Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php? pid=S0100-34372008000100014&script=sci_arttext>. Acesso em: 19 dez. 2012.Estudos de Psicanálise versão impressa ISSN 0100-3437 Estud. psicanal. n.31 Belo Horizonte out. 2008 Humor e Psicanálise* Humor and Psychoanalysis Marília Brandão Lemos Morais** Círculo Psicanalítico de Minas Gerais Endereço para correspondência RESUMO O humor, considerado pelo próprio Freud um dom precioso e raro e, também, teimoso e rebelde, distingue-se do chiste e do cômico na sua elaboração teórica de 1905, Os chistes e sua relação com o inconsciente, e de 1927, O humor, ensaio apresentado por ele ao X Congresso Internacional de Psicanálise. Se a vertente trágica que inspirou o pensamento psicanalítico e sua práxis já foi por muitos explorada, a vertente do humor, diferentemente, esteve por longos anos deixada de lado pelos seguidores da psicanálise. Winnicott e Ferenczi deram importantes contribuições sobre o humor e o brincar na clínica. Em 1957, Lacan revisita o assunto com o seminário As formações do inconsciente. Os psicanalistas de agora têm retomado (ou recobrado) o humor, considerado como o outro lado do trágico, frente e verso, trágico e cômico e valioso recurso a ser utilizado na clínica psicanalítica e na própria vida. O chiste, o humor e o riso podem ser considerados formas efetivas de se lidar com o mal-estar. Freud já notava nos sonhos algo curioso: a presença neles de alguma coisa semelhante aos chistes (carta de 11/09/1899 a Fliess). necessita do outro para referendá-lo. Laughter. verse and reverse. ABSTRACT Humor. Na sua correspondência com Fliess (carta a Fliess de 12/06/1897). differs from jokes and comedy. de Henri Bergson. os alicerces fundamentais da psicanálise já estavam estruturados na obra freudiana: inconsciente. publicou o livro Os chistes e sua relação com o inconsciente. a valuable tool to be used in the psychoanalytical clinic and in life itself. Trágico. Outra obra foi Komik und Humor. has been neglected by psychoanalytic followers. Freud só resolveu publicá-lo quando compreendeu o mecanismo da transferência e escreveu o Posfácio). o livro O riso. Comic. só envolve o sonhador (a não ser quando narrado). E ainda. nos atos falhos. Ética da psicanálise. do filósofo . no mesmo ano da publicação dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) e do Caso Dora. objeto. obra de grande bojo teórico. Mas. Winnicot and Ferenzi presented valuable contributions on humor and playing in clinical work. chistes e. A importância que Sigmund Freud atribuía aos chistes era antiga.Palavras-chave: Humor. interpretação. Chiste. conceito relacionado à sexualidade infantil e à sexualidade perverso-polimorfa. Cômico. Riso. Keywords: Humour. Ele sempre temperava suas inquietações fundamentais com o relato de chistes. como a do prazer preliminar. Psychoanalytic ethics. remonta aos primórdios da psicanálise. na segunda metade do século XIX. Lacan revisits the topic in the Seminar “The shaping of the Unconscious”. In 1957. transferência. publicado originalmente em 1899 na Révue de Paris. Jokes. e vários autores escreveram sobre eles. sintoma.has already been widely explored. Drama. no qual tentava desvendar o que torna uma piada risível e o que é o riso para a economia psíquica. viewed as the other side of tragedy. mas este foi publicado em 1900. humor. No campo da filosofia. on the other hand. nas práticas religiosas e na arte. Em 1905. Tragic. durante os primeiros anos do século XX. o chiste é a formação do inconsciente que mais se insere no social. Em 1905. Psychoanalysts have retaken humor. redigido em 1901 e mantido na gaveta (na verdade. humor and laughter can be considered effective ways of dealing with discomfort/uneasiness. Vale dizer que os temas do riso e do cômico estavam na moda. Drama. as can be seen in his theoretical study of 1905 “Jokes and their relationship with the Unconscious” and also in the1927 essay “Humor” presented by him in the X International Congress of Psychoanalysis. antes e depois de Freud. defesa. Algumas concepções fundamentais dos Três Ensaios foram incorporadas à teoria dos chistes. If the tragic