H. Lefebvre- Urbano (O)

March 28, 2018 | Author: paolocolosso | Category: City, Time, Civilization, Paris, Urbanism


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LEFEBVRE, Henri, Urbain (L’), in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le mondemoderne. Paris, Messidor/Éditions Sociales. 1986, p. 159-173. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). URBANO (O) O que é o urbano? A palavra não é nova, mas o conceito trás o novo, iluminando um certo número de fatos, de relações, permanecidos na obscuridade e no silêncio (vergonha ou pudor?). O termo urbano teve por predecessor e ancestral semântico um belo substantivo: a urbanidade, próximo da civilidade, que significava a cortesia, a tolerância, o saber-viver (em oposição à “barbárie” do campo, no século XVIII). A urbanidade, nesse sentido, retinha toda a tradição (suposta) das cidades desde Atenas e Roma, passando por Veneza e Florença. Quando a urbanidade se apaga, a palavra entra em desuso, aparecendo, então, o urbanismo e a pretensiosa “urbanística”, com uma ideologia, regulamentos, um código, que pretendem substituir uma vida prática que sai de moda e ordenar aquilo que teve charme espontâneo: a vida “na cidade”, em Londres, em Paris, do que restam muitos testemunhos literários (Swift, Diderot, etc). Nesse aspecto, como em outros, uma prática (também com uma ideologia) precedeu a teoria. Esse conceito, o urbano, há pouco entrado nos vocabulários (ciência e prática), não designa a cidade e a vida na cidade. Ao contrário: ele nasce com a explosão [l’éclatement] da cidade, com os problemas e a deterioração da vida urbana. A esse título, ele tem um grande alcance, tanto quanto “o industrial” ou “o informacional”. Longe de coincidir com a Cité (antiga) e com a Cidade (medieval), o urbano as substitui englobando-as, portanto sem excluí-las enquanto momentos históricos. Essas diversas noções, envolvidas pela mais recente, designam a dupla tendência do espaço social à concentração e à extensão (periférica). O urbano? É de uma forma geral: a da reunião, a da simultaneidade, a do espaço-temporal nas sociedades, forma que se afirma por todos os lados no curso da história e quaisquer que sejam as peripécias dessa história. Desde as origens e o nascimento das sociedades, essa forma se confirma, com os conteúdos os mais diversos. Ela se confirma enquanto forma até na explosão [dans l’éclatement] que assistimos. O urbano como conceito nasceu, pois, de uma nostalgia, a da Cité e a da Cidade histórica (nostalgia que se experimenta nos lugares, os que cada um habita, os que são freqüentados, os que são visitados durante as viagens a todo tipo de países) e de uma constatação inquietante para o futuro: essa explosão [cet éclatement] da cidade histórica, no curso da segunda metade do século, com uma intensa e cara “urbanização-desurbanização”. Processo há muito tempo inaugurado (os subúrbios e periferias não datam dos anos 1960-1975), mas exacerbado durante este período. O conceito parte de uma teoria sobre o espaço (social) enquanto produto-produtor, isto é, engendrado pelo modo de produção, mas intervindo em todos os níveis: forças produtivas – organização do trabalho – relações de propriedade – instituições e ideologias. Cada modo de produção produziu seu espaço. O modo de produção existente tem sua história; essa história não se reduz nem à das técnicas, -1- 1 o termo e o conceito de urbano não designam (somente) os centros. as especulações. Los Angeles. a demografia. etc. 1986. As periferias podem estender-se até muito longe. os núcleos históricos. A cidade persiste condensando-se (o que não exclui a pluralidade dos centros. as empresas. O conceito sublinha aquilo que se passa e tem lugar fora das empresas e do trabalho. há lugares com status. Essa é também a história do espaço e do tempo. Santa Mônica. etc). Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). em torno dela (a aglomeração concentrada e policêntrica que ainda trás o nome de “cidade”) dispersam-se aglomerações secundárias. de autoridade administrativa e política. Messidor/Éditions Sociales. a repartição e as transferências de propriedade. Em resumo. exibição de força. -2- 2 . O urbano compreende tanto um pequeno burgo de casas agrupadas em torno de algumas pequenas e médias empresas. De um lado. a centralidade se afirma. “isolats”. bancos e promotores que dominaram e exploraram o espaço assim produzido. dos fluxos de produtos. das atividades diversas. ao que parece intermediários. confirmase: centros de decisão. mas também das megalópolis. Além disso. de ganhos. O espaço urbano não exclui a produção. das redes múltiplas que se ligam. portanto. as constatações. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde moderne. p. o urbano (que aparece com a transformação daquilo que ele eleva ao conhecimento) permite descrever e impor esse duplo processo de implosão-explosão [explosion]. da prática no modo de produção e reage sobre ela: espaço das estradas. dos meios de locomoção. Com as características tradicionais: monumentalidade. nessa acepção. é mais amplo. de organização econômica. ditas “subúrbios” [“banlieues”]. com temática e com problemática correspondentes. o estudo de questões reais mas parciais. Paris. A cidade de origem histórica (medieval) não desaparece com a modernidade. Ele põe a ênfase no cotidiano na vida das “cidades”. “produtos” que não podemos definir nem como materiais nem como imateriais. esses grupos de casas ou esses “conjuntos”. de capitais. Hollywood. Pasadena. Ao mesmo tempo. ao mesmo tempo em que a comunicação e a informação. religiosos. que se estende por mais de cem quilômetros e que compreende municipalidades autônomas. O conceito foi elaborado para substituir por análises dialéticas (levando-se em conta a complexidade dos fatos assim como contradições e conflitos) as representações simplificadas. o território onde se desenvolvem a modernidade – e a cotidianidade no mundo moderno. aí compreendidos (como problemas) esses “isolats”. de especulações sobre os terrenos. Urbain (L’). cidades satélites. mas antes como abstrações concretas que entram na prática. esses guetos. O espaço nasce. nem cidade nem campo. mal definidos. Henri. como designam também as extensões fragmentadas. 159-173. São Paulo. simbólicos. o que não é ou não é mais “campo”. de informação e conhecimento. se bem que ligado por múltiplos liames à produção. etc. a tal ponto que quem as atravessa não sabe muito bem onde começa a cidade e onde ela acaba (assim como Los Angeles. portanto a existência de centros “culturais”. território voltado à produção agro-alimentar ou ao abandono. como as gigantescas aglomerações: México. das periferias mal delimitadas. “guetos”. Portanto. nem à das revoltas e revoluções (que tiveram suas causas e suas razões). traços espetaculares. É. periferias.LEFEBVRE. etc). nem à das trocas. as relações industriais: mas a compreensão do termo e do conceito. O conceito. ou melhor. Com a Cité e a Cidade que ele não desmente. o que ele recebe e o que devolve (aí compreendidos a energia e os detritos). às vezes mística: jardins. como obra. templos. faz parte dos procedimentos [démarches] analíticos. etc). luz – os elementos. o mundo. permitindo conhecer um aspecto dessa realidade que parece simples no início. Nem por isso a “natureza” como tal penetra menos aí. clara e distinta. o “outro”. as trocas. em resumo o metabolismo e a vida exterior. depois como objeto. Urbain (L’). O urbano não é exterior à “natureza”. O espaço e o campo? A natureza os oferece. ao sensível. a análise estuda os grupos. Cada unidade urbana tem sua -3- 3 . ar. a agricultura e as atividades práticas os modificam. classes. frações de classe. a justiça. como e segundo que critérios – em resumo. Não é a única. A título do “objeto”. o poder absoluto. precisamente. e que se revela “profunda”. que compõem o urbano (essa ou aquela aglomeração) – suas ações. a disposição das ruas e dos bairros. As descrições poéticas do urbano não têm interesse menor que as descrições e análises científicas (econômicas. parque. analisa-se o urbano por múltiplos procedimentos [démarches]. madeira. político. a situação no território. sociológicas). que o urbano se faz mais mineral que vegetal. e mesmo ela aí se restitui numa pureza simbólica. Os termos “natureza segunda” tomados às tradições (eles designaram primeiro os hábitos) convêm à cidade. água. têm mesma função. Do ponto de vista do “sujeito”. Henri. Paris.LEFEBVRE. Estes últimos. prisões. muito diferentes uns dos outros. lugares de produção industrial e empresas (fábricas). evocam. eles se parecem. com prioridade crescente deste último. o espaço dado e o espaço produzido imbricam-se estreitamente. dos “sujeitos”. Desse triplo ponto de vista nasce uma compreensão de conjunto. A topologia do urbano. o analista examina o uso do espaço. 159-173. que unifica as abordagens. O procedimento [démarche] analítico aproxima os lugares do urbano com funções ou evocando símbolos comparáveis: isotopias e heterotopias. flores e plantas. e finalmente como obra. embora diversos no detalhe: ruas e centros comerciais. É certo que o metal suplanta a madeira. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). O urbano pode também ser estudado em três níveis ou dimensões: o arquitetônico (os edifícios e monumentos) – o urbanístico (a organização da cidade. Quanto ao espaço urbano. os “atores sociais” e a vida interna da aglomeração. à caminhada. mas também cemitérios. os laços do urbano com as imediações. a monumentalidade e o que acontece em torno de um determinado monumento religioso. mas não lhes tiram sua prioridade “geográfica”. mesmo se modificados pelas técnicas: pedra. São lugares sociais e consagrados. museus. a análise estuda o sítio. um terreno de jogos. mas engloba no nível teórico. ele é produzido. Quanto aos lugares isotópicos. uma vez que sensível aos olhos. ecológicas. Ora. o imaginário. O urbano hiper-complexo A partir de seu conceito. portanto as classificações (isoheterotopias). palácios. ele pode ser considerado do ponto de vista do sujeito. 1986. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde moderne. p. militar. reações. demográficas. O que permite descrever e compreender a produção do espaço: a análise das relações conflituosas entre o dado e o conquistado. Finalmente. ou “civil” (uma praça. Ele é construído com materiais tomados à natureza. interações – aqueles que dirigiram ou. árvores. seu funcionamento global) – o territorial (no país). Messidor/Éditions Sociales. a divindade. entre o natural e o produzido. O conceito de urbano. os aspectos e momentos do urbano que permitem ou pedem uma intervenção. É surpreendente que se fale de uma crise do urbano. milenares. clãs. conquistas. De modo mais geral. punha aí um desafio. A terra e a agricultura conservaram até os nossos dias a aldeia e a família camponesa. portanto uma aristocracia. sobre todas as terras. cessões e heranças. entretanto. As unidades urbanas do terceiro mundo também têm suas características. 1986. por exemplo. cidades culturais. um mandarinato. As cidades podem ser classificadas por tipos. “questões”. das cidades do “terceiro mundo”. p. etc. O que logo só consistia em verdade bastante relativa: os mares tiveram seu papel. unificá-la. Henri. uma provocação. A cidade foi por muito tempo considerada um lugar maldito. encontrando uma terminologia. o bom e o mau. O mito de Babilônia. Igualmente. a Cité por excelência. mais que à teoria. seus ritmos. A tipologia do urbano se liga à Geografia “Humana”. distintas das megalópolis de tamanho comparável nos países ditos “avançados”. os transportes. Messidor/Éditions Sociales. o amigo e o inimigo. sua ambiência e. Quando o arquiteto Constant Nieuwenhuis intitulou New-Babylon seu projeto urbano. da moeda. evidentemente. o tempo e o espaço. formular teoricamente “problemas”. Roma. de Alger a Nápoles e Palermo: persistência de grupos ativos. está longe de ter desaparecido. etc. da extensão das relações. políticas. as unidades urbanas do Mediterrâneo. 159-173. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). dependendo de pesquisas e de decisões (financeiras. As soluções eventuais. tonalidade. em problemáticas. Urbain (L’). a grande cidade antiga. na medida do possível. os portos do Atlântico têm suas características. forte maniqueísmo. voltado ao mal. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde moderne. em resumo. etnias. centros de poder (Roma) – cidades industriais (São Paulo) – cidades comerciais. tributos e dízimos. máfias. geria um império baseado na propriedade fundiária (os latifundia). porque o termo e o conceito designavam precisamente essa “crise” (a explosão [l’éclatement] da cidade histórica). sobretudo. A forma geral recebe seus conteúdos do contexto histórico e territorial! Dito isso. Mesmo o -4- 4 . que se põem na prática. dos fatos. mas segundo as relações de propriedade. usurários. é preciso considerar a Terra num sentido muito amplo: não somente segundo as produções.LEFEBVRE. corporações religiosas. A pesquisa das possibilidades orienta o estudo teórico do “real”. embora entrem na classificação como “cidades mediterrâneas”. Ele se diversifica em estudos. De outro lado. diferentes das cidades “atlânticas”. os ritmos. a fim de dominar a enorme problemática e. engendraram a grande propriedade fundiária. dialético. Paris. no mínimo em razão dos fluxos. notadamente na formação das trocas. A sociedade urbana Durante muito tempo (e ainda para Marx) a Terra passava por laboratório das formas e realidades sociais. da mercadoria. subordinadas ao conceito e unificadas por ele. Os de Barcelona não são os mesmos de Veneza ou de Marselha. não permanece imóvel e estático. têm traços específicos dos quais os mais acentuados reencontram-se de Barcelona a Beirute. formações vigorosas. Não basta. ao diabo e ao pecado. o diabólico e o divino. a perversa. há cidades políticas. concernem a violência. ideológicas). o mal olhado e o gesto favorável. donde a exigência de um controle e de uma limitação dos nascimentos). Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). Henri. Messidor/Éditions Sociales. não sua importância (ao contrário). do mesmo modo. o lugar da civilização.. O verso de Baudelaire: A forma de uma cidade Muda mais depressa ai de mim [hélas] que o coração de um mortal! resumirá por muito tempo a emoção do poeta diante do urbano. 1986. uma prática orientada por um mito. O feudalismo [la féodalité] ocidental baseava-se no feudo. desaparecem e reaparecem. a avenida. Afirmar-se-ia o urbano como o lugar de uma nova barbárie? O combate teórico e prático contra esta hipótese faz parte do projeto.. A cidade torna-se. -5- 5 . já que será preciso resolver inventando (espaço e tempo novos).LEFEBVRE. etc) suscitaram muitos discursos. Urbain (L’). o espaço perspectivo sendo uma descoberta e uma invenção (século XIV na Itália). a Região a mais límpida. de Darwin e mesmo de Malthus (os teóricos chineses admitiram que seu enorme território não poderia alimentar mais de um bilhão e meio aproximadamente de seres humanos. retendo ou tentando reter da cidade antiga o que esta teve de melhor: o amor do citadino por sua cidade. as cidades se libertaram das sujeições. até na ficção científica. freqüentemente excessivamente cheios – riqueza e pobreza – monumentalidade e edifícios desprovidos de sentido. o jardim (square). dominaram as cidades. O contraste e as contradições do urbano (espaços vazios e cheios. na suserania das aldeias. A cidade e o urbano contribuíram para produzir tantas obras-primas quanto a natureza e o campo. Desde então. depois. com modalidades diversas. Paris. ideológicos e literários. só conservando as mais rentáveis (em rendas diferenciais). hoje a urbanização maciça prossegue irresistivelmente: no final do século. a praça. 80% da população mundial viverá naquilo que outrora se nomeava a cidade. então. não sem alguma razão. Este será longo. Do mesmo modo que a filosofia nasceu da cidade antiga. com diversos tipos de arte. O agro-alimentar perderá. no território. O que atualiza. difícil. sobre o México) aí compreendidos os presságios sobre o planeta urbanizado (Trentor em a Fundação). as hipóteses de Ricardo. quantos livros magníficos (por exemplo: Carlos Fuentes. A URSS e a teoria revolucionária só lenta e dificilmente admitiram o crescimento urbano. Curiosamente. o gosto e o sentido do espaço urbano. mas uma parte das superfícies cultivadas. foi a Babilônia da revolução cubana. Ora. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde moderne. p. socialismo nascente seguiu esse caminho. Acrescentando a isso o sentido da perspectiva. a civilidade nasceu ou reapareceu com a cidade. Seria bastante interessante fazer a história comparativa desses temas. os temas da cidade e do urbano aparecem em determinados momentos em todos os países. prosaicos e retóricos. um pouco por toda parte (exceto onde não houve feudalismo [féodalité]: nos USA por exemplo). Havana. ao lado das obras de Marx e de Engels sem esquecer Saint-Simon e Fourier. resolvendo contradições e conflitos entre os mais profundos produzidos pelo “modo de produção” que dominou. 159-173. em uma escala mais ampla. Por muito tempo os campos. Urbain (L’). há anos e anos que a explosão. no terreno. cada vez mais abstrata. Não contém essa desordem uma ordem virtual? O caos dos “pavilhões”. mas sobretudo na segunda metade do nosso século. enormes mudanças. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar).) o pós-moderno tem um sentido. Com elementos comparáveis. acreditar nisso. Utopia dir-se-á. 1986. p. uma nova civilização. em nome da história e de seu sentido. A cidade explodida [éclatée] só mostra caos. os pós-modernos. o futuro da sociedade dita industrial. Escaparia a imagem à abstração? Dizer isso. o futuro da sociedade urbana não pode ser previsto como se acreditou por muito tempo poder anunciar extrapolando. notadamente a extensão e a explosão [l’éclatement] das cidades: o urbano. por uma substituição ainda não esclarecida. embora a proponha com força nos países os mais industrializados e urbanizados. em dois séculos. até anulá-la. o civismo dos cidadãos)? Maneira de ser no cotidiano. a urbanidade. a urbanização maciça. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde moderne. etc. Paris. O que resultaria de uma insurreição? De uma guerrilha urbana? Quem pode prever? Renovação ou catástrofe? Seguramente.LEFEBVRE. A “cultura”. As periferias são ameaçadoras. Contradição: revoluções e conservadorismo. desordem mal compensada por transportes ao mesmo tempo tecnicamente aperfeiçoados e espacialmente defeituosos. abstrações: mesmo na arte. no lugar da “cultura”. a clivagem entre a elite e o povo. sempre prevista. Fará o urbano renascer. certamente. É no espaço da cidade explodida [éclatée] – do urbano – que se desenha e ganha forma. por exemplo. embora tenha um jeito de saco de gatos [fourre-tout]. a sociedade dissociada. em Lima. Teria um sentido o fato do termo cultura ter ocupado o lugar. E mesmo na arquitetura (o movimento pós-moderno parte dessa constatação). mas de seus tumultos nada pode nascer. um traço essencial dessa transformação é. Qual? A civilização se definia por uma maneira de viver – por certas “maneiras” nas relações sociais. ficção. a sociedade civil. em outras palavras. Como outras denominações propostas em nome da transformação social (sociedade pós-industrial – sociedade de comunicação. essas palavras quiseram designar alguma coisa de -6- 6 . obcecados pelas nostalgias não previram ou não construíram mais que neo-aldeias. 159-173. é esperada. das “cidades satélites” durará para sempre? E a violência latente . com seus traços revolucionários. a civilidade. Henri. é uma inconseqüência de graves conseqüências. a sociedade dual ou “triádica” [“trial”]. uma civilização urbana geriria. A era industrial trouxe. contradições. É sabido que ela se transforma. cabendo nela não importa o quê. desordenada. o risco é somente de correr sangue. Messidor/Éditions Sociales. da palavra e da idéia de civilização? Muito provavelmente. Entretanto. Situação explosiva? Sim! No México. a “cultura” tem por conteúdo essencial representações. Parece que a era industrial. Testemunham a segunda ou terceira coroa em torno dos centros os mais “concentrados” e “concêntricos”: Paris.ou explosiva – que ela contém? A teoria do pós-moderno não responde à questão. trouxe a cultura. A Cité e a Cidade tinham trazido a civilização. mas não aquele que as palavras declaram. Com alguns argumentos. dos “conjuntos”. de modo que a transformação ou revolução cultural que se realiza na “cultura” (sem que muitos se dêem conta) restitua em um nível mais elevado a civilização (isto é. uma arte de edificar comportando uma prática e uma maneira de viver que. ele executa e transmite o -7- 7 . Elas respondem a uma “encomenda” social e política inflexível. É. Ao contrário. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde moderne. no que concerne aos monumentos. o dinheiro e os “sistemas de equivalências”. mais global. A sociedade mundial será urbana ou não existirá! A sociedade urbana organiza-se como tal. Urbain (L’). sobretudo nos USA teve grandes repercussões. com argumentos a favor de sua predominância atual e virtual. quase demiurgo. da Espanha e de outros lugares. eles produzem. Henri.) ou então a sociedade se dissociará. que sem isso reduzir-seiam a migalhas. Na surdina. se encarna nas construções. porque determinante. uma controvérsia opõe duas “escolas”. deram lugar ao gênio criador. Sem nenhuma dúvida. que. y compris celle du savoir]. o mercado. o trabalho e os trabalhadores industriais não desaparecem e não desaparecerão tão cedo. a indústria (e os trabalhadores). A indústria. nesse nível que deve intervir hoje ou amanhã a invenção que repercutirá nos outros “níveis”. Argumento contrário: as iniciativas arquitetônicas inserem-se sempre numa ordem social que produz e ordena seu espaço. esse último fator tendo predominância total. os fluxos de trocas. A “sociedade urbana” dominante não pretende dizer tudo. A denominação “pós-industrial” provocou ilusões. Constituem o núcleo (com a empresa) ou um dos núcleos em torno dos quais se organiza o espaço urbano assim como o tempo. Essa discussão prossegue entre iniciados e ainda não atingiu o público. o agrário ou agro-alimentar. ora. 159-173. eles criam a vida urbana. preciso. Mesmo tendo deixado de aparecer e de ser a tendência dominante. eles apenas exprimiam um recuo diante dos erros e das falsas audácias do “modernismo”: diante das medonhas realizações das “torres”. como encomendas. a mercadoria. as igrejas. diferentemente da discussão “modernista” contra “pós-modernos”. permanecem essenciais. vislumbrando diferentemente o futuro do urbano. extrapolando tendências. pois. Paris. uma intuição ou mesmo um projeto. aí compreendidas as do saber [C’est le terrain d’initiatives. dos “grandes conjuntos” ou dos [cottages pavillonnaires] os mais recentes. nas cidades históricas da Itália. Messidor/Éditions Sociales. exaustivamente. eis sua argumentação: os grandes arquitetos inovaram. 