Hume - Do Padrão Do Gosto - A arte de escrever ensaios

March 21, 2018 | Author: Lucas De Lima Coelho | Category: Feeling, Mind, Morality, Beauty, David Hume


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David HumeBIBLIOTECA PÓLEN Para quem não quer confundir rigor com rigidez, é fértil considerar que a filosofia não é somente uma exclusividade desse competente e titulado técnico chamado filósofo. Nem sempre ela se apresentou em público revestida de trajes acadêmicos, cultivada em viveiros protetores contra o perigo da reflexão: a própria crítica da razão, de Kant, com todo o seu aparato tecnolôgico, visava, declaradamente, libertar os objetos da metafisica do "monopólio das Escolas ". o filosofar; desde a Antiguidade, tem acontecido naforma defragmentos, poemas, diálogos, cartas, ensaios, confissões, meditações, paródias, peripatéticos passeios, acompanhados de infindâvel comentário, sempre recomeçado, e até os modelos mais clássicos de sistema (Espinosa com sua ética, Hegel com sua lógica, Fichte com sua doutrina-da-ciência) são atingidos nesse próprio estatuto sistemático pelo paradoxo constitutivo que os faz viver. Essa vitalidade da filosofia, em suas múltiplas formas, é denominador comum dos livros desta coleção, que não se pretende disciplinarmente filosófica, mas, justamente, portadora desses grãos de antidogmatismo que impedem o pensamento de enclausurar-se: um convite à liberdade e à alegria da reflexão. A ARTE DE ESCREVER ENSAIO E OUTROS (morais, ENSAIOS políticos e literários) Seleção Pedro Pimenta Tradução Márcio Suzuki e Pedra Pimenta Rubens Rodrigues Torres Filho ILUMItYURAS Rua lnácio Pereira da Rocha. Hume.São Paulo: Jluminuras.SP .lFax: 55 11 3031-6161 iluminuras@ilurninuras. seleção Pedro Paulo Pimenta. 11.) DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLlCAÇÃO (Câmara Brasileira do Livro.ilurninuras. Pedro Paulo.br www.corn. David : Filosofia inglesa 192 2011 EDITORA ILUMINURAS LTDA. políticos e literários) I David Hurne . SP. Filosofia inglesa 2. Título.05432·011 . David.49 55 61 71 83 107 115 123 127 147 157 163 173 195 209 221 227 233 239 243 249 . A arte de escrever ensaio e outros ensaios (morais. 2008. Pimenta. . ISBN 978·85-7321-282-2 1. David.com. 1711-1776. 08-00946 CDD·I92 Índices para catálogo sistemático 1. Capa Fê ÍNDICE Estúdio A Garatuja Amarela Revisão Virgínia Arêas Peixoto e Daniel Santos Nota preliminar 9 (Este livro segue as novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. 1711-1776 _ Crítica e interpretação I. tradução Márcio Suzuki e Pedro Paulo Pimenta.Brasil Tel. 389 .São Paulo .br Da delicadeza de gosto e de paixão Da liberdade de imprensa Que a política pode ser reduzida a uma ciência Da origem do governo Dos partidos em geral Da superstição e do entusiasmo Da dignidade ou baixeza da natureza humana Da liberdade civil Da eloquência Do surgimento e progresso das artes e ciências O epicurista O estoico O platônico O cético De poligamia e divórcios Da simplicidade e do refinamento na arte de escrever Da tragédia Do padrão do gosto Do comércio Do refinamento nas artes Da arte de escrever ensaio Dos preconceitos morais Da condição mediana de vida Da impudência e da modéstia De amor e casamento Do estudo da história : 13 17 23 37 41 . Hume.Biblioteca Pólen dirigida por Rubens Rodrigues Torres Filho e Márcio Suzuki Copyright © 2009 desta edição e tradução Editora Iluminuras Ltda. Brasil) (CIP) Hume. a afetação. "Da Tragédia". elogio. Em todas as líriguas há alguns termos que implicam censura e. 173 (NT) .----------------~--~~~~~~=~~~------------------------------- DO PADRÃO DO GOST0204 [226] A grande variedade de gosto. Mas quando os críticos se voltam para as particularidades. mas logo vemos o epíteto de reprovação se voltar contra nós. em meio a tal contenda de sentimentos. num exame atento se constatará que ela é na realidade muito maior do que parece. Os sentimentos dos homens com frequência diferem em relação a beleza e deformidade. Se essa variedade de gosto é óbvia para o investigador mais descuidado. ainda que todos os homens que falam o mesmo idioma devam concordar no emprego deles. Mas aqueles que conseguem alargar seus horizontes para contemplar nações distantes e épocas remotas ficam ainda mais surpresos com a grande inconsistência e contrariedade. essa aparente unanimidade se esvai. simplicidade e espírito. Homens do mais limitado conhecimento conseguem notar diferença de gosto no [227] estreito círculo de suas relações. a frieza e o falso brilho. assim corno de opinião. propriedade. Tendemos a chamar de bárbaro a tudo que se afasta bastante de nosso próprio gosto e apreensão. e para censurar o bombástico. mesmo quando o discurso geral deles seja o mesmo. existente no mundo é muito óbvia para ter escapado à observação de qualquer um. inclusive onde as pessoas tenham sido educadas sob o mesmo governo e imbuídas desde cedo dos mesmos preconceitos. E a maior arrogância e autoconfiança se veem por fim surpreendidas ao notar uma igual segurança por todos os lados e. hesitam em se pronunciar positivamente a seu próprio favor. e constata-se que afixaram um 204 Ver nota ao ensaio anterior. em todos os seus gêneros. Todas as vozes se unem para aclamar uma obra escrita com elegância. outros. brandura e caridade em inglês. aplaudindo e censurando as mesmas virtudes e os mesmos vícios. procurar um padrão do gosto. nem aplaudir quando o idioma requer desaprovação. quando pinta cenas particulares de costumes e representa heroísmo em Aquiles e prudência em Ulisses. para nós. O povo que inventou a palavra caridade e a usou num bom sentido. e daria mostra da maior ignorância. na aceitação geral. É óbvio. aquelas que implicam. o sábio Ulisses parece se deleitar com mentiras e ficções. que as palavras árabes correspondentes a equidade. censura. Mesmo poetas e outros autores cujas composições são calculadas principalmente para agradar a imaginação inculcam. todavia. anexar reprovação a um termo que. mais que na razão. que em todos esses casos mantém sentimentos similares em todos os homens e impede as controvérsias a que tanto estão expostas as ciências abstratas. de Homero a Fénelon. não em moral. em todas as questões concernentes a conduta e maneiras. Há uma espécie de filosofia que corta qualquer esperança de êxito nesse empreendimento e representa a impossibilidade mesma de chegar a um padrão do gosto. pelo uso constante daquela língua. Mas como saber se o pretenso profeta realmente chegou a um sentimento justo a respeito da moral? Prestemos atenção a sua narração e logo notaremos que exalta exemplos de traição. mas também