Hidreletricas Ecologia Comport a Mental, Resgate de Fauna - Uma Falacia[1]

March 25, 2018 | Author: Raiza Risso Dainese | Category: Fitness (Biology), Birds, Evolution, Species, Satellite


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Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma FaláciaHidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia1 Marcos Rodrigues, Dr2 • Laboratório de Ornitologia, Departamento de Zoologia, ICB, Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO O resgate de fauna é um procedimento amplamente utilizado no Brasil durante o enchimento dos reservatórios de usinas hidrelétricas. Apesar de largamente divulgado pela mídia e aceito pela maioria dos leigos como uma “boa ação” de conservação da natureza, poucos estudos avaliaram o real impacto dessa translocação de fauna. O meu objetivo aqui é mostrar que tal procedimento é inadequado, pois desestabiliza ecologicamente ainda mais as áreas adjacentes onde os animais são liberados. A maioria das espécies resgatadas é de vertebrados tetrápodas. Muitos desses animais são soltos em áreas vizinhas à represa, em hábitats semelhantes, onde não haverá o alagamento. Neste artigo, pretendo abordar apenas um aspecto da vida desses animais resgatados, que não é levado em conta em tais empreitadas, que é a territorialidade. O estudo da territorialidade pode ser dividido em três categorias: (1) a evolução e a função da territorialidade; (2) os mecanismos de manutenção do território; e (3) as conseqüências desse comportamento para a regulação da população. São apresentados dois modelos teóricos e testes empíricos destas três categorias acima. A partir disso, pode-se concluir que o destino da maioria dos indivíduos resgatados e transportados a hábitats não familiares a eles é a morte. E, para aqueles poucos que conseguem sobreviver, a conseqüência é a desestabilização ecológica da vizinhança. Os projetos de resgate de fauna, então, não passam de uma falácia ou uma medida não científica para amenizar, perante a opinião pública, o impacto ecológico do enchimento de uma represa. Uma das sugestões é que todos os animais apreendidos em projetos de resgate de fauna sejam coletados e depositados em instituições de pesquisa. Esse procedimento seria possivelmente mais barato e traria maior retorno à sociedade. Palavras-chave: Territorialidade, ecologia de populações, ‘distribuição ideal livre’, translocação, introdução de espécies. INTRODUÇÃO Uma das principais “condicionantes ambientais” solicitadas pelo licenciamento de uma 1 2 Enviado originalmente em português [email protected] usina hidrelétrica é que haja, durante o enchimento da represa, o resgate de fauna. Isto é, à medida que a água começa a subir, deve haver um pessoal capacitado a resgatar exemplares da fauna, que porventura não consigam migrar naturalmente para outras áreas não alagáveis, e levá-los a áreas adjacentes, Ponto de Vista 29 Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Apesar de amplamente divulgado pela mídia e aceito pela maioria dos leigos como uma “boa ação” de conservação da natureza.vol. serpentes. répteis. Esses animais são levados então a um centro de “reabilitação”. pretendo abordar apenas um aspecto da vida desses animais resgatados. 1993). desestabiliza ecologicamente ainda mais as áreas adjacentes onde tais exemplares são liberados.Abril 2006 . 29-38 . 1999). Para isso vou usar elementos da teoria da ‘ecologia comportamental’ (Krebs & Davies. Neste artigo. QUAIS SÃO OS ANIMAIS RESGATADOS E QUEM OS RESGATA O resgate de fauna é uma atividade freqüente nos últimos anos. que além de onerar o contribuinte. Esses jovens são contratados por empresas de ‘consultoria ambiental’. Para efeito de didática. A maioria das espécies animais resgatadas é de vertebrados tetrápodas. É necessário primeiramente que entendamos a teoria e alguns conceitos para depois compreender que a soltura indiscriminada de animais é ecologicamente incorreta e economicamente onerosa. seguidos por TERRITORIALIDADE Território é um termo em ecologia que designa qualquer área defendida por um indivíduo (Noble. Os exemplos aqui mostrados serão relativos à avifauna.Marcos Rodrigues onde talvez tenham mais sorte. como a ‘de uma área exclusiva’ ocupada por um indivíduo (Schoener 1968). devido ao grande acúmulo de informações sobre a história de vida e ecologia desses animais. répteis (principalmente calangos) dominam os resgates. muitos são soltos em áreas vizinhas à represa. geralmente terceirizadas pela companhia energética ou pelo consórcio de companhias responsável pela implantação da usina hidrelétrica. Após esse período. 