História – A arte de inventar o passado

March 27, 2018 | Author: José Lucas Góes Benevides | Category: Michel Foucault, Historiography, Paradigm, Oral History, Power (Social And Political)


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ISSN 1981-1225 Dossiê Religião N.4 – abril 2007/julho 2007 Organização: Karina K.Bellotti e Mairon Escorsi Valério História A arte de inventar o passado Luís César Castrillon Mendes UNEMAT Correio eletrônico: [email protected] ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da História. 2007. Bauru, Edusc. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, reúne alguns de seus artigos nesta obra, fruto de uma trajetória de mais de dez anos, como ele próprio nos diz, trabalhando no campo da teoria da História. Buscando sempre o diálogo com a Literatura, analisa pensamentos de vários autores, como Michel Foucault, que segundo ele, há muito tempo inspira seu trabalho como historiador. Vários outros pensadores não apenas no terreno da História, mas também no da Literatura são contemplados nesta obra, tais como: Carlo Ginzburg, Clarice Lispector, Gustave Flaubert, Franz Kafka, Manoel de Barros, Edward P. Thompson, Gilles Deleuze, Graciliano Ramos, dentre outros. Na apresentação, o autor aborda o uso do termo invenção, que tem aparecido com freqüência em publicações de historiadores e faz uma reflexão sobre as mudanças paradigmáticas ocorridas no saber histórico nos últimos anos. O livro, dividido em três partes, traz na primeira discussões acerca do envolvimento entre a História e a Literatura; de um possível, e eu diria necessário, caráter artístico e poético para a História, pensada com a Literatura e não contra ela, argumenta o autor. Na segunda parte, são privilegiadas as contribuições e polêmicas que as idéias inquietantes de Michel Foucault 1 nem tampouco do lado da representação. nos remete a descontinuidades. no indiscernimento das divisões. do evento. Passa entre elas.4 – abril 2007/julho 2007 Organização: Karina K. 2 . da cultura. os acontecimentos são ou pelo menos deveriam ser tratados como indícios. Significa pensar que a História não se passa apenas no lugar da natureza. assim. Pois. conectadas e articuladas pela linguagem. este indica uma ruptura. fruto de uma pragmática que articula a natureza. da realidade. onde as duas anteriores se encontrariam fruto de atividades de purificação. pelos quais se tenta identificar o momento da invenção. no turbilhão das ações e práticas humanas. busca uma terceira margem como possibilidade de análise. autores diversos e questões centrais no debate da historiografia contemporânea. Longe de haver consenso entre eles quanto à definição do termo.ISSN 1981-1225 Dossiê Religião N. Durval Muniz. Ao fazer uso da metáfora das margens – que representariam os paradigmas rivais na História . os interesses. nos leva a uma cisão. além de compará-las aos pensamentos de outros autores como Ginzburg e Thompson. a um descortinar de um novo possível paradigma. Dessa forma. afastando-se. segundo Durval. ao heterogêneo. as práticas. da subjetividade. pensando com Guimarães Rosa. a singularidades e a afirmação do caráter subjetivista da produção histórica. desafios. de construção humana e social de objetos e sujeitos que vêm se misturar no fluxo. da idéia ou da narrativa. Com isso. de acordo com o autor. da postura historicista do evento histórico. a História como o rio heraclitiano que produz as suas margens. surgiriam os agentes dessa invenção. o fato histórico é um misto de matéria e memória. pois inventar. a sociedade e o discurso.que supostamente limitam e contém o rio. Bellotti e Mairon Escorsi Valério trouxeram para o campo historiográfico. conflitos e contradições inerentes ao processo de emergência dos eventos. na mistura dos variados elementos. de racionalização. de ação e representação. Uma outra margem. O texto introdutório enfoca o crescente uso do termo invenção pelos historiadores. do fluxo. a do devir. Ela se passa nessa terceira margem. A terceira parte aborda aspectos variados do trabalho do historiador. assim como Kafka. o autor procura enfatizar o acontecimento. busca sujeitos sem fama. Durval utiliza-se das personagens Bouvard e Pécuchet. as dimensões poéticas da existência e o intuitivo. a conquista e o domínio. ou seja. deparando-se com as inquietações que essa atividade causa a quem pretende efetuá-la. a culpa. o preconceito. dos mitos das fundações. Foucault. que surpreendidos por um acontecimento inusitado. a animalidade. lançam-se à pesquisa histórica. Na sociedade moderna burguesa. a vilania. desejos e pensamentos. Depois dessa “viagem no tempo”. a história