1986. Ela nomeia e designa uma tendência. que o modo de produção decide a ordem que se realiza e. uma outra escola. do arquiteto. encontrando um “estilo”. A disposição das praças e das ruas. sua problemática. É nessa escala. que a concepção do espaço urbano tem prioridade. influenciaram o entorno [o environnement]. isso será a decomposição – e a catástrofe. mais “urbanística”. da cité e da cidade). o trabalho industrial. porque provindo de um “nível” superior. em seguida. característica de nossa época. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). Do que se trata? Do elemento fundador e/ou “promotor” do urbano (ontem. levando em conta momentos anteriores (o industrial. Do mesmo modo que a “produção material”. Do mesmo modo que a troca. Em favor da primeira tese. obedeceu às iniciativas arquitetônicas: os palácios. etc. afirma que o arquitetônico vem em seguida. Para uns a arquitetura e o arquiteto têm um papel decisivo. Com sua temática e – sobretudo.LEFEBVRE. ou se se preferir nesse nível. p. o arquiteto “exprime” os desejos e vontades dos poderes. os mosteiros. Esse é o terreno de iniciativas. eles fazem. por assim dizer. Paris. de civilização (de urbanidade). Ora. Pode ser que uma concepção de conjunto distinga o arquitetônico. impulso [l’impulsion]. não sem conflitos). de uma metamorfose que não se realiza por simples desviar. lugar favorecido pelas trocas. estendendo-o ao território das cidades e ao espaço (venda em parcelas – especulação – venda de apartamentos. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde moderne. das autoridades. O modo de produção existente amplificou o domínio da mercadoria. que atingiram até as profundezas do ser humano (da sexualidade) e que. ainda quase “comunitária”. o melhor e o pior. nenhuma fórmula. socialização. no curso da Idade Média e do Renascimento. ou ele será um lugar de reapropriação (da vida cotidiana. sua explosão [son éclatement] pode aniquilar esse papel. Será esse um verdadeiro problema? Quem teve precedência: a perspectiva (e a colocação em perspectiva) das praças e avenidas urbanas – ou as fachadas arquitetônicas e destinadas a figurar numa perspectiva de conjunto? O que acontece em Siena. O urbano. procede das análises anteriores: a cidade teve e guarda uma “centralidade”. com uma exigência de unidade. à oligarquia? Certamente uma transformação em todos os níveis. do social). Um tal projeto não pode deixar de lado a questão dos terrenos. isolamento) como do ponto de vista da sociabilidade (das relações -8- 8 . uma “escolha” mais ou menos consciente se realiza. mas sempre (na vida biológica e nos tempos humanos) possibilidades freqüentemente opostas. p. mas como momentos de uma questão global. etc). concernindo ao espaço (nacionalização. não somente do ponto de vista da autoridade e do poder – o que acompanha a vida social. Os arquitetos sofreram a pressão dos interesses. transformar a propriedade em apropriação (no sentido “filosófico”) é um aspecto. O que deixa a cada “nível” a liberdade de invenção. Ainda está por ser encontrada uma fórmula de apropriação do espaço urbano. que a isso se preste. Ou o espaço urbano será um espaço de dissociação da sociedade e do social (em um caos. Essa idéia. Portanto. O “direito à cidade”? Isto queria e ainda quer dizer: não deixar perder a herança histórica – não deixar o espaço se transformar em migalhas. Mas. o urbanístico.LEFEBVRE. não como separados. durante a passagem dessas cidades da república. assim como a todos os modos de apropriação. estatização ou municipalização) deu resultados convincentes. Messidor/Éditions Sociales. Henri. 159-173. Se não há determinismo absoluto. O direito à cidade Se é exato que a cidade foi um lugar de civilização. pela vida social. dos promotores.. por vias diversas. dos bancos. hoje e amanhã? Um feixe de possibilidades. em uma massa agitada de movimentos diversos). e não o menor. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). As periferias e subúrbios encontram-se em situação ruim: do ponto de vista da atividade prática (transportes. reencontrar o “centro” como lugar de criação. como aspectos ou momentos de um projeto concernindo ao urbano. E que se opõe radicalmente a todas as expropriações. pela civilização (portanto. lançada há vinte anos e que teve uma certa repercussão.. depois da dos soberanos e dos príncipes mais prestigiosos. fadigas. 