approach -that inspired the psychoanalytical thought and its practice. considered by Freud as stubborn and rebellious as well as a precious and rare gift. enquanto aquele. um pouco mais tarde. aparelho psíquico. tragic and comic. Ele começou o livro Os chistes e sua relação com o inconsciente ao mesmo tempo em que a Interpretação dos sonhos. Quando escrevia A interpretação dos sonhos. ele fala de seu interesse pelas piadas sobre judeus e confessa que colecionava uma série delas. pulsão. enquanto o sonho é solipsista. mas também na vida cotidiana. o criador da psicanálise procurou estudar a lógica do inconsciente e mostrar que ela está presente não apenas nos sonhos e sintomas. era conhecido por Freud e foi incorporado e criticado por ele no seu livro de 1905. Jokes. a ciência estava impregnada de solenidade. Por meio do atalho do humor. Já em Função e campo da fala e da linguagem. O recurso ao falei de brincadeira ou é de mentirinha pode ser a maneira de uma verdade ser anunciada. sendo constituído. no seu próprio não-sentido. segundo Ernest Jones. e o humor e o riso seriam incompatíveis com a seriedade dela e deturpadamente associados à puerilidade e ao descompro-misso. resgata a importância dos chistes em seu seminário As formações do inconsciente . pelo menos até recentemente2. o chiste desafia o real. não fora capaz de ser dita. O que o discurso freudiano vai enfatizar na técnica do chiste e do seu efeito humorístico são os mesmos mecanismos da condensação e deslocamento. E sempre manteve com ele uma relação ambivalente: apesar de ter escrito a Ferenczi que o inseria entre as coisas boas de sua vida. Talvez porque. ao ler as provas de A interpretação dos sonhos. pelos quais o inconsciente se apresenta. sendo aqueles substituídos pelas cavilações dramáticas” 3. diz que considera “mais importantes que este estudo as minhas contribuições à psicologia das religiões. o sujeito assiste. Se o humor consiste numa forma inteligente de lidar com a dor e o sofrimento e ainda tirar prazer disto. fazendo dela um saber triste ou sério. ao mesmo tempo em que tangencia a sua própria divisão. mas. E. Se o chiste está estruturado como uma formação do inconsciente. ao contrário de seus outros assuntos. através do faz-de-conta: Foi sem querer querendo. Esta verdade se diz através de um sentido insólito brotado do non-sense. de 1927. O próprio Freud. do absurdo. sem pagar o preço neurótico da angústia ou do padecimento dos sintomas.Theodor Lipps1. destacando as dimensões do sentido e do desejo presentes na sua produção pelo sujeito e tê-lo inserido no corpo teórico da psicanálise. Qualquer tentativa de explicar ou aprisionar esta verdade num discurso formal levaria à perda do seu sentido humorístico. seguido da descarga do riso. Isto porque. nos quais ele acrescentava notas de rodapé. em 1957. que é sempre surpreendente e fugaz. continua válida a constatação de Jones. reforça esta constatação. em que o efeito do inconsciente foi demonstrado nos confins de sua sutileza”. que estava. mas. O humor atua como álibi de alguma verdade do sujeito que. de 1953. este ensaio foi o menos consultado pela comunidade psicanalítica. Fliess. nesta gratuidade criativa da linguagem. porque a mais transparente. posfácios e modificações nas edições posteriores. até então. e diz que foi perdida a sintonia da psicanálise com o registro do trágico e este fixou-se no registro do drama. naquele momento. o livro dos chistes e o ensaio O Humor nunca foram mudados ou sofreram apenas pequenos acréscimos. no pequeno e importante ensaio O Humor. é por isto mesmo um trânsito para que alguma coisa da ordem do recalcado abra passagem e se mostre. O criador da psicanálise utilizava os chistes e o humor em seus textos e em sua vida. Apesar da importância do livro Os chistes e sua relação com o inconsciente. do paradoxo. “Numa brincadeira pode-se até dizer a verdade”. em seu Estudo Autobiográfico. e de ser um assunto sempre atual. sua condição sexuada e mortal. por isso acredita-se que o livro Os Chistes tenha sido uma resposta deste às críticas de seu amigo. no seu tempo. diferentemente. na sua própria vida observamos isto. só