temos de convir que parte dessa aparente harmonia em mora] pode ser atribuída à natureza mesma da linguagem. são as menos sujeitas a ser pervertidas ou mal compreendidas. Quem recomenda alguma virtude moral. de fato. Uma explicação dos termos põe geralmente fim à controvérsia. mas da língua. vingança e intolerância inteiramente incompatíveis com a sociedade civilizada.significado muito diferente a suas expressões. É natural. É de supor. afirma-se. O mérito que há em transmitir verdadeiros preceitos gerais em ética é. De todas as expressões. Essa grande unanimidade é geralmente atribuída à influência da simples razão. proferi-Ias sem outros epítetos que não os de aplauso e aprovação. sem a impropriedade mais óbvia e grosseira. a diferença entre os homens é realmente maior do que parece à primeira vista. ele mistura um grau muito maior de ferocidade no primeiro e de astúcia e dissimulação no segundo do que Fénelon o admitiria. no épico francês. pode-se aceitar essa explicação como satisfatória. porque não tem referência a nada além de si mesmo. ou ao menos garantir uma decisão confirmando um sentimento e condenando o outro. se entende num bom sentido. e cada ação é censurada ou elogiada somente enquanto é benéfica ou danosa para os verdadeiros crentes. nunca são controversos. A diferença entre juízo e sentimento. uma regra pela qual se possam reconciliar os vários sentimentos dos homens. humanidade. A palavra virtude. com seus outros significados. Nenhuma regra estável de direito parece ser obtida ali. são tais que. enquanto querelavam. enquanto. magnanimidade. implica elogio. e é sempre real onde um homem tenha consciência dele. um grau de censura ou de aprovação. com seus equivalentes em todas as línguas. no fundo concordavam em seus juízos. muito pequeno. e ninguém poderia. com efeito. ou mesmo vantagem. realmente não faz mais do que está implícito nos termos mesmos. crueldade. e os litigantes ficam surpresos em constatar que. Os que fundam a moral idade no sentimento. e na censura às qualidades opostas. prudência e veracidade. Desde que a unanimidade seja real. mais 174 escrupuloso. temperança. devem ter sido sempre tomadas num bom sentido. No poeta grego. quando ele os profere. que escritores de todas as nações e de todas as épocas convergem no aplauso à justiça. Os preceitos gerais de Homero. Aqui a diferença entre os homens frequentemente se encontra mais no geral do que no particular e é na realidade menor do que parece. Mas nem todas as determinações 175 . inculcou o preceito sê caridoso com muito mais clareza e eficiência do que qualquer pretenso legislador ou profeta que inserisse tal máxima em seus escritos. é muito grande. desumanidade. se inclinam a compreender a ética segundo aquela primeira [228] observação e a sustentar que. prefere se expor aos perigos mais iminentes do que sair o mínimo que seja da mais estrita verdade e veracidade. o filho dele. [229] Os admiradores e seguidores do Alcorão não se cansam de repetir os excelentes preceitos morais espalhados ao longo dessa obra desordenada e absurda. empregando-as muitas vezes sem necessidade. justiça. os mesmos preceitos morais. [230] Todo sentimento é correto. O oposto ocorre em todas as questões de opinião e ciência. mas é óbvio que. assim como a palavra vicio. estender esse axioma ao gosto mental. ninguém dará atenção a um gosto como este. se fundam em falsidade e ficção. em pronunciar a mesma decisão que ela. Se nosso prazer proviesse realmente das partes de seu poema que denominamos falhas. e cada indivíduo deve aquiescer ao próprio sentimento. em hipérboles. Ao contrário. O fundamento de tais regras é o mesmo que o de todas as ciências práticas. justa e verdadeira. a mais insípida e desagradável. Ainda que se possam encontrar pessoas que prefiram Ogilby e Bunyan. dizem respeito a fatos reais e nem sempre são conformáveis àquele padrão. porque sentimento algum representa o que existe realmente no objeto. Mas ainda que esse axioma. serve para modificá-lo e restringi-lo. ela deve ser delimitada pelas regras da arte. por experiência universal. ele se mostra um paradoxo extravagante. dependendo da disposição dos órgãos. sem pretender regular os dos demais. e o provérbio estabelece com justiça que é infrutífero disputar sobre gosto. Dentre mil opiniões diferentes que os homens possam ter sobre um mesmo assunto. Ele encanta pela força e clareza de expressão. há uma. quer por observação. e não temos escrúpulos em declarar que o sentimento desses pretensos críticos é absurdo e ridículo. não conseguem destruí-Ia por completo. inclusive. É muito natural. mil sentimentos diferentes suscitados pelo mesmo objeto são todos eles corretos. pela mistura bizarra de estilo sério e de estilo cômico. Ele apenas marca uma certa conformidade ou relação entre o objeto e os órgãos ou faculdades da mente. e até bem necessário. O princípio da igualdade natural entre os gostos é então inteiramente esquecido e. ou melhor. 176 177 . ou pode ser considerada uma conclusão abstrata do entendimento. Se se constata que agradam. mas objeção somente àquelas regras particulares da crítica que estabelecem esses aspectos como falhas e os representam como universalmente censuráveis. ou [231] Bunyan e Addison. Mas. há certamente uma espécie de senso comum que a ele se opõe ou. por mais inesperado e inexplicável que seja o prazer que produzem. O mesmo objeto pode ser tanto doce quanto amargo. Procurar beleza ou deformidade reais é investigação tão infrutífera quanto pretender estabelecer o que é o realmente doce e o realmente amargo. especialmente as joviais e amorosas. mas não por suas ficções monstruosas e improváveis. ainda que a poesia jamais possa ser submetida à verdade exata. Muitas das belezas da poesia. quer por gênio. [232] Eles possuíam outras belezas que podiam se conformar à justa crítica. quando se comparam objetos tão desproporcionais entre si. pela.rapidez e variedade de suas invenções e pelos quadros naturais das paixões. e elas não passam de observações gerais sobre aquilo que tem sido universalmente considerado como agradável em todos os países e épocas. e se essa conformidade não existisse realmente. e somente uma. especialmente a do tipo cético. mas apesar delas. e mesmo da eloquência. ao se converter em provérbio. não podem ser falhas. passaria por defensor de uma extravagância tão grande quanto se sustentasse que um monte de areia é mais alto que o Tenerife. que o autor descobre. Ariosto agrada. a experiência. E conquanto suas faltas possam diminuir nossa satisfação. porque produziria aquela espécie de obra que se considera. metáforas