de nossos medos. Nem em seu próprio quarto. Pensando a História como a Arte de Inventar o passado. Podemos aprender com Kafka. metamorfoseiam-se no próprio processo histórico. que singulariza situações.4 – abril 2007/julho 2007 Organização: Karina K. Discutindo o estatuto do saber histórico na modernidade. mas também como o que na moderna cultura ocidental se define como masculino e feminino. não é garantia de proteção contra as forças externas. cabendo às Letras as paixões. o governo. a dor. Bellotti e Mairon Escorsi Valério Na primeira parte. a violência. em sua própria cama o indivíduo não está sozinho. analisa a configuração histórica da sociedade tecno-científica pela ótica dos dois protagonistas de Flaubert. a opressão. a miséria. 3 . não apenas gênero discursivo. Quais rupturas e descontinuidades foram responsáveis pela mudança paradigmática da Ciência Histórica? A não realização das previsões coloca os personagens diante do questionamento da própria racionalidade da História. que rompe com a rotina. o poder. A História pode ser produzida nos lugares impróprios. a exploração. Segundo Durval. sujeitos que se constituem e se desmancham. Bouvard e Pécuchet atestam que as previsões das filosofias da História do século XIX não se concretizaram. distribuídas em quatro capítulos. como eles atuam impelindo ou bloqueando ações.ISSN 1981-1225 Dossiê Religião N. a História do “insuportável”: o medo. A História enquanto discurso enfatizando a razão. anuncia diferenças e põe a História em movimento. da existência da determinação em última instância pela História. Com Franz Kafka. no interior das casas. sejam nas discussões de gênero. são analisadas possíveis e necessárias interlocuções entre Literatura e História. evidenciando formas de se conduzir a pesquisa e a narrativa histórica. de acordo com Durval. razão universal. Palavras e conceitos que poderiam muito bem inspirar a produção de narrativas que descortinassem o véu que cobre o ínfimo. a necessidade ou não de se enquadrar a palavra num esquema mais geral de classe. são analisados pelo autor. fluido. surgido no final do século XIX. fazendo uma nova leitura da tradição marxista. como o caráter fragmentário das experiências. O saber é visto como transubstanciação. a necessidade de sair do olhar grandioso em busca do menor. do cisco. assim como o Pantanal. localiza tratamentos metodológicos em comum.4 – abril 2007/julho 2007 Organização: Karina K. contexto histórico. distinta da escola italiana. apesar de possuírem formações teóricas bem divergentes.ISSN 1981-1225 Dossiê Religião N. P. o abandonado. encontro erótico com as coisas e pessoas. Ginzburg tomou a palavra para superar o não dito. Se ambas as personagens foram silenciadas. o infame. analisa o pensamento do filósofo francês. Durval aborda a relação entre História. de 4 . O mundo. Discurso. dentre outros conceitos. através do conceito de experiência. Uma nova forma de ver as coisas. A partir dos escritos do poeta. Durval Muniz analisa pontos em comum e de divergência metodológicas entre Ginzburg e Foucault. dedicada a Michel Foucault. a história tem como pressupostos idéias de totalidade. o chão. memória e linguagem nestes tempos pós-modernos. sem ser parte de unidades ou identidades. o traste. onde seres e formas se comunicam e metamorfoseiam-se em outros. Para Thompson. uma nova proposta metodológica. irredutível à grades conceituais e fora do social. Bellotti e Mairon Escorsi Valério Ao dialogar com Manoel de Barros. a multiplicidade de temporalidades. que embora partindo de um mesmo paradigma. Outra comparação metodológica interessante se faz entre E. enquanto que Foucault toma a palavra para evidenciá-lo. central nos trabalhos historiográficos desses autores. Uma micro-história. A segunda parte do livro. como no brilhante texto Menocchio e Rivière: criminosos da palavra. o indiciário. poetas do silêncio. crime. Thompson e Michel Foucault. trataram diferenciadamente as suas personagens. contrapondo-o com os ideários de outros autores renomados. uma prática discursiva. como sugere Foucault. observando. aquele que se trava para se desmontar os textos. assim como os eventos históricos. um discurso sobre o real. É interessante partir desta questão: como foi possível a emergência deste ou daquele objeto histórico? Para o autor. Durval Muniz compara os textos Senhores e caçadores e A vida dos homens infames. podendo levar a vitórias ou derrotas. continuidade. Já para Foucault. através das experiências. Dessa forma. O riso satírico como combate. ou seja. respectivamente. Segundo Durval Muniz. essência e semelhança. repleta de incertezas e imprevisibilidades. É observar sempre as forças que entram em campo num dado evento. Bellotti e Mairon Escorsi Valério razão. de Thompson e Foucault. segundo Thompson é realista. ao fazer uso nos seus textos de figuras de linguagem como a ironia. a História não implica apenas lembrar. de verdade. pode ser pensada como um jogo. que emerge das lutas políticas. Foucault. A História. Cada partida é singular e irrepetível. 