retomou o tema vinte e dois anos depois. atos falhos e sintomas. como diz o Chavez do programa humorístico da TV. após escrever o livro Os Chistes. queixara-se do uso freqüente dos chistes nos textos de Freud. Mas a originalidade do livro de Freud e sua contribuição maior foram inscrever o chiste como uma formação psíquica do inconsciente. ao qual se segue uma revelação de sentido. Lacan. como nos sonhos. Joel Birman apresenta uma hipótese para este desinteresse dos psicanalistas pósfreudianos pelo tema do humor e do riso. enuncia Freud no seu livro Os chistes e sua relação com o inconsciente. Lacan escreve que esta obra (Os Chistes) era “a mais incontestável. E a produção escassa de artigos sobre este tema. Ferenczi e Winnicott ofereceram importantes contribuições sobre o humor e o brincar na clínica. de 1907”. pelos psicanalistas pós-freudianos. em duas situações descritas por Peter . tendo em vista que esse seminário só foi publicado na França em 1998 e no Brasil em 1999. “pois o que existe de risível e irônico nas diferentes formações do inconsciente foi devidamente recalcado. Freud teria dito: “Setenta anos de existência ensinaram-me a aceitar a vida com alegre humildade [. ao mesmo tempo triunfal. aos 71 anos. porém elegeremos o humor com o papel de destaque que lhe é dado por Freud no seu texto de 1927 – O Humor. Freud foi obrigado a assinar um documento para a Gestapo dizendo que não havia sofrido maus-tratos. graça de espírito. em sua associação íntima com a morte.] Não gosto de meu palato artificial. É articulado e depende totalmente da linguagem e do deslizamento de sentido da palavra. num segundo tempo. A referência de Freud à terceira pessoa coloca em cena o Outro como o lugar . ainda prefiro a existência à extinção. o humor marca o traço do particular. Por exemplo. O humor seria uma criação simbólica repentina. O humor permite a inscrição da intensidade pulsional no universo das representações.. ele acrescentou de próprio punho: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”4. quando através da surpresa e do inesperado eclode um sentido novo.. em 1926. em 1938. ainda amava a vida e pode expressar. o Gordo e o Magro). o humor freudiano. Ou de como o humor pode ser um último véu a cobrir e descobrir o horror.. o mesmo Gay reconhece que esta atitude demonstrava uma grande coragem e vitalidade de Freud e “seu senso de humor irreprimível”. Consideraremos tanto as piadas quanto o humor apresentações privilegiadas do Witz. quando – acometido por um câncer de mandíbula que lhe causava muito sofrimento – assistia ao advento do nazismo na Europa. Após assiná-lo. no início. fez o seguinte comentário: “Que progressos estamos fazendo. demonstram este fino humor. ainda que em situações-limite. espírito. O termo remete também para o verbo wissen que significa saber. não permito que nenhuma reflexão filosófica me faça perder o gozo das coisas simples da vida” 7. vinte e dois anos após ter escrito o primeiro livro sobre o assunto. eles se contentam em queimar meus livros”6. especialmente na sua velhice. Permite que o sujeito afirme seu desejo contra a pulsão de morte que o habita. dom de replicar pronta e alegremente. Na Idade Média. Alguns episódios da vida de Freud. teriam queimado a mim. Esta tirada de humor foi. entretanto. Mas. inteligência. pois só através dele é possível divertir-se no infortúnio. comenta: “É. após a prisão e interrogatório de sua filha Anna. na época de deixar a Áustria dominada então pelo nazismo. um saber alegre. Humor lúcido e trágico. engenhosidade. o Charles Chaplin do cinema mudo. hoje em dia. um gaio saber. é tragicômico. revela a ambivalência e o paradoxo próprios do registro do tragicômico e do humor negro. o dom de quem é espirituoso. Enquanto o cômico tende à universalidade (por exemplo. nesta estranha proximidade da angústia e do riso. traduzido na edição brasileira por Chiste. Prefiro. ao ser levado para execução.. é preciso ser da paróquia para se entender uma piada ou um dito espirituoso. interpretada por Gay como uma tentativa inconsciente de suicídio. alegre. ao saber que seus livros estavam incluídos nos que seriam queimados em