1978).pp. O que acontece na prática é que.. feita principalmente por biólogos e veterinários. uma falácia. O meu objetivo aqui é mostrar que tal procedimento é inadequado. mas é no enchimento dos reservatórios das futuras usinas hidrelétricas que tal trabalho é solicitado como forma de “compensação ambiental” pelos danos ecológicos causados pela empreitada. A maioria dos animais vertebrados tetrápodas (anfíbios. Ponto de Vista 30 Natureza & Conservação . dispostos a receber baixos salários. onde não haverá o alagamento. sapos. que é a territorialidade. aqueles ilhados na copa de uma árvore que será submersa. algumas já especializadas na atividade. Essa é uma atividade que gera empregos para a massa de biólogos e veterinários que são formados aos milhares todo ano neste país. 1930). mamíferos. mamíferos e até aves.nº1 . principalmente nos cursos de graduação das faculdades das áreas ambientais. ao longo de dias e/ou semanas. onde são tratados e eventualmente curados de ferimentos. que não é levado em conta em tais empreitadas. aves e mamíferos) apresenta um grau de territorialidade em pelo menos uma fase do ciclo de vida (veja exemplos em Pough et al. A territorialidade é observada quando o espaçamento entre indivíduos ou grupos de indivíduos de uma mesma espécie é maior do que aquele que seria esperado se a ocupação se desse de forma aleatória em hábitats propícios (Davies. poucos estudos avaliaram o real impacto dessa translocação de fauna. os “resgatadores” circulam pela área a ser alagada e capturam os animais que se encontram em situação de risco como. Outras definições também são usadas. Em geral. ou aqueles que estão fugindo para locais que serão invariavelmente alagados. como lagartos. uma disciplina ainda pouco difundida no Brasil. em hábitats semelhantes. durante o enchimento do reservatório. por exemplo. 4 . As ocasiões para que a fauna seja resgatada são as mais diversas possíveis. Trata-se de um trabalho de campo relativamente pesado e é geralmente feito por jovens recém-formados. e por isso precisam ser analisadas porque formam o embasamento teórico para o argumento central deste artigo. parceiros sexuais (Anderson. que formam um dos grupos de espécies e indivíduos (filhotes ainda no ninho ou jovens ainda dependentes de cuidado parental) resgatados durante o represamento das águas que irão abastecer a usina. O estudo da territorialidade pode ser dividido em três categorias: (1) a evolução e função da territorialidade. tem sido observado que machos não-territoriais não se reproduzem ou.. quando o fazem. Em muitas aves. Um padrão aleatório é esperado se os recursos são superabundantes. pois não seria necessário gastar energia para defendê-lo. 1964). sem contar o próprio risco de morte. As três categorias estão interligadas. espera-se que as aves defendam um território apenas se os benefícios forem superiores aos custos. como em falconiformes (águias. Rodrigues & Rocha. Os benefícios (por exemplo. 1999. 1994). custos e benefícios também aumentam. com locais de forrageamento tradicionais (veja exemplos em Galetti & Pizo. fit- ness). além do risco da exposição à predação e de eventuais machucados advindos das brigas. e (3) as conseqüências desse comportamento para a regulação da população (Perrins & Birkhead. Em ecologia comportamental. Eventualmente existirá um Ponto de Vista 31 Natureza & Conservação . 4 . Segundo o modelo (FIGURA 1). 