e em abuso ou perversão da significação natural dos termos. e a única dificuldade é fixá-Ia e assegurá-Ia. não foi por transgressões à regra ou à ordem. se o admitimos em algumas ocasiões. a partir da comparação de ligações e relações entre ideias eternas e imutáveis. a saber. tal como ao gosto físico. pela falta de coerência em suas histórias ou pelas constantes interrupções de sua narrativa.do entendimento são corretas. Quem afirmasse que Ogilby e Milton. ou uma lagoa tão extensa quanto o oceano. e assim o senso comum. perceber deformidade onde outra é sensível à beleza. Uma pessoa pode. Impedir as tiradas da imaginação e reduzir cada expressão à verdade e exatidão geométricas seria inteiramente contrário às leis da crítica. É evidente que nenhuma das regras de composição é fixada por raciocínios a priori. jamais poderia haver sentimento. são iguais em gênio e elegância. Ela só existe na mente que as contempla. pareça ter obtido a sanção do senso comum. Se alguns escritores negligentes ou irregulares agradaram. e a força de tais belezas foi capaz de sobrepujar a censura e proporcionar à mente uma satisfação superior ao desgosto advindo dos defeitos. quando os objetos parecem próximos de uma igualdade. e cada mente percebe uma beleza diferente. esta não seria objeção à crítica em geral. que tantas vezes diverge da filosofia. concorda. ao menos. Beleza não é qualidade nas coisas mesmas. ao menos neste exemplo. um palpável absurdo. porque têm referência a algo além de si mesmas. e só do primeiro se pode supor que nos fornecerá verdadeiro padrão de gosto e sentimento. Quando suas composições forem examinadas pela posteridade ou por estrangeiros. há certos princípios gerais de aprovação e de censura. governo. quanto mais perdura e mais se difunde a sua obra. Mas como nossa intenção neste ensaio é misturar um pouco da luz do entendimento 179 . O mesmo Homero que agradava em Atenas e Roma há dois mil anos ainda é admirado em Paris e em Londres. Nos órgãos internos há muitos defeitos frequentes que impedem ou enfraquecem a influência daqueles princípios gerais de que depende nosso sentimento de beleza ou deformidade. Se no estado saudável do órgão se verifica inteira ou considerável uniformidade de sentimento entre os homens podemos tirar daí uma ideia da beleza perfeita. algumas formas ou qualidades particulares são calculadas para agradar. nem tampouco outro. perturba seu movimento e confunde as operações do mecanismo inteiro. embora todas as regras gerais da arte estejam fundadas unicamente na experiência e na observação dos sentimentos comuns da natureza humana. em todas as ocasiões. pela estrutura da mente. e outras para desagradar. Perfeita serenidade da mente. e se falham em seu efeito numa instância particular qualquer. Ocorrem incidentes e situações particulares que podem lançar uma falsa luz sobre os objetos. devida atenção ao objeto: se qualquer uma dessas circunstâncias faltar. ou a menor desordem interna. as belezas naturalmente talhadas para despertar sentimentos agradáveis liberam imediatamente as suas energias. e seremos [233] incapazes de julgar a beleza geral e universal. ou impedir que a luz verdadeira transmita à imaginação o sentimento e a percepção próprios. Devemos poder estabelecer sua influência não tanto a partir da operação de cada beleza particular. As mais finas emoções da mente são de natureza muito tênue e delicada. Fica claro então que. naturalmente calculados para proporcionar prazer. concentração de pensamento. mas sua reputação jamais será duradoura ou geral. a todos os equívocos da ignorância e da inveja. Mas. Um verdadeiro gênio. e enquanto durar o mundo. em meio a toda a variedade e inconstância de gosto. O menor entrave exterior a alavancas tão pequenas. segundo seus princípios gerais e estabelecidos. uma vez removidos esses 178 obstáculos. mesmo que se considere a cor um mero fantasma dos sentidos. e requerem a concorrência de muitas circunstâncias favoráveis para atuar com facilidade e exatidão. e a própria familiaridade com a pessoa pode diminuir o aplauso que suas realizações merecem. pretender dar um veredicto sobre cores. Dada a estrutura original da textura interna. devemos escolher cuidadosamente o lugar e a hora apropriados. e poderiam derivar cada tipo de gosto ou de sentimento de seu padrão. todos falam dela. Há muito lugar para inveja e ciúme quando o círculo é estreito. cuja influência um olhar cuidadoso pode rastrear em todas as operações da mente. isso se deve a algum aparente defeito ou imperfeição no órgão. Todos se arrogam essa delicadeza. mais sincera é a admiração que encontra. Autoridade e preconceito podem dar voaa ~ b momentanea ao mau poeta ou orador. Embora alguns objetos sejam.No entanto. ao contrário. os sentimentos dos homens serão conformes a essas regras. tentando verificar a força de alguma beleza ou deformidade. religião e língua não conseguiram obscurecer sua glória. nosso experimento será falacioso. Uma causa óbvia por que muitos não sentem o sentimento próprio de beleza é a falta daquela delicadeza de imaginação requeri da para proporcionar sensibilidade a essas emoções mais finas. vítima de icterícia. colocando a fantasia numa situação e disposição adequadas. Em cada criatura há um [234] estado saudável e um defectivo. elas conservarão sua autoridade sobre as mentes dos homens. Quando realizamos um experimento dessa natureza. Um homem febril não poderia sustentar que seu paladar é capaz de decidir sobre sabores. A relação que a natureza estabeleceu entre a forma e o sentimento se tornará no mínimo mais obscura. tal como a aparição de objetos à luz do dia para o homem de os olhos sadios é denominada a cor verdadeira e real deles. o encanto se dissipará e suas faltas aparecerão em suas cores verdadeiras. Todas as mudanças de clima. e será preciso maior acuidade para segui-Ia e discerni-la. quanto pela admiração duradoura com que se apreciam as obras que sobreviveram a todos os caprichos da moda e das vogas. não se deve esperar que o prazer seja sentido de maneira igual em todos os indivíduos. não devemos imaginar que. embotado e lânguido.