praças públicas das cidades alemãs e nos campi universitários. ou seja. Sábias palavras de alguém que. O termo Witz. Mal sabia ele o quanto estava sendo profético! Numa conversa com o jornalista americano George Sylvester Viereck. apesar dos sofrimentos pelos quais passou. Em maio de 1933. que aponta tanto para a vida como para a morte. a semana está começando otimamente” 5. Esta ambigüidade. o espírito da coisa. É famoso o chiste de humor negro escrito por Freud. ou seja. tem raízes no romantismo alemão e é de difícil tradução para o português. Não sou pessimista. um palato postiço a nenhum. Os franceses preferiram esprit. esperteza. caso as autoridades nazistas reconhecessem ali uma fina ironia. uma vez que a ousadia do médico vienense punha em risco sua própria vida. porque a luta para mantê-lo em função consome minha energia. a sua criatividade e escrever sobre o valioso dom do humor para aliviar as dores da existência. o do condenado à morte que numa segunda-feira pela manhã. Podemos traduzir do alemão por dom de contar acertadamente algo alegre e divertido. É o humor enquanto afirmação do desejo diante da adversidade e da morte.Gay (e citadas por Daniel Kupermann). Mas o humor possui. No ensaio de 1927. O assistente espera uma emoção do humorista (que ele fique zangado. atua como um substitutivo para a liberação destes afetos. “qualquer coisa de grandeza e elevação”8. Freud enuncia. o conceito de narcisismo ainda não fora desenvolvido). A essência do humor é poupar afetos. que lhe coloca à disposição os meios para executá-lo. são tecidos alguns comentários sobre o humor. ainda. raiva. um mecanismo de defesa. o prazer no cômico provém de uma economia na despesa com a representação. polissemia. O deslocamento no humor foi inicialmente considerado por Freud. ou horrorizado. sentimos o mesmo prazer que ele. de uma economia na despesa com o sentimento (os afetos). E repete que há duas maneiras pelas quais o processo humorístico se faz. em 1905. Está em conexão com o infantil. Assim. No último capítulo do livro dos Chistes.. ao invés do afeto esperado. A despeito do triunfo do narcisismo enfatizado por Freud. dor. o humor pode ser dirigido ao Eu do próprio humorista ou a outra pessoa e causa prazer ao humorista e àquela que é o ouvinte não participante. Estamos lidando. O desejo se afirma perante a pulsão de morte e a pulsão traça novos caminhos simbólicos. humor do sorriso entre lágrimas. que faltam ao chiste e ao cômico: o Eu se recusa a sofrer as provocações impostas pela realidade. ainda assim vale a pena uma boa risada. equívoco e jogos de palavras. pois apenas na infância existem afetos dolorosos dos quais o adulto ri hoje. podemos hoje acrescentar. ao custo de uma liberação de afeto que não ocorre”[…] (p.. Freud retoma o tema do humor exatamente onde tinha terminado no livro Os chistes e sua relação com o Inconsciente. segundo Freud. permitindo que o desejo abra caminhos. Alfred Hitchcock. de si mesmo. Significa a vitória do Eu sobre o mundo externo e a vitória do princípio do prazer. Mas esta expectativa é frustrada e. assim como o humorista ri de seus afetos dolorosos atuais. coloca-se no lugar deles [. uma das quais não toma parte no processo. após as contribuições de Lacan: o chiste é da ordem do simbólico. 257).. a realizar a tarefa de impedir a geração de desprazer. não é necessário uma outra para a fruição do prazer humorístico. além da pessoa de carne e osso que a encarna. humor úmido.] O prazer do humor[. que com seu filme Melinda e Melinda nos mostra uma mesma história vista pelas duas janelas de Tchekhov. Woody Allen. da ordem do real. leva a uma desidea-lização e desmontagem das certezas. Ou pode efetuar-se entre duas pessoas. ternura. O humor completa o seu curso dentro de uma única pessoa. Tchekhov (que nos diz que a realidade pode ser vista tanto pela janela do cômico como pela do trágico). e o prazer no humor. encontra outros objetos de satisfação. E.. mas é tornada objeto pelo humorista.] procede de uma economia na despesa do afeto. etc. que o ser humano é insuficiente. da ordem do imaginário e o humor. a partir de fontes internas. a do drama e a da