2003). ou se houver transmissão cultural. Evolução e função da territorialidade Um comportamento só terá chance de permanecer nos indivíduos de uma população se ele passar à geração seguinte e. for hereditário. o padrão de espaçamento seria aleatório. é um grupo de animais cujo comportamento territorial tem sido extensivamente estudado (veja exemplos em Alcock. A manutenção do território geralmente se dá por patrulhamento e agressão (veja a seção seguinte). 2002). locais de nidificação (Hatchwell et al. pois.nº1 .vol. Entretanto. quantidade de alimento ou de locais para nidificação) aumentam inicialmente.. Olmos. Essa relação tem sido verificada de artrópodes (Zeh. Um padrão de espaçamento regular entre indivíduos ou grupos de indivíduos implica que estes estão defendendo um recurso. Aptidão é uma medida dos genes que um indivíduo deixa na geração seguinte e geralmente é calculada em termos do número de descendentes que sobrevivem até a idade madura e se reproduzem (Alcock.pp. Assim. de outra maneira. comunicação pessoal) e psitacídeos. geram um menor número de descendentes em comparação a machos territoriais (Dhondt & Schillemans. Além disso. 1975). Os custos (por exemplo. A competição entre indivíduos é. 1983). A idéia do balanço entre custos e benefícios foi primeiramente apresentada no ‘modelo econômico da defesa’ (Brown. 29-38 . portanto. ou com recursos de melhor qualidade. energia gasta em patrulhamento) continuam a crescer. isto significa que os indivíduos territorialistas tenderão a deixar mais descendentes do que aqueles que não defendem territórios. 2001). O benefício da territorialidade aparece quando o proprietário tem uma área com mais recursos. Se a posse de território confere algum tipo de vantagem ao seu detentor. portanto um dos principais fatores para a evolução da territorialidade. Os principais recursos que as aves defendem são: alimento (Gill & Wolf. 1982). à medida que o tamanho do território a ser defendido aumenta. A hereditariedade dos inúmeros comportamentos observados na natureza é um fato bem conhecido dos biólogos (veja excelentes revisões em Dawkins. Resgate de Fauna: uma Falácia concentrar-me-ei no comportamento territorial das aves. 1997) a elefantes-marinhos (Haley et al. 2001). 1989 e Alcock. gaviões e falcões) que possuem locais tradicionais de caça (F. (2) os mecanismos de manutenção do território. Ecologia Comportamental. o território deverá ser defendido somente quando os benefícios se sobrepuserem aos custos. mas tendem a diminuir à medida que o território excede as necessidades da ave.Abril 2006 . 1983).Hidrelétricas. existem custos associados à defesa do território. 2001). diz-se que indivíduos territoriais terão maior aptidão (do inglês. atividades que demandam muita energia e tempo. Portanto. como demonstrado para o pássaro-preto-deasa-vermelha na América do Norte. pois se sabe que fêmeas de muitas espécies de aves escolhem se acasalar com machos. 29-38 . um peixe-cirurgião que habita os corais das ilhas Samoa persegue seus rivais 1. assim. não conseguiam O modelo de Brown foi testado na natureza por diversos pesquisadores e com vários táxons (Gill & Wolf. o nível de néctar em suas flores crescia para até 3 µl/flor. 1986. Eles conseguiram medir. a coloração de certas partes da plumagem de uma ave. 1996). que pode ser revertido em outras atividades como. que são atividades que demandam tempo e energia. tos não defendidos.7 horas por dia de forrageamento. quando a diferença entre custos e benefícios for maior. Entre os sinais visuais estão. quando as flores continham 1µl de néctar. e (3) a energia disponibilizada pelo néctar. Davies 1980. 1975. 1976. ‘Modelo econômico da defesa’ de Brown (1969). Foi verificado que. enquanto. As aves territorialistas não deixavam que nenhuma outra usasse o néctar das flores do seu território e.Marcos Rodrigues ponto em que o tamanho do território será ótimo. tais como o descanso. em condições naturais. 