética dos afectos 227 12.1 Pensam os homens e mulheres de maneira diferente sobre a ética? 227 12.2 Implicações para o juízo moral 237 12.4 O problema da incompletude 263 10.4 O problema da desobediência civil 218 11.2 As virtudes 248 9. Como seria uma teoria moral satisfatória? 269 10.6 Conclusão 285 Sugestões de leitura 287 Notas sobre fontes 299 índice analítico 307 .3 Utilitarismo de estratégias múltiplas 277 11.5 Outro olhar sobre a ideia fundamental de Kant 184 13.1 A ética das virtudes e a ética da acção correcta 245 9.5 Justiça e equidade 283 14.1 A ideia de dignidade humana 189 14.1 O argumento de Hobbes 203 11.3 O retributivismo de Kant 196 14.4 A comunidade moral 281 14.2 Retribuição e utilidade na teoria da punição 193 14.4 Conflitos entre regras 182 13.1 Moralidade sem húbris 269 10.2 O dilema do prisioneiro 209 11.3 Algumas vantagens da ética das virtudes 261 9. Kant e o respeito pelas pessoas 189 14.2 Tratar as pessoas como merecem e outros motivos 273 10. que essa pessoa precisa de aprender? Este livro é a minha resposta a essa pergunta. Quando lidos em sequência. Isso seria uma forma pobre de apresentar o tema. Na filosofia.são. (Os professores de Física raramente pedem aos alunos para tomarem decisões quanto às leis da termodinâmica. teorias e argumentos opostos. Na física há um vasto corpo de verdade estabelecida. O objectivo do livro não é oferecer um relato arrumado e unificado da "verdade" sobre os temas em discussão. quando adequadas). que nenhum físico competente disputaria e que os principiantes têm de aprender pacientemente a dominar. Este livro é uma introdução à filosofia moral. A filosofia não é como a física. Uma boa introdução não tenta ocultar esse facto algo embaraçoso. nem mesmo tento dizer tudo quanto poderia ser dito sobre os temas tratados. Os capítulos foram escritos de modo a poderem ser lidos independentemente uns dos outros . Fui guiado pelo seguinte pensamento: Imagine-se alguém que nada sabe a respeito do tema.Prefácio Sócrates. O primeiro capítulo apresenta uma "concepção mínima" do que é a moral. O tema é. concebida neste sentido lato. isso sim. pelo contrário. discutir as ideias mais importantes que um principiante deve enfrentar. Não tentei esconder o facto de achar algumas das ideais apresentadas mais apelativas que outras. tudo é controverso . e o capítulo final apresenta a minha própria perspectiva sobre como seria uma teoria moral satisfatória.) Há. afirmou que a ética trata de "um assunto de grande importância: saber como devemos viver". Filósofos "competentes" discordam até mesmo sobre questões fundamentais. um dos primeiros e melhores filósofos morais. Assim. desacordos entre os físicos e controvérsias por resolver. portanto. Não tento abranger todos os temas desta área. mas deseja perder uma modesta porção de tempo a aprender. e as mais importantes. pelo que tem de haver uma maneira de decidir o que incluir e o que deixar de fora. os capítulos 9 contam uma história mais ou menos contínua. é claro. Quais são as primeiras coisas. e é óbvio que um filósofo com uma avaliação diferente poderia apresentar ideias diferentes de . no entanto. naturalmente. ensaios díspares sobre tópicos diferentes. Tento. Encontra-se aqui. os capítulos do meio abrangem as mais importantes teorias gerais da ética (com algumas digressões. com efeito. alguém interessado no egoísmo ético pode ir directamente ao sexto capítulo e encontrar aí uma introdução independente a essa teoria. As minhas próprias perspectivas influenciam inevitavelmente a apresentação. demasiado vasto para ser abrangido num pequeno livro. uma panorâmica de ideias. mas estas decorrem geralmente sobre o pano de fundo de um acordo substancial.ou quase tudo. as ideias que devem prevalecer são as que tiverem as melhores razões do seu lado. Em vários outros capítulos acrescentei material ilustrativo. 11 . há uma secção nova que desenvolve de forma mais completa "como seria uma teoria moral satisfatória". há nova informação sobre o caso Tracy Latimer. e todos os capítulos foram corrigidos de uma maneira ou outra. há também uma secção nova sobre o caso recente das gémeas siamesas.outra forma. mas há algumas secções novas. é um prazer agradecer-lhe. uma redactora admirável. pela remoção de coisas menos felizes e pela adição de clarificações. A filosofia. como a própria moralidade. Mas tentei apresentar as teorias opostas de forma justa. No capítulo l. e quando apoiei ou rejeitei uma delas tentei dar alguma razão para a aceitar ou rejeitar. Não há capítulos novos. Alguns dos exemplos perderam actualidade. pelo que foram actualizados ou substituídos. No capítulo 14. 10 Sobre a quarta edição (americana) Os leitores familiarizados com a edição anterior deste livro podem querer saber o que foi alterado. é primeiro que tudo um exercício de racionalidade . Acrescentei material novo ao capítulo sobre regras morais absolutas. o leitor ou leitora aprenderá o suficiente para poder começar a avaliar. Um muito obrigado também para Monica Eckman da MacGraw-Hill. Howard Pospesel fez muitas sugestões que me ajudaram imenso. para que lado pende a balança da razão. por si. Se este livro for bem sucedido. todas relacionadas com crianças deficientes. Vamos começar por examinar algumas . Neste capítulo vou descrever a "concepção mínima" de moralidade. metade nascem mortos. Cerca de trezentos em cada ano nascem vivos e em geral morrem em poucos dias. pulmões e olhos deveriam ir para crianças que pudessem beneficiar deles. coração. os pais da bebé Teresa ofereceram os seus órgãos para transplante.1 O problema da definição A filosofia moral é a tentativa de ganhar uma compreensão sistemática da natureza da moralidade e do que esta requer de nós . A história da bebé Teresa nada teria de notável não fosse o pedido invulgar feito pelos seus pais. A anencefalia é uma das mais graves deformidades congénitas. Pensaram que os seus rins.estão em falta. no entanto.ou.) 1. nunca iria ter uma vida consciente. As características da concepção mínima emergirão da nossa consideração destes exemplos. e porquê. conhecida publicamente como "Bebé Teresa". mas não temos de ficar paralisados. SÓCRATES. Partes importantes do encéfalo . A República. 390 a. Sabendo que a bebé não poderia viver por muito tempo e. C.cérebro e cerebelo . de "como devemos viver". Isto deve colocar-nos de sobreaviso. de Platão (ca. mas isso é impossível. pelo menos como ponto de partida. o tronco cerebral e por isso as funções autónomas como a respiração e os batimentos cardíacos são possíveis. 1. e isto dá basicamente ideia do problema. Há muitas teorias rivais. Nos EUA. é uma criança com anencefalia nascida na Florida em 1992. Como o nome sugere. bem como o topo do crânio. Os médicos acharam uma boa deveria aceitar. Os bebés anencefálicos são por vezes referidos como "bebés sem cérebro". nas palavras de Sócrates. a maior parte dos casos de anencefalia são detectados durante a gravidez e abortados. a concepção mínima é um núcleo que qualquer teoria moral 13 controvérsias morais recentes.2 Primeiro exemplo: a bebé Teresa Theresa Ann Campo Pearson. cada uma expondo uma concepção diferente do que significa viver moralmente. mas sim como devemos viver. fígado. Estes bebés têm. e qualquer definição que vá além da formulação simples de Sócrates é susceptível de ofender uma ou outra dessas teorias. Dos não abortados.Capítulo 1 O que é a moralidade? Não estamos a discutir um tema sem importância. Seria útil se pudéssemos começar com uma definição simples e incontroversa de moralidade. mesmo que pudesse sobreviver. mas não é uma imagem inteiramente correcta. Mas não estamos apenas interessados no que as pessoas pensam. de facto. Os eticistas pensavam que sim. um argumento é sólido se as suas premissas são . causando-lhe dessa forma morte imediata. Transplantar os órgãos beneficia as outras crianças sem prejudicar a bebé Teresa. As outras crianças. As histórias dos jornais sobre a bebé Teresa suscitaram uma onda de debates públicos. para princípios filosóficos consagrados para se oporem à remoção dos órgãos. Teria sido correcto remover os órgãos da criança. a bebé Teresa morreu. o raciocínio 15 parece ter sido o seguinte: Se podemos beneficiar alguém sem fazer mal a outra pessoa. porque na Florida a lei não permite a remoção de órgãos até o dador estar morto.foram solicitados pela imprensa para comentar o tema. isso é de facto uma proposta horrenda. 14 nove dias depois. Quando. A sugestão dos pais baseava-se na ideia de que. os seus órgãos de nada lhe serviam. Em geral. podem ser concedidos a cada uma das partes." Era realmente horrendo? As opiniões dividiram-se." Um terceiro acrescentou: "O que os pais estão realmente a pedir é: matem este bebé moribundo para que os seus órgãos possam ser usados por outra pessoa. Queremos conhecer a verdade da questão. cujo trabalho consiste em pensar nestas coisas . devemos fazê-lo. e escolas de direito.pessoas empregadas por universidades. Teriam os pais razão ou não. Surpreendentemente. devemos transplantar os órgãos. poderiam beneficiar deles.os órgãos não podiam ser transplantados por se terem deteriorado excessivamente.ideia. no entanto. "Parece simplesmente demasiado horrível usar pessoas como meio para os objectivos de outras pessoas". ao oferecerem os órgãos da bebé para transplante? Se queremos descobrir a verdade temos de perguntar que razões. não queremos apenas saber que argumentos podem ser aduzidos em defesa de uma dada posição. Será isto correcto? Nem todos os argumentos são sólidos. Outro explicou: "É imoral matar para salvar. para ajudar outras crianças? Vários eticistas profissionais . Logo. Bom. era demasiado tarde para as outras crianças . ou argumentos. Mas os órgãos não foram retirados. uma vez que Teresa ia morrer em breve. hospitais. Assim. poucos concordaram com os pais e os médicos. mas também se esses argumentos são bons. por isso. ao invés. Pelo menos duas mil crianças em cada ano necessitam de transplantes e nunca há órgãos disponíveis suficientes. enquanto os pais da bebé e os médicos pensavam que não. É imoral matar a pessoa A para salvar a pessoa B. afirmou um desses peritos. O que poderá dizer-se para justificar o pedido dos pais ou para justificar a ideia de que o pedido estava errado? O argumento do benefício. Apelaram. e relações com outras pessoas. Será que estaríamos a "usá-la" num outro sentido moralmente significativo? Iríamos. Isto explica por que razão é errado "usar pessoas". se reflectirmos. Os eticistas que se opuseram aos transplantes usaram dois argumentos. sentimentos.) O argumento do benefício fornece. Retirar os órgãos de Teresa teria sido usá-la em benefício de outras crianças. mas isso não é o mesmo que ser ela a beneficiar disso. no entanto. Estar vivo só é um benefício quando permite a alguém realizar actividades e ter pensamentos. iríamos fazê-lo sem a sua permissão. Mas fazemos isso sempre que realizamos um transplante. pois. mas 16 trata-se de uma noção vaga que tem de ser esclarecida. Quais são os argumentos do lado contrário? O argumento de que as pessoas não devem ser usadas como meios. (Podemos imaginar circunstâncias nas quais outras pessoas beneficiariam em mantela viva. Esse facto tornaria o acto errado? Se estivéssemos a fazê-lo "contra" os seus desejos. impostura ou fraude. quando quero apenas que me leve até lá. Por exemplo. usar os seus órgãos em benefício de outra pessoa. Neste caso. A autonomia é igualmente violada quando as pessoas são forçadas a fazer coisas contra a sua vontade. é errado porque a impostura.por outras palavras. O que significa ao certo? "Usar pessoas" implica geralmente violar a sua autonomia . . Em todos estes casos estou a manipular alguém de modo a obter algo para mim próprio. isso poderia justificar a nossa oposição. uma poderosa razão para o transplante dos órgãos. ela morreria. Mas a bebé Teresa não é um ser autónomo: não tem desejos e é incapaz de tomar quaisquer decisões. ou posso tentar convencer alguém de que gostará de assistir a um concerto noutra cidade. poderíamos interrogar-nos sobre a proposição segundo a qual Teresa não seria prejudicada. Afinal de contas. se permite a alguém ter uma vida.a capacidade de decidirem por si mesmas como viver as suas próprias vidas. Por isso. posso fingir ser amigo de alguém. isso não é mau para ela? Mas. mesmo que Teresa pudesse continuar viva por mais alguns dias. impostura ou coerção.estar viva não lhe servia de nada. é claro. não se deve fazê-lo. portanto. O primeiro baseava-se na ideia de que é errado usar pessoas como meio para os fins de outras pessoas. A autonomia de uma pessoa pode ser violada por meio de manipulação. parece claro que nestas circunstâncias trágicas os pais tinham razão . segundo os seus próprios desejos e valores. Retirar os órgãos à bebé Teresa não envolveria engano. a coerção e o engano são errados. ou posso mentir a alguém para conseguir um empréstimo. Neste caso. quando na verdade estou apenas interessado em conhecer a sua irmã. Será este um argumento sólido? A ideia de que não devemos "usar" pessoas é obviamente apelativa. a mera existência biológica não tem valor algum. Na ausência destas condições. isso nada lhe traria de bom. seria uma violação da sua autonomia.verdadeiras e a conclusão resulta logicamente delas. houve resistências baseadas na ideia de que alguém pode estar cerebralmente morto mas muita coisa continua a funcionar no seu interior . nem mesmo na nossa imaginação. por isso. saber se retirar os órgãos da bebé Teresa deveria ser encarado como uma excepção à regra. obter dela qualquer orientação. infelizmente. um paciente em coma que assinou um testamento). parece não haver objecções a que lhe retiremos os órgãos. Não podemos. afirmaram eles.com assistência mecânica o coração pode continuar a bater. a bebé Teresa não tem preferências sobre coisa alguma e nunca terá. os seus interesses não serão afectados. Só que. retirar os órgãos seria errado. poucas pessoas pensam que matar é sempre errado . podemos perguntar-nos: O que serviria melhor os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à bebé Teresa. Mas a morte cerebral foi por fim aceite e as . Em geral é errado matar uma pessoa para salvar outra. independentemente do que fizermos. mas isso nem sempre é assim. e outros têm que o fazer em seu lugar. pois. de qualquer maneira. pode-se continuar a respirar. que diria ela? Este tipo de pensamento é frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem preferências mas são incapazes de exprimi-las (por exemplo. Qualquer pessoa que aceite isto tomará como falsa a primeira premissa do argumento. Primeiro. Será este argumento sólido? A proibição de matar é certamente uma das regras morais mais importantes. Quando 18 o critério da morte cerebral foi proposto pela primeira vez. por isso. seja qual for a nossa decisão. como já vimos. A conclusão é que ficamos na contingência de fazer o que consideramos melhor. Os eticistas recorreram igualmente ao princípio de que é errado matar uma pessoa para salvar outra. pois. sendo a mais importante que ela morrerá de qualquer maneira.Quando as pessoas são incapazes de tomar decisões. 17 A segunda linha de orientação apela para as preferências da própria pessoa. Á questão é. Há muitas razões a favor desta ideia. O argumento do erro de matar. Ela.a maioria das pessoas pensa que algumas excepções são por vezes justificadas. Retirar os órgãos de Teresa seria matá-la para salvar outros. Talvez a melhor maneira de entender toda a situação fosse encarar desde logo a bebé Teresa como morta. e assim por adiante. No entanto. Se isto parece insensato. recorde-se que a "morte cerebral" é hoje amplamente aceite como critério para declarar as pessoas legalmente mortas. podem adoptar duas linhas de orientação razoáveis. ao passo que retirar-lhe os órgãos permitiria pelo menos fazer algum bem a outros bebés. morrerá em breve. Poderíamos perguntar: Se pudesse dizer-nos o que quer. Mas há outra possibilidade. embora o nascimento recente de três pares no Oregon tenha suscitado a ideia de que o seu número está a crescer. Quando o conjunto de células (o "pré-embrião") se divide. surgem os gémeos idênticos. uma ilha junto de Malta. Afinal de contas. Inglaterra. mas Mary morreria de imediato. Se a definição de morte cerebral fosse reformulada para incluir os anencefálicos. Ninguém sabe quantos pares de gémeos siameses nascem por ano. Isto foi sensato porque quando o cérebro pára de funcionar deixa de haver esperança de vida consciente. As anencefalias não satisfazem os requisitos técnicos da morte cerebral tal como é actualmente definida. fornecia sangue à sua irmã. Jodie. O argumento baseado na ideia de que matar é errado seria então contestável. a mais forte. no todo.pessoas acostumaram-se a encará-la como "verdadeira" morte. As suas espinhas dorsais encontravamse fundidas. pela razão profunda de que não têm cérebro ou cerebelo. As crianças. católicos devotos. e partilhavam um coração e um par de pulmões. ela e o marido foram para o Hospital St. Os pais. A única esperança era uma operação para separá-las. mas sabemos com certeza que os gémeos siameses são uma variante de gémeos idênticos. acabaríamos por nos acostumar à ideia de que estes infelizes bebés são nado-mortos e deixaríamos. mas talvez a definição devesse ser reelaborada para as incluir.) As causas do fenómeno não são bem conhecidas. 1. descobriu que estava grávida de gémeos siameses. uma jovem de Gozo. estavam 19 Alguns pares de gémeos siameses não têm problemas. Mas o panorama apresentava-se algo cinzento para Mary e Jodie. sem intervenção. ("Os Estados Unidos têm um excelente serviço de saúde mas os registos são muito pobres". . Mary. pode ficar incompleta e os gémeos podem ficar ligados.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary Em Agosto de 2000. três a oito dias após a fertilização. afirmou um médico. para fazer aí o parto das bebés. conhecidas como Mary e Jodie. morreriam dentro de seis meses. não permitiram a operação baseando-se na ideia de que isso ligadas pelo baixo abdómen. em Manchester. Chegam à idade adulta e por vezes casam e têm os seus próprios filhos. que o argumento a favor do transplante dos órgãos da bebé Teresa é mais forte do que estes argumentos contra o transplante. os anencefálicos também não têm perspectivas de vida consciente. Os médicos afirmaram que. de encarar a extracção dos seus órgãos como uma forma de os matar. quando a divisão se arrasa mais alguns dias. Sabendo que as instalações de saúde de Gozo não estavam equipadas para lidar com as complicações de um tal nascimento. por isso. Parece pois. Isto salvaria Jodie. São raros. A sondagem mostrou que 78% aprovava a operação. simplesmente não pode fazer-se. seria correcto ou errado separar as gémeas? O argumento de que devem ser salvas tantas vidas quanto possível. solicitou permissão aos tribunais para separar as bebés contra o desejo dos pais. convencido da sua obrigação de fazer os possíveis para salvar pelo menos uma das crianças. não eram os únicos a defender esta perspectiva. Naturalmente. Podemos pensar. "Pensamos que a natureza deve seguir o seu curso". o Ladies Home Journal encomendou uma sondagem para descobrir o que os americanos pensavam. que a decisão devia caber aos pais. quando os jornais estavam cheios de histórias acerca de Jodie e Mary. raça. devemos separar a questão de quem deveria tomar a decisão da questão de qual deve ser a 20 sobre o caso. Na ética tradicional. caso em que nos oporemos à intromissão dos tribunais. No auge da controvérsia Será este argumento sólido? Por uma razão surpreendente. assim seja. "Se é a vontade de Deus que as crianças não sobrevivam. e a 6 de Novembro a operação foi realizada. É especialmente enfatizada em obras religiosas. Mas continua em aberto a questão independente de saber qual seria para os pais (ou qualquer outra pessoa) a escolha mais sensata. Não é claramente melhor salvar um deles? Este argumento é tão atraente que muitas pessoas concluirão. a proibição de matar seres humanos inocentes é tida como absoluta. Ao meditar neste caso. Mary é um ser humano inocente. por exemplo. está no centro da tradição moral ocidental. No entanto. que isto resolve o problema. Vamos concentrar-nos nesta última questão: Nas circunstâncias descritas. A ideia de que toda a vida humana tem valor.anteciparia a morte de Mary. O argumento óbvio a favor da separação das gémeas é que podemos escolher entre salvar um bebé ou deixar ambos morrer. Não importa se o assassinato visa servir um propósito meritório. classe social ou deficiência." O hospital. afirmaram os pais. os juizes que avaliaram o caso em tribunal pensaram que não. . As pessoas estavam obviamente persuadidas pela ideia de que devemos salvar tantos bebés quanto possível. sem mais. Os tribunais concederam permissão. Os pais amavam as duas filhas e pensavam que seria errado sacrificar uma delas para salvar a outra. O argumento da santidade da vida humana. Negaram a pertinência do argumento tradicional neste caso. Jodie sobreviveu e Mary morreu. Tal como se esperava. não podendo por isso ser morta. os pais de Jodie e Mary pensavam que há um argumento ainda mais forte do lado contrário. independentemente da idade. 21 decisão. no Canadá. O argumento do juiz pode parecer um pouco sofístico. uma menina de doze anos vítima de paralisia cerebral. e acrescentou que "não tinha coragem" para o fazer. mas porque o seu próprio corpo não pode manter a sua vida". Numa manhã de domingo. foi morta pelo pai em 1993. seguramente. Por outras palavras.O juiz Robert Walker afirmou que a realização da operação não mataria Mary. O juiz concordou e sentenciou Latimer a um ano de cadeia. Podemos responder que não é sempre errado matar seres humanos inocentes. que podem desenvolver-se e ter uma vida boa e plena . enquanto a mulher e os filhos estavam na missa. O júri considerou-o apenas culpado de homicídio de segundo grau e recomendou ao juiz para ignorar a sentença obrigatória de vinte e cinco anos de prisão. Em situações raras pode mesmo ser correcto. não por ser intencionalmente morta. executaram todos os procedimentos para tentarem manter Mary viva "concedendo-lhe todas as possibilidades" . pouco frequentes. no entanto. a causa da sua morte não seria a operação mas a sua própria debilidade. Ela seria simplesmente separada da irmã e depois "morreria. Os médicos parecem ter favorecido também esta perspectiva. Há. não se deixarão convencer. Tracy vivia com a família numa quinta de uma pradaria de Saskatchewan. Quando a operação foi finalmente realizada. De qualquer das maneiras ela vai morrer. diz-se que tinha "um nível mental idêntico ao de um bebé de três meses". e a sua morte acontecerá mais cedo do que se não tivesse sido separada da irmã.mesmo sabendo da inutilidade do esforço.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer Tracy Latimer. que pouco importa dizer que a morte da Mary é causada pela operação ou pela debilidade do seu corpo. Robert Latimer pôs Tracy na cabina da sua carrinha de caixa aberta e asfixiou-a com o fumo do escape. 22 1. A senhora Latimer afirmou ter ficado aliviada por encontrar Tracy morta ao chegar a casa. sobretudo os pensadores religiosos.nestas circunstâncias. Em particular se: a) o ser humano inocente não tem futuro por estar condenado a morrer em breve independentemente do que façamos. No entanto. O senhor Latimer foi julgado por homicídio. seguido de um ano de prisão domiciliária na sua quinta. uma objecção mais natural ao argumento da santidade da vida que não depende de um argumento tão forçado. No entanto. b) o ser humano inocente não quer continuar a viver. e c) se matar o ser humano inocente permitir salvar a vida de outros. Poderíamos pensar. esta é uma linha de pensamento que muitas pessoas podem achar persuasiva. talvez por estar tão-pouco desenvolvido mentalmente que não pode de todo ter desejos. E claro que muitos moralistas. o Supremo Tribunal do Canadá revogou a sentença e . Na altura da morte. mas o juiz e os jurados não quiseram tratá-lo com demasiada dureza. Tracy pesava menos de dezoito quilos. pode justificar-se matar um inocente. Para sublinhar o quanto isto é ofensivo." Tracy foi morta por ser . afirmou: "Ninguém tem o direito de decidir se a minha vida tem um valor inferior a outra. então é simplesmente arbitrário tratá-la desta forma. As pessoas deficientes deveriam ser tão respeitadas e ter tantos direitos como qualquer outra pessoa. 23 deficiente. Quando Robert Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal. e isso é inadmissível.ordenou a imposição da sentença obrigatória. ninguém iria defender seriamente que uma pessoa cega deveria ser empregada como controladora de tráfego aéreo. Houve. poderíamos perguntar por que razão essa pessoa é tratada de forma diferente. Exemplos correntes envolvem situações como a discriminação no local de trabalho. cumprindo uma pena de vinte e cinco anos. Isto não é diferente de recusar empregar alguém por ser negro ou judeu. O presidente de Saskatoon Voice of People with Disabilities. será que o senhor Latimer fez algo de errado? Este caso envolve muitas das questões que já vimos nos outros casos. naturalmente. Suponha-se que se recusa um trabalho a uma pessoa cega simplesmente porque o patrão não gosta da ideia de empregar alguém incapaz de ver. a "discriminação" não é arbitrária e não é uma violação dos direitos da pessoa deficiente. que sofre de esclerose múltipla. Considerando estes argumentos. Uma vez que podemos explicar facilmente por que motivo isto não é desejável. muitos deficientes encararam o facto como um insulto. um assunto sério. Um argumento contra o senhor Latimer é que a vida de Tracy tinha valor moral. Robert Latimer está ainda detido. Em sua defesa pode responder-se que a situação de Tracy era tão catastrófica que ela não tinha quaisquer perspectivas de uma "vida" em qualquer sentido além do puramente biológico. parece que talvez o senhor Latimer tenha agido de forma defensável. no entanto. Devemos pensar na morte de Tracy Latimer como um caso de discriminação de deficientes? O argumento contra a discriminação dos deficientes. Questões legais à parte. outros argumentos avançados pelos seus críticos. afirmou. não tendo ele por isso o direito de a matar. Por exemplo. É menos capaz de fazer o trabalho? É mais estúpida ou menos diligente? Merece menos o emprego? É menos capaz de beneficiar da circunstância de estar empregada? Se não há qualquer boa razão para a excluir. Que podemos dizer disto? A discriminação contra qualquer grupo de pessoas é. Mas há algumas circunstâncias nas quais pode justificar-se tratar os deficientes de forma diferente. E inaceitável porque implica tratar algumas pessoas de forma diferente de outras. quando não há diferenças relevantes entre elas para o justificar. A sua existência estava reduzida a nada mais do que sofrimento sem sentido. pelo que matá-la foi um acto de misericórdia. Essa é a grande questão. Quando o Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer. Para Tracy. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa. afirmou. e havia ainda mais cirurgias planeadas. foram criticados por causa daquilo a que podem conduzir. afirmaram alguns. nasceu Louise Brown. Isto aconteceu com a FIV. é melhor não darmos os perigosos primeiros passos. Isto diz respeito a tortura. é perigoso pensar desta forma. Antes da sua morte. por isso. Podemos compreender Robert Latimer. No entanto. e no final toda a vida terá perdido o seu valor. varetas nas costas. Isto conduz naturalmente a outro argumento. "Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive e quem morre". que queriam "purificar a raça". refere-se frequentemente os nazis. Uma vez que estes argumentos envolvem especulações sobre o futuro. "Tendo em conta a combinação de um tubo para alimentação. em 1978. "mas estão enganadas. podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. afirmou. O aborto. Tem-se usado "argumento da derrapagem" do mesmo género em relação a todo o tipo de questões. Por vezes. afirmou-se "agradavelmente surpreendida" pela decisão. O senhor Latimer negou. a clonagem. O argumento da derrapagem. que ela tenha sido morta por causa da paralisia cerebral. são manifestamente difíceis de avaliar. três dos médicos de Tracy deram o seu testemunho sobre a dificuldade de controlar as suas dores. ancas e pernas. directora da Associação Canadense de Centros para Uma Vida Independente. contexto. foi morta por causa da dor e por não haver esperança para ela. Quando. é possível verificar. mais recentemente. "como podem as pessoas dizer que ela era uma menina feliz"? No julgamento. afirmou o pai. doentes e outros membros "inúteis" da sociedade? Neste 25 argumentou que a paralisia cerebral de Tracy não era a questão. "As pessoas andam a dizer que isto é uma questão relacionada com deficiência". a fertilização in vitro (FIV) e. Tracy fora submetida a uma importante e delicada intervenção cirúrgica às costas. a perna cortada e bamba e ainda as chagas causadas pela permanência na cama".O senhor Latimer 24 Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. iremos dar a uma "derrapagem" inevitável. em retrospectiva. Tracy Walters. houve uma . e a implicação é que se não queremos acabar como eles. tratava-se de uma questão de mutilação e tortura". Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida. a primeira "bebé proveta". o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos. que as preocupações eram infundadas. ) Além disso. é tentador pressupor que sabemos pura e simplesmente o que a verdade não pode deixar de ser. por mais fortes que sejam. pode. Infelizmente. os sentimentos de pessoas diferentes dizem-lhes frequentemente coisas opostas: no caso de Tracy Latimer. Essa 26 O que se pode aprender com tudo isto sobre a natureza da moral? Para começar. egoísmo ou condicionamento cultural. ser difícil determinar se um argumento deste tipo é sólido. podemos tomar nota de dois aspectos principais: primeiro. bem como muitos outros que serão discutidos neste livro.os inclinados a defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são irrealistas. a sua família e a sociedade como um todo. no entanto. a moral implica a consideração imparcial dos interesses de cada indivíduo. os juízos morais têm de se apoiar em boas razões. ser objecto de admiração. podemos sempre fazer uma previsão sobre as suas possíveis consequências. Os casos da bebé Teresa.série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela. não podemos confiar nos nossos sentimentos. Jodie e Mary e Tracy Latimer. enquanto outras têm o sentimento igualmente forte de que ele nunca devia ter sido acusado. os sentimentos das pessoas diziam-lhes. ninguém pode provar que esteja errada. Estes sentimentos não é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados com cuidado. sem mesmo termos de tomar em consideração os argumentos do lado contrário. Este método pode ser utilizado para contestar quase tudo. Por outro lado. 1. no entanto. Isto dá origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos méritos da argumentação podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores . segundo. que este tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Vale a pena notar. mas não temos qualquer argumento bom contra ela. Estes sentimentos são frequentemente sinal de seriedade moral e podem. por mais implausível que a previsão seja. que os membros de outras raças eram inferiores e que a escravatura fazia parte do próprio plano divino das coisas. Se não concordamos com alguma coisa. pois.5 Razão e imparcialidade . pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy Latimer. por exemplo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornouse um procedimento rotineiro usado para ajudar milhares de casais a ter filhos. Os nossos sentimentos podem ser irracionais: podem não ser mais do que resultados de preconceito. podem despertar sentimentos fortes. o sentimento forte de algumas pessoas é que o seu pai devia ter sido condenado a uma pena longa. enquanto os predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões. Raciocínio moral. Quando o futuro é desconhecido. (Numa dada altura. Mas podem também ser um obstáculo à descoberta da verdade: quando temos sentimentos fortes relativamente a uma questão. Uma fonte de problemas relaciona-se com a dificuldade que por vezes existe em estabelecer os "factos" . A moralidade é. Mas como podemos reconhecer as diferenças? Como devemos proceder para avaliar argumentos? Os exemplos que analisámos ilustram alguns aspectos pertinentes. Em qualquer circunstância dada. antes de mais e acima de tudo. A ideia fundamental pode enunciar-se de forma simples. e se não se puder dar qualquer boa razão. A primeira coisa a fazer é entender com clareza os factos. é um requisito lógico geral que tem de ser aceite por qualquer pessoa. se não tiver boas razões para o que diz. no entanto. nem todas as razões passíveis de ser apresentadas são boas razões. Pela mesma lógica. se todas as outras pessoas do mundo detestarem café. 28 Naturalmente. Por outro lado. tanto quanto possível. nada mais do que isso.podem. não necessita ter uma razão para tal . 27 Assim. Uma "defesa racional" do facto de gostar ou não de café é algo que não existe. temos de tentar deixar que os nossos sentimentos sejam guiados. e muita da perícia do pensamento moral consiste em saber distinguir uns de outros.as questões podem ser tão complexas e difíceis que nem mesmo os especialistas concordam entre si. a acção moralmente correcta é aquela a favor da qual existirem melhores razões. Além do mais. Neste aspecto. Este não é um aspecto de somenos importância sobre uma pequena gama de perspectivas morais. Se alguém afirma "eu gosto de café". necessita ter razões para tal. Suponha-se que se afirma que alguém devia fazer isto ou aquilo (ou que fazer isto ou aquilo seria errado). Desde que uma pessoa esteja a dar conta dos seus gostos de forma precisa. independentemente do seu posicionamento sobre qualquer questão moral em particular. o que diz tem de ser verdade. se queremos descobrir a verdade. Pode-se legitimamente perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria errado fazê-lo). Há bons e maus argumentos. está simplesmente a produzir ruídos e não vale a pena dar-lhe atenção. não há nisso qualquer implicação de que as outras pessoas tenham de ter o mesmo gosto. pelos argumentos que se podem fornecer a favor de cada uma das perspectivas opostas. É . as outras pessoas têm de reconhecer a sua força. Outro problema é o preconceito humano. e se as suas razões forem sólidas. isso não importa. se alguém afirma que algo é moralmente errado.está meramente a declarar um facto sobre si mesmo. estar ambos correctos. uma questão de aconselhamento racional. E frequente isto não ser tão fácil como parece. os juízos morais são diferentes das expressões de gosto pessoal. pode-se rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado. não havendo por isso discussão possível do caso. O requisito de imparcialidade está estreitamente ligado à ideia de que os juízos morais têm de ser apoiados em boas razões. por exemplo. e por isso o que importa . Nos nossos três exemplos estavam envolvidos um conjunto de princípios: que não devemos "usar" as pessoas.frequente querer acreditar numa versão dos factos por apoiar os nossos preconceitos. que toda a vida é sagrada. que não devemos matar uma pessoa para salvar outra. A ideia básica consiste em considerar os interesses de cada indivíduo como igualmente importantes. Depois de os factos terem sido estabelecidos tão bem quanto possível. e devemos estar sempre atentos à possibilidade de novas complicações e novas formas de erro. O pensamento moral não é excepção. É fácil imaginar outros exemplos do mesmo género: pessoas que não querem dar dinheiro para a caridade consideram com frequência que as organizações de caridade são esbanjadoras. Ao mesmo tempo. como os negros. A maioria dos argumentos morais 29 saber é se os princípios são sólidos e se estão a ser aplicados de forma inteligente. e que é errado discriminar os deficientes. do ponto de vista moral. O requisito de imparcialidade. não há pessoas privilegiadas. como se torna evidente pela diversidade de argumentos sobre os bebés deficientes. quererão acreditar nas previsões do argumento da derrapagem. Seria bom se houvesse uma receita simples para construir bons argumentos e evitar os maus. a exigência de imparcialidade elimina qualquer esquema que trate os membros de determinados grupos como de certa forma inferiores. apesar das provas em contrário. que defende ser correcto que os empregos melhores sejam reservados para as pessoas consiste na aplicação de princípios aos factos de casos particulares. que devemos fazer o que beneficie as pessoas afectadas pelas nossas acções. os princípios morais entram em jogo. e o pensamento moral responsável começa quando tentamos ver as coisas como elas são. Mas os factos existem independentemente dos nossos desejos. mesmo quando não têm grandes provas disso. não há um método simples. por exemplo. cada um de nós tem de reconhecer que o bem-estar dos outros é tão importante como o nosso. e as pessoas que não gostam de homossexuais afirmam que a comunidade gay inclui um número desmesurado de pedófilos. Portanto. Mas isso não é surpreendente. Praticamente todas as teorias morais importantes incluem a ideia de imparcialidade. seja em que área for. Considere-se a posição de um racista branco. Infelizmente. A aplicação mecânica de métodos rotineiros nunca é um substituto satisfatório para a inteligência crítica. Os argumentos podem falhar de diversas maneiras. Os que reprovam a acção de Robert Latimer. os judeus e outros foram por vezes tratados. os que o compreendem não vão querer acreditar nessas previsões. fazem.isto é. que aceita princípios de conduta somente depois de os examinar. para fazer aquilo a favor do qual existem melhores razões . ele apoia ainda as disposições sociais por meio das quais esta situação se perpetua. a "discriminação" do realizador não seria arbitrária. Mas se isto explica o que está errado no racismo. para ter a certeza de que são sólidos. por fim. Haverá alguma coisa nos brancos que os torne mais adequados para os cargos mais bem pagos e mais prestigiados? Serão eles inerentemente mais inteligentes ou mais empreendedores? Será que se importam mais consigo mesmos e com as suas famílias? Serão capazes de beneficiar mais por terem tais cargos à sua disposição? Em cada um destes casos a resposta parece ser não. podemos 30 filme sobre a vida de Martin Luther King. o esforço para orientar a nossa conduta pela razão . 1.brancas. Teria uma razão muito boa para não recrutar Tom Cruise para o papel de protagonista. É uma regra que nos proíbe de tratar uma pessoa de forma diferente de outra quando não há uma boa razão para o fazer. uma imagem do que significa ser um agente moral consciente. enquanto os negros ficam restringidos a tarefas sobretudo subalternas. pelo menos. alguém que. está . Por haver uma boa razão para isso. não sendo por isso vulnerável a críticas. Ele sente-se bem com uma situação na qual os executivos das principais empresas e os responsáveis do governo. pois. Suponha-se que um realizador de cinema estava a fazer um consciencioso é alguém preocupado imparcialmente com os interesses de quantos são afectados por aquilo que ele. mais do que uma condenação da arbitrariedade no tratamento das pessoas. O requisito de imparcialidade não é. Isto oferece. a discriminação é inaceitavelmente arbitrária. são brancos. Podemos agora perguntar pelas razões para isto. entre outras coisas. e se não houver qualquer boa razão para tratar as pessoas de maneira diferente. É claro que a escolha deste actor não faria sentido.6 A concepção mínima de moralidade A concepção mínima pode agora ser apresentada de forma breve: a moralidade é. ou ela. Jr. O agente moral 31 perguntar por que motivo se pensa que isto está certo. alguém que cuidadosamente filtra os factos e examina as suas implicações. que está disposto a "dar ouvidos à razão" mesmo quando isso significa ter de rever convicções prévias. entre outros.dando simultaneamente a mesma importância aos interesses de cada indivíduo que será afectado por aquilo que fazemos. explica igualmente por que razão em alguns casos especiais não é racista tratar as pessoas de maneira diferente. e por isso a maior parte das teorias da moralidade incorpora.disposto a agir com base nos resultados da sua deliberação. nem todas as teorias éticas aceitam este "mínimo". as teorias que rejeitam a concepção mínima debatem-se com sérias dificuldades. 32 . A maioria dos filósofos apercebeu-se disto. É claro que. de uma forma ou outra. Como teremos oportunidade de ver. No entanto. como seria de esperar. de maneira a alcançar uma concepção moral inteiramente satisfatória. Não discordam sobre o mínimo mas sobre como poderemos alargá-lo. este retrato do agente moral tem sido posto em causa de várias maneiras. a concepção mínima. ou talvez modificá-lo. Pense-se nos esquimós (entre os quais o grupo mais vasto é o inuíte). Com uma população de apenas cerca de vinte e cinco mil pessoas. Devemos comer os corpos dos mortos ou queimálos? Se fôssemos gregos. é claro. concedendo-as para passar a noite em sinal de hospitalidade. Padrões de Cultura (1934) 2. não faziam isso cremavam os mortos e encaravam a pira funerária como a forma natural e adequada de dispor dos mortos. no seio de uma comunidade um homem dominante podia exigir e obter acesso sexual regular às esposas de outros homens. As mulheres. um rei da antiga Pérsia. na presença dos gregos. O que se pensa ser correcto num grupo pode ser inteiramente odioso para os membros de outro grupo e vice-versa. Dário chamou então alguns calatinos e. Os costumes esquimós revelaram-se muito diferentes dos nossos. e partilhavam-na com os convidados. no entanto. por exemplo. convocou alguns gregos que por acaso estavam na sua corte e perguntou-lhes quanto queriam para comer os cadáveres dos seus pais. uma das respostas pareceria obviamente correcta.1 Culturas diferentes têm códigos morais diferentes Dário. São um povo remoto e inacessível. e é apenas um termo cómodo para os hábitos que uma sociedade aprova.Capítulo 2 O desafio do relativismo cultural A moralidade varia em todas as sociedades. vivem em povoados espalhados sobretudo ao longo da orla da América do Norte e da Gronelândia. Até ao começo do século xx. Os Gregos. podiam quebrar estes acordos abandonando pura e chocados. relatada por Heródoto na sua História. ilustra um tema recorrente na bibliografia das ciências sociais: culturas diferentes têm códigos morais diferentes. Além disso. o mundo exterior pouco sabia a seu respeito. RUTH BENEDICT. Um dia. Eles ficaram 33 perguntou-lhes quanto queriam para queimar os cadáveres dos seus pais. É fácil dar outros exemplos do mesmo género. ficou intrigado com a diversidade de culturas que encontrou nas suas viagens. Tinha descoberto. mas se fôssemos calatinos a resposta contrária pareceria igualmente certa. Os calatinos ficaram horrorizados e disseram a Dário para nem sequer referir uma coisa tão horrível. Dário pensava que uma maneira sofisticada de entender o mundo tem de incluir uma avaliação deste tipo de diferenças entre culturas. como Dário sabia que ficariam. para ensinar esta lição. Os exploradores começaram então a trazer consigo histórias estranhas. Os homens tinham com frequência mais de uma mulher. que os calatinos (uma tribo de indianos) tinham o hábito de comer os cadáveres dos pais. Esta história. . e responderam que nenhuma quantia os poderia persuadir a fazer tal coisa. e isto era deixado simplesmente à decisão dos pais. tendemos imediatamente a categorizar as outras pessoas como "retrógradas" ou "primitivas". O nosso próprio modo de vida parece tão natural e correcto que para muitos de nós é difícil conceber outras pessoas a viver de modo tão diverso. William Graham Sumner. Não está submetida à verificação pela experiência.2 Relativismo cultural Mas não eram apenas os seus casamentos e práticas sexuais que eram diferentes. afirmam. era comum.simplesmente os maridos e ligando-se a novos companheiros podiam. A ideia de verdade universal em ética. Também os idosos. muito pouco respeito pela vida. colocou a questão assim: A maneira "certa" é a maneira que os antepassados utilizavam e nos foi transmitida. um dos mais famosos de entre os primeiros exploradores. Tudo quanto existe são os costumes de sociedades diferentes. Mas tal padrão não existe. Mas para os Esta observação . sem que tal acarretasse qualquer estigma social. O grande pioneiro da sociologia. As bebés do sexo feminino. nesta sociedade. A tradição é a sua própria garantia. quando se tornavam demasiado fracos para ajudar a família. Knud Rasmussen. Tudo somado. 2. isto é. O infanticídio. E quando ouvimos falar de tais coisas. Parecia pois haver. eram especialmente susceptíveis de ser aniquiladas. Os esquimós pareciam igualmente ter menos respeito pela vida humana. relatou o seu encontro com uma mulher que tinha dado à luz vinte crianças mas tinha morto dez delas à nascença. por exemplo. desde que os seus antigos maridos decidissem não causar sarilhos. Para o público em geral estas eram revelações perturbadoras. Se partimos do princípio de que as nossas ideias éticas serão partilhadas por todos os povos em todos os tempos. Não se pode 35 dizer que estes costumes estão "correctos" ou "incorrectos". a prática esquimó era um esquema volátil em quase nada semelhante àquilo a que chamamos casamento. A noção do que é certo está . em 1906. estamos apenas a ser ingénuos. Desde o tempo de Heródoto que os observadores mais perspicazes se acostumaram à ideia de que as concepções de certo e errado diferem de cultura para cultura. pois isso implicaria ter um padrão independente de certo e errado pelo qual poderíamos julgá-los. é um mito. todos os padrões são determinados por uma cultura. descobriu Rasmussen. 34 antropólogos nada havia de particularmente surpreendente nos esquimós."culturas diferentes têm códigos morais diferentes" pareceu a muitos pensadores ser a chave para compreender a moralidade. eram deixados ao frio e à neve para morrer. e quando analisamos o relativismo cultural. O que estiver nos hábitos populares. com efeito. como tem sido chamado. Nos pontos seguintes vamos tentar identificar o que está correcto no relativismo cultural. Sociedades diferentes têm códigos morais diferentes. então essa acção é correcta.3 O argumento das diferenças culturais 2. está certo. pelo menos nessa sociedade. Apesar de poder parecer que estas seis proposições fazem naturalmente parte de um todo. Não reside além deles. existem apenas os vários códigos morais e nada mais. Quando abordamos os hábitos populares a nossa análise chega ao fim. Afirma.nos hábitos do povo. É importante separar os vários elementos da teoria porque. durante a análise. Além disso. Para começar. 5. não há verdades morais aceites por todos os povos em todos os tempos. desafia a nossa crença habitual na objectividade e universalidade da verdade moral. descobrimos que não é tão plausível como inicialmente parecia ser. esta ideia de base é na realidade um conjunto de vários pensamentos diferentes. Não há qualquer padrão objectivo que se possa usar para ajuizar um código social como melhor do que outro. algumas partes revelam-se correctas enquanto outras parecem estar erradas. Deveríamos adoptar uma atitude de tolerância face às práticas de outras culturas. é apenas um entre muitos. mas vamos também denunciar o que está errado. podemos distinguir as seguintes afirmações. na medida em que algumas podem ser falsas ainda que outras sejam verdadeiras. Esta linha de pensamento persuadiu provavelmente mais pessoas a serem cépticas sobre ética que qualquer outra coisa. Isto é assim porque são tradicionais. No entanto. O relativismo cultural. 6. isto é. todas elas apresentadas por relativistas culturais: 1. isto é. O código moral de uma sociedade determina o que é correcto no seio dessa sociedade. que não existe verdade universal em ética. pode ser avaliada mediante análise racional. 4. 3. o nosso próprio código moral não tem um estatuto especial. . E mera arrogância nossa tentar julgar a conduta de outros povos. são independentes umas das outras. e por isso contêm em si a autoridade dos espíritos ancestrais. Não há uma "verdade universal" em ética. não provém de origem independente. 2. é apenas um entre muitos. para os pôr à prova. seja o que for. como todas as teorias do género. O código moral da nossa própria sociedade não tem estatuto especial. moral de uma sociedade afirma que certa acção é correcta. Como veremos. À primeira vista parece bastante plausível. se o código 36 O relativismo cultural é uma teoria sobre a natureza da moralidade. Os gregos acreditavam que é errado comer os mortos. O problema é que a conclusão não se segue da premissa . A conclusão. 2. mesmo que a premissa seja 38 argumentar a partir de factos sobre as diferenças entre perspectivas culturais a favor de uma conclusão sobre o estatuto da moralidade. O problema é que este tipo de conclusão não se segue logicamente deste tipo de premissa.em algumas sociedades as pessoas acreditam numa coisa.1. que não existe verdade objectiva no caso? Não. Considere-se de novo o exemplo dos gregos e dos calatinos. do simples facto de não estarem de acordo. Culturas diferentes têm códigos morais diferentes. enquanto os Calatinos acreditavam que comer os mortos estava certo. que varia de cultura para cultura. assim. Mas. no entanto. Os Gregos acreditavam que comer os mortos estava errado. os calatinos acreditavam que é correcto. Os esquimós nada vêem de errado no infanticídio. Convidam-nos. Estes argumentos são claramente variações de uma ideia fundamental. diz respeito ao que na verdade se passa. Podemos chamar a isto o argumento das diferenças culturais. A premissa diz respeito àquilo em que as pessoas acreditam . Será que daqui se entende. 2. de um ponto de vista lógico. será sólido? Não é sólido. São ambos casos especiais de um argumento mais geral. que afirma: verdadeira a conclusão pode continuar a ser falsa. enquanto os americanos pensam que o infanticídio é imoral. Ou. comer os mortos não é objectivamente certo nem objectivamente errado. A primeira coisa que precisamos fazer notar é que no âmago do relativismo cultural está uma certa forma de argumento.isto é. É apenas uma questão de opinião que varia de cultura para cultura. Certo e errado são apenas questões de opinião e as opiniões variam de cultura para cultura. Logo. É apenas uma questão de opinião. . A estratégia usada pelos relativistas culturais é 37 2. alternativamente: 1. Logo. o infanticídio não é objectivamente certo nem objectivamente errado. Logo. não se entende. a aceitar este raciocínio: 1. noutras sociedades acreditam noutra. Para muitas pessoas é persuasivo. não há uma "verdade" objectiva na moralidade. pois poderia acontecer que a prática fosse objectivamente certa (ou errada) e que uma ou outra das posições estivesse simplesmente errada. nas suas crenças sobre o mundo. Não reside além deles. Não estamos a dizer (ainda não. está certo. não há qualquer razão para pensar que se existe uma verdade moral.Para tornar este aspecto mais claro. todos têm de saber disso. Portanto. é um dos principais aspectos sublinhados pelo relativismo cultural. não prova nada. que infelizmente se revela falacioso. Trata-se. que não há "verdade objectiva" em geografia? Claro que não. considere-se um tema diferente. 2. Segue-se daqui. O erro fundamental no argumento das diferenças culturais é que tenta derivar uma conclusão substancial sobre um tema partindo do mero facto de as pessoas discordarem a seu respeito. todos têm de conhecê-la. Quais seriam algumas das consequências? 1. O que estiver nos hábitos populares. William Graham Sumner resume a essência do relativismo cultural. Sumner afirma que não há uma medida de certo e errado. os membros de algumas sociedades podem simplesmente estar errados. do mero facto de as pessoas discordarem. O objectivo do reparo lógico é apenas fazer notar que a conclusão 39 verdadeira necessitamos de argumentos para a apoiar. pelo menos) que a conclusão do argumento é falsa. Não há qualquer razão para pensar que se o mundo é redondo. não provém de origem independente. nunca chegaríamos a tal conclusão porque percebemos que. como a nossa. Teríamos de deixar de condenar outras sociedades simplesmente por serem "diferentes". é claro. Isto. até agora. como as práticas funerárias dos gregos e calatinos.4 As consequências de levar a sério o relativismo cultural Mesmo que o argumento das diferenças culturais seja falso. Enquanto nos concentrarmos apenas em certos exemplos. de uma simples questão lógica e é importante não a interpretar erradamente. isto pode parecer uma atitude sofisticada e esclarecida. Isto é importante. O relativismo cultural propõe este argumento. além dos padrões de uma sociedade: "A noção de certo está nos hábitos da população. No entanto. seríamos também impedidos de criticar outras práticas menos benignas. as pessoas acreditam que a Terra é (aproximadamente) esférica. o relativismo cultural pode ser verdadeiro. Imagine não se segue da premissa. porque para determinar se a conclusão é . Noutras sociedades. Deixaríamos de poder afirmar que os costumes de outras sociedades são moralmente inferiores aos nossos. Isso é ainda uma questão em aberto. Como seria se fosse verdadeiro? Na passagem citada. Da mesma maneira. Em algumas sociedades as pessoas acreditam que a Terra é plana. para os pôr à prova. seja o que for." Suponha que tomávamos isto a sério. não haveria motivos de preocupação. pois isso implicaria um tipo qualquer de padrão transcultural de comparação. Ou suponha que uma sociedade era violentamente anti-semita e os seus líderes se propunham destruir os judeus. não nos permite igualmente criticar a nossa. poderemos legitimamente pensar que é um . e estavam em geral sob o controlo quase absoluto dos seus maridos. e a maioria das pessoas pensa que isto é um progresso.que uma sociedade declarava guerra aos seus vizinhos com o intuito de fazer escravos. Tudo o que teria que fazer era perguntar se esta política se conformava com o código moral da sua sociedade.) A incapacidade de condenar estas práticas não parece muito esclarecida. Suponhamos que em 1975 um residente da África do Sul se perguntava se a política de apartheid do seu país . No entanto. (Nem sequer poderíamos dizer que uma sociedade tolerante em relação aos judeus é melhor que uma sociedade anti-semita. Pensamos habitualmente que pelo menos algumas das mudanças sociais são melhorias. se tomássemos a sério o relativismo cultural teríamos de encarar estas práticas sociais como algo imune à crítica.) Ao longo da maior 41 dizer que qualquer destas práticas estava errada.não é difícil pensar em várias maneiras de a aperfeiçoar. Afinal de contas. pelo menos do ponto de vista moral. isto tem de ser verdade tanto relativamente à nossa própria cultura como relativamente às outras.era moralmente correcta. O relativismo cultural iria impedir-nos de 40 resposta afirmativa. naturalmente. a escravatura e o antisemitismo afiguram-se erradas onde quer que ocorram. pelo contrário.um sistema rigidamente racista . (Apesar de. outras mudanças poderem piorar as coisas. O relativismo cultural propõe uma maneira simples para determinar o que está certo e o que está errado: tudo o que necessitamos é perguntar se a acção está de acordo com os códigos da nossa sociedade. Poderíamos decidir se as acções são certas ou erradas pela simples consulta dos padrões da nossa sociedade. Não podiam ter bens. o relativismo cultural não se limita a impedirnos de criticar os códigos de outras sociedades. muitas destas coisas mudaram. 3. 2. Recentemente. Esta implicação do relativismo cultural é perturbadora porque poucos de nós pensam que o código moral da nossa sociedade é perfeito . Em caso de parte da história ocidental o lugar das mulheres na sociedade esteve severamente circunscrita. A ideia de progresso moral é posta em dúvida. No entanto. se certo e errado são relativos à cultura. Mas se o relativismo cultural estiver correcto. não podiam votar. Mas ninguém pode contestar os ideais em si. Faz sentido pensar que a nossa própria sociedade fez algum progresso cultural. descobrimos com frequência que as culturas não diferem tanto quanto parece. No entanto. A nossa concepção de reforma social terá igualmente de ser reconsiderada. prossegue o argumento. Mas até que ponto diferem realmente? É verdade que há diferenças. . Uma vez que o relativismo cultural supõe. A sociedade do século xvm era diferente da que temos agora. então o relativismo cultural diria que é um erro julgá-las pelos padrões de uma época diferente. as vacas são intocáveis. Quando examinamos o que parece uma diferença drástica. limitamo-nos a discordar sobre se a vaca é (ou poderia ser) a nossa avó. Estas três consequências do relativismo cultural levaram muitos pensadores a rejeitá-lo frontalmente como implausível. não pode estar correcto. e isso é justamente o tipo de juízo transcultural que. Imagine-se uma cultura na qual as pessoas acreditam ser errado comer vacas. Obedecendo aos constrangimentos impostos pelo relativismo cultural há uma maneira de poder fazer isto. afirmam. mesmo assim. é fácil sobrevalorizar a dimensão dessas diferenças. Reformadores como Martin Luther King. a ideia de reforma social só faz sentido desta maneira limitada. podendo uma vaca ser a alma da avó de alguém. Faz realmente sentido. Mas qual o padrão pelo qual avaliamos estas novas maneiras como melhores? Se as velhas maneiras estavam de acordo com os padrões culturais do seu tempo. que é ainda imperfeita e necessita de reformas. Concordamos que não devemos comer a nossa avó. é impossível. embora deva admitir-se. 2. segundo o relativismo cultural. condenar certas práticas. Portanto. na qual não há comida suficiente. pode considerar-se que o reformador está a agir bem. Afirmar que fizemos progressos implica o juízo de que a sociedade de hoje é melhor. segundo o relativismo cultural. Jr. pois esses ideais são por definição correctos. especialmente das vacas. que estes juízos não fazem sentido. a diferença está noutro lado. Mas será que tem? Ainda não perguntámos a razão pela qual estas pessoas se recusam a comer vacas. A diferença reside nos nossos sistemas de crenças. como a escravatura. tentaram mudar as suas sociedades para melhor.5 Por que razão há menos diferenças do que parece O ímpeto original do relativismo cultural resulta da observação de que as culturas diferem de forma dramática nas suas perspectivas do que é certo e errado.progresso? Progresso significa substituir uma maneira de fazer as coisas por uma maneira melhor. Suponha-se que é por acreditarem que depois da morte as almas dos seres humanos habitam os corpos dos animais. Vamos continuar a dizer que os valores deles são diferentes dos nossos? Não. Se uma sociedade não está a viver de acordo com os seus ideais. Tal sociedade pareceria ter valores muito diferentes dos nossos. os ideais da sociedade são os padrões pelos quais julgamos o mérito das suas propostas. simultaneamente. onde quer que ocorram. Pode até ser uma cultura pobre. e não nos nossos valores. Assim. pois. Pensemos mais uma vez nos esquimós. Mas há igualmente uma segunda razão importante. Os outros membros da família ajudam como podem. Por isso. são igualmente importantes. As crianças têm de ser transportadas ao colo. Além disso. têm de viajar em busca de comida.são eles os caçadores. Os bebés do sexo feminino são mais prontamente rejeitados porque. onde a comida escasseia. Parece. as mães esquimó alimentam os seus filhos durante um período de tempo muito mais longo do que as mães da nossa cultura. haver uma grande diferença nos valores das nossas duas culturas. a população feminina adulta ultrapassaria em muito a . Uma vez que a taxa de mortalidade dos caçadores é elevada.impossibilitados de se dedicarem à agricultura. pois. Como em muitas outras culturas "primitivas". há limites para o número de filhos que uma mãe pode manter.e 44 torna-se obviamente importante manter um número suficiente de fornecedores de comida. Não aprovamos tais coisas. e uma mãe só pode levar um bebé na sua parca enquanto viaja ou realiza as tarefas diárias." Uma família pode querer alimentar os filhos mas não poder fazê-lo. só porque os costumes diferem. na nossa sociedade um pai que tivesse morto uma criança seria preso. Um postulado fundamental do pensamento esquimó é: "A vida é dura e a margem de manobra pequena. Mas eles vivem num meio extremamente duro. por vezes mais. o número de homens adultos que morrem prematuramente ultrapassa em muito o das mulheres que morrem cedo. Mas imaginemos que perguntamos a razão pela qual os esquimós fazem isso. Uma família esquimó protegerá sempre os seus filhos se as condições o permitirem. que frequentemente matam crianças perfeitamente normais. primeiro. de acordo com a divisão tradicional do trabalho . bem como as circunstâncias físicas nas quais têm de viver. Não podemos. A criança é alimentada ao peito da mãe durante quatro anos. Pode. A explicação não é eles terem menos afecto pelos seus filhos ou menos respeito pela vida humana.O que se pretende mostrar é que os costumes de uma sociedade são o produto de muitos factores interligados. Os valores sociais são apenas um deles. haver menos desacordo quanto aos valores do que parece. Outras questões. portanto. especialmente raparigas. 