comédia. Mas. característico do inconsciente. escuta uma pilhéria. apesar dos afetos dolorosos que interferem com ele. na questão do humor. e quando a vida mostra a sua imperfeição e falha. com toda sua ambigüidade. ou manifeste sofrimento numa determinada situação). que o prazer nos chistes procede de uma economia na despesa psíquica com a inibição. o cômico. Quando uma pessoa se torna o humorista. não . do código da linguagem. A natureza do sentimento economizado a favor do humor pode ser compaixão. do modo de funcionamento do processo primário. Poderíamos buscar exemplos de humor na literatura e no cinema com Cervantes.do simbólico.. O humor “é um meio de obter prazer. Existe uma exaltação do Eu cuja tradução seria: “Sou grande ou bom demais para me deixar atingir por estas coisas” (nessa época. O humor torna o sujeito capaz de rir de si mesmo e mostra que toda verdade é incompleta. o processo de prazer se faz nela mesma e o outro se torna a platéia que retira prazer dela. quando o humor é comunicado ou compartilhado pelo humorista. o humor denuncia o fracasso e a impossibilidade de realização das ilusões narcísicas do Eu. é um destes caminhos onde o princípio do prazer triunfa sobre o princípio da realidade. todo poder constituído é gozado. onde. constatado pela risada. que a conta ao terceiro e produz nele um efeito. O humor é transgressor! O humor enquanto desconstrução de poder está exemplificado por Birman com o famoso humor judaico. Assim. nossas imperfeições. O humor. como um pai para seu filho. assim como a arte. as drogas. enquanto cultura minoritária e enquanto ethos. É das funções psíquicas mais elevadas e reconhecidas pelos pensadores e intelectuais. que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças. ou do outro. através de uma desmontagem social promovida pelo chiste. quando foi escrito o livro Os chistes e sua relação com o inconsciente. contribuiu para a sua própria constituição. não se identificar com o agressor e esvaziar em ato. uma vez que se presta apenas à produção de prazer ou a serviço da agressividade. nem de mortificação masoquista. o humor possui uma dignidade dos processos que a mente humana cria para se desviar do sofrimento. as teorias perdem sua pomposidade. produzindo um efeito simbólico. o auto-abandono. “O humor não é resignado. Na virada do século XIX para o século XX. pelo riso que provoca. O judaísmo utilizou-se do humor para a sua sobrevivência. desviam do interdito e dali saem com um dito espirituoso que os faz rir de si mesmos. seus conflitos. segundo Freud. as religiões. em cena social. dignidade esta que o chiste não possui. na situaçãolimite de encontro com o real. uma Áustria anti-semita foi o palco para a criação da psicanálise. diz ele. O que o humor transmite significa: “Olhem! Aqui está o mundo. e pelos nossos companheiros de descrença. pelo acaso e pela morte. estamos ameaçados constantemente pelo sofrimento psíquico provocado pela nossa condição humana — a morte. nossas falhas. existe nele um levantamento da inibição e uma criação. São os humoristas aqueles que captam a fragilidade do homem. onde o desejo se realiza e se contrapõe à pulsão de morte. ameaças do mundo externo. Se o chiste é um modelo para se pensar o inconsciente. diante das adversidades impostas pelo destino. sem perder a graça. o aniquilamento presente no gesto anti-semita”12. de um jogo de palavras. como forma de reação criativa ao anti-semitismo.com o triunfo do Eu. Em face destas exigências. Enquanto homens. a pulsão se inscreve no campo das representações. passiva. São eles que revelam nossas contradições. sua dor e seu sofrimento. mas com a afirmação teimosa e rebelde do erotismo e do desejo do sujeito. pois ele é liberador e até mesmo enobrecedor. Não é por acaso que a singularidade da criatividade judaica. pois é composto apenas de palavras. o êxtase. o delírio. “O humor é um dom precioso e raro!”11. mas opuseram-se ativamente a isto. e faz o outro rir. dentro do campo da saúde psíquica. Freud considera o humor uma contribuição do superego ao cômico. as sublimações. mas rebelde”9. Birman diz que “transformar a agressão mortífera em chiste