1994). por exemplo.nº1 . Muitas espécies usam ambos os sinais. os sunbirds podem ter um pequeno lucro energético por dia. pode-se citar o canto.3 hora por dia de tempo para o forrageio. Gill & Wolf (1975) desenvolveram um engenhoso experimento com o qual testaram o modelo de Brown. A partir desses testes pôde-se observar como a territorialidade afeta a aptidão dos indivíduos.Abril 2006 . acabavam tendo acesso exclusivo às flores daqueles arbustos. baseadas no tamanho e/ou na qualidade do seu território (Alatalo et al. Rodrigues 1996). com 3 µl. uma ave precisaria de 2. As flores desses arbustos defendidos permaneciam com mais reservas de néctar do que os arbus- Ponto de Vista 32 Natureza & Conservação . as aves deveriam levar cerca de oito horas por dia para obter a energia calórica necessária. Os indivíduos que defendiam arbustos com flores. Defendendo um território.vol. Os pesquisadores calcularam (1) o tempo em que os sunbirds usavam para atividades diárias. 1981. A maioria das aves usa dois tipos de sinais para fazer o patrulhamento do território: sinais visuais ou auditivos. Carpenter & Macmillen. o forrageamento e a defesa territorial. Essa ave economizaria 1. Como o território é mantido A manutenção do território geralmente se dá por patrulhamento e agressão. Foi descoberto que os machos dessas aves. Essas aves defendem territórios fora da época reprodutiva e se alimentam principalmente de néctar de flores. Para se ter uma idéia. Os benefícios atingem um patamar.900 vezes por dia em média (Craig. Isso aumenta a aptidão do indivíduo. entre os sinais auditivos. Custos Custos e Benefícios Benefícios A X B Tamanho do território (área) FIGURA 1. Stamps. afugentando eventuais invasores. atingindo um tamanho ótimo quando os benefícios forem maiores que os custos. a reprodutiva. ou seja. (2) o custo energético de cada uma dessas atividades (em calorias/hora). No caso em que os recursos são o alimento. Davies & Houston. O território deverá ser defendido apenas entre A e B. por exemplo. 4 .pp. Com 2 µl/flor. Agelaius phoenicius. submetidos a uma operação pela qual os nervos de suas siringes (órgão vocal das aves) eram suprimidos. enquanto os custos tendem a aumentar. o ganho energético de indivíduos de sunbirds (pássaros africanos análogos aos beija-flores do continente americano). Custos e benefícios aumentam conforme o tamanho do território. as aves necessitariam de 4 horas por dia e. em X (fonte: Davies 1978 e Perrins & Birkhead 1983). Quanto maior o número de vizinhos não estabilizados na área. Num outro experimento. seus lugares são rapidamente preenchidos por outros indivíduos da mesma espécie (Krebs. A manutenção de um território é uma atividade que está ligada diretamente à densidade de competidores e a estabilidade da sua vizinhança. 1971. quando aves proprietárias de territórios são removidas deles. Modelo gráfico que mostra como a territorialidade pode limitar a densidade populacional. 4 . Isso sugere que proprietários potenciais estavam excluídos pelos proprietários de fato. Em densidades muito altas (nível 3). Ecologia Comportamental. Em densidades baixas (nível 1). A hipótese mais aceita para explicar esse fenômeno reside no fato de que os detentores adquiriram mais experiência ao longo da vida e estão mais bem preparados energeticamente para a briga. há pouca disputa (Whiting. e deve existir um tamanho mínimo que seja suficiente para suprir as necessidades de uma ave. e o C de nenhuma qualidade para a espécie. Em densidades mais altas (nível 2). 1987). Há numerosos outros experimentos que evidenciam que o canto das aves (taxas de produção e/ou tamanho do repertório) está diretamente relacionado à aquisição e a manutenção do território (Krebs. Esses indivíduos não territoriais são chamados de satélites. aves sujeitas a maiores taxas diárias de patrulhamento provavelmente sofrerão diminuição de sua aptidão.Abril 2006 . Arcese. 1986). Isso porque custa tempo para se estabelecer fronteiras territoriais com os vizinhos. 1987). Rodrigues. o B de média qualidade. Ponto de Vista 33 Natureza & Conservação . todos os indivíduos podem possuir e manter territórios em áreas de boa qualidade. Outro aspecto demonstrado é a tendência de que o detentor do território sempre vence os conflitos com os invasores (Davies. 