42 43 como as crenças religiosas e factuais dos seus membros. se os bebés masculinos e femininos sobrevivessem em números iguais. os esquimós são um povo nómada . mesmo nas melhores épocas. concluir que há um desacordo quanto aos valores. nesta sociedade os homens são os principais fornecedores de comida . um autor concluiu que "se não fosse o infanticídio de crianças do sexo feminino [.) A comunicação seria então extremamente difícil. de 45 facto. Os valores dos esquimós não são de modo algum diferentes dos nossos. Os bebés são indefesos e não podem sobreviver se não forem acarinhados durante anos. 2. E uma vez que as sociedades complexas não podem existir sem comunicação entre os seus membros. Mas não posso presumir que a pessoa está a dizer a verdade. (Pergunto que horas são e alguém responde "quatro horas". Um raciocínio semelhante mostra que há outros valores que têm de ser mais ou menos universais. se não mesmo impossível. matar a criança não é a primeira opção. É. o grupo extinguir-se-ia. apesar das aparências. pelo contrário. não faz qualquer sentido terlhe sequer perguntado. Apesar disso.. Nessa sociedade não haveria qualquer motivo para dar atenção ao que os outros dizem. A adopção é comum. se um grupo não cuidasse das suas crianças.. Quando uma pessoa falasse com outra. Isto significa que qualquer grupo cultural que continue a existir tem de cuidar das suas crianças. Portanto. . nos grupos de esquimós. Imagine-se o que seria de uma sociedade que não valorizasse a verdade. entre os esquimós. os casais sem filhos ficam especialmente felizes por encarregar-se dos "excedentes" dos casais mais férteis. As crianças que não são acarinhadas têm de ser a excepção e não a regra. todos os grupos culturais têm de proteger as suas crianças. De facto. Acontece apenas que a vida os obriga a escolhas que nós não temos de fazer. a vida em sociedade tornar-se-ia impossível. Daqui se conclui que em qualquer sociedade complexa tem de haver uma presunção em favor da boa-fé. pois. Portanto.6 Como todas as culturas têm alguns valores em comum Não deveria surpreender que. não poderia partir-se do princípio de que estaria a dizer a verdade. Examinando as estatísticas. Passado algum tempo. podem fazer as diferenças entre culturas parecer maiores do que são.população masculina. elas não sobreviveriam e ninguém tomaria o lugar dos membros mais velhos do grupo. Como poderia ser de outra maneira? Como poderia sobreviver um grupo que não valorizasse as suas crianças? É fácil de ver que. Não tenho. um reconhecimento de que por vezes são necessárias medidas drásticas para assegurar a sobrevivência da família. poderia facilmente ter dito a primeira coisa que lhe tivesse passado pela cabeça. Matar é apenas o último recurso. aproximadamente uma vez e meia mais mulheres do que homens produtores de comida". Sublinho isto para mostrar que os dados em bruto dos antropólogos podem induzir em erro. Pode.] haveria. qualquer razão para dar atenção à sua resposta. pois poderia facilmente estar a mentir. os esquimós protejam as suas crianças. o infanticídio não é sinal de uma atitude fundamentalmente diferente perante as crianças. Nem todas as regras morais podem variar de sociedade para sociedade. pois essas regras são necessárias para a sociedade poder judaica. há algumas regras morais que todas as sociedades têm em comum. estas serão excepções a uma regra que está em vigor na sociedade. No entanto. As pessoas poderiam. encontramos estas regras instituídas em todas as culturas viáveis. embora tenha poucas semelhanças com essa prática 47 algo de mal nisso. . como "mutilação genital feminina". A proibição do assassínio é. uma característica de todas as sociedades.afinal de contas. Mas repare-se no significado disto: estariam a formar sociedades mais pequenas nas quais seria de facto aceite uma regra contra o homicídio. pequena nação do oeste africano. Numa tal "sociedade" ninguém poderia sentir-se seguro. 2. unir-se em grupos mais pequenos com outras em que pudessem confiar. De acordo com a Organização Mundial de Saúde. Há aqui urna conclusão teórica geral.7 A avaliação de práticas culturais indesejáveis Em 1966. A excisão é uma intervenção desfiguradora por vezes chamada "circuncisão feminina". Logo. de facto. a prática está disseminada por vinte e seis países africanos. para escapar ao que ali as pessoas chamam "excisão". e ninguém pensava haver 46 existir. As regras contra a mentira e o homicídio são dois exemplos disso. A sociedade a uma escala mais lata ruiria. a saber. Eis mais um exemplo do mesmo género: Poderia existir uma sociedade na qual não houvesse a proibição do homicídio? Como seria? Suponhamos que as pessoas eram livres de matar outras pessoas. É mais frequentemente referida. Todos teriam de estar permanentemente em guarda. pois. naturalmente. As culturas podem diferir relativamente aos que encaram como excepções legítimas às regras. a associação com outros seria perigosa. mas esta discordância existe contra um acordo de fundo nas questões fundamentais. pois. o Togo. uma rapariga de dezassete anos chamada Fauziya Kassindja chegou ao Aeroporto Internacional de Newark e pediu asilo.naturalmente. Tinha fugido do seu país natal. é um erro sobrestimar as diferenças entre culturas. Aqueles que quisessem sobreviver teriam de evitar outras pessoas tanto quanto possível. Isto acabaria por levar os indivíduos a tentarem tornar-se tão auto-suficientes quanto possível . pelo menos nos jornais de países ocidentais. sendo em cada ano objecto de "excisão" dois milhões de raparigas. haver excepções a esta regra: pode haver situações nas quais se considere permissível mentir. o motivo pelo qual se tornou uma prática social tão alargada? Não é fácil responder. ele morreu subitamente. É dolorosa e tem como resultado a perda permanente do prazer sexual. As mulheres incapazes de prazer sexual são supostamente menos propensas à promiscuidade. Os efeitos de longo prazo incluem infecção crónica. haverá menos . afirmaram. Entretanto. tendo ficado sem recursos. aduzem-se em sua defesa uma série de razões. afinal de contas. pois. tétano e septicemia. Apesar disso. Vamos supor que estamos inclinados a afirmar que a excisão é má. a mulher morre. A mãe. mas não sem antes se tornar o centro de uma controvérsia sobre a forma como devemos encarar as práticas culturais de outros povos. opunha-se à excisão. a curto prazo. será isto verdade? Haverá um padrão culturalmente neutro de certo e errado? Há naturalmente muito que dizer contra a excisão. realizado em pequenas aldeias tradicionais. isso é tudo quanto podemos fazer. e as raparigas anseiam submeter-se a ele porque isso assinala a sua aceitação no mundo adulto. A excisão é praticada por grupos de várias religiões. Por vezes. Ao contrário do infanticídio entre os esquimós. Fauziya foi detida durante dois anos enquanto as autoridades decidiam o que fazer. A excisão não tem benefícios sociais aparentes. incluem hemorragias. que ajustou para ela um casamento e se preparava para a submeter à excisão. nenhuma das quais a recomenda. cicatrizes que dificultam a marcha e dores contínuas. na América. As suas primeiras quatro filhas casaram sem ser mutiladas. entre elas o islamismo e o cristianismo. Fauziya Kassindja era a mais jovem de cinco filhas de uma família muçulmana devota.Nalguns casos a excisão é parte de um elaborado ritual tribal. Uma série de artigos no New York Times favoreceu a ideia de que a excisão é uma prática bárbara merecedora de condenação. Por fim foi-lhe concedido asilo. Os seus efeitos. não é necessária à sobrevivência do grupo. Outros observadores mostraram-se relutantes em ser tão peremptórios . Qual é. é provável a nossa cultura parecer igualmente estranha para eles. Nem é uma questão religiosa. a prática é realizada por famílias citadinas em jovens que lhe resistem desesperadamente. Mas. Fauziya ficou então sob tutela do avô. assim.vive e deixa viver. Fauziya ficou aterrorizada e a mãe e a irmã mais velha ajudaram-na a fugir. e tinha a capacidade de se opor à tradição por causa da sua riqueza. O seu pai. Noutros casos. Mas quando Fauziya tinha dezasseis anos. teve de pedir desculpas formais e submeter-se à autoridade do patriarca que ofendeu. Estaríamos nós apenas a impor os padrões da nossa própria cultura? Se o relativismo cultural estiver 48 correcto. pois não há um padrão culturalmente neutro a que possamos apelar. proprietário de uma bem sucedida empresa de camionagem. Seria fácil. por outro lado. mesmo assim. Apesar de se sentirem pessoalmente horrorizadas com a excisão. abordar este raciocínio. podemos concluir que a prática em vigor é deficiente. Por que razão. Os europeus e os seus descendentes culturais da América têm uma história pouco honrosa de destruição de culturas nativas em nome do cristianismo e do iluminismo. para quem o sexo é apenas um dever.) Os homens não querem mulheres que não foram objecto de excisão por serem impuras e imaturas. pois. Primeiro. benéfica ou prejudicial? Na verdade. e a excisão em si. e talvez um pouco arrogante. E. em geral. podemos perguntar se há um conjunto alternativo de práticas sociais com melhores resultados na promoção do seu bem-estar. é uma prática realizada desde tempos imemoriais. apesar de tudo isto. têm menor probabilidade de ser infiéis aos maridos. em criticar outras culturas. É claro que as pessoas não irão. muitas pessoas ponderadas têm relutância em afirmar que está errada. o bem-estar dos seus membros é um valor inerente a todas as culturas viáveis.gravidezes indesejadas em mulheres solteiras. E um padrão único que pode ser invocado para ajuizar as práticas de qualquer cultura. perguntando até que ponto isto é verdade: será a excisão. Poderíamos. e não podemos alterar os costumes antigos. estarão mais atentas às necessidades dos maridos e filhos. Se assim for. Mas podemos fazer notar uma característica importante de toda esta linha de raciocínio: tenta justificar a excisão mostrando que é benéfica . este é um padrão que pode razoavelmente ser usado para pensar sobre qualquer tipo de prática social: podemos perguntar se a prática promove ou é um obstáculo ao bem- . há um nervosismo compreensível quanto a "interferir nos hábitos culturais das outras pessoas". algumas pessoas recusam fazer quaisquer juízos negativos sobre outras culturas. 49 estar das pessoas cujas vidas são por ela afectadas. Mas isto parece justamente o tipo de padrão moral independente que o relativismo cultural afirma não poder existir. Horrorizadas com estes factos. Pensa-se. em qualquer época. ridicularizar estes argumentos. porque. especialmente culturas semelhantes àquelas que foram prejudicadas 50 mulheres e respectivas famílias são alegadamente beneficiados quando as mulheres são objecto de excisão. Acresce que as esposas. e uma vez que não irão pensar em sexo. como as regras contra a mentira e o homicídio. E. no todo. acima de tudo. como corolário. (A falta de prazer sexual das mulheres é considerada irrelevante. que os maridos apreciam mais o sexo com mulheres que foram objecto de excisão. encarar este princípio como algo "trazido do exterior" para os julgar.homens. nomeadamente a nossa. pessoas prudentes podem ter relutância. pelo menos por três razões. no entanto. Não estão. que as suas 51 consequências o tornam à partida implausível. Acontece apenas que a excisão é uma das más. se não considerássemos algumas melhores do que outras. incluindo a nossa. Há duas lições que devemos aprender com a teoria. Devemos notar. do ponto de vista moral. As pessoas sentem também. na verdade. e ainda que a dimensão do desacordo moral é bem menor do que o relativismo cultural pressupõe. que há uma diferença entre a) considerar uma prática cultural deficiente. de forma bastante correcta. Por último. pois a não ser assim porque razão se tornaria tão influente? Penso. Por vezes poderá ser correcto "fazer qualquer coisa". a teoria presta um bom serviço. que devem ser tolerantes face a outras culturas. No entanto. de maneira correcta. não haveria nada para tolerar. sem dúvida. Ao recordar-nos isso. A teoria deve ter alguma coisa a seu favor. uma vez mais. trata-se de um erro: condenar uma prática em particular não é dizer que uma cultura é no seu todo desprezível ou inferior a qualquer outra cultura. Pode mesmo ter aspectos admiráveis. as pessoas podem sentir-se relutantes em ajuizar por que não querem mostrar desprezo pela sociedade criticada. . continua a ser uma ideia muito sedutora. podemos considerar que isto é verdade no que respeita à maioria das sociedades humanas são misturas de boas e más práticas. que há alguma coisa correcta no relativismo cultural. Muitas das nossas práticas (mas não todas) são particularidades exclusivas da nossa sociedade. ainda que acabemos por rejeitá-la. uma completa rejeição da teoria. uma virtude . Tudo isto constitui. na verdade. A tolerância é. Pelo contrário.uma pessoa tolerante está disposta a viver em cooperação pacífica com quem encara as coisas de forma diferente. mas outras não. e b) pensar que deveríamos anunciar o facto. O segundo caso é completamente diferente. e é fácil perder de vista esse facto. o relativismo cultural alerta-nos.8 O que se pode aprender com o relativismo cultural no passado. tentamos apenas ver o mundo com clareza. Primeiro. dirigir uma campanha. para os perigos de pressupor que todas as nossas preferências estão fundadas numa espécie de padrão racional absoluto. todas as religiões e todas as práticas sociais igualmente admiráveis.2. Na verdade. Afirmei no início que iríamos identificar tanto o que está certo como o que está errado no relativismo cultural. Mas nada na natureza da tolerância exige que consideremos todas as crenças. No primeiro caso. Mas até agora fiquei-me pelos seus erros: afirmei que repousa sobre um argumento inválido. Mas. e o leitor pode sentir que tudo isto é um pouco injusto. e quero agora passar a dizer o que é. aplicar pressão diplomática ou enviar o exército. enquanto noutras passa despercebida. quaisquer que sejam as circunstâncias.uma ideia chocante. É claro que podemos sentir uma repugnância visceral perante a ideia de comer carne humana. Heródoto acrescenta: Se se propusesse. segundo Heródoto. cada um de nós adquiriu algumas convicções fortes: aprendemos a aceitar alguns tipos de conduta e a rejeitar outros. Poderíamos fazer uma lista muito longa. Se isto é difícil de imaginar. uma questão de hábito na nossa sociedade. ao sublinhar que as nossas perspectivas morais podem reflectir preconceitos da nossa sociedade. Então alguém sugere que isto pode ser um mero preconceito. Podemos. se sentem atraídas por pessoas do mesmo sexo. convencido que está de que a mais não são do que convenções sociais. Mas depois engana-se. e podemos sentir-nos muito desconfortáveis junto de pessoas gay e encará-las como estranhas e "diferentes". sem o terem escolhido. um grupo repugnante. Talvez fosse esta a ideia dos calatinos. Devem as mulheres cobrir os seios? A exposição pública dos seios é escandalosa na nossa sociedade. pode ser difícil tomar isto a sério. Os calatinos eram. fornece um antídoto para este tipo de dogmatismo. "homens que comiam os seus pais" . Quando conta a história dos Gregos e Calatinos. Mas. A segunda lição relaciona-se com a necessidade de manter o espírito aberto. enterrar os mortos poderia ser encarado como um acto de rejeição. escolheria a sua. depois de reflectir maduramente. Numa tal maneira de pensar. Mas comer a carne dos mortos podia ser encarado como um sinal de respeito. não é correcta nem incorrecta .não há uma razão objectiva para considerar nenhum dos costumes melhor. Objectivamente falando. de alguma forma. O . Mesmo depois de ouvir os argumentos. No processo de crescimento. então talvez precisemos de alargar a nossa imaginação.As práticas funerárias são um caso exemplar. e depois? Esta repugnância pode ser apenas. ocasionalmente. fosse a quem fosse. Por exemplo. que escolhesse de entre todas as tradições culturais as melhores. que os homossexuais são apenas pessoas como as outras que. ver essas convicções postas à prova. podemos manter o sentimento inabalável de que os homossexuais são. por termos convicções tão fortes sobre o assunto. ao inferir do facto de algumas práticas serem assim que todas têm de ser assim. Há muitas outras matérias sobre as quais tendemos a pensar em termos de objectivamente certo ou errado e que 52 relativismo cultural começa com a preciosa observação de que muitas das nossas práticas são apenas isto. O relativismo cultural. pelo menos para nós. e queimar o cadáver como um sinal claro de desprezo. Podia ser tomado como um acto simbólico que declara: queremos que o espírito desta pessoa permaneça em nós. Mas. podem ter-nos ensinado que a homossexualidade é imoral. que a homossexualidade não tem nada de mal. produtos culturais. cada um. como dizem os relativistas. 54 . apesar de a teoria ter sérias insuficiências.tradição em que nasceu é de longe a melhor. quando ouvimos alguém sugerir que um aspecto do nosso código social não é realmente o melhor. Além disso. e damos por nós a resistir a esta sugestão. compreender a atracção do relativismo cultural. pois. que não devem ser tomados de forma ligeira. Mas podemos aceitar estes aspectos sem aceitar toda a teoria. manter este pensamento firmemente em vista é importante se quisermos evitar a arrogância e manter o espírito aberto. Isto são aspectos importantes. É uma teoria atraente porque se baseia na observação pertinente de que muitas das práticas e atitudes por nós consideradas tão naturais são na verdade apenas produtos culturais. 53 Perceber isto pode levar-nos a uma maior abertura de espírito. seja ela qual for. Assim.podem não ser mais do que o resultado do condicionamento cultural. podemos parar e recordar isto. Podemos compreender que os nossos sentimentos não são necessariamente percepções da verdade . Podemos. Podemos ficar então mais abertos à descoberta da verdade. a aumentar. e quando chegou o momento do desfile anual do Orgulho Gay todos os candidatos democratas e republicanos compareceram para desfilar.. Não obstante.1 A ideia de base do subjectivismo ético Em 2001 realizou-se uma eleição municipal em Nova Iorque. "noutras partes do país. Isto significa. gays e lésbicas "não escolhem a sua condição homossexual" e "devem ser aceites com respeito. [. compaixão e sensibilidade. é claro. director executivo do Empire State Pride Agenda. uma organização de defesa dos direitos dos homossexuais. Tratado da Natureza Humana (1740) 3. no entanto. as pessoas homossexuais devem ser castas. A perspectiva católica é mais elaborada. mas é objecto do sentimento e não da razão. que nasce em nós. perante essa acção.] Nunca conseguimos descobri-lo até voltarmos a reflexão para nós mesmos e descobrirmos um sentimento de reprovação. "os actos homossexuais são intrinsecamente doentios" e "não podem ser aprovados em circunstância alguma".. para ter vidas virtuosas.afirmou pensar que a homossexualidade deveria ser considerada aceitável. que quase outros tantos pensam de forma diferente. DAVID HUME. se não mesmo fatais". e em 2000 uma maioria 52% . Eis uma questão de facto. que. as posições aqui defendidas seriam extremamente impopulares . "Não há um único candidato que se possa descrever como mau nas questões que nos dizem respeito". Examinemo-la sob todas as perspectivas. Os chamados 'direitos dos homossexuais' não são de modo algum direitos. por exemplo. Acrescentou ainda 55 nas urnas. O reverendo Jerry Falwell falou em nome de muitos quando afirmou numa entrevista para a televisão: "A homossexualidade é imoral. Segundo o Catecismo da Igreja Católica. As pessoas de ambos os lados têm convicções fortes. O que pensam realmente as pessoas de outras partes do país? O instituto de sondagens Gallup Poli tem perguntado aos americanos desde 1982: "Pensa que a homossexualidade deveria ser considerada um estilo de vida alternativo aceitável?" Nesse ano. pressionado pelos conservadores religiosos fez da oposição aos direitos dos homossexuais uma parte do seu posicionamento a nível nacional. mas admite também que o sexo gay não é permissível. afirmou Matt Foreman. O número tem vindo. Qualquer sinal de discriminação injusta a seu respeito deve ser evitado". e vejamos se conseguimos encontrar esse facto ou realidade que chamamos vício." Falwell é baptista. Portanto. O Partido Republicano Nacional parece concordar.Capítulo 3 O subjectivismo em ética Imagine-se qualquer acção reconhecidamente viciosa: homicídio voluntário. 34% respondeu afirmativamente. porque a imoralidade não é correcta. mas não é um facto que uma coisa seja boa e outra má. O processo de revisão e crítica começará então de novo. quando alguém como Falwell afirma que a homossexualidade está errada. naturalmente. enquanto outras mantêm a f é e tentam salvar a teoria formulando ainda outra versão nova e "melhorada". as novas objecções podem levar algumas pessoas a abandonar a ideia. ou então que nada tem de mal. Outras. isso sim. O mesmo se aplica a qualquer outro juízo moral. mas. apenas uma ideia sobre a avaliação da homossexualidade. Durante algum tempo poderá parecer que se salvou a teoria. E um facto que algumas pessoas são homossexuais e outras heterossexuais. Está apenas. aprimorá-la. Mas podem então encontrar-se novos argumentos que lançam dúvidas sobre a nova versão da teoria. mas no que concerne à moral não há "factos". Começou como . Mas há uma terceira alternativa. no entanto. podem continuar a confiar na ideia de base e tentarão. Poderíamos dizer algo como isto: As pessoas têm opiniões diferentes. a afirmar algo sobre os seus sentimentos face a ela. e é tudo. De início a ideia será apresentada de uma forma crua e simples. é um facto que os nazis exterminaram milhões de pessoas inocentes. Para dar um exemplo diferente. Nessa altura. não é um facto que o que fizeram foi mau. Uma vez mais. 56 elas. dando-lhe uma formulação melhorada 57 Este é o pensamento de base por detrás do subjectivismo ético. algumas pessoas podem ficar tão impressionadas com as objecções que abandonam totalmente a ideia. Aplica-se a todas as questões morais. A teoria do subjectivismo ético desenvolveu-se justamente desta maneira. concluindo que não pode estar correcta. não está a afirmar um facto sobre a homossexualidade. O subjectivismo ético é a ideia segundo a qual as nossas opiniões morais se baseiam nos nossos sentimentos e nada mais.2 A evolução da teoria O desenvolvimento de uma teoria filosófica percorre frequentemente vários estádios. Mas a ideia é então submetida a uma análise crítica e descobre-se que tem defeitos. Apresentam-se argumentos contra ela. e muitas pessoas achá-la-ão atraente por uma razão ou outra. Quando dizemos que as suas acções foram más estamos apenas a dizer que temos sentimentos negativos em relação a que não seja vulnerável às objecções. As pessoas simplesmente sentem de forma diferente. 3. Nesta perspectiva. O subjectivismo ético não é.Que atitude devemos tomar? Poderíamos dizer que a homossexualidade é imoral. segundo o subjectivismo ético. o "objectivamente" certo ou errado é coisa que não existe. e ninguém está "certo". Por isso. por isso. O subjectivismo simples não dá conta da nossa falibilidade. Estamos por vezes errados nas nossas avaliações e quando o descobrimos podemos querer corrigir os nossos juízos.nas palavras de David Hume. a teoria evoluiu para algo muito mais sofisticado. Mas à medida que se apresentavam objecções à teoria. Enquanto estiver honestamente a representar os seus sentimentos não pode estar enganado. Falwell está simplesmente a afirmar que desaprova a homossexualidade. É claro que há a possibilidade de não estar a falar sinceramente . se supusermos que está a falar sinceramente . a ideia de que a moralidade é uma questão de sentimento e não de facto. porque o subjectivismo simples pressupõe que somos infalíveis. se o subjectivismo simples estivesse correcto. porque tem implicações contrárias ao que sabemos (ou pelo menos contrárias ao que pensamos saber) sobre a natureza da avaliação moral. e que os seus defensores tentavam responder-lhes.3 A primeira fase: o subjectivismo simples A versão mais simples da teoria. 3. que expõe a ideia principal mas não tenta aprimorá-la por aí além. que considera a homossexualidade imoral. Exprime a ideia básica do subjectivismo ético numa forma elementar e simples. isso seria impossível. é esta: Quando uma pessoa afirma que algo é moralmente bom ou mau isso significa que ele ou ela aprovam. Por outras palavras: X é moralmente aceitável X está correcto X é bom Deve-se fazer X Eu (o interlocutor) aprovo X E pela mesma ordem de ideias: X é moralmente inaceitável X está errado X é mau Não se deve fazer X Eu (o interlocutor) desaprovo X 58 Podemos chamar subjectivismo simples a esta versão da teoria. .é possível que ele não desaprove realmente a homossexualidade. Considere-se outra vez Falwell. Segundo o subjectivismo simples. e muitas pessoas acharam-na atraente. mas esteja simplesmente a responder às expectativas da sua audiência conservadora. segue-se então que o que ele diz é verdade. No entanto.uma ideia simples . Eis duas das mais proeminentes objecções. No entanto. Mas. e nada mais que isso. essa coisa. o subjectivismo simples está aberto a várias objecções.se supusermos que Falwell desaprova mesmo a homossexualidade -. ou desaprovam. Ninguém é infalível. o subjectivismo simples não pode estar correcto. quando Foreman afirma que a homossexualidade não é imoral está simplesmente a declarar a sua atitude . O segundo argumento contra o subjectivismo simples baseia-se na ideia de que esta teoria não pode explicar a existência de desacordo moral. Perante isto. Segundo o subjectivismo simples. No entanto.Mas isto contradiz o facto elementar de nenhum de nós ser infalível. Por vezes estamos errados. mostram que o subjectivismo simples é uma teoria falhada. cada um deveria admitir a verdade do que o outro está a dizer. não há desacordo entre eles. está apenas a dizer que ele. segundo o subjectivismo simples. O argumento pode ser resumido assim: Quando uma pessoa afirma "X é moralmente aceitável" e alguém diz "X é moralmente inaceitável". No entanto. pois Falwell e Foreman discordam realmente sobre a questão de saber se a homossexualidade é imoral ou não. Outros. Estes argumentos. Matt Foreman não pensa que a homossexualidade seja imoral. o subjectivismo simples não pode estar correcto. Perante tais argumentos. estão em desacordo. não podem sequer apresentar as suas posições de forma a debater o tema em conjunto. Desenvolvida principalmente pelo filósofo americano Charles L. Como poderia alguém discordar disso? Assim. mas. segundo o subjectivismo simples. a desaprova.está a dizer que ele. Falwell. Foreman. parece que 59 Há uma espécie de frustração eterna implícita no subjectivismo simples: Falwell e Foreman estão em profundo desacordo. parece evidente que algo não está certo aqui. no entanto. esforçaram-se por produzir uma versão melhorada da teoria que não fosse vulnerável a tais objecções. 3. apenas consegue mudar de assunto. Simultaneamente.4 A segunda fase: emotivismo A versão melhorada é uma teoria que se tornou conhecida como "emotivismo". Logo. quando Falwell afirma que a homossexualidade é imoral. Mas repare-se o que o subjectivismo simples sugere quanto a esta situação. Portanto. o . e outros semelhantes. Foreman pode tentar negar o que Falwell afirma. Não pode ser sustentada. pelo menos de uma forma tão rígida. O subjectivismo simples não dá conta do desacordo. alguns pensadores preferiram rejeitar o subjectivismo ético no seu todo. se o subjectivismo simples estivesse correcto não haveria desacordo entre eles. no entanto. Falwell discordaria disso? Não. não desaprova a homossexualidade. Falwell estaria de acordo que Foreman não desaprova a homossexualidade. 60 ele e Falwell discordam. Stevenson (1908-1979). Isto é uma afirmação de facto. É usada. Não estou a tentar alterar as crenças de alguém. levar alguém a fazer qualquer coisa." Em cada caso estamos a dizer algo que é verdadeiro ou falso." "Shakespeare é o autor de Hamlet. como um meio de influenciar o comportamento das pessoas. que não são nem afirmações de factos nem ordens: "Um viva por Abraham Lincoln!" "Ai de mim!" "Quem me dera que a gasolina não fosse tão cara!" "Que se dane o Hamlet." 61 Estes são tipos comuns de frases que entendemos com bastante facilidade. Segundo o emotivismo. Um dos seus usos principais é a afirmação de factos. está a comunicar o facto de ter uma atitude positiva em relação a Lincoln. nem mesmo um facto sobre as suas atitudes. e o propósito da elocução é. Se alguém diz "Não . É muito mais subtil e sofisticada do que o subjectivismo simples.encontro às quatro horas. para exprimir as atitudes do interlocutor. recorde-se. Está a exprimir uma atitude. não é normalmente usada para transmitir informação. Com estes reparos em vista." "Tenho um . São usadas. Considere-se elocuções como as seguintes. O seu propósito não é transmitir informação. dizer: "Abraham Lincoln foi presidente dos Estados Unidos.emotivismo tornou-se uma das teorias éticas mais influentes do século xx. se alguém gritar: "Um viva por Lincoln!". normalmente. O seu propósito é diferente. a linguagem moral não é uma linguagem de afirmação de factos. é uma ordem.970 cêntimos por litro. isso sim. ou pelo menos a afirmação do que pensamos serem factos. Estas frases não são. Mas nenhuma delas é "verdadeira" ou "falsa". Suponha-se que digo: "Fecha a porta!" Esta elocução não é verdadeira nem falsa. estou a tentar influenciar-lhe a conduta. o que é algo diferente. o seu propósito é. antes. primeiro. Podemos. voltemos agora a atenção para a linguagem moral. há outros propósitos para os quais a linguagem pode ser usada. No entanto. não está a declarar qualquer tipo de facto. usadas para afirmar factos. O emotivismo começa com a observação de que a linguagem é usada de várias maneiras. assim. (Não faz sentido dizer : "É verdade que um viva por Abraham Lincoln" ou "É falso que ai de mim"). mas não a relatar que a tem. Se alguém disser "Gosto de Abraham Lincoln". É preciso notar claramente a diferença entre relatar uma atitude e exprimir essa mesma atitude. Por outro lado. que é verdadeira ou falsa." "A gasolina custa 0. comunicar informação ao ouvinte. Não é uma afirmação de tipo algum. O segundo argumento tinha que ver com o desacordo moral. mesmo um facto sobre o próprio interlocutor. O subjectivismo simples interpretava as afirmações éticas como afirmações de facto de um tipo especial . na realidade. por outro lado. nega que esta elocução declare qualquer facto. portanto. Mas do ponto de vista teórico trata-se. isto significa o mesmo que "Eu (Falwell) desaprovo a homossexualidade" 62 nos. então somos todos infalíveis no que respeita aos juízos morais. O primeiro argumento era que se o subjectivismo simples está correcto. quando Falwell afirma "A homossexualidade é imoral". mais parecida a uma ordem do que a uma afirmação de facto. Embora esses argumentos fossem muito embaraçosos para o subjectivismo simples não afectam em nada o emotivismo.que horror!". e o subjectivismo simples atribui aos juízos morais um significado que será sempre verdadeiro desde que o interlocutor seja sincero. 1. de uma diferença importante. O emotivismo. pois. Este argumento só é eficaz porque o subjectivismo simples interpreta os juízos morais como afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. O emotivismo. por certo. como relatos da atitude do interlocutor.nomeadamente. infalíveis. as pessoas acabam por ser infalíveis. é como se a pessoa tivesse dito: "Não faças isso!" Em segundo lugar. nessa teoria. Afirmar: "Lincoln era um homem bom". e por isso o mesmo argumento não funciona contra ele. mas é como dizer "Um viva por Lincoln!" A diferença entre o emotivismo e o subjectivismo simples deve agora ser óbvia. então quando uma pessoa afirma "X é moralmente aceitável" e 63 . essa pessoa está a tentar impedir outra de o fazer. a linguagem moral é usada para exprimir (e não para relatar) a atitude de alguém. por seu lado. Se o subjectivismo simples estiver correcto. "Infalível" significa que os juízos de alguém são sempre verdadeiros. ou ainda "Quem me dera não existisse homossexualidade ". mas nós não somos. 2. Segundo o subjectivismo simples. ou "Não se envolva em actos homossexuais!". A elocução é. o subjectivismo simples não pode estar correcto.uma afirmação de facto sobre a atitude de Falwell. não é o mesmo que afirmar "Eu gosto de Lincoln". É por isso que. não interpreta os juízos morais como afirmações verdadeiras ou falsas. Em vez disso. o emotivismo interpreta a elocução de Falwell como equivalente a algo como "A homossexualidade . Uma vez que as ordens e as expressões de atitudes não são verdadeiras nem falsas as pessoas não podem ser "infalíveis" em relação a elas.deves fazer isso". Isto pode parecer uma distinção picuinhas e trivial com a qual não vale a pena preocuparmo- . Uma forma de verificar isso é considerar novamente os argumentos contra o subjectivismo simples. o emotivismo teve também as suas dificuldades. como veremos de seguida. O emotivismo era melhor porque se libertou da pressuposição problemática e a substituiu por uma perspectiva mais sofisticada do funcionamento da linguagem moral. as pessoas que dizem estas coisas estão realmente em desacordo. não podendo ambas realizar-se. Mas. e outra pensa que houve conspiração. No segundo. Stevenson chama desacordo de atitude ao último tipo de desacordo.5 Existirão factos morais? Um juízo moral . Meteu-se em sarilhos porque presumiu que os juízos morais são declarações sobre atitudes. Mas mesmo assim não estão de acordo nas suas atitudes. têm esta forma: são desacordos de atitude.ou qualquer outro tipo de juízo de valor.) No primeiro tipo de desacordo. O subjectivismo simples era uma tentativa de captar a ideia de base do subjectivismo ético e exprimi-la de uma forma aceitável. Segundo: Uma pessoa defende legislação para controlo de armas de fogo e outra opõe-se a isso. e que a outra é a favor. Isto é um desacordo sobre os factos . Estão. Duas pessoas podem concordar em todos os juízos que fazem sobre atitudes: concordam que uma se opõe ao controlo de armas. acreditamos em coisas diferentes. 3. Um dos seus principais problemas era não poder dar conta do lugar da razão na ética.tem de ser apoiado em boas . queremos coisas diferentes.uma quer que aconteça algo que a outra não quer. O subjectivismo simples não podia explicar o 64 desacordo moral porque este desaparecia. e por isso o subjectivismo simples não pode estar correcto. afirma Stevenson. Neste caso não são as crenças das pessoas que estão em conflito mas sim os seus desejos .cada uma está a fazer uma afirmação sobre a sua atitude. Compare-se estes dois tipos de desacordo: Primeiro: Uma pessoa pensa que Lee Harvey Oswald agiu sozinho no assassinato de John Kennedy.outra pessoa afirma "X é moralmente inaceitável" não estão realmente a discordar. a falar de coisas inteiramente diferentes . Mas. O emotivismo sublinha que há mais de uma maneira pela qual as pessoas podem discordar. (Ambas podem estar de acordo sobre todos os factos que rodeiam a controvérsia sobre o controlo de armas de fogo e mesmo assim tomar posições diferentes quanto ao que querem ver realizado. não podendo ambas ser verdadeiras. e distingue-o do desacordo sobre atitudes. uma vez que interpretava os juízos morais como afirmações sobre atitudes.uma pessoa pensa ser verdadeiro algo que outra pensa ser falso. na verdade. Os desacordos morais. com a qual a outra poderá prontamente concordar. prossegue o argumento. 65 estou a tentar convencer alguém de que Goldbloom é um homem mau (estou a tentar influenciar a atitude dessa pessoa face a ele) e essa pessoa resiste. digo "O Goldbloom. o facto tem de ser relevante para o juízo. e concorda que Goldbloom é um patife. independentemente das associações psicológicas no espírito de quem quer que seja. Isso muda tudo. para o emotivismo. a atitude da pessoa muda. e a influência psicológica não traz necessariamente consigo relevância. Não pode ser verdade que qualquer facto possa contar como razão a favor de qualquer juízo. A grande está relacionada com a importância da razão na ética. com ela. Mas os juízos morais requerem o apoio de razões. Poderia então parecer que. meramente arbitrários. Mas repare-se no que isto significa. pode-se rejeitar esse conselho por ser infundado. parece estar errada e. De facto. o emotivismo. Hume sublinhava que se examinarmos as acções malévolas "homicídio voluntário. portanto. que influenciem as atitudes e comportamentos da forma desejada. ser capaz de dar conta das relações entre os juízos morais e as razões que os sustentam. os juízos morais são diferentes de meras expressões de preferência pessoal." Era óbvio que algo tinha corrido mal. Primeiro de tudo.não encontramos "matéria de facto" que corresponda à maldade. não necessita ter uma razão para isso. o facto de Goldbloom ser judeu é. Na sua obra clássica Ethics and Language (1944). se não houver uma resposta satisfatória. Se alguém diz "eu gosto de café". é judeu". uma razão a favor do juízo de que é um homem mau. A pequena é que uma determinada teoria. por exemplo" . pode-se perguntar por que razão seria errada e.) Há uma lição pequena e outra grande a retirar daqui.é basicamente um meio verbal de tentar influenciar as atitudes e conduta de uma pessoa. Foi justamente neste aspecto que o emotivismo fracassou. Se alguém disser que uma determinada acção seria errada. na ausência dessas razões. sendo. Qualquer teoria adequada da natureza da avaliação moral deveria.razões. Quais eram os pressupostos do emotivismo quanto a razões? Recorde-se que para o emotivismo um juízo moral é como uma ordem . Sabendo que essa pessoa é um fanático. Neste aspecto. Excluindo as A concepção das razões que naturalmente acompanha esta ideia de base é que as razões são quaisquer considerações que tenham o efeito desejado. Stevenson defende justamente esta perspectiva. toda a concepção do subjectivismo ético fica em causa. pelo menos nalguns contextos. poderá estar a declarar o seu gosto pessoal e nada mais. Suponha-se que . afirma: "Qualquer afirmação sobre qualquer facto que qualquer interlocutor considere susceptível de alterar atitudes pode ser aduzida como uma razão a favor ou contra um juízo ético. como sabe. (O facto de alguém ser judeu não é relevante no momento de avaliar a sua maldade. Há factos morais da mesma maneira que há factos sobre estrelas e planetas. As pessoas não têm apenas sentimentos. Isto explica igualmente a nossa falibilidade: podemos enganar-nos sobre o que é bom ou mau porque podemos estar enganados sobre o que a razão recomenda. porque razão se sentem algumas pessoas atraídas por ele? Uma das razões tem que ver com o facto de a ciência fornecer o nosso paradigma de objectividade. Podemos provar que o mundo é redondo. Tais verdades são objectivas no sentido em que são verdadeiras independentemente do que possamos querer ou pensar. isto é. um juízo moral é verdadeiro se for sustentado por razões melhores que os juízos alternativos. e isso faz uma grande diferença. qual seria o aspecto de um "valor"?) Um erro fundamental no qual incorrem muitas pessoas quando pensam sobre este assunto é partir do princípio de que há apenas duas possibilidades: 1. Mas porque razão deveria a observação de Hume surpreender-nos? Os valores não são o tipo de coisas que possam existir como existem as estrelas e os planetas. Assim. devemos atentar nas razões. (Concebido desta maneira. têm também razão.6 Haverá provas em ética? 2. Esta tomada de consciência tem frequentemente sido entendida como motivo de desespero. a inexistência de provas em ética parece uma grande deficiência. Uma verdade Se o subjectivismo ético não é verdadeiro. Os nossos valores não são mais que a expressão dos nossos sentimentos subjectivos. o universo não contém tais factos. Pode pois ser que 3. Por exemplo. à ética parecem faltar as características que tornam a ciência tão irresistível. Não podemos tornar algo bom ou mau pelo simples desejo de que seja assim. Isto é um erro porque descura uma terceira possibilidade crucial. se quisermos entender a natureza da ética. que não existe o maior número primo e que os dinossauros viveram antes dos seres humanos. porque não podemos simplesmente querer que o peso da razão esteja a favor ou contra algo. As verdades morais são verdades da razão. porque as pessoas 66 presumem que isto deve significar que os valores não têm estatuto "objectivo". e quando comparamos a ética à ciência. Mas poderemos provar que o aborto é certo ou . alheia às nossas opiniões e desejos. A razão diz o que diz. 67 3.nossas atitudes. ou em ética é uma conclusão apoiada por razões: a resposta correcta a uma questão moral é simplesmente a resposta que tem do seu lado o peso da razão. coloca anúncios publicitários enganadores em qualquer jornal que aceite publicá-los. Suponha-se que examinamos um assunto muito mais simples que o aborto. as coisas podem correr mal de diversas maneiras. se examinarmos esta ideia mais de perto. manipula as pessoas. que é muito inexperiente. Assim sendo. aproveita-se de pessoas sem recursos pressionando-as a pagar preços exorbitantes por automóveis que sabe terem problemas. o teste era tão longo que nem os melhores alunos podiam terminálo no tempo permitido (e foi cotado partindo do princípio de que deveria ser feito até ao fim). primeiro. e assim por diante. O teste incluía ainda perguntas sobre alguns assuntos que não tinham sido tratados nem nas aulas teóricas nem nas práticas. Tem o hábito de mentir. Uma determinada vendedora de automóveis é desonesta. e assim por diante. Na verdade. Quando se confia em alguém. revela-se dúbia. Trata-se. No entanto. Esconde os defeitos dos automóveis. Suponha-se que tudo isto é verdade. O Dr. E suponha-se ainda que o professor. quando lhe são pedidas explicações. Um aluno considera injusto um determinado teste aplicado por um professor. porque prejudica as pessoas. podemos prosseguir e explicar por que motivo mentir é mau. Segundo. O processo de apresentar razões pode ainda ser levado um passo mais adiante. não tem argumentos para se defender. engana-as quando pensa poder fazê-lo sem ser descoberto. recusa ouvir os conselhos de outros médicos. o professor. mentir é mau por ser uma violação da confiança. e assim por diante. Confiar noutra pessoa significa ficarmos vulneráveis e desprotegidos. Qualquer pessoa que já tenha debatido um tema como o aborto sabe como pode ser frustrante tentar "provar" que o seu ponto de vista é correcto.errado? A ideia geral de que os juízos morais não se podem provar é apelativa. Baseia os seus diagnósticos em avaliações superficiais. Se uma das nossas razões para afirmar que Jones é um homem mau é ele mentir habitualmente.a justiça é um valor moral essencial. de um juízo moral . claramente. Smith ê irresponsável. parece confuso com toda 68 a situação e não parece ter uma ideia clara do que estava a fazer. bebe antes de executar cirurgias delicadas. Mentir é mau. é cruel para os outros. não terá o aluno provado que o teste foi injusto? Que mais poderíamos desejar a título de prova? É fácil imaginar outros exemplos para estabelecer a mesma coisa: Jones é um homem mau. Se alguém dá uma falsa informação a outra pessoa e essa pessoa confiar nela. Este juízo pode ser provado? O estudante poderia referir que o teste abrangia em pormenor assuntos sem importância. ignorando outros que o professor tinha considerado importantes. Além disso. acredita-se simplesmente no que essa pessoa . diz. sem tomar precauções. e ainda mostrar que nada de semelhante pode ser feito pelo lado contrário. e podemos oferecer explicações do porquê de essas razões terem importância. podemos apoiar os nossos juízos em boas razões. é fácil misturar duas coisas que são na realidade muito diferentes: 1. No entanto. a impressão de que os juízos morais são "insusceptíveis de prova" é extraordinariamente persistente. aproveitase da nossa confiança. Estão a pensar em observações e experiências científicas. Portanto. A questão do aborto. Se podemos fazer tudo isto. Por fim. que os juízos éticos não podem ser mais que "meras opiniões". De modo semelhante. analisar argumentos.se não pudéssemos partir do princípio de que as outras pessoas dirão a verdade. é muito complicada e difícil. É por isso que ser enganado constitui uma ofensa tão íntima e pessoal. a comunicação 69 observações e experiências similares em ética. perante tudo isto. Primeiro. 70 tornar-se-ia impossível e. Se pensarmos apenas em questões como esta. . Provar a correcção de uma ideia. e outras coisas que tais. estabelecer e justificar princípios. Mas em ética o pensamento racional consiste em fornecer razões. Persuadir alguém a aceitar as nossas provas. a sociedade seria impossível. Mas poderia dizerse o mesmo das ciências. concluem que não há provas. quando pensamos em "provar a correcção das nossas opiniões éticas". 2. Por que motivo acreditam as pessoas nisto? Podem mencionar-se três pontos. que mais "provas" poderia alguém desejar? É absurdo afirmar. quando se exige provas as pessoas têm muitas vezes em mente um padrão inadequado. torna-se fácil acreditar que as "provas" em ética são impossíveis. se nos concentrássemos apenas nelas poderíamos concluir que não há provas em física. em ética há muitos assuntos mais simples sobre os quais todas as pessoas razoáveis estão de acordo. se a comunicação fosse impossível. há muitos assuntos mais simples sobre os quais todos os físicos competentes estão de acordo. Segundo. a regra exigindo que não se minta é necessária para a sociedade poder existir . é claro. O facto de o raciocínio ético ser diferente do raciocínio científico não o torna deficiente. tendemos a pensar automaticamente nas questões mais difíceis. Mas. Há matérias complicadas sobre as quais os físicos não conseguem chegar a acordo. e quando essa pessoa mente. e se não há Por fim. por exemplo. as pessoas não escolhem a sua orientação sexual. Assim. com tudo o que isso envolve. inatingível. não há qualquer diferença. Se pudesse demonstrarse que gays e lésbicas representam um tipo qualquer de ameaça para o resto da sociedade.não é difícil perceber porquê . Na verdade. Afinal de contas. sendo. entre homossexuais e heterossexuais de índole moral ou na participação na sociedade. no entanto. Além da natureza das suas relações sexuais. "contrário à natureza" pode ser tomado como uma noção estatística. as pessoas que partilham a perspectiva de Falwell têm defendido com frequência esta ideia. Em ética é de esperar que as pessoas por vezes recusem dar ouvidos à razão. 3. isso seria um poderoso argumento a favor do lado contrário. A . centrar-nos apenas no sexo. Mas isso não significa que tenha de estar alguma coisa errada com o argumento ou que a "prova" seja. A ideia de que os homossexuais são de alguma forma perniciosos. pois. Pode apenas significar que alguém está a ser teimoso. o que descobrimos? O facto mais pertinente é que os homossexuais seguem o único tipo de vida que lhes dá oportunidade de ser felizes. afirmar que as pessoas não deveriam exprimir a sua homossexualidade é. O que significa exactamente? Existem pelo menos três significados possíveis. condená-las a uma vida de infelicidade.Podemos ter um argumento exemplar que alguém recusa aceitar. essas ideias têm sempre revelado não ter base factual. à afirmação habitual de que é "contrária à natureza". Neste sentido. Mas.e poucas pessoas são capazes de conceber uma vida feliz sem a satisfação das suas necessidades sexuais. quando examinadas de forma desapaixonada. Um vida boa. a ética pode exigir a realização de coisas que não queremos fazer. Primeiro. é difícil saber o que fazer dele. ou à afirmação frequentemente avançada por conservadores religiosos de que é uma ameaça dos "valores da família". de alguma forma. Além disso. Mais de um escritor gay afirmou já que a homossexualidade não se centra em saber com quem se tem sexo. Õ processo contra a homossexualidade reduz-se. pode significar viver com alguém que se ama. Quanto ao primeiro argumento. Não devemos. uma qualidade humana não é natural se não é partilhada pela maior parte das pessoas. Se atendermos às razões relevantes. para gays e lésbicas. porque a noção de "contrário à natureza" é muito vaga. assim. com frequência. mas sim em saber quem se ama. Quando isto acontece não deveria surpreender-nos. revela-se um mito muito semelhante à ideia de que os negros são preguiçosos ou os judeus avarentos. O sexo é um impulso particularmente forte . assim como para qualquer outra pessoa.7 A questão da homossexualidade Para concluir podemos voltar ao debate sobre a homossexualidade. muito previsível que tentemos evitar ouvir as suas exigências. tanto homossexuais como heterossexuais descobrem ser o que são sem 71 terem tido qualquer voto na matéria. é irresistível para 73 cão é bombear sangue. se o sexo homossexual fosse condenado por esta razão. mas o mesmo poderia dizer-se de ser canhoto. Isto não constitui. Este tipo de observação não fornece. Talvez signifique algo como "contrário àquilo que uma pessoa deveria ser". e muitas pessoas. Estas práticas seriam tão "contrárias à natureza" (e. a finalidade dos nossos órgãos genitais é a procriação: o sexo serve para fazer meninos. Terceiro. A "finalidade" dos olhos é ver. porque toda esta linha de raciocínio é incorrecta. errado usar os olhos para namoriscar ou fazer um sinal? Da mesma maneira. No entanto. dizer que algo é errado porque é contrário à natureza seria fazer uma afirmação frívola. A ideia de que a homossexualidade é contrária à natureza. portanto. As várias partes do nosso corpo parecem servir finalidades particulares. Mas se é isso que "contrário à natureza" significa. Baseia-se no pressuposto de que é errado usar partes do nosso corpo para algo mais do que as suas finalidades naturais. será. tudo indica que não é um argumento sólido. claramente. e a finalidade do cora72 isto é certamente falso. o significado de "contrário à natureza" poderia ser ligado à ideia da finalidade de uma coisa. Poderia então defender-se que o sexo homossexual é contrário à natureza porque é uma actividade sexual separada da sua finalidade natural. a "finalidade" dos dedos pode ser agarrar e mexer. naturalmente. qualquer razão para condenar coisa alguma. Mas não há qualquer razão para aceitar estas conclusões. poderia ser entendida simplesmente como termo de avaliação. logo esta versão do argumento falha. o sexo oral e até mesmo o sexo praticado por mulheres após a menopausa. Pelo contrário. De modo idêntico. tão más) como o sexo homossexual. Segundo. um motivo para a considerar má. No entanto. A finalidade dos olhos é ver. então. Se não pudermos encontrar uma explicação melhor para "contrário à natureza" toda esta linha de raciocínio terá de ser rejeitada. A ideia de que é errado usar as coisas para outras finalidades que não as "naturais" não pode ser defendida convenientemente. e de que tem algo de errado. Seria como dizer que isto ou aquilo é errado porque é errado. será por isso errado estalar os dedos para acompanhar a música? Seria fácil dar outros exemplos. as qualidades raras são frequentemente boas. Isto parece exprimir o que muitas pessoas pensam quando contestam a homossexualidade por ser contrária à natureza.homossexualidade seria contrária à natureza neste sentido. uma vez que a expressão contrário à natureza soa a algo sinistro. um semnúmero de outras práticas sexuais seria igualmente condenado: a masturbação. presumivelmente. . e explicam como cada passagem relevante (ao que parece existem nove) deve ser entendida. a menos que estejamos igualmente dispostos a concluir que as outras instruções são exigências morais. igualmente chamada uma abominação (18:14. alguém que tentasse viver segundo todas estas regras no século xxi ficaria maluco. Há outro argumento. para o direito à adopção de crianças. assim como a sua condenação do divórcio. e outras mais. 74 os que o fizeram. especificamente religioso. mas há dois problemas em confiar no texto literal para orientação. 26). por acaso. mas. naturalmente. Há um número surpreendente de regras sobre as filhas de sacerdotes. de que a homossexualidade é contrária aos "valores da família"? Falwell. inclusivamente a anotação de que se a filha de um sacerdote "se prostituir" deverá ser queimada viva (21:9). a Bíblia não é assim tão severa para a homossexualidade. requisitos detalhados sobre sacrifícios pelo fogo e procedimentos complexos para lidar com mulheres menstruadas. Esta última circunstância é. O Levítico proíbe a ingestão de gorduras (7:23). Os activistas homossexuais acham irónico que os proponentes dos valores da família queiram negar-lhes precisamente esses direitos. e quanto à afirmação." Alguns comentadores afirmaram que. O que podemos inferir daí? Os livros sagrados ocupam. Poderíamos. é uma abominação. Diz também que a barba deve ter uma forma quadrada (19:27) e que devemos comprar escravos em Estados vizinhos (25:44). Poucas pessoas terão realmente lido o Levítico. O problema prático é que os textos sagrados. que a homossexualidade é condenada na Bíblia. No Levítico 18:22 lê-se: "Não podes deitar-te com homem como com mulher. é claro. a constituição de famílias . Mas como se opõe ao certo a homossexualidade aos valores familiares? A luta pelos direitos dos homossexuais acarreta uma série de propostas destinadas a facilitar a homossexuais e lésbicas. do aborto. a saber. da pornografia e do adultério. especialmente os mais antigos. Mas suponhamos que a Bíblia ensina realmente que a homossexualidade é uma abominação. mas isto basta para ilustrar a ideia. entre outros. dão-nos muito mais do que pedimos. fornece instruções pormenorizadas para tratar a lepra.Mas. conceder que as regras . Um dos problemas é prático e o outro é teórico.há reivindicações para o reconhecimento social de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. proíbe uma mulher de ir à missa até 42 dias depois de dar à luz (12:4-5) e proíbe ainda ver o nosso tio despido. afirma com frequência que a sua condenação da homossexualidade faz parte do seu apoio "à família". que tem de ser mencionado. ao contrário das aparências. verificaram que além de proibir a homossexualidade. O problema é que não podemos concluir que a homossexualidade é uma abominação simplesmente porque isso é dito no Levítico. um lugar venerado na vida religiosa. Há muito mais. frequentemente defendida por fundamentalistas religiosos. Isso seria sensato. ao centrar-se em atitudes e sentimentos. a porta fica aberta para dizer o mesmo sobre as regras contra a homossexualidade. podemos ser tentados a ignorar a razão e seguir os sentimentos. Essa resposta daria então a verdadeira explicação do motivo pelo qual é errada. tem de haver uma razão que os explique . O pensamento e a conduta morais consistem em pesar razões e ser guiado por elas.devemos poder perguntar por que razão a Bíblia condena a homossexualidade e ter uma resposta. e não são obrigatórias para nós hoje em dia. 75 subjectivismo ético parece seguir na direcção errada. Mas ao fazer isso. Mas ser guiado pela razão é muito diferente de seguir os sentimentos.sobre a menstruação. 76 xxx Mas o que está em causa não é a homossexualidade. eram características de uma cultura antiga. a referência ao texto é abandonada e a razão por detrás da afirmação (se houver alguma) toma o seu lugar. e as outras. Seja como for. estaremos a fazer uma escolha completamente fora do âmbito do pensamento moral. O que está em causa é a natureza do pensamento moral. nada pode ser moralmente certo ou errado apenas porque uma autoridade assim o afirma. Se os preceitos num texto sagrado não são arbitrários. É por isso que. Mas se dissermos isso. Quando sentimos algo intensamente. Este é o problema "teórico" de que falei: na lógica do pensamento moral. o . 1608) 4. Segundo o New York Times. Há uma razão mais profunda para serem encarados como se tivessem um conhecimento moral especial. Mas quem. e o clero tem todo o prazer em dar uma resposta. é considerado a voz da moralidade. A maioria dos hospitais. pelo menos nos Estados Unidos. Entre as democracias ocidentais. os EUA são um país invulgarmente religioso. nos EUA. por exemplo. Cuomo afirmou. Poucas pessoas. Como exemplos. "gostemos ou não. Presume-se que padres e sacerdotes são conselheiros sábios que darão conselhos morais sensatos quando for necessário. deveria ocupar um lugar num tal painel? A resposta diz-nos muito .Capítulo 4 Dependerá a moralidade da religião O bem consiste em fazer sempre o que Deus quer em qualquer momento. não parecem ser nem melhores nem piores do que as outras pessoas. na Dinamarca e Suécia os números são apenas de um em cinco. Nove em dez americanos afirmam acreditar num Deus pessoal. The Divine Imperatme (1947) Eu respeito as divindades. Não é invulgar os padres e sacerdotes serem tratados como peritos em moralidade. a para pensar sobre as dimensões morais destas e doutras matérias. Quando os jornais querem comentários sobre as dimensões éticas de um caso. durante uma visita ao St. dirigem-se ao clero. EMJL BRUNNER. Mas não me baseio nelas. tem comités de ética. O propósito do painel seria fornecer ao governador "assistência especializada" 77 sobre quem. o direito à morte e a reprodução assistida. A resposta é: representantes da religião organizada. e estes comités incluem normalmente três tipos de membros: profissionais de saúde para aconselhar sobre matérias técnicas. No pensamento popular. O governador sublinhou que. o "Mr. mencionou o aborto. advogados para tratar dos problemas legais e representantes religiosos para lidar com as questões morais. exactamente. anunciou que iria nomear um painel especial para o aconselhar em questões éticas. Porque motivo são os clérigos olhados desta forma? A razão não é terem provado ser melhores ou mais sábios que as outras pessoas . em Brooklyn. no Templo Ichijoji (CA. protestantes e líderes judaicos para integrar o grupo".enquanto grupo. que tinha convidado católicos romanos. ficariam surpreendidas. estamos cada vez mais envolvidos em questões de vida ou de morte".1 A suposta ligação entre moralidade e religião Em 1984 o governador Mário Cuomo. de Nova Iorque. o problema das crianças deficientes. Francis College. MUSASHI MIYAMOTO. O que poderia. nenhum heroísmo. É. todo o brilho solar do génio humano. Esta concepção foi elaborada por alguns teólogos e transformada numa teoria sobre a natureza do bem e do mal conhecida como teoria dos mandamentos . Bertrand Russell exprimiu o que chamou a visão "científica" do mundo: Que o Homem é o produto de causas desconhecedoras do fim que estavam a atingir. fomos criados à sua imagem.2 A teoria dos mandamentos divinos Nas principais tradições teístas. estão. destituído de valor ou objectivo. destituído de sentido e propósito. pode a habitação da alma ser doravante construída de forma segura. toda a inspiração. O mundo não é. enquanto o mundo do ateu não tem qualquer lugar para os valores? 