(NT) Cervantes. Mesmo que o barril jamais tivesse sido esvaziado. Não podes imaginar quanto ambos foram ridicularizados por seus juízos. a isso chamamos ° ° 205 206 A tradução certamente não dá conta da expressão em inglês: "the feelings of seniiment". e tanto mais elaborado o modo como é feito e composto. mas na versão correspondente das Investigações sobre o entendimento humano eLe mudou a expressão para "the feelings of our heart" . o gosto daqueles permaneceria igualmente delicado. lhe mostramos um reconhecido princípio da arte. muitas vezes o gosto não é afetado por qualidades tão diminutas. Cabe lembrar que Hume usou também a mesma expressão "the feelings of our sentiment" no primeiro ensaio do Philosophical Essays concerning Human Understanding (Hildesheim: Olms. mais do que doce e amargo. O outro. Não são sabores fortes que põem um bom paladar à prova. com a ressalva de um gosto de ferro que facilmente distinguira ali. mas pertençam inteiramente ao sentimento. de modo a [236] convencer cada um dos presentes. p. E. não afetam os órgãos com sensível deleite ou insatisfação. que a falta está nele mesmo. ainda assim teriam existido diferentes gradações de gosto. Reconhece-se que a perfeição de cada sentido ou faculdade consiste em perceber com exatidão seus mais diminutos objetos e em não deixar que nada escape à sua consideração e observação. porém. e que carece da delicadeza requerida para torná-lo sensível a cada uma das belezas e a cada um dos defeitos de qualquer composição ou discurso. Quando. não fosse por um ressaibo de couro que percebera nele. quando este se apresenta sozinho e num grau elevado. Dois de meus parentes foram certa vez chamados a opinar sobre um barril de vinho supostamente excelente. de tudo isso. recusando-se a se submeter ao seu antagonista. que pretendo saber julgar de vinhos: esta é uma qualidade hereditária em nossa família. parte Il. mais difícil de provar a superioridade do gosto delicado. Da mesma maneira. consultar a entrada "sentimento" no léxico ao final do volume. L986. quando provamos que o mesmo princípio pode ser aplicado ao caso presente. recorreremos a uma famosa história do Dom Quixoteê": É com boa razão. ou misturadas e confundidas entre si. E se as mesmas qualidades.aos modos de sentir do sentimentoê". p. ainda que modelos excelentes jamais tivessem sido reconhecidos. capo 13. exatos o bastante para perceber cada ingrediente da composição. a cada um dos quais 181 . ainda que as belezas da arte de escrever jamais tivessem sido metodizadas ou reduzidas a princípios gerais. como tais qualidades podem estar presentes num grau reduzido. Quanto menores são os objetos a que o olho se torna sensível. para não extrair nossa filosofia de uma fonte muito profunda. Ora. cuja operação seu próprio gosto particular reconhece ser conforme ao princípio. e o destes. Quando os órgãos são finos o bastante para não deixar que nada lhes escape e. Produzir tais regras gerais ou tais reconhecidos parâmetros de composição é como encontrar a chave presa à correia de couro que justificou o veredicto dos parentes de Sancho e confundiu os pretensos juízes que os condenaram. Teria sido. Mas quem riu por último? Esvaziado o barril. no qual ele não percebeu ou não sentiu sua influência: então ele tem de concluir. pois era antigo e de boa safra. 3). no entanto. A grande semelhança entre gosto mental e gosto físico nos ensina a aplicar facilmente essa história. e o juízo de um homem teria sido preferível ao de outro. quando ilustramos esse princípio com exemplos. ao mesmo tempo. ou não é capaz de distinguir todos os sabores particulares em meio à desordem em que se apresentam. encontrou-se no fundo dele uma velha chave de ferro presa a uma correia de couro. interno ou externo. que poderia continuar apegado a seu sentimento particular. Um deles o saboreia. pois são obtidas a partir de modelos estabelecidos e da observação do que agrada ou desagrada. quer se empreguem esses termos em sentido literal."sentimentos de nosso coração" (Edição Selby-Bigge. depois de usar as mesmas precauções. será apropriado apresentar uma definição mais acurada de delicadeza do que se tentou até hoje. considera e. Para uma discussão dos sentidos de feeling e sentiment . não sejam qualidades dos objetos. diz Sancho ao cavaleiro narigudo. Dom Quixote. 7). também dá veredicto favorável ao vinho. após madura reflexão. [235] declara que vinho é bom. Aqui as regras gerais da beleza têm o seu uso. tanto mais fino é esse órgão. é preciso admitir que há certas qualidades nos objetos talhadas por natureza para produzir esses sentimentos particulares. mas a mistura de pequenos ingredientes. dizemos que tal pessoa não pode ter nenhuma pretensão a essa delicadeza. em contínua composição e em grau menor. mas teria sido mais difícil silenciar o mau crítico. Embora seja certo que beleza e deformidade. (NT) 180 delicadeza de gosto. quer em sentido metafórico. Mas embora. O sentimento de todos os homens concorda nesta avaliação. uma percepção rápida e aguda da beleza e da deformidade deve ser a perfeição de nosso gosto mental. também são adquiridos pelos mesmos meios ao julgá-Ia. ela certamente receberá aprovação. quer da paixão. sem risco de engano. identificando sua qualidade e seu grau. as muitas perfeições e defeitos parecem envoltos numa espécie de confusão e se apresentam indistintamente à imaginação. poderia declarar que seus versos são ásperos ou que sua narrativa é desinteressante. Uma beleza muito inferior provoca dor numa pessoa versada na maior excelência do gênero. Em muitas ocasiões. e menos ainda distinguir o caráter particular de cada uma delas. Ela não apenas percebe as belezas e os defeitos de cada parte. O gosto não consegue perceber as muitas excelências da realização. Sem mencionar ainda uma espécie de beleza que. sendo floreada e superficial. mas. belo ou disforme. no geral. assim como naturalmente supomos que o objeto mais bem acabado 183 . nada tende tanto a reforçar e aperfeiçoar esse talento quanto a prática de uma arte particular e o frequente exame e contemplação de uma espécie particular de beleza. nesta medida. são belezas e afetariam de grande admiração a mente de um camponês ou de um indígena. e a mente é em grande medida incapaz de se pronunciar sobre seus méritos ou defeitos. a respeito dos méritos de qualquer realização. pois é a fonte de todos os contentamentos mais finos e inocentes de que a natureza humana é suscetível.permanecemos sensíveis. É unicamente pela comparação que podemos estabelecer epítetos de elogio ou de censura e aprender como atribuir o zrau devido a cada um deles. Um sentimento claro e distinto a acompanha durante todo o exame dos objetos. com grande hesitação e reserva. mal se distinguem os verdadeiros traços de estilo. mas até uma pessoa sem prática poderia emitir um juízo como este. Numa palavra. Quando qualquer gênero de objeto é apresentado pela primeira vez ao olho ou à imaginação. ou ao menos estimada num valor muito mais baixo. a perfeição do homem e a perfeição do senso ou do sentimento se encontram unidas. e examinada com atenção