1978. Nesse modelo. são apresentados três níveis de densidade populacional e três categorias de qualidade de hábitat. uma vez que elas estejam estabelecidas. Resgate de Fauna: uma Falácia manter territórios e atrair fêmeas. algumas aves terão que se estabelecer em hábitats muito pobres (indivíduos satélites).vol. Falls. Um modelo gráfico desenvolvido por Brown (1969) mostra como a territorialidade pode limitar a densidade populacional (FIGURA 2). 1983). 29-38 . 1999. 1999). mais tempo os machos tenderão a perder com atividades tais como o patrulhamento de território e o comportamento de guarda de parceiro (Whiting. Vários estudos têm demonstrado que. as aves se estabelecem nos melhores hábitats (A). Conseqüências da territorialidade para o tamanho das populações À medida que a densidade de uma população aumenta. Portanto.pp. Assim.nº1 . ou quanto maior o número de indivíduos satélites. 1998b). onde não terão condições de se reproduzir (Fonte: Brown. que é geralmente um indivíduo satélite (veja a seguir) procurando um local para se estabelecer (Arcese. Quando a densidade populacional é baixa. 1978). O proprietário tem mais a perder do que um intruso. Rodrigues. O hábitat A representa aquele de maior qualidade. alguns indivíduos serão excluídos dos melhores hábitats e se estabelecerão em hábitats intermediários (B). os machos que tiveram pintadas de negro suas asas vermelhas também foram pouco capazes de atrair parceiras (Peek. os tamanhos dos territórios diminuem. 1977. os detentores têm mais tempo para o forrageio.Hidrelétricas. um hábitat em que a espécie é incapaz de se reproduzir. 1998a) e à aquisição de parceiros sexuais (Searcy & Anderson. ou seja. 1969 e Perrins & Birkhead. mas. Uma vez que esse Número de territórios estabelecidos Hábitat C (satélites) Hábitat A Hábitat B 1 Baixo 2 3 Alto Alto FIGURA 2. 1972). e indica que o comportamento territorial pode limitar a densidade populacional. 1983). os indivíduos satélites. as aves restantes terão que se estabelecer no hábitat C.vol. maior será a divisão dos recursos e cada indivíduo terá uma menor parcela no ‘bolo’. há dois tipos de hábitat: o bom e o pobre. Considerando que os animais resgatados são soltos em hábitats adjacentes àqueles onde foram capturados. percebe-se que parte da população. tornando-se indivíduos satélites. e terem sido separados de seu grupo e/ou parceiros. Modelo gráfico da ‘distribuição ideal livre’. Hábitat bom A Hábitat apropriado ( aptidão alcançada) Z B Hábitat pobre Y CONSEQÜÊNCIAS DO RESGATE E DAS SOLTURAS Um dos objetivos da soltura dos animais capturados pelo resgate é que eles continuem a sobreviver.pp. Nesse modelo. enquanto no segundo modelo (Fretwell) a aptidão dos indivíduos sofre uma diminuição. Em ambos os hábitats. e ‘livre’ porque elas podem se deslocar para qualquer um dos hábitats e não são necessariamente excluídas como aquelas do modelo de Brown. sua ‘apropriabilidade’ diminui com o aumento da densidade populacional. da diminuição do tamanho da ninhada das aves. 1972 e Perrins & Birkhead. 1983). mas ao custo de diminuição de sua aptidão (ponto B na FIGURA 3). 29-38 . ou no momento em que a densidade alcance o ponto X representado na FIGURA 3. podese prever uma série de acontecimentos. os primeiros indivíduos se estabelecerão nos hábitats bons. Esta situação também é conhecida como ‘distribuição ideal livre’ (Fretwell. apesar de terem sido removidos involuntariamente de seus hábitats e territórios iniciais. não se reproduz.Marcos Rodrigues hábitat é preenchido pelas aves e a densidade aumenta.Abril 2006 . portanto. seja estabelecendo-se no hábitat bom a uma densidade Y. Ponto de Vista 34 Natureza & Conservação . mas. Um modelo alternativo mostra como a aptidão dos indivíduos de toda uma população pode sofrer uma diminuição conforme o aumento da densidade (FIGURA 3). por exemplo. 