1986. Urbain (L’). em Florença. Talvez o melhor aqui e o pior em outros lugares!. o territorial. chegam à exclusão da sociedade. por exemplo. de outro lado. deveria modificar. ele afirmava o direito dos “usuários” de se pronunciar sobre o espaço e o tempo de suas atividades no território urbano. para imigrantes. pois. das trocas. Mas. tornado citadino. impedir a dispersão sem amontoar os “habitantes” e “usuários” uns sobre os outros. também mais largamente. que se prendia aos interesses ditos privados. Contra essa propaganda e contra a negligência muito real dos que deveriam ter-se oposto a isso e proposto uma “política urbana”. os “direitos do homem” foram reconhecidos em numerosos países (Helsinque). Será ainda preciso provar que tem havido inovações. de sociedade. Recentemente. rechaçados em guetos (para trabalhadores. de civilização. o direito ao uso da centralidade. as advertências. O direito à cidade. à saúde e seguridade. O direito à cidade vem. na sua gestão. com a promessa do “moderno”. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde moderne. Outros também. mas de um agrupamento mais preciso. do renascimento do conhecer e da arte – da ascensão do capitalismo. mas dos direitos do cidadão: este não é mais somente membro de uma “comunidade política”. além disso. sem mandato imperativo). às posições das autoridades. não foram bem entendidas: vimos desde então as conseqüências de uma tal “negligência”. Paris. Duplo lucro: construir cada vez mais longe da cidade e remanejar a cidade (sem outra perspectiva que o ganho). flutuante. manipulada) e ao voto (para eleger “representantes”. Com um compromisso histórico entre a aristocracia e a burguesia. Conduz também à participação do cidadão-citadino à vida social ligada ao urbano. tornar mais concretos e práticos os direitos do cidadão. em vez de se verem dispersos. a não ser como direito à opinião (mutável. cuja concepção permanece indecisa e conflituosa. Esse direito supõe uma transformação da sociedade segundo um projeto coerente. Foi assim. iniciativas. invenções nesses domínios? O que seria preciso mostrar é que elas acompanharam as mudanças de época. do territorial. propõe proibir o deslocamento dessa “cultura” urbana. (completado pelo direito à diferença e pelo direito à informação). à ideologia modernista: atraía-se para as superfícies “desurbanizadas”. Esse direito conduz à participação ativa do cidadão-citadino no controle do território. Os direitos do cidadão? Estão em pane. do urbanístico. Henri. Mal definidos. criações nos domínios nos quais interferem a arte e o conhecer. usuário de múltiplos serviços. p. dos negócios. etc). foi preciso reagir em nome de um direito. Urbain (L’). cujas modalidades permanecem por precisar. -9- 9 . mas inventando nos domínios e nos níveis do arquitetônico. tentaram a invenção arquitetônica e urbanística. na Toscana: em Siena e Florença). o cotidiano e o global: a arquitetura. respondendo as interrogações e resolvendo teoricamente (no sentido forte. o tempo e o espaço. 159-173. 1986. os habitantes dos centros urbanos. não tanto como complemento dos direitos do homem (como o direito à educação. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). Ricardo Bofill no começo de sua carreira. Messidor/Éditions Sociales. As críticas. para “marginalizados” e até para “privilegiados”!). a perspectiva. Mais ou menos bem observados. fora do trabalho). com “a cidade no espaço” – Constant Nieuwenhuis com a “New Babylon”.LEFEBVRE. implicando o momento da prática) os problemas e. lugar privilegiado. e. do banco. do comércio. admirável invenção. De um lado. contemporânea do fortalecimento das cidades (na Itália. propondo múltiplas interrogações: a cidade moderna – o urbano. Messidor/Éditions Sociales. isto é às “superestruturas”. gerais (nacionais) concernindo à produção e à gestão do espaço. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde 10 moderne. entendendo-se por esse termo tanto a segunda e a terceira coroas de Paris como as aglomerações da África e da América. Ao contrário: elas foram excluídas de algumas vantagens. Ocorre que as “camadas”. O que. talvez menos conhecidos. de lutas de classes. em toda sua complexidade. passando pelas estruturas: relações de propriedade. recuperar o centro das cidades (que ela abandonara por um certo período). que soube arrumar seus territórios. gestão). mas pouco provável no modo de produção atual. Essa situação entra. p. E freqüentemente. as autoridades urbanas (as municipalidades) não podem ter outro papel que aquele de “intermediário” [de “relais”] entre os poderes políticos e o Estado: questão a ser debatida e cuja resposta nada tem de evidente. seus “representantes” acompanharam ou não viram direito o que ia acontecer: o desastre do urbano. é evidente hoje que esse espaço é insuportável [“invivable”]. então. Os problemas urbanos