79 4. que nenhuma filosofia que as rejeite pode esperar perdurar.moralidade e a religião são inseparáveis: as pessoas pensam habitualmente que a moralidade só pode ser compreendida no contexto da religião. Ele não nos obriga a obedecer-lhes. podendo por isso escolher aceitar ou rejeitar os seus mandamentos. que nenhum fogo. Não é difícil ver por que motivo as pessoas pensam assim. assim. que todos os esforços de todas as idades. os seus amores e crenças. ainda assim. isso sim. estão condenados à extinção na vasta morte do sistema solar. toda a devoção. Mas se quisermos viver como devemos viver. No seu ensaio "A Free Man's Worship". as coisas têm uma aparência muito diferente. o palco no qual os planos e objectivos de Deus são concretizados. que a sua origem. temos de seguir as leis divinas. para ser seus filhos. Fomos criados como seres livres. De uma perspectiva religiosa. presume-se que têm de ser também portavozes da moral. nenhuma intensidade de pensamento ou sentimento podem preservar uma vida individual para lá da sepultura. no entanto.todas estas coisas. incluindo o judaísmo. uma 78 DEPENDERÁ A MORALIDADE DA RELIGIÃO' vez que os sacerdotes são porta-vozes da religião. o universo parece um lugar frio e sem sentido. Somente apoiada nestas verdades. escrito em 1902. se não são indisputáveis. esperanças e medos. ser mais natural do que pensar que a "moralidade" é uma parte da perspectiva religiosa do mundo. Deus é concebido como um legislador que estabeleceu regras para nós obedecermos. Por isso. crescimento. Quando visto de uma perspectiva não-religiosa. O judaísmo e o cristianismo ensinam que o mundo foi criado por um Deus de amor e todopoderoso para nos conceder uma morada. e que todo o templo das conquistas humanas terá inevitavelmente de ser enterrado sob os destroços de um universo em ruínas . são o mero resultado da disposição acidental de átomos. o cristianismo e o islamismo. Por outro lado. tão próximas da certeza. pois. só nas sólidas fundações do desespero inflexível. 1. os ateus não a aceitam. Aceitando esta opção. Mas mesmo para os crentes há dificuldades. Num desses diálogos. Os escritos de Platão tinham a forma de diálogos.divinos. essencialmente. Esta teoria afirma. há uma resposta fácil para isso: no dia do juízo final teremos de prestar contas. Além disso. porque não acreditam na existência de Deus. O filósofo britânico Antony Flew sugere que "um bom teste da aptidão de uma pessoa para a filosofia é averiguar se consegue compreender a sua força e significado". Por exemplo. A teoria enfrenta. porque não? Se ele apoiasse de facto a mentira. Esta teoria tem várias características atraentes. Poderia ter-nos ordenado para sermos mentirosos. Deus não estaria a . o Eutifron. O problema principal foi primeiro detectado por Platão. em vez de dizer a verdade. segundo o Livro do Êxodo 20:16. A ética deixa de ser uma questão de sentimento pessoal ou uso social. Soluciona de imediato o velho problema sobre a objectividade da ética. a teoria dos mandamentos divinos sugere uma resposta para a questão perene de saber por que razão vale a pena preocuparmo-nos com a moralidade. problemas sérios. Primeiro. Sócrates mostra-se céptico e pergunta: "Um comportamento é correcto porque os deuses o ordenam. ou os deuses ordenam-no porque é correcto?" Esta é uma das perguntas mais famosas da história da filosofia. seria correcto. A pergunta de Sócrates exige que clarifiquemos o que queremos dizer. (Poderíamos ser tentados a responder: "Mas Deus nunca nos mandaria mentir. Naturalmente. e ambas desembocam em problemas. Isso significa que Deus poderia com a mesma facilidade ter-nos dado mandamentos diferentes. poderíamos querer dizer que a conduta correcta é correcta porque Deus a ordena. no entanto. Há duas coisas que podemos querer dizer. Saber se algo é certo ou errado torna-se perfeitamente objectivo: é correcto se Deus o ordena. somos apanhados num dilema. Deus ordena que digamos a verdade. a razão pela qual devemos dizer a verdade é simplesmente Deus tê-lo ordenado. normalmente entre Sócrates e um ou mais interlocutores. dizer a verdade não é bom nem mau. Para lá do mandamento divino. É a ordem de Deus que torna a veridicidade correcta. Mas isto dá origem a problemas. e nesse caso mentir. que "moralmente certo" significa "ordenado por Deus" e "moralmente errado" significa "proibido por Deus". O seu significado é que se aceitarmos a concepção teológica de correcto e errado." Mas. Porque não esquecer a "ética" e preocuparmo-nos apenas connosco mesmos? Se a imoralidade é a violação dos mandamentos de Deus. pois retrata as ordens divinas como arbitrárias. e errado se deus o proíbe. o filósofo grego que viveu 400 anos antes do nascimento de Jesus. há uma discussão sobre se "correcto" poderá ser definido como "aquilo que os deuses 80 ordenam". a um problema diferente. verifica ser o melhor. e por isso ordena que não matemos. apercebe-se de que é preferível a veridicidade ao logro. Podemos afirmar. Podemos seguir a segunda das opções de Sócrates. do ponto de vista moral. ao afirmar-se que as coisas não são boas por regra alguma de bondade. a doutrina da bondade de Deus perde o sentido. a honestidade não era correcta antes de Deus a ordenar. que é infinitamente sábio. o seu mandamento é arbitrário. Outro problema é que. um truísmo vazio. ele poderia não ter mais razões para a ordenar do que para ordenar o seu contrário. Se aceitarmos esta opção. Leibniz observou no seu Discurso de Metafísica: Assim. abandonámos a concepção teológica de correcto e . "os mandamentos de Deus são bons" significaria apenas "os mandamentos de Deus são ordenados por Deus". nesta perspectiva. se aceitarmos a ideia de que bom e mau se definem por referência à vontade de Deus. ao invés. no entanto. pois os seus mandamentos tornariam a mentira correcta. mas. Os mandamentos de Deus não são arbitrários. Ao seguir esta opção. sem se dar conta. que Deus nos ordena que façamos certas coisas porque são correctas. então. Em 1686. mas unicamente pela vontade de Deus. por isso. segundo esta perspectiva. 81 Assim. e por isso ordena-nos que sejamos verazes. É importante para os crentes Deus não ser apenas todo-poderoso e omnisciente. vê que matar é errado. Há uma maneira de evitar estas consequências perturbadoras. 82 mas também bom.ordenar-nos a realização do mal. evitamos as consequências incómodas que arruinaram a primeira alternativa. A doutrina da bondade de Deus fica preservada: afirmar que os seus mandamentos são bons significa que ele ordena apenas o que. Deus. O que poderia querer dizer a afirmação de que os mandamentos de Deus são bons? Se "X é bom" significa "X é ordenado por Deus". igualmente perturbador. se seria igualmente de louvar se tivesse feito precisamente o contrário? Infelizmente. são o resultado do seu sábio discernimento do que é melhor. Portanto. esta segunda opção conduz.) Recordemos que. parece-me. esta noção perde o sentido. todo o amor de Deus e toda a sua glória. Pois porquê louvá-lo pelo que fez. Não precisamos afirmar que a conduta correcta o é por ser ordenada por Deus. destrói-se. 2. em perfeita sabedoria. ficamos aparentemente com consequências que até as pessoas mais religiosas considerariam inaceitáveis. se escolhermos a primeira das duas opções de Sócrates. e assim por diante para todas as regras morais. pelo que uma pessoa devota não a deveria aceitar. temos de encarar os mandamentos de Deus como arbitrários e abandonar a doutrina da bondade de Deus.errado . que. Então ou a) as acções correctas são correctas porque ele as ordena ou b) ele ordena-as porque são correctas. 83 6. Mas este argumento sugere outra coisa: sugere que. a própria teoria dos mandamentos divinos conduz a resultados ímpios. 4. 3. Essa honra cabe à teoria da lei natural. a doutrina da bondade de Deus perde todo o sentido. alguns dos maiores teólogos. Se seguirmos a opção b. pois podemos ainda perguntar "Mas porque razão Deus o ordena?" e a resposta a essa questão fornecerá a razão pela qual a veridicidade é uma coisa boa. do ponto de vista moral.quando dizemos que Deus ordena que sejamos verazes porque a veridicidade é correcta. arbitrários. Suponhamos que Deus ordena a realização do bem moral. De facto. Esta teoria tem três partes principais. a teoria ética dominante não é a teoria dos mandamentos divinos. rejeitaram a teoria justamente por esta razão. se queremos saber por que devemos ser verazes. mesmo do ponto de vista religioso. além disso. com efeito. Logo. Teremos. devem afirmar que o bem e o mal moral se definem relativamente à sua vontade. Muitas pessoas religiosas pensam que têm de aceitar uma concepção teológica de bem e mal moral porque seria ímpio não o fazer. A rectidão existe prévia e independentemente dos mandamentos de Deus. Pensadores como S. 2.3 A teoria da lei natural Na história do pensamento cristão. Do ponto de vista religioso. estamos a reconhecer um padrão de bem e mal moral que é independente da vontade de Deus. Assim. Tomás ligam a moralidade e a religião de maneira diferente. se acreditam em Deus. Sentem. pelo contrário. Logo. 4. é inaceitável encarar os mandamentos de Deus como arbitrários ou abandonar a doutrina da bondade de Deus. os mandamentos de Deus são. ou admitir que há um padrão de bem e mal moral independente da sua vontade e abandonar a concepção teológica de bem e mal moral. de alguma forma. teremos então reconhecido um padrão de bem e mal moral independente da vontade de Deus. a resposta "Porque Deus no-lo ordena" não é esclarecedora. como São Tomás de Aquino (1225-1274). . e é a razão mesma dos mandamentos. Tudo isto pode ser resumido no argumento seguinte: 1. tem de se aceitar um padrão de bem e mal moral independente da vontade de Deus. Se seguirmos a opção a. 5. abandonado a concepção teológica de bem e mal moral. pois. em primeiro lugar. estamos certos ao pensar que a Natureza nada faz sem um fim em vista. Em sua opinião tudo tem uma finalidade. na sua maioria. A característica central desta concepção era a ideia de que tudo na natureza tem uma finalidade. que as plantas existem para benefício dos animais. Parece óbvio que artefactos como facas têm finalidades porque os artesãos têm em mente uma finalidade quando os fazem. os animais 84 85 domesticos pelo uso que deles pode fazer bem como pela comida que fornecem. tem de ser verdade que a . Mas a asserção de Aristóteles não dizia apenas respeito aos seres orgânicos. afirmou. quando afirmou que.para que serve? . Aristóteles dizia isto muito a sério. Aristóteles incorporou esta ideia no seu sistema de pensamento por volta do ano 350 a. Esta concepção teve origem nos Gregos. embora não na totalidade. para compreender o que quer que seja. A teoria da lei natural apoia-se numa certa concepção do mundo. segundo.os olhos são para ver. cujo bem-estar é o objectivo de toda esta organização. e rejeitou-as. se devem fazer quatro perguntas: O que é? De que é feito? Como chegou à existência? E para que serve? (As respostas poderiam ser: Isto é uma faca. que a chuva cai para as plantas poderem crescer. pode-se fabricar roupas e instrumentos a partir deles. e quanto aos animais selvagens.) Aristóteles pressupôs que a última pergunta . Mas o que dizer dos objectos naturais que não foram fabricados? Aristóteles pensava que também eles têm finalidades. foi fabricada por um artesão e é usada para cortar. o coração para bombear o sangue. Há uma hierarquia clara: a chuva existe em função das plantas. um sistema ordenado e racional. "pertence à classe de causas que agem para um fim". "A natureza". Se.podia ser sensatamente colocada a propósito do que quer que fosse. Nesta concepção. o mundo é uma ordem racional com valores e fins inerentes à sua própria natureza. C. as plantas existem em função dos animais e os animais existem . Aristóteles pensava. Considerou outras alternativas. O mundo é. cada parte dos nossos corpos parece. é feita de metal. para dar um tipo diferente de exemplo.em função das pessoas. ter uma finalidade especial . Embora possa parecer estranho para um leitor moderno. que todos os outros animais existem para benefício do Homem. intuitivamente. cujo modo de entender o mundo dominou o pensamento Ocidental durante mais de 1700 anos. Um dos seus exemplos era que temos dentes de maneira a podermos mastigar.1. Temos de pensar. portanto.é claro . ocupando cada coisa o seu lugar próprio e servindo a sua finalidade especial. sem um objectivo. Exemplos biológicos como este são bastante persuasivos. como por exemplo a chuva cair "por necessidade" e isso ajudar as plantas apenas por "coincidência". e assim por diante. podem ser usados para alimentação ou ser úteis de outras formas. ou não podem fazê-lo. Uma personalidade malévola é defeituosa. pode ainda acrescentar-se. concebidos como parte fundamental da natureza das coisas. e actos "contrários à natureza" são tidos como moralmente errados. tendo em conta o tipo de criaturas que somos. a visão do mundo que delineámos não era religiosa. Aristóteles pode ser perdoado. 2. E. na terminologia da psicologia moderna. Diz-se que alguns tipos de comportamento são "naturais". Somos por natureza criaturas sociais que querem e necessitam da companhia de outras pessoas. Só faltava uma coisa: Deus era necessário para completar o quadro. Mas há igualmente implicações para a conduta humana. Um corolário desta forma de pensar é que "as leis da natureza" não se limitam a descrever o modo como as coisas são. Quando não o fazem. Quem não tem consideração pelos outros .é visto como alguém com perturbações. era simplesmente uma descrição de como as coisas são. a beneficência é algo natural em nós. especificam ainda como as coisas devem ser. Faz igualmente parte da nossa constituição natural ter consideração pelos outros. tal como os olhos são defeituosos se não puderem ver. porque se pensava que o mundo tinha sido criado de acordo com um plano divino. por exemplo. Porquê? Segundo a teoria da lei natural. é porque as coisas correram mal. como parte de seu plano global para o mundo. em absoluto . Os pensadores cristãos posteriores acharam esta visão do mundo perfeitamente conveniente. Os valores e as finalidades eram. Os seres humanos são uma espécie notavelmente vaidosa. Considere-se. (Aristóteles tinha negado que Deus fosse parte necessária do quadro.quem realmente não se importa. se tivermos em consideração que. enquanto outros são "contrários à natureza". virtualmente. . pois.Natureza fez todas as coisas especificamente para benefício do Homem. As coisas são como devem ser quando servem as suas finalidades naturais. é visto como um sociopata. o dever de beneficência. Os olhos que não podem ver são defeituosos e a seca é um mal natural. no entanto. e os animais são para uso humano porque foi para isso que Deus os criou. todos os pensadores importantes da nossa história tiveram em mente ideias idênticas. isto é verdade porque fomos criados por Deus com uma natureza especificamente "humana".) Os pensadores cristãos disseram. As regras morais 86 são agora encaradas como se derivassem de leis da natureza. o mal de ambas é explicado por referência à lei natural. Para ele. que a chuva cai para ajudar as plantas porque isso é o que o Criador quis. Isto parece extraordinariamente antropocêntrico. pois. Temos a obrigação moral de ter consideração pelo bem-estar do próximo assim como do nosso. A aceitação da beneficência é relativamente incontroversa. A teoria da lei natural tem também sido usada, no entanto, para apoiar perspectivas morais mais controversas. Os pensadores religiosos têm tradicionalmente condenado práticas sexuais "desviantes", e a justificação teórica para a sua oposição tem-se baseado muito frequentemente na teoria da lei natural. Se tudo tem uma finalidade, qual é a finalidade do sexo? A resposta óbvia é a procriação. A actividade sexual não relacionada com fazer meninos, pode por isso ser encarada como "contrária à natureza", e práticas como a masturbação e o sexo oral - para não falar da homossexualidade - podem ser condenadas por esta razão. Esta maneira de pensar sobre o sexo data pelo menos de S. Agostinho, no século iv, e surge explicitamente 87 diferentes do ponto de vista lógico, e nenhuma conclusão sobre uma se segue da outra. Podemos dizer que as pessoas estão naturalmente dispostas a ser beneméritas, mas disso não se conclui que devem ser beneméritas. De modo semelhante, acontece que o sexo produz de facto bebés, mas daí não se conclui que o sexo deva ou não deva ser praticado exclusivamente para esse propósito. Os factos são uma coisa; os valores outra. A teoria da lei natural parece fundi-los. Segundo, a teoria da lei natural passou de moda (embora isso evidentemente não prove que é falsa) porque a perspectiva do mundo na qual se baseia não está em conformidade com a ciência moderna. O mundo tal como descrito por Galileu, Newton e Darwin não tem lugar para "factos" sobre o certo e o errado. As suas explicações dos fenómenos naturais não fazem qualquer referência a valores ou finalidades. O que acontece acontece apenas, acidentalmente, em consequência de leis de causa e efeito. Se a chuva beneficia as plantas, é apenas porque as plantas evoluíram pelas leis da selecção natural num clima chuvoso. A ciência moderna dá-nos, pois, uma imagem do mundo como um reino de factos, onde as únicas "leis naturais" são as leis da física, química e biologia, funcionando cegamente e sem finalidade. Os valores, sejam eles o que forem, não são parte da ordem natural. Quanto à ideia de que "a natureza fez todas as coisas especificamente em 88 nas obras de São Tomás de Aquino. (Para uma discussão crítica deste argumento sobre o sexo, ver a secção 3.7 deste livro.) A teologia moral da Igreja católica baseia-se na teoria da lei natural. Esta linha de pensamento está por detrás de toda a sua ética sexual. À excepção da Igreja católica, a teoria da lei natural tem poucos defensores hoje em dia. É geralmente rejeitada por duas razões. Primeiro, parece envolver uma confusão entre "ser" e "dever ser". No século xvm David Hume sublinhou que o que é e o que deve ser são noções benefício do Homem", isso é apenas vaidade humana. Desde que aceitemos a visão do mundo da ciência moderna, seremos, pois, cépticos quanto à teoria da lei natural. Não é por acaso que a teoria não é um produto do pensamento moderno mas da Idade Média. 3. A terceira parte da teoria trata da questão do conhecimento moral. Como podemos determinar o que está correcto e errado? A teoria dos mandamentos divinos afirma que devemos consultar os mandamentos de Deus. A teoria da lei natural dá uma resposta diferente. As "leis naturais" que especificam o que devemos fazer são leis da razão, que somos capazes de entender porque Deus, o autor da ordem natural, nos fez seres racionais com o poder de entender essa ordem. Portanto, a teoria da lei natural sanciona a ideia familiar de que o melhor é seguir a linha de conduta com as melhores razões do seu lado. Para usar a terminologia tradicional, os juízos morais são "ditames da razão". São Tomás de Aquino, o maior dos teóricos da lei natural, escreveu na sua obraprima Suma Teológica que, "desacreditar os ditames da razão equivale a condenar os mandamentos de Deus". Isto significa que o crente não tem acesso privilegiado à verdade moral. O crente e o não crente estão na mesma posição. Deus concedeu a ambos os mesmos poderes de raciocínio; e, por isso, crente e não crente podem de modo igual ouvir a razão e seguir as suas directivas. Como agentes morais, funcionam da mesma maneira, apesar de a falta de fé dos não crentes os impedir de perceber que Deus é o autor da ordem racional da qual participam e que os seus juízos morais exprimem. Num sentido importante, isto torna a moralidade independente da religião. A crença religiosa não afecta o cálculo do que é melhor, e os resultados da investigação moral são religiosamente "neutros". Desta forma, mesmo podendo discordar acerca da religião, os crentes e os não crentes habitam o mesmo universo moral. 89 4.4 Religião e questões morais particulares Algumas pessoas religiosas poderão achar a discussão anterior insatisfatória. Parecer-lhes-á demasiado abstracta para ter alguma importância para as suas vidas morais. Para eles, a relação entre moralidade e religião é uma questão prática e imediata que se centra em problemas morais particulares. Não interessa se o bem e mal morais são "definidos" em termos da vontade divina ou se as leis morais são leis da natureza: sejam quais forem os méritos destas teorias, continuam a existir os ensinamentos morais da religião sobre questões particulares. Os ensinamentos das Escrituras e da Igreja são encarados como autoridades, determinando as posições morais que temos de assumir. Para referir apenas um exemplo, muitos cristãos pensam não ter alternativa senão opor-se ao aborto porque é condenado pela Igreja e (presumem eles) pelas Escrituras. Existirão, de facto, posições claramente religiosas, sobre as grandes questões morais, que os crentes sejam obrigados a aceitar? A ser assim, serão essas posições diferentes das perspectivas que outras pessoas podem alcançar pela simples tentativa de raciocinar para descobrir o melhor caminho a seguir? A retórica do púlpito sugere que a resposta a ambas as questões é "sim". Mas há várias razões para pensar de outra forma. Em primeiro lugar, é frequentemente difícil descobrir uma orientação moral específica nas Escrituras. Os nossos problemas não são os mesmos que os judeus e primeiros cristãos enfrentaram há muitos séculos; não é por isso surpreendente que as Escrituras possam nada dizer sobre questões morais que a nós nos parecem prioritárias. A Bíblia contém uma série de preceitos gerais, como a ordem de amar o nosso próximo e tratar os outros como gostaríamos de ser tratados, que podem ser considerados relevantes para várias questões. Mas, apesar de valiosos, esses preceitos não dão respostas precisas sobre qual deve ser 90 elemento da tradição a aceitar e a autoridade na qual acreditar. Lido de forma simples, o Novo Testamento, por exemplo, condena a riqueza, e há uma longa tradição de abnegação e dádiva caridosa que confirma este ensinamento. Mas há igualmente uma figura obscura do Antigo Testamento, chamada Jabes, que pediu a Deus para "expandir as minhas propriedades" (I Crónicas 4:10), e Deus concedeu-Ihe o pedido. Um livro recente instando os cristãos a adoptar Jabes como modelo tornou-se um campeão de vendas. Assim, quando as pessoas afirmam que as suas convicções morais derivam dos seus compromissos religiosos estão frequentemente enganadas. Na realidade, o que acontece é algo de muito diferente. Elas estão primeiro a tomar decisões sobre questões morais e só depois a interpretar as Escrituras, ou a tradição da Igreja, de modo a apoiarem a conclusão moral a que já chegaram. É claro que isto não acontece sempre, mas parece justo afirmar que acontece com muita frequência.  questão das riquezas é um exemplo disso; o aborto é outro. No debate sobre o aborto, as questões religiosas nunca estão longe do centro da discussão. Os conservadores religiosos defendem que o feto é um ser humano desde o momento da concepção, e por isso afirmam que matá-lo é na realidade uma forma de homicídio. Não pensam que deva ser a mãe a escolher se quer fazer um aborto, porque isso seria como dizer que ela é livre de cometer um homicídio. exactamente a nossa posição sobre os direitos dos trabalhadores, a extinção das espécies, o financiamento da investigação médica, etc. Outro problema é que em muitos casos as Escrituras e a tradição da Igreja são ambíguas. As autoridades discordam, deixando o crente na posição embaraçosa de ter de escolher o " Estas palavras são apresentadas como se fossem a confirmação da posição conservadora por parte de Deus: são tomadas como significando que o não-nascido." Mas Jeremias coloca a questão de forma mais poética. ou qualquer outra coisa do género. Em vez disso. Há certas passagens. é claro. no entanto.afirmam que. ter nascido. negam isto . a perspectiva cristã é que o feto é um ser humano desde o seu início. com efeito: "Deus autorizou-me a falar em seu nome. e dirás o que Eu te ordenar. não sou um orador. Eu já te conhecia. Jeremias. Suponhamos que é lida toda a passagem na qual ocorrem essas palavras: Foi-me dirigida a palavra do Senhor nestes termos: "Antes que fosses formado no ventre de tua mãe. Jeremias está a afirmar a sua autoridade corno profeta. e antes de nasceres consagrei-te.porquanto irás aonde Eu te enviar. independentemente da forma como o pensamento secular encara o feto. Não os temas. e te constitui profeta entre as nações. pelo menos durante as primeiras semanas de gravidez. podemos apelar para as Escrituras ou para a tradição da Igreja. apesar de eu ter resistido. porque sou ainda muito novo!" Mas o Senhor replicou: "Não digas: sou ainda muito novo . Uma das passagens mais frequentemente citadas é do primeiro capítulo do Livro de Jeremias.A premissa fundamental do argumento conservador é de que o feto é um ser humano desde o momento da concepção. Mas será esta perspectiva obrigatória para os cristãos? Que provas podem ser fornecidas para demonstrar isto? Para responder a isto. são "consagrados" a Deus. mas aqui interessa-nos apenas uma pequena parte do problema." E eu respondi: "Ah! Senhor Javé. O debate sobre a humanidade do feto é muito complicado. . afirma que Deus pretendeu que ele fosse profeta mesmo antes de ele. 92 à vida. que são frequentemente citadas pelos conservadores porque parecem sugerir que os fetos têm um estatuto humano pleno. Os liberais. No seu contexto. à semelhança do já nascido. antes que saísses do seio materno. O ovo fertilizado não é apenas um ser humano potencial mas um ser humano de facto. Os cristãos conservadores afirmam por vezes que. ordenou-me que falasse. estas palavras significam obviamente algo muito diferente. está a ser discutida nesta passagem. com direito pleno 91 conhecia. As Escrituras. no entanto. o embrião é menos que um ser humano completo. no qual Deus afirma: "Antes de te formar no seio já te Nem o aborto nem a santidade da vida. Eu te consagrei. É difícil derivar uma proibição do aborto das Escrituras cristãs ou judaicas. palavra do Senhor. Ele diz. porque estarei contigo para te livrar". A Bíblia não fala claramente do assunto. A passagem das Escrituras que se aproxima mais de um juízo específico sobre o estatuto moral dos fetos ocorre no capítulo 21 do Êxodo. . São Tomás aceitava o ponto de vista de Aristóteles de que a alma é a "forma substancial" do ser humano. e essas palavras são então interpretadas de uma forma que apoia uma posição moral da nossa preferência. Mesmo havendo uma base tão pequena nas Escrituras para o justificar. que muitas pessoas sintam que o seu compromisso religioso as obriga a oporem-se ao aborto. Mas vale a pena notar que a Igreja nem sempre teve esta posição. No caso da passagem de Jeremias.uma atitude que parte do princípio de que o próprio Deus tem de partilhar as nossas opiniões morais. 93 A tradição da Igreja. mas diz-se igualmente. mesmo na Igreja católica. e até hoje nunca foi oficialmente repudiado. trata-se de uma atitude particularmente ímpia . projectando então a conclusão desejada nas Escrituras? Se isto for verdade. A Lei de Israel encarava aparentemente os fetos como menos que um ser humano pleno. em 1312. é difícil ver como um leitor imparcial poderia pensar que as palavras têm alguma coisa que ver com o aborto. a ideia de que o feto é um ser humano "desde o momento da concepção" é uma ideia relativamente nova. que se for causado um aborto a uma mulher grávida a pena é apenas uma multa. mesmo por implicação. pois. a postura contemporânea da Igreja é fortemente contrária ao aborto. São Tomás de Aquino defendia que um embrião não tem alma até várias semanas depois do início da gravidez. O ponto de vista de São Tomás sobre o assunto foi oficialmente aceite péla Igreja no Concílio de Viena. Não precisamos entrar nesta noção algo técnica a não ser para sublinhar que uma das suas implicações é que não podemos ter uma alma humana até o nosso corpo ter uma forma reconhecidamente humana. De facto. a ser paga ao seu marido. Quando isto acontece é correcto dizer que uma pessoa está a "seguir os ensinamentos morais da Bíblia"? Ou será mais correcto dizer que essa pessoa está a procurar nas Escrituras apoio moral para o ponto de vista que pensa de antemão estar correcto. e derivou daí a conclusão indicada. O assassinato não era uma categoria que incluísse fetos. Este capítulo faz parte de uma descrição detalhada da lei dos antigos israelitas. padres e bispos a denunciar o aborto nos termos mais contundentes. Aqui diz-se que a pena para punir o homicídio é a morte. S.Isto acontece com frequência quando as Escrituras são citadas em relação a algumas questões morais controversas. no entanto. Não admira. Algumas palavras são destacadas de uma passagem relacionada com algo completamente diverso da questão em presença. Quem frequenta habitualmente a igreja pode ouvir clérigos. Tomás sabia que um embrião humano não tem uma forma humana "desde o momento da concepção". é reinterpretada 95 Aristeles e S. uma perspectiva curiosa do desenvolvimento do feto acabaria por ser aceite. e isto teve consequências inesperadas para o modo como a Igreja encara o aborto. não houve leis proibindo-o até bem adentro do século xix. bem como as Escrituras. e por isso é errado matá-lo. Observando óvulos fertilizados pelos microscópios primitivos. a lei Ocidental (desenvolvida sob influência da Igreja) não tratou tradicionalmente o aborto como um crime. A Igreja tirou esta conclusão e abraçou o ponto de vista conservador sobre o aborto. perfeitamente formadas. quando o Supremo Tribunal dos EUA declarou a proibição absoluta do aborto inconstitucional. Se o embrião tem uma forma humana desde o momento da concepção. no século xvn. Uma vez que tradicionalmente a Igreja não encarava o aborto uma questão moral séria. isso era um erro. segundo a filosofia de 94 "forma humana" chega mais tarde. Assim. o ponto de vista moral da Igreja não voltou atrás. Sabemos hoje que o pensamento original de S. que pode ter uma alma humana desde o momento da concepção. a Igreja não a abandonou e agarrou-se à sua visão conservadora do aborto.os embriões começam por ser um aglomerado de células. a . o aborto era tolerado mesmo quando executado numa gravidez avançada. Tomás. Chamaram "homúnculos" a estas pessoas pequenas. os cientistas começaram a perceber que esta ideia do desenvolvimento do feto estava errada. e isso consolidou a ideia de que desde o início o embrião humano é uma criatura inteiramente formada que apenas necessita crescer até estar pronta para o nascimento. não estava a inverter uma longa tradição de opiniões legais e morais. Tomás estava correcto . manteve essa posição até hoje. Não obstante o Concílio de Viena. alguns cientistas pensaram ter visto pessoas pequeninas. Não há qualquer homúnculo. O "homúnculo". diz-se. segue-se daí. Mas quando o erro biológico foi corrigido. Apesar de quanto foi dito aqui. Tendo adoptado a teoria de que o feto é um ser humano "desde o momento da concepção".No entanto. A intenção de passar em revista esta história não é insinuar que a posição contemporânea da Igreja está errada. A tradição da Igreja. No entanto. Nos Estados Unidos. a sua posição pode estar correcta. Estava apenas a restaurar uma situação legal que tinha existido até muito recentemente. Quero apenas sublinhar um aspecto fundamental da relação entre a autoridade religiosa e os juízos morais. À luz da lei inglesa. em 1973. à medida que o nosso entendimento da biologia progrediu. é claramente um ser humano. em qualquer dos casos. e. sublinhar-se que esta conclusão não foi alcançada por meio do questionamento da validade da religião. estes argumentos mostram apenas que. as convicções morais das pessoas não são tanto derivadas da sua religião como sobrepostas a ela. e não de fé religiosa. Uma vez que esta conclusão é contrária ao senso comum. Em cada caso. Numa palavra. Os vários argumentos deste capítulo apontam para uma conclusão comum. a moralidade continua a ser uma questão independente. Poderíamos igualmente ter usado como exemplo as mudanças nas perspectivas morais e religiosas sobre a escravatura. Os argumentos considerados não presumem que o cristianismo ou qualquer outro sistema teológico sejam falsos. Deve.por cada geração para apoiar os seus pontos de vista morais. mesmo que esses sistemas sejam verdadeiros. O aborto é apenas um exemplo disso. moralidade e religião são diferentes. pode parecer antireligiosa a alguns leitores. a moralidade é uma questão de razão e consciência. o estatuto das mulheres ou a pena de morte. por isso. 96 . as considerações religiosas não fornecem soluções definitivas para os problemas morais específicos com os quais nos defrontamos. Não se deve definir o correcto e errado em termos da vontade de Deus. de formas mais ou menos significativas. Muitas pessoas oferecem dinheiro para apoiar causas nobres. ainda assim. quando podiam guardá-lo para si. . Pensa-se hoje que tenha sido morto. pressionou com sucesso o governo húngaro no sentido de parar as deportações para campos de concentração. Wallenberg interpunha-se entre eles e os nazis afirmando aos alemães que teriam de o matar primeiro. e durante muito tempo ninguém soube o que lhe tinha acontecido. A lista poderia continuar sem parar. não pelos alemães. Quando a Guerra terminou. EDMUND BURKE. mas não é. Wallenberg permaneceu. Até que ponto devemos ser altruístas é uma questão de difícil resposta.Capítulo 5 Egoísmo psicológico Mas a época do cavalheirismo passou. passou os últimos dias da Segunda Guerra Mundial em Budapeste. Doam órgãos e oferecem sangue. Uma vez aí. e existem sem dúvida milhares de outros. quando reinava o caos e os outros diplomatas fugiram. Foi-lhe atribuída responsabilidade no salvamento de cerca de doze mil pessoas. A dos sofistas. insistindo que todos mantinham ligações com a Suécia e estavam sob a protecção do seu governo. Reflections on the Revolution in France (1790) 5. Freiras passam as suas vidas a trabalhar entre os pobres. E as pessoas ajudam-se. mas pelas forças de ocupação soviéticas. O governo israelita documentou seis mil casos de gentios que protegeram judeus durante o Holocausto. desapareceu. Ajudou várias 97 Na parte final da Guerra. Bombeiros arriscam a vida para salvar pessoas. Wallenberg emitiu "passes de protecção suecos" para milhares de judeus. Wallenberg ofereceu-se para integrar a missão diplomática sueca nessa cidade depois de ouvir relatos sobre Hitler e a sua "solução final para o problema judaico". Sempre que eram reunidos grupos para execução. Quando o governo húngaro foi substituído por um regime fantoche nazi e as deportações recomeçaram. Constróem abrigos para os deserdados. um homem de negócios sueco que poderia ter permanecido na segurança de sua casa. (Várias teorias morais foram criticadas ou por exigirem demasiado ou por pedirem pouco. A história de Wallenberg é mais dramática do que a maioria. de modo algum. A moralidade requer que sejamos altruístas.) Talvez não tenhamos de ser tão heróicos como Raoul Wallenberg. economistas e calculadores triunfou. Peter Singer conta que. mas espera-se. certo dia. pessoas a encontrar refúgio. Fazem voluntariado em hospitais. entre si.1 Será o altruísmo possível? Raoul Wallenberg. que estejamos atentos às necessidades dos outros pelo menos até certo ponto. de facto. Fazem favores umas às outras. Mães sacrificam-se pelos filhos. única. 2 A estratégia de reinterpretação de motivos Todos sabemos que por vezes as pessoas parecem agir com altruísmo. Estas são histórias notáveis. no qual relatava urna viagem para agradecer a um doador que regularmente enviava donativos de mil ou mais dólares. antes de ir para a Hungria ele estava deprimido e infeliz. conhecida como egoísmo psicológico. mais de meio século após a sua morte. Na verdade importamo-nos apenas connosco mesmos.recebi o boletim informativo da Australian Conservation Foundation. encetou a realização de acções que o transformassem numa figura heróica. Segundo esta teoria. A Madre Teresa. psicólogos e economistas. há uma teoria da natureza humana. mas talvez as explicações "altruísticas" do comportamento sejam demasiado superficiais . e ainda defendida por muitas pessoas comuns. empregado do departamento estatal de obras públicas. mas se olharmos mais profundamente. poderemos descobrir que algo mais está a acontecer. Isto pode parecer absurdo tendo em conta os exemplos que acabámos de enumerar.aqui estamos nós. mas isso é apenas uma ilusão.pode parecer que as pessoas são altruístas. Contudo. a freira que passou a vida a trabalhar entre os pobres de Calcutá. portamento "altruísta" está na verdade ligado a um tipo qualquer de benefício para quem age. Por isso. A sua procura de uma vida mais significativa foi espectacularmente bem sucedida . doa cinquenta por cento dos seus rendimentos para causas ambientais. pois estava frente a uma casa suburbana muito modesta. Quando chegou ao endereço em questão pensou ter-se enganado. Podemos acreditar que somos nobres e abnegados. o principal grupo australiano de defesa do meio ambiente. mas deveremos aceitá-las pelo que parecem? Serão de facto estas pessoas tão altruístas como parecem? Neste capítulo vamos examinar alguns argumentos que defendem que ninguém é jamais verdadeiramente altruísta. Incluía um artigo da autoria do coordenador 98 Poderá o egoísmo psicológico ser verdadeiro? Porque razão tantas pessoas têm aceitado esta ideia perante tantas provas em contrário? 5. é frequentemente citada como o exemplo . Mas não havia qualquer engano: David Allsop. que afirma que não somos capazes de ser altruístas. Geralmente não é difícil descobrir que o com99 financeiro da fundação. falando a seu respeito. em tempos muito corrente entre filósofos. todas as acções humanas são motivadas pelo egoísmo. Segundo alguns dos amigos de Raoul Wallenberg. sentindo que a sua vida não tinha grande importância. Um homem caridoso está a provar a si mesmo. deveríamos poder fornecer uma explicação mais abrangente dos motivos humanos. Esta técnica de reinterpretar motivos é genérica e pode ser repetida vezes e vezes sem conta. Mas. se esse amor ao próximo na realidade não existe. Eis dois exemplos de Hobbes em acção. o prazer de cada um na demonstração dos seus próprios poderes. O Oxford English Dictionary dedica quase quatro colunas à "caridade". A caridade é. que oferece cinquenta por cento dos seus rendimentos para apoiar causas ambientais. o desejo de reconhecimento público. mas não se deu por satisfeito com uma abordagem tão fragmentária. Thomas Hobbes (1588-1679) pensava que o egoísmo psicológico estava provavelmente correcto. ocupando-nos primeiro de Raoul Wallenberg. É definida quer como "o amor cristão pelo nosso semelhante" quer como a "benevolência para com o próximo". (Na verdade não teve de esperar muito pela sua recompensa. 1. que confirmasse a teoria de uma vez por todas. Se o egoísmo psicológico é verdadeiro.mas é claro que a Madre Teresa acreditava que seria bem recompensada no Céu. concentrando-se especialmente nos "altruístas". Por cada acto de aparente altruísmo podemos encontrar uma maneira de justificá-lo e substituí-lo por uma explicação em termos de motivos mais egocêntricos. teria eliminado sistematicamente o altruísmo do nosso entendimento da natureza humana. Assim. e afirma sentir-se profundamente satisfeito por poder agora fornecer o apoio financeiro para outros continuarem o trabalho". Uma vez completado este projecto. depois de David Allsop e assim por 100 diante.perfeito de altruísmo . depois da Madre Teresa. recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1979. provando o seu próprio poder. como ainda de ajudar outros homens nos seus: e é nisso mesmo que consiste a concepção do que se chama caridade. Singer salienta que "o próprio David trabalhara anteriormente como activista. o comportamento caritativo tem de ser entendido de uma forma radicalmente diferente. sentimentos de satisfação pessoal e a esperança de uma recompensa divina. Foi isso mesmo que Hobbes tentou fazer. No seu ensaio "Da Natureza Humana". Caridade.) Quanto a David Allsop. e mostrando como todos podiam ser compreendidos em termos egoístas. do que saber-se capaz não apenas de realizar os seus desejos. assim. e ao mundo. o comportamento "altruísta" está na realidade ligado a coisas como o desejo de ter uma vida mais significativa. Hobbes descreve-o assim: Não pode haver maior argumento para um homem. Não é teoricamente elegante lidar com cada exemplo separadamente. Este é o motivo mais geral que atribuímos às pessoas quando pensamos que agem em função da sua preocupação pelos outros. que possui mais recursos que os . O seu método consistiu em catalogar os tipos gerais de motivos. Os nossos sentimentos de piedade variam em função directa da virtude da pessoa que sofre porque o nosso sentido de identificação varia da mesma forma. não nos apiedámos dos malévolos da mesma forma que nos apiedámos dos bons. sentirmo-nos infelizes com os seus infortúnios. partindo da consciência das calamidades de ou trem". E. por que sentimos maior piedade quando uma pessoa boa sofre do que quando sofre uma pessoa má. Na descrição de Hobbes. A razão pela qual nos sentimos incomodados com os infortúnios dos outros é pensarmos que a mesma coisa nos podia acontecer a nós. A "piedade". . a estratégia mostra que o egoísmo psicológico é possível. Piedade. e é lisonjeiro pensar que somos "altruístas". Do ponto de vista teórico. e não a adulação superficial na qual desejamos naturalmente acreditar. Necessitamos ainda de argumentos para provar que é verdadeiro. agindo em função deste pesar. nada faz para mostrar que os motivos egoístas são mais profundos ou verdadeiros do que as explicações altruísticas que pretendem substituir. pois não pode provar que o egoísmo psicológico está correcto. Por conseguinte. até onde pode estar. O problema é que mostra apenas que é possível interpretar os motivos de forma egoísta. a piedade requer um sentido de identificação com a pessoa que sofre . Pode explicar com muita clareza alguns aspectos peculiares do fenómeno.sinto piedade de alguém quando me imagino no seu lugar. mas não vai suficientemente fundo. Pode explicar. O que é ter piedade dos outros? Poderíamos pensar que é compadecermo-nos deles. É perfeitamente natural que interpretemos as nossas acções de um modo lisonjeiro para nós (um egoísta psicológico não esperaria outra coisa). Hobbes sabia. por exemplo. Apela sobre102 tudo a um certo cinismo em nós. Mas nós não somos os 101 melhores juizes das nossas próprias motivações. que um homem caridoso pode não pensar estar a fazer isso. esta explicação da piedade revela-se mais poderosa do que parece à primeira vista. tem ainda o suficiente para ajudar quantos não têm a mesma capacidade que ele. A perspectiva de Hobbes visa fornecer a explicação real do porquê das nossas acções. poderíamos tentar ajudá-los.outros: não é só capaz de cuidar de si mesmo. 2. não nos identificamos com os que pensamos serem maus. No máximo. está apenas a exibir a sua superioridade. Hobbes pensa que tudo isto está muito bem. "consiste em imaginar ou fantasiar as nossas próprias calamidades futuras. naturalmente. a uma suspeita de que as pessoas não são tão nobres como parecem. Por outras palavras. Mas uma vez que cada um de nós pensa ser uma boa pessoa. fez muitas pessoas ter a sensação de que o egoísmo psicológico pode estar certo. afirma. Mas não é um método de raciocínio decisivo. A estratégia de reinterpretar motivos é um método de raciocínio persuasivo. e nem mesmo porque são meios para um fim que queremos atingir. Tem sido por vezes sugerido que em tais casos realizamos a acção porque. Se descrevemos as acções de uma pessoa como egoístas e as de outra como não egoístas estamos a descurar o facto crucial de que em ambos os casos. porque os fins (como evitar dor de dentes) são desejados. mas vamos na mesma para evitar dor de dentes. uma vez que se pode dizer o mesmo de 103 nunca fazem voluntariamente senão o que desejam fazer. partindo do princípio de que a acção é realizada de forma voluntária. e não apenas uma classe limitada de acções. O argumento de que fazemos sempre o que mais desejamos fazer. E. mesmo não desejando fazê-la. não obstante. mas porque sentimos que devemos fazê-las. baseia-se na ideia de que as pessoas . e sente-se.3 Dois argumentos a favor do egoísmo psicológico Há dois argumentos gerais que foram adiantados com frequência em defesa do egoísmo psicológico. Se Raoul Wallenberg escolheu partir para Budapeste. Se prometi fazer algo mas não o quero fazer. por isso. queremos manter as nossas promessas. Wallenberg pode ter tido essa experiência: talvez quisesse ficar na Suécia. e ninguém o coagiu. são motivadas pelo egoísmo. Mas há igualmente coisas que fazemos. Não obstante. É uma experiência demasiado comum sentirmonos puxados em direcções diferentes pelo desejo e pela obrigação. ser encarado como consistente com o espírito do argumento. este seria um mundo feliz. não queremos ir ao dentista. não porque o desejamos. Por exemplo. isso não é verdade. Se os nossos desejos e o nosso sentido de obrigação estivessem sempre em harmonia. porque são um meio necessário para um fim que queremos atingir. podemos concluir que o egoísmo psicológico tem de ser verdadeiro. obrigado. isso apenas mostra que ele preferia ir do que permanecer na Suécia . Primeiro.e porque haveria de ser elogiado pela sua "generosidade" quando se limitou a fazer o que mais desejava? A sua acção foi ditada pelos seus próprios desejos. nenhum dos argumentos resiste muito bem ao escrutínio. Em tais casos sentimos um conflito precisamente porque não queremos fazer o que nos sentimos obrigados a fazer. Por vezes fazemos coisas que não queremos fazer. São argumentos "gerais" na medida em que cada um tenta estabelecer de um só golpe que todas as acções. Como poderemos ver. mas sentiu que tinha de ir para qualquer alegado acto altruísta. Tanto quanto sabemos. Este argumento tem duas falhas principais. Assim.5. por exemplo. Mas isto é redondamente falso. alguém pode fazer uma coisa porque prometeu fazê-la. afinal de contas. então é pura e simplesmente falso dizer que quero manter a minha promessa. não agiu altruistamente. o seu sentido do que queria fazer. a pessoa está apenas a fazer o que mais deseja fazer. Este tipo de caso pode. mesmo com alguns custos para si mesmo? Outra forma de pôr a questão é afirmar que o objecto de um desejo determina se este é ou não egoísta. Suponha-se que admitíamos. então é um egoísta. Illinois. então não é egoísta. mesmo com riscos para si. Se apenas se preocupa com o seu bemestar e não pensa nos outros. O companheiro de viagem contestava esta posição quando estavam a atravessar uma ponte sobre uma zona pantanosa. que agimos sempre segundo os nossos mais fortes desejos. a conclusão não se seguiria delas. Agir "altruistamente" faz as pessoas sentirem-se bem consigo mesmas.Budapeste. Quando a velha carruagem come105 Mesmo dando isto por adquirido não se seguiria que Wallenberg agiu de forma egoísta ou em benefício próprio. aquilo foi a própria essência do egoísmo. Não teria tido paz de espírito durante o resto do dia se tivesse deixado aquela velha porca em sofrimento por . retirou os porquinhos da água enlameada e colocou-os de novo na margem. do facto de ter ido não se segue que desejasse ir. O argumento tem ainda uma segunda falha. o seu companheiro afirmou: "Então Abe. Ao atravessar a ponte. Pois se desejava ajudar outras pessoas. e mesmo que fossem. Ed. isso é precisamente o que o torna não egoísta. poderia parar um momento?" Lincoln saltou da carruagem. olhavam para uma velha porca selvagem que fazia na margem ruídos horríveis porque as suas crias tinham entrado no lodaçal e estavam em risco de se afogar. correu de volta ao pântano. onde fica o egoísmo neste pequeno episódio?" "Pela sua saúde. Por conseguinte. noticiou que Lincoln afirmou certa vez a um companheiro de viagem num coche antigo que todos os homens eram instados pelo egoísmo a fazer o bem. O argumento de que fazemos o que nos faz sentir bem. este argumento falha de quase todas as formas possíveis: as premissas não são verdadeiras. O mero facto de alguém agir segundo os seus desejos não significa que esteja a agir de forma egoísta. Segundo um jornal do século xix. Seja como for. O Monitor. em benefício da argumentação. e age segundo esse desejo. de Springfield. 104 O segundo argumento geral em defesa do egoísmo psicológico apela para o facto de quase todas as acções ditas altruístas produzirem um sentido de autosatisfação na pessoa que as realiza. çou a subir a colina. mas se também deseja ver os outros felizes. e isso é o seu verdadeiro objectivo. Que outra coisa poderia ser a generosidade a não ser ajudar os outros. Lincoln gritou: "Cocheiro. Quando regressou. tudo depende do que essa pessoa deseja. este argumento foi em tempos defendido por Abraham Lincoln. pelo menos em parte. quando podíamos gastar esse dinheiro connosco mesmos? A resposta tem de ser. que perguntamos por que razão uma pessoa obtém satisfação ao auxiliar os outros. à partida. Se não nos importamos com isso. que é compassivo e dotado de bom coração? (Se uma pessoa fosse verdadeiramente egoísta. as marés e a forma como caem os objectos quando largados de um ponto elevado. Vai fazer-nos sentir parvos e não santos. enquanto pensamos noutra coisa. Acontece o mesmo com o auxílio aos outros.causa dos porquinhos.e uma vez que desejamos essas coisas. ter esses sentimentos não é uma marca de egoísmo. A capacidade da teoria para unir fenómenos diversos sob um mesmo princípio explicativo é uma das suas grandes virtudes. talvez pareça correcto. nesta ocasião pelo menos. porque haveria de incomodar-se com o sofrimento dos outros. o xadrez ou o casamento. percebe?" Lincoln era um grande homem.dinheiro. mas. Cria . pode considerar-se puro sofisma afirmar que alguém é egoísta apenas porque deriva satisfação do auxílio aos outros. Porque será que nos sentimos bem ao doar dinheiro para apoiar um abrigo para pessoas sem lar. podemos obter satisfação ao consegui-las. jogar xadrez. muito diferentes.não é isso que procuramos. um carro novo. casar e assim por diante . Estes fenómenos parecem ser. ainda para mais tratando-se de porcos?) Por analogia. e pareceria serem necessários princípios diferentes para os explicar. que isso faz dele um egoísta? Não é a pessoa altruísta precisamente a que de facto tem satisfação no auxílio aos outros. pelo contrário. não são o que buscamos. além disso. Por isso. relacionada com a natureza do desejo e seus objectos. Quando estamos empenhados em explicar uma coisa. tanto maior é o seu poder de atracção. mas se falarmos pausadamente e estivermos atentos ao que dizemos. Suponhamos. apenas porque alguém obtém satisfação do auxílio aos outros. Fi-lo para obter paz de espírito. Temos primeiro de querer ajudá-los antes de podermos obter satisfação com isso. Considerem-se fenómenos tão diversos como os movimentos planetários. 5. isso mostrará que é egoísta ou. Os bons sentimentos são um derivado. parece francamente tonto.quanto mais simples é uma teoria científica. O seu argumento é vulnerável ao mesmo tipo de objecções do anterior. Isto é certamente verdade nas ciências . Há uma lição geral a retirar deste caso. Se dissermos isto rapidamente. Quem podia pensar que poderiam ser todos explicados por um único princípio? No entanto é isso mesmo que faz a teoria da gravidade. enquanto o egoísta não tem? Se Lincoln conseguiu "paz de espírito" depois de salvar os porquinhos. O que procuramos é simplesmente o dinheiro.4 Esclarecer algumas confusões Um dos mais poderosos motivos na elaboração de uma teoria é o desejo de simplicidade. doar o dinheiro parecerá um desperdício e não 106 uma fonte de satisfação. o carro. não foi um grande filósofo. Porque razão devemos pensar. Desejamos todo o género de coisas . que somos o tipo de pessoa que se importa com o que acontece aos outros. Mas o objecto do nosso desejo não é a satisfação . gostaríamos de descobrir uma explicação tão simples quanto possível. se ocupem demasiado do seu próprio bem ou interesses. Quando pensamos nisso. nem mesmo pelos seus próprios padrões . trabalhar afincadamente . De modo semelhante. são tudo acções realizadas no meu interesse próprio. vemos que não são de modo algum a mesma coisa. pode considerarse natural ponderar a possibilidade de toda a motivação poder ser explicada nesses termos. mas isso apenas mostra que a procura indisciplinada do prazer e a defesa do interesse próprio são coisas diferentes. sem dúvida. Assim." Tomados em conjunto. as pessoas tendem a confundir egoísmo com interesse próprio. pois não se ocupam o suficiente. e uma vez esclarecidas estas confusões a teoria deixa de parecer plausível. E assim se explica a persistência da ideia do egoísmo psicológico. comer uma refeição normal em circunstâncias normais não é egoísta (apesar de ser. mas seríamos egoístas se acumulássemos comida enquanto outros passavam fome.o interesse próprio ditaria que parasse de fumar. Mas a ideia fundamental subjacente ao egoísmo psicológico não pode sequer ser expressa sem confusões. Reflectindo nisto. do nosso interesse próprio). estou a agir em função do meu interesse próprio. mas isso não significa que estejamos a agir em função do interesse próprio. capaz de unir os diversos fenómenos do comportamento humano. sem dúvida. Queremos uma fórmula única e simples. Da mesma forma. mas ninguém pensaria chamarme "egoísta" por causa disso. Fazemos muitas coisas porque gostamos de as fazer. Primeiro. quando pensamos sobre a conduta humana. Ele fuma. Um homem que continua a fumar cigarros mesmo depois de ter conhecimento da relação entre o fumo e o cancro não está certamente a agir segundo o seu interesse próprio. afirmou: "O que há a lamentar não é que os homens. no mundo de hoje. Se vou ao médico quando me sinto mal. lavar os dentes. os dois últimos parágrafos mostram que a) é falso que todas as explicar tudo. Uma segunda confusão mistura o comportamento em função do interesse próprio com a procura de prazer. gostaríamos de descobrir um princípio para 107 no meu emprego e obedecer à lei. da mesma forma que as fórmulas simples na física unem fenómenos aparentemente diferentes. Sendo óbvio que a preocupação connosco próprios é um factor de importância esmagadora na motivação. pelo prazer de fumar. Joseph Butler. se conseguirmos descobrir uma.e não está também a agir de forma altruísta. o principal crítico do egoísmo no século xvni. mas nenhum destes exemplos ilustra uma conduta egoísta. O comportamento egoísta é o comportamento que ignora os interesses dos outros em circunstâncias nas quais não deviam ser ignorados.ordem a partir do caos. que explique o comportamento humano na sua totalidade.acções sejam egoístas e b) é falso que todas as acções sejam realizadas em função do interesse próprio. Quando lavamos os dentes. É importante notar. Se observarmos com espírito aberto o comportamento das pessoas. num certo sentido. mas falsa. especialmente quando os outros são nossos amigos ou familiares. nem todas as acções são egoístas. Sendo óbvio que todas as pessoas (ou quase todas) desejam o seu próprio bem-estar. Na verdade. portanto. Uma terceira confusão consiste na suposição comum. mas não de forma alguma no seu todo. os nossos interesses podem por vezes entrar em conflito com os interesses de outras pessoas. nem todas as acções são realizadas por interesse próprio. de que a preocupação pelo nosso próprio bem-estar é incompatível com uma genuína preocupação pelos outros. poderia pensar-se que ninguém pode estar realmente preocupado com o bemestar dos outros. E. para nós próprios. sejam felizes. Se o egoísmo psicológico é tão obviamente confuso. parece francamente implausível. Uma vez esclarecidas estas confusões. pode-se perguntar. têm . Vale a pena notar que estes dois aspectos não dependem de exemplos de altruísmo. e podemos então ter de fazer escolhas difíceis. verificamos que é motivado em grande parte pelo. Podemos por vezes ajudar os outros com custos mínimos. que a vida nem sempre é assim. 5. Mas há uma razão mais profunda: o egoísmo psicológico tem sido aceite por muitas pessoas porque o consideram irrefutável. interesse próprio. e se não há argumentos plausíveis em sua defesa. 108 109 no entanto. Mas mesmo nestes casos optamos por vezes pelos interesses dos outros. ou mesmo nenhuns. Pode realmente existir uma fórmula simples. não estamos a agir de forma egoísta. pelo menos em circunstâncias normais. por conseguinte. E quando fumamos cigarros não estamos a agir no nosso próprio interesse. ainda por descobrir. porque razão tantas pessoas inteligentes se sentiram atraídas por essa ideia? É uma boa pergunta. parecem existir poucas razões para considerar o egoísmo psicológico uma teoria plausível. Nessas circunstâncias nem mesmo o mais forte interesse próprio nos impede necessariamente de agir generosamente. incluindo nós mesmos e os outros.5 O erro mais grave do egoísmo psicológico A discussão anterior pode parecer implacavelmente negativa. mas o egoísmo psicológico não é essa fórmula. mesmo não existindo comportamentos altruístas. Não há qualquer inconsistência em desejar que todos. Outra parte reside na atracção pelo que parece uma atitude obstinada e deflacionista face às pretensões humanas. o egoísmo psicológico continuaria a ser falso. Mas isto é uma dicotomia falsa. Pelo contrário. Parte da resposta está na necessidade quase irresistível de simplicidade teórica. Mas isto foi interpretado como prova de "relações instáveis na infância".razão. Isso chama-se 'fuga para a saúde'. Era sinal. mas a sua simples presença nos hospitais criou o pressuposto de que estavam mentalmente perturbados. pensavam que os investigadores eram doentes como os outros. os seus comportamentos não importa111 conseguiram introduzir-se em vários hospitais psiquiátricos fazendo-se passar por doentes. Há alguns anos. perceberam tudo. Os verdadeiros pacientes. Ele não vai acreditar.uma mudança perfeitamente normal. Os funcionários dos hospitais ignoravam que eles eram especialistas. isso seria interpretado de modo a adaptar-se ao pressuposto. permita-se-me que conte uma história (verdadeira) que pode parecer muito afastada do nosso tema. Mesmo os seus protestos e declarações de normalidade foram voltados contra eles. Mas o "sucesso" desta técnica não provou que a hipótese estivesse correcta. tudo pode ser interpretado para a apoiar. seja qual for o significado do termo. de que algo correu mal.nada fizeram para se fingir doentes . Porque razão os médicos não perceberam? A experiência revelou algo sobre o poder de um pressuposto dominante: uma vez aceite uma hipótese." Durante uma entrevista. eram anotadas nos seus relatórios as seguintes observações: "O paciente envolve-se num comportamento de escrita. ninguém deu pelo logro. Digam-lhe que continuam doentes. David Rosenham. Os investigadores eram perfeitamente normais.descobriram rapidamente que tudo quanto faziam era interpretado pelos médicos como sinal do problema mental que tinham inscrito nos formulários de admissão. Um dos verdadeiros pacientes alertou-os: "Nunca digam a um médico que estão bem. . Fizessem o que fizessem. Mas noutro sentido a imunidade da teoria à refutação é o seu defeito mais profundo. Quando um deles era apanhado a tomar notas. Está a investigar o hospital. mas sentem-se muito melhor. Apesar de se comportarem com normalidade . os membros de um grupo de investigadores liderados pelo Dr. 110 quando era criança se ligou mais ao pai à medida que cresceu ." E de facto estava. Quando a ideia de que os pacientes falsos tinham perturbações mentais foi admitida como pressuposto dominante. Para explicar isto. Um deles disse a um investigador: "Você não é louco. Isso chama-se perspicácia. um "paciente" confessou que apesar de ter maior proximidade com a mãe vam. isso sim. professor de Psicologia e Direito na Universidade de Stanford. no entanto." Do pessoal dos hospitais. há cisnes pretos. . As pessoas agem por avidez. Os médicos poderiam ter estabelecido uma forma razoável de distinguir entre pessoas mentalmente saudáveis e pessoas com doenças mentais. por exemplo. O egoísmo psicológico comete o mesmo erro.se nem mesmo podemos imaginar o que seria um acto não egoísta-. a afirmação é verdadeira.A hipótese de que os pacientes falsos sofriam de perturbações mentais era defeituosa porque era insusceptível de ser testada. fúria. não tem qualquer sentido. Mesmo que não encontremos cisnes verdes ou azuis. felizes. então tem de haver condições imagináveis que possam verificá-la e outras que possam refutá-la. Uma vez admitido o pressuposto dominante de que todo o comportamento visa o interesse próprio. Se a hipótese for que todos os cisnes são brancos. A nossa conclusão deve basear-se nos resultados destas observações. Se uma hipótese pretende dizer algo de factual sobre o mundo. Para testar a afirmação. Para eles. podemos olhar para os cisnes para ver se há verdes. Caso contrário. alguém tentado a acreditar na veracidade do egoísmo psicológico poderia estabelecer uma forma razoável de distinguir o comportamento motivado pelo interesse próprio do comportamento que ignora o interesse próprio e depois observar como as pessoas agem de facto para ver as categorias às quais se adequam. nada fizeram para fingir qualquer tipo de sintomas psiquiátricos. Deveria ter sido possível aos médicos examinar os pacientes falsos. Se o egoísmo psicológico for defendido de forma susceptível de ser testada. levamos o carro até ao Sr. Fazem certas coisas porque estão assustadas. se for de outra. uma forma de contornar este problema. azuis ou de qualquer outra cor.) Suponha-se ainda que alguém afirma: "O Shaquille O'Neal não consegue entrar no meu Volkswagen. pode-se interpretar tudo quanto ocorre para se adequar a esse pressuposto. amor e ódio. nada há de errado com estas pessoas. curiosas. depois. podiam. Mas 112 qual é o problema? Se não há qualquer padrão imaginável de comportamento ou motivação que possa contradizer a teoria .) Mas os médicos não estavam a agir dessa forma. e vemos o que acontece. não se pode manter o pensamento de que há apenas um motivo. preocupadas e inspiradas. nada podia ser admitido contra a hipótese de que os "pacientes" estavam doentes. como Raoul Wallenberg. Há. Por vezes são mesmo heróicas." (Recorde-se que os pacientes falsos agiram com normalidade. tanto para os médicos como para o egoísmo psicológico. Por vezes são egoístas e por vezes generosas. convidamo-lo a entrar. O'Neal. luxúria. sabemos como seria encontrar algum. naturalmente. e afirmar: "Esperem lá. pelo que a hipótese é falsa. Perante tudo isto. olhar os resultados. Se for de uma maneira. pois podemos imaginar as circunstâncias que tornariam a afirmação verdadeira e as que a tornariam falsa." Sabemos o que isto significa. os resultados do teste serão que a teoria é falsa. É claro que alguém que fizesse isto veria que as motivações das pessoas são das mais diversas. De modo análogo. (De facto. ciumentas. é falsa. ter observado os pacientes falsos para ver a que categoria pertenciam. então a teoria é vazia. 