e deliberação sob diferentes [238] luzes. e seu sentimento se tornará mais exato e sutil. As baladas mais vulgares não são inteiramente destituídas de harmonia ou de natureza. o grau e o gênero de aprovação ou de desagrado que cada parte está naturalmente apta a produzir. [237] Onde quer que descubras delicadeza de gosto. É impossível continuar a praticar a contemplação de qualquer ordem de beleza sem ser frequentemente obrigado a formar comparações entre as muitas espécies e graus de excelência e a estimar a proporção entre elas. será requerido que cada realização individual seja por nós estudada mais de uma vez. e ninguém. adquirir experiência desses objetos. A pintura mais grosseira contém um certo lustre de cores. a não ser uma pessoa familiarizada com belezas superiores. Que se lhe permita. apesar de sua pequenez e de sua confusão com os demais. Neste caso. Dissipa-se então a névoa que antes parecia pairar sobre o objeto: o 182 órgão adquire maior perfeição em suas operações e pode se pronunciar. tanto para o indivíduo como para seus amigos. e por essa razão é declarada uma deformidade. de fato. totalmente desqualificado para emitir opinião a respeito de qualquer objeto que se lhe apresente. porém. um palato muito delicado pode ser bastante inconveniente. inclusive. tão logo se constata ser incompatível com uma justa expressão. o sentimento que deles resulta é obscuro e confuso. antes que possamos emitir juízo sobre qualquer obra de importância. em matéria de delicadeza. que. A prática é tão vantajosa para o discernimento da beleza que. quer da razão. O primeiro contato com qualquer peça provoca transtorno e agitação de pensamento e confunde o genuíno sentimento de beleza. e a melhor maneira de identificá-Ia é recorrer aos modelos e princípios estabelecidos pelo consentimento e experiência uniforme das épocas e nações. e homem algum poderá se dar por satisfeito consigo mesmo enquanto suspeitar que alguma excelência ou defeito num discurso escapou à sua observação. O máximo que se pode esperar dele é que pronuncie se o todo é. Não se discerne a relação entre as partes. uma exatidão de imitação. mas gosto delicado para o que é espirituoso ou belo é sempre uma qualidade desejável. o mesmo jeito e destreza que a prática proporciona para a execução de qualquer obra. O homem que não teve oportunidade de comparar os diferentes gêneros de beleza está. torna-se insossa para o gosto e é então rejeitada com desdém. Da mesma maneira. agrada de início. mas nota também as espécies distintivas de cada qualidade e lhe atribui o elogio ou censura devidos. haja naturalmente grande diferença entre uma pessoa e outra. e ela discerne. Da mesma maneira. deve tentar conquistar a afeição e cair nas boas graças dela. mas mantém obstinadamente sua posição natural. é verdade. as paixões e os preconceitos particulares dela. manter a mente livre de todo preconceito. assim como a muitos outros. além do objeto mesmo submetido a seu exame. O objetivo da eloquência é persuadir. todo o crédito e autoridade. condena sumariamente o que pareceria admirável aos olhos daqueles para quem unicamente o discurso foi calculado. seu gosto se afasta do padrão verdadeiro e perde. Devemos ter esses fins em vista toda vez que examinamos qualquer obra. se possível. embora. por conseguinte. Desta maneira. qualquer composição. Caso a audiência tenha nutrido contra ele alguma prevenção. devo abandonar essa posição e. em todas as questões submetidas ao entendimento. nesta medida. As personagens introduzidas na tragédia e na poesia épica devem ser representadas raciocinando. a fim de perceber a consistência e uniformidade do todo. mas. e não pode ser plenamente saboreada por pessoas cuja situação. Se a obra é executada para o público. nem sua influência é menor na corrupção de nosso sentimento de beleza. sem permitir que nada mais entre em consideração. se não é parte essencial do gosto. imbuído das maneiras de sua própria época e país. que contribui para o 184 185 . o da história é instruir. assim como gosto e invenção. mas. a esse respeito. e um poeta jamais poderá esperar êxito numa empresa tão delicada se não tiver juízo. É evidente que. ele nunca alarga suficientemente sua compreensão ou esquece seu interesse de amigo ou de inimigo. Sem mencionar que a mesma excelência nas faculdades. os interesses. ainda assim. e deve ser estimada mais ou menos perfeita conforme é mais ou menos adequada para atingir esse fim. o crítico deve. minha existência individual e minhas circunstâncias peculiares. e devemos poder julgar até que ponto os meios empregados estão adaptados a seus respectivos propósitos. é ao menos requisitada para as operações desta última faculdade. não seja conforme àquilo que é requerido pelo trabalho.que conhecemos atingiu o pináculo de perfeição. antes de entrar no seu tema. não passa de uma cadeia de proposições e raciocínios. O indivíduo influenciado pelo preconceito não condescende com essa condição. real ou imaginária. sem se colocar no ponto de vista pressuposto pela obra. ele não faz concessão às concepções e preconceitos peculiares a ela. cabe ao bom senso restringir sua influência. mesmo a mais poética. contudo. Em todas as produções mais nobres do gênio há mútua relação e correspondência entre as partes. muito embora eu tenha amizade ou inimizade pelo autor. quando uma obra qualquer é endereçada ao público. e as mesmas belezas e defeitos não têm sobre ele a mesma influência que teriam caso tivesse imposto [240] a devida violência à sua imaginação e esquecido de si mesmo por um momento. Além disso. para produzir o devido efeito na mente. esperaria em vão governar suas resoluções e inflamar suas afecções. e que merece o maior aplauso. O orador se dirige a uma audiência particular e deve levar em conta o gênio. a razão. Só alguém acostumado a ver. [239] Para que se habilite a executar mais plenamente essa tarefa. Se esta é endereçada a pessoas de uma época ou nação diferente. o da poesia é agradar por meio das paixões e da imaginação. mesmo insensata. e. pensando. os mais justos e exatos. conquanto disfarçados pelo colorido da imaginação. É bem sabido que. Cada obra de arte tem também um certo fim ou propósito para o qual é calculada. do contrário. nem sempre. a fim de formar um juízo verdadeiro do discurso. considerando a mim mesmo enquanto homem em geral. e as belezas e defeitos não podem ser percebidos por aquele cujo pensamento não é suficientemente amplo para compreender todas essas partes e compará-Ias entre si. seus sentimentos são pervertidos. de rival ou de comentador. plausíveis e atraentes. devo