1972). ‘Ideal’ significando que as aves se estabelecem onde elas obtiverem a maior aptidão possível. Essa diminuição da aptidão é conseqüência. No primeiro modelo (Brown). E. Na medida em que a densidade de aves aumenta. tais como a (1) liberação de catecolaminas da medula adrenal. haverá um ponto (X) onde as aves terão a mesma performance em termos de aptidão. Inicialmente. com a aptidão prejudicada. da diminuição do número de ninhada por estação reprodutiva. à medida que a densidade aumentar. as aves ainda podem se estabelecer no hábitat de média qualidade. Os animais soltos estão invariavelmente estressados.nº1 . quando o hábitat B é preenchido. todos eles desastrosos. qualquer ave ainda pode se estabelecer nos hábitats pobres. A simples manipulação de uma ave desencadeia uma série de respostas fisiológicas no seu organismo. as aves irão se estabelecer em hábitats mais propícios (hábitat bom). O comportamento territorial não limita a densidade em nenhum dos hábitats (bom e pobre). Inicialmente. incapazes de se reproduzir. e da alta taxa de predação de ninhos (Perrins & Birkhead. 4 . a (2) ativação do córtex hipotálamo-adenohipofise-adrenal (culminando na síntese e se- Densidade X FIGURA 3. exposto acima. da proporção reduzida de jovens que sobrevivem até a idade adulta. seja no hábitat pobre a densidade Z (Fonte: Fretwell. mas uma vez que todos esses hábitats estejam preen- chidos. Abril 2006 . não podemos es- quecer que a maioria das populações naturais já conta com indivíduos-satélite e. sua aptidão tenderá a zero. Isso causa desestabilização da vizinhança. Há algumas alternativas de rota para esses indivíduos que são soltos. Os efeitos de curto prazo da secreção de corticosterona são a supressão do comportamento reprodutivo. que o destino da maioria dos indivíduos resgatados e transportados a hábitats não familiares a eles é a morte. assim. Não se sabe se essas taxas poderiam ser tão baixas a ponto de inviabilizar a população em longo prazo. a promoção de migração eruptiva. Neste caso. Por um lado. o proprietário do território quase sempre vence uma disputa territorial (Davies. 4 . Além disso. caso sobrevivam.nº1 . CONCLUSÃO E SUGESTÕES Pode-se concluir. haveria uma substituição pelos satélites. como satélites eles não têm possibilidades reprodutivas. é bem possível que ocorram mortes após as lutas. Mas não há nenhuma evidência de que as taxas de mortalidade entre proprietários e satélites sejam tendenciosas a nenhuma das partes. à medida que os proprietários originais morrerem. a competição por recursos aumentaria e conseqüentemente a aptidão de todos os indivíduos estabelecidos na área diminuiria.pp. E. animais residentes proprietários e animais transportados foram discutidas apenas em relação ao comportamento territorial das espécies. maior número de injúrias e mortes devido às lutas territoriais e menor aptidão para todos os indivíduos da população. mas. Resgate de Fauna: uma Falácia creção de glucocórtico-esteróides como a corticosterona). As lutas podem ocasionar machucados em ambos os oponentes. E aqueles poucos que conseguem sobreviver terão que disputar territórios. Estabelecimento como satélite Os indivíduos soltos. pois esse indivíduo estressado é solto em um ambiente pouco familiar. ainda poderiam vir a se estabelecer como satélites ou até mesmo como proprietários de territórios em hábitats de menor qualidade. a tendência é que a maioria morra no fim da história. encontrando-se o invasor em estado de estresse. esses novos invasores poucas chances terão de se estabelecer na nova área. maior o gasto energético com patrulhamento e agressão. 1997). pois. Assim. As disputas se dão por sinais visuais ou sonoros e eventualmente podem terminar em perseguição e luta corporal. além da diminuição das taxas metabólicas (Wingfield et al. a supressão do territorialismo. Estabelecimento como satélite ou proprietário Os indivíduos resgatados e soltos nas novas áreas. à espera de um território vago. Esses novos indivíduos adicionados à área estariam prejudicando diretamente a performance reprodutiva e a aptidão dos indivíduos da população original. Ecologia Comportamental. quanto maior a desestabilização de uma vizinhança. a partir do exposto. mesmo com todos os vieses antes expostos. 