113 . isto coloca um problema grave. 115 com rendimentos modestos beneficiam de tais coisas. não apenas nas necessidades da vida mas em luxos sem conta . ou na Somália em 1992. Um padrão comum entre as crianças de países pobres é a morte por desidratação causada por diarreias com origem na subnutrição.Capítulo 6 Egoísmo ético Alcançar a sua própria felicidade é o objectivo moral mais elevado do ser humano. As pessoas com fome estão a morrer a alguma distância de nós. Quando acontece pensarmos nelas. O director executivo do Fundo das Nações Unidas de Apoio às Crianças (UNICEF) estima que cerca de quinze mil crianças morram desta forma todos os dias. aparelhagens. A maioria de nós. não as vemos. como na Etiópia em 1984. O facto de não o fazermos revela que encaramos os nossos luxos como mais importantes do que as suas vidas. A explicação para o facto de não o fazermos é que. e podemos mesmo evitar pensar nelas. O problema é que podíamos abdicar dos nossos luxos e. é apenas de forma abstracta. As 5 475 000 crianças têm a infelicidade de não estarem todas juntas em Chicago. o número ultrapassa os dez milhões. Mesmo que esta estimativa seja demasiado alta. mesmo pessoas . No nosso país. em vez disso. raramente pensamos no problema. como estatísticas. Se adicionarmos as que morrem de outras causas evitáveis. Gastamos dinheiro connosco mesmos. doar o dinheiro para o combate à fome. ficaria provavelmente um pouco embaraçada. Porque razão permitimos que morram pessoas à fome quando poderíamos salvá-las? Poucos de nós pensam de facto que os nossos luxos sejam assim tão importantes. Infelizmente para os que têm fome. Mas quando os necessitados estão dispersos. o número das que morrem é chocante. se interrogados directamente. Reagimos de forma diferente quando há uma "crise". quando uma grande massa de pessoas num dado local passa fome. e diria que provavelmente devíamos fazer mais para ajudar. deixando de lado a questão sobre o motivo de nos comportarmos assim.em bons automóveis. as estatísticas não têm muito poder para nos comover. filmes. AYN RAND. é notícia de primeira página e os esforços de auxílio são mobilizados.1 Teremos o dever de ajudar pessoas que morrem à fome? Todos os anos milhões de pessoas morrem por subalimentação e problemas de saúde com ela relacionados. Isso equivale a 5 475 000 crianças por ano. por exemplo. Mas. roupas elegantes. e assim por diante. qual é o nosso dever? Para quem vive em países abastados. Vivendo as nossas vidas confortáveis. The Virtue of Selfishness (1961) 6. pelo menos em parte. Nessa altura. desportos. estamos afastados do problema. a situação não parece tão urgente. Independentemente de como nos comportamos. Se verificarmos que é verdadeira. 117 É uma teoria que levanta desafios. uma teoria sobre como devemos comportar-nos. e ninguém pode ser acusado por atender às suas necessidades básicas. pois podemos alcançar uma melhor compreensão das razões pelas quais temos de facto obrigações para com os outros. Alguns pensadores defenderam que não temos. Vamos examinar os argumentos mais importantes a favor e contra esta teoria. Temos deveres "naturais" para com os outros simplesmente porque são pessoas que podem ser auxiliadas ou prejudicadas pelo que nós fazemos. devemos ser um pouco mais claros . e quando podemos ajudar os outros . Mas ao mesmo tempo as necessidades dos outros também são importantes. de facto. O egoísmo ético é a ideia de que cada pessoa tem a obrigação exclusiva de lutar pelos seus interesses. por exemplo.O que devemos fazer? Podemos pensar nisto como a perspectiva de "senso comum" sobre a questão: a moralidade supõe que 116 equilibremos os nossos próprios interesses com os interesses dos outros. Esta maneira de pensar implica um pressuposto geral sobre os nossos deveres morais: parte-se do princípio de que temos deveres morais para com as outras pessoas. uma teoria da natureza humana dedicada ao estudo de como as pessoas realmente se comportam. a maior parte das pessoas tem . Mas antes de nos debruçarmos sobre os argumentos. e não apenas deveres que nós mesmos criamos. então a moralidade de senso comum diria que devemos dar o dinheiro. se tivermos dez euros a mais. do ponto de vista moral. os interesses das outras pessoas contam por si. E compreensível. Assim. que olhemos pelos nossos próprios interesses.isto é. quaisquer deveres "naturais" para com as outras pessoas. O egoísmo psicológico afirma que as pessoas de facto lutam pelos seus próprios interesses. pelo contrário. fazendo uma promessa ou contraindo uma dívida.e não é fácil de refutar. há ainda assim muito que aprender com a sua análise. e se doá-los a uma agência de combate à fome puder ajudar a salvar uma criança. em qualquer caso. O egoísmo ético. o egoísmo ético afirma que o nosso único dever é fazer o melhor para nós mesmos. Mas o que para uma pessoa é senso comum é para outra uma ingénua banalidade. O pressuposto de senso comum é que. Contradiz algumas das nossas crenças morais mais profundas -convicções que. isso seria uma razão para devermos (ou não devermos) realizar essa acção. Mas mesmo que se revele falsa.especialmente quando isso não representa grande sacrifício para nós mesmos . naturalmente. é uma teoria normativa .devemos fazê-lo. Se uma dada acção favorecesse (ou prejudicasse) outras pessoas. terá naturalmente a maior importância. E diferente do egoísmo psicológico. o egoísmo ético não pressupõe que ao lutarmos pelos nossos próprios interesses tenhamos sempre de fazer o que queremos. O que a torna correcta é. Alguém pode querer beber em excesso. consumir drogas ou desperdiçar os melhores anos da sua vida nas corridas de automóveis. três linhas de raciocínio são usadas com mais frequência. pode mesmo recomendá-las. Logo. Pode acontecer em várias circunstâncias que os seus interesses coincidam com os interesses dos outros. e não estamos bem colocados para as satisfazer. é razoável pensar que se nos propuséssemos ser "os guardiões dos nossos irmãos".sobre o que esta teoria diz ou não diz ao certo. não sendo necessários argumentos. e este princípio resume todos os nossos deveres e obrigações naturais. O egoísmo ético torceria o nariz a tudo isto. a ajudá-los. o egoísmo ético não diz que devemos defender os nossos próprios interesses bem como os interesses dos outros. pelo que ao ajudar-se a si mesmo estaria. Em primeiro lugar. Ou pode dar-se o caso de que o auxílio aos outros seja um meio eficaz para obtermos alguma vantagem para nós mesmos. mais vezes afirmada do que defendida . mas não sanciona a parvoíce. cada uma delas sugerindo a mesma ideia geral: . o princípio do interesse próprio. O egoísmo ético é o ponto de vista segundo o qual o nosso único dever é promover os nossos próprios interesses. pelo contrário. A teoria insiste apenas que em tais casos o benefício para os outros não é o que torna a acção correcta. Para o egoísmo ético há apenas um princípio fundamental de conduta. fumar cigarros. Acresce que só conhecemos os desejos e necessidades das outras pessoas de forma imperfeita. 6. O primeiro argumento tem diversas variantes. de senso comum. cada um de nós está na melhor posição para procurar efectivamente a realização desses desejos e necessidades. iríamos com frequência confundir tudo e acabar por fazer mais mal do que bem.2 Três argumentos a favor do egoísmo ético Que argumentos podem ser apresentados para apoiar esta doutrina? A teoria é. O argumento de que o altruísmo se autoderrota.Cada um de nós está intimamente familiarizado com as suas próprias necessidades e desejos. ou aquilo que nos dá maior prazer a curto 118 prazo. No entanto. Sanciona o egoísmo. independentemente do prazer momentâneo que possa trazer. Isso seria uma perspectiva vulgar.muitos dos seus defensores pensam que a sua verdade é evidente por si. infelizmente. . o egoísmo ético não diz que devemos evitar acções que ajudam os outros. Além disso. na verdade. desejando-o ou não. Quando é defendida. o facto de ser realizada em proveito próprio. Por fim. O egoísmo ético não proíbe tais acções. O egoísmo ético afirma que uma pessoa deve fazer o que é de facto em seu próprio interesse a longo prazo. considera-se que a política de "cuidar dos outros" se autoderrota. No entanto. O argumento conclui que devemos adoptar determinadas políticas de comportamento. Essa é a razão pela qual os beneficiários da "caridade" se mostram com tanta frequência ressentidos e não gratos. um argumento a favor do egoísmo ético. nas palavras de Alexander Pope. e a afirmação é auto-realizável. se cada pessoa cuidar dos seus próprios interesses é mais provável que todos fiquem melhor. soas. com efeito. esta linha de pensamento tem um defeito ainda mais grave. Diz-se que devemos adoptar essas políticas porque fazê-lo promoverá "o aperfeiçoamento da sociedade" . . Assim sendo. pois. 120 considerada enquanto argumento a favor do egoísmo ético. com todas as cartas na mesa. Como afirma Robert G. o argumento afirma o seguinte: .mas segundo o egoísmo ético isso é algo que não nos deve preocupar. O problema é que não é. Olson no seu livro The Morality of Self-Interest (1965). de todo. Pelo contrário. Expresso de forma completa. que elas não são competentes para tratar de si mesmas. Mas podemos deixar de lado este aspecto. É claro que ninguém apoia a inépcia. "O indivíduo tem mais probabilidades de contribuir para o melhoramento social lutando racionalmente pelos seus próprios interesses de longo prazo". não devemos adoptar as chamadas políticas altruísticas de comportamento. Se queremos fazer o que é melhor para as pessoas. a intromissão. E possível contestar este argumento num sem-número de aspectos. A oferta de caridade diz. Ou.Acresce que a política de "cuidar dos outros" é uma intromissão ofensiva na privacidade das outras pes119 E assim Deus e a Natureza formaram o quadro geral Ordenando que o amor de si e da sociedade seja igual. ou que as pessoas sejam privadas do seu amor-próprio. Mas será isso que fazemos quando alimentamos crianças com fome? Uma criança esfomeada na Somália será realmente prejudicada quando nos "intrometemos" na "sua vida" ao fornecerlhe alimentos? Parece pouco provável..Tornar as outras pessoas o objecto da nossa "caridade" é degradante para elas. e à superfície parecem políticas egoístas. a razão pela qual se diz que devemos adoptar estas políticas é decididamente não egoísta. As pessoas deixam de ter confiança em si mesmas e tornam-se passivamente dependentes dos outros. priva-as da sua dignidade e amor-próprio. é essencialmente uma política baseada em metermo-nos na vida alheia. "a sua primeira preocupação não é como viver a sua vida. exigir a uma pessoa que abandone os seus projectos ou desista dos seus desenvolvidas de forma mais rigorosa por outros autores. uma sociedade que o trata a si como animal sacrificial e o penaliza pelas suas virtudes de forma a recompensá-/os pelos seus vícios. "Se um ser humano aceita a ética do altruísmo". em grande parte porque as ideias principais associadas ao seu nome .1) Devemos fazer o que melhor promover os interesses de todos. e que a moralidade requer respeito absoluto pelos direitos dos indivíduos . hoje. bestas e rufiões não têm qualquer valor para um ser humano .que o capitalismo é um sistema económico moralmente superior. em vez de se esforçarem para erguer e manter as suas vidas. quer nas vidas dos indivíduos a ela devotados. saqueadores. a indústria Ayn Rand continua a fortalecer-se. duas décadas após a sua . Diz a uma pessoa: A tua vida é apenas algo que'pode ser sacrificado. a uma negação do valor do indivíduo. Em vez de egoístas. o nosso princípio fundamental é de beneficência . exigências e protecção deles.estamos a fazer o que pensamos poder auxiliar todos. O altruísmo conduz. acabamos por nos revelar altruístas com uma perspectiva peculiar do que de facto promove o bem-estar geral. de projectos empreendidos e de bens ganhos e criados. Assim. Entre os autores do século xx. vadios. 3) Logo. Ayn Rand encarava a ética do "altruísmo" como uma ideia completamente destrutiva quer na sociedade como um todo. ou seja: uma sociedade baseada na ética do altruísmo. então não somos egoístas éticos. A vida de uma pessoa é feita. Mesmo que acabemos por nos comportar como egoístas. e não apenas o que pensamos nos irá beneficiar a nós. Se aceitamos este raciocínio. Ayn Rand não é muito lida por filósofos. Os que promovem a ética do altruísmo são mais que desprezíveis . na sua maneira de pensar. foi uma figura carismática que atraiu admiradores fiéis durante a sua vida e. O argumento de Ayn Rand.nem pode [um ser humano] ganhar coisa alguma com o facto de viver numa sociedade adaptada às necessidades. Escreve ela: Parasitas. 2) A melhor forma de promover os interesses de todos é cada um de nós adoptar a política de cuidar exclusivamente dos seus próprios interesses. escreve ela. em parte. Quando diz "sacrificar a sua própria vida" Rand não quer dizer algo tão dramático como morrer. Não obstante. a ideia do egoísmo ético está provavelmente mais estreitamente associada a Ayn Rand que a qualquer outra pessoa.são parasitas que.são 121 morte. mas como sacrificá-la". sugam aqueles que o fazem. cada um de nós deve adoptar a política de cuidar exclusivamente dos seus próprios interesses. bens é um esforço para "sacrificar a sua vida". É a única ética que. Aquilo a que .] o valor de uma vida individual. não será impedido'. ético. ela respondeu: 'Se você quer ajudá-los. de alguma forma. penso. Um problema deste argumento. Afinal de contas. a ética do altruísmo não toma a sério o valor do indivíduo humano. Rand também insinua que há uma base metafísica para a ética egoísta.diz-se que a "ética do altruísmo" é a perspectiva segundo a qual os nossos próprios interesses não têm qualquer valor.. toma 122 2) A ética do altruísmo encara a vida do indivíduo como algo que devemos estar prontos a sacrificar para o bem dos outros. a única filosofia que o faz. Mas isso dificilmente pode considerar-se uma boa representação das escolhas. é pressupor que temos apenas duas opções: ou aceitamos a "ética do altruísmo" ou aceitamos o egoísmo 123 a sério a realidade da pessoa individual.isto é..neste caso. Que fazer. que permite a cada pessoa encarar a sua vida como tendo um valor fundamental. Mas Rand cita de forma aprovadora a resposta dada por um dos seus seguidores: "Quando. leva a sério o indivíduo humano . Se esta fosse a' alternativa. mesmo o egoísmo ético. isso revela um espírito do qual foi varrido a realidade de um ser humano". qualquer outra perspectiva. 4) Logo. se o indivíduo tem valor moral." Todas estas afirmações são. Barbara Brandon foi questionada por um estudante sobre o que irá acontecer aos pobres. das crianças com fome? Poderia argumentar-se que o próprio egoísmo ético "revela um espírito do qual foi varrido a realidade de um ser humano" . o egoísmo ético é a filosofia que devemos aceitar. é só isso que temos e só isso que somos.é. então. Logo. parte de um só argumento que pode ser resumido desta forma: 1) Uma pessoa só tem uma vida para viver. na realidade. o ser humano que está a morrer de fome. certa vez. Faz-se então a escolha parecer óbvia ao retratar "a ética do altruísmo" como uma doutrina demente que apenas um idiota poderia aceitar .então devemos concordar que a sua vida tem uma importância suprema. Se valorizamos o indivíduo . pareceria boa por comparação. 3) O egoísmo ético. como o leitor poderá já ter notado. pelo que devemos estar prontos a sacrificar-nos totalmente sempre que qualquer pessoa o peça. Rand lamenta "até que ponto o altruísmo corrói a capacidade de os homens compreenderem [. do ponto de vista teórico. Assim.O dever de não fazer mal aos outros: Se nos habituamos a fazer coisas prejudiciais aos outros. outras vezes. . O egoísmo ético seria. Afirma que os nossos próprios interesses e os interesses dos outros são ambos importantes e devem ser sopesados. dizer a verdade. É possível. no entanto. verificamos que devemos agir em função dos interesses dos outros. evitar magoar os outros é algo que nos beneficia a nós mesmos. quanto mais pequeno o número de princípios básicos melhor. quando apoiamos os diferentes interesses. interpretar o egoísmo ético de uma forma muito menos radical. E consegue ser surpreendentemente bem sucedido. O egoísmo ético enquanto compatível com a moralidade de senso comum. as pessoas não sentirão relutância em fazer coisas que nos prejudiquem. isto é. então. mesmo rejeitando a visão extrema da "ética do altruísmo". Portanto. O egoísmo ético é habitualmente apresentado como uma filosofia moral revisionista. os outros não quererão ser nossos amigos nem nos farão favores quando precisarmos.são apenas 124 um conjunto de regras separadas. verificamos que devemos cuidar de nós mesmos. Do ponto de vista teórico.chamámos a perspectiva de senso comum situa-se entre os dois extremos. o egoísmo ético não é uma doutrina assim tão radical. Entendido desta forma. a partir do qual derivasse tudo o resto. A terceira linha de argumentação faz uma abordagem de tipo diferente. uma filosofia segundo a qual as nossas ideias morais de senso comum estão erradas e precisam ser alteradas. Seremos evitados e desprezados. O ideal seria um princípio fundamental. assim como na física há princípios básicos que unificam e explicam fenómenos diversificados. A interpretação menos radical afirma o seguinte: A moralidade comum consiste em obedecer a certas regras. Pode fornecer explicações plausíveis dos deveres mencionados e mais ainda: . como uma teoria que aceita a moralidade de senso comum e fornece uma explicação surpreendente dos seus fundamentos. No entanto. podemos até acabar na cadeia. Por vezes. podemos perguntar se não haverá uma unidade subjacente à mistura de diferentes deveres. Talvez exista um pequeno número de princípios fundamentais para explicar o resto. daí não se entende que devemos aceitar a outra visão extrema do egoísmo ético. pois há um meiotermo disponível. e assim por diante. cumprir as nossas promessas. À primeira vista. a teoria segundo a qual todos estes deveres são em última instância derivados de um princípio fundamental de interesse próprio. Não põe em causa a moralidade de senso comum. estes deveres parecem ter pouco em comum . apenas tenta explicá-la e sistematizá-la. Se as nossas ofensas aos outros forem muito sérias. Devemos evitar fazer mal aos outros. apesar de poder ser usualmente vantajoso evitar fazer mal aos outros. na minha opinião pelo menos. há um problema ainda mais fundamental. . nada no argumento agora descrito apoia realmente isso. que doar dinheiro para o combate à fome nos 126 pode. Vamos precisar com frequência que as pessoas sejam sinceras connosco. não prova tudo o que precisa de provar. apesar de o egoísmo ético afirmar que o interesse próprio é a única razão pela qual devemos ajudar os outros. Assim. ajudar as pessoas com fome. O facto de que fazer isso é também no nosso próprio interesse poderia ser apenas uma consideração secundária e menos importante. Assim.O dever de não mentir: Se mentirmos aos outros. As pessoas vão desconfiar de nós e evitarem manter contactos connosco. Logo. precisamos poder confiar em que elas vão cumprir a sua parte do contrato. Thomas Hobbes sugeriu que o princípio do egoísmo ético conduz a nada mais nada menos que a Regra de Ouro: Devemos "ajudar os outros" porque se o fizermos será mais provável que eles "nos ajudem a nós". Mas dificilmente poderemos esperar que os outros cumpram as suas promessas para connosco se nós não mantemos as nossas para com eles. Suponhamos que é verdade. por vezes não o é. devemos cumprir as nossas promessas. Mas. parece que nem todas as nossas obrigações morais podem ser explicadas em termos de serem deriváveis do interesse próprio. pois. Não mostra que isso é sempre vantajoso para nós. Será que este argumento consegue estabelecer o egoísmo ético como uma teoria moral viável? Trata-se. Mas há dois problemas sérios com o argumento. Não se segue daí que esta seja a única razão. beneficiar. Na melhor das hipóteses. por exemplo. Prosseguindo esta linha de raciocínio..O dever de cumprir as promessas: É no nosso próprio interesse entrar em acordos mutuamente benéficos com outras pessoas. de alguma forma. pela qual fazer isso é bom. mostra apenas que na maior parte das vezes é benéfico para nós evitar fazer mal aos outros. por exemplo. Para beneficiar desses acordos. sofreremos todos os efeitos* nefastos de uma má reputação. temos vantagens em não mentir. da melhor tentativa para o fazer. do ponto de vista do interesse próprio. pondo de lado esse aspecto. Nesse caso. A razão fundamental poderia ser. ou mesmo a razão fundamental. 125 . Assim. mas dificilmente poderemos esperar que se sintam obrigadas a ser sinceras connosco se nós não fomos sinceros com elas. Em primeiro lugar. a obrigação de não fazer mal à outra pessoa não poderia ser deduzida dos princípios do egoísmo ético. Por vezes podemos tirar benefícios de tratar mal outra pessoa. precisamos de poder confiar que vão cumprir as promessas que nos fizeram. E não poderia fazê-lo. tirados de vários jornais: Para aumentar os seus lucros. para desacreditar a doutrina. ameaçando asfixiar as outras ideias. alguém podia de facto obter algum benefício para si mesmo. Uma menina de treze anos foi raptada por um vizinho.6. um farmacêutico aviou receitas para pacientes de cancro usando medicamentos diluídos. durante os quais foi submetida a abusos sexuais. alegando que a papa 127 do bebé estava contaminada. os filósofos não prestaram muita atenção ao que poderíamos pensar que é o argumento mais óbvio contra o egoísmo ético. evitar ser apanhado. ao fazer estas coisas. só por si. essas acções beneficiem a pessoa que as pratica.3 Três argumentos contra o egoísmo ético A filosofia moral está assombrada pelo egoísmo ético. contudo. Podemos. Os argumentos que se seguem são típicos das refutações que eles propuseram. quase todos sentiram a necessidade de explicar por que razão a rejeitavam. Eis alguns exemplos. pois. À medida que eram debatidos os méritos das várias "refutações". No seu livro The Moral Point of View (1958). os filósofos voltaram a ela uma e outra vez. como se a possibilidade de essa doutrina poder estar correcta fosse uma presença constante. Mas. poderia dizer-se que há uma petição de princípio neste argumento contra o egoísmo ético. os filósofos mais importantes rejeitaram-na frontalmente. a saber. Suponhamos que. O argumento de que o egoísmo ético não pode resolver conflitos de interesse. porque ao afirmar que estas acções são malévolas. Um bebé ingeriu ácido dado pelos pais que assim queriam forjar motivos para um processo criminal. perguntar se não haverá qualquer outro problema com o egoísmo ético. Penso que é uma acusação válida. Só precisamos de . algemada e mantida num abrigo subterrâneo durante 181 dias. é claro. face ao qual não se incorra em petição de princípio. que iria justificar acções perversas desde que. Isso implica. Kurt Baier defende que o egoísmo ético não pode estar correcto porque não pode oferecer soluções para conflitos de interesses. Um paramédico deu a dois pacientes de urgências injecções com água esterilizada em vez de morfina. Mas nunca esteve longe dos seus pensamentos. estamos a apelar para uma concepção não egoísta de maldade. podendo escapar às malhas da lei. Apesar de nenhum pensador importante a ter defendido. Curiosamente. Um enfermeiro violou duas pacientes enquanto estavam inconscientes. Não é uma doutrina popular. de modo a poder vender a morfina. alguns filósofos tentaram mostrar que há problemas lógicos mais profundos com o egoísmo ético. Assim. naturalmente. não teria o egoísmo ético de afirmar que tais acções são permissíveis? Isto parece suficiente. que insta cada um dos lutadores a darem o seu melhor. e se pensamos que uma teoria ética devia fazê-lo. Mas se o ponto de vista da moralidade fosse o do .se nunca se opusessem. e o princípio que ele aceita . por exemplo.o princípio do egoísmo ético concede a cada pessoa o direito de fazer o seu melhor para vencer. O argumento dá por adquirido que uma moralidade adequada deve fornecer soluções para conflitos de interesses de tal modo que todos possam viver juntos de forma harmoniosa. Por isso.regras morais. sabendo que a sua própria derrota serve os interesses de B e. se a concepção de moralidade para a qual faz apelo for aceite. e vice-versa. Mas um defensor do egoísmo ético poderia responder que não aceita esta concepção de moralidade. afirma. ao invés. apenas os exacerba. Nesta perspectiva. Pois a moralidade é concebida justamente para se aplicar a tais casos. Mas disto seguir-se-ia que B deveria derrotar K. "Não teria cumprido o seu dever" até ter a certeza de ter vencido B [. então não haveria problemas a resolver e por isso não haveria necessidade do tipo de orientação que a moralidade oferece.. Baier defende esta ideia por meio de um exemplo curioso: Suponhamos que B e K são candidatos à presidência num certo país e suponhamos que serve os interesses de cada candidato ser eleito. Mas o egoísmo ético não ajuda a resolver conflitos de interesses. O conflito entre B e K. De modo análogo. mas apenas um pode consegui-lo. prevendo as tentativas de B para a assegurar. Será que este argumento prova que o egoísmo ético é inaceitável? Prova.. que é errado B não o fazer. deveria ser resolvido de tal modo que nunca mais estivessem em desavença um com o outro. como o árbitro do boxe. K.) O egoísmo ético não faz isso. isto é. que B não "fez o seu dever" até derrotar K. (Nunca mais teriam o dever de fazer algo que o outro tem o dever de impedir. a resolver disputas. É. por isso. o 129 então os interesses de B e seria contra os interesses de K se B fosse eleito.] Isto é obviamente absurdo. a vida é essencialmente uma longa série de conflitos na qual cada pessoa luta para triunfar. e vice-versa. Para ele. e portanto serviria os interesses de B mas seria contra os interesses de K se K fosse derrotado. deve envidar esforços para malograr os intentos de B. então nunca poderia haver soluções morais para conflitos de interesses. então o egoísmo ético não nos parecerá aceitável. porque os nossos interesses por vezes entram em conflito . Seria errado para si não o fazer. nos casos em que há conflito de interesses. o moralista não é como um juiz no tribunal. e vice-versa. Serviria 128 interesse próprio. e não errado porque é o que K deve fazer. A contradição lógica . Explicitado de forma completa. Quando se exprime o argumento desta maneira podemos ver o seu defeito oculto. Pelo contrário. 2) Liquidar K. pelo que precisamos de o delinear identificando cada passo individualmente. sendo errado K não o fazer. tem o aspecto seguinte: 1) Suponha-se que o dever de cada pessoa é fazer o que melhor defende os seus interesses. 9) Logo. e é obviamente no interesse de K evitá-lo. O egoísta não fica embaraçado com este facto. sendo errado B não o fazer. Argumentaram que conduz a contradições lógicas. pensa que é apenas uma perspectiva realista da natureza das coisas. O argumento de que o egoísmo ético é inconsistente no plano lógico. o seu dever. se K impedir B de o liquidar. o pressuposto do qual partimos -que é o dever de cada pessoa fazer o que melhor defende os seus interesses . e o dever de K é impedir B de o fazer.errado porque impede B de fazer o que deve fazer. afirma Baier. Se isto é verdade.não se segue pura e simplesmente dos princípios do egoísmo ético. 8) Mas nenhum acto pode ser ao mesmo tempo errado e não errado. 3) Impedir B de o liquidar. 7) Logo. Vejamos: será que este argumento prova que o egoísmo ético é inaceitável? À primeira vista parece persuasivo. é um argumento complicado. o seu dever.não pode ser verdadeiro. Mas um mesmo acto não pode ser (logicamente) ao mesmo tempo errado e não errado no plano moral. Mas. pois nenhuma teoria pode ser verdadeira se for autocontr aditória. Considere-se de novo B e K. é do interesse de B matar K.segundo a qual é ao mesmo tempo errado e não errado para K impedir B de o liquidar . No entanto. é simultaneamente errado e não errado para K impedir B de o liquidar. 130 4) Logo. é o melhor para os interesses de K. . isso é uma autocontradição. entre eles Baier. é errado para K impedir B de o liquidar. Alguns filósofos. 6) Logo. 5) É errado impedir^alguém de cumprir o seu dever. o dever de B é liquidar K.conflito entre B e K será "solucionado" não pela aplicação de um princípio ético mas pela vitória de um deles na luta. dirigiram ao egoísmo ético uma acusação ainda mais grave. então o egoísmo ético é de facto uma teoria errada. o seu acto tem de ser classificado simultaneamente como errado e não errado . é o melhor para os interesses de B. Ficaremos depois numa posição mais vantajosa para o avaliar. Tal como Baier explica a dificuldade de B e K. raramente tentam apresentar bases racionais para as suas convicções. e portanto esta tentativa de condenar o egoísta por autocontradição fracassa. ela é. Isso seria certamente o que o egoísta ético faria. e assim por diante.os racistas. pois ele nunca iria dizer. Chegamos finalmente ao argumento que me parece chegar mais perto de uma refutação imediata completa do egoísmo ético.Segue-se desses princípios juntamente com a premissa adicional expressa no ponto 5. que "a minha raça é mais importante". porque permite vislumbrar o motivo pelo qual os interesses das outras pessoas devem ter importância para nós. normalmente. sem restrições. antes de apresentar este argumento. precisamos atentar brevemente num aspecto geral dos valores morais. pelo contrário. As pessoas influenciadas por estas perspectivas pensam. obrigados pela lógica do argumento a rejeitar o egoísmo ético. Não somos. que é sempre errado impedir alguém de cumprir o seu dever. a saber: Só podemos justificar o tratamento diferenciado das pessoas se pudermos mostrar que há uma diferença factual entre elas que seja relevante para justificar a diferença de tratamento. Assim. que saber se devemos impedir alguém de cumprir o seu dever depende inteiramente de saber se daí advém alguma vantagem para nós. Mas suponhamos que o faziam. rejeitar simplesmente esta premissa adicional. O anti-semitismo funciona da mesma forma. O resultado prático é que os membros de uma raça são melhor tratados do que os outros. isto poderia ser justificado sublinhando que a primeira se formou com distinção na escola secundária e teve bons resultados no teste de admissão. Mas. Ele diria. por exemplo. ponhamos de lado o egoísmo ético por um momento para reflectir neste assunto com ele relacionado. com efeito. "os que acreditam na minha religião são mais importantes" ou "o meu país é mais importante". o racismo divide as pessoas em grupos segundo a raça e concede mais importância aos interesses de uma raça do que aos outros. Há toda uma família de perspectivas morais que têm em comum o seguinte: Todas implicam dividir as pessoas em grupos e em afirmar que os interesses de alguns grupos têm mais importância do que os de outros. Podem tais pontos de vista ser defendidos? As pessoas que aceitam estas perspectivas não estão. Por exemplo. Õ racismo é o exemplo mais óbvio. Pensemos ou não que esta é uma perspectiva correcta. que "é errado impedir alguém de cumprir o seu dever". uma perspectiva consistente. e a contradição seria evitada. O argumento de que o egoísmo ético é inaceitavelmente arbitrário. O que poderiam dizer? Há um princípio geral que barra o caminho a uma tal defesa. e o nacionalismo também. Podíamos. enquanto a segunda abandonou a escola e não fez o teste. É também o argumento mais 131 interessante. muito interessadas em argumentações . se uma pessoa é aceite numa faculdade de Direito e outra é rejeitada. . pelo menos. a saber. pois. ao invés. e outras coisas que tais. falhos de ambição. que possa justificar tratá-los de maneira diferente? Os racistas tentaram por vezes fazer isso descrevendo os negros como estúpidos. perguntar o seguinte: Pode um racista apontar uma diferença entre. qual é afinal a diferença entre mim e todos os outros que justifica colocar-me a mim mesmo nesta categoria especial? Serei mais inteligente? Gozarei mais a minha vida? Serão as minhas realizações mais notáveis? Terei necessidades e capacidades assim tão diferentes das necessidades e capacidades dos outros? Em resumo. o egoísmo ético revela-se uma doutrina arbitrária. poderia justificar-se tratá-los de forma diferente. Mas. oferecer as "diferenças relevantes" necessárias para justificar as diferenças de tratamento. então é meramente arbitrário admitir uma e não a outra. o racismo é uma doutrina arbitrária.e que encare os interesses dos do primeiro grupo como mais importantes do que os interesses dos do segundo grupo. o que me torna tão especial? Ao não fornecer uma resposta. Além de explicar a razão pela qual o egoísmo ético é inaceitável. (Este é o propósito de fundo dos estereótipos racistas. Consideremos. então também as suas o devem ser. Mas qual é a diferença entre nós e eles? A fome afecta-os menos? Serão de alguma forma menos merecedores do que nós? Se não conseguimos descobrir qualquer diferença relevante entre nós e eles.se estivéssemos a morrer à fome faríamos quase tudo para obter comida.nós e todos os outros . pelo menos em algumas circunstâncias. se ambas as pessoas completaram os estudos secundários com distinção e tiveram bons resultados no exame de admissão . e de facto não há tais diferenças genéricas entre as raças. uma última vez. isto lança também alguma luz sobre a questão de saber por que devemos importar-nos com os outros.) Mas naturalmente isso não é verdade. é claro .se em todos os aspectos relevantes são igualmente qualificadas -. É esta tomada . Porque razão deveríamos preocupar-nos com elas? Preocupamo-nos connosco mesmos. brancos e negros.No entanto. pois os seus desejos e necessidades são comparáveis aos nossos. as crianças a morrer à fome que poderíamos alimentar desistindo de alguns dos nossos luxos. O egoísmo ético é uma teoria moral do mesmo género. Devemos. Portanto. devemos então admitir que se as nossas necessidades devem ser satisfeitas. 132 133 Devemos importar-nos com os interesses das outras pessoas pela mesma razão que nos importamos com os nossos. pois. Se isso fosse verdade. digamos. Advoga que cada pessoa divida o mundo em duas categorias de pessoas . pode cada um de nós perguntar. no mesmo sentido em que o racismo é arbitrário. pois advoga o tratamento diferenciado das pessoas apesar de não existirem entre elas diferenças que o justifique. portanto. que constitui a razão mais profunda pela qual a nossa moralidade deve incluir algum reconhecimento das necessidades dos outros. e a razão pela qual.de consciência. o egoísmo ético fracassa enquanto teoria moral. 134 . de que estamos em plano de igualdade uns com os outros. quase de forma unânime. igualdade e fraternidade". não é uma questão de agradar a Deus. Não é de surpreender que no meio de toda esta mudança as pessoas pudessem começar a pensar de forma diferente sobre a ética. a argumentação de Bentham para uma nova concepção de moralidade teve uma poderosa influência. Temos de perguntar. Ou. indiferente. uma teoria proposta por David Hume (1711-1776) mas cuja formulação definitiva coube a Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). nem uma questão de fidelidade a regras abstractas. as revoluções de 1848 mostraram a persistência do poder das novas ideias de "liberdade. agora. a saber. sempre que temos a possibilidade de escolher entre acções ou políticas sociais alternativas. Bentham defendia que há um princípio moral essencial. o que os justifica?" A resposta é. como ele disse no livro Princípios da Moral e da Legislação. As velhas maneiras de pensar eram colocadas em causa. O moderno Estado-nação começou a emergir na sequência da Revolução Francesa e da derrocada do Império napoleónico. "se o fim não justifica os meios. escolhamos aquela que. a Revolução Industrial dava origem a uma completa reestruturação da sociedade. na América. tem melhores consequências para todos os envolvidos. à escravatura na civilização ocidental. finalmente. alterar a forma como as pessoas pensam.1 A revolução na ética Os filósofos gostam de pensar que as suas ideias podem mudar o mundo. A moralidade é apenas um esforço para trazer a este mundo tanta felicidade quanto possível. O utilitarismo. Algumas vezes. entretanto. abrindo-se ao debate. a doutrina sentenciosa de que "o fim não justifica os meios". no entanto. A moralidade. JOSEPH FLETCHER. tratase de uma vã esperança: escrevem livros que são lidos por pensadores como eles. "Nada!". 135 tumultos sociais. foi criado um país novo com um tipo novo de Constituição. "o princípio da utilidade". e a sua guerra civil sangrenta acabaria por pôr fim. Contra este pano de fundo. defendia Bentham. uma teoria filosófica pode.Capítulo 7 A abordagem utilitarista Tendo em conta a nossa perspectiva actual. obviamente. Moral Responsibility (1967) 7. enquanto o resto da humanidade prossegue a sua vida. publicado no ano da Revolução Francesa: A ABORDAGEM UTILITARISTA Os finais dos séculos xvm e xix produziram uma surpreendente série de mudanças e . Este princípio requer que. é um desses casos. Geralmente. no seu todo. é surpreendente que a ética cristã tenha aceitado ao longo dos séculos. viria a tornar-se o principal defensor da teoria moral utilitarista na geração seguinte. Quem poderia contestar a proposição de que devemos opor-nos ao sofrimento e promover a felicidade? No entanto. e não apenas a ela. ainda mais elegante e persuasiva que a do mestre. mas. o fim da acção humana. perguntar qual o curso de acção que irá promover a maior felicidade para todos os que serão afectados pelos nossos actos. isto pode não parecer uma ideia particularmente radical. segundo a opinião utilitarista. na máxima extensão possível. pois. John Stuart Mill. pois.Pelo princípio de utilidade designa-se aquele princípio pelo qual todas as acções se aprovam ou desaprovam em função da tendência que pareçam ter para aumentar ou diminuir a felicidade de quem tem os seus interesses em causa. No seu pequeno livro Utilitarismo (1861). Um dos seus seguidores era James Mill. Bentham e Mill estavam. Primeiro. 136 137 Ao decidir o que fazer. A moralidade exige que façamos o que é melhor desse ponto de vista. a todas as criaturas sencientes. Bentham era líder de um grupo de filósofos radicais cujo objectivo era reformar as leis e as instituições de Inglaterra segundo as linhas utilitaristas. relativamente ao qual e em função do qual todas as outras coisas são desejáveis (quer consideremos o nosso próprio bem quer o bem de outras pessoas). o distinto filósofo. é também necessariamente o padrão da moralidade. A arguição de John Stuart Mill era. devemos. historiador e economista escocês. no mínimo. para promover ou opor-se à felicidade. Bentham teve a felicidade de ter estes discípulos. garantida a toda a Humanidade. A regra fundamental da moralidade pode. . ou. Mill apresenta a ideia principal da teoria da seguinte maneira. É agir de modo a realizar este estado de coisas. e tão rica quanto possível de prazeres. de facto.um estado de coisas no qual todas as pessoas sejam tão felizes e abastadas quanto possível: De acordo com o princípio da maior felicidade [.] o fim último. que pode por isso ser definido. o que é a mesma coisa dita por outras palavras. na medida em que seja possível: Sendo este. à sua maneira. imaginamos a possibilidade de um determinado estado de coisas que gostaríamos de ver concretizado . pode parecer um truísmo suave... pelo que o movimento benthamista não perdeu força alguma mesmo depois da morte do seu fundador. como as regras e preceitos da conduta humana. pela observância dos quais uma existência como a descrita pode ser. À primeira vista. ser enunciada de forma simples. O filho de James Mill. é uma existência tanto quanto possível isenta de dor. tanto quanto a natureza das coisas o permite. deitado na cama. Tudo isto clama por um juízo indulgente. o lábio superior. de 36 anos. O irmão mais novo.2 Primeiro exemplo: eutanásia Matthew Donnelly era um físico que trabalhou com raios X durante trinta anos. Isto é. o nariz. segundo a tradição moral dominante da nossa sociedade. 138 A ABORDAGEM UTILITARISTA 7. Matthew pedira para morrer. as de Marx e Darwin. pelo que só Deus pode . Um cronista afirmou que "nos piores momentos. Dois recusaram. Sabendo que ia morrer de qualquer das maneiras. Harold Donnelly. mas ele decidiu que não queria continuar a viver em tal estado. viam-se gotas de suor a correr-lhe pela fronte".ou mesmo exigido fazer o que for necessário para promover essa felicidade. Além disso. contraiu cancro e perdeu parte da sua maxila. mas o último não. de dentes cerrados. A tradição moral dominante da nossa sociedade é. Pretendiam que a sua doutrina não tivesse apenas efeitos no pensamento mas também na prática. Além de filósofos. e levanta naturalmente a questão de saber se Harold Donnely fez mal. e desejando escapar à sua desgraça. podemos pensar que foi motivado por sentimentos nobres. Por um lado. uma ideia revolucionária. naturalmente. Estas matérias não esgotam. uma boa indicação do tipo de abordagem característica do utilitarismo. de facto. Mas dão. nem são necessariamente as questões que os utilitaristas considerariam mais urgentes. Os médicos do Sr. vamos examinar brevemente as implicações da sua filosofia em duas questões práticas bastante diferentes: a eutanásia e o tratamento de animais nãohumanos. os utilitaristas eram reformadores sociais. e nada mais. e é-nos permitido . naquele tempo. A moralidade deixa de ser entendida como fidelidade a um tipo de código legado pela divindade ou a um conjunto de regras inflexíveis. O cristianismo defende que a vida humana é uma dádiva de Deus. a tradição cristã. No entanto. levou para o hospital uma pistola de calibre 30 e matou Matthew. Donnelly pediu aos seus três irmãos para o matarem. amava o irmão e apenas desejava libertá-lo do sofrimento. Sentia dores permanentes. o que Harold Donnelly fez é inaceitável. infelizmente. O objectivo declarado da moralidade é a felicidade dos seres deste mundo. Para entender o radicalismo do princípio de utilidade temos de considerar o que deixa de fora da sua representação da moralidade: são abandonadas quaisquer referências a Deus ou a regras morais abstractas "estabelecidas nos céus". Para ilustrar isto.a liderar uma revolução tão radical quanto qualquer uma das duas outras grandes revoluções intelectuais do século xix. Donnelly disseram-lhe que tinha cerca de um ano de vida. Isso era. de forma alguma. uma história verdadeira. Talvez devido à exposição excessiva à radiação. as aplicações práticas do utilitarismo. a mão esquerda e ainda dois dedos da mão direita. como referi. Além disso. ficou cego. com os da utilidade. Bentham afirma que a religião iria aprovar. logo. Mais tarde. mutilado e em dor permanente. e não condenar. Esta concepção moldou. Mas outros tipos de morte. É por isso que nos sentimos tão relutantes em desculpar Harold Donnely. cego.decidir quando acabará. regra afirmando que o homicídio intencional de pessoas inocentes é sempre errado. segundo a nossa tradição moral. Para resumir a doutrina da Igreja. sobretudo para permitir a pena capital e o acto de matar em situação de guerra. Se Harold . em todos os casos. não depende de concepções teológicas e não dá lugar a "regras" inflexíveis -. Levar-nos-ia a perguntar: tendo em conta as alternativas ao dispor de Harold Donnelly.. Matá-lo ofereceria uma fuga a esse sofrimento. os utilitaristas concluem que a eutanásia pode. as atitudes ocidentais acerca da moralidade e do acto de matar. o que fez está errado. Chamam-lhe benevolente em palavras. fosse universalmente concebido como tão benevolente que é. os utilitaristas clássicos não pensavam estar a advogar uma filosofia ateia ou anti-religiosa. Quanta infelicidade implica isso? É difícil dizer ao certo. se o Ser. é claro. foram admitidas algumas excepções. continuará a viver. por si só. Logo.] Mas entre os devotos da religião (entre os quais a multifacetada fraternidade dos cristãos é apenas uma pequena parte) parece haver poucos (não direi quão poucos) verdadeiros crentes na sua benevolência. o ponto de vista utilitarista se os seus apoiantes levassem a sério a sua ideia de Deus como criador benevolente. Ele matou intencionalmente uma pessoa inocente. o próprio Matthew Donnely. mesmo que ele possa ter agido movido por sentimentos nobres. continuaram proibidos. O utilitarismo faz uma abordagem muito diferente. Escreve Bentham: Os ditames da religião coincidiriam. A Igreja antiga proibia todo o tipo de homicídio.como disse antes. talvez durante mais um ano. ser moralmente correcta. num caso como este. pois acreditava que os ensinamentos de Jesus neste assunto não permitiam excepções à regra. os teólogos formularam uma 139 não o matar. nomeadamente o suicídio e a eutanásia. sábio e poderoso [. supos140 A ABORDAGEM UTILITARISTA tamente. mais do que qualquer outra ideia. que é objecto da religião.. qual delas teria as melhores consequências globais? Qual acção produziria o maior equilíbrio entre felicidade e infelicidade para todos os envolvidos? A pessoa mais atingida seria. Apesar de este tipo de argumento ser muito diferente daquilo que encontramos na tradição cristã . mas não querem com isso dizer que o seja na realidade. mas o testemunho do próprio Matthew Donnelly é que se sentia tão infeliz nestas condições que preferia a morte. isto seria dizer exactamente o que Bentham afirmou com a frase "Chamam-lhe benevolente em palavras. físico ou mofai. porque esta conduta não prejudica terceiros. O seu próprio bem. sobre qual deveria ser a finalidade da lei. para os utilitaristas clássicos. por exemplo. bem como a nossa tradição legal. Donnelly sofra durante mais um ano antes de morrer. mais geral. Nos Estados Unidos é simplesmente considerada homicídio. a maioria das pessoas religiosas não concordam com Bentham. não é garantia suficiente [. contra a sua vontade. as leis proibindo a eutanásia não são apenas contrárias ao bem-estar geral. Em particular. Bentham estudou Direito. (Não sei o que aconteceu em tribunal. a leis regulando a conduta sexual "consentida entre adultos". nenhum tipo de actividade deve ser proibido. a interferir com a liberdade de acção de qualquer um dos seus membros. quando escreveu no seu ensaio Sobre a Liberdade (1859): O único fim para a realização do qual a humanidade está autorizada. e concebia o princípio de utilidade como um guia para as pessoas comuns e os legisladores tomarem decisões morais. Desta forma. deveria também tornar-se legal? Esta questão está ligada a outra. o indivíduo é soberano.. individual e colectivamente. a menos que. ao realizá-lo. Bentham opunha-se. é prevenir que seja feito mal a outros. e porque tais leis diminuem a felicidade em vez de a aumentar. na perspectiva utilitarista.A moralidade da morte misericordiosa pode ser um exemplo relevante. sobre o seu corpo e espírito. a eutanásia é moralmente aceitável. é a autodefesa. O único propósito para a realização do qual o poder deve ser devidamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada. evoluíram sob influência do cristianismo. uma pessoa prejudique os outros. Se alguém dissesse que Deus é bondoso mas exige que o Sr. são igualmente restrições injustificáveis sobre o direito das . e a nossa tradição moral. No entanto. Mas foi Mill querft deu a este princípio a sua expressão mais eloquente.) O que diria o utilitarismo sobre isto? Se. A finalidade da lei é a mesma da moralidade: deve promover o bem-estar de todos os cidadãos. apesar de ser comum em tais casos o arguido ser considerado culpado de um crime menor e condenado a uma pena mais leve. A eutanásia é ilegal em todos os países ocidentais com excepção da Holanda. mas não querem com isso dizer que o seja na realidade". Bentham poderia perguntar como pode um Deus benevolente proibir a morte de Matthew Donnelly. não deve restringir a liberdade dos cidadãos mais do que o 141 necessário.] Sobre si mesmo. Bentham considerava óbvio que se a lei deve servir este propósito.. e Harold Donnelly foi por isso devidamente preso e acusado. São Tomás de Aquino resumiu a perspectiva tradicional quando escreveu o seguinte: Desta forma se refuta o erro daqueles que afirmaram ser pecaminoso para o Homem matar animais irracionais: pois. pelo menos quando é para eles uma questão prática. estava a ajudá-lo a pôr termo à sua vida de uma maneira que ele tinha escolhido. não é errado para o Homem fazer uso deles. em categorias morais separadas. Estritamente falando. ou o suicídio assistido. mas afirma que a razão disso tem que ver com o bem-estar do ser humano. Não foi feito mal algum a ninguém mais. os animais não têm qualquer posição moral própria. 142 A ABORDAGEM UTILITARISTA 7. Quando Harold Donnelly matou o seu irmão. matar um pássaro com as suas crias. As pessoas e os animais estão. quer matando-os quer de qualquer outra forma. A maioria dos americanos parece concordar com este ponto de vista.3 Segundo exemplo: os animais não-humanos O tratamento dos seres não-humanos não tem sido tradicionalmente encarado como uma questão moral de grande importância.pessoas de controlar as suas próprias vidas. A tradição cristã afirma que só o ser humano é feito à imagem de Deus e que os meros animais nem mesmo têm alma. embora não saibamos se o pedido foi satisfeito. muitos dos . 60% dos doentes terminais considerou que a eutanásia. por exemplo. pela providência divina. Assim. Mas não será errado ser cruel para os animais? Tomás de Aquino aceita que é. Temos liberdade para os tratar de qualquer maneira que nos pareça vantajosa. por receio de que sendo cruel para os animais uma pessoa se torne cruel para os seres humanos. a doutrina tradicional pode deixar-nos um pouco inquietos: parece bastante extrema na sua falta de consideração pelos animais. e não com o bem-estar dos animais em si: Se alguma passagem das Sagradas Escrituras parece proibir-nos a crueldade para com os animais irracionais. diz-se que o próprio Bentham solicitou a eutanásia nos seus últimos dias. 143 Quando é formulada de forma tão crua. eles são destinados na ordem natural das coisas para o uso do Homem. Em coerência com a sua filosofia. a ordem natural das coisas permite aos seres humanos usar os animais para qualquer propósito que entendam. para quem faz a acção ou para outro. e por isso não dizia respeito a mais ninguém. portanto. isto é assim ou para afastar os pensamentos do Homem da crueldade para com outros homens. deveria estar disponível quando solicitada. Num estudo realizado em 2000 pelos National Institutes of Health. Assim. ou porque o mal feito a um animal conduz a danos temporais no Homem. fazemos deles objecto de divertimento em jardins zoológicos e em touradas. também sofre. porque razão é isso errado? Porque ele sofre.quais são. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja 144 A ABORDAGEM UTILITARISTA abandonado sem remédio ao capricho de quem o faça sofrer. e bem mais sociáveis. do prazer e da dor. ou. Escreve Bentham: Poderá chegar o dia em que o resto da criação animal adquira esses direitos que nunca deveriam terlhes sido sonegados pela mão da tirania. Se nos sentimos incomodados com a "justificação" teológica destas práticas. um desporto muito popular que consiste em seguir-lhes a pista e matá-los apenas por divertimento. Se um indivíduo pode sofrer. No entanto. e por isso é igualmente errado e pela mesma razão. na direcção oposta. se um ser não-humano é torturado. ou a capacidade discursiva? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais. Humanos e não-humanos têm igual direito à consideração moral. Para Bentham e Mill. além disso. os filósofos ocidentais ofereceram-nos grande abundância de justificações seculares. Os utilitaristas. Uma vez que tanto os seres humanos como os não-humanos podem sofrer. ou qualquer outra coisa. De facto. não aceitariam nada disto. esta perspectiva pode parecer tão extrema. a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível à mesma sorte. Mas suponhamos que não era assim. a faculdade racional. Poderá chegar o dia no qual seja reconhecido que o número de pernas. Comemos animais. Que outra coisa deveria traçar a fronteira? Será. usamos as suas peles em roupas e as suas cabeças como adornos de parede. usamo-los como objecto de experiências nos laboratórios. de que serviria? A questão não é saber se podem usar a razão ou se podem falar mas antes se podem sofrer. O que importa é saber se é capaz de ter experiência da felicidade e da infelicidade. Por analogia. afinal. Na sua perspectiva. talvez. o que importa não é se um indivíduo tem uma alma. simplesmente. criaturas sensíveis e inteligentes. do que um bebé com um dia. Diz-se várias coisas: que os animais não são racionais. No entanto. Bentham defende que saber se o indivíduo é humano ou não-humano é tão irrelevante como saber se é negro ou branco. como a .e todas estas afirmações são consideradas razões pelas quais os seus interesses estão fora da esfera de consideração moral. uma semana ou mesmo um mês. no entanto. Se um ser humano é torturado. temos iguais razões para não maltratar qualquer deles. então temos o dever de tomar isso em conta quando decidimos o que fazer. é racional. que carecem da capacidade de falar. basta apenas um pouco de reflexão para verificar até que ponto a nossa conduta é efectivamente guiada por esta doutrina. esta linha de raciocínio era decisiva. mesmo que o indivíduo em questão não seja humano. que não são humanos . e há. as suas capacidades supe145 Os utilitaristas contemporâneos têm por vezes resistido a este aspecto da doutrina clássica. e L. Ao mesmo tempo. Singer pergunta como podemos justificar experiências como a seguinte: Na Universidade de Harvard. Wynne testaram os efeitos de choques eléctricos no comportamento de cães. insistiu. temos o dever moral estrito de tomar isso em conta. R.os seres humanos podem fazer matemática. o nosso dever de promover a felicidade implica o dever de promover esses prazeres especiais para eles. na medida em que o bemestar dos outros animais é afectado pela nossa conduta. os cães conseguiam escapar ao choque se aprendessem a saltar a barreira e passar para o outro compartimento. mas tiveram o cuidado de sublinhar que isso não significa que animais e humanos tenham de ser sempre tratados da mesma maneira. são capazes de sentir prazer em coisas que os seres não-humanos são incapazes de fruir . apreciar literatura. uma vez que os seres humanos têm capacidades intelectuais que faltam aos animais. . O nosso "direito" de matar. Por isso. bem como de prevenir qualquer tipo de infelicidade à qual são vulneráveis. De modo análogo. Por exemplo. Inicialmente.perspectiva tradicional que não concede aos animais qualquer lugar independente no plano da moralidade. O filósofo Peter Singer. Colocaram quarenta cães num dispositivo chamado "shuttlebox" que consiste numa caixa dividida em dois compartimentos. Kamin. seguindo os princípios estabelecidos por Bentham e Mill. e assim por diante. e isso não é surpreendente. contando o seu sofrimento de modo igual ao de um sofrimento semelhante de que um ser humano tenha experiência. L. No sentido de "desen146 A ABORDAGEM UTILITARISTA riores podem torná-los capazes de frustrações e desapontamentos de que os outros animais não podem ter experiência. num livro com o estranho título de Libertação Animal (1975). De início. Foram desferidos centenas de choques eléctricos intensos nas patas dos cães através de uma rede no chão. fazer experiências ou usar os animais de outras formas que queiramos parece à maioria de nós tão óbvio que é difícil acreditar que estamos realmente a comportar-nos tão mal como Bentham e Mill insinuaram. No entanto. que o nosso tratamento dos animais não-humanos é profundamente incorrecto. Há diferenças factuais entre eles que com frequência justificam diferenças de tratamento. alguns utilitaristas contemporâneos avançaram argumentos poderosos para mostrar que Bentham e Mill tinham razão. Devem os animais ser de facto encarados como iguais aos seres humanos? Em alguns aspectos. no entanto. a barreira foi colocada à altura do dorso dos cães. Solomon. separados por uma barreira. Bentham e Mill pensavam que sim. porque todos (ou pelo menos a maioria de nós) comemos carne. por si só. Podemos fazer notar que este tipo de argumento não implica que todas as experiências deste género são imorais . passam as suas vidas em celas tão pequenas que não conseguem voltar-se ou mesmo deitar-se de forma confortável . As crias de vitela. Uma vez que não nos dedicamos a tais investigações. tremer. Há algures um ganho compensatório em felicidade que o justifique? Está-se a prevenir uma infelicidade maior. afirma Singer. A experiência com os cães. suficientemente bem tratados. segundo os seus próprios méritos. Não podemos simplesmente presumir que tudo é permitido só porque não são humanos. Inicialmente. que ninguém está isento de culpa neste campo. a experiência não é moralmente aceitável. A maior parte das pessoas pensa. 147 Mas criticar tais experiências é muito fácil para a maioria de nós. e concluíram que a combinação da barreira de vidro e dos choques nas patas era "muito eficaz" na eliminação dos saltos dos cães.mas do ponto de vista dos produtores isso é bom. era parte de um estudo da "falta de energia adquirida". O cão "saltava e embatia com a cabeça de encontro ao vidro". de forma vaga. aparte isso. que embora o matadouro possa ser um local desagradável. mas após dez ou doze dias de testes os cães que foram impedidos de escapar aos choques deixaram de resistir. O princípio utilitarista não diz. Mas.sugere que se avalie cada uma individualmente. Singer sublinha. mas insiste que o mal feito aos animais exige uma justificação. Todos estamos envolvidos em actos de crueldade tão graves como os perpetrados em qualquer laboratório. atacar o aparelho" e assim por diante. ganir e guinchar. urinar.corajar" um cão de saltar. Afirmaram que quando o cão saltava dava um "guincho agudo de antecipação que se transformava num ganido quando aterrava na rede electrificada". Os cães desta experiência estão obviamente a ser submetidos a um sofrimento terrível. para outros animais ou para os seres humanos? Se não. um tópico considerado muito importante pelos psicólogos. O argumento utilitarista é bastante simples. podemos sentir-nos superiores ou farisaicos. os especialistas forçaram o cão a saltar cem vezes para a rede electrificada. por exemplo. Os psicólogos afirmam que o conhecimento dos mecanismos da falta de energia adquirida trará benefícios de longo prazo para os doentes mentais. Os especialistas afirmaram-se "impressionados" com este facto. qual a verdade acerca de experiências em concreto. . bloquearam a passagem entre os compartimentos com uma placa de vidro e testaram de novo o mesmo cão. nada poderia estar mais longe da verdade. Por fim. no entanto. por exemplo. Os factos sobre a produção de carne são pelo menos tão pungentes como os relativos à experimentação com animais. Devemos julgar as acções como certas ou erradas conforme causam mais felicidade ou infelicidade. os animais criados para abate são. os cães revelaram sintomas tais como "defecar. que impede o animal de se voltar. o argumento utilitarista é bastante simples. 