e ainda gozar com o que se realiza. O caráter rebelde do humor se opõe à resignação masoquista do sujeito diante do real e aos imperativos sociais. o humor é uma forma sublimada de lidar com as dores do existir. a natureza com suas fúrias —. sua finitude. Através do humor. criamos defesas regressivas contra o sofrimento psíquico que são a neurose. . Apesar de o humor não propiciar um prazer de intensidade semelhante ao chiste. este prazer tem um valor maior. A piada só é piada se o terceiro é tocado por ela e a referenda com o riso. propiciadora da circulação do desejo e da abertura de novas vias de discurso. os outros homens. quando uma representação ICS pega carona numa pré-consciente e apresenta-se ao consciente do piadista. a qual permeia este livro recheado de piadas sobre judeus. cravam as unhas no mal-estar. O chiste é considerado um modelo do ICS. o envelhecimento. um superego complacente para com o Eu. digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!” 10. Os judeus não se colocaram numa posição de vítimas. a doença. as ideologias mostram sua face frágil e nua. implica. para a tradição judaica. Algo da ordem do registro do trágico. pelo que ele tem de revolucionário. a uma aproximação do material inconsciente. O riso seria um signo de que algo fundamental produziu-se no analisando e abre para ele novos canais de acesso à experiência analítica. A peculiaridade deste ato é que ele apresenta um efeito a posteriori na resposta que provoca no analisando. pois esta só será piada num segundo momento. do livro Os chistes e sua relação com o inconsciente. depois que o médico o detecta e o apresenta a ele. A criação existente no humor surge da insistência pulsional. uma sensação de desamparo e estranheza. confirmada pelo desencadeamento do riso. 195). as comportas para o além do princípio do prazer. Existe uma aproximação entre a experiência do estranho e os efeitos esperados do ato psicanalítico. que traz consigo uma mudança e aproxima o ato psicanalítico do ato político. Quando o analisando ri de uma intervenção do psicanalista. paradoxalmente. o princípio do prazer abriria. ainda que o saber produzido pela análise provoque dor. é ele próprio a terceira pessoa que ri. que pode tanto chorar. surge do acaso e mobiliza o sujeito a sair de um lugar repetitivo para um lugar do desafio criativo. considera o humor uma ferramenta efetiva de intervenção clínica. surja. se houver o desencadeamento do riso no outro. Numa nota de rodapé. que a verdade do ato psicanalítico só é dada a posteriori. Isso demonstra. íntima bastante para captá-lo. E nos faz pensar na proximidade do humor com o estranho. Existe uma aproximação entre o ato psicanalítico. que não é resignado. demonstram regularmente o hábito de confirmar algum fato pelo riso quando consigo dar-lhes um quadro fiel de seu inconsciente. Tal fato sujeita-se. que não chega a se consolidar e origina uma liberação afetiva e uma elaboração psíquica. mas rebelde. naquilo que é verdadeiramente não familiar. nova. como rir com uma risada estridente. ocultado à percepção consciente. 1980. possibilitando o encontro com o horror presente nos meandros do psiquismo. seguidos de um rápido preparo para a inibição. que anunciem que vão contar uma estória e não uma piada. mais uma vez. a intervenção do psicanalista provoca uma surpresa e um choque no analisando. quando o analista faz uma intervenção e só se sabe se é uma interpretação a posteriori. O ato analítico não pertence exclusivamente ao patrimônio psíquico do analista. Assim como a interpretação. naturalmente. O ato psicanalítico promove efeitos de saber sobre o sujeito e provoca o estranho e a possibilidade do encontro com algo familiar. contornando as interdições e abrindo novas possibilidades de simbolização. o horror mesclado ao riso. (FREUD. Uma porta se abre através do riso. neste caso. . mas o alvo de seu riso é também uma parte alienada de seu Eu. no capítulo VI. justamente por promover esta subversão. o estranho e o humor. quando é tocado no decorrer de uma análise. da teimosia do humor. o Unheimliche. sob tratamento psicanalítico. Isto mostra que ele é capaz de reconhecer