1987). As desvantagens para ambos. Mortalidade por injúria Segundo as evidências colocadas acima. já que os hábitats bons estariam ocupados (modelo de Fretwell). como veremos no final da seção. e a (3) secreção de citosinas das células do sistema imune (Wingfield et al. repleto de potenciais competidores não estressados e bem adaptados aos seus territórios. Nesse caso. Esta última opção leva toda uma população a obter taxas reprodutivas menores. recursos e parceiros sexuais com os indivíduos residentes nessas áreas. 1997). ainda podem se estabelecer como indivíduos satélites.Hidrelétricas. mas principalmente nos indivíduos não-territorialistas (Arcese. o ambiente estaria saturado. e conseqüentemente a diminuição da aptidão dos proprietários. mas muito mais poderia ser dito em relação a outros Ponto de Vista 35 Natureza & Conservação . 1978). 29-38 . poderia se pensar em tais indivíduos como um estoque populacional.vol. os recém-formados. como visto acima. ‘comitês’ e ‘fundações’ ambientais. Mais uma vez nota-se um hiato entre o que é produzido nas instituições de pesquisa e o que é consolidado para resolver as questões ambientais desse país (veja. A.Marcos Rodrigues aspectos tais como a disseminação de doenças e à descaracterização genética da população residente. biogeografia. Se isso acontece. por exemplo. de Araújo pelas críticas e sugestões durante o seminário na Universidade Federal da Paraíba. de Vasconcelos. As companhias energéticas. M. Esse procedimento seria possivelmente mais barato e traria maior retorno à sociedade. Os ‘conselhos’. é muito mais útil e importante para a sociedade do que um animal morto num combate territorial artificial. que a maioria dos biólogos do Brasil encontra os conceitos da Ecologia Comportamental. 1995). Olmos. seja no âmbito estadual ou federal. Agradeço pelo apoio do CNPq (processo n. ou seja. genética. anatomia e evolução. de pósgraduação. Nemésio e três revisores anônimos. É nesse nível.vol. o impacto ecológico do enchimento de uma represa. A. entretanto.pp. Um animal coletado. Roos (CEMAVE/IBAMA). ainda não tiveram capacidade para absorver sequer parte desse pessoal altamente capacitado. Galetti. devido à inércia política do sistema. pois tal área do conhecimento não é contemplada em cursos de graduação. As empresas de ‘consultoria ambiental’ naturalmente procuram utilizar a mão-deobra mais barata e não qualificada para tocar os projetos exigidos para o licenciamento am- biental. mostrando que as empresas e as empreitadas são ‘ecologicamente corretas’. Uma das minhas sugestões é que todos os animais apreendidos em projetos de resgate de fauna sejam coletados e depositados em instituições de pesquisa. O que poucos sabem é que os animais estão sendo libertados para a morte. 473428/2004-0) e da ‘Fundação O Boticário de Proteção à Natureza’ às pesquisas do Laboratório de Ornitologia do Departamento de Zoologia da UFMG.F. Esse dinheiro e toda a energia para se implementar projetos de resgate de fauna poderiam ser usados mais inteligentemente. AGRADECIMENTOS Sou grato a M. O governo brasileiro gasta todo ano milhões de dólares com a formação de pesquisadores de nível de doutorado. para citar apenas algumas (veja uma excelente revisão do tema em Remsen. Nunes e A. Nishida (UFPA) e H. 29-38 .F.Abril 2006 . gastam um bom dinheiro em uma atividade infrutífera e desnecessária. e devidamente preparado e tombado numa coleção zoológica. pela leitura e sugestões ao manuscrito original. A única utilidade do resgate de fauna é a ampla divulgação na mídia. 4 . como a ecologia. F. Olmos. por que continuamos essa empreitada? Os projetos de resgate de fauna não passam de uma falácia ou uma medida não-científica para amenizar. perante a opinião pública.nº1 . Coleções científicas são a base do estudo da biodiversidade e suas numerosas facetas. e conseqüentemente a sociedade. F. Ponto de Vista 36 Natureza & Conservação . 2005).P. pois mostram os animais sendo libertados. ). J. B. Female pied flycatchers choose territory quality and not male characteristics.J.A. Ross. Macmillan.A. Gill.R.M. J.nº1 . Pp. and Individual Spacing. Bird song and territorial behavior.. 1996. 1975. Ecologia Comportamental. intrusion pressure. Pp.. C. 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