149 A ABORDAGEM UTILITARISTA mentos para ruminar. como ensina a tradição da nossa sociedade. e uma moralidade adequada tem de reconhecer isso. Os seres humanos são especiais em muitos aspectos. e a moralidade tem igualmente de reconhecer isso. O . desenvolvem o desejo ardente destas coisas. O que é mais revolucionário em tudo isto é simplesmente a ideia de que os interesses dos animais não-humanos contam. Uma vez mais. o que desejam por natureza fazer. O desejo de forragem é especialmente forte. Não se pode colocar qualquer palha para os animais dormirem. Nestas celas. Por isso. Singer conclui que devemos tornar-nos vegetarianos. que só os seres humanos são dignos de consideração moral. A pequena cela. uma vez que sem ela o animal não consegue formar uma massa de ali148 sistema de produção de carne causa grande sofrimento aos animais. reduzindo a "qualidade" da carne. o mal provocado. o matadouro não é o fim desagradável de uma existência feliz. pois seriam levados a comê-la e isso afectaria a carne. precisam de algo para mamar: pode ver-se que tentam em vão sugar quaisquer arestas nas suas celas. e tendo em conta estes factos. conceder aos animais um espaço vital adequado teria custos proibitivos. resolve este "problema".as refeições vegetarianas são igualmente saborosas e nutritivaso bem que é feito não compensa. O desejo dos vitelos por ferro torna-se tão forte que se puderem voltar-se na cela lambem a sua própria urina. quando colocado na balança. é errado. Normalmente. O utilitarismo põe em causa esta suposição básica e insiste que a comunidade moral tem de ser alargada para incluir todas as criaturas cujos interesses são afectados pelo que fazemos. para estes animais. Mas também é verdade que somos apenas uma espécie entre muitas que habitam este planeta. embora normalmente sintam repugnância em fazê-lo.porque o exercício enrijece os músculos. porque não há espaço para poderem voltar a cabeça. além disso. Para manter a sua carne branca e saborosa. os vitelos não conseguem realizar acções tão básicas como limpar-se. como os bebés humanos. É uma vida tão terrível que o processo de abate pode na verdade revelar-se uma libertação misericordiosa. são alimentados com uma dieta líquida insuficiente em ferro e forragem. Naturalmente. partimos do princípio. Uma vez que não precisamos de os comer . Logo. É evidente que as vitelas sentem falta das mães e. economistas e outros que teorizam sobre o processo de decisão humano. De acordo com estes utilitaristas contemporâneos. pode ser resumido em três proposições: Primeiro. muitos e muitos pensadores recusam-se abandonar a teoria. Nada mais importa. ao avaliar as consequências. Como explica Mill. Estes argumentos têm interesse não apenas para avaliar o utilitarismo mas em si mesmos. a felicidade que forma o padrão utilitarista do que é correcto na conduta não é a felicidade do próprio agente. todas as outras coisas são desejáveis como meios para esse fim. mas reformulada de uma forma mais satisfatória. pois levantam algumas questões fundamentais de filosofia moral. a única coisa que interessa é a quantidade de felicidade ou infeli151 que o agente seja tão estritamente imparcial como um espectador desinteressado e benévolo. enquanto finalidade. O Crepúsculo dos ídolos (1889) 8. o utilitarismo exige . JOHN STUART MILL. 152 cidade criada. só os Ingleses fazem isso.1 A versão clássica da teoria O utilitarismo clássico. Esta teoria tem sido imensamente atraente para filósofos. sendo a felicidade de cada pessoa contabilizada como igualmente importante. Mas o facto notável é que tantos não a tenham abandonado. a teoria de Bentham e Mill. mas a de todos os implicados. deve-se julgar que as acções são moralmente certas ou erradas somente em função das suas conseqüências. Vamos examinar de seguida alguns destes argumentos contra o utilitarismo e avaliar se a versão clássica da teoria pode ser revista de forma satisfatória para lhes fazer frente. Utilitarismo (1861) O Homem não luta para obter a felicidade. e a única coisa desejável. Terceiro. a felicidade de cada pessoa conta da mesma maneira. os argumentos antiutilitaristas provam apenas que a teoria clássica precisa de ser aperfeiçoada. Estes argumentos antiutilitaristas são tão numerosos e tão persuasivos que muitos chegaram à conclusão de que a teoria tem de ser abandonada. apesar de ter sido posta em causa por uma série de argumentos aparentemente devastadores. Tudo o mais é irrelevante. Assim. FRIEDRICH NIETZSCHE. afirmam que a ideia essencial é sólida e deveria ser preservada. Entre a felicidade do agente e a dos outros. as acções correctas são as que produzem o maior equilíbrio possível de felicidade e infelicidade. Segundo.Capítulo 8 O debate sobre o utilitarismo A doutrina utilitarista consiste nisto: a felicidade é desejável. Continua a ser largamente aceite. Apesar dos argumentos. 8.2 Será a felicidade a única coisa que importa? A pergunta "Que coisas são boas?" é diferente da pergunta "Que acções são correctas?", mas o utilitarismo responde à segunda remetendo para a primeira. As acções correctas, afirma o utilitarismo, são as que produzem o maior bem. Mas o que é bem? A resposta utilitarista clássica é "uma coisa e só uma coisa - a felicidade". Como Mill afirmou, "a doutrina utilitarista consiste nisto: a felicidade é desejável, e a única coisa desejável, enquanto finalidade; todas as outras coisas são desejáveis como meios para esse fim". A ideia de que a felicidade é o bem último (e a infelicidade o mal último) é conhecida como hedonismo. O hedonismo é uma teoria popular e duradoura cuja origem remonta pelo menos à Grécia Antiga. Sempre foi atraente por causa da sua simplicidade bela e porque exprime a noção intuitivamente plausível de que as coisas são boas ou más de acordo com a forma como nos fazem sentir. No entanto, um pouco de reflexão revela sérias falhas nesta teoria. As falhas revelam-se quando examinamos exemplos como os seguintes: Uma pianista jovem e prometedora magoa as mãos num acidente de automóvel, ficando incapacitada para continuar a tocar. Porque razão é isto mau para ela? O hedonismo diria que é mau porque a torna infeliz. Ela vai sentir-se frustrada e perturbada sempre que pensar no que poderia ter feito, e isso é a sua desgraça. Mas esta maneira de explicar o infortúnio parece ver as coisas ao contrário. Não se pode dizer que, ao sentir-se infeliz, ela transformou uma situação neutra numa situação má. Pelo contrário, a sua infelicidade é uma resposta racional a uma situação que é desafortunada. Ela podia ter tido uma carreira como pianista, e agora já não pode. A tragédia é essa. Não poderíamos eliminar a tragédia levando-a pura e simplesmente a animar-se. 153 O leitor pensa que alguém é seu amigo, mas pelas costas essa pessoa ridiculariza-o. Ninguém o informa, pelo que não chega a saber. É isto um infortúnio para si? Ó hedonismo teria de responder que não, porque não lhe é causada qualquer infelicidade. Mas apesar disso sentimos que há algo errado nisto. O leitor pensa ter um amigo, e está a "ser ridicularizado", apesar de nada saber e não sofrer qualquer infelicidade. Estes exemplos apresentam a mesma ideia fundamental. Valorizamos por si mesmas todo o tipo de coisas, como a criatividade artística e a amizade. Possui-las dá-nos felicidade, mas apenas por já as considerarmos boas. (Não pensamos que sejam boas por nos fazerem felizes - essa é a maneira como o hedonismo "volta as coisas ao contrário".) Logo, é uma infelicidade perdê-las, independentemente de a sua perda ser ou não acompanhada de infelicidade. Assim, o hedonismo engana-se quanto à natureza da felicidade. A felicidade não é reconhecida como boa e procurada por si, sendo as outras coisas desejadas apenas como meios para a sua realização. Ao invés, a felicidade é uma resposta que damos à obtenção de coisas que reconhecemos que são boas, independentemente e por direito próprio. Pensamos que a amizade é uma coisa boa, e por isso ter amigos dá-nos felicidade. Isso é muito diferente de primeiro partir em busca da felicidade e depois decidir que ter amigos poderá fazer-nos felizes, procurando depois fazer amigos como um meio para obter esse fim. É por esta razão que não há muitos hedonistas entre os filósofos contemporâneos. Os partidários do utilitarismo procuraram, pois, uma maneira de formular a sua visão das coisas sem pressupor uma descrição hedonista do bem e do mal morais. Alguns, como o filósofo inglês G. E. Moore (18731958), tentaram compilar listas de coisas susceptíveis de ser encaradas como boas em si. Moore sugeriu que há 154 pessoas. Está para lá do âmbito deste livro discutir os méritos ou deméritos destas variantes do utilitarismo. Refiro-as apenas para sublinhar que, apesar de o pressuposto hedonista dos utilitaristas clássicos ter sido largamente rejeitado, os utilitaristas contemporâneos não sentiram dificuldade em prosseguir na mesma via. Fazem-no insistindo que, antes de mais, o hedonismo nunca foi uma parte necessária da teoria. 8.3 As consequências são a única coisa que importa? Seja como for, a ideia de que as consequências são a única coisa que importa é parte necessária do utilitarismo. A ideia fundamental da teoria é que para determinar se uma acção é correcta, devemos ter em atenção o que acontecerá em resultado de afazermos. Se viesse a verificar-se que qualquer outra coisa é igualmente importante para determinar a correcção, o utilitarismo veria então os seus alicerces arruinados. Alguns dos argumentos antiutilitaristas mais sérios atacam a teoria justamente neste ponto: insistem que há várias considerações, além da utilidade, que são importantes para determinar o que é ou não é moralmente correcto. Eis três desses argumentos. 155 três coisas que são de forma óbvia intrinsecamente boas - o prazer, a amizade e a fruição estética - e que as acções correctas são as que aumentam no mundo a quantidade destas coisas. Outros utilitaristas evitaram a questão de saber quantas coisas são boas em si, deixando-a em aberto e afirmando apenas que as acções correctas são as que alcançam melhores resultados, independentemente da forma de medir isso. Outros ainda evitaram a questão de forma diferente, defendendo apenas que devemos agir de maneira a maximizar a satisfação das preferências das Justiça. Num artigo escrito em 1965 para a revista académica Inquiry, H. J. McCloskey pedia-nos para ponderar o caso seguinte: Suponhamos que um utilitarista visita uma área na qual há tensões raciais e que, durante a sua visita, um Preto viola uma mulher branca, e que em resultado do crime ocorrem confrontos raciais, com multidões de brancos, com a conivência da Polícia, espancando e matando Pretos, etc. Suponhamos ainda que o nosso utilitarista está no local do crime quando este é cometido, de tal modo que o seu testemunho pode levar à condenação de um Preto qualquer. Se ele sabe que uma detenção rápida porá fim aos confrontos e linchamentos, certamente, como utilitarista, terá de concluir que tem o dever de prestar falso testemunho de maneira a permitir a punição de uma pessoa inocente. Trata-se, é claro, de um exemplo fictício, apesar de obviamente inspirado na lei de linchamento que prevaleceu em tempos em algumas partes dos Estados Unidos. Seja como for, o argumento é que se alguém estivesse nesta situação, deveria, nos parâmetros utilitaristas, prestar falso testemunho contra uma pessoa inocente. Isto poderia ter algumas consequências más - um homem inocente poderia ser executado mas haveria suficientes consequências boas para contrabalançá-las: os confrontos e linchamentos seriam detidos. O melhor resultado seria alcançado por meio da mentira: logo, segundo o utilitarismo, mentir é a coisa a fazer. Mas, prossegue o argumento, seria errado causar a execução de uma pessoa inocente. Logo, o utilitarismo, que pressupõe a correcção de um tal acto, tem de estar errado. Segundo os críticos do utilitarismo, este argumento ilustra um dos defeitos mais graves da teoria; a saber, que é incompatível com a ideia de justiça. A justiça exige que tratemos as pessoas com equidade, segundo as suas necessidades e méritos individuais. O exemplo de McCloskey mostra que os requisitos de justiça e de utilidade podem 156 entrar em conflito. Assim, uma teoria ética segundo a qual a utilidade é tudo o que conta não pode estar correcta. Direitos. Eis um caso que não é fictício; é extraído dos registos do Nono Círculo do Tribunal de Apelação dos EUA (Distrito Judicial do Sul da Califórnia), 1963, no caso York contra Story: Em Outubro de 1958, a queixosa [Angelynn York] dirigiu-se ao Departamento de Polícia de Chino para apresentar queixa de um caso de agressão que sofrera. O acusado, Ron Story, agente daquele departamento de Polícia, agindo ao abrigo da sua autoridade, informou a queixosa de que era necessário tirar-lhe fotografias. Story levou então a queixosa para uma sala da esquadra, fechou a porta e ordenou-lhe que se despisse, o que ela fez. Story ordenou então à queixosa para se colocar em várias posições indecentes, e fotografou-a nessas posições. Estas fotografias não foram tiradas com algum propósito legal. A queixosa protestou contra a necessidade de se despir. Declarou a Story que não havia necessidade de tirar fotografias dela nua, ou nas posições em que foi mandada colocar-se, porque as contusões Story informou a queixosa de que as fotografias não tinham sido divulgadas e que ele as tinha destruído. aparentemente.não seriam visíveis nas fotografias. Pode acontecer por vezes que bons objectivos sejam servidos por meio da 158 sável se produzir um equilíbrio favorável da felicidade sobre a infelicidade. fizeram mais reproduções das fotografias tiradas por Story.a York espreitando pela janela do seu quarto. Suponhamos ainda que fazia isto sem se denunciar e que usava as fotografias apenas para seu prazer pessoal. Nestas circunstâncias. a conclusão utilitarista seria. nem mesmo a Sr.o direito à liberdade religiosa. Ninguém mais. Suponhamos que um voyeur espiava secretamente a Sr. É possível que se tenha causado mais felicidade do que infelicidade. e secretamente lhe tirava fotografias quando ela estava despida.a York à privacidade que é violado. Mas isto . Story fez circular as fotografias entre o pessoal do Departamento de Polícia de Chino. O utilitarismo parece ser. Nesse caso. não as mostrando a mais ninguém. dois outros agentes daquele departamento de Polícia. Os seus direitos legais tinham sido claramente violados. Moreno e Grote fizeram circular as reproduções entre o pessoal do Departamento de Polícia de Chino.a York moveu um processo contra estes agentes e ganhou. à livre expressão ou mesmo o próprio direito à vida. Nestes casos. Em vez disso. parece evidente que a única consequência da sua acção é um aumento da sua própria felicidade. pois. mas não seria difícil pensar em casos similares nos quais outros direitos estão em causa . Porque razão deveria o prazer causado a Story e seus cúmplices importar? Porque deveria sequer ser tido em conta? Não tinham qualquer direito de tratar a Sr. A moral da história a retirar deste argumento é que o utilitarismo está em conflito com a ideia de que as pessoas têm direitos que não podem ser espezinhados apenas porque alguém antecipa bons resultados. No final do mês.a York e a comparemos com a quantidade de prazer proporcionada pelas fotografias ao agente Story e seus cúmplices. agindo ao abrigo da sua autoridade. Como poderia então o utilitarismo negar que as acções do voyeur são correctas? Mas é óbvio para o senso comum moral que não são correctas. é o direito da Sr. Eis um caso (imaginário) idêntico. que as suas acções foram moralmente correctas.a York daquela maneira. e usando material fotográfico da Polícia situado na esquadra. os acusados Louis Moreno e o arguido Henry Grote. Isto sugere que consideremos a quantidade de infelicidade causada à Sr. Em Abril de 1960. e o facto de se terem divertido ao fazê-lo dificilmente parece uma defesa relevante. inaceitável. Mas o que dizer da moralidade do comportamento dos agentes? O utilitarismo afirma que uma acção é defen157 parece uma maneira perversa de pensar. sofre qualquer infelicidade. A Sr.a York. o utilitarismo parece defeituoso porque exclui as considerações relativas ao passado. o utilitarismo leva-nos a confinar a nossa atenção ao que irá acontecer em resultado das nossas acções. Mas o utilitarismo torna o passado irrelevante. Uma vez compreendido este aspecto. 8. O facto de ter feito uma promessa. poderia então concluir que é correcto ficar em casa. Há uma importante lição geral a tirar deste argumento. Razões referentes ao passado. O facto de alguém ter feito algo para magoar uma pessoa pode ser uma boa razão para agora a compensar.se. isto não parece nada correcto. Apelando para o padrão utilitarista. É claro que se algo muito importante estivesse em jogo . impõe-lhe uma obrigação à qual não pode escapar facilmente. No entanto. precisa trabalhar e preferia ficar em casa. O facto de alguém lhe ter feito um favor pode ser uma boa razão para agora fazer um favor a essa pessoa. vêm facilmente à ideia outros exemplos de considerações relativas ao passado. parece uma vez mais estar errado. A noção de um direito pessoal não é uma noção utilitarista. independentemente dos bons objectivos que poderiam ser alcançados. a sua mãe tivesse acabado de sofrer um ataque cardíaco e você tivesse de correr para o hospital. encontrar-se com ela uma tarde na Baixa. Bem pelo contrário: é uma noção que estabelece limites à forma como um indivíduo pode ser tratado.teria uma boa justificação para faltar ao seu compromisso. Mas um pequeno ganho em utilidade não pode sobrepor-se à obrigação imposta pelo facto de ter feito uma promessa.violação destes direitos. O que deve fazer? Suponha que considera que a utilidade de fazer o seu trabalho ultrapassa ligeiramente a inconveniência causada ao seu amigo. (O facto de termos pro159 metido encontrar-nos com um amigo é um facto sobre o passado.4 Deveremos ter toda a gente igualmente em conta? . Mas não pensamos que os nossos direitos devam ser postos de lado com tanta facilidade.) Logo. Tudo isto são factos relativos ao passado que têm relevância para determinar as nossas obrigações. Suponha que prometeu a uma pessoa fazer alguma coisa por exemplo. pensamos normalmente que as considerações sobre o passado são igualmente importantes. Devido à sua preocupação exclusiva com as consequências. Assim. Porque razão é o utilitarismo vulnerável a este tipo de crítica? Porque os únicos tipos de considerações que a teoria defende como relevantes para determinar a correcção das acções são considerações relacionadas com o futuro. No entanto. Mas quando chega a hora. não lhe apetece fazê-lo. O facto de alguém não ter cometido um crime é uma boa razão para não ser punido. que considera as consequências a única coisa importante. e parece deficiente justamente por essa razão. o utilitarismo. por exemplo. ter estes luxos ou as crianças terem algo para comer? . Além disso. Isto parece plausível quando se afirma em abstracto. mas tem implicações problemáticas. Mas uma ética exigindo a subordinação de tudo à promoção imparcial do bem-estar geral exigiria que abandonássemos esses projectos e actividades. Mas o problema não é apenas o utilitarismo requerer que abandonemos a maior parte dos nossos recursos materiais. e nos fins-de-semana gosta de actuar com um grupo de teatro amador. computador ou uma máquina fotográfica. devemos ser "tão estritamente imparciais como um espectador desinteressado e benévolo".A última componente da moralidade utilitarista é a ideia de que devemos tratar o bem-estar de cada pessoa como igualmente importante . Igualmente importante é notar que obedecer aos mandamentos utilitaristas tornaria impossível a continuação das nossas vidas como indivíduos. Mas isso não põe fim ao caso. Suponha o leitor que é um carpinteiro. outro é que destrói as nossas relações pessoais. cuja generosidade vai além das exigências do dever. tem dois filhos que adora. Afinal de 161 desiste do seu entretenimento e dá o dinheiro para uma organização de caridade. Por isso. Um dos problemas é que o requisito de "igual consideração" coloca-nos uma exigência excessiva. Provavelmente deveria mesmo mudar-se para um apartamento mais barato. Pelo mesmo tipo de raciocínio. interessase por história e lê muito. 160 Na verdade. Podemos admirar as pessoas que fazem isto. estas coisas são o que torna as nossas vidas dignas de ser vividas. Certamente que essas pessoas precisam mais de comida e medicamentos do que o leitor precisa de ver uma peça de teatro. mas ganha o suficiente para viver uma vida confortável. A vida de cada um de nós implica projectos e actividades que lhe dão carácter e significado. o leitor estaria a viver uma vida moralmente inaceitável. o leitor não pode comprar roupas novas. Olhamo-las. Distinguimos acções impostas moralmente de acções dignas de admiração mas não estritamente exigidas. segundo os padrões utilitaristas. um carro.) O utilitarismo parece eliminar esta distinção. (Os filósofos chamam a estas acções super-rogatórias. A acusação de que o utilitarismo é demasiado exigente. Suponha que está a caminho do teatro quando alguém lhe lembra que o dinheiro que se prepara para gastar podia ser usado para providenciar comida a pessoas com fome ou vacinas a crianças do Terceiro Mundo.nas palavras de Mill. a adesão fiel aos padrões utilitaristas requer que abandone os seus recursos até ter baixado o seu padrão de vida ao nível do das pessoas mais necessitadas que poderia ajudar. mas não consideramos que estejam apenas a fazer o seu dever. o que é mais importante . como pessoas santas. Afinal de contas. Não é rico. ao invés. Como poderia haver algo de errado nisso? Mas. é um leproso moral". A teoria. Quando somos imparciais. não só é profundamente contrária às emoções humanas normais. Todos somos profundamente parciais quanto à família e amigos. e parece incapaz de dar conta de razões relativas ao passado na justificação da conduta. o amor e a amizade são lançados janela fora. Mas tudo isto é inconsistente com a imparcialidade. poderia fazer muito mais pelo bem dos outros se passasse o seu tempo de outras formas. não é um herói. Gostamos deles e vamos até onde for preciso para os ajudar. que inicialmente parecia tão progressista e 162 proxima do senso comum. no entanto.5 A defesa do utilitarismo Em conjunto. foram avançadas três defesas gerais. O facto de o utilitarismo arruinar as nossas relações pessoais parece a muitos críticos o seu maior erro. os argumentos apresentados constituem um processo de acusação esmagador contra o utilitarismo. a intimidade. o utilitarismo parece neste ponto ter perdido todo o contacto com a realidade. a considerar que o utilitarismo é. Em resposta aos argumentos enunciados. verdadeiro.são especiais. ninguém está disposto a tratar todas as pessoas como iguais. Na prática. Não é. de surpreender que o peso combinado destes argumentos tenha levado muitos filósofos a abandonar a teoria por completo. A primeira linha de defesa: argumentos imaginários não contam. Como seria se não tivéssemos mais em conta o nosso marido ou esposa do que estranhos que nunca vimos antes? A própria ideia é absurda. Muitos pensadores continuam. "um pai que deixa o filho arder. Na verdade. Para nós. Levar-nos-ia a abandonar as nossas vidas normais e a estragar as relações pessoais que significam tudo para nós. de alguma forma.alguém cuja futura contribuição para o bem-estar geral promete ser maior. Relações pessoais. como a instituição do casamento não poderia sequer existir à margem de acordos sobre responsabilidades e obrigações especiais. pois. não são apenas membros da grande multidão da humanidade . E como seria tratar os nossos próprios filhos com o mesmo amor concedido a estranhos? Como John Cottingham afirmou. A primeira linha de defesa consiste em argumentar que os argumentos antiutilitaristas fazem suposições irrealistas . é (merecidamente) objecto de desprezo moral. contas. parece agora indefensável: está em conflito com noções morais fundamentais como a justiça e os direitos individuais. pois isso requereria que abandonássemos as nossas relações especiais com amigos 0 família. porque no edifício em chamas há 8. e a situação ficaria então ainda pior do que antes. Afirma-se então que estas coisas não são correctas. Provavelmente não teria êxito.prestar falsos testemunhos.sobre o funcionamento do mundo. Logo. e a confiança no sistema judicial seria posta em causa. a primeira linha de defesa. tal como o agente Story e os seus sequazes foram apanhados. No mundo real. o utilitarismo explica por que motivo não devemos fazer essas coisas. desligada de quaisquer benefícios derivados do reconhecimento desses direitos? O utilitarismo não é incompatível com o senso comum. conclui-se. o mentiroso ficaria em grandes sarilhos. sem a explicação utilitarista. os outros sofrem e as suas reputações são maculadas. e quando as pessoas faltam às suas promessas. pois. os voyeurs são apanhados. o que é sempre possível. O que poderia ser mais misterioso do que a noção de acções correctas "em si". a concepção utilitarista da correcção não pode estar certa. Além disso. O mesmo pode dizer-se dos outros casos citados nos argumentos antiutilitaristas. De facto. perdem os amigos. Descreve-se um caso e depois afirma-se que. o utilitarismo radica no senso comum. violar os direitos de alguém ou faltar a uma promessa. a experiência mostra o contrário: a utilidade não é servida por meio da incriminação de pessoas inocentes. No mundo real. se o culpado viesse a ser apa163 podemos de forma alguma estar certos disso. é necessária uma certa acção . quando as pessoas mentem. ou mentir. e as suas vítimas sofrem. Violar os direitos das pessoas. separada da noção do bem que produzem? Ou o que poderia ser mais ininteligível do que a ideia de que as pessoas têm "direitos". e não retribuem os favores. do ponto de vista utilitarista. estes deveres permaneceriam misteriosos e ininteligíveis. A moral da história é que. justiça e razões relativas ao passado partilham uma estratégia comum. ou faltar às nossas promessas. Mas porque razão concordaríamos com isso? No mundo real. têm consequências más. embora possamos pensar que podemos provocar as melhores consequências com um tal comportamento. livre para cometer outros crimes. prestar falso testemunho não tem boas consequências. longe de ser incompatível com a ideia de que não devemos violar os direitos das pessoas. a sua mentira poderia ser descoberta. Só na imaginação dos filósofos acontece de outro modo. o verdadeiro culpado continuaria a monte. faltar às promessas e mentir. não . Mesmo no caso de a mentira ter êxito. que o "utilitarista" tentava incriminar o inocente para deter os motins. Esta é. Até que ponto é eficaz? Infelizmente contém mais nhado. Além disso. no caso descrito por McCloskey. Logo. Mas esta estratégia só tem sucesso se concordarmos que as acções descritas teriam de facto as melhores consequências. pelo contrário. Suponha-se. Os argumentos sobre direitos. para a distinguir da teoria . segundo foi dito. a teoria clássica da teoria afirma que saber se isso seria errado depende das consequências dessa mentira em particular. 165 declarar que todos os actos desse cariz têm más consequências. A primeira linha de defesa é. pelo menos em alguns casos da vida real. deixando o resto da teoria como estava. ainda assim. portanto. O que tem a Logo. bons resultados ao fazer coisas que o senso comum condena. Além disso. Ao fazer a revisão de uma teoria o truque é identificar precisamente quais das suas características estão a dar problemas e mudar isso. perguntamos primeiro que conjunto de regras é o melhor da perspectiva utilitarista. de modo análogo. o utilitarismo entrará em conflito com o senso comum. Embora se possa defender plausivelmente que a maioria dos actos de falso testemunho e quejandos têm más consequências no mundo real. fraca. Se numa dada ocasião nos sentirmos tentados a prestar falso testemunho. de maneira a fazer prosperar as pessoas? Os actos individuais são então considerados correctos ou errados segundo são aceitáveis ou não à luz dessas regras. Que regras preferiríamos ter em vigor na nossa sociedade. esses argumentos manteriam. Logo. saber se devemos manter uma promessa depende das consequências dessa promessa em particular. pelo menos ocasionalmente. Em vez disso. não se pode razoavelmente 164 versão clássica para originar todos os resultados indesejados? O aspecto problemático do utilitarismo clássico é. A segunda linha de defesa: o princípio de utilidade é um guia para escolher regras e não actos individuais. mesmo que os argumentos antiutilitaristas tivessem de basear-se exclusivamente em exemplos fictícios. pois mostrar que o utilitarismo tem consequências inaceitáveis em casos hipotéticos é uma forma válida de apontar os seus defeitos teóricos. o seu poder. é isto que conduz à conclusão de que podemos fazer todo o tipo de coisas questionáveis se tiverem as melhores consequências. a nova versão do utilitarismo modifica a teoria de maneira a que as acções individuais deixem de ser julgadas pelo princípio de utilidade. Certamente poderemos obter. a sua pressuposição de que cada acção individual deve ser avaliada em relação ao princípio de utilidade. Chama-se utilitarismo das regras a esta nova versão da teoria. e assim sucessivamente. Este é o pressuposto que causou todas as complicações.ruído do que substância. para cada um dos exemplos referidos. A segunda linha de defesa admite que a versão clássica do utilitarismo é inconsistente com o senso comum e propõe-se salvar a teoria dandolhe uma nova formulação que esteja em consonância com as nossas avaliações de senso comum. original, agora comummente chamada utilitarismo dos actos. Richard Brandt foi talvez o mais proeminente defensor do utilitarismo das regras; sugeriu que "moralmente errado" significa que uma acção seria proibida por qualquer código moral que todas as pessoas racionais tenderiam a apoiar, de preferência a todos os outros ou a nenhum outro, para a sociedade do agente, se tivessem a expectativa de passar a vida nessa sociedade. O utilitarismo das regras não tem dificuldade em lidar com os argumentos antiutilitaristas. Um utilitarista dos actos, confrontado com a situação descrita por McCloskey, seria tentado a prestar falso testemunho contra o homem inocente, porque as consequências daquele acto em particular seriam boas. Mas o utilitarista das regras não raciocinaria dessa maneira. Perguntaria, primeiro, "que regras gerais de conduta tendem a promover a maior felicidade?" Suponha-se que imaginamos duas sociedades, uma na qual a regra "Não prestar falso testemunho contra inocentes" é fielmente respeitada, e uma na qual esta regra não é seguida. Em qual das sociedades as pessoas têm mais probabilidades de viver melhor? Do ponto de vista da utilidade, a primeira sociedade é preferível. Logo, a regra contra a incriminação de inocentes deveria ser aceite e, fazendo apelo para esta regra, concluímos que a pessoa do exemplo de McCloskey não deveria testemunhar contra o homem inocente. 166 Um raciocínio análogo pode ser usado para estabelecer regras contra a violação dos direitos das pessoas, o faltar às promessas, a mentira e tudo o resto. Podem igualmente estabelecerse regras para reger as relações pessoais - requerendo lealdade para com os amigos, preocupação amorosa com os nossos filhos, e assim por diante. Devemos aceitar tais regras porque segui-las regularmente promove o bem-estar geral. Mas tendo apelado para o princípio de utilidade para estabelecer as regras, não temos de invocar novamente o princípio para determinar a correcção de acções particulares. As acções individuais justificam-se pelo simples apelo para regras já estabelecidas. Desta forma, não se pode condenar o utilitarismo das regras por violar o nosso senso comum moral. Ao transferir a ênfase da justificação dos actos para a justificação das regras, a teoria foi reconciliada de forma notável com os nossos juízos intuitivos. A terceira linha de defesa: não se pode confiar no "senso comum". Por último, um pequeno grupo de utilitaristas contemporâneos respondeu de forma muito diferente aos argumentos antiutilitaristas. Esses argumentos indicam que a teoria clássica está em conflito com noções comuns de justiça, direitos individuais, e assim por diante; e este grupo responde: "E daí?" Em 1961, o filósofo australiano J. J. C. Smart publicou uma monografia intitulada An Outline of a System of Utilitarian Ethics; reflectindo sobre a sua posição nesse livro, Smart afirmou: O utilitarismo tem reconhecidamente consequências incompatíveis com a consciência moral comum, mas eu tendia a reagir do seguinte modo: "Tanto pior para a consciência moral comum." Isto é, estava inclinado a rejeitar a metodologia comum que testa os princípios éticos gerais mediante a avaliação de como se enquadram nos nossos sentimentos em questões particulares. 167 os motins e os linchamentos continuarem? Esperamos por certo nunca ter de enfrentar uma situação como esta. Todas as opções são terríveis. Mas se temos de escolher entre a) assegurar a condenação de uma pessoa inocente, e b) permitir a morte de várias pessoas inocentes, será assim tão-pouco razoável pensar que a primeira opção, apesar de má, é preferível à segunda? Consideremos também novamente a objecção de que o utilitarismo é demasiado exigente por requerer que usemos os nossos recursos para alimentar crianças com fome em vez de ir ao cinema, comprar carros e máquinas fotográficas. Será assim tãopouco razoável acreditar que prosseguir as nossas vidas de abastança é menos importante que aquelas crianças? Nesta forma de pensar, o utilitarismo dos actos é uma doutrina perfeitamente defensável e não necessita ser modificada. O utilitarismo das regras é, pelo contrário, uma versão desnecessariamente enfraquecida da teoria, que concede mais importância às regras do que elas merecem. Há um problema grave com o utilitarismo das regras, que pode ser esclarecido se perguntarmos se as suas regras têm excepções. Depois de ter sido estabelecido o "código social ideal" do utilitarismo das regras, devem estas regras ser seguidas em todas as circunstâncias? Haverá inevitavelmente casos nos quais um acto proibido pelo código maximizaria no entanto a utilidade, talvez mesmo de forma substancial. O que deverá fazer- O nosso senso comum moral não é, afinal de contas, necessariamente fiável. Pode incorporar vários elementos irracionais, nomeadamente preconceitos recebidos dos nossos pais, religião e cultura em geral. Porque razão devemos simplesmente presumir que os nossos sentimentos estão sempre correctos? E porque motivo devemos rejeitar uma teoria plausível e racional da ética simplesmente porque entra em conflito com esses sentimentos? Talvez devessem ser os sentimentos, e não a teoria, a ser descartados. À luz destas considerações, atentemos de novo no exemplo de McCloskey da pessoa tentada a prestar falso testemunho. McCloskey defende que seria errado fazer condenar um homem por um crime que não cometeu, pois tal seria injusto. Mas atenção: um tal juízo serve muito bem os interesses desse homem, mas que dizer das outras pessoas inocentes que sofrerão se se então? Se o utilitarista das regras afirmar que em tais casos podemos violar o código, parecerá que regressou ao utilitarismo dos actos. Por outro lado, se diz que não podemos fazer o acto "proibido", então, como Smart afirmou, a preocupação original do utilitarista com a promoção do bem-estar foi substituída por uma irracional "adoração das regras". Que utilitarista é este que deixaria o céu desabar por causa de uma regra? O utilitarismo dos actos não se entrega a essa adoração das regras. É considerada, no entanto, uma teoria radical, que pressupõe que muitos dos nossos sentimentos morais comuns estão errados. Neste sentido, faz o que a boa filosofia sempre faz - desafia-nos a repensar questões que tomámos até agora como adquiridas. Se consultarmos o que Smart chama a nossa "consciência moral comum", parece que muitas considerações além da utilidade são moralmente importantes. Mas Smart tem razão quando nos alerta para o facto de "o senso comum" não merecer confiança. Essa pode vir a revelarse a contribuição mais importante do utilitarismo. As deficiências do senso comum moral tornam-se óbvias desde que nos detenhamos um momento a pensar. Muitos brancos sentiram em tempos que havia uma diferença importante entre negros e brancos, sendo por isso os interesses dos brancos mais importantes. Confiando no "senso comum" do seu tempo, poderiam ter insistido que uma teoria moral adequada deveria contemplar este "facto". Hoje em dia, ninguém digno de ser escutado diria tal coisa, mas quem sabe 168 169 quantos outros preconceitos irracionais fazem ainda parte do nosso senso comum moral? No final do seu estudo clássico sobre as relações raciais intitulado An American Dilemma (1944), o sociólogo sueco Gunnar Myrdal recorda-nos que: Deve haver ainda um sem-número de erros do mesmo género tque nenhum homem de hoje detecta, por causa do nevoeiro no qual estamos envolvidos pelo nosso tipo de cultura Ocidental. Influências culturais estabeleceram pressupostos de partida sobre a mente, o corpo e o universo; colocaram as perguntas que fazemos; determinaram a interpretação que fazemos destes factos; e dirigem a nossa reacção a essas interpretações e conclusões. Poderá dar-se o caso, por exemplo, de as gerações futuras olharem para trás com repulsa pela maneira como as pessoas abastadas do século xxi gozavam as suas vidas de conforto enquanto crianças do Terceiro Mundo morriam de doenças facilmente evitáveis? Ou pela maneira como matávamos e comíamos os animais indefesos? A ser assim, poderiam fazer notar que os filósofos utilitaristas da época eram criticados como simplistas por defenderem uma teoria moral que condenava frontalmente tais coisas. 170 Haverá regras morais absolutas? Alemanha. C. Truman exprimiu pensamentos semelhantes. E igualmente uma cidade inteira . e chocaram profundamente a consciência da Humanidade. Chamou-lhes "barbarismo desumano": Os implacáveis bombardeamentos aéreos de civis [. Truman estava a princípio relutante em usar a nova arma. Havia planos para uma invasão das ilhas japonesas. escolas e casas de civis. crianças. disseram-lhe. Além disso. O alvo será puramente militar. é claro que estava preocupado com a questão dos nãocombatentes. mas também hospitais.não apenas alvos militares. mulheres e crianças indefesos. denunciando os bombardeamentos de cidades nos termos mais duros. Polónia e Inglaterra. soldados e marinheiros sejam os alvos e não mulheres e crianças [. tornando desnecessária a invasão.1 Harry Truman e Elizabeth Anscombe Harry Truman.] Ele e eu estamos de acordo. em 1945. no entanto. Truman nada sabia do desenvolvimento da bomba. Itália. Truman sentia que a nova arma tornava a questão dos não-combatentes ainda mais importante. a seguir à morte de Franklin D. Stimson. o 33. Os aliados estavam a ganhar a Guerra no Pacífico. conduzir a Guerra a um fim rápido.° presidente dos Estados Unidos.Não podes fazer mal de que provenha bem. o Sr.. Mulheres. Roosevelt. o presidente Roosevelt mandara uma mensagem aos governos de França. SÃO PAULO. para a usar de maneira a que objectivos militares. Em 1939.. Se vier a recorrer-se a esta forma de barbarismo desumano durante o período de trágica conflagração com a qual o mundo se vê agora confrontado. mas com custos terríveis. havia registos de críticas públicas dos EUA aos ataques a alvos civis. que seria ainda mais sangrenta do que a invasão da Normandia. destroçaram os corações de todos os homens e mulheres civilizados. centenas de milhar de seres humanos inocentes. velhos e outros não-combatentes seriam eliminados juntamente . O problema é que cada bomba iria varrer do mapa 171 com os efectivos militares. perderão as suas vidas. antes de os EUA terem entrado na Guerra. Escreveu no seu diário: "Disse ao secretário da Guerra. Quando se tornou presidente..] que mutilaram e mataram milhares de homens.) 9. Não obstante." É difícil saber o que pensar disto. Carta aos Romanos (circa 50 d. que não têm qualquer responsabilidade nas hostilidades ora desencadeadas. e que nem remotamente participam delas. Usar a bomba atómica em uma ou duas cidades japonesas podia. será sempre recordado como o homem que tomou a decisão de lançar a bomba atómica sobre Hiroshima e Nagasaki. teve de ser posto ao corrente da situação pelos conselheiros presidenciais. Quando decidiu autorizar os bombardeamentos.. pois Truman sabia que as bombas iriam destruir cidades inteiras. Apesar de os Aliados terem já bombardeado cidades. Nesse ano. em 1956. Anscombe ajoelhou-se fora do salão nobre e rezou.clara a sua convicção de ter feito a escolha certa. ele foi agraciado com um doutoramento honoris causa pela Universidade de Oxford. desta feita explicando que Truman era um assassino porque tinha ordenado os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki. acabaria por se tornar um dos mais notáveis filósofos do século xx. foi detida durante um protesto junto a uma clínica britânica onde eram realizados abortos. enquanto o doutoramento estava a ser conferido.ou um milhão. como ataques a civis. Os que a propuseram pensaram que não causaria qualquer polémica. Mas Anscombe e dois outros membros da faculdade opuseram-se à atribuição do doutoramento e. foi uma das autoras de um panfleto controverso defendendo que o Reino Unido não deveria entrar na Guerra porque acabaria por combater recorrendo a meios injustos. falecida em 2001 aos 81 anos de idade.o que . retorquiu: "Vamos lá a ver. Anos mais tarde. o que acabou por colocá-la em conflito com Truman. "isso é sempre um assassínio". Então. Anscombe aceitava igualmente os ensinamentos da Igreja quanto à conduta ética na Guerra. era uma estudante de vinte anos na Universidade de Oxford quando começou a Segunda Guerra Mundial. apesar de terem perdido. e a maior filósofa da história. Anscombe escreveu outro panfleto. forçaram a realização de uma votação sobre o que noutras circunstâncias teria sido uma aprovação automática. apesar dos seus cinquenta anos de casamento e dos seus sete filhos. As suas perspectivas éticas. "A menina Anscombe". Em 1968 congratulou-se com a declaração do Papa Paulo VI banindo a contracepção do seio da Igreja e escreveu um panfleto a explicar a razão pela qual o controlo artificial dos nascimentos é errado. Para Anscombe. se um milhar não for bastante . depois de assinar a ordem. "Pois quando os homens escolhem matar inocentes como um meio para os seus fins". e a religião era fulcral na sua vida. A menina Anscombe era igualmente uma católica devota. Truman pensava que os bombardeamentos se justificavam tinham encurtado a Guerra e salvo vidas. Os caminhos de Harry Truman e Elizabeth Anscombe cruzaram-se quando. Se tivéssemos de escolher entre cozer um bebé e deixar que um desastre atingisse um milhar de pessoas . escreveu. "dormiu como um bebé". Natural173 mente. Afirmou a um assistente que. reflectiam os ensinamentos tradicionais do catolicismo. como sempre foi conhecida. isto não bastava. Ao argumento de que os bombardeamentos salvaram mais vidas do que ceifaram. 172 Elizabeth Anscombe. sobretudo. A distinção foi uma forma de agradecer a Truman a ajuda da América durante a Guerra. Fora isso. . Immanuel Kant (1724-1804) foi uma das figuras fecundas do pensamento moderno. da doutrina de que as regras morais são absolutas. e que apresentou um argumento famoso para defender esta perspectiva. a sodomia. Naturalmente. mas há outras: Tem sido característica da ética [hebraico-cristã] ensinar que há certas coisas proibidas independentemente das consequências que possam daí advir. ao invés. Pouco importa se poderíamos alcançar um bem maior cozendo uma criança. por mais que seja bom. seguir a regra teria consequências terríveis.) Que não podemos matar intencionalmente pessoas inocentes é uma regra inviolável. Anscombe. Para ver como chegou a esta conclusão notável. que uma proibição como a relativa ao homicídio não se aplica perante algumas 174 consequências. em algumas circunstâncias. "cozer um bebé" não é um exemplo assim tão estranho. Peter Geach. por exemplo. entre eles. Não apelou para considerações teológicas. afirma o seguinte desses filósofos: É digno de nota que nenhum destes filósofos revela qualquer consciência de que existe uma tal ética. defendeu.2 O imperativo categórico A ideia de que as regras se aplicam sem excepções é difícil de defender. no século xx. nomeadamente as seguintes: escolher matar um inocente com um objectivo qualquer. que ele está a contraditar: considera-se óbvio. igualmente um distinto filósofo. Mas como podemos explicar a razão pela qual não se deve fazer excepções à regra em tais circunstâncias? É uma missão intimidante. Mas é claro que o objectivo da rigidez da proibição é a ideia de que não podemos ser tentados pelo medo ou esperança das consequências. a traição (significando com isto obter a confiança de alguém numa questão séria por meio de promessas de amizade dedicada e depois trair essa pessoa entregando-a aos seus inimigos). em circunstância alguma.faríamos?" A questão é. Defendeu. (Tendo em conta o que aconteceu aos bebés em Hiroshima. que a razão exige que nunca mintamos. segundo Anscombe. É bastante simples explicar por que razão se deve aceitar excepções a uma regra podemos simplesmente sublinhar que. sejam quais forem as circunstâncias. Anscombe e o marido. é simplesmente imperativo que isso não se faça. Uma explicação possível seria afirmar que as regras morais são os mandamentos invioláveis de Deus. que mais pode dizer-se? Antes do século xx houve um grande filósofo que acreditava no carácter absoluto das regras morais. foram os mais destacados paladinos. 9. que algumas coisas não podem fazer-se. muitos filósofos não concordam. a idolatria. que mentir nunca é correcto. e uma falsa profissão de Fé. insistem que qualquer regra pode ser violada se as circunstâncias assim o exigirem. começaremos por ver a sua teoria geral da ética. punir uma pessoa para atingir outra. A forma de uma obrigação moral não é "Se queremos isto ou aquilo. os "deves" categóricos são misteriosos. O padrão é: temos um determinado desejo (ser jogadores de xadrez melhores. 175 Em contraste. Kant defende que. se deixarmos de querer ir para a faculdade de Direito. pelo contrário. Os "deves" hipotéticos são fáceis de entender. É por isso que. A regra moral não é. simplesmente. Por outro lado. categóricos: têm a forma. Por exemplo: 1.escapar à obrigação de fazer o exame. Exigem apenas que adoptemos os meios necessários para alcançar os fins que procuramos. Como podemos estar obrigados a 176 Grande parte da nossa conduta é governada por tais "deves". alguém que não quisesse ir para a faculdade de Direito não teria qualquer razão para fazer os exames de admissão. Quem quiser ir para a faculdade de Direito deve inscrever-se nos exames de acesso. podemos comportar-nos de uma certa maneira independentemente dos fins que queremos atingir? Grande parte da filosofia moral de Kant é uma tentativa de explicar como isso é possível. "mas isso não me interessa". Uma vez que a força de obrigatoriedade do "deves" depende de termos ou não o desejo relevante. Kant chamou a isto "imperativos hipotéticos" porque nos dizem o que fazer desde que tenhamos os desejos relevantes. reconhecemos que um certo percurso nos ajudará a obter o que desejamos (estudar os jogos de Kasparov. Quem quiser tornar-se um jogador de xadrez melhor deve estudar os jogos de Garry Kasparov. ao invés. Kant assinalou que a palavra dever é frequentemente usada em sentido não moral. ao contrário dos "deves" hipotéticos. sem mais". podemos escapar à sua força renunciando simplesmente ao desejo. então devemos fazer isto e aquilo". ir para a faculdade de Direito). A regra é. que devemos ser prestáveis para as pessoas independentemente dos nossos desejos e necessidades particulares. assim como os "deves" hipotéticos são possíveis porque temos desejos. 2. e por isso concluímos que devemos seguir o plano indicado. por exemplo. "Deves fazer isto e aquilo. Os "deves" categóricos são obrigatórios para os . fazer a inscrição para os exames de acesso). não se pode evitar as exigências morais dizendo. que devemos ajudar as pessoas se nos importamos com elas ou se temos outro objectivo que possamos alcançar ao auxiliá-las. Uma pessoa que não quisesse melhorar o seu jogo de xadrez não teria qualquer razão para estudar os jogos de Kasparov. Assim. as obrigações morais não dependem de desejos específicos que possamos ter. os "deves" categóricos são possíveis porque temos razão. Os requisitos morais são. Kant chama a este princípio "imperativo categórico". esse próprio homem precisará da assistência dos outros. 177 este problema: deverá prometer pagar a dívida. Este princípio resume um procedimento para decidir se um acto é moralmente permissível. temos de perguntar que regra estaríamos a seguir se realizássemos essa acção. uma vez mais. Quando estamos a ponderar fazer uma determinada acção.) A ser assim. Suponhamos. poderia esta regra tornar-se uma lei universal? É óbvio que não. que um homem precisa de pedir dinheiro emprestado. mas não tenho qualquer desejo de contribuir para a sua riqueza ou para o seu auxílio quando disso tenha necessidade. afirma Kant.3 Regras absolutas e o dever de não mentir . e não quererá que os outros sejam indiferentes ao seu problema. Outro dos exemplos de Kant tem que ver com o exercício da caridade. Como pode isto ser? Porque. temos de perguntar se estaríamos dispostos a que essa regra fosse seguida por todos e em todas as situações. No entanto. que alguém recusa auxiliar os necessitados. Vejamos.) Depois. ou como cada um consegue por si. "ninguém acreditaria no que lhe fosse prometido. porque se derrotaria a si mesma. dizendo para si: "Que tenho eu a ver com isso? Deixemos cada um ser feliz como os céus desejam. a "máxima do acto" (a regra que estaria a seguir) seria: Sempre que precisares de um empréstimo. diz Kant. e o acto é moralmente proibido. os deves categóricos derivam de um princípio que todos os seres racionais têm de aceitar. então não podemos seguir a regra. 9. (Isso transformá-la-ia numa "lei universal". a regra pode ser seguida. Enfrenta. ninguém mais acreditaria em tais promessas. Nada tirarei nem invejarei ao próximo. Pois algures. limitando-se a rir perante tal asserção por ser vão fingimento". e por isso ninguém faria empréstimos. no futuro. diz Kant. Mas ele sabe igualmente que será incapaz de o devolver. no sentido relevante. Kant exprime o imperativo categórico assim: É uma regra que estabelece o seguinte: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei universal. Imaginemos. e sabe que ninguém lho emprestará a menos que prometa devolvê-lo. (Esta será a "máxima" do acto. Uma vez transformada em prática universal. se não queremos que todas as pessoas obedeçam à regra. de maneira a persuadir alguém a conceder-lhe o empréstimo? Se fizesse isso. Kant dá vários exemplos para explicar como isto funciona. sabendo que não pode fazê-lo. independentemente de pensares ou não que podes de facto pagá-lo. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). promete pagá-lo. e o acto é permissível. Nas palavras do próprio Kant.agentes racionais simplesmente porque são racionais. pois. de uma regra que não podemos querer ver transformada em lei universal." Trata-se. linha de raciocínio de Kant de forma mais completa. porque se derrotaria a si mesma: as pessoas deixariam de acreditar umas nas outras. e então deixaria de valer a pena mentir. Não poderíamos querer que a mentira fosse uma lei universal. em 1958. guiar a nossa conduta por "regras universais" . e por isso ninguém acreditaria nas mentiras. não devemos mentir. 2) Se mentíssemos. É claro que esta não era a única regra absoluta que Kant defendia . pois isso derrotar-se-ia a si mesmo. Mas será útil concentrarmo-nos na regra contra a mentira. por ser um exemplo adequado aos nossos propósitos. as pessoas descobririam rapidamente que não podiam confiar no que os outros dissessem. em todas as circunstâncias. um problema com este argumento. Kant dedicou um espaço considerável à discussão desta regra. mentira de forma relevante como seja o que for excepto como apenas uma mentira (por exemplo. no entanto. por isso.ele pensava que existiam muitas outras. o sucesso de uma mentira depende da não existência de uma "lei universal" que a legitime. que se tornará claro se explicitarmos a 179 O problema desta forma de raciocinar foi bem resumido por Elizabeth Anscombe quando escreveu sobre Kant. a moralidade está cheia delas.regras morais válidas. Kant forneceu dois argumentos principais a favor desta perspectiva. Há. e é claro que tinha convicções particularmente fortes a seu respeito. "a destruição da nossa dignidade como seres humanos". sem excepção. estaríamos a seguir a regra "é permissível mentir". A sua regra sobre máximas "universalizáveis" é inútil sem estipulações quanto ao que deve contar como descrição . na revista académica Philosophy: As suas convicções rigoristas no que concerne à mentira eram tão intensas que nunca lhe ocorreu que se pode descrever uma. Suponhamos que era necessário mentir para salvar a vida de alguém. 4) Logo. 3) Esta regra não poderia ser adoptada universalmente. A sua razão principal para pensar que mentir é sempre errado era que a proibição de mentir se segue directamente do imperativo categórico.Ser um agente moral significa. Afirmou que mentir é. Há seguramente algo de importante aqui: para as mentiras serem bem sucedidas. Kant pensava que a regra contra a mentira era uma destas regras. as pessoas devem em geral acreditar que os outros dizem a verdade. em quaisquer circunstâncias. pois. como "uma mentira em tais ou tais circunstâncias"). 178 1. Devemos fazê-lo? Kant levar-nos-ia a raciocinar da seguinte forma: 1) Devemos fazer apenas aquelas acções que estejam em conformidade com regras que possamos desejar ver adoptadas universalmente. um decreto sagrado e absolutamente imperioso da razão. . Porque se tivéssemos dito a verdade tal como a conhecíamos. Neste aspecto.. portanto. e dessa forma o homicídio pode não ser cometido. no qual debate O Caso da Pergunta do Assassino e oferece um segundo argumento em defesa da sua perspectiva sobre a mentira. por mais bem intencionado que possa estar. e de ser castigado por causa delas [. O que deve fazer? Podemos designar isto 180 "O Caso da Pergunta do Assassino". O leitor pensa que se disser a verdade. e pergunta para onde foi o primeiro homem. quem diz uma mentira." Poderíamos querer que R fosse transformada em "lei universal". o assassino descobrirá o homem e matá-lo-á. tem de prestar contas pelas consequências. a maioria das pessoas consideraria óbvio que devemos mentir. e o leitor pensa que se ficar simplesmente calado ele encontrará o homem e matá-lo-á. poderíamos argumentar. Suponha-se ainda que o assassino está já a seguir a direcção certa. Anscombe era o modelo de integridade intelectual: apesar de concordar com a conclusão de Kant. algumas podem não ser "universalizáveis" no sentido kantiano. Um crítico desafiou-o com este exemplo: Imagine-se que alguém está a fugir de um assassino e lhe diz que vai para casa esconder-se. e se o fosse R não se derrotaria a si mesma.. A dificuldade surge no ponto 2 do argumento. O assassino chega então. Que regra exactamente estaríamos a seguir se mentíssemos? O ponto crucial é que há muitas maneiras de formular a regra. Escreve Kant: Depois de responder honestamente à pergunta do assassino sobre o paradeiro da sua pretendida vítima. por mais imprevisíveis que sejam. poderíamos ser justamente acusados de ter causado a sua morte. Afinal de contas. fazendo-se passar por inocente. Logo. Muitos contemporâneos de Kant pensaram que a sua insistência em regras absolutas era estranha. pode dar-se o caso de ele ter fugido de modo a não se encontrar com o assassino. talvez o assassino tivesse sido apanhado pelos vizinhos enquanto revistava a casa e dessa forma o seu acto poderia ter sido evitado. Suponha-se que dizíamos que o leitor seguia esta regra R: "É permissível mentir quando fazê-lo salva a vida de uma pessoa. 2.relevante de uma acção tendo em vista a construção de uma máxima sobre ela.] Ser veraz (honesto) em todas as deliberações é. o que é mais importante? Dizer a verdade ou salvar a vida de alguém? Kant respondeu a isto num ensaio com o título deliciosamente antiquado de "Sobre o Suposto Direito de Mentir por Motivos Altruístas". e se o assassino o tivesse então encontrado quando se ia embora e o tivesse matado. e disseram-no. apontou prontamente o erro no seu raciocínio. mas outras poderiam sê-lo. Neste caso. que não é limitado por qualquer conveniência. Mas se tivéssemos mentido e dito que ele não estava em casa quando na verdade ele tinha saído sem o sabermos. sem excepção.e isto é uma questão muito mais interessante. Kant parece presumir que não teríamos qualquer culpa. o argumento depende de uma perspectiva excessivamente pessimista do que podemos saber. podemos estar bastante confiantes sobre as consequências das nossas acções. Os japoneses poderiam ter-se entrincheirado. que é surpreendente um filósofo da estatura de Kant não ter sido sensível a ele. o assassino encontrava a sua vítima e a matava. Kant parece presumir que. a melhor política é evitar o mal conhecido. não serão culpa nossa.não podemos saber que se seguirão bons resultados. Os problemas deste argumento são bastante óbvios . Mas. Em primeiro lugar. e arcar com as conse181 quências. Mesmo que as consequências sejam más. Logo. nunca podemos ter a certeza das consequências das nossas acções . Mas poderemos escapar à responsabilidade assim tão facilmente? Afinal de contas. e a invasão poderia ser mesmo assim necessária. é implausível à luz de casos como o da Pergunta do Assassino. No entanto.Pode-se formular este argumento numa forma mais geral: Somos tentados a fazer excepções à regra contra a mentira porque nalguns casos pensamos que as consequências de dizer a verdade seriam más e as consequências da mentira seriam boas. apesar de sermos moralmente responsáveis pelas consequências negativas de mentir. pois teremos feito o nosso dever. de facto. e os argumentos de Kant em sua defesa são 182 insatisfatórios.4 Conflitos entre regras A ideia de que as regras morais são absolutas. Além disso . Os resultados de uma mentira podem ser inesperadamente maus. As bombas foram lançadas na esperança de que a Guerra pudesse terminar rapidamente. não seríamos igualmente responsáveis por quaisquer más consequências de dizer a verdade. Suponha-se que. a mentira. pois. 9. Pode-se fazer notar que um argumento semelhante se aplicaria à decisão de Truman de lançar bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki. caso no qual não precisamos hesitar por causa da incerteza. Por isso. muito convincente.tão óbvios. ajudámos o assassino. do ponto de vista filosófico -. Más Truman não tinha a certeza de que isso iria acontecer. além do facto de ser implausível. existirão argumentos convincentes contra a ideia? O principal argumento contra regras morais absolutas tem que ver com a possibilidade de . Este argumento não é. Por vezes. Truman estava a apostar centenas de milhar de vidas na mera esperança de que pudessem seguir-se bons resultados. como resultado de dizer a verdade. 