5 . o porquê da emergência delas. O riso seria o anti-sistema. mas o resultado do jogo é sempre incerto. É abordar uma História aberta a incertezas e afastada de qualquer previsibilidade. de embates de poder presidido por estratégias e táticas. suas condições históricas de possibilidade. a disciplina histórica. através de sua construção paródica. ou seja.4 – abril 2007/julho 2007 Organização: Karina K. visando demandas do nosso tempo. sempre levadas tão a sério. ela busca dispersar as totalidades. mas também produzir esquecimentos. Na perspectiva de Foucault. O seu sorriso como arma de ataque e defesa contra o aprisionamento exercido pela ordem do discurso e pelas instituições. ela é nominalista. sorri para e da seriedade das disciplinas. armado por uma tática. revelando suas regras de produção. que seguem as mesmas regras. contra o poder.ISSN 1981-1225 Dossiê Religião N. as jogadas e os lances jamais se repetem. inclusive a da razão. por que umas foram “vistas” e outras não? Por que algumas determinadas experiências provocaram fissuras no silêncio? O objeto em História é tratado por Durval como uma espécie de convocação estratégica do passado. sujeito a regras e mediada por estratégias e táticas. Estratégias e táticas a serviço da criatividade ou da reação. Assim como uma partida de futebol. 222). Dialogando com Graciliano Ramos. as experiências do passado. a primeira experiência de justiça. passava por ele. no sentido de não interferir na fala do 6 . a tarefa do historiador um parto difícil. é o deslocamento constante dos sentidos (p. Gilles Deleuze e Michel Foucault. Bellotti e Mairon Escorsi Valério é o derrisório. É a invasão do terreno sagrado da família pela História. de sua fala e de seu falo.ISSN 1981-1225 Dossiê Religião N. com imagens e idéias de hoje. corrige. seja pela perda do poder ou perda de consistência ao caos. Durval Muniz nos adverte da (im)possibilidade de se fazer História oral numa sociedade pautada pela escriturística e alerta para os cuidados metodológicos ao se realizar entrevistas. Uma espécie de História satírica. reconstruir. 189). mas refazer. operador de diferenças. orientador. que afirma o caráter complexo e problemático das experiências humanas e da relação com a temporalidade e verdade. sugerindo um método de trabalho historiográfico. Ele observa que nem sempre as conceituações de Memória e História estão claramente definidas e dos cuidados metodológicos necessários ao se trabalhar com fontes orais. local de construção de um eu fechado e centrado em torno da figura do pai. Durval Muniz mostra uma construção histórica das masculinidades. O nome do pai. uma verdade produzida tanto por reflexão como por intuição. é a ausência de lógica. retifica. experimentador. contrária ao dogmatismo e ao simplismo. que ajuda a rever certezas e relativizar verdades.4 – abril 2007/julho 2007 Organização: Karina K. vinha de fora dele. A terceira parte traz diversos ensaios contemplando temáticas como as Memórias violadas pela gestação da História. Pai este que causa um desprestígio aos olhos de seus descendentes. nas palavras do autor. Amigo do saber. 186). A ironia como rebeldia da e na linguagem (p. buscando surpreender a verdade onde ela não é procurada. A família sendo o lugar de origem. dominava-o. aquele que representava a lei. à desterritorialização. que fala. vê-se impotente ao descobrir que não emanava poder. O autor aborda também conceitos e práticas como amizade. Durval lembra-se de Ecléa Bosi: lembrar não é reviver. o que torna. seja pela relação conflituosa. Um ser diminuto de um mundo vasto e ameaçador (p. dos despossuídos. novos personagens. a fala dos vencidos.4 – abril 2007/julho 2007 Organização: Karina K. um método ou uma postura teórica no campo da historiografia. dos marginalizados. segundo o autor. 7 . dos dominados. Bellotti e Mairon Escorsi Valério entrevistado.ISSN 1981-1225 Dossiê Religião N. contribui para o surgimento de novas falas. já que essa fala surge num momento de interação entre entrevistador e entrevistado. A História oral. Aprovado em junho/2007. e adverte: a História a partir de fontes orais. Recebido em abril/2007. ainda indefinida entre uma técnica.
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