esquecer. as opiniões. o preconceito é destrutivo para o juízo sadio e perverte todas as operações das faculdades intelectuais: ele não é menos contrário ao bom gosto. concluindo e agindo de acordo com seu caráter e situação. toda obra de arte deve ser examinada de um certo ponto de vista. ele não pode negligenciar essa desvantagem. Podemos observar que. examinar e ponderar muitas realizações admiradas em diferentes épocas e nações pode classificar os méritos de uma obra apresentada ao seu olhar e lhe conferir o devido lugar entre as produções de gênio. Em ambos os casos. O crítico de uma época ou nação diferente que venha a estudar esse discurso deve ter todas essas circunstâncias em vista e se colocar na mesma situação da audiência. Terêncio e Vergílio mantêm. foram universalmente negadas: seu absurdo foi detectado. aplauso que conservarão para sempre. e na experiência nada se mostra tão suscetível às revoluções do acaso e da moda quanto essas pretensas decisões da ciência. são o objeto de sua admiração. Mas onde encontrar críticos assim? Por que marcas devem ser identificados? Como distingui-los de impostores? Essas questões são 186 embaraçosas e parecem nos lançar de volta à mesma incerteza da qual tentamos nos livrar no curso deste ensaio. as mais elevadas e excelentes. Justas expressões de paixão e natureza certamente não demoram a receber o aplauso do público. Platão. são essenciais para [241] as operações do verdadeiro gosto e são seus acompanhantes infalíveis. Saber se uma pessoa qualquer é dotada de bom senso e de imaginação delicada. não é qualificado para discernir as belezas do propósito e raciocínio. ao menos quase os mesmos em todos os homens. não de sentimento. Quando não é auxiliado pela prática. e devem mostrar indulgência para com outros que deles difiram ao recorrer a esse padrão. Quando nenhuma comparação foi empregada. as belezas mais frívolas. aperfeiçoado pela comparação e despido de todo preconceito. que o homem de senso com experiência numa arte não possa julgar a beleza desta. só um senso forte. muito mais difícil de estabelecer naquele caso que neste. devem reconhecer a existência. aprimorado pela prática. e novamente darão lugar a suas sucessoras. e passível de muita discussão e investigação. são poucos os qualificados para julgar qualquer obra de arte ou estabelecer o próprio sentimento como padrão de beleza. Os órgãos da sensação interna raramente são tão perfeitos para permitir pleno desempenho dos princípios gerais e para produzir um sentimento correspondente a esses princípios. a mesma exatidão nas distinções. a mesma clareza de concepção. [242] Estas. e não menos raro é encontrar homem dotado de gosto justo desprovido de entendimento sadio. pode muitas vezes ser tema de disputa. a existência real e a matéria de fato. são questões de fato. Ou carregam o fardo de algum defeito. Teorias de filosofia abstrata e sistemas de teologia profunda prevaleceram durante uma época. desta maneira.' A generalidade dos homens trabalha sob umas ou outras dessas imperfeições. que antes mereceriam o nome de defeitos. porém.aprimoramento da razão. se não impossível. mesmo durante as épocas mais polidas. A filosofia abstrata de Cícero perdeu seu 187 . Quando lhe falta bom senso. Epicuro [243] e Descartes se sucederam uns aos outros. despertam um sentimento que pode ser declarado errôneo. no entanto. Com as belezas da eloquência e da poesia não ocorre o mesmo. ainda que os princípios do gosto sejam universais e. Ainda que na especulação possamos admitir prontamente um certo critério para a ciência. eles não podem fazer mais do que em outras questões controversas. é o verdadeiro padrão de gosto e beleza. de um padrão verdadeiro e decisivo. serão reconhecidos pelo sentimento universal como tendo preferência sobre outros. Será suficiente para nosso propósito se tivermos provado que o gosto de todos os indivíduos não se encontra em pé de igualdade. ou estão viciados por algum desarranjo e. a mesma vivacidade de apreensão. seu veredicto é acompanhado de confusão e hesitação. um império universal e incontestável sobre a mente dos homens. constata-se que a matéria é. por mais difícil que seja de apontá-los em particular. mas que tal caráter seja valoroso e estimável. Quando o crítico não tem delicadeza. e a confluência de tudo isso no veredicto. mas negá-Io para o sentimento. onde quer que ela se encontre. julga sem nenhuma distinção e só é afetado pelas qualidades mais grosseiras e palpáveis do objeto: os toques mais finos não são notados e levados em conta. unido a um sentimento delicado. ou seja. submetidas ao entendimento: devem produzir os melhores argumentos que sua invenção lhes sugira. a dificuldade de encontrar o padrão do gosto em indivíduos particulares não é tão grande quanto se imagina. em alguma parte. Quando essas dú vidas surgem. se não inteiramente. É raro. Quando se encontra sob a influência do preconceito. Na realidade. Assim. todos os seus sentimentos naturais são pervertidos. e é por isso que o verdadeiro juiz nas artes finas é um caráter raro de ser observado. nisso todos os homens hão de concordar. outras teorias e sistemas ocuparam seu lugar. porém. se consideramos a matéria corretamente. na prática. Aristóteles. pode dar aos críticos um direito a esse caráter valoroso. no período seguinte. se é livre de preconceitos. e que em geral alguns homens. a ternura. entrar nos sentimentos dos outros. É verdade que com frequência essa mudança foi insensível para nós. aos quarenta. de nossa razão. constata-se que jamais erra por muito tempo em sua afeição por um autor épico ou trágico de sua predileção. e nosso gosto depende de nossa organização. São Paulo: Editora da Unesp. que lhe colocarão tão bem diante dos olhos o mundo que ele viu e lhe fornecerão ocasiões tão frequentes de fazer reflexões sobre aquilo que terá observado no curso de sua vida. pelas quais tinha tanto gosto quando estava ocupado com as paixões que essas peças nos pintam. e há justa razão para aprovar um gosto e condenar o outro. Cada convertido à admiração do verdadeiro poeta ou orador é causa de novas conversões. seção 49 das Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura (citadas no ensaio sobre a Tragédia). aos sessenta anos. Ovídio pode ser o autor favorito. quando bem representada. aos trinta prefere essas mesmas tragédias. pode-se em geral notar algum defeito ou perversão das faculdades. Essa predileção depende de nosso gosto. preferindo a leitura das tragédias de Racine à das fábulas de La Fontaine. O homem que em sua infância tinha mais prazer em ler as fábulas de La Fontaine que as