183 durante a Segunda Guerra Mundial. Ora. Haverá alguma forma de dar resposta a esta objecção? Uma maneira de o fazer seria negar que tais casos ocorram realmente. e assim por diante. secretamente nos seus barcos. apelando para a providência divina. Podemos descrever casos fictícios nos quais não há maneira de evitar violar uma das regras absolutas. acarreta a violação de outra proibição divina absoluta?" . Não havia terceira alternativa. Peter Geach defendeu justamente esta perspectiva. Os pescadores mentiam e obtinham permissão de passagem.casos de conflito. Contrariamente ao que os descrentes dizem com frequência. por exemplo. não ordena o impossível. pode garantir que não existam circunstâncias nas quais um homem se vê. Que dizer então do caso no qual uma pessoa é confrontada com a escolha entre fazer à e fazer B. sem culpa. uma perspectiva moral que proíbe absolutamente ambas é incoerente. quando tem que fazer alguma coisa e não há outras alternativas? Este tipo de caso de conflito parece mostrar que é logicamente insustentável defender que as regras morais são absolutas. se Deus governa todos os acontecimentos por meio da sua providência.Se Deus é racional. Ocorrerão tais casos de facto? Não há dúvida que as regras morais sérias por vezes entram em confronto. O capitão nazi perguntava então ao capitão holandês qual o seu destino. Os pescadores holandeses teriam que fazer uma destas coisas. mas Deus não permitirá que tais circunstâncias existam no mundo real. No livro God and the Soul (1969) Geach escreve o seguinte: "Mas e se as circunstâncias são de tal ordem que a observância de uma lei divina. É claro que tais circunstâncias (com a cláusula "e não há saída" escrita na sua descrição) são susceptíveis de ser descritas de forma consistente. Esta dificuldade pode naturalmente ser evitada se defendermos que pelo menos uma destas . acreditar na existência de Deus altera de facto as nossas expectativas face ao que poderá acontecer. Suponhamos. manter o silêncio ou fugir aos nazis. logo. por exemplo. quem estava a bordo. agora. confrontado com uma escolha entre actos proibidos. não podiam. mas a providência divina pôde assegurar que não ocorrerão de facto. os pescadores holandeses transportavam. Suponha-se que defendemos ser absolutamente errado fazer A em quaisquer circunstâncias e igualmente errado fazer B em quaisquer circunstâncias. afirmou. mentir ou permitir que os seus passageiros (e eles mesmos) fossem apanhados e executados. refugiados judeus para Inglaterra. se assume as regras. é claro que os pescadores tinham apenas duas alternativas. e os barcos de pesca com refugiados a bordo eram por vezes interceptados por barcos patrulha nazis. a lei proibindo a mentira. "é errado mentir" e "é errado permitir o homicídio de pessoas inocentes". como absolutas. Haverá alguma ideia fundamental subjacente ao imperativo categórico que possamos aceitar. então tem de existir uma razão pela qual devemos (ou não devemos) fazê-la. o imperativo categórico está rodeado de problemas sérios e talvez inultrapassáveis. 185 formulado por Kant. independentemente da nossa vontade e desejos. por que razão algumas regras morais sérias deveriam ser absolutas. Alasdair Maclntyre sublinha que "para muitos que nunca ouviram falar de filosofia.isto é. ao mesmo tempo. As razões morais. mas não sempre. são vinculativas para todas as pessoas em todos os momentos. Por exemplo. poucos filósofos contemporâneos defenderiam a ideia central da sua ética. Como vimos. e que o poder desta ideia explica. a nível mais elementar. Mas o que significa isto ao certo? Em que sentido seria irracional rejeitar o imperativo categórico? A ideia fundamental está relacionada com o pensamento de que um juízo moral tem de se apoiar em boas razões . a moralidade é aproximadamente o que Kant disse que era" . mesmo que não aceitemos a forma particular de Kant a exprimir? Penso que há. se são mesmo válidas. pelo menos em parte. A inovação kantiana consiste em fazer notar que quaisquer considerações que aceitemos como razões num dado caso temos também de aceitar como razões noutros casos. também neste caso temos de aceitar isso como uma razão a favor da nossa acção. Mas é duvidoso que esta saída esteja disponível sempre que haja um conflito. um sistema de regras que devemos seguir partindo de um sentido de dever.se é verdade que devemos (ou não devemos) fazer tal ou tal coisa. se outras não o são. ou que as outras pessoas devem respeitá-las e nós não. tal como foi 184 racionais simplesmente porque são racionais . podemos pensar que não devemos atear fogos florestais porque se destruiriam bens alheios e morreriam pessoas. e muito menos de Kant. a enorme influência de Kant.por outras palavras. Esta é uma ideia fascinante: pensar que há restrições não só morais como também racionais ao que uma pessoa de bem pode acreditar e fazer. Não obstante. o imperativo categórico.5 Outro olhar sobre a ideia fundamental de Kant No livro A Short History ofEthics (1966). pode ser um erro abandonar o princípio kantiano demasiado depressa.regras não é absoluta. 9. Recorde-se que Kant pensa que o imperativo categórico é vinculativo para os agentes . Isto é um requisito de consistência. De nada serve dizer que aceitamos razões algumas vezes. e Kant tinha razão ao pensar que nenhum ser racional o pode negar. É também difícil compreender. Mas. uma pessoa que não aceitasse este princípio seria culpada não apenas de ser imoral mas igualmente de ser irracional. Se houver outro caso no qual se destruiriam bens alheios e morreriam pessoas. No caso da Pergunta do Assassino. por exemplo. A ideia implica. é muito diferente de dizer que a via escolhida por Truman violou uma regra absoluta.que se tem revelado tão influente.mas reconhecemos que não podemos consistentemente fazê-lo porque não podemos ao mesmo tempo aceitar a implicação de alguém poder beber a nossa cerveja. Mesmo no seio de uma estrutura kantiana. mesmo que Truman 186 esteja errado. Como assinalou um comentador. 187 . os argumentos de Kant não o demonstram. uma das ideias kantianas . não posso afirmar que é correcto eu beber a sua cerveja e depois queixar-me quando o leitor bebe a minha. Tudo o que a ideia fundamental de Kant exige é que quando violarmos uma regra o façamos por uma razão que estivéssemos dispostos a ver aceite por todos numa situação idêntica. que há restrições racionais ao que podemos fazer: podemos querer fazer uma coisa digamos. Poderíamos dizer. Essa foi a sua grande contribuição. que Truman errou porque dispunha de outras opções cujas consequências teriam sido melhores .Esta é a ideia kantiana . Se Kant não foi o primeiro e reconhecer isto. e tem desde então causado problemas à sua teoria. Mas afirmar que a negociação teria sido melhor. deveria antes dizer-se. sem dúvida. concordado que qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias teria boas razões para lançar a bomba. Implica que uma pessoa não pode encarar-se como especial de um ponto de vista moral: não pode pensar de forma consistente que tem permissão para agir de determinadas maneiras proibidas aos outros. as regras não precisam de ser encaradas como absolutas. ao invés. Também Harry Truman teria. além disso. E a maioria de nós concordaria prontamente com isso. Assim. Tem uma série de implicações importantes.ou. isto significa que só podemos violar a regra de proibição da mentira se aceitarmos que qualquer pessoa o faça quando confrontada com a mesma situação. mas esse passo não era mais necessário. Não é difícil ver como a sua ideia fundamental o impeliu nessa direcção. ou que os seus interesses são mais importantes do que os interesses das outras pessoas. beber a cerveja de alguém .muitas pessoas defenderam. por causa das suas consequências. Mas Kant foi ainda mais longe e afirmou que a consistência requer regras sem excepções. que devia ter negociado o fim da Guerra em termos que os japoneses pudessem aceitar. foi o primeiro a transformá-lo na pedra basilar de um sistema moral plenamente desenvolvido. Capítulo 10 Kant e o respeito pelas pessoas Há alguém que não admire o Homem? GIOVANI Pico DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a Dignidade do Homem (1486) 10.1 A ideia de dignidade humana Kant pensava que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação. Naturalmente, não era o único a pensar assim. Trata-se de uma velha ideia: Desde a Antiguidade, os seres humanos consideraram-se essencialmente diferentes de todas as outras criaturas - e não apenas diferentes, mas melhores. De facto, os seres humanos consideram-se tradicionalmente muitíssimo fabulosos. Kant certamente que o fez. Do seu ponto de vista, os seres humanos têm "um valor intrínseco, isto é, dignidade", que lhes dá valor "além de qualquer preço". Os outros animais, pelo contrário, têm apenas valor na medida em que servem os propósitos humanos. Nas suas Lições de Ética (1779), Kant escreveu: Mas no que diz respeito aos animais, não ternos deveres directos. Os animais [...] existem apenas como meios para um fim. Esse fim é o homem. 189 Podemos, portanto, usar os animais como nos aprouver. Não temos sequer um "dever directo" de nos refrear de os torturar. Kant admite que provavelmente é errado torturá-los, mas a razão não é que isso lhes causa sofrimento; a razão é apenas que os seres humanos poderiam sofrer indirectamente em resultado disso, porque "quem é cruel para os 'animais torna-se rude igualmente no tratamento dos homens". Assim, na perspectiva de Kant, os meros animais não têm importância moral. Os seres humanos são, no entanto, uma história completamente diferente. Segundo Kant, os seres humanos nunca podem ser "usados" como meios para um fim. Kant foi mesmo ao ponto de sugerir que esta é a lei crucial da moralidade. Como vários outros filósofos, Kant pensava que a moralidade pode resumir-se num princípio fundamental, a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações. Chamou a este princípio "imperativo categórico". Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) exprimiu-o desta forma: Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal. No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o seguinte: Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio. Os estudiosos têm-se perguntado desde então por que razão pensava Kant que estas duas regras são equivalentes. Parecem exprimir concepções morais diferentes. Serão, como Kant pensava aparentemente, duas versões da mesma 190 nós; mas para lá de tais objectivos o livro não tem valor. Ou, se quisermos viajar, um carro terá valor para nós; mas além de tal desejo o carro não tem valor. Segundo, e ainda mais importante, os seres humanos têm "um valor intrínseco, isto é, dignidade", porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objectivos e guiar a sua conduta pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais são a encarnação da lei moral em si. A única forma de a bondade moral poder existir é as criaturas racionais apreenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um sentido de dever, fazê-lo. Isto, pensava Kant, é a única coisa com "valor moral". Assim, se não existissem seres racionais a dimensão moral do mundo simplesmente desapareceria. Não faz sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo de coisa valiosa entre outras. Eles 191 ideia básica, ou são simplesmente ideias diferentes? Não nos vamos deter nesta questão. Vamos, em vez disso, concentrar-nos na crença de Kant de que a moralidade exige que tratemos as pessoas "sempre como um fim e nunca apenas como um meio". O que significa exactamente isto, e que razão há para pensar que é verdade? Quando Kant afirmou que o valor dos seres humanos "está acima de qualquer preço" não tinha em mente apenas um efeito retórico, mas sim um juízo objectivo sobre o lugar dos seres humanos na ordem das coisas. Há dois factos importantes sobre as pessoas que apoiam, do seu ponto de vista, este juízo. Primeiro, uma vez que as pessoas têm desejos e objectivos, as outras coisas têm valor para elas em relação aos seus projectos. As meras "coisas" (e isto inclui os animais que não são humanos, considerados por Kant incapazes de desejos e objectivos conscientes) têm valor apenas como meios para fins, sendo os fins humanos que lhes dão valor. Assim, se quisermos tornar-nos melhores jogadores de xadrez, um manual de xadrez terá valor para são os seres para quem as meras "coisa" têm valor, e são os seres cujas acções conscientes têm valor moral. Kant conclui, pois, que o seu valor tem de ser absoluto, e não comparável com o valor de qualquer outra coisa. Se o seu valor está "acima de qualquer preço", segue-se que os seres racionais têm de ser tratados "sempre como um fim e nunca apenas como um meio". Isto significa, a um nível muito superficial, que temos o dever estrito de beneficência relativamente às outras pessoas: temos de lutar para promover o seu bem-estar; temos de respeitar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal, e, em geral, "empenhar-nos, tanto quanto possível, em promover a realização dos fins dos outros". Mas a ideia de Kant tem também uma implicação um tanto ou quanto mais profunda. Os seres de que estamos a falar são racionais, e "tratá-los como fins em si" significa respeitar a sua racionalidade. Assim, nunca podemos manipular as pessoas, ou usá-las, para alcançar os nossos objectivos, por melhores que esses objectivos possam ser. Kant dá o seguinte exemplo, semelhante a outro que utiliza para ilustrar a primeira versão do seu imperativo categórico: Suponha que precisa de dinheiro e quer um empréstimo, mas sabe que não será capaz de devolvê-lo. Em desespero, pondera fazer uma falsa promessa de pagamento de maneira a levar um amigo a emprestar-lhe o dinheiro. Poderá fazer isso? Talvez precise do dinheiro para um propósito meritório - tão bom, na verdade, que poderia convencer-se a si mesmo de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse ao seu amigo, estaria apenas a manipulá-lo e a usá-lo "como um meio". Por outro lado, como seria tratar o seu amigo "como um fim"? Suponha que dizia a verdade, que precisava do dinheiro para um certo objectivo mas não seria capaz de devolvêlo. O seu amigo poderia, então, tomar uma decisão sobre o empréstimo. Poderia exercer os seus próprios poderes racionais, consultar os seus próprios valores e 192 desejos, e fazer uma escolha livre e autónoma. Se decidisse de facto emprestar o dinheiro para o objectivo declarado, estaria a escolher fazer seu esse objectivo. Dessa forma, o leitor não estaria a usá-lo como um meio para alcançar o seu objectivo, pois seria agora igualmente o objectivo dele. É isto que Kant queria dizer quando afirmou que "os seres racionais [...] têm sempre de ser estimados simultaneamente como fins, isto é, somente como seres que têm de poder conter em si a finalidade da acção". A concepção kantiana da dignidade humana não é fácil de entender; é provavelmente a noção mais difícil discutida neste livro. Precisamos de encontrar uma forma de tornar a ideia mais clara. Para isso, analisaremos com algum detalhe uma das suas aplicações mais importantes. Isto pode ser bem melhor do que uma discussão teórica árida. Kant pensava que se tomarmos a sério a ideia da dignidade humana seremos capazes de entender a prática da punição de crimes de uma forma nova e reveladora. O resto deste capítulo será dedicado à análise deste exemplo. 10.2 Retribuição e utilidade na teoria da punição Jeremy Bentham, o grande teórico utilitarista, afirmou que: "Toda a punição é danosa: toda a punição é em si um mal." Com isto queria dizer que a punição implica sempre tratar mal as que era um retributivista. porque advogava a imposição de sofrimento sem qualquer ganho compensatório em felicidade. Bentham afirma que a punição. O retributivismo leva-nos a aumentar. "a ser admitida. afinal de contas. tinha consciência desta implicação e aceitoua abertamente. escreveu: Quando alguém que se compraze em incomodar e vexar as pessoas que gostam da paz recebe por fim Primeiro. ainda que nada mais resulte daí. segundo Bentham. punir os criminosos ajuda a prevenir o crime. Os utilitaristas responderam tradicionalmente pela afirmativa. a quantidade de sofrimento no mundo. os seus pertences (multas) ou mesmo as suas vidas (pena capital). claramente. uma ideia inteiramente insatisfatória.pessoas. As pessoas que se sentem tentadas a comportar-se . a 193 uns merecidos açoites. Como poderá ser correcto tratar assim as pessoas? A resposta tradicional é que a punição se justifica como forma de "retribuir" ao ofensor o acto malévolo cometido. quer tirando-lhes a liberdade (detenção). o nosso dever é fazer tudo quanto aumente a quantidade de felicidade no mundo. Assim. 194 justiça exige que sofra também algum dano. deveria sê-lo na medida em que prometa excluir um mal maior". dente por dente". merecem ser maltratados. para o utilitarista. isso é certamente um mal. e não a diminuir. segundo Kant. Os que cometeram crimes. Como reza o adágio antigo. Assim. Há duas formas pelas quais a prática de punir os infractores da lei beneficia a sociedade. A punição é. mas. a questão é saber se por meio da punição dos criminosos se serve uma finalidade boa. Isto não é uma implicação "oculta" do retributivismo. sopesados. o merece. Esta perspectiva é conhecida como retributivismo. ou pelo menos reduz o nível de actividade criminosa numa sociedade. O retributivismo era. mas todo& o aprovam e consideram um bem em si. exigem uma justificação. "Olho por olho. isso não faz mal. "um mal" porque torna alguém . Por outras palavras. como roubar ou atacar outras pessoas. O utilitarismo faz uma abordagem completamente diferente. Na Crítica da Razão Prática (1788). Por isso. superem o mal cometido. além de lhes causar sofrimento. punir pessoas pode aumentar a quantidade de sofrimento no mundo. É essencialmente uma questão de justiça: Se alguém faz mal a outras pessoas.a pessoa que é punida infeliz. pode justificar-se apenas se vier a ter resultados bons que. Segundo o utilitarismo. pois o acréscimo de sofrimento é suportado pelo criminoso que. Uma vez que todas estas coisas são males. Kant. os utilitaristas considerariam a punição justificada. A mudança de pensamento foi tão grande que o termo prisão já não é bem aceite. Uma vez que a conduta criminosa causa infelicidade às vítimas. programas educativos e treino vocacional. Por vezes as pessoas violarão a lei de qualquer maneira. se possível. os agentes da sociedade. ser detido para se xemover o perigo. é um perigo para a sociedade e pode. em tempos meros lugares de isolamento. Têm com frequência uma educação deficiente e são incapazes de manter um emprego. orientado à cidadania útil. podem ser dissuadidas de o fazer se souberem que serão punidas. chegou a esta mesma conclusão quando escreveu. incluindo psicólogos. e detendo o poder não há necessidade de manter a vingança temerosa dos antigos sistemas penais. Naturalmente. Segundo. os seus problemas devem ser tratados mediante terapia psicológica. Assim. havendo um ganho nítido de felicidade. As prisões. Karl Menninger. foram reconcebidas (pelo menos em teoria) como centros de reabilitação. estamos sem dúvida a prevenir mais infelicidade do que a que causamos. Em seu lugar. e hoje a teoria utilitarista da punição constitui a ortodoxia dominante. devemos colocar um programa terapêutico sereno e digno para. com dificuldade de funcionar bem em sociedade. ou treino profissional.de facto. porque não responder ao crime atacando os problemas que lhe estão na origem? Se alguém viola as leis sociais. Nós não somos levados.mal. bibliotecas. o distinto 195 psicólogo. O conhecimento traz poder. Mas haverá menos delinquência se existir a ameaça de punição. reabilitar os perturbados. Imagine como seria se a polícia não estivesse preparada para prender ladrões. temos de pôr fim ao jogo de pagar na mesma moeda no qual o malfeitor se envolveu estupidamente e nos envolveu a todos. a ameaça de punição nem sempre será eficaz. a agir de forma impulsiva e selvagem. teríamos de ser uns românticos incuráveis para não reconhecer que haveria muito mais assaltos. Se puder por fim ser devolvido à sociedade como um cidadão produtivo em vez de um criminoso. Estas ideias utilitaristas dominaram a lei anglo-americana no século passado. O resultado lógico desta maneira de pensar é que devemos abandonar a noção de punição e substitui-la pela noção mais humana de tratamento. Mas enquanto está detido. ao prevenir o crime (pela imposição de punições) estamos a prevenir a infelicidade . Os criminosos são frequentemente pessoas com problemas emocionais. antes de mais. um sistema bem concebido de punição poderia ter um efeito de reabilitação dos malfeitores. proteger a sociedade durante o período de tratamento e preparar o seu regresso. como ele. os beneficiários serão ele próprio e a sociedade. em 1959: Nós. Tendo isto em conta. logo que isso se possa fazer. a nomenclatura preferida . oportunidades educacionais. de acordo com as suas necessidades. Primeiro. a taxa de reincidência é aí mais elevada do que na maioria dos outros estados norteamericanos. Além disso. tem-se feito mais para "reabilitar" criminosos do que em qualquer outro lugar. apesar dos esforços. Isto viola a regra fundamental de que "um homem nunca deve ser usado apenas como um meio para servir os fins de outro". os programas de reabilitação 196 maneira a manter o bem-estar da sociedade. e por nenhuma outra razão: A punição judicial nunca pode ser administrada meramente como um meio para promover outro bem. Mas alguma da oposição é também baseada em considerações inteiramente teóricas que recuam pelo menos a Kant. Kant afirma que é importante punir o criminoso de forma proporcional à seriedade do . leva-nos a calcular como usar as pessoas como meios para um fim. segundo. a teoria é incompatível com a dignidade humana. por exemplo. Como tal. Na realidade. supostamente. A vitória da ideologia utilitarista foi virtualmente completa. no entanto. Defendeu. reabilitadores.3 O retributivismo de Kant Como todas as ortodoxias. que a punição deve ser governada por dois princípios. Convém notar as implicações da nova terminologia . ao invés. os programas de reabilitação têm sido desencorajadoramente mal sucedidos. o objectivo da "reabilitação". 10. e isto não é permissível. e as pessoas que aí trabalham são funcionários correccionais. Temos de facto o direito de responder à sua maldade "retaliando-os" por isso. apesar de parecer nobre. Não obstante. 197 não têm funcionado muito bem. Em primeiro lugar. para o criminoso em si ou para a sociedade. as prisões continuam a ser brutais e. é uma violação dos seus direitos de seres autónomos para decidir por si que género de pessoas querem ser.os detidos não estão lá para ser "punidos" mas sim "corrigidos". a teoria utilitarista da punição suscitou opositores. Desta forma Kant distanciou-se das justificações utilitaristas da punição. mas não temos o direito de violar a sua integridade tentando manipular as suas personalidades. Muita da oposição é de natureza prática. os programas são.é instituição correccional. Na Califórnia. estamos apenas a usá-lo em benefício dos outros. afirmou. mas tem de ser imposta em todos os casos apenas porque o indivíduo ao qual é infligida cometeu um crime. com demasiada frequência. as pessoas devem ser punidas simplesmente porque cometeram crimes. Se prendemos um criminoso de E. Kant rejeitou "as contorções de serpente do utilitarismo" porque. não passa na verdade de uma tentativa de transformar as pessoas no que pensamos que devem ser. se atacas outra pessoa. Nada há na ideia de base do utilitarismo que estabeleça limites à punição dos culpados.. que o retributivismo não permitiria.. Vale a pena notar que o utilitarismo foi condenado por violar os dois princípios kantianos. Isto é um argumento. pode por vezes acontecer que o bem-estar geral seja servido mediante a "punição" de alguém que não cometeu um crime. Isto deve ser feito para que todos compreendam a remuneração dos seus actos. Mas Kant fornece ainda um argumento adicional.] Pode pois dizer-se: "Se difamas outra pessoa. difamas-te a ti mesmo. concebida desta forma. atacas-te a ti mesmo..seu crime. ou que limite a extensão da punição em função do que é merecido. uma pessoa inocente. matas-te a ti mesmo. Este segundo princípio leva Kant a apoiar inevitavelmente a pena capital.." Isto é [. aparentemente. mas as grandes punições são necessárias em resposta a crimes maiores: Mas qual é a forma e a medida da punição que a justiça pública toma como seu princípio e padrão? É apenas o princípio de igualdade. Se o propósito da punição é preservar 198 o bem-estar geral. e a ofensa feita a uma pessoa punida tem de ser comparável à ofensa que ela infligiu aos outros. Kant afirma que se os culpados não forem punidos. se matas outra pessoa. violações da justiça.] o único princípio que [. Apenas descrevem os limites quanto ao que a punição justa pode envolver: Só os culpados podem ser punidos. não será feita justiça. Pequenas punições podem bastar para crimes menores. o último homicida que estivesse na prisão deveria ser executado antes de a resolução ser levada avante. Mas os dois princípios de Kant não constituem uma argumentação em favor da punição ou uma justificação da mesma. Mas ambas as coisas são. Precisamos ainda de um argumento para mostrar que a prática da punição. como afirma o utilitarismo. pode acontecer que o bem-estar geral seja promovido mediante uma punição excessiva .] pode definitivamente estabelecer a qualidade e quantidade de uma pena justa. baseado na sua concepção de que as pessoas devem . Notámos já que Kant encara a punição como uma questão de justiça. pois de outra forma todos serão encarados como participantes no homicídio enquanto violação pública da Justiça. De modo análogo... Kant afirma: Mesmo que uma sociedade civil resolvesse dissolver-se com o consentimento de todos os seus membros -como pode supor-se no caso de um povo habitando uma ilha que resolvesse separar-se e espalhar-se pelo mundo -. apenas a morte é uma pena suficientemente severa.uma punição maior poderá ter um efeito dissuasor maior. pelo qual o prato da balança da Justiça é levado a não pender mais para um lado do que para o outro [. pois em resposta a um homicídio. seria uma coisa moralmente boa. e para que a culpa de sangue não permaneça entre o povo. Numa passagem célebre. .como pode supor-se no caso de um povo habitando uma ilha que resolvesse separar-se e espalhar-se pelo mundo -. Este segundo princípio leva Kant a apoiar inevitavelmente a pena capital. Como poderia o acto de retirar a uma pessoa a sua liberdade. apenas a morte é uma pena suficientemente severa. Ao que tudo indica.. Kant afirma que é importante punir o criminoso de forma proporcional à seriedade do seu crime. Como pode isto ser assim? Recordemos que. se matas outra pessoa.. pelo qual o prato da balança da Justiça é levado a não pender mais para um lado do que para o outro [. se atacas outra pessoa. Este filósofo insinua ainda. e para que a culpa de sangue não permaneça entre o povo. para Kant. que executar alguém pode também ser uma forma de tratá-lo como "um fim".. é exactamente isso que Kant sugere. Se o propósito da punição é preservar 198 o bem-estar geral. Vale a pena notar que o utilitarismo foi condenado por violar os dois princípios kantianos. ou que limite a extensão da punição em função do que é merecido. pois em resposta a um homicídio.] pode definitivamente estabelecer a qualidade e quantidade de uma pena justa.ser tratadas como "fins em si".. Isto deve ser feito para que todos compreendam a remuneração dos seus actos. matas-te a ti mesmo.qual é a forma e a medida da punição que a justiça pública toma como seu princípio e padrão? É apenas o princípio de igualdade. atacas-te a ti mesmo. ser uma forma de mostrar "respeito" por ela? No entanto.] o único princípio que [. como afirma o utilitarismo.. tratar alguém como "um fim em si" significa tratá-lo como um ser racional. Temos pois de perguntar o que significa tratar alguém como um ser racional." Isto é [. difamas-te . segundo.] Pode pois dizer-se: "Se difamas outra pessoa. de forma mais paradoxal. é improvável que pudéssemos descrever a punição de um indivíduo como uma forma de "respeitá-lo enquanto pessoa" ou como "tratá-lo enquanto fim em si". Kant afirma: Mesmo que uma sociedade civil resolvesse dissolver-se com o consentimento de todos os seus membros . mas as grandes punições são necessárias em resposta a crimes maiores: Mas. pode por vezes acontecer que o bem-estar E. Um ser racional é alguém capaz de raciocinar 199 a ti mesmo. Pequenas punições podem bastar para crimes menores. enviando-a para a prisão. Este argumento adicional é a contribuição específica de Kant para a teoria do retributivismo. Nada há na ideia de base do utilitarismo que estabeleça limites à punição dos culpados. o último homicida que estivesse na prisão deveria ser executado antes de a resolução ser levada avante. Numa passagem célebre. pois de outra forma todos serão encarados como participantes no homicídio enquanto violação pública da Justiça. De modo análogo.uma punição maior poderá ter um efeito dissuasor maior. de forma mais paradoxal. Temos pois de perguntar o que significa tratar alguém como um ser racional. Por ter estas capacidades. que o retributivismo não permitiria. Em tais casos seria absurdo "responsabilizá-las". seria uma coisa moralmente boa. não são responsáveis pelas suas acções. Apenas descrevem os limites quanto ao que a punição justa pode envolver: Só os culpados podem ser punidos. Ao que tudo indica. com base na sua própria concepção do que é melhor. baseado na sua concepção de que as pessoas devem ser tratadas como "fins em si". Isto é um argumento. para Kant.geral seja servido mediante a "punição" de alguém que não cometeu um crime. carentes de razão. ser uma forma de mostrar "respeito" por ela? No entanto. violações da justiça. Os meros animais. Kant afirma que se os culpados não forem punidos. Notámos já que Kant encara a punição como uma questão de justiça. que executar alguém pode também ser uma forma de tratá-lo como "um fim". Como poderia o acto de retirar a uma pessoa a sua liberdade. Tratar alguém como um ser responsável. Este filósofo insinua ainda. Não poderíamos com propriedade sentir gratidão ou ressentimento relativamente a elas. não será feita justiça. Tratar alguém como um ser que não é responsável pela sua conduta. tratar alguém como "um fim em si" significa tratá-lo como um ser racional. um ser racional é responsável pelas suas acções. enviando-a para a prisão. Precisamos recordar a diferença entre: 1. pois não são responsáveis por qualquer bem ou mal que causem. aparentemente. Precisamos ainda de um argumento para mostrar que a prática da punição. é exactamente isso que Kant sugere. concebida desta forma. Além disso. pode acontecer que o bem-estar geral seja promovido mediante uma punição excessiva . é improvável que pudéssemos descrever a punição de um indivíduo como uma forma de "respeitá-lo enquanto pessoa" ou como "tratá-lo enquanto fim em si". Este argumento adicional é a contribuição específica de Kant para a teoria do retributivismo. tal como não o são as pessoas com doenças mentais e sem controlo sobre si rríesmas. Mas Kant fornece ainda um argumento adicional. Um ser racional é alguém capaz de raciocinar 199 sobre a sua conduta e decidir livremente o que fazer. 2. Mas os dois princípios de Kant não constituem uma argumentação em favor da punição ou uma justificação da mesma. assim como não podemos esperar que percebam as razões do seu próprio . não podemos esperar que percebam o porquê de os tratarmos como tratamos. Mas ambas as coisas são. e a ofensa feita a uma pessoa punida tem de ser comparável à ofensa que ela infligiu aos outros. uma pessoa inocente. Como pode isto ser assim? Recordemos que. mas estamos apenas a tentar "treiná-lo". Quando batemos num cão que urinou no tapete. pois. Na sua opinião. Não podemos. proclamamos de facto o desejo de ver a nossa conduta erigida em "lei universal". ao permitir que este controle a maneira como o tratamos. há uma razão lógica mais profunda para pagar às outras pessoas "na mesma moeda". Por outro lado. estamos a obedecer à sua própria decisão. ao lidar com agentes responsáveis podemos adequadamente permitir que a sua conduta determine. e o tratamos bem em troca. pelo menos em parte. quando um ser racional decide tratar as pessoas de certa maneira. Se ele trata mal os outros. em vez de os tratar como indivíduos autónomos. Por isso. Kant deu à teoria retributiva uma acções de uma forma que não podemos aplicar aos meros animais. Porque razão não haveríamos de fazê-lo? Porque razão haveríamos de tratar todas as pessoas da mesma maneira." Associando a punição com a ideia de tratar as pessoas como seres racionais. é claro. Podemos sentir gratidão quando se portam bem e ressentimento quando se portam mal. independentemente da forma como elas escolheram comportar-se? Kant dá a este último aspecto uma inflexão peculiar. Kant afirma com respeito ao criminoso: "A sua má acção arrasta consigo a punição sobre si. Se alguém foi amável connosco. os seres racionais são responsáveis pelo seu comportamento e por isso podem prestar contas do que fazem. Não poderíamos discutir com ele. Estamos a reagir a elas não como pessoas "doentes" ou que não têm controlo sobre si.) Estamos a permitir-lhe decidir como deve ser tratado e por isso estamos. Quando decidimos o que fazer. mesmo que o desejássemos. deixar de manipulá-los. a forma como lhes respondemos. podemos fazê-lo numa tentativa de evitar que volte a fazê-lo. e se alguém foi . por exemplo. e nós o tratamos mal. Além disso. Por isso. a respeitar o seu juízo.comportamento. estamos também a obedecer à escolha que fez.e não "treino" ou outra forma de manipulação . se ele trata bem os outros.são as expressões naturais desta gratidão ou ressentimento. mas como pessoas que escolheram livremente executar os seus actos malévolos. (E. se em resposta o tratamos da mesma forma. Aqui entra em jogo a primeira formulação do imperativo categórico. num sentido perfeitamente claro. ao punir pessoas estamos a responsabilizá-las pelas suas 200 desagradável. podemos responder retribuindo a amabilidade. Logo. O mesmo acontece relativamente aos seres humanos com perturbações mentais. não estamos a fazer mais do que tratá-lo como ele decidiu que as pessoas devem ser tratadas. Recompensa e punição . podemos também tomar isso em conta ao decidir como lidamos com essa pessoa. Por isso. decreta que em seu juízo essa é a forma como as pessoas devem ser tratadas. 202 . "personalidades perturbadas". Mas na medida em que sejam encarados como pessoas responsáveis. De facto. sem desculpas. não faz sentido indignarmo-nos com o seu comportamento e "puni-los" por causa dele. "forçadas a realizar acções impulsivas e selvagens" sobre as quais não têm controlo. então o modelo terapêutico terá uma maior atracção do que a atitude mais severa de Kant. o retributivismo kantiano continuará a ter um grande poder persuasivo. se os criminosos não são agentes responsáveis.201 nova densidade.quanto ao que pensamos sobre a natureza do crime e dos criminosos. Se os infractores da lei são. O que em última instância pensamos da teoria dependerá do que pensamos sobre as grandes questões identificadas por Kant . que simplesmente escolheram violar os direitos dos outros sem qualquer motivo racionalmente aceitável. o próprio Kant insistiria em que. como sugere Menninger. haveria um medo contínuo e o perigo 203 moralidade? Se não podemos apelar para Deus. Hobbes chamou a isto estado de natureza. Hobbes começa por perguntar como seria se não houvesse regras sociais e nenhum mecanismo comummente aceite para as impor. o que é o pior. nem artes. Nesta situação. muita força. pois. pois. e. nem sociedade. o mais distinto filósofo britânico do século xvii. o desejo das coisas necessárias a uma vida confortável. nem letras. restará alguma coisa sobre a qual a moralidade se possa fundar? . e a esperança de que o seu engenho permita alcançá-las. nem conhecimento da face da Terra.Capítulo 11 A ideia de contrato social As paixões que inclinam os seres humanos a favor da paz são o medo da morte. polícias ou tribunais. que não havia governos . É essa a chave para a compreensão da ética e não Deus. Suponha-se.nem leis. nem instrumentos para auxiliar a deslocação e remoção de coisas que requerem. como a solução de um problema prático que se coloca a seres humanos com interesses próprios. não haveria navegação nem utilização dos produtos que podem ser transportados por mar. Como seria isto? Hobbes pensava que seria horrível. a origem da Thomas Hobbes. THOMAS HOBBES. e. Qual é. cada um de nós seria livre de fazer o que quisesse. A moralidade deveria ser entendida. sobre as quais os homens podem ser levados a acordo. as regras necessárias para nos permitir obter os benefícios da vida em sociedade. que não existe qualquer Deus para emitir mandamentos e recompensar a virtude. tentou mostrar que a moralidade não depende de qualquer dessas coisas. nem mecanismos para contar o tempo. o altruísmo ou os "factos morais". E não podemos ter uma ordem social pacífica e cooperante sem regras. Estas cláusulas são o que costuma chamar-se as Leis da Natureza. As regras morais são apenas. ao invés. segundo. primeiro. Suponha-se ainda que negamos o carácter naturalmente altruísta dos seres humanos e encaramos as pessoas como essencialmente motivadas pela defesa dos seus próprios interesses.1 O argumento de Hobbes Imagine-se que afastamos todas as bases tradicionais da moralidade. Leviathan (1651) 11. Todos queremos viver tão bem quanto possível. pois o fruto do trabalho seria incerto: e consequentemente a terra não seria cultivada. aos factos morais ou ao altruísmo natural. E a razão sugere cláusulas de paz convenientes. No Leviathan escreveu que não haveria maneira de ser empreendedor. que não há "factos morais" integrados na natureza das coisas. mas ninguém pode prosperar sem uma ordem social pacífica e cooperante. Imaginemos. se quisermos. nem edifícios confortáveis. somos todos essencialmente iguais. que esperança nos resta? Poderemos. por exemplo. confiar na caridade ou boa-vontade das outras pessoas para nos ajudar? Não podemos. que também querem os bens escassos? Hobbes pensa que não.Se não podemos prevalecer por meio da força. sórdida.de morte violenta. emerge um retrato sinistro. e viver tão bem quanto possível. cada um de nós deseja tanto quanto puder obter. onde as coisas de que precisamos para sobreviver não existem em quantidade abundante.Primeiro. O mundo é um local duro e inóspito. um "estado de guerra constante de um contra todos". 204 condição. demasiado consigo mesmas. É claro que algumas pessoas são mais espertas e mais fortes do que outras.comida. . Logo. e não as há em quantidade suficiente para sobrevivermos. e a vida do homem seria solitária. . Mas conseguiremos triunfar sobre os outros. . pobre. Não vivemos no Paraíso. E. quem os irá providenciar? Uma vez que cada um de nós quer viver. importam-se. Mas nenhum de nós tem capacidade para triunfar sobre a concorrência.estará disposto a abdicar da satisfação das suas necessidades em favor dos outros.ou quase ninguém . e não podemos simplesmente presumir que sempre que os nossos interesses vitais entram em conflito com os delas. Mesmo que as pessoas não sejam totalmente egoístas. os outros não). E tratase de uma guerra que . Apesar de podermos diferir em algumas das nossas necessidades (os diabéticos precisam de insulina. O quarto e último facto é o altruísmo limitado. Cada um de nós precisa das mesmas coisas básicas de modo a sobreviver . Ninguém é superior a todos os outros. elas se afastarão. abrigo. Temos de trabalhar duramente para as produzir. Todos1 precisamos das mesmas coisas básicas. O resultado é. brutal e curta.Se não há suficientes bens essenciais para sobrevivermos. por causa do terceiro facto sobre a nossa de tudo. mas mesmo as mais fortes podem ser derrotadas por outras actuando em conjunto. Quando juntamos estes factos. isso sim. e mesmo assim muitas vezes não temos o suficiente. há o facto da igualdade de necessidades. e ninguém . vestuário. de maneira a poder vencê-los indefinidamente. apesar 205 Porque razão seriam as coisas tão más? Não é porque as pessoas são más. nas palavras de Hobbes. o facto da igualdade essencial dos poderes humanos. seremos colocados numa espécie de competição por elas. há o facto da escassez. onde o leite corre em regatos e todas as árvores estão pejadas de frutos suculentos. em força e engenho.Segundo. por causa de quatro factos fundamentais relativos às condições da vida humana: . Uma vez estabelecidas estas garantias. as pessoas têm de poder confiar umas nas outras quanto ao cumprimento dos seus acordos. como durante uma insurreição civil. pois. letras". artes. com o seu sistema de leis. (O que faria o leitor se amanhã de manhã ao acordar descobrisse que por causa de uma qualquer catástrofe o governo tinha caído. tem de haver garantias de que as pessoas não farão mal umas às outras as pessoas têm de . pode desenvolver-se uma sociedade na qual todos tenham melhores condições de vida do que no estado de natureza. edifícios confortáveis. São estas as razões pelas quais a vida no estado de natureza seria intolerável. Para escapar ao estado de natureza as pessoas têm. Há então lugar para os "produtos importados por via marítima. segundo. tentará recolher o que precisa e preparar-se para o defender dos atacantes. Para as pessoas escaparem ao estado de natureza. entre si. as nações do mundo. a quantidade de bens essenciais pode aumentar e ser distribuída por quantos tenham 206 poder trabalhar juntas sem medo de ataques.e esta é uma das ideias principais de Hobbes . é claro que têm de encontrar maneiras de cooperar entre si. e têm de concordar no estabelecimento de um intermediário . deles necessidade. de maneira a assegurar que as pessoas poderão viver com um receio mínimo de ataques e que terão de manter os seus compromissos. Só então pode haver uma divisão do trabalho. Sublinhou que isto é o que acontece de facto quando os governos caem. sem uma lei internacional actuante. Primeiro. Se uma pessoa se dedica à cultura da terra e outra passa o tempo a ajudar os doentes. Hobbes não pensava que tudo isto fosse mera especulação. As pessoas começam desesperadamente a armazenar comida. E. A este acordo. chama-se contrato social. roubos ou traições. armadas e desconfiadas. enquanto uma terceira constrói casas. tal acordo existe de facto. e estão constantemente a atacar-se. do qual cada cidadão é parte. polícia ou tribunais em funcionamento?) Além disso.para isto acontecer. estão numa situação muito parecida à dos indivíduos no "estado de natureza". esperando cada uma partilhar os benefícios criados pelas outras. O governo é uma parte indispensável do sistema. de concordar no estabelecimento de regras para governar as suas relações. tem de se estabelecer um governo. não havendo leis.ninguém pode esperar vencer. cada pessoa na cadeia tem de poder confiar que os outros farão o que deles se espera. e torna possível a vida em sociedade. e outras coisas que tais. Mas os outros farão a mesma coisa.o Estado .com o poder necessário para aplicar estas regras. Numa sociedade estável e cooperante. Segundo Hobbes. polícia e tribunais. Mas . a armarse e a afastar-se dos seus vizinhos. Uma pessoa razoável que queira sobreviver. Mas são necessárias duas coisas para isto poder acontecer. seria levado a abençoar continuamente o momento feliz que o retirou dela para sempre e que. governando a forma de as pessoas se tratarem entre si..Além de explicar os propósitos do Estado. quando a voz do dever toma o lugar dos impulsos físicos e o direito o lugar do apetite. Mas ele só pode fazer isto porque os outros concordaram fazer a mesma Só no contexto do contrato social podemos tornar-nos seres beneficentes. e a consultar a sua razão antes de dar ouvidos às suas inclinações [. 11. os seus sentimentos enobrecem-se. porque o contrato cria as condições sob as quais podemos dar-nos ao luxo de cuidar dos outros.] As suas faculdades são então exercitadas e desenvolvidas. o contrato social liberta-nos para cuidar dos outros. foi ao ponto de afirmar que nos tornamos tipos diferentes de criaturas quando iniciamos relações civilizadas com os outros. o filósofo francês que depois de Hobbes está mais estreitamente identificado com esta teoria... No estado de natureza é cada um por si. a teoria do contrato social explica a natureza da moralidade. O Contrato Social (1762). Mas em sociedade o altruísmo torna-se possível. de um animal estúpido e sem imaginação.esta é a essência do "contrato". as suas idéias alargam-se. Ao libertarnos do "medo contínuo de uma morte violenta". até então apenas preocupado consigo mesmo. que todas as pessoas racionais acordam aceitar. enquanto a moralidade consiste em todo o conjunto de regras que facilita a vida em sociedade. seria estúpido alguém adoptar a política de "olhar pelos outros". toda a sua alma se eleva a um ponto tal que se os abusos desta sua nova condição não o degradassem com frequência a um ponto muito inferior ao da condição da qual saiu. Na sua obra mais famosa. Podemos pois resumir a concepção do contrato social da forma seguinte: A moralidade consiste no conjunto de regras.2 O dilema do prisioneiro . aí. 207 l Só então. fez um ser inteligente e um Homem.] coisa . Estão ambos estreitamente ligados: O Estado existe para aplicar as regras mais importantes necessárias para a vida em sociedade. é que o Homem. E o que exige a "voz do dever" deste novo homem? Exige-lhe que coloque de lado as suas "inclinações" privadas e egocêntricas em favor de regras que promovam imparcialmente o bem-estar de todos sem distinção. porque só se poderia fazer isso à custa de colocar permanentemente os seus próprios interesses em risco. Rousseau escreveu: Esta passagem do estado de natureza ao estado civil produz no Homem uma mudança admirável [. para benefício mútuo. na condição de os outros seguirem também essas regras. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). se vê forçado a agir segundo outros princípios.. ficará preso dez anos. lutar pelos seus direitos e coisas do género. nem sequer conhece Smith. que foi igualmente detido e está preso noutra cela. Poderão mantê-los detidos durante um ano. talvez o leitor queira ver se consegue resolvê-lo antes de saber a resposta.Mas se nenhum confessar. por razões que só eles conhecem. Mas isso é uma ilusão. A polícia afirma que tem conspirado contra o governo em conluio com um homem de nome Smith.O argumento de Hobbes é uma das formas de chegar à teoria do contrato social. E propõem-lhe o acordo seguinte: . Poderá ir em liberdade. O problema não é sobre isso. mas depois terão de libertá-los.Se Smith confessar e o leitor não o fizer. . O leitor protesta a sua inocência. Torna-se em breve claro que os seus captores não estão interessados na verdade. querem apenas condenar alguém. 208 209 . O dilema do prisioneiro pode ser inicialmente apresentado sob a forma de um quebra-cabeças. Mas isto de nada serve. que impressionou também muitos filósofos recentemente. mas o leitor confessar e testemunhar contra ele. Por fim.Se ambos confessarem. . no entanto. O problema é o seguinte: Partindo do princípio que o seu objectivo é passar o menor tempo possível na cadeia. para sua grande surpresa. a situação ficará invertida ele será libertado e o leitor condenado a dez anos. que não cooperou. A questão é: O que poderá libertá-lo mais rapidamente? Confessar ou não confessar? Pode parecer à primeira vista que a questão não pode ser respondida a menos que saibamos o que Smith vai fazer. O problema tem uma solução perfeitamente clara: Faça Smith o que fizer. Esta linha de pensamento está ligada com um problema na teoria da decisão conhecido como o "dilema do prisioneiro". Isto pode ser demonstrado pelo seguinte raciocínio: . O interrogador exige a sua confissão. Este problema diz estritamente respeito ao cálculo do que é do seu melhor interesse fazer. o que deve fazer? Confessar ou não confessar? Para os objectivos deste problema o leitor deve esquecer ideias como as relativas a manter a sua dignidade. cada um será condenado a cinco anos. comunicam-lhe que Smith teve a mesma proposta.Se Smith não confessar. não haverá provas suficientes para condenar qualquer dos dois. enquanto Smith. Mas há outra linha de pensamento. Suponha que vive numa sociedade totalitária e um dia. o leitor deve confessar. será libertado. no entanto. é detido e acusado de traição. mas o leitor não pode comunicar com ele e não tem maneira de saber o que Smith vai fazer. Deve também esquecer a preocupação de auxiliar Smith. o resultado será que ambos vão confessar. o leitor fica na seguinte posição: Se confessar será libertado. de que deve confessar. então o leitor acabaria por cumprir a sentença máxima de dez anos enquanto Smith sairia em liberdade. Por terem procurado racionalmente defender os seus próprios interesses. É este o problema. Por meio da cooperação obteriam melhores resultados do que agindo individualmente. Nesse caso. Logo. porque se Smith renunciasse e confessasse. se ele confessar. ao mesmo tempo que o leitor mantinha o acordo. Assim. se o leitor confessar será condenado a cinco anos. Suponhamos que Smith confessa. Suponhamos. Ou Smith irá confessar ou não. por outro lado. 211 4. chegará à conclusão. Isso vai colocá-lo em liberdade mais cedo. terá de ter garantias de que Smith cumpriria a sua parte. que mesmo que Smith não confesse será melhor para si fazê-lo. E isto que faz . (E naturalmente ele teria o mesmo receio sobre a sua possível renúncia. independentemente do que Smith fizer. no entanto. então. Então. Mas se tivessem ambos feito o contrário. A cooperação não concede a nenhum o resultado óptimo -liberdade imediata . enquanto se não confessar apanhará dez.) Só um acordo susceptível de ser fiscalizado poderá oferecer uma saída do dilema. que qualquer acordo entre os dois pudesse ser fiscalizado. poderiam então obter a sentença de um ano.mas permite obter para os dois um resultado melhor do que cada um poderia alcançar sem cooperação. Seria fundamental. 3. Se pudesse comunicar com Smith poderia. para qualquer dos dois. 210 do dilema do prisioneiro um dilema. O leitor e Smith obteriam melhores resultados se fizessem simultaneamente o que não corresponde aos melhores interesses individuais de cada um. Poderia acordar que nenhum dos dois iria confessar. naturalmente. para que seja racional para o leitor cumprir a sua parte do acordo. cada um teria saído em liberdade ao fim de apenas um ano. É claro. o leitor deve confessar. Até agora tudo bem. Mas há um problema. Partindo do princípio que Smith não é estúpido. Assim. 2. chegar a acordo com ele. a partir do mesmo raciocínio. Logo. Lembre-se que a Smith foi proposto um acordo semelhante. o leitor ficará melhor se confessar também.1. enquanto se não confessar ficará detido um ano. que Smith não confessa. e isto significa que ambos serão condenados a penas de cinco anos. ambos acabarn em piores circunstâncias do que se tivessem agido de forma diferente. É uma situação paradoxal. mas pelo menos teria as vantagens que advêm do tratamento respeitoso dos outros.). mantendo o equilíbrio entre ambos. e quarto. As outras pessoas têm também de escolher que política adoptar. Chamemos a esta estratégia "agir com benevolência".). poderíamos defender exclusivamente os nossos próprios interesses . Mas não somos apenas nós quem tem de decidir como viver.A segunda melhor situação seria aquela em que todos são benevolentes. Que resultados obteríamos em cada uma destas situações? Apenas do ponto de vista da prossecução do nosso bem-estar. Primeiro. O leitor tentaria proteger os seus próprios interesses. . Tem de ser uma situação na qual os interesses das pessoas são afectados não apenas pelo que elas mesmas fazem mas também pelo que fazem os outros. paradoxalmente. sem ter de retribuir o favor. (Esta é a situação da "moralidade comum". . Chamemos a isto "agir de forma egoísta". O leitor deixaria de ter a vantagem de poder ignorar os interesses das outras pessoas. apesar de ter pouco apoio dos outros. terceiro.). Tem de ser uma situação na qual. abdicando por vezes dos nossos interesses em benefício de terceiros. Este tipo de situação acontece na vida real com mais freqüência do que poderíamos pensar. . mas não a pior de todas. Há quatro possibilidades: Primeiro. não tendo em conta como os outros poderiam ser afectados por isso. Em alternativa. por exemplo. O dilema do prisioneiro não é apenas um quebra-cabeças inteligente. um "borlista". segundo. podemos ser todos egoístas. 2. poderíamos avaliar as possibilidades desta forma: . seria aquela em que todos fossem egoístas. na terminologia da teoria da decisão.O leitor estaria melhor na situação em que é egoísta enquanto os outros são benevolentes. (Este é o "estado de natureza" de Hobbes. Apesar de a história que contámos ser fictícia. a escolha entre duas estratégias de vida. Consideremos. poderíamos preocuparnos com o bem-estar das outras pessoas bem como com o nosso.em cada situação poderíamos fazer o que nos beneficiasse.A moralidade como solução para um problema do tipo do dilema do prisioneiro. podemos ser todos benevolentes. podemos ser egoístas enquanto as outras pessoas são benevolentes. todos acabem pior se tentarem individualmente defender os seus próprios interesses do que se fizerem simultaneamente o que não serve os seus interesses individuais. os outros podem ser egoístas enquanto 212 somos benevolentes.Uma situação má. (Nesta situação seria. Situações do tipo do dilema do prisioneiro ocorrem sempre que se verificam duas condições: 1. Obteria os benefícios da sua generosidade. o padrão que ilustra ocorre freqüentemente na vida real. mas levaria a um resultado melhor do que o obtido se cada um de nós lutasse de forma independente pelos seus interesses. A força desta teoria deve-se.o leitor é um borlista. a ideia de que a moralidade consiste num conjunto de regras que 214 2. o leitor ficaria pior numa situação na qual fosse benevolente para os outros enquanto os outros são egoístas. eles têm igualmente de respeitar os nossos.isso colocá-lo-ia' na pior situação possível. E chegamos agora ao problema: As outras pessoas podem. Se não respeitarem os seus interesses.. 213 dispostos a apunhalar todos os outros sempre que virem nisso alguma vantagem para si mesmos. e o resultado será que acabamos por voltar ao estado de natureza de Hobbes.Por fim. para benefício mútuo. Os outros poderiam atraiçoá-lo quando isso lhes fosse vantajoso. Tal como antes. . Esta será a situação óptima . se respeitarmos os interesses dos outros. Para escapar ao dilema precisamos de outro acordo fiscalizável. Nesta situação. regras que todas as pessoas racionais concordam aceitar. Logo. Se respeitarem de facto os seus interesses. 11. o leitor fica em melhor situação adoptando a política de cuidar de si próprio. em grande medida. Podemos fazê-lo se conseguirmos estabelecer sanções suficientes para garantir que. seria então uma tolice da sua parte respeitar os deles . 4.) Isto é exactamente o tipo de aparato que dá origem ao dilema do prisioneiro. Baseando-nos nesta avaliação das situações. o leitor ficará melhor não respeitando os deles. O melhor é ser egoísta. é claro. Ou as outras pessoas respeitarão os seus interesses ou não. Precisamos. na condição de os outros seguirem igualmente as regras. cada um de nós está obviamente em piores condições do que se houvesse cooperação. (Podemos dizer que nesta situação seria um "papalvo". pelo menos sempre que isso for vantajoso para si. Seria prejudicado em todas as circunstâncias. mas o leitor não teria liberdade para fazer o mesmo. a cooperação não garantiria o melhor resultado (ser egoístas enquanto os outros são benevolentes).3 Algumas vantagens da teoria contratualista da moral A teoria contratualista da moral é. independentemente do que as outras pessoas fizerem. nas palavras de David Gauthier. de "negociar a moralidade". raciocinar da mesma forma. o leitor deve adoptar a estratégia egoísta: 1. regem a forma como as pessoas devem tratar-se entre si. Seria um papalvo. como vimos. Todos serão egoístas. desta feita um acordo para obedecer às regras do respeito mútuo em sociedade. ao facto de fornecer respostas simples e plausíveis a algumas questões difíceis que sempre deixaram os filósofos perplexos. 3. Então. Naturalmente. É óbvio. das nossas obrigações para com ele. Essas regras têm. Estas regras justificam-se mostrando simplesmente que são necessárias se quisermos cooperar para benefício mútuo. a agressão. se mais tarde necessitar do nosso auxílio. tratamo-lo de formas usualmente não permitidas. liberta-nos. Mas porque razão é permissível punir? à resposta é que o criminoso violou a condição fundamental da reciprocidade: Admitimos que as regras . apenas uma força duvidosa sobre nós. da sodomia e da promiscuidade sexual . nas emergências mais extremas. em circunstâncias nas quais podia claramente ajudar.1. 215 l 3. 2. Só então poderemos sentir-nos seguros. O nosso próprio cumprimento constante é o preço razoável que pagamos de maneira a assegurar o cumprimento dos outros. quando alguém viola a condição de reciprocidade. Ligar sanções à violação destas regras é o único meio viável de impôlas. roubá-las ou algo semelhante.como a proibição da prostituição. Para vivermos juntos sem medo. Quem viola a lei é tratado de forma diferente do cidadão comum . O mesmo aspecto essencial explica por que razão é permissível punir os que violaram a lei criminal. a mentira. Por outro lado. Segue-se daí que temos de punir.não são obviamente justificáveis desta forma. não pode deixar-se ao critério do indivíduo decidir se vai ou não atacar outras pessoas. por exemplo. podemos sentir que não é nosso dever dar-lhe a mão. pois. o roubo.o objectivo do contrato social é justamente podermos confiar que as pessoas cumprem as regras. Como pode justificar-se tal coisa? A resposta tem duas partes. Que regras morais estamos obrigados a seguir e como se justificam tais regras? A ideia central é que as regras moralmente obrigatórias são as necessárias à vida em sociedade. pelo menos até certo ponto. Em que medida é ameaçada a vida social pelo facto de duas pessoas se envolverem em práticas sexuais privadas? Se esta conduta não nos ameaça de forma alguma. No entanto. então está para lá do âmbito do contrato social e não nos diz respeito. algumas regras geralmente vistas como morais . Assim. Em primeiro lugar.ao punir quem viola a lei. excepto. pode por vezes ser imediatamente vantajoso violar as regras. não é razoável desejar um acordo no qual as pessoas possam violar as regras sempre que lhes seja vantajoso fazêlo . que não poderíamos viver juntos de forma satisfatória se não aceitássemos regras proibindo o homicídio. Porque motivo é razoável seguir as regras morais? Concordamos seguir as regras morais porque é vantajoso viver numa sociedade na qual as regras são aceites.concordamos obedecer às regras na condição de os outros também obedecerem. Suponhamos que alguém recusa auxiliar-nos. a quebra de promessas e outras que tais. A idéia central aqui é a reciprocidade . a intenção do Estado é aplicar as regras primárias indispensáveis à vida em sociedade. eventualmente. Em que circunstâncias podemos infringir as regras? Esta é uma questão algo mais complicada. Sentiram que a moralidade tem de ser algo mais do que hábitos e sentimentos. os criminosos libertam-nos da nossa obrigação perante eles e expõem-se à retaliação. No entanto é difícil explicar o motivo pelo qual tais acções não são estritamente exigidas. que escolha a sua própria morte. um limite natural ao auto-sacrifício que se pode esperar de alguém: Não podemos exigir um sacrifício tão profundo que negue o próprio objectivo do contrato.da vida social limitem o que podemos fazer apenas na condição de os outros aceitarem as mesmas restrições ao que podem fazer. e uma razão imparcial . mas não estritamente exigidas. Logo. Desistimos da nossa liberdade incondicional. Por isso disseram. ao violar as regras em relação a nós. 216 decreta ser melhor morrer um do que cinco. Mas suponha que enfrenta uma situação na qual tem de escolher entre a sua própria morte e a morte de cinco outras pessoas. que tais acções heróicas são super-rogatórias isto é. por isso. tradicionalmente. Se a moralidade exige decisões imparciais. que não atribuamos maior importância aos nossos interesses do que aos interesses dos outros. No entanto. A teoria do contrato social explica assim uma faceta da moralidade que noutras teorias é um mistério. Por fim. não estamos melhor do que estávamos no estado de natureza. aparentemente. mas em troca obtemos os benefícios da vida em sociedade. são acções acima e para além do exigido pelo dever. de alguma forma. Há. há uma circunstância ainda mais dramática na qual podemos violar as leis morais. Tem a moralidade uma base objectiva? Existirão "factos" morais? Serão os juízos morais objectivamente verdadeiros? Os filósofos interrogam-se há muito se as nossas opiniões morais representam algo mais do que os nossos sentimentos subjectivos ou os costumes da nossa sociedade. afinal de contas. sentiram instintivamente que há. 4. Estará moralmente obrigado a sacrificarse? Os filósofos sentiram-se com freqüência pouco à vontade com este tipo de exemplo. isto é. que tipo de coisas podem ser? Um dos mais atraentes aspectos da teoria do contrato social reside no facto de afastar tão facilmente estas 217 A imparcialidade exigiria. Em circunstâncias normais a moralidade exige que sejamos imparciais. limites ao que a moralidade pode exigir de nós. Se há "factos" morais. mas é difícil dizer o que seja esse algo. eles são cinco e o leitor apenas um. e deixamos de ter qualquer razão para respeitar o contrato. É racional aceitar o contrato social porque é vantajoso para nós. admiráveis quando ocorrem. porque razão não somos obrigados a sacrificarnos? A teoria do contrato social tem uma explicação. se o contrato nos exige então que dêmos a vida. quando se vê polícias cheios de ódio a insultar. A moralidade é o conjunto de regras que quaisquer pessoas racionais aceitariam para benefício mútuo. queriam substituir o domínio britânico por um sistema inteiramente diferente. Não são necessárias longas explicações. Na sua Letterfrom the Birmingham City Jau (1963). A teoria do contrato social baseia-se numa intuição importante sobre a natureza da sociedade e suas instituições. 