como familiar aquilo que estava escondido nas dobras de seu psiquismo.O psicanalista Abrão Slavutzky13 sempre diz aos seus amigos contadores de piadas. mostrando que algo foi tocado. ao produzir o efeito simbólico no paciente. p. Freud fala sobre o riso como um dos efeitos regulares da intervenção analítica: Muitos de meus pacientes neuróticos. o riso úmido de lágrimas. Pode-se rir. mas produz-se a partir de uma relação transferencial e pode ser avaliado pelos efeitos reais no psiquismo do analisando. Daniel Kupermann. diz Freud. riem mesmo quando o conteúdo desvelado não justifica absolutamente o riso. Lacan faz uma diferença entre ato e ação: o ato significa alguma coisa de inaugural. em seu livro Ousar rir. do não-familiar. pode desencadear uma risada estridente e entreabrir caminhos para que alguma coisa da ordem do não previsível. a ponto de conseguirem rir de si mesmos. Se na neurose o sujeito se mantém preso numa relação dramática com seu sofrimento e na sua maneira de estar no mundo. de um repetitivo tango argentino ou dos dolorosos lamentos de um . Nos primórdios da psicanálise. as quais tinham a catarse como tratamento. encontrando-se aí a dimensão trágica do sujeito. o sujeito mudaria o ritmo da dança da vida. uma purgação. ou seja. através de uma desdramatização narrativa desta seriedade exagerada e fatalista que os pacientes atribuem aos seus males. ao riso. de modo a se defrontarem de uma outra forma com o imprevisível brotado dos labirintos de seu psiquismo. Em O mal-estar da civilização. ele deslocou-se do drama ao chiste. De 1893 a 1905.O dito humorístico só é humorístico e desperta o riso se preencher determinadas condições: a surpresa. correspondente ao ático práttein. não se levando tão a sério e podendo confrontar-se com as suas falhas com uma maior leveza. E a palavra drama provém do dórico drân. no qual está presente o ethos da psicanálise. a dimensão trágica da existência. permitindo-lhe desgarrar-se do drama da neurose. com o conceito de pulsão de morte já criado. o discurso freudiano deslocou-se do registro do trágico para a teoria dos chistes. lapsos e sintomas. pois no trágico existe sempre o humor como possibilidade. se a psicanálise traz o convívio e a proximidade com o trágico. Em A Psicoterapia da Histeria. ao lado dos sonhos. provoca a liberação de tais afetos. para uma teoria da fantasia inconsciente. Freud faz uma referência à desdramatização do infortúnio (termo usado por Joel Birman) na experiência analítica14. o riso. A psicanálise carrega em si a dimensão do trágico. uma mimesis. a experiência analítica oferece uma possibilidade de esvaziamento deste gozo masoquista. carrega também implícita a desdramatização da existência. algum dia. já que a neurose é a encarnação do drama e possibilita a construção. ele reconhece que a psicanálise deveria desdramatizar a miséria histérica e reafirma uma infelicidade banal à qual estamos sujeitos enquanto humanos e da qual não podemos escapar. uma catarse. ao contrário do drama. em que habita o ressentimento a ser transformado em masoquismo e melancolia. agir. numa teoria sobre a tragédia. Neste fragmento de discurso. atos falhos. através da compaixão e do horror desencadeado nos expectadores. ao dizer que o tratamento analítico deveria transformar a miséria histérica em infelicidade banal15. ou seja. a tragédia é a representação imitadora. partindo para o pólo oposto. Em 1905. a ambigüidade. Mas. Ele retirou este conceito da Poética de Aristóteles. Segundo Aristóteles. de 1893 a 1905. É justamente neste caráter tragicômico que reside a experiência da ação humana. fundada agora no conceito de inconsciente. de instrumentos para se lidar com esta tragicidade inerente. pelo sujeito. num movimento para o trágico da existência. num movimento da teoria das psiconeuroses. o afeto doloroso suprimido. No intervalo de 12 anos. de uma ação séria que. Freud referencia o método catártico como uma proposta terapêutica para regular e eliminar os efeitos nocivos dos afetos penosos sobre o psiquismo. pois o humor se insere nesta tradição judaica como meio de superar o sofrimento e as adversidades produzidas pela diáspora. ele afirma que o mal-estar e a infelicidade banal estão registrados na condição humana. Os impasses do sujeito puderam ser interpretados como algo da ordem do trágico e não da do drama. que protege o indivíduo da passagem ao ato. a psicanálise foi constituída. Ou seja. da qual não se pode escapar. Foi fundamental a condição judaica de Freud para inscrever o humor e as piadas em uma das formações do inconsciente. A mesma situação que despertou o riso passa a não ter graça se contada de outra maneira. polaridade esta na qual o discurso psicanalítico foi tecido. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago. S. FREUD. o humor e o riso aparecem como formas efetivas de se lidar com o mal-estar. In:___. v. do poder instituído. D. v. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Imago. H. In:___. S. para que o sujeito reafirme o seu desejo e restaure o seu direito de existir numa comunidade social. VII. (Org. Um estudo autobiográfico [1925(1924)].. Rio de Janeiro: Imago.XX. 1980. pelas beiradas. FREUD. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas .. Os chistes e sua relação com o inconsciente [1905]. v. In:___. Rio de Janeiro: Imago. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas.II. pois que é uma forma de desconstrução. FREUD. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 1989). v. e político. Rio de Janeiro: Imago. p. 1980. Finalizando. Rio de Janeiro: Imago. v. S. é estético.Edição standard brasileira das obras psicológicas completas . 1980. 1980.1979 (Os Pensadores). 1980.fado português para uma bossa-nova. In: ___. IX. FREUD. Escritores criativos e seus devaneios (1908[1907]). . S. In: ___. In: SLAVUTZKY. 2001 (Publicado originalmente na Révue de Paris. Fragmentos da análise de um caso de histeria [1905 (1901)].Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. S. v. v. O “estranho” [1919]. S. 2005. XXI. Rio de Janeiro: Imago.A. BIRMAN. KUPERMANN. Rio de Janeiro: Imago. BERGSON. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago. A interpretação dos sonhos [1900]. J. E nesta dimensão trágica da existência. pois criativo contorna os interditos e causa prazer da ordem da sublimação. IV. Este é um dos objetivos da análise. 1980.Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. VII. Poética. FREUD. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas . In:___.XVII. se não fosse cômico: humor e psicanálise. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. O humor [1927]. Frente e verso: o trágico e o cômico na desconstrução do poder. S. São Paulo: Martins Fontes. 1980. Sem perder a graça! Referências ARISTÓTELES. 81-109.. A. S. 1980. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Seria trágico. In:___. XXI. o chiste. v. A psicoterapia da histeria [1893-1895]. FREUD. FREUD. São Paulo: Abril Cultural. In:___. VIII. FREUD.). S. 1980. Rio de Janeiro: Imago. 1980. O mal-estar da civilização [1930 (1929)]. FREUD.In:___. S. FREUD. o humor é ético porque é afirmação do desejo ante a pulsão de morte. In:___. v. v. 1989.C. 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CEP 30130-311 Recebido em 02/05/2008 * Psiquiatra. In: SLAVUTZKY. 1989. Texto apresentado no Seminário do Texto Freudiano do CPMG em outubro de 2007. 48. n. Sigmund... 2005. v. (Org. Freud: uma vida para nosso tempo. 5 FREUD.).363. Prefácio do editor inglês [1964] a Os chistes e sua relação com o inconsciente. KUPERMANN. se não fosse cômico.. 1980. cit. Frente e verso. 14 BIRMAN.. 1 Apud STRACHEY.. A. v. cit. Freud: uma vida para nosso tempo. Seria trágico. A. A psicoterapia da histeria.2001.).. 8 FREUD. 15 FREUD. Trad. (Org. A. mas não a piada: o humor entre os companheiros de descrença. p. cit.13. 536. Sigmund. set. cit. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2 Jones apud KUPERMANN. p. p. Abrão. sala 801 Funcionários Belo Horizonte . In: Slavutzkyi.. Frente e verso. cit. A. KUPERMANN. v. 190. James. (Org. op.). ibid. D.258.. Peter. In: SLAVUTZKY. 2005. 567. cit. São Paulo: Companhia das Letras. cit. p. O valor da vida: uma entrevista rara de S. Cit.. 7 VIERECK. p. p. KUPERMANN. G. 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