tragédias de Racine. Quando nosso gosto muda. a outra. Apesar de todos os nossos esforços para fixar um padrão do gosto e reconciliar as apreensões discordantes dos homens. Muitos homens. ou do preconceito. a uma terceira. que ele não amará as tragédias de Racine. pois. Jovialidade ou paixão. não deixamos de elogiar e mesmo de sempre amar essas fábulas. Uma paixão triste nos faz amar durante um tempo os livros que convêm a nosso humor presente. mas ocorreu em nós uma mudança física. sentimento ou reflexão: qual deles for mais predominante em nosso temperamento nos dará uma simpatia especial pelo autor que se parece conosco. ou da falta de prática. em casos como estes. pode ser-nos inteiramente diferente. porque ela se fez aos poucos e imperceptivelmente. cujo prazer são reflexões sábias e filosóficas sobre a conduta da vida e moderação das paixões. nem de discernir aqueles que tiverem êxito. Os princípios gerais do gosto são uniformes na natureza humana: quando os juízos dos homens variam. entregues a si mesmos. de nossas inclinações presentes e da situação de nosso espírito. são capazes de apreciar qualquer fino toque que lhes for apontado. a outra." A mesma ideia aparece no § 79 da Antropologia de um ponto de vista pragmático de Kant.) A fonte provável não é um poeta. Horácio. eles nunca se unem para celebrar rival algum do verdadeiro gênio. Assim. A uma pessoa agrada mais o sublime. não é porque nos persuadiram a mudá-lo. por conformidade de humor e disposição. aos quarenta. ou ainda da falta de delicadeza. no entanto. Aos vinte anos. a zombaria. despindo-nos das propensões que nos são naturais. não têm mais que uma percepção pálida e duvidosa do belo e. pois. Na Parte I. 2003. tampouco quanto a predileção que nos faz amar um gênero de poesia de preferência aos outros. E embora os preconceitos possam prevalecer por algum tempo. as maneiras e opiniões particulares de nossa época e país. e não podemos nos aperceber dela senão com ajuda da reflexão. Digo prefere e gosta mais. mas Dubos. 289-290." (Edição Selby-Bigge. não elogia e censura. (NT) . que trata da disputa sobre a primazia do desenho ou do colorido na pintura. mas nenhuma paixão. todavia. ainda restam. embora não sejam suficientes para esfumar todas as fronteiras que separam a beleza da deformidade. Esses gostos particulares. Mas [244] quando a diversidade no arranjo interno ou na situação externa é tal que os dois lados sejam inteiramente irrepreensíveis e não deixe espaço a que se prefira um ao outro. Mudamos de gosto tão logo nos consolamos. duas fontes de variação que.crédito: a veemência de sua oratória ainda é objeto de nossa admiração. Um jovem. é fácil distinguilos em sociedade pela sanidade de seu entendimento e pela superioridade de suas faculdades sobre o resto dos homens. mas cedem por fim à força da natureza e do justo sentimento. porque não há nenhuma da qual cada pessoa já não tenha dentro de si pelo meJ10S as sementes e os primeiros princípios. prefiro Horácio. 180. Embora homens de gosto delicado sejam raros. mesmo no gênero para o qual não tinham nenhuma predileção. porém. pp. não impedem os homens de fazer justiça aos bons autores. muitas vezes bastam para produzir diferença nos graus de nossa aprovação ou censura. é mais sensivelmente tocado por imagens amorosas e temas do que um homem em idade avançada. mesmo que uma nação civilizada possa facilmente se equivocar na celebração do filósofo que admira. das comédias de Moliêre. O homem de que falo gostará mais. pode-se ler: "A predileção que nos faz preferir uma parte da pintura à outra não depende. Escolhemos nosso autor favorito como escolhemos um amigo.' Mergulhamos com certeza mais rapidamente nos sentimentos que se assemelham aos que experimentamos todos os dias.ê'" Em vão tentaríamos. cujas paixões são cálidas. diz um poeta francês. 'Ovídio era meu favorito. Uma tem forte sensibilidade aos defeitos e é 188 189 201 Hume menciona a mesma ideia na investigação sobre os princípios da moral: '''Quando eu tinha vinte anos'. p. A idade e outras causas diferentes produzem em nós essas espécies de mudança. que procede. agora. Uma delas são os diferentes humores de homens particulares. A ascendência que adquirem faz prevalecer e predominar em geral aquela viva aprovação com que recebem toda produção de gênio. e talvez Tácito aos cinquenta. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. então um certo grau de diversidade no juízo é inevitável e em vão buscaremos um padrão pelo qual possamos reconciliar os sentimentos contrários. no decorrer de nossa [245] leitura as imagens e caracteres que se assemelham a objetos que encontramos em nossa própria época ou país nos agradam mais do que aqueles que descrevem um conjunto diferente de costumes.extremamente ciosa da correção. O ouvido deste homem está inteiramente voltado para concisão e energia. outros. Não se passa com princípios morais o mesmo que com opiniões especulativas. porém. O filho abraça um sistema diferente do pai. nem seria apropriado que pudesse. as ideias de moralidade e decência se alteram de uma época para outra. rica e harmoniosa. os seu~ partidários. ornamento. enquanto o outro se recusa a aceitar essa explicação ou só a admite. diminui consideravelmente o mérito de suas nobres realizações. Em minha opinião. dificilmente há homem que possa se arrogar constância e uniformidade nesse particular. até por Homero e pelos trágicos gregos. e perdoa vinte absurdos e defeitos para cada toque elevado ou patético. aquele se deleita com uma expressão copiosa. sátira e ode têm. (NT) 191 . nem constitui deformidade da peça. desagrada-nos tamanha confusão dos limites entre virtude e vício. não somos. A falta de humanidade e de decência. tão sensivelmente tocados por ela. tragédia. É. e condena todos os demais. O monumento mais duradouro do que o bronze erigido pelo poeta=" viria abaixo. e o homem a quem eles chocam dá [246] prova evidente de falsa delicadeza e refinamento. onde a bela dama. eles certamente devem ser aceitos.1.30. não conseguimos prevalecer sobre nós mesmos para compartilhar de seus sentimentos. na qual vemos muitas vezes um dos lados desculpar os antigos de evidentes absurdos. onde modos viciosos são descritos sem que sejam assinalados com os caracteres próprios da censura e desaprovação. como os mencionados acima. mas é sempre mantida nos bastidores. Mais ainda. e não admitissem nada que não fosse conforme a voga dominante. Não nos interessam a fortuna e os sentimentos de heróis tão rudes. Se o que se representa são alguns costumes peculiares inocentes. quando muito. O homem de instrução