11. que sentiam não ter qualquer obrigação de lhes obedecer. Por outro lado. Gandhi e os seus seguidores não reconheciam o direito de os Britânicos governarem a índia.4 O problema da desobediência civil As teorias morais devem ajudar a compreender questões morais particulares. sendo por isso especialmente adequada para nos ajudar a lidar com questões envolvendo essas instituições. tem uma base objectiva. A moralidade não é apenas uma questão de hábito ou sentimento. Opunham-se apenas a leis particulares e políticas sociais que consideravam injustas . Podemos determinar que regras são essas por meio da investigação racional e depois determinar se um acto particular é moralmente aceitável verificando se está em conformidade com as regras. as velhas preocupações sobre a "objectividade" da moral desaparecem. Luther King descreveu a frustração e raiva que surgem quando se vê bandos perversos linchar indiscriminadamente as nossas mães e os nossos pais e afogar os nossos irmãos e irmãs ao sabor dos seus caprichos. Mas os objectivos dos movimentos tinham diferenças importantes. Jr. Mas a teoria não precisa de postular qualquer tipo especial de "factos" para explicar essa base. conscienciosa e não violenta de obediência à lei. de facto. Gandhi e o movimento americano de direitos cívicos liderado por Martin Luther King.preocupações. e vemos lágrimas rebentar nos seus pequenos olhos quando .tão injustas. pura e simplesmente. quando? Os exemplos modernos e já clássicos de desobediência civil são. é claro. pontapear. Uma vez compreendido isto. Luther King e os seus seguidores não questionavam a legitimidade das instituições fundamentais do governo americano. brutalizar e até matar os nossos irmãos e irmãs negros com total impunidade. quando se vê a esmagadora maioria dos nossos vinte milhões de irmãos Pretos asfixiados numa estreita cela de pobreza no meio de uma sociedade de abastança. Ambos se caracterizaram pela recusa pública. quando de súbito damos connosco embaraçados para explicar à nossa filha de seis anos a razão pela qual não pode ir ao parque de diversões que acabou de ser publicitado na televisão. Em resultado do contrato social temos a obrigação de obedecer à lei. Mas teremos por vezes justificação para desafiar a lei? Se sim. as acções desenvolvidas no âmbito do Movimento de Independência da índia liderado por Mohandas K. tendo de apresentar publicamente o seu caso mediante o desafio às leis injustas. os que advogavam a desobediência civil tinham alternativa. apesar de os Pretos constituírem a maioria da população. porque enfraquece o respeito pelos valores que a lei protege. a causa dos direitos civis para todas as pessoas"." Luther King pensava. eu defendia. portanto. a palavra não tinha qualquer sentido para os negros do sul: "Em todo o estado do Alabama todos os tipos de métodos de conluio são usados para impedir os Pretos de se tornarem votantes recenseados e há alguns condados sem um único Preto recenseado para votar. destruidora dos princípios do governo democrático. e com o movimento dos direitos civis recordado como uma grande cruzada moral. Um artigo publicado em 1965 no New York State Bar Journal exprimiu as preocupações mais comuns. com todo o seu cortejo de males. Louis Waldman. se quiserem que a Constituição sobreviva. King ter nascido. quanto à "democracia". uma lei cuja formulação recusava aos negros qualquer voz. aceitar a doutrina do Dr. devendo por essa razão ser abandonada. Considero pois que tal doutrina não é apenas ilegal. Não podem escolher a gosto. Quando instado a confiar nos processos democráticos normais. negaram no entanto que a desobediência à lei fosse um meio legítimo de lutar por esses objectivos. por isso. Hoje em dia. embora exprimindo simpatia pelos objectivos do movimento. com Luther King aclamado como um dos gigantes da história americana. King de que ele e os seus seguidores vão escolher a gosto. é também imoral. um eminente advogado de Nova Iorque..] O país não pode. Depois de garantir aos seus leitores que "muito antes do Dr. King visa promover. não podem dizer que vão obedecer às leis que pensam ser justas e rejeitar obedecer às leis que consideram injustas [.lhe dizemos que Funtown está vedado a meninos de cor.. Para responder a esta objecção. então desafiar a lei é à partida uma coisa má. Luther King fez primeiro notar que tinha havido várias tentativas de negociação. é . ser imposta pelos hábitos sociais. Waldman tinha razão num aspecto: Se o sistema legal é essencialmente decente. Muitos liberais. mas esses esforços tiveram pouco sucesso. que os negros não 218 219 necessário algum esforço para recordar quão controversa foi a estratégia de desobediência civil. e um perigo para os próprios direitos civis que o Dr. e defendo ainda. e começamos a ver as nuvens deprimentes da inferioridade a distorcer a sua pequena personalidade. sabendo que é ilegal fazê-lo. afirmou o seguinte: Os que defendem direitos ao abrigo da Constituição e das leis feitas nos termos por ela estabelecidos têm de obedecer a essa Constituição e a essas leis. O problema não era apenas o facto de a segregação racial. era igualmente uma questão legal. na opinião de muitos moralistas. em vez de os proteger. Antes de mais. Pois quando aos mais desfavorecidos é recusada uma parte justa dos benefícios da vida social. "polícias cheios de ódio insultam. usado frequentemente por Luther King. estamos a exigir que aceite os encargos impostos pela organização social apesar de lhe serem negados os seus benefícios. O fim justifica os meios. Os benefícios são a vida em sociedade: escapamos ao estado de natureza e vivemos numa sociedade na qual estamos seguros e usufruímos dos direitos fundamentais ao abrigo da lei. pontapeiam. longe de a desobediência civil ser um "último recurso" indesejável para os grupos socialmente mais marginalizados. Isto era. porque cada um de nós participa num acordo complicado por meio do qual ganhamos certos benefícios em troca da aceitação de certos encargos. tão numerosos e tão resistentes a soluções por meios menos drásticos que a desobediência civil se justificava como um "último recurso". Mas. e por aí adiante estes são os fardos que aceitamos em troca. concordamos fazer a nossa parte na manutenção das instituições que os tornam possíveis. Isto significa que temos de obedecer à lei. uma resposta suficiente à objecção levantada por Waldman. Um 220 desses argumentos. Mas temos ao nosso dispor uma resposta mais profunda. eles ficam com efeito libertos do contrato que noutra situação exigiria que apoiassem os acordos que tornam esses benefícios possíveis. Esta é a razão mais profunda que justifica a desobediência civil. De maneira a obter esses benefícios. 221 Esta linha de pensamento sugere que. brutalizam e matam com total impunidade"? E se alguns cidadãos forem "asfixiados numa estreita cela de pobreza" ao serlhes negada a oportunidade de adquirir uma educação decente ou empregos decentes? Se a negação destes direitos estiver suficientemente disseminada e for suficientemente sistemática. se continuarmos a exigir que o grupo em desvantagem obedeça à lei e respeite as instituições sociais. Assim. somos forçados a concluir que os termos do contrato social não estão a ser honrados. pagar os nossos impostos. mesmo que os meios sejam lamentáveis. porque razão temos de obedecer à lei? Segundo a teoria do contrato social. sugerida pela teoria do contrato social. o meio mais natural e razoável de exprimir descontentamento. e deve .precisavam de um argumento para mostrar o motivo pelo qual o desafio à lei era justificado. era que os males aos quais se manifestava oposição eram tão graves. é. e se as coisas estiverem de tal modo organizadas que a um grupo de pessoas da sociedade não são reconhecidos os direitos usufruídos pelos outros? E se. na verdade. há de facto um acordo muito semelhante ao descrito na teoria do contrato social: Há um conjunto de regras que todos reconhecem como obrigatórias. É apenas uma fantasia. Então. Esta é uma descrição de facto do estado de coisas. Cada um de nós aceita os benefícios conferidos por este acordo. se as pessoas se tivessem juntado desta forma poderíamos explicar as suas obrigações umas para com as outras como a teoria sugere: seriam obrigadas a obedecer às regras porque teriam feito um contrato nesse sentido. acordando seguir as regras sociais de benefício mútuo. para retribuir o que nos foi dado. Em resposta. O que poderá dizer-se contra a teoria? Apresenta-se de seguida as duas objecções que parecem ter mais peso. Para ser exacto. e não quero fazer parte dele?" Mas na verdade nunca existiu tal contrato. o kantismo e a teoria das virtudes. mais do que isso.não há qualquer pedaço de papel assinado. (As outras são o utilitarismo. prossegue o argumento.) Não é difícil ver porquê.não são obrigadas a agir moralmente? Se o contrato foi consumado há muito tempo. à medida . e por isso nenhuma explicação sensata se pode basear nele. nenhum de nós alguma vez assinou um contrato "real" . Teríamos de enfrentar questões como as seguintes: O acordo foi unânime? Se não foi.reconhecer-se o mérito da teoria do contrato social por ter exposto este argumento de forma tão clara. e que por fim se congregaram.5 Dificuldades da teoria A teoria do contrato social é uma de quatro grandes opções na filosofia moral corrente. qual é a sua relevância? Na verdade. No entanto. e. Como afirmou com ironia um crítico. estaremos obrigados a cumprir os acordos dos nossos antepassados? Se não. e todos beneficiamos do facto de estas regras serem seguidas. que acharam esta situação intolerável. 1. que 222 acontece às pessoas que não assinaram o contrato . o contrato social "não vale o papel em que não foi escrito". pode dizer-se que há um contrato social implícito ao qual todos estamos ligados. incorremos na obrigação de fazer a nossa parte para o manter por outras palavras. esperamos que as outras pessoas continuem a cumprir as regras e encorajamo-las a fazê-lo. Mas mesmo assim continuaria a haver problemas. Pede-se que imaginemos que as pessoas viveram em tempos isoladas umas das outras. O contrato é "implícito" porque nos tornamos parte dele não através das nossas palavras mas sim das nossas acções. A objecção mais comum tem sido que a teoria do contrato social se baseia numa ficção histórica. como se renova o "contrato" a cada nova geração? E se alguém disser: "Eu não dei o meu assentimento a tal contrato. 11. E. não é uma ficção. Mas isto nunca aconteceu. a teoria explica em boa medida a vida moral de uma forma económica e sensata. ao aceitar os benefícios deste acordo. afirmam que se quer jogar. Eles podem então responder. É. tem de cumprir as regras. O leitor responde que nunca prometeu cumprir as regras. Quando referimos o problema da desobediência civil. Mas isso não importa. temos de seguir as regras. Talvex ninguém tenha explicitamente prometido obedecer. Mas relativamente a outras questões as suas implicações são mais perturbadoras. Os outros protestam. um instrumento analítico útil. a resposta parece salvar a teoria do que seria. que isso é irrelevante. mas com demasiada freqüência uma teoria que esclarece uma questão torna outra mais confusa. Suponha o leitor que chega junto de um grupo de pessoas envolvidas num jogo 223 Não é claro até que ponto os grandes teóricos do contrato social. implícitos ou explícitos. ao juntarse ao jogo. como Hobbes e Rousseau. derivamos dela enormes benefícios. no entanto. mas surgem problemas quando. Passado algum tempo. a história do "contrato social" não precisa de ser entendida como uma descrição de acontecimentos históricos. as implicações da teoria parecem inaceitáveis. Para cada teoria há questões relativamente às quais as suas asserções parecem exactamente correctas. que me parece mais forte do que a primeira. É como se todos tivessem concordado. Parece divertido. noutras questões. cada pessoa implicitamente aceita seguir as regras que tornam o jogo possível. mas de maneira a jogar o jogo e obter os benefícios. As teorias importantes fazem isso. tem que ver com as suas implicações para os nossos deveres face a seres incapazes de participar no contrato. de outra forma. Considere-se a seguinte situação. baseado na idéia de que podemos entender as nossas obrigações morais como se tivessem surgido desta forma. por exemplo.que participamos nas instituições sociais e aceitamos os benefícios da vida em sociedade. e não queremos abandonar esses benefícios. Parece 224 complexo. aceitariam esta forma de defender a sua idéia. A segunda objecção à teoria do contrato social. uma objecção devastadora. A moralidade é assim. no entanto. e por isso junta-se ao grupo. não têm as capacidades necessárias para entrar em qualquer tipo de acordos connosco. ao invés. O jogo é a vida em sociedade. com razão. 2. Os animais não-humanos. Já fizemos notar que as teorias morais deveriam ajudar a lidar com as questões morais práticas. porque isso parece ainda mais divertido. começa a violar algumas das regras. Desta forma. a teoria do contrato social parecia inteiramente correcta. pois impossível que devam ser abrangidos por quaisquer "regras de benefícios mútuos" . do mesmo género. não podemos responsabilizá-los pela sua conduta. para Malebranche era necessário que fosse assim pela razão teológica de que o sofrimento é uma conseqüência do pecado de Adão. 225 Se temos o dever de não causar dor desnecessária aos animais. como Hobbes. Os animais nunca foram bem tratados pelos seres humanos. a teoria parece imperfeita. Muitos seres humanos têm deficiências mentais tão graves que não podem participar no género de acordos considerados pela teoria do contrato social. muitas pessoas podem não achar isso assim tão preocupante. publicado em 1738: Batiam nos cães com perfeita indiferença. Mas há outra dificuldade. os corpos dos animais eram meras máquinas. Afirmavam que os animais eram relógios. Assim.estipuladas por tal contrato. o que era um grande tema de conversa. No entanto. pois podem não encarar a questão dos deveres para com meros animais particularmente urgente. Mas não são suficientemente inteligentes para compreender as consequências das suas acções. Logo. mas na época de Hobbes eram tidos em muito baixa consideração. Podem nem mesmo saber quando estão a magoar os outros. na sua perspectiva. Mas independentemente da razão. quando não há para isso qualquer boa razão? E não é isto errado devido à dor causada ao próprio animal? Mas a idéia de deveres morais relativamente a seres que não são parte do contrato parece contrária à regra fundamental por detrás da teoria. Pregavam alguns pobres animais em quadros pelas quatro patas para os dissecar e ver a circulação do sangue. pelo que os animais estão para lá do alcance da consideração moral. Escreveu que "fazer acordos com animais selvagens é impossível". Hobbes tinha consciência de que. a sua perspectiva era que os animais não podem sofrer. que pode levá-los a hesitar. haviam popularizado a idéia de que os animais não podem sentir dor. é difícil ver como pode esse dever ser acomodado no seio da teoria do contrato social. e os animais não descenderem de Adão. Estes seres humanos colocam à teoria exactamente o mesmo problema que os animais não- . não tendo almas. Podem certamente sofrer. dois contemporâneos de Hobbes. Isso permitiu aos cientistas do século xvii fazer experiências com animais sem se preocuparem com os seus inexistentes "sentimentos". não será moralmente errado torturar um animal. No entanto. que os ganidos que emitiam quando lhes batiam eram apenas o ruído de uma pequena mola que tinha sido tocada. Descartes e Malebranche. mas que o corpo não tinha sensações. os animais estavam excluídos das considerações morais. Nicolas Fontaine. e troçavam daqueles que lamentavam as criaturas como se sentissem dor. uma testemunha ocular. e até viver vidas humanas simples. Aparentemente isto não o incomodava. Para Descartes isto era assim porque. descreveu uma visita a um laboratório no seu livro de memórias. o veredicto tem de ser que a ideia fundamental da teoria é deficiente. Uma vez que não podem participar nos acordos que. é o facto de lhes causar dores terríveis.humanos. dão origem às obrigações morais. Logo. segundo a teoria.a razão primordial pela qual não devemos torturar pessoas normais. pensamos ter obrigações morais para com eles. No entanto. vai directo ao seu cerne. E mais ainda. A teoria do contrato social pode explicar o nosso dever num caso mas não no outro. Este problema não diz respeito a um aspecto menor da teoria. estão para lá do domínio da consideração moral. 226 . e esta é exactamente a mesma razão pela qual não devemos torturar pessoas com deficiências mentais. as nossas obrigações para com eles são frequentemente baseadas exactamente nas mesmas razões em que baseamos as nossas obrigações para com os seres humanos normais . por exemplo. a menos que possamos encontrar alguma forma de remediar esta dificuldade. não faz qualquer distinção moral ou mental entre ambos os sexos. Tendo. VIRGÍNIA WOOLF. A concepção dos homens como racionais e das mulheres como emocionais foi descartada como mero estereótipo. e quando parece existir tais diferenças é apenas porque as mulheres foram condicionadas por um sistema opressivo a comportar-se de forma "feminina". Assim. Aristóteles afirmou que as mulheres não são tão racionais como os homens. mais recentemente as pensadoras feministas reconsideraram a questão. isto é naturalmente assim. e algumas concluíram que as mulheres pensam de facto de maneira diferente dos homens. as formas femininas de pensar não são inferiores às dos homens. A ética é considerada uma candidata preferencial para este tratamento. (N. Os estádios de desenvolvimento moral de Kohlberg. No entanto.) 227 os tornam adequados para a liderança. pode-se fazer progressos em áreas onde há muito não existem. Rousseau tentou suavizar a ideia ao sublinhar que homens e mulheres apenas possuem virtudes diversas. não surpreende que o florescente movimento feminista dos anos 1960 e 70 tenha rejeitado em bloco a ideia de diferenças psicológicas entre mulheres e homens. nem essas diferenças justificam subordinar alguém a outrem. e acrescentou que por essa razão as mulheres "carecem de personalidade civil" e não devem ter voz na * Usou-se "ética dos afectos" para traduzir a expressão inglesa original ethics of care. Um Quarto que Seja Seu (1929) 12. imaginado pelo psicólogo da educação Lawrence vida pública. em conta este pano de fundo. que não se refere à ética dos cuidados de saúde.1 Pensam os homens e mulheres de maneira diferente sobre a ética? A ideia de que homens e mulheres pensam de forma diferente tem tradicionalmente sido usada para justificar a subjugação de umas pelos outros. Mas. mas é claro que no final se verifica que as virtudes dos homens . são os valores masculinos que predominam. acrescentam. enquanto as virtudes das mulheres as tornam ideais para a casa e a família. do R. afirmava-se então. Considere-se o seguinte problema. Kant concordava.Capítulo 12 O feminismo e a ética dos afectos Mas é óbvio que os valores das mulheres diferem com muita frequência dos valores que foram construídos pelo outro sexo. a forma feminina de pensar contém intuições que têm faltado nas áreas de actividade de dominação masculina. No entanto. dando mais atenção à diferente abordagem das mulheres. A natureza. Pelo contrário. e por isso são naturalmente governadas pelos homens. A mulher de Heinz estava à beira da morte.). o bem consiste em proteger os direitos. fazendo "acordos justos" com os outros para garantir a realização dos objectivos desejados.) Eis os seis estádios: e manter o bem-estar do grupo assume a maior importância. 3. O seguinte é o Estádio das Expectativas Interpessoais. permitindo aos outros que façam o mesmo. progredindo depois ao longo de seis estádios para uma perspectiva amadurecida de bem moral como conformidade com princípios universais. Ainda assim o boticário recusou. 228 1. Algumas pessoas ficam encravadas em níveis mais baixos. 2. valores e acordos legais essenciais da sociedade. uma virtude fundamental é "manter a lealdade e a confiança entre os parceiros". 5. Em desespero. Heinz conseguiu apenas reunir mil dólares. A criança progride então para o Estádio dos Objectivos Individuais Instrumentais e da Troca . Kohlberg entrevistou crianças de várias idades. apresentando-lhes uma série de dilemas e fazendo perguntas concebidas para obter os seus juízos morais e as razões em seu apoio. Após análise das respostas. As crianças começam por uma concepção egocêntrica de bem moral como tudo quanto permite evitar um castigo. Heinz prometeu pagar o restante mais tarde. Relações e Conformidade Mútuas.Kohlberg. Seria errado fazê-lo? Este problema. (As exigências das relações pessoais são subordinadas ao respeito pelas regras do grupo social. No Estádio dos Direitos Prévios e do Contrato Social ou Utilidade. No Estádio do Sistema Social e da Manutenção da Consciência. Heinz pensou roubar o medicamento. (Nçste estádio e no . foi um entre vários usados por Kohlberg para estudar o desenvolvimento moral das crianças. quando a sua oferta foi rejeitada. O bem é definido como os deveres e responsabilidades que acompanham os papéis sociais do indivíduo e as suas relações com outras pessoas. 4. e a sua única esperança era um medicamento descoberto por um farmacêutico que o vendia a um preço exorbitante.aqui o bem é agir de forma a satisfazer as suas próprias necessidades. no qual o bem moral é concebido como a obediência à autoridade e o evitar da punição. Kohlberg concluiu que há seis níveis de desenvolvimento moral. (Pelo menos os mais afortunados chegam aí. A elaboração do medicamento custava duzentos dólares e o farmacêutico estava a vendê-lo a dois mil. a ideia de fazer o seu dever em sociedade 229 Ofereceu essa quantia ao farmacêutico e. O primeiro é o Estádio da Punição e Obediência. conhecido como "Dilema de Heinz". Se ele roubasse o medicamento. Mas Amy. Mas Amy não desarma. Amy parece hesitante e evasiva: Bem. que considerou óbvio que Heinz deveria roubar o medicamento. Penso que poderia haver outras maneiras além do roubo. Por isso. encarou a questão de maneira diferente. eles deviam realmente conversar e descobrir outra maneira de arranjar o dinheiro. Em vez disso reelabora o tema como um conflito entre Heinz e o farmacêutico que tem de ser resolvido por meio de mais debates. Por fim. onde as relações pessoais são da maior importância . Jake explicou: Para começar. dando claramente a entender que ela não está a responder . eu penso que não. 6. uma vida humana vale mais do que o dinheiro.). Jake parece estar a funcionar no nível 4 ou 5. também de onze anos. A objecção de Gilligan. por outro lado.se Heinz não roubar o medicamento. podia ir para a cadeia. pagos por pessoas ricas com cancro.Heinz e o boticário têm de resolver as coisas entre eles. mas 230 ele não devia roubar o medicamento . e se o farmacêutico ganhar apenas mil dólares. mas se Heinz não roubar o medicamento. No quadro dos estádios de Kohlberg.mas a mulher dele também não devia morrer. e isso podia não ser bom. Kohlberg começou as suas investigações sobre o desenvolvimento . como por exemplo se pudesse pedir o dinheiro ou fazer um empréstimo ou coisa do género. a sua mulher morre. e então a sua mulher podia piorar outra vez. O entrevistador faz mais perguntas a Amy. O dilema de Heinz foi apresentado a um rapaz de onze anos chamado Jake. (Porque razão a vida humana vale mais que o dinheiro?) Porque o farmacêutico pode ganhar mil dólares mais tarde. continua vivo. A resposta dela é típica de pessoas operando a nível do estádio 3. Jake parece ter um avanço de um ou dois estádios em relação a Amy. e ele já não podia arranjar mais medicamentos. poderia salvar a mulher. mas Heinz não pode recuperar a sua mulher. apela para os princípios impessoais "uma vida humana vale mais que dinheiro". recusa aceitar os termos em que o problema é colocado. Jake. a sua mulher morre.seguinte as relações pessoais são subordinadas aos princípios universais de justiça. mas se roubasse. (E porque não?) Porque as pessoas são todas diferentes e por isso não seria possível recuperar outra vez a mulher de Heinz. Deveria Heinz roubar o medicamento? Em comparação com as declarações directas de Jake. as pessoas moralmente mais amadurecidas alcançam o Estádio dos Princípios Éticos Universais. no qual a plena maturidade se manifesta pela fidelidade de uma pessoa aos princípios abstractos que toda a humanidade deveria seguir... o afecto e as relações pessoais. A teoria de Kohlberg tem sido um alvo privilegiado para as pensadoras feministas. Jake. poderia acabar por se verificar que afinal de contas a idade não traz sabedoria. Tipos diferentes de provas são relevantes para cada investigação. publicou um livro influente intitulado Teoria então a sua mulher pode piorar e ele já não pode arranjar mais medicamentos". professora na Harvard School of Education. As mulheres. mas a maneira de Amy pensar não é inferior. Contrariamente à opinião das pessoas mais velhas. quando a psicologia era dominada pelo behaviorismo e a imagem popular da investigação em psicologia era a de ratos a percorrer labirintos. enquanto Jake. e não há razão para presumir à partida que os resultados vão coincidir. A resposta de Jake só é considerada de "nível superior" se presumirmos. Um deles implica observar como as crianças pensam de facto.apelar para princípios impessoais -.moral nos anos 1950. Em 1982. Quando confrontada com o Dilema de Heinz. vê apenas "um conflito entre a vida e a propriedade que pode ser resolvido por meio de uma dedução lógica". é por certo importante sabê-lo. pode ter de ir para a prisão. e 232 identificar as melhores formas de pensar. Mas isso são projectos diferentes. Amy responde de forma tipicamente feminina aos aspectos pessoais da situação. acham difícil ignorar esses pormenores. que . mas isso apenas porque a maior parte dos filósofos têm sido homens. pensando de forma tipicamente masculina. afirma. abstrai dos detalhes que concedem a cada situação o seu sabor especial. que um princípio ético é superior a uma ética que privilegia a intimidade. Amy preocupa-se porque "se [Heinz] roubar o medicamento. Carol Gilligan. A "forma de pensar masculina" . no qual questiona especificamente o que Kohlberg diz sobre Jake e Amy. As duas crianças pensam de forma diferente. tal como Kohlberg. O outro implica considerar que certas formas de pensamento são melhores ou piores. afirma Gilligan. Mas porque razão haveríamos de pressupor tal coisa? A maioria dos filósofos morais privilegiaram uma ética de princípios.se as crianças pensam de maneira diferente aos cinco. É legítimo e interessante estudar as diferentes maneiras de as pessoas pensarem em idades diferentes . dez e quinze anos. que têm dado a esta crítica uma inflexão especial. como faz Kohlberg. Vale igualmente a pena 231 Psicológica e Desenvolvimento da Mulher. pode salvar a sua mulher. mas se roubar. O seu projecto humanista e cognitivamente orientado revelava uma forma diferente de levar por diante as investigações psicológicas. Mas havia um problema com a ideia central de Kohlberg. transformando-o numa perspectiva característica sobre a natureza da ética. não estando preocupadas apenas com a humanidade em geral . o que explica essa diferença? É verdade que as mulheres e os homens pensam de forma diferente? Desde a publicação do livro de Gilligan tem 233 havido muita investigação sobre a "voz das mulheres". podia apenas insistir em mais conversas com ele para tentar de alguma forma conciliá-lo. Uma coisa parece certa. à primeira vista. Antes de abordarmos as implicações desta ideia para a ética e para a teoria ética. ignora tudo isso. Assim. pelo menos. a ser verdade. "A fraqueza moral das mulheres". componentes necessários de uma moralidade adequada". "todos estes aspectos podem ser guias melhores para o que a moralidade requer em contextos reais do que as regras abstractas da razão. ou o cálculo racional . Em 1990 Virgínia Held resumiu a ideia central do feminismo: "Protecção. serão mais diferenças da ênfase que de valores fundamentais. mas continua sem se saber ao certo se homens e mulheres pensam realmente de forma diversa. É verdade que mulheres e homens pensam de forma diferente sobre a ética? E. afirma Gilligan. empatia. (Nem mesmo o homem mais réprobo pensa que o roubo seria a melhor coisa que poderia acontecer. no entanto: mesmo que pensem de forma diversa. as mulheres dificilmente discordarão de noções como a de a vida . e podem concordar com Amy que a solução mais feliz para o Dilema de Heinz seria os dois homens chegarem a acordo. ser sensível aos sentimentos de cada um". as diferenças não podem ser muito grandes. Os homens podem entender o valor de relações de afecto. Gilligan sugere que a orientação moral primordial das mulheres é cuidar dos outros "tomar conta" dos outros de uma forma pessoal. é assim inseparável da sua força moral. sentir com os outros. e vice-versa. A sensibilidade para as necessidades dos outros leva as mulheres a "escutar vozes além da sua e a incluir nos seus juízos outros pontos de vista".e satisfazer as suas necessidades. Não é como se. Outras pensadoras feministas pegaram neste tema e desenvolveramno. uma preocupação avassaladora com relações e responsabilidades".ou podem ser.as mulheres fizessem juízos incompreensíveis para os homens. afirmou.reduz a situação a "uma vida humana vale mais que dinheiro".) Por seu lado. Isto explica por que razão a resposta de Amy parece. "manifesta-se numa aparente dispersão e confusão de juízo. confusa e incerta. Em primeiro lugar. emparia e sensibilidade com bastante facilidade. ainda que por vezes tenham de ser relembrados. Amy não podia simplesmente rejeitar o ponto de vista do farmacêutico. podemos fazer uma pausa para ponderar quão "feminino" isto realmente é. que aos onze anos não teve ainda qualquer experiência maternal. As mulheres são tipicamente mais baixas que os homens. se pudéssemos explicar por que razão haverá tal diferença. Uma é que as mulheres pensam de forma diferente por causa do papel social ao qual são destinadas. Há inúmeras diferenças gerais entre homens e mulheres que não se aplicam a todos os indivíduos. no entanto. Suponha-se que concedemos. (Esta teoria poderia ser posta à prova por meio da observação de raparigas educadas em lares não tradicionais. (N. Às mulheres têm sido tradicionalmente atribuídas as responsabilidades domésticas. Será o primeiro estilo exclusivamente masculino e o último exclusivamente feminino? Claro que não. Há mulheres devotadas a princípios e homens que se preocupam e são afectuosos. A sua plausibilidade aumentaria. não há qualquer estilo exclusivamente masculino ou feminino. pois. o facto é que as mulheres têm desempenhado este papel. não devemos afastar demasiado apressadamente a noção de que há perspectivas tipicamente masculinas e femininas. Para muitas pessoas. no entanto. mas isso não significa que todas as mulheres sejam mais baixas que todos os homens. Continuariam a ser naturalmente afectuosas? E quanto aos rapazes educados de formas não tradicionais?) A segunda possibilidade é que existe uma espécie de ligação entre ser mulher e ter uma ética dos afectos. poderia estar equipada pela natureza para essa A diferença no pensamento moral pode ser algo do mesmo género: as mulheres podem tipicamente sentir mais atracção por uma perspectiva de afectos.) 234 grande número de escritoras feministas. a ética dos afectos pode ser apenas parte do condicionamento psicológico que as raparigas recebem rotineiramente. Assim. mesmo que isto não seja mais do que um ultraje sexista. É claro. * Referência ao título original do livro de Gilligan. Porque razão hão-de as mulheres de ser mais afectuosas? O que poderá explicar tal diferença entre os sexos? Parece haver duas possibilidades. Que ligação? Uma vez que a diferença óbvia entre os sexos consiste em as mulheres darem à luz. Assim. que foi ignorado na edição portuguesa. isto parece plausível. mesmo que haja estilos diferentes no pensamento moral. Apesar disso. apesar de nem todas as mulheres serem mais afectuosas do que todos os homens. Mesmo meninas como a Amy.humana ter mais valor que o dinheiro. entre elas um . In a Different Voice. que os dois sexos não vivem em universos morais diferentes. do R. que há uma diferença de estilo entre pessoas mais inclinadas para pensar em termos de princípios e pessoas mais inclinadas a adoptar uma "perspectiva de afectos". poderíamos conjecturar que a natureza das mulheres como mães as torna de alguma forma afectuosas. É fácil ver que ser destacada para tais funções e acabar por entendê-las como "o seu lugar" pode ter induzido as mulheres adoptar os valores que acompanham tais responsabilidades. Para as mulheres. Deste ponto de vista. Este tipo de explicação é frequentemente mal compreendido. Isto cria naturalmente uma tensão entre os interesses masculinos e femininos. uma teoria controversa desenvolvida na última metade do século xx.as pessoas têm hoje as emoções e as tendências comportamentais que permitiram aos seus antepassados sobreviver e reproduzir-se no passado longínquo. a estratégia óptima será fecundar tantas mulheres quanto possível. investindo em cada criança apenas os recursos estritamente necessários para que sobreviva o máximo número possível. Isto significa que as estratégias de reprodução óptimas para homens e mulheres serão diferentes. a estratégia óptima é investir fortemente em cada criança e escolher como parceiros homens dispostos a ficar por perto e a fazer um investimento semelhante. por que razão os homens são mais promíscuos que as mulheres. Não se trata de defender que as pessoas conscientemente calculam como propagar os seus genes. Isto pode ter produzido padrões diferentes de comportamento e resposta emocional em homens e mulheres. não devem. tanto física como psicologicamente. Podemos pensar na "luta pela sobrevivência" darwinista como uma competição para reproduzir na geração seguinte tantas cópias quanto possível dos nossos genes. e isso pode explicar o motivo pelo qual os sexos podem ter desenvolvido atitudes diferentes. Para os homens. Nem se trata de defender que as pessoas devem calcular as coisas desta forma. mas ao mesmo tempo explica aquilo em que estamos interessados aqui. por que razão as mulheres se 236 sentem mais atraídas do que os homens pelos valores do núcleo familiar. A psicologia evolucionista. a diferença extraordinariamente importante entre homens e mulheres é que os primeiros podem ser pais de centenas de filhos durante as suas vidas reprodutivas. ninguém faz isso.função. se pudermos. Quaisquer traços que nos permitam fazer isso serão preservados nas gerações seguintes. enquanto os traços que nos colocam em desvantagem na competição tenderão a desaparecer. interpreta os traços principais da vida psicológica humana como produtos da selecção natural . notoriamente. 12. do ponto de vista ético. O objectivo do argumento é explicar.2 Implicações para o juízo moral . os fenómenos que observamos. Explica. a saber. enquanto as mulheres podem apenas ter um filho em cada nove meses. 235 A teoria da psicologia evolucionista poderia explicar como a natureza faz isto. esta é a perspectiva ética mais proximamente identificada com a filosofia feminista moderna. Família e amigos. Poderei devotar o meu tempo e recursos a cuidar dos meus amigos e família. John Stuart Mill afirmou que um agente moral tem de ser "tão estritamente imparcial como um espectador desinteressado e benévolo". é perfeitamente adequada para a descrição de tais relações. Como afirmou Annette Baier. nem requer que promovamos de forma imparcial os interesses de todos. satisfazendo as suas necessidades e mantendo a confiança nelas. será um desastre. Pensamos neles como seres especiais. e tratamo-los como tal. Essas teorias tomam a noção de obrigação como moralmente essencial: fornecem uma descrição do que devemos fazer. nem todas as feministas aderiram à ética dos afectos. Não obstante. as ideias de igualdade e imparcialidade que perpassam as teorias da obrigação parecem profundamente antagónicas em relação aos valores do amor e da amizade. como Annette Baier faz notar.Nem todas as filósofas foram afectadamente feministas. A ética dos afectos confirma a primazia que sentir ser esse o seu dever. As teorias tradicionais da obrigação são flagrantemente inadequadas para descrever a vida no meio familiar ou entre amigos. por outro lado. Se uma pessoa cuidar dos seus filhos por 237 não são amados. ao invés. Um progenitor carinhoso age por motivos diversos do dever. Estes pontos de vista levam a avaliações diferentes sobre o que podemos fazer. o nosso dever é promover os interesses de todos sem distinção. que adoptamos uma ética dos afectos. Os pais que agem por dever são maus pais. Mas poucas pessoas aceitam esta perspectiva. A ética dos afectos não toma a "obrigação" como fundamental. Uma das maneiras de entender e avaliar uma perspectiva ética é perguntar que diferença acarretaria para os nossos juízos morais e se essa diferença seria uma melhoria face às alternativas. Começa. Mas este não é o ponto de vista de um pai ou de um amigo. "'Afecto' é a nova palavra da moda". pois. Mas. Não olhamos a nossa família e amigos como meros membros da grande turba da humanidade. mesmo que isto signifique ignorar as necessidades de outras pessoas que também poderia ajudar? De um ponto de vista imparcial. com uma concepção da vida moral como uma rede de relações com pessoas específicas. Suponhamos. Além disso. A ética dos afectos. deparamos de imediato com problemas. Será que isso originaria juízos morais diferentes do que se adoptássemos uma abordagem com base em princípios "masculinos"? Eis três exemplos. e encara o "viver bem" como o proteger e cuidar dessas pessoas. Os seus filhos vão pressenti-lo e perceber que . quando tentamos interpretar como um dever "ser um progenitor carinhoso". Poderíamos pensar que uma ética dos afectos chegaria a uma conclusão semelhante . como o utilitarismo por exemplo. Com dezassete dólares." Por esta razão. este raciocínio simples pode tornarse complicado. a difteria. Se não houver tal relação. Nada disto é tão importante como as vacinas das crianças.concedemos naturalmente à nossa família e amigos. Organizações como a UNICEF trabalham para salvar estas crianças. a UNICEF pode vacinar uma criança do Terceiro Mundo contra o sarampo. a tosse convulsa. estas relações são a sua inspiração primeira. Afinal de contas. poderíamos evitar pelo menos algumas destas mortes. De outra forma não há. Noddings conclui que não 239 Crianças desfavorecidas. por exemplo.doença. carpetes e televisores luxuosos. e parece por isso uma concepção moral mais plausível. Não surpreende que a ética dos afectos pareça fazer um bom trabalho ao explicar a natureza das nossas relações morais com os amigos e familiares. Nel Noddings. Apesar de podermos sentir-nos aliviados por saber que podemos gastar livremente o nosso dinheiro como desejarmos. Mas a sua ideia de base é bastante clara. qualquer obrigação: "Não somos obrigados ter afecto se não existir a possibilidade de consumação no outro. de pequena escala. Ao contribuir para o seu trabalho. no mínimo recebendo e agradecendo o afecto dispensado num encontro pessoal. o tétano e a tuberculose. mas nunca têm dinheiro suficiente. o cuidado afectuoso não tem lugar. Em cada ano mais de dez milhões de crianças morrem de causas que facilmente poderiam ser prevenidas .afinal de contas. na sua perspectiva. cujo livro Caring: A Feminine Approach to Ethics and Moral Education é uma das obras mais conhecidas sobre teoria moral feminista. Uma ética dos afectos centra-se em relações pessoais. É claro que. é difícil evitar a sensação de que algo está errado aqui. não devemos olhar por essas crianças carenciadas? Mas isso falha o alvo. a poliomielite. concluiria daqui que é um dever importante ajudarmos a UNICEF. explica que só se pode ter afecto por alguém se a pessoa que é "objecto de afecto" puder interagir com a que é "afectuosa". devemos doar pelo menos alguns dos nossos recursos à UNICEF. se tentarmos temos obrigação de ajudar "os necessitados nas regiões remotas da Terra". subalimentação e água imprópria para beber. Transformar as relações pessoais na totalidade da ética parece tão errado como ignorá-las . Logo. 238 dar todos os detalhes e responder a todas as objecções. Uma "ética de princípios" tradicional. O raciocínio é simples: quase todos nós temos recursos que desperdiçamos em coisas relativamente triviais compramos roupas. a saber. conclui Noddings.. porque o negócio de criar e matar animais para alimentação causalhes grande sofrimento. a pessoa objecto de afecto tem de poder participar na relação pelo menos respondendo ao afecto. Como já fizemos notar. Animais. Teremos obrigações para com os animais não-humanos? Devemos. e isto pode ser o fundamento de uma obrigação: Quando alguém tem relações próximas com um determinado grupo de animais. interpretaríamos a ética dos afectos como um complemento de teorias tradicionais da obrigação em vez de como um substituto. a obrigação". e ao tornarmo-nos vegetarianos poderíamos alimentar-nos sem crueldade. Nel Noddings sugere que esta é uma boa questão "para pôr à prova as noções essenciais nas quais se baseia uma ética dos afectos". uma tal ética apela para a intuição e sentimento e não para princípios. Desde que o moderno movimento de direitos dos animais começou. comunicar o desejo de um prato de leite. A obrigação de apoiar a UNICEF poderia então considerarse parte do último aspecto e não do primeiro. acaba por reconhecer a sua forma característica de comunicar. com os seus miados. Annette Baier parece ter isto em mente quando escreve que. Uma abordagem mais sensata da questão poderia ser afirmar que a vida ética inclui as relações pessoais de afecto e uma preocupação benevolente com as pessoas em geral. Estabelece-se uma relação. procurando. por fim. "as pensadoras feministas terão de ligar a sua ética dos afectos com o que tem sido a preocupação teórica dos homens.] Quando de manhã entro na cozinha e a minha gata me saúda do seu lugar favorito na bancada. levantam a cabeça e esticam-se na direcção daquele a quem se dirigem [. por isso. apesar de podermos desejar . No caso de adoptarmos esta abordagem. Que noções essenciais são essas? Primeiro. em meados dos anos 1970. Noddings sublinha que por sermos humanos as nossas respostas emocionais a outros seres humanos são diferentes das nossas respostas a seres não-humanos. por exemplo.completamente. este tipo de argumento persuadiu muitas pessoas (provavelmente mais mulheres que homens) a deixarem de comer carne. Esse é o lugar em que ela se senta e "fala". ser vegetarianos? Um argumento baseado em "princípios racionais" afirma que devemos. Um segunda "noção essencial na qual se baseia uma ética dos afectos" é a ideia de uma relação individual entre quem tem afecto e quem é objecto de afecto. por exemplo.. e a atitude de afecto tem de ser invocada. Isto conduz a uma conclusão diferente. nomeadamente de estimação. Noddings pensa que as pessoas têm este tipo de relação com alguns animais. percebo o seu pedido. pois muitas pessoas não sentem que comer carne seja errado 240 ou que o sofrimento dos animais de criação seja importante. Os gatos. Mas não temos tal relação com a vaca no matadouro e. mas por outras razões. da incapacidade da criança distante para agradecer pessoalmente a vacina que recebeu. Os animais de criação podem entrar na esfera da preocupação moral. não por causa da nossa relação de tradicionalmente dominada pelas mulheres . Segundo. contratos. podemos tentar calcular. se os afectos são apenas uma parte da moralidade. de uma forma impessoal. que as feministas pensem que a filosofia moral moderna integra uma perspectiva masculina. não temos qualquer obrigação de fazer algo pelas vacas. e a "voz diferente" de que fala Gilligan está em silêncio. No mundo de pequena escala do lar. na vida pública as nossas decisões podem afectar grande quantidade de pessoas que nem sequer conhecemos. nem mesmo evitar comê-las. tais argumentos serão ignorados.viver num mundo no qual os animais não sofressem. pois. é claro. Primeiro. intuições e sentimentos não são guias fidedignos .os outros têm interesses que entram em conflito com os nossos.) Estes argumentos apelam. Não surpreende. Uma teoria moral que desse conta das preocupações das mulheres teria um aspecto muito diferente. As preocupações com a vida privada . será que esta ética passa ou reprova o teste? Os argumentos contrários a esta ética são impressionantes. E o que enfatizam as teorias morais dos homens? Deveres impessoais. Por outro lado. que decisões terão o melhor desenlace para a maioria das pessoas.estão quase totalmente ausentes. para princípios considerados típicos da forma de pensar masculina. as intuições das pessoas diziam-lhes que a escravatura era aceitável e que a submissão das mulheres fazia parte dos planos divinos. Além disso. A relação é com frequência de rivalidade . lidamos .3 Implicações para a teoria ética É fácil ver a influência da experiência dos homens nas teorias éticas por eles criadas. os argumentos de princípio mantêm uma força considerável. (Algo de muito semelhante se pode dizer. Os homens dominam a vida pública e na política e nos negócios as relações que mantemos com outras pessoas são tipicamente impessoais e contratuais. regateamos e fazemos acordos.área 242 de o animal estar em posição de responder "pessoalmente" pode ter muito que ver com a satisfação que se obtém em ajudar. Por isso negociamos. é claro. Por isso. mas nada tem que ver com as necessidades do animal ou com o bem que podemos fazer-lhe. o facto 241 afecto para com eles. Que concluir então? Se usamos esta questão para "testar as noções essenciais nas quais se baseia a ética dos afectos". Logo. se a ética dos afectos for tomada como a totalidade da moralidade.antigamente. 12. a harmonização de interesses e o cálculo de custos e benefícios. com a família e os amigos. prudente e por aí adiante. O mesmo poderia dizer-se sobre ser um amigo leal ou um colega de confiança. O veredicto sobre a ética dos afectos dependerá. A teoria das virtudes encara uma pessoa com sentido moral como alguém que tem determinados traços de carácter: é amável. justo. Negociar e calcular desempenham aí um papel muito menor. generoso. com os quais as nossas relações são pessoais e íntimas. por outro lado. está tão estreitamente ligado a ideias feministas que Annette Baier classificou os seus defensores masculinos como "mulheres honorárias". corajoso. A vida pública requer justiça e beneficência. enfatizam o dever imparcial: retratam tradicionalmente o agente moral como alguém que escuta a razão. e fá-la. Ser carinhoso. leal e de confiança é ser um certo tipo de pessoa. 244 . enquanto o amor e os cuidados dominam. uma parte da ética das virtudes. Apesar de a teoria das virtudes não ser um projecto exclusivamente feminista. no entanto. As duas esferas requerem virtudes diferentes. não é fácil de acomodar no seio das teorias tradicionais. Este aspecto da vida. Muitas filósofas feministas encaram-na 243 desta forma. As teorias da obrigação. determina a coisa certa a fazer. O contraste entre "ser um certo tipo de pessoa" e "fazer o seu dever" está no âmago de um conflito mais lato entre dois tipos de teoria ética. Uma vez estabelecido este ponto não há como negar que este aspecto da vida tem de ter também um lugar na nossa concepção da moralidade. Como já sublinhámos. Um dos principais argumentos a favor da teoria das virtudes é que parece adequada para incluir os valores quer da vida pública quer da privada. "ser um progenitor carinhoso" não é uma questão de cálculo sobre como devemos comportarnos. e nem como pai nem como amigo esse tipo de pessoa é alguém que imparcialmente "cumpre o seu dever". em última instância. enquanto as virtudes da vida privada incluem o amor e o afecto. da viabilidade da ética das virtudes. A ética dos afectos revela-se. portanto. O nosso dever como pessoas morais é.). para eles. Aristóteles começa por perguntar: "Em que consiste o bem para o homem?" E a sua resposta é: "Uma actividade da alma em conformidade com a virtude. as questões centrais dizem respeito ao carácter. Os cristãos. acabaram por ter um papel central..M. Sócrates. Os Gregos haviam encarado a razão como fonte da sabedoria prática ." Para entender a ética temos. e 245 exclusiva dele. em vez de "moralmente errado". caridade e. Apesar de esta forma de pensar sobre a ética estar estreitamente identificada com Aristóteles. de entender o que torna alguém uma pessoa virtuosa. com o correr do tempo. entenda-se . como os judeus. C. falássemos sempre de um género como "falso". inseparável da vida racional. e do sentido moral de "dever". esperança. Após o Renascimento.e do que é moralmente correcto ou errado. de Aristóteles (cerca de 325 a. No entanto. A lei moral. Mas Santo Agostinho. da obediência. a filosofia moral começou uma vez mais a ser secularizada. "as virtudes" desempenharam um papel central nas suas discussões. com olho aguçado para os pormenores. "injusto".Capítulo 13 A ética das virtudes Os conceitos de obrigação e dever .a vida virtuosa era.E. Com a chegada do cristianismo foi introduzido um novo conjunto de ideias. dizia-se. é claro. os filósofos morais modernos abordavam o seu tema Aristóteles. e para eles a vida moralmente correcta era a obediência aos mandamentos divinos.1 A ética das virtudes e a ética da acção correcta Ao pensar em qualquer assunto. G. o autodomínio. As "virtudes teológicas" da fé. Em vez disso. a Lei Divina foi substituída pelo seu equivalente secular. seguir as suas directivas. Platão e muitos outros pensadores antigos abordaram a ética perguntando: "Que traços de carácter tornam alguém uma boa pessoa?" Em resultado disto. "promíscuo". mas os filósofos não regressaram à forma grega de pensar.obrigação moral e dever moral. faz muita diferença começar por umas ou por outras questões. a generosidade e a veridicidade. Modern Moral PMosophy (1958) 13. desconfiava da razão e ensinava que a bondade moral depende da nossa submissão à vontade de Deus.. era no contexto da lei divina. algo designado como lei moral. Assim. Na Ética a Nicómaco. Logo. era concebida como um sistema de regras especificando as acções correctas. eram monoteístas que encaravam Deus como legislador. dedica muito tempo a discutir virtudes particulares como a coragem. portanto. deviam ser abandonados [. que se dizia brotar da razão humana em vez da vontade divina. pensador cristão do século iv que se tornaria muito influente. não foi . esta forma de pensar acabou por ser negligenciada. quando os filósofos medievais discutiam as virtudes.] Seria um grande progresso se. ANSCOMBE. Na sequência do artigo de Anscombe surgiu um conjunto de livros e ensaios discutindo as virtudes. alguns filósofos apresentaram recentemente uma ideia radical: defenderam que a filosofia moral moderna está falida e que.isto é. dever e correcção moral. Em vez de perguntar: "Que traços de carácter tornam uma pessoa boa?". Os próprios conceitos de obrigação. Apesar disso.) E são estas as teorias conhecidas que dominaram a filosofia moral moderna a partir do século xvn.Devemos fazer o que promove a maior felicidade para o maior número. devemos voltar à forma de pensar de Aristóteles.fazendo uma pergunta fundamentalmente diferente da feita pelos Antigos. (Utilitarismo). . As virtudes devem uma vez mais desempenhar um papel central.O nosso dever é seguir regras que podemos de forma consistente desejar que sejam leis universais . 247 por perguntar: "Qual é a coisa certa a fazer?" Isto empurrou-os numa direcção diferente. Depois vamos examinar . devemos deixar de pensar sobre a obrigação. e a teoria das virtudes tornou-se em breve uma das grandes opções na filosofia moral contemporânea. Esta ideia foi avançada em 1958 quando Elizabeth Anscombe publicou um artigo intitulado "Modern Moral Philosophy" na revista académica Philosophy. a teoria das virtudes encontra-se ainda num estádio relativamente embrionário. regras que estaríamos na disposição de ver seguidas por todas as pessoas em todas as circunstâncias. nos quais os filósofos modernos se concentraram. . Logo. (Teoria do contrato social. há um conjunto comum de preocupações que motivam esta abordagem. Devemos regressar à ética das virtudes? No entanto. defendeu.Cada pessoa deve fazer o que melhor promove os seus interesses. estão inextrincavelmente ligados a esta noção absurda. no entanto. Não há. (Egoísmo ético). (Teoria de Kant). Nesse artigo. dever e correcção moral e regressar à abordagem de Aristóteles. . qualquer corpo constituído de doutrina sobre o qual todos estes autores estejam de acordo. Comparada com teorias como o utilitarismo. sugere que a filosofia moral moderna está errada porque se baseia na noção incoerente de uma "lei" sem um legislador. Acabaram por não desenvolver teorias da virtude mas do bem e obrigação morais: . começavam 246 de maneira a salvar a área. Nos pontos seguintes vamos ver primeiro o aspecto da teoria das virtudes.A coisa certa a fazer é seguir as regras que as pessoas racionais e com interesse próprio acordem estabelecer para benefício mútuo. O "habitual" é importante. "As particularidades na nossa lista [de virtudes e vícios] podem servir como razões para preferir ou evitar. por exemplo. pois. A pessoa honesta é naturalmente veraz. Terceiro. Primeiro. pois os vícios são . a teoria deverá dizer-nos se as virtudes são as mesmas para todas as pessoas ou se diferem de pessoa para pessoa. de uma forma mais geral.2 As virtudes Uma teoria das virtudes deverá ter várias componentes. "Nós preferimos alguns tipos de pessoas. as suas acções "brotam de um carácter firme e inabalável". pois. Assim. podemos. Edmund L. Por fim. e isto tem implicação nas virtudes relevantes. deverá haver uma explicação do que é a virtude. Pincoffs sugeriu que as virtudes e os vícios são qualidades a que nos referimos para decidir se alguém merece ser procurado ou evitado. E as virtudes morais são as virtudes que é bom todas as pessoas possuírem. mas o que se segue é uma lista parcial: Isto é um começo. Quarto. mas não basta. honesto e consciencioso. A virtude da honestidade. Mas também avaliamos as pessoas enquanto pessoas. definir uma virtude como um traço de carácter. As virtudes morais são as virtudes das pessoas enquanto tal. deverá existir uma explicação da razão pela qual é bom uma pessoa ter essas qualidades. afirma. Quando procuramos um mecânico de automóveis. O que é a virtude? Aristóteles afirmou que a virtude é um traço de carácter manifestado no agir habitual. as virtudes? Quais os traços de carácter que devem ser desenvolvidos pelos seres humanos? Não há uma resposta breve para isto.algumas das razões que têm sido avançadas para pensar que a ética das virtudes é superior a outras formas mais modernas de abordar o assunto. deverá existir uma lista especificando os traços de carácter que são virtudes. que é bom uma pessoa possuir. as virtudes associadas à reparação de automóveis são diferentes das virtudes associadas ao ensino. não é possuída por alguém que diz a verdade apenas ocasionalmente ou quando isso lhe é vantajoso. manifestado nas acções habituais. ao procurar um professor. queremos alguém com conhecimentos. vamos avaliar se um "regresso à ética das virtudes" é realmente uma opção viável. Não distingue as virtudes dos vícios. ou de cultura para cultura. deverá haver uma explicação daquilo em que consistem essas virtudes. Segundo. queremos alguém habilidoso." Procuramos pessoas por razões diferentes. Aproveitando a deixa de Pincoffs. um filósofo que leccionou na Universidade do Texas. outros evitamo-los". Pincoffs. pelo que temos não apenas o conceito de um bom mecânico ou de um bom professor mas de uma boa pessoa. Por fim. fluente e paciente. 13. Quais são as virtudes? Quais são. fez uma sugestão que resolve este problema. 248 também traços de carácter manifestados nas acções habituais. Coragem. A lista poderia. as 1. Os soldados vão para as batalhas. outra coisa é dizer exactamente em que consistem esses traços de carácter. Em que consistem estas virtudes? Uma coisa é afirmar. Mas isto é um ponto de partida razoável. .Benevolência Civilidade Cortesia Compaixão Ser de confiança Ser consciencioso Lealdade Moderação Ser cooperante Ponderação Tolerância Coragem Equidade Afabilidade Generosidade Honestidade Ser industrioso Justiça Paciência Prudência Sensatez Autodisciplina Autoconfiança Tacto 249 Descreve-se por vezes a coragem como uma virtude militar por ser tão obviamente necessária ao desempenho das funções dos soldados. compassivos e tolerantes. De acordo com Aristóteles. mas é temerário arriscar em demasia. naturalmente. que devemos ser conscienciosos. adicionando-se outros traços de carácter. ser alargada. Vamos dar uma vista de olhos rápida a quatro deles. as virtudes são meios entre extremos: a virtude é "o meio por referência a dois vícios: um de excesso e outro de carência". A coragem é um meio entre os extremos da cobardia e da temeridade . de uma forma geral.é cobarde fugir de um perigo. Cada uma destas virtudes tem as suas próprias características e levanta os seus próprios problemas. precisa de coragem. e em alturas diferentes isso inclui-nos a todos. afirmou que devemos dar tudo que temos para . Chamar a um soldado nazi "corajoso" parece um elogio do seu desempenho. uma admirável (firmeza ao enfrentar o perigo) e a outra não (a vontade para defender um regime desprezível).afinal de contas. mas uma vez que a sua coragem é exibida ao serviço de uma causa malévola. Pensemos num soldado nazi que luta com valentia . Mas quanto é bastante? 251 mulheres grávidas. e é constantemente necessária no decurso normal da vida: às 250 este enfrentar não virtuoso do perigo. tímida e segura. o seu comportamento é no seu todo perverso. 2. Mas mesmo assim não parece muito correcto dizer que não é corajoso . Mas as circunstâncias menos comuns apresentam tipos de casos mais problemáticos. e a coragem é uma coisa admirável. talvez devêssemos apenas dizer que o soldado revela duas qualidades de carácter. atentemos na maneira como ele se comporta frente ao perigo.batalhas estão pejadas de perigos.mas fá-lo ao serviço de uma causa maléfica. Como afirmou Peter Geach: Coragem é o que todos precisamos no fim da vida. Jesus.enfrenta grandes riscos sem vacilar . a natureza da coragem não parece levantar problemas. logo. ao contrário das aparências. A generosidade é a disponibilidade para gastar os nossos recursos no auxílio aos outros. é também um meio entre dois extremos: situa-se algures entre a avareza e a extravagância. a estudar literatura medieval poderá parecer o exacto oposto do soldado. sem coragem as batalhas perdem-se. a pessoa extravagante dá demasiado. mesmo ele pode adoecer e necessitar de coragem para enfrentar uma arriscada operação. Na verdade eu prefiro não chamar 'coragem' a A resposta dependerá até certo ponto da perspectiva geral da ética que aceitamos. aos mineiros e pescadores e metalúrgicos e camionistas. A pessoa avara dá muito pouco. Para contornar este problema. O soldado é realmente corajoso. a todos nós porque os nossos corpos são vulneráveis. Aristóteles afirma que. Será corajoso? Geach pensa que. Enquanto examinamos apenas o "decurso normal da vida". Generosidade." É fácil perceber a ideia de Geach. afirma. outro importante professor da Antiguidade. No entanto. menos é ainda ao serviço de uma causa maléfica. "A coragem ao serviço de uma causa indigna". Preferíamos que ele se tivesse comportado de outra forma. "não é uma virtude. o soldado nazi não possui realmente a virtude da coragem. Mas os soldados não são os únicos que precisam de coragem. Um estudioso que passa a sua vida. e nós não desejamos elogiá-lo. Qualquer pessoa que enfrente o perigo. como a coragem. Isto significa que devemos ser generosos com o nosso dinheiro até se atingir o ponto a partir do qual continuar a dar seria mais prejudicial para nós do que benéfico para os outros. Mas basta isso? Há. Os utilitaristas modernos são. Defendem que em todas as circunstâncias é nosso dever fazer o que terá as melhores consequências globais para todos os envolvidos.pensemos numa pessoa rica cuja vida quotidiana inclui luxos sem os quais se sentiria 252 dispojada. Geach relata a história de Santo Atanásio que. A virtude da generosidade não pode existir. antes de mais. Um ideal de "generosidade". enquanto os pobres passam fome. algo como isto: devemos ser generosos com os nossos recursos até ao ponto máximo conciliável com a possibilidade de vivermos as nossas vidas normais de forma minimamente satisfatória. e foi em geral rejeitado. Mentir. Mas há também o problema de que a adopção desta política nos impediria de viver vidas normais. as nossas vidas consistem em projectos e relações que requerem um considerável investimento de ambos. Para tornar isto uma interpretação "razoável" das exigências da generosidade. no entanto. 