apresentam-se. Henri. são elas suficientes para definir o (um) novo (e diferente) proletariado? Uma revolução? As relações e condições do trabalho – as relações no trabalho – não podem ser descartadas. com seu emprego (seu uso). Historicamente. Ora. 1986. cuidar das residências. de questões políticas. de maneira imediata ou derivada. . pois. O urbano e o Estado Segundo uma tese que parece difundida. era muito tarde. Esses casos bastam para mostrar que a inovação é possível. isto é. organização do trabalho produtivo. embora tenha havido “movimentos urbanos”. para defender a autonomia das autoridades urbanas e para permitir-lhes erigir-se. o espaço e o tempo entram em tais definições. na problemática. afastadas para as periferias. A não ser para a elite. As periferias. em contra-poder. antiga ou recente.LEFEBVRE. transportes. portanto. Urbain (L’). Embora sempre tenha se tratado. inútil insistir. classes e frações da classe operária não puderam beneficiar-se das modificações do urbano. os “executivos” dos políticos. em caso de necessidade. Sem resistência obstinada. que produziu seu espaço e seu tempo e não pode mais que utilizálos. não foi sempre assim. Uma ideologia persistente reduz os problemas urbanos a questões locais. e hoje mais ainda. Os poderes e as constituições obstinaram-se em fazer dessas autoridades (os magistrados municipais e os “cônsules”. das forças produtivas às instituições e ideologias. implicitamente ou não. Entretanto. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). Paris. hoje informacional e. 159-173. Apesar das advertências! Essas populações periféricas por muito tempo se desinteressaram pela política urbana. cobrindo (eles também) todos os “níveis”. etc. Quando se percebeu o desastre. inclui uma concepção desse espaço e uma estratégia. Uma luta imemorial é conduzida contra essa estratégia. direta ou indiretamente. notadamente da centralidade modificada e reforçada (cultura.10 - . comunicação. Trata-se. essas populações aceitaram a situação. depois conselheiros e prefeitos) empregados do Estado. (N. Não bastam as construções monumentais. da unidade. Do que? De uma vida social diferente: de uma sociedade civil fundada não em abstrações. O devir tem leis e pode ser analisado: ele tem ritmos lentos e outros rápidos. mas no espaço e no tempo tais como “vividos”. delirante. o cidadão-citadinousuário participando de maneira cada vez mais próxima de todos os momentos da realização. tornar-se museus. o urbano tornar-se-ia o lugar de uma democracia cada vez mais direta. a ação – estratégia lenta a longo. Tradução de Margarida Maria de Andrade (versão preliminar). sem com isso caminhar na direção de uma açãoresposta. no entanto. obras de prestígio. forma atual da simultaneidade. Será preciso todo um período “histórico” para desfazer e refazer o que o capitalismo desencadeado. econômico. Enfim. in: Le retour de la dialectique : douze mots clefs pour le monde 11 moderne. Igualmente.11 - . Não mais que os movimentos parciais: o mundo torna-se nosso mundo. demográfico. As cidades históricas e os próprios centros não podem ser “empalhados”.: Página escrita após uma releitura do Crátilo de Platão. Messidor/Éditions Sociales. médio ou curto prazo. Nossas cidades explodidas [éclatées]. unidade exigida para o projeto. permitindo formulá-las. dedicada aos filósofos. Não há nada de permanente. a Cidade. Henri. embora se dissolvam e acabem – como tudo no mundo! O urbano. Não há nada de durável. Tudo muda.. 1986. portanto. escapando ao tempo. sociológico). da reunião. 159-173. se bem que relativos. os ritmos. Tudo o que é muda. Assim. do que os “pós-modernos” se dão conta. nossas megalópolis – o urbano moderno – têm que ser desconstruídos e reconstruídos. Paris. as dimensões. ************************ . Elas reconciliariam o trabalho intelectual (da “criatividade” estética) com o trabalho manual (os materiais) fornecendo trabalho a gerações! Isso permitiria uma certa aliança do trabalho com o conhecimento (histórico. A Cité. Urbain (L’). o devir difere conforme as escalas.. mas desigualmente.LEFEBVRE. p. o Urbano não se encontram fora do Devir. o nascimento e o desenvolvimento. as questões práticas.) Esse aspecto meta-filosófico do urbano só teria sentido especulativo se não remetesse. ilusoriamente racional produziu. Tudo se torna. interroga-nos ao mesmo tempo sobre a forma e o conteúdo. há tática e estratégia: tática no imediato e no atual rápido. A essa obra colossal (e revolucionária) podem associar-se forças diversas.B. as formas duram mais que os conteúdos e resistem ao tempo.
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