e reflexão pode fazer concessão a essas maneiras peculiares. Mas aqui ocorre uma reflexão. raramente se determinaram as fronteiras que separam os partidos em contenda nessa questão. de acordo com o humor reservado dos gregos antigos e dos italianos modernos. jamais poderei apreciar a composição. quase impossível não sentir predileção pelo que se ajusta à nossa inclinação e disposição particulares. Carmina. não para a obra. cada uma delas. Não é sem algum esforço que nos acostumamos à simplicidade das maneiras antigas e observamos princesas carregando água da fonte e reis e heróis preparando seus próprios alimentos. e. e que é uma deformidade real. Podemos reconhecer. Estas estão em contínuo fluxo e revolução. às vezes. Essas preferências são inocentes e inevitáveis. como tijolo ou argila. Comédia. e não seria razoável transformá-Ias em objeto de disputa. Erros especulativos que se possam encontrar em escritos polidos de qualquer época ou país pouco subtraem do valor de tais composições. que a representação de tais maneiras não é culpa do autor. Não posso. Por essa razão a comédia não se transpõe bem de uma época à outra. que seriam devidos aos modos da época. Por uma razão semelhante. deve-se confessar que isso desfigura o poema. útil talvez para examinar a célebre controvérsia sobre as letras antigas e as letras modernas. compartilhar esses sentimentos. E claramente erro da parte do crítico se ele restringe sua aprovação a uma espécie ou estilo de escrita. e. e dá aos autores modernos vantagem sobre eles. não importa de que gênero sejam. que preferem uma espécie de escrita a todas as outras. porque não há padrão pelo qual possam ser decididas. mas uma audiência comum jamais consegue se despir de suas ideias e sentimentos usuais para apreciar retratos que de modo algum se assemelham a eles. caso os homens não reconhecessem as contínuas revoluções dos modos e costumes. A um francês ou a um inglês não agrada a Andria de Terêncio ou a Clítia de Maquiavel. em geral. (Odes). outra tem mais sentimento para belezas. Não é preciso mais 208 Horácio. 3. Deveríamos jogar fora os retratos de nossos ancestrais por causa dos seus rufos e anquinhas? Onde. porém. por mais que desculpe o poeta pelos modos de sua época. 190 como desculpa para o autor. todavia. Uns afetam simplicidade. por mais indulgentes que sejamos com os preconceitos do autor. nem ter afeição por caracteres que percebemos claramente ser censuráveis. em torno da qual gira toda a peça. tão conspícua nos caracteres pintados por muitos poetas antigos e. não aparece uma vez sequer aos espectadores. ato 3. Mas se requer esforço muito violento para mudar nosso juízo sobre os modos e para despertar sentimentos de aprovação ou de censura. com toda a seriedade. Ao encontrar Josaba conversando com Matã.do que um certo giro de pensamento ou de imaginação para nos fazer compartilhar de todas as opiniões que então [247] predominavam e apreciar os sentimentos ou conclusões delas derivadas. De acordo com o princípio acima mencionado. porém. e os preconceitos e falsas opiniões da época não serão suficientes para justificá-los. eles serão. em Londres. por sua vez. A/alia. Dentre todos os erros especulativos nas composições de gênio. por condescendência com qualquer autor que seja. é justamente cioso dele. ele confunde os sentimentos de moralidade e altera as fronteiras naturais entre o vício e a virtude. Essa intolerância [248] desfigurou duas 192 excelentes tragédias do teatro francês. Quando isso ocorre. É essencial para a religião católica romana inspirar ódio violento a todos os outros credos e representar todos os pagãos. Não é desculpa para o poeta que os costumes de seu país tenham onerado a vida com tantas cerimônias e práticas religiosas a ponto de nada se subtrair a esse jugo. "o que temos aqui? A filha de Davi conversando com esse traidor? Não temeis que a terra se abra em chamas para vos devorar? Ou que estas paredes sagradas cedam e vos esmaguem? Qual é a intenção dele? Como ousa esse inimigo de Deus vir até aqui para envenenar o ar que respiramos com sua horrenda presença?'?". É por esse motivo que todos os absurdos do sistema teológico pagão devem ser desconsiderados por qualquer crítico que pretenda formar uma justa noção da poesia antiga. e forma o caráter predominante dos heróis. e jamais é permitido julgar da civilidade ou da sabedoria de um povo ou de uma pessoa pela grosseria ou refinamento de seus princípios teológicos. eternamente defeitos. diferentes daqueles com os quais a mente se familiarizou por um longo costume. e não perverterá um momento sequer os sentimentos de seu coração. 56-57. de amor ou de ódio. os que dizem respeito à religião são os mais desculpáveis. embora sejam na realidade muito equivocados."! 209 210 'li Racine. deve mostrar a mesma indulgência para com seus antepassados. e representados em suas tragédias e poemas épicos como uma espécie de heroísmo divino. O mesmo bom senso que orienta os homens nas ocorrências ordinárias da vida não é ouvido em assuntos reliziosos b . Polieucte e Atalia. Tais sentimentos. por mais distante que esteja de qualquer religião. Será para sempre ridícula a comparação que Petrarca faz de sua amante Laura com Jesus [249] Cristo. E quando um homem confia na retidão do padrão moral pelo qual julga. (NT) . os espectadores teriam muito mais prazer em ouvir Aquiles dizer a Agamenão que ele tem cara de cão e coração de cervo. e nossa posteridade. quando se erigem em superstição e se imiscuem em cada sentimento. cena 5. Tão ridícula quanto um libertino tão agradável como Bocaccio agradecer. desde que permaneçam como meros princípios e não apoderem tão fortemente de seu coração a ponto de expô-lo à acusação de bigotismo ou de superstição. (NT) Boccaccio. Quarta Jornada. I."? Princípios religiosos também são um defeito em toda composição polida. Princípios religiosos jamais podem ser imputados como falha a um poeta. maometanos e heréticos como objetos da punição e vingança divinas. portanto. 225 e I. Tais sentimentos são recebidos com grande aplauso nos palcos de Paris. a Deus Todo-Poderoso e às damas por lhe terem ajudado a se defender de seus inimigos. são considerados virtudes pelos zelotas daquela comunhão. (NT) Iliada. nas quais o zelo destemperado por determinados modos de culto é apresentado com toda a pompa imaginável. sacerdote de Baal. Decameron. ou Júpiter ameaçar Juno com uma bordoada se esta não se calar. o sublime Joiada indaga. 193 Introdução. que supostamente se encontram inteiramente além do conhecimento da razão humana.
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