3. Atanásio foi suficientemente esperto para . Uma interpretação razoável das exigências da generosidade poderia ser. ao que parece. os descendentes morais de Jesus. e por isso têm de descobrir outras formas de lidar com situações complicadas. era a seu ver inaceitável. Mesmo esta leitura vai deixar-nos. Isto foi considerado pelos que o escutavam um ensinamento muito severo. não queremos ficar pobres por dar quanto temos. "remava num rio quando os seus perseguidores apareceram remando na direcção contrária: 'Onde está o traidor Atanásio?' 'Não está longe'. As pessoas honestas não mentem. respondeu o santo bem-humorado. que exige gastar o nosso dinheiro e tempo como recomendam Jesus e os utilitaristas. uma questão de egoísmo. Honestidade. em parte. alguém que não mente. outras maneiras de enganar as pessoas. Porque razão resistem as pessoas a esta ideia? Pode ser. As "vidas normais" de algumas pessoas são bastante extravagantes . Não está em causa apenas dinheiro mas tempo. pensa Geach. no contexto de uma vida demasiado sumptuosa. além da mentira. especialmente quando há outras pessoas cujas necessidades básicas não são satisfeitas.ajudar os pobres. A posse de riquezas. precisamos de uma concepção da vida quotidiana que não seja em si muito extravagante." Geach aprova o logro de Atanásio embora pense que teria sido errado dizer uma mentira. implicaria abandonar as nossas vidas de todos os dias e viver de maneira muito diferente. portanto. A pessoa honesta é. algumas questões embaraçosas. e passou por eles sem levantar suspeitas. mesmo por quem se considera seu seguidor. é sempre proibido: uma pessoa detentora da virtude da honestidade nem sequer pensará nisso. pelo menos neste aspecto. É ainda rejeitado pela generalidade das pessoas hoje em dia. embora de uma forma enganadora. quando aceitamos a palavra de alguém. Falamos uns com os outros. fazemos promessas. nada disto implica que a honestidade seja o único valor importante ou que tenhamos de lidar honestamente com todos. se agirmos segundo essas crenças. tudo está bem. ficamos vulneráveis de uma forma peculiar. Para ver porquê. Quando isto entra em conflito com a regra proibindo a mentira. Se falarem com veracidade. Mas de maneira a estes intercâmbios serem bem sucedidos. independentemente do que pensemos sobre isto. Sem estes tipos de intercâmbio.o fazer. precisamos de pensar por que razão mentir é à partida uma coisa má. lemos os escritos uns dos outros. independentemente de quem sejam e do que pretendam. Isto explica a razão por que ser enganado é tão particularmente ofensivo. trocamos informação e opiniões. Disse a verdade. Suponha que Santo Atanásio tinha dito aos seus 254 Não há uma razão óbvia para aceitar a primeira perspectiva. Que princípio não arbitrário aprovaria o acto de enganar pessoas de uma forma e não de outra? Mas. e eles não estiveram à altura. especialmente face àqueles que nos fariam mal injustamente. e muito mais. acabamos com falsas crenças. no fundo. exprimimos os nossos desejos uns aos outros. excepto nas raras circunstâncias em que existem razões prementes para o fazer. a . Confiámos neles. por que razão o logro de Atanásio não é igualmente desonesto. É. A explicação poderia ser a seguinte: A nossa capacidade de viver em comunidades depende das nossas capacidades de comunicação. é razoável pensar que tenha prioridade. Pelo contrário. perguntamos e respondemos a perguntas. Contudo. Mas se mentirem. temos de ser capazes de pressupor que há certas regras em vigor: temos de poder confiar que todos falarão com honestidade. Uma pessoa honesta nunca mente. claro está. A autodefesa é igualmente uma questão importante. poderemos distinguir duas perspectivas sobre o assunto: 1. existem razões para favorecer a segunda. a questão de fundo é saber se a virtude implica adesão a regras absolutas. Torna-se difícil perceber. 253 vida social seria impossível. Pela aceitação do que dizem e modificando de acordo com isso as nossas crenças. colocamos o nosso bem-estar nas suas mãos. acabamos por fazer coisas estúpidas. Relativamente à honestidade. Além disso. Uma pessoa honesta nunca mente. A culpa é deles. Ambas podem violar a confiança da mesma maneira. uma violação da confiança. 2. Explica ainda por que razão as mentiras e as "verdades enganadoras" parecem moralmente indiscerníveis. estaríamos psicologicamente perdidos. Os amigos ajudam os jovens a evitar o erro e aos mais velhos dão a atenção e auxílio necessários para compensar a perda de capacidade de acção que a doença acarreta. Infelizmente. Poderiam eles. Também na pobreza e em todos os outros tipos de 255 infortúnio os homens acreditam que o seu único refúgio é os seus amigos. é um facto. Eutifron não vê qualquer incorrecção: para ele um homicídio é um homicídio. maiores são os riscos que acarreta. Mas não é apenas uma questão de sermos mais afáveis com as pessoas de que gostamos. Sócrates mostra-se surpreso e pergunta se será correcto um filho apresentar queixa contra o seu pai. Isto parece uma parte essencial daquilo que é a amizade. Se necessitamos de amigos. A ideia de que há algo de moralmente especial relativamente à família e amigos é-nos. queixar-se que Santo Atanásio tinha violado a sua confiança? Parece natural pensar que eles comprometeram qualquer direito que pudessem ter à verdade quando iniciaram uma perseguição injusta. 4. confirmam o nosso valor como seres humanos. Como afirmou Aristóteles: "Ninguém escolheria viver sem amigos. necessitamos igualmente das qualidades de carácter que nos . e em consequência disso eles o procuravam em vão. Até mesmo o nosso amor-próprio depende em grande medida das garantias dos amigos: ao retribuírem o nosso afecto. Sem amigos. Não tratamos a nossa família e amigos como trataríamos estranhos. Lealdade para com família e amigos. a existência da amizade fornecer-nos-ia tudo o que desejássemos. Como poderia eu ser amigo do leitor e no entanto não o tratar com especial consideração? Se fosse preciso provar que os seres humanos são essencialmente criaturas sociais. No início do diálogo de Platão intitulado Eutifron. mais tarde. A natureza da nossa relação com família e amigos é diferente das nossas relações com outras pessoas. Estamos ligados a eles por amor e afeição e fazemos por eles coisas que não faríamos por qualquer pessoa.persiguidores "Não o conheço". veio processar o pai por homicídio. Os amigos prestam auxílio. mesmo que tivesse todos os outros bens": Como poderia a prosperidade ser salvaguardada e preservada sem amigos? Quanto maior é. a questão fica por resolver à medida que a discussão entre os dois se desvia para outros assuntos. e parte da diferença é que os nossos deveres e responsabilidades são diferentes. Sócrates é informado de que Eutifron. Os nossos triunfos parecem vazios a menos que tenhamos amigos para os partilhar. familiar. mas os benefícios da amizade vão muito além da assistência material. e os nossos fracassos tornam-se suportáveis graças à sua compreensão. naturalmente. que ele encontrou junto à porta do tribunal. mesmo quando se sentem tentados a voltar as costas. A beneficência generalizada é uma virtude. é claro. A justiça é outra dessas virtudes. E por isso que Sócrates se surpreende ao saber que Eutifron vai processar o pai. Fazem concessões entre si. um amigo será a única pessoa capaz de nos dizer as verdades mais duras sobre nós mesmos. e vice-versa. falando objectivamente. Isto apenas levanta a questão adicional de saber por que razão as virtudes são desejáveis.capacitam para ser amigos. . Os amigos são pessoas com quem se pode contar. Mas as críticas são aceitáveis da parte de amigos porque sabemos que a sua repreensão não significa rejeição. mesmo para com os desconhecidos. honesta ou leal? A resposta. . Mas. mas não exige para com os estranhos o mesmo nível de preocupação que temos com os amigos. Por vezes. os amigos apoiam-se mutuamente. pode variar dependendo da virtude particular em questão. ou mesmo quando. Isto parece estar em contradição com a estima própria de um filho.A lealdade é essencial para a amizade. por isso. requer um tratamento imparcial para todos. Nada disto significa que não tenhamos deveres para com as outras pessoas.A honestidade é necessária porque sem ela as relações entre as pessoas correriam mal de múltiplas maneiras. e mesmo que nos descomponham em privado não nos embaraçarão à frente de outras pessoas. e pode exigir muito. . Porque razão é uma coisa boa que uma pessoa seja corajosa. Este aspecto é ainda reconhecido pela lei dos nossos dias: Nos Estados Unidos. naturalmente. podemos ainda assim espantar-nos com o facto de ter podido tomar face ao pai a mesma atitude que teria com qualquer outra pessoa que tivesse cometido o mesmo crime. . Porque razão são importantes as virtudes? Dissemos que as virtudes são características de carácter que é bom as pessoas possuírem. associados a virtudes diferentes. perdoam ofensas e refreiam juízos mais duros. generosa. bem como noutros países. Apoiam-se mutuamente mesmo quando as coisas ficam feias. as exigências de justiça aplicam-se de forma mais aleatória entre eles. Há limites. No topo da lista está a lealdade. A relação que temos com membros da nossa família é ainda mais próxima que a amizade. Assim: . o amigo poderia merecer ser abandonado. Mas são deveres diferentes.A generosidade é desejável porque algumas pessoas vivem necessariamente em piores condições que outras e necessitam da nossa ajuda.A coragem é uma coisa boa porque a vida está cheia de perigos e sem coragem não seríamos capazes de lhes fazer frente. uma vez que os amigos são 256 apesar de podermos admirar a paixão de Eutifron pela justiça. leais. uma esposa não pode ser obrigada a testemunhar em tribunal contra o seu marido. que as virtudes são importantes porque a pessoa virtuosa terá uma vida melhor. Uma vez mais. A ideia não é que os virtuosos ficarão mais ricos . entre amigos. No seu estilo extravagante. Neste cenário. Aristóteles pensava. pelo que a coragem e o autodomínio são necessários. pinta-se a si na parede e diz: "Ecce homo!" Há aqui algo de obviamente pertinente. o homem deve ser de outro modo. as nossas vidas podem incluir trabalhar num determinado tipo de emprego e ter determinados interesses. somos seres racionais e sociais que querem e precisam da companhia de outras pessoas. Por isso vivemos em comunidades. as virtudes têm todas o mesmo tipo geral de valor: são todas qualidades necessárias para uma vida humana bem sucedida. que é possível dar uma resposta mais geral à nossa questão. a exuberância de um pródigo jogo e mudança de formas. (Imagine-se as dificuldades que uma pessoa teria se manifestasse habitualmente as qualidades opostas na sua vida social.a perseverança e a diligência podem ser importantes. não pensava que existia apenas um tipo de bondade humana. como se todas as pessoas boas viessem de um só molde? Este pressuposto foi frequentemente 258 contestado.) A um nível mais individual. que ingenuidade é ainda afirmar: "O homem deve ser assim e assado!" A realidade exibe uma riqueza surpreendente de tipos. é parte da nossa condição humana comum que por vezes enfrentemos perigos ou tentações. qualidades como a lealdade. A ideia é que as virtudes são necessárias para orientarmos bem as nossas vidas. Nietzsche afirma: Consideremos. se é desejável um único conjunto de características de carácter para todas as pessoas. no entanto. A conclusão é que. Para ver o que Aristóteles pretende. Friedrich Nietzsche. Devemos falar da pessoa moralmente boa. O académico que dedica a sua vida a compreender a literatura medieval e o soldado profissional são tipos muito diferentes de pessoas. A um nível mais geral. nomeadamente. considere-se o tipo de criaturas que somos e o tipo de vida que levamos.isso não é obviamente assim. apesar das suas diferenças." Sabe muito bem como deve ser. por exemplo. e qualquer moralista insignificante se atreve a dizer: "Não. por fim. Uma . As virtudes são iguais para todos? Podemos perguntar. por fim. ou pelo menos não é sempre assim. Outras virtudes poderão ser necessárias para fazer bem esse trabalho ou dedicar-se a esses interesses . família e outros cidadãos. este biltre e hipócrita. equidade e honestidade são necessárias para interagir harmoniosamente com todas essas outras pessoas.257 Olhando para esta lista parece que cada virtude tem valor por uma razão diferente. "Podemos observar". Assim: . É tentador ir ainda mais longe e afirmar que as virtudes diferem de sociedade para sociedade. a generosidade é sempre um bem precioso. as qualidades de carácter que manifestam podem diferir. As características de carácter necessários para desempenhar estes papéis diferem. os sentimentos de identificação e filiação que ligam cada ser humano a todos os outros seres humanos. uma gueixa ou um guerreiro samurai. Afinal de contas. as virtudes serão diferentes. por isso. afirmava. . que definem e tornam possível a vida de um académico. um padre. .Todos precisam de amigos. e provavelmente tinha razão. Este tipo de lista poderia prosseguir . porque ninguém (nem mesmo o académico) está tão seguro que possa evitar a ocorrência eventual de perigos." Mesmo nas sociedades mais díspares as pessoas enfrentam os mesmos problemas fundamentais e têm as mesmas necessidades básicas. e para ter amigos temos de saber ser amigos. à vida de um académico só é possível numa sociedade que tem instituições. todos temos muito em comum. um sentido óbvio no seio do qual se pode pensar que as virtudes diferem de pessoa para pessoa. "quando viajamos para países distantes. e ocupam papéis sociais diferentes. O mesmo poderia dizer-se de um jogador de futebol. como as universidades. . Uma vez que as pessoas têm tipos de vida diferentes. pois.e nas mãos de Aristóteles prossegue . apesar das diferenças. Há. por isso. instituições e modos de vida no seio dos quais se moldam as vidas dos indivíduos. e em todas as sociedades há pessoas em piores condições que outras. porque razão não afirmamos simplesmente que a consideração de .Todos necessitam de coragem. As sociedades fornecem sistemas de valores. o tipo de vida que é possível para um indivíduo dependerá da sociedade na qual vive. Esta era a concepção de Aristóteles. e por isso os traços 259 determinadas qualidades como virtudes depende das formas de vida criadas e mantidas por determinadas sociedades? A isto'poderá contrapor-se a ideia de que há virtudes necessárias a todas as pessoas em todas as épocas. personalidades de géneros diferentes.indefinidamente.mulher vitoriana que nunca mostrava um joelho em público e uma mulher moderna numa praia têm padrões muito diferentes de recato.Em todas as sociedades há bens para gerir e decisões para tomar sobre o que corresponde a quem. Aristóteles pensava que.Falar com honestidade é sempre uma virtude porque nenhuma sociedade pode existir sem comunicação entre os seus membros. Assim. todos precisamos de lealdade. necessários para viver de forma bem sucedida diferem também. Tendo tudo isto em conta. e diferentes tipos de acções sejam contemplados para as satisfazer. e por isso fica encantado quando Smith chega para o visitar. mais claro se torna que ele está a dizer a verdade. mas quanto mais falam. Primeiro. Pensava que ele era seu amigo. e pode ser verdade que algumas pessoas. o amor e o respeito. a ética das virtudes é apelativa porque fornece uma descrição atraente da motivação moral. confessa que está apenas a cumprir o seu dever. Este exemplo foi sugerido por Michael Stocker num artigo muito influente surgido no Journal of Philosophy em 1976.ele é mesmo um tipo excelente e um bom amigo. mas verifica agora que isso não é verdade.uma falha de mérito ou valor moral. Valorizamos a amizade. Está aborrecido e inquieto. diz a Smith como a sua visita lhe foi agradável . a sua visita parece agora fria e calculista.Em resumo. As outras teorias parecem deficientes neste campo. por viverem determinados tipos de vidas em determinados tipos de circunstâncias. e perde todo o valor para si. Motivação moral.3 Algumas vantagens d Porque razão alguns filósofos pensam que uma ênfase nas virtudes é superior a outras maneiras de pensar sobre ética? Sugeriu-se uma série de razões. Stocker comenta que certamente o leitor ficaria muito desiludido ao conhecer a motivação de Smith. 1. 13. e queremos que as nossas relações com as outras pessoas sejam . pode muito bem ser verdade que em diferentes sociedades as virtudes recebam interpretações algo 260 diversas. A princípio o leitor pensa que ele está só a ser modesto. Mas não pode ser correcto dizer simplesmente que a determinação de um traço particular de carácter como virtude nunca é mais do que uma questão de convenção social. Mas Smith objecta. Eis duas das mais importantes. O problema é a sua motivação. As virtudes essenciais não são prescritas por convenção social mas por factos fundamentais sobre a nossa condição humana comum. a sua visita era justamente o tónico de que precisava. Stocker afirma o seguinte sobre o comportamento de Smith: "Há certamente alguma coisa que falha aqui . e nessa ocasião decidiu que tinha o dever de o 261 visitar . Considere-se o seguinte: O leitor está no hospital a recuperar de uma doença prolongada. Decorrido algum tempo. Não veio visitá-lo porque quis ou por gostar dele. mas apenas por pensar que tem o dever de "fazer o que está certo".talvez por não saber de alguém com mais necessidade de ser animado ou de alguém mais próximo." É claro que nada há de errado com o que Smith fez. para se dar ao trabalho de atravessar a cidade para vir vê-lo. Passa um bom bocado à conversa com ele. necessitem de virtudes mais do que outras. as teorias éticas que enfatizam apenas a correcção da acção nunca poderão fornecer uma explicação satisfatória da vida moral. 13. Estes filósofos não 263 a imparcialidade como um requisito moral fundamental: no primeiro capítulo.4 O problema da incompletude Os argumentos precedentes constituem uma defesa impressionante de dois aspectos gerais: primeiro. Um tema dominante da filosofia moral moderna tem sido a imparcialidade . uma teoria com poucos adeptos.por outras palavras. justificar tudo isto sem dificuldade. a beneficência para com as pessoas em geral é também uma virtude. Haverá algo de errado nisso? Pelo contrário. nega isto/. que uma teoria adequada da ética tem de fornecer uma explicação do carácter moral. O que é necessário não é um qualquer tipo geral de imparcialidade. no entanto. Seremos realmente imparciais no que respeita aos seus interesses? E devemos sê-lo? Uma mãe ama os seus filhos e cuida deles de um modo que não alarga a outras crianças. a imparcialidade foi incluída como parte da "concepção mínima" da moralidade. prossegue o argumento. Qualquer teoria que releve a imparcialidade terá dificuldade em dar conta disto.baseadas em consideração mútua. Mas haverá algo de errado nisso? Não é exactamente assim que uma mãe deve ser? Além disso. no entanto. uma teoria das virtudes. e de que ao decidirmos o que fazer devemos tratar os interesses de todos como igualmente importantes. É completamente parcial para com elas. e segundo. Agir movido por um sentido abstracto de dever. apenas o egoísmo ético. amamos os nossos amigos e estamos dispostos a fazer por eles coisas que não faríamos por qualquer outra pessoa. não é a mesma coisa. (Das quatro teorias da "acção correcta" enumeradas antes. O amor e a amizade implicam parcialidade para com os entes queridos e os amigos. mas uma compreensão da natureza destas diferentes virtudes e de como se relacionam entre si. Consideremos as nossas relações com a família e os amigos.) John Stuart Mill colocou bem a questão ao escrever que o "Utilitarismo exige [que o agente moral] seja tão estritamente imparcial como um espectador benévolo e desinteressado". mas é uma virtude de tipo diferente. que a imparcialidade seja realmente uma característica assim tão . nem desejaríamos ser uma dessas pessoas. ou por um desejo de "fazer o que está certo". o amor e a lealdade .a ideia de que todas as pessoas são moralmente iguais. Algumas virtudes são parciais e outras não. Necessitamos para isso de uma teoria que enfatize as qualidades pessoais como a amizade. Uma teoria moral que enfatize as virtudes pode. Logo. que os filósofos morais modernos não conseguiram fazer isto. parece que o amor por familiares e amigos é uma característica inultrapassável da vida moralmente boa. 2 Dúvidas sobre o "ideal" da imparcialidade. Não desejaríamos viver numa comunidade de pessoas que agissem apenas por tais motivos. O livro que está agora a ler trata também 262 importante da vida moral. Pode duvidar-se. Ou a teoria abandona a noção de "acção correcta" no seu todo ou terá de fornecer algum tratamento da noção. no entanto. segundo a teoria das virtudes. Apesar de parecer à primeira vista uma ideia louca. mas . Suponha-se que aceitamos estas conclusões. Alguns teóricos das virtudes sugeriram. completa em si. alguns filósofos argumentaram de facto que devemos ver-nos livres de conceitos como "acção moralmente correcta". Será esta perspectiva viável? Virtude e conduta. a sua negligência levou-os por vezes a abraçar doutrinas que distorcem a natureza do carácter moral. então. então têm de se dar passos mais drásticos. que seria proposto apenas como um complemento a uma teoria da acção correcta. A nossa teoria total incluiria então um tratamento das virtudes. haveria certamente muito que dizer em sua defesa.poderíamos tentar aperfeiçoar o utilitarismo. É frequente que os problemas morais sejam sobre o que devemos fazer. acrescentando-lhes um tratamento melhor do carácter moral. Anscombe afirma que "seria um grande progresso" se deixássemos de usar por completo tais noções. com a pretensão de ser completa em si. Que faremos a seguir? Uma forma de prosseguir seria desenvolver uma teoria combinando as melhores características da abordagem da acção correcta com intuições retiradas d . Defenderam que se deve considerar a ética das virtudes uma alternativa aos outros tipos de teorias . o kantismo e outras teorias como estas. Poderíamos chamar-lhe "ética radical das virtudes". O que pode esta abordagem dizer não sobre a avaliação do carácter. Mas em resultado disso. quando a avaliação da acção está em causa. Poderíamos continuar a avaliar a conduta como melhor ou pior. Não é óbvio como devemos decidir o que fazer. Como vimos. as teorias que enfatizam a acção correcta parecem incompletas porque negligenciam a questão do carácter. os recursos da teoria no seu todo serão postos em jogo e será recomendada uma versão das políticas utilitaristas ou kantianas (por exemplo). e se um tal projecto puder ser levado a bom termo. afirma Anscombe.se limitaram a negligenciar a questão. derivado da concepção de carácter virtuoso. Se uma teoria das virtudes for apresentada apenas como um complemento a uma teoria da acção 264 correcta. Por outro lado. A teoria das virtudes remedeia este problema ao transformar a questão do carácter na sua preocupação central. a teoria das virtudes corre o risco de ficar incompleta no sentido oposto.uma teoria independente da ética. se a teoria das virtudes for apresentada como uma teoria independente. mas da acção? A resposta depende do espírito com que se apresenta a teoria das virtudes. que deveríamos proceder de forma diferente. Isto parece sensato. segundo a abordagem da ética radical das virtudes. talvez porque mentir concede alguma vantagem numa situação determinada. enquanto as razões contra a sua realização serão que é desonesta. precisamos de uma explicação do motivo pelo qual é melhor ter este traço do que o seu oposto. Pode-se manter estas ideias dando-se-lhes uma nova interpretação no quadro de referência das virtudes. Isto parece bastante razoável. A razão pela qual essa pessoa não deve mentir. mesquinha ou injusta. Esta análise poderia ser resumida dizendo que o nosso dever é agir virtuosamente . poderia dizer-se que as acções devem ser avaliadas como certas ou erradas do modo habitual. Mas o que significa ser honesto? Não é uma pessoa honesta apenas aquela que segue regras como "não mentir"? É difícil ver em que consiste a honestidade se não é a disposição para seguir tais regras. a segunda é utilitarista. deveríamos simplesmente afirmar que não foi "sincera" ou que foi "injusta" . Será essa compreensão suficiente? O problema principal da teoria é a incompletude. generosa ou justa. por outras palavras. ou que promove o bem-estar geral. No entanto. Em qualquer dos casos. e a terceira faz lembrar formas contratualistas de pensar.as razões a favor da realização de uma acção serão que essa acção é honesta. por referência às razões que podem ser avançadas a favor ou contra elas. Esboçámos agora mesmo a forma como os teóricos radicais da . Isto poderia ser feito da maneira que se segue: Primeiro. Porque razão não deve uma pessoa mentir. o simples facto de dar uma explicação parece levar-nos além dos limites da teoria simples das virtudes. é porque fazê-lo seria desonesto. e outras que 265 virtude compreendem o que devemos fazer. Mas não podemos evitar perguntar por que razão tais regras são importantes. aquilo que uma pessoa virtuosa faria. Suponha-se que uma pessoa se sente tentada a mentir. como a honestidade. Para se compreender o problema.a "acção correcta" é. e outras semelhantes. considere-se uma virtude típica. O problema da incompletude. especialmente quando há alguma vantagem a ser obtida com a mentira? Precisamos claramente de uma resposta que vá além da simples observação de que fazer isso seria incompatível com a posse de um determinado traço de carácter. ou que é necessária a pessoas que têm de viver juntas e confiar umas nas outras. todas elas. Algumas respostas possíveis poderiam ser que uma política de veridicidade é no todo vantajosa para nós. Mas não é realmente necessário para os teóricos radicais da virtude abandonar noções como "moralmente correcto". à primeira explicação assemelha-se de forma suspeita ao egoísmo ético. tais. razões ligadas às virtudes . não precisamos de dizer nada mais do que isto para explicar por que motivo uma acção deve ser rejeitada. Em vez de dizer que uma acção foi "moralmente errada".faríamos isso noutros termos.termos derivados do vocabulário da virtude. Na sua perspectiva. as razões referidas serão. por fim. Suponha o leitor. mas à custa de abandonar a sua ideia central. Mas isto não parece verdade. Deixa-o apenas a interrogar-se sobre qual das virtudes terá precedência sobre a outra. Conclusão. encarar a teoria das virtudes como parte de uma teoria geral da ética e não como uma teoria completa em si. as razões a favor e contra a realização de uma acção têm que estar sempre associadas a uma ou mais virtudes. por si. segundo esta abordagem.tem de dizer a verdade e ser indelicado. Parece melhor. Mas o leitor tem de fazer uma coisa ou outra . Como vimos.266 disposição para aceitar essa razão e agir de acordo com ela. por exemplo. e tem que decidir se deve investir-se em investigação sobre a sida ou em algum outro projecto válido. Mas isto põe o jogo à mostra.o mesmo é dizer. é difícil ver como uma teoria simples das virtudes poderia lidar com casos de conflito moral. Para resolver conflitos destes parece que precisamos de uma orientação geral qualquer. por estas razões.) A honestidade e a delicadeza são ambas virtudes. (Um exemplo poderia ser dizer a verdade em circunstâncias nas quais isso pudesse causar sofrimento a alguém. ou não dizer a verdade e ser delicado. além da que pode oferecer a teoria radical das virtudes. Se pressupomos tais "virtudes" apenas para adaptar todas as decisões morais à estrutura escolhida. há uma virtude correspondente que consiste na ponda à disposição para fazer isso? Se existe. Existirá uma virtude que corres267 Além disso. comprometida com a ideia de que por cada boa razão que se possa propor a favor da realização de uma acção. existindo por isso razões a favor e contra para cada alternativa. grande auxílio. assim. para voltar ao nosso exemplo de conflitos morais. A teoria geral incluiria um . talvez se lhe deva chamar "agir como um utilitarista". teremos salvo a ética radical das virtudes. e honesto mas indelicado fazer B. que é deputado e tem que decidir como distribuir fundos para a investigação médica . talvez seja a "virtude" da sabedoria . Suponha que tem de escolher entre A e B. haverá uma virtude relacionada com todos os princípios que se podem invocar para resolver conflitos entre as outras virtudes? Se há. Ou. a capacidade de discernir o que é melhor e fazê-lo. A ética das virtudes radical está. O que deve então fazer? O conselho de agir virtuosamente não oferece.não há dinheiro suficiente para tudo. Existirá uma virtude que corresponda a toda a razão moralmente boa para fazer algo? O problema da incompletude indica. Suponha que nessa circunstância decide ser melhor fazer o que beneficiar um maior número de pessoas. uma dificuldade teórica mais geral para a abordagem radical da ética das virtudes. num caso em que seria desonesto mas delicado fazer A. ] Eu penso o contrário [. Não vejo razão para isto não ser possível. No entanto.não conhecemos a verdade "final" sobre a maioria das coisas.. e se cada uma das partes da teoria geral tiver de ser ligeiramente ajustada. pois. Reasons and Persons (1984) 14. 268 desenvolvida. juntamente com a sua fundamentação racional. e poderá não ser excessivamente precipitado dizer alguma coisa sobre o que seria uma teoria moral satisfatória. alegando que não sabemos ainda o suficiente para alcançar a "análise final". Uma investigação sobre a natureza da virtude podia ser conduzida com proveito a partir da perspectiva que tal visão alargada fornece. e muitas são vulneráveis a objecções paralisantes. Onde está. a filosofia moral não está muito pior do qualquer outra área de investigação humana . Depois de as examinar. Quase todas as teorias clássicas contêm elementos plausíveis. Poderíamos dizer. saber se tal visão geral pode incluir uma concepção adequada da acção correcta.) Mas sabemos muito.1 Moralidade sem húbris A filosofia moral tem uma história rica e fascinante. a um tempo.tratamento de todas as considerações que figuram no processo de decisão prática. Alguns poderiam mesmo recusar responder. as teorias não são consistentes entre si.. atraem e repugnam o leitor atento. Inúmeros pensadores abordaram o tema a partir de uma imensa diversidade de perspectivas e produziram teorias que. em última análise. DEREK PARFIT. de maneira a fazer justiça a ambas. Poderíamos então avançar para a apreciação da questão de saber que tipos de acções e políticas sociais contribuiriam para este objectivo e que qualidades de carácter são necessárias para criar e manter vidas individuais. Cada uma poderia iluminar a outra. . uma vez que já tudo foi dito [. e uma concepção correspondente do carácter virtuoso.. A nossa teoria geral poderia começar por tomar o bem-estar humano . 269 Como seria uma teoria moral satisfatória? Algumas pessoas pensam que não pode haver progresso em Ética. aqui e ali. para incluir a outra. tendo em conta que foram elaboradas por filósofos de génio indubitável. (Neste aspecto. que devemos desejar uma sociedade onde todas as pessoas possam ter vidas felizes e aprazíveis. tanto melhor para a verdade.] Comparada com as outras ciências.. o que dificilmente surpreende. a verdade? É claro que diferentes filósofos responderiam a esta pergunta de maneiras diferentes. do ponto de vista moral. a Ética Não Religiosa é a mais jovem e menos ficamos sem saber o que pensar.ou o bem-estar de todas as criaturas sencientes como o valor de maior importância. A questão é. pensavam. Mas. necessidades. Este facto dá alguma pertinência à nossa opinião exagerada sobre nós mesmos. Hume. e acaba por ser igualmente o que permite que tenhamos uma moralidade.Uma concepção modesta dos seres humanos. percebeu. Os primeiros seres humanos apareceram em data muito recente. A extinção dos grandes dinossauros. Comparados com as outras criaturas. Somos criaturas com desejos. Sabemos agora que existimos por acidente evolutivo. e seria adequadamente modesta sobre o lugar dos seres humanos no plano geral das coisas. quando começaram a desenvolver teorias sobre o bem e o mal. os nossos Antepassados começaram logo a pensar em si mesmos como as coisas mais importantes da criação. guiado principalmente pela selecção natural. planos e esperanças. mesmo que "o universo" não dê importância a estas coisas. . Em tempo geológico. etc. Como dá a razão origem à ética. mas os traços principais parecem solidamente estabelecidos. temos capacidades intelectuais impressionantes. antes de mais. e após outros sessenta e três ou sessenta e quatro milhões de anos uma linha dessa evolução acabou por nos produzir. o facto de uma acção promover os nossos interesses - . necessidades.esse é o tempo decorrido desde o "big bang" . Evoluímos como seres racionais. Hoje sabemos que não é assim. Conseguimos exprimir essas razões e pensar sobre elas. Uma teoria satisfatória seria. como uma espécie entre muitas. existia para ser usado em seu benefício. Os pormenores desta imagem são revistos todos os anos. Porque somos racionais. mas não é inteiramente injustificada. "A vida do homem". Alguns imaginaram mesmo que todo o universo tinha sido feito para seu benefício. criou espaço ecológico para a evolução dos poucos mamíferos então existentes. O universo tem cerca de quinze milhares de milhões de anos . que o húbris humana é em boa medida injustificada.e a Terra em si foi formada há cerca de 4. "não tem mais importância para o universo do que a de uma ostra". num mundo pequeno e insignificante num pequeno canto do cosmos.5 milhares de milhões de anos. o facto de uma acção ajudar a satisfazer os nossos desejos. por isso.em resumo. Tomamos. O húbris humano é em boa medida injustificada. A evolução da vida no planeta foi um processo lento. nós damos. conseguimos tomar certos factos como razões para nos comportarmos de uma maneira e não de outra. O resto 270 COMO SERIA UMA TEORIA MORAL SATISFATÓRIA? da criação. chegámos apenas ontem. sensível aos factos sobre a natureza humana. Assim. no entanto. à medida que mais coisas são descobertas. mal chegaram. que só conhecia uma pequena parte desta história. Mas reconheceu igualmente que as nossas vidas são importantes para nós. escreveu. há sessenta e cinco milhões de anos (possivelmente em resultado de uma colisão catastrófica de um asteróide na Terra). defenderam que a protecção dos seus próprios interesses tinha uma espécie de valor fundamental e objectivo. como o egoísmo. emerge outro aspecto importante. Como os animais mais básicos. apesar de não haver diferenças entre os dois momentos que justifiquem distingui-los. A conclusão é que a razão requer imparcialidade: devemos agir de modo a promover os interesses de todos sem distinção.como um motivo a favor da sua realização. apesar de não existir qualquer diferença geral entre as raças que justifique isto. uma afronta à razão. ou grupo social. Se não conseguíssemos ponderar razões a favor e contra certas acções. isso significaria que a razão exige mais de nós do que podemos dar. antes de mais. uma noção como essa para nada nos serviria. Damos connosco impelidos a agir de certas formas em resultado da deliberação. O racismo significa considerar os interesses dos membros de outras raças como menos importantes do que os interesses dos membros da sua própria raça. Se o egoísmo psicológico fosse verdadeiro. em resultado de termos pensado sobre o nosso comportamento e as suas consequências. Usamos a palavra dever para assinalar este novo elemento da situação: devemos fazer aquilo a favor do qual existem as razões mais sólidas. nas palavras de Kant. Trata-se de uma afronta à moralidade porque é. enquanto recusamos aceitar um facto semelhante como razão noutro momento. Uma vez considerada a moralidade como uma questão de agir com base na razão. (No final do capítulo 9 referi este aspecto como a "ideia fundamental de Kant". podemos ser consistentes ou inconsistentes.) Isto acontece quando uma pessoa coloca injustificadamente os interesses da sua própria raça. 271 agiriamos por impulso ou hábito ou. Uma maneira de ser inconsistente é aceitar um facto como razão num momento. acima dos interesses correspondentes de outras raças e grupos sociais. A origem do nosso conceito de "dever" pode encontrar-se nestes factos. Ao raciocinar sobre o que fazer. o sexismo e o nacionalismo. Mas a ponderação de razões introduz um factor novo. oferece uma descrição totalmente falsa da natureza humana e da condi272 . Podemos fazer reparos semelhantes a outras doutrinas que dividem a humanidade entre os moralmente favorecidos e os desfavorecidos. Mas o egoísmo psicológico não é verdadeiro. por "inclinação". Capítulo 14 COMO SERIA UMA TEORIA MORAL SATISFATÓRIA? cão humana. precisando da cooperação mútua e com capacidade para cuidar do bemestar dos outros. apenas não se quis incomodar. A ideia de que as pessoas devem ser tratadas como merecem está relacionada com a ideia de que são agentes racionais com o poder de escolher . Jones tem problemas com o carro e tem o descaramento de lhe pedir boleia. ganhou o seu respeito e gratidão. ajudou-o sempre que pôde. nomeadamente a adesão a um conjunto de regras que. mas uma pessoa determinada que. serviriam os interesses de todos. pois. responsáveis pelo que escolhem livremente fazer.2 Tratar as pessoas como merecem e outros motivos A ideia de que devemos "promover os interesses de todos sem distinção". e recusou sempre auxiliá-lo quando precisou. e agora tem problemas e precisa da sua ajuda. depois disso. e c) a nossa inclinação natural para cuidar dos outros. natural para nós. vivendo em grupos. nomeadamente a imparcialidade. é. Evoluímos como criaturas sociais.se as pessoas não fossem racionais e não tivessem controlo sobre as suas acções. muito apelativa. Estes três aspectos funcionam em conjunto para tornar a moral não apenas possível. no entanto. Há agora uma razão especial pela qual ela deve ser ajudada. quando tomada como uma proscrição do fanatismo. mas também. pelo menos até certo ponto. Suponha que Jones é seu vizinho. não seriam responsáveis pela sua conduta e não poderiam ser recompensadas com o bem ou o mal por causa da sua conduta. Suponha que Smith tem sido sempre generosa. pela sua conduta anterior. no entanto. Ela não é apenas outro elemento da multidão. tratar os indivíduos como merecem ser tratados. Mas pense agora em alguém com a história oposta. Talvez o leitor pense que . Certo dia. uma agradável "adequação" teórica entre a) o que a razão exige. Os seres racionais são. além da obrigação geral que temos de ser prestáveis para com os outros. Imagine que. 273 Isto parece muito severo enquanto não ponderamos em alguns exemplos. por exemplo. e Jones não lhe deu boleia para o trabalho não tinha qualquer desculpa em especial. desejando a companhia uns dos outros. em vez de lidar com eles como se fossem apenas membros da grande turba da humanidade. num sentido importante. Há. justamente aplicadas. o seu carro não pegava. 14. enquanto os que tratam mal os outros merecem ser maltratados. pode objectar-se que tal máxima ignora o facto de as pessoas terem méritos diferentes. e os que escolhem comportar-se decentemente para com os outros merecem ser bem tratados. b) os requisitos da vida social. Devemos. pelo menos durante parte do tempo. Sem este controlo. É uma questão de tratar as pessoas como agentes responsáveis. uma questão de "respeito pelas pessoas" num sentido de certa maneira kantiano. como nos desenvencilhamos na nossa vida não depende apenas do que fazemos mas também do que os outros fazem. Isto é uma questão importante. É claro que. dizendo-lhes: Se te portares bem. Mas a prática de reconhecer os méritos é diferente.) No entanto. estaríamos a negar às pessoas (incluindo a nós mesmos) a capacidade de merecerem ser bem trata274 das pelos outros. Há uma diferença importante entre Smith e Jones. Terás merecido isso. Um sistema de acordos em que seja reconhecido o merecimento proporciona-nos uma forma de fazer isso.) É certo que as pessoas devem por vezes ser motivadas por uma preocupação imparcial com "os interesses de todos sem distinção". Respeitar o direito de as pessoas escolherem a sua própria conduta e ajustar então o modo como as tratamos de acordo com as suas escolhas é. o que faremos? Quais são as alternativas? Poderíamos imaginar um sistema no qual a única forma de uma pessoa assegurar um bom tratamento por parte dos outros seria de alguma forma obrigá-los a isso. em última instância. ou poderíamos imaginar que o bom tratamento é sempre uma forma de caridade.deve. que pelas suas próprias escolhas mostram ser merecedores de respostas particulares. apesar de ele não ter sido prestável. Para prosperarmos precisamos obter um bom tratamento por parte dos outros. Sem isto. temos de concluir que merece ser deixado por sua conta. A prática de reconhecimento dos méritos dá às pessoas controlo sobre a forma como vão ser tratadas pelos outros. reconhecer os méritos é uma forma de garantir às pessoas o poder para determinar os seus próprios destinos. ajudá-lo. Outros motivos. (Digo "parece" porque quero voltar mais tarde à questão de saber se o fracasso é aparente ou real. porque razão isso não deveria reflectir-se na forma como lhes retribuímos? Como seria se nós não adaptássemos as nossas respostas às pessoas desta maneira? Antes de mais. e face aos quais emoções como a gratidão e o ressentimento são adequadas. Mas este não é o único motivo moralmente digno de louvor: . as pessoas ficam impotentes. se nos concentrarmos no que ele merece. ainda assim. terás direito a ser bem tratado pelos outros. Assim. Adaptar o nosso tratamento dos indivíduos para o combinar com a forma como escolheram tratar os outros não é apenas uma questão de recompensar os amigos e manter rancores contra os inimigos. Porque vivemos com outras pessoas. Há outros aspectos em que a ideia de "promover de forma igual os interesses de todos" não parece conseguir captar a totalidade da vida moral. se acontecer uma situação na qual tenha de escolher entre ajudar Smith ou Jones. tem boas razões para escolher Smith. (O leitor poderia pensar que isto o ensinaria a ser generoso. . A sua atitude para com eles é inteiramente diferente da sua atitude face a outras crianças. Se tais motivos fossem eliminados. Mas notámos depois que isto não pode ser tudo o que há a dizer sobre as nossas obrigações morais porque (pelo menos algumas vezes) devemos tratar as pessoas segundo o que .Uma mãe ama e cuida dos seus filhos: não está preocupada em "promover os seus interesses" 275 . da lealdade e coisas semelhantes do nosso entendimento da vida moral. é claro.Uma compositora está interessada. o orgulho de fazer bem o seu trabalho e outros motivos semelhantes contribuem quer para a felicidade pessoal (pensemos na alegria de ter criado algo de belo ou a satisfação de ter feito bem um trabalho). Embora possa pensar que deve ajudar outras crianças sempre que pode. do ponto de vista moral. Devemos ter tão pouca vontade de eliminá-los como de eliminar o amor e a amizade. Luta por esse objectivo. apesar de poder fazer "mais bem" dedicando-se a outra coisa. quem desejaria viver num mundo sem amor e amizade? Há. não 276 devemos querer eliminar da vida humana. não está preocupada com os interesses deles apenas como parte de uma preocupação benévola relativamente às pessoas em geral. . demos uma justificação esquemática do princípio de que "devemos agir de maneira a promover de forma igual os interesses de todos". . O desejo de criar. Eles são seus amigos. 14. esse sentimento vagamente benevolente não é de modo algum comparável ao amor que tem pelos próprios filhos. e a amizade torna-os especiais.Uma mulher é leal aos seus amigos: uma vez mais. acima de tudo.3 Utilitarismo de estratégias múltiplas Com base em algumas observações sobre a natureza humana e a razão. muitos outros tipos de motivos de valor que entram em jogo à medida que as pessoas vão vivendo as suas vidas: Embora estes não sejam motivos geralmente considerados "morais". Como salientámos no capítulo 13. quer para o bem-estar geral (pensemos como estaríamos muito pior sem música nem bons professores). apesar de um bem total maior poder ser alcançado se dirigisse parte da sua energia para outra coisa. E. em qualquer dos casos. simplesmente por serem pessoas que pode ajudar. são motivos que. todos perderíamos muito com isso. em terminar a sua sinfonia. e em vez disso as pessoas se limitassem a calcular o que seria melhor.Um professor devota grande esforço à preparação das suas aulas. só um completo idiota em questões filosóficas proporia a eliminação do amor. vou voltar a esta complicação daqui a pouco). é óbvio que esses motivos serão razoavelmente preferidos nos princípios Utilitaristas. a resposta é que as nossas vidas seriam muito mais pobres sem estas coisas. As nossas vidas correrão melhor se. a criatividade artística e o orgulho na realização do nosso trabalho são importantes. nos orgulharmos do nosso trabalho. e assim por diante. E quando perguntamos por que razão o amor. a resposta acabou por ser que todos estaríamos muito pior se o reconhecimento do que as pessoas merecem não fizesse parte do nosso plano moral.] não é necessário que o fim que dá o critério da correcção moral deva sempre ser o fim para o qual tendemos conscientemente: e se a experiência mostra que a felicidade geral será atingida de forma mais satisfatória se os homens agirem com frequência com base em outros motivos que não a pura filantropia universal. cuja ideia central é que devemos agir com base na combinação de motivos que melhor promova o bem-estar geral. Quando reflectimos sobre regras. a amizade. referimonos ao padrão de bem-estar. 277 traços de carácter. desfrutarmos da companhia dos nossos amigos. O que é importante é que as pessoas sejam tão felizes e tenham tão boas condições de vida quanto possível. incluindo as acções. Uma ética que valorize "os interesses de todos sem distinção" aceitará esta conclusão. como afirmou Mill. defendeu a mesma ideia quando escreveu que: A doutrina de que a Felicidade Universal é o derradeiro padrão não deve ser entendida como se implicasse que a Benevolência Universal é o único motivo correcto. motivos e . Isto sugere a existência de um padrão único a operar por detrás da avaliação de todas estas coisas diferentes. no entanto. Isto não é uma ideia nova. Mas isso não significa que devamos ser sempre motivados por esse padrão no decurso habitual das nossas vidas.. mantivermos as nossas promessas. para a acção [.. costumes sociais.merecem individualmente. E este padrão deve ser utilizado para avaliar variadíssimas coisas. em vez disso. É. leis. amarmos os nossos filhos. E sublinhámos ainda que há outros motivos moralmente importantes que aparentemente nada têm que ver com a promoção imparcial dos interesses. A primeira vista parece que tratar as pessoas segundo o que merecem é muito diferente de procurar promover de igual modo os interesses de todos. o grande teórico utilitarista da época Vitoriana. possível pensar que estas diversas preocupações se relacionam entre si. 278 Talvez se dê então o caso de o padrão moral único ser o bem-estar humano (ou. Este pensamento de Sidgwick tem sido citado em defesa de uma perspectiva chamada "utilitarismo dos motivos". Henry Sidgwick. o bem-estar de "toda a criação senciente" . ou é sempre o melhor. Mas quando perguntámos o motivo pelo qual o que as pessoas merecem é importante. motivos e coisas do género. regras. políticas. motivos e métodos de tomada de decisão que permitiriam caracterizar uma pessoa cuja vida é simultaneamente satisfatória para si e contribui positivamente para o bem-estar dos outros.Os compromissos e relações pessoais que teremos para com amigos. O fim derradeiro é o bem-estar geral. e os fundamentos para abrir excepções.Os deveres e preocupações associados aos projectos que levaremos por diante. juntamente com as responsabilidades e exigências que os acompanham. Dir-nos-ia para cumprir as nossas promessas. como fizeram outras formas de utilitarismo.As regras quotidianas que teremos de cumprir a maior parte do tempo sem mesmo pensar. Podemos especificar um pouco mais a ideia por detrás do utilitarismo de estratégias múltiplas. .Uma estratégia. mas pode-se defender estratégias diferentes como meio para alcançar esse fim. como decidir conflitos. . Poderia ser extremamente difícil elaborar tal lista.As virtudes necessárias para fazer a nossa própria vida correr bem. No entanto. Mas por vezes não pensamos no bem-estar geral de todo em todo. em vez disso. como ser um músico. A perspectiva mais plausível poderia chama-se utilitarismo de estratégias múltiplas. Suponha-se que tínhamos uma lista inteiramente especificada das virtudes. poderia mesmo ser impossível. honestidade e outras virtudes familiares úteis. motivos e métodos de tomada de decisão que cumprisse melhor a função. não há qualquer outra combinação de virtudes. A acção correcta como a vida de acordo com o melhor plano. a trabalhar nos nossos empregos. A lista incluiria ainda uma especificação das relações entre os outros itens da lista . sobre quando pensar em abrir excepções às regras. Mas podemos estar bastante seguros de que incluiria um aval à amizade. um soldado ou um cangalheiro. . e . Esta lista iria incluir pelo menos o seguinte: . E suponha-se ainda que isto é a lista óptima para essa pessoa. família e outros. a perspectiva mais plausível deste género não se centra exclusivamente nos motivos. a obedecer à lei e a cumprir as nossas promessas. ou um indivíduo calcula que enviar dinheiro para a UNICEF faria mais facilmente o bem do que outra coisa qualquer. Por vezes visamo-lo directamente. nem inteiramente em acções e regras.Os papéis sociais que teremos de desempenhar. e assim por diante. como quando um deputado decreta uma lei para o bem-estar geral.o que tem prioridade sobre o quê.. 279 . limitamo-nos a cuidar dos nossos filhos. Num plano prático.Os motivos com base nos quais iremos agir. ou grupo de estratégias. mas nem . Mas os nossos melhores planos não precisam de ser idênticos. Uma pessoa pode realizar-se como padre enquanto outra nunca poderia viver assim. legitimando tais excepções. motivos e métodos de tomada de decisão que é melhor para mim. O meu melhor plano pode ter muito em comum com o do leitor. Podem ambos 280 personalidades e talentos diferentes. tendo em conta as minhas circunstâncias. personalidade e talentos . As pessoas sentiriam sem dúvida um maior sentido de obrigação caso as crianças a morrer vivessem nos seus próprios bairros e cidades. o roubo e o assassínio. As pessoas vivem além disso em circunstâncias diferentes e têm acesso a recursos diversos ."melhor" no sentido em que irá optimizar as possibilidades de eu ter uma vida boa. conter instruções para a educação das crianças. mas não o farão. juntamente com acordos sobre quando fazer excepções a essas regras e os fundamentos. optimizando ao mesmo tempo as possibilidades de as outras pessoas terem vidas boas. outras são oprimidas e perseguidas.algumas são ricas. Assim. mas nem sempre. ambos incluem regras contra a mentira.4 A comunidade moral Enquanto agentes morais. a estratégia óptima para viver poderia ser diferente em cada caso. mas pode revelar-se na realidade uma doutrina muito dura. cerca de um milhão de crianças morrerá de sarampo. De qualquer maneira. outras são pobres. No ano que medeia entre o momento em que escrevo e a publicação do livro. Incluirão ambos virtudes como a paciência. há uma combinação de virtudes. a identificação de um plano como o melhor será uma questão de avaliar até que ponto promove de igual modo os interesses de toda a gente. em vez de serem estrangeiros em países distantes. no entanto. apesar de poder frequentemente legitimar que as pessoas ajam com base em motivos que não parecem de modo algum utilitaristas. Por isso. As pessoas dos países abastados poderiam facilmente impedir isto. Presumivelmente. 14. e assim por diante.sempre. e pessoas diferentes poderiam precisar de cultivar virtudes diferentes. Em cada caso. algumas são privilegiadas. Chame-se a esta combinação o meu melhor plano. E haverá muito mais que o meu plano terá em comum com o seu. As pessoas têm . Isto pode parecer uma trivialidade piedosa. inclusivamente sobre as virtudes a desenvolver nelas. A coisa certa para eu fazer é agir de acordo com o meu melhor plano. e para nos refrearmos de magoar as pessoas. Desse modo. a gentileza e o autodomínio. devemos preocupar-nos com todos aqueles cujo bem-estar possa ser afectado pelo que fazemos. E iria provavelmente dizer para deixarmos de viver com luxo enquanto em cada ano milhões de crianças morrem de doenças que poderiam ser prevenidas. as vidas das pessoas poderiam incluir tipos diferentes de relações pessoais. a teoria geral é utilitarista. eles sofrem. os outros animais têm igualmente interesses que são afectados pelo que fazemos. onde quer que vivam. A imparcialidade exige a expansão da comunidade moral não apenas ao longo do espaço e do tempo mas também para lá das fronteiras das espécies. tomando o princípio de utilidade como padrão último. Poderão as complexidades que trouxemos à liça ajudar a resolver este problema? Uma das críticas tinha que ver com a punição. os seres humanos são apenas uma das espécies que habita este planeta. 14. . a "justificação" utilitarista básica da punição é tal que trata os indivíduos como meros "meios". Se as pessoas vão ser afectadas pelas nossas acções agora ou num futuro distante. Há ainda outra via pela qual a nossa concepção de comunidade moral tem de ser expandida. é difícil imaginar quaisquer circunstâncias nas quais o uso em larga escala destas armas se justifique. Uma consequência disto diz respeito às armas de destruição maciça. isso faria uma enorme diferença no nosso comportamento. isso não faz diferença. A nossa obrigação é avaliar todos os interesses de forma igual. é difícil explicar por que razão é errado. Como sublinhámos. tal como sofrem os seres humanos quando são tratados dessa forma. como Kant fez notar. Se os interesses de todas as crianças. Como Bentham sublinhou. De uma maneira mais geral. fossem tomados a sério. Bentham e Mill tinham razão em insistir que os interesses dos animais não-humanos têm de contar nas nossas preocupações morais. Se o bemestar das gerações vindouras for devidamente tido em consideração. Como os seres humanos. mas. Quando os matamos ou torturamos. excluir certas criaturas das considerações morais por causa da sua espécie não tem mais justificação do que excluí-las 282 por causa da sua raça. Isto é uma injustiça flagrante.281 Mas nós estamos a considerar teoricamente que a localização das crianças não importa: todas as pessoas estão incluídas na comunidade de consideração moral. as algas marinhas e a camada de ozono forem destruídas. temos agora a capacidade de alterar o curso da história de uma forma especialmente dramática. também não se limita a pessoas numa dada época. Se a comunidade moral não se limita a pessoas num local. Podemos imaginar casos em que o bem-estar geral é promovido pelo encarceramento de um inocente. O ambiente é outra questão na qual os interesses das gerações vindouras têm lugar de destaque: não temos de pensar que o ambiente é importante "em si" para ver que a sua destruição é um horror moral. Com o desenvolvimento de armas nucleares. nacionalidade ou sexo. basta ter em conta o que será das pessoas se as florestas tropicais.5 Justiça e equidade O utilitarismo clássico foi criticado por não dar conta dos valores da justiça e equidade. possuem-nos apenas em resultado do que John Rawls chamou "a lotaria natural". No que concerne à equidade. Uma sociedade justa. Suponhamos que um empregador tem de escolher qual de dois trabalhadores vai promover. apesar do seu esforço. por outro lado. simplesmente escolheu não trabalhar . e assim por diante. mas nada mais pode fazê-lo. as acções voluntárias de uma pessoa podem justificar afastamentos da política básica de "tratamento igual". apenas uma parte do tema da justiça. segundo a nossa teoria. porque o primeiro empregado merece ser posto à frente do outro. a empregada sentiria justificadamente que algo injusto tinha acontecido. no entanto. o outro não. A teoria da punição é. Suponhamos que a empregada do nosso exemplo era ultrapassada na promoção. a pessoa inocente nada fez para merecer ser alvo de um tal tratamento.) Naturalmente. Isso não é justo. por causa de uma coisa que nada fez para merecer. a perspectiva da punição daí resultante será próxima da de Kant. O segundo candidato. a inteligência superior ou outros dotes naturais. As pessoas pensam com frequência que é correcto os indivíduos serem premiados pela beleza física. o empregado não. porque o seu colega tinha um talento natural mais útil para exercer o novo cargo. Isto contraria uma perspectiva comum sobre este tema. tendo em conta as prestações anteriores de cada um. fez sempre apenas o mínimo que lhe foi pedido. isso pode levar a uma perspectiva da punição algo diferente da que os utilitaristas habitualmente defenderam. As pessoas não mereceram os seus dons naturais. mas é ele que agora obtém a promoção e os privilégios que a acompanham.a punição implica uma falha da imparcialidade. A primeira candidata trabalhou arduamente para a empresa. (Na prática. pelas acções que a pessoa em causa realizou. Levantam-se questões de justiça sempre que uma pessoa é tratada de forma diferente de outra. seria aquela na qual as pessoas um deles. isto não parece correcto. E por isso que não é correcto prender uma pessoa inocente.) Mas quando reflectimos. Mas isto justifica-se. as pessoas conseguem com frequência melhores empregos e uma mais larga fatia dos bens da vida apenas porque nasceram com melhores dons naturais. desistindo das suas férias para ajudar. fazendo trabalho extraordinário quando era necessário.Se uma política de tratamento das pessoas como elas merecem se justificar pelos padrões gerais do utilitarismo. na nossa perspectiva. segundo a nossa concepção. estamos a tratá-lo de maneira diferente dos outros . E uma resposta ao que ela fez. (E vamos presumir que não tem uma desculpa. Mesmo que o empregador pudesse justificar esta decisão evocando as necessidades da empresa. pois só pode promover 283 arduamente. os dois trabalhadores serão tratados de maneira muito diferente: um será promovido. A empregada mereceu a promoção. (De facto.) Ao punir alguém. Ela trabalhou mais. Mas isto está correcto. No entanto. 14. qualquer que ela seja. pode ainda ter um longo caminho pela frente. a Terra continuará habitável durante mais mil milhões de anos. a filosofia moral. é importante recordar que inúmeros pensadores de mérito tentaram criar uma teoria satisfatória. a par de outros estudos humanos. e não sendo promovidas apenas porque nasceram com sorte.6 Conclusão Como seria uma teoria moral satisfatória? Apresentei os traços gerais da possibilidade que me parece mais plausível. Como Derek Parfit observou. Isto sugere que é sensato não ter pretensões demasiado grandiosas para a nossa própria perspectiva. e a história considerou que apenas foram parcialmente bem sucedidos. Mas há uma razão para estar optimista. Se não nos destruirmos. 285 .284 pudessem progredir nas suas carreiras por meio de trabalho árduo (tendo todas oportunidade